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SOCIEDAD E BRASI LEI RA DE PEDI AT RIA
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TRATADO DE
SOC IEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA
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Copyright© 2017 Editora Manole Ltda. Por meio de contrato com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). LOGOTIPO: COPYRIGHT:
Sociedade Brasileira de Pediatria
Sônia Midori Fujiyoshi Cristiana Gonzaga S. Corrêa e Juliana Morais PRODUÇÃO EDITORIAL: Vanessa Pimentel CAPA E PROJETO GRÁF IC O: Daniel Justi DIAGRAMAÇÃO: Sopros Design e Lira Editorial ILUSTRAÇÕES DE MIOLO: Sírio José Braz Cançado, Mary Yamazaki Yorado e Angelo Shuman FIGURAS DO MIOLO: gentilmente cedidas pelos autores EDITORA-GESTORA: EDITORAS:
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Tratado de pediatria : Sociedade Brasileira de Pediatria / [organizadores Dennis Alexander Rabelo Burns... [et al.]]. -- 4. ed. -- Barueri, SP : Manole, 2017. Outros organizadores: Dioclécio Campos Júnior, Luciana Rodrigues Silva, Wellington Gonçalves Borges Bibliografia ISBN: 978-85-204-4612-6 1. Crianças - Doenças - Diagnóstico 2. Pediatria 3. Puericultura 4. Terapêutica I. Burns, Dennis Alexander Rabelo. II. Campos Júnior, Dioclécio. III. Silva, Luciana Rodrigues. IV. Borges, Wellington Gonçalves. CDD-618.92 17-03885 NLM-WS 200 Índices para catálogo sistemático: 1. Pediatria : Diagnóstico e tratamento : Medicina 618.92
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores. É proibida a reprodução por xerox. A Editora Manole é filiada à ABDR – Associação Brasileira de Direitos Reprográficos 1a edição – 2007 2a edição – 2010 3a edição – 2014 4a edição – 2017 Direitos adquiridos pela: EDITORA MANOLE LTDA.
Avenida Ceci, 672 – Tamboré 06460-120 – Barueri – SP – Brasil Tel.: (11) 4196-6000 www.manole.com.br | info@manole.com.br Impresso no Brasil | Printed in Brazil
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Foram feitos todos os esforços para se conseguir a cessão dos direitos autorais das imagens aqui reproduzidas, bem como a citação de suas fontes. São de responsabilidade dos autores e dos coordenadores as informações contidas nesta obra, bem como as referências bibliográficas que não foram citadas no texto em alguns capítulos. Nesses casos, as referências foram ordenadas alfabeticamente.
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Esta obra é dedicada: Às crianças e aos adolescentes, razão maior da Pediatria. Aos pediatras, porque se dedicam ao nobre exercício de cuidar do crescimento e do desenvolvimento de crianças e adolescentes. Aos professores de Pediatria, porque formam gerações de profissionais devotados à grandiosa causa da saúde da infância e da adolescência do País.
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EDIÇÕES ANTERIORES
Organizadores da 3a edição Dioclécio Campos Júnior
Mestre e Doutor pela Université Libre de Bruxelles, Bélgica. Professor Titular de Pediatria Emérito da UnB. Presidente do Pediatria no Global Pediatrics Education Consortium (GPEC). Dennis Alexander Rabelo Burns
Especialista em Pediatria pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e em Alergia e Imunologia pela Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai). Certificado em Área de Atuação de Alergia e Imunologia Pediátrica pela SBP. Preceptor de Alergia e Imunologia Pediátrica do Hospital Universitário de Brasília (Hub-UnB). Fabio Ancona Lopez Organizador do Tratado de Pediatria 1.ed. Ex-vice presidente da SBP. Professor Titular Aposentado do Departamento de Pediatria da Unifesp.
Organizadores da 1a e 2a edição Fabio Ancona Lopez Dioclécio Campos Júnior
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ORGANIZADORES
Dennis Alexander Rabelo Burns
Especialista em Pediatria pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e em Alergia e Imunologia pela Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai). Certificado em Área de Atuação de Alergia e Imunologia Pediátrica pela SBP. Preceptor de Alergia e Imunologia Pediátrica do Hospital Universitário de Brasília (Hub-UnB). Dioclécio Campos Júnior
Mestre e Doutor pela Université Libre de Bruxelles, Bélgica. Professor Titular de Pediatria Emérito da UnB. Presidente do Pediatria no Global Pediatrics Education Consortium (GPEC). Luciana Rodrigues Silva
Presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Especialista em Gastroenterologia Pediátrica pela SBP e Associação Médica Brasileira (AMB), em Hepatologia pela Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH) e em Pediatria pela SBP e AMB. Mestre e Doutora pelo Curso de Pós-graduação em Medicina e Saúde da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-Doutora pela Université Libre de Bruxelles, Bélgica. Professora Titular de Pediatria e Chefe do Serviço de Gastroenterologia e Hepatologia Pediátricas da UFBA. Coordenadora Científica do Serviço de Pediatria do Hospital Aliança. Membro da Academia Brasileira de Pediatria. Membro do Departamento Científico de Gastroenterologia Pediátrica da SBP. Wellington Gonçalves Borges
Especialista em Pediatria, Titulação na Área de Atuação de Alergia e Imunologia pela SBP, e em Alergia e Imunologia pela Asbai. Preceptor de Ensino do Programa de Residência Médica em Alergia e Imunologia Pediátrica do Hospital de Base do Distrito Federal/Hospital da Criança de Brasília. Danilo Blank
Doutor em Saúde da Criança e do Adolescente. Professor Associado do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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COMISSÃO EDITORIAL
Participaram da Comissão Editorial da 4a edição
Luciana Rodrigues Silva Dioclécio Campos Júnior Dennis Alexander Rabelo Burns Danilo Blank Eduardo da Silva Vaz Wellington Gonçalves Borges
Participaram da Comissão Editorial da 3a edição
Dioclécio Campos Júnior Eduardo da Silva Vaz Luciana Rodrigues Silva Dennis Alexander Rabelo Burns Danilo Blank Sandra Grisi
Participaram da Comissão Editorial da 2a edição
José Sabino de Oliveira Joel Alves Lamounier Luciana Rodrigues Silva Edson Liberal
Participaram da Comissão Editorial da 1a edição
Jefferson Pedro Piva Rubens Trombini Garcia
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SUMÁRIO
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
XVII
Prefácio à quarta edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XIX Prefácio à terceira edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXI Prefácio à segunda edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXIII Prefácio à primeira edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXV SEÇÃO 1 BIOÉTICA EM PEDIATRIA 1. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 2. A bioética principialista e o código de ética médica . . . . . . . . . . 9 3. A responsabilidade do médico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 4. O atestado médico – aspectos éticos e jurídicos . . . . . . . . . . . . 15 5. Alta em pediatria – aspectos éticos e jurídicos . . . . . . . . . . . . . . 17 6. Prontuário médico da criança e do adolescente:
aspectos éticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 7. Sigilo médico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 8. A bioética, o principialismo e o utilitarismo . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 9. Relação médico-paciente – as autonomias do médico,
da criança e dos responsáveis e o termo de consentimento livre e esclarecido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 10. Atendimento ao adolescente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 11. Terminalidade da vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
SEÇÃO 2 FUNDAMENTOS DA ATENÇÃO À SAÚDE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 1. Habilidades básicas do pediatra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51 2. Cuidados de saúde preventivos da criança
e do adolescente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 3. Desenvolvimento normal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 4. Crescimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
SEÇÃO 3 SEGURANÇA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 1. Segurança no ambiente doméstico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 2. Segurança no trânsito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 3. Segurança de brinquedos e atividades de lazer . . . . . . . . . . . . . 81 4. Segurança no meio rural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 5. Diagnóstico das apresentações da violência na infância
e adolescência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92 6. Abuso sexual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 7. Da autoagressão velada ao suicídio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104 8. Abuso de substâncias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109 9. O pediatra e a violência nas escolas – bullying . . . . . . . . . . . . 116 10. Segurança na internet e meios eletrônicos . . . . . . . . . . . . . . . . 121
SEÇÃO 4 EMERGÊNCIAS E CUIDADOS HOSPITALARES 1. Obstrução infecciosa das vias aéreas superiores . . . . . . . . . . . 129 2. Parada cardiorrespiratória na criança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137 3. Síncope no paciente pediátrico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148 4. Ingestão de corpo estranho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156 5. Queimaduras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159 6. Acidentes por submersão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 164 7. Cetoacidose diabética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 8. Desidratação aguda na criança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175 9. Abdome agudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179 10. Hemorragia digestiva alta e baixa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184 11. Traumatismo cranioencefálico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 12. Coma e alteração do estado mental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196
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13. Crise epiléptica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
SEÇÃO 9 CARDIOLOGIA
14. Choque – abordagem na emergência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
1. Reconhecimento e conduta nas cardiopatias
15. Choque e choque séptico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216
congênitas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 471
16. Intoxicações exógenas agudas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223
2. Miocardiopatias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 498
17. Acidentes com animais peçonhentos e não
3. Sopro cardíaco na criança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 503
peçonhentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 230 18. Gerenciamento de risco em instituições de saúde . . . . . . . . . 238
4. Avaliação clínica do sistema cardiovascular na criança . . . . . 509 5. Principais cardiopatias com apresentação no período
19. Infecção hospitalar em unidade pediátrica . . . . . . . . . . . . . . . 243
neonatal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 516
20. Indicações de internação hospitalar em pediatria . . . . . . . . . 249
6. Endocardite infecciosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 530
21. Cuidados hospitalares de crianças e adolescentes
7. Insuficiência cardíaca na criança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 537
vítimas de violência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253 SEÇÃO 10 DERMATOLOGIA SEÇÃO 5 PEDIATRIA DO COMPORTAMENTO
1. A pele da criança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 549
E DESENVOLVIMENTO
2. Dermatoses neonatais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 554
1. Transtornos do comportamento da criança
e do adolescente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263 2. Autismo infantil e outros transtornos invasivos
3. Piodermites . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 561 4. Micoses superficiais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 566 5. Dermatoses parasitárias da infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 573
do desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 268
6. Dermatoviroses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 578
3. Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade . . . . . . . . . . 283
7. Dermatite de contato em crianças . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 585
4. Dificuldades de aprendizado e linguagem . . . . . . . . . . . . . . . . 289
8. Lesões vasculares em pediatria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 591
5. Desenvolvimento sexual na criança e no adolescente . . . . . . 295
9. Acne . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 599
6. Identidade sexual e seus transtornos
10. Dermatite seborreica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 604
(transtorno de gênero) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 300
11. Psoríase . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 608 12. Eritema multiforme, síndrome de Stevens-Johnson
SEÇÃO 6 ALEITAMENTO MATERNO 1. Tópicos básicos em aleitamento materno . . . . . . . . . . . . . . . . . 315
e necrose epidérmica tóxica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 613 13. Prurigo estrófulo ou urticária papular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 616
2. O papel do pediatra no aleitamento materno . . . . . . . . . . . . . . 322 3. Amamentação em situações especiais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 328 4. Problemas com a mama puerperal – prevenção,
diagnóstico e manejo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 334 5. Medicamentos e amamentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 339
SEÇÃO 11 ENDOCRINOLOGIA 1. Crescimento normal e alterado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 625 2. Distúrbios da diferenciação do sexo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 633 3. Distúrbios puberais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 639 4. Diabete melito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 649
SEÇÃO 7 ADOLESCÊNCIA
5. Síndrome metabólica na criança e no adolescente . . . . . . . . . 661
1. A consulta do adolescente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 353
6. Obesidade – repercussões endócrinas e metabólicas . . . . . . 668
2. Crescimento e puberdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 363
7. Doenças da tireoide . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 675
3. Desenvolvimento psicossocial na adolescência . . . . . . . . . . . 368
8. Hipoglicemia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 681
4. Sexualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373
9. Doenças das suprarrenais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 684
5. Gravidez e contracepção na adolescência . . . . . . . . . . . . . . . . . 378
10. Distúrbios do metabolismo do cálcio, do fósforo
6. Adolescentes em situação de risco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 384
e do magnésio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 691
7. Adolescentes com deficiência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 386
SEÇÃO 12 GASTROENTEROLOGIA SEÇÃO 8 ALERGIA E IMUNOLOGIA
1. Doença do refluxo gastroesofágico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 709
1. Infecções de repetição na criança saudável . . . . . . . . . . . . . . 395
2. Esofagites . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 716
2. Infecções de repetição em pacientes
3. Doença péptica gastroduodenal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 720
imunodeficientes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 401
4. Diarreia aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 726
3. Fisiopatologia das reações alérgicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 405
5. Diarreia crônica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 732
4. Dermatite atópica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 410
6. Doença celíaca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 738
5. Urticária e angioedema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 416
7. Doenças inflamatórias intestinais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 743
6. Alergia ocular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 422
8. Distúrbios gastrointestinais funcionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 751
7. Rinossinusite alérgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 427
9. Dor abdominal funcional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 756
8. Alergia alimentar mediada por IgE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 431
10. Síndrome do intestino irritável em crianças
9. Alergia a medicamentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 436
e adolescentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 760
10. Alergia a himenópteros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 441
11. Constipação intestinal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 764
11. Anafilaxia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 445
12. Dor abdominal aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 770
12. Asma – abordagem ambulatorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 453
13. Alergia ao leite de vaca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 775
13. Asma – abordagem da crise aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 461
14. Intolerância à lactose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 785
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15. Intolerância aos carboidratos: frutose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 790
6. Glomerulonefrite difusa aguda pós-estreptocócica . . . . . . . . 1133
16. Doença hepática crônica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 794
7. Síndrome nefrótica idiopática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1138
17. Colestase neonatal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 798
8. Lesão renal aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1147
18. Doenças metabólicas do fígado na infância . . . . . . . . . . . . . . 807
9. Doença renal crônica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1152
19. Pancreatites . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 813
10. Doenças císticas renais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1159 11. Hidronefrose fetal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1165
SEÇÃO 13 GENÉTICA CLÍNICA
12. Tubulopatias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1172
1. Abordagem genética do recém‑nascido . . . . . . . . . . . . . . . . . 825
13. Hipertensão arterial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1185
2. Deficiência intelectual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 830 3. Erros inatos do metabolismo – uma urgência
multiprofissional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 836
SEÇÃO 16 NEONATOLOGIA 1. Prematuridade e crescimento fetal restrito . . . . . . . . . . . . . . . 1209
4. Doenças de depósito lisossômico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 843
2. Reanimação neonatal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1215
5. Cromossomopatias e suas implicações na
3. Fluidoterapia e eletrólitos no recém-nascido . . . . . . . . . . . . . 1223
natimortalidade infantil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 851
4. Nutrição do recém-nascido pré‑termo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1230
6. Osteodisplasias e seus diagnósticos moleculares . . . . . . . . . . . 861
5. Distúrbios metabólicos frequentes do recém-nascido . . . . . 1235
7. Miopatias metabólicas hereditárias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 867
6. Infecções congênitas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1242
8. Baixa estatura em seu contexto genético . . . . . . . . . . . . . . . . . 873
7. Infecções perinatais: sepse neonatal precoce e tardia . . . . . 1251
9. Doenças genéticas do complexo do comportamento
8. Icterícia neonatal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1262
autista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 879
9. Convulsões no período neonatal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1268
10. Abordagem molecular das doenças genéticas . . . . . . . . . . . . . 887
10. Distúrbios respiratórios do recém‑nascido . . . . . . . . . . . . . . . 1276
SEÇÃO 14 INFECTOLOGIA
12. Doença hemorrágica do recém‑nascido . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1294
1. Febre sem sinais localizatórios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 899
13. Importância da triagem neonatal universal . . . . . . . . . . . . . . 1300
2. Antibióticos no hospital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 904
14. Citomegalovírus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1305
11. Encefalopatia hipóxico-isquêmica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1286
3. Antibióticos em infecções comunitárias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 918 4. Controle de bactérias multirresistentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 929
SEÇÃO 17 NEUROLOGIA
5. Vírus varicela zóster . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 936
1. Crise febril . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1315
6. Vírus Epstein‑Barr . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 946
2. Epilepsia na infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1319
7. Herpesvírus 6 e 7 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 950
3. Estado de mal epiléptico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1326
8. Dengue . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 954
4. Microcefalia e macrocefalia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1330
9. Febre amarela . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 959
5. Distúrbios do sono . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1336
10. Febre de Chikungunya . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 964
6. Crises não epilépticas na infância e na adolescência . . . . . . . 1342
11. Febre Zika . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 969
7. Paralisia cerebral – conceito, etiologia, classificação
12. Vírus influenza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 972 13. Hiv/aids . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 980
e tratamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1346 8. Doenças desmielinizantes do sistema nervoso
14. Viroses exantemáticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 985
central (SNC) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1353
15. Coqueluche . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 994
9. Miastenia grave . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1359
16. Doença de Chagas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 999
10. Doenças neuromusculares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1361
17. Doenças sexualmente transmissíveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1006
11. Neuropatias periféricas em crianças e adolescentes . . . . . . . 1368
18. Hanseníase . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1026
12. Acidente vascular cerebral na infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1372
19. Leishmaniose visceral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1032
13. Ataxias na infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1375
20. Leptospirose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1037
14. Cefaleias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1381
21. Malária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1042
15. Síndromes neurocutâneas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1385
22. Parasitoses intestinais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1052 23. Toxoplasmose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1058
SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
24. Tuberculose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1072
1. Avaliação do estado nutricional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1399
25. Imunizações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1078
2. Alimentação do lactente à adolescência . . . . . . . . . . . . . . . . . 1407 3. Características e indicações das fórmulas infantis . . . . . . . . . 1420
SEÇÃO 15 NEFROLOGIA
4. Micronutrientes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1426
1. Interpretação dos exames de EAS, proteinúria
5. Desnutrição energético‑proteica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1436
e hematúria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1093
6. Dislipidemia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1440
2. Infecção do trato urinário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1105
7. Obesidade exógena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1447
3. Síndrome hemolítico-urêmica em crianças
8.1. A nutrologia na prevenção das doenças do adulto
e adolescentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1113 4. Disfunção do trato urinário inferior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1119 5. Urolitíase na infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1126
9788520446126_S000 V02.indd 13
– doença cardiovascular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1452 8.2. A nutrologia na prevenção das doenças do adulto
– osteoporose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1459
5/5/17 17:46
8.3. A nutrologia na prevenção das doenças do adulto
– câncer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1463 8.4. A nutrologia na prevenção das doenças do adulto
– diabete melito tipo 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1466 9.1. Terapia nutricional em situações especiais
– déficit de crescimento de causa nutricional . . . . . . . . . . . . . . 1470 9.2. Terapia nutricional em situações especiais
– cardiopatias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1474
3. Bronquiectasias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1712 4. Bronquiolite viral aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1720 5. Sibilância recorrente pós‑viral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1730 6. Pneumonias comunitárias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1735 7. Derrame pleural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1740 8. Fibrose cística . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1745 9. Abscesso pulmonar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1755 10. Displasia broncopulmonar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1758
9.3. Terapia nutricional em situações especiais
– doenças neurológicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1478 9.4. Terapia nutricional em situações especiais
– doença renal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1482 9.5. Terapia nutricional em situações especiais
SEÇÃO 22 REUMATOLOGIA 1. Febre reumática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1767 2. Artrite idiopática juvenil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1773 3. Lúpus eritematoso sistêmico pediátrico . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1780
– câncer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1487
4. Dermatomiosite juvenil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1786
9.6. Síndrome do intestino curto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1492
5. Esclerodermia juvenil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1792
10. Dificuldades alimentares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1496
6. Vasculites . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1800
11. Terapia nutricional enteral e parenteral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1502
7. Doenças autoinflamatórias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1809 8. Infecções osteoarticulares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1816
SEÇÃO 19 ONCO‑HEMATOLOGIA
9. Osteoporose na infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1822
1. Interpretação do hemograma e das provas
10. Doença de Kawasaki . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1825
de coagulação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1515 2. Diagnóstico diferencial das anemias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1528
SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
3. Epidemiologia e diagnóstico precoce do câncer
1. Sistemas de escores para avaliação de gravidade . . . . . . . . . 1841
na criança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1534 4. Leucemias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1540 5. Linfoma na infância e adolescência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1545
2. Medidas de suporte avançado de vida e transporte
dos pacientes graves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1847 3. Ventilação mecânica no transporte da criança
6. Tumores sólidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1552
e do recém‑nascido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1855
7. Histiocitose de células de Langerhans . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1560
4. Politraumatizado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1861
8. Emergências oncológicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1564
5. Asma aguda grave . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1868
9. Distúrbios qualitativos dos fagócitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1571
6. Síndrome do desconforto respiratório agudo . . . . . . . . . . . . . 1882
10. Tumores do sistema nervoso central . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1577
7. Insuficiência respiratória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1896
11. Tumores ósseos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1586
8. Pós‑operatório de cirurgia cardíaca pediátrica . . . . . . . . . . . . 1903
12. Hemoglobinopatias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1590
9. Infecção hospitalar em Unidade de Terapia Intensiva
13. Linfonodomegalias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1601
Pediátrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1911
14. Hemoterapia em pediatria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1606
10. Sedação e analgesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1917
15. Distúrbios hemorrágicos e trombóticos em pediatria . . . . . . 1613
11. Distúrbios do metabolismo do sódio e potássio
16. Trombocitopenia imune primária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1619
e do equilíbrio acidobásico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1926
17. Síndrome hemofagocítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1624
12. Choque em pediatria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1959
18. Transplante de célula-tronco hematopoética . . . . . . . . . . . . . 1629
13. Traumatismo cranioencefálico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1965 14. Acidente vascular encefálico em crianças . . . . . . . . . . . . . . . . 1983
SEÇÃO 20 OTORRINOLARINGOLOGIA 1. Processamento auditivo e transtornos de aprendizagem . . . 1639
SEÇÃO 24 ORTOPEDIA
2. Triagem auditiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1650
1. Displasia do desenvolvimento do quadril . . . . . . . . . . . . . . . . . 1999
3. Otite média aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1657
2. Distúrbios da coluna vertebral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2003
4. Otite média com efusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1662
3. Infecções osteoarticulares na criança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2008
5. Distúrbios da orelha externa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1667
4. Desvios angulares e rotacionais dos membros inferiores . . . 2014
6. Síndrome do respirador oral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1670
5. Deformidades congênitas dos pés . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2021
7. Rinossinusite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1673
6. Dores nos membros inferiores da criança . . . . . . . . . . . . . . . 2024
8. Tonsilites e faringites . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1677
7. A criança e o esporte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2033
9. Disfagia na infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1683 10. Disfonia na infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1686 11. Distúrbios da laringe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1690
SEÇÃO 25 CIRURGIA PEDIÁTRICA 1. Afecções pulmonares congênitas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2045 2. Hérnia diafragmática congênita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2054
SEÇÃO 21 PNEUMOLOGIA
3. Atresia do esôfago . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2060
1. Tabagismo passivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1703
4. Obstruções duodenais congênitas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2065
2. Distúrbios traqueobrônquicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1707
5. Atresia intestinal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2068
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6. Íleo meconial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2074
9. Retinoblastoma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2292
7. Enterocolite necrosante neonatal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2080
10. Catarata infantil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2297
8. Síndrome do intestino curto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2086
11. Ambliopia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2303
9. Anomalias anorretais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2091
12. Leucocoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2307
10. Afecções cervicais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2096
13. Retinopatia da prematuridade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2314
11. Deformidades torácicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2103 12. Hérnia inguinal, hidrocele e cisto de cordão espermático . . 2107
SEÇÃO 28 ODONTOPEDIATRIA
13. Lesões das vias biliares intra e extra‑hepáticas . . . . . . . . . . . 2110
Qualidade de vida e saúde bucal . . . . . . . . . . . . . . . . . 2325
14. Hipertensão portal na criança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2116
1. Exame físico da cavidade bucal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2327
15. Distúrbios pieloureterais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2122
2. Erupção dentária – alterações, eventos importantes,
16. Sangramento digestivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2129 17. Complicações cirúrgicas do divertículo de Meckel
e de outros remanescentes vitelínicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2133 18. Apendicite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2137
cronologia, fatores interferentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2333 3. Higiene bucal com uso de fluoreto – medidas de prevenção . . . .
2339 4. Aleitamento materno – benefícios para a saúde bucal . . . . 2344
19. Megacólon congênito (moléstia de Hirschsprung) . . . . . . . . . 2141
5. Alimentação, saúde bucal e função mastigatória . . . . . . . . . 2348
20. Escroto agudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2153
6. Hábitos orais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2356
21. Distopia testicular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2158
7. Distúrbios de oclusão – reconhecimento, prevenção,
22. Fimose: o que fazer e quando realizar? . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2163 23. Obstrução pilórica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2167 24. Peculiaridades no atendimento à criança traumatizada . . . . 2176
orientação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2359 8. Doença cárie, erosão e defeitos do desenvolvimento dentário .
2369 9. Odontopediatria no ambiente hospitalar . . . . . . . . . . . . . . . . 2378
SEÇÃO 26 GINECOLOGIA
10. Estomatologia pediátrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2382
1. Características da consulta ginecológica na
11. Fissuras palatinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2390
recém‑nascida, na criança e no adolescente . . . . . . . . . . . . . . 2193
12. Atenção à saúde bucal do bebê prematuro . . . . . . . . . . . . . . 2395
2. Vulvovaginite na infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2197
13. Trauma dentário: atendimento e prognóstico . . . . . . . . . . . . 2402
3. Distúrbios menstruais mais frequentes na adolescência . . . . 2201 4. Dismenorreia: quando pesquisar endometriose . . . . . . . . . . 2205
SEÇÃO 29 MEDICINA DO ESPORTE
5. Síndrome dos ovários policísticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2210
1. Treinamento resistido em crianças e adolescentes . . . . . . . . . 2415
6. Sangramento vaginal na infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2214
2. Nutrição, hidratação e suplementação esportiva
7. Exame da mama na infância e na adolescência . . . . . . . . . . . 2219
para crianças e adolescentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2420
8. Contracepção: melhor abordagem na adolescência . . . . . . 2222
3. Avaliação cardiovascular do adolescente atleta . . . . . . . . . . 2429
9. Vacina contra o papilomavírus humano (HPV):
4. Indicações e contraindicações de atividades físicas
visão do ginecologista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2227 10. Violência sexual: quando suspeitar e como
acompanhar? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2232
em crianças e adolescentes – guia prático . . . . . . . . . . . . . . . 2433 5. Fisiologia do exercício em atletas jovens – habilidades
específicas e valências esportivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2437
11. Coalescência de pequenos lábios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2239 12. Aspectos importantes do diagnóstico e acompanhamento
pré‑natal de adolescentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2242
SEÇÃO 30 MEDICINA PALIATIVA 1. Aspectos éticos dos cuidados paliativos em pediatria . . . . 2445 2. Cuidados paliativos em neonatologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2449
SEÇÃO 27 OFTALMOLOGIA
3. Dor na faixa etária pediátrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2452
1. Vias lacrimais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2251
4. Criança e adolescente dependentes de tecnologia:
2. Distúrbios das pálpebras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2255
da UTI para o domicílio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2458
3. Exame oftalmológico da criança e estrabismo . . . . . . . . . . . . 2257
5. Cuidados paliativos em final de vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2461
4. Doenças da córnea e da conjuntiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2263
6. Suporte à família: más notícias, decisão compartilhada
5. Glaucoma congênito e infantil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2269
e acompanhamento no luto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2466
6. Doenças da retina na infância e na adolescência . . . . . . . . . . 2273
7. Suporte à equipe assistencial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2471
7. Trauma ocular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2279 8. Uveítes e inflamações oculares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2285
Índice remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I‑1
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APRESENTAÇÃO
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) presta significativa colaboração à medicina da criança e do adolescente ao publicar seu Tratado de Pediatria. A prática dessa especialidade médica no País carecia de um texto fundado nas características que a assistência pediátrica adquiriu ao longo de quase um século de sistematização de conhecimentos e experiências científicas, desenvolvidas pela entidade nacional dos pediatras brasileiros. Sem perder de vista a grande relevância das inovações tecnológicas incorporadas ao âmbito desse exercício profissional diferenciado, o livro projeta um salto de qualidade na visão da pediatria clínica. De fato, ao reunir as melhores experiências desta prática, a obra contribui com uma nova concepção para o exercício pediátrico moderno, ensejando o delineamento de importante campo da saúde pública para a construção da “pediatria coletiva”. Neste sentido, o texto dedica grande parte de seu conteúdo aos conceitos mais recentes das ações e estratégias de saúde pública que conferem ao fazer pediátrico o caráter social decorrente dos desdobramentos familiares em que sustenta sua atuação. Fortalece, igualmente, os alicerces científicos dos fenômenos do crescimento e do desenvolvimento, mantidos ao longo da elaboração do texto como cerne insubstituível da pediatria. Ressalta, por isso mesmo, a relevância das ações educativas e preventivas, identificando-se com as tendências mais avançadas que se revelam no percurso evolutivo da saúde na atualidade. Por todas essas razões, este Tratado de Pediatria da SBP preenche espaço bibliográfico de particular relevância no País. Concretiza, por outro lado, uma valiosa presença do Brasil no cenário mundial dos investimentos na saúde da infância e da adolescência. Sua utilização pelos estudantes de medicina, médicos residentes, professores de pediatria e pediatras em geral contribuirá, certamente, para ampliar ainda mais a qualidade da atenção à saúde do grupo populacional que se configura como universo de atuação desse importante ramo da medicina. Esta publicação enriquece, ademais, a pediatria da América Latina ao oferecer a opção de um livro-texto oriundo da produção científica de um país marcado pelas mesmas contradições sociais, diferenças regionais, desigualdades econômicas e perfil epidemiológico que se manifestam por toda a extensão do território latino-americano. A representação da Opas no Brasil reconhece a seriedade do trabalho realizado pelos departamentos científicos da SBP consubstanciado nesta obra que presta relevante serviço à causa do aprimoramento profissional dos pediatras. Por meio deste livro, a entidade pediátrica cumpre, com destacada coerência, o papel institucional de integrar, em torno da atualização de conhecimentos científicos, a doutrina e a ação dos artífices da pediatria brasileira. Dr. Horácio Toro Representante da Organização Pan-americana da Saúde (Opas) e da Organização Mundial da Saúde (OMS) no Brasil
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PREFÁCIO À QUARTA EDIÇÃO
A Sociedade Brasileira de Pediatria vem ampliando suas ações em várias vertentes, sobretudo na área de atualização científica de qualidade para os pediatras brasileiros. Uma dessas iniciativas é representada pela quarta edição do Tratado de Pediatria, que foi completamente revisada e atualizada nos últimos meses com cuidado para ser entregue àqueles que se incubem de assistir às crianças e aos adolescentes. Ser pediatra requer conhecimento técnico sistematicamente atualizado e comportamento e sensibilidade humanística para compreender e atuar na constante mudança que representa o universo pediátrico das crianças, dos adolescentes e de suas famílias. O conhecimento cresce de modo rápido, a interdisciplinaridade se consolida e a realidade da comunidade também se torna diferente a cada dia com novos desafios para esses profissionais devotados que buscam sempre o melhor para o futuro do país – representado pelas crianças! Com discussões minuciosas, baseadas em evidências, os temas deste Tratado contaram com a contribuição incansável de muitos colaboradores, enfatizando sempre a atualização consistente nas diversas áreas da pediatria como especialidade e nas variadas áreas de atuação. O conhecimento só atinge seus objetivos se é compartilhado e se beneficia alguém, e com este Tratado temos plena convicção de que esses objetivos são alcançados. Em parceria ética com a Editora Manole, a Sociedade Brasileira de Pediatria se sente honrada de entregar agora esta quarta edição do Tratado de Pediatria. Luciana Rodrigues Silva Presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria Professora Titular de Pediatria da Universidade Federal da Bahia Membro da Academia Brasileira de Pediatria Coordenadora do Serviço de Pediatria do Hospital Aliança
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PREFÁCIO À TERCEIRA EDIÇÃO
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A comunidade pediátrica do país consolida o amplo espectro de suas atuações e compromissos. Fortalece o cenário de atuação da sua entidade nacional, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), enriquecida pelas instâncias filiadas, que agregam energia construtiva, estímulo perseverante e engajamento com as valorosas causas sociais, educativas e científicas. Emerge assim a dimensão da complexa e qualificada abrangência requerida pelo nobre exercício profissional do pediatra. Além de contribuir para conquistas marcantes no campo dos direitos da criança e do adolescente, a SBP tem interagido com a sociedade civil de forma estimulante, no claro intuito de manter em evidência os valores inerentes à infância e à adolescência, entendendo-os como preciosidades humanas a serem respeitadas, cultivadas e promovidas como único itinerário seguro para a evolução da espécie. Nesse contexto nasceu, em 2006, o Tratado de Pediatria da SBP. Este trouxe a marca que faltava ao espectro científico nacional, reunindo, progressivamente, a cada edição, atualizações e avanços indispensáveis ao domínio de conhecimento que fundamenta a prática pediátrica no Brasil. A obra foi projetada em sintonia com as evidências científicas crescentes e identificada com as distintas realidades epidemiológicas locais e regionais que diversificam as nosologias prevalentes no vasto território do país. Outra característica que singulariza o Tratado de Pediatria é a sua produção. O livro resulta de trabalho dedicado, interativo, convergente na forma, sério no conteúdo, amplo no componente participativo dos autores – profissionais de reconhecida capacidade –, demonstrando, com clareza, o elevado nível de identidade própria atingido pela nossa pediatria. Tornou-se, pelas virtudes que o inspiraram, o livro-texto de medicina da criança e do adolescente mais difundido e utilizado pela classe pediátrica, pelas instituições de ensino médico e também pelos programas de residência médica na especialidade que cuida do ser humano no ciclo de vida marcado pelos fenômenos do crescimento e do desenvolvimento. Esta obra, a de maior perfil científico já produzida pela SBP, chega à terceira edição. Grande avanço. Prova de sua natureza acadêmica consistente e da incontestável consolidação de um projeto bibliográfico que se converte em referência nacional. A nova versão mantém os conteúdos anteriores bem atualizados, além de incluir alguns novos capítulos que enriquecem sobremaneira a estrutura do Tratado. Um deles aborda os cuidados pediátricos paliativos, tema que se destaca por contribuir para adequar o texto ao perfil da pediatria no novo século. Muitos outros expandem ainda mais o universo de conhecimentos que integram os cuidados pediátricos em várias seções do livro, tais como: bioética, defesa profissional, segurança da criança e do adolescente, saúde escolar, saúde mental, alergia/imunologia, dermatologia, genética clínica, infectologia, nefrologia, otorrinolaringologia, terapia nutricional, terapia intensiva, ortopedia e oftalmologia. A terceira edição do Tratado de Pediatria da SBP atesta o esforço produtivo e a coerência da entidade que representa a pediatria brasileira e está fortemente fundamentada nos requisitos primordiais de qualificação contínua do exercício pro-
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fissional de que depende a excelência dos cuidados médicos especializados oferecidos à infância e à adolescência de uma sociedade que urge melhorar o nível global de saúde de sua gente. Cumpre também realçar o valor da parceria entre a SBP e a Editora Manole, alicerce desta obra que engrandece o valor da produção científica diferenciada, aprimorando a presença da pediatria brasileira na esfera internacional, em cujo horizonte projeta visões e abordagens originais, compartilhadas em favor de crianças e adolescentes no mundo a caminho da globalização. Eduardo da Silva Vaz Presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria Dioclécio Campos Júnior Representante da Sociedade Brasileira de Pediatria no Global Pediatrics Education Consortium (GPEC)
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PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
O Tratado de Pediatria, publicação maior da Sociedade Brasileira de Pediatria, chega à segunda edição como marco significativo da sua importância para a classe pediátrica do País. Uma iniciativa vitoriosa a demonstrar o elevado nível de qualificação alcançado, nesse nobre domínio de conhecimentos, ao longo da crescente maturidade científica e acadêmica que permitiu produzir um texto básico, denso, genuinamente brasileiro. A SBP orgulha-se desta obra escrita pelos membros de seus vinte e sete departamentos científicos. São professores universitários, chefes de serviços de pediatria, pediatras e pesquisadores renomados, que usaram sua competência para vencer o desafio de uma grande lacuna bibliográfica, que carecia de preenchimento à altura de sua relevância. Assim nasceu o Tratado. Vibrante na concepção, didático na exposição dos temas, amplo e profundo nos conteúdos, bonito na apresentação, rico nas ilustrações. Um trabalho que engrandece a pediatria nacional, projetando-a no horizonte dos países que buscam originalidade na expressão de sua própria experiência. O rápido esgotamento da primeira edição comprovou o acerto do investimento. O livro está hoje no acervo da maioria das bibliotecas universitárias como texto recomendado para estudantes, médicos residentes e professores. Está também nas mãos de grande número de pediatras do País, exercendo a função de principal fonte bibliográfica para leitura e consultas necessárias. É uma obra que veio para ficar. Tem o vigor de uma produção coletiva harmonicamente sintonizada com o seu tempo e plenamente identificada com a saúde da criança e do adolescente, nas distintas realidades do nosso território. Esta segunda edição do Tratado de Pediatria surge no ano em que se comemora o centenário da SBP. Situa-se, assim, entre as grandes conquistas que constituem a trajetória histórica da entidade pediátrica. A atualização do conteúdo dos diversos capítulos enriquece e amplia esta edição. Além disso, três novas seções – oftalmologia, cirurgia pediátrica e ortopedia –, de particular importância em pediatria, foram acrescentadas e desenvolvem os tópicos essenciais nesses campos. A necessária expansão de conteúdos e o propósito de facilitar seu manuseio levaram à decisão de publicar a obra em dois volumes. As imagens coloridas de cada capítulo estarão todas disponíveis como conteúdo adicional exclusivo no Companion Website do livro (ver instruções na página V). Ao registrar, com especial alegria, o lançamento da segunda edição do Tratado de Pediatria, a SBP agradece, em nome dos pediatras brasileiros, o denodado empenho dos autores e exalta a qualidade da parceria com a Editora Manole, que tornou viável este valioso projeto. Dioclécio Campos Júnior Presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria
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PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO
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No limiar do século XXI, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) constrói um marco científico de elevado valor referencial ao publicar o seu Tratado de Pediatria. A obra é uma síntese da ampla ação participativa voltada para a realização de um projeto de grande mérito: a produção de um texto que expresse a experiência, a realidade, a prática e, especialmente, o pensamento unificador do exercício profissional da especialidade médica que cuida do ser humano em crescimento e desenvolvimento no País. Este Tratado de Pediatria reúne conteúdo que, sem pretender a completude, mostra a abrangência necessária à cobertura do vasto campo de atuação do pediatra. O propósito que norteou sua concepção torna a obra singular, porquanto incorpora a maior parte dos temas que movimentam a atualidade da assistência à saúde da criança e do adolescente. Inclui, ademais, a descrição da rica trajetória histórica da pediatria brasileira, as peculiaridades desse mercado de trabalho e as noções fundamentais que regem o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) no que concerne ao bem-estar físico, mental e social nesse ciclo da vida humana. Mereceram ênfase os capítulos referentes à nutrição e à psicologia do desenvolvimento. São duas áreas do conhecimento em que se apóia a doutrina da pediatria, cujos princípios essenciais emergem no horizonte dos novos tempos, exigindo do pediatra extensa revisão de conceitos e atualização científica dinâmica e identificada com a transição epidemiológica em curso nas últimas décadas. Esta primeira edição do Tratado de Pediatria integra o conjunto de estratégias definidas pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento do perfil profissional mais apropriado ao pediatra do século que se inicia. Trata- se do maior desafio colocado para a entidade no limiar da sociedade pós-industrial. O texto está em sintonia com a modernidade, principalmente se analisada sob a luz das evidências que o processo de transformação social explicita. Vale ressaltar a importância do pediatra como educador na área da saúde, numa época em que a prevenção ganha primazia sobre a cura; nessa fase da evolução social, em que a frenética incorporação de complexas tecnologias à prática da medicina começa a ser repensada em função dos custos insustentáveis que demanda, da expansão impressionante dos agravos que introduziu no campo da iatrogenia, bem como dos dilemas éticos insolúveis que provoca. A iniciativa de produzir o livro é um passo de apreciável dimensão no caminho das inadiáveis mudanças no processo de formação pediátrica. Mostra a nova face da profissão. Fornece conteúdos seguros para sustentar a função social do pediatra. Consolida o fundamento científico de uma prática médica insubstituível, posto que primordial. Sela o vínculo indissociável entre cuidado pediátrico qualificado e infância e adolescência saudáveis. Destaca a relevância do papel de uma entidade associativa verdadeira, intransigente nos seus compromissos com o bem comum. Louve-se, na originalidade dessa conquista, o compromisso das lideranças pediátricas dos departamentos científicos da entidade que tornaram possível o esforço coletivo do qual re-
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sultou o volumoso compêndio que passa a figurar entre as mais valiosas obras elaboradas pela medicina nacional. O Tratado de Pediatria tem marca. Tem substância. Veio para ficar. É realização irreversível. Nasce com a essência de seu tempo e com o componente da universalidade que se ajusta a todos os tempos. Esta é a divisa que lhe dá sentido e destinação. É a legenda que lhe assegura lugar de originalidade permanente na bibliografia pediátrica do País. Os organizadores
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SEÇÃO 16
Neonatologia COORDENADOR
Renato Soibelmann Procianoy
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1203
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Tratado de Pediatria 4ed.indb 1204
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COORDENADOR E AUTORES SEÇÃO 16 NEONATOLOGIA
Coordenador Renato Soibelmann Procianoy Neonatologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Professor Titular de Pediatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Editor‑Chefe do Jornal de Pediatria. Presidente do Departamento de Neonatologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Membro Titular da Academia Brasileira de Pediatria. Autores Adauto Dutra Moraes Barbosa Título de Especialista em Pediatria com Área de Atuação em Neonatologia pela SBP/AMB. Mestre em Pediatria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Pediatria pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pós-doutor em Neonatologia pela University of Miami, EUA. Professor Titular da Disciplina de Pediatria do Departamento Materno-infantil da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF). Antonio Carlos de Almeida Melo Médico Pediatra Neonatologista. Coordenador Adjunto do Programa de Reanimação Neonatal no Estado do Rio de Janeiro. Diretor da Divisão de Assistência Neonatal da Maternidade Carmela Dutra da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Membro dos Comitês de Perinatologia e Aleitamento da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro.
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Aparecida Yulie Yamamoto Doutora em Pediatria. Médica e Pesquisadora do Departamento de Puericultura e Pediatria da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP‑USP). Carmen Silvia Martimbianco de Figueiredo Especialista em Pediatria e Neonatologia pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e pela SBP. Mestre em Pediatria pela Universidade Federal do Paraná. Doutora em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília. Professora Associada da Faculdade de Medicina da UFMS. Durval Batista Palhares Neonatologista. Mestre e Doutor pela FMRP‑USP. Pós‑doutor pela Case Western Reserve University, Cleveland, EUA. Professor Titular de Pediatria da FM‑UFMS. Fernanda Tomé Sturzbecher Pós‑graduanda e Médica do Setor de Infectologia Pediátrica do Departamento de Puericultura e Pediatria da FMRP‑USP. Flavia Lopes Enk Médica Pediatra. Residente de Neonatologia no HCPA. Hans Greve Especialista em Pediatria e Neonatologia pela SBP. Preceptor do Programa de Residência Médica em Neonatologia e Coordenador do Serviço de Neonatologia do Hospital Geral Roberto Santos/ Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab).
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Membro do Conselho Científico do Departamento de Neonatologia da SBP. Ilson Enk Mestre em Pediatria pela UFRGS. Diretor Científico da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul. Neonatologista do HCPA. Membro Executivo do Departamento de Neonatologia da SBP. José Roberto de Moraes Ramos Doutor em Ciências e em Saúde da Mulher e da Criança pelo Instituto Fernandes Figueira (IFF/ Fiocruz). Chefe do Departamento de Neonatologia do IFF/Fiocruz. Membro do Departamento Científico de Neonatologia da SBP. Letícia Duarte Villela Mestre em Ciências da Saúde da Criança e da Mulher pelo IFF/Fiocruz. Neonatologista do Departamento de Neonatologia do IFF/Fiocruz. Liana Andres Médica Pediatra. Residente de Neonatologia no HCPA. Magnólia Magalhães de Carvalho Mestre em Assistência Materno‑infantil pela Universidade Federal da Bahia. Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade de Tecnologia e Ciências, Salvador. Neonatologista do Serviço de Neonatologia do Hospital Geral Roberto Santos/Sesab. Manoel Reginaldo Rocha de Holanda Especialista em Pediatria, Área de Atuação em Neonatologia e Terapia Intensiva Pediátrica, pela SBP. Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professor de Pediatria do Curso de Medicina da Universidade Potiguar. Avaliador do Sistema de Acreditação de Escolas Médicas. Presidente da Comissão de Residência Médica (Coreme) do Hospital Dr. José Pedro Bezerra, Natal. Chefe da UTI Neonatal do Hospital Promater, Natal.
Maria Fernanda Branco de Almeida Professora Associada da Disciplina Pediatria Neonatal da EPM‑Unifesp. Membro do Conselho Científico do Departamento de Neonatologia da SBP (2010‑2015). Coordenadora do Programa de Reanimação Neonatal da SBP (2007‑2015). Membro do International Liaison Committee on Resuscitation (Ilcor) – Neonatal Delegation. Marisa Marcia Mussi‑Pinhata Mestre e Doutora em Medicina – Pediatria – pela USP. Pós-doutora pelo Departamento de Imunologia e Infecção da University of Miami School of Medicine, EUA. Professora Associada da USP. Nelson Diniz de Oliveira Doutor em Pediatria e Neonatologia pela Unifesp. Coordenador da Unidade de Neonatologia e Terapia Intensiva Neonatal do Hospital Santa Lúcia, Brasília, DF. Paulo de Jesus Hartmann Nader Mestre em Pediatria pela UFRGS. Professor Adjunto da Disciplina Pediatria do Curso de Medicina da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). Chefe do Departamento de Pediatria da Ulbra. Gestor da Pediatria e Neonatologia do Hospital Universitário (HU) da Ulbra/Hospital Mãe de Deus (HMD). Coordenador da Residência de Pediatria e da Coreme do HU‑Ulbra/HMD. Rita de Cássia dos Santos Silveira Professora Associada do Departamento de Pediatria da UFRGS. Neonatologista do HCPA. Rosângela Interaminense Garbers Especialista em Pediatria pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e pelo Hospital Pequeno Príncipe. Habilitação em Neonatologia pela SBP. Chefe da UTI Neonatal da Maternidade Nossa Senhora de Fátima, Curitiba. Chefe do Berçário Clínico e Cirúrgico do Hospital Pequeno Príncipe, Curitiba. Membro do Comitê de Neonatologia da SBP.
Maria Celia Cervi Docente do Setor de Infectologia Pediátrica do Departamento de Puericultura e Pediatria da FMRP ‑USP.
Ruth Guinsburg Professora Titular da Disciplina Pediatria Neonatal da Unifesp. Coordenadora do Programa de Reanimação Neonatal da SBP (2007‑2015). Membro do Ilcor – Neonatal Delegation. Editora da Revista Paulista de Pediatria.
Maria Elisabeth Lopes Moreira Doutora em Saúde da Criança pela FMRP‑USP. Pesquisadora Titular da Fiocruz. Neonatologista do IFF e Clínica Perinatal Laranjeiras.
Sérgio Tadeu Martins Marba Professor Titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM‑Unicamp). Diretor da
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Divisão de Neonatologia do Hospital da Mulher (CAISM/Unicamp). Membro do Grupo Executivo do Programa de Reanimação Neonatal da SBP. Consultor Nacional em Neonatologia e do Método Canguru do Ministério da Saúde. Silvana Salgado Nader Mestre em Saúde Coletiva pela Ulbra. Coordenadora Adjunta do Curso de Medicina da Ulbra. Professora Adjunta da Disciplina Pediatria do Curso de Medicina da Ulbra. Responsável pela Área de Cuidados Intermediários e Alojamento Conjunto do HU‑Ulbra.
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Vilma F. Hutim G. de Souza Pediatra Neonatologista e Perinatologista pela Universidade Estadual do Pará (UEPA). Mestre em Educação e Saúde na Amazônia pela UEPA. Coordenadora Estadual do Método Canguru no Pará. Coordenadora Adjunta e Instrutora do PRN/ SBP/PA. Facilitadora da Estratégia AIDPI Neonatal do Ministério da Saúde.
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CAPÍTULO 1
PREMATURIDADE E CRESCIMENTO FETAL RESTRITO Nelson Diniz de Oliveira
Definição A terminologia recém‑nascido (RN) pré‑termo, antes deno‑ minado prematuro, é utilizada para todo RN com menos de 37 semanas de idade gestacional ao nascer e não leva em consideração o peso de nascimento. Portanto, é uma classifi‑ cação que envolve apenas o tempo de gestação, independen‑ temente da maneira como foi avaliada, seja por amenorreia, ultrassonografia ou exame físico após o nascimento. Em vir‑ tude de diferenças marcantes, encontradas no que diz res‑ peito às manifestações clínicas e ao desfecho prognóstico após o nascimento (morbimortalidade), dois grupos de RN pré‑termo apresentam denominação específica: os chama‑ dos pré‑termo tardios, aqueles com idade gestacional entre 34 semanas e 36 semanas e 6 dias, e os pré‑termo extremos, com idade gestacional menor do que 28 semanas. Quando se lança mão do conceito de crescimento fetal restri‑ to, refere‑se especificamente aos RN que não atingiram intraútero todo o seu potencial de crescimento. Isso pode decor‑ rer de fatores intrínsecos ao feto ou ao ambiente intrauterino em que está albergado. Muitos retardos de crescimento intrauterino significam “adaptação fetal” a um ambiente intrauterino desfa‑ vorável a um bom crescimento.1
Classificação dos RN com crescimento fetal restrito Os termos “crescimento fetal restrito” e “pequeno para a idade gestacional”, embora relacionados, não têm o mesmo significa‑ do. Enquanto o primeiro diz respeito a uma redução ocorrida para um crescimento esperado para a idade gestacional em questão, as crianças PIG são aquelas cujo peso está abaixo do percentil 10 da curva de crescimento intrauterino para uma re‑ ferida população, podendo incluir parte dessa população (10%), cujo crescimento foi adequado no transcorrer da gravidez. As‑ sim, RN com crescimento fetal restrito podem ser ou não PIG, da mesma forma que os PIG podem ter ou não crescimento fe‑ tal restrito. Somente o peso ao nascer é insuficiente para se analisar uma situação de crescimento fetal restrito. Dessa for‑ ma, o índice ponderal de Rohrer (peso em g dividido pelo cubo do comprimento em cm) ou outras razões de proporção, como perímetro cefálico para o peso ou comprimento, podem ser uti‑ lizados para o melhor diagnóstico de uma inadequação do cres‑ cimento intraútero.1
Classificação Classificação dos RN pré‑termo Os RN pré‑termo, além da classificação relacionada à idade ges‑ tacional, como mencionado anteriormente, podem também ser classificados de acordo com o peso ao nascer, sendo considera‑ dos de baixo peso quando o peso < 2.500 g; muito baixo peso ao nascer para aqueles com peso < 1.500 g e extremo baixo peso para os que nascem com peso < 1.000 g. Quando se relaciona a idade gestacional com o peso ao nascer, podem‑se classificar os pré‑termo em adequados para a idade gestacional (AIG), quando o peso se encontra entre os percentis 10 e 90 das curvas de cres‑ cimento intrauterino; pequenos para a idade gestacional (PIG), quando o peso está abaixo do percentil 10 para a referida idade gestacional, e grandes para a idade gestacional (GIG), quando
Epidemiologia O Sistema de Informação Sobre Nascidos Vivos (SINASC) tem possibilitado traçar o perfil dos nascimentos no Brasil. O docu‑ mento básico para esse cálculo é a Declaração de Nascidos Vi‑ vos (DNV), que deve ser preenchida para todo nascimento em território nacional e que serve de instrumento para o preenchi‑ mento da Certidão de Nascimento. De acordo com o SINASC, para os anos de 2000 e 2010, o percentual de prematuros no Brasil variou entre 6 e 7%. No entanto, artigos baseados em dados primários considerados como de alta confiabilidade pu‑ seram em cheque essas estimativas, sugerindo serem subesti‑ madas. Uma das razões seria a imprecisão das avaliações da idade gestacional (recordatórios da data da última menstrua‑ ção, dados ultrassonográficos e exame físico), além da marca‑
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o peso está acima do percentil 90 para a idade gestacional em questão.
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ção na DNV em faixas agrupadas em intervalos de idade gesta‑ cional (< 22, 22 a 27, 28 a 31, 32 a 36, 37 a 41, 42+ semanas). Os dados corrigidos mostraram percentuais variando entre 10 e 12% de nascimentos pré‑termo para o mesmo período.2 As pre‑ valências foram sistematicamente menores na região Norte, seguida pelas regiões Nordeste e Centro‑Oeste. O Sudeste e o Sul apresentaram as maiores prevalências em todos os anos. Já a partir de 2011, com as mudanças na forma de transcrição dos dados para a DNV, com a idade gestacional agora preen‑ chida por variáveis discretas e não intervalares, as estimativas do SINASC se aproximaram muito das corrigidas, 9,8% para o país como um todo, embora mostrando maior prevalência de nascimentos pré‑termo na região Nordeste. Vários fatores têm sido associados ao nascimento de RN pré‑termo e com crescimento fetal restrito. Entre eles, desta cam‑se: baixa condição socioeconômica, ausência de pré‑natal, gestante menor de 16 anos, uso de drogas lícitas e ilícitas, in fecções perinatais, doenças maternas não infecciosas (agudas e crônicas), intervalo intergestacional curto, multiparidade e gestação múltipla. Alguns aspectos observados nos RN pré ‑termo e naqueles com crescimento fetal restrito que necessitam de cuidados especiais Grande parte da atenção da medicina perinatal está voltada para o segmento que envolve os cuidados com os RN pré ‑termo e aqueles com crescimento fetal restrito. Isso se deve ao fato de serem grupos considerados de alto risco ao nascer. Os primeiros por “não estarem prontos ainda” em razão do menor tempo para crescimento e maturação gestacional; os outros por não terem recebido, sobretudo, suprimentos suficientes para enfrentarem a transição para a vida extrauterina e os dias subsequentes ao nascimento. Esse crescimento fetal restrito pode inclusive ter relação com situações nefastas que se desen‑ volverão na vida adulta, como obesidade, diabete e hipertensão arterial. Portanto, como diversos sistemas corporais podem apresentar desequilíbrio nesse grupo de crianças, serão feitas algumas considerações sobre alguns deles. Regulação térmica O RN, assim como o adulto, tem possibilidade de controlar a sua temperatura corporal, sendo portanto um ser homeotérmico. No entanto, os RN, notadamente os pré‑termo e os com crescimento fetal restrito, apresentam maiores dificuldades nesse controle.
Entre os fatores envolvidos, encontram‑se: relação menor entre a massa e a superfície corporal, aumentando a sua perda de calor; menor quantidade de gordura marrom, a grande responsável por geração de calor no RN; maior permeabilidade epidérmica; e ma‑ nuseio excessivo a que muitas vezes estão submetidos, favore‑ cendo maior perda de água corporal e temperatura. Quanto me‑ nor a idade gestacional e maior a restrição do crescimento, maiores as chances de perda do controle térmico, tornando o RN mais suscetível às variações da temperatura ambiente e, portan‑ to, mais afeito a quadros de hipotermia, na presença de tempe‑ raturas mais baixas, e de hipertermia quando a temperatura am‑ biente é excessiva. As principais formas de perda de calor são por convecção, radiação e evaporação de água. O conceito de ambiente térmico neutro diz respeito à tem‑ peratura ambiente em cada RN, que dependendo dos dias de vida e peso ao nascer, pode manter a sua temperatura corpo ral com menor consumo de oxigênio e alteração do seu metabolismo basal. As formas de medida de temperatura corporal podem ser por via retal, axilar ou cutânea. Em virtude dos riscos ocorri‑ dos com a medição da temperatura retal em neonatos, a medi‑ ção axilar é a mais recomendada e a faixa normal, indepen‑ dentemente do peso ou da idade gestacional, devendo ficar entre 36,5 e 37,5°C. Os pré‑termo cuidados em incubadoras podem ter a sua temperatura medida de forma contínua por sensores cutâneos colocados no abdome superior, sobre a to‑ pografia do fígado. A Tabela 1 apresenta valores de temperatu‑ ra ambiente e corporal sugeridas para RN cuidados em incu‑ badoras ou berços com fonte de calor radiante.3 Homeostase metabólica Glicose A glicose é o principal substrato para o cérebro fetal, do RN e do adulto em condições fisiológicas normais. As concentra‑ ções de glicose plasmática do feto encontram‑se em relação li‑ near com a concentração plasmática materna. Com o clam‑ peamento do cordão umbilical, cessa esse fornecimento. Os RN a termo e muitos prematuros normais conseguem manter inicialmente um nível glicêmico de normalidade a partir da quebra de suas reservas de glicogênio, produzindo um supri‑ mento contínuo de glicose na ordem de 4 a 6 mg/kg/min. No entanto, os RN prematuros, notadamente os de baixo peso ao nascer, por causa de várias condições adversas (menor reserva de glicogênio, maior propensão a asfixia, distúrbios respirató‑
Tabela 1 Temperaturas médias sugeridas em incubadoras para promover ambiente térmico adequado e as referidas temperaturas corporais aferidas por termômetros cutâneos3 Peso (kg)
Temperatura ambiente
Temperatura cutânea abdominal (°C)
35°C
34°C
33°C
32°C
Por 10 dias
> 10 dias
> 21 dias
> 35 dias
36,7
1,5 a 2,0
Por 10 dias
> 10 dias
> 28 dias
36,5
2,0 a 2,5
Por 2 dias
> 2 dias
> 21 dias
36,3
Por 2 dias
> 2 dias
36,0
1 a 1,5
> 2,5
RN com menos de 1 kg de peso ao nascer necessitam de ambiente umidificado e às vezes de temperaturas maiores. A temperatura cutânea abdominal sugerida é de 36,9°C.
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rios, infecções), e naqueles com retardo de crescimento tam‑ bém a policitemia, há acentuada chance de desenvolverem hi‑ poglicemia. Os relatos sobre a incidência de hipoglicemia variam um pouco sobre quais níveis de glicose foram conside‑ rados e a forma como foram aferidos. No entanto, consensos passam a convergir para que valores < 47 mg/dL, tanto para RN a termo quanto pré‑termo, devam ser considerados como baixos, principalmente ao se levar em consideração que, aci‑ ma desse patamar, tem‑se mais certeza de não ocorrer dano cerebral por deficiência de aporte de glicose à célula nervosa.4 Em face de nem sempre a hipoglicemia se manifestar com sinais clínicos (tremores, letargia) e principalmente porque em muitos casos a presença de alguns desses sinais (convul‑ são, apneia) estarem já associados ao maior risco de dano ce‑ rebral, a aferição rotineira dos níveis glicêmicos por meio das fitas reagentes de glicose deve ser feita de forma sistemática nos RN de risco já a partir das primeiras horas de vida. Medidas para a prevenção da hipoglicemia são feitas com a introdução precoce do leite materno e/ou leite humano pas‑ teurizado de banco. Para as situações em que essa quantidade não for suficiente para suprir as necessidades e/ou na impossi‑ bilidade da alimentação por via digestiva, deve ser feita a insta‑ lação de nutrição parenteral precoce com glicose, variando sua taxa de infusão inicial entre 4 e 5,5 mg/kg/min, adicionada de aminoácidos e eletrólitos. Com a estabilização dos níveis glicê‑ micos e o aumento da alimentação por via digestiva, esse su‑ porte é gradualmente retirado. Cálcio O cálcio é um íon importante na homeostase metabólica, atuando em vários processos do metabolismo e da estabilida‑ de da membrana celular, na contração muscular e na condu‑ ção do potencial de ação entre feixes nervosos. Hormônios como o paratormônio, a calcitonina, a vitamina D e o íon mag‑ nésio têm relação direta no controle da sua homeostase. O cálcio é transferido da mãe para o feto por transporte ativo, principalmente durante o terceiro trimestre da gestação. Considera‑se hipocalcemia quando o nível de cálcio sérico total está abaixo de 8 mg/dL (2 mmol/L) ou o de cálcio ioni‑ zável, abaixo de 4,4 mg/dL. Alguns autores aceitam os valores mínimos para o RN pré‑termo como 7 mg/dL de cálcio total.1 Entre os fatores responsáveis pela hipocalcemia neonatal nos RN pré‑termo e com crescimento fetal restrito, destacam ‑se a interrupção precoce do fornecimento de cálcio pelo cordão umbilical, a asfixia neonatal e a hipercalcitoninemia. A hipocalcemia pode, muitas vezes, ser assintomática. As mani‑ festações clínicas mais frequentes são tremores, irritabilidade muscular, convulsões generalizadas ou eventualmente focais. As hipocalcemias de difícil correção podem estar associadas a hipomagnesemia. Magnésio O magnésio atravessa livremente a barreira placentária e acu‑ mula-se no feto principalmente no primeiro trimestre da ges‑ tação, e 60% do magnésio corporal encontra‑se depositado no tecido ósseo. Nos trimestres subsequentes, essa transferência
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ocorre na faixa de 3 a 5 mg/dia. O transporte ativo transpla‑ centário do magnésio é diferente do cálcio, que precisa manter níveis fetais maiores que o materno. Considera‑se hipomagne‑ semia valores séricos < 1,6 mg/dL. Como a hipomagnesemia reduz a secreção e a ação do paratormônio, os quadros de hi‑ pomagnesemia são frequentemente acompanhados por hipo‑ calcemia.1 Fósforo Diferentemente do cálcio, o fósforo fica predominantemente nos tecidos moles, na forma de ésteres de fosfato, e no fluido extracelular, na forma de íons inorgânicos de fosfato. Dada a sua larga distribuição no corpo, suas funções metabólicas apresentam influência marcante no metabolismo energético, na composição das membranas celulares, na estrutura dos nu‑ cleotídeos e na mineralização óssea. Doença metabólica óssea RN prematuros têm risco aumentado para desenvolverem doença óssea secundária ao reduzido conteúdo mineral, tam‑ bém denominado de raquitismo da prematuridade. A incidên‑ cia é inversamente proporcional à idade gestacional e ao peso ao nascer, podendo ser estimada em 50% para RN com peso < 1000 g ao nascer e de 30% para os menores de 1.500 g. A oferta precoce de dieta enteral e a maior oferta de cálcio e fósforo por via parenteral e enteral a esse grupo vulnerável têm diminuído a incidência desses casos. Água corporal e sódio A água corporal total divide‑se entre os compartimentos intra‑ celular e extracelular (compartimento intravascular e intersti‑ cial). No período fetal, praticamente 90% do peso corporal é constituído por água e esse valor decresce para 80% nos pre‑ maturos e aproximadamente 75% nos RN a termo. Ao mesmo tempo que ocorre essa perda gradual de água total do organis‑ mo, ocorre também uma mudança na distribuição dela entre os diferentes compartimentos, com perda maior da água ex‑ tracelular e ganho da água intracelular, proporcionalmente. No RN pré‑termo, há uma perda considerável de água por via transepidérmica, sendo maior quanto menores forem o peso e a idade gestacional. Isso se deve tanto à imaturidade da pele (po‑ breza de estrato córneo com queratinização insuficiente) quan‑ to à grande superfície em relação à massa corpórea nessas crianças. Nos grupos mais vulneráveis, essa perda pode exceder ao débito urinário, principalmente se esses RN são cuidados sem medidas preventivas adequadas e em incubadoras com fonte de calor radiante. Um ambiente térmico neutro e com alta umidifi‑ cação (60 a 90%) pode reduzir muito essa perda, notadamente nos RN menores de 1000 g de peso ao nascer. Outra medida in‑ teressante é o envolvimento desses bebês com plástico, que fa‑ vorece a manutenção da temperatura e diminui a perda hídrica.1,3 Quanto mais se conseguir reduzir a perda de água transepi‑ dérmica, também se estará reduzindo a desidratação, a hiper‑ natremia e a hiperglicemia, de modo que esse procedimento pode ser considerado um marcador de alta qualidade no cui‑ dado de RN de muito baixo peso ao nascer.
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O sódio é excretado através de filtração glomerular e reab‑ sorvido no túbulo proximal, no ramo ascendente da alça de Henle e no túbulo distal. O RN pré‑termo apresenta natriurese elevada, decorrente da menor reabsorção tubular de sódio, quando comparado com RN a termo. O balanço de sódio no RN de muito baixo peso deve ser levemente positivo para pro‑ mover, entre outros fatores, melhor crescimento ósseo. Sistema respiratório A importância do bom funcionamento do sistema respiratório no período neonatal é tão grande que muitas vezes considerar maturidade fetal é o mesmo que dizer que o pulmão funciona sem ajudas externas para uma adequada oxigenação. Isso se deve ao fato de o sistema respiratório ser o sítio das principais causas de morbimortalidade neonatal. Dessa forma, cinco si‑ nais tornam-se importantes na avaliação de um padrão respi‑ ratório adequado para o RN: frequência respiratória, retrações da caixa toráxica, batimentos das asas do nariz, gemidos res‑ piratórios e cianose. O padrão predominante na respiração neonatal é o dito pe‑ riódico, ou seja, entre incursões respiratórias regulares ocorrem pequenas pausas de 5 a 10 segundos sem que haja bradicardia. A frequência respiratória oscila entre 40 e 60 incursões por mi‑ nuto e, pela particularidade de ser periódica, a melhor maneira para aferi‑la é contar quantas incursões ocorrem em 2 minutos e depois dividir por 2. Por ser a caixa toráxica muito maleável (alta compliância), retrações subesternais, intercostais e sub‑ costais aparecem ao mínimo sinal de desconforto respiratório. Quanto pior o desconforto, maior a intensidade dessas retra‑ ções, que são provocadas pela forte contração do diafragma em uma tentativa de aumentar a pressão negativa intrapleural para facilitar, de forma nem sempre bem‑sucedida, a entrada de ar nos pulmões. Como o RN é um respirador nasal por excelência e a resistência nasal contribui para a maior resistência à entrada de ar, o alargamento das asas nasais é um movimento realizado por ele para minimizar essa resistência. O gemido é um som ob‑ servado à expiração. Ele traduz maior fechamento da glote, au‑ mentando a resistência à saída do ar e consequente aumento da capacidade residual funcional, o que melhora o volume pulmo‑ nar e a relação ventilação‑perfusão. A cianose central é mais bem observada ao exame da língua e da mucosa oral e é um im‑ portante indicador de falha na oxigenação. Como a cianose se deve à presença de hemoglobina reduzida e como a curva de dissociação oxigênio‑hemoglobina no período neonatal é deslo‑ cada para a esquerda, a avaliação de uma oxigenação adequada necessita de recursos de monitoração não invasiva (oximetria de pulso) e laboratorial (gasometria, hemograma), principal‑ mente nos casos de desconforto respiratório com anemia ou policitemia. Retardo de absorção de líquido alveolar Durante a vida intrauterina, os espaços alveolares são preen‑ chidos por um líquido secretado pelo epitélio alveolar que exerce uma função de distensão desses espaços, o que é fundamental para o crescimento pulmonar. Sua produção va‑ ria entre 3 e 5 mL/kg e chega a atingir 20 a 30 mL/kg de peso.
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Na época do nascimento, com o trabalho de parto, inicia‑se um processo de absorção desse líquido por capilares e linfáti‑ cos, liberando os alvéolos para o preenchimento de ar. Nas si‑ tuações em que esse líquido não é absorvido, leva à dificulda‑ de respiratória no período neonatal. Muito frequente em partos operatórios eletivos na ausência de trabalho de parto e em quadros de asfixia perinatal, o retardo de absorção do lí‑ quido alveolar pode acontecer também em pré‑termo, princi‑ palmente os considerados tardios, e merece diagnóstico dife‑ rencial com a síndrome do desconforto respiratório (SDR). Síndrome do desconforto respiratório A SDR do RN pré‑termo, antes referida como doença de mem‑ branas hialinas, é a forma clássica dominante de dificuldade respiratória entre os RN pré‑termo, sendo importante causa de morbimortalidade. A sua fisiopatologia está relacionada à defi‑ ciência de surfactante intra‑alveolar, o que leva ao colabamen‑ to dessas estruturas, alterando a relação ventilação‑perfusão e provocando hipoxemia. Os sinais de desconforto respiratório surgem logo após o nascimento e intensificam‑se se medidas adequadas não forem prontamente tomadas. A administração à gestante com risco de parto prematuro de corticoide antena‑ tal é a principal medida preventiva para diminuir a prevalência desses casos. Após o nascimento, a utilização de surfactante exógeno por via endotraqueal e o estabelecimento de suporte respiratório com pressão positiva contínua nas vias aéreas, por pronga nasal ou por entubação traqueal, são medidas funda‑ mentais no tratamento. Cada vez mais os dispositivos para as‑ sistência respiratória via prongas nasais têm sido utilizados, minimizando a necessidade da entubação traqueal, que está mais associada a complicações.5 Doença pulmonar crônica (displasia broncopulmonar) Com o crescente aumento do número de prematuros com muito baixo peso e extremo baixo peso ao nascer (< 750 g) que sobrevivem, observa‑se também que um número maior deles (maior quanto menor o peso e a idade gestacional ao nasci‑ mento) permanece dependente de oxigênio por tempo pro‑ longado. Vários fatores, além da imaturidade pulmonar, estão envolvidos na gênese da doença pulmonar crônica: fatores in‑ flamatórios, fatores infecciosos, uso do oxigênio e de ventila‑ ção mecânica. O tratamento com surfactante pulmonar exóge‑ no na SDR aumentou o número de sobreviventes sem doença pulmonar crônica. Apneia da prematuridade A apneia do prematuro pode ser definida como uma interrupção da entrada do fluxo de ar nas vias aéreas superiores, por um pe‑ ríodo de 15 a 20 segundos, quer isso aconteça por uma pausa dos movimentos respiratórios ou não. Dessa forma, podem ser classificadas como central, quando essa ausência de fluxo de‑ corre inicialmente por uma interrupção dos movimentos respi‑ ratórios sem associação a um processo obstrutivo alto; obstrutiva, quando a interrupção ao fluxo aéreo acontece mes‑ mo observando‑se movimentação da caixa torácica; e mista,
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que consiste essencialmente primeiro na interrupção do fluxo aéreo por um colabamento das vias aéreas superiores, seguindo ‑se de concomitante pausa na movimentação da caixa torácica. As apneias mistas correspondem a 50 a 75% dos casos, enquan‑ to as obstrutivas, 10 a 20%, e as centrais, 10 a 25%. A utilização das metilxantinas tem sido um dos pilares no tratamento farmacológico da apneia do prematuro há muitos anos. Tanto a teofilina quanto a cafeína são utilizadas e apre‑ sentam diversos mecanismos de ação: promovem o aumento da sensibilidade dos receptores ao CO2, aumentam o volume ‑minuto, potencializam o trabalho do diafragma, diminuem a sensibilidade à depressão respiratória pela hipóxia e diminuem a respiração periódica. Outra modalidade terapêutica muito utilizada é a pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP), através do uso de prongas nasais, máscara nasal ou facial, com pressões entre 2 e 5 cmH2O e diferentes concentrações de oxi‑ gênio. Esse procedimento, associado ao uso das metilxantinas, tem se mostrado efetivo no tratamento da apneia, fundamen‑ talmente nas de origem mista e obstrutiva. Aspectos nutricionais Após o nascimento, deve ser propiciado ao RN pré‑termo con‑ dições nutricionais para não interromper o crescimento que ocorria intraútero e para prevenir o catabolismo proteico. A di‑ fícil tarefa de manter essas taxas de crescimento tem, princi‑ palmente nos RN de menor peso, a prática da instalação pre‑ coce de soluções de glicose com aminoácidos específicos para prematuros (oferecendo até 3 g/kg/dia já no primeiro dia de vida para os com peso < 1000 g) e eletrólitos. A oferta gradual de soluções lipídicas, também adequadas, deve ser proporcio‑ nada, assim como a de vitaminas e oligoelementos. A dieta enteral deve ser prontamente instituída, privilegiando‑se o uso do leite da própria mãe.1,6 Esse leite possui fatores imuno‑ lógicos, induz a liberação intestinal de hormônios tróficos, aumenta a motilidade gastrointestinal, prevenindo a translo‑ cação bacteriana, e promove a liberação de substâncias anti ‑inflamatórias. No acompanhamento do crescimento pós ‑natal, têm sido utilizadas curvas apropriadas de peso, comprimento e perímetro cefálico. As curvas de Fenton e mais recentemente as do estudo Intergrowth, do qual o Brasil parti‑ cipou, têm sido as recomendadas.7‑9 Método Canguru no modelo brasileiro e assistência neonatal do RN de baixo peso ao nascer O Método Canguru, como preconizado no modelo brasileiro, é diferente do tradicional modelo idealizado na Colômbia no fi‑ nal da década de 1970, pois o modelo nacional visa a uma mu‑ dança no paradigma da atenção ao RN de baixo peso, da sua mãe e da sua família, trazendo para o cerne dessa proposta uma abordagem interdisciplinar, humanizada, caracterizada por forte conhecimento das questões psicoafetivas e biológi‑ cas que envolvem a gestação, o nascimento e o cuidado pós ‑natal de um bebê de baixo peso. Assim, a humanização do cuidado inicia‑se no oferecimento do que há de melhor em tecnologia da atenção perinatal, reforçada pelo conhecimento
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de todas as particularidades sociais, psicológicas e de cuida‑ dos técnicos propriamente ditos, necessários para essa fase da vida. Hoje ele está implantado em várias maternidades e uni‑ dades neonatais brasileiras.10 Seguimento ambulatorial após a alta hospitalar Após a alta hospitalar, os RN prematuros devem ter assegura‑ do um esquema de acompanhamento ambulatorial que propi‑ cie uma vigilância criteriosa do seu crescimento e desenvolvi‑ mento. Para isso, uma equipe bem treinada de médicos (pediatras, neuropediatras, oftalmologistas), enfermeiros, fi‑ sioterapeutas, fonoaudiólogos e assistentes sociais deve tra‑ balhar de forma integrada. O passo inicial para um bom acom‑ panhamento inicia‑se antes da alta, com a orientação da família quanto aos cuidados domiciliares necessários. A ob‑ servância de particularidades quanto ao calendário vacinal es‑ pecífico (iniciado muitas vezes ainda dentro da unidade hos‑ pitalar) e da utilização do anticorpo monoclonal contra o vírus sincicial respiratório (para menores de 30 semanas de idade gestacional ao nascimento) são pontos importantes. Na ava‑ liação do crescimento e do desenvolvimento, o conceito de idade gestacional corrigida ou de idade pós‑conceptual, que ajusta o grau de prematuridade com os dias após o nascimen‑ to, deve ser conhecido. Para isso, considera‑se a data que o pré‑termo completaria 40 semanas como a data de partida para as análises do crescimento na curva da Organização Mundial da Saúde, encontrada na caderneta da criança do Mi‑ nistério da Saúde. Antes de ele completar 40 semanas, podem ser usadas as curvas de Fenton (meninos e meninas) ou as do estudo Intergrowth. Para a análise do desenvolvimento, po‑ dem ser aplicadas diferentes escalas, ressaltando‑se as de Denver e a de Bayley. Todo esse arsenal ajuda na identificação de indicadores para intervenções precoces que propiciem um bom prognóstico.8‑10 Prevenção Vários fatores têm sido arrolados como importantes na pre‑ venção ao nascimento de RN prematuros e com retardo de crescimento intraútero. Entre eles, destacam‑se: necessidade da realização de projetos educacionais que aumentem o nível de escolaridade da população (notadamente a materna), o que efetivamente melhora a noção do cuidado do indivíduo com a sua própria saúde, além de propiciar ascensão social e econômica; estabelecimento de ações de ampla cobertura para a assistência ao pré‑natal e a acessibilidade a um sistema de saúde de qualidade; campanhas para evitar o tabagismo, o uso do álcool e de drogas ilícitas; prevenção e tratamento adequado das afecções crônicas. Prognóstico A crescente incorporação de novos conhecimentos e de sofisti‑ cada tecnologia tem aumentado no mundo inteiro os índices de sobrevida de RN pré‑termo, inclusive os considerados extremos. Os resultados brasileiros, embora ainda muito abai‑ xo dos europeus e norte‑americanos, têm também mostrado
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melhora gradual. No entanto, há de se considerar que esses re‑ sultados de bom prognóstico devem estar centrados não só na diminuição dos índices de mortalidade, mas também na me‑ lhor qualidade de vida dessa criança egressa do atendimento em UTI neonatal. Esse aspecto passa pela conquista de melho res índices de sobrevida sem comorbidades, como displasia broncopulmonar, retinopatia da prematuridade, hemorragia peri e intraventricular, e infecções relacionadas à assistência. Essa é a busca pela excelência do cuidado. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Classificar os RN pré‑termo de acordo com a sua idade gestacional, peso e a relação entre o peso e a idade gestacional. • Identificar fatores predisponentes para o nascimento de RN pré‑termo e com crescimento fetal restrito e sugerir medidas de controle e prevenção. • Conhecer os principais distúrbios metabólicos no período neonatal e sugerir algumas medidas de prevenção e controle. • Desenvolver o conceito de ambiente térmico neutro e propor medidas que auxiliem na manutenção da homeostase térmica do RN pré‑termo. • Identificar sinais clínicos relacionados ao desconforto respiratório neonatal e fazer suspeitas diagnósticas. • Identificar ao longo do texto pilares que estabeleçam uma linha de cuidado integral de qualidade aos RN pré‑termo e os com crescimento fetal restrito.
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CAPÍTULO 2
REANIMAÇÃO NEONATAL Ruth Guinsburg Maria Fernanda Branco de Almeida
Introdução A asfixia perinatal é um importante problema de saúde pública no Brasil. Dos cerca de 3 milhões de nascimentos no país, quan‑ do se pesquisam os óbitos neonatais precoces associados à asfi‑ xia perinatal sem anomalias congênitas, observam-se 12 mortes evitáveis diárias de bebês, cinco delas em nascidos a termo.1,2 Ao nascimento, um em cada 10 recém-nascidos (RN) neces‑ sita de ventilação com pressão positiva para iniciar e/ou man‑ ter movimentos respiratórios efetivos; um em cada 100 neona‑ tos precisa de entubação e/ou massagem cardíaca; e um em cada 1.000 requer entubação, massagem cardíaca e medica‑ ções, desde que a ventilação seja aplicada adequadamente.3 A necessidade de procedimentos de reanimação é maior quanto menor a idade gestacional e/ou peso ao nascer.4,5 O parto cesá‑ reo, entre 37 e 39 semanas de gestação, mesmo sem fatores de risco antenatais para asfixia, eleva o risco de que a ventilação ao nascer seja necessária.6 Estima-se que, no país, a cada ano, 300.000 crianças necessitem de ajuda para iniciar e manter a respiração ao nascer e cerca de 24.000 prematuros de muito baixo peso precisem de assistência ventilatória na sala de parto. As práticas da reanimação em sala de parto baseiam-se nas recomendações publicadas pelo International Liaison Committee on Resuscitation (ILCOR). Esse grupo inclui especialistas dos cinco continentes, com representantes brasileiros, res‑ ponsáveis por revisar as melhores evidências científicas dispo‑ níveis no que concerne aos procedimentos recomendados para a reanimação, renovadas a cada 5 anos. O texto a seguir foi construído com base nas diretrizes do ILCOR, nas condu‑ tas adotadas pelo Neonatal Resuscitation Program da Acade‑ mia Americana de Pediatria e Associação Americana de Car‑ diologia, ambas publicadas em outubro de 2015,7 e nas diretrizes publicadas pelo Programa de Reanimação Neonatal da Sociedade Brasileira de Pediatria, atualizadas em 2016.8,9
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A visão geral dos passos necessários para a reanimação neo‑ natal, segundo as recomendações anteriormente especificadas, encontra-se na Figura 1. Preparo para a assistência O preparo para atender o RN na sala de parto consiste na reali‑ zação de anamnese materna, na disponibilidade do material necessário e na presença de equipe treinada em reanimação neonatal. Condições clínicas maternas, intercorrências na gra‑ videz, no trabalho de parto ou parto e problemas com a vitali‑ dade fetal chamam a atenção para a possibilidade de a reani‑ mação ser necessária. Todo material necessário para a reanimação deve ser pre‑ parado, testado e estar disponível, em local de fácil acesso, an‑ tes do nascimento. Esse material é destinado à manutenção da temperatura, aspiração de vias aéreas, ventilação e admi‑ nistração de medicações e está regulamentado pela portaria do Ministério da Saúde 371/2014.10 Considerando-se a frequência de RN que precisam de al‑ gum procedimento de reanimação e a rapidez com que essas manobras devem ser iniciadas, é fundamental que pelo me‑ nos um profissional capaz de iniciar de forma adequada a rea‑ nimação neonatal esteja presente em todo parto, de preferên‑ cia o pediatra. Quando se antecipa o nascimento de um concepto de alto risco, podem ser necessários dois a três pro‑ fissionais treinados e capacitados a reanimar o RN de maneira plena, rápida e efetiva, pelo menos um deles pediatra. No caso do nascimento de gemelares, é importante dispor de material e equipe próprios para cada criança. Para a recepção do RN, utilizar as precauções-padrão que compreendem a lavagem/higienização correta das mãos e o uso de luvas, aventais, máscaras ou proteção facial para evitar o contato do profissional com material biológico do paciente.
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NASCIMENTO Gestação a termo? Respirando ou chorando? Tônus muscular em flexão?
Sim
Cuidados de rotina junto à mãe: prover calor, manter vias aéreas pérvias e avaliar a vitalidade de maneira contínua
Não Prover calor Posicionar cabeça Aspirar vias aéreas s/n Secar
FC < 100 bpm, apneia ou respiração irregular?
Não
Não Desconforto respiratório?
Sim
60 segundos (minuto de ouro)
Ventilação com pressão positiva Monitorar SatO2 Considerar monitor para avaliar FC
Sim
Monitorar SatO2 pré‑ductal Considerar CPAP
FC < 100 bpm?
Sim
Garantir adaptação face/máscara Assegurar ventilação adequada com movimento do tórax Considerar entubação
Minutos de vida
SatO2 pré‑ductal
Até 5 5 a 10 > 10
70 a 80% 80 a 90% 85 a 95%
FC < 60 bpm?
Sim Entubação traqueal Massagem cardíaca coordenada com ventilação adequada (3:1) Considerar O2 a 100% Avaliar FC contínua com monitor Considerar cateterismo venoso
FC < 60 bpm?
Sim Adrenalina endovenosa Considerar hipovolemia MANTER NORMOTERMIA
Figura 1 Fluxograma da reanimação neonatal – Programa de Reanimação Neonatal da Sociedade Brasileira de Pediatria 2016.8,9 FC: frequência cardíaca; bpm: batimentos por minuto; SatO2: saturação de oxigênio; CPAP: pressão positiva contínua de vias aéreas.
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Reanimação Neonatal •
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Avaliação da vitalidade ao nascer A reanimação depende da avaliação simultânea da respiração e da frequência cardíaca (FC). A FC é o principal determinante da decisão de indicar as diversas manobras de reanimação. Logo após o nascimento, o RN deve respirar de maneira regu‑ lar, suficiente para manter a FC acima de 100 bpm. A FC deve ser avaliada inicialmente por meio da ausculta do precórdio com estetoscópio. Se há necessidade de qualquer procedi‑ mento de reanimação, a avaliação da FC é feita por meio do monitor cardíaco com 3 eletrodos. A ausculta precordial, a palpação do cordão e o sinal de pulso na oximetria podem subestimar a FC. Quanto ao boletim de Apgar, este não é indicado para de‑ terminar o início da reanimação nem as manobras a serem instituídas no decorrer do procedimento. No entanto, sua apli‑ cação permite avaliar a resposta do RN às manobras realiza‑ das e a eficácia dessas manobras. Se o escore é inferior a 7 no quinto minuto, recomenda-se realizá-lo a cada 5 minutos, até 20 minutos de vida.
ambiente de 23 a 26°C. Após o clampeamento do cordão, o RN é recepcionado em campos aquecidos e colocado sob calor ra‑ diante. Em pacientes com idade gestacional < 34 semanas, re‑ comenda-se o uso do saco plástico transparente de polietileno de 30 x 50 cm. Assim, logo depois de posicionar o recém-nas‑ cido sob fonte de calor radiante e antes de secar, introduz-se o corpo, exceto a face, dentro do saco plástico e, a seguir, reali‑ zam-se as manobras necessárias. Essa prática deve ser suple‑ mentada pelo emprego de touca dupla (plástico e lã/algodão) para reduzir a perda de calor na região da fontanela. Nos neo‑ natos com idade gestacional ≥ 34 semanas, após a colocação sob fonte de calor radiante e a realização das medidas para manter as vias aéreas permeáveis, secar o corpo e a região da fontanela e desprezar os campos úmidos. Cuidado especial deve ser dirigido no sentido de evitar a hipertermia, pois pode agravar a lesão cerebral em pacientes asfixiados. A fim de manter a permeabilidade das vias aéreas, posicio‑ na-se a cabeça do RN com uma leve extensão do pescoço. Evi‑ tar sua hiperextensão ou flexão exagerada. Por vezes, é neces‑ sário colocar um coxim sob os ombros do paciente para Assistência ao recém-nascido a termo com facilitar o posicionamento adequado da cabeça. Na sequência, boa vitalidade ao nascer se houver excesso de secreções nas vias aéreas, a boca e de‑ Se, ao nascimento, o RN é de termo, está respirando ou cho‑ pois as narinas são aspiradas delicadamente com sonda tra‑ rando, com tônus muscular em flexão, independentemente queal conectada ao aspirador a vácuo, sob pressão máxima do aspecto do líquido amniótico meconial, ele não necessita aproximada de 100 mmHg. A aspiração da hipofaringe deve ser evitada, pois pode causar atelectasia, trauma e prejudicar de qualquer manobra de reanimação. Metanálise11 com nascidos a termo indica que o clampea‑ o estabelecimento de uma respiração efetiva. Uma vez feitos os passos iniciais da reanimação, avaliam‑ mento tardio do cordão umbilical é benéfico com relação aos índices hematológicos na idade de 3 a 6 meses, embora possa -se a respiração e a FC. Se houver vitalidade adequada, com elevar a necessidade de fototerapia por hiperbilirrubinemia in‑ respiração rítmica e regular e FC > 100 bpm, o RN deve receber direta na primeira semana de vida. Recomenda-se, portanto, os cuidados de rotina na sala de parto. Se o paciente, após os que, no RN a termo, saudável e com boa vitalidade ao nascer, o passos iniciais, não apresenta melhora, indica-se a ventilação clampeamento seja efetuado 1 a 3 minutos depois da extração com pressão positiva, a colocação dos eletrodos do monitor do concepto do útero materno. cardíaco e do sensor neonatal do oxímetro de pulso. O contato pele a pele com a mãe imediatamente após o nas‑ cimento reduz o risco de hipotermia em RN a termo com boa Ventilação com pressão positiva vitalidade, desde que cobertos com campos pré-aquecidos. O ponto crítico para o sucesso da reanimação neonatal é a ven‑ Nesse momento, pode-se iniciar a amamentação. A Organiza‑ tilação pulmonar adequada, com a finalidade de inflar os pul‑ ção Mundial da Saúde (OMS) recomenda que o aleitamento mões do recém-nascido e, com isso, levar à dilatação da vascu‑ materno seja iniciado na primeira hora de vida, pois se associa latura pulmonar e à hematose apropriada. Assim, após os a um período maior de amamentação, melhor interação mãe‑ cuidados para manter a temperatura e a permeabilidade das -bebê e menor risco de hemorragia materna.12 vias aéreas, a presença de apneia, respiração irregular e/ou FC < 100 bpm indica a VPP, que precisa ser iniciada nos primeiros Passos iniciais da estabilização/reanimação 60 segundos de vida (“minuto de ouro”). A ventilação pulmo‑ Pacientes com idade gestacional diferente do termo (< 37 se‑ nar é o procedimento mais simples, importante e efetivo na manas ou ≥ 42 semanas) e aqueles de qualquer idade gestacio‑ reanimação do RN em sala de parto. nal que não iniciam movimentos respiratórios regulares e/ou Para discutir a VPP, é necessário entender qual a concen‑ aqueles cujo tônus muscular está flácido precisam ser condu‑ tração de oxigênio suplementar a ser utilizada, como controlar zidos à mesa de reanimação, indicando-se os seguintes pas‑ a oferta de oxigênio, quais os equipamentos disponíveis para sos: prover calor, posicionar a cabeça em leve extensão, aspirar as ventilação efetiva e qual a técnica recomendada. boca e narinas, se necessário, e secar o paciente. Esses passos Oxigênio suplementar devem ser executados em, no máximo, 30 segundos. O primeiro passo consiste em manter a temperatura corpo‑ Para ventilar o RN, é necessário decidir a concentração de oxi‑ ral entre 36,5 e 37,5°C. Para diminuir a perda de calor, é impor gênio a ser ministrada. Estudos13 indicam que neonatos com tante pré-aquecer a sala de parto e a sala em que serão realiza‑ idade gestacional de 34 semanas ou mais e ventilados com ar dos os procedimentos de reanimação, mantendo temperatura ambiente, comparados aos ventilados com oxigênio a 100%,
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iniciam a respiração espontânea e revertem a bradicardia mais rapidamente, além de haver redução da mortalidade neonatal precoce e com 28 dias. Assim, após os passos iniciais, se o RN ≥ 34 semanas apresenta apneia, respiração irregular e/ou FC < 100 bpm, iniciar a ventilação com ar ambiente. Uma vez iniciada a ventilação, monitorar a oferta do oxigênio suplementar pela oximetria de pulso. Aplicar o sensor neona‑ tal na região do pulso radial do membro superior direito e, a seguir, conectá-lo ao cabo do oxímetro. A leitura confiável da saturação de oxigênio (SatO2) demora 1 a 2 minutos após o nascimento, desde que haja débito cardíaco suficiente, com perfusão periférica. Os valores desejáveis de SatO2 variam de acordo com o tempo de vida (Tabela 1). A concentração de oxigênio oferecida deve ser ajustada por meio de um blender, de acordo com a SatO2 desejável. Quando o RN ≥ 34 semanas não melhora e/ou não atinge os valores desejáveis de SatO2 com a VPP em ar ambiente, recomenda-se, em primeiro lugar, rever a técnica da ventilação. A necessidade de oxigênio su‑ plementar em RN ≥ 34 semanas é excepcional se a VPP é feita com a técnica adequada. Tabela 1 Valores de SatO2 pré-ductais desejáveis, segundo a idade Minutos de vida
SatO2 pré-ductal
Até 5
70 a 80%
5 a 10
80 a 90%
> 10
85 a 95%
Em relação aos nascidos com idade gestacional abaixo de 34 semanas, as pesquisas ainda não responderam qual a con‑ centração de oxigênio ideal para sua reanimação. Se, por um lado, o uso de ar ambiente na ventilação de prematuros, du‑ rante a reanimação em sala de parto, pode não ser suficiente para que esses pacientes atinjam uma oxigenação adequada,14 o emprego de oxigênio a 100% pode ser excessivo e deletério, contribuindo para lesões inflamatórias em pulmões e sistema nervoso central. Recomenda-se, atualmente, utilizar a con‑ centração inicial de 30%, aumentando-a ou reduzindo-a por meio de um blender, de modo a manter a FC > 100 bpm nos minutos iniciais de vida e a SatO2 nos limites demonstrados na Tabela 1. Só se deve aumentar a oferta de oxigênio depois de certificar-se de que a técnica da ventilação está adequada. Equipamentos para a ventilação Os equipamentos empregados para ventilar o RN em sala de parto compreendem, na prática clínica, o balão autoinflável e o ventilador mecânico manual em T. O balão autoinflável não necessita de fonte de gás para fun‑ cionar, tratando-se de equipamento de baixo custo, que per‑ mite a ventilação efetiva do RN em sala de parto. A quantida‑ de de escape de ar entre face e máscara e a complacência pulmonar são pontos críticos na efetividade da ventilação com balão autoinflável e máscara facial. A pressão inspiratória má‑ xima a ser administrada é limitada pela válvula de escape, ati‑
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vada em 30 a 40 cmH2O para evitar o barotrauma. Dentre as desvantagens do equipamento, ressalta-se não ser possível fornecer um pico de pressão inspiratória constante (o que obriga o uso do manômetro durante a ventilação), a ativação variável da válvula de segurança e a falta de pressão expirató‑ ria final positiva (PEEP) confiável. Além disso, o balão autoin‑ flável fornece concentração de oxigênio apenas de 21% (ar am‑ biente, quando não está conectado ao oxigênio e ao reservatório) ou de 90 a 100% (conectado à fonte de oxigênio a 5 L/minuto e ao reservatório). A oferta de concentrações in‑ termediárias de oxigênio varia de acordo com o fluxo de oxigê‑ nio, a pressão exercida no balão, o tempo de compressão, a fre‑ quência aplicada e o fabricante do balão. De qualquer maneira, o balão autoinflável deve estar sempre disponível em toda sala de parto. O ventilador mecânico manual em T tem sido empregado de maneira crescente na reanimação neonatal, em especial em prematuros. Além de seu manuseio ser relativamente fácil, o equipamento permite administrar pressão inspiratória e PEEP constantes, ajustáveis de acordo com a resposta clínica do paciente. Para o funcionamento adequado do ventilador, há necessidade de uma fonte de gás comprimida; se houver disponibilidade de fonte de ar comprimido, de oxigênio e blender, pode-se titular a oferta de oxigênio ao RN. Apesar dis‑ so, vale lembrar que a administração do volume corrente de‑ pende da complacência pulmonar, que se altera no decorrer do tempo, logo após o nascimento. Quanto à interface entre o equipamento para ventilação e o paciente, pode-se utilizar a máscara facial ou a cânula tra‑ queal. A máscara facial deve ser constituída de material ma‑ leável transparente ou semitransparente, borda acolchoada e planejada para possuir um espaço morto < 5 mL. As máscaras faciais estão disponíveis em três tamanhos: para o RN a termo, prematuro e prematuro extremo. O emprego de máscara de ta‑ manho adequado, de tal forma que cubra a ponta do queixo, a boca e o nariz, é fundamental para obter um ajuste correto en‑ tre face e máscara e garantir o sucesso da ventilação. Já as cânulas traqueais devem ser de diâmetro uniforme sem balão, com linha radiopaca e marcador de corda vocal. Em neonatos com idade gestacional < 28 semanas ou peso < 1.000 g, utiliza-se cânula de 2,5 mm; entre 28 e 34 semanas ou peso entre 1.000 e 2.000 g, opta-se pelo diâmetro de 3 mm; para os de idade gestacional entre 34 e 38 semanas e peso de 2.000 a 3.000 g, indica-se a cânula de 3,5 mm; e para os acima de 38 semanas ou de 3.000 g, a de 3,5 a 4 mm. VPP com balão autoinflável e máscara O emprego da VPP com balão e máscara, na reanimação neo‑ natal em sala de parto, deve ser feito na frequência de 40 a 60 movimentos/minuto, de acordo com a regra prática “aperta/ solta/solta...”. Quanto à pressão a ser aplicada, ela deve ser in‑ dividualizada para que o RN alcance e mantenha FC > 100 bpm. De modo geral, iniciar com pressão inspiratória ao redor de 20 cmH2O, podendo raramente alcançar 30 a 40 cmH2O na‑ queles pacientes com pulmões muito imaturos ou muito doentes. É obrigatória a monitoração da pressão oferecida
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pelo balão por meio de manômetro. O uso de insuflação sus‑ tentada, maior do que 5 segundos, na técnica de ventilação com pressão positiva durante a reanimação neonatal, não é in‑ dicada fora de protocolos de pesquisa clínica.7-9 Durante a VPP, deve-se observar a adaptação da máscara à face do RN, a permeabilidade das vias aéreas e a expansibili‑ dade pulmonar. A ventilação efetiva produz a elevação da FC e, depois, o estabelecimento da respiração espontânea. Se, após 30 segundos de VPP, o paciente apresentar FC > 100 bpm e respiração espontânea e regular, suspender o procedimento. É importante ressaltar que, de cada 10 RN que recebem VPP com balão e máscara ao nascer, nove melhoram e não preci‑ sam de outros procedimentos de reanimação. Considera-se como falha se, após 30 segundos de VPP, o RN mantém FC < 100 bpm ou não retoma a respiração espon‑ tânea rítmica e regular. Nesse caso, verificar o ajuste entre a face e a máscara, a permeabilidade das vias aéreas (posicio‑ nando a cabeça, aspirando secreções e mantendo a boca do RN aberta) e a pressão no balão, corrigindo o que for necessá‑ rio. Se o paciente, após a correção da técnica da ventilação, não melhorar, está indicado o uso da cânula traqueal como in‑ terface para a VPP. Recomenda-se, durante períodos prolon‑ gados de ventilação, a inserção de uma sonda orogástrica para diminuir a distensão gástrica. VPP com balão autoinflável e cânula traqueal As situações mais frequentes para a indicação de ventilação por cânula traqueal em sala de parto incluem: ventilação com máscara facial não efetiva, ou seja, se após a correção de possí‑ veis problemas técnicos relacionados ao seu uso, não há me‑ lhora clínica do RN; ventilação com máscara facial prolongada, ou seja, se o paciente não retoma a respiração espontânea; e necessidade de massagem cardíaca. Além dessas situações, a ventilação com cânula traqueal e a inserção imediata de sonda gástrica são indicadas nos pacientes portadores de hérnia dia‑ fragmática que necessitam de VPP. A indicação da entubação no processo de reanimação de‑ pende da habilidade e da experiência do profissional responsá‑ vel pelo procedimento. Em mãos menos experientes, existe um elevado risco de complicações como hipoxemia, apneia, bradi‑ cardia, pneumotórax, laceração de tecidos moles, perfuração de traqueia ou esôfago, além de maior risco de infecção. Vale lembrar que cada tentativa de entubação deve durar, no máxi‑ mo, 30 segundos. Em caso de insucesso, o procedimento é in‑ terrompido e a VPP com balão e máscara é iniciada, sendo rea‑ lizada nova tentativa de entubação após estabilizar o paciente. A confirmação da posição da cânula é obrigatória, podendo ser realizada por meio da inspeção do tórax, ausculta das re‑ giões axilares e gástrica e observação da FC. Entretanto, o mé‑ todo preferencial para confirmar a posição da cânula é a detec‑ ção de dióxido de carbono (CO2) exalado, por ser objetivo e rápido. A técnica colorimétrica é a mais utilizada, com o detec‑ tor pediátrico posicionado entre o conector da cânula e o ba‑ lão/ventilador. A única situação em que essa técnica apre senta resultados falso-negativos ocorre quando há má perfusão pulmonar.
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Após a entubação, inicia-se a ventilação com balão autoin‑ flável na mesma frequência e pressão descritas para a ventila‑ ção com balão e máscara. Considera-se que houve melhora se o RN apresentar FC > 100 bpm e movimentos respiratórios es‑ pontâneos e regulares. Nessa situação, a ventilação é suspensa e o RN extubado. Há falha se, após 30 segundos de VPP com balão e cânula traqueal, o RN mantém FC < 100 bpm ou não retoma a respiração espontânea. Nesse caso, verificar a posi‑ ção da cânula, a permeabilidade das vias aéreas e a pressão no balão, corrigindo o que for necessário. Quando o RN mantém a apneia ou a respiração irregular, a entubação e a ventilação de‑ vem ser mantidas e, em seguida, o paciente é levado à unidade de terapia intensiva neonatal em incubadora própria para o transporte. Se o RN mantém a FC < 60 bpm, está indicada a oferta de oxigênio suplementar e a massagem cardíaca. Ventilador mecânico manual em T com máscara facial ou cânula traqueal Para o uso do ventilador mecânico manual em T, deve-se fixar o fluxo gasoso em 5 a 15 L/minuto, limitar a pressão máxima do circuito em 30 a 40 cmH2O, selecionar a pressão inspirató‑ ria a ser aplicada em cada ventilação, em geral ao redor de 20 a 25 cmH2O, e ajustar a PEEP ao redor de 5 cmH2O. A concentra‑ ção de oxigênio inicial depende da idade gestacional: em RN < 34 semanas ajustar em 30% e, naqueles com idade gestacional ≥ 34 semanas, começar com ar ambiente. O ajuste da concen‑ tração de O2 necessária deve ser guiado pela oximetria de pul‑ so. Ventilar com frequência de 40 a 60 movimentos por minu‑ to (ocluuui-solta-solta..., sendo o “ocluuui” relacionado à oclusão do orifício da peça T) A conduta diante da melhora ou não do paciente está descrita nos itens anteriores. Massagem cardíaca A asfixia pode desencadear vasoconstrição periférica, hipoxe‑ mia tecidual, diminuição da contratilidade miocárdica, bradi‑ cardia e, eventualmente, parada cardíaca. A ventilação adequa‑ da reverte esse quadro na maioria dos pacientes. A massagem cardíaca só é iniciada se, após 30 segundos de VPP com técnica adequada e uso de oxigênio 60 a 100%, o RN persistir com FC < 60 bpm. Como a massagem cardíaca diminui a eficácia da ven‑ tilação, as compressões só devem ser iniciadas quando a ex‑ pansão e a ventilação pulmonares estiverem bem estabelecidas. A compressão cardíaca é realizada no terço inferior do ester‑ no por meio da técnica dos dois polegares, com os polegares so‑ brepostos posicionados logo abaixo da linha intermamilar, pou‑ pando-se o apêndice xifoide. As palmas das mãos e os outros dedos devem circundar o tórax do RN. Comprimir 1/3 da di‑ mensão anteroposterior do tórax, de maneira a produzir um pulso palpável. É importante permitir a expansão plena do tórax após a compressão para que ocorra o enchimento das câmaras ventriculares e das coronárias; no entanto, os dedos não devem ser retirados do terço inferior do tórax. As complicações da mas‑ sagem cardíaca incluem a fratura de costelas, com pneumotó‑ rax e hemotórax, e a laceração de fígado. No RN, a ventilação e a massagem cardíaca são realizadas de forma sincrônica, mantendo-se uma relação de 3:1, ou seja,
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três movimentos de massagem cardíaca para um movimento de ventilação, com uma frequência de 120 eventos por minuto (90 compressões e 30 ventilações por minuto). A massagem deve continuar enquanto a FC estiver < 60 bpm. Lembrar que a VPP durante a massagem cardíaca deve ser aplicada por câ‑ nula traqueal e oxigênio a 100%. É importante manter a quali‑ dade das compressões cardíacas (localização, profundidade e ritmo), interrompendo a massagem apenas para oferecer a ventilação. Deve-se manter a massagem cardíaca coordenada à ventilação por 60 segundos, antes de reavaliar a FC, pois este é o tempo mínimo para que a massagem cardíaca efetiva pos‑ sa restabelecer a pressão de perfusão coronariana. A melhora é considerada quando, após a VPP acompanha‑ da de massagem cardíaca, o RN apresenta FC > 60 bpm. Nesse momento, interrompe-se apenas a massagem cardíaca. Caso o paciente apresente respirações espontâneas regulares e a FC atinja valores > 100 bpm, a ventilação também é suspensa. Em geral, quando o paciente recebeu massagem cardíaca na sala de parto, é prudente transportá-lo entubado à UTI neonatal em incubadora de transporte, com concentração de oxigênio suficiente para manter a SatO2 nos limites desejáveis (Tabe‑ la 1), sendo a extubação decidida de acordo com a avaliação global do RN na unidade. Considera-se a falha do procedimento se, após 60 segun‑ dos de VPP com cânula traqueal e oxigênio a 100% acompa‑ nhada de massagem cardíaca, o RN mantém FC < 60 bpm. Nesse caso, verificar a posição da cânula traqueal, a permeabi‑ lidade das vias aéreas e a pressão de ventilação, além da técni‑ ca da massagem cardíaca propriamente dita, corrigindo o que for necessário. Se, após a correção da técnica da VPP e massa‑ gem, não houver melhora, considera-se o cateterismo venoso umbilical de urgência e indica-se a adrenalina. Medicações A bradicardia neonatal é, em geral, resultado da insuflação pulmonar insuficiente e/ou de hipoxemia profunda. A venti‑ lação adequada é o passo mais importante para corrigir a bra‑ dicardia. Quando a FC permanece < 60 bpm, a despeito de ventilação efetiva por cânula traqueal com oxigênio a 100%
acompanhada de massagem cardíaca adequada por no míni‑ mo 60 segundos, o uso de adrenalina e, eventualmente, do ex‑ pansor de volume está indicado. A diluição, o preparo, a dose e a via de administração estão descritos na Tabela 2. Bicarbona‑ to de sódio, naloxone, atropina, albumina e vasopressores não são recomendados na reanimação do RN em sala de parto. A via preferencial para a infusão de medicações na sala de parto é a endovenosa, sendo a veia umbilical de acesso fácil e rápido. O cateter venoso umbilical deve ser inserido apenas 1 ou 2 cm após o ânulo, mantendo-o periférico, de modo a evitar sua localização em nível hepático. Também é preciso cuidado na manipulação do cateter para que não ocorra embolia gaso‑ sa. A administração de medicações por via traqueal só pode ser usada para a adrenalina, uma única vez, enquanto o cate‑ ter venoso está sendo inserido, sabendo-se que a absorção por via pulmonar é lenta e imprevisível e a resposta, em geral, é in‑ satisfatória. A adrenalina está indicada quando a ventilação adequada e a massagem cardíaca efetiva não elevaram a FC acima de 60 bpm. Recomenda-se sua administração por via endovenosa na dose de 0,01 a 0,03 mg/kg. Doses elevadas de adrenalina (> 0,1 mg/ kg) não devem ser empregadas, pois levam à hipertensão arte‑ rial grave, diminuição da função miocárdica e piora do quadro neurológico. Quando não há reversão da bradicardia com o uso da adrenalina, pode-se repeti-la a cada 3 a 5 minutos (sempre por via endovenosa) e considerar o uso do expansor de volume caso o paciente esteja pálido ou existam evidências de choque. O expansor de volume pode ser necessário em RN com hi‑ povolemia. A suspeita é feita se há perda de sangue e/ou se existem sinais de choque hipovolêmico, como palidez, má perfusão e pulsos débeis, e não houve resposta adequada da FC às outras medidas de reanimação. A expansão de volume é feita com soro fisiológico a 0,9% na dose de 10 mL/kg, que pode ser repetida a critério clínico. Administrar o volume lentamente, em especial nos prematuros, pois a expansão rápida da volemia se associa à hemorragia intracraniana. Com o uso do expansor, espera-se o aumento da pressão ar‑ terial e a melhora dos pulsos e da palidez. Se não houver resposta, deve-se verificar a posição da cânula traqueal, a
Tabela 2 Medicações necessárias para reanimação do RN na sala de parto Adrenalina endovenosa
Adrenalina endotraqueal
Expansores de volume
Diluição
1:10.000 1 mL adrenalina 1:1000, em 9 mL de SF 0,9%
1:10.000 1 mL adrenalina 1:1000, em 9 mL de SF 0,9%
SF 0,9%
Preparo
1 mL
5 mL
2 seringas de 20 mL
Dose
0,1 a 0,3 mL/kg
0,5 a 1,0 mL/kg
10 mL/kg, EV
1 kg
0,1 a 0,3 mL
0,5 a 1,0 mL
10 mL
Peso ao nascer
2 kg
0,2 a 0,6 mL
1,0 a 2,0 mL
20 mL
3 kg
0,3 a 0,9 mL
1,5 a 3,0 mL
30 mL
4 kg
0,4 a 1,2 mL
2,0 a 4,0 mL
40 mL
Velocidade e precauções
Infundir rápido na veia umbilical e, a seguir, infundir 0,5 a 1,0 mL de SF 0,9%
Infundir diretamente na cânula traqueal e ventilar a seguir. USO ÚNICO
Infundir na veia umbilical lentamente, em 5 a 10 min
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Reanimação Neonatal •
técnica da ventilação e da massagem e a permeabilidade da via de acesso vascular. Vale lembrar que apenas um em cada 1.000 neonatos re‑ quer procedimentos avançados de reanimação (entubação traqueal, massagem cardíaca e/ou medicações), quando a VPP é aplicada de maneira rápida e efetiva. Aspectos éticos da assistência ao recém ‑nascido na sala de parto As questões relativas às orientações para não iniciar a reani‑ mação neonatal e/ou interromper as manobras são controver‑ sas e dependem do contexto nacional, social, cultural e reli‑ gioso, no qual os conceitos de moral e ética são discutidos. O primeiro aspecto ético controverso refere-se à decisão de não iniciar a reanimação na sala de parto. Para o RN ≥ 34 se‑ manas, essa questão só se coloca diante de malformações con‑ gênitas letais ou potencialmente letais. Nesses casos, é neces‑ sário ter a comprovação diagnóstica antenatal e considerar a vontade dos pais e os avanços terapêuticos existentes para de‑ cidir quanto à conduta em sala de parto. A possibilidade de reanimação deve ser discutida de preferência antes do parto, mas a decisão final, diante das incertezas acima mencionadas, é feita no momento do nascimento. Se não houver certeza quanto à decisão de não reanimar o RN, todos os procedimen‑ tos necessários devem ser feitos de acordo com o fluxograma da reanimação neonatal. Quanto à prematuridade extrema, em geral, RN < 23 sema‑ nas de gestação são muito imaturos para sobreviver com a tec‑ nologia atual, e a oferta de cuidados, que não sejam os de con‑ forto, não parece ser razoável na maioria dos países desenvolvidos. Esses pacientes precisam ser recepcionados por uma equipe apta a fornecer cuidados paliativos ao concep‑ to e apoio à mãe, ao pai e à família. Já os RN com 25 semanas ou mais de idade gestacional apresentam taxas significativas de sobrevida e, em grande proporção, sem sequelas graves, sendo justificada a máxima intervenção na sala de parto. O problema maior concentra-se naqueles que nascem entre 23 e 24 semanas de idade gestacional, pois há dúvidas éticas a res‑ peito de como proceder. Nesse período, a incerteza do resulta‑ do é a regra, pois a sobrevivência e o prognóstico são incertos e há dúvida sobre qual a melhor conduta a ser adotada e sobre o grau de investimento e intervenção a ser feito. Os desejos da família precisam ser ouvidos, de preferência e quando possível antes do nascimento. Outro aspecto ético controverso refere-se à interrupção da reanimação neonatal em sala de parto. Não existem dados que auxiliem os pediatras a decidir quando interromper a reani‑ mação na vigência de bradicardia (FC < 60 bpm) prolongada. A decisão de continuar os esforços de reanimação, quando o RN tem frequência cardíaca igual a zero por mais de 10 minu‑ tos de vida, é complexa, sendo influenciada pela etiologia pre‑ sumível da parada, pela idade gestacional, pela disponibilida‑ de de estratégias adequadas para a neuroproteção e pela reversibilidade potencial da situação, além dos sentimentos dos pais expressos previamente a respeito dos riscos aceitá‑ veis em termos de sequelas neurológicas.
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Qualquer decisão quanto à reanimação neonatal tomada em sala de parto deve ser reportada de modo fidedigno no prontuário médico materno e/ou do recém-nascido. Consideração final O nascimento de um bebê representa a mais dramática transi‑ ção fisiológica da vida humana. A ventilação pulmonar é o procedimento mais simples, importante e efetivo na reanima‑ ção em sala de parto e, quando necessária, deve ser iniciada no primeiro minuto de vida. O risco de morte ou morbidade aumenta em 16% a cada 30 segundos de demora para iniciar a VPP até o 6º minuto após o nascimento, de modo indepen‑ dente do peso ao nascer, da idade gestacional ou de complica‑ ções na gravidez ou no parto.15 Estudo que buscou identificar as 10 prioridades até 2025 na agenda global em pesquisa para promover a saúde neona‑ tal mostrou que o tema mais importante é a implementação e a disseminação em larga escala de intervenções para melho‑ rar a qualidade da assistência durante o parto e o nascimento, sendo cinco delas relacionadas à reanimação neonatal. Isso se deve, provavelmente, ao fato de a reanimação ao nascer constituir-se na intervenção mais dramática do cuidado neo‑ natal.16 O nascimento seguro e um início de vida saudável são o coração do capital humano e do progresso econômico de um País.17 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer a importância do preparo para a estabilização e reanimação neonatal em sala de parto. • Identificar o recém-nascido que necessita de procedimentos de reanimação. • Conhecer os passos iniciais da estabilização/ reanimação neonatal. • Identificar os equipamentos e as interfaces para ventilar o recém-nascido. • Saber as indicações da ventilação com pressão positiva, entubação traqueal, massagem cardíaca e medicações na reanimação do recém-nascido em sala de parto. • Conhecer a técnica da ventilação com pressão positiva, entubação traqueal, massagem cardíaca e administração de medicações na reanimação neonatal logo após o nascimento. • Identificar se os procedimentos aplicados na reanimação do recém-nascido são efetivos e como corrigir possíveis falhas.
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CAPÍTULO 3
FLUIDOTERAPIA E ELETRÓLITOS NO RECÉM‑ NASCIDO Adauto Dutra Moraes Barbosa
Introdução No início da vida fetal, a água corporal total corresponde a quase 95% do peso corporal, diminuindo para 75% no recém-nascido (RN) a termo, à custa da diminuição da água do compartimento extracelular (CE). O equilíbrio hidreletrolítico mantém a homeostase, auxiliando na regulação e na manutenção da função celular, no controle da perfusão tecidual e do equilíbrio acidobase. Fisiologicamente, o balanço entre a entrada e a saída de água e eletrólitos é regulado principalmente pela função renal.1 O controle do balanço de líquidos pela osmorregulação é quase totalmente mediado pelos osmorreceptores no hipotálamo, influenciando a sede e a secreção do hormônio antidiurético (HAD), a vasopressina arginina.1 Diversas circunstâncias podem afetar o equilíbrio de água e eletrólitos assim como a função renal ao nascimento e podem ser suspeitadas durante o levantamento de informações obtidas da história perinatal. História materna perinatal O status materno pode influenciar, parcialmente, o status do balanço hidreletrolítico do RN. Como exemplos podem ser citados: uso de oxitocina2 ou infusão venosa de solução hipotônica na mãe,3 causando hiponatremia e hipocalcemia na criança ao nascer; controle desfavorável do diabete materno, que pode estar associado com trombose da veia renal,4 afetando a função renal do RN; uso materno, durante a gravidez, de inibidor de enzima conversora de angiotensina (ECA), como captopril, podendo levar à insuficiência renal no RN.5 Também o uso de outras substâncias pela mãe, como indometacina, furosemida e aminoglicosídeos, pode afetar a função renal fetal. O uso pré-natal de corticosteroide pode acelerar a maturação da pele e dos rins do RN, e deve ser levado em consideração ao se calcular suas necessidades hidreletrolíticas.6
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História neonatal Doenças renais que afetam o RN podem influenciar seu balanço hidreletrolítico, p.ex. a presença de disfunção renal congênita causada por agenesia renal, doença renal policística e válvula de uretra posterior. A hipoxemia ou a asfixia perinatal podem levar à necrose tubular aguda no concepto. Fatores que influenciam o balanço hidreletrolítico no RN O RN, especialmente o prematuro extremo, tem peculiaridades específicas envolvendo os rins, a pele e o trato gastrointestinal, o que o torna mais vulnerável aos desvios do equilíbrio da água e do Na+. Função renal Nos primeiros dias da vida extrauterina, o aumento do fluxo sanguíneo renal, facilitado pela diminuição da resistência vascular renal, se faz mais rapidamente do que a criação de novos túbulos e glomérulos, ocasionando uma disfunção glomérulo-tubular, que é mais pronunciada nos prematuros. Taxa de filtração glomerular No período fetal, a taxa de filtração glomerular é baixa, mas aumenta rapidamente em poucas horas, logo após o nascimento, em razão do aumento do fluxo sanguíneo renal, do aumento da permeabilidade glomerular e da elevação da pressão arterial média.7 Função tubular Antes da 34ª semana de idade gestacional existem poucos túbulos e eles são relativamente escassos e pequenos. Cerca de 20% dos nefros são justamedulares, estando o glomérulo no córtex ou próximo à medula, com alça de Henle longa atingindo até a medula, sendo mais eficientes para controlar o meio interno. Os outros 80% dos nefros são corticais, têm alça de
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Henle curta e são menos eficazes na sua função. Surgem ao término da nefrogênese. Dessa forma, é possível verificar que os túbulos apresentam dificuldade em concentrar e diluir uri‑ na, e que essa capacidade muitas vezes é influenciada por si‑ tuações relacionadas a outras enfermidades, especialmente a hipóxia, em que a reabsorção de Na+ do ultrafiltrado, que con‑ some energia, fica extremamente prejudicada, quando o RN tem seu processo oxidativo comprometido (déficit de energia, com desvio para processos mais nobres do que a reabsorção de Na+ ao nível tubular e, consequentemente, de água). A Na+K+-ATPase é a enzima responsável pelo transporte de sódio em todas as células eucarióticas. Seus níveis elevam-se rapidamente logo após o nascimento, entretanto, no rim do pre‑ maturo, seus níveis são baixos, principalmente nos menores de 34 semanas de idade gestacional.7 A excreção fracionada do Na+ está muito aumentada nesses RN, pois daquilo que é filtrado no glomérulo em larga escala, é reabsorvido ao longo do túbulo. Perda insensível de água A perda insensível de água (PIA) pode ocorrer por evaporação, através da pele imatura, e pelo trato respiratório.8 A PIA pode ser diminuída por meio da umidificação do ambiente e dos ga‑ ses inspirados. Perda de água através da pele A imaturidade do extrato córneo permite que os RN percam muita água para o meio externo. É uma PIA sem eletrólitos, acentuada pela menor idade gestacional. Pode ser agravada por práticas muito comuns nas UTI neonatais, como coloca‑ ção do RN em berço de calor irradiante, fototerapia e na pre‑ sença de lesões cutâneas. Pode ser atenuada pela colocação do RN em incubadora com alta umidade, com um cobertor de plástico, especialmente sobre o abdome e membros inferiores, evitando a perda de água por convecção. Na Tabela 1, estão apresentados os fatores que aumentam ou diminuem a PIA através da pele, estimando-se a perda per‑ centual de água diária. Tabela 1 Fatores que influenciam a perda insensível de água Aumento da perda
Decréscimo da perda
Fator
%
Prematuridade
100 a 300
UCR
50 a 100
Fator
%
Umidificação > 50% na IC
50 a 100
Fototerapia
30 a 50
Cobertor plástico
30 a 50
Taquipneia
20 a 30
Ventilação com ar umidificado
20 a 30
Atividade mora e choro
70
Incubadora de parede dupla
10 a 20
Hipertermia
30 a 50
IC
10 a 30
Anomalias (gastrósquise/ onfalocele)
30 a 200
UCR: unidade de calor radiante; IC: incubadora comum.
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Perda de água através do trato respiratório A perda de água através do trato respiratório é diretamente proporcional à idade gestacional. Pode ser diminuída por meio da umidificação do ambiente e dos gases inspirados. Fases de adaptação metabólica extrauterina de água e sódio Fase I ou de transição imediata Durante as primeiras 24 horas de vida, os RN apresentam uma fase descrita como pré-diurética, caracterizada por baixa taxa de filtração glomerular e de excreção fracionada de sódio e, in‑ dependentemente do aporte de água, a diurese pode se apre‑ sentar diminuída (0,5 a 1 mL/kg/h). Entre as 48 e 96 horas de vida, apresentam uma fase denominada de diurética, quando se observa aumento da excreção urinária de sódio, e iniciam a perda de peso decorrente da remoção de líquido isotônico do CE e, em menor grau, do processo de catabolismo, provocan‑ do a contração do CE. O mecanismo desse fenômeno fisiológi‑ co é desconhecido. Uma perda entre 10 e 15% de peso de nas‑ cimento nos primeiros 5 dias de vida, com relação inversa entre a magnitude de perda de peso e o peso de nascimento, é observada em todos os RN.9 Fase II ou de estabilização Esta fase pode durar de 5 a 15 dias, dependendo da idade gesta‑ cional. É caracterizada por diminuição da perda insensível de água, junto com aumento da cornificação do epitélio, volume urinário menor que 1 a 2 mL/kg/h e baixa excreção de sódio.9 Fase III ou de crescimento estável A alteração de peso estabiliza-se até o fim da primeira semana ou início da segunda semana, quando se inicia o ganho ponde‑ ral, que reflete o estado de anabolismo e crescimento, com ba‑ lanço positivo de água e sódio.9 Consequências resultantes de não se permitir a redução fisiológica do CE É importante a regulação da entrada da água e de eletrólitos para permitir a ocorrência da redução fisiológica do CE, pois a transição fisiológica inadequada poderá contribuir no desen‑ volvimento de morbidade neonatal, como persistência do ca‑ nal arterial (PCA), enterocolite necrotizante (NEC) e displasia broncopulmonar (DBP).10 O mecanismo exato para explicar a maior ocorrência de PCA e NEC quando se oferece um volume maior de líquidos não está estabelecido, porém observou-se que a oferta de maior volume de líquidos aos RN de muito baixo peso pode contribuir na redução da quantidade de líquido no CE entre o 2º e 8º dia de vida. Dessa forma, o rim relativamente imaturo pode não compensar o excesso, promovendo retenção (em lu‑ gar de contração) de líquido no CE. Posteriormente, pode re‑ sultar em aumento do nível de prostaglandina E2, resultando na PCA, com shunt esquerda-direita e desvio do fluxo de san‑ gue sistêmico, que se torna diminuído (roubo aórtico), e dimi‑ nuição da perfusão mesentérica, com isquemia, o que facilita‑ ria o desenvolvimento de NEC.
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Fluidoterapia e eletrólitos no recém‑nascido •
A associação entre a elevada entrada de líquidos durante a primeira semana de vida, a falta de perda de peso pós-natal e a ocorrência de DBP em RN de muito baixo peso está provavel‑ mente ligada a uma falha na contração do CE, com conteúdo de fluido intersticial aumentado, inclusive em nível intrapulmonar, e redução da complacência pulmonar, promovendo maior neces‑ sidade de oxigênio e uso de ventilador, o que conduziria à DBP. Distúrbios precoces da homeostase do sódio Hipernatremia É definida como hipernatremia uma concentração sérica de sódio > 150 mEq/L. A causa mais comum de hipernatremia no RN é o maior aporte de Na+ ou maior perda de água (situação mais comum). Nos casos de hipernatremia provocada por aumento das per‑ das renais ou das perdas insensíveis, o volume extracelular pode estar normal ou às vezes diminuído. Uma situação menos comum de hipernatremia, em que o es‑ paço extracelular está aumentado, é o uso abusivo de soluções hipertônicas, observando-se aumento de peso, frequentemente edema, sendo exemplo o uso abusivo de bicarbonato de sódio. Clinicamente, esses RN perdem muita água pela pele e o espaço extracelular fica diminuído, levando a uma elevada perda de peso. Esses bebês ficam secos, têm maior tendência à hipotensão, com densidade urinária aumentada, aumento da frequência cardíaca, diurese diminuída e algum grau de acidose metabólica. O manejo da hipernatremia visaria a diminuir as perdas in‑ sensíveis, colocando-se o RN em incubadora com umidade de 90 a 95% e plástico sobre a pele e diminuindo-se o abrir e fe‑ char da incubadora e a convecção de todos os modos. Hiponatremia É definida como hiponatremia uma concentração sérica de só‑ dio > 130 mEq/L. A hiponatremia pode cursar com líquido no espaço extracelular diminuído, normal ou aumentado. Hiponatremia com EC diminuído O uso abusivo de diuréticos ou a diurese osmótica (observar a importância da hiperglicemia como causa de diurese osmótica, levando à perda de água e sal) resultando em hiponatremia é a situação mais comum de hiponatremia com EC diminuído. Vô‑ mitos e diarreia, perda para terceiro espaço em sepse ou em en‑ terocolite também são causas comuns. Mais raramente, tam‑ bém há insuficiência adrenal ou tubulopatias perdedoras de sal. Clinicamente, esses bebês têm perda de peso, parecem estar desidratados, com diminuição do turgor e elasticidade, apre‑ sentam aumento da frequência cardíaca, acidose metabólica, diminuição da diurese e aumento de densidade urinária e fre‑ quentemente aumento das escórias nitrogenadas. O manejo desse distúrbio passa por aumentar a ingestão de Na+ e tentar limitar as perdas de Na+ com água. Hiponatremia com EC normal ou aumentado Os casos de hiponatremia com volume do CE normal ou au‑ mentado são raros; neste último, encontram-se as situações
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que se associam à síndrome de secreção inapropriada do HAD (meningite neonatal, asfixia, hemorragia intraventricular), quando o RN retém mais água, ocasionando hiponatremia di‑ lucional. O RN tem aumento de peso, diminuição da diurese e aumento da densidade urinária, em caso de síndrome de se‑ creção inapropriada do HAD ou aumento da diurese, e dimi‑ nuição da densidade, caso seja por excesso de líquido. O trata‑ mento nesses casos é a restrição hídrica. O uso de diurético para eliminar água e Na+ é discutível (furosemida), pois o Na+ corporal total está diminuído e o lí‑ quido extracelular está aumentado e com Na+ diminuído, condições observadas na insuficiência cardíaca, sepse, cho‑ que e má distribuição de líquidos. Muitos desses bebês têm aumento de peso, edema, diminuição da diurese com au‑ mento de densidade urinária. A correção é o tratamento da doença de base. Distúrbios precoces da homeostase do potássio O pH sanguíneo afeta a distribuição de potássio entre os com‑ partimentos intra e extracelular. Um pH baixo promove a tro‑ ca K+ para fora da célula, e a alcalose, entrada de K+ na célula. Então, a acidose aumenta a concentração de potássio no san‑ gue ou soro, e a alcalose diminui a concentração de potássio. Em regra, 0,1 U de mudança no pH resulta em uma mudança no nível de potássio de 0,3 a 0,6 mEq/L no soro. Hipocalemia É definida como nível sérico de potássio < 3,5 mEq/L. Resulta frequentemente do uso crônico de diurético ou da perda de eletrólito através de drenagem por sonda oro(naso)gástrica. Os casos graves podem causar arritmias cardíacas, íleo e letargia. É tratada com administração endovenosa lenta ou oralmente. Administração rápida de cloreto de potássio não é recomendada, porque pode ocasionar parada cardíaca. Hipercalemia É definida como nível de potássio sérico > 6 mEq/L. Pode se manifestar com bradicardia, taquicardia, taquicardia supraven‑ tricular (SVT), taquicardia ventricular e fibrilação ventricular. Entre as causas de hipercalemia, estão a liberação de potás‑ sio após dano neuronal e ruptura de hemácias pós-hemorragia intraventricular, trauma e hemólise endovenosa. Atentar para possível erro na administração da quantidade prescrita, que é a maior causa de hipercalemia nas UTI neonatais. Hipercalemia não oligúrica A hipercalemia não oligúrica é um distúrbio eletrolítico fre‑ quentemente observado nos RN prematuros com idade ges‑ tacional inferior a 28 semanas, nos primeiros dias de vida, cujo mecanismo de desenvolvimento não foi ainda elucida‑ do. É um quadro que se desenvolve na ausência de oligúria e de aporte de potássio. Pode ter início precoce e causar com‑ plicações, como arritmia cardíaca fatal, leucomalácia peri‑ ventricular, hemorragia cerebral e morte súbita.11
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Distúrbios precoces da homeostase do cálcio O valor no cálcio (Ca) sérico varia, nos primeiros dias de vida, entre 7,5 e 8,5 mg/dL. Pode ser expresso tanto em miligramas por decilitro (mg/dL) como em unidades de milimol (mmol/L). A conversão entre os dois métodos é realizada dividindo-se por 4 (p.ex., 4 mg/dL de cálcio ionizado = 1 mmol/L). Hipercalcemia A hipercalcemia é raramente observada em RN. É definida como uma concentração de Ca sérico total > 11 mg/dL ou de Ca ionizado > 5 mg/dL (1,25 mmol/L). Hipocalcemia Define-se hipocalcemia como Ca sérico total < 7 mg/dL ou cál‑ cio ionizado < 4 mg/dL (1 mmol/L). A hipocalcemia precoce inicia-se nos primeiros 3 dias de vida em RN filho de diabética descompensada, em RN asfixia‑ dos e em prematuros, entre outros. Se a criança apresenta nível sérico de Ca total > 6,5 mg/dL ou de cálcio ionizado > 0,8 a 0,9 mmol/L, apenas observa-se. Somente deverá ser suplementado caso seu nível sérico de Ca total esteja < 6,5 mg/dL ou de cálcio ionizado < 0,8 a 0,9 mmol/L. A hipocalcemia de início tardio desenvolve-se após a pri‑ meira semana de vida e está associada a condições que apre‑ sentam altos níveis de fosfato, incluindo hipoparatireoidis‑ mo, uso materno de anticonvulsivante e deficiência de vitamina D. Indicações para hidratação venosa A administração de solução para hidratação venosa deve ser preferencialmente realizada por via periférica, que, embora seja, na maioria das vezes, dificultosa nos prematuros, tem a vantagem de levar a menor número de complicações, de um modo geral. O cateterismo de vasos umbilicais para fins de infusão veno‑ sa só deve ser realizado em prematuros extremos ou durante a ressuscitação neonatal na sala de parto. Assim que o RN estiver estabilizado, deve ter seu acesso trocado para periférico. Nos casos de uso de solução com alta osmolaridade, a via venosa central deve ser usada, como a necessidade de solução glicosada superior a 12,5% e/ou NPT. As indicações de hidratação venosa no RN são inúmeras, entre as quais podem ser citadas as descritas na Tabela 2. Tabela 2 Principais indicações de hidratação venosa no recém-nascido Prematuridade extrema
Choque
Hipoglicemia sintomática ou refratária
Doenças cirúrgicas neonatais de urgência
Desconforto respiratório grave
Pós-ressuscitação neonatal
Asfixia perinatal severa
Desidratação
Enterocolite necrotizante suspeita ou confirmada
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Tratamento Necessidade hídrica diária O pediatra deve estabelecer as necessidades hídricas para cada paciente, individualmente, e reavaliá-las várias vezes ao dia, especialmente naqueles com menor peso/idade gestacional.12 O dado que melhor orienta o pediatra no cálculo da necessi‑ dade hídrica diária (NHD) é o peso de nascimento, por causa de sua praticidade e facilidade de acompanhamento. Deve-se ficar atento para possíveis erros de pesagem, que podem con‑ tribuir no cálculo inadequado das NHD, ocasionando situações de sub-hidratação ou hiperidratação. Na Tabela 3, é apresentada uma estimativa das necessidades hídricas em relação ao peso de nascimento, em mL/kg/dia. Tabela 3 Necessidade hídrica total diária/idade durante o 1º mês de vida (mL/kg/dia) Peso de nascimento (g)
PIA (mL/ kg/dia)
1º ao 2º dia
3º ao 7º dia
8º ao 30º dia
< 750
100+
100 a 200
120 a 200
120 a 180
750 a 1000
60 a 70
80 a 150
100 a 150
120 a 180
1001 a 1500
30 a 65
60 a 100
80 a 150
120 a 180
> 1500
15 a 30
60 a 80
100 a 150
120 a 180
Fonte: Dell, 2011.13
A administração de taxas hídricas muito elevadas em rela‑ ção às necessidades diárias aumenta a probabilidade de aber‑ tura do canal arterial (clínica), a ocorrência de NEC e a piora/ predisposição ao quadro de DBP. A administração de taxas hídricas aquém da necessária au‑ menta o risco de hiperosmolaridade, com elevado risco para he‑ morragia intraventricular, em especial nos prematuros; também há risco de hipotensão arterial e sinais de insuficiência renal. As soluções geralmente infundidas contêm glicose como única fonte de carboidrato, pois muitos RN se encontram em dieta zero. Alguns RN têm elevada necessidade de glicose (destacadamente os de muito baixo peso) em virtude das bai‑ xas reservas orgânicas ou do alto consumo. O pediatra deverá, nesses casos, inicialmente, manter uma taxa de infusão de gli‑ cose (TIG) entre 4 e 5 mg/kg/min (em solução de 5 a 10%), monitorando os níveis de glicemia capilar para que, se neces‑ sário, ajustes possam ser feitos (para mais ou para menos) e a glicemia seja mantida em níveis normais. TIG iguais ou supe‑ riores a 10 mg/kg/min podem ser indicativas da necessidade de se utilizar drogas hiperglicemiantes. Ao contrário, nos ca‑ sos de hiperglicemia, soluções com concentração de glicose abaixo de 3%, se infundidas, incorrerão no risco de gerar hemólise. Manutenção de líquidos A manutenção de líquidos exigida para o RN, principalmente o prematuro de muito baixo peso, durante a primeira semana de vida, visa a calcular o volume de líquido necessário para substituir perdas normais. Essas perdas incluem a PIA, a per‑ da de água pelo rim como urina, e, até certo ponto, a perda de água nas fezes. No RN de muito baixo peso, durante a primeira
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semana de vida, a perda de água pelas fezes é mínima e pode ser ignorada no cálculo.
sódio, mas sua perda ou excreção pode ocorrer independente‑ mente daquele cátion.
Cálculo da PIA A PIA é definida como a água evaporada através da pele (2/3) e do pulmão (1/3) não observada a olho nu. É evidente que um grande número de fatores ambientais e clínicos que afetam a PIA contribuirá em uma variação diária de seus valores. O pediatra deve anotar criteriosamente os dados de entra‑ da (volume recebido), de produção (perda urinária) e de peso em um período de 24 horas, para cálculo da PIA individual pela fórmula seguinte:
Suplementação de potássio A suplementação de potássio poderá ser realizada a partir do 4º a 5º dia de vida e somente após ser estabelecida a diurese, e administrado na dose de 1 a 3 mEq/kg/dia.
PIA = volume recebido – perda urinária + perda de peso (ou – ganho de peso) Exemplo: Peso do RN = 1 kg; volume recebido = 100 mL; perda urinária = 60 mL; perda de peso = 20 g em 24 horas. Nas 24 horas: 100 – 60 + 20 = 60 mL Cálculo da PIA = 60 mL/24 horas Utilizando-se os dados coletados e a fórmula, pode-se medir a PIA diariamente que será usada para calcular a exigência diária de líquidos. Nos primeiros dias de vida, quando a entrada energética de‑ rivada de nutriente é menor que a necessidade metabólica ba‑ sal, a criança precisará do seu próprio tecido para satisfazer suas exigências calóricas. Os produtos do catabolismo impor‑ tam aproximadamente 5 mOsm/kg, que requererão aproxima damente 20 mL/kg de água livre para excreção. Após a primei‑ ra semana de vida, quando a criança deverá estar recebendo alimentação enteral plena, a carga de soluto exógeno alcançará 20 a 25 mOsm/kg e requererá 60 a 75 mL/kg água livre para sua excreção.
Monitoração da hidratação venosa Pesagem diária A pesagem diária é indispensável. Perdas ou ganhos súbitos ou inesperados de peso geralmente são decorrentes de altera‑ ções hídricas, mas é sempre necessária, nesses casos, sua rea‑ valiação, inclusive também da própria balança. Entretanto, deve ser lembrado que o RN pode não ganhar peso, mesmo com hidratação adequada, se a taxa calórica for insuficiente. Medida do débito urinário O débito urinário normal do RN é cerca de 50 a 100 mL/kg/ dia, o que corresponde a aproximadamente 2 a 4 mL/kg/hora. Aumento ou diminuição do débito pode significar hiper ou hipo-hidratação. O débito urinário também pode ser influenciado por algumas patologias e alguns medicamentos (diuréticos, indometacina, etc.). Oligúria é considerada quando o débito urinário é < 1 mL/kg/ hora e pode indicar desidratação.
Avaliação da osmolaridade sérica e urinária Procurar manter a osmolaridade urinária na faixa de 100 a 250 mOsm com osmolaridade sérica normal. Alterações na osmolaridade urinária ocorrem antes da alteração plasmáti‑ ca, podendo indicar desidratação ou hiperidratação incipien‑ te. A presença de sangue e albumina na urina altera para mais a osmolaridade. Os prematuros extremos geralmente possuem inabilidade em concentrar urina, e essas alterações de osmolaridade são mais difíceis de serem avaliadas. A os‑ molaridade da urina coletada de fralda e sob UCR pode não Suplementação de sódio e cloro ser a real, mostrando-se falsamente elevada por evaporação A hidratação parenteral sem qualquer avaliação da fase de hídrica. adaptação pós-natal pode favorecer a retenção de líquido ex‑ Alterações na osmolaridade plasmática refletem-se no só‑ tracelular, incluindo líquido intersticial pulmonar. dio sérico. Um aumento súbito do sódio sérico pode indicar de‑ Em RN com desconforto respiratório, a suplementação sidratação, bem como diminuição pode indicar hiperidratação. rotineira de sódio na hidratação venosa deve ser evitada até Similarmente, alteração súbita na ureia plasmática sem altera‑ que a diurese e a natriurese pós-natal fisiológica tenham ção da creatinina pode ter o mesmo significado. ocorrido. Caso isso não possa ser determinado, a suplemen‑ O cálculo da osmolaridade plasmática pode ser feito da se‑ tação de sódio deve ser adiada até que a perda de peso pós‑ guinte maneira: -natal tenha ocorrido. O sódio poderá ser adicionado na dose • 2 (sódio sérico) + glicose/18 + nitrogênio ureico no sangue de 3 a 5 mEq/kg/dia. (BUN)/2,8 A administração precoce de “manutenção” de sódio para os RN internados em UTI neonatal continua desnecessária e Osmolaridade urinária pode ser deduzida pela seguinte afeta de forma negativa o resultado respiratório, mesmo em equivalência: • 300 mOsm = DU 1010 bebês que receberam corticoide pré-natal. O cloro é o maior ânion do líquido extracelular. Sua entrada • 700 mOsm = DU 1020 e saída do organismo geralmente ocorre paralelamente à do • 1000 mOsm = DU 1030
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Esses valores não são confiáveis caso haja na urina hemácias, hemoglobina ou proteína. RN com peso de nascimento < 750 g podem sofrer desidra‑ tação rapidamente e devem ter seu sódio sérico acompanhado a cada 8 a 12 horas, bem como medida seriada de peso nos primeiros dias de vida. O ideal é prevenir uma desidratação ou hiperidratação do que ter que corrigi-la. A presença de hipotermia em um prematuro extremo, mesmo em condições “ideais” para que isso não ocorra, pode indicar desidratação por perdas insensíveis aumentadas atra‑ vés da pele. A umidificação nas incubadoras nesses RN pre‑ maturos extremos deve ser mantida ao redor de 90% na pri‑ meira semana de vida. Esses valores devem decrescer após a primeira semana de vida. Corrigindo a desidratação A desidratação pode ocorrer rapidamente em RN prematu‑ ros < 1000 g. Isso pode ser verificado pela queda de débito urinário e aumento de sódio sérico. A osmolaridade urinária pode não ser um bom parâmetro nessa idade gestacional pela relativa incapacidade renal de concentrar urina. A ocor‑ rência da desidratação indica que as necessidades hídricas foram subestimadas. Exemplo: • taxa hídrica calculada em 70 mL/kg/dia em SG10%; • sódio sérico aumentou de 140 para 150 mEq/L nas últimas 24 horas.
Administração de líquidos e eletrólitos de crianças com DBP Manutenção do volume hídrico Os prematuros que desenvolvem DBP estão com pelo menos 36 dias de idade pós-menstrual, e a maturidade dos órgãos, in‑ clusive da pele, aproxima-se do nível de uma criança a termo. Assim, como a relação área corporal-peso e o desenvolvimen‑ to do epitélio da pele aproximam-se daqueles do RN a termo, sua PIA pode ser considerada semelhante (20 a 25 mL/kg/ dia). A maioria dos lactentes com DBP que atingem aporte nu‑ tricional pleno tanto por via parenteral quanto por via enteral alcança uma carga de soluto geralmente de 25 a 30 mOsm/kg, o que requer aproximadamente entre 60 e 75 mL/kg de água renal livre para sua excreção. Ao contrário de uma criança sem DBP, durante a primeira semana de vida, uma criança com BPD terá perda de água significativa pelas fezes (10 a 15 mL/ kg) e essa perda de água deve ser substituída. A exigência de água para crescimento é aproximadamente de 10 a 15 mL/kg/ dia. Assim, uma criança em crescimento, portadora de DBP, deveria ter uma oferta total de líquidos de 120 mL/kg/dia. Se toda a oferta é feita pela via enteral, determinando uma absor‑ ção gastrointestinal líquida conhecida de aproximadamente 70%, ou enteralmente, a criança deve ter uma oferta bruta de aproximadamente 140 a 150 mL/kg/dia para assegurar um equilíbrio de água positivo.
Uso de diurético Estudos demonstraram melhora em curto prazo na mecânica pulmonar quando são administrados diuréticos a crianças pré‑ Assumindo que o sódio total permaneceu constante, então: -termo que estão em risco ou já desenvolveram BPD. Contudo, • 140/150 = 0,93, indicando que a água corporal total retraiu de em uma recente metanálise, os autores concluíram que “não há 1000 mL para 930 mL, uma perda de 70 mL. nenhuma evidência forte para uso crônico rotineiro de diuréti‑ cos tubular em crianças pré-termo com doença crônica pulmo‑ A massa corporal total é composta de 75% de água, então: nar”. O uso de diuréticos resulta em excreção renal aumentada • 70 x 0,75 = 52,5 mL/kg de água foi perdido nas últimas 24 horas. de sódio, potássio e cálcio, que precisam ser substituídos para evitar complicações como hiponatremia, hipocalemia e hipo‑ A taxa hídrica de manutenção para as próximas 24 horas serão: calcemia. Baseado na excreção urinária cuidadosamente medi‑ • 70 mL/kg/dia + 52,5 mL/kg/dia = 122,5 mL/kg/dia. da desses eletrólitos, a dose de substituição desses elementos é de 2 a 3 mEq/kg/dia, no caso de uso diário de diurético. O cálculo resultou em uma taxa extra de 52,5 mL/kg/dia, Outras complicações potenciais de terapia crônica de diu‑ que pode ser adicionada nas próximas 24 horas, e, nas se‑ réticos incluem ototoxicidade, nefrocalcinose transitória e al‑ guintes, decresce-se novamente para 122,5 mL/kg/dia (le‑ calose hipocalêmica. vando em conta que o cálculo estava subestimado no dia da desidratação). Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: O pediatra deve monitorar atentamente o volume adequado • Conhecer os fatores que influenciam o balanço para reposição, observando o débito urinário, a osmolaridade e hidreletrolítico no RN. o sódio sérico, bem como o peso. Eventuais correções devem • Compreender as fases de adaptação metabólica ser feitas sempre que necessário. O aumento hídrico à custa de extrauterina de água e sódio. solução glicosada aumenta a taxa de infusão de glicose, poden‑ • Indicar o uso da hidratação venosa no RN. do ocasionar hiperglicemia, diurese osmótica e piorar a desi‑ • Calcular as necessidades hídricas diárias de água e dratação. Portanto, é importante reduzir a concentração de gli‑ eletrólitos no RN. cose da solução para manter uma taxa de infusão de glicose • Corrigir o quadro de desidratação. constante. Finalmente, é importante a umidificação da incuba‑ • Administrar líquidos e eletrólitos em crianças com dora em níveis adequados. displasia broncopulmonar.
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CAPÍTULO 4
NUTRIÇÃO DO RECÉM ‑NASCIDO PRÉ-TERMO Maria Elisabeth Lopes Moreira Letícia Duarte Villela
Introdução Nutrir adequadamente, com o objetivo de proporcionar ao re‑ cém-nascido (RN) pré-termo um crescimento semelhante ao crescimento fetal, atingir uma concentração normal de nu‑ trientes no sangue e tecidos e alcançar um desenvolvimento funcional satisfatório é um dos grandes desafios dentro da neo‑ natologia. A meta recomendada é que se deva fornecer aos RN pré-termo nutrientes em qualidade e quantidade suficientes para promover um crescimento semelhante ao intrauterino.1-3 Entretanto, nutrir os prematuros adequadamente é um de‑ safio porque: • o objetivo principal é atingir uma velocidade de crescimento semelhante à intrauterina, e essa velocidade é alta; • existem situações clínicas e peculiaridades próprias dos pre‑ maturos que contribuem para nutrição inadequada; • a imaturidade do trato gastrointestinal pode predispor o pré‑ -termo ao risco de doenças como a enterocolite necrosante; • não há consenso sobre as necessidades nutricionais. Nutrição parenteral (NPT) A NPT está indicada em todos os RN de muito baixo peso ao nascer. Deve ser mantida até que o suporte nutricional por via enteral – em quantidades suficientes para promover cresci‑ mento adequado – seja possível.4,5 As quantidades de aminoácidos recomendadas variam de 2,5 a 4,5 g/kg/dia, e quanto menor o prematuro, maior é a quantidade necessária. O perfil de aminoácidos usado foi ba‑ seado no perfil de aminograma plasmático de RN alimenta‑ dos com leite materno, e deveria conter os aminoácidos con‑ siderados condicionalmente essenciais para os prematuros (taurina, cisteína, glutamina e tirosina). Deveria também conter altas concentrações de aminoácidos de cadeia ramifi‑ cada e baixas concentrações de glicina, metionina e fenilalanina.4,5 A glicose deve ser infundida na velocidade de 4 a 6 mg/kg/ min e aumentada gradualmente, de acordo com a tolerância
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do bebê. Os bebês de extremo baixo peso apropriado para a idade gestacional costumam não tolerar grandes infusões de glicose.4,5 As soluções de lipídios contêm triglicérides de cadeia longa ou uma mistura de triglicérides de cadeia longa e cadeia média e apresentam a vantagem de fornecer alta concentração calóri‑ ca em soluções isotônicas, além dos ácidos graxos essenciais. As soluções a 20% devem ser preferidas por conterem melhor razão de emulsão de fosfolipídio/triglicérides do que as solu‑ ções a 10%, facilitando o clearance dos triglicérides. Atual‑ mente, soluções contendo óleo de peixe estão disponíveis, mas ainda têm sido usadas para prevenir ou em casos de co‑ lestase (bilirrubina direta > 2 mg/dL).4 Os lipídios devem ser administrados em um período de 24 horas e aumentados pro‑ gressivamente até no máximo 3 a 4 g/kg/dia, dependendo da tolerância do paciente.5 Os outros nutrientes a serem ofertados são água, sódio, po‑ tássio, cálcio, fósforo, vitaminas e oligoelementos. As recomen‑ dações para alimentação parenteral estão listadas no Quadro 1. Desenvolvimento do trato gastrointestinal O intestino é a interface entre a dieta e o metabolismo, através do qual todos os nutrientes devem passar. A eficiência da nu‑ trição enteral está relacionada à competência do trato gas‑ trointestinal em coordenar sucção e deglutição e propiciar es‑ vaziamento gástrico completo e motilidade intestinal adequada. Dois fatores são importantes no processo de adaptação à nutrição enteral: maturação do trato gastrointestinal (Tabe‑ la 1) e composição do alimento oferecido. Necessidades nutricionais As necessidades nutricionais não estão bem estabelecidas, mas sabe-se que quanto menor o prematuro, maiores serão as necessidades nutricionais. As recomendações atuais estão ex‑ postas na Tabela 2.
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Nutrição do recém‑nascido pré-termo •
Quadro 1 Recomendações para NPT em RN prematuros Princípios gerais A NPT está indicada sempre que as necessidades nutricionais e metabólicas não puderem ser atendidas pela via enteral Iniciar a NPT precocemente após o nascimento (em horas, e não em dias) As necessidades nutricionais e metabólicas dos prematuros são iguais ou maiores que as dos fetos Iniciar a NPT nos prematuros preferencialmente em uma linha separada dos outros volumes Água A água é necessária continuadamente Não há nenhuma evidência de que hiperidratação seja boa (ganho de peso decorrente de retenção de água somente), mas há algumas evidências de que ela pode ser ruim (acidose diluicional e PCA) Leve desidratação é aceitável (não mais que uma perda do peso de nascimento em torno de 5 a 15%) A chave do sucesso para o manuseio da água é pesar frequentemente o bebê Glicose Iniciar 5 a 7 mg/kg/min após o nascimento e tentar atingir 10 mg/kg/min Ajustar a taxa de infusão de glicose (TIG) para manter glicemia > 60 e < 120 mg/dL Glicemias altas (> 200 a 250 mg/dL) devem ser tratadas com redução da infusão de glicose primeiro (8 → 6 → 4) Uma boa alternativa para o manuseio da hiperglicemia é fornecer altas concentrações de aminoácidos (3 a 4 g/kg/dia). Altas concentrações de aminoácidos plasmáticos aumentam a secreção de insulina Infusão de baixas doses de insulina pode ser necessária (0,03 U/kg/hora) em hiperglicemias graves (> 300 mg/dL), principalmente se houver também hiperpotassemia. Nesses casos, deve-se adicionar 1 mL de albumina a 5% para cada 10 mL de solução Não há evidências de que a adição de insulina para melhorar o aporte de glicose na NPT e melhorar a oferta calórica seja benéfica. Pelo contrário, essa abordagem pode ser prejudicial Lipídios Iniciar precocemente 1 g/kg/dia no primeiro dia e aumentar até 3 g/kg/dia em 2 a 3 dias Manter os triglicerídeos séricos < 150 mg/dL Há concentrações suficientes de ácidos graxos essenciais nas soluções de lipídios. Entretanto, é necessário que o bebê esteja recebendo taxas calóricas adequadas. Caso contrário, esses ácidos graxos serão oxidados e o bebê se tornará deficiente em ácidos graxos essenciais Soluções a 20% devem ser preferencialmente utilizadas para diminuir os efeitos adversos da hipercolesterolemia e hipertrigliceridemia consequentes do uso das soluções a 10% Carnitina pode ser útil em bebês em uso de NPT por mais de 3 a 4 semanas
1231
Tabela 1 Estágios de desenvolvimento do trato gastrointestinal Função
Idade gestacional (semanas)
Deglutição de líquido amniótico
18
Sucção não nutritiva
18 a 24
Coordenação sucçãodeglutição-respiração
34 a 36
Motilidade intestinal Ondas peristálticas desorganizadas Peristalse organizada
< 31 > 31
Enzimas detectáveis Lactase Glucoamilase
Na primeira dieta enteral < 20
Tempo de trânsito intestinal até o ceco 9 horas 4 horas
32 Termo
Fonte: adaptada de Romero, 1993.6
Tabela 2 Recomendações atuais de nutrientes por via enteral para RN pré-termo por kg/dia Nutrientes
ESPGHAN 2010
Tsang et al., 2005
Koletzko, 2014
Volume (mL)
135 a 200
150 a 200
135 a 200
Energia (kcal)
110 a 135
110 a 120
110 a 130
Proteína (g)
4 a 4,5 (< 1 kg) 3,5 a 4 (1 a 1,8 kg)
3 a 3,6
3,5 a 4,5
Gordura (g)
4,8 a 6,6
4,1 a 6,5
4,8 a 6,6
12 a 30
≥ 16
(18-) 55 a 60
DHA (mg)
18 a 42
≥ 22
(18-) 35 a 45
Carboidrato (g)
11,6 a 13,2
3,8 a 11,8 (lactose)
11,6 a 13,2
Vit A (mcg RE)
400 a 1000
700
400 a 1100
Vit D (UI)
800 a 1000
115 a 364
400 a 1000
Aminoácidos
Vit E (UI)
2,2 a 11
6 a 12
2,2 a 11
Iniciar 3 g/kg/dia logo após o nascimento Misturas de aminoácidos que contenham aminoácidos essenciais para prematuros devem ser preferidas A ureia provavelmente estará mais alta quando forem utilizadas altas concentrações de aminoácidos, mas a amônia não será um problema se forem usadas ofertas adequadas de calorias. A amônia é um derivado da ureia e pode aumentar se for dada proteína demais com caloria de menos Não há nenhuma vantagem na oferta de calorias não proteicas maiores que 60 a 80 kg/dia para promover retenção adequada de nitrogênio. O objetivo é fornecer proteína 3 g/kg/dia, no mínimo Nunca utilizar concentrações muito baixas de aminoácidos em soluções contendo cálcio e fósforo. Eles podem precipitar Para manter velocidade de crescimento semelhante à intrauterina, o prematuro necessitará de 3,5 a 4 g/kg/dia de proteína. Portanto, só diminuir a oferta endovenosa quando a via oral puder providenciar quantidades semelhantes
Vit C (mg)
11 a 46
18 a 24
20 a 55
Vit B6 (mcg)
45 a 300
150 a 210
50 a 300
Fonte: Thureen e Hay, 2006.5
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1231
ARA (mg)
Vit B12 (mcg)
0,08 a 0,7
0,3
0,1 a 0,8
Ácido fólico (mcg)
35 a 100
25 a 50
35 a 100
Ferro (mg)
2a3
0a2
2a3
Cálcio (mg)
120 a 140
120 a 230
120 a 200
Fosfato (mg)
60 a 90
60 a 140
60 a 140
Sódio (mg)
69 a 115
0 a 23
69 a 115
Potássio (mg)
66 a 132
0 a 39
78 a 195
Zinco (mg)
1,1 a 2
0,5 a 0,8
1,4 a 2,5
Fonte: modificada de Tudehope et al, 20137 e Koletzko, 2014.4 UI: unidade internacional.
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1232 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 16 NEONATOLOGIA
A primeira escolha para alimentação do RN pré-termo é o leite da sua mãe, seguido do leite de doadoras e da fórmula própria para RN pré-termo. Sabe-se que há diferenças entre o leite produzido pelas mães de bebês pré-termo e de termo, e a Tabela 3 apresenta essas diferenças. Tabela 3 Composição nutricional do leite de transição e leite maduro de mães de pré-termo comparados com as de termo por 100 mL Leite de mães de pré-termo 6 a 10 dias
Leite de mães de pré-termo 22 a 30 dias
Leite de mães de termo > 30 dias
Proteína (g)
1,95
1,5
1,2
Gordura (g)
3,4
3,6
3,4
Carboidrato (g)
6,3
6,7
6,7
Fonte: Schanler et al., 2009.8
Leite humano, leite de doadoras, fórmulas e práticas alimentares O uso do leite materno exclusivo nos RN com menos de 1.500 g tem sido associado a ganho de peso inadequado e déficit nutri‑ cional durante a hospitalização. Vários motivos podem contri‑ buir para essa má performance. Um dos mais importantes é a grande variabilidade no conteúdo proteico-energético, especial‑ mente dos lipídios. Essa variabilidade está relacionada aos mé‑ todos de coleta (expressão), estocagem, métodos de fornecimen‑ to ao bebê, tempo da lactação, etc.8 O que se observa com a oferta de leite por gastróclise ao pré-termo é a maior perda de nu‑ trientes, principalmente gordura. A pasteurização por si só não influencia na quantidade de nutrientes final que chega ao RN. A necessidade de fortificação do leite materno para uso nos prematuros com menos de 1.500 g tem sido reconhecida há mais de 20 anos. Apesar de uma nova geração de fortificantes estar disponível para uso, seus resultados ainda não são satis‑ fatórios. A maioria dos fortificantes difere quanto a sua com‑ posição. Teoricamente, a fortificação individualizada seria a melhor solução, ou seja, o leite da mãe seria analisado e fortifi‑ cado segundo as necessidades de cada bebê. O problema é que a implementação dessa prática é difícil e cara, impossibilitan‑ do seu uso rotineiro. Os novos fortificantes lançados no mer‑ cado acrescentaram em suas fórmulas gordura e carboidrato, além de mudar as formulações de cálcio e fósforo, com o obje‑ tivo de diminuir a perda de gordura, melhorando sua absorção. Algumas práticas podem melhorar o conteúdo energético do leite da mãe e possibilitar melhor ganho de peso ao prema‑ turo. A mãe deve ser estimulada a massagear a mama e fazer ordenhas periódicas logo após o nascimento do bebê, mesmo que ele ainda não possa receber o leite. Todo um aporte fami‑ liar e da equipe da saúde pode ser necessário para que a manu‑ tenção da produção de leite seja possível por longos períodos. Se o bebê apresentar dificuldades no ganho de peso apesar da fortificação, podem-se utilizar algumas estratégias antes de substituir o leite humano por fórmula. O conteúdo energético do leite pode ser estimado por meio do crematócrito, que é um método fácil, estando as técnicas necessárias para sua utiliza‑
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1232
ção disponíveis na maioria das unidades neonatais. Atual‑ mente, utiliza-se a fórmula simplificada proposta por Wang et al. (1999):9 • leite fresco: Energia (kcal/dL) = 5,99 × crematócrito (%) + 32,5; • leite congelado: Energia (kcal/dl) = 6,2 × crematócrito (%) + 35,1. O crematócrito é obtido da porcentagem do comprimento da coluna de gordura separada do leite por meio da centri‑ fugação. Usando um tubo de vidro do micro-hematócrito, obtém-se uma amostra. O capilar é fechado em uma das pontas e centrifugado por 15 minutos em uma centrífuga de 3000 rpm. Mede-se o comprimento do tubo preenchido por meio da régua usada para hematócrito e a coluna de gordu‑ ra que se separa do leite, obtendo então a porcentagem. Usando a fórmula citada tem-se uma estimativa do conteú‑ do calórico do leite. Se o conteúdo calórico é baixo, a mãe deve ser orientada quanto à retirada do segundo leite – que contém maior quanti‑ dade de gordura. Em geral, após sucessivas coletas, a mãe é capaz de perceber o momento em que o leite muda a coloração e a consistência. Nesse momento, esse leite deve ser reserva‑ do para ser usado preferencialmente. Se os exames da mãe em relação à infecção congênita no último trimestre forem negati‑ vos, prefere-se usar o leite fresco quando ele for colhido em ambiente adequado, imediatamente antes de ser oferecido ao bebê. Se isso não for possível, o leite é então pasteurizado e congelado. Antes do uso, ele é descongelado e oferecido ao bebê após homogeneização. Quando o prematuro não é capaz de sugar, ele deve receber alimentação por sonda. A administração pode ser feita por ga‑ vagem (bolo) ou por infusão contínua. Prefere-se a alimenta‑ ção por bolo, reservando-se a infusão contínua para os bebês com tempo de esvaziamento gástrico prolongado. Bombas in‑ fusoras peristálticas não devem ser usadas para infusões de leite, pois a gordura permanece nos equipos, aumentando sig‑ nificativamente a perda calórica. As bombas de seringa são melhores para essa finalidade, devendo ser mantidas na posi‑ ção horizontal.4,5 As fórmulas para prematuros estão disponíveis comercial‑ mente e tentam copiar o perfil do conteúdo do leite humano. A proteína predominante é a do soro. A quantidade de proteína por 100 mL é maior do que nas fórmulas para os bebês a termo e fornece cerca de 3,6 g/kg/dia quando se utilizam mais que 150 mL/kg/dia de volume. A gordura é predominantemente TCM. As fórmulas atualmente disponíveis não contêm ôme‑ ga-3 e ômega-6 em quantidades suficientes. Aproximadamente 50% das calorias em carboidratos são derivadas de polímeros de glicose, uma vez que há baixa con‑ centração de lactase no intestino. Os polímeros de glicose são facilmente digeridos e têm baixa osmolaridade. Quando comparadas às outras fórmulas, é possível perce‑ ber que as fórmulas especiais para prematuros apresentam conteúdos maiores de sódio, potássio, cálcio e fósforo, além de conterem vitaminas hidro e lipossolúveis.
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Nutrição do recém‑nascido pré-termo •
Os hidrolisados de caseína são inadequados para o uso em prematuros por causa de seu baixo conteúdo de minerais e vi‑ taminas e também por sua alta osmolaridade. Práticas alimentares para o recém-nascido pré‑termo Em geral, 4 perguntas norteiam a prática clínica em relação à alimentação enteral no RN pré-termo: 1. Quando começar a dieta enteral? 2. O que começar? 3. Como progredir? 4. Como monitorar a adequação? Quando começar? O início do uso da via enteral deve ser o mais precoce possível, usando o que se chama dieta enteral mínima ou dieta trófica. O início da dieta por via enteral deve ser postergado se o RN estiver hipotenso, necessitando de doses crescentes de drogas vasoativas ou muito acidótico, precisando de ventilação pro‑ gressivamente mais agressiva. O que começar? A primeira escolha deve ser sempre o leite da própria mãe, neste caso, o colostro e depois o leite de transição e o leite ma‑ duro. Na falta dele, a segunda opção é o leite de doadoras obti‑ do em bancos de leite humano, uma vez que esse leite precisa ser pasteurizado e passar por controle de qualidade adequado. Ambos os leites precisam ser fortificados com aditivos multi‑ componentes assim que o volume recebido passar de 100 mL/ kg/dia, com boa tolerância. Se o RN apresentar crescimento inadequado, a fórmula própria para pré-termo pode ser intro‑ duzida em algumas dietas. Como progredir? Uma vez iniciada a dieta no segundo dia de vida, a sua pro‑ gressão deve ser feita de acordo com a Tabela 4. Como monitorar? A monitoração nutricional nos RN pré-termo é feita a partir da obtenção de medidas antropométricas, como peso, compri‑ mento e perímetro cefálico. Essas medidas são colocadas em gráficos. Atualmente, são utilizadas as curvas do estudo de Fenton.11 Essas curvas proporcionam a possibilidade de segui‑ mento do RN até 50 semanas; depois, as curvas da Organiza‑ ção Mundial da Saúde são utilizadas. Espera-se que os RN ga‑ nhem cerca de 14 a 16 g/kg/dia após a recuperação do peso de nascimento. A ureia sanguínea também pode ser um bom indicador de adequação da oferta proteica aos RN após a recuperação do peso de nascimento. Valores < 25 mg/dL podem indicar ne‑ cessidade de maior oferta proteica.4,5 Interpretações do estado proteico-energético somente com peso podem ser prejudicadas pela retenção de líquido ou pela desidratação. As medidas de comprimento são mais sujeitas a erros de medida. Medidas de pregas cutâneas podem ser usa‑
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1233
1233
Tabela 4 Proposta de progressão da dieta enteral para os recém-nascidos menores de 32 semanas de idade gestacional Dia de alimentação
Volume de leite de acordo com o peso de nascimento (mL/kg/dia) < 600 g
600 a 749 g
750 a 999 g
1.000 a 1.249 g
≥ 1.250 g
1
12
12
12
12
24
2
12
12
12
24
36
3
12
24
24
36
48
4
24
36
36
48
60 72
5
36
48
48
60
6
48
60
60
72
84
7
60
72
72
84
96 a 108
8
72
84
84
96 a 108
120 a 132
9
84
96
96 a 108
120 a 132
144 a 150
10
96
108 a 120
120 a 132
144 a 150
11
108 a 120
132 a 144
144 a 150
12
132 a 144
150
13
150
14
Aumentar de acordo com aceitação e necessidade até 160 a 180 mL/kg/dia
Fonte: Leaf et al., 2009.10
Quadro 2 Sugestões para alimentação por via enteral 1. Iniciar nutrição enteral mínima o mais precocemente possível (10 a 20 mL/kg/dia) 2. Iniciar sempre com colostro ou leite materno 3. Aumentar lentamente até 20 mL/kg/dia, dependendo da tolerância 4. Usar preferencialmente alimentação por bolo quando o bebê não puder sugar e deixar a infusão contínua para os casos nos quais houver retardo do esvaziamento gástrico 5. Fortificar o leite materno em todos os bebês com peso < 1.500 g ao nascer assim que eles atingirem 100 mL/kg/dia 6. Se após a recuperação do peso de nascimento o ganho de peso não estiver adequado (15 a 21 g/kg/dia) reportado em 1 semana, estimular a mãe a tentar o segundo leite (ver pelo crematócrito) 7. Se a estratégia anterior não funcionar, verificar se há alguma razão para o ganho de peso deficiente (infecção, sódio e bicarbonato séricos, uso de diuréticos em demasia) 8. Se não houver nenhuma razão para o ganho de peso < 15 g/kg/dia e o crematócrito do leite usado for baixo, substituir algumas mamadas por fórmula para pré-termo. Nunca suspender o leite materno, apenas substituir algumas mamadas, se necessário 9. Assim que possível – idade gestacional corrigida acima de 32 semanas e estabilidade do quadro clínico –, iniciar a sucção ao seio, suspendendo progressivamente a fórmula, objetivando que o bebê receba alta com seio materno exclusivo
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das para avaliar a adequação da oferta de lipídios, e o estado proteico pode ser estimado usando a combinação de duas me‑ didas: circunferência do braço e prega cutânea.4,5 As dosagens de proteína sérica também são sujeitas a erros de interpretação. A meia-vida da albumina é longa e ela só pode ser usada para avaliações de desnutrição crônica, não sendo útil para avaliações de estratégias nutricionais recentes.4,5 Apesar de todos os avanços em relação à nutrição, outra questão ainda a ser resolvida é o baixo índice de aleitamento materno após a alta em egressos de UTI neonatal. O Quadro 3 apresenta sugestões para melhoria desses índices. Quadro 3 Estratégias para aumento das taxas de aleitamento materno nos RN pré-termo
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Entender que a nutrição no pré-termo é uma urgência. • Entender que a proteína precisa ser ofertada nas primeiras horas de vida. • Entender que a nutrição enteral deve ser iniciada o mais precocemente possível. • Entender que o leite materno é o melhor alimento para o pré-termo.
Referências bibliográficas 1.
2.
1. Encorajar a mãe a retirar o leite e estimular a mama precocemente (de preferência nas primeiras 24 horas após o parto) 2. Estimular a formação de grupos de suporte de amamentação com outras mães em situações semelhantes 3. Orientar a mãe a manter o estímulo da mama para lactação e retirada de leite de forma regular (a cada 3 horas) nos dias subsequentes ao parto
3.
4. Estender a orientação sobre a superioridade do leite materno para a alimentação do bebê para toda a família, providenciando uma rede social de apoio à amamentação 5. Deixar claro para a mãe e toda a família a superioridade do leite materno em relação a todos os outros leites. O profissional de saúde deve ser claro e repetitivo a esse respeito e considerar o leite da mãe como “ouro líquido”
4.
6. Encorajar a mãe a praticar sempre que possível o contato pele a pele (Método Canguru)
5.
7. Iniciar o bebê no contato com o seio assim que a idade gestacional e seu quadro clínico o permitam, independentemente do peso
6.
8. Organizar reuniões e grupos de apoio de amamentação convidando outras mães que conseguiram amamentar seus filhos prematuros com sucesso
7.
9. Preparar o bebê para sucção, realizando estimulação sensóriomotora-oral precocemente de forma regular, enquanto a sonda é necessária (sucção não nutritiva), facilitando a sucção ao seio posteriormente
8.
10. Nem mamadeira, nem copinho. A melhor forma de receber o alimento quando a sonda for retirada é o seio materno
9.
11. Deixe um telefone disponível para que a mãe/família tenha acesso aos profissionais de saúde para sanar dúvidas em relação à amamentação após a alta
10.
12. Agende visitas precoces para a monitoração do crescimento e desenvolvimento do bebê e verificação de eventuais dificuldades com a amamentação
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1234
11.
American Academy of Pediatrics, Committee on Nutrition: Nutritional needs of the preterm infant. In: Kleinman RE (ed.). Pediatric Nutrition Handbook. 6.ed. Elk Grove Village: American Academy of Pediatrics, 2009. p.79-112. Agostoni C, Buonocore G, Carnielli VP, DeCurtis M, Darmaun D, Decsi T et al.; ESPGHAN Committee on Nutrition. Enteral nutrient supply for preterm infants: Commentary from the European Society for Paediatric Gastroenterology, Hepatology, and Nutrition Committee on Nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2010; 50:85-91. Koletzko B, Goulet O, Hunt J, Krohn K, Shamir R; Parenteral Nutrition Guidelines WorkingGroup. Guidelines on Paediatric Parenteral Nutri‑ tion of the European Society of Paediatric Gastroenterology, Hepato‑ logy, and Nutrition (ESPGHAN) and the European Society for Clinical Nutrition and Metabolism (ESPEN), Supported by the European So‑ ciety of Paediatric Research (ESPR). J Pediatr Gastroenterol Nutr 2005; 41:S1-S87. Koltzko B, Poindexter B, Uauy R. Nutrtional Care of Preterm Infants. Scientific Basis and Practical Guidelines. Switzerland: Karger, 2014. Thureen PJ, Hay WW. Neonatal Nutrition and Metabolism. 2.ed. New York: Cambridge, 2006. Tudehope D, Fewtrell M, Kashyap S, Udaeta E. Nutritional needs of the micropeterm infant. J Pediatr 2012; 162:S72-S80. Romero R, Kleinman R. Feeding the Very Low-Birth-Weight Infant. Pe‑ diatr Rev 1993; 14(4):123-32. Schanler RJ. Mother’s own milk, donor human milk, and preterm for‑ mulas in the feeding of extremely premature infants. J Pediatr Gas‑ troenterol Nutr 2007; 45 Suppl 3:S175-7. Wang CD et al. Creamatocrit and Nutrient composition of Human Milk. J Perinatol 1999; 19(5):343-6. Leaf A, Dorling J, Kempley S, McCormick K, Mannix P, Brocklehurst P. ADEPT-Abnormal Doppler Enteral prescription trial. BMC Pediatr 2009; 9:63-74. Fenton TR, Kim JH. A systematic review and meta-analysis to revise the Fenton growth chart for preterm infants. BMC Pediatr 2013; 20:13:59.
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CAPÍTULO 5
DISTÚRBIOS METABÓLICOS FREQUENTES DO RECÉM ‑NASCIDO Rosângela Interaminense Garbers
Distúrbios do metabolismo da glicose Uma das mais difíceis e complexas mudanças relacionadas ao nascimento é a transição abrupta para o feto da dependência total de suprimento da glicose materna para a sua total inde‑ pendência, após a ligadura do cordão umbilical. Para manter níveis adequados de glicose, o organismo do recém-nascido (RN) deve iniciar o processo de glicogenólise das reservas he‑ páticas, gliconeogênese e, posteriormente, a utilização da gli‑ cose proveniente da alimentação. Após os primeiros dias de vida, estabelecendo dieta oral regular e contínua maturação da gliconeogênese hepática, os níveis de glicose sanguínea tendem a se estabilizar. A hipoglicemia transitória é um dis‑ túrbio frequente observado nos RN, decorrente da imaturida‑ de das vias de homeostase da glicose.1 Hipoglicemia Hipoglicemia neonatal ocorre com maior frequência nos pa‑ cientes com baixas reservas de glicogênio, como nos RN pré‑ -termo e naqueles com restrição de crescimento intrauterino. Pode ocorrer também quando aumentam as demandas ener‑ géticas, como na sepse, na hipotermia e na asfixia perinatal. A glicose é a fonte de energia para o neurônio, porém, em situações de carência, os corpos cetônicos passam a ser o substrato energético capaz de cruzar a barreira hematocere‑ bral. Os mecanismos metabólicos adaptativos do jejum ocor‑ rem mais rapidamente na infância em relação aos adultos, principalmente na formação dos corpos cetônicos.2 A hipoglicemia Incide em cerca de 8 a 10% dos RN grandes para a idade gestacional (GIG) e em 15% nos pequenos para a idade gestacional (PIG), pelo fato de, nesses grupos de pacien‑ tes, os mecanismos adaptativos não se apresentarem de forma adequada. Hipoglicemia persistente no período neonatal é me‑ nos comum e pode ser causada por doenças endócrinas congê‑ nitas, como hiperinsulinemia ou hipopituitarismo, ou, ainda, secundária a erros inatos do metabolismo. A hipoglicemia em RN pode se manifestar com convulsões, em curto prazo, e deter‑ minar morbidades neurológicas em longo prazo, e representar
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1235
uma emergência neonatal, necessitando de intervenção tera‑ pêutica precoce. Definição Apesar de muitas discordâncias, a definição de hipoglicemia neonatal ainda permanece controversa, necessitando de um consenso entre especialistas. Esforços têm sido feitos para identificar um limiar operacional, no qual uma intervenção deva ser considerada para hipoglicemia neonatal, no sentido de prevenir sequelas neurológicas.1 O surgimento de sinais e sintomas clínicos compatíveis com hipoglicemia pode ser uma evidência tardia desse distúrbio metabólico. Publicações de Cornblath et al.,3 datadas do ano 2000, reco‑ mendam o uso de um “limiar operacional” para o tratamento da glicemia em neonatos. O uso dessa ferramenta de ação é uma in‑ dicação para intervenção, e não para diagnóstico da doença, pois: • define o nível de glicemia no qual se deve intervir; • define a meta terapêutica; • depende do estado clínico e da idade do RN; • não define o normal ou o anormal; • garante uma margem de segurança. Os limiares operacionais sugeridos por Cornblath et al. são lis‑ tados a seguir: • RN a termo saudáveis: –– menos de 24 horas de vida: 30 a 35 mg/dL na primeira medição, elevando-se para 45 mg/dL após o início da alimentação; –– após 24 horas de vida: 45 a 50 mg/dL; • RN com sinais ou sintomas clínicos anormais: 45 mg/dL; • RN assintomáticos com fatores de risco para hipoglicemia: 36 mg/dL. Se após a alimentação a glicemia permanecer abai‑ xo desse nível ou surgirem sinais clínicos anormais, é neces‑ sária intervenção terapêutica; • em qualquer RN com níveis de glicemia entre 20 e 25 mg/dL, deve-se administrar glicose endovenosa (EV) em bolo para elevar a glicemia a níveis superiores a 45 mg/dL.
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1236 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 16 NEONATOLOGIA
O risco de hipoglicemia causar danos cerebrais ao RN é mo‑ dificado por fatores que incluem a disponibilidade de subs‑ tâncias alternativas, como cetonas e lactato, e a presença de comorbidades como hipóxia e sepse. Em geral, um nível de glicose plasmática igual ou inferior a 50 mg/dL é, em prática, razoável, e um limiar seguro para avaliar um neonato para hipoglicemia.1 Sinais e sintomas Na grande maioria das vezes, os sinais e sintomas de hipogli‑ cemia em neonatos são inespecíficos. Os mais frequentes in‑ cluem irritabilidade, recusa alimentar, sucção débil, letargia, apneia, hipotonia, hipotermia, crises de cianose, instabilidade vasomotora, dificuldade respiratória, convulsões mioclônicas ou multifocais, e, muito raramente, coma. Muitos neonatos são assintomáticos ou apresentam míni‑ mos sinais e sintomas, o que requer especial atenção, princi‑ palmente nos RN de maior risco. Fatores de risco maternos e neonatais4 Maternos
• Diabete (gestacional ou pré-gestacional); • administração de drogas à gestante (terbutalina, clorpropa‑ mida, hipoglicemiantes orais e diuréticos tiazídicos); • infusão intraparto de dextrose; • hipertensão e pré-eclâmpsia. Neonatais
• • • • • • • •
Diagnóstico laboratorial5 Amostra laboratorial deve ser coletada e analisada o mais rapi‑ damente possível para evitar que a medição seja falsamente reduzida por glicólise. O nível de glicose pode cair 18 mg/ dL/h em uma amostra à espera de análise. Embora ampla‑ mente utilizadas como recurso de triagem, as fitas reagentes não tiveram confiabilidade comprovada para documentar hi‑ poglicemia em neonatos, e o uso de técnica correta na sua uti‑ lização é imprescindível. Aquecer previamente o pé do RN e não utilizar álcool isopropril para a assepsia da região. A fita reagente mede a glicose total no sangue, a qual é 15% inferior aos níveis plasmáticos, e a confirmação laboratorial deve ser realizada com a glicemia plasmática. Se a hipoglicemia for refratária ou quando a necessidade de infusões de glicose durar mais de uma semana, devem-se con‑ siderar causas raras de hipoglicemia, sendo a hipoglicemia hi‑ perinsulinêmica a causa mais comum no período neonatal. Nesses casos, a realização dos seguintes exames é necessária: dosagem de insulina, hormônio do crescimento (GH), cortisol, hormônio adrenocorticotrófico (ACTH): tiroxina (T4), hormô‑ nio estimulante da tireoide (TSH), glucagon, lactato, amônia, transaminases, eletrólitos (incluindo cloro), triagem para er‑ ros inatos do metabolismo, cromatografia de ácidos orgânicos e aminoácidos, e pesquisa de substâncias redutoras na urina. As amostras de sangue e urina devem ser coletados durante a crise hipoglicêmica. Para o diagnóstico da hipoglicemia hiperinsulinêmica, deve‑ -se fazer o teste de estímulo do glucagon, administrando 0,03 mg/kg de peso de glucagon EV ou intramuscular (IM), quando dosagem da glicemia < 40 mg/dL. Monitorar a glicemia a cada 10 minutos, durante 40 minutos. Se houver um aumento > 30 mg/dL em relação ao nível basal, o resultado será sugestivo de hiperinsulinismo. Se não houver aumento em 20 minutos, o teste é suspenso e retorna-se à infusão de glicose EV.7,8
Prematuridade; restrição de crescimento intrauterino; hipóxia e isquemia; sepse; PIG e GIG; hipotermia; policitemia; características sindrômicas (síndrome de Beckwith-Wiede‑ Conduta5 mann); A antecipação e prevenção são fundamentais para a conduta • tumores produtores de insulina (nesidioblastose, adenoma do RN sob risco de hipoglicemia. Nos grupos de risco, a reco‑ ou dismaturidade das células da ilhota); mendação de controle de glicemia deve ser realizada da se‑ • erros inatos do metabolismo; guinte maneira: • eritroblastose fetal. • RN pré-termo e RN PIG: com 3, 6, 12 e 24 horas, e após, em in‑ tervalos de 8 a 12 horas, até 72 horas de vida; Classificação da hipoglicemia neonatal1 • RN de mãe diabética: com 1, 2, 3, 6, 12 e 24 horas, e após, a • Transitória: quando permanece de dias a semanas (ou meses) cada 8 horas, até 72 horas de vida; após o nascimento. As principais causas são: • nos demais RN de risco, com 3, 6, 12 e 24 horas, e após, a cada –– prematuridade (imaturidade do desenvolvimento), PIG; 8 horas, até 48 horas de vida. –– estresse no período periparto e pós-natal (trauma, asfi‑ Tratamento5 xia e hipotermia); –– hiperinsulinemia transitória (RN de mãe diabética e in‑ Imediatamente após o nascimento, e se o estado geral do RN fusão intraparto de dextrose); permitir, eles devem ser amamentados ou receber leite de fór‑ –– aumento metabólico (sepse, policitemia e eritroblastose mula a cada 2 a 3 horas. As medições seriadas de glicemia são fetal); realizadas conforme protocolo e com discernimento clínico: –– toxemia materna e uso de tocolíticos no trabalho de parto. • o tratamento EV é indicado quando há intolerância à dieta • Persistente: quando continua na infância. Pode ser hiperinsu‑ oral, níveis de glicemia < 25 mg/dL, e quando a dieta oral não linêmica ou normoinsulinêmica. mantém níveis adequados de glicemia;
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• push de glicose: dose de 2 mL/kg (200 mg/kg de glicose a 10%), EV, em 1 minuto, seguido por terapia contínua de infusão de gli‑ cose, com taxa de infusão de glicose (TIG) de 6 a 8 mg/kg/min (soro glicosado a 10%, a 3,6 mL/kg/h). Reavaliar o nível de glicemia 20 a 30 minutos após, e a cada hora, até a estabilidade, a fim de avaliar a necessidade de tratamento adicional; • se a glicemia estabilizar em faixa aceitável, continuar a ali‑ mentação, reduzir a infusão de glicose EV gradativamente, em torno de 1 mg/kg a cada 12 horas, e manter as medições da glicemia; • se houver necessidade de aumento das concentrações de gli‑ cose acima de 12,5 mg, considerar a necessidade de um cate‑ ter venoso central; • se o RN permanecer hipoglicêmico mesmo após receber infu‑ são acima de 12 mg/kg de glicose por minuto, considere o uso de hidrocortisona (10 mg/kg/dia, EV, em duas doses). A hi‑ drocortisona reduz a utilização periférica da glicose, aumenta a gliconeogênese e amplia os efeitos do glucagon. Geralmente, resulta em níveis de glicose estáveis e adequados, podendo ser reduzida rapidamente; • glucagon: dose de 0,025 a 0,3 mg/kg, EV (máximo de 1 mg/dia). Estimula a gliconeogênese em hipoglicemia refra‑ tária, mas é apenas uma medida para mobilizar a glicose por 2 a 3 horas em uma emergência, até que se possa ofertar glico‑ se EV; • diazóxido: utilizado em casos de hiperinsulinismo persisten‑ te, na dose de 2 a 5 mg/dose, máximo de 20 mg/kg/dia, via oral (VO), a cada 8 horas. Inibe a liberação de insulina atuan‑ do como agonista específico nos canais de potássio nas célu‑ las beta-pancreáticas normais. Pode ser utilizado EV, na dose de 10 a 15 mg/kg/dia, em três doses; • a epinefrina e o GH são usados raramente e apenas no tratamen‑ to da hipoglicemia persistente. O tratamento cirúrgico do pân‑ creas pode ser indicado em casos específicos.
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pré-termos ou PIG. A causa mais comum é iatrogênica, por excessiva oferta de glicose. Outros mecanismos descritos incluem alterações na secreção de insulina, resistência à insu‑ lina, imaturidade de enzimas hepáticas envolvidas na ho‑ meostase da glicose. Raramente, a hiperglicemia pode ser de‑ corrente de diabete neonatal, cuja incidência é de 1 em 400 mil casos, condição clínica na qual uma alteração genética específica é a causa mais comum. Outras causas são: • sepse: a hiperglicemia decorre de alterações no receptor da in‑ sulina e na liberação de substâncias que alteram a glicogenóli‑ se e a gliconeogênese; • procedimentos cirúrgicos: no pós-operatório, por causa do estresse, ocorre liberação de hormônios como o glucagon e catecolaminas; • uso de drogas como cafeína, teofilina, fenitoína, dexame tasona e diazóxido. Diagnóstico O diagnóstico é realizado com a dosagem sérica de glicose e o uso de fitas reagentes. É preciso lembrar que, usando-se fitas reagentes na urina, são medidos outros açúcares, como a galactose, e não exclusivamente a glicose.
Tratamento A hiperglicemia neonatal transitória geralmente se resolve em poucos dias, e por isso, a estratégia de tratamento deve ser a mais conservadora possível: • tratar causas subjacentes, como a sepse; • minimizar a TIG exógena de 3 a 5 mg/kg/min, reduzindo a infusão de glicose em 1 a 2 mg/kg/min a cada 4 a 6 horas; • iniciar dieta oral quando o estado geral do RN permitir e nutri‑ ção parenteral tão logo seja possível, pois alguns aminoácidos promovem secreção de insulina; • se a hiperglicemia estiver associada ao uso de medicações, Hiperglicemia1 tentar substituí-las; Definição • na presença de glicemia > 250 mg/dL (alguns autores consi‑ Apesar de o limite máximo dos níveis de glicose sanguínea em deram 180 mg/dL) ou se existir manifestação clínica, como RN saudáveis não ser claramente definido, costuma-se consi‑ diurese osmótica, a terapêutica com infusão de insulina derar o limiar para diagnóstico de hiperglicemia nos neonatos exógena pode ser instituída. Utilizam-se doses baixas, ini‑ como 126 mg/dL no sangue. A concentração de glicose san‑ ciando com 0,03 a 0,05 U/kg/h, a cada 4 a 6 horas. Pode ser guínea > 180 mg/dL, ou presença de glicosúria com diurese difícil determinar a dose efetiva, pois parte da insulina é ad‑ osmótica, é geralmente considerada indicação para inter sorvida à superfície plástica do equipo EV. A diluição padrão venção terapêutica. é feita com 15 unidades de insulina humana regular acresci‑ das a 150 mL de soro glicosado 5% ou soro fisiológico 0,9%, Quadro clínico obtendo-se concentração de 0,1 U/mL. Infundir em bomba É geralmente inespecífico, mas os principais achados clínicos infusora, em 15 minutos, e manter controle glicêmico a cada associados são a hiperosmolaridade e a diurese osmótica. Em 30 minutos. Se ocorrer hipoglicemia, suspender a insulina e RN pré-termo, com perdas hídricas insensíveis elevadas, pode administrar soro glicosado 10%, EV, 2 mL/kg, dose única. ocorrer perda de peso acentuada e desidratação. Lembrar que glicemias > 450 mg/dL podem provocar desloca‑ Etiologia mento da água do compartimento intracelular para o extrace‑ Hiperglicemia transitória neonatal é geralmente um achado lular, resultando em contração do volume intracelular do cére‑ incidental durante a rotina na monitoração da glicose em RN bro, podendo evoluir com hemorragia intracraniana.5
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Distúrbios do metabolismo do cálcio1 Hipocalcemia neonatal tardia O cálcio desempenha dois papéis fisiológicos importantes Ocorre mais frequentemente em RN a termo do que no pré‑ no organismo. Os sais de cálcio promovem integridade es‑ -termo. Não está associada com diabete materno, trauma ou trutural óssea e são essenciais para manutenção e controle asfixia perinatal: de importantes processos bioquímicos. Significativas altera‑ • hipoparatireoidismo: a hipofunção da paratireoide pode ser ções nas concentrações de cálcio sérico ocorrem frequente‑ transitória ou permanente, resultando em hipocalcemia e hi‑ mente no período neonatal. Na gestação, o cálcio passa para perfosfatemia; a circulação fetal em torno de 140 mg/kg/dia. Ao nascimen‑ –– hipoparatireoidismo transitório idiopático: ocorre reso‑ to, os níveis séricos de cálcio caem principalmente na pri‑ lução do quadro clínico à medida que normaliza a função meira semana de vida. Em RN a termo saudável, a concen‑ da paratireoide; tração total de cálcio e Ca2+ declina de 11 mg/dL e 6 mg/dL, –– hipoparatireoidismo congênito: alteração secundária à respectivamente, no sangue do cordão umbilical, a níveis sé‑ ausência das paratireoides (sequência de Di George) ou ricos de 8 mg/dL e 5 mg/dL em 24 a 48 horas. Os principais fazendo parte da síndrome de Kenny-Caffey; hormônios calcicotrópicos ou reguladores do cálcio são o pa‑ –– secundário à hiperparatireoidismo materno: de evolução ratormônio (PTH) e a 1,25-di-hidroxivitamina D, ou calci‑ transitória, com resolução espontânea; triol (1,25 (OH)2 D3). –– pseudo-hipoparatireoidismo; Quando o nível de cálcio ionizado declina no líquido extrace‑ –– deficiência de magnésio: comprometendo a secreção do lular, as células paratireóideas secretam PTH, que mobiliza o cál‑ PTH; cio dos ossos, reabsorve cálcio no túbulo renal e estimula a pro • hiperfosfatemia por: dução renal de 1,25 (OH)2 D3. A secreção de PTH induz a elevação –– sobrecarga de fosfatos em fórmulas lácteas: o excesso de do nível sérico de cálcio e manutenção ou redução do nível séri‑ fosfato aumenta o depósito de cálcio nos ossos, reduzin‑ co de fósforo. A vitamina D, sintetizada na pele após exposição do seu nível sérico. Contribuem também hipoparatireoi‑ à luz solar, é transportada até o fígado, convertida em 25(OH, D, dismo, hipomagnesemia, deficiência de vitamina D e e nos rins em calcitriol. O calcitriol aumenta a absorção intesti‑ imaturidade da excreção tubular renal de fosfato; nal do cálcio e fosfato e mobiliza esses elementos dos ossos. –– insuficiência renal: reduz a produção de 1,25 (OH)2 D3; • deficiência de vitamina D por: Hipocalcemia –– deficiência materna de vitamina D; Definição –– doenças adquiridas ou hereditárias do metabolismo da A hipocalcemia neonatal é definida como: vitamina D; • RN a termo: concentração sérica de cálcio < 8 mg/dL ou cál‑ –– má absorção; cio ionizado < 4 mg/dL; –– terapia anticonvulsivante materna; • RN pré-termo: concentração sérica de cálcio total < 7 mg/dL. –– insuficiência renal aguda; –– doença hepatobiliar; Etiologia –– nefrose com comprometimento da circulação ênte‑ Uma abordagem útil para a classificação das causas de hipo‑ ro-hepática; calcemia neonatal é de acordo com o tempo de início dos sin‑ • terapia medicamentosa com: tomas. Podem ser divididas em precoces, ocorrendo nos três –– bicarbonato de sódio: alcalose induz a ligação do cálcio à primeiros dias de vida, e tardias, após o terceiro dia de vida, proteína, diminuindo os níveis de cálcio ionizado e au‑ geralmente próximo ao final da primeira semana. mentando a reabsorção óssea de cálcio; –– furosemida: produz hipercalciúria; Hipocalcemia neonatal precoce5 –– infusão de lipídios: eleva os níveis de ácidos graxos livres, • Prematuridade: o declínio pós-natal do cálcio sérico é maior formando complexos solúveis com o cálcio; que no RN a termo, e a magnitude dessa queda é inversamen‑ –– infusão rápida de albumina; te proporcional à idade gestacional; • fototerapia: reduz a secreção de melatonina e aumenta a cap‑ • RN de mãe diabética: apresentam incidência de 25 a 50% de hi‑ tação óssea do cálcio; pocalcemia, principalmente se o controle do diabete materno • alta ingestão de fosfato: acarreta excesso de fósforo e redução for precário. Esses RN apresentam uma resposta exagerada na do cálcio sérico; queda dos níveis séricos de cálcio decorrente de hipomagnese‑ • choque ou sepse: causam hipocalcemia por meio de mecanis‑ mia materna e fetal, além da resposta lenta do PTH observada; mos ainda controversos. • RN PIG (crescimento intrauterino restrito): apresentam ní‑ veis elevados de calcitonina, e as causas mais prováveis da hi‑ Quadro clínico1 pocalcemia são hipoparatireoidismo e hiperfosfatemia; Os sinais de hipocalcemia em neonatos são variáveis e podem • RN com asfixia (depressão perinatal): hipocalcemia e hipo‑ não ter correlação com a magnitude do declínio do cálcio fosfatemia nesses RN são frequentes e de origem multifato‑ (Ca2+), podendo inclusive existir casos assintomáticos. rial, incluindo acidose, insuficiência renal, resposta exagera‑ A excitabilidade neuromuscular (tetania) é uma caracterís‑ da à elevação de calcitonina e diminuição dos níveis de PTH. tica da hipocalcemia. Os bebês parecem irritados e hiperati‑
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vos, exibem contraturas musculares e podem apresentar convulsões clônicas focais. O reflexo de Moro é exacerbado, e laringoespasmo com estridor inspiratório, vômitos por pilo‑ roespasmo, apneia, taquicardia e taquipneia também são rela‑ tados. Diagnóstico laboratorial5 A dosagem laboratorial do cálcio total e ionizado deve ser rea‑ lizada para confirmação diagnóstica. Alguns autores conside‑ ram importante a dosagem do magnésio, pois a hipocalcemia está frequentemente associada à hipomagnesemia. Existem três frações definíveis de cálcio no soro: cálcio io‑ nizado (aproximadamente 50% do cálcio sérico total), cálcio ligado a proteínas séricas, principalmente à albumina (em tor‑ no de 40%), e cálcio em complexos com ânions séricos como fosfatos, citratos e sulfatos (10% em média). O cálcio ionizado é a única forma biologicamente disponível de cálcio. A avaliação do estado de cálcio por meio do cálcio ionizado é preferível especialmente na primeira semana de vida. Monitoração do cálcio
Esquema sugerido para monitoração dos níveis de cálcio em RN, particularmente os de risco para hipocalcemia, como os RN de mães diabéticas, RN de muito baixo peso e aqueles com depressão perinatal: • RN com peso de nascimento ≤ 1.000 g: 12, 24 e 48 horas de vida; • RN com peso de nascimento > 1.000 g: 24 e 48 horas de vida; • RN prematuro com peso de nascimento > 1.500 g e a termo sadios: só quando houver sinais clínicos suspeitos.
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Os RN sintomáticos, porém estáveis, sem convulsões, teta‑ nia ou apneia, têm indicação de gluconato de cálcio 10%, 5 a 8 mL/kg/dia, EV ou VO, se tolerarem a dieta. Após a normali‑ zação dos níveis de cálcio, recomenda-se baixar a oferta para 2,5 a 4 mL/kg/dia e posteriormente para 1,25 a 2 mL/kg/dia e, então, suspender. Hipercalcemia1 Hipercalcemia neonatal é definida como concentração de cál‑ cio sérico total > 11 mg/dL e cálcio iônico (Ca2+) > 5 mg/dL. Pode ser assintomática, mas hipercalcemia grave (> 14 mg/ dL) pode ser dramática e ameaçadora à vida, necessitando de imediata intervenção. As manifestações clínicas podem in‑ cluir recusa alimentar, vômitos, obstipação, poliúria, hiper‑ tensão, taquipneia, hipotonia, letargia e convulsões. Hipercalcemia persistente pode produzir calcificações em rins, pele, tecido subcutâneo, cérebro, artérias, miocárdio, pulmões e mucosa gástrica. Nefrocalcinose, nefrolitíase e alte‑ rações da mineralização óssea são complicações reconhecidas. Normalmente, dois mecanismos fisiológicos previnem a hipercalcemia: via inibição da secreção do PTH e da síntese de 1,25 (OH)2 D3, os quais reduzem a absorção de cálcio do intesti‑ no, mobilização dos ossos e reabsorção dos rins.
Etiologia São causas de hipercalcemia neonatal: • reabsorção óssea elevada: –– hiperparatireoidismo; –– hipertireoidismo; –– hipervitaminose A; –– depleção de fosfato; Outros exames como PTH, calcitonina, metabólicos da vita‑ –– hipofosfatasia; mina D e excreção urinária de cálcio devem ser solicitados • aumento da absorção intestinal de cálcio: hipervitaminose D quando a hipocalcemia neonatal não responde prontamente à por ingesta excessiva de vitamina D pela mãe, passando ao RN; terapia com cálcio. • redução da depuração renal do cálcio: –– por uso prolongado de diuréticos tiazídicos; Tratamento –– hipercalcemia hipercalciúrica familiar. O tratamento com cálcio é geralmente adequado para a maio‑ ria dos casos. Em alguns pacientes, indica-se terapia concomi‑ Tratamento tante com magnésio. A hipocalcemia é frequente em RN pré‑ A meta principal do tratamento da hipercalcemia é o aumento -termo, nas primeiras 72 horas de vida, sendo usualmente da excreção urinária do cálcio, maximizando a taxa de filtra‑ assintomáticos. A hipocalcemia tardia pode ser assintomática ção glomerular e a excreção urinária de sódio. O tratamento é ou manifestar-se inicialmente como convulsão. Recomenda‑ reservado para aqueles RN sintomáticos ou com cálcio sérico > -se que o tratamento só deva ser instituído se o cálcio sérico for 14 mg/dL: igual a 7 mg/dL ou cálcio ionizado < 4 mg/dL. • reidratação com soro fisiológico 0,9%, 10 a 20 mL/kg, em 15 a Para tratamento de emergência, com convulsões, tetania 30 minutos, e manutenção com soro glicosado 5%, cloreto de ou apneia, administra-se gluconato de cálcio 10%, 1 a 2 mL/ sódio e potássio, os quais promovem a excreção urinária do kg/dose, EV, em 5 a 10 minutos, podendo ser repetido 3 a 4 cálcio; vezes em 24 horas. Nesse caso, o cálcio sérico inicial deveria • furosemida 1 mg/kg a cada 6 a 8 horas, EV, para inibir a reab‑ estar 5 mg/dL. É essencial a monitoração cuidadosa durante a sorção tubular renal de cálcio. Monitorar potássio e magnésio; infusão EV de cálcio, a qual deve ser descontinuada em caso • fosfato inorgânico: utilizado em pacientes hipofosfatêmicos de bradicardia ou arritmia. Observar o local de infusão, pois por inibir a reabsorção óssea e promover o depósito de mine‑ extravasamentos da solução de cálcio podem causar necrose e rais no osso. A dose inicial é de 3 a 5 mg/dL de fosfato VO ou calcificação subcutânea. Após o controle dos sintomas, inicia‑ parenteral; -se manutenção com gluconato de cálcio 10%, 5 a 8 mL/kg/ • glicocorticoides: utilizados em casos resistentes e graves, su‑ dia, EV, com o objetivo de manter o cálcio sérico > 7 mg/dL. primindo a absorção intestinal de cálcio e aumentando a sua
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excreção renal. A prednisona na dose de 2 mg/kg/dia pode ser utilizada.
Como pilares de tratamento da hipercalcemia neonatal, a res‑ trição de cálcio da dieta, eliminação de suplementos com vita‑ mina D e redução da exposição à luz solar são medidas adjuvantes eficazes. Distúrbios do metabolismo do magnésio A homeostasia do magnésio é semelhante à do cálcio, tanto no período intrauterino como no neonatal. Após o nascimento, os níveis séricos de magnésio caem, principalmente nas primei‑ ras 24 horas de vida, e a partir daí, ocorre estabilização grada‑ tiva graças aos fatores envolvidos na manutenção do magnésio sérico. Hipomagnesemia Definição Considera-se hipomagnesemia quando concentração sérica do magnésio < 1,6 mg/dL. Etiologia Pode ocorrer por diminuição do suprimento ou oferta inade‑ quada de magnésio, por aumento das perdas ou por doenças associadas a alterações do metabolismo do magnésio: • prematuridade: o RN pré-termo perde a época de maior trans‑ ferência do magnésio para a circulação fetal, que ocorre no terceiro trimestre da gestação; • retardo de crescimento intrauterino: a transferência placentá‑ ria de magnésio é ineficiente; • RN de mãe diabética: a hipomagnesemia é secundária à hipo‑ magnesemia materna e fetal associada a menor resposta ao PTH; • oferta inadequada de magnésio por VO ou parenteral; • uso de diuréticos, os quais aumentam a excreção urinária de magnésio; • síndrome de má absorção intestinal: absorção intestinal de magnésio é prejudicada; • pós-exsanguinotransfusão: o sangue citratado forma comple‑ xos com o magnésio, reduzindo o magnésio sérico total; • hipoparatireoidismo neonatal: hipomagnesemia geralmente está associada à hipocalcemia. Quadro clínico A maioria dos RN é assintomática. Os sinais clínicos são ines‑ pecíficos, mas podem ocorrer tremores, excitabilidade neuro‑ muscular, irritabilidade, hipertonia e convulsões. A hipomag‑ nesemia geralmente é vista com hipocalcemia no RN. Diagnóstico laboratorial A dosagem sérica de magnésio deve sempre ser realizada na suspeita de hipomagnesemia. Tratamento5 Nos casos de hipomagnesemia grave (magnésio < 1,6 mg/dL), o tratamento é realizado com sulfato de magnésio EV,
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lentamente, monitorando a frequência cardíaca, na dose de 50 a 100 mg/kg de sulfato de magnésio (sulfato de magnésio 50%, 0,1 a 0,2 mL/kg). A dose pode ser repetida após 12 horas e o nível sérico de magnésio deve ser medido antes de cada dose. Hipermagnesemia Definição Considera-se hipermagnesemia quando os níveis séricos de magnésio estiverem acima de 2,8 mg/dL. Em geral, a hipermag nesemia ocorre quando a oferta excede a capacidade de excre‑ ção renal.8 Etiologia As causas mais frequentes são: • terapia com sulfato de magnésio para pré-eclâmpsia materna ou parto prematuro; • administração de antiácidos contendo magnésio ao RN; • excesso de magnésio na nutrição parenteral. Quadro clínico Os sintomas de hipermagnesemia grave são incomuns em neonatos, com níveis séricos de magnésio < 6 mg/dL. Os si‑ nais clínicos mais comuns incluem apneia, letargia, hipoto‑ nia, hiporreflexia, sucção débil, diminuição da motilidade in‑ testinal, retardo na eliminação do mecônio e depressão respiratória. Tratamento Em muitos casos, a única intervenção necessária é a remoção da fonte de magnésio exógena, mas em casos de sintomas in‑ tensos, pode-se usar gluconato de cálcio 10%, EV, como anta‑ gonista. Para neonatos hipermagnesêmicos, a alimentação deve ser iniciada somente depois que a sucção e a motilidade intestinal estiverem restabelecidas. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar, já ao nascimento, quais recém-nascidos são de risco para desenvolver hipoglicemia. • Lembrar que o diagnóstico de hipoglicemia é considerado uma emergência neonatal, pois pode levar a morbidade em curto e médio prazos. • Saber qual procedimento médico deve ser realizado quando o diagnóstico for suspeito ou confirmado. • Saber quais exames solicitar. • Lembrar dos diagnósticos diferenciais se houver hipoglicemia persistente e qual atitude médica deve ser tomada. • Saber quando solicitar apoio de um endocrinologista pediátrico para casos específicos. • Reconhecer prontamente os limiares para hiperglicemia e quais necessitam intervenção terapêutica. • Lembrar que o quadro clínico de hiperglicemia é geralmente inespecífico, por isso é fundamental a observação de perdas acentuadas de peso e diurese elevadas em pré-termo.
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Distúrbios metabólicos frequentes do recém‑nascido •
• Saber quais medicações utilizadas em recém-nascidos podem causar hiperglicemia, bem como outros distúrbios metabólicos. • Identificar hiperglicemia e alterações do cálcio naqueles pré-termo extremos e de muito baixo peso quando iniciam NPT pelo risco maior de distúrbios metabólicos. • Ter desenvolvido habilidades para corrigir os principais distúrbios metabólicos do recém-nascido.
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CAPÍTULO 6
INFECÇÕES CONGÊNITAS Hans Greve Magnólia Magalhães de Carvalho
Introdução As infecções adquiridas intraútero ou durante o trabalho de parto são causas de significativa morbidade e mortalidade neo‑ natal. Sob o acrônimo TORCH, foram agrupadas as cinco infec‑ ções congênitas mais prevalentes: T = toxoplasmose, O = outras (sífilis), R = rubéola, C = citomegalovírus (CMV) e H = herpes simples vírus (HSV). Neste capítulo, serão abordadas as mais prevalentes. CMV será abordada no capítulo 14. O diagnóstico precoce das infecções congênitas e adquiri‑ das no período perinatal é de fundamental importância para o início da terapia adequada e determinação do prognóstico. No Brasil, o Ministério da Saúde recomenda o rastreamento de ro‑ tina para sífilis, toxoplasmose e HIV desde a primeira consulta pré-natal, enquanto o rastreamento para rubéola apenas se a gestante apresentar sinais sugestivos da doença.1 A hepatite B deve ser rastreada próximo à 30ª semana de gestação e o ras‑ treamento de citomegalovirose e hepatite C não é recomenda‑ do. A Tabela 1 apresenta as principais manifestações clínicas das infecções congênitas mais prevalentes. Toxoplasmose congênita O Toxoplasma gondii é um protozoário intracelular obrigatório que afeta cerca de 1/3 da população mundial, mais comum em países tropicais. A infecção aguda em imunocompetentes é assintomática, mas pode atingir o feto quando a mulher ad‑ quire na gravidez. Cerca de 40% das gestantes infectadas transmitirão a doença para o feto se não forem tratadas ade‑ quadamente, e o risco de transmissão aumenta com o avanço da gravidez. O grau de comprometimento do concepto é maior no início da gestação. Risco de transmissão: • primeiro trimestre: 15% – apresenta repercussões graves no concepto, óbito fetal ou neonatal, sequelas importantes; • segundo trimestre: 25% – o recém-nascido apresentará mani‑ festações subclínicas; • terceiro trimestre: 65% – com manifestações subclínicas e mais raramente um quadro grave de parasitemia.
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Tabela 1 Principais manifestações clínicas das infecções congênitas mais prevalentes Calcificações intracranianas difusas Hidrocefalia Toxoplasmose
Coriorretinite Liquor com inexplicável pleiocitose ou proteína elevada Hepatoesplenomegalia Rash maculopapular (palmas das mãos e plantas dos pés)
Sífilis
Rinite persistente Osteocondrite e periostite Pseudoparalisia de Parrot Catarata
Rubéola
Cardiopatia congênita (PCA ou estenose pulmonar) Perda auditiva Retardo de crescimento intrauterino Calcificações periventriculares Microcefalia
Citomegalovírus
Trombocitopenia Hepatoesplenomegalia Petéquias Vesículas ou cicatrizes mucocutâneas Liquor com pleiocitose
Herpes simples vírus
Trombocitopenia Transaminases elevadas Conjuntivite ou ceratoconjuntivite
Fonte: adaptada de Maldonado et al., 2011.
O risco aproxima-se de 100% se a infecção da genitora ocorrer no último mês da gestação. A transmissão da toxoplasmose ocorre com a ingestão de cistos do parasita, presentes na carne animal, ou de oocistos eliminados nas fezes de gatos, que podem estar presentes em
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Infecções congênitas •
alimentos, água ou outros materiais. Condições socioeconô‑ micas, hábitos alimentares e culturais determinam as chances de exposição. No Brasil, as taxas de soroprevalência gestacional situam‑ -se entre 41,9 e 92%, estando entre os países de maior risco de toxoplasmose congênita.2
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No recém-nascido, a detecção de IgG não é adequada por causa da passagem transplacentária da mãe para o feto. A de‑ tecção de IgM denota a produção do feto infectado, mas pode não estar presente ao nascimento, sendo mais recomendado o ELISA IgM por “captura” ou o ISAGA. O diagnóstico por imagem é importante para detectar en‑ volvimento do sistema nervoso central (SNC), por meio de ra‑ diografia de crânio, ultrassonografia transfontanela e tomo‑ grafia computadorizada (TC) de crânio. Outros exames também são fundamentais para o diagnóstico e determinação do tratamento, como o estudo anatomopatológico da placenta, que pode identificar proces‑ so inflamatório característico, a fundoscopia que identificará a coriorretinite e se está em atividade ou não, a audiometria para detecção de lesões auditivas e o estudo do liquor para evidências de processo inflamatório do SNC, com aumento da celularidade e hiperproteinorraquia (a toxoplasmose é uma das doenças que causa os maiores valores de proteína no liquor).3
Quadro clínico Cerca de 70% das crianças acometidas são assintomáticas ao nascimento, no entanto, têm elevadas frequências de prema‑ turidade, retardo do crescimento intrauterino, anormalidades liquóricas e cicatrizes de coriorretinite. Aproximadamente 10% têm manifestação grave nos primeiros dias de vida. Po‑ dem apresentar doença multissistêmica ou isoladamente, afe‑ tando o sistema nervoso e/ou a forma ocular. O quadro pode caracterizar-se por coriorretinite, convul‑ são, micro ou hidrocefalia, calcificações cranianas, icterícia, anemia, hiperproteinorraquia, febre, hipotermia, hepatoes‑ plenomegalia, icterícia, vômitos, diarreia, linfoadenome galia, pneumonite, apneia, taquipneia, diátese hemorrágica, rash cutâneo, catarata, glaucoma e microftalmia. A tríade Tratamento clássica com hidrocefalia, calcificações cerebrais e coriorre‑ As drogas mais usadas para o tratamento da toxoplasmose são tinite não é comum. A forma subclínica é a mais comum, efetivas contra os trofozoítos circulantes, mas não atingem os com história materna, sorologia positiva no RN, alterações cistos que permanecem nos tecidos. Portanto, eles podem leves do liquor e, posteriormente, surgimento de sequelas eclodir em qualquer situação de imunodepressão, como oculares e neurológicas. doenças, adolescência ou a própria gestação. As sequelas neurológicas mais encontradas são hidrocefa‑ As medicações mais usadas são espiramicina, sulfadiazina lia, microcefalia, retardo psicomotor, convulsões, hipertonia e pirimetamina. A espiramicina pode reduzir a transmissão da muscular, hiper-reflexia tendinosa e paralisias. Quanto às mãe para o feto em até 60%, mas quando a infecção fetal esti‑ complicações oftalmológicas, podem-se observar microftal‑ ver comprovada, é indicado o uso de sulfadiazina e pirimeta‑ mia, sinéquia de globo ocular, estrabismo, nistagmo e catarata. mina, que reduzem a transmissão para o feto e a possibilidade A ocorrência de sequelas tardias é frequente em todas as de comprometimento grave do recém-nascido. formas clínicas da toxoplasmose não tratada, podendo ser O tratamento do recém-nascido é feito com sulfadiazina e identificada até a segunda década de vida em aproximada‑ pirimetamina durante todo o primeiro ano de vida, na tenta‑ mente 85% dos recém-nascidos com infecção assintomática. tiva de impedir que as formas trofozoíticas ainda circulantes Quando o quadro clínico já aparece ao nascimento, as se encistem. sequelas são mais frequentes e graves, com retardo mental, As doses recomendadas são: convulsões, espasticidade ou paralisia, dificuldade visual e • sulfadiazina: 100 mg/kg/dia, por via oral (VO), a cada 12 horas; auditiva. • pirimetamina: 2 mg/kg/dia, VO, a cada 12 horas, por 2 dias, e Diagnóstico posteriormente 1 mg/kg/dia, VO, em dose única diária; O diagnóstico de toxoplasmose aguda ou congênita pode ser • ácido folínico: 5 a 10 mg, 3 vezes/semana. Combate a ação antifólica da pirimetamina. Manter por 1 semana após a reti‑ comprovado por meio de testes sorológicos, e o padrão-ouro é o teste do corante (dye test), mas realizado em poucos rada da pirimetamina. laboratórios. O acompanhamento sorológico rigoroso da gestante susce‑ A sulfadiazina e a pirimetamina associadas ao ácido folínico tível parece ser a medida mais importante para a prevenção e a são usadas por 6 meses, com monitoração hematológica detecção da infecção quando já ocorreu, favorecendo a semanal e depois mensal. No segundo período (últimos 6 meses), a sulfadiazina deve redução das chances de sequelas graves na criança. Para o diagnóstico da toxoplasmose congênita, são reco‑ ser usada diariamente e a pirimetamina em dias alternados mendados os seguintes testes no binômio mãe e filho: teste de (3 vezes/semana). Se ocorrer neutropenia, aumenta-se o áci‑ aglutinação (Immunosorbent Agglutination Assay – ISAGA), do folínico para 10 mg diariamente; em situações graves, com ELISA IgM por captura, I.F.I. ou ELISA IgG seriada do binô‑ leucócitos abaixo de 500/mm3, interrompe-se a pirimetamina. Quando houver comprometimento do SNC (proteína > mio, IgA sérica, teste de avidez IgG, reação em cadeia da poli‑ merase (PCR), Sabin Feldman e liquor (citologia, bioquímica, 1 g/dL) e/ou ocular, associa-se ao tratamento a prednisona – 0,5 mg/kg/dose, a cada 12 horas, VO, por 4 semanas. avaliação imunológica).
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Seguimento No acompanhamento das crianças com suspeita de toxoplas‑ mose congênita, os títulos de IgG devem ser solicitados a cada 2 ou 3 meses. As crianças infectadas apresentarão títulos de IgG com 1 ano de vida ou aumentarão os títulos durante esse período, confirmando o diagnóstico. Avaliações oftalmológi‑ cas devem ser repetidas a cada 3 meses, como também após o término do tratamento, mantendo avaliações anuais no perío‑ do escolar. A avaliação auditiva deve sempre ser realizada.
Sífilis congênita A sífilis congênita é adquirida por meio da disseminação do Treponema pallidum da mãe para o feto, principalmente por via transplacentária. O leite materno não transmite sífilis. O treponema provoca um processo inflamatório, compro‑ metendo todos os órgãos do recém-nascido, com lesões visce‑ rais, ósseas, pele e mucosas, e sistema nervoso central.
Prevenção O cuidado com as gestantes suscetíveis (soronegativas) é muito importante na redução da infecção congênita.4 Recomenda-se: • não comer carne crua ou mal passada; • ingerir frutas, legumes e verduras bem lavados e descascados; • evitar contato com fezes de gato; • evitar manipular areia e terra ou utilizar luvas; • lavar as mãos após manipular carne ou vegetais crus; • evitar insetos na cozinha; • consumir água filtrada ou fervida e leite pasteurizado.
Manifestações clínicas Sífilis congênita precoce Ocorre em menores de 2 anos, resultante de infecção ativa. Além da prematuridade e do baixo peso ao nascimento, as principais manifestações clínicas são hepatomegalia com ou sem esplenomegalia, lesões cutâneas (pênfigo palmoplantar, condiloma plano), periostite, osteíte ou osteocondrite, pseu‑ doparalisia dos membros (pseudoparalisia de Parrot), sofri‑ mento respiratório com ou sem pneumonia, rinite serossan‑ guinolenta, icterícia, anemia e linfadenopatia generalizada
8,0
1600
7,0
1400
6,0
1200
5,0
1000
4,0
800
3,0
600
2,0
400
1,0
200
0,0
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
1000
4,5
900
4,0
800
3,5
700
3,0
600
2,5
500
2,0
400
1,5
300
1,0
200
0,5
100
0,0
2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Figura 3 Casos e coeficientes de detecção de sífilis congênita, por ano diagnóstico, na Bahia.
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12,0 10,0 8,0 6,0 4,0 2,0 0,0
0
Figura 1 Casos e coeficientes de detecção de sífilis em gestante, por ano diagnóstico, na Bahia. 5,0
Coeficiente de detecção por 1.000 NV
Prognóstico Embora a maioria das crianças infectadas seja assintomática ao nascer, se não tratadas adequadamente desenvolvem se‑ quelas na infância ou na vida adulta. Os déficits de aprendizagem são mais descritos em crian‑ ças com microcefalia, e não na presença de calcificações. A coriorretinite resolve-se com tratamento e raramente recidiva.
Epidemiologia Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que das gestações em mulheres com sífilis em atividade, 25% resultem em óbito fetal e 25% em recém-nascidos de baixo peso ou com infecção neonatal grave. A taxa de transmissão de gestantes não tratadas para o feto é de 10% e pode ocorrer em qualquer período da gestação. No período de 1998 a 2011, houve 1.780 óbitos por sífilis congênita.
0
2007
2008
2009
10 a 14 anos
2010
2011
15 a 19 anos
2012
2013
20 a 49 anos
Figura 2 Coeficientes de detecção de sífilis em gestante por faixa etária e ano diagnóstico, na Bahia. 25 20 15 10 5 0
2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
Figura 4 Mortalidade por sífilis congênita. Casos e coeficientes de incidência por 100.000 nascidos vivos, na Bahia.
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Infecções congênitas •
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Tabela 2 Casos notificados de sífilis congênita (taxa de incidência por 1.000 nascidos vivos), segundo UF, por ano de diagnóstico. Brasil, 1998 a 2012 Região
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
Norte
0,3
0,4
0,6
0,9
0,8
1,7
1,2
1,6
2,0
2,4
2,3
2,2
2,1
2,6
1,3
Nordeste
0,9
0,7
0,9
1,2
1,2
1,6
1,8
2,2
2,5
2,3
2,2
2,4
2,8
3,8
2,0
Centro ‑Oeste
1,2
2,0
1,4
1,4
1,6
1,3
1,5
1,7
1,7
1,2
1,4
1,4
1,6
1,8
0,9
Sudeste
1,1
1,3
2,1
2,0
2,0
2,2
2,2
2,2
2,0
2,0
2,1
2,2
2,7
3,6
1,5
Sul
0,5
0,6
0,7
0,8
0,8
0,8
0,7
0,8
0,9
1,1
1,1
1,5
1,8
2,5
1,3
Brasil
2840
3198
4408
4439
4516
5324
5201
5832
5920
5698
5792
6103
6964
9374
4432
Fonte: MS/SVS/Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais. Casos notificados no SINAN até 20/06/2012. Para essa análise, foram consideradas as gestantes que realizaram pré-natal. Para essa análise, foram consideradas as gestantes diagnosticadas com sífilis durante a gravidez, independentemente da realização do pré-natal. Dados preliminares para os últimos 5 anos.
(principalmente epitroclear). Também podem ocorrer petéquias, púrpura, fissura peribucal, síndrome nefrótica, hi‑ dropsia, edema, convulsão e meningoencefalite (hiperprotei‑ norraquia, pleiocitose, VDRL positivo no LCR), hidrocefalia, paralisia de pares cranianos, coriorretinite (lesão em “sal e pi‑ menta”), glaucoma e catarata. As alterações laboratoriais mais frequentes são anemia, trom‑ bocitopenia, leucocitose (podem ocorrer reação leucemoide, lin‑ focitose e monocitose) ou leucopenia e hiperbilirrubinemia. Sífilis congênita tardia Ocorre após o segundo ano de vida, com malformações ou ci‑ catrizes da doença precoce. As principais manifestações são: tíbia em “lâmina de sabre”, articulações de Clutton, fronte “olímpica”, nariz “em sela”, dentes incisivos medianos superio‑ res deformados (dentes de Hutchinson), molares em “amora”, rágades periorais, mandíbula curta, arco palatino elevado, ce‑ ratite intersticial, surdez e dificuldade no aprendizado. Diagnóstico laboratorial O padrão-ouro é a identificação do agente etiológico, mas como a técnica é complicada, os testes sorológicos têm impor‑ tância fundamental. Pesquisa direta Pesquisa do Treponema pallidum, em campo escuro, em mate‑ rial coletado de lesão cutâneo-mucosa e de mucosa. Testes não treponêmicos (VDRL, RPR ou TRUST) São muito sensíveis e pouco específicos, indicados para diag‑ nóstico inicial e seguimento terapêutico, por serem passíveis de titulação. Devem ser realizados no sangue do recém-nasci‑ do, e não no sangue do cordão umbilical. Recém-nascidos de mães com sífilis, mesmo os não infectados, podem apresentar anticorpos maternos transferidos através da placenta. É consi‑ derado diagnóstico o teste não treponêmico reagente na amostra do recém-nascido que apresente um título 4 vezes maior do que o título na amostra materna (confirmado em
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uma segunda coleta na criança), mas a ausência dessa dife‑ rença de títulos não exclui a sífilis congênita. Recém-nascidos com testes não treponêmicos (VDRL, RPR ou TRUST) não reagentes, sem outras evidências de sífi‑ lis congênita, mas com suspeita epidemiológica, devem repe‑ tir os testes no primeiro mês de vida, em razão da possibilida‑ de de soroconversão tardia. Na dúvida ou impossibilidade de seguimento, devem ser adequadamente tratados. Testes treponêmicos São testes qualitativos para detecção de anticorpos antitrepo‑ nêmicos, altamente específicos e pouco sensíveis, úteis para confirmação do diagnóstico. Em crianças maiores de 18 meses, um resultado reagente de teste treponêmico confirma a infec‑ ção, pois os anticorpos maternos transferidos passivamente já terão desaparecido da circulação sanguínea da criança. No recém-nascido, o teste treponêmico IgM confirma o diagnóstico, mas tem baixa sensibilidade (FTA-Abs tem 64% sensibilidade). A investigação complementar deve incluir hemograma, função hepática, eletrólitos, punção liquórica (células, proteí‑ nas, testes não treponêmicos), radiografia de ossos longos, avaliação oftalmológica, audiológica e neurológica. Diagnóstico Os critérios diagnósticos para a sífilis congênita seguem os se‑ guintes parâmetros: A. Sífilis congênita confirmada: quando isolado o T. pallidum em material de lesão. B. Sífilis congênita provável: B.1. Recém-nascido, mesmo sem evidência clínica e laborato‑ rial, cuja mãe é soropositiva para sífilis (teste não treponê‑ mico positivo em qualquer titulação) e inadequadamente tratada: • não recebeu tratamento para sífilis durante a gestação; • recebeu tratamento incompleto com penicilina du‑ rante a gestação; • recebeu tratamento para sífilis com penicilina nos úl‑ timos 30 dias antes do parto;
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• foi tratada com outras drogas que não a penicilina, durante a gestação; • foi adequadamente tratada para sífilis, mas o parceiro não foi tratado ou foi tratado de forma inadequada ou a informação não está disponível; • foi adequadamente tratada para sífilis durante a ges‑ tação, mas não apresentou resposta sorológica docu‑ mentada (queda no título do teste não treponêmico – VDRL/RPR); • foi adequadamente tratada antes da gestação, mas não teve acompanhamento sorológico suficiente para descartar a presença de infecção ativa durante a ges‑ tação (queda de 4 vezes nos títulos do VDRL/RPR para mulheres portadoras de sífilis primária e secun‑ dária e títulos estáveis ou decrescentes, inferiores ou iguais a 1:4, para as outras fases da sífilis). B.2. Recém-nascido com teste não treponêmico positivo e uma ou mais alterações: • qualquer evidência clínica de sífilis congênita; • qualquer manifestação radiológica de sífilis congênita; • VDRL positivo no liquor; • liquor com aumento de celularidade ou de proteínas, sem outra causa aparente; • título do teste não treponêmico (VDRL/RPR) no re‑ cém-nascido, 4 vezes superior ao materno; • sorologia para sífilis ainda positiva após o 6º mês de vida ou VDRL que se mantém ou aumenta nos três primeiros meses de vida; • testes treponêmicos para detecção de IgM (FTA-Abs IgM 19S ou ELISA IgM ou Imunoblot IgM) positivos no soro do recém-nascido; • PCR para o antígeno 47 kDa positivo em soro/sangue e/ou LCR do recém-nascido. C. Neurossífilis: a realização do exame liquórico é obrigatória diante de qualquer caso suspeito de sífilis congênita. Os se‑ guintes critérios têm sido adotados, no período neonatal, para o diagnóstico do acometimento do sistema nervoso central: • neurossífilis confirmada: VDRL do liquor é positivo; • neurossífilis possível: existem alterações na celularidade e/ou no perfil bioquímico, acompanhadas de VDRL sérico positivo, independentemente do VDRL do liquor, ou não foi possível a realização de exame liquórico em qualquer recém-nascido com diagnóstico de sífilis congênita confir‑ mada ou provável.5,8 Tratamento Tratamento materno A droga de escolha é a penicilina benzatina, 2.400.000 UI, IM, semanalmente, por 3 semanas seguidas, com tratamento também do parceiro. Tratamento neonatal A penicilina cristalina e a procaína têm sido as drogas de esco‑ lha; a penicilina benzatina tem pouca penetração liquórica. É preconizada a seguinte conduta para a sífilis congênita confirmada ou provável.5,8
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Nos recém-nascidos de mães com sífilis inadequadamente tratada
• Se o recém-nascido apresentar VDRL positivo (qualquer titu‑ lação) e/ou existirem alterações clínicas e/ou radiológicas e/ ou hematológicas, mas sem comprometimento neurológico, tratar com penicilina cristalina, por via endovenosa (EV) por 10 dias, na dose de 50.000 UI/kg/dose a cada 12 horas na pri‑ meira semana de vida e a cada 8 horas após a primeira sema‑ na ou com penicilina procaína 50.000 UI/kg/dose a cada 24 horas, por via IM por 10 dias; • se houver alteração liquórica ou se não for possível colher o LCR, empregar a penicilina cristalina EV por 10 dias, na dose de 50.000UI/kg/dose a cada 12 horas na primeira semana de vida e a cada 8 horas após a primeira semana. A penicilina procaína não é indicada na possibilidade de neurossífilis; • se o recém-nascido for VDRL negativo, sem alterações clíni‑ cas, radiológicas, hematológicas ou liquóricas, aplicar penici‑ lina benzatina na dose única de 50.000 UI/kg IM. O acompa‑ nhamento é obrigatório, incluindo VDRL sérico seriado. Sendo impossível garantir o acompanhamento, tratar com penicilina cristalina ou procaína nas doses recomendadas por 10 dias. Nos recém-nascidos de mães com sífilis adequadamente tratada
• Se o recém-nascido apresentar VDRL positivo, com título supe‑ rior ao materno, procurar alterações clínicas, radiológicas, he‑ matológicas e/ou liquóricas. Se não houver alterações no LCR, tratar com penicilina cristalina EV por 10 dias, na dose de 50.000 UI/kg/dose a cada 12 horas na primeira semana de vida e a cada 8 horas após a primeira semana, ou com penicilina pro‑ caína 50.000 UI/kg/dose a cada 24 horas IM, por 10 dias; • se o liquor estiver alterado, usar apenas a penicilina cristalina nas doses anteriores, EV, por 10 dias. Se o recém-nascido for assintomático e apresentar VDRL com titulação igual ou infe‑ rior à materna ou VDRL negativo, pode-se fazer apenas o se‑ guimento ambulatorial; • diante da impossibilidade de garantir o seguimento ambulato‑ rial, aplicar a penicilina benzatina na dose única de 50.000 UI/ kg IM. A opção de manter o tratamento por 10 dias tem se mos‑ trado satisfatória. Em caso da interrupção do esquema terapêu‑ tico por período superior a 24 horas, há necessidade de reiniciar o esquema. Não há necessidade de isolar os recém-nascidos portadores de sífilis congênita. Passadas as primeiras 24 horas após o início da antibioticoterapia, o risco de transmissão da doença é mí‑ nimo. A negativação do VDRL ocorre após 12 a 15 meses do tratamento. Nenhum recém-nascido deve ter alta hospitalar até que a sorologia materna seja conhecida. A sífilis congênita tornou-se uma doença de notificação compulsória.5,7,8 Seguimento Por causa do risco de reativação da doença em 14% dos casos, recomenda-se o seguimento clínico ambulatorial e laborato‑ rial da sífilis congênita.7
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Infecções congênitas •
5. Avaliação mensal até o 6º mês de vida e bimestral até 12º mês. 6. VDRL com 1, 3, 6, 12 e 18 meses de idade, interrompendo o se‑
guimento com dois exames negativos não consecutivos. 7. Diante de elevação do título sorológico ou não negativação até
1247
Quadro clínico Na infecção congênita da rubéola, predominam manifesta‑ ções de infecção crônica, como morte fetal, parto prematuro e defeitos congênitos clássicos da SRC (perda auditiva, catarata e cardiopatia congênita). Outros achados, como meningoen‑ cefalite, pneumonia intersticial, lesões osteolíticas, retinopa‑ tia, glaucoma, hepatomegalia, icterícia, petéquias, adenopatia, anemia hemolítica e trombocitopenia, podem ser encontra‑ dos no período neonatal. As manifestações clínicas da infecção congênita da rubéola dependem do período em que ocorreu a infecção materna. A incidência de defeitos anatômicos é maior nos recém-nasci‑ dos de mães infectadas no primeiro trimestre da gestação. Crescimento intrauterino retardado pode ser a única sequela quando a infecção materna ocorrer no terceiro trimestre da gestação.
os 18 meses de idade, reinvestigar a criança e proceder ao tratamento. 8. Realizar teste treponêmico para sífilis após 18 meses de idade. 9. Seguimento oftalmológico, neurológico e audiológico semes‑ tralmente, por 2 anos. 10. Em caso de neurossífilis, reavaliação liquórica a cada 6 meses, até a normalização. 11. O teste da orelhinha normal não afasta a necessidade de exa‑ mes específicos para avaliar a surdez. 12. Nos casos de crianças tratadas de forma inadequada, deve-se proceder à reavaliação clinicolaboratorial e reiniciar o trata‑ mento da criança. 13. Após os 18 meses, os testes treponêmicos devem ser não rea‑ Manifestações precoces gentes nos casos de tratamento no período neonatal, uma vez que não haveria tempo para formação de anticorpos específicos • Perda auditiva: aproximadamente 2/3 dos neonatos apresen‑ pela criança. Em casos tratados após os 12 meses de vida, anti‑ tam algum grau de perda auditiva bilateral; corpos detectados nos testes treponêmicos podem representar • cardiopatias congênitas: cerca de 50% apresentam algum cicatriz imunológica e o controle de cura será feito pelo VDRL. tipo de defeito cardíaco estrutural, sendo mais comuns a per‑ sistência do canal arterial e a estenose de ramos da artéria Prevenção pulmonar; A melhor prevenção da sífilis congênita é feita pelo tratamento • catarata: ocorre em 25% dos casos; adequado da gestante com sífilis e de seu parceiro, o que im‑ • microcefalia: ocorre em 27% dos casos. plica necessidade de garantir o acesso ao cuidado pré-natal. Manifestações tardias • Perda auditiva: a mais comum, ocorrendo em 80% dos pa‑ Rubéola congênita cientes. Usualmente é neurossensorial, bilateral, e a severida‑ A infecção intrauterina causada pelo vírus da rubéola pode de varia de moderada a grave, com progressão ao longo do apresentar-se de duas formas: tempo; • infecção congênita da rubéola: engloba todos os eventos asso‑ • distúrbios endócrinos: cerca de 1% dos casos desenvolve dia‑ ciados à infecção intrauterina pelo vírus da rubéola (abortos, bete melito na infância e adolescência e 5% apresentam pato‑ natimortos, combinação de defeitos e também a infecção as‑ logias da tireoide; sintomática); • panencefalite: ocorre a partir da 2ª década de vida, sendo pro‑ • síndrome da rubéola congênita (SRC): refere-se à variedade gressiva e fatal.10 de defeitos presentes em neonatos filhos de mães que apre‑ sentaram infecção pelo vírus da rubéola durante a gestação Diagnóstico (deficiência auditiva, catarata, defeitos cardíacos, etc.). A infecção congênita da rubéola deve ser suspeitada em: • todos os recém-nascidos de mãe com rubéola documentada Agente etiológico ou mesmo suspeitada em qualquer tempo da gestação. O uso Vírus RNA do gênero Rubivirus e família Togaviridae. de imunoglobulina para tratamento da rubéola materna não garante proteção contra a infecção do feto; Epidemiologia • todos os recém-nascidos com crescimento intrauterino retar‑ A SRC é rara em países desenvolvidos, em razão dos progra‑ dado ou portadores de manifestações clínicas compatíveis mas de imunização existentes. com a SRC; Nos países subdesenvolvidos ou mesmo naqueles em de‑ • todos os recém-nascidos que apresentem alterações significa‑ senvolvimento, a incidência da SRC permanece alta, com uma tivas no teste de triagem auditiva. taxa que varia entre 10 e 90 por 100.000 nascidos vivos. A transmissão materno-fetal do vírus da rubéola ocorre via Avaliação geral placenta, cerca de 5 a 7 dias após a inoculação materna. O ris‑ Hemograma completo, testes de função hepática, radiografia co de ocorrer essa transmissão é maior nas primeiras 10 sema‑ de ossos longos, fundoscopia, audiometria, neuroimagem (ul‑ nas de gestação. Entretanto, o risco de ocorrer malformações trassonografia de crânio, TC de crânio), estudo do liquor, eco‑ prolonga-se até a 18ª a 20ª semana. Após esse tempo, os defei‑ cardiograma (em recém-nascidos que apresentem alterações tos congênitos são raros.10 na ausculta cardíaca).
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Avaliação específica Prognóstico • Sorologia: a pesquisa de anticorpos IgM e IgG nos recém-nas‑ Estima-se o risco de mortalidade em portadores de SRC em cidos e nas crianças suspeitas deve ser realizada o mais breve‑ 20%.10 Neonatos portadores de meningoencefalite, cardiopa‑ mente possível e antes de completarem 1 ano de idade, uma tias congênitas e pneumonia intersticial possuem risco de vez que os níveis desses anticorpos tendem a diminuir ao lon‑ mortalidade maior quando comparados àqueles com manifes‑ go do tempo. A detecção de anticorpos IgM no sangue do cor‑ tações de menor gravidade, como catarata e perda auditiva. dão umbilical indica infecção recente pelo vírus da rubéola. Níveis de IgG mais elevados que o materno ou persistente‑ Prevenção mente altos também confirmam infecção congênita pelo vírus • Vacinação: única forma de prevenir a rubéola. Recomenda-se da rubéola. Os anticorpos IgG maternos possuem vida média que todas as mulheres em idade fértil ou que pretendam en‑ de 30 dias e decrescem de 4 a 8 vezes nos primeiros 3 meses gravidar façam uso da vacina; de vida, devendo desaparecer entre 6 e 12 meses de idade;10 • isolamento: gestantes devem ser afastadas de pessoas com • PCR: o vírus da rubéola pode ser detectado por meio da PCR, suspeita de rubéola. Na ocorrência de contato com caso confir‑ pela identificação do RNA viral. Pode ser pesquisado em vá‑ mado, devem ser avaliadas sorologicamente e acompanhadas. rios líquidos orgânicos, como secreções da orofaringe, respi‑ ratórias, líquido amniótico, urina e liquor; Recém-nascidos portadores de SRC, quando internados, de‑ • isolamento viral: o vírus da rubéola pode ser isolado a partir vem ser colocados em isolamento de contato. de secreções da orofaringe ou ser cultivado em amostras de Herpes simples vírus sangue periférico, placenta, urina e liquor. A infecção congênita pelo HSV, embora de baixa prevalência, é Tratamento responsável por 0,2% de todas as internações no período neo‑ Não existe tratamento específico para a infecção congênita natal e por 0,6% de todas as mortes nesse mesmo período nos pelo vírus da rubéola. O uso de agentes antivirais ou imuno‑ Estados Unidos. globulina específica não altera a evolução da doença, nem pos‑ O HSV é vírus DNA membro da família Herpesviridae. sui qualquer efeito sobre o tempo de excreção do vírus. Por‑ Infecta o ser humano através de inoculação oral, genital, mu‑ tanto, nos casos de SRC, suas manifestações devem ser cosa conjuntival ou pele com solução de continuidade. Daí abordadas da mesma forma que os neonatos não portadores infecta os nervos terminais de onde é transportado, via axô‑ dessa síndrome:11 nios, até as raízes ganglionares dorsais, onde permanece • perda auditiva: encaminhar para o otorrinolaringologista; latente durante toda a vida do hospedeiro. No estado de • catarata: encaminhar para o oftalmologista; latência, esses vírus não são suscetíveis às drogas antivirais. • pneumonia intersticial: pode ser necessário o uso de ventila‑ Dois tipos de HSV de interesse humano são descritos: HSV1 e HSV2.12 ção mecânica em UTI neonatal; • cardiopatia congênita: encaminhar para o cardiologista; • meningoencefalite: tratamento de suporte para a estabiliza‑ Epidemiologia ção hemodinâmica e controle das convulsões. Estima-se que a infecção neonatal pelo HSV ocorra em 1/3.000 a 1/20.000 nascimentos nos Estados Unidos. São descritos 3 modos de transmissão da infecção: • intrauterina: muito rara. Ocorre por meio de viremia materna Tabela 3 Avaliação da rubéola ou infecção ascendente do trato genital, mesmo com mem‑ branas íntegras; Período de Pesquisa Resultado Conduta coleta • perinatal: responde por 85% do total. Ocorre por meio do con‑ Positivo Confirmar caso tato do recém-nascido com o trato genital materno infectado, IgM Logo ao Negativo Realizar pesquisa com lesões ou não; nascimento de IgG • pós-natal: cerca de 10% das infecções; ocorre quando um cui‑ ou quando da Positivo Coletar 2ª amostra suspeita de dador com infecção ativa (p.ex., herpes labial) tem contato após 5 meses SRC IgG próximo com um recém-nascido.11
Após 5 meses da primeira coleta
IgG
Negativo
Descartar caso
Se o IgG mantiver o título anterior ou for maior
Confirmar caso
Se houver queda acentuada do título de IgG, comparado ao anterior
Descartar caso
Fonte: Ministério da Saúde – Doenças Infecciosas e Parasitárias - Guia de bolso, 2010
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Quadro clínico Infecção intrauterina Na infecção transmitida por viremia materna predominam si‑ nais de infecção placentária, como infarto, necrose, calcifica‑ ções e sinais de envolvimento fetal grave como hidropsia. A morte do concepto geralmente ocorre. Os sobreviventes exibem lesões de pele (vesículas, ulcerações ou cicatrizes), lesões oculares e graves anomalias do SNC, como microcefalia e hidranencefalia.
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Infecções congênitas •
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Avaliação por bioimagem Infecção perinatal • Doença localizada na pele, olhos e boca: os sintomas estão A ultrassonografia fetal pode ser útil ao demonstrar as lesões no cérebro fetal, porém, ao nascimento, o diagnóstico deve ser presentes nas primeiras duas semanas de vida. As lesões de pele apresentam-se como vesículas agrupadas sob uma base confirmado pela ressonância magnética, que tem mostrado eritematosa que podem estar localizadas ou disseminadas. A melhor sensibilidade que a TC, principalmente no acompa‑ presença de hiperemia conjuntival, associada a lacrimeja‑ nhamento de lesões cerebrais. mento intenso, chama a atenção para o diagnóstico. Vesículas A radiografia de tórax pode ser útil para demonstrar pneu‑ na região periorbital, ceratite e coriorretinite também podem monite intersticial, e a ultrassonografia abdominal pode mos‑ fazer parte do quadro. O acometimento da orofaringe caracte‑ trar o envolvimento do fígado, rins e ascite.12 riza-se pela presença de úlceras na boca, palato e língua; • doença do SNC: os sintomas iniciam-se em torno da segunda Tratamento ou terceira semana de vida. Cerca de 60 a 70% dos recém-nas‑ O tratamento da infecção por HSV é feito com aciclovir, EV, na cidos com lesões na pele apresentam envolvimento do SNC. dose de 60 mg/kg/dia, dividido em 3 doses diárias, a cada As manifestações clínicas incluem: convulsões, letargia, irri‑ 8 horas.13 O tempo de terapia antiviral depende do tipo de tabilidade, tremores, recusa alimentar, instabilidade térmica infecção. Na doença localizada na pele, olhos e boca, o tempo e fontanela anterior tensa. O liquor apresenta pleiocitose à mínimo é de 14 dias. Na doença de envolvimento sistêmico ou custa de células mononucleares, glicose relativamente baixa que atinge o SNC, o tratamento mínimo é de 21 dias. O ganci‑ e proteína moderadamente elevada. O eletroencefalograma clovir pode ser usado como terapêutica alternativa, na dose de (EEG) apresenta alterações precoces, como descargas epilep‑ 6 mg/kg/dose a cada 12 horas.13 tiformes focais ou multifocais; • doença disseminada: ocorre em 25% dos casos. Envolve Prognóstico múltiplos órgãos, como fígado, pulmões, adrenais, SNV, Depende do tipo de apresentação clínica: pele, olhos e boca. As manifestações clínicas são muito se‑ • na doença disseminada, a mortalidade dentro de 1 ano é de melhantes à sepse causada por outros microrganismos e in‑ 29%, e cerca de 80% dos sobreviventes podem apresentar cluem febre ou hipotermia, apneia, letargia, irritabilidade, exame neurológico normal; desconforto respiratório, distensão abdominal. Com a pro‑ • na doença do SNC, a mortalidade dentro de 1 ano é em torno gressão da doença, podem surgir hepatite, ascite, icterícia, de 4%, porém somente 30% dos sobreviventes apresentam neutropenia, trombocitopenia, coagulação intravascular exame neurológico normal; disseminada, derrame pleural, enterocolite necrotizante, • na doença da pele, olhos e boca, a mortalidade é rara, e me‑ convulsões e choque. A mortalidade ultrapassa 80% nessa nos de 2% dos que receberam tratamento com aciclovir apre‑ forma de doença.11 sentam retardo no desenvolvimento neuropsicomotor. Diagnóstico Todos os recém-nascidos que apresentem algum grau de sus‑ peição clínica devem ser submetidos ao rastreamento para in‑ fecção por HSV. Os testes laboratoriais incluem hemograma completo, transaminases, bilirrubinas, ureia e creatinina, amônia, PCR para HSV DNA no sangue, liquor com PCR para HSV DNA, swab das lesões de pele e mucosas para identifica‑ ção do HSV por imunofluorescência direta e cultura viral. O isolamento do vírus em cultura de tecidos e sangue é a técnica mais específica para o diagnóstico da infecção pelo HSV, mas não é um método disponível na prática diária. As‑ sim, a detecção do HSV DNA pela PCR tem sido o método de escolha para o diagnóstico de infecção pelo vírus HSV por causa de sua alta sensibilidade. Entretanto, resultados falso‑ -negativos podem ocorrer principalmente no liquor, quando existir grande quantidade de hemácias ou proteína elevada. A imunofluorescência direta é um método que permite rápida identificação do antígeno viral, além de identificar o tipo (HSV1 ou HSV2). Os testes sorológicos normalmente não aju‑ dam no diagnóstico da infecção neonatal, mas podem ser usados no pré-natal, como método de prevenção da infecção congênita.
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Prevenção As estratégias de prevenção da infecção intrauterina e perina‑ tal pelo HSV passam pela identificação das gestantes de alto risco, indicação de cesariana e terapia antiviral materna: • gestantes com infecção ativa devem ser mantidas sob precau‑ ções de contato, e o parto cesariano deve ser indicado até 4 horas após o rompimento das membranas; • recém-nascidos internados com infecção ativa devem ser mantidos em isolamento de contato, no mesmo quarto que as mães; • recém-nascidos cujas genitoras apresentem lesões herpéticas na mama não devem ser amamentados na mama afetada e as lesões devem ser cobertas para evitar a contaminação; • parentes e outros indivíduos portadores de lesões herpéticas (herpes labial, gengivoestomatite) não devem entrar em con‑ tato com o recém-nascido; • o risco de transmissão é maior em recém-nascidos de parto vaginal, com mais de 4 horas de ruptura das membranas; • o risco de transmissão é baixo (menor que 2%) em recém‑ -nascidos de mães com infecção recorrente; • ainda não existem vacinas licenciadas e efetivas contra os ví‑ rus HSV1 e HSV2.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar os principais sinais e sintomas das infecções congênitas mais prevalentes. • Solicitar exames laboratoriais e de bioimagem para confirmação da suspeita clínica. • Elaborar plano terapêutico específico. • Conversar com os pais sobre o prognóstico. • Tomar as medidas preventivas para evitar a transmissão.
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CAPÍTULO 7
INFECÇÕES PERINATAIS: SEPSE NEONATAL PRECOCE E TARDIA Durval Batista Palhares Carmen Silvia Martimbianco de Figueiredo
Introdução A sepse neonatal é uma síndrome clínica em uma criança de 28 dias de vida ou mais jovem, que se manifesta por sinais sis‑ têmicos de infecção e/ou isolamento no sangue de um agente patogênico.1 Recém-nascidos são mais vulneráveis a desenvolverem sepse do que crianças mais velhas e adultos, pois apresentam sistema imunológico imaturo, sendo os prematuros de maior risco para a patologia. A sepse é uma das principais causas de morte no período neonatal, com taxa de mortalidade de até 50% nos casos não tratados em tempo hábil. A sepse neonatal é caracterizada por precoce e tardia. Cerca de 85% dos recém-nascidos com sepse precoce apresentam manifestações nas primeiras 24 horas de vida e o restante até 72 horas de vida. No recém-nascido prematuro, as manifesta‑ ções clínicas são ainda mais precoces. A sepse precoce está as‑ sociada com organismos adquiridos da mãe, via placentária, via ascendente do colo uterino, adquirida, de uma infecção urinária materna ou, ainda, durante a passagem no trajeto do canal de parto. Os organismos mais associados com infecção precoce são o estreptococo do grupo B (EGB, S. agalactie) e a Escherichia coli.1 Epidemiologia A incidência de sepse neonatal é menor em recém-nascidos de termo, de 1 a 2 casos por 1.000 nascidos vivos, e é inversamen‑ te proporcional à idade gestacional ao nascimento. Taxas de sepse são 7 a 10 vezes maiores em bebês de muito baixo peso.2 O tipo de microrganismo na sepse neonatal tem mudado ao longo do tempo, e essa mudança se deve a fatores maternos, raça, idade gestacional. Também, as sepses comportam-se di‑ ferentemente em diferentes lugares do mundo.3 A incidência de sepse pelo EGB tem diminuído em razão da profilaxia intraparto, mas, mesmo assim, a infecção pelo EGB continua alta nos Estados Unidos, seja como causa de sepse precoce ou como tardia.4
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Fatores de risco As causas de infecção neonatal podem ser de origem intraute‑ rina, intraparto e infecções pós-natal. Para situações com mais de um fator de risco, há 15% de maior chance de sepse. Fatores intrauterinos • Desnutrição materna e fetal; • abortos recorrentes; • febre materna; • ruptura prematura de membranas amnióticas > 18 horas; • falta de pré-natal ou pré-natal incompleto; • mães com membranas íntegras mas que foram submetidas a cerclagem ou amniocentese; • mãe portadora de EGB sem profilaxia intraparto ou profilaxia incompleta; • corioamnionite;5 • taquicardia materna (> 100 bpm); • taquicardia fetal (160 movimentos/min). Intraparto • Parto prolongado; • líquido amniótico fétido. Infecção urinária materna • Mãe internada em UTI; • febre materna; • ruptura prematura de membranas. Fatores neonatais • Sexo masculino; • índice de Apgar baixo; • prematuridade, principalmente muito baixo peso e extremo muito baixo peso; • líquido amniótico tinto de mecônio; • mão colonizada com EGB não tratada no intraparto; • recém-nascido que teve necessidade de ressuscitação.
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Patogênese Sepse de início precoce é habitualmente ocasionada por trans‑ missão vertical de bactérias do líquido amniótico contaminado ou durante o parto vaginal por bactérias do trato genital mater‑ no. A corioamnionite aumenta a chance de sepse neonatal de 1 a 4%.6 Sepse de início precoce é definida como o aparecimento de sintomas dentro dos primeiros dias de vida. Embora haja variabilidade da idade de início, alguns especialistas a definem como infecção da corrente sanguínea em ≤ 72 horas de vida, embora, como referido anteriormente, a maioria, 85%, mani‑ feste-se nas primeiras 24 horas de vida.7 A sepse de início tardio pode ser adquirida por infecção trans‑ versal materna, com colonização neonatal e manifestação clínica tardia, por transmissão horizontal com contato direto com traba‑ lhadores (médicos, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, pro‑ fissionais paramédicos) ou por instrumentos e materiais conta‑ minados das unidades neonatais. Lesões de pele, cateteres vasculares e tubos endotraqueais são fontes de colonização e de‑ senvolvimento de infecções neonatais tardias.8 Fatores metabólicos, incluindo hipoxemia, acidose metabó‑ lica, hipotermia, doenças metabólicas herdadas, como galacto‑ semia, contribuem para maior risco de doença infecciosa.8 Manifestações clínicas O recém-nascido com sepse não tem um padrão clínico bem definido, e cada criança pode se apresentar de uma forma di‑ ferente. Alguns podem, inicialmente, apresentar apenas uma estase gástrica, instabilidade da temperatura, hipotermia, que é muito frequente nos prematuros, taquipneia, apneia. Abaulamento de fontanela e convulsões podem ser manifes‑ tações clínicas em recém-nascido com sepse tardia. Hipoatividade e vômitos também são manifestações frequen‑ tes na suspeita de sepse. O recém-nascido pode, ainda, apre‑ sentar queda da saturação de oxigênio, hipotensão arterial, má perfusão e hipotonia. É importante o médico perceber precocemente que o re‑ cém-nascido apresenta um padrão anormal de evolução e que deve ser investigado e, obviamente, sempre fazer uma boa história da evolução do trabalho de parto, do parto, dos dados maternos e das condições de nascimento. Além do mais, os exames laboratoriais contribuem para o diagnóstico. Diagnóstico clínico O isolamento de uma bactéria patogênica por hemocultura é o único método que realmente confirma o diagnóstico de sepse neonatal. O resultado da hemocultura demora alguns dias e em torno de 10% são falso-negativos. Portanto, a avaliação clí‑ nica e a solicitação de outros exames laboratoriais, além do início do tratamento empírico, têm sido uma rotina nos cen‑ tros de neonatologia. Com o resultado da hemocultura, o es‑ quema antibiótico pode ser mudado, caso a criança não esteja apresentando uma boa evolução clínica. O diagnóstico clínico é difícil, uma vez que não existe um achado específico que caracterize sepse e que muitas manifes‑ tações clínicas sejam confundidas com outros problemas clínicos. Protocolos utilizados para crianças maiores e com
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infecção grave não são adequados para recém-nascidos.9 Em razão da dificuldade do diagnóstico exclusivamente clínico de sepse neonatal, exames laboratoriais são utilizados no diag‑ nóstico clínico. Na prática, um diagnóstico presuntivo de sepse autoriza o médico iniciar uma terapia antimicrobiana baseado nos sinto‑ mas e sinais, tempo de evolução, fatores de risco materno e neo‑ natal, situação de mãe portadora de EGB, ruptura prolongada de membranas e até mesmo mãe que recebeu antibiótico intra‑ parto adequadamente, caso haja indicação. Profissionais de‑ vem valorizar mães que tiveram no pré-natal cultura para EGB negativa e recém-nascidos de termo que desenvolveram mani‑ festação clínica de sepse precoce por essa bactéria.10-12 O prog‑ nóstico de sepse é ruim e a suspeita clínica deve ser aguçada em razão das sequelas, assim como maior mortalidade. A suspeita de sepse por EGB deve ser levantada em qualquer recém-nasci‑ do cuja mãe realizou ou não pré-natal, em mães com corioam‑ nionite (comprovada ou suspeita) e recém-nascidos cujas mães tinham indicação para profilaxia de antibiótico intraparto. De acordo com a Academia Americana de Pediatria7,13 e al‑ goritmo do Center for Disease Control and Prevention (CDC), define-se a conduta frente ao quadro que se apresenta.14 Na Fi‑ gura 1, as ramificações no algoritmo incluem aparência clínica no momento do nascimento ou durante o período de observa‑ ção no hospital, corioamnionite materna, indicações e ade‑ quação profilática materna do EGB (Tabela 1), idade gestacional e tempo de rotura de membranas.14 Recém-nascido a termo assintomático15,16 Recém-nascidos a termo assintomáticos e com fator de risco devem ser avaliados por uma hemocultura e talvez uma pro‑ teína C reativa e um hemograma completo.15 É preciso obser‑ var a evolução e aguardar os resultados laboratoriais. Nos casos em que o recém-nascido é nascido de uma mãe com febre (≥ 38°C) antes do parto e até 24 horas pós-parto, de‑ vem-se colher os exames de investigação (hemograma, hemo‑ cultura e proteína C reativa) e iniciar o tratamento empírico. No caso de criança assintomática, nascida de mãe com bolsa rota ≥ 18 horas, sem febre materna ou outros sinais su‑ gestivos de sepse neonatal, o recém-nascido deve ser obser‑ vado no hospital por 48 horas. Se aparecerem sinais sugesti‑ vos de sepse, deve-se rastrear com hemocultura, hemograma, proteína C reativa e liquor e iniciar a terapia antimicrobiana. Se uma criança que era assintomática desenvolve sinais de sepse após o início de antibioticoterapia, deve-se coletar no‑ vamente exames laboratoriais (hemograma, proteína C reati‑ va, liquor com cultura, hemocultura), além de cultura de ou‑ tros sítios, como lesões de pele, urocultura, etc. Recém-nascidos a termo sintomático devem ser avaliados e, no mínimo, deve-se solicitar hemograma, cultura de sangue, li‑ quor e proteína C reativa, além de iniciar terapia antimicrobiana. Recém-nascidos de termo com sinais de sepse tardia devem, no mínimo, ser avaliados com um hemograma (com diferen‑ cial da série branca), hemocultura, urocultura e de outros lo‑ cais, como lesão de pele, osso, derrames. Antibioticoterapia empírica deve ser iniciada.
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Infecções Perinatais: Sepse neonatal Precoce e Tardia •
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Sinais de sepse neonatal?
Sim
Não
Evolução diagnóstica completa Terapia antibiótica
Corioamnionite materna?
Não
Sim
Evolução limitada Terapia antibiótica
Profilaxia EGB indicada para mães?
Não
Sim
Mãe recebeu EV penicilina, ampicilina ou cefazolina ≥ 4 h antes do parto?
Cuidados clínicos de rotina
Não
Sim
Observação ≥ 48 h
≥ 37 semanas e membrana rota < 18 h?
Sim
Observação ≥ 48 h
Não
RN < 37 semanas ou bolsa rota ≥ 18 h?
Sim
Evolução limitada Observação ≥ 48 h
Figura 1 Prevenção secundária de início precoce de estreptococos do grupo B doença (GBS) em recém-nascidos.
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1254 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 16 NEONATOLOGIA
Tabela 1 Prevenção da doença pelo EGB neonatal: indicações e não indicações profiláticas do uso de antibióticos intraparto Indicada profilaxia intraparto para EGB
Não indicada profilaxia intraparto para EGB
Recém-nascido prévio com doença pelo EGB
Colonização pelo EGB em gestação anterior, exceto se paciente na gestação atual apresenta cultura positiva para EGB
Gestante com bacteriúria pelo EGB em qualquer trimestre da gestação atual
Bacteriúria pelo EGB em gestação anterior, exceto se há indicação profilática para o EGB na gestação atual
Cultura para EGB positiva na gestação atual, com exceção se for realizada cesárea programada, paciente sem trabalho de parto, ou ruptura de membranas amnióticas
Cultura negativa para EGB vaginal e retal no final da gestação atual, independentemente dos fatores de risco intraparto
Desconhecimento de colonização pelo EGB no início de trabalho de parto e nas seguintes condições: parto < 37 semanas bolsa rota ≥ 18 h temperatura intraparto ≥ 38°C NAAT positivo intraparto para EGB
Cesárea programada na ausência de trabalho de parto ou ruptura de membranas amnióticas, independentemente da colonização pelo EGB ou idade gestacional
NAAT: testes de amplificação de ácidos nucleicos. Fonte: adaptada de Verani et al. 2010.14.
Diagnóstico diferencial16 • Infecções virais por citomegalovírus, herpes simples, vírus da influenza, vírus sincicial respiratório, enterovírus; • sífilis; • toxoplasmose congênita, malária congênita; • infecção fúngica; • outras infecções bacterianas, como infecção do trato urinário, osteomielite, artrite séptica, etc. Também podem ser motivos de confusão a cardiopatia congê‑ nita, hipóxia e erro inato do metabolismo. Exames laboratoriais 1. Hemograma completo: coletado de 6 a 12 horas após o parto. A relação de neutrófilos imaturos por neutrófilos totais (relação I/T) tem sido utilizada como marcador de sepse neonatal;4 quando elevada, tem uma maior correlação com sepse. Em re‑ cém-nascidos de termo, o percentil 90 é de 0,27. Têm sido con‑ siderados valores de referência relação ≥ 0,2. O esgotamento das reservas da medula óssea pode apontar resultado falso-negativo. A relação I/T não é um exame de extrema confiabilidade.17 A contagem de leucócitos normais inicialmente pode ser observa‑ da em 50% dos casos de sepse comprovada com hemocultura. Leucócitos anormais em crianças não infectadas podem ocorrer em decorrência ao estresse do parto ou outros fatores.18 2. Proteína C reativa: presente na fase aguda, aumenta nas condi‑ ções inflamatórias, incluindo sepse. Um valor de proteína C rea‑ tiva maior que 10 mg/dL é 90% sensível na detecção de sepse neonatal, embora não seja específica, podendo decorrer de ou‑ tras condições inflamatórias não infecciosas, como febre mater‑ na, sofrimento fetal, parto estressante, asfixia perinatal, aspira‑ ção de mecônio e hemorragia intraventricular. Ao nascimento, a proteína C reativa não é um teste sensível, em razão das pró‑ prias condições do parto, e deve ser repetida posteriormente.4,19 3. Radiografia de tórax: deve ser solicitada em toda criança com desconforto respiratório, observando-se infiltrados localiza‑
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dos e, assim, obter o diagnóstico de pneumonia, mas outros exames também devem ser solicitados, principalmente he‑ mocultura. 4. Urocultura: não necessita ser solicitada rotineiramente em re‑ cém-nascidos menores de 6 dias. Quando indicada, a urocul‑ tura deve ser realizada por punção suprapúbica ou por cateter vesical, com todas as condições de assepsia. 5. Citocinas: as citocinas pró-inflamatórias 2 e 6, gama interfe‑ ron, fator de necrose tumoral e citocinas anti-inflamatórias 4 e 10 estão aumentadas nos lactentes com infecção.20,21 6. Procalcitonina: a procalcitonina é o precursor do peptídio da calcitonina. É libertada por células do parênquima em respos‑ ta a toxinas bacterianas, conduzindo a elevados níveis séricos em doentes com infecções bacterianas. É equivalente ou me‑ lhor do que a proteína C reativa para detectar infecção bacte‑ riana no recém-nascido18. 7. Hemocultura: é o exame mais importante no diagnóstico da sepse neonatal. A sensibilidade da hemocultura é dependente do número de culturas obtidas e do volume de sangue utiliza‑ do que é inoculado no frasco de cultura. Volume de sangue menor que 1,0 mL habitualmente não apresenta resultados reais; o volume ideal é de 2,0 mL.4 A sensibilidade de uma cultura de sangue para detectar bacteremia neonatal é de aproximadamente 90%. Na maioria dos casos de sepse neo‑ natal, uma cultura de sangue será positiva dentro de 24 a 36 horas.16 Cateter arterial umbilical pode ser utilizado para a coleta do material logo após a sua inserção. A coleta de san‑ gue de veia umbilical correlaciona-se mais com crescimento bacteriano por contaminação da amostra.4 8. Aspirado gástrico: os fetos engolem grandes quantidades de líquido amniótico diariamente e, portanto, leucócitos presen‑ tes no aspirado gástrico representam uma resposta materna à inflamação, sendo, então, um indicativo de infecção.4 9. Aspirado traqueal: amostras de aspirado traqueal podem ter valor se coletadas imediatamente após entubação do recém‑ -nascido.4
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Infecções Perinatais: Sepse neonatal Precoce e Tardia •
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Para escore ≥ 3 a sensibilidade de sepse é de 96% e a especifi‑ mia, a incidência de meningite é tão alta quanto 23%. O cidade é de 78%, aumentando, assim, a acurácia no diagnósti‑ critério de hemocultura não é um fator para punção lombar, co. Escore de 0 a 2 tem valor preditivo negativo de 99%. pois 38% das hemoculturas são negativas em crianças com Etiologia meningite.4 Não se justifica uma punção lombar em uma criança de alto risco, mas sem aparência ou suspeita de infec‑ Os microrganismos mais comumente associados com sepse ção do sistema nervoso central, por exemplo, no caso de uma neonatal precoce são:24 criança com quadro de insuficiência respiratória decorrente • EGB; de síndrome do desconforto respiratório. • E. coli; • Staphylococcus coagulase negativo; A recomendação da AAP para punção lombar ocorre nos se‑ • H. influenzae; guintes casos: • L. monocytogenes. • qualquer criança com hemocultura positiva; • bebês cujo curso clínico ou dados laboratoriais sugerem forte‑ Os microrganismos mais comumente associados com sepse mente sepse bacteriana; de início tardio são:24 • bebês que pioram, mesmo já recebendo tratamento antimi‑ • Staphylococcus coagulase negativo; crobiano; • S. aureus; • valores do liquor controversos. É considerado normal < 10 cé‑ • E. coli; lulas/mL leucócitos.4 Meningite por Gram-negativo causa • Klebsiella; maior aumento de células que meningite por Gram-positivo. • pseudomonas; A concentração de proteínas no liquor considerada normal é • enterobacter; abaixo de 100 mg/dL.4 A concentração de proteína no liquor • Candida; diminui com a idade gestacional. • EGB; • Serratia; A glicose do liquor corresponde em média 70 a 80% da amos‑ • acinetobacter; tra de sangue colhida no mesmo período. Glicorraquia baixa • anaeróbios. correlaciona com meningite, mas se houver demora na análise laboratorial, haverá diminuição dos números de leucócitos e Tratamento de glicose.4 A solicitação da cultura do liquor é importante Medidas de suporte porque a meningite neonatal ocorre frequentemente em pa‑ O monitoramento dos sinais vitais é importante, pois compli‑ cientes sem bacteremia e com demais achados de liquor nor‑ cações agudas e potencialmente fatais que podem evoluir ao mal.4 óbito quando não prontamente detectadas e tratadas são uma 11. Reação em cadeia de polimerase (PCR): exame específico e constante. Assim, o controle dos parâmetros abaixo permite o sensível no diagnóstico de doenças bacterianas e com resulta‑ correto seguimento e pronto diagnóstico para a intervenção dos em curto tempo. A sequência de DNA presente em todas em momento oportuno: as bactérias, como porções que codificam o 16-S RNA-ribos‑ • frequência cardíaca, frequência respiratória, enchimento ca‑ somal, tem sido usada para definir um organismo, como uma pilar, saturação da hemoglobina, diurese e temperatura bactéria.22 Com a utilização de uma PCR-multiplex, mais de merecem vigilância constante; um lócus genético com a utilização de mais de um par de pri- • pressão arterial a intervalos regulares; mers, é possível diferenciar vários agentes etiológicos respon‑ • glicemia, glicosúria; sáveis pela sepse.23 Com a PCR seria possível determinar a • equilíbrio eletrolítico; presença da sequência do DNA bacteriano, demonstrando • equilíbrio acidobásico pela avaliação da gasometria. sua presença, ou especificamente, com primers de bactérias conhecidas, com identificação de um DNA de uma determi‑ Em caso de choque, a reversão deve ser pronta, evitando a nada bactéria, direcionando, e assim, o tratamento. evolução para o estágio irreversível. O tratamento inicial deve 12. Escore de Rodwell: objetivando a melhor precisão no diag‑ ser feito com expansão com solução cristaloide, de preferência nóstico da sepse, Rodwell et al. desenvolveram um escore o soro fisiológico 0,9%, na dose de 10 a 20 mL/kg de peso, in‑ que considera um ponto para cada um dos seguintes dados: fundido em 30 minutos. O procedimento deve ser repetido se • leucopenia ou neutrofilia; a pressão arterial média for menor que 30 mmHg ou se a diu‑ • elevação de neutrófilos imaturos; rese for inadequada/ausente. Drogas vasoativas podem ser • índice neutrofílico aumentado; necessárias, como: • razão de neutrófilos imaturos sobre segmentados • dopamina: 5 a 7 mcg/kg/min; superior a 0,3; • dobutamina: se permanecer com hipotensão após expansão e • plaquetopenia ≤ 150.000. dopamina em dose otimizada, até uma dose de 10 a 15 mcg/ kg/min; 10. Punção lombar: no relatório da AAP de crianças com bactere‑
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• adrenalina: indicada nos casos em que há dificuldade em manter pressão arterial média aceitável para a idade gestacio‑ nal, iniciando com dose de 0,1 mcg/kg/min.
de células. É procedimento de alto custo, com dificuldades técnicas para a sua obtenção, com poucos estudos e sem redu‑ ção na mortalidade. Fator estimulador de colônia de granulócitos e macrófagos humanos (rhGM-CSF) não reduz a mortalidade, embora leve a melhora da neutropenia e a redução da incidência de infec‑ ção hospitalar em recém-nascidos com peso abaixo de 2.000 g, segundo estudos de Miura et al.26 Agente imunomodulador, a pentoxifilina foi usada em es‑ tudo europeu multicêntrico, com a finalidade de inibir a pro‑ dução do fator alfa de necrose tumoral, na dose de 5 mg/ kg/h por 6 horas, por via endovenosa, por um período de 6 dias, associada a antibioticoterapia. Houve redução da mor‑ talidade e atenuação da gravidade do quadro clínico, sem ne‑ nhum efeito adverso. Entretanto, essa é uma droga que re‑ quer mais ensaios clínicos multicêntricos para ter seu uso rotineiro indicado.27
Bicarbonato de sódio deve ser administrado quando se obser‑ va acidose metabólica documentada, sem melhora após a cor‑ reção da volemia e sempre que BE estiver mais negativo que -10 na gasometria. A administração de bicarbonato deve ser lenta, nunca em bolo, em razão da alta omolaridade, o que aumenta o risco de hemorragia central. O suporte ventilatório deve ser indicado sempre que neces‑ sário para manter a oxigenação adequada. Bebês em sepse podem evoluir com apneia e falência respiratória decorrentes de comprometimento pulmonar, hipertensão pulmonar ou de causa central. Vale lembrar que o estado infeccioso demanda uma alta taxa de consumo metabólico, o que aumenta o catabolismo proteico, o consumo de oxigênio, o consumo de gordura, aumentando o Tratamento na sepse neonatal quociente respiratório. É importante adequar à oferta nutricio‑ Infecção neonatal precoce nal, a fim de evitar o catabolismo e manter o estado nutricional Pelo fato de a sepse neonatal apresentar sinais e sintomas que do bebê, evitando-se assim a lipólise e o balanço nitrogenado podem estar presentes em outras patologias e que são sinais negativo. A instituição de nutrição, seja por via parenteral ou muito comuns, o diagnóstico empírico de sepse é muito mesmo enteral, deve ser precoce, atentando-se para a adequada frequente. O início do tratamento precoce de um recém-nasci‑ oferta proteica. Nos casos em que a via digestiva não puder ser do com suspeita de sepse definido pelo National Institute of utilizada, manter o jejum e iniciar nutrição parenteral. Na reali‑ Child Health and Human Development and Vermont Oxford mentação é importante iniciar dieta enteral mínima com colos‑ Networks como sepse com início até 3 dias de vida. tro ou leite da própria mãe do bebê, preferentemente sem o pro‑ O tratamento inicial de sepse precoce é baseado nos patóge‑ cesso de pasteurização, para manter proteção da mucosa nos mais frequentes, que são o EGB e o E. coli.28 A combinação (imunoglobulinas e fator epitelial de crescimento das mucosas, de ampicilina e um aminoglicosídeo (geralmente gentamicina), além de macrófagos e linfócitos presentes vivos no colostro e lei‑ estaria indicada como terapia inicial, que também tem siner‑ te materno frescos) e estimular a peristalse intestinal. gismo contra Listeria monocitogenes.29 Concentrado de hemácias está indicado nas perdas por A cefalosporina de 3ª geração (cefotaxima) tem a desvanta‑ hemorragias, para manter o hematócrito em 40% no bebê sép‑ gem do maior risco de resistência bacteriana e infecção por tico. A infusão deve ser lenta, realizada em 3 a 6 horas, na dose fungos.30 A cefotaxima empírica poderia estar reservada nos ca‑ sos dos pacientes com meningite com suspeita de Gram-nega‑ de 10 a 15 mL/kg. Plasma fresco congelado está indicado para os casos de tivo.31 O ceftriaxone é contraindicado no recém-nascido em ra‑ sangramento por coagulação intravascular disseminada, na zão do maior risco de kernicterus. Pacientes sem foco de infecção podem ser tratados por 10 dias. Sepse atribuída ao EGB deve ser dose de 10 mL/kg. O concentrado de plaquetas está indicado quando a conta‑ tratada por 14 dias.32 Outros focos decorrentes do EGB devem gem está abaixo de 50.000/mm3, na dose de 10 mL/kg ou 1 U ser tratados por período mais longo. Meningite por Gram-nega‑ do concentrado para cada 3 a 4 kg de peso. tivo deve ser tratada por 21 dias ou 14 dias após cultura negativa. A imunoglobulina humana tem seu uso controverso. Tratamento de Gram-negativo deve ser realizado com cefotaxi‑ Estudos randomizados mostram que sua utilização não apre‑ ma e um aminoglicosídeo até que os resultados de suscetibili‑ senta impacto positivo na mortalidade por sepse suspeita ou dade sejam conhecidos.31,33 comprovada no recém-nascido. Sua utilização é mais reco‑ Ao se planejar o tempo de terapia antimicrobiana do pa‑ mendada para sepse tardia grave e em pacientes neutropêni‑ ciente com sepse ou meningite, deve-se levar em conta se a cos (< 500 neutrófilos/mm3) e com choque séptico, na dose mãe recebeu antibióticos intraparto, pois uma cultura negati‑ de 750 mg/kg via endovenosa, em 2 a 4 horas, com o intuito va não significa necessariamente que não possa ser um caso de oferecer opsoninas e aumentar os neutrófilos sem, entre‑ de uma cultura falso-negativa. Sendo assim, o tempo de tra‑ tanto, melhorar a oferta de anticorpos específicos ao agente tamento pode estar associado com as condições clínicas do infeccioso. Pode ser repetida após 1 semana. A utilização roti‑ paciente. neira como droga profilática para sepse não mostrou eficácia, Tempo de tratamento (> 5 dias) tem sido recomendado em não sendo indicada como medicação preventiva.25 pacientes com suspeita de sepse precoce (e cultura negativa).34 A transfusão de granulócitos pode ser utilizada em pacien‑ Recém-nascidos com sinais clínicos de sepse com uma tes neutropênicos, na dose de 15 a 20 mL/kg de concentrado “alta probabilidade” de sepse de início precoce que necessitam
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de agentes antimicrobianos logo após o nascimento são re‑ cém-nascidos com fatores de risco para sepse: corioamnionite materna, bolsa rota > 18 horas ou colonização pelo EGB. O EGB não é um fator de risco nos casos que a mãe recebeu ade‑ quadamente a profilaxia intraparto ou nos casos de cesária sem trabalho de parto e bolsa amniótica íntegra.35
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Serviços que dispõem de biologia molecular devem fazer uma PCR com primer específico com intuito de identificar DNA genômico das principais bactérias causadoras de sepse noso‑ comial. É preciso, ainda, valorizar que muitos recém-nascidos podem estar apresentando não infecções bacterianas, mas vi‑ ral, por fungos, etc., e esses tipos de infecções podem fazer clí‑ nicas semelhantes a sepse bacteriana. As principais bactérias que causam sepse tardia neonatal são: Staphylococcus epidermidis plasmocoagulase negativo, Staphylococcus aureus, Pseudomonas. Contudo, deve-se lem‑ brar que sepses tardias podem também ser decorrentes de EGB, E. coli ou mesmo outras bactérias. Todos os recém-nascidos com sepse tardia devem realizar uma punção lombar para afirmar ou excluir meningite, con‑ forme o decorrer do acompanhamento e tempo de tratamento.
Infecção neonatal tardia Se existe uma suspeita de infecção nosocomial (sepse tardia), a cobertura de antibiótico deve ser dirigida aos organismos im‑ plicados (infecções hospitalares adquiridas), incluindo S. aureus, S. epidermidis e espécies de Pseudomonas. A maioria das estirpes de S. aureus produzem betalactamase, o que as tor‑ nam resistentes à penicilina G, ampicilina, carbenicilina e ti‑ carcilina. A vancomicina tem sido favorecida para essa cober‑ tura, no entanto existe a preocupação de que o uso excessivo da droga possa levar a vancomicina-organismos resistentes, Opções para associação de drogas eliminando, assim, a melhor resposta a organismos resisten‑ • Sepse adquirida na comunidade: ampicilina + gentamicina; tes à penicilina. Por essa razão, alguns médicos preferem a te‑ • havendo evidência de estafilococos: oxacilina + gentamicina/ rapia de oxacilina nesse cenário. amicacina; As cefalosporinas são atraentes para o tratamento de infec‑ • havendo evidência de meningite: adicionar cefotaxima. ção nosocomial por sua falta de toxicidade relacionada com a dose, concentrações e sua capacidade de alcançar o soro e flui‑ Política para sepse nosocomial do cerebrospinal adequado (LCR), no entanto, sua utilização Não é possível a hipótese de uma política única de antibiótico tem levado a resistência em organismos Gram-negativos. Cef‑ para o uso em todas as unidades de recém-nascidos. Cada uni‑ triaxona desloca bilirrubina da albumina sérica e deve ser uti‑ dade de recém-nascido deve ter sua própria política de anti‑ lizada com precaução em recém-nascidos com hiperbilirrubi‑ biótico com base nos padrões de sensibilidade local e do perfil nemia significativa. Resistência e sensibilidade para o de patógenos. Deve-se, de preferência, escolher penicilina organismo isolado de culturas são usados com intuito de sele‑ mais uma combinação de aminoglicosídeo. Cefalosporinas ra‑ cionar a droga mais eficaz. pidamente podem induzir a produção de resistência e coloni‑ Aminoglicosídeos e vancomicina têm o potencial de produ‑ zação fúngica. zir ototoxicidade e nefrotoxicidade e devem, portanto, ser usa‑ dos com cautela. O nível da droga no soro é avaliado em torno Diretrizes que permitem um uso racional da terceira dose ou menos, 48 horas após o início do tratamen‑ de antibióticos to, para determinar se os níveis estão dentro do intervalo tera‑ Se o organismo for sensível a um antibiótico, com um espectro pêutico. A dosagem de droga ou intervalo pode ter que ser mais estreito ou mais baixo custo, a terapia deve ser alterada ajustada para optimizar os níveis de droga no soro. Crianças para esse antibiótico, mesmo que o recém-nascido esteja me‑ que receberam aminoglicosídeos devem passar por uma tria‑ lhorando com os antibióticos empíricos. gem audiológica antes da alta. Se possível, um único antibiótico sensível deve ser utiliza‑ Se os resultados da cultura são negativos, mas o bebê tem do, exceto para a Pseudomonas, que requer a utilização de dois sinais clínicos de sepse, o médico deve decidir se o tratamento antibióticos sensíveis. Se os antibióticos empíricos são relatados sensíveis, mas o deve ser continuado. Na maioria dos casos, 2 ou 3 dias depois, os resultados negativos devem permitir que o clínico esteja neonato piorou, pode ser um caso de resistência in vitro. Os an‑ confiante de que a sepse é ausente, no entanto, um pequeno tibióticos podem ser alterados para um antibiótico alternativo número de bebês no exame postmortem teve os resultados ne‑ sensível com o espectro mais estreito e de mais baixo custo. Se os antibióticos empíricos são relatados resistentes, mas gativos durante a sua avaliação de sepse inicial.36 Os autores da revisão Cochrane concluíram que não há pes‑ o neonato melhorou clinicamente, pode ou não ser um caso quisa suficiente para recomendar um tipo de tratamento anti‑ de sensibilidade in vivo. Nesses casos, a avaliação cuidadosa deve ser feita antes de decidir continuar com os antibióticos biótico para sepse neonatal tardia.37 O tratamento de sepse neonatal tardia deve ser voltado empíricos. Não se deve continuar com antibióticos com resis‑ para os tipos de bactérias que habitualmente estão envolvidos tência in vitro em caso de Pseudomonas, Klebsiella, MRSA e nesse tipo de sepse. Quando se tem uma cultura com a identi‑ em casos de infecções do SNC e infecções profundas. ficação da bactéria, o tratamento deve ser específico. Diante Se nenhum antibiótico foi relatado sensível, mas um ou da situação de uma hemocultura negativa, o recém-nascido mais tem sido relatado “moderadamente sensível”, a terapia apresenta não só fatores de risco, mas também sinais clínicos; deve ser alterada para esses antibióticos na dose mais elevada o médico, portanto, terá que manter um tratamento empírico. permitida. Nesses casos, utilizar uma combinação.
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Na sepse tardia para cobrir a infecção estafilocócica nosoco‑ mial, a primeira linha de antibióticos pode compreender de oxacilina de 100 mg/kg/dia e de um aminoglicosídeo (genta‑ micina ou amicacina). Na sepse nosocomial, padrão de sensi‑ bilidade aos antibióticos de organismos responsáveis pela in‑ fecção no serviço deve ser conhecido, e a terapia com antibióticos deve ser em conformidade. Normalmente, estafilococos e bacilos Gram-negativos (Pseudomonas, Klebsiella) devem ser cobertos utilizando aminoglicosídeo (genta‑ micina ou amicacina) e uma cefalosporina de terceira (cefota‑ xima). Para a infecção por estafilococos resistentes, a vancomicina (30 mg/kg/dia) deve ser usada.38 A resistência bacteriana aos antibióticos disponíveis é um problema global, com graves consequências para a saúde pú‑ blica. O uso excessivo de agentes antimicrobianos é responsá‑ vel pela indução de resistência bacteriana.39,40 Por causa do ris‑ co elevado de infecção nosocomial e da morbidade associada grave no prematuro extremo, esses pacientes são frequente‑ mente expostos ao uso empírico de antibióticos de largo es‑ pectro, até as culturas de sangue, urina e fluido espinal se dis‑ poníveis no laboratório, o que contribui para o problema de uso excessivo de agentes antimicrobianos.41 Ampicilina/netilmicina é uma combinação segura de anti‑ bióticos para recém-nascidos com suspeita de sepse tardia. Isso, por sua vez, pode ser importante na redução do uso ex‑ cessivo e potencial para a resistência bacteriana à vancomici‑ na. Um grande estudo multicêntrico randomizado de diferen‑ tes combinações de antibióticos na sepse neonatal tardia é justificado para avaliar o verdadeiro impacto de uma política de restrição de vancomicina no resultado neonatal e o risco de desenvolvimento de organismos resistentes a vancomicina em um ambiente de cuidados intensivos neonatais. Com o in‑ tuito de diminuir a resistência à vancomicina, deve-se dimi‑ nuir o uso empírico da prescrição desse antibiótico.42 A restrição do uso de cefalosporina de terceira geração tam‑ bém é importante. Essa classe de antibióticos tem sido mos‑ trada para selecionar espécies de Enterobacter e Serratia que contêm o material genético que codifica para a betalactamase e, portanto, a resistência bacteriana.43,44 A ciprofloxacina associada a um aminoglicosídeo é uma com‑ binação promissora e exige mais atenção. A penetrabilidade no SNC de ciprofloxacina é pobre e, por isso, limita a sua utilidade.45 Associação de metronidazol Antimicrobiano que demonstrou eficácia contra infecções anaeróbias, especialmente Bacteroides fragilis, meningite, ventriculite e endocardite. É também útil no tratamento de in‑ fecções causadas por T. vaginalis. Piperacilina46 possui excelente atividade contra a Pseudomonas aeruginosa. Eficaz contra Klebsiella pneumoniae, Proteus mirabilis, B. fragilis, S. marcescens e muitas cepas de Enterobacter. Deve ser administrada em combinação com um aminoglicosídeo. A oxacilina46 é um antibiótico bactericida que inibe a sínte‑ se da parede celular. Usada no tratamento de infecções causa‑
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das por estafilococos produtores de penicilinase, está indicada para iniciar a terapia quando uma infecção estafilocócica é suspeita. Na Tabela 2 é apresentado um compilado das drogas de uso mais frequente para tratamento de sepse no período neonatal, com doses e intervalos segundo peso ao nascer ou idade gestacional.46-48 Prevenção Prevenção e tratamento podem ser feitos na mulher grávida que os tem corioamnionite, EGB, ou que teve uma criança pré‑ via com sepse decorrente de bactéria. As medidas preventivas maternas proporcionam um nascimento de uma criança de menos risco de infecção, diminuindo assim os riscos de sepse neonatal precoce. Por outro lado, as medidas profiláticas de infecção dentro de uma unidade de terapia intensiva neonatal (UTI), com certeza diminuirão os riscos de sepse neonatal tar‑ dia. Também, UTI neonatal que tem isolamento pode ser mui‑ to importante na diminuição dos riscos da transmissão de al‑ gumas doenças para outras crianças na unidade. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conceber a sepse neonatal como uma síndrome clínica em uma criança de 28 dias de vida ou mais jovem, que se manifesta por sinais sistêmicos de infecção com ou sem isolamento no sangue de um agente patogênico. • Conhecer as bases epidemiológicas, os agentes etiológicos mais comuns, os fatores de risco e a patogênese da sepse neonatal. • Saber da dificuldade de se formular o diagnóstico da sepse neonatal, uma vez que não existem achados específicos que a caracterizem e que muitas manifestações clínicas podem ser confundidas com outros problemas clínicos. • Entender por que o isolamento de uma bactéria patogênica por hemocultura é o único método que realmente confirma o diagnóstico de sepse neonatal, embora o resultado da hemocultura demore alguns dias e em torno de 10% sejam falso-negativos. • Saber que a sepse neonatal precoce está associada a organismos adquiridos da mãe, via placentária, via ascendente do colo uterino, adquirida, de uma infecção urinária materna ou, ainda, durante a passagem no trajeto do canal de parto e que os organismos mais associados com infecção precoce são o estreptococo do grupo B (EGB, S. agalactiae) e a Escherichia coli. • Conhecer as medidas de suporte mais apropriadas à manutenção das condições básicas de vida durante o tratamento do recém-nascido, a ser feito quando do diagnóstico de sepse neonatal. • Conhecer os recursos terapêuticos disponíveis para tratamento da sepse neonatal precoce ou tardia, o critério de sua indicação, os recursos procedimentais eventualmente necessários, a resposta terapêutica esperada, complicações possíveis e prognóstico correspondente.
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Tabela 2 Drogas de uso mais frequente, dosagem conforme peso ao nascer ou idade gestacional DROGA
Dose (mg/kg/dose) e intervalo de administração (segundo o peso do RN ao nascer e/ou idade gestacional) < 1.200 ≤ 29 semanas
1.220 a 2.000 30 a 34 semanas
> 2.000
≥ 35 semanas
0 a 28 dv
0 a 7 dv
> 7 dv
0 a 7 dv
> 7 dv
Ampicilina
25 a 50 (12/12h)
25 a 50 (12/12h)
25 a 50 (8/8h)
25 a 50 (8/8h)
25 a 50 (6/6h)
Ampicilina (meningite)
50 a 100 (12/12h)
50 a 100 (12/12h)
50 a 100 (8/8h)
50 a 100 (8/8h)
50 a 100 (6/6h)
Amicacina
0 a 7 dv: 18 (48/48h) 8 a 28 dv: 5 (36/36h)
18 (36/36h)
15 (24/24h)
15 (24/24h)
15 (24/24h)
Anfotericina
1 a 1,5 (24/24h)
1 a 1,5 (24/24h)
1 a 1,5 (24/24h)
1 a 1,5 (24/24h)
1 a 1,5 (24/24h)
Anfotericina lipossomal
5 a 7 (24/24h)
5 a 7 (24/24h)
5 a 7 (24/24h)
5 a 7 (24/24h)
5 a 7 (24/24h)
Aztreonam
30 (12/12h)
30 (12/12h)
30 (8/8h)
30 (8/8h)
30 (6/6h)
Cefepima
30 (12/12h)
30 (12/12h)
30 (12/12h)
30 (12/12h)
30 (12/12h)
Cefepima (meningite)
50 (12/12h)
50 (12/12h)
50 (12/12h)
50 (12/12h)
50 (12/12h)
Cefotaxima
50 (12/12h)
50 (12/12h)
50 (8/8h)
50 (12/12h)
50 (8/8h)
Ceftazidima
50 (12/12h)
50 (12/12h)
50 (8/8h)
50 (8/8h)
50 (8/8h)
Ceftriaxona
50 (24/24h)
50 (24/24h)
50 (24/24h)
50 (24/24h)
75 (24/24h)
Ciprofloxacina
10 (12/12h)
10 (12/12h)
10 (12/12h)
10 (12/12h)
10 (12/12h)
Clindamicina
10 (12/12h)
10 (12/12h)
15 (8/8h)
15 (8/8h)
20 a 30 (6/6h)
Gentamicina
0 a 7 dv: 5 (48/48h) 8 a 28 dv: 4 (36/36h)
0 a 7 dv: 4,5 (36/36h)
4 (24/24h)
4 (24/24h)
Linezolida
0 a 7 dv: 10 (12/12h) > 7 dv: 10 (8/8h)
10 (12/12h)
10 (8/8h)
10 (8/8h)
10 (8/8h)
Meropenem
0 a 14 dv: 20 (12/12h) > 14 dv: 20 (8/8h)
20 (12/12h)
20 (8/8h)
20 (12/12h)
20 (8/8h)
Meropenem (meningite)
40 (8/8h)
40 (8/8h)
40 (8/8h)
40 (8/8h)
40 (8/8h)
Metronidazol
15 (48/48h) ataque 7,5 (48/48h) manutenção
15 ataque 7,5 (12/12h) manutenção
15 ataque 7,5 (12/12h) manutenhção
15 ataque 7,5 (12/12h) manutenção
15 ataque 7,5 (12/12h) manutenção
Penicilina G
25.000 a 50.000 U (12/12h)
25.000 a 50.000 U (12/12h)
25.000 a 50.000 U (8/8h)
25.000 a 50.000 U (12/12h)
25.000 a 50.000 U (8/8h)
Penicilina G (meningite)
75.000 a 100.000 U (12/12h)
75.000 a 100.000 U (12/12h)
75.000 a 100.000 U (8/8h)
75.000 a 100.000 U (12/12h)
75.000 a 100.000 U (8/8h)
Penicilina G (EGB)
100.000 U (12/12h)
100.000 U (12/12h)
100.000 U (12/12h)
100.000 U (12/12h)
100.000 U (12/12h)
Penicilina G (sífilis)
0 a 7 dv: 50.000 U (12/12h) > 7 dv: 50.000 U (8/8h)
50.000 U (12/12h)
50.000 U (8/8h)
50.000 U (12/12h)
50.000 U (8/8h)
Piperacilina ‑tazobactam
50 a 100 (12/12h)
50 a 100 (12/12h)
50 a 100 (8/8h)
50 a 100 (12/12h)
50 a 100 (8/8h)
Tobramicina
0 a 7 dv: 5 (48/48h) 8 a 28 dv: 4 (36/36h)
4,5 (36/36h)
4 (24/24h)
4 (24/24h)
4 (24/24h)
Vancomicina
0 a 14 dv: 10 (18/18h) > 14 dv: 10 (12/12h)
10 (12/12h)
10 (12/12h)
10 (8/8h)
10 (8/8h)
Vancomicina (meningite)
0 a 14 dv: 15 (18/18h) > 14 dv: 15 (12/12h)
15 (12/12h)
15 (12/12h)
15 (8/8h)
15 (8/8h)
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≥ 8 dv: 4 (24/24h)
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CAPÍTULO 8
ICTERÍCIA NEONATAL Ilson Enk Liana Andres Flavia Lopes Enk
Introdução Trata-se de uma das manifestações mais frequentes do perío‑ lirrubina no neonato é de 6 a 10 mg/kg, sendo 75% derivada do neonatal, ocorrendo em recém-nascidos (RN) de todas as do catabolismo dos eritrócitos e 25% do anel heme, das proteí‑ idades gestacionais. Designa a coloração amarelada da pele e/ nas hepáticas e da destruição de eritrócitos imaturos. ou conjuntivas, sendo definida como a concentração sérica de A classificação da icterícia neonatal envolve 2 grandes gru‑ bilirrubina indireta (BI) > 1,5 mg/ dL ou de bilirrubina direta pos de patologias, que acolhem vários tipos de causas. Trata‑ (BD) > 1,5 mg/dL, desde que esta represente mais do que 10% -se da hiperbilirrubinemia indireta, produzida pelo aumento do valor de bilirrubina total (BT). É visível na avaliação clínica sérico da fração livre (BI), e a direta, decorrente do acúmulo quando o nível de BT sérica excede 5 mg/ dL. da fração conjugada, ou direta, da bilirrubina (BD). No RN, a maioria dos casos de icterícia decorre de um aumento da fração indireta, ou livre, da bilirrubina (BI) e apre‑ Hiperbilirrubinemia indireta senta uma evolução benigna. Na prática, 85% dos RN a termo, A avaliação clínica de um RN ictérico por examinador expe‑ e também a maior parte dos prematuros, desenvolvem icterí‑ riente é útil, porém apenas a estimativa clínica não é suficiente cia clínica. Em torno de 6% de RN saudáveis a termo mostram para avaliar os RN com BI > 12 mg/dL. Nesses neonatos, reco‑ níveis de BT > 12,9 mg/ dL, e 3% > 15 mg/ dL.1 menda-se a dosagem rotineira da bilirrubina sérica ou trans‑ Uma pequena parcela de pacientes, no entanto, que apre‑ cutânea. O ideal é dosar as bilirrubinas em todos os bebês icté‑ senta níveis “críticos” elevados de BI, pode desenvolver a ricos. A amostra de sangue coletado deve permanecer em encefalopatia bilirrubínica, complicação grave denominada frasco ou capilar envolto em papel alumínio para evitar o con‑ kernicterus. O termo kernicterus é reservado à forma crônica da tato com a luz e a degradação da bilirrubina. doença, com sequelas clínicas permanentes por toxicidade da A avaliação da bilirrubina transcutânea é realizada, de bilirrubina. Estima-se que na década de 2000, nos países de‑ preferência, no esterno. Os aparelhos atualmente utilizados senvolvidos, tenha ocorrido um caso de kernicterus para cada apresentam coeficiente elevado de correlação (0,91 a 0,93) 40.000 a 150.000 nascidos vivos.2 com a BT sérica até valores de 13 a 15 mg/dL em RN a termo e pré-termo, independentemente da coloração da pele.3 Entre‑ Fisiopatologia tanto, valores ≥ 13 mg/dL devem ser confirmados pela men‑ Várias são as restrições do metabolismo da bilirrubina que ex‑ suração sérica de BT. plicam a chamada “icterícia fisiológica”: a origem da bilirrubi‑ Na investigação de hiperbilirrubinemia indireta, alguns na está na degradação de hemácias, fisiologicamente normal exames laboratoriais são essenciais (Quadro 1), outros são nos RN. A partir desse fenômeno, instala-se uma cascata de desdobrados conforme o curso do quadro. eventos: a sobrecarga de bilirrubina ao hepatócito e a menor capacidade de captação, conjugação e excreção hepática da bi‑ Quadro 1 Investigação laboratorial da hiperbilirrubinemia lirrubina. A sobrecarga de bilirrubina ao hepatócito decorre da indireta produção aumentada de BI: o RN produz 2 a 3 vezes mais bilir‑ Bilirrubina total e frações rubina do que o adulto, por causa da maior quantidade propor‑ Hemoglobina, hematócrito, contagem de reticulócitos cional de hemoglobina e menor vida média das hemácias, que Tipagem da mãe e RN, sistemas ABO e Rh (antígeno D) é de 70 a 90 dias. Uma vez que o catabolismo de 1 g de hemo‑ Prova de Coombs direta (sangue de cordão ou amostra do RN) globina fornece 34 mg de bilirrubina, a produção diária de bi‑
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Icterícia neonatal •
Outros exames podem ser importantes para casos de ativi‑ dade hemolítica não explicada por incompatibilidade ABO ou Rh, como pesquisa de anticorpos maternos para antígenos ir‑ regulares (anti-c, anti-e, anti-E, anti-Kell), se mãe multigesta, ou previamente transfundida, ou ainda em RN com prova de Coombs direta positiva sem fator identificado. A dosagem de glicose-6-fosfatodesidrogenase (G6PD) pode contribuir para explicar icterícia sem outra causa definida, e o teste do pezi‑ nho avalia a função da tireoide. Dosagem sérica de sódio é útil em alguns casos. O aparecimento de icterícia nas primeiras 24 a 36 horas de vida alerta para a presença de doença hemolítica por incompa‑ tibilidade sanguínea Rh ou, menos frequentemente, ABO, sendo anemia e reticulocitose indicativos da hemólise. Icterícia fisiológica Trata-se de quadro comum, benigno e autolimitado. O termo tem sofrido restrições, mas ainda é muito utilizado. Reflete uma adaptação neonatal ao metabolismo da bilirrubina. Estu‑ do brasileiro com RN a termo, de peso ao nascer adequado para a idade gestacional, saudáveis, em aleitamento materno exclusivo e adequado, mostrou o seguinte perfil dos níveis sé‑ ricos de BT nos primeiros 12 dias de vida: percentil 50: 5,6 mg/ dL no 3º e 4º dias de vida, 4,8 mg/dL no 6º dia; percentil 95: 8,2 mg/dL na 24ª hora de vida, 12,2 mg/dL no 4º dia e 8,5 mg/ dL no 12º dia.4 A literatura classicamente atribui o valor de 13 mg/dL como o máximo para delimitar a icterícia fisiológica, porém os níveis indicativos de tratamento com fototerapia têm sido mais permissivos. Causas não fisiológicas As causas não fisiológicas encontram-se sistematizadas no Quadro 2. Alguns fatores de risco têm sido valorizados para hi‑ perbilirrubinemia indireta com necessidade de tratamento, re‑ sumidos no Quadro 3. Vale lembrar que o fator de maior risco é o surgimento de icterícia dentro das primeiras 24 horas de vida. A idade gestacional entre 35 e 36 semanas, independente‑ mente do peso ao nascer, é considerada um dos fatores de ris‑ co mais importantes para hiperbilirrubinemia significativa em razão da capacidade diminuída da conjugação hepática da bi‑ lirrubina e da dificuldade na sucção e deglutição para manter oferta adequada de leite materno. O risco de RN com 36 semanas desenvolver BT > 20 mg/dL é 8 vezes maior quando comparado a RN de 41 semanas de ida‑ de gestacional. O baixo aporte é fator associado importante nesses RN, normalmente com poder de sucção ainda diminuí‑ do, por favorecer o aumento da circulação êntero-hepática da bilirrubina. Esses pacientes, sobretudo nos casos de alta preco‑ ce da maternidade, têm contribuído para reinternações em lei‑ tos de hospitais pediátricos, elevando os custos no âmbito da saúde pública. A perda exagerada de peso nos primeiros dias de vida, em RN sob aleitamento exclusivo, sem evidências de hemólise ou outra causa de icterícia, pode sugerir esse diagnóstico. Sódio sérico ≥ 150 mEq/L reforça a hipótese.
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Quadro 2 Causas não fisiológicas de hiperbilirrubinemia indireta Sobrecarga de bilirrubina ao hepatócito Doenças hemolíticas Incompatibilidade Rh Incompatibilidade ABO Incompatibilidade por antígenos irregulares (c, E, Kell, etc.) Deficiência de G6PD Esferocitose, eliptocitose Hemoglobinopatias (alfatalassemia) Causas adquiridas Infecções, especialmente sepse Coleções sanguíneas extravasculares (céfalo-hematomas e outras hemorragias) Policitemia NPO prolongado, baixo aporte de leite Anomalias gastrointestinais/com obstrução de trânsito Deficiência ou inibição da conjugação da bilirrubina Icterícia por leite materno Hipotireoidismo congênito Síndrome de Gilbert Síndrome de Crigler-Najjar tipos I e II
Quadro 3 Fatores de maior risco para hiperbilirrubinemia indireta Mãe de tipagem O, e/ou Rh negativo Irmão prévio que necessitou de tratamento para icterícia neonatal Mãe diabética Peso de nascimento entre 2.000 e 2.500 g e/ou idade gestacional entre 35 e 38 semanas (maior risco entre 35 e 36 semanas) Sexo masculino Baixo aporte de leite materno na primeira semana de vida, com perda exagerada de peso pelo RN Alta precoce da maternidade (antes de completar 48 horas de vida)
Outra causa frequente de hiperbilirrubinemia indireta é o jejum prolongado, que favorece a absorção da bilirrubina no nível intestinal e seu maior aporte para a circulação sanguínea. Lembrar que a icterícia prolongada pode ser a única mani‑ festação do hipotireoidismo congênito, pois o hormônio ti‑ reoidiano é um indutor da atividade da glicuroniltransferase. Na presença de céfalo-hematoma, equimoses ou outros san‑ gramentos, a hiperbilirrubinemia manifesta-se 48 a 72 horas após o extravasamento sanguíneo e pode causar icterícia pro‑ longada. A deficiência de G6PD deve ser pesquisada em todo RN que apresente icterícia não fisiológica, mesmo que outra causa ex‑ plique a hiperbilirrubinemia. É uma doença genética associa‑ da ao cromossomo X e, ao contrário do que se esperaria, afeta igualmente indivíduos dos dois sexos. A maior incidência ocorre em pessoas com ancestrais provenientes do Mediterrâ‑
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neo, como Itália e Oriente Médio, da África Equatorial e de al‑ gumas regiões do Sudeste Asiático. No período neonatal exis‑ tem duas formas da doença: a hemolítica aguda com rápida ascensão da BI desencadeada por agentes oxidantes (antima‑ láricos, infecção, talcos mentolados, naftalina, entre outros) e a hemolítica leve associada ao polimorfismo genético com ex‑ pressão reduzida da glicuroniltransferase e conjugação limita‑ da da bilirrubina, sem a presença de anemia.5 Estima-se que pode atingir até 7% da população brasileira, sendo a triagem neonatal da G6PD feita em papel de filtro e a dosagem quanti‑ tativa realizada em sangue com reticulóticos normais. A chamada “icterícia por leite materno” tipicamente se ini‑ cia entre 3 e 5 dias de vida, atingindo o pico após 2 semanas, quando começa a declinar lentamente, desaparecendo entre 3 e 12 semanas após o nascimento. Ocorre em bebês saudáveis, com bom ganho de peso, sob aleitamento natural, e constitui diagnóstico de exclusão. O aumento de bilirrubinas se deve exclusivamente à fração indireta. A causa não está totalmente esclarecida, podendo decorrer de algum fator presente no leite materno que favoreça a absorção intestinal de bilirrubinas. Entre 20 e 40% das mulheres apresentam níveis elevados de beta-glucuronidase no seu leite, o que explicaria a icterícia. Outro mecanismo proposto seria uma mutação polimórfica do gene UGT1A1 do leite de algumas mulheres.5,6 De qualquer for‑ ma, não há necessidade de tratamento da icterícia por leite materno, não se indicando a descontinuidade do aleitamento.
25
428
20
342 lto P75 io a diár rme aixo P40 e b t in rio a de ediá m r e Zon int a de Zon
15 10
Zona de baixo risco
5 0
0
12 24 36 48 60 72 84 96 109 123 132 144 Idade pós-natal (horas)
Figura 1 Nomograma de Bhutani.
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257 171 85 0
Bilirrubina sérica (mg/dL)
Bilirrubina sérica (mg/dL)
Abordagem da hiperbilirrubinemia indireta Importante contribuição para a abordagem da hiperbilirrubi‑ nemia indireta foi o nomograma de Bhutani7 (Figura 1), ainda muito utilizado. Esse nomograma classificou os riscos do valor de BT, com predomínio de BI, em RN com 35 semanas ou mais de idade gestacional, conforme a idade pós-natal. A de‑ signação de risco de RN saudável de termo ou próximo do ter‑ mo é baseada nos valores de bilirrubina específica para sua idade em horas de vida. A zona de alto risco é designada pelo canal de percentil 95. A zona de risco intermediária é subdivi‑ dida em zonas de risco superior e inferior pelo canal de per‑ centil 75. A zona de baixo risco foi eletivamente e estatistica‑ mente definida pelo canal de percentil 40. A classificação
orienta o pediatra a liberar ou não a alta hospitalar, bem como elaborar o plano de investigação e tratamento da icterícia. Incompatibilidade Rh (antígeno D) A hemólise ocorre quando as hemácias do feto e RN, portadoras do antígeno D, são destruídas por anticorpos maternos IgG an‑ ti‑D. São mães sensibilizadas em gestações anteriores que não receberam imunoglobulina específica, com prova de Coombs indireta positiva. A intensidade da hemólise pode determinar formas leves da doença, com icterícia tratável no máximo por fototerapia e anemia, que pode perdurar entre 1 e 3 meses, for‑ mas moderadas, tratadas com fototerapia por vários dias, às vezes com indicação de exsanguinotransfusão (EST) anemia mais profunda e também encontrada até 1 a 3 meses, e formas graves, com hidropsia fetal e péssimo prognóstico. O Coombs direto é sempre positivo, e a contagem de reticulócitos, alta. Incompatibilidade ABO Caracterizada pela tipagem A ou B em RN de mãe O, seja Rh positivo ou negativo. Mais encontrada na primeira gestação, com curso variável. A icterícia costuma aparecer nas primeiras 24 ou 36 horas de vida, e a hemólise pode ocorrer por até 2 se‑ manas. O nível de BT pode atingir valores altos, como 20 mg/ dL. A anemia não é proeminente. Menos grave do que a incom‑ patibilidade Rh, também exige cuidados. Usualmente tratada por fototerapia; em alguns casos, a EST é indicada. Prova de Coombs positiva pode ser evidenciada em 20% dos casos, sem traduzir hemólise maciça. Complicações da hiperbilirrubinemia indireta A mais temida é a encefalopatia bilirrubínica. A fase aguda da doença ocorre nos primeiros dias e perdura por semanas, com letargia, hipotonia e sucção débil. Se a hiperbilirrubinemia não é tratada, aparece hipertonia com hipertermia e choro agudo de alta intensidade. A hipertonia manifesta-se com retroarqueam ento do pescoço e do tronco, progredindo para apneia, coma, convulsões e morte. As crianças sobreviventes apresentam a forma crônica da doença, com a tétrade paralisia cerebral atetoide grave, neuropatia auditiva, paresia vertical do olhar, displasia dentária e, ocasionalmente, deficiência mental. Nesses RN, a ressonância magnética cerebral eviden‑ cia sinais bilaterais e simétricos de alta intensidade no globo pálido.8 Tratamento da hiperbilirrubinemia indireta As formas de terapia mais utilizadas no tratamento da hiperbi‑ lirrubinemia indireta compreendem a fototerapia e a EST, e, em alguns casos, a imunoglobulina standard endovenosa. Os níveis de bilirrubinas para indicar fototerapia e EST, de acordo com idade gestacional e tempo de vida, encontram-se resumidos nas Tabelas 1 e 2. A conduta frente aos resultados da triagem para bilirrubina baseada no nomograma de Bhuta‑ ni também pode orientar a necessidade de fototerapia, confor‑ me guidelines da Sociedade Canadense de Pediatria9 (Tabe‑ la 3). A Figura 2 mostra níveis de bilirrubina total indicativos de fototerapia, conforme fatores de risco.10 Hoje há vários apli‑
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Icterícia neonatal •
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Tabela 1 Nível de BT para indicação de fototerapia e EST em RN ≥ 35 semanas de idade gestacional8
Tabela 3 Condutas diante de níveis de risco e fatores preditivos em RN ≥ 35 semanas de idade gestacional9
Idade
Zona
Fototerapia
Exsanguinotransfusão
350/7 a 376/7 semanas
≥ 380/7 semanas
350/7 a 376/7 semanas
≥ 380/7 semanas
24 horas
8
10
15
18
36 horas
9,5
11,5
16
20
48 horas
11
13
17
21
72 horas
13
15
18
22
96 horas
14
16
20
23
5 a 7 dias
15
17
21
24
Diminuir em 2 mg/dL o nível de indicação de fototerapia ou EST se doença hemolítica (Rh, ABO, outros antígenos), deficiência de G6PD, asfixia, letargia, instabilidade na temperatura, sepse, acidose ou albuminemia < 3 g/dL. Iniciar fototerapia de alta intensidade sempre que: BT > 17 a 19 mg/dL e colher BT após 4 a 6 horas; BT entre 20 e 25 mg/dL e colher BT em 3 a 4 horas; BT > 25 mg/dL e colher BT em 2 a 3 horas, enquanto o material da EST está sendo preparado. Se houver indicação de EST, enquanto ocorre o preparo, colocar o RN em fototerapia de alta intensidade, repetindo a BT em 2 a 3 horas para reavaliar a indicação de EST. A EST deve ser realizada imediatamente se houver sinais de encefalopatia bilirrubínica ou se a BT estiver 5 mg/dL acima dos níveis referidos. A fototerapia pode ser suspensa, em geral, quando BT < 8 a 10 mg/dL, sendo a BT reavaliada 12 a 24 horas após suspensão para detectar rebote.
Tabela 2 Nível de BT para indicação de fototerapia e EST em RN < 34 semanas de idade gestacional8 Peso ao nascer
Bilirrubina total (mg/dL) Fototerapia
Exsanguinotransfusão
6a8
11 a 13
1.501 a 2.000 g
8 a 10
13 a 15
2.001 a 2.500 g
10 a 12
15 a 17
1.001 a 1.500 g
Considerar o valor inferior na presença de fatores de risco: doença hemolítica, deficiência de G6PD, asfixia, letargia, instabilidade na temperatura, sepse, acidose, hipotermia ou albuminemia < 3 g/dL.
cativos de celular que fornecem instantaneamente a conduta a ser tomada de acordo com as recomendações da Academia Americana de Pediatria, utilizando as variáveis valor de bilir‑ rubina total, tempo de vida e fatores de risco. Exemplo: Bilir‑ rubin Calc®. A fototerapia com proteção ocular é o método mais utiliza‑ do nas últimas décadas. Visa a reduzir os níveis de bilirrubinas que poderiam indicar EST. A eficácia desse tratamento depen‑ de do comprimento de onda da luz, da irradiância espectral e da superfície corpórea exposta à luz. Quando a bilirrubinemia é superior ao percentil 95 no no‑ mograma de Bhutani et al., é preferível indicar fototerapia de alta intensidade, de preferência com lâmpadas azuis especiais, para aumentar a irradiância e a superfície corpórea exposta à luz. Nesses casos, não deve haver interrupção de exposição do RN ao aparelho sequer para mamar. Atualmente, a maioria dos casos de hiperbilirrubinemia in‑ direta é controlada por meio de fototerapia, quando adminis‑
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> 37 semanas e CD negativo
35 a 376/7 semanas ou CD positivo
35 a 376/7 semanas e CD positivo
Alta
Fototerapia
Fototerapia
Fototerapia
Intermediária a alta
Investigação adicional ou necessita de tratamento
Fototerapia
Fototerapia
Intermediária a baixa
Cuidados de rotina
Cuidados de rotina
Investigação adicional ou necessita de tratamento
Baixa
Cuidados de rotina
Cuidados de rotina
Cuidados de rotina
Bilirrubina total sérica (mg/dL)
Bilirrubina total (mg/dL)
25 20 15 10 5 0 ao nascer 24 h
48 h
72 h
96 h
5 dias 6 dias 7 dias
Idade RN de baixo risco ( 38 semanas e bem) RN de médio risco ( 38 sem + fat.risco ou 35 a 376/7 sem e bem) RN de alto risco (35 a 376/7 semanas + fatores de risco)
Figura 2 Valores de BT para indicação de fototerapia e EST em RN ≥ 35 semanas de idade gestacional conforme nível de risco.10
trada de maneira adequada. A doença hemolítica grave por in‑ compatibilidade Rh tem sido a principal indicação de EST. A realização desse procedimento invasivo pode produzir eleva‑ da morbidade, que inclui complicações metabólicas, hemodi‑ nâmicas, infecciosas, vasculares, hematológicas, além das reações pós-transfusional e enxerto-hospedeiro. Na hemólise por incompatibilidade Rh, a EST pode ser indicada logo após o nascimento, quando BI > 4 mg/dL e/ou hemoglobina < 12 g/ dL no sangue de cordão. Em casos de hidropsia fetal, o proce‑ dimento inicia-se somente após a estabilização das condições ventilatórias, hemodinâmicas, do equilíbrio acidobásico e da correção da anemia. Na doença hemolítica por incompatibilidade Rh, a BT deve ser determinada a cada 6 a 8 horas, e a EST, indicada se hou‑ ver elevação igual ou superior a 0,5 a 1 mg/dL/hora nas pri‑ meiras 36 horas de vida, ou ainda conforme os níveis de BT, peso ao nascer e presença de fatores agravantes da lesão bilir‑ rubínica neuronal.
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Nas doenças hemolíticas imunes, se houver aumento da BT apesar da fototerapia intensiva ou a BT se aproximar de 2 a 3 mg/dL do nível de indicação de EST, pode-se administrar imunoglobulina standard endovenosa 0,5 a 1 g/kg em 2 horas e repetir após 12 horas, se necessário.10 Hiperbilirrubinemia direta A elevação do nível de BD resulta de distúrbios hepáticos ou doenças sistêmicas potencialmente graves.11 A icterícia coles‑ tática caracteriza-se pelo aumento prolongado da bilirrubina conjugada e é reflexo da redução da excreção pelas células pa‑ renquimatosas hepáticas ou doença do trato biliar. A icterícia causada pela BD elevada confere à pele um tom esverdeado ou amarelo-acastanhado opaco. As causas a serem consideradas envolvem obstrução, sepse, doença do trato biliar, toxinas, in‑ flamação e doenças metabólicas ou genéticas. Entre os critérios que indicam hiperbilirrubinemia grave, está o aumento da bilirrubina conjugada > 1 mg/ dL, se BT < 5 mg/ dL, ou quando bilirrubina conjugada > 20% da bilirrubina total se BT > 5 mg/dL.12 A colestase é causada por uma obstrução extra ou intra-he‑ pática ao fluxo biliar e resulta em retenção no soro de substân‑ cias que normalmente são excretadas na bile, e o marcador mais comum é a hiperbilirrubinemia conjugada. Apesar de não ser neurotóxica, seu acúmulo é sempre patológico e deve ser feito o diagnóstico de forma precoce em razão do potencial de gravidade da atresia biliar, uma das causas mais comuns de colestase. A icterícia pode ser o primeiro sinal de disfunção hepática. Outras manifestações clínicas podem estar presentes, como uri‑ na de cor escura, fezes acólicas (descorada) e hepatomegalia.11 Esses sinais contribuem para a identificação da colestase, po‑ rém oferecem poucos indícios para definição da etiologia, fa‑ zendo-se necessários exames complementares que auxiliem na diferenciação da patologia de base (Quadro 4).13 Entre as várias causas, as mais prevalentes são a atresia de vias biliares e a he‑ patite neonatal. A atresia biliar é definida como ausência ou obliteração dos ductos biliares extra-hepáticos, sendo a principal indicação de transplante hepático em crianças. Os recém-nascidos desen‑ volvem icterícia progressiva nas primeiras 8 semanas de vida e podem apresentar acolia fecal, entretanto, muitas vezes no início do quadro aparentam bom estado geral e adequado ga‑ nho de peso. Os testes laboratoriais apresentam níveis eleva‑
Quadro 4 Investigação inicial da hiperbilirrubinemia direta Hemograma completo, contagem de plaquetas Bilirrubina total e direta, ALT, AST, fosfatase alcalina, glicose
dos de bilirrubina conjugada, discretos ou moderados aumen‑ tos de aminotransferases e elevação da gama-glutamil transpeptidase (GGT). Estudo brasileiro demonstrou que a maioria dos pacientes é operada tardiamente (após 60 dias de vida), situação relacionada a pior prognóstico.14 O encaminha‑ mento tardio dos pacientes com atresia biliar para correção ci‑ rúrgica continua sendo um problema em nível nacional, por‑ tanto é fundamental que o pediatra esteja apto ao reconhecimento e diagnóstico precoce dessa patologia. A hepatite neonatal idiopática é uma doença de causa des‑ conhecida; inclui-se no diagnóstico diferencial da atresia, sen‑ do caracterizada por aumento prolongado da bilirrubina con‑ jugada e pelo achado histológico de células gigantes em biópsia hepática.15 A sepse neonatal causada por organismos Gram-positivos ou Gram-negativos está associada a colestase. Nos casos de in‑ fecção do trato urinário por Escherichia coli, a icterícia pode ser o único sinal presente. Em infecções congênitas, como nos ca‑ sos de toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus, herpes e sífilis, os recém-nascidos também podem evoluir com icterícia coles‑ tática.15 Erros inatos do metabolismo cursam com hiperbilirrubine‑ mia direta, como nos casos de galactosemia ou tirosinemia, patologias que devem ser diagnosticadas precocemente para início de um tratamento eficaz e melhor prognóstico. Considerações finais A icterícia neonatal é uma das mais prevalentes manifestações do período neonatal e precisa, em cada caso, ser compreendi‑ da, ter seu risco avaliado e ser abordada da forma mais ade‑ quada para prevenir danos futuros. A maior parcela dos casos não requer qualquer tratamento específico. Documento Científico do Departamento de Neonatologia da Sociedade Brasileira de Pediatria sobre o tema, publicado em 11/11/2012, emite as seguintes recomendações: 26. Aencefalopatiabilirrubínicaéumadoençaprevenívelesua prevenção engloba várias intervenções, desde a assistência pré-natal às gestantes Rh (D) negativo até o acompanhamen‑ to da icterícia neonatal após a alta hospitalar. 27. EmrelaçãoaosRN≥35semanas,reforça-sequeasaçõesmé‑ dicas consistem em: • avaliar o risco epidemiológico de o RN evoluir com níveis de BT elevados; • promover apoio, assistência e supervisão contínua ao aleitamento materno desde o nascimento, durante a in‑ ternação e após a alta hospitalar no primeiro mês de vida; • realizar a alta hospitalar somente após 48 horas de vida e o retorno ambulatorial em 48 a 72 horas para acompa‑ nhamento da icterícia, aleitamento materno, entre ou‑ tras intercorrências, conforme preconizado pela Socie‑ dade Brasileira de Pediatria e pelo Ministério da Saúde.
Tempo de protrombina, albumina α-1 antitripsina Substâncias redutoras da urina Ecografia abdominal
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer o conceito, a prevalência e a classificação da icterícia neonatal. • Ter noções sólidas da fisiopatologia da icterícia.
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Icterícia neonatal •
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Identificar os fatores de risco para reinternação hospitalar e encefalopatia, consagrados nos casos de icterícia, e sua aplicabilidade na conduta a ser adotada em cada caso. Reconhecer no nomograma de Bhutani os riscos de cada caso e entender a sua predição para indicações de tratamento da icterícia, observação ou alta hospitalar no seguimento. Saber quando e como investigar a icterícia, compreendendo o conceito de icterícia fisiológica. Utilizar com propriedade as curvas e tabelas de indicação de fototerapia ou exsanguinotransfusão. Valorizar os casos de icterícia com aumento da fração direta de bilirrubinas. Adotar adequada postura ante os pais, explicando a icterícia do RN, o seu significado e a necessidade do acompanhamento pós-alta.
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CAPÍTULO 9
CONVULSÕES NO PERÍODO NEONATAL Sérgio Tadeu Martins Marba
Introdução As convulsões neonatais são as manifestações neurológicas mais frequentes desse período, ou seja, os primeiros 28 dias de vida, e podem representar o único sinal clínico de disfunção do siste‑ ma nervoso central (SNC). Representam, muitas vezes, uma emergência na unidade de terapia intensiva neonatal (UTIN). Nesse sentido, é importante que se reconheça a convulsão neo‑ natal, bem como se estabeleça sua etiologia, pois em muitos ca‑ sos há necessidade de um tratamento específico, mudanças na orientação dos cuidados ao recém-nascido (RN) e pode, em de‑ terminadas circunstâncias, causar dano cerebral. A incidência das convulsões neonatais é variável, pois os relatos científicos consideram diferentes bases populacionais e empregam diversos métodos diagnósticos, quer sejam clíni‑ cos, laboratoriais ou eletroencefalográficos. De maneira geral, é estimada uma incidência entre 0,15 e 3,5/1.000 nascidos vivos, considerando-se crianças nascidas a termo. Sabe-se que as convulsões ocorrem em até dez vezes mais em recém-nascidos pré-termo (RNPT), sobretudo quan‑ do associado à hemorragia peri-intraventricular (HPIV). Esses recém-nascidos apresentam rápido crescimento e desenvolvi‑ mento cerebral com mudanças que exigem aumento das de‑ mandas metabólicas e maior excitabilidade. Considerando-se um centro universitário, para onde são encaminhados os casos mais complexos, em uma avaliação de 3.659 neonatos internados no Hospital São Lucas da Pontifí‑ cia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, foi observada incidência de 27/1.000. Na UTIN da Universidade Estadual de Campinas, entre 1996 e 2000, a incidência de convulsão foi de 6,7/1.000 nascidos vivos, sendo 40% dessas crianças de baixo peso ao nascer e 20% de muito baixo peso. Fisiopatologia A crise convulsiva é resultado de uma descarga elétrica exces‑ siva sincrônica, ou seja, uma despolarização dos neurônios do SNC secundária a uma entrada de sódio e saída do potássio da célula. Normalmente, o equilíbrio desses elementos na mem‑
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brana celular necessita de bombas dependentes de energia. Ainda que a fisiopatologia não esteja totalmente esclarecida, esse mecanismo de despolarização excessiva pode estar liga‑ do aos seguintes mecanismos: • falha no mecanismo de equilíbrio da membrana celular de‑ corrente de fenômenos asfíxicos e de hipoglicemia, que deter‑ minam queda na produção energética para o funcionamento da bomba de sódio e potássio; • excesso de neurotransmissores excitatórios extracelulares, como glutamato, que pode estar elevado nos fenômenos asfí‑ xicos e de hipoglicemia, comuns no período neonatal; • diminuição de neurotransmissores inibitórios, como ácido ga‑ ma-aminobutírico (GABA), que depende, para sua síntese, da piridoxina, importante para o tratamento das crises convulsi‑ vas; • fenômenos como hipocalcemia e hipomagnesemia, que po‑ dem ocorrer em RN com uma entrada excessiva de sódio den‑ tro da célula causando despolarização. Além desses mecanismos descritos, ainda há que considerar os aspectos neuroanatômicos e neurofisiológicos na gênese das convulsões neonatais. Nesse período, os neurônios ainda estão em desenvolvimento no que diz respeito a sua orienta‑ ção, formações dendríticas e estabelecimento das conexões si‑ nápticas, o que favorece a convulsão. Nesse cenário, há au‑ mento de receptores (NMDA) para substâncias excitatórias quando comparado com os receptores inibitórios. Finalmente, há uma substância negra pouco desenvolvida e que tem o pa‑ pel de moduladora do SNC e responsável pela não propagação da atividade elétrica cerebral. Etiologia A etiologia dos fenômenos convulsivos tem se alterado nas úl‑ timas décadas em função de novas técnicas de diagnóstico de imagem e biologia molecular (Quadro 1). Encefalopatia hipó‑ xico-isquêmica, hemorragias intracranianas e processos infec‑ ciosos cerebrais respondem por mais de 80% dos casos.
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Convulsões no período neonatal •
Quadro 1 Principais causas de convulsões no período neonatal Encefalopatia hipóxico-isquêmica Hemorragias intracranianas Hemorragia peri-intraventricular Hemorragia subaracnóidea Hemorragia subdural Acidente vascular cerebral Trombose ou embolia arterial Trombose venosa Leucomalácia Infecções Meningite Ventriculite Meningoencefalite Abscesso cerebral Infecções congênitas Toxoplasmose Citomegalovírus Rubéola Sífilis Herpes Malformações cerebrais Distúrbios metabólicos Erros inatos do metabolismo Intoxicação Síndrome de abstinência a drogas Secundária a medicações Síndrome da dependência da piridoxina Síndromes epilépticas do período neonatal Convulsões benignas familiares Encefalopatia epiléptica precoce Encefalopatia mioclônica precoce
A encefalopatia hipóxico-isquêmica (EIH) é a causa mais comum de convulsão no período neonatal. Tem início precoce nas primeiras 24 horas de vida, sendo 60% nas primeiras 12 horas de vida. A hemorragia intracraniana tem ganhado des‑ taque na etiologia de convulsão no RNPT por causa do uso mais frequente da ultrassonografia cerebral à beira do leito nas UTI. Em muitos casos, não se consegue estabelecer relação causal direta entre a convulsão e o processo hemorrágico, na medida em que este ocorre em associação com outros eventos, como EIH e traumas, que também podem levar aos fenôme‑ nos convulsivos. Em relação às infecções bacterianas, há as meningites por Streptococcus do grupo B e Escherichia coli. A convulsão nes‑ sas situações ocorre no final da primeira semana. Nas infec‑ ções não bacterianas, incluem-se várias encefalites neonatais. As convulsões por citomegalovírus (CMV) e toxoplasmose ocorrem nos primeiros 3 dias de vida e as por herpes simples são mais tardias.
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Dentre as malformações cerebrais, que determinam desor‑ ganização cerebral, destacam-se os defeitos de indução, seg‑ mentação, proliferação, migração, mielinização e sinaptogê‑ nese dos componentes neuronais. As convulsões ocorrem em qualquer época do período neonatal. O distúrbio metabólico mais importante é hipoglicemia. A hipocalcemia, que no passado era responsável por até 60% das convulsões, tem perdido seu papel na etiologia da doença. Outros distúrbios menos comuns que podem levar às convul‑ sões são hipo e hipernatremia. Os erros inatos do metabolismo mais comuns, como fator etiológico das crises convulsivas, são deficiência de piridoxina, de tiamina e ácido fólico; aminoacidopatias; hiperamonemia e síndrome de De Vivo. As convulsões decorrentes de intoxicação, provocadas por injeção fetal inadvertida de anestésicos locais, ou via transpla‑ centária, aparecem nas primeiras 6 a 8 horas de vida, com mi‑ dríase paralítica e ausência do reflexo de olhos de boneca. Podem estar associadas a apneia, bradicardia e hipotonia. A sín‑ drome de abstinência pode ser decorrente de abstinência de barbitúricos, álcool, heroína, cocaína, metadona, antidepressi‑ vos tricíclicos, entre outros. Dentre as medicações que podem causar crise convulsiva, destaca-se o midazolam em infusão rá‑ pida. Aspectos clínicos Inicialmente, as convulsões eram diagnosticadas por meio da observação clínica. No entanto, estudos eletroencefalográfi‑ cos (EEG) associados a essa observação possibilitaram dois ti‑ pos de manifestações da doença: • convulsões com alterações motoras e comportamentais sem correlação com o EEG simultâneo; • convulsões eletroencefalográficas sem alteração clínica simultânea. Classificação clínica • Crise sutil: são as mais frequentes e de reconhecimento mais difícil. Podem se manifestar com nistagmo, desvio ocular, mo‑ vimentos de piscar, de sugar, mastigar, beijocas, estalar de lín‑ gua; movimentos de membros, como o de nadar, pedalar, bo‑ xear, rotação dos braços; fenômenos autonômicos abruptos, apneia, taqui ou bradicardia, taquipneia e soluço. Estão asso‑ ciadas de forma inconstante ou sem relação com alterações eletroencefalográficas; • crise clônica: movimentos rítmicos inicialmente de 1 a 3/se‑ gundo, diminuindo progressivamente. Focal quando envolve grupos musculares da face, membro superior ou inferior, musculatura axial ou hemicorpo. A multifocal envolve várias partes do corpo de forma migratória não ordenada. Crises for‑ temente associadas com alterações eletroencefalográficas; • crise tônica: flexão ou extensão sustentada de grupo muscular axial ou apendicular. Pode ser focal ou generalizada. A crise tô‑ nica focal caracteriza-se por postura sustentada de membros ou assimétrica de tronco e/ou pescoço. A generalizada, por ex‑ tensão tônica de membros superiores e inferiores, com postura de descerebração; ou postura tônica de flexão de membros su‑
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periores, com extensão de inferiores com postura de decortica‑ ção. As crises focais estão associadas com alterações eletroen‑ cefalográficas, enquanto nas generalizadas esse fato é incomum; • crise mioclônica: movimentos de velocidade rápida com pre‑ ferência pelo grupo muscular flexor. Pode ser mioclônica focal, quando envolve músculos flexores de membro superior; mul‑ tifocal, com contração assíncrona de muitas partes do corpo; e generalizada, com contração da musculatura flexora bilateral de membros superiores e às vezes também de inferiores. As crises generalizadas estão associadas com alterações eletroen‑ cefalográficas, enquanto nas focais e multifocais esse fato é in‑ comum.
por fenômenos tônicos. Tem prognóstico reservado e apresen‑ ta EEG com padrão surto-supressão tanto no sono como na vi‑ gília.
Antigamente, existia a convulsão benigna idiopática, que foi colocada no grupo de convulsões em que não se permite diag‑ nóstico sindrômico.
Diagnóstico O diagnóstico do fenômeno convulsivo ganha importância na medida em que pode orientar o tratamento. Inicialmente, é importante ser realizada anamnese com os dados de pré-natal e do recém-nascido com detalhes, visando às principais etio‑ Classificação eletroclínica logias da doença. É importante investigar, na história materna • Crise fortemente associada com alterações ao EEG. Pode ser e familiar, a presença de intercorrências no pré-natal; uso de clônica focal (unilateral, multifocal alternante, hemiconvulsi‑ drogas e medicações; complicações no trabalho de parto; me‑ va ou axial), mioclônica generalizada ou focal e tônica focal; dicações e anestesia usadas no parto; antecedentes de convul‑ • crise clínica sem correlação eletrocortical consistente. Pode são na família ou de erros inatos do metabolismo. Valorizar ser sutil, tônica generalizada ou mioclônica. Nesses casos, há nas condições de nascimento a evidência de sofrimento fetal, dúvida se essas manifestações clínicas seriam secundárias a necessidade de reanimação e trauma de parto. Em seguida, deve ser realizado o exame clínico do recém‑ uma liberação da atividade de áreas do SNC que perderam a inibição por lesão em outras regiões ou se não é pelo fato de -nascido. Avaliar idade gestacional, estado nutricional, presen‑ não se conseguir detectar as descargas neuronais nos equipa‑ ça de sinais dismórficos e sinais e sintomas de infecção. mentos de EEG convencionais, por terem origem em locais De imediato, afastar causas comuns como hipoglicemia e muito profundos, como hipocampo e tronco cerebral; meningite bacteriana, com avaliação da glicemia e liquor, bem • crise eletrográfica sem alteração clínica. São as chamadas cri‑ como hemograma e hemocultura. Em seguida, é necessária avaliação hidreletrolítica com gasometria, dosagem de sódio, ses ocultas e podem corresponder entre 30 e 70% dos casos; potássio, cálcio e magnésio. Outros exames de relevância são • espasmos infantis. as sorologias, caso a história materna indique essa direção. É importante lembrar que crianças com hiperexcitabilidade Complementam a investigação, se necessário, bateria de erros (tremores) podem ser diagnosticadas como em crises convul‑ inatos do metabolismo e fundoscopia. Em algumas situações, sivas clônicas. No entanto, diferentemente do que ocorre nos a avaliação do geneticista pode ser determinante para o escla‑ fenômenos convulsivos, os tremores aumentam com estímu‑ recimento de síndromes genéticas (Figura 1). los externos e cessam com a mudança do membro de posição. Exames complementares Além disso, não são acompanhados de movimentação ocular. Eletroencefalograma e poligrafia Síndromes epilépticas neonatais Trata-se de exame não invasivo e muito valioso para o diag‑ São aquelas geradas por descargas neuronais paroxísticas e hi‑ nóstico e estabelecimento do prognóstico das crises convulsi‑ persincrônicas. Segundo a Classificação Internacional das vas do RN. Geralmente é obtido nos períodos intercrise, pela Síndromes Epilépticas realizada pela Internacional League dificuldade em se obter os traçados no momento da convulsão. Against Epilepsy (ILAE), existem: Vale a pena lembrar que algumas descargas epilépticas podem • convulsão benigna familiar: ocorre nos primeiros dias de vida não ser detectáveis, como dito anteriormente. do RN e por isso é conhecida como crise do quinto dia. Apre‑ Da mesma maneira, alguns traçados alterados podem não senta exame neurológico normal intercrítico. As crises con‑ ser acompanhados de manifestações clínicas, são as chama‑ vulsivas têm caráter clônico multifocal, de difícil controle e das dissociações eletroclínicas. Nesses casos, recomenda-se o podendo evoluir para mal convulsivo. Tem evolução favorável uso da monitoração do EEG de longa duração com auxílio de com normalização do quadro clínico nos meses subsequentes. vídeo e avaliação de outros parâmetros fisiológicos, como ele‑ Foi encontrada herança autossômica dominante ligada ao tro-oculograma (EOG), eletromiograma (EMG), eletrocardio‑ cromossomo 20(20q13.3) e menos frequentemente ao cro‑ grama (ECG) e padrão respiratório. Esses parâmetros são es‑ mossomo 8(8q24); senciais à análise da função encefálica e do ciclo vigília-sono e • encefalopatia mioclônica precoce: tem início precoce, de difí‑ permitem o registro gráfico de fenômenos anormais, como ap‑ cil controle e caracteriza-se por fenômenos clônicos ou mio‑ neias, bradicardia, arritmias cardíacas e movimentos associa‑ clônicos erráticos. Tem prognóstico reservado e apresenta dos a crises epilépticas. Os padrões de pior prognóstico são: EEG com padrão surto-supressão evidente no sono; isoelétrico, baixa voltagem, indiferenciado e surto-supressão. • encefalopatia epiléptica precoce (síndrome de Ohtahama): Mais recentemente, surgiu a possibilidade da avaliação ele‑ também de início precoce, de difícil controle e caracteriza-se trocortical do RN por meio de equipamentos de EEG de ampli‑
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Tratado de Pediatria 4ed.indb 1271 Exame físico e neurológico Idade gestacional Estado nutricional Sinais dismórficos Sinais e sintomas de infecção
Exames por imagem Ecografia cerebral, tomografia de crânio, ressonância magnética, etc.
EEG
Outros Sorologias Lactato Piruvato Bateria de erros inatos do metabolismo Fundoscopia Avaliação genética
Ponderar na investigação a realização dos seguintes exames
Convulsão antes de 48 horas de vida
Condições de nascimento Evidência de sofrimento fetal Necessidade de reanimação Trauma de parto
Exames laboratoriais Glicemia, cálcio, eletrólitos, gasometria, LCR, citologia, bioquímica, cultura, hemograma, hemocultura
Figura 1 Roteiro para a investigação diagnóstica das crises convulsivas neonatais.
D9 Causa desconhecida
convulsão benigna neonatal
D8 Síndromes idiopáticas de
D7 Abstinência a drogas
Malformações cerebrais
Infecções intracranianas
Intoxicação por anestésicos locais
Distúrbios metabólicos
Hemorragias SNC, AVC, leucomalácia
Encefalopatia hipóxico-isquêmica
História familiar Antecedentes de convulsão Antecedentes de EIM
De acordo com as evidências e época da convulsão, considerar as possíveis causas etiológicas
História materna Intercorrências no pré-natal Uso de drogas e medicações Complicações no trabalho de parto Medicações, anestesia no parto
Convulsão após 48 horas de vida
Tipos de convulsão Sutil Clônica Tônica Mioclônica
Avaliar
CONVULSÃO NO PERÍODO NEONATAL
Convulsões no período neonatal •
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tude integrada para crianças de alto risco, podendo ser feita à beira do leito. É bastante útil sobretudo nas crises eletrográfi‑ cas sem manifestação clínica, em razão da necessidade de tratamento ou mesmo para evitar tratamentos desnecessários nas crises não epilépticas. Exame de imagem A ultrassonografia transfontanelar representa um excelente meio diagnóstico em RN pela praticidade na sua execução, no diagnóstico de casos de hemorragia peri-intraventricular, dila‑ tação ventricular e leucomalácia periventricular cística. A to‑ mografia tem poder de resolução pequeno no diagnóstico etio‑ lógico das crises convulsivas diante da dificuldade de realização do método e da grande exposição da criança a ra‑ diações. A ressonância magnética também tem o inconve‑ niente da dificuldade em ser realizada, mas quando possível apresenta um alto poder resolutivo para lesões sutis do SNC não apreciadas na ultrassonografia cerebral. Outras técnicas de imagem como tomografia por emissão de pósitrons (PET) e por emissão de fóton único (SPECT) são pouco utilizadas na prática clínica durante o período neonatal. Tratamento O tratamento das crises convulsivas no período neonatal en‑ volve duas abordagens: 1. Tratamento da causa desencadeante da convulsão, quando é possível a sua identificação. 2. Tratamento da convulsão propriamente dita.
derados emergências médicas e devem ser tratados pronta‑ mente. Do mesmo modo, tem sido apontado que a convulsão clínica em RN com encefalopatia hipóxico-isquêmica está as‑ sociada a pior desempenho neurológico e do desenvolvimento, independentemente da gravidade da encefalopatia neonatal. Estudos experimentais em animais também demonstra‑ ram que cérebros imaturos são vulneráveis à lesão induzida pela convulsão, com quadro de necrose e morte celular progra‑ mada por apoptose, com rearranjo sináptico e aparecimento posterior de epilepsia. Por outro lado, há também dados experimentais significati‑ vos, em modelos animais, que as medicações antiepilépticas estão associadas à neurotoxicidade e à indução de apoptose e poderiam levar a anormalidades no desenvolvimento cerebral normal, com alteração na proliferação celular, neurogênese, migração, morte celular programada, sinaptogênese, plastici‑ dade sináptica e possivelmente alteração na mielinização do cérebro em desenvolvimento. Há também relato de alterações neuropsiquiátricas associadas ao uso de fenobarbital. Dessa forma, apesar do uso de alguns medicamentos anticonvulsivantes há mais de 40 anos, ainda não há diretri‑ zes baseadas em evidências para a sua indicação, manutenção e esquema de retirada. Os esquemas propostos a seguir são ba‑ seados em consenso de especialistas na área neonatal e de neurologia infantil, conforme a Tabela 1. Tabela 1 Medicações anticonvulsivantes utilizadas no período neonatal Medicações
Tratamento da causa desencadeante 1ª linha Fenobarbital dos movimentos convulsivos Fenitoína O reconhecimento da causa básica dos movimentos é impor‑ 2ª linha Midazolam Clonazepam tante pois o seu tratamento pode promover o desaparecimen‑ 3ª linha Topiramato to da anormalidade, como acontece naqueles decorrentes de Lidocaína hipoglicemia e hipocalcemia, ou ao menos um controle par‑ Levetiracetam cial, como ocorre em erros inatos de metabolismo. Dessa forma, em um RN que se apresenta com movimen‑ tos convulsivos, a determinação glicêmica por fita reagente é Fenobarbital sempre importante e, caso os valores estejam baixos, deve ser O fenobarbital tem sido classicamente usado como a droga de administrada solução de glicose a 10% (200 mg/kg em bolo) primeira escolha. Como efeitos colaterais são relatadas de‑ até que os valores de glicemia normalizem e os movimentos pressão respiratória, diminuição do nível de consciência e so‑ cessem. nolência, hipotensão, hipotonia, erupção cutânea idiossincrá‑ Em RN com história prévia recente de hipocalcemia e que sica e discrasia sanguínea. Na primeira semana de vida, sua apresentam movimentos anormais de hiperexcitabilidade gra‑ meia-vida é prolongada (43 a 217 horas). Oferece a grande van‑ ves ou convulsivos, deve ser administrada infusão lenta de tagem de poder ser administrado por via enteral durante a fase gluconato de cálcio (200 mg/kg em bolo), com monitoração de manutenção. cardíaca, até que os movimentos cessem. Doses Medicações anticonvulsivantes • Ataque: 20 mg/kg – pode ser repetida até se atingir 40 mg/kg Os objetivos da administração de medicações anticonvulsi‑ com uma nova dose de ataque de 20 mg/kg ou 2 doses de 10 vantes são a abolição dos movimentos convulsivos, o controle mg/kg. Administração endovenosa. Doses adicionais não de crises eletrográficas, a prevenção de deterioração clínica melhoram a eficácia e aumentam as chances de efeitos cola‑ nas crises prolongadas, bem como evitar o dano cerebral pro‑ terais; gressivo e diminuir as chances de epilepsia futura. • manutenção: 3 a 5 mg/kg/dia. Objetivo – manter nível sérico Movimentos convulsivos causam apneia, instabilidade he‑ abaixo de 40 mcg/mL. Administração endovenosa ou enteral. modinâmica e redução dos níveis de consciência, e são consi‑ A manutenção oral deve ser de 5 a 7 mg/kg/dia.
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Fenitoína A fenitoína em geral é utilizada em casos de crises convulsivas refratárias ao uso de fenobarbital. No entanto, em um único trabalho que avaliou as duas medicações no tratamento de cri‑ ses convulsivas no RN a termo, elas foram igualmente efica‑ zes. De modo isolado, o controle dos movimentos convulsivos foi atingido em pouco menos da metade dos casos (43% para o fenobarbital e 45% para a fenitoína), e combinadas, a eficácia foi de 50 a 60%. Apesar dessa eficiência no controle das crises, a absorção enteral em recém-nascidos é irregular e não forne‑ ce níveis séricos adequados, e a medicação não pode ser usada no tratamento em longo prazo. São descritos como efeitos colaterais a reação no local da infusão, arritmia cardíaca, erupção cutânea idiossincrásica, hepatotoxicidade e discrasia sanguínea.
Levetiracetam Ainda pouco estudado, parece promissor por também ter efei‑ to neuroprotetor, sem indução de apoptose neuronal. A dose é desconhecida, sendo descrita administração de ataque de 40 a 60 mg/kg endovenoso, seguido por dose de manutenção de 30 mg/kg/dia. No entanto, há informações limitadas no período neonatal sobre efeitos colaterais e níveis séricos ade‑ quados.
Doses
Dose
• Ataque: 20 mg/kg. Administração endovenosa; • manutenção: 5 a 7 mg/kg/dia. Objetivo – manter nível sérico entre 10 e 20 mcg/mL. Administração endovenosa. Midazolam Este diazepínico é usado nas crises convulsivas refratárias ao uso de fenobarbital/fenitoína. Os estudos publicados envol‑ vem um pequeno número de crianças, com taxa de controle de 50 a 100%, mas não é usado como droga de manutenção em tempo prolongado, pois leva a depressão respiratória e neces‑ sidade de ventilação mecânica em um número significativo de casos. São descritos como efeitos colaterais depressão respira‑ tória, diminuição do nível de consciência e hipotensão. Doses
• Ataque: 0,2 a 0,4 mg/kg. Administração endovenosa; • manutenção: infusão contínua endovenosa – 0,1 a 0,5 mg/ kg/hora. Clonazepam Este benzodiazepínico foi usado em crises convulsivas refratá‑ rias, porém superado pelo uso do midazolam. No país, só exis‑ te a apresentação enteral, limitando o seu uso. Tem como efei‑ tos colaterais sedação e aumento de secreção respiratória. Dose
• Ataque: 0,1 a 0,4 mg/kg. Administração enteral; • manutenção: 0,1 mg/kg/dia. Administração enteral. Topiramato Em ensaios animais, o topiramato apresenta vários mecanis‑ mos que levam à ação anticonvulsivante e parece ter ação neuroprotetora em modelos animais. Em virtude da ausência de preparação para administração parenteral, só pode ser ad‑ ministrado via enteral. Os ensaios com o medicamento envol‑ vem pequeno número de crianças, com dados farmacocinéti‑ cos ainda não estabelecidos. Manutenção: 1 a 2 mg/kg – 1 vez/ dia.
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Lidocaína Mais utilizada na Europa em casos graves refratários ao uso de fenobarbital. Deve ser administrada com monitoração cardía‑ ca e a infusão deve ser interrompida imediatamente se ocorrer arritmia cardíaca. Em pacientes com cardiopatia congênita ou que receberam previamente fenitoína, não deve ser usada. • Ataque – 2 mg/kg em 10 minutos. Administração endoveno‑ sa; • manutenção – 6 mg/kg/hora nas primeiras 12 horas, seguida por 4 mg/kg/hora nas próximas 12 horas e 2 mg/kg/hora nas últimas 12 horas. Outras drogas
Tiopental
Uso pouco frequente nos dias atuais, utilizado em casos refra‑ tários às medicações de 1ª e 2ª linha. Necessita ser administra‑ do em ambiente de terapia intensiva, com suporte hemodinâ‑ mico e respiratório, pois leva à depressão respiratória e possibilidade de hipotensão. • Ataque: 1 mg/kg. Administração endovenosa; • manutenção: infusão contínua endovenosa. 0,01 mg/kg/min. Vigarabatina Experiência muito restrita . Em razão do efeito colateral de re‑ dução do campo visual, o qual não pode ser avaliado em RN, ele não tem sido utilizado. Vitamina B6 – piridoxina A deficiência dessa vitamina pode causar quadros convulsivos, com alterações eletroencefalográficas características. A admi‑ nistração da piridoxina tem sido indicada nos casos de mal convulsivo não responsivo ao esquema de 1ª e 2ª linha de me‑ dicações anticonvulsivantes. • Ataque: 50 a 100 mg/dia. Administração endovenosa; • Manutenção: 50 a 100 mg/dia. Esquema de retirada do tratamento Após o controle das crises convulsivas, o RN deve ser acompa‑ nhando por neurologista, pois há possibilidade de recorrência das crises, e o desenvolvimento de epilepsia tem sido estima‑ do em 10 a 30%. A decisão de se descontinuar a terapêutica deve se basear em 3 pontos principais: exame neurológico, causa da convul‑ são e EEG, conforme a Figura 2.
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Exame neurológico
Sempre normal
Anormal
EEG normal ou causa metabólica transitória
Descontinuar tratamento
Sim
Não
Exame neurológico
Normal
Manter tratamento
Anormal
EEG
Normal
Anormal
Manter medicação 3 meses
Reavaliar 3 meses
Figura 2 Descontinuação do tratamento anticonvulsivante.
Prognóstico De maneira geral, pode-se dizer que o prognóstico relacionado à mortalidade nos RN com crise convulsiva tem melhorado ao longo das últimas décadas na medida em que, na maioria dos casos, a convulsão é uma manifestação de doenças neurológi‑ cas e elas têm sido mais bem conduzidas com a consolidação de UTI bem equipadas e com profissionais mais capacitados no cuidado do RN de alto risco. No entanto, considerando-se as sequelas motoras, elas têm se mantido estáveis, principal‑ mente à custa do aumento da sobrevida de RNPT cada vez menor e com maior possibilidade de doenças como hemorra‑ gia peri-intraventricular e leucomalácia periventricular, mui‑ tas vezes associadas às crises convulsivas. Assim, o prognósti‑ co de crianças com convulsão varia segundo o grau de prematuridade do RN. As principais sequelas neurológicas são paralisias cerebrais, atraso no desenvolvimento neuropsicomotor e evolução para epilepsia. Essas alterações ocorrem, de maneira geral, em 30% dos sobreviventes a termo com crise convulsiva, podendo che‑ gar a 40% em RNPT. Além do grau de prematuridade, o prognóstico de RN com crise convulsiva está intimamente ligado às características do
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traçado do EEG, ao reconhecimento de uma doença neuroló‑ gica de base, à resposta ao tratamento com drogas anticonvul‑ sivantes e ao exame neurológico. A melhor evolução ocorre nas crises decorrentes de distúr‑ bios transitórios (hipocalcemia, hipoglicemia, etc.), crise epi‑ léptica idiopática e familiar e quando o EEG for normal. As cri‑ ses de curta duração não parecem provocar comprometimento cerebral importante em cérebros imaturos. Quando a causa da encefalopatia se estabiliza, geralmente as convulsões são au‑ tolimitadas e desaparecem em dias ou semanas. A pior evolu‑ ção ocorre na encefalopatia hipóxico-isquêmica, nas lesões estruturais do SNC, nas displasias cerebrais e nas meningoen‑ cefalites. Há ainda que se considerar que a própria crise convulsiva, quando prolongada, refratária ao tratamento com anticonvul‑ sivante ou mesmo de repetição, pode determinar um dano ce‑ rebral, sobretudo se já houver lesão prévia ou se tratar de cére‑ bro imaturo. Essas crises podem determinar uma alteração no crescimento neuronal por depleção energética e alteração na síntese de DNA, no desenvolvimento do hipocampo que está associado a evolução para epilepsia, no desenvolvimento de sinapses cerebrais normais e, finalmente, em alterações cog‑ nitivas ou comportamentais. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender a etiologia e as causas mais comuns de convulsão. • Reconhecer a convulsão nos seus aspectos clínicos e eletroclínicos. • Conduzir adequadamente um roteiro diagnóstico da doença. • Solicitar os exames específicos para elucidação diagnóstica. • Instituir o tratamento para a convulsão neonatal. • Elaborar um plano de acompanhamento da doença.
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CAPÍTULO 10
DISTÚRBIOS RESPIRATÓRIOS DO RECÉM-NASCIDO Antonio Carlos de Almeida Melo José Roberto de Moraes Ramos
Introdução As doenças respiratórias são as principais responsáveis pela morbidade e mortalidade durante o período neonatal, repre‑ sentando a causa mais comum de internação nessa faixa etária. A incorporação dos avanços tecnológicos nos cuidados prestados aos recém-nascidos (RN) criticamente doentes, as‑ sim como a utilização de novas abordagens diagnósticas e te‑ rapêuticas no manejo da doença respiratória neonatal, contri‑ buíram para a elevação das taxas de sobrevida de bebês prematuros, particularmente os nascidos com muito baixo peso. As trocas gasosas que ocorrem intraútero são mediadas ex‑ clusivamente pela difusão placentária, já que os pulmões ain‑ da não são funcionais. O processo de expansão pulmonar que ocorre ao nascimento, associado a outros fenômenos fisiológi‑ cos adaptativos, leva à redução da resistência vascular pulmo‑ nar (RVP), com consequente aumento no fluxo sanguíneo que chega aos pulmões, para que o RN inicie a troca gasosa direta‑ mente com o meio externo. O RN normalmente apresenta cerca de 50 milhões de al‑ véolos ao nascimento, tendo potencial para adicionar mais 250 milhões e aumentar sua área de 3 para 70 m2. Existem ain‑ da cerca de quarenta tipos diferentes de células nos pulmões, cada qual com diferentes funções. O momento do nascimento representa um evento dramático de todo esse processo, pois o desenvolvimento dos pulmões continua acontecendo até por volta dos 8 anos, podendo se completar somente aos 25 anos de idade.1
Anamnese • Prematuridade – síndrome de desconforto respiratório; • febre materna, corioamnionite, perda de filho anterior com sofrimento respiratório – colonização por streptococcus do grupo B, deficiência de proteína B do complexo surfactante; • parto cesáreo em bebês prematuros limítrofes – taquipneia transitória do RN; • uso de anti-inflamatório não esteroide – hipertensão pulmonar; • sofrimento fetal agudo – síndrome de aspiração meconial (SAM). Exame físico • Esforço respiratório: taquipneia, retração costal, esternal e diafragmática, batimentos de asa de nariz, gemência; • cianose; • crises de apneia; • avaliação clínica do desconforto respiratório: –– boletim de Silverman-Andersen: notas acima de 4 ex‑ pressam dificuldade respiratória de moderada a grave (Figura 2); –– sinais cardíacos: valorizar bradicardia ou taquicardia associada ou não a hipotensão; –– sinais gerais: hipoatividade, palidez, sudorese, fadiga, con‑ vulsão, irritabilidade, coma, pele impregnada de mecônio, abdome escavado, estridor, hipoglicemia, anemia, acidose.
Laboratório • Gasometria; • glicemia; Abordagem do RN com insuficiência • hemograma e proteína C reativa (PCR); respiratória aguda • contagem de plaquetas; Existe uma grande variedade de causas de insuficiência respi‑ • exames específicos de acordo com cada caso. ratória no período neonatal (Figura 1). Embora a grande maioria das causas seja de origem pulmo‑ Avaliação radiológica nar, deve-se sempre considerar a possibilidade de etiologias As alterações radiológicas estão descritas na Tabela 1, e o diag‑ extrapulmonares, como as cardiopatias congênitas, as de ori‑ nóstico mais provável está estratificado pela idade gestacional gem central, as metabólicas e as hematológicas. em que se encontra o RN.
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Tratado de Pediatria 4ed.indb 1277 Acianótica • Coartação de aorta
Fonte: Murahovschi, 2003.2 TVGB: Transposição dos grandes vasos da base.
CRÔNICO • Displasia broncopulmonar • Síndrome de Wilson-Mikity
PULMONAR (desconforto respiratório progressivo)
AGUDO • Membrana hialina • Broncoaspiração • Pneumopatias infecciosas • Pneumomediastino • Taquipneia transitória • Bronquiolite • Hemorragia pulmonar • Cisto pulmonar • Enfisema lobar • Malformações • Agenesia • Hipoplasia
Cianótica • Hipoplasia • VE • Ventrículo único • TGVB • Drenagem anômala de veias pulmonares
Cardiopatia congênita
Miocardite • Infecciosa • Anóxica
Secundária à pneumopatia
CARDÍACA (cIanose resistente ao oxigênio)
Figura 1 Roteiro diagnóstico do desconforto respiratório do recém-nascido.
CENTRAL (crise de apneia e cianose) • Anoxia • Hemorragia intracraniana • Depressão por drogas
• História obstétrica e perinatal • Caracterização clínica • Radiografia de tórax
METABÓLICA • Acidose metabólica • Hipotermia • Hipoglicemia
OUTRAS
Obstrução de vias aéreas • Obstrução nasal • Atresia de coanas • Macroglossia • Doença de corda vocal • Doença de laringe • Bócio congênito • Outras
Miopatias
Malformações da caixa torácica
Doenças diafragmáticas • Eventração • Hérnia
HEMATOLÓGICA • Anemia • Poliglobulina • Hipovolemia
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Movimentos de tórax e abdome
Retração costal interior
Retração xifoide
Batimento de asas do nariz
Gemido expiratório
Nota (somar)
0
Sincronismo
Retração ausente ou mínima
Ausente
Ausente
1
Declínio inspiratório
Retração leve ou moderada
Discreto
Audível com estetoscópio
2
Balancim
Retração intensa
Intenso
Audível sem estetoscópio
Figura 2 Boletim de Silverman-Andersen para avaliação do desconforto respiratório.
Tabela 1 Alterações radiográficas no período neonatal Idade gestacional
Alterações radiológicas
Diagnóstico provável
RN pós-termo
Opacidades pulmonares assimétricas e irregulares
Aspiração de mecônio Pneumonia
RN a termo
Reforço da trama vascular, principalmente à direita. Cisurite
Taquipneia transitória do RN
Hipotransparência difusa, aspecto retículo ‑granular, imagem em vidro moído
Doença de membrana hialina
RN prematuro
RN extremo baixo peso
Imagem de volume diminuído sem hipotransparência
Imaturidade pulmonar
Piora súbita em qualquer idade gestacional
Imagem de “ar fora”
Enfisema intersticial Pneumotórax
Fonte: Moreira e Lopes, 2004.3
Principais patologias respiratórias no período neonatal Doença de membrana hialina (DMH) Doença respiratória que acomete cerca de 50% dos RN prema‑ turos com peso de nascimento menor que 1.500 g e em torno de 80% dos prematuros com menos de 25 semanas. Resulta da imaturidade pulmonar pela deficiência e inatividade do surfactante, desenvolvimento pulmonar incompleto e com‑ placência exagerada da caixa torácica.
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O RN com membrana hialina apresenta dificuldade respi‑ ratória desde o momento do nascimento, piorando progressi‑ vamente nas primeiras 72 horas. Ao auscultar o tórax, encon‑ tra-se uma baixa entrada de ar, traduzida pela diminuição do murmúrio vesicular. Nos prematuros de muito baixo peso, a expressão clínica do desconforto respiratório pode ser pouco evidente, sendo frequente o aparecimento precoce de crises de apneia e cianose. A radiografia de tórax típica mostra infiltrado retículo-gra‑ nular difuso distribuído de maneira uniforme (aspecto de “vi‑ dro moído ou vidro fosco”), broncograma aéreo periférico e aumento de líquido pulmonar. Os prematuros de extremo bai‑ xo peso podem apresentar, no início, poucas alterações radio‑ lógicas, decorrente da imaturidade de seus pulmões, com nú‑ mero reduzido de alvéolos. A gasometria arterial revela hipoxemia importante em ar ambiente. Com a evolução do quadro há retenção de CO2, que pode estar inicialmente normal ou até diminuído em razão da taquipneia compensatória. A acidose, inicialmente do tipo respiratório, costuma progredir para acidose mista. O diagnóstico diferencial deve ser feito com as pneumonias congênitas, em especial pelo estreptococo do grupo B, taquip‑ neia transitória, cardiopatias congênitas e malformações pul‑ monares. Adequada assistência pré-natal para diminuir a incidência de parto prematuro, incentivo ao parto normal, não indicação de cesarianas eletivas sem comprovação da maturidade fetal e reanimação neonatal apropriada são estratégias para prevenir a ocorrência dessa doença. Além disso, é de eficácia compro‑
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vada, o uso de corticoterapia antenatal, em curso único de be‑ • levar o bebê envolto em pano aquecido à mesa de reanimação tametasona 12 mg intramuscular, 2 doses com intervalo de 24 também já previamente aquecida; horas, nas gestações entre 26 e 34 semanas de idade gestacio‑ • não secar o bebê e envolvê-lo em saco plástico transparente nal. (exceto a cabeça). O saco plástico só será retirado após a esta‑ bilização na unidade neonatal; Tratamento • utilizar touca dupla para reduzir a perda de calor na região da O tratamento da SDR é multifatorial e inicia-se na prevenção fontanela (cobrir o couro cabeludo com plástico e colocar por com uso de corticosteroide antenatal, em gestante em traba‑ cima touca de lã ou algodão). lho de parto prematuro. A utilização de métodos de ventilação assistida, reposição de surfactante exógeno, medidas gerais de Suporte respiratório controle térmico, metabólico, hídrico e ainda a importância de CPAP nasal (continuous positive airway pressure) um suporte nutricional agressivo e precoce são fundamentais Atualmente, a ventilação não invasiva (VNI) e a CPAP vêm para o sucesso do tratamento desses bebês. sendo adotadas, em alguns casos, como métodos de primeira A meta primordial para essas crianças é manter uma boa escolha para a assistência respiratória. Conforme comentado oxigenação, e, para isso, é necessário um rápido e efetivo re‑ anteriormente, tem-se recomendado sua utilização precoce, crutamento de áreas colapsadas comum nessa patologia de‑ muitas vezes na sala de parto, para prevenir colapso dos alvéo‑ corrente da falta de surfactante. A intenção é diminuir a ne‑ los ainda abertos e reduzir a necessidade de suporte ventilató‑ cessidade de suporte ventilatório, reduzir as necessidades de rio no curso da doença. oxigênio e evitar uma maior agressão pulmonar. Nesse contexto, o uso do CPAP nasal vem sendo muito es‑ timulado, principalmente com o intuito de minimizar a lesão Reanimação adequada evitando minimizar pulmonar. Exerce importante ação fisiológica, por meio do au‑ a lesão pulmonar mento da capacidade residual funcional e promoção do cresci‑ Dados referentes ao período de 2012 a 2014 da Rede Brasileira mento pulmonar do prematuro. Além disso, melhora a com‑ de Pesquisas Neonatais de 20 centros universitários demons‑ placência pulmonar, reduz a resistência das vias aéreas, traram que 62% de bebês nascidos entre 23 e 34 semanas ne‑ aumentando seu diâmetro e mantendo-as abertas, diminui a cessitam de uso de máscara ou cânula traqueal para iniciar a frequência respiratória, melhora a aposição do diafragma e a respiração, corroborando a importância de minimizar a agres‑ sua contratilidade e apresenta um papel na conservação do são pulmonar no auxílio à inicialização da respiração de pre‑ surfactante exógeno. maturos.4 Na prática, objetiva-se manter uma PaO2 entre 50 e 70 Nesse sentido, o programa de reanimação neonatal da SBP mmHg e, se necessário, realizam-se aumentos graduais da FiO2 (www.sbp.com.br/reanimacao) enfatiza em sala de parto a (5 a 10%) até cerca de 80% e do CPAP até, no máximo, 10 cmH2O. utilização de ventilador mecânico manual com peça T, pois Naqueles casos com insuficiência respiratória grave, carac‑ possibilita o uso de pressão positiva final, facilitando não só a terizada por hipóxia acentuada e acidose respiratória grave manutenção de unidades alveolares abertas, bem como um (PCO2 > 60 mmHg), apesar do uso de CPAP nasal, a ventilação recrutamento mais adequado de áreas já colapsadas. Além mecânica (VM) deve ser indicada. disso, ele permite a utilização de pressão positiva contínua de vias aéreas (CPAP) desde o nascimento até a transferência Ventilação mecânica para a UTI neonatal. Dados de metanálise de 3 ensaios clíni‑ O uso da VM tem possibilitado a sobrevivência de RN pré-ter‑ cos que compararam CPAP versus entubação e ventilação na mos com doenças mais graves. Em nosso meio, a ventilação sala de parto mostraram que o grupo de CPAP necessitou de mandatória intermitente (VMI), por meio dos ventiladores menor ventilação e menor necessidade de surfactante exóge‑ convencionais ciclados a tempo, limitados a pressão, com flu‑ no no período neonatal.5 xo contínuo, ainda é um modo bastante usado; no entanto, as evidências mais atuais têm demonstrado a preferência por Admissão na UTI neonatal e aquecimento, modos sincronizados, os quais diminuem o trabalho respira‑ mantendo o bebê na zona térmica neutra tório do RN.7 Este tópico sobre a importância da manutenção adequada da temperatura corporal de prematuros à admissão na UTI neo‑ Parâmetros iniciais para a ventilação mecânica convencional natal é de extrema relevância e muito atual. O intervalo de • Entubação traqueal adequada; temperatura entre 36,5 e 37,5°C é considerado como normo‑ • pressão positiva expiratória final (PEEP) – iniciar com 4 a 6 termia, e valores diferentes desse padrão incorporam riscos cmH2O; aos RN, pois a temperatura adequada de admissão no berçário • pressão inspiratória (PIP) – mínima necessária para que haja é atualmente considerada forte preditor de morbidade e mor‑ boa expansão torácica (15 a 25 cmH2O), ajustar conforme evo‑ talidade em todas as idades gestacionais.6 lução; A recomendação atual para essa finalidade compreende al‑ • tempo inspiratório (TI) – o menor possível (0,4 a 0,5 s), pois gumas importantes ações: TI muito prolongados estão intimamente associadas com • pré-aquecer a sala de parto e mantê-la entre 23 e 26°C; maiores lesões do tipo escape (pneumotórax);
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• FiO2 – a necessária para manter uma oxigenação adequada; • frequência respiratória (IMV) – entre 30 e 60. Surfactante exógeno
Todas as evidências científicas apontam para o benefício do seu uso precoce, principalmente quando administrado nas primeiras 2 horas de vida. O intervalo mínimo entre as doses deve ser de 6 horas, e os pacientes que permanecem entuba‑ dos, com padrão radiológico apresentando pouca melhora e com dificuldade de diminuir os parâmetros do respirador, são os candidatos a novas doses da medicação. A dose inicial varia de 100 a 200 mg/kg e uma dose adicional (100 mg/kg) deve ser feita se, 6 horas após, continuar em VM e com FiO2 acima de 0,3. A eficácia da terapia com surfactante geralmente tem sido atribuída a sua composição de lípides e proteína, mas estudos têm demonstrado a importância da técnica de administração. Atualmente, observam-se estudos sobre estratégias de admi‑ nistração que otimizem a distribuição uniforme de surfactan‑ te pela via aérea a fim de maximizar seus efeitos benéficos.8 Os estudos mostram que a infusão lenta de surfactante, com intuito de amenizar efeitos colaterais, pode resultar em má distribuição nos pulmões. Além disso, o fracionamento em várias alíquotas para pré-termos extremos em VM e com os mesmos parâmetros pré-instilação da droga aumenta a chance de obstrução de vias aéreas.9 O método ideal de administração de surfactante ainda é muito discutido na literatura. Sant'Anna et al.10 em 2014 fize‑ ram uma excelente revisão sobre métodos de utilização de surfactante discutindo sobre os diversos aspectos que podem influenciar na resposta a sua utilização e concluíram que a me‑ lhor maneira de administrar o surfactante seria em bolo asso‑ ciado a algumas estratégias ventilatórias antes e depois de seu uso conforme demonstrado a seguir: 1. Manter o RN em decúbito dorsal. 2. Aumentar pressão em 1 a 2 cmH2O no respirador, 5 minutos antes da aplicação, ou utilizar ventilador manual com 1 a 2 cmH2O acima da pressão utilizada previamente. 3. Desconectar do TOT. 4. Aplicar no terço médio da traqueia, em bolo (em 10 a 20”) em 1 a 2 alíquotas com intervalo de 30 a 60” entre elas. 5. Ventilar com frequência de 60 ipm e pressão suficiente para empurrar para dentro das vias aéreas. 6. Tentar não aspirar o TOT nas 2 horas seguintes, a menos que tenha sinais de obstrução das vias aéreas. Taquipneia transitória do recém-nascido (TTRN) É uma condição comum, benigna e autolimitada que ocorre em cerca de 1 a 2% de todos os nascimentos, acometendo RN pré-termos tardios e a termo, que apresentam dificuldade res‑ piratória logo após o nascimento, com resolução clínica em 3 a 5 dias. A causa ainda é discutida, porém três fatores estão as‑ sociados: deficiência leve de surfactante, pequeno grau de imaturidade pulmonar e retardo na absorção de líquido pul‑ monar fetal.11-13
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Os bebês iniciam com taquipneia logo após o nascimento, com uma frequência respiratória que pode chegar a 100 a 120 movimentos por minuto, gemência, batimentos de asas de na‑ riz, tiragem intercostal e aumento do diâmetro anteroposte‑ rior do tórax. As alterações gasométricas são raras, embora possa haver hipoxemia em ar ambiente, que melhora com uma FiO2 menor que 0,50. Podemos encontrar também hipercapnia e acidose respiratória nas primeiras horas de vida. O quadro radiológico característico mostra hiperinsuflação pulmonar, infiltrado difuso geralmente do hilo para a periferia (estrias peri-hilares proeminentes), leve a moderado aumento de área cardíaca, presença de líquido nas fissuras interlobares (“cisurite”), marcas proeminentes da vasculatura pulmonar, inversão da cúpula diafragmática, herniação intercostal e der‑ rame pleural.14 O diagnóstico diferencial mais frequente é com doença de membrana hialina (piora progressiva, quadro muito mais gra‑ ve, necessidades crescentes de oxigênio), edema pulmonar de origem cardíaca ou linfática (apresenta alterações cardíacas e dos vasos da base concomitantes), pneumonia bacteriana e pneumonia de aspiração (mecônio ou líquido amniótico). A TTRN deve ser um diagnóstico de exclusão. O tratamento inclui medidas de suporte geral e oxigenote‑ rapia através de capacete ou CPAP nasal. Ter sempre em men‑ te os riscos do uso indevido de oxigênio e de antibióticos. A necessidade de VM é rara nessa doença e, caso isso ocorra, de‑ vem-se descartar outros diagnósticos mais compatíveis, como DMH, pneumonia e cardiopatia. Síndrome de aspiração meconial A aspiração meconial é mais comum em RN a termo e pós-ter‑ mo. Pode variar desde formas leves até quadros de insuficiência respiratória grave, com hipertensão pulmonar persistente (HPP). A incidência de mecônio no líquido amniótico varia de 5 até 25% de todas as gestações (média de 14%), podendo ocorrer em aproximadamente 30% das gestações com mais de 42 se‑ manas. No entanto, apenas 5 a 10% desenvolvem SAM.15 Entre 30 e 50% necessitam de VM.16 Aproximadamente 30% desen‑ volvem HPP e 15 a 33% apresentam escape de ar, principal‑ mente pneumotórax. A mortalidade fica em torno de 5%.17 A aspiração pode ocorrer intraútero ou, na maioria dos ca‑ sos, durante os primeiros movimentos respiratórios. O mecô‑ nio pode provocar alterações obstrutivas e inflamatórias. As vias aéreas com obstrução completa evoluem com áreas de atelectasia, alterando a relação ventilação-perfusão (V/Q) e provocando hipóxia, com posterior hipercapnia e acidose. Nos locais com obstrução parcial, observa-se um mecanismo val‑ vular, onde o ar entra, mas tem dificuldade para sair, ocasio‑ nando áreas hiperinsufladas, facilitando o escape de ar. O quadro de desconforto respiratório é precoce, mas de in‑ tensidade variável. Muitas vezes, a sintomatologia predomi‑ nante é de depressão respiratória e neurológica pelo insulto hipóxico-isquêmico. O tórax pode apresentar aumento do seu diâmetro anteroposterior decorrente de hiperinsuflação pul‑
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monar. Muitas vezes, essas crianças apresentam uma labilida‑ de importante com hipóxia de difícil tratamento em função da HPP. Além disso, o mecônio pode alterar a função do surfac‑ tante existente nos alvéolos, provocando mais atelectasias, com redução da complacência pulmonar.18 O exame radiológico mostra opacidades irregulares, áreas de atelectasia, áreas hiperinsufladas, retificação do diafragma e aumento do diâmetro anteroposterior. Outros achados po‑ dem ser pneumotórax, pneumomediastino e cardiomegalia. A gasometria mostra um grau variável de hipoxemia e acidose respiratória ou mista. O ecocardiograma pode revelar disfun‑ ção miocárdica e sinais de hipertensão pulmonar. Apenas a presença de mecônio no pulmão não é suficiente para explicar todas as alterações histopatológicas da SAM, conforme mostra trabalho com animais recém-nascidos, em que os pulmões daqueles com aspiração meconial foi muito semelhante aos que aspiraram líquido amniótico claro.18 Pos‑ teriormente às alterações observadas pela lesão química nas vias aéreas, pode ocorrer infecção secundária, agravando ain‑ da mais o quadro respiratório. A Figura 3 resume as alterações presentes na SAM. Tratamento
Na sala de parto
Vain et al. (2004) randomizaram 2.514 crianças para receber ou não aspiração intraparto e não observaram diferença signi‑ ficativa entre os grupos quanto à incidência de SAM, necessi‑ dade de ventilação mecânica por SAM, taxa de mortalidade, tempo de ventilação, tempo de uso de oxigênio e tempo de in‑ ternação hospitalar.20 Outro estudo avaliou se a rotina de entubação e aspiração de bebês que nascem banhados em mecônio, mas vigorosos, altera a incidência de SAM. Foram envolvidas 2.094 crianças de doze centros. A conclusão foi que a entubação e aspiração de crianças vigorosas ao nascimento não resultam em redução na incidência de SAM ou outras alterações respiratórias, além de aumentar o risco de iatrogenia.21
Aspiração meconial
Obstrução mecânica
Inflamação química
Inativação do surfactante
Retenção de ar
Atelectasias
Ventilação desigual
Shunt intrapulmonar
Escape de ar
Hipoxemia Acidose
Persistência da circulação fetal
Figura 3 Resumo das alterações presentes na SAM. Fonte: Murphy et al.12
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Nesse sentido, as novas normas do Programa de Reanima‑ ção da SBP para sala de parto preconizam: 1. Papel do obstetra: a aspiração de vias aéreas feita pelo obste‑ tra não é mais indicada, pois a metanálise mais recente mos‑ trou que o procedimento não encontrou nível de evidência significativo que corroborasse seu uso. 2. Papel do pediatra segundo o Programa de Reanimação Neo‑ natal: avaliar a vitalidade do RN. –– chorando ou iniciou a respiração, tônus muscular em fle‑ xão, FC > 100 bpm? –– casos de respiração irregular/ausente e/ou hipotonia e/ ou FC < 100 bpm. –– colocar em calor radiante, e sob visualização direta da la‑ ringoscopia: aspirar boca e hipofaringe com sonda tra‑ queal número 10 e aspirar traqueia com cânula endotra‑ queal. Na unidade neonatal
Manter temperatura corporal e pressão arterial adequada, cor‑ reção de anemia, hidratação venosa e controle glicêmico são fundamentais para o sucesso do suporte ventilatório desses bebês. O sofrimento respiratório causado pela SAM é apenas um dos marcadores de inúmeros problemas decorrentes da asfixia perinatal. Os bebês com poucos sintomas e necessitando de FiO2 de até 0,5 (50%) costumam ter boa resposta com o uso de capa‑ cete. As crianças com necessidades de O2 de 0,6 (60 %) ou quadro respiratório com esforço moderado podem se benefi‑ ciar do uso de CPAP nasal. É preciso cautela, pois, em alguns casos, o CPAP nasal pode agravar a retenção de ar, principal‑ mente quando a hiperinsuflação é bem evidente à radiografia. Naqueles casos com insuficiência respiratória grave, caracteri‑ zados por hipóxia acentuada e acidose respiratória grave (PCO2 > 60 mmHg), apesar de uso de CPAP, a VM deve ser in‑ dicada. Algumas vezes, é necessária pressão inspiratória alta (30 a 35 cmH2O), mas sempre se deve utilizar o mínimo neces‑ sário, suficiente para que se tenha boa expansão pulmonar. Trabalhar com TI curtos (0,4 a 0,5 s), mantendo assim um tempo expiratório (TE) adequado, capaz de minimizar a re‑ tenção de ar em áreas parcialmente obstruídas pelo mecônio. O mesmo cuidado deve ser observado em relação à PEEP, ou seja, utilizar PEEP baixa (3 a 5 cmH2O), reduzindo risco de es‑ cape de ar. A ventilação de alta frequência pode ser útil naque‑ les que não respondem bem à ventilação convencional ou com objetivo de proteção pulmonar para aqueles bebês que evo‑ luem com escape de ar (pneumotórax ou pneumomediastino). Uma questão de extrema importância e de difícil resposta é quanto à necessidade de antibioticoterapia para crianças que nascem banhadas em mecônio e evoluem com desconforto respiratório. Shankar et al., em estudo realizado em 1995 para avaliar o uso de antibióticos em SAM, concluíram que o uso rotineiro não foi benéfico no grupo estudado.22 Outro trabalho avaliou a incidência de pneumonia e/ou sepse em crianças com SAM, mas sem fatores de risco perinatal para infecção e sem necessidade de ventilação mecânica, que foram tratadas ou não com antibióticos. Os resultados mostraram que o curso
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clínico e os resultados dessas crianças em relação à infecção existir ascensão bacteriana para o feto mesmo com membrana não foram afetados pela utilização ou não de antibióticos.23 Na amniótica íntegra e também que a colonização bacteriana qua‑ prática, é recomendado que se inicie antibioticoterapia para se sempre ocorre no momento do trabalho de parto vaginal. as crianças com SAM que evoluem com distúrbio respiratório 3. Gasping durante o nascimento, resultante de processo asfíxi‑ e radiografia muito alterada. A evolução clínica e radiológica, co, pode predispor a aspiração de líquido amniótico contami‑ em conjunto com os resultados da hemocultura e demais exa‑ nado. mes laboratoriais, deve ser utilizada para determinar o tempo Pneumonia adquirida de duração do tratamento. Muitas dúvidas ainda persistem em relação à utilização de Após admissão na UTI neonatal, o risco de pneumonia adqui‑ surfactante na SAM, como melhor tipo (natural vs. sintético), rida será largamente influenciado pelas taxas de infecção rela‑ melhor forma de utilização e dose ideal. Uma metanálise reali‑ cionada à assistência em saúde de cada unidade neonatal. zada com objetivo de avaliar o efeito da administração de surfac‑ tante em crianças a termo mostrou que o seu uso pode reduzir a Estreptococo do grupo B gravidade da doença e diminuir o número de crianças com falên‑ 1. É o patógeno mais importante na pneumonia neonatal. cia respiratória progressiva que evoluem para o uso de oxigena‑ 2. Adquirido através do trato genital durante o trabalho de parto, ção por membrana extracorpórea (ECMO).24 Outro estudo com‑ e, na ausência de profilaxia intraparto adequada, pode chegar parou esquemas diferentes de surfactante para SAM e mostrou à frequência de 1 a 4 por cada 1.000 nascidos vivos. que um lavado broncoalveolar com surfactante, utilizado nas 3. Os prematuros representam cerca de 1/3 dos bebês que apre‑ primeiras horas de vida, combinado com uma dose única de de‑ sentam bacteremia pelo estreptococo do grupo B. xametasona, pode ser um tratamento efetivo para SAM grave.25 4. Outras bactérias envolvidas na gênese da pneumonia bacte‑ Algumas crianças com SAM podem ter o quadro clínico riana neonatal são: Escherichia coli, Klebsiella, Listeria, Ureaagravado e seu prognóstico comprometido por situações como plasma e pneumococos. a HPP e o escape de ar. Os escapes de ar ocorrem em 10 a 20% 5. Infecções tardias (mais de 7 dias): considerar pneumonia por dos casos e podem ser uma causa de piora abrupta. A HPP Staphylococcus. ocorre em aproximadamente 35% das crianças e deve ser sus‑ 6. Pseudomonas e fungos. peitada em todo recém-nascido com dificuldade de atingir boa 7. Pneumonias virais não são frequentes no período neonatal, oxigenação, apesar dos esforços terapêuticos, e naqueles ex‑ com exceção de surtos epidêmicos de vírus sincicial respira‑ tremamente lábeis ao manuseio. O ecocardiograma deve ser tório ou adenovírus, e em casos do grupo TORCH. realizado para avaliar a presença de shunt direito-esquerdo, além de ajudar no diagnóstico diferencial com cardiopatias Tratamento congênitas cianóticas. Nessas crianças, a utilização de óxido • Iniciar antibioticoterapia com ampicilina associada a um ami‑ nítrico (ON) inalado pode ser necessária. noglicosídio nos casos de início precoce (primeiras 72 horas de vida) e esquema adequado à microbiota prevalente especí‑ Pneumonia fica de cada unidade neonatal para os casos de início tardio. Os pulmões representam o sítio de estabelecimento mais co‑ Correlacionar os resultados das culturas e demais exames la‑ mum da sepse neonatal. A natureza inespecífica de apresenta‑ boratoriais com a evolução clínica para avaliar o sucesso do ção faz da suspeita clínica a chave para o diagnóstico precoce. esquema escolhido; A presença de taquipneia, cianose ou outros sinais de descon‑ • suporte hídrico e nutricional; forto respiratório sugerem o quadro pulmonar. Em alguns ca‑ • suporte ventilatório; sos, os sintomas respiratórios podem ser discretos, predomi‑ • drenagens de efusões, se necessário. nando quadro neurológico de intensidade variável, instabilidade térmica, apneia, distensão abdominal ou icterí‑ Hipertensão pulmonar persistente cia. O exame radiológico pode ser bastante diversificado, mos‑ Descrita inicialmente como “persistência da circulação fetal” trando desde áreas de opacificação uni ou bilateral, até um pa‑ por Gersony e Sinclair em 1969,26 a hipertensão pulmonar per‑ drão retículo-granular difuso com broncogramas aéreos, sistente do recém-nascido (HPPRN) geralmente é decorrente indistinguível do quadro de DMH. de uma desordem do processo de transição circulatória da Distinguir pneumonia de taquipneia transitória é frequen‑ vida fetal para neonatal caracterizada por manutenção da RVP temente uma tarefa difícil. Em razão da alta mortalidade da elevada, em geral associada a resistência vascular sistêmica pneumonia bacteriana no RN, um alto grau de suspeição deve (RVS) normal ou diminuída. Isso leva a shunt extrapulmonar estar sempre presente nos RN com desconforto respiratório. da direita para a esquerda através do canal arterial e forame oval, ocasionando hipoxemia. Pode ser secundária a doenças Etiologia do parênquima pulmonar (SAM, síndrome do desconforto Pneumonia bacteriana congênita respiratório, pneumonia), desenvolvimento alterado da vas‑ 1. Transmissão vertical transplacentária mãe-feto. cularização pulmonar, hipoplasia pulmonar ou obstrução vas‑ 2. Infecção ascendente do trato genital — valorizar rotura de cular por policitemia com hiperviscosidade. O estímulo mais membranas por mais de 18 horas, não esquecendo que pode importante para promover a vasodilatação pulmonar parece
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ser a ventilação e o aumento da concentração alveolar de oxi‑ gênio. A produção de ON no endotélio pulmonar também au‑ menta de forma acentuada ao nascimento. O fluxo sanguíneo pulmonar aumenta, o que eleva a pressão no átrio esquerdo e fecha o forame oval.27 Incide em 0,4 a 6 de cada 1.000 nascidos vivos, sendo mais comum em RN a termo, pré-termo tardio e pós-termo. Muitas vezes, é refratária ao tratamento e associada a uma mortalida‑ de que varia de 4 a 33%.28 Do ponto de vista fisiopatológico, existem duas formas de HPPRN, uma funcional, em que o aumento da RVP é decor‑ rente somente da vasoconstrição arteriolar pulmonar, e outra orgânica, em que a vasoconstrição é causada por alterações es‑ truturais no leito vascular pulmonar. A forma funcional idio‑ pática é considerada como expressão de fatores constitucio‑ nais e genéticos que aumentam a sensibilidade das arteríolas pulmonares aos estímulos vasoconstritores, ou dificultam a ação vasodilatadora do ON endógeno. Na forma funcional se‑ cundária, a maior parte dos casos está associada à asfixia (80 a 90%) e sepse, quer pela ação vasoconstritora direta da hipóxia e acidose, ou indiretamente, pela liberação de substâncias va‑ soativas (leucotrienos, endotelina, tromboxane, radicais li‑ vres). Quando o processo asfíxico é prolongado, pode desen‑ cadear hipertrofia da parede muscular arteriolar. Entre as doenças parenquimatosas pulmonares associadas à asfixia perinatal, a mais frequentemente observada na HPPRN é a SAM, na qual a endotelina e a urotensina desempenham pa‑ pel importante como poderosos agentes vasoconstritores pul‑ monares. Na forma orgânica, temos a hipertrofia da parede muscular arteriolar pulmonar idiopática ou secundária a even‑ tos patológicos durante a gravidez, como a hipóxia crônica acentuada, o fechamento intraútero do canal arterial por uso de medicamentos na gestante (indometacina, salicilatos, lítio) e o uso de antidepressivos inibidores da recaptação da seroto‑ nina durante a gravidez. Outro tipo de forma orgânica é o bai‑ xo grau de desenvolvimento do leito vascular pulmonar, típico da hipoplasia pulmonar associada à hérnia diafragmática con‑ gênita que, além da densidade reduzida de vasos, apresenta reatividade vascular aumentada aos estímulos vasoconstrito‑ res associados com a redução da ação da ON sintetase e a pro‑ dução elevada de endotelina.29 Recém-nascidos de parto cesariano correm um risco cinco vezes maior de desenvolver HPPRN. A corioamnionite au‑ menta em três vezes o risco. A exposição in utero à aspirina au‑ menta o risco em cinco vezes, e a exposição a anti-inflamató‑ rios não hormonais aumenta em seis vezes. O aumento do risco de HPPRN pelo uso de antidepressivos inibidores da re‑ captação da serotonina ainda é controverso, mas o uso dessas drogas na segunda metade da gravidez deve levar em conside‑ ração o risco-benefício em relação ao bem-estar materno e a possibilidade até seis vezes maior de desenvolver HPPRN. O uso de oxigênio em altas concentrações pode aumentar a re‑ sistência pulmonar pelo aumento do estresse oxidativo.30 Uma diferença da PaO2 ou oximetria avaliadas no pré-duc‑ tal (membro superior direito) e pós-ductal (membro inferior) é altamente sugestiva de HPPRN. Um gradiente maior que 20
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mmHg na PaO2 ou maior que 5 a 10% na oximetria sugere um shunt direito-esquerdo, responsável pela hipóxia nas crianças com HPPRN.31 Sempre que houver uma hipoxemia desproporcional à gra‑ vidade da doença primária pulmonar, deve-se considerar o diagnóstico de HPPRN. Os sintomas aparecem dentro das pri‑ meiras horas de vida. As crianças costumam ser extremamen‑ te lábeis a qualquer tipo de manuseio. Podem-se observar alte‑ rações cardíacas secundárias a isquemia, com disfunção do músculo papilar, regurgitação da mitral e tricúspide, e até mesmo choque cardiogênico, levando a diminuição do fluxo sanguíneo pulmonar, da perfusão tecidual e da oferta de oxi‑ gênio.32 A ecocardiografia com Doppler é considerada o padrão-ou‑ ro para o diagnóstico de HPPRN e para afastar a possibilidade de cardiopatia congênita. O estudo de fluxo pelo Doppler de‑ monstra a direção do fluxo através do forame oval. Tratamento O manuseio da HPPRN evoluiu muito nas duas últimas déca‑ das. O foco mudou de hiperoxigenação-hiperventilação-alca‑ lose para estratégias de ventilação gentil a fim de otimizar o re‑ crutamento pulmonar e minimizar barotrauma, volutrauma e efeitos tóxicos do oxigênio, associado a hipercapnia permissi‑ va e o uso terapêutico do surfactante e do ON. A severidade da doença pode variar de hipoxemia leve com discreto desconfor‑ to respiratório até hipoxemia grave com instabilidade cardior‑ respiratória. Suporte nutricional adequado, redução de ruídos e luminosidade, correção de distúrbios metabólicos, manu‑ tenção da normotermia, mínimo manuseio de analgesia e se‑ dação, se necessário, são a base inicial para o tratamento. Hi‑ perventiliação e infusão de bicarbonato de sódio devem ser evitados, em razão dos efeitos adversos na perfusão cerebral e risco aumentado de surdez sensorioneural. Se uma pressão inspiratória maior que 28 cmH2O ou volume corrente maior que 6 mL/kg são necessários para manter a PaCO2 abaixo de 60 mmHg em ventilação convencional, recomenda-se mudar para a ventilação de alta frequência.27 O uso de óxido nítrico inalado (iNO) tem efeito direto e se‑ letivo na vasculatura pulmonar, pois, uma vez na circulação, liga-se à hemoglobina formando meta-hemoglobina e sendo inativado. Sua ação se dá pelo aumento do GMP cíclico na pa‑ rede arteriolar. Vários estudos têm mostrado uma melhora clí‑ nica significativa na oxigenação de crianças com HPPRN e uma importante redução no uso do ECMO e na mortalida‑ de.29,31,33,34 Deve-se considerar o uso de iNO para os RN com mais de 34 semanas de idade gestacional e diagnóstico de HPPRN que persistem com hipoxemia após medidas gerais, suporte he‑ modinâmico e ventilação adequados. A dose inicial recomen‑ dada é de 20 ppm.31 A expectativa é de uma melhora na oxige‑ nação em torno de 20% com 30 a 60 minutos do início da terapia. Aproximadamente 70% dos pacientes tratados mos‑ tram um aumento de 20 mmHg na PaO2.35 O desmame deve ser iniciado quando a PaO2 estiver maior ou igual a 60 mmHg com uma FiO2 menor que 60%. Reduzir 5 ppm a cada 4 horas
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até atingir 5 ppm. Depois reduzir 1 ppm a cada 2 ou 4 horas, até a retirada completa, de acordo com a resposta clínica e la‑ boratorial.27 Se o ON não melhorar a hipoxemia e a pressão arterial esti‑ ver estável, considere o uso de inibidores da fosfodiesterase 5. O sildenafil endovenoso é administrado em uma dose de ata‑ que de 0,42 mg/kg em 3 horas, seguido de uma dose de ma‑ nutenção de 1,6 mg/kg/dia em infusão contínua (0,07 mg/ kg/h). A prostaciclina (PGI2, Iloprost) também pode ser utili‑ zada por via inalatória (1 a 2,5 µg/kg a cada 2 ou 4 horas) ou por via endovenosa (0,5 a 3 ng/kg/min).27,29,31,36-38 Se a pressão arterial está normal mas existem evidências de disfunção ventricular, a milrinona pode ser a droga de esco‑ lha. Ela atua inibindo a fosfodiesterase 3, aumentando a con‑ centração de AMP cíclico na musculatura lisa pulmonar e sis‑ têmica além da musculatura cardíaca. Utiliza-se uma dose de ataque de 50 µg/kg em 30 a 60 minutos, seguida de uma dose de manutenção de 0,33 µg/kg/min (que pode chegar gradati‑ vamente até 1 µg/kg/min, de acordo com a resposta clínica). A dose de ataque não é recomendada na presença de hipoten‑ são arterial. Uma etapa rápida em bolo de 10 mL/kg de Ringer lactato ou soro fisiológico antes da dose de ataque pode mini‑ mizar o risco de hipotensão.27,29,31,36 Em presença de hipotensão sistêmica mas com função car‑ díaca preservada, uma ou duas etapas expansoras em bolo (10 mL/kg de Ringer lactato ou soro fisiológico), seguidas de infu‑ são de dopamina, norepinefrina ou vasopressina estão reco‑ mendadas. Se o uso de altas doses de vasopressores é necessá‑ rio, considerar o uso de hidrocortisona se não houver infecção concomitante.27,31 O uso de sedativos e analgésicos é de grande importância e deve ser realizado de forma individualizada. O uso de surfac‑ tante, dependendo da doença parenquimatosa de base, pode atuar no recrutamento alveolar e, consequentemente, melho‑ rar a oxigenação. Existem evidências de uma redução de L-arginina em RN com HPP quando comparada com outras causas de insufi‑ ciência respiratória grave. A infusão de L-arginina, um precur‑ sor do ON, tem como objetivo aumentar a sua formação.34 A adenosina causa vasodilatação pulmonar seletiva quan‑ do infundida venosa em baixas doses, pois é rapidamente cap‑ tada e inativada pelo endotélio vascular pulmonar. 34,35 Principais patologias respiratórias no período neonatal • Doença de membrana hialina (DMH); • taquipneia transitória do recém-nascido (TTRN); • síndrome de aspiração meconial (SAM); • pneumonia; • hipertensão pulmonar persistente (HPP).
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender as diferentes causas de insuficiência respiratória aguda no recém-nascido. • Identificar fatores de risco envolvidos na gênese das principais doenças respiratórias.
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Identificar possíveis causas de desconforto respiratório de origem extrapulmonar. Correlacionar alterações radiológicas com possíveis diagnósticos de doença. Reconhecer as principais patologias respiratórias no período neonatal e suas características fisiopatológicas e possíveis tratamentos. Identificar a importância da manutenção da temperatura corporal de recém-nascidos na sala de parto e na admissão à UTI neonatal como fator protetor de morbidades e mortalidade no período neonatal. Reconhecer a importância do uso correto de surfactante pulmonar exógeno e mecanismos que otimizam sua ação no recém-nascido. Identificar os mecanismos utilizados que, segundo a literatura atual, ajudam a minimizar a lesão pulmonar.
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Distúrbios Respiratórios do Recém-nascido •
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CAPÍTULO 11
ENCEFALOPATIA HIPÓXICO ‑ISQUÊMICA Renato Soibelmann Procianoy Rita de Cássia dos Santos Silveira
Introdução A oferta adequada de oxigênio aos tecidos é fundamental para que as células mantenham o metabolismo aeróbico e as fun‑ ções vitais. A baixa pressão de perfusão associada à insufi ciente quantidade de oxigênio ofertado aos tecidos determina a mudança do metabolismo aeróbico para anaeróbico, com consequentes disfunções orgânicas. A asfixia perinatal desen‑ volve-se quando há hipoperfusão tecidual significativa e dimi‑ nuição da oferta de oxigênio decorrente das mais diversas etiologias durante o período periparto. A asfixia perinatal é a principal causadora da encefalopatia hipóxico-isquêmica (EHI). Há dois a quatro recém-nascidos com EHI para cada 1.000 nascidos vivos a termo, e a taxa de mortalidade dos recém-nascidos asfixiados que desenvolvem encefalopatia varia de 15 a 25%. Dentre os sobreviventes, 25 a 30% apresentam como sequela mais importante a paralisia ce‑ rebral, além de retardo mental, déficit de aprendizado em ní‑ veis variados e epilepsia. Etiologia As causas de asfixia no período neonatal são: • interrupção do fluxo sanguíneo umbilical (p.ex., compressão de cordão umbilical); • insuficiente troca de gases pela placenta (p.ex., descolamento de placenta); • perfusão placentária inadequada do lado materno (p.ex., hi‑ potensão materna); • feto comprometido que não tolera o estresse do trabalho de parto (p.ex., retardo do crescimento intrauterino); • falha de inflar o pulmão logo após o nascimento. Todas as situações patológicas que possam promover hipóxia e hipoperfusão teciduais pré-natal, perinatal ou pós-natal são fatores etiológicos de síndrome hipóxico-isquêmica. Observações clínicas mostraram que, em 20% dos recém-nas‑ cidos a termo, a EHI ocorre por insulto anteparto (p.ex., parada cardíaca materna, hemorragia materna levando à hipotensão e
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acometimento das trocas transplacentárias); em 35%, por pro‑ blemas maternos como diabete, retardo de crescimento intrau‑ terino e infecção sem sinais clínicos de sofrimento fetal durante o trabalho de parto e sem conhecimento do momento do insulto fetal; em 10%, por problemas pós-natais; e somente em 35% a EHI é decorrente de problemas reconhecidos durante o trabalho de parto (p.ex., descolamento prematuro de placenta, ruptura uterina, parto traumático). Portanto, pelo menos em 65% dos casos de EHI em recém-nascidos a termo, dificuldades do perío‑ do intraparto não explicam a presença de encefalopatia.1 Diagnóstico de asfixia perinatal O uso único do escore de Apgar para o diagnóstico de asfixia perinatal é falho. Recém-nascidos prematuros apresentam es‑ cores de Apgar baixos sem desenvolver acidemia. A idade gestacional influencia o escore de Apgar, havendo correlação significativa entre a idade gestacional e os escores de Apgar no primeiro e no quinto minuto de vida, ou seja, quanto mais prematuro for o recém-nascido, maior a probabilidade de apresentar escores de Apgar baixos com pH arterial de sangue de cordão umbilical dentro de uma faixa de normalidade.2 Em recém-nascidos a termo, o escore de Apgar também não é um dado fidedigno para o diagnóstico de asfixia perinatal. Thorp et al. mostraram uma frequência de 77,8% de pH arterial umbili‑ cal > 7,10 entre recém-nascidos a termo deprimidos (escores de Apgar no 1o ou no 5o minuto de vida < 7).3 Entretanto, o uso da ga‑ sometria de sangue de cordão umbilical como único critério para o diagnóstico de asfixia perinatal também não é confiável. King et al. compararam dois grupos de recém-nascidos a termo ou pró‑ ximo do termo (acidêmicos com pH ≤ 7 e controles com pH ≥ 7,20) com escores de Apgar ≥ 7 no 5º minuto de vida. A frequência de alterações clínicas decorrentes da asfixia em ambos os grupos foi semelhante, demonstrando que a utilização de apenas o pH de sangue arterial umbilical não é suficiente para o diagnóstico de asfixia perinatal.4 Há necessidade da presença de outros sinais para haver a suspeita de asfixia perinatal, como disfunção orgâ‑ nica multissistêmica e manifestações neurológicas.
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Encefalopatia hipóxico‑isquêmica •
Fisiopatologia A lesão hipóxica intraútero ou logo após o nascimento deter‑ mina uma sequência de eventos no recém-nascido. Inicial‑ mente, há um período de aumento da frequência respiratória seguido de apneia com duração de 30 a 60 segundos (apneia primária). A frequência cardíaca mantém-se normal e a pres‑ são arterial aumenta levemente durante a apneia primária. Há uma reversão desse quadro com a utilização de uma leve esti‑ mulação tátil ou a exposição do recém-nascido ao oxigênio, determinando o reinício da respiração. Se o processo hipóxico se mantém, o recém-nascido reinicia os movimentos respiratórios que, entretanto, serão assincrôni‑ cos e não efetivos (gasping). Esses movimentos respiratórios são semelhantes a soluços. Persistindo o insulto hipóxico, a res‑ piração torna-se ainda mais ineficaz até que sobrevém um segundo período de apneia (apneia secundária ou apneia termi‑ nal). Durante esse processo, ocorre a diminuição progressiva da frequência cardíaca, da pressão arterial e da PaO2, associando-se ao processo hipóxico o componente isquêmico. A partir desse momento, o recém-nascido não é mais responsivo ao estímulo tátil nem ao oxigênio e necessita de ventilação positiva intermi‑ tente para se recuperar. O tempo necessário para recuperar os movimentos respiratórios espontâneos é de 2 a 2,5 vezes o período de apneia secundária. Se nenhuma atitude for adotada durante esse período, a evolução será o óbito.5 O processo de asfixia causa uma redistribuição do débito car‑ díaco com o objetivo de preservar a perfusão do sistema nervoso central (SNC), do coração e das glândulas suprarrenais. Os teci‑ dos periféricos, as vísceras abdominais e os pulmões tornam-se hipoperfundidos em detrimento dos órgãos mais nobres citados anteriormente. Essa é a forma que o organismo encontra para preservar a função dos órgãos considerados mais importantes. Entretanto, quando o processo hipóxico‑isquêmico torna-se mui‑ to intenso e extremamente grave, o SNC, o coração e as glândulas suprarrenais também são acometidos, surgindo manifestações clínicas decorrentes de suas disfunções.6 Os mecanismos fisiopatológicos que envolvem a hipóxia-isquemia e a reperfusão cerebral ocorrem em três níveis básicos que estão inter-relacionados: nível bioquímico, nível ce‑ lular, que constitui alterações morfológicas no citoplasma e no núcleo celular, e nível celular-humoral, que são principalmente citocinas e a resposta inflamatória. Durante a hipóxia-isquemia, inicialmente, ocorre uma inativação sináptica que se deve à redução do aporte cerebral de fosfatos de alta energia, causando falta progressiva de ener‑ gia, ocasionando lesão irreversível, uma vez que a energia disponível não é suficiente para manter as bombas ATPase dependentes, responsáveis pela distribuição dos íons através das membranas. A falta de energia para manter as bombas ATPase dependentes causa despolarização das membranas e maior entrada de cálcio para o meio intracelular. O aumento do íon cálcio no meio intracelular ativa a liberação de neuro‑ transmissores excitatórios, como o glutamato e o aspartato, que têm suas ações mediadas principalmente pelo receptor NMDA (N-metil-D-aspartato). O receptor NMDA é responsável, ainda, pela maior permeabilidade celular ao cál‑
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cio; é um mecanismo de retroalimentação.7,8 Resumindo, os neurônios que liberam glutamato são ativados durante o even‑ to hipóxico pela entrada de cálcio para dentro da célula e pela própria despolarização dessas células.9 Paralelamente, ocorre redução de ATPase-glutamato dependente na membrana pré‑ -sináptica, contribuindo para a manutenção de concentrações elevadas do glutamato extracelular, mantendo um estímulo prolongado desse neurotransmissor excitatório. O cálcio aumentado no espaço intracelular associado à re‑ perfusão inicia vários eventos bioquímicos, como a ativação de enzimas degradativas (endonucleases, proteases e fosfoli‑ pases). A reperfusão com o aporte de oxigênio às células lesa‑ das pela hipóxia-isquemia leva à geração de radicais livres, ati‑ vação da óxido nítrico sintetase, com síntese de óxido nítrico (ON) que se combina com radicais livres para formar peroxini‑ trito. A geração de radicais livres pode acionar a liberação de quantias adicionais de neurotransmissores excitatórios e in‑ fluenciar também a ativação do receptor NMDA.7,10 O cálcio aumentado no meio intracelular promove: • ativação da fosfolipase A2, causando maior geração de radi‑ cais livres pelas vias da cicloxigenase e lipoxigenase; • ativação da enzima óxido nítrico sintetase, que estimula for‑ mação de NO e este se combina com radicais livres, formando peroxinitrito; • ativação de proteases que convertem xantina-desidrogenase em xantina-oxidase, gerando radicais livres; • ativação da fosfolipase C, que resulta no aumento dos esto‑ ques de cálcio intracelular. O acúmulo do cálcio citosólico é o principal fator entre as múl‑ tiplas lesões e a cascata de eventos irreversíveis que causam a morte celular induzida pela hipóxia-isquemia e reperfusão. Há alterações morfológicas observadas na deterioração da cé‑ lula nervosa que sofre a agressão hipóxico-isquêmica. São al‑ terações que envolvem o núcleo e o citoplasma. A ação desses fenômenos celulares desencadeados pela lesão de hipóxia-is‑ quemia-reperfusão leva a duas formas bem distintas de morte da célula nervosa: necrose e apoptose. Na necrose, há ruptura da célula com fratura da membrana celular, reação inflamatória intensa e ruptura de organelas, o que causa maior edema no meio intracelular; consequente‑ mente, há ruptura celular, extravasamento do conteúdo do ci‑ toplasma para o meio extracelular e fagocitose desse material. O processo é irreversível e sem consumo de energia. Na apoptose, o mecanismo de morte neuronal é completa‑ mente diferente. A célula encolhe; o núcleo torna-se pequeno e denso, em razão da maior condensação de cromatina e fragmentação do DNA; no mesmo momento, ocorre invagina‑ ção da membrana plasmática com vacuolização do citoplasma; o processo todo finaliza com a célula separando-se em corpos apoptóticos múltiplos e pequenos que são fagocitados por célu‑ las vizinhas saudáveis. É um processo celular ativo que requer vias bioquímicas específicas, consumo de energia e transcrição genética. Um dos grandes reguladores da apoptose neuronal são as caspases (proteases cisteína-aspartato específicas), que agem especificamente nas células apoptóticas, em particular
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caspases 3 e 9.11-13 A Tabela 1 resume as diferenças básicas entre os dois tipos de morte da célula nervosa.
do insulto. No recém-nascido prematuro, a identificação clíni‑ ca da asfixia é mais difícil que no recém-nascido a termo, por causa da imaturidade cerebral, ou seja, alguns achados nor‑ mais e comuns ao prematuro indicam depressão do SNC no Tabela 1 Morte da célula nervosa recém-nascido a termo. Necrose Apoptose EHI consiste na manifestação clínica da asfixia perinatal Fratura da membrana celular Condensação da cromatina, mais estudada e descrita na literatura. Os achados clínicos fragmentação do DNA, núcleo são inespecíficos e, para distinguir de outras causas de lesão pequeno/denso cerebral, é importante a história perinatal. Sarnat e Sarnat es‑ Rompimento das organelas Invaginação da membrana plasmática tabeleceram critérios para a classificação da EHI, resumidos Edema intracelular Vacuolização do citoplasma na Tabela 2.17 O quadro clínico agrava-se durante os primeiros 3 dias de Célula rompida Célula separada em múltiplos corpos apoptóticos vida; óbito é comum entre 24 e 72 horas de vida. Saída de citoplasma Fagocitose de células vizinhas As convulsões podem estar presentes como única mani‑ extracelular saudáveis festação neurológica após insulto asfíxico. Geralmente, ini‑ Fagocitose do material Ação de citocinas (TNF-alfa) e cia durante as primeiras 24 horas de vida do recém-nascido, caspases 3 e 9 são prolongadas e resistentes ao tratamento anticonvulsi‑ Sem consumo de energia vante. O edema cerebral pode ser um achado precoce da EHI gra‑ A hipóxia-isquemia-reperfusão no SNC também aciona uma ve, resultando em áreas de necrose cerebral irreversível, prin‑ reação inflamatória caracterizada pelo influxo de leucócitos, cipalmente lobo temporal e consequente paralisia cerebral. incluindo polimorfonucleares e monócitos e ativação da mi‑ Clinicamente, o aumento da pressão intracraniana do recém‑ croglia. Muitas dessas reações inflamatórias são mediadas -nascido manifesta-se muito tardiamente na evolução do ede‑ pelas citocinas, especialmente as ações moduladoras da ma cerebral, observando-se fontanela abaulada e tensa, hiper‑ apoptose neuronal. As citocinas com ações mais conhecidas termia de origem central, convulsões e demais manifestações no SNC são: TNF-alfa, IL-1-beta e IL-6.14 A ativação de caspa‑ neurológicas semelhantes às observadas na EHI e, nesses ca‑ ses promove a produção de citocinas inflamatórias que sos, já existe necrose cerebral extensa.18 Nos casos graves, o exame de ressonância magnética mos‑ podem induzir uma resposta inflamatória local e aumentar o número de neurônios apoptóticos, o que seria um mecanis‑ tra alterações entre a primeira e a segunda semana de vida pós-natal19 e o vídeo EEG é alterado nas primeiras 48 horas de mo de neuroproteção.11 As citocinas são mediadoras do mecanismo da ativação da vida. Os recém-nascidos que apresentam vídeo EEG normal resposta inflamatória sistêmica. Em uma situação de isque‑ nas primeiras 48 horas de vida terão neurodesenvolvimento mia ou presença de endotoxina, ocorre ativação endotelial, normal aos 24 meses de idade corrigida.20 potencializada pela ativação dos monócitos que estimulam produção de TNF-alfa; e este promove maior ativação endote‑ Sistema cardiovascular lial e, por meio de diversas interações, ocorre produção de IL A resposta circulatória inicial após a lesão hipóxico-isquêmica ‑6, IL-1-beta, IL-8 e fator ativador plaquetário (PAF).15 Por envolve redistribuição do débito cardíaco aos tecidos do orga‑ meio de ações de receptores solúveis, IL-6, IL-1-beta e TNF-al‑ nismo, com maior trabalho da fibra miocárdica já sob efeito de fa aumentam a expressão das moléculas de adesão, principal‑ isquemia, podendo ocorrer infarto agudo do miocárdio, in suficiência miocárdica de gravidade variável, inclusive com mente a Icam-1 (molécula de adesão intercelular), nas células endoteliais e nos astrócitos, facilitando, assim, a infiltração miocardiopatia, e necrose do músculo papilar da válvula leucocitária e aumentando a ativação dos leucócitos, com con‑ tricúspide. O ventrículo direito do recém-nascido é o mais su‑ sequente promoção da resposta inflamatória sistêmica como jeito à lesão isquêmica porque a pressão vascular pulmonar se resultado final. Além disso, induzem a enzima óxido nítrico eleva como decorrência da hipóxia e da acidose. Esse fato he‑ sintetase, que, juntamente com TNF-alfa e IL-1-beta, promo‑ modinâmico leva a um sofrimento da circulação do ventrículo direito com consequente isquemia ou necrose. Laboratorial‑ ve efeitos neurotóxicos. Os eventos bioquímicos que levam à agressão hipóxico mente, manifesta-se por aumento da CK-MB; no eletrocar ‑isquêmica são muito mais conhecidos que a via inflamatória. diograma, há alterações compatíveis com lesão isquêmica ou Por isso, as estratégias neuroprotetoras disponíveis atualmen‑ necrose miocárdica; e na cintilografia miocárdica, há manifes‑ te estão baseadas no bloqueio dos eventos bioquímicos que tações isquêmicas.21,22 Inicialmente, ocorre taquicardia sinusal, seguida de bradi‑ podem causar a morte neuronal.16 cardia e insuficiência cardíaca. O recém-nascido apresenta Manifestações clínicas hiperatividade precordial, pulsos amplos ou diminuídos com Sistema nervoso central déficit de perfusão periférica e edema generalizado, e é possí‑ A extensão e a distribuição da lesão isquêmica cerebral são de‑ vel a presença de sopro cardíaco pela necrose do músculo terminadas pela maturidade cerebral e a gravidade e duração papilar e arritmias.
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Encefalopatia hipóxico‑isquêmica •
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Tabela 2 Estágios da encefalopatia hipóxico-isquêmica Estágio
Estágio 1 (leve)
Estágio 2 (moderada)
Estágio 3 (grave)
Nível de consciência
Hiperalerta
Letargia
Torpor, coma
Controle neuromuscular
Super-reativo
Movimentos espontâneos diminuídos
Movimentos espontâneos diminuídos ou ausentes
Tônus muscular
Normal
Hipotonia leve
Flácido
Postura
Flexão distal suave
Flexão distal forte
Descerebração intermitente
Reflexos tendinosos
Super-reativo
Super-reativo, desinibido
Diminuído ou ausente
Mioclonia segmentar
Presente ou ausente
Presente
Ausente
Reflexos complexos
Normal
Suprimido
Ausente
Sucção
Ativa ou pouco fraca
Fraca ou ausente
Ausente
Moro
Vivo
Fraco, limiar alto
Ausente
Oculovestibular
Normal
Exacerbado
Fraco ou ausente
Tonicocervical
Leve
Forte
Ausente
Funções autonômicas
Simpáticas generalizadas
Parassimpáticas generalizadas
Ambos os sistemas deprimidos
Pupilas
Midríase, reativas
Miose, reativas
Médias, pouco reativas, anisocoria
Respirações
Espontâneas, regulares
Periódicas
Periódicas, apneias
Ritmo cardíaco
Normal ou taquicardia
Bradicardia
Variável, bradicardia
Secreções em vias aéreas
Escassas
Profusas
Variáveis
Motilidade gastrointestinal
Normal ou diminuída
Aumentada, diarreia
Variável
Convulsões
Ausentes
Frequentes: focal ou multifocal
Frequentes: descerebração
Eletroencefalograma (EEG)
Normal (desperto)
Baixa voltagem, padrão periódico (desperto)
Periódico, com fase isoelétrica ou totalmente isoelétrica
Duração dos sintomas
< 24 horas
2 a 14 dias
Horas a semanas
Seguimento
100% normal
80% normal, anormal se sintomas por mais de 5 a 7 dias
50% óbito; os restantes, sequelas graves
Fonte: Sarnat e Sarnat.17
Sistema respiratório É frequente a associação de asfixia e hipertensão pulmonar persistente (HPP) do recém-nascido. Na asfixia, pode ocor‑ rer necrose dos músculos papilares da válvula tricúspide, promovendo regurgitação valvar tricúspide e aumento da pressão no átrio direito, causando shunt direita-esquerda du‑ rante a sístole ventricular. Além disso, a redistribuição do fluxo sanguíneo no organismo após um evento hipóxico-is‑ quêmico e a acidose metabólica promovem aumento da re‑ sistência vascular pulmonar e consequente elevação da pres‑ são na artéria pulmonar. O shunt direita-esquerda de sangue não oxigenado pelo forame oval e pelo canal arterial patente é responsável pela hipoxemia sistêmica grave. Dessa forma, há uma somatória de efeitos clínicos de uma isquemia teci‑ dual generalizada. É uma situação muito grave que requer suporte intensivo e manejo imediato na tentativa de reverter o quadro clínico.23 O ecocardiograma com mapeamento em cores permite a vi‑ sualização do jato de regurgitação tricúspide e do jato no fora‑ me oval, além da aferição da pressão na artéria pulmonar e da avaliação da função ventricular direita. No caso de não dispor de ecocardiografia e se o shunt for predominantemente pelo canal arterial, a constatação da PaO2 ou da saturação arterial
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de oxigênio pré-ductal (artéria radial direita) e pós-ductal (aorta descendente ou membros inferiores) – mostrando uma diferença de oxigenação com saturação ou PaO2 mais elevada no membro superior direito que nos membros inferiores – faz o diagnóstico de HPP. A síndrome de aspiração de mecônio é um achado frequen‑ te concomitante com a asfixia e com a HPP. Distúrbios metabólicos Inicialmente, há hiperglicemia por aumento na liberação de catecolaminas e cortisol,24,25 seguida de hipoglicemia causada pelo consumo excessivo dos depósitos de glicogênio hepático e, em alguns casos, por hiperinsulinismo tardio.26 A hipocalcemia precoce (cálcio sérico total < 7 mg/dL ou cálcio iônico < 4 mg/dL, nas primeiras 72 horas de vida) é se‑ cundária à insuficiência renal e à redução transitória da secre‑ ção de hormônio paratireóideo.27 Distúrbios hidreletrolíticos acontecem secundariamente à insuficiência renal aguda ou à síndrome da secreção inapropriada de hormônio antidiurético (SSIHA).28 Hiponatre mia e natriúria ocorrem na fase de recuperação da necrose tubu‑ lar aguda (NTA), e hipercalemia, na insuficiência renal mais prolongada.
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Aparelho gastrointestinal Aumento dos níveis séricos de amônia podem ser detectados por insuficiência hepática.29,30 A lesão hepática pode evoluir para necrose. A insuficiente perfusão sanguínea visceral pode causar isquemia das alças intestinais, predispondo o recém‑ -nascido, principalmente o prematuro, a desenvolver quadro de enterocolite necrosante.
Segundo passo Devem ser tomadas medidas de suporte vital, como manutenção da oxigenação, da perfusão e da temperatura corpórea; equilíbrio metabólico (glicose), hidreletrolítico (especialmente os íons cál‑ cio, sódio e potássio) e acidobásico; além de medidas para evitar e minimizar edema cerebral e tratamento das convulsões.32 1. Ventilação/oxigenação: deve-se tentar manter os níveis de PaO2 e PaCO2 os mais próximos do normal. Evitar que a PaO2 ultrapasse o valor de 100 mmHg e a PaCO2 se situe abaixo de 35 mmHg. A hiperóxia pode promover redução no fluxo san‑ guíneo cerebral (FSC) ou potencializar a lesão de reperfusão causada pelo acúmulo de radicais livres. A hiperventilação também é contraindicada, pois a hipocapnia excessiva (PaCO2 < 25 mmHg) pode reduzir o FSC. A EHI frequentemente é acompanhada de doenças pulmonares. A síndrome de aspira‑ ção de mecônio e a HPP devem ser tratadas quando ocorrem para evitar um agravamento do processo hipóxico cerebral. 2. Perfusão: é importante manter a pressão de perfusão cerebral (PPC), que consiste na diferença entre a pressão arterial média sistêmica (PAM) e a pressão intracerebral (PIC) (PPC = PAM – PIC). A PIC do recém-nascido com EHI não é monitorada ha‑ bitualmente na prática clínica. A perda da autorregulação ce‑ rebrovascular faz com que a PPC seja reflexo direto da PAM, e a manutenção da PPC requer uma PAM no mínimo entre 45 e 50 mmHg. A oxigenação do SNC depende da PaO2 e da perfu‑ são tecidual. A cardiopatia isquêmica causada pela lesão asfí‑ xica causa diminuição da contratilidade cardíaca e do débito cardíaco. Para que o débito cardíaco seja mantido em níveis adequados e que se tenha uma pressão de perfusão efetiva, o uso de drogas vasopressoras é necessário. No paciente asfixia‑ do, a droga vasoativa mais indicada é a dobutamina, que au‑ menta a contratilidade cardíaca e tem efeito de vasodilatação periférica. A dose inicial indicada é 7,5 mcg/kg/min EV. 3. Glicose: a glicemia deve ser mantida em níveis fisiológicos, ou seja, 50 a 80 mg/dL. A hipoglicemia é uma condição agravan‑ te, pois além de reduzir reservas energéticas (ATP) e iniciar a cascata de eventos bioquímicos, pode potencializar os ami‑ noácidos excitatórios (aspartato e glutamato) e aumentar o ta‑ manho da área de hipóxia-isquemia cerebral. Por outro lado, não adianta manter níveis de glicose elevados como estratégia terapêutica. A hiperglicemia pode causar elevação do lactato cerebral, aumento da lesão celular e do edema intracelular e vários distúrbios na regulação do tônus vascular cerebral. 4. Balanço hidreletrolítico: • cálcio: os níveis plasmáticos de cálcio devem ser manti‑ dos em 7 a 11 mg/dL. Hipocalcemia é uma alteração metabólica comum nos recém-nascidos asfixiados. Como os mecanismos que promovem lesão neuronal na
Aparelho renal Oligúria (diurese < 1 mL/kg/hora) ou anúria é comum no re‑ cém-nascido que sofreu asfixia. SSIHA, NTA ou desidratação são causas de oligúria e merecem um diagnóstico diferencial, uma vez que ocorrem com alguma frequência em recém-nas‑ cidos asfixiados. A SSIHA ocorre por disfunção hipofisária secundária à agressão isquêmica.28 Os pacientes com SSIHA reabsorvem grande quantidade de água livre no nível de túbulo distal e de‑ senvolvem oligúria, edema e hiponatremia. A NTA consequente da lesão isquêmica renal cursa com re‑ dução do débito urinário e insuficiência renal aguda que per‑ siste por vários dias ou semanas.31 O diagnóstico diferencial dessas situações patológicas que causam oligúria encontra-se na Tabela 3. Alguns recém-nascidos com asfixia desenvolvem bexiga neurogênica, e a consequente retenção urinária não é relacio‑ nada à doença parenquimatosa renal. No diagnóstico diferen‑ cial da oligúria e anúria no recém-nascido com asfixia, é im‑ portante realizar a palpação da bexiga para constatar se há distensão vesical secundária à bexiga neurogênica. Distúrbios hematológicos Coagulação intravascular disseminada (CIVD) é frequente em recém-nascidos com asfixia perinatal e está associada a situa‑ ções de hipóxia-isquemia tecidual. A CIVD manifesta-se, clinicamente, por sangramento em locais de venopunção, equimoses, hematomas, petéquias, he‑ matúria, hemorragia digestiva e melena. Esses achados são acompanhados pelas manifestações clínicas de choque hipo‑ volêmico, variáveis com a gravidade. O diagnóstico laborato‑ rial revela prolongamento dos tempos de tromboplastina par‑ cial ativada (TTPA), protrombina (TP) e trombina (TT). A contagem de plaquetas pode ser normal ou reduzida. Tratamento Primeiro passo (intervenção pós-natal imediata) Ocorre na sala de parto, onde é fundamental a reanimação efe‑ tiva e rápida do recém-nascido asfixiado. Tabela 3 Diagnóstico diferencial da oligúria Densidade urinária
Ureia e creatinina
Sódio sérico
FENa
Peso
Exame de urina
SIHAD
↑
N
↓
< 2,5
↑
N
NTA
↓
↑
N/↓
> 2,5
↑
A
Desidratação
↑
N / ↑
N/↑
< 2,5
↓
N
FENa (excreção fracionada de sódio): [(Na urinário/Na sérico)/(ureia urinária/ureia sérica)] x 100; SSIHA: síndrome da secreção inapropriada de hormônio antidiurético; NTA: necrose tubular aguda; ↑: aumentado; ↓: diminuído.
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Encefalopatia hipóxico‑isquêmica •
EHI estão relacionados com o aumento do cálcio intrace‑ lular, a utilização de níveis de cálcio abaixo do normal com bloqueadores dos canais de cálcio poderia ser inte‑ ressante, desde que não causasse efeitos cardiovascula‑ res adversos, como o comprometimento da contratilida‑ de miocárdica, além do maior risco de crises convulsivas secundárias a hipocalcemia; • sódio e potássio: hiponatremia pode ocorrer por SSIHA ou por NTA. Hiperpotassemia é frequente nos recém‑ -nascidos com insuficiência renal aguda decorrente da as‑ fixia. A monitoração desses eletrólitos e sua correção, quando alterados, são necessárias. 5. Edema cerebral: o recém-nascido que sofre agressão hipóxi‑ co-isquêmica tem predisposição à sobrecarga hídrica, princi‑ palmente em função da redução do débito urinário (oligúria) comum na EHI. Anúria ou oligúria (diurese < 1 mL/kg/h) pode ocorrer por SSIHA ou por NTA. Ambas as situações de‑ vem ser manejadas com restrição hídrica (oferta de 60 mL/ kg/dia). No manejo do recém-nascido asfixiado, no entanto, a expansão volumétrica com soro fisiológico para manuten‑ ção da PAM e da PPC pode ser necessária. 6. Tratamento de convulsões: ocorrem precocemente na evolu‑ ção clínica da EHI, são focais ou multifocais. Recém-nascidos que têm pH < 7 no sangue de cordão e que mantenham acido‑ se metabólica 2 horas após o nascimento apresentam crises convulsivas frequentemente nas primeiras 24 horas de vida. As crises convulsivas estão relacionadas com o aumento do metabolismo cerebral que ocorre na EHI. Os barbitúricos são preferíveis porque reduzem o metabolismo cerebral, promo‑ vendo a preservação de energia. Quando a convulsão é clini‑ camente bem definida, a realização do EEG pode ser retarda‑ da, mas se o recém-nascido está em ventilação mecânica e paralisado com pancurônio, o EEG é obrigatório. A distinção clínica entre convulsões multifocais e movimentos mioclôni‑ cos rítmicos segmentares é muito difícil e, portanto, o EEG é fundamental. A primeira escolha no tratamento das convul‑ sões secundárias à EHI é o fenobarbital. Emprega-se dose de ataque de 20 mg/kg, seguida de manutenção de 3 a 5 mg/kg/ dia. Se as convulsões persistirem, dá-se uma segunda dose de ataque de 20 mg/kg de fenobarbital; se ainda assim não hou‑ ver controle das crises convulsivas, é necessária a associação de fenitoína (20 mg/kg dose de ataque e manutenção de 4 a 8 mg/kg/dia). As convulsões são difíceis de controlar nos está‑ gios precoces da EHI (primeiras 72 horas), devendo-se atingir o nível máximo terapêutico do fenobarbital, quando necessá‑ rio, para controle das crises.
Terceiro passo: intervenções preventivas 1. Bloqueadores dos canais de cálcio: o cálcio é o mediador cen‑ tral de uma série de eventos bioquímicos que causam a morte neuronal. É possível que a redução dos níveis de cálcio no ci‑ tosol, no momento da agressão hipóxico-isquêmica, seja be‑ néfica, mas os efeitos adversos cardiovasculares desses blo‑ queadores não compensam os eventuais benefícios da terapêutica. No momento, não existe indicação do uso de blo‑ queadores do canal de cálcio em recém-nascidos asfixiados.
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2. Varredores de radicais livres: os efeitos neuroprotetores dos var‑
redores de radicais livres podem ser exercidos pela inibição da liberação do glutamato. Sabe-se que o influxo de cálcio é ne‑ cessário para a liberação de glutamato nas terminações nervo‑ sas pré-sinápticas, levando à maior produção de radicais livres, que, por sua vez, exercem ações sobre a liberação de mais glu‑ tamato (importante aminoácido excitotóxico em células neu‑ ronais). Os inibidores da produção de radicais livres são: alo‑ purinol, que inibe a enzima xantina-oxidase; indometacina, que inibe a cicloxigenase; ferro quelato, que reduz a produção do radical hidroxila; e magnésio, que inibe a peroxidação lipídica. Todas essas ações são neuroprotetoras, mas a droga mais pro‑ missora para utilização como intervenção neuroprotetora é o alopurinol.17 3. Hipotermia terapêutica: há inúmeros estudos empregando duas técnicas de resfriamento corpóreo, a fim de inibir, redu‑ zir e melhorar a evolução da lesão cerebral e sequelas neuro‑ lógicas decorrentes da EHI: hipotermia seletiva da cabeça e hipotermia corpórea total. A temperatura de resfriamento deve ser entre 33 e 34°C; temperaturas inferiores a 32°C são menos neuroprotetoras e abaixo de 30°C foram observados efeitos adversos sistêmicos graves. Indica-se início da hipo‑ termia terapêutica até 6 horas após o nascimento, pois os mo‑ delos experimentais evidenciaram que essa é a janela tera‑ pêutica da agressão hipóxico-isquêmica. A hipotermia deve ser mantida por 72 horas e a temperatura esofágica ou retal deve se manter em 33,5°C. A hipotermia tem sido efetiva em reduzir sequelas neurológicas, principalmente em recém‑ -nascidos com EHI moderada, e em melhorar o prognóstico em longo prazo dos recém-nascidos com EHI. Estudos de metanálise têm mostrado que o uso da hipotermia terapêuti‑ ca diminui a mortalidade e melhora o prognóstico com rela‑ ção ao neurodesenvolvimento dos recém-nascidos com EHI.33-35
Indica-se hipotermia terapêutica nos recém-nascidos com idade gestacional > 35 semanas, peso de nascimento > 1.800 g e que tenham menos que 6 horas de vida e preencham os seguintes critérios:36 1. Evidência de asfixia perinatal: • gasometria arterial de sangue de cordão ou na primeira hora de vida com pH < 7,0 ou EB < -16; ou • história de evento agudo perinatal (descolamento abrupto de placenta, prolapso de cordão); ou • escore de Apgar 5 ou menos no décimo minuto de vida; ou • necessidade de ventilação mecânica além do décimo mi‑ nuto de vida. 2. Evidência de encefalopatia moderada a severa antes de 6 ho‑ ras de vida: convulsão, nível de consciência, atividade espon‑ tânea, postura, tônus, reflexos e sistema autonômico. 3. Efeitos das citocinas na neuroproteção: os níveis elevados da IL-6 e do TNF-alfa no liquor de recém-nascidos a termo com EHI, principalmente quando relacionados com seus níveis plasmáticos, sugerem produção cerebral desses mediadores, em especial do TNF-alfa.25 Uma nova modalidade terapêutica poderá ser o emprego de bloqueadores cerebrais do TNF-alfa.16
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1292 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 16 NEONATOLOGIA
Prognóstico Robertson et al. estudaram 145 crianças que tiveram EHI (56 le‑ ves, 84 moderados e 5 graves) aos 8 anos de idade e compararam com um grupo-controle de 155 crianças. Dos pacientes com EHI, 16% apresentaram acometimento grave, definido por paralisia cerebral, cegueira, atraso de desenvolvimento, doença convulsi‑ va e déficit auditivo. Os que tiveram encefalopatia moderada e grave tiveram desempenho intelectual, integração visual-motora, escores de vocabulário e de aritmética significativamente inferio‑ res aos de pacientes com encefalopatia leve e aos controles. Foi concluído que pacientes com encefalopatia leve têm desempe‑ nho escolar semelhante ao do grupo-controle.37 Em outro estudo, 178 recém-nascidos com EHI grave foram estudados. Os achados neonatais que mais se associaram com mau prognóstico foram idade do início da respiração espontâ‑ nea, necessidade de massagem cardíaca durante a reanima‑ ção neonatal e idade do início das crises convulsivas. Quanto mais tarde se iniciou a respiração espontânea e quanto mais precoce iniciaram as crises convulsivas, maior a probabilidade de desenvolver sequelas neurológicas futuras.38 Resumo Asfixia perinatal desenvolve-se quando há hipoperfusão teci‑ dual significativa e diminuição da oferta de oxigênio decorren‑ te das mais diversas etiologias durante o período periparto. Entre os mecanismos fisiopatológicos, há a redução do aporte cerebral de fosfatos de alta energia, causando falta progressiva de energia, entrada de cálcio para o meio intracelular, libera‑ ção de aminoácidos neuroexcitatórios e produção no sistema nervoso central de citocinas neurotóxicas. As manifestações clínicas podem ser de natureza neurológi‑ ca (convulsões e coma), cardiovascular (choque e cardiopatia isquêmica), respiratória (HPP e síndrome de aspiração de me‑ cônio), metabólica (hipoglicemia e hipocalcemia), renal (insu‑ ficiência renal aguda e SSIHA), gastrointestinal (enterocolite necrosante) e hematológica (CIVD). O tratamento consiste em adequado atendimento na sala de parto e cuidados com ventilação, perfusão, distúrbios metabólicos, distúrbios hidreletrolíticos e controle das crises convulsivas (primeira escolha terapêutica é o fenobarbital). A hi‑ potermia terapêutica é a modalidade mais empregada atualmen‑ te com o propósito de diminuir as sequelas decorrentes da EHI. O prognóstico quanto ao neurodesenvolvimento das crianças que sofreram asfixia grave é sombrio. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que encefalopatia hipóxico-isquêmica resulta de hipoperfusão e baixa oxigenação tecidual. • Compreender que encefalopatia hipóxico-isquêmica acompanha manifestações clínicas sistêmicas. • Saber que encefalopatia hipóxico-isquêmica é a principal causa de crise convulsiva no recém-nascido de termo. • Entender que a encefalopatia hipóxico-isquêmica é uma importante causa de paralisia cerebral e déficit do desenvolvimento neuropsicomotor.
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•
Perceber que o atendimento adequado na sala de parto diminui as manifestações clínicas e as sequelas decorrentes da encefalopatia hipóxico-isquêmica. • Informar que a hipotermia terapêutica é, no momento, a mais eficaz terapêutica neuroprotetora para os recém-nascidos com encefalopatia hipóxico-isquêmica.
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Encefalopatia hipóxico‑isquêmica •
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CAPÍTULO 12
DOENÇA HEMORRÁGICA DO RECÉM-NASCIDO Paulo de Jesus Hartmann Nader Silvana Salgado Nader Manoel Reginaldo Rocha de Holanda
Introdução A presença de sangramento no recém-nascido (RN) pode es‑ tar associada a quadros graves de infecção, doenças hemato‑ lógicas ou deficiência de vitamina K. Para o tratamento corre‑ to, é necessário que se obtenha o diagnóstico preciso. Em alguns casos, como na doença hemofílica, o diagnóstico só poderá ser confirmado por testes laboratoriais específicos; em outros, por exemplo, na doença hemorrágica do RN, a asso‑ ciação de um bom exame clínico, anamnese e provas de coa‑ gulação fazem o diagnóstico. Avaliação clínica inicial História Todo RN que apresentar sangramento significativo necessita de investigação de seus mecanismos hemostáticos. A investi‑ gação inicial de um RN com sangramento deve ter uma histó‑ ria completa, ressaltando-se os seguintes pontos: história fa‑ miliar de sangramento, história das gestações anteriores, história de doenças de coagulação na família, doenças mater‑ nas (principalmente infecções), drogas usadas na mãe e no neonato, certeza da administração da vitamina K no RN. Tam‑ bém é importante saber na história se foi realizado aspirado gástrico. Esse procedimento, quando realizado de forma ina‑ dequada, pode levar a lesão de mucosa com sangramento di‑ gestivo alto. A presença de líquido amniótico sanguinolento pode levar a diagnósticos errôneos de sangramento digestivo. As crianças que são amamentadas ao seio devem ter suas mães investigadas para fissura mamária. A deglutição de leite materno com sangue é um fator de confusão para diagnósticos de sangramento digestivo. A presença de situações de estresse deve ser valorizada, sendo comum a ocorrência de hemorragia digestiva em RN internados em unidades de terapia intensiva neonatal, provocada por úlceras.1 Exame físico No exame físico, é importante observar primeiramente se o sangramento é localizado ou difuso. Se o aspecto clínico é de
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uma criança doente ou saudável. Um RN saudável normal‑ mente apresenta petéquias onde houve congestão venosa ou traumatismo no parto. A presença de petéquias exclusiva‑ mente na face é consequência de circular de cordão ou apre‑ sentação de face. Essas petéquias comumente aparecem ime‑ diatamente após o parto, desaparecendo com o passar dos dias, não estando associadas com outros sangramentos. O RN com doença plaquetária normalmente não parece doente, ocorre um aumento gradual das petéquias, equimoses, san‑ gramentos localizados (p.ex., gastrointestinal). Nos casos de coagulação intravascular disseminada (CIVD), o sangramento aparece em vários locais e o RN apresenta-se com aspecto doente. No RN, não é comum a presença de hemartrose em casos de deficiência de fatores de coagulação. Os RN com mau estado geral são suspeitos de quadros infecciosos ou de CIVD. O RN em bom estado geral que apresenta sangramento tem diagnóstico provável de doença hemorrágica do RN, altera‑ ções plaquetárias ou deficiência dos fatores de coagulação. Quadros de hepatoesplenomegalia e icterícia sugerem quadro infeccioso e CIVD. Em alguns casos de sangramento digestivo alto, em RN aparentemente saudável, o sangue pode ser de origem mater‑ na (deglutido na hora do parto, fissura mamária) e é conside‑ rada como uma pseudo-hemorragia do RN. Na simples inspe‑ ção do sangramento, não é possível diferenciar se o sangue é de origem materna ou do RN. Para auxiliar no diagnóstico, é útil a realização do teste de Apt-Downey, que diferencia a he‑ moglobina materna da hemoglobina fetal.2 Avaliação laboratorial inicial Após ter sido feita a avaliação clínica, os exames laborato‑ riais iniciais devem ser solicitados. Os mecanismos de coa‑ gulação do RN são diferentes quando comparados aos do lactente e das crianças maiores. No RN, a adesividade pla‑ quetária está diminuída, os fatores de coagulação estão com sua atividade reduzida e a formação de coágulos apresenta‑ -se comprometida.3 Para a investigação inicial, devem ser so‑
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Doença Hemorrágica do Recém-nascido •
licitados: tempo de protrombina (TP); tempo parcial de tromboplastina ativada (ATTP); international normalised ratio (INR); fibrinogênio; contagem de plaquetas e teste de Apt-Downey. Para realizar o teste de Apt-Downey, deve-se misturar fezes ou material emético com água (1:5) e centri fugar a mistura. Depois, deve-se adicionar 1 mL 0,25 N de hidróxido de sódio em 5 mL do sobrenadante e esperar 5 mi‑ nutos. A coloração marrom-amarelada indica hemoglobina de adulto; a coloração rósea indica hemoglobina fetal.4 Após os resultados, as próximas etapas de investigação que serão necessárias devem ser definidas. A obtenção dos resul‑ tados acima permite diagnosticar a maioria das coagulopatias no RN. Lembrar que em RN do sexo masculino deve ser afas‑ tado o diagnóstico de hemofilia. Valores laboratoriais dos fatores de coagulação Os valores de TP e ATTP podem variar de laboratório para labo‑ ratório, dependendo do reagente empregado. Normalmente, os valores de TP e ATTP são similares entre prematuros de muito baixo peso e RN a termo que não receberam vitamina K. A melhor forma para coleta de sangue se faz por meio de uma punção venosa em que o sangue se deposita diretamen‑ te no tubo. A coleta de sangue em cateteres em que está sen‑ do administrada heparina não deve ser realizada. Em RN com hematócrito elevado (acima de 60%), a proporção de anticoagulante nos tubos deve ser de 19:1, em vez de 9:1. O anticoagulante é calculado com base no volume de plasma. Dessa forma, no RN com hematócrito elevado, haverá exces‑ so de anticoagulante para um volume pequeno de plasma, levando a resultados falsamente alterados3. Os valores labo‑ ratoriais dos fatores de coagulação mais comumente usados encontram-se na Tabela 1. Não é recomendado realizar o tempo de sangramento no RN por ser invasivo e não haver estudos que comprovem seu valor no diagnóstico das coagu‑ lopatias no RN. Tabela 1 Valores dos fatores de coagulação mais frequentemente usados em RN Teste
Prematuro (recebeu vitamina K)
RN a termo (recebeu vitamina K)
1 a 2 meses
Plaquetas (contagem/mL)
150.000 a 400.000
150.000 a 400.000
150.000 a 400.000
TP (segundos)
14 a 22
13 a 20
12 a 14
ATTP (segundos)
35 a 55
13 a 20
12 a 14
Fibrinogênio (mg/dL)
150 a 300
150 a 300
150 a 300
RN: recém-nascidos. Fonte: Goorin e Neufeld.5
Doença hemorrágica do recém-nascido por deficiência de vitamina K A deficiência de vitamina K no RN deve ser vista como um problema de saúde pública. O uso profilático da vitamina K reduziu drasticamente o número de crianças com doença he‑ morrágica do RN. O primeiro estudo descrito foi realizado há
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mais de 100 anos com 50 casos, sendo prescrito leite de vaca fresco ocorrendo ótimos resultados.6 A vitamina K está relacionada com a síntese da protrombina (fator II) e com a produção dos fatores VII, IX e X, que são sintetizados no fígado. Na ausência da vitamina K, o fígado sintetizará pro‑ teínas precursoras inativas.7 Por ser uma vitamina lipossolú‑ vel, só pode ser absorvida no intestino na presença de sais biliares. Como a capacidade de armazenagem da vitamina K é baixa e a meia-vida dos fatores dependentes da vitamina K é curta, ocorre deficiência desses fatores rapidamente quan‑ do a ingesta é insuficiente. Na natureza, são encontrados dois tipos de vitamina K: a vitamina K1, encontrada em ver‑ duras e no leite, e a vitamina K2, sintetizada na flora bacte‑ riana intestinal, onde é absorvida em pequenas quantidades. Como o intestino do feto é estéril, a produção e a absorção da vitamina K2 não ocorre. Portanto, nos primeiros dias de vida, a única fonte de vitamina K para o RN provém da alimenta‑ ção.8 A vitamina K3 é hidrossolúvel, sintética e não é mais usada no tratamento por causar anemia hemolítica com con‑ sequente hiperbilirrubinemia. O uso de vitamina K3 levou um aumento de kernicterus em prematuros nos Estados Uni‑ dos.6 Essa apresentação da vitamina K, além de levar a icterí‑ cia hemolítica, possui uma afinidade muito grande com os sítios de ligação da albumina (aumentando a quantidade de bilirrubina livre). O aparecimento desses casos de kernicterus em prematuros impediu que a vitamina K fosse usada como profilaxia nessa população. A vitamina K1, que é lipos‑ solúvel, está sendo empregada atualmente. Essa apresenta‑ ção não causa kernicterus e é segura em dosagens de até 10 mg no RN. Necessidades de vitamina K A Comissão de Alimentação e Nutrição dos Estados Unidos recomenda uma ingesta de 5 mcg/dia durante os primeiros 6 meses de vida.9 Entre os 6 e os 12 meses, a recomendação é de 10 mcg/dia. Nas outras faixas etárias, a recomendação é de 1 mcg/kg/dia. Os estudos mostram que existe uma gran‑ de variação de concentração de vitamina K1 no leite materno. Usualmente, a concentração é de 1 a 2 ng/mL.9 Portanto, para um RN atingir as necessidades diárias de 1 mcg/dia de vitamina K, deveria ingerir entre 2,5 e 5 litros de leite mater‑ no diariamente.10-12 A passagem de vitamina K através da placenta é pequena. Foi publicado um estudo mostrando que a concentração de vitamina K no leite materno varia pouco nos primeiros 6 meses.10 A média encontrada foi de 0,55 a 0,74 mcg/dia, o que corresponde a apenas 10% das necessidades diárias. As fórmulas lácteas nos Estados Uni‑ dos possuem uma concentração de vitamina K1 entre 45 e 55 mcg/dia.10 Isso corresponde a 7 a 9 mcg/kg/dia, excedendo largamente as necessidades recomendadas. Portanto, para o RN, as necessidades são totalmente supridas em fórmulas lácteas. No RN amamentado exclusivamente ao seio, as ne‑ cessidades de vitamina K devem ser supridas. São considerados fatores de risco para doença hemorrá gica do RN as seguintes situações: uso de anticonvulsivantes na gestação; não receber vitamina K, intramuscular (IM),
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profilática ao nascimento; jejum crônico sem suplementa‑ ção de vitamina K; uso de antibióticos de largo espectro e RN com mucoviscidose.
específica de cada doença. Em 50 a 63% dos pacientes a doença se manifesta como hemorragia intracraniana, e a mortalidade é cerca de 20%.15,16
Quadro clínico Diagnóstico O diagnóstico da deficiência de vitamina K deve ser feito com base no quadro clínico e nos exames laboratoriais.
Diagnóstico laboratorial O diagnóstico laboratorial torna-se difícil em muitas situa‑ ções. Normalmente, ele está baseado na medida indireta dos fatores de coagulação dependentes da vitamina K. Nesse caso, o nível de fibrinogênio e de plaquetas estão normais. O TP e o ATTP possuem uma variação muito grande no tempo de coa‑ gulação, necessitando curvas de diluição precisas. Além disso, o RN possui de 30 a 60% dos níveis plasmáticos dos fatores de coagulação do adulto. Mesmo nos casos em que o uso da vitamina K é feito imediatamente após o nascimento, os valo‑ res desses fatores não se igualam aos do adulto.7 O INR com‑ para o padrão de coagulação do indivíduo com o da popula‑ ção, valores superiores a 1 indicam que o RN possui uma coagulação mais lenta que a da população. Na deficiência de vitamina K, o TP e o ATTP estão prolongados (aumentados) e o INR é superior a 1. É importante que o laboratório forneça os valores normais para a faixa etária. Outras formas de auxí‑ lio diagnóstico são a dosagem de vitamina K1 ou a dosagem de fatores inativos da protrombina (FIPT). A dosagem de vi‑ tamina K1 pode ser obtida por meio de um kit de radioimu‑ noensaio, que é usado para estudos, com pouca aplicabilida‑ de na clínica diária. A dosagem de FIPT está baseada na produção de proteínas sintetizadas pelo fígado sem a capaci‑ dade de coagulação. Essas proteínas são produzidas quando ocorre deficiência de vitamina K.12 A presença dessas subs‑ tâncias em níveis elevados indica deficiência de vitamina K. Na prática diária, usa-se como diagnóstico laboratorial a do‑ sagem de TP, ATTP e INR elevados. A normalização dos valo‑ res laboratoriais após o uso de vitamina K confirma o diag‑ nóstico (Tabela 2).
Diagnóstico clínico O RN com deficiência de vitamina K possui três apresentações clínicas: precoce, clássica e tardia. Quadro precoce
A apresentação precoce está relacionada com o uso de medi‑ cações maternas durante a gestação que interferem nos de‑ pósitos ou na função da vitamina K. A população de risco são os RN filhos de gestantes que fazem uso de anticoagulantes ou antibióticos de largo espectro. Apesar de descrito na lite‑ ratura, a associação entre uso de anticonvulsivantes mater‑ nos e a doença hemorrágica no RN não está estabelecida.13 O quadro clínico inicia-se nas primeiras 24 horas de vida. Trata-se de uma doença muito pouco frequente. Observam‑ -se hemorragia umbilical, hematomas e sangramento em lo‑ cais de punção nas primeiras 24 horas de vida.14 O diagnósti‑ co é feito por apresentar um quadro clínico precoce associado à história de medicação durante a gestação. As gestantes que fazem uso dessas medicações devem receber vitamina K no último trimestre da gestação para assegurar uma oferta ade‑ quada para o feto. Sendo assim, o quadro precoce não está relacionado com a falta de profilaxia, mas, sim, associado ao uso de drogas utilizadas pela gestante. Quadro clássico
A forma clássica, associando o sangramento com a deficiên‑ cia de vitamina K, foi descrita pela primeira vez em 1894 por Townsend.14 Usualmente, são crianças com aspecto saudá‑ vel, sem quadro clínico de asfixia ou infecção, mas que apre‑ sentam sangramento. Este ocorre durante a primeira sema‑ na de vida, a partir do segundo dia, frequentemente em sistema digestivo, umbigo ou após algum procedimento in‑ vasivo.7 A incidência em locais em que não ocorrem profila‑ xia tem variado entre 1,5% e 1/10.000 nascidos vivos.14 Quadro tardio
O quadro tardio é encontrado em crianças entre 8 dias e 12 se‑ manas de idade. Está associado a uma baixa ingesta, defi‑ ciência na absorção ou produção diminuída de vitamina K. A incidência pode variar, dependendo do manejo clínico desses pacientes. A literatura especializada descreve uma incidên‑ cia entre 4 e 10/10.000 nascidos vivos.14 A população de ris‑ co em que ocorrem esses casos é: RN em nutrição parenteral total, diarreia crônica, fibrose cística, deficiência de alfa-1-an‑ titripsina, hepatite, doença celíaca e distúrbios da absorção de gorduras. Nesses casos, deverá ser suplementada a vita‑ mina K em intervalos regulares, conforme indicação
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Tabela 2 Diagnóstico laboratorial na doença hemorrágica do RN por deficiência de vitamina K Exame
Resultado
Exame
Resultado
TP
Aumentado
Plaquetas
Normal
ATTP
Aumentado
Fibrinogênio
Normal
INR
Aumentado
TP: tempo de protrombina; ATTP: tempo parcial de tromboplastina ativada; INR: international normalised ratio.
Diagnóstico diferencial O RN que apresenta um quadro clínico de doença hemorrágica por deficiência de vitamina K usualmente apresenta um bom estado geral, com sangramento digestivo, umbilical ou após procedimento cirúrgico, como circuncisão. As provas de coa‑ gulação revelam TP e ATTP aumentados. As plaquetas e o fi‑ brinogênio estão normais. Com o uso de vitamina K o quadro hemorrágico é interrompido em 12 a 24 horas após a sua admi‑ nistração. A Tabela 3 auxilia no diagnóstico diferencial de san‑ gramento em RN de aspecto saudável.
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Doença Hemorrágica do Recém-nascido •
Tabela 3 Diagnóstico diferencial de sangramento no RN de aspecto saudável Plaquetas
TP
ATTP
Suspeita diagnóstica
Diminuídas
Normal
Normal
Trombocitopenia imune, infecção oculta, doença de medula óssea
Normais
Aumentado
Aumentado
Doença hemorrágica do RN (deficiência de vitamina K)
Normais
Normal
Aumentado
Deficiência hereditária dos fatores da coagulação
Normais
Normal
Normal
Anormalidade qualitativa plaquetária (raro), traumatismos, alterações anatômicas, deficiência de fator XIII (raro)
TP: tempo de protrombina; ATTP: tempo parcial de tromboplastina ativada; RN: recém-nascido.
Profilaxia O uso de vitamina K via IM reduz a incidência do quadro clás‑ sico de doença hemorrágica do RN. A administração de 1 mg de vitamina K, IM, eleva os níveis de vitamina K1 em 1.000 ve‑ zes.6 Certamente, esses níveis são acima do necessário para a prevenção da doença hemorrágica do RN. Seu uso por via oral (VO) foi demonstrado ser eficaz6 e são necessárias 3 doses por VO nos primeiros 2 meses de vida. O uso repetido da droga nos primeiros 2 meses de vida é dificultado por problemas de ade‑ são ao tratamento, e esse fato parece ter sido responsável pelo aumento da incidência do quadro tardio.17 Além disso, a bio‑ disponibilidade da droga é menor quando administrada por VO.18 Em 1992, Golding et al. publicaram um estudo correlacio‑ nando um aumento de incidência de leucemia linfocítica agu‑ da em crianças que usaram vitamina K, IM, no período neona‑ tal.19 Esse estudo, apesar de metodologicamente bem feito, não possuía uma população de tamanho suficiente para um bom poder estatístico. Posteriormente, estudos populacionais feitos na Suécia e de Ross et al., em 2000, não comprovaram os mesmos achados de Golding,20-22 e a investigação de Wie‑ mels et al. mostrou haver relação de leucemia linfocítica agu‑ da com translocação cromossômica intrauterina.23 A base de dados da Cochrane, no ano 2000, publicou uma metanálise para avaliar a efetividade da vitamina K em seu uso profilático, na prevenção de doença hemorrágica do RN, nos quadros clássico e tardio,24 além da eficácia das vias de admi‑ nistração (IM e VO). Como desfecho primário, foi considerada a presença de doença hemorrágica. Nos desfechos secundários, foram considerados os exames laboratoriais (TP, ATTP, FIPT, nível plasmático de vitamina K e INR). Os revisores concluíram que: uma dose única de vitamina K (1 mg) IM após o nascimen‑ to é efetiva na prevenção da doença hemorrágica do RN em seu quadro clássico. A vitamina K usada IM ou VO (1 mg) profilati‑ camente melhora os índices de coagulação entre 1 e 7 dias de vida. Não existem estudos randomizados que usaram a vitami‑ na K para avaliar sua eficácia no quadro clínico tardio da doen‑ ça hemorrágica do RN, bem como em relação à eficácia da vita‑
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mina K VO nos quadros de doença hemorrágica do RN (clássica ou tardia). Quando comparado o uso de vitamina K em dose única por VO ou IM, a única diferença encontrada foram os ní‑ veis plasmáticos de vitamina K, mais baixos no grupo VO com 2 semanas de vida. Os valores da coagulação foram similares nos dois grupos. Quando foi comparado o uso de 3 doses por VO em relação a 1 dose IM, os resultados mostraram níveis plas‑ máticos de vitamina K mais elevados no grupo VO com 2 sema‑ nas e 2 meses de vida. Da mesma forma, os valores da coagula‑ ção foram similares nos dois grupos. Os autores sugerem que deveria haver um estudo randomizado comparando uso de vi‑ tamina K, VO, em múltiplas doses com dose única IM, sendo usado como desfecho a doença hemorrágica do RN. Por ser uma doença rara, a amostra populacional deveria ser muito grande (500.000 RN). A necessidade de uma amostra desse porte praticamente inviabiliza esse estudo. Em 2011, uma revisão sistemática realizada por Martín-Ló‑ pez et al., com artigos publicados até 2008, utilizando os mes‑ mos desfechos da metanálise Cochrane, selecionou 5 estudos. Quando comparado uma dose IM de 1 mg de vitamina K versus placebo ou nenhum tratamento, houve redução significativa de hemorragia na primeira semana e hemorragia associada a cir‑ cuncisão nos 3 primeiros dias de vida. Em relação aos marca‑ dores bioquímicos, observou-se uma redução significativa nos níveis de FIPT e no TP. Na comparação entre administração oral versus placebo ou nenhum tratamento, não foi avaliado o desfecho clínico. Em relação aos marcadores bioquímicos, os estudos foram contraditórios, em três deles os achados duran‑ te os 3 primeiros dias de vida foram favoráveis ao uso da vita‑ mina K. Outro estudo que monitorou esses marcadores duran‑ te o primeiro mês de vida não demonstrou resultados significativos. Um outro estudo demonstrou diferenças signifi‑ cativas nos níveis do fator II, coeficiente do fator X e TP no gru‑ po que recebeu vitamina K oral. Na comparação entre o uso IM e oral da vitamina K, nenhum estudo analisou o desfecho clíni‑ co. Em relação aos marcadores bioquímicos em um estudo, ob‑ servaram-se níveis significativos mais elevados de vitamina K1 com 2 semanas de vida no grupo que recebeu por via IM e o me‑ nor tempo de protrombina com 6 horas de vida. Avaliando 3 doses orais de vitamina K versus 1 dose IM, observaram-se ní‑ veis plasmáticos mais elevados de vitamina K com 2 semanas e aos 3 meses no grupo de administração oral; entretanto, após o primeiro mês de vida, não se observaram diferenças signifi‑ cativas quanto ao INR entre os grupos.25 A Academia Americana de Pediatria (AAP), por meio do seu Comitê do Feto e do Recém-nascido, publicou uma reco‑ mendação para o uso de vitamina K na profilaxia da doença hemorrágica do RN.26 A vitamina K1 deve ser usada em todos os RN, uso IM na dosagem de 0,5 a 1 mg; devem ser conduzi‑ das mais pesquisas para avaliar a biodisponibilidade, eficácia e segurança das formulações orais de vitamina K, assim como o melhor regime para a prevenção do quadro tardio da doença; os profissionais de saúde deverão alertar as famílias para os riscos do quadro tardio da doença, associado à profilaxia ina‑ dequada com o uso da vitamina K, VO, particularmente em crianças amamentadas exclusivamente ao seio.
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Em relação à dosagem adequada de vitamina K a ser admi‑ nistrada em prematuros, com o objetivo de prevenir a doença hemorrágica do RN, os estudos ainda são controversos. Após haver sido divulgada a recomendação da AAP sobre o uso pro‑ filático de vitamina K, Costakos et al. publicaram um estudo comparando o uso de vitamina K em dois grupos de prematuros extremos: um grupo recebendo 0,5 mg e outro gru‑ po recebendo 1 mg.27 No segundo dia de vida, os valores plas‑ máticos de vitamina K do grupo que recebeu 1 mg foi de 1.900 a 2.600 vezes maior que os níveis plasmáticos do adulto (1.307 ± 552 ng/mL), sendo no grupo que recebeu 0,5 mg níveis plas‑ máticos de 975 ± 820 ng/mL. Não foram relatados sinais de in‑ toxicação de vitamina K. Nesse estudo, ficou demonstrado que o uso de 1 mg de vitamina K como profilaxia é muito acima do necessário. Mesmo com o uso de 0,5 mg, os níveis plasmáticos ainda são muito superiores aos do adulto. Nas recomendações do Manual de Nutrição Pediátrica da AAP existe a recomenda‑ ção do uso de 0,3 mg de vitamina K como dose profilática.28 Os mecanismos de atuação da vitamina K em nível molecular ain‑ da não estão bem entendidos, no entanto, está descrita uma provável função nos receptores de crescimento cerebral. Em recente publicação, recomenda-se a administração de 0,2 a 0,3 mg/kg por via IM ao nascimento e repetição após 4 semanas nos prematuros alimentados com leite materno.29 Uso da vitamina K na prevenção de hemorragia perintraventricular (HPIV) no prematuro A melhora dos fatores de coagulação no prematuro, em teoria, poderia reduzir o risco de sangramento cerebral. Como a he‑ morragia ocorre precocecemente, os estudos avaliaram o uso da vitamina K antes do nascimento. Em 2010, em uma meta‑ nálise do Cochrane, que selecionou 7 estudos, randomizados e quase randomizados, com 607 mulheres, observou-se redu‑ ção no grau severo (3 e 4) de HPIV quando foi administrada vitamina K previamente na mãe antes do parto. Esse achado não foi observado quando foram excluídos os estudos quase randomizados. Não foram observadas diferenças no neurode‑ senvolvimento aos 18 meses, 24 meses e aos 7 anos de idade. Em um único estudo, houve uma redução na Escala de Desen‑ volvimento Mental de Baley, aos 2 anos de idade, no grupo que recebeu vitamina K antenatal; entretanto, nesse estudo, ocorreram muitas perdas no seguimento ambulatorial.30 Tratamento O RN que não recebeu vitamina K ao nascimento e que não es‑ tiver apresentando o quadro de doença hemorrágica do RN deve receber 1 mg, IM. O RN que estiver recebendo nutrição pa‑ renteral por mais de 2 semanas ou fazendo uso de antibióticos por período prolongado (2 semanas ou mais) necessita receber suplemento de vitamina K 0,5 mg, IM ou endovenoso (EV). O uso de plasma fresco congelado (PFC) deverá ser reservado em situações de emergência. Na presença de sangramento impor‑ tante, em que é necessário repor rapidamente os fatores de coagulação, com aumento do TP e do ATTP está indicado o uso de PFC, a via de administração é EV no volume de 10 mL/kg,
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podendo ser repetido a cada 8 a 12 horas. Em situações em que o sangramento é pequeno e o diagnóstico de doença hemorrá‑ gica for a maior suspeita, deverá ser administrada vitamina K na dosagem de 1 a 2 mg, EV. Nas situações em que a gestante está fazendo uso de hidantoinatos, fenobarbital ou outros anti‑ convulsivantes, está indicado o uso de 10 mg de vitamina K na gestante, 24 horas antes do parto, e deve ser feita a profilaxia com 1 mg de vitamina K no RN, repetindo a dose após 24 horas. Se houver sinais de sangramento no RN, deverão ser colhidas provas de coagulação (plaquetas, TP e ATTP). Resumo A presença de sangramento no RN deve ser imediatamente investigada. O auxílio no diagnóstico diferencial do sangra‑ mento é feito por uma história adequada, exame físico com‑ pleto e exames complementares. Em sua grande maioria, o sangramento em RN com bom estado geral é decorrente de sangue ingerido ou doença hemorrágica do RN. Em situa‑ ções em que houver comprometimento do estado geral, deve ser pensado em quadro de CIVD, frequentemente associado a quadros infecciosos ou asfixia. O uso IM de vitamina K está comprovadamente aceito para a prevenção da doença hemorrágica do RN. Como causa de sangramento pouco fre‑ quente estão as hemofilias, sendo a mais comum a do tipo A. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Entender que sangramentos do recém-nascido podem estar associados a quadros graves de infecção, doenças hematológicas ou deficiência de vitamina K, sendo necessário o diagnóstico preciso para a indicação do tratamento correto. • Proceder à avaliação clínica inicial por meio da história e do exame físico, complementados pelos exames laboratoriais adequados, com testes de coagulação e análise dos fatores de coagulação. • Conhecer a deficiência de vitamina K como causa importante de sangramento no recém-nascido e o grande impacto do uso profilático dessa vitamina em todos os neonatos. • Saber quais são as características metabólico ‑nutricionais da vitamina K, sua passagem pela placenta, as necessidades diárias desse nutriente, a variação de sua concentração no leite materno e os fatores de risco da doença hemorrágica do recém-nascido causada pela deficiência dessa vitamina. • Fundamentar o diagnóstico clínico da doença hemorrágica por deficiência de vitamina K no recém ‑nascido por meio das manifestações próprias dos quadros clínicos precoce, clássico e tardio da doença. • Formular diagnóstico diferencial entre doença hemorrágica do recém-nascido por deficiência de vitamina K e: trombocitopenia imune, infecção oculta, doença de medula óssea, deficiência hereditária dos fatores de coagulação e anormalidade qualitativa plaquetária (raro), traumatismos, alterações anatômicas, deficiência de fator XIII (raro).
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• Conhecer as bases científicas da profilaxia da doença hemorrágica do recém-nascido por meio da injeção intramuscular única da vitamina K. • Entender, além da profilaxia, o fundamento terapêutico dos recursos disponíveis para o tratamento de sangramentos importantes no período neonatal.
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CAPÍTULO 13
IMPORTÂNCIA DA TRIAGEM NEONATAL UNIVERSAL Vilma F. Hutim G. de Souza
A triagem neonatal já estabelecida no Brasil inclui testes e exa‑ mes realizados nos recém-nascidos (RN) que previnem e detec‑ tam doenças precocemente, com o objetivo de evitar morbidade e mortalidade nessa população infantil. As doenças detectadas, sejam elas congênitas ou genéticas, quando diagnosticadas na fase pré-sintomática nos RN, permite intervenções clínicas pre‑ coces e proporciona tratamento adequado. A partir da criação da Política Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) pelo Minis‑ tério da Saúde em 2001, aconteceu a oficialização desse proces‑ so com a triagem biológica (teste do pezinho), triagem auditiva e triagem ocular. A triagem biológica compreende 4 fases: fase I: fenilcetonúria – hipotireoidismo congênito; fase II: doença falciforme; fase III: fibrose cística; e fase IV: hiperplasia adrenal congênita – deficiência de biotinidase. Apesar da definição da PNTN, ainda existem desigualdades regionais importantes no acesso aos benefícios desses proce‑ dimentos, considerando as diferenças regionais dos estados brasileiros.1 Triagem auditiva O conhecimento da incidência da perda auditiva na popula‑ ção infantil que varia de 1 a 6:1.000 nascidos vivos normais e de 1 a 4:100 RN submetidos a fatores de riscos para essa mor‑ bidade, juntamente com sua correlação na aquisição e no de‑ senvolvimento normal da linguagem, fundamentou a criação de testes que detectassem alterações precoces nessa área nos RN.2 Estudos nacionais mostram que a triagem para deficiên‑ cia auditiva vem sendo desenvolvida no Brasil desde a década de 1980, mas foi incorporada na triagem neonatal universal no âmbito do SUS em 2001 pelo PNTN, que embora implanta‑ da ainda não tem cobertura para todos os RN em todos os mu‑ nicípios brasileiros.1 O conhecimento do desenvolvimento da área auditiva e possíveis fatores relacionados ao transtorno na sua formação definiram a política de triagem auditiva univer‑ sal para todos os RN, orientando que seja realizado esse teste até os 3 meses de vida para detecção e intervenção precoce quando necessário.1,3,4
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Segundo orientação do Joint Committee on Infant Hering da Academia Americana de Pediatria – 1994, existem fatores de risco potenciais para alterações auditivas em RN como: • asfixiados (APGAR < 6 no quinto minuto); • história familiar de surdez congênita; • infecções congênitas do grupo STORCH; • hiperbilirrubinemia (> 15 no RN a termo e > 12 no prematuro); • septicemia neonatal/meningite; • hemorragia intraventricular; • convulsões ou outra doença de sistema nervoso central (SNC) em RN; • anomalias craniofaciais; • espinha bífida; • defeitos cromossômicos; • uso de drogas ototóxicas; • peso de nascimento < 1.500 g; • ventilação mecânica por mais de 5 dias.5 É recomendado na alta hospitalar realizar a triagem auditiva universal por meio das emissões otoacústicas transientes (EOAT) e pesquisa do reflexo cócleo palpebral (RCP). Estudos demonstraram que a realização da triagem auditiva somente em crianças com algum fator de risco apenas identificaria 40 a 50% das crianças com perda auditiva significativa.6 Os RN com triagem auditiva normal e sem fatores de riscos para perda au‑ ditiva realizam esse teste 1 vez, porém aqueles com presença de quaisquer fatores de risco descritos, devem ser acompanhados por uma equipe multidisciplinar e realizar avaliações periódicas durante os dois primeiros anos de vida.4 Em caso de falha no primeiro teste de EOAT, o pediatra que acompanha a criança deve estar atento para a recomendação da realização da otos‑ copia e a curva timpanométria para verificar se a falha ocorreu por alteração condutiva. Quando no prosseguimento dessa tria‑ gem for comprovado o comprometimento condutivo, o neona‑ to é encaminhado para o exame otorrinolaringológico, sendo posteriormente submetido a um novo teste.3 Caso a falha não seja decorrente de algum comprometimento de orelha externa
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Importância da triagem neonatal universal •
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ou média, é realizada uma avaliação audiológica completa na • 2 meses de vida (período ideal para a cirurgia de catarata); criança, pois pode estar relacionada à perda auditiva neuros‑ • com 6, 9 e 12 meses de vida; sensorial. Se esta for confirmada, a intervenção (seleção e adap‑ • após 1º ano: duas vezes por ano. 13 tação de prótese auditiva, orientação familiar e terapia fonoau‑ diológica) deve ser imediatamente realizada. Estudos mostram Técnica para a realização do teste do reflexo que a implantação de próteses antes dos 6 meses de vida irá vermelho permitir à criança um desenvolvimento de linguagem (recepti‑ O pediatra deve ser treinado para o manuseio adequado do oftal‑ va ou expressiva), bem como seu desenvolvimento social, com‑ moscópio. O ambiente para a realização do exame deve ser escu‑ paráveis aos das crianças normais da mesma faixa etária.7 Para os neonatos com fatores de risco para alteração retro‑ coclear, recomenda-se a avaliação audiológica incluindo a pesquisa do efeito de supressão das EOAT e potencial evocado auditivo de tronco encefálico (PEATE).3 Triagem visual A tiragem visual neonatal já era realizada nos serviços priva‑ dos por recomendações das sociedades de especialidades, So‑ ciedade Brasileira de Pediatria (SBP), Sociedade Brasileira de Oftalmologia Pediátrica, bem como da Política de Saúde da Academia Americana de Pediatria, em conjunto com a Acade‑ mia Americana de Oftalmologia e Associação Americana de Oftalmologia Pediátrica e Estrabismo. No Brasil, no âmbito do SUS foi implantado pelo PNTN em 2001.8 O pediatra deve estar atento para a orientação e vigilância da realização do teste do olhinho (reflexo vermelho) em todos os recém-nascidos. Estudos demonstram que a triagem visual em RN é um método que pode identificar potenciais causas de anormalidades oculares tratáveis, considerando que em paí‑ ses em desenvolvimento 30 a 72% da cegueira infantil é evitá‑ vel, 9 a 58% é prevenível e 14 a 31% é tratável.10 A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 500.000 crianças ficam cegas em todo mundo. A prevalência dessa patologia nos paí‑ ses em desenvolvimento varia de 50 a 100 por 100.000.11 A ní‑ vel mundial, as principais etiologias de cegueira tratável na in‑ fância são catarata, retinopatia da prematuridade e o glaucoma.10 Estudos nacionais destacam que a retinopatia da prematuridade e glaucoma lideram as causas de cegueira in‑ fantil preveníveis e tratáveis.12 Teste do reflexo vermelho (teste do olhinho) A Academia Americana de Pediatria recomenda que todo pediatra deve deve fazer a avaliação da criança do nascimento até os 3 anos com exame oftalmológico: história ocular, avalia‑ ção visual, inspeção externa do olho e pálpebra, avaliação da motilidade ocular, exame da pupila e reflexo vermelho. O reflexo vermelho é o exame de rastreamento (screening) para anormalidades oculares, desde a córnea até o segmento posterior. Nesse exame, pode ser detectado as opacidades dos meios transparentes do globo ocular. Várias doenças podem ser detectáveis: catarata congênita; retinopatia da prematuri‑ dade; retinoblastoma; glaucoma congênito; descolamento de retina; hemorragia vítrea. Segundo orientação do Grupo de Trabalho de Prevenção da Cegueira da SBP, o teste do reflexo vermelho deve ser realizado: • antes da alta da maternidade; • na primeira consulta de puericultura;
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Figura 1 Imagem da técnica de realização do reflexo vermelho. Fonte: Preparando para o TEP/SPRS, 2012.
NORMAL
Reflexo vermelho presente bilateral
Figura 2 Imagem normal do reflexo vermelho. Fonte: Preparando para o TEP/SPRS, 2012.
ANORMAL
Reflexo vermelho duvidoso no olho direito
Reflexo vermelho ausente no olho direito
Figura 3 Imagem anormal do reflexo vermelho. Fonte: Preparando para o TEP/SPRS, 2012.
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recido, utilizar oftalmoscópio ou retinoscópio seguro próximo ao olho do examinador e aproximadamente 40 a 50 cm de distância.13 O teste é considerado normal quando os dois olhos apresen‑ tam um reflexo vermelho brilhante. Pontos pretos, assimetria ou a presença de reflexo branco (leucocoria) indicam a necessidade de avaliação mais cuidadosa – realizada pelo oftal‑ mologista. Teste do pezinho A OMS, desde a década de 1960 preconiza a importância da realização dos programas populacionais de triagem neonatal, especialmente nos países em desenvolvimento, além de criar critérios para sua realização. Estudo nacional descreveu que o Programa Triagem Neo‑ natal teve início em 1976 com o projeto pioneiro coordenado pelo Prof. Benjamin Schmidt para a triagem da fenilcetonúria (PKU) junto à Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de São Paulo (APAE-SP). A partir de 1980, foi introduzida a triagem para hipotireoidismo congênito. Em São Paulo, em 1983, por meio da Lei Estadual N. 3914 de 14/11/83, a triagem neonatal para essas duas doenças (teste do pezinho) tornou‑ -se obrigatória. A partir dessa iniciativa no Estado de São Pau‑ lo, em 1990 o teste do pezinho como rastreamento para essas duas doenças tornou obrigatórias para todo o Brasil, seja na rede pública ou na rede privada (Lei Federal n. 8069 de 13/07/90).14 Em setembro de 1999, foi fundada a Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal com a finalidade de reunir os diversos serviços existentes e profissionais ligados à área. Considera-se este um grande progresso na triagem neonatal no Brasil, pois dentre seus objetivos gerais destacam-se: congregar profissio‑ nais de saúde e atividades correlatas relacionados à triagem neonatal; estimular o estudo e a pesquisa no campo da tria‑ gem neonatal, diagnóstico de doenças genéticas, metabólicas, endócrinas, infecciosas e outras que possam prejudicar o de‑ senvolvimento somático, neurológico e/ou psíquico do RN e seu tratamento; cooperar com os poderes públicos quanto às medidas adequadas à proteção da saúde pública, no campo da triagem neonatal; além de promover eventos científicos obje‑ tivando a aproximação e o intercâmbio de informações. O teste do pezinho faz parte do PNTN e tem como objetivo fazer o rastreamento de RN portadores de doenças que devem ser diagnosticadas e tratadas o mais precocemente possível a fim de evitar sequelas nas crianças. As doenças triadas no pri‑ meiro padrão do teste do pezinho (teste do pezinho básico), fo‑ ram o hipotireoidismo congênito (HC), a PKU, a anemia falci‑ forme e a fibrose cística (FC). O PNTN, por meio da Portaria Ministerial n. 822 de 06/06/01 do Ministério da Saúde, deter‑ mina a gratuidade e obrigatoriedade da realização dos testes para diagnóstico neonatal da PKU, HC, hemoglobinopatias e FC.8 O PNTN tem como objetivos a operacionalização em todos os estados brasileiros de ampliar a triagem neonatal já exis‑ tente, ampliar a cobertura populacional da triagem neonatal para 100% dos nascidos vivos, proporcionar a busca ativa dos pacientes suspeitos de serem portadores das patologias, executar a confirmação diagnóstica, disponibilizar os serviços
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para acompanhamento e tratamento adequados dos pacien‑ tes, bem como criar um sistema de informações para cadastrar todos os pacientes em um Banco de Dados Nacional.15 Para a efetivação dos objetivos propostos, a política nacional deve seguir um fluxograma com os seguinte passos: 1. Coleta correta e em tempo adequado da amostra sanguínea. 2. Rápido envio da amostra para o laboratório. 3. Realização correta do exame pelo laboratório. 4. Rápida comunicação dos resultados dos exames. 5. Um centro de referência no qual exista(m) médico(s) treinado(s) para estabelecer o diagnóstico correto e onde o se‑ guimento das crianças afetadas possa ser realizado. 6. Avaliações periódicas do programa quanto ao seu controle de qualidade, com divulgação dos resultados dessas avaliações aos gestores responsáveis, a fim de orientar possíveis inter‑ venções para melhorias nesse processo de atenção.14 7. O teste do pezinho como triagem biológica do PNTN está divi‑ do em quatro fases: • fase I: fenilcetonúria – hipotireoidismo congênito; • fase II: doença falciforme; • fase III: fibrose cística; • fase IV: hiperplasia adrenal congênita – deficiência de bio‑ tinidase.8 Segundo dados do Ministério da Saude, a habilitação das qua‑ tro fases atingiu todas as regiões brasileiras em 2014, porém, a cobertura ainda não corresponde a todos os municípios brasi‑ leiros. A fase IV do teste do pezinho ampliou o teste, agora denominado teste do pezinho ampliado. O pediatra deve estar informado sobre situações que inter‑ ferem na coleta do exame para o teste do pezinho como as mostradas a seguir. Não há necessidade de jejum para a reali‑ zação da coleta. Idade Deve ser colhido em todo RN com 3 a 5 dias de vida, de prefe‑ rência no 3o dia. Garantir que o RN tenha recebido leite ou aminoácidos para evitar um resultado falso-negativo para PKU. Evitar um resultado falso-positivo para HC: logo que a criança nasce existe uma liberação fisiológica de TSH no san‑ gue (hormônio dosado no teste para diagnóstico de HC) com posterior diminuição das concentrações, atinge com 72 horas de vida valores séricos menores do que 10 µUI/mL (nível de corte para resultado alterado). Prematuridade e transfusão Prematuridade e transfusão são fatores restritivos na triagem da anemia falciforme e outras hemoglobinopatias. No caso de transfusão, repetir exame com 90 dias, porém coletar para as demais doenças dentro do tempo recomendado. No caso de prematuridade, deve coletar até o sétimo dia vida e repetir com 30 dias. Gemelaridade Evitar trocas de exame.
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Importância da triagem neonatal universal •
Uso de medicamentos Uso de medicamentos e presença de doenças não são fatores restritivos para coleta de amostras. Internação de pacientes em UTI neonatal As alterações hemodinâmicas podem alterar os resultados, po‑ rém é ideal que esse período para coleta não ultrapasse 30 dias.8,15 Interpretação dos resultados 1. PKU – FAL < 4 mg% → é um resultado considerado normal para crianças que tenham colhido o sangue após 48 horas de vida. FAL ≥ 4 mg% e < 10 mg% → são solicitadas mais 2 cole‑ tas de sangue em papel filtro com intervalo de 1 mês entre cada coleta. FAL ≥ 10 mg% → a criança já é chamada para uma consulta com o médico neuropediatra e coleta de sangue venoso para confirmação do diagnóstico. 2. TSH neo – TSH neo < 5 µUI/mL → é um resultado considera‑ do normal para crianças que tenham colhido o sangue após 48 horas de vida. TSH neo ≥ 5 e < 10 µUI/mL → é um resulta‑ do considerado limítrofe, nova coleta do teste do pezinho, imediatamente. Se mantiver resultado, RN será convocado para consulta com pediatra ou endocrinologista e faz coleta de sangue venoso para definir conduta. TSH neo ≥ 10 µUI/ mL → a criança é considerada suspeita de ser portadora de hipotireoidismo congênito. 3. Hemoglobinopatia – primeiro exame suspeito coletar segun‑ da amostra. Padrão compatível com fibrose cística, também repetir e encaminhar para o especialista. 4. Fibrose cística – IRT (tripsina imunorreativa) < 70 ng/mL → é um resultado considerado normal para crianças que tenham colhido o sangue entre 3 e 30 dias de vida. IRT1 ≥ 70 ng/mL → solicitar nova coleta do teste do pezinho, entre a 3a e 4a se‑ mana de vida do RN (IRT2). Se IRT2 mantiver alterado (≥ 70 ng/mL), encaminhar urgente para o gastropediatra.14 O pediatra que atende os RN desde a sala de parto, nos pós-al‑ ta ou atende os RN na primeira consulta deve atentar para a conversa com a família sobre a realização do teste do pezinho e apropriar-se de situações ou fatores que justifiquem a repe‑ tição desse exame. Em caso de dúvida, consulte especialistas na área pertinente das patologias prováveis nas respectivas alterações. Além da disponibilidade do teste do pezinho ampliado no SUS, existe a disponibilidade na rede privada conveniada com os planos de saúde a realização do teste do pezinho plus e master, como descrito a seguir. Teste do pezinho master O teste do pezinho master detecta as seguintes doenças: 1. PKU e outras aminoacidopatias. 2. Hipotireoidismo. 3. Anemia falciforme e outras hemoglobinopatias. 4. Hiperplasia adrenal congênita. 5. Fibrose cística. 6. Galactosemia.
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7. Deficiência de biotinidase. 8. Toxoplasmose congênita. 9. Deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase. 10. Sífilis congênita. 11. Citomegalovirose congênita. 12. Doença de Chagas congênita. 13. Rubéola congênita.
Teste do pezinho plus O teste do pezinho plus detecta as seguintes doenças: 1. PKU e outras aminoacidopatias. 2. HC. 3. Anemia falciforme e outras hemoglobinopatias. 4. Hiperplasia adrenal congênita. 5. FC. 6. Galactosemia. 7. Deficiência de biotinidase. 8. Toxoplasmose congênita.16 Considerando os avanços e os desafios para equidade das co‑ berturas das políticas de triagem neonatal no país, é impor‑ tante que os profissionais de saúde se apropriem das informa‑ ções e dos conhecimentos disponíveis sobre o tema. Dentro dessa abordagem estão disponíveis para livre acesso o Manual sobre o Plano Nacional de Triagem Neonatal (PNTN/CGSH/ DAE/MS – 2012) e o Manual de Norma Técnica do Hospital de Clínicas de Ribeirão Preto, 2011, entre outras informações em sites pertinentes. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Entender que a triagem neonatal é universal. • Contribuir com o cumprimento da meta da triagem neonatal universal, orientando e verificando no primeiro atendimento ao recém-nascido se já realizou os testes da triagem neonatal. Quando não tiver realizado, encaminhar urgentemente para realizá-los de acordo com o acesso das famílias, ao SUS ou ao serviço privado. • Orientar as famílias dos recém-nascidos que tiveram alguma intercorrência clínica ou internação no período neonatal, para que possa repetir o teste do pezinho em caso de hemotransfusão ou prematuridade. • Atentar para os resultados dos testes e fazer as orientações ou encaminhamentos quando algum teste fugir à normalidade.
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CAPÍTULO 14
CITOMEGALOVÍRUS Aparecida Yulie Yamamoto Fernanda Tomé Sturzbecher Maria Celia Cervi Marisa Marcia Mussi-Pinhata
Definição O citomegalovírus (CMV) ou herpesvírus tipo 5 (HHV-5) é o maior membro da família Herpesviridae, sendo altamente es‑ pécie-específico e adaptado no hospedeiro humano. O único reservatório para o CMV humano é o próprio homem. A infec‑ ção primária por CMV é caracterizada por uma fase virêmica inicial, quando ocorre a replicação viral no sangue, por perío‑ do variável de dias a semanas, seguida pela excreção viral per‑ sistente em diferentes fluidos corporais, como urina, saliva, secreções genitais, leite materno e lágrimas.1,2 Esse período é seguido por uma ampla resposta do sistema imunológico adaptativo do hospedeiro infectado e, após diversas semanas, a latência viral é estabelecida. A latência viral é caracterizada por uma baixa ou ausência de replicação viral detectável com manutenção do genoma viral na forma de epissoma em célu‑ las do endotélio vascular, monócitos e células progenitoras mieloides, as quais albergam o vírus e permitem subsequentes replicações (reativação), com ou sem manifestação da doen‑ ça.1 A infecção não primária, recorrente ou secundária, é ca‑ racterizada pela reativação do vírus latente endógeno ou pela nova exposição a diferentes cepas do CMV (reinfecção).1,2 Ao contrário de outras infecções, como rubéola e toxoplas‑ mose, a gestante previamente imune ao CMV pode transmitir a infecção ao feto como resultado da reativação do vírus endó‑ geno ou pela reinfecção com novas cepas do CMV.1-3 Essa ca‑ racterística torna o CMV a causa mais comum de infecção con‑ gênita no homem e consiste em um desafio para as estratégias de prevenção da transmissão vertical desse vírus.1 Além da sua importância em fetos e recém-nascidos, esse vírus é um importante agente infeccioso em crianças imuno‑ comprometidas, como receptores de transplantes e portadoras de HIV/aids. Ao replicar no paciente imunologicamente com‑ prometido, o CMV pode modular a resposta imunológica e co‑ laborar para o desencadeamento de manifestações clínicas mais graves.1 A infecção pelo CMV e sua gravidade refletem um equilíbrio entre as propriedades do vírus e fatores relacionados com a intensidade da resposta imunológica do hospedeiro. Em
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hospedeiros imunocompetentes, a infecção é assintomática na vasta maioria dos casos ou, em uma pequena proporção, pode cursar com quadro semelhante ao da mononucleose in‑ fecciosa, geralmente de evolução benigna. Os fatores virais que contribuem para o aparecimento da doença pelo CMV incluem a quantidade de vírus ao qual o paciente é exposto bem como a dinâmica da replicação viral. Os fatores do hospedeiro incluem o seu estado imunológico, como a sua capacidade de montar uma resposta imune celular e humoral completa e adequada. Embora existam diferentes genótipos do CMV, a variabilidade genética entre as diferentes cepas parece não influenciar na vi‑ rulência cepa-específica e no aparecimento da doença.1,3 Epidemiologia O CMV é amplamente difundido em todas as regiões do mun‑ do. A aquisição da infecção pode ocorrer por meio de contato pessoal direto e próximo com secreções contendo o vírus, como urina, saliva, secreções vaginais e cervicais, sêmen, leite materno e lágrimas e por meio de sangue ou órgãos transplan‑ tados.2 As taxas de soroprevalência ao vírus são indicadores de maior exposição ao vírus e diferem de acordo com as condi‑ ções socioeconômicas e hábitos de vida de cada população. Taxas de soroprevalência superiores a 90% na idade adulta são encontradas em países em desenvolvimento e em popula‑ ções de nível socioeconômico baixo; por outro lado, essas ta‑ xas decaem para 50% em países desenvolvidos.2 As crianças podem adquirir a infecção primária pelo vírus precocemente por 3 vias (transmissão vertical): ainda no perío‑ do pré-natal (congênita), pela exposição a secreções genitais durante o parto (intraparto) ou pós-natal precoce, por meio do aleitamento materno.1,4 Após o estabelecimento de medidas de inativação do CMV com relação à transfusão de hemoderiva‑ dos, o aleitamento materno vem sendo apontado como a fonte mais importante de infecção por esse vírus.4 Uma característica já muito bem conhecida em crianças in‑ fectadas congenitamente pelo CMV é a excreção viral prolongada na saliva e principalmente na urina, durante anos,
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a despeito da presença de anticorpos contra o vírus, produzi‑ dos naturalmente pelas crianças com infecção congênita e pe‑ rinatal.1,2 A virúria é a excreção na saliva, observada em todos os lactentes jovens infectados congenitamente ou no período pós-natal precoce, representa um importante papel no ciclo natural da transmissão do CMV, especialmente para mulheres na idade fértil. Não é conhecido se essas crianças albergam uma única cepa do CMV ou se a reinfecção com novas cepas contribui para manter a excreção viral prolongada. Dessa forma, as chances de transmissão do vírus são inú‑ meras, seja para a primeira exposição da criança ao CMV bem como para o reencontro com o vírus (reinfecção), especial‑ mente em crianças que frequentam ambientes como creches e escolas. Estima-se que ao final da idade escolar e início da ado‑ lescência, a soroprevalência ao CMV seja de aproximadamente 80% em países em desenvolvimento e em populações de baixo nível socioeconômico.2 Ao final da adolescência, essas taxas podem ser superiores a 90%, como resultado da transmissão sexual. Dessa forma, espera-se que grande parcela das mulhe‑ res já tiveram infecção primária por CMV na idade fértil.2,3,5 A Tabela 1 mostra as taxas de soroprevalência ao CMV de acordo com a idade em uma população de gestantes brasileiras. A prevalência da infecção congênita por CMV aumenta à medida que aumenta a soroprevalência materna ao CMV. Es‑ tima-se que aproximadamente 0,2 a > 1% de todos os recém‑ -nascidos sejam infectados pelo CMV como resultado da in‑ fecção congênita.1-3 Nos países em desenvolvimento, onde quase todas as mulheres são soroimunes, as taxas de infec‑ ção congênita são as mais altas. No Brasil, em uma população materna com 98% de soropositividade,5 a prevalência de in‑ fecção congênita por esse vírus foi estimada em 1%,6 indican‑ do que a maior carga da infecção congênita por CMV esteja associada a infecções maternas não primárias, seja pela reati‑ vação ou reinfecção com novas cepas virais.7 Evidências cres‑ centes sugerem que além de não prevenir contra a infecção, a imunidade materna antes da concepção não protege contra a infecção sintomática ou a ocorrência de sequelas.3,7 A infecção pós-natal precoce por meio do aleitamento mater‑ no incide em 20 a 60% dos recém-nascidos, dependendo da so‑ roprevalência materna ao CMV e da prática do aleitamento materno.4 Dentre as mulheres soropositivas ao CMV, 32 a 96% podem excretar o vírus no leite (virolactia), com pico de excreção Tabela 1 Estimativa da soroprevalência ao CMV de acordo com a faixa etária observada em 988 gestantes atendidas em serviços de assistência pré-natal pública na cidade de Ribeirão Preto Mediana da idade em anos (variação)
Tamanho amostral
Soropositivo (IgG-CMV)
Soroprevalência (IC 95%)
18 (12 a 19)
217
208
95,8% (92,1 a 97,9)
22 (20 a 24)
312
303
97,1% (94,4 a 98,6)
27 (25 a 29)
245
238
97,1% (93,9 a 98,7)
33 (30 a 46)
214
207
96,7% (93,1 a 98,5)
24 (12 a 46)
988
956 (96,7%)
96,7% (95,4 a 97,7)
Fonte: Yamamoto et al. Epidemiol Infect 2012.
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na terceira e quarta semana; entretanto, o CMV pode ser encon‑ trado no leite materno no período de 1 dia a 9 meses pós-parto.4 Dessa forma, espera-se que mais da metade das crianças que per‑ tencem a uma população com alta exposição ao vírus já tenha sido infectada até o final do primeiro ano de vida.4 Quadro clínico A infecção congênita por CMV Baseado em estudos de triagem neonatal da infecção congêni‑ ta por CMV, 1 em cada 10 crianças infectadas apresenta sinais clínicos ao nascer.1,8 Dessa forma, a maioria das crianças (90%) é assintomática do ponto de vista clínico e em consequência não são reconhecidas ao nascimento, subesti‑ mando a morbidade dessa infecção. Os sinais clínicos mais comuns observados na criança com infecção congênita por CMV consistem na presença de peté‑ quias, icterícia colestática e hepatoesplenomegalia, acompa‑ nhados ou não de anormalidades neurológicas como a microce‑ falia.1,8 Os achados laboratoriais observados em cerca de 50% das crianças sintomáticas refletem o acometimento hepatobi‑ liar e retículo-endotelial, caracterizados por trombocitopenia, hiperbilirrubinemia conjugada e elevações de enzimas hepáti‑ cas. A apresentação clínica pode variar de um quadro clínico leve, com manifestações transitórias, para um acometimento sistêmico grave, levando a uma taxa de mortalidade neonatal de 5 a 10%.1,8 O envolvimento sistêmico geralmente é caracterizado por várias manifestações incluindo letargia, hepatoesplenome‑ galia, icterícia colestática progressiva, pneumonite, hidropisia, rash petequial ou sufusões, hemólise com anemia importante, aplasia medular com plaquetopenia e neutropenia refratária e persistente. Essa condição geralmente pode ter evolução fulmi‑ nante, evoluindo para óbito ainda no período neonatal.8 O acometimento do sistema nervoso central (SNC) consis‑ te no maior problema na infecção congênita por CMV. Crian‑ ças infectadas que apresentam sinais ou sintomas ao nascer comumente apresentam lesões cerebrais, identificadas por neuroimagens como a ultrassonografia de crânio e a ressonân‑ cia magnética cerebral. Essas lesões são mais graves quando ocorrem no primeiro trimestre de gestação. As lesões típicas podem incluir a lisencefalia com afilamento do córtex cerebral, hipoplasia cerebelar, ventriculomegalia, calcificações periven‑ triculares, atraso na mielinização, alterações de substância branca, distúrbios de migração neuronal, como a polimicrogi‑ ria e ocasionalmente esquizencefalia, cistos periventriculares e hipoplasia cerebelar. Em todos os períodos da gestação, a presença de calcificações é um achado muito comum.1,8 No Brasil, em uma população com soroprevalência mater‑ na quase universal, a infecção congênita sintomática ocorreu em 8,1% crianças, sendo também os achados mais comuns a icterícia colestática, petéquias e a hepatoesplenomegalia.6 O CMV é reconhecido como a causa infecciosa mais fre‑ quente de surdez neurossensorial não hereditária na infância, acometendo cerca de 50% das crianças sintomáticas e de 10 a 15% das crianças infectadas assintomáticas.9 No Brasil, a esti‑ mativa da prevalência de surdez neurossensorial relacionada ao CMV é de 11% acometendo 50% das crianças sintomáticas e
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6% daquelas assintomáticas.10 A perda auditiva neurossenso‑ rial, uni ou bilateral, como consequência da infecção congênita pelo CMV, pode estar presente ao nascimento ou manifestar e progredir tardiamente.9 As avaliações audiológicas pelo teste do potencial evocado de tronco cerebral (PEATE) ou pela audiometria condicionada, de acordo com a idade da criança, devem ser realizadas quando do diagnóstico ainda no período neonatal e periodicamente até a idade escolar.9 O envolvimento ocular pode ocorrer em 10 a 20% das crian‑ ças sintomáticas, sendo muito raro em crianças assintomáticas.8 A infecção pós-natal precoce por CMV A infecção pós-natal precoce adquirida através do leite mater‑ no é assintomática na vasta maioria dos recém-nascidos a ter‑ mo.4 Entretanto, em recém-nascidos prematuros com peso in‑ ferior a 1.500 g e/ou idade gestacional inferior a 32 semanas, essa infecção tem sido associada a quadros clínicos de gravi‑ dade variável, como a síndrome séptica viral, com neutrope‑ nia, plaquetopenia e icterícia colestática acompanhado ou não de pneumonite e exacerbação de quadros pulmonares pree‑ xistentes em recém-nascidos com prematuridade extrema.4
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CMV. Em crianças menores de 5 anos, a retinite pode ser as‑ sintomática e somente identificada em exame oftalmológico de rotina. As crianças maiores podem apresentar manifesta‑ ções semelhantes aos adultos, caracterizadas por turvação vi‑ sual, perda de visão periférica ou redução da visão central.11,12 O acometimento de outros órgãos como pulmão, fígado, trato gastrointestinal (GI), pâncreas, rins e SNC podem acon‑ tecer, porém são mais raros, principalmente na era pós-TARV. Nos quadros de acometimento extraocular, em geral, podem ser observados sintomas inespecíficos como febre, perda pon‑ deral ou baixo ganho, comprometimento do desenvolvimento neuropsicomotor e associação com alterações laboratoriais hematológicas (anemia, trombocitopenia, alterações de enzi‑ mas hepáticas). Odinofagia e hemorragia digestiva podem es‑ tar presentes nos quadros de acometimento GI. O acometi‑ mento pulmonar é difícil de diferenciar das demais doenças oportunistas, com sintomas inespecíficos como tosse seca, ta‑ quidispneia e alterações mínimas na ausculta pulmonar. O comprometimento do SNC pode manifestar-se na forma de encefalite, mielite e polirradiculopatia (estas últimas mais ra‑ ras em crianças), com alterações de nível de consciência, crises convulsivas, sinais focais e hipertensão intracraniana.11,12
Citomegalovírus e infecção pelo HIV em crianças Diagnóstico laboratorial A doença pelo CMV em crianças infectadas pelo HIV ocorre Muitos recursos diagnósticos estão disponíveis atualmente no com menor frequência do que nos adultos infectados. Antes diagnóstico da infecção por CMV. A escolha de qual amostra da terapia antirretroviral de alta potência (TARV), a prevalên‑ clínica deve ser obtida bem como qual recurso laboratorial é cia de doença definidora de aids causada pelo CMV era de 8 a mais adequado para cada situação clínica e a interpretação 10%. Dados em adultos evidenciam queda de incidência de 75 criteriosa dos resultados consistem em um desafio na prática a 80% (estimativa de incidência hoje em adultos – 6 casos em clínica. A Figura 1 mostra os principais testes virológicos mais 100 pessoas-ano).11,12 comumente utilizados no diagnóstico da infecção por CMV. Em estudo de seguimento de crianças infectadas pelo HIV Entre os métodos diagnósticos virológicos, o isolamento vi‑ nos Estados Unidos, a frequência de retinite por CMV foi de ral em cultura de fibroblastos humanos pela visualização do 0,5 caso/100 crianças-ano antes da TARV e para doenças não efeito citopático característico do CMV é considerado o méto‑ retinianas de 0,2 caso/100 crianças-ano, com associação dire‑ do virológico clássico. Entretanto, esse recurso é limitado na ta com os valores de CD4 (< 15%: 1,1 caso/100 crianças-ano; > prática diagnóstica porque o CMV é um vírus de replicação 25%: 0,1 caso/100 crianças-ano), embora o CD4 seja menos lenta e, dependendo da quantidade de vírus presente na amos‑ preditivo de risco de doença do que para os adultos. Após a tra clínica, o resultado definitivo do isolamento viral pode de‑ TARV, a prevalência de retinite no mesmo grupo de pacientes morar até 1 mês. Os métodos moleculares, como a reação em foi < 0,5 caso/100 crianças-ano.11,12 Estudo de coorte latino‑ cadeia da polimerase (PCR), consistem em técnicas rápidas e -americano, a avaliação de 731 crianças entre os anos de 2002 e sensíveis na detecção do CMV em uma variedade de amostras 2007, mostrou uma prevalência de 1,5% de doença pelo CMV clínicas, incluindo sangue, urina, saliva, liquor e biópsias. A não retiniana (incluindo a infecção congênita) e de 0,8% de PCR quantitativa, mais comumente conhecida como PCR em doença retiniana antes do período de seguimento. Durante o tempo real, permite determinar a carga viral presente em dife‑ seguimento, a incidência de doença pelo CMV não retiniana rentes amostras clínicas e, consequentemente, monitorar a re‑ foi de 0,16 eventos/100 crianças-ano, não sendo diagnostica‑ plicação viral em diferentes sítios corporais. Mais recentemen‑ do nenhum caso de retinite por CMV no período.11,12 te, a incorporação da PCR no diagnóstico de infecção congênita A infecção congênita pelo CMV é com maior frequência sin‑ e perinatal por CMV vem sendo cada vez mais frequente.1,8 tomática quando a criança é coinfectada pelo HIV. Da mesma A presença do CMV (por isolamento viral ou pela detecção do forma, a infecção pelo HIV progride mais rapidamente em DNA viral pela PCR) na urina (virúria) e/ou na saliva do recém‑ crianças coinfectadas pelo CMV, apresentando quadros mais -nascido nas primeiras 3 semanas de vida é considerada como graves e progressão para aids no primeiro ou segundo ano de marcador definitivo de infecção congênita por esse vírus. A ausên vida, com comprometimento do SNC e maior mortalidade.11 cia do vírus na saliva e/ou na urina ao nascimento até 3 semanas A retinite por CMV é a manifestação clínica mais comum de vida exclui o diagnóstico de infecção congênita. A detecção em crianças HIV positivas, correspondendo a aproximada‑ do vírus a partir da quarta até 12 semanas de vida indica infecção mente 25% das doenças definidoras de aids associadas ao adquirida no período perinatal ou pós-natal precoce.1,8
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Isolamento viral CMV
Antigenemia (detecção de antígenos circulantes CMV) 45 40 35 30
gN1
gN2
25 20 15 10 5
gN3
gN4 0 1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
PCR quantitativa
PCR qualitativa
Figura 1 Recursos laboratoriais no diagnóstico de infecção por CMV.
A antigenemia consiste na detecção do antígeno pp65 da ma‑ triz do CMV em leucócitos polimorfonucleares do sangue peri‑ férico. Essa técnica é quantitativa e permite diagnosticar a in‑ fecção ativa do CMV no sangue periférico e quantificar o número de células infectadas. Por essas particularidades, é usado extensivamente para identificar precocemente a vire‑ mia, iniciar tratamento antes do aparecimento da doença e monitorar a resposta ao tratamento antiviral em pacientes imunocomprometidos. Essa técnica é pouco utilizada no diag‑ nóstico de infecções congênitas ou pós‑natal precoce, uma vez que é realizada no sangue periférico e existem evidências de que uma parcela de crianças infectadas congenitamente não apresentam viremia ao nascer.1 Em crianças imunocomprometidas, como as infectadas pelo HIV, a viremia detectada por meio da técnica de PCR ou antigenemia é um marcador de infecção ativa e deve ser corre‑ lacionada com as manifestações clínicas do paciente para ser associada à doença. A detecção viral com ausência de manifes‑ tações clínicas indica a ocorrência de replicação viral sem doen‑ ça por CMV, já que o vírus pode apresentar replicação sem cau‑ sar doença, dependendo da carga viral e do comprometimento do estado imunológico. Entretanto, monitoração cuidadosa da viremia deve ser realizada nesses pacientes, para avaliação do risco de doença e da indicação de tratamento específico.11,12
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Tratamento As indicações atuais do tratamento da infecção congênita por CMV com os antivirais ganciclovir e a sua pró‑droga valganci‑ clovir são baseadas em dois estudos clínicos multicêntricos controlados, ambos realizados nos Estados Unidos.13 A estabilização ou melhora do prognóstico auditivo ao longo de anos pós‑natais tem sido o objetivo principal do uso do antivi‑ ral, uma vez que a perda auditiva pode aparecer após o perío‑ do neonatal ou se tornar progressivamente mais severa. O primeiro estudo comparou crianças sintomáticas com en‑ volvimento do SNC e que receberam tratamento com o ganci‑ clovir endovenoso, 6 mg/kg/dose a cada 12 horas durante 6 se‑ manas com aquelas que receberam placebo. Observou‑se nesse estudo que 21/25 (84%) das crianças tratadas melhoraram a audição ou mantiveram audição normal com 6 meses de idade comparadas com 10/17 (59%) das crianças não tratadas. Even‑ tos adversos como a neutropenia foram observados mais fre‑ quentemente em crianças tratadas com ganciclovir (63% vs. 21% no grupo controle). Ainda nesse estudo, demonstrou‑se que o ganciclovir pode suprimir a replicação viral durante a sua administração. Entretanto, a excreção viral detectável reapare‑ ce cerca de 3 semanas após a suspensão da droga. Consideran‑ do que a detecção do CMV na urina possa refletir a replicação viral em sítios não acessíveis, como na região coclear do ouvido
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interno, a disponibilidade de uma forma oral do ganciclovir (valganciclovir) tornou possível verificar se um curso mais lon‑ go do que 6 semanas implicaria maiores benefícios. Mais re‑ centemente, o segundo estudo multicêntrico e controlado comparou crianças sintomáticas com ou sem envolvimento do SNC, e que receberam valganciclovir na dose de 16 mg/kg/ dose a cada 12 horas, por via oral, durante 6 meses, com aque‑ las que receberam placebo. A neutropenia com valganciclovir foi menor quando comparado ao ganciclovir endovenoso. Os dados desse segundo estudo controlado sugerem que as crian‑ ças com infecção sintomática por CMV e que receberam val‑ ganciclovir por 6 meses apresentaram evolução audiológica e neurológica mais favorável quando comparado ao grupo place‑ bo. Embora os resultados tenham sido modestos, esse regime por via oral tem a vantagem da não necessidade de manuten‑ ção do acesso endovenoso e consiste no protocolo atual sugeri‑ do para o tratamento de crianças com infecção congênita sinto‑ mática.13 Quanto a recém-nascidos assintomáticos ao nascer, o trata‑ mento antiviral não é indicado até a data atual, considerando‑ -se os efeitos adversos da droga antiviral e a ausência de com‑ provação de benefícios.13 Com relação ao tratamento da infecção perinatal, ele pode ser indicado nos casos de infecção sintomática grave, espe‑ cialmente em prematuros. O ganciclovir é administrado na mesma dose utilizada na infecção congênita, mas com dura‑ ção de 2 a 3 semanas, dependendo da resposta clínica, dos exames laboratoriais e da supressão da viremia e virúria.4 A droga de escolha para o tratamento da doença pelo CMV em crianças HIV positivas é o ganciclovir. O valganciclovir na formulação pediátrica ainda não foi avaliado nesses pacientes e o uso da formulação e dose de adulto pode ser considerado em crianças maiores. O uso de foscarnet é restrito às situações em que há suspeita de resistência ao ganciclovir ou em qua‑ dros graves pode ser administrado inicialmente em associa‑ ção, principalmente nos casos de acometimento do SNC. A dose do ganciclovir endovenoso nessas situações clínicas é de 10 mg/kg/dia, 2 vezes ao dia, por 14 a 21 dias, de acordo com a evolução clínica e negativação da viremia.11,12 Prevenção Apesar da sua importância, o CMV é pouco conhecido na po‑ pulação geral, especialmente pelas mulheres gestantes, difi‑ cultando a prevenção primária da infecção congênita. Essa prevenção também é dificultada porque, diferentemente de outras infecções intrauterinas, a citomegalovirose congênita pode ocorrer mesmo em mulheres soropositivas ao vírus, seja pela reativação do vírus endógeno ou pela reinfecção com novas e diferentes cepas virais. A indicação da triagem sorológica pré-natal para a infecção materna pelo CMV é controversa. No Brasil, onde a grande maioria (90 a 95%) das mulheres já apresentou a infecção pri‑ mária pelo CMV, e mesmo nos países desenvolvidos em que uma parcela significativa de mulheres em idade fértil ainda não se infectou com esse vírus, essa triagem sorológica não é realizada sistematicamente.1,2,5 Essas controvérsias são decor‑
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rentes das dificuldades de se estabelecer qualquer tratamento fetal que influencie o prognóstico neonatal, mesmo quando a infecção primária pelo CMV seja diagnosticada durante a ges‑ tação.1,3 Também não há, até o momento, nenhuma modalida‑ de de tratamento aprovado para uso durante a gestação que previna ou reduza a chance de ocorrência de doença fetal. Apesar de os agentes antivirais auxiliarem a doença em pa‑ cientes com infecções invasivas por CMV, a toxicidade limita o uso desses agentes durante a gestação.1,3 Na ausência de vacinas, a melhor estratégia de prevenção com eficácia comprovada consiste na orientação às gestan‑ tes para evitar os riscos de exposição ao CMV. Essas orienta‑ ções, sumarizadas na Tabela 2, são desejáveis tanto às mu‑ lheres soronegativas com risco de infecção primária quanto às mulheres soropositivas, com risco de reinfecção com no‑ vas cepas virais.1,2,5 Tabela 2 Modo de exposição e medidas de prevenção primária da aquisição do CMV durante a gestação Modo de aquisição
Medidas de prevenção
Contato com secreções (saliva, urina, sêmen, fezes), especialmente de crianças menores de 3 anos, potenciais excretoras do CMV
Lavagem rigorosa das mãos após contato com secreções (p.ex.: troca de fraldas de crianças) Não compartilhar talheres ou utensílios de higiene pessoal com outras pessoas (mesmo que sejam outros filhos) Limpeza de brinquedos e superfícies que tenham tido contato com urina ou saliva de crianças
Contato direto pessoa a pessoa (saliva, sêmen, lesões orais)
Usar preservativo de barreira durante relações sexuais Reforçar cuidados de higiene no contato com pessoas (doentes ou não)
Com relação à doença por CMV em crianças infectadas pelo HIV, a melhor prevenção é o uso adequado dos antirretrovirais com manutenção de controle da carga viral do HIV e adequa‑ do nível de células CD4. A profilaxia primária específica para o CMV não apresenta eficácia comprovada. No entanto, pode ser considerada em crianças com CD4 < 50 células em ≥ 6 anos e CD4 < 5% em < 6 anos com o uso de valganciclovir, ba‑ seado em estudos realizados em pacientes adultos.11,12 Em razão do risco de desenvolver retinite assintomática pelo CMV, a avaliação oftalmológica é recomendada a cada 6 meses em crianças < 5 anos HIV positivas e CD4 < 50 ou < 5%.11 A profilaxia secundária com ganciclovir é recomendada para todas as formas invasivas de infecção por CMV, exceto no acometimento GI em que pode ser considerada em situações de recorrência da doença. A profilaxia é mantida até manuten‑ ção de TARV estável e reconstituição da resposta imunológica, com monitoração da carga viral do CMV.12 Na retinite por CMV, é importante a reavaliação oftalmológica periódica (a cada 3 ou 6 meses) durante a instituição da TARV eficaz para moni‑ torar a ocorrência de síndrome de reconstituição imune. Prognóstico Aproximadamente 50% das crianças infectadas congenita‑ mente por CMV e com achados clínicos ao nascer podem apre‑
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sentar manifestações tardias especialmente surdez neuros‑ sensorial e atraso do desenvolvimento neuropsicomotor. Estudos prospectivos com seguimento das crianças infectadas até a idade escolar mostraram que a presença de achados anormais em neuroimagens no período neonatal e a microce‑ falia são preditores de anormalidades neurológicas.8 Esses estudos também sugerem que petéquias, trombocitopenia e restrição do crescimento intrauterino podem ser preditores de surdez neurossensorial.8 Desafios A prevenção da infecção congênita por CMV é um desafio para os programas de saúde pública, médicos e pesquisadores. Os estudos para avaliar a real magnitude da infecção e doença congênita por CMV são escassos ainda em populações em que as fontes de exposição ao vírus são incontáveis. A compreensão dos mecanismos que levam à infecção congênita associada às infecções maternas não primárias é crucial para o desenvolvimento de abordagens eficazes para a prevenção da infecção congênita. A infecção intrauterina é considerada, dentre todas as formas de infecção do CMV na criança, como a maior com potencial para gerar sequelas permanentes levando ao comprometimento da qualidade de vida da criança. O não conhecimento desses mecanis‑ mos é o grande obstáculo no desenvolvimento de vacinas contra o CMV. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender a história natural da infecção pelo CMV e os principais aspectos epidemiológicos dessa infecção. • Reconhecer as diferentes manifestações clínicas da infecção pelo CMV na criança. • Definir, entre os recursos diagnósticos laboratoriais, qual é o mais adequado para cada situação clínica (congênita, pós-natal precoce, infecção primária adquirida e reativações em crianças com redução da vigilância imunológica). • Diferenciar a infecção congênita da perinatal ou pós ‑natal precoce por CMV. • Avaliar a indicação de tratamento com drogas antivirais, quando e por quanto tempo tratar. • Orientar medidas de prevenção da transmissão do CMV especialmente ao feto e recém-nascido.
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Neurologia COORDENADOR
Gustavo Adolfo Rodrigues Valle
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COORDENADOR E AUTORES SEÇÃO 17 NEUROLOGIA
Coordenador Gustavo Adolfo Rodrigues Valle Neurologista Infantil. Chefe do Setor de Neurologia Infantil do Serviço de Pediatria do Hospital Federal dos Servidores do Estado do Estado do Rio de Janeiro. Coordenador e Preceptor da Residência de Neurologia Infantil do Hospital Federal dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Departamento de Neurologia Infantil da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Presidente da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil (Abenepi – Nacional) (2015‑2017). Coordenador Científico da Diretoria da Abenepi – Rio de Janeiro (2015‑2017). Autores Abram Topczewkski Mestre em Neurologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Doutor em Neurociências pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM ‑Unicamp). Membro da Sociedade Brasileira de Cefaleia, da International Headache Society e do Comitê de Neurologia da SBP. Alexandra Prufer de Queiroz Campos Araujo Mestre em Pediatria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Neurologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora Associada de Neuropediatria e Chefe do Departamento de Pediatria da UFRJ.
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Aline Zocrato Alves de Sousa Residente de Neurologia Infantil do Hospital Infantil João Paulo II – Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG). Ana Carolina Cardoso Diniz Residente de Neurologia Infantil do Hospital Infantil João Paulo II/FHEMIG. Ana Maria S. Low Especialista em Neurologia Infantil e Neurofisiologia Clínica pela Academia Brasileira de Neurologia (ABN) e Sociedade Brasileira de Neurofisiologia Clínica. Mestre em Neurofisiologia Clínica pela Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília. Ex‑fellow do Children’s Hospital of Eastern Ontario, Universidade de Ottawa, Canadá. Membro da Comissão de Ensino da ABN. Coordenadora do CEDANS/Brasília. André Vinícius Soares Barbosa Neurologista Infantil da Santa Casa de Belo Horizonte. Preceptor da Residência de Neurologia Infantil do Hospital Infantil João Paulo II/FHEMIG. Anita Seixas Dias Saporta Especialista em Pediatria e Neurologia Infantil pela Associação Médica Brasileira (AMB). Ex‑fellow de Pesquisa em Neurologia Infantil e Neuroimagem do Positron Emission Tomography Center – Wayne State University, EUA, de Pesquisa em Neurogenética da Charcot‑Marie‑Tooth Clinic e CMT North American Database, EUA, e de Pesquisa em Neurologia Neonatal e Neuroimagem do Neonatal Brain Disorders Laboratory da University of California, EUA.
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Annyfrancielle Abalém Tronconi Campos Reis Residente de Neurologia Infantil do Hospital Infantil João Paulo II/FHEMIG. Christovão de Castro Xavier Coordenador/Preceptor da Residência de Neurologia Infantil do Hospital Infantil João Paulo II/ FHEMIG. Jair Luiz de Moraes Mestre em Neurologia pela UFF. Diretor Médico do Centro de Educação e Terapia Especializada. Membro da Diretoria da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil, do Comitê de Neurologia e de Saúde Escolar da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro e da Diretoria da Abenepi. Josiane Ranzan Preceptora da Residência em Neuropediatria do Hospital de Clínicas (HC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Luiz Fernando Fonseca Preceptor da Residência de Neurologia Infantil do Hospital Infantil João Paulo II/FHEMIG. Magda Lahorgue Nunes Especialista em Neurologia pela ABN e em Pediatria pela SBP – Habilitação em Neurologia Infantil e Medicina do Sono (AMB/SBP/ABN). Doutora em Neurociências pela Unicamp. Professora Titular de Neurologia da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Coordenadora do Grupo de Estudos do Sono da SBP. Maria Valeriana Leme de Moura‑Ribeiro Professora Titular de Neurologia Infantil do Departamento de Neurologia da FCM‑Unicamp. Professora Associada de Neurologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. Membro Titular da ABN. Mariana Richartz Schwind Psicóloga pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduanda em Medicina pela UFPR. Pesquisadora Voluntária do Centro de Neuropediatria do HC‑UFPR.
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Milton Genes Neurologista Infantil Aposentado do Hospital Municipal Sousa Aguiar e Hospital Municipal Miguel Couto. Mestre em Neurologia pela UFF. Membro do Conselho Científico da Associação Brasileira do Déficit de Atenção e do Instituto de Pesquisas Neuropsiquiátricas Superação Um Abraço à Vida. Paulo Breno Noronha Liberalesso Pós‑graduado em Epileptologia e Mestre em Neurociências pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Doutor em Distúrbios da Comunicação pela Universidade Tuiuti do Paraná. Médico do Departamento de Neuropediatria do Hospital Pequeno Príncipe. Regina Célia Beltrão Duarte Mestre em Neurociências pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professora do Curso de Medicina do Centro Universitário do Estado do Pará e Professora Adjunta II da Disciplina Neurologia da UFPA. Neuropediatra do Hospital Ofir Loyola e da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará. Rudimar Riesgo Professor de Medicina da UFRGS. Chefe da Neuropediatria do HC‑UFRGS. Sérgio Antonio Antoniuk Médico Neuropediatra. Mestre e Doutor em Pediatria pela UFPR. Professor Adjunto da Disciplina Neuropediatria do Departamento de Pediatria da UFPR. Coordenador do Centro de Neuropediatria do HC‑UFPR. Simone Carreiro Vieira Karuta Especialista em Pediatria – Área de Atuação em Neurologia Pediátrica – pelo Hospital Pequeno Príncipe e em Distúrbios do Movimento e Espasticidade pelo Miami Children's Hospital e Miller School, EUA. Doutora em Medicina Interna pelo HC‑UFPR. Orientadora da Residência Médica em Neurologia Pediátrica do Hospital Pequeno Príncipe.
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CAPÍTULO 1
CRISE FEBRIL Milton Genes
Introdução A crise febril (CF) é definida como “uma crise epiléptica que ocorre entre 6 meses e 6 anos de idade, associada à doença fe‑ bril, não causada por uma infecção do sistema nervoso central (SNC), sendo excluídas as crianças que apresentaram crise neonatais ou crises não provocadas ou, que se encaixam nos critérios de outra crise sintomática aguda”.1,2 A CF correspon‑ de a um dos problemas neurológicos mais frequentemente ob‑ servados na população pediátrica, considerada por Aicardi como crise epiléptica ocasional.3 Geralmente, a CF ocorre em associação com infecções vi‑ rais das vias aéreas superiores, pulmonares, intestinais e do trato urinário, assim como associada à febre decorrente de va‑ cinação. A CF ocorre geralmente nas primeiras 24 horas do episódio febril, no período de ascensão rápida da temperatura. A curta duração da febre antes da CF e a baixa temperatura são associadas a um aumento do risco de recorrência. As CF são classificadas em simples e complexas. A CF sim‑ ples tem apresentação generalizada, duração inferior a 15 mi‑ nutos e não recorre em menos de 24 horas, com exame neuro‑ lógico pós-ictal normal; enquanto a CF complexa tem duração superior a 15 minutos e/ou apresenta uma ou mais recorrên‑ cias nas primeiras 24 horas, podendo iniciar-se como focal e/ ou apresentar exame neurológico pós-ictal alterado. É impor‑ tante assinalar que a presença de apenas um destes aspectos é suficiente para alterar a classificação de CF simples para complexa. O diagnóstico de CF na infância é essencialmente clínico, tornando fundamentais a anamnese detalhada e o exame físi‑ co minucioso, com o objetivo de afastar intoxicações exóge‑ nas, trauma, focos infecciosos e avaliar as características da crise e a história familiar. A febre é, sem dúvida alguma, um dos fatores determinantes da CF, no entanto, a etiopatogenia da crise deve ser mais bem esclarecida, especialmente em ní‑ vel molecular. Estudos clínicos demonstram que o cérebro imaturo pode apresentar maior suscetibilidade a convulsões, provavelmen‑
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te por conta da combinação de excitação aumentada e inibi‑ ção diminuída, além de diferenças maturacionais nos circui‑ tos subcorticais.4 Epidemiologia Estima-se que 2 a 5% das crianças menores de 5 anos apresenta‑ rão pelo menos um episódio de CF. Um estudo realizado no Chile apresentou uma incidência de 4%.5 O primeiro episódio de CF ocorre, em 90% dos casos, entre 6 meses e 3 anos de idade.2,5 Estudos populacionais evidenciaram como fatores de risco importantes para a primeira CF: história de crise febril em pa‑ rentes de 1º e 2º graus, internação hospitalar no período neo‑ natal, atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, atendi‑ mento frequente em hospital-dia, tendo sido observado que, em crianças que apresentassem dois desses fatores, o risco da ocorrência de CF seria de 30%.4,6,7 Vários artigos relatam que, após a primeira CF, o risco de recorrência é baixo, pois apenas 30% das crianças até os 6 anos terão uma segunda crise e me‑ tade delas terá uma terceira crise febril. Outro artigo descreve que a idade de início seria o fator preditivo mais potente para recorrência. Aproximadamente 50% das crianças com idade inferior a 1 ano no momento da primeira CF terão recorrência, comparadas com 20% daquelas abaixo de 3 anos, e 50% apre‑ sentam a segunda crise em período de 6 meses após a primeira CF, 75% após 1 ano e 90% 2 anos.4,6,8 Os fatores mais importan‑ tes para recorrência são idade precoce da primeira CF, história familiar de CF, grau de elevação da temperatura (o risco de re‑ corrência é inversamente proporcional ao grau da temperatu‑ ra) e duração do período febril (quanto menor a duração da fe‑ bre, maior a chance de recorrência).4,6,7 Existem muitos artigos referentes à recorrência da CF, com muitas descrições diferentes. É importante sempre ter muito cuidado com a febre baixa ou alta em uma criança que já teve uma CF. O risco de a criança com CF desenvolver epilepsia é de 2 a 7%, maior que na população em geral.3,4 O risco para epilepsia é de 1% se não houver fator de risco, 2% se houver um fator,
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10% se houver dois ou mais fatores de risco. O risco geral de não devem ser realizados rotineiramente, uma vez que não epilepsia, na idade de 7 anos, é de 1,5%.2,6,9 contribuem para o diagnóstico nem para o tratamento. Estudos de neuroimagem em ressonância magnética cere‑ O tratamento da CF é baseado em três aspectos funda‑ bral (RM) com espectroscopia mostram uma relação entre di‑ mentais: ferentes graus de esclerose mesial temporal (uma causa fre‑ • tratamento da fase aguda; quente de epilepsia focal sintomática refratária a drogas • profilaxia da recorrência das crises; antiepilépticas) e CF prolongadas em crianças. • orientação familiar. Existe ainda artigos referentes a uma relação mal entendi‑ da entre crises febris na infância e desenvolvimento de epilep‑ A maioria das crianças já chega ao pronto-socorro no período sia de lobo temporal na idade adulta.5,6,10 Aventa-se a hipótese pós-ictal. Nos casos em que a criança está em convulsão, o tra‑ de que as alterações hipocampais preexistentes possam:9,11 tamento agudo é igual a qualquer crise epiléptica, indepen‑ • deixar o hipocampo mais vulnerável aos efeitos lesivos da febre; dentemente de sua etiologia, inclusive no que se refere a me‑ • facilitar as CF que causarão a esclerose hipocampal com pos‑ didas gerais. terior epilepsia; No momento da admissão no setor do pronto-socorro, a • predispor a criança inicialmente à CF e posteriormente à epilepsia. temperatura deve ser imediatamente aferida, sendo indica‑ do controle da febre por meios físicos (compressas frias) e Crianças com CF têm risco discretamente aumentado para cri‑ antitérmicos. Nas situações em que há recorrência da CF, po‑ ses focais complexas, da mesma forma que outros tipos de de-se recomendar o uso de benzodiazepínicos (diazepam, epilepsia, quando comparadas com a população geral. Entre‑ clonazepam e nitrazepam) durante o episódio febril. O clo‑ tanto, somente pequena porcentagem de crianças com CF de‑ nazepam e o nitrazepam foram utilizados com sucesso em senvolveram crises focais complexas e não foi ainda bem esta‑ estudos não controlados, mas como são drogas predominan‑ belecida uma relação causal.9,12 temente sedativas e miorrelaxantes, devem ser usadas com parcimônia.15-18 Genética A Academia Americana de Pediatria (AAP) revisou evidên‑ A ocorrência de epilepsia ou de CF em familiares de pacientes cias em relação ao tratamento da CF simples e, com base nos com CF, bem como a constatação de CF em pacientes com for‑ riscos e benefícios das terapêuticas eficazes, não recomenda o mas idiopáticas de epilepsia demonstram o caráter genético da uso contínuo ou profilático de anticonvulsivantes na CF sim‑ CF.13 A história familiar de CF em parentes de 1º grau é comum, e ples. O tratamento profilático da CF não altera o risco de epi‑ observa-se uma porcentagem bem maior de concordância de CF lepsia futura.12,19,20 entre gêmeos monozigóticos (31 a 70%) que dizigóticos (14 a Na CF complexa e com alta recorrência, podem-se utilizar 18%). Existem estudos da ligação de CF com vários cromosso‑ benzodiazepínicos durante os episódios febris. Cada caso mos, como 2q, 5q, 5, 8q e 19, que parecem alterar o funciona‑ deve ser avaliado individualmente, embora, de modo geral, mento de canais de sódio neuronais. Estudos referem a ocor‑ crianças neurologicamente saudáveis, com rápida recupera‑ rência de crises epilépticas em 7% dos familiares em geral e em ção da consciência e sem déficits neurológicos focais, geral‑ 7% dos pais e 12% de irmãos de crianças com CF.7 A incidência mente não necessitem de internação hospitalar. de CF varia também de acordo com a região geográfica. Em cer‑ tos países da Ásia, há uma elevada frequência de CF. A diferença Diagnóstico diferencial de frequência de CF em famílias da Ásia em comparação com O principal diagnóstico diferencial é a meningite, além de al‑ aquelas da Europa ou América do Norte sugere um efeito popu‑ guns processos que simulam as crises convulsivas, como sín‑ lacional causal geneticamente determinado.14 copes febris, que se comportam como crises atônicas, delírios febris, calafrios e tremores. Diagnóstico e tratamento É importante informar à família que: O diagnóstico da CF é predominantemente clínico. 1. A crise febril tem um caráter benigno, não tendo sido observa‑ O exame do líquido cefalorraquidiano, diante de uma pri‑ do, até os dias atuais, nenhum estudo em que houvesse mor‑ meira convulsão febril, está indicado nas seguintes condições: te causada pela CF, pois a crise para os pais está associada à • menos de 6 meses de vida; ideia de morte. • sintomatologia de infecção do SNC; 2. O controle rigoroso da febre é o aspecto mais importante do tra‑ • recuperação lenta ou alteração neurológica pós-ictal; tamento, com o uso de antitérmicos e/ou banhos típicos. As • uso de antibióticos (lembrar que os sintomas de meningite compressas frias podem ser postergadas para os casos em que a podem ser mascarados). temperatura não diminui com o uso das medidas anteriores. 3. O risco de um novo episódio convulsivo durante o mesmo Os demais exames laboratoriais são direcionados para a inves‑ quadro febril é raro, embora possa ocorrer. tigação do foco infeccioso, não fazendo parte da investigação 4. Uma vez que as convulsões febris são associadas a elevações rá‑ rotineira da CF simples ou complexa. pidas de temperatura corporal acima de 38°C, a crise pode ser o Eletroencefalograma (EEG), mapeamento cerebral, tomo‑ primeiro sinal de um processo infeccioso, não havendo tempo grafia computorizada (TC) de crânio e RM cerebral também para a administração de antitérmicos antes que ela ocorra.
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5. É importante proteger a criança durante a crise; porém, sem
restringir seus movimentos. 6. Não se deve introduzir nada em sua boca. 7. Não se deve tentar respiração boca a boca ou massagem car‑
díaca em casa. 8. Se a criança tiver nova crise, os pais devem manter a calma,
posicionar a criança em uma superfície confortável, em decú‑ bito lateral direito, para evitar o acúmulo de saliva na cavida‑ de oral e prevenir a broncoaspiração no caso de vômitos. 9. Após o término das crises, não se deve administrar qualquer medicação ou líquidos por via oral até que a criança esteja bem desperta. 10. É necessário prestar atenção à duração da convulsão. No caso de tempo maior que 5 minutos, deve-se dirigir à emergência mais próxima ou chamar uma ambulância. 11. É preciso avaliar a temperatura com termômetro e não agasa‑ lhar demais a criança.
Prognóstico Em um projeto nacional colaborativo, na Grã-Bretanha, não se encontrou diferença significativa entre a média de QI das crianças que tiveram CF e seus irmãos. As crianças com CF mostraram um desempenho escolar tão bom quanto das de‑ mais crianças de 7 a 11 anos.21,22 O estudo do efeito da CF sobre o perímetro cefálico, a inteli‑ gência e o comportamento em crianças com CF até os 5 anos de idade evidenciou que as crianças com CF não diferiram dos seus pares com relação a esses parâmetros.23 Não se descrevem mortes, estado de mal convulsivo ou dé‑ ficits neurológicos permanentes após crises febris. Considerações finais Crise febril é a crise epiléptica mais comum em lactentes e pré‑ -escolares, de baixa morbidade, recorrência pouco frequente e não requer tratamento contínuo com drogas antiepilépticas. A profilaxia secundária não é indicada no caso de CF sim‑ ples, mas no caso de CF complexa, prolongada ou focal, a pro‑ filaxia secundária intermitente pode ser considerada. A opção ou não pelo tratamento profilático e qual a melhor forma de fazê-lo envolve não apenas o conhecimento sobre a CF, mas também aspectos individuais, familiares e a estrutura social em que a criança está inserida. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Diferenciar uma crise febril simples de uma crise febril complexa. • Orientar a família para as medidas de combate à febre e o que fazer durante a crise. • Avaliar os diagnósticos diferenciais urgentes e crônicos. • Encaminhar para a urgência as crianças com crise demorada. • Saber que a convulsão febril é comum em crianças até 6 anos de idade. • Apontar os fatores prognósticos para tranquilizar a família.
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CAPÍTULO 2
EPILEPSIA NA INFÂNCIA Ana Maria S. Low
Introdução A infância é um período especialmente dinâmico durante o qual a mielinização e as associações sinápticas ocorrem com grande velocidade. Durante os dois primeiros anos de vida, existe um crescimento com aceleração positiva sob o ponto de vista de ganho de peso, estatura, aquisições motoras e cogniti‑ vas, no entanto, como o cérebro imaturo é vulnerável, inter‑ corrências neurológicas durante essa fase podem interferir e mesmo interromper esse processo, determinando o compro‑ metimento de uma vida futura normal. O período de maturação do sistema nervoso pode exercer uma influência importante nas manifestações convulsivas, e o risco estimado de neonatos terem convulsões está entre 1,8 e 3,5%. Segundo Gastaut, convulsões são o resultado da disfunção transitória de todo o cérebro ou parte dele em virtude da descar‑ ga excessiva de uma população de neurônios hiperexcitáveis, causando um fenômeno súbito e transitório de natureza moto‑ ra, sensorial, autonômica ou psíquica. Epilepsia, no entanto, é definida como “um distúrbio cerebral caracterizado pela predis‑ posição persistente do cérebro para gerar crises epilépticas e, pelas consequências neurobiológicas, cognitivas, psicológicas e sociais dessa condição”.1 Consequentemente, crises que ocor‑ rem durante intercorrências agudas do sistema nervoso de etio‑ logias infecciosas, como a meningite, metabólicas, como absti‑ nência alcoólica, ou traumáticas, como acidentes, não são necessariamente consideradas epilepsia. É importante que fi‑ que bem definido que a doença epilepsia é muito mais comple‑ xa e determinada pela recorrência das crises sem um fator agu‑ do predisponente. Continuam sendo aceitas a Classificação Internacional das Crises Epilépticas, datada de 1981,2 e a Classi‑ ficação das Epilepsias e Síndromes Epilépticas, de 1989.3 Para entender melhor as crises, em 2010, a Comissão de Terminologia4,5 da International League Against Epilepsy (ILAE) reconheceu 3 tipos: 1. Crises focais: originam-se em redes neuronais limitadas a um hemisfério. O local de início é consistente, embora possa ha‑ ver variabilidade caracterizando semiologias diferentes (auto‑
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nômica, motora, sensitivo-sensorial, psíquica) e não compro‑ metem necessariamente a consciência. Essas crises podem apresentar um padrão de propagação envolvendo ambos os hemisférios e se transformar em crises epilépticas bilaterais convulsivas, ou seja, aquelas que apresentam componentes tônicos, clônicos ou tônico-clônicos. 2. Crises generalizadas: podem ser corticais ou subcorticais, nascem em um determinado local e rapidamente se propa‑ gam, envolvendo redes neurais bilaterais, podendo ser simé‑ tricas ou assimétricas. Semiologicamente, crises generaliza‑ das são tônico-clônicas, podem ou não estar associadas a ausências (típicas, atípicas, mioclônicas), mioclonias palpe‑ brais, mioclonias tônicas ou atônicas e a componentes tôni‑ cos, atônicos e clônicos de forma isolada. 3. Crises neonatais: podem ser focais ou generalizadas.
Quanto aos espasmos infantis, não existe uma concordância em relação a serem crises focais ou generalizadas. Crises neonatais As crises neonatais sempre foram um desafio, pois muitos mo‑ vimentos que acontecem em recém-nascidos deixam dúvidas em relação a sua veracidade, uma vez que até hidranencéfalos podem apresentar eventos muito semelhantes a crises. A hi‑ pótese de que crises em recém-nascidos podem ser geradas tanto no tronco cerebral como nos hemisférios pode ser consi‑ derada, pois, em razão da pobre mielinização do cérebro, a propagação fica restrita, apresentando características diferen‑ tes das observadas em crianças maiores e adultos. As crises manifestam-se com: enrijecimento do corpo com ou sem apneia; desvio tônico dos olhos para cima ou para os lados; abalos mioclônicos; movimentos focais de um segmen‑ to ou de ambos os membros de um mesmo lado e movimentos clônicos multifocais bilaterais. Convulsões tônico-clônicas ge‑ neralizadas são eventos raros no recém-nascido. Para um diagnóstico de certeza, a monitoração eletroencefalográfica (EEG) é a melhor ferramenta.
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A seguir, são listadas várias causas de crise no neonato. Al‑ gumas constituem a causa etiológica de síndromes epilépticas na classificação da ILAE, reconhecidas e mantidas pelo grupo de Classificação e Terminologia:4 • aminoacidopatias; • encefalopatia bilirrubínica; • encefalopatia hipóxico‑isquêmica; • abstinência de drogas; • distúrbios metabólicos; • distúrbios dos ácidos orgânicos; • doenças infecciosas; • traumas cranianos decorrentes de complicações no parto; • dependência de piridoxina e de ácido fólico; • incontinência pigmentar; • doenças neurocutâneas. Convulsões neonatais familiares benignas Têm um caráter autossômico dominante, afetam o canal de potássio, são voltagem‑dependentes e estão relacionadas aos genes KCNQ2 e KCNQ3. O recém‑nascido desenvolve crises clônicas multifocais entre a 1ª e a 4ª semana de vida, podendo, de forma ocasional, ocorrer crises de apneia associadas. As manifestações param espontaneamente durante os primeiros meses de vida com ou sem tratamento medicamentoso. O prognóstico é bom, mas 1/3 das crianças pode desenvolver epilepsia no futuro. A história familiar é fundamental para deter‑ minação do diagnóstico, e o EEG intercrítico geralmente é normal. Encefalopatia mioclônica precoce (síndrome de Aicardi) Incide apenas no sexo feminino, é ligada ao cromossomo X, não tem relação com herança familiar e está associada a várias malformações do encéfalo, como agenesia do corpo caloso, heterotopia periventricular, microgiria, papiloma do plexo co‑ roide, anomalias da fossa posterior (hipoplasia cerebelar) la‑ cuna coriorretinal, coloboma do disco óptico e anomalias na coluna vertebral.6 Neonatos nas primeiras horas de vida apresentam mioclo‑ nias erráticas que envolvem membros ou face, em território bem delimitado, por exemplo, pálpebras, dedos das mãos ou todo um membro. As crises repetem‑se e passam a ser contí‑ nuas, mesmo durante o sono, não obedecendo a uma sincro‑ nia, sendo anárquicas. As crises motoras focais surgem em se‑ guida, às vezes caracterizadas apenas por desvio tônico dos olhos com ou sem clonias, ou fenômenos autonômicos (ap‑ neia, rubor de face). A evolução para espasmos infantis do tipo tônico ocorre por volta de 3 a 4 meses. O prognóstico é ruim para aqueles que sobrevivem ao pri‑ meiro ano de vida (50%), por causa do grave comprometi‑ mento mental e motor.6 O EEG, tanto em vigília como durante o sono, mostra surtos espículas, ondas agudas e lentas irregu‑ lares, com duração variável de 1 a 5 segundos, seguidas por pe‑ ríodos de atenuação do traçado, caracterizando um padrão surto‑supressão, que pode ser síncrono ou assíncrono (Figu‑ ra 1). Entre o 3º e o 5º mês de vida, esse padrão é substituído por uma hipsarritmia atípica.
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FP1-C3 C3-01 FP2-04 C4-02 FP1-T4 FP2-T4 T3 C3 T4 C4 T3-01 T4-02
Figura 1 EEG de lactente com 45 dias de vida portador de encefalopatia mioclônica precoce (síndrome de Aicardi), mostrando os surtos sincrônicos de ondas agudas e lentas irregulares intercalados por períodos com atividade muito atenuada, quase isoelétrica, caracterizando surto‑ ‑supressão.
Síndrome de Ohtahara A encefalopatia epiléptica precoce com surto‑supressão, ou síndrome de Ohtahara (SO), tem início geralmente no 1º mês de vida, às vezes antes dos 20 dias. Geralmente, após um pe‑ ríodo de dias ou semanas normais, o recém‑nascido apresenta as crises, que vão ocorrendo em uma frequência progressiva. São generalizadas, geralmente com flexão e extensão dos membros, eventualmente associadas com espasmos assimé‑ tricos, ou crise tônico‑clônica unilateral. Na fase inicial, du‑ rante o período interictal, o neonato apresenta um estado neu‑ rológico normal, porém, com a evolução, observam‑se comprometimento motor variável (diplegia, hemiplegia, qua‑ driplegia, ataxia ou distonia) e retardo mental progressivo. A etiologia pode ser lesional ou metabólica, e o prognóstico é muito reservado, em função do comprometimento neurológi‑ co e da dificuldade de resposta às drogas antiepilépticas (DAE). Epilepsias e síndromes epilépticas do lactente Segundo a ILAE, sete epilepsias são classificadas nessa faixa etária. A seguir, serão consideradas aquelas de maior interesse ao pediatra. 1. Epilepsia mioclônica do lactente. 2. Síndrome de West. 3. Síndrome de Dravet. Epilepsia mioclônica do lactente Tem início entre 4 e 24 meses em uma criança normal. As cri‑ ses são breves e generalizadas, com abalos mioclônicos que variam de intensidade tanto entre os eventos como de uma criança para a outra. No início, são ocasionais e geralmente passam a ser perceptíveis para os pais quando aumentam em frequência e apresentam queda de cabeça, associada ou não a movimentos de rotação dos olhos para cima.7 Quando a crian‑ ça começa a se levantar e desenvolve a marcha, podem ocorrer quedas, consideradas frequentemente como um processo na‑ tural de desenvolvimento do equilíbrio. As crises mioclônicas
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envolvem o tronco e os membros, determinando a queda abrupta da cabeça e do tronco associada a elevação dos mem‑ bros superiores e flexão dos inferiores. Podem ocorrer em qualquer hora do dia, desaparecem à noite e não existe outro tipo de crise associada. São facilmente controladas com doses terapêuticas de ácido valproico e geralmente desaparecem até os 5 anos de idade. Não existe interferência no desenvolvimento neuropsico‑ motor quando o diagnóstico e o tratamento são precoces. A solicitação do EEG é muito importante para definição diag‑ nóstica, uma vez que existe uma manifestação mioclônica não epiléptica, que se inicia entre 4 e 8 meses de idade, não apre‑ senta alteração no traçado de EEG tanto em vigília como du‑ rante o sono e desaparece espontaneamente sem tratamento, durante o 2º ano de vida. O prognóstico é bom, mas alguns pacientes desenvolvem, na idade escolar e/ou adolescência, convulsões tônico‑clônicas ge‑ neralizadas, controladas com a reintrodução das DAE e, às ve‑ zes, distúrbio de aprendizado e comprometimento cognitivo.8 Síndrome de West Caracteriza‑se pela tríade crises em espasmos, deterioração mental e atraso neuropsicomotor. O traçado eletroencefalo‑ gráfico apresenta alterações tão específicas que recebe o nome de hipsarritmia (Figura 2). Tem início entre 3 e 7 meses de ida‑ de, com pico aos 5 meses; meninos são mais afetados, e a inci‑ dência varia entre 2,9 e 4,5/100.000. Pode não ter uma causa determinante ou etiologia variável (erros inatos de metabolis‑ mo, lesões cerebrais hemorrágicas, insulto hipóxico‑isquêmi‑ co, distúrbios da migração neuronal, esclerose tuberosa). Os espasmos são divididos em três tipos: flexor, extensor e mistos. Espasmos flexores envolvem pescoço, tronco e mem‑ bros, com adução ou abdução dos braços. São descritos como “jack-knife”, quando os braços são jogados para fora, e como “salaam”, quando a flexão é muito marcada com as pernas estira‑ das para cima. Os espasmos extensores consistem na extensão de pescoço, tronco e membros, que podem permanecer em adução ou extensão. Os espasmos mistos são os mais frequen‑ tes e quando surgem em uma criança que vinha se desenvol‑ vendo de modo aparentemente normal, são, às vezes, confun‑
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didos com cólica do lactente. Independentemente da apresentação, os espasmos manifestam‑se de forma agrupada (repetitiva), podem ocorrer tanto em sono como na vigília, mas são mais comuns logo ao despertar ou durante a sonolência, duram em média 2 a 3 segundos e podem guardar intervalos va‑ riáveis de 5 a 15 segundos. Geralmente são simétricos; quando são assimétricos, refletem a presença de uma lesão estrutural. A demora em fazer o diagnóstico correto e iniciar a interven‑ ção terapêutica específica pode determinar piora no prognósti‑ co, que já é bastante reservado. Regressão cognitiva e retardo neuropsicomotor manifestam‑se logo no início do quadro, com a perda do sorriso social, desinteresse pelo ambiente, involu‑ ção das aquisições motoras adquiridas, como controle de tron‑ co, sentar, engatinhar. Alterações neurológicas motoras são va‑ riáveis e dependem da causa etiológica;9 somente 5% das crianças afetadas evoluem sem retardo mental. O tratamento é emergencial logo após a determinação do diagnóstico, que é feito pela anamnese, quadro clínico e EEG com hipsarritmia. O tratamento com ACTH (hormônio) mostra resposta positiva no controle dos espasmos em 59 a 100% dos casos e até 97% na normalização do EEG. Reações colaterais, como hipertensão, Cushing e cardiomegalia, podem ocorrer e são reversíveis após retirada do medicamento. Para os casos cuja patologia de base é a esclerose tuberosa, a medicação de escolha é a vigabatrina. Síndrome de Dravet Na síndrome de Dravet10 (epilepsia mioclônica grave da infân‑ cia), as crianças são normais antes das crises, que começam durante o 1º ano de vida e são febris. A etiologia está relaciona‑ da à mutação neuronal nos canais de cálcio do gene SCN1A.11,12 No início, essas crises febris são rápidas, unilaterais e ocorrem durante a subida da temperatura. Com a evolução, tendem a ser progressivamente mais longas, resistentes ao tratamento e podem determinar status epiléptico.13 Durante a fase inicial, são predominantemente clônicas; a partir do 2º ano de vida, passam a ser generalizadas, com ataques mioclônicos maci‑ ços, ocorrendo várias vezes durante o dia, sem associação com estado febril, provocando quedas ao solo e evoluindo para cri‑ ses tônico‑clônicas generalizadas. Crises focais também ocor‑ rem, associadas a fenômenos autonômicos como palidez, cia‑ nose labial, fenômenos atônicos e/ou automatismos. Concomitantemente, observa‑se lento e progressivo retardo psicomotor e cognitivo. Observa‑se também comprometimen‑ to motor, da linguagem e da marcha, caracterizando uma sín‑ drome cerebelar e piramidal. O diagnóstico de certeza é dado pelo aparecimento dos ata‑ ques mioclônicos. Entretanto, se uma criança apresenta crises febris recidivantes durante o 1º ano de vida e tem um EEG com ponta‑onda desencadeada por fotoestimulação, a hipótese de síndrome de Dravet pode ser considerada.14
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Figura 2 EEG com padrão de hipsarritmia – lactente com 8 meses de idade.
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Epilepsias da infância Durante as idades pré‑escolar e escolar, encontra‑se o maior número de epilepsias classificadas, listadas a seguir. Dentre elas, serão destacadas as de interesse para o pediatra. • epilepsia benigna com pontas centrotemporais;
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epilepsia ausência na infância; epilepsias com ausências mioclônicas; síndrome de Panayiotopoulos; epilepsia occipital de início na infância tardia (tipo Gastaut); síndrome de Lennox‑Gastaut; síndrome de Landau‑Kleffner; encefalopatia com descargas de ponta‑onda contínua duran‑ te o sono; epilepsia com crises mioclônico‑atônicas (anteriormente as‑ táticas); epilepsia frontal noturna autossômica dominante; crises febris (que podem ter início no lactente).
Epilepsia com pontas centrotemporais (EPCT) Idade de início entre 4 e 10 anos em mais de 80% dos casos, discreto predomínio masculino, crises noturnas predominan‑ temente e evidências de antecedentes de epilepsia na família como causa etiológica mais provável. História de crise febril durante os primeiros anos de vida é positiva em 7 a 10% dos casos. A evolução e a intensidade do quadro epiléptico são variá‑ veis. Existem casos de um evento único sem repetição e ou‑ tros em que a recidiva de crises é importante, apesar do trata‑ mento com DAE. Podem ocorrer agrupamento de crises durante alguns dias, principalmente na fase inicial da doença, seguido por meses ou até anos com o paciente assintomático. As crises são focais, caracterizadas por contrações tônicas ou clônicas em um lado da face, envolvendo principalmente a co‑ missura labial, associada à dificuldade para falar, para engolir a saliva, tremores de língua e comprometimento de todo o he‑ micorpo sem perda da consciência. A generalização secundá‑ ria acontece em até 20% dos casos. Frequentemente, o início focal passa despercebido, porque a criança estava dormindo e a generalização ocorreu de forma muito rápida. Em geral, pa‑ cientes portadores de EPCT demonstram excelente potencial cognitivo e têm o exame neurológico normal,15 mas há referên‑ cias de distúrbio da linguagem persistente relacionado à idade de início da epilepsia.16 EEG interictal mostra o padrão de on‑ das agudas (pontas) na região rolândica e temporal média contralateral à manifestação clínica (Figura 3), mas pode ocor‑ rer bilateralmente, com maior voltagem em um dos hemisfé‑ rios. A localização real do foco está no córtex rolândico inferior na profundidade da fissura de Sylvius, e isso corrobora as ma‑ nifestações clínicas e a evolução de bom prognóstico. É importante enfatizar que duas situações podem ocorrer nesse tipo de epilepsia: • as descargas paroxísticas podem estar presentes e ausentes em EEG seriados, independentemente da evolução do pa‑ ciente; • cerca de 8,8% das crianças com ondas agudas tempororrolân‑ dicas no EEG não têm crises epilépticas.
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Figura 3 EEG durante o sono mostrando atividade de base bem organizada e pontas na região rolândica e parietotemporal esquerda.
rados. É de fundamental importância uma anamnese criterio‑ sa feita pelo especialista e uma discussão conjunta com os pais na definição do tratamento. Epilepsia ausência na infância Epilepsia ausência é uma epilepsia generalizada primária, com incidência entre 6 e 7 anos de idade, em uma criança pre‑ viamente normal, e outro pico, mais raro, entre 11 e 12 anos. A etiologia é genética e os antecedentes de epilepsia estão presentes em até 44% dos casos. As crises iniciam de forma abrupta, duram, em média, 15 segundos e podem ocorrer vá‑ rias vezes ao dia. Frequentemente, na fase inicial, as crianças são chamadas de desatentas ou descuidadas, porque parece que não estão escutando e deixam cair objetos das mãos. Isso decorre do acentuado comprometimento da consciência com interrupção da atividade. O EEG é típico e define diagnóstico, mostrando descargas de espícula onda lenta a 3 Hz (variações de 2,5 a 4 Hz podem ocorrer) de projeção difusa, bilateral, que não se fragmentam e se acentuam durante a hiperventilação (Figura 4). A atividade de base é normal e bem organizada. A resposta ao tratamento é eficiente em 80% dos casos, e as crises são bem controladas com ácido valproico, etossuxi‑ mida e/ou lamotrigina. A remissão ocorre até os 12 anos de idade, com prognóstico bom, caso não haja demora no diag‑ nóstico, o tratamento seja correto e o EEG não mostre fotos‑ 9:34:14
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Como essa epilepsia é considerada idade‑dependente, a intro‑ dução do tratamento anticonvulsivante tem que ser vista por um prisma bastante amplo, sob o qual dificuldade cognitiva, distúrbios de humor e cefaleia precisam também ser conside‑
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Figura 4 EEG em vigília mostrando descarga de ponta‑ ‑onda a 3 Hz, durante crise de ausência, na hiperventilação.
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sensibilidade. Como auxílio diagnóstico na suspeita de epilep‑ sia ausência, o médico pode solicitar, durante a consulta, que o paciente realize a hiperventilação, facilitando a precipitação da crise de ausência.17
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Síndrome de Panayiotopoulos Manifesta-se com sintomas autonômicos, acompanhados por convulsões focais motoras. O vômito é o sintoma autonômico ictal, presente em 100% dos casos, seguido pela eversão da ca‑ beça e dos olhos. As crises são clônicas dimidiadas ou tônico‑ -clônicas generalizadas. A idade de início está situada entre 2 e 11 anos, as crises são breves, mas os episódios de vômitos po‑ dem se repetir várias vezes, associados a crises motoras pro‑ longadas, podendo levar a um estado de mal convulsivo. Não existe predomínio em relação a sexo. O exame neurológico é normal e a história familiar para epilepsia e crise febril está presente em 40% dos casos. Pacientes com status epiléptico evoluem com retardo no crescimento do lobo pré-frontal de‑ terminando problemas neuropsicológicos.18 O EEG intercrítico mostra pontas na região occipital que predominam durante o sono (Figura 5). Durante a vigília, essas pontas não são reati‑ vas a abertura e fechamento dos olhos.
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Síndrome de Lennox-Gastaut Tem prevalência no sexo masculino e início entre 3 e 5 anos de idade. É considerada uma encefalopatia epiléptica grave da in‑ fância, pois 60% dos pacientes têm como causa etiológica uma lesão cerebral, determinando comprometimento no de‑ senvolvimento neuropsicomotor e cognitivo. As crises são re‑ sistentes ao tratamento com as DAE. Manifestam-se 3 tipos: 1. Tônicas: envolvendo sobretudo a musculatura axial e mem‑ bros. Ocorrem durante sono e vigília. Geralmente são simétri‑ cas, com ou sem perda da consciência, com alteração do ritmo respiratório e desvio ocular e, às vezes, automatismo gestual. 2. Ausências atípicas: têm um começo e um fim progressivos, a perda de consciência é incompleta, permitindo de alguma for‑ ma a manutenção parcial da atividade que vinha sendo de‑ senvolvida. 3. Mioclonias maciças: anteriormente classificadas como crises atônicas, provocam queda abrupta da cabeça ou do corpo (head atack/drop atack). A indicação de usar capacete pode ser sugerida, objetivando evitar traumatismos graves. O comprometimento cognitivo pode ser leve ou ausente na fase inicial, mas, com a evolução, em razão da recorrência de crises e da dificuldade no controle, passa a ser gradativamente mais acentuado. O EEG é significativamente alterado.19 O tra‑ tamento exige politerapia com DAE, o que também contribui para acentuar o quadro de sonolência, dificuldade de aprendi‑ zagem e lentidão psicomotora. Síndrome de Landau-Kleffner A síndrome de Landau-Kleffner não tem associação com doença de base nem história familiar de epilepsia. Tem predo‑ mínio masculino entre 3 e 5 anos de idade. Caracteriza-se pela afasia adquirida associada a uma alteração importante do
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Fp1-F7 F3-C3 C3-P3 P3-01 Fp1-F7 F7-T3 T3-T5 T5-01 01-02 PZ-0z Fp2-F4 F4-C4 C4-P4 P2-02 Fp2-F8 F8-T4 T4-T6 T6-02
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Figura 5 EEG evidenciando pontas na região occipital esquerda – síndrome de Panayiotopoulos.
comportamento e a crises epilépticas generalizadas raras que remitem rapidamente após terapêutica medicamentosa. Ini‑ cia com afasia, isto é, uma agnosia auditivo-verbal que se es‑ tende a ruídos familiares. A criança gradativamente passa a ser incapaz de atribuir um valor semântico a sinais acústicos, reduz ou perde a espontaneidade da expressão verbal, passa a apresentar estereotipias, perseveração, parafasias, hiperativi‑ dade e oscilações do humor. As alterações psicocomportamentais associadas à afasia frequentemente levam à suspeita diagnóstica de mutismo, surdez e autismo. As crises ocorrem em 70% dos pacientes, muitas vezes são únicas e controláveis com monoterapia anti‑ convulsivante. A linguagem pode ser readquirida pelo menos parcialmente, dependendo do início (antes dos 5 anos), e des‑ de que haja intervenção precoce com fonoterapia, mas nem sempre a criança volta a ter o padrão comportamental e a ex‑ pressividade oral que apresentava antes.20 A capacidade inte‑ lectual operacional geralmente está preservada, mesmo du‑ rante a evolução clínica.
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Os achados do EEG não são típicos e podem mostrar des‑ cargas focais, multifocais ou generalizadas, repetitivas, com maior amplitude em regiões temporal e parieto-occipital esquerda (Figura 6), que se acentuam na hiperventilação, na fotoestmulação e podem ser contínuas durante o sono lento. O prognóstico é variável.21 Encefalopatia epiléptica com descargas ponta-onda contínua durante o sono (EPOCS) A primeira apresentação e descrição do status epiléptico contí‑ nuo durante o sono foi feita por Tassinari em 1977. Trata-se de uma patologia em que o EEG é a ferramenta mais importante para definição do diagnóstico. Não existe relação direta com história familiar de epilepsia nem há predominância em rela‑ ção ao sexo. Crianças na faixa etária entre 3 e 6 anos que vi‑ nham tendo um desenvolvimento normal20 passam a ficar mais lentas, com perda nas habilidades cognitivas e, às vezes, com comprometimento da linguagem. Crises epilépticas po‑ dem ocorrer, mas são raras e geralmente noturnas. Manifes‑ tam-se como ausências com componente clônico e atônico, motoras unilaterais ou tônico-clônicas generalizadas, e desa‑ parecem entre 10 e 15 anos de idade. O status epiléptico duran‑ te o sono é determinado pela presença de ponta-onda contí‑ nua durante o sono de ondas lentas (POCSL) em 85% do traçado eletroencefalográfico. A deterioração cognitiva come‑ ça em virtude desse status epiléptico; as crises convulsivas só surgem mais tarde, interferindo no diagnóstico e na interven‑ ção terapêutica precoce.21 A persistência desse status determi‑ na um prognóstico reservado.22 A literatura discute se a sín‑ drome de Landau-Kleffner e a EPOCS fazem parte de uma única entidade nosológica. Epilepsias da adolescência As epilepsias relacionadas a seguir começam na infância, per‑ sistem ao longo da adolescência e continuam durante a vida adulta. 1. Epilepsia ausência juvenil. 2. Epilepsia mioclônica juvenil.
Epilepsia ausência juvenil Tem início na puberdade, entre 10 e 17 anos. Compromete igualmente os dois sexos, e os pacientes não apresentam alte‑ rações neurológicas. As crises se manifestam logo ao desper‑ tar, de forma repetitiva, com perda abrupta da consciência. São mais leves do que as observadas na epilepsia ausência in‑ fantil, menos frequentes e mais longas. Podem ocorrer mio‑ clonias e crises tônico-clônicas generalizadas. A terapêutica com DAE é imperativa, principalmente para controlar as cri‑ ses de ausência pela forma como se manifestam (em salvas), interferindo no desempenho acadêmico e na cognição. Essa epilepsia não apresenta remissão. As crises de ausên‑ cia podem melhorar com a evolução, mas os pacientes conti‑ nuam a ter as manifestações ao longo da vida adulta, com pe‑ ríodos de maior ou menor exacerbação.23 No EEG interictal, descargas paroxísticas são precipitadas pela hiperventilação e pelo despertar; raramente existe fotossensibilidade. Epilepsia mioclônica juvenil A epilepsia mioclônica juvenil, também conhecida como sín‑ drome de Janz,24 é uma epilepsia generalizada idiopática, de etiologia genética, com vários genes suscetíveis. A idade de início distribui-se entre pré e pós-puberdade, com pico de in‑ cidência dos 12 aos 17 anos, e acometimento igual em ambos os sexos. Caracteriza-se por crises mioclônicas, irregulares, simples ou repetitivas, arrítmicas, predominantemente nos membros superiores, em geral ao despertar ou após privação de sono. Crises de ausência de curta duração e tônico-clônicas generalizadas podem surgir algum tempo depois das crises mioclônicas. Frequentemente, as crises mioclônicas são con‑ sideradas como tremor ou “nervosismo”, sendo valorizadas somente depois que as tônico-clônicas se manifestam. As cri‑ ses têm como fatores precipitantes privação de sono, exposi‑ ção a fotossensibilidade (luz estroboscópica, jogos de videoga‑ me) e uso de álcool. O EEG mostra um padrão típico de espícula-onda bilateral rápido, que em 30% é desencadeado pela fotoestimulação (Figura 7). Essa síndrome bem definida quanto à evolução responde bem ao tratamento, mas ocorre refratariedade quando a droga é retirada.25 15:22:56
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Figura 6 EEG evidenciando atividade de base organizada durante o sono leve e descargas bilaterais, mais amplas à esquerda na síndrome de Landau-Kleffner.
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Figura 7 EEG evidenciando descarga de poliespícula-onda generalizadas na epilepsia mioclônica juvenil.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Diferenciar os diversos tipos de crises. • Valorizar manifestações mioclônicas no neonato e no lactente e saber da importância do eletroencefalograma no diagnostico diferencial. • Identificar as alterações que ocorrem na fase inicial da síndrome de West. • Saber que declínio cognitivo pode estar relacionado ao status epiléptico durante o sono. • Conhecer e identificar os diversos tipos de epilepsias que cursam com crises de ausências. • Valorizar sintomas autonômicos associados a crises epilépticas. • Reconhecer os diferentes procedimentos que podem ser de auxílio diagnóstico na solicitação de um eletroencefalograma.
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CAPÍTULO 3
ESTADO DE MAL EPILÉPTICO Paulo Breno Noronha Liberalesso
Histórico e definição Embora crises epilépticas sejam descritas há mais de 5.000 anos, a primeira citação de um caso de estado de mal epilépti‑ co (EME) ocorreu somente em 1822, quando Prichard descre‑ veu uma crise epiléptica não convulsiva prolongada a qual ele denominou “estado de fuga”. Contudo, o EME só passou a ser considerado uma entidade distinta das crises epilépticas quan‑ do, em 1824, o psiquiatra Louis Florentin Calmeil citou o termo em francês “état de mal” em sua tese “De l’epilepsie, étudiée sous le rapport de son siège et son influence sur la production de l’aliénation mentale” apresentada à Universidade de Paris. O termo “status epilepticus” surgiu na língua inglesa em 1867, por oca‑ sião das traduções das Conferências de Trousseau.1 Embora o neurologista inglês John Hughlings Jackson te‑ nha sido pioneiro em relatar um paciente com EME parcial complexo, a documentação clínica e eletrográfica dessa enti‑ dade coube a Gastaut et al., quando descreveram com deta‑ lhes o “status psychomotor”.2 O termo EME de ausência, des‑ crito como “petit mal status”, foi introduzido em 1945 por Willian Lennox e, em 1954, os colegas Penfield e Jasper des‑ creveram o EME parcial simples ou estado de aura contínua.1 Durante o X Colóquio de Marseille, realizado em 1962, sur‑ giu a primeira definição de EME como “uma crise epiléptica que por sua recorrência frequente ou duração prolongada seria capaz de gerar uma condição epiléptica fixa”. Portanto, em um primeiro momento, embora a variável tempo tenha sido clara‑ mente mencionada, não se estabeleceu um valor numérico. Estudos com modelos experimentais realizados a partir da década de 1970 demonstraram que a atividade ictal contínua seria capaz de gerar lesão neuronal permanente, mesmo que outras variáveis clínicas, como pressão arterial, frequência cardíaca, temperatura, padrão respiratório e oxigenação, fos‑ sem mantidas em níveis fisiológicos.3 Embora, até o momento, não haja consenso absoluto sobre a definição do EME, a mais utilizada sugere uma entidade no‑ sológica caracterizada por “uma crise epiléptica única ou por crises epilépticas subintrantes e sem recuperação da cons‑
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ciência entre os eventos com duração igual ou superior a 30 minutos”.4 Embora o estabelecimento de 30 minutos seja um tanto arbitrário, é de fundamental importância, pois mantém relação direta com piora do prognóstico, aumento da morbida‑ de neurológica e da mortalidade. Em virtude da pouca praticidade dessa definição, há diver‑ sas propostas de alteração para que o EME passe a incluir cri‑ ses epilépticas com duração superior a 5 ou 10 minutos. Os au‑ tores que defendem a redução do tempo de atividade ictal contínua para definição de EME baseiam-se em estudos que demonstram que a maior parte das crises epilépticas tem du‑ ração inferior a 1 minuto, e que uma parcela considerável das crises que atingirem 5 minutos de duração persistirão por mais de 30 minutos. Uma forma mais grave de EME é denominada EME refratá‑ rio, sendo definido por diferentes autores como: • EME sem controle clínico e/ou eletrográfico após administra‑ ção de dois fármacos antiepilépticos; ou • EME sem controle clínico e/ou eletrográfico após a adminis‑ tração de três fármacos antiepilépticos; ou • EME com duração superior a 1 hora; ou • EME com duração superior a 2 horas. Em 2011, durante o III Colóquio de London-Innsbruck, foi de‑ finido o termo EME super-refratário como um “EME com du‑ ração contínua acima de 24 horas mesmo com o uso de medi‑ cações anestésicas ou que recorre durante a retirada dessas medicações”.5 Classificação As crises epilépticas podem ser classificadas segundo a análise de diversas variáveis, por exemplo, quanto à sua origem topo‑ gráfica no córtex cerebral, de acordo com sua semiologia clíni‑ ca, conforme seu início esteja localizado em um circuito restri‑ to de neurônios (formas focais) ou em amplas áreas de ambos os hemisférios cerebrais (formas generalizadas) e conforme as alterações eletroencefalográficas observadas.
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Teoricamente, qualquer tipo de crise epiléptica poderia evoluir para um quadro de EME, assim, haveria tantos tipos de EME quantos tipos de crises epilépticas. Didaticamente, o EME é classificado nas seguintes formas: • EME generalizado: • EME generalizado convulsivo: • EME generalizado tônico-clônico (grande mal); • EME generalizado clônico; • EME generalizado tônico; • EME generalizado mioclônico. • EME generalizado não convulsivo: • EME de ausência típica (pequeno mal); • EME de ausência atípica; • EME atônico. • EME focal (parcial): • EME parcial simples/EME de aura contínua; • Epilepsia parcial contínua de Kojevnikov; • EME psicomotor (parcial complexo); • EME hemiconvulsivo com hemiparesia. Etiologia As etiologias do EME são extremamente variáveis, já que qual‑ quer doença neurológica aguda, subaguda ou crônica pode, teoricamente, evoluir com crises convulsivas prolongadas e, consequentemente, EME.6 Didaticamente, as etiologias de EME podem ser divididas em sintomáticas agudas, sintomáticas crônicas ou remotas, e progressivas ou degenerativas.
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ção dos fármacos antiepilépticos (particularmente benzodia‑ zepínicos). Da mesma forma, crianças sem histórico de epi‑ lepsia, mas com lesões corticais e/ou cortico-subcorticais, também representam uma população de risco para crises sin‑ tomáticas e EME. Destaca-se que, no Brasil, as lesões cere‑ brais resultantes de intercorrências durante o trabalho de par‑ to e as infecções congênitas com comprometimento do sistema nervoso central estão entre as causas mais frequentes de epilepsias sintomáticas de difícil controle e EME. Causas progressivas ou degenerativas Embora sejam menos frequentes, doenças neurológicas pro‑ gressivas ou degenerativas também podem ser causas de EME. Descompensações agudas de erros inatos do metabolismo es‑ tão, ocasionalmente, envolvidos em crises convulsivas pro‑ longadas e EME, destacando-se galactosemia, fructosemia, defeitos da gliconeogênese, homocistinúria, hiperglicinemia não cetótica, defeitos do ciclo da ureia, acidemia propiônica e metilmalônica, acidúrias glutáricas, defeitos da oxidação de ácidos graxos, deficiência de biotinidase, leucinose, defeitos de cadeia respiratória e do ciclo de Krebs, MELAS, MERFF, doença de Leigh, adrenoleucodistrofia, doença de Gaucher e de Krabbe, leucodistrofia metacromática, gangliosidose, doença de Niemann-Pick e de DeVivo e a lipofuscinose ceroi‑ de neuronal. Algumas síndromes neurocutâneas (neurome‑ soectodermoses) com caráter progressivo também podem ser classificadas nesse grupo etiológico.
Fisiopatologia Causas sintomáticas agudas Parte dos mecanismos fisiopatológicos do EME permanece Nestes casos, o EME é provocado por uma doença que com‑ desconhecida. Estudos em modelos animais demonstram que promete o tecido cerebral de forma aguda, focalizada ou difu‑ os mecanismos geradores do EME convulsivo (com manifes‑ sa e suficientemente grave para alterar a eletrogênese cerebral. tações motoras evidentes e exuberantes) são consideravel‑ Doenças que provoquem distúrbio metabólico sistêmico com mente distintos dos não convulsivos (sem manifestações mo‑ comprometimento secundário do sistema nervoso central fa‑ toras ou com manifestações motoras discretas).7 zem parte desse grupo de etiologias. Entre os principais exem‑ No EME não convulsivo com crises de ausência (típica ou plos, estão o traumatismo cranioencefálico, tumores cerebrais, atípica), o fenômeno ictal tem início com a liberação de neuro‑ hipóxia cerebral recente, acidente vascular cerebral isquêmico transmissores predominantemente inibitórios, sobretudo o ou hemorrágico, meningites bacterianas, encefalites virais, in‑ GABA-B, na fenda sináptica. Esse neurotransmissor acopla‑ toxicações exógenas, abstinência a drogas e distúrbios meta‑ -se em seus receptores específicos na membrana pós-sináptica bólicos agudos (hipoglicemia, hipernatremia, hiponatremia, e, via proteína G, desencadeia uma alteração na morfologia tri‑ hipocalcemia e hiperbilirrubinemia). Em situações especiais, dimensional das proteínas transmembrana que constituem os determinados fármacos comumente utilizados na pediatria, canais de potássio. A abertura desses canais provoca hiperpo‑ particularmente em crianças internadas, podem desencadear larização da membrana pós-sináptica e, consequentemente, crises epilépticas e EME, destacando-se esmolol, cefalospori‑ abertura de canais de cálcio tipo T. A abertura dos canais de nas endovenosas, penicilinas, quinolonas, metronidazol, imi‑ cálcio tipo T causa despolarização da membrana e subsequen‑ penem, sulfonamidas, aminofilina, teofilina, terbutalina, ni‑ te liberação adicional de neurotransmissores inibitórios troprussiato de sódio, digoxina, cimetidina, ciclofosfamida e (GABA) pelos neurônios adjacentes, reiniciando um novo ci‑ clorpromazina. Ainda entre as etiologias agudas, encontra-se clo de fenômenos inibitórios.7 o EME febril, podendo ocorrer em crianças previamente sau‑ No EME convulsivo, embora haja teorias distintas, estudos dáveis ou em crianças com histórico de convulsões febris. em modelos animais demonstram que, no início do fenômeno ictal, há um aumento consistente de neurotransmissores Causas sintomáticas crônicas ou remotas excitatórios que, atuando sobre receptores glutamatérgicos Pacientes epilépticos ou com lesões cerebrais estruturais pré‑ específicos (AMPA e NMDA), provocam intenso aumento do vias correspondem a um grupo especialmente de risco para fluxo transmembrana de íons cálcio do meio extracelular para EME, seja por descompensação das crises, seja por interrup‑ o intracelular, desencadeando disfunção do sistema energéti‑
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co mitocondrial, seguido de ativação de enzimas intracelula‑ res (principalmente lipases, proteases, endonucleases e óxi‑ do-nítrico-sintetase), produção de radicais livres do oxigênio e liberação de ácidos graxos. Essa sequência de fenômenos in‑ tracelulares provoca destruição de organelas e membranas ci‑ toplasmáticas e, consequentemente, morte neuronal. Além disso, o influxo de cálcio estaria envolvido na formação de um segundo mensageiro capaz de atuar diretamente na expressão gênica de células da glia e de neurônios, provocando altera‑ ções em sua estrutura física, alterações funcionais e, final‑ mente, apoptose. A morte neuronal maciça ao final desse pro‑ cesso libera glutamato e outros neurotransmissores excitatórios de menor expressão, mantendo o processo de hi‑ perexcitabilidade e, consequentemente, a atividade ictal con‑ tínua.7 O mecanismo de manutenção da crise, assim como os me‑ canismos de lesão neuronal definitiva no EME não convulsivo com crises parciais complexas, parece ser muito semelhante àqueles envolvidos no EME convulsivo. Epidemiologia O EME é a emergência neurológica mais frequente da pedia‑ tria, apresentando distribuição universal, sendo relatado em populações de todo o mundo, em todas as raças, ambos os se‑ xos e em todas as idades. Estudos populacionais indicam incidência entre 100.000 e 150.000 casos ao ano nos Estados Unidos, havendo clara dis‑ tribuição bimodal, com um primeiro pico de ocorrência em crianças menores de 2 anos de idade e um segundo pico em in‑ divíduos acima de 60 anos.6 Crianças neurologicamente normais com diagnóstico de convulsão febril benigna da infância correspondem a um gru‑ po de risco, uma vez que 4% desses pacientes apresentará pelo menos um episódio de EME febril. Se forem considera‑ das as epilepsias e as síndromes epilépticas da infância de for‑ ma geral, em torno de 15 a 25% desses pacientes terá pelo me‑ nos um episódio de EME durante a vida, mesmo considerando o tratamento medicamentoso de forma correta e regular.6 Tratamento O EME é uma emergência pediátrica e a precocidade no diagnóstico e no tratamento mantém relação direta com me‑ lhora do prognóstico, reduzindo a morbidade neurológica e a mortalidade. Os melhores resultados no atendimento a essa emergência clínica são obtidos quando se utilizam protocolos previamente estabelecidos. De modo geral, toda criança que chega a um setor de pronto atendimento em crise convulsiva deve ser abordada, do ponto de vista terapêutico, como um caso de EME. Para facilitar o atendimento médico e da equipe, é impres‑ cindível que cada serviço crie um fluxo de ações sequenciais (protocolo) para o atendimento desses pacientes, normatizan‑ do e hierarquizando as ações. Didaticamente, a abordagem clínica é dividida em “Passos” que tornam o atendimento pa‑ dronizado e eficiente.8
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Passo 1 – determinação da etiologia e medidas gerais Inicialmente, devem-se realizar um exame neurológico sucin‑ to e a coleta de dados clínicos relevantes, como histórico de epilepsia, interrupção recente de fármacos antiepilépticos, histórico de traumatismo craniano ou quadro clínico compatí‑ vel com alterações metabólicas agudas, infecção do sistema nervoso central ou intoxicações medicamentosas. Simultaneamente à coleta desses dados clínicos e ao exame médico preliminar, deve-se proceder à coleta de hemograma, glicemia, sódio, potássio, cálcio e gasometria arterial. Para cri‑ ses com duração superior a 15 minutos, devem-se coletar as en‑ zimas TGO, TGP e amilase, além de ureia e creatinina. Caso haja sinais de infecção do sistema nervoso central, após a estabiliza‑ ção e o controle inicial do evento ictal, deve-se coletar líquido cefalorraquidiano. Nos casos de suspeita de lesão cerebral agu‑ da ou subaguda etiologicamente relacionada à crise atual, o pa‑ ciente deve ser o mais brevemente possível submetido a exame de neuroimagem (dá-se preferência à tomografia de crânio nes‑ se momento, por sua maior praticidade e rapidez). Em casos es‑ pecíficos, dirigidos pela suspeita clínica, devem-se solicitar exa‑ me toxicológico e nível sérico de fármacos antiepilépticos. Imediatamente após sua chegada, o paciente deve ser transportado para uma maca ou leito com grades de proteção lateral (evitando quedas), deve-se introduzir cânula de Guedel entre os dentes (nos casos de crises convulsivas generalizadas com risco de laceração da língua) e realizar aspiração frequen‑ te da boca (reduzindo o risco de pneumonias aspirativas). Du‑ rante todo esse processo inicial de atendimento, devem-se monitorar os sinais vitais (frequência cardíaca, respiratória, temperatura e pressão arterial). As vias aéreas devem ser mantidas desobstruídas e, em casos de crises com cianose e insaturação, deve-se administrar oxigênio sob máscara a 2 a 3 L/minuto. Acesso venoso deve ser obtido o mais precocemen‑ te possível, evitando acessos centrais durante o procedimento em razão do risco de complicações como o pneumotórax. Passo 2 – medidas farmacológicas É fundamental que toda a equipe envolvida no atendimento emergencial da criança em EME conheça o protocolo sequen‑ cial dos fármacos, assim como conheça as apresentações e di‑ luições utilizadas. Os benzodiazepínicos são considerados as drogas de pri‑ meira linha, podendo ser indicado diazepam ou midazolam. Diazepam deve ser administrado por via endovenosa, sem di‑ luição, na dose 0,2 a 0,3 mg/kg/dose, na velocidade de 1 mg/ kg/minuto. Caso não se obtenha a via endovenosa inicial‑ mente, pode-se utilizar diazepam por via retal, na dose de 0,3 a 0,5 mg/kg, infundido por meio de um cateter fino. Midazolam deve ser administrado por via endovenosa, sem diluição, na dose de 0,15 a 0,3 mg/kg/dose, na velocidade de 1 mg/kg/minuto. Na impossibilidade de administração endo‑ venosa, midazolam pode ser administrado por via nasal, em gotejamento com seringa de insulina, na dose de 0,15 a 0,3 mg/kg/dose.
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Embora benzodiazepínicos sejam fármacos antiepilépticos ideais para controle agudo de crises, seu efeito fugaz torna ne‑ cessária a administração de uma droga de segunda linha com efeito antiepiléptico mais duradouro. Desse modo, após a ad‑ ministração de diazepam ou midazolam, deve-se infundir fe‑ nitoína na dose de 15 a 20 mg/kg/dose, por via endovenosa. Em crianças e idosos, está indicada diluição na proporção 1:10 em água destilada ou soro fisiológico 0,9%. A fenitoína deve ser infundida na velocidade máxima de 50 mg/minuto. Não ultrapassar a dose de 300 mg na infusão endovenosa inicial. Uma alternativa à fenitoína, particularmente nos casos de EME generalizado de ausência (típica ou atípica) e EME mio‑ clônico, é o valproato de sódio endovenoso, que deve ser diluí‑ do em 50 mL de dextrose 5% ou cloreto de sódio 0,9% ou Rin‑ ger lactato. A administração inicial deve ser de 15 mg/kg/ dose, com manutenção a cada 8 horas e não excedendo a dose de 60 mg/kg/dia. Se o EME segue sem controle clínico e/ou eletrográfico, deve ser administrado fenobarbital na dose de 10 mg/kg/ dose, por via endovenosa, com velocidade de infusão máxima de 100 mg/minuto. Não se deve ultrapassar a dose de 200 mg na infusão inicial. A partir desse momento, a maior parte dos autores conside‑ ra que o EME tornou-se refratário e o tratamento deveria ser realizado, preferencialmente, em ambiente de terapia intensi‑ va, com a administração de midazolam em infusão endoveno‑ sa contínua, iniciando com dose de 3 mcg/kg/minuto e seguir aumentando 1 mcg/kg/minuto a cada 15 minutos até o con‑ trole clínico e eletrográfico do EME. A partir desse momento, o ideal é que o paciente receba monitoração eletroencefalográ‑ fica contínua. A dose do midazolam endovenoso contínuo pode ser aumentada até 17 mcg/kg/minuto ou até que surja disfunção cardiovascular grave. O tiopental sódico é uma alternativa ao midazolam contí‑ nuo, devendo ser iniciado com dose de ataque de 3 a 5 mg/kg/ dose, seguida de infusão contínua de 20 mg/kg/hora, aumen‑ tando-se 10 mg/kg/hora a cada 15 minutos até o controle clí‑ nico e eletrográfico do EME. Passo 3 – alternativas farmacológicas Nos casos em que ocorre falha do controle clínico e/ou eletro‑ gráfico do EME com os fármacos anteriores, está indicado uso de infusão endovenosa contínua de propofol, iniciando com dose de ataque de 2 mg/kg/dose e seguindo com manutenção de 2 a 10 mg/kg/hora. Outra opção farmacológica é a lidocaína em infusão contí‑ nua, iniciando com dose de ataque de 1 a 2 mg/kg/dose e ma‑ nutenção de 6 mg/kg/hora (nas crianças) e 1,5 a 3,5 mg/kg/ hora (nos adolescentes). Sempre que se utilizar drogas anestésicas no tratamento do EME refratário, as doses devem ser tituladas por meio da reali‑ zação contínua de EEG.
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A partir desse momento, há esquemas de tratamento para o EME com pouca documentação científica, como a indicação de topiramato em altas doses, levetiracetam, pulsoterapia com corticosteroides, implante de estimulador do nervo vago, entre outros menos comuns. Passo 4 – complicações do EME As principais complicações do EME e que necessitam de abor‑ dagem terapêutica eficaz e precoce são acidose metabólica grave, hipoglicemia (pode perpetuar a crise), hipotensão arte‑ rial, arritmia cardíaca, hipertermia (acelera o dano neuronal), pneumonia aspirativa, insuficiência renal por necrose tubular aguda e edema cerebral. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Definir e classificar o estado de mal epiléptico. • Reconhecer as principais etiologias do estado de mal epiléptico. • Compreender as bases da fisiopatologia do estado de mal epiléptico convulsivo e não convulsivo. • Reconhecer a epidemiologia da doença, identificando os grupos mais vulneráveis. • Tratar farmacologicamente um paciente em estado de mal epiléptico.
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CAPÍTULO 4
MICROCEFALIA E MACROCEFALIA Jair Luiz de Moraes
Microcefalia Definição Microcefalia é uma condição neurológica em que o tamanho da cabeça é menor do que o tamanho típico para a idade do feto ou da criança. Representa um defeito no desenvolvimento do cérebro como um todo, caracterizado quando o diâmetro cefá‑ lico está menos de 3 desvios‑padrão abaixo da média para a idade e sexo. As fontanelas fecham‑se prematuramente, não permitindo que o cérebro alcance proporções normais de seu ta‑ manho. É uma das principais causas de déficit intelectual.1 Incidência As estimativas de incidência de microcefalia ao nascimento va‑ riam de 1/6.250 casos a 1/8.500 casos, sendo mais frequente no sexo masculino. Também demonstra maior aparecimento em indivíduos da mesma família (10% dos casos). Geralmente está associada à população portadora de retardo mental.2
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síndromes por problemas genéticos (como síndrome de Rett); infecções intracranianas (encefalite e meningite); intoxicação por cobre; hipotireoidismo infantil; anemia crônica infantil; traumas disruptivos (como acidente vascular cerebral – AVC); insuficiência renal crônica.3
Infecções durante a gravidez: rubéola, citomegalovírus, toxo‑ plasmose e zika. Apesar de ser uma doença pouco descrita, já há evidências que comprovam o reconhecimento entre a pre‑ sença do vírus zika e sua associação com a microcefalia. Em relação às manifestações clínicas, quando sintomática, a doença cursa com febre baixa ou eventualmente sem febre; exantema maculopapular; artralgia; mialgia; cefaleia; adinofa‑ gia (dor durante a deglutição de alimentos); tosse seca e alte‑ rações gastrointestinais (vômitos). O aumento da incidência de casos de infecção pelo vírus zika requer cuidados intensifi‑ cados durante o acompanhamento pré‑natal.4
Etiologia Este processo é de caráter autossômico recessivo e é aparente ao nascer. Pode ser congênita, adquirida ou desenvolver‑se Sintomatologia nos primeiros anos de vida, causada pela baixa de neurônios O crescimento do cérebro é lento e o peso do cérebro adulto durante a embriogênese, associada ou não a alterações estru‑ não passa de 500 a 800 g, sendo que o peso normal é de 1.200 turais, exposição a substâncias nocivas durante o desenvolvi‑ a 1.500 g (Figura 1). mento fetal ou com síndromes genéticas hereditárias.3 O aspecto clínico é bastante característico: cabeça pequena, As causas são divididas em 2 categorias: “de alfinete”, nariz grande em forma de bico, mandíbula fugidia, 1. Congênitas: orelhas grandes, estatura abaixo do normal. Há redução das • consumo de álcool durante a gravidez; fontanelas com acentuada curva da testa para trás, assimetria • diabete materno mal controlado; do crânio, achatamento do occipital, palato alto, dentes dis‑ • hipotireoidismo materno; plásicos, dermatóglifos anormais, atrofia de músculos interós‑ • insuficiência placentária; seos palmares e plantares e circunferência torácica que excede • anomalias genéticas; a craniana. Há defasagem do desenvolvimento neuropsico‑ • exposição a radiação; motor e cognitivo em quase todos os casos, sendo variável o • infecções durante a gravidez, especialmente rubéola, cito‑ grau de deficiência mental. O comportamento costuma ser megalovírus e toxoplasmose. anormal, evidenciando‑se crianças irritadiças, inquietas e des‑ 2. Pós‑natais: truidoras. Cerca de 1/3 dos pacientes desenvolve crises con‑ • malformação do metabolismo; vulsivas.5
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MICROCEFALIA E MACROCEFALIA •
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A simples ocorre quando umas das seguintes suturas são acometidas e se fecham precocemente: sagital, coronária, metópica, lambdóidea. As totais ou complicadas ocorrem quando existem alterações em duas ou mais dessas suturas, e nas quais a estenose está associada a outras patologias, como a doença de Crouzon e as síndromes de Apert e de Carpenter. Nas cranioestenoses secundárias, as suturas fecham-se e o crânio não cresce, em consequência de atrofia cerebral ou agenesia de estruturas encefálicas. Essas causas também podem ser observadas em crianças com derivação liquórica ou pós-traumatismo.5 Figura 1 Tamanho normal/microcefalia.
Classificação Microcefalia vera Refere-se à cabeça anormalmente pequena, de provável causa genética (de caráter autossômico recessivo), ou adquirida, que geralmente não tem outras malformações ou está associada a algumas síndromes genéticas específicas, como síndrome de Down, síndrome de Edwards, síndrome de cri du chat, síndrome de Cornelia de Lange, síndrome de Rubinstein-Taybi, entre outras. Microcefalia por cranioestenose/craniossinostose Essa microcefalia é caracterizada pelo fechamento prematuro de uma, de várias ou de todas as suturas, impedindo expansão e deformando a caixa craniana. O crânio do recém-nascido precisa expandir rapidamente para acomodar o cérebro em crescimento, sobretudo nos dois primeiros anos de vida. Podem ocorrer alterações clínicas como cefaleias, vômitos, déficits neurológicos, alterações visuais, cegueira e possibilidade de retardo mental. Essa importante anormalidade craniana ocorre em todas as raças, com predominância no sexo masculino (3:1). O fechamento precoce da sutura sagital é o mais encontrado (56%), seguido da sutura coronária unilateral (11%), da sutura coronária bilateral (11%), da metópica (7%), da lambdóidea (1%) e o comprometimento de múltiplas suturas (14%)4 (Figura 2). As cranioestenoses primárias podem ser divididas em simples e total ou complicadas.
Fontanela anterior
Sutura metópica Sutura coronal
Sutura sagital
Fontanela posterior
Tipos de desenvolvimento patológico das suturas Braquicefalia: (crânio curto, alto e região occipital quase plana). Ocorre quando há a fusão prematura da sutura coronária, com impedimento do crescimento no sentido anteroposterior (Figura 3). 1. Oxicefalia: fechamento prematuro das suturas coronárias ou
de todas as suturas, sendo a mais severa das cranioestenoses (Figura 4). 2. Plagiocefalia: fusão unilateral da sutura coronária ou lamb-
Metópica Coronal Fontanela anterior Sagital
Lambdóide Sutura Lambdóide
Figura 2 Esquema mostrando as suturas cranianas abertas.
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Fisiopatologia No recém-nascido, os ossos do crânio, separados uns dos outros estão fortemente conectados por traves fibrosas que se fixam também ao periósteo e à dura-máter. Ainda há muita discussão na literatura sobre o que ocorre na cranioestenose, havendo certa concordância de que o processo se inicie por alteração dos ossos da base do crânio, que alteraria as forças biomecânicas exercidas pela dura-máter sobre as suturas de convexidade. Portanto, as suturas não estariam afetadas primariamente, e sim secundariamente.5
Figura 3 Braquicefalia/sinostose coronal bilateral (aumento do diâmetro laterolateral). Fonte: Radiol Bras 2005; 38(5).
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Figura 7 Sinostose da sutura metópica. Figura 4 Sinostose da sutura coronal. Fonte: Radiol Bras 2005; 38(5).
dóidea, tornando o crânio assimétrico, com os polos frontal e occipital um maior que o outro (Figura 5). 3. Escafocefalia: é o fechamento precoce da sutura sagital. O crânio assume aspecto de quilha de navio, alongado no sentido anteroposterior. É o tipo mais comum de cranioestenose (Figura 6). 4. Trigonocefalia: fusão prematura da sutura metópica, caracterizada por uma proeminência triangular na fronte, tendo um formato em “V”; os olhos ficam aproximados (Figura 7).
A configuração geral da cabeça sugere o diagnóstico, e sempre se devem investigar sinais de hipertensão intracraniana e realizar exame fundoscópico para excluir a possibilidade de papiledema ou atrofia óptica.6
Figura 5 Sinostose coronal unilateral (proeminência frontal contralateral). Fonte: Radiol Bras 2005; 38(5).
Figura 6 Sinostose da sutura sagital.
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Diagnóstico e prognóstico O diagnóstico é feito por radiografia convencional do crânio, que demonstra qual a sutura soldada. A tomografia computadorizada (TC) e a ressonância magnética (RM) podem auxiliar, em alguns casos, para mostrar calcificações intracranianas, sinais de atrofia cerebral, malformações ou outras patologias. Mapeamento ósseo (cintilografia) também pode ser usado para confirmar o diagnóstico de cranioestenose. Deve-se obter uma anamnese completa envolvendo a história familiar detalhada à procura de outros casos de microcefalia ou distúrbios que afetam o sistema nervoso, além de exame físico criterioso, com medição do perímetro cefálico (PC) também nos pais e irmãos. A avaliação laboratorial requer investigação de níveis séricos de fenilalanina e investigação genética (cariótipo), quando houver suspeita de uma síndrome cromossômica. Exames adicionais incluem uma análise dos níveis plasmáticos e urinários de aminoácidos em jejum, amônia sérica, títulos de toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes simples da mãe e da criança, além de uma amostra de urina para cultura de citomegalovírus e aconselhamento genético aos pais. O prognóstico dependerá do acometimento encefálico e do tratamento que a criança receberá.6 Tratamento Em geral, não há tratamento específico para microcefalia. O tratamento é sintomático e de suporte. É importante que as anomalias congênitas associadas sejam identificadas e que se determine a causa específica desse distúrbio. Preconizam-se procedimentos fisioterapêuticos, medicamentos sintomáticos indicados para cada caso, por exemplo anticonvulsivantes, cuidados com patologias associadas e dieta adequada. O tratamento cirúrgico está indicado quando houver sinais de aumento da pressão intracraniana, deformidades faciais ou cranianas ou exoftalmia progressiva, devendo ser realizado o mais precocemente possível (antes dos 6 meses de idade) para diminuir a pressão intracraniana.7 Macrocefalia A macrocefalia é um termo mais descritivo do que de diagnóstico, aplicado para designar uma cabeça anormalmente grande, cuja circunferência é maior que a média correspondente à
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Microcefalia e Macrocefalia •
idade e ao sexo do bebê ou da criança. A macrocefalia pode ser hereditária, causada por hidrocefalia ou estar associada a ou‑ tros transtornos, como neurofibromatose e esclerose tuberosa. Em aproximadamente metade dos casos de macrocefalia, não há comprometimento cognitivo. O crescimento craniano está relacionado com o crescimento cerebral e com a circulação do líquido cefalorraquidiano (LCR). Por esse motivo, qualquer situação que condicione o aumento do tamanho cerebral ou da quantidade de LCR vai refletir-se no tamanho do crânio. O maior aumento do volume cerebral ocorre nos últimos 3 meses de vida intrauterina e durante os 2 primei‑ ros anos após o nascimento. A relação entre o aumento do ta‑ manho da cabeça e o crescimento encefálico explica por que se utiliza a medição do PC como parte da avaliação neurológica na lactância e primeira infância.8 Definição e conceitos Macrocefalia é o crescimento anormal do PC, com valores su‑ periores a 2 desvios padrão acima do percentil 95 para sexo, raça, idade e idade gestacional. Megalencefalia (ou macroencefalia) é o aumento do parên‑ quima cerebral. Além da hereditariedade, também pode estar associado a outros transtornos, como tumores intracranianos, neurofibromatose e esclerose tuberosa. Ainda que uma forma de macrocefalia possa relacionar-se ao retardo mental, em aproximadamente metade dos casos o desenvolvimento mental é normal. A medição do PC deve ser realizada desde o nascimento até os 36 meses e em todas as consultas pediátricas. A evolu‑ ção do crescimento do PC ao longo do tempo é um fator infor‑ mativo muito importante, contribuindo como indicador de doença neurológica. O PC aumenta 2 cm/mês durante os pri‑ meiros 3 meses de vida, 1 cm/mês até aos 6 meses e 0,5 cm/ mês entre 6 e 24 meses. No pré-termo, o PC em regra cresce 1 cm/semana nos primeiros 2 meses e 0,5 cm/mês nos 2 me‑ ses seguintes.9 A seguir, são mostrados os valores dos PC estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS): • nascimento – meninas 31 a 36 cm; meninos 31 a 37 cm; • 1 ano – meninas 42 a 47 cm; meninos 43 a 48 cm; • 2 anos – meninas 44 a 50 cm; meninos 45 a 51 cm; • 3 anos – meninas 45 a 51 cm; meninos 46 a 52 cm; • 4 anos – meninas 46 a 52 cm; meninos 47 a 53 cm; • 5 anos – meninas 47 a 52 cm; meninos 47 a 53 cm. Etiologia e fisiopatologia Trata-se de uma patologia rara, mais frequente no sexo mas‑ culino, com provável determinação genética, visto que podem ocorrer alguns casos em uma mesma família, caracterizando a macrocefalia benigna (Tabela 1). Tipos de macrocefalia Macrocefalias secundárias a patologia cerebral e do LCR Primárias
Inclui a macrocefalia familiar (constitucional) e a hemimega‑ lencefalia, ambas de provável etiologia genética. Incluem-se
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nesse grupo as macrocefalias associadas a síndromes genéti‑ cas (acondroplasia, neurofibromatose, esclerose tuberosa, cromossomopatias, síndrome de X frágil, síndrome de Sotos e outras). Secundárias (progressivas ou evolutivas)
Ocorre na presença de lesões que ocupam espaço no cérebro (massas, coleções ou malformações vasculares). Inclui tam‑ bém a hidrocefalia e a hidrocefalia externa benigna em lacten‑ tes com dilatação dos espaços subaracnóideos e sinais de hi‑ drocefalia comunicante, mas sem repercussão clínica. Neste grupo, incluem-se também as situações de depósito de subs‑ tâncias anômalas. Macrocefalias secundárias a patologia óssea Ocorrem em caso de fechamento precoce das suturas ou em situações de patologias ósseas. Manifestações clínicas Os sinais e sintomas são variáveis, podendo algumas altera‑ ções orientar no sentido de determinada etiologia (Tabela 2). Diagnóstico e prognóstico Muitas das malformações podem ser detectadas ainda na fase intrauterina, pelas ultrassonografias durante o período gesta‑ cional. No lactente, o diagnóstico diferencial é complexo, uma vez que a macrocefalia pode apresentar causas de natureza va‑ riada e geralmente congênitas. Em crianças maiores, as cau‑ sas de macrocefalia são mais facilmente identificáveis, pois, em geral, têm natureza adquirida. Meios complementares de diagnóstico Na maioria dos casos, a anamnese e o exame físico permitem um diagnóstico adequado. Nas situações de macrocefalia de etiologia desconhecida, os seguintes exames devem ser reali‑ zados de forma escalonada e racional: 1. Ultrassonografia de crânio: método rápido, seguro, inócuo e de baixo custo na avaliação de recém-nascidos com macroce‑ falia. Muito utilizado no período gestacional na detecção das malformações intraútero. 2. Radiografia simples de crânio: comprovação da desproporção craniofacial. No lactente, é necessário considerar que, em si‑ tuações normais, ocorrem diferentes densidades radiológicas nos ossos cranianos, que o tamanho da fontanela bregmática é variável e que a largura das suturas pode ser grande. 3. Eletroencefalograma: na avaliação de pacientes com macro‑ cefalia severa, pode oferecer indícios de hidranencefalia. 4. Transiluminação: é uma técnica simples de investigação diag‑ nóstica que pode ser usada para detectar anormalidades maiores do SNC. A sua utilidade tem valor limitado pela falta de uma padronização técnica. No lactente, a transiluminação pode detectar várias anomalias, incluindo hidrocefalia, po‑ rencefalia, hidranencefalia e efusões subdurais. 5. Tomografia computadorizada: demonstra claramente o tama‑ nho e a progressão dos ventrículos e espaços liquóricos, além de algumas alterações fisiopatológicas, como edema periven‑
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1334 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 17 NEUROLOGIA
Tabela 1 Etiologias de acordo com a faixa etária 0 a 6 meses
Hidrocefalia Malformações congênitas
Espinha bífida, malformação de Chiari, estenose aquedutal, holoprosencefalia, hidranencefalia
Lesões ocupantes de espaço
Neoplasias, malformações arteriovenosas, cistos congênitos
Infecção intraútero
Toxoplasmose, citomegalovírus, sífilis, rubéola
Infecção peri/pós-natal
Bacteriana, granulomatosa, parasitária
Hemorragia peri/pós-natal
Prematuridade, hipóxia, malformação vascular, traumatismo
Hemorragia subdural Hemorrágico, infeccioso, higroma cístico Variante do normal (familiar) 6 meses a 2 anos
Hidrocefalia (progressiva) Lesões ocupantes de espaço
Tumor, cisto, abscesso
Pós-meningite bacteriana ou granulomatosa Pós-hemorragia
Tumor ou malformação vascular
Síndrome de Dandy-Walker Hemorragia subdural Aumento da pressão intracraniana Pseudotumor cerebral
Chumbo, tetraciclinas, hipoparatireoidismo, corticosteroides, déficit ou excesso de vitamina A, cardiopatia congênita cianótica
Displasia óssea Osteogênese imperfeita, hiperfosfatemia, osteopetrose, raquitismo Megalencefalia Doenças metabólicas
Leucodistrofias, lipidoses, histiocitose, mucopolissacaridose
Síndromes neurocutâneas
Esclerose tuberosa, neurofibromatose, hemangiomatose, síndrome de Sturge-Weber
Gigantismo cerebral
Síndrome de Sotos
Acondroplasia Megalencefalia primária > 2 anos
Familiar, associada ou não a anomalias da arquitetura cerebral
Hidrocefalia (progressiva) Lesões ocupantes de espaço
Tumor, cisto, abscesso
Distúrbio preexistente
Estenose aquedutal
Pós-hemorragia Pós-infecciosa Malformação de Chiari tipo I Megalencefalia Síndromes neurocutâneas Familiar Pseudotumor Variante do normal
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Microcefalia e Macrocefalia •
Tabela 2 Manifestações clínicas eventualmente orientadoras Macrocefalia constitucional Macrocefalia por hidrocefalia externa benigna
Mais frequente no sexo masculino História familiar positiva Macrocefalia pode não estar presente ao nascimento, o PC vai crescendo até > P 95 Exame de imagem para diagnóstico Distribuição predominantemente anterior do LCR (na atrofia cerebral, LCR distribuído anterior e posteriormente) DPM e exame neurológico normais
Hemimegalencefalia
Atraso mental Convulsões Hemiparesia
Hidrocefalia Lesões ocupando espaço
Cefaleias, vômitos, irritabilidade Atraso no DPM Alteração da morfologia da calota craniana Alterações/déficits neurológicos
Doenças de depósito de substâncias anômalas Síndromes genéticas
Deterioração neurológica, atraso mental, convulsões Hepatoesplenomegalia, fenótipo peculiar Alterações psicológicas
Craniossinostose
Deformidade craniana Hipertensão intracraniana Alterações visuais
Doenças ósseas sistêmicas
Sintomatologia geral, vômitos, má progressão ponderal Anemia, alterações bioquímicas Deformidades esqueléticas
tomáticas: antiepilépticos nas situações que cursem com con‑ vulsões, reabilitação, educação especial, intervenção precoce, medidas ortopédicas, apoio social e, em determinadas situa‑ ções, aconselhamento genético.12 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Realizar anamnese e exame físico dirigidos para o crescimento craniano com palpação e medições seriadas do perímetro cefálico da criança e dos pais. • Investigar e reconhecer sinais de hipertensão intracraniana. • Observar dismorfias faciais, malformações esqueléticas, discromias cutâneas e patologias cardíacas. • Identificar os diagnósticos diferenciais entre micro e macrocefalia.
Referências bibliográficas 1.
2. 3.
4. 5.
DPM: desenvolvimento psicomotor; LCR: líquido cefalorraquidiano; PC: perímetro cefálico.
6.
tricular, desproporção do crescimento dos ventrículos e pre‑ sença de alterações atróficas do cérebro. 6. Ressonância magnética: possibilita uma melhor definição das malformações congênitas associadas. Quanto ao prognóstico, depende da presença ou ausência dos fatores relacionados às características da macrocefalia.11
Tratamento O tratamento clínico restringe-se a cuidados com as sequelas que se associam à patologia principal. A opção cirúrgica de tra‑ tamento é a colocação de válvula de derivação quando há hi‑ drocefalia. A incidência de complicações decorrentes destes tratamentos ainda é alta. Os tratamentos alternativos não operatórios precisam de objetividade, de bases fisiopatológi‑ cas e de resultados clínicos satisfatórios, além de medidas sin‑
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7. 8. 9. 10.
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CAPÍTULO 5
DISTÚRBIOS DO SONO Magda Lahorgue Nunes
Introdução Distúrbios do sono (DS) são definidos como toda e qualquer manifestação clínica que ocorra durante o sono trazendo alte‑ ração na sua qualidade, organização e/ou número de horas. Ocorrem com frequência elevada em crianças e adolescentes. Pesquisas estimam que aproximadamente 25% das crianças podem apresentar algum tipo de DS em algum momento da infância.1,2 Os DS são divididos em grupos distintos conforme sua fi‑ siopatologia, segundo a classificação proposta pela Academia Americana de Medicina do Sono (American Academy of Sleep Medicine – AASM) que foi revisada e atualizada recentemen‑ te3 (Tabela 1). Os DS são prevalentes em crianças e adolescentes, impli‑ cam alterações da rotina familiar, podem ter consequências no desempenho emocional, cognitivo, escolar, ponderoestatural e, mesmo assim, são frequentemente subdiagnosticados. O sono no recém-nascido apresenta-se de forma polifásica e segue um ritmo ultradiano; a consolidação do sono noturno inicia em torno do 6º mês de vida, quando é possível observar períodos contínuos de sono de até 6 horas, e uma interrupção noturna para amamentação. O manejo dos DS em crianças difere do preconizado em adultos, pois está relacionado à sua etiologia. Tabela 1 Classificação Internacional dos Distúrbios do Sono – International Classification of Sleep Disorders (ICSD-3) Insônia Distúrbios respiratórios relacionados ao sono Hipersonias de origem central DS relacionados a ritmo circadiano Parassonias Distúrbios de movimentos relacionados ao sono Outros distúrbios do sono
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Rotinas de higiene do sono devem ser mantidas de forma consistente para a obtenção de um sono de boa qualidade. O objetivo deste capítulo é auxiliar o pediatra a reconhecer os DS mais frequentes na infância seguindo a classificação proposta pela AASM revisada e atualizada pela última vez em 2014. Pela descrição das características clínicas e abordagem terapêutica, espera-se instrumentalizar o pediatra para a reali‑ zação de diagnóstico de DS e estabelecimento da terapia mais adequada. Anamnese do sono Perguntas simples e que podem dar uma ideia da qualidade do sono devem fazer parte da rotina das consultas de pueri‑ cultura: o local onde a criança dorme, quem a faz dormir, roti‑ nas pré-sono, quanto tempo leva para dormir após colocada na cama/berço, se costuma acordar durante a noite, se tem movimentos repetitivos durante o sono ou ao adormecer, quantas horas dorme por noite, se acorda sozinha, se necessi‑ ta de estímulo para ser acordada, se fica sonolento durante o dia, se faz sestas. Recomendações sobre a duração do sono em crianças va‑ riam de acordo com a fonte consultada, entretanto, a National Sleep Foundation recentemente publicou uma recomendação por faixa etária na qual se encontram as horas de sono ideais e as horas de sono aceitáveis4 (Tabela 2). Além da anamnese, questionários padronizados sobre há‑ bitos de sono, validados para a língua portuguesa, podem au‑ xiliar na detecção de alterações e contribuir para o diagnóstico do DS5,6 (Figuras 1 e 2). Deve-se suspeitar de DS frente a algum dos seguintes sinto‑ mas: sono interrompido por múltiplos despertares, dificuldade de iniciar o sono, ronco, apneias, movimentos anormais repeti‑ tivos durante o sono, sonolência excessiva diurna, irritabilida‑ de, alterações de comportamento e dificuldade de concentra‑ ção. Exame físico completo também é fundamental para auxiliar no diagnóstico do DS e excluir causas secundárias.1,2
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Distúrbios do Sono •
Tabela 2 Duração do sono4 Faixa etária
Horas de sono ideais
Horas de sono aceitáveis (máximo e mínimo)
0 a 3 meses
14 a 17
18 a 19 e 11 a 13
4 a 12 meses
12 a 15
16 a 18 e 10 a 11
Crianças (1 a 2 anos)
11 a 14
15 a 16 e 9 a 10
Pré-escolares (3 a 5 anos)
10 a 13
14 e 8 a 9
Escolares (6 a 13 anos)
9 a 11
12 e 7 a 8
Adolescentes (14 a 17 anos)
8 a 10
11 e 7
Jovens (18 a 25 anos)
7a9
10 a 11 e 6
Adultos (26 a 64 anos)
7a9
10 e 6
Idosos (> 65 anos)
7a8
9e5a6
Identificação e classificação Insônia Por definição, a insônia é a dificuldade de iniciar ou manter o sono. A insônia primária na infância é denominada “insônia comportamental da infância”, e é definida como a dificuldade de iniciar e/ou manter o sono relacionada a uma identificável causa comportamental. Dois tipos estão relatados: o primeiro é a insônia associada a hábitos de indução do sono – neste caso, a criança associa o ato de dormir com uma ação (ser car‑ regada no colo, ser embalada), objeto (mamadeira) ou local (cama dos pais) e torna-se incapaz de dormir espontaneamen‑ te quando separada dessa associação; o segundo tipo é a insô‑ nia por falta de estabelecimento de limites – neste caso, a criança recusa-se a ir dormir, pelo fato de não ter sido acostu‑ mada a seguir hábitos/rotina/limites que a preparem para o sono.3 Distúrbios respiratórios relacionados ao sono São subdivididos em: síndromes de apneias de origem central, síndrome das apneias obstrutivas do sono e síndromes asso‑ ciadas a hipoventilação/hipoxemia. As apneias da prematuri‑ dade e do lactente, assim como os episódios de ALTE (apparent life threatening event) e a síndrome da morte súbita do lactente (SMSL), ficam dentro da classificação de apneias pri‑ márias da infância.3 Por definição, a apneia primária é caracterizada por apneia prolongada central, mista ou obstrutiva ou hipopneia associa‑ da a outros comprometimentos (queda na saturação de oxigê‑ nio e/ou bradicardia). As apneias da prematuridade são defi‑ nidas como uma pausa respiratória com duração superior a 20 segundos ou com menor duração, mas acompanhada de bra‑ dicardia e/ou queda na saturação de oxigênio em neonato prematuro com idade gestacional inferior a 37 semanas.3 O ALTE é definido como evento com aparente risco de mor‑ te, é um episódio que aterroriza o observador sendo caracteri‑ zado por uma combinação de sinais/sintomas: apneia, altera‑
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Por favor, marque apenas uma opção quando você responder às questões que apresentam mais de uma opção de resposta. Nome do entrevistado: Data: Parentesco do entrevistado: ( ) Pai ( ) Mãe ( ) Avó/Avô ( ) Outro (especificar): Nome da criança: Data de nascimento: Dia Mês Ano Sexo: ( ) Masculino ( ) Feminino Ordem de nascimento da criança: ( ) Mais velho ( ) Do meio ( ) Mais novo ( ) Filho único Organização para dormir: ( ) Berço em quarto separado ( ) Berço no quarto dos pais ( ) Na cama dos pais ( ) Berço no quarto com irmãos Outro (especificar): Em que posição seu(sua) filho(a) dorme na maior parte das vezes? ( ) Barriga para baixo ( ) De lado ( ) De costas Quanto tempo seu(sua) filho(a) passa dormindo durante a NOITE (entre 7 da noite e 7 da manhã)? Horas: Minutos: Quanto tempo seu(sua) filho(a) passa dormindo durante o DIA (entre 7 da manhã e 7 da noite)? Horas: Minutos: Média de vezes que seu(sua) filho(a) acorda por noite: Durante a noite (entre 10 da noite e 6 da manhã), quanto tempo seu(sua) filho(a) permanece acordado(a)? Horas: Minutos: Quanto tempo você leva para fazer seu(sua) filho(a) adormecer à noite? Horas: Minutos: Como o seu bebê adormece? ( ) Sendo alimentado ( ) Sendo embalado ( ) No colo ( ) Sozinho na sua cama ( ) Na cama perto dos pais A que horas normalmente seu(sua) filho(a) adormece à noite? Horas: Minutos: Você considera o sono do seu(sua) filho(a) um problema? ( ) Um problema muito grave ( ) Um problema pouco grave ( ) Não considera um problema
Figura 1 Breve questionário sobre sono na infância (BISQ)6
ção na coloração da pele (cianose, rubor), alteração no tônus muscular (hipertonia ou hipotonia), impressão de choque ou engasgo.2,3 A SMSL é definida como a morte súbita de criança com me‑ nos de 1 ano de idade que permanece inexplicada após investi‑ gação clínica, necrópsia, exame do local do óbito e revisão da história clínica.7 A síndrome das apneias/hipopneias obstrutivas do sono (SAHOS) é definida como uma prolongada obstrução intermi‑ tente completa e/ou parcial das vias aéreas superiores. A classificação pediátrica da SAHOS tem critérios diagnósticos distintos da síndrome na idade adulta, sendo o diagnóstico polissonográfico positivo na presença de mais de 1 apneia/ hora com, no mínimo, 10 s de duração.3
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1338 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 17 NEUROLOGIA
Quantas horas a criança dorme durante a noite? ( ) 9 a 11 horas ( ) 8 a 9 horas ( ) 7 a 8 horas ( ) 5 a 7 horas ( ) Menos de 5 horas Quanto tempo a criança demora para adormecer? ( ) Menos de 15 minutos ( ) 15 a 30 minutos ( ) 30 a 45 minutos ( ) 45 a 60 minutos ( ) Mais de 60 minutos
Assinale apenas uma opção
Nunca
Ocasionalmente (1 a 2 vezes/ mês)
Algumas vezes (1 a 2 vezes/ semana)
Quase sempre (3 a 5 vezes/ semana)
Sempre (todos os dias)
A criança não quer ir para a cama dormir
A criança tem dificuldade para adormecer
Antes de adormecer, a criança está agitada, nervosa ou sente medo
A criança apresenta “movimentos bruscos”, repuxões ou tremores ao adormecer
Durante a noite, a criança faz movimentos rítmicos com a cabeça e o corpo
A criança diz que está vendo “coisas estranhas” um pouco antes de adormecer
A criança transpira muito ao adormecer
A criança acorda mais de 2 vezes durante a noite
A criança acorda durante a noite e tem dificuldades em adormecer novamente
A criança mexe-se continuamente durante o sono
A criança não respira bem durante o sono
A criança para de respirar por alguns instantes durante o sono
A criança ronca
A criança transpira muito durante a noite
A criança levanta e senta na cama ou anda enquanto dorme
A criança fala durante o sono
A criança range os dentes durante o sono
Durante o sono, a criança grita angustiada, sem conseguir acordar
A criança tem pesadelos que não lembra no dia seguinte
A criança tem dificuldade em acordar pela manhã
A criança acorda cansada pela manhã
Ao acordar, a criança não consegue movimentar-se ou fica como se estivesse paralisada por uns minutos
A criança sente-se sonolenta durante o dia
Durante o dia, a criança adormece em situações inesperadas sem avisar
Figura 2 Questionário EDSC, recomendado para a faixa etária entre 3 e 12 anos.5
Hipersonias de origem central A narcolepsia é uma doença crônica neurológica, cujos sinto‑ mas iniciam após a puberdade, afetando ambos os sexos de forma semelhante. É caracterizada por episódios de sono diur‑ no em situações em que não é habitual dormir (lendo, comen‑ do, dirigindo) e sonolência excessiva diurna. Ocorrem intro‑ missões diurnas do sono REM caracterizadas por cataplexia
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(queda abrupta ao solo por perda de tônus muscular, geral‑ mente após alguma emoção), paralisia do sono (sensação de paralisia por período breve ao adormecer ou acordar) e aluci‑ nações hipnagógicas (sonhos vívidos difíceis de distinguir da realidade, com conteúdo assustador ocorrendo logo ao início do sono ou ao acordar). Além disso, em crianças/adolescen‑ tes, podem ocorrer atividades automáticas (p.ex., fazer a lição
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Distúrbios do Sono •
de casa) sem consciência ou memória posterior do fato, des‑ pertares frequentes durante a noite, letargia, déficit de aten‑ ção e perda de memória. A etiologia não é totalmente conheci‑ da, mas sabe-se que está relacionada ao alelo HLA DQB1*0602 e à destruição de neurônios secretores de hipocretina (hormô‑ nio relacionado à manutenção da vigília) no hipotálamo.1-3 DS relacionados a ritmo circadiano São os DS relacionados à troca de fuso horário, trabalho em turno e atraso/adiantamento de fase. Nas viagens com troca de fuso horário, pode ocorrer um não alinhamento do ritmo circadiano (sono-vigília) com o ambiente externo em virtude de uma rápida mudança de fuso horário (jet lag). O atraso de fase, distúrbio cronobiológico frequente em adolescentes, atingindo 5 a 10% dessa população e com predo‑ mínio no sexo masculino, é caracterizado pela incapacidade de dormir e acordar em horários adequados para suas ativida‑ des (escola, trabalho), ocorrendo um atraso de 1 a 2 horas no início do sono.8,9 Parassonias São DS transitórios relacionados ao desenvolvimento e, con‑ sequentemente, muito frequentes durante a infância. Consis‑ tem em fenômenos motores, autonômicos ou experiências in‑ desejáveis. Associados ou não ao despertar (completo ou parcial), podem ocorrer exclusivamente em sono NREM, em sono REM ou indiferente da fase do sono. As parassonias relacionadas ao despertar parcial em sono NREM não deixam memória do episódio ao despertar. Ocor‑ rem geralmente no terço inicial da noite, durante a fase de sono NREM profundo.1,2 1. Despertar confusional: episódios com duração média de 5 a 15 minutos, caracterizados por choro, gritos, agitação motora e confusão, que pioram gradualmente até cessarem de forma espontânea. A reação piora quando se tenta consolar a crian‑ ça, que não consegue despertar totalmente. 2. Sonambulismo: comportamento estereotipado caracterizado por caminhar noturno. 3. Terror noturno: episódios de curta duração (< 1 minuto), ca‑ racterizado por início abrupto com choro, gritos, olhos aber‑ tos, taquicardia, midríase, sudorese e expressão facial de medo intenso. A criança pode saltar da cama e correr sem di‑ reção; existem sérios riscos de acidentes batendo contra mó‑ veis e/ou janelas. 4. Pesadelos: parassonias relacionadas ao sono REM mais fre‑ quentes na faixa etária pediátrica. Podem causar a interrup‑ ção do sono por medo ou até a insônia (medo de dormir e ter pesadelos), existe memória do ocorrido e do conteúdo do so‑ nho no dia seguinte. Ocorrem geralmente no terço final da noite. 5. Enurese noturna: considerada o DS mais prevalente e persis‑ tente da infância, é um exemplo de parassonia que pode ocor‑ rer em qualquer fase do sono. Por definição, o diagnóstico é feito quando ocorrem dois ou mais eventos em 1 mês de ob‑ servação em crianças com idade entre 5 e 6 anos ou um ou
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mais eventos/mês após 6 anos de idade. A etiologia é relacio‑ nada a uma associação de fatores como liberação de vasopres‑ sina durante o sono, instabilidade vesical e inabilidade de re‑ conhecer bexiga cheia.
Distúrbios de movimentos relacionados ao sono O bruxismo é o movimento rítmico de atrito/ranger dos den‑ tes durante o sono. Pode ocorrer em 5 a 20% das crianças (mais prevalente em crianças com paralisia cerebral e/ou re‑ tardo mental), eventualmente levando a desgaste do esmalte dentário e alterações na articulação temporomandibular.1,2 A síndrome das pernas inquietas é mais frequente em adul‑ tos, mas existem cada vez mais relatos de sua ocorrência em crianças. Caracterizada por sensação álgica (formigamento, cãibras) que ocorrem nos membros inferiores em repouso, an‑ tecedendo o sono; existe uma necessidade/urgência de movi‑ mentar as pernas para aliviar o sintoma (movimentos periódi‑ cos de perna), o que causa fragmentação do sono. Sua fisiopatologia envolve disfunção do sistema dopaminérgico e baixo teor de ferro, mesmo sem anemia evidente.1,2 Outras situações como bater/rolar lateralmente a cabeça e/ ou o corpo muitas vezes são usados como indutor de sono em crianças normais, mas podem ser exacerbados em crianças com comprometimento neurológico. Investigação complementar A polissonografia noturna é o exame padrão-ouro para a inves‑ tigação/confirmação de DS. Nesse exame, é possível avaliar organização e eficiência do sono, além de identificar e quantificar apneias (e sua repercus‑ são na saturação de oxigênio e frequência cardíaca). Também é possível identificar movimentos periódicos de perna e reali‑ zar o diagnóstico diferencial entre movimentos/eventos que ocorrem durante o sono e epilepsia. Na suspeita de narcolepsia, no dia seguinte à polissonogra‑ fia, realiza-se o teste de múltiplas latências do sono. Esse teste avalia a sonolência diurna e o tempo para início (latência) do sono REM. Na suspeita de síndrome das apneias/hipopneias do sono, avaliação por métodos de imagem das vias aéreas superiores também é necessária. São indicações de polissonografia na infância: • Estudo de apneias em prematuros que persistem de forma anormal para a idade gestacional e que não tenham uma clara definição etiológica. • Investigação de episódios de ALTE. • Casos de síndrome da morte súbita do lactente para investiga‑ ção de irmãos em idade de risco. • Parassonias de difícil manejo ou com necessidade de diagnós‑ tico diferencial com crises epilépticas. • Portadores de doenças neuromusculares ou doenças metabó‑ licas com comprometimento ventilatório. • Investigação da repercussão de malformações maxilocranio‑ faciais.
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• Suspeita de apneias obstrutivas. • Calibração de CPAP. • Diagnóstico diferencial de epilepsias.1,2 Tratamento O objetivo principal do tratamento dos DS é melhorar a quali‑ dade e a organização do sono. Varia de acordo com o tipo de DS. Rotinas de higiene do sono devem ser consistentes e prati‑ cadas na família (Tabela 3). As condutas resumidas a seguir são baseadas em evidên‑ cias da literatura.1,2,8,10
Tabela 3 Rotinas e orientações sobre o sono1,7 Idade Recém‑ -nascidos
Usar posição supina Usar colchão firme Deixar a face livre e descoberta, e os pés apoiados na borda inferior do berço Evitar excesso de cobertas e travesseiro Evitar fumo no ambiente domiciliar Evitar temperaturas elevadas no quarto Remover brinquedos ou objetos que possam ser puxados para o berço Manter rotina consistente de horário de sono e sestas A partir dos 6 meses, fazer a transição para quarto próprio Desenvolver rotina da hora do sono com atividades que acalmem (banho) Reduzir luzes e ruídos Colocar o bebê na cama ainda acordado
Crianças
Manter horário de dormir e acordar consistente, de acordo com as necessidades fisiológicas, características individuais e atividades diurnas da criança. Evitar mudanças significativas em finais de semana Rotinas da hora do sono devem consistir em atividades calmas (banho, escovar dentes, colocar pijama, leitura, conversar sobre o dia) previamente estabelecidas que não ultrapassem 20 a 30 minutos. Devem ocorrer no banheiro/quarto da criança O quarto deve ser um ambiente seguro, ventilado, silencioso, escurecido, com temperatura adequada (nem frio, nem quente demais). Pode ser usada uma luz noturna no rodapé Lanche leve (leite ou biscoitos) podem ser ingeridos se o jantar tiver ocorrido cedo. Evitar alimentos ou bebidas com cafeína no mínimo 4 horas antes do horário do sono (chocolate, chás, café, refrigerantes) No mínimo 1 hora antes do horário de dormir, evitar atividades físicas extenuantes ou excitantes, uso de computadores, jogos eletrônicos, televisão As sestas devem ser gerenciadas de acordo com as necessidades e a idade. Evitar sestas longas (> 30 minutos) ou no final da tarde Exercícios físicos adequados à idade devem fazer parte da rotina diurna
Adolescentes
Manter horário de dormir e acordar consistente, de acordo com as necessidades fisiológicas, características individuais e atividades diurnas do adolescente Evitar dormir demais ou em horários muito alterados no fim de semana Fazer uma sesta de 30 a 45 minutos no início da tarde pode ser benéfica Evitar usar equipamentos eletrônicos na hora de dormir, optar por leitura, ouvir música calma Evitar uso de cafeína, tabaco, álcool e drogas Manter horário de dormir e acordar, mesmo em dias que não tem escola, com variação máxima de 1 hora Expor-se ao sol Praticar exercícios físicos regulares, mas evitá-los no período noturno Manter o ambiente do quarto escurecido, sem ruídos, com temperatura agradável Evitar medicação e automedicação para indução do sono Ter uma alimentação saudável, fazer lanche leve antes de dormir, não dormir com fome
Hipersonias O tratamento da narcolepsia envolve melhora da higiene do sono, sestas em horários previamente determinados durante o dia e uso de estimulantes do SNC (metifenidato, anfetami‑ nas, tricíclicos, modafinil). DS relacionados a ritmo circadiano O tratamento do atraso de fase consiste em reajustar o relógio biológico (adiantar a ida para cama em torno de 15 minutos a cada noite) e manter a redução até chegar em horário ideal e manter boa higiene do sono. Parassonias Nas parassonias do sono NREM, não está indicado tratamen‑ to, exceto em casos de terror noturno com muita agitação psi‑ comotora e risco de lesões (quando os episódios são frequen‑ tes). Nesse caso, o uso de benzodiazepínicos por período limitado a 3 a 4 semanas está indicado. Distúrbio de movimentos relacionados ao sono Diante do diagnóstico de síndrome das pernas inquietas, é im‑ portante excluir deficiência de ferro; em caso positivo (ferriti‑ na sérica < 50 mcg/dL), está indicada a reposição de ferro e ácido fólico. Outras opções de tratamento são antagonistas dopaminérgicos, clonazepam ou pregabalina.
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Usar posição supina Usar colchão firme Deixar a face do neonato livre e descoberta, e os pés apoiados na borda inferior do berço Evitar excesso de cobertas e travesseiro Evitar fumo no ambiente domiciliar Evitar temperaturas elevadas no quarto Posicionar o neonato para dormir em berço próprio no quarto dos pais (até 6 meses) Encorajar o sono noturno, escurecendo o ambiente à noite e clareando-o durante o dia Desenvolver rotinas na hora de dormir
Lactentes
Insônia O tratamento indicado em crianças preconiza o uso de técni‑ cas comportamentais e de condicionamento, além de higiene do sono e estabelecimento de rotinas. Distúrbios respiratórios do sono Apneia obstrutiva do sono: o tratamento depende da etiologia. Em crianças, a mais frequente é a hipertrofia de adenoides‑ -tonsilas; nesse caso, o tratamento é cirúrgico. ALTE: o tratamento também depende da etiologia. Em ca‑ sos de ALTE maior (que necessita reanimação vigorosa) ou ALTE de repetição, quando a etiologia não fica definida, é re‑ comendado o uso de monitores de saturação/frequência car‑ díaca durante o sono, por período mínimo de 3 meses.
Recomendações
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Distúrbios do Sono •
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer a recomendação atual sobre horas de sono de acordo com a faixa etária pediátrica. • Reconhecer e classificar os DS mais frequentes na infância. • Iniciar a investigação clínica da queixa de DS. • Conhecer as bases terapêuticas do tratamento de DS.
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CAPÍTULO 6
CRISES NÃO EPILÉPTICAS NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA Sérgio Antonio Antoniuk Mariana Richartz Schwind
Introdução A epilepsia é uma doença crônica que chega a atingir até 0,5% da população pediátrica.1 O diagnóstico de certeza das crises epilépticas é difícil e muito importante para evitar exames complementares desnecessários, ansiedade familiar e uso de drogas antiepilépticas que apresentam risco de potenciais efeitos colaterais.2 Um quarto dos pacientes (25%) encaminhados aos servi‑ ços de epilepsia apresentam eventos clínicos paroxísticos as‑ sociados com atividades motoras, alterações sensitivas, sen‑ soriais, emocionais ou comprometimentos da consciência que não são crises epilépticas.1,3 Assim, as crises não epilépti‑ cas (CNE) são caracterizadas por episódios clínicos similares às crises epilépticas não associados a descargas elétricas no cérebro. As CNE devem ser de conhecimento do pediatra, médico de família, neurologista e psiquiatra infantil, principalmente em serviços de emergência, evitando exames desnecessários e tera‑ pias iatrogênicas. Hindley et al., estudando 125 crianças com diagnóstico definitivo de epilepsia encaminhadas para um cen‑ tro terciário, observaram que 44 (35%) não eram epilépticas.3 Em outro estudo com 223 crianças encaminhadas por eventos paroxísticos, 87 (39%) não apresentavam epilepsia, e, de 184 enviadas com o diagnóstico definitivo de epilepsia, 55 (30%) não estavam com diagnóstico equivocado.1 As crises não epilépticas podem ser classificadas como psi‑ cogênicas (CNEP), aquelas associadas a problemas psicológi‑ cos primários ou secundários.4 Quando associadas a causas médicas, são denominadas fisiológicas (CNEF).2 As CNEF po‑ dem ser classificadas como fenômenos hipóxico-isquêmicos, distúrbios do sono, transtornos dos movimentos e transtornos associados à migrânea. Já as CNEP podem estar associadas a fenômenos motores, comportamentais, comprometimento de consciência e “auras”.4 No DSM-V, as CNEP estão classificadas em transtorno conversivo, transtorno factício, simulação e transtorno de ansiedade.5
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Crises não epilépticas fisiológicas Fenômenos hipóxico-isquêmicos Dos fenômenos hipóxico-isquêmicos, além da síncope, são importantes para os pediatras a crise de perda de fôlego e o re‑ fluxo gastroesofágico.2 A síncope é uma perda súbita e transitória da consciência e tônus postural com recuperação rápida e completa.6 Os casos incompletos com comprometimento parcial da consciência são denominados pré-síncope. Síncope é um sintoma, não uma en‑ fermidade, e suas causas são variáveis. A síncope está relaciona‑ da a um aporte inadequado de oxigênio ao sistema nervoso cen‑ tral (hipoperfusão cerebral). Em 75 a 80% dos casos, as síncopes são do tipo neurocardiogênico (SNC), também denominado síncope reflexa ou vasovagal.6 As causas cardíacas são mais ra‑ ras. Existem outras afecções que apresentam clínica de síncope; porém, seus mecanismos são distintos da hipoperfusão cerebral e elas devem ser consideradas como diagnóstico diferencial: causas psicogênicas (histeria, simulação, ansiedade), neuroló‑ gicas (epilepsia, vertigem), cataplexia, distúrbios metabólicos (hipoglicemia) e intoxicações.6 Os episódios geralmente são acompanhados por pródromos, como tonturas, náuseas, sudorese, dor abdominal e palidez. Es‑ tão associados ao estresse ortostático (como ficar em pé em ôni‑ bus, fila de banco, cozinhando). Outras vezes, ocorrem associa‑ dos a um forte estímulo emocional, doloroso ou sutil, incluindo um ambiente quente ou específicos (p.ex., micção, tosse), e também podem se relacionar a procedimentos dolorosos, como retirada de sangue, aplicação de vacina e injeções. Nessas ou‑ tras situações, os mecanismos fisiopatológicos são diferentes. As crises associadas à mobilização do pescoço, como espregui‑ çar, girar a cabeça, barbear-se, estão relacionadas a uma hiper‑ sensibilidade do seio carotídeo. Eventos sem esforço sugerem síncope relacionada a uma doença cardíaca. Raramente a sínco‑ pe está associada à mordida de língua, giro da cabeça para o lado ou hipersalivação. Essas situações sugerem crise epiléptica. A incontinência urinária pode ocorrer nas crises mais prolonga‑
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Crises Não Epilépticas na Infância e na Adolescência •
das. Eletroencefalograma (EEG) durante as gravações de even‑ tos sincopais geralmente demonstram sofrimento cerebral ge‑ neralizado. Embora convulsões possam ocorrer na síncope, uma verdadeira convulsão epiléptica é rara. A clínica é muito importante para distinguir síncope de cri‑ se epiléptica, mas alguns testes podem ser necessários para o diagnóstico. O EEG intercrítico tem pouco valor para o diag‑ nóstico de síncope e, a princípio, não deve ser realizado. O ele‑ trocardiograma (ECG) e o Holter podem ser úteis para afastar arritmia cardíaca. O teste da mesa inclinada (tilt test), realiza‑ do em crianças maiores de 6 anos que apresentaram dois ou mais episódios (ou um episódio grave), pode provocar síncope vasovagal e fornecer suporte para o diagnóstico. Nesse teste, além da observação do quadro clínico, são avaliados parâme‑ tros hemodinâmicos como pressão arterial (hipotensão) e fre‑ quência cardíaca (assistolia, bradicardia e taquicardia). O tratamento da síncope está direcionado para condutas educativas gerais, como aumento da ingestão líquida e salina, postura colocando a cabeça entre as pernas ou passar para a posição deitada e evitar e prevenir os fatores desencadeantes. Terapia específica é indicada dependendo da etiologia. Nos ca‑ sos recorrentes, podem-se utilizar medicamentos como inibi‑ dores beta-adrenérgicos, fludrocortisona, inibidores da recap‑ tação de serotonina, estimulantes alfa-adrenérgicos, teofilina, metilfenidato e marca-passo nos casos refratários. A crise de perda de fôlego ocorre mais frequentemente entre 6 e 12 meses de idade, ocorrendo até os 5 anos. O gatilho é mui‑ tas vezes uma situação de contrariedade, medo, sustos ou trau‑ mas leves. A criança chora e, no fim da expiração, é incapaz de relaxar, ocorrendo apneia e cianose. Há duas entidades clínicas: a forma cianótica e a pálida. A forma cianótica é a mais comum e os episódios sempre ocorrem após um fator desencadeante emocional: frustração, medo ou raiva. Esses episódios podem evoluir com perda da consciência, hipotonia global, opistótono e movimentos clônicos, confundindo com crise epiléptica. De‑ ve-se pesquisar anemia, e, raramente, uma investigação cardio‑ lógica necessita ser realizada. O tratamento baseia-se em orien‑ tações para atendimentos na crise, tratamento da anemia, e, eventualmente nos casos graves da forma pálida, há indicação do uso de atropina e, mais recentemente, de piracetam.7 No refluxo gastroesofágico (síndrome de Sandifer), a crian‑ ça apresenta desvio tônico do tronco e da cabeça, associado à alimentação, e os episódios têm uma tendência a ocorrerem durante o sono. A associação com vômitos e pneumopatia de repetição reforça o diagnóstico. O EEG está normal e o trata‑ mento baseado em medidas específicas para o refluxo contro‑ lam as crises. Distúrbios do sono Entre os distúrbios do sono (DS), uma entidade clínica fre‑ quente é a mioclonia benigna do sono, caracterizada por con‑ trações mioclônicas envolvendo membros superiores e infe‑ riores, predominantemente no início do sono. O quadro é benigno, com evolução favorável. O EEG intercrítico e durante a crise está normal. Podem ocorrer em recém-nascidos, predo‑ minando nas porções distais dos membros.2
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Outros DS a serem enfatizados são o terror noturno e o so‑ nambulismo, denominados parassonias. Decorrem de um des‑ pertar parcial (superficialização-ativação) durante os estágios III e IV não REM (NREM) do sono, no primeiro ou segundo ciclo da noite, geralmente entre 60 e 90 minutos após o início do sono. No terror noturno, a criança grita de forma intensa, com ex‑ pressão facial de pavor associada a fenômenos autonômicos como sudorese, taquicardia e rubor facial, com duração de 5 a 15 minutos. O episódio pode ser confundido com crises do lobo frontal, que geralmente são mais rápidas. A criança não reconhece os pais e fica inconsolável. Os episódios cessam es‑ pontaneamente e a criança volta a dormir sem lembrar do epi‑ sódio ao despertar. No sonambulismo, os comportamentos são mais comple‑ xos, como andar, comer, abrir e fechar gavetas e tocar objetos. Ocorrem 1 a 2 horas após o início do sono (fase 3 e 4 do sono), com duração média de 5 a 10 minutos, e podem sugerir crises parciais complexas. O tratamento geralmente não é indicado. Benzodiazepínicos podem ser úteis nas crises frequentes e prolongadas. Também é parassonia de dissociação o estado confusional do despertar, que é um estado delirante associado a comportamentos complexos ao despertar.8 Os distúrbios do despertar podem ser desencadeados por febre, privação do sono, álcool, atividade física e estresse emo‑ cional. Podem ser exacerbados pela menstruação e gestação, sugerindo fatores hormonais. Geralmente, os episódios são benignos e tendem a diminuir com o tempo. Não há necessi‑ dade de tratamento. A narcolepsia é um distúrbio com etiologia desconhecida, que se caracteriza por ataques de sonolência exagerada, de curta duração durante o dia. Quando associado à cataplexia (perda do tônus, fraqueza muscular) com queda ao solo, o diagnóstico diferencial deve ser considerado com crises atôni‑ cas. Na cataplexia, não há perda de consciência, memória, vi‑ são ou audição, e a recuperação é muito rápida. Geralmente as crises são desencadeadas por excitação, alegria, riso ou raiva. A narcolepsia geralmente se inicia na adolescência, e a cata‑ plexia após os 30 anos de idade. A narcolepsia pode estar as‑ sociada também a paralisia do sono, alucinações hipnagógicas e sonolência inicial no estágio REM.9 Jactatio captis, ou movimentos rítmicos do sono, é uma pa‑ rassonia que se caracteriza por movimentos repetitivos da ca‑ beça antes de iniciar e na primeira fase do sono. Ocorrem em qualquer idade. Orientam-se apenas cuidados para evitar dano físico. Transtornos dos movimentos Outras CNEF são os transtornos dos movimentos: os tiques, as distonias, as crises de masturbação, o spasmus nutans, os tre‑ mores, o torcicolo paroxístico benigno, as estereotipias e os movimentos coreoatetósicos.2,10 Nos transtornos de tiques, os movimentos são involuntá‑ rios, controlados pela criança e não ocorrem no sono. Tique é um movimento motor ou vocalização, repentino, rápido, re‑ corrente e não ritmado.5 Geralmente os tiques iniciam entre 4 e 6 anos de idade. O pico da gravidade ocorre entre 10 e 12 anos,
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com declínio na adolescência. São muito mais frequentes que da gravidade e do grau de incapacidade, deve ser tratado com as crises mioclônicas, com as quais são confundidos. Não são medicamentos como agentes betabloqueadores. episódicos e tendem a ocorrer durante todo o dia. Deve-se fi‑ Estereotipias motoras geralmente começam antes dos 3 car atento à associação de tiques motores e fônicos, que, asso‑ anos de idade. Clinicamente, o quadro é definido como invo‑ ciados a comportamento obsessivo-compulsivo, hiperativida‑ luntário, coordenado, repetitivo dentro de um padrão fixo. de, desatenção e dificuldades de aprendizagem, constituem o Pode ser do tipo “flapping”, ondulações, movimentos de exten‑ quadro de síndrome de Tourette. Os tiques, na maioria das ve‑ são da cabeça e fechamento dos olhos. As estereotipias ocor‑ zes fônicos ou motores isolados, são transitórios. São conside‑ rem durante períodos de alegria, cansaço, excitação ou estres‑ rados crônicos quando persistem por mais de 1 ano.5 O trata‑ se. São suprimidas por estímulos sensoriais ou distração. Não mento é realizado com neurolépticos, clonidina e ácido atrapalham as atividades diárias da criança. Ocorrem em valproico, entre outros. crianças saudáveis, mas preocupam os pais e os pediatras por As distonias geralmente estão associadas ao uso de medi‑ terem semelhança com as estereotipias dos pacientes autistas camentos, mais frequentemente metoclopramida, bromopri‑ e com deficiência intelectual. da e neurolépticos. Deve-se ressaltar que os efeitos colaterais A coreoatetose paroxística familiar é uma condição autos‑ ocorrem mesmo com doses adequadas da medicação. A recu‑ sômica dominante caracterizada por posturas distônicas e peração é completa em minutos a horas. Associam-se contra‑ movimentos coreoatetósicos que podem ocorrer espontanea‑ ções musculares, opistótono, torcicolo, disartria e movimen‑ mente ou por estímulos externos, como ansiedade, hiperter‑ tos oculares. Como antídoto, pode-se utilizar biperideno ou mia e exercícios físicos. O tratamento é baseado em medica‑ difenidramina nos casos graves. ção antiepiléptica, como a carbamazepina. Os resultados são As crises de masturbação (comportamento de gratificação favoráveis na maioria dos pacientes. na infância) confundem-se com movimentos involuntários ou crises epilépticas por sua natureza repetitiva. O quadro clínico Migrânea e distúrbios associados2 é caracterizado por pressões sobre a região púbica, suprapúbi‑ A vertigem paroxística benigna ocorre no pré-escolar que apre‑ ca, movimentos rítmicos da coxa acompanhados de diaforese, senta um quadro de vertigem, geralmente procurando um lugar rubor facial e respiração irregular. Chama a atenção a cessação ou um adulto para se agarrar. Os episódios são associados a nis‑ dos movimentos com mudança do estímulo ambiental ou dis‑ tagmo, perda de postura, palidez, sudorese e vômitos. Não há tração. Raramente esses comportamentos indicam um quadro comprometimento da consciência. A remissão é espontânea obsessivo-compulsivo, necessitando de terapia comporta‑ após a idade escolar (média de 5 anos). Frequentemente são mental e medicamentos como os inibidores da recaptação de confundidos com crises atônicas. A anamnese detalhada, o exa‑ serotonina. me clínico e o ECG normal esclarecem o diagnóstico. O spasmus nutans começa na infância antes de 1 ano de ida‑ A migrânea pode induzir síncope pelo comprometimento da de. Ele consiste de nistagmo, episódios de queda da cabeça e artéria basilar. A migrânea hemiplégica alternante caracteriza‑ torcicolo. Podem confundir com crises mioclônicas ou tônicas. -se por crises de hemiplegia flácida em um ou ambos os lados, O nistagmo pode ser monocular ou multidirecional. Estudos geralmente associadas a fenômenos autonômicos. As crises po‑ de imagens devem ser solicitados para afastar lesão de tronco dem estar associadas a nistagmo, estrabismo, fenômenos tôni‑ cerebral. O prognóstico é favorável, com desaparecimento dos cos e distônicos. O início ocorre nos primeiros 18 meses de vida sintomas em 1 a 2 anos. e podem ser desencadeadas pelo banho e estímulos luminosos. Tremores ou arrepios geralmente começam na infância e As crianças podem evoluir com ataxia, atraso do desenvolvi‑ podem ocorrer várias vezes ao dia. Eles envolvem músculos mento e movimentos coreoatetósicos. Existe uma forma hemi‑ axiais e podem se associar com flexão cervical e de tronco. Os plégica familiar que se inicia mais tardiamente, entre 5 e 7 anos tremores são rápidos, de baixa amplitude, e as crianças os re‑ de idade. Pode se associar a nistagmo; trauma, exercícios físicos ferem como leves choques. O exame clínico e o ECG são nor‑ e estresse podem desencadear os episódios. Quatro genes já fo‑ mais. Desaparecem espontaneamente até os 10 anos de idade. ram identificados, os quais indicam comprometimento dos ca‑ O torcicolo benigno paroxístico é uma condição rara que nais de sódio e cálcio. começa na infância, em torno dos 3 meses de idade, com re‑ O estado de confusão mental associado à migrânea ocorre missão espontânea até os 5 anos de idade. Ele é caracterizado em criança na idade escolar e é caracterizado por episódios de por episódios de desvio cervical durando minutos, horas e, al‑ delírio, agitação e pouco contato com o ambiente. Pode durar gumas vezes, dias. Pode ser acompanhado de palidez, agita‑ de 3 a 5 horas e, muitas vezes, é diagnosticado como encefali‑ ção e vômitos. Os ataques podem ocorrer toda semana ou todo te ou crises parciais complexas, embora os automatismos se‑ mês, e a tendência é que se resolvam espontaneamente. Eles jam raros. Em semanas ou meses, esses episódios evoluem são confundidos com crises tônicas, mas a consciência é pre‑ para quadros típicos de migrânea. Durante ou após os eventos, servada e o EEG é normal durante os episódios. O exame neu‑ o ECG pode evidenciar lentificação no traçado. rológico entre as crises, o videoeletroencefalograma (vídeo‑ Crises não epilépticas psicogênicas -EEG) e exames de imagem são normais. O tremor essencial, geralmente de origem familiar, é inten‑ CNEP não são muito raras na infância, ocorrendo entre 3,5 e cional, com evolução benigna. Em alguns casos, dependendo 20% dos estudos com vídeo-EEG.4 A CNEP na infância pode
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Crises Não Epilépticas na Infância e na Adolescência •
ser classificada como evento motor (parte do corpo ou todo como opistótono, movimento do quadril, pescoço), falta de resposta ao ambiente (criança quieta sem resposta, sonolenta, flácida), distúrbio emocional ou comportamental (choro, gri‑ tos, birras), “auras” (zumbidos, sensações estranhas, pensa‑ mento forçado) ou misto (todos os fenômenos associados).4 Segundo o DSM-V, as CNEP podem ser classificadas dentro do transtorno conversivo, transtorno factício e transtorno de ansiedade.5 Transtorno conversivo, transtorno factício e transtorno de ansiedade No transtorno conversivo, também denominado transtorno de sintomas neurológicos funcionais, os sintomas de crises não são explicados por doença neurológica avaliada pela clínica ou exames complementares, como o vídeo-EEG. Na maioria das vezes, os sintomas não são intencionalmente produzidos e ocorre ausência de preocupação nas suas implicações. O transtorno factício caracteriza-se pela falsificação, simu‑ lação ou indução de doenças médicas (crises convulsivas), nem sempre com intenção de ganho secundário. Quando um indivíduo falsifica uma doença em outro, denomina-se trans‑ torno factício imposto a outro (p.ex., crianças e animais de es‑ timação). Na simulação, o ganho na criança geralmente visa a uma recompensa em forma de presentes, ajuda dos professo‑ res, falta escolar e passeios. Outra condição psicológica que deve ser considerada em crianças e adolescentes é o transtorno de ansiedade, princi‑ palmente o transtorno do pânico. Esses episódios podem ou não estar associados a fatores desencadeantes. Podem durar minutos a horas, caracterizam-se por sudorese, palpitação, tremor, dispneia, sufocação, dor torácica, dor abdominal, tontura, medo de morrer, parestesias, arrepios e ondas de ca‑ lor. Frequentemente se associam a um quadro depressivo e, muitas vezes, apresentam ideias suicidas. Medicação anti‑ depressiva e psicoterapia devem ser indicadas nos casos mais graves. A assistência a pacientes com CNEP é frequentemente ina‑ dequada, mesmo em grandes centros de atendimento a epi‑ lepsia. O manejo dos casos é habitualmente difícil, mesmo em ambientes com equipes multiprofissionais bem treinadas com esse propósito. O diagnóstico ou a suspeita diagnóstica nem sempre é fácil. Crises associadas a fatores emocionais desencadeantes, ou crises nunca vistas, várias consultas e tratamentos sem mu‑ dança do perfil das crises, ausência de traumas, movimentos atípicos, fenômenos pós-crise não compatíveis com epilepsia são fatores que devem ser levados em consideração para o diagnóstico. Crises com atividade motora generalizada segui‑ da de rápido retorno da consciência ou crises com olhos per‑ sistentemente fechados diferem das crises epilépticas, em que os olhos são mantidos abertos, e, assim, podem indicar CNEP. O desencadeamento do evento por sugestão e história anterior de abuso sexual ou estresse pós-traumático pode auxiliar no
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diagnóstico diferencial. O padrão-ouro para a avaliação é o ví‑ deo-EEG, que pode evidenciar os eventos epilépticos e não epilépticos.4 O tratamento é muito difícil, envolvendo uma equipe multidisciplinar para atendimento da criança e da fa‑ mília. Avaliação funcional e emocional com protocolos clíni‑ cos específicos deve ser elaborada. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar sinais e sintomas que diferenciam crises não epilépticas de epilépticas. • Diferenciar as crises não epilépticas fisiológicas das crises psicogênicas. • Solicitar exames complementares específicos e indicar o tratamento adequado para cada enfermidade clínica identificada, evitando iatrogênese. • Diferenciar síncope de crise epiléptica generalizada do tipo atônica. • Pensar no diagnóstico diferencial dos distúrbios do sono (narcolepsia e cataplexia). • Identificar os movimentos involuntários benignos e aqueles associados à intoxicação medicamentosa. • Orientar e tranquilizar a família quanto ao prognóstico benigno das crises não epilépticas. • Avaliar fatores emocionais ambientais (familiar, escolar, comunitário) associados aos eventos psicogênicos. • Encaminhar os quadros de origem psicogênica para uma equipe multidisciplinar capacitada.
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CAPÍTULO 7
PARALISIA CEREBRAL – CONCEITO, ETIOLOGIA, CLASSIFICAÇÃO E TRATAMENTO Luiz Fernando Fonseca Annyfrancielle Abalém Tronconi Campos Reis Aline Zocrato Alves de Sousa Ana Carolina Cardoso Diniz
Conceito e etiologia A paralisia cerebral é uma encefalopatia crônica infantil caracteri‑ zada por déficit motor não progressivo iniciado antes dos 3 anos de idade. As agressões ao cérebro em desenvolvimento acarre‑ tam distúrbios de motricidade, tônus e postura. A capacidade cognitiva pode estar preservada ou ocorrer déficit associado.1
causa de paralisia cerebral, em nosso meio, é a asfixia neona‑ tal secundária ao trabalho de parto prolongado.4 As asfixias neonatais provocam um quadro de hipóxia e is‑ quemia com lesões graves no sistema nervoso central (SNC) denominado encefalomalacia multicística. A manifestação clínica depende da extensão e da área afetada (Figura 3).
Incidência A incidência de paralisia cerebral, ou encefalopatia crônica não progressiva, em recém-nascidos (RN) a termo, nos países de‑ senvolvidos, é de 2,5 crianças para cada 1.000 nascidos vivos.2 Nos países em desenvolvimento, a incidência estimada é de 7 para cada 1.000 nascidos vivos.3 Esses dados refletem a quali‑ dade da assistência médica à gestante e aos RN nesses países. Etiologia Causas pré-natais Corioamnionite: a infecção da membrana corioamniótica é um fator de risco para ruptura prematura de membrana e sep‑ se neonatal precoce. Deve ser feito seguimento do RN de alto risco para diagnóstico precoce de paralisia cerebral. Infecções intrauterinas (TORCHS): as TORCHS são toxo‑ plasmose, rubéola, citomegalovírus, herpes vírus e sífilis. A via de contaminação pode ser ascendente ou transplacentária. O acometimento e o prognóstico dependem da idade gestacio‑ nal no momento da infecção e do tropismo do vírus para de‑ terminados órgãos (Figura 1). Distúrbios do desenvolvimento cortical: os avanços na neu‑ roimagem permitiram o diagnóstico de distúrbios da fase de neurulação primária e secundária (disrafismos espinais ou cra‑ nianos) ou de outras fases do desenvolvimento cortical, como na migração neuronal (heterotopias, paquigirias) subdiagnos‑ ticados antes da ressonância magnética (RM) (Figura 2). Causas perinatais Correspondem a 30% dos casos de paralisia cerebral. Desta‑ cam-se as complicações durante o parto (tocotraumatismo, sangramento e hipóxia), prematuridade e icterícia. A principal
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Figura 1 Tomografia computadorizada (TC). (A) Corte axial: calcificações periventriculares sugestivas de citomegalovírus. (B) Corte axial: calcificações difusas no córtex cerebral sugestivas de toxoplasmose congênita. Fonte: Hospital João Paulo II – FHEMIG.
Figura 2 Ressonância magnética encefálica intraútero. Esquizencefalia de lábios abertos à esquerda, corte sagital.
Fonte: Imagem cedida pela dra. Lara A. Brandão, do Hospital Samaritano, Rio de Janeiro, RJ.
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Figura 3 TC de crânio. (A) Corte axial sem alterações. (B) Corte axial com apagamento de sulcos e giros, colabamento bilateral dos ventrículos, compatível com edema cerebral difuso. (C) Corte axial: ventrículos dilatados, fissuras inter ‑hemisféricas alargadas, hipodensidade simétrica frontoparietal, compatível com encefalomalacia multicística. Fonte: Hospital João Paulo II – FHEMIG.
A prematuridade é um fator de risco para a encefalopatia crônica não progressiva. A leucomalacia periventricular é uma das intercorrências mais comuns no prematuro. É secundária à hipotensão sistêmica com redução do fluxo sanguíneo, is‑ quemia e necrose.5 Manifesta-se, clinicamente, como parali‑ sia cerebral diplégica com maior comprometimento dos mem‑ bros inferiores, podendo acometer também os membros superiores. A incidência de paralisia cerebral em prematuros é 25 a 31 vezes maior do que em RN a termo.6 A ultrassonografia transfontanela é o exame de escolha por causa do menor custo e da sensibilidade para detectar as le‑ sões. Os achados ecográficos aparecem 10 dias a 3 semanas após a lesão inicial. Dessa forma, a presença de leucomalacia periventricular nos primeiros dias de vida é um dado sugestivo de sofrimento fetal intraútero. A hemorragia peri/intraventricular (HPIV) é a principal for‑ ma de hemorragia intracraniana neonatal, ocorrendo principal‑ mente em RN prematuros, com idade gestacional inferior a 32 semanas. É secundária ao sangramento da matriz germinal su‑ bependimária com ou sem ruptura para dentro dos ventrículos. A ultrassonografia transfontanela é o método de escolha para acompanhamento de crianças com risco para HPIV. É indicado, rotineiramente, em todas as crianças com menos de 34 sema‑ nas de idade gestacional e repetido, semanalmente, em RN com diagnóstico de HPIV ou após intercorrências clínicas (Figura 4). A hiperbilirrubinemia, especialmente em prematuros, pode levar a uma impregnação de bilirrubina no SNC, princi‑ palmente em núcleos da base, áreas do córtex e tronco cere‑ bral. A impregnação é bilateral e simétrica, o que ocasiona a morte neuronal e sequelas neurológicas permanentes. As crises convulsivas, no período neonatal, são causas fre‑ quentes de paralisia cerebral. Causas pós-natais Correspondem a eventos que ocorrem após o nascimento e antes de 3 anos de vida. Representam 10% das causas de para‑ lisia cerebral:4,6 infecções do SNC, traumatismo cranioencefá‑ lico, neoplasia do SNC, doenças cerebrovasculares, como aci‑
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Figura 4 Ultrassonografia transfontanela com hemorragia intraventricular grau III. Fonte: Hospital João Paulo II – FHEMIG.
dente vascular encefálico (AVE), aneurisma e malformações arteriovenosas. Classificação As paralisias cerebrais classificam-se de acordo com a localiza‑ ção e o comprometimento motor decorrente da lesão encefálica. Fazer essa classificação é de extrema importância para a condução e a definição das estratégias terapêuticas e das tera‑ pias de reabilitação. Paralisia cerebral espástica É a forma mais frequente de paralisia cerebral. Divide-se em paralisia cerebral quadriplégica, hemiplégica e diplégica, de acordo com os achados no exame físico.6 É decorrente da lesão no neurônio motor superior do trato piramidal, produzindo um quadro clínico caracterizado por espasticidade, hiper-reflexia, clônus, reflexo cutâneo plantar em extensão, lentificação de movimentos, atrofia muscular, contratura e dor.
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A espasticidade é definida pelo aumento da resistência muscular ao alongamento passivo. Durante o exame físico, é importante lembrar que a espasticidade predomina em certos grupos musculares (grupos flexores dos membros superiores e grupos extensores dos membros inferiores). A resistência à movimentação passiva cede após algum esforço (lembrando a abertura de um canivete), permitindo o movimento. Ao térmi‑ no da manobra, o segmento examinado retorna espontanea‑ mente à posição inicial. A escala de Ashworth (Tabela 1) pode ser usada para avaliar grau de espasticidade, sendo importante para avaliar a evolu‑ ção e a resposta dos pacientes aos tratamentos propostos. Tabela 1 Escala de Ashworth 0 – Ausência de tônus -1 – Leve aumento do tônus. Mínima resistência à extensão máxima em movimento passivo +1 – Leve aumento do tônus. Discreta resistência persiste em menos da metade do movimento passivo 2 – Aumento nítido do tônus, mas membro movido facilmente 3 – Aumento considerável do tônus – dificuldade de movimentação passiva 4 – Membro rígido na extensão e na flexão
Paralisia cerebral espástica quadriplégica A paralisia cerebral espástica quadriplégica é a forma mais gra‑ ve de paralisia cerebral espástica, com acometimento signifi‑ cativo dos quatro membros. Ocorre aumento do tônus da musculatura flexora dos membros superiores e extensora e adutora dos membros inferiores. As alterações motoras po‑ dem ser assimétricas nos quadros de dupla hemiparesia.6 1. Incidência: 9 a 43% dos casos.6 2. Etiologia: fatores pré, peri ou pós-natais que cursam com aco‑ metimento bilateral extenso (simétrico ou assimétrico) do encéfalo. 3. Clínica: habitualmente o tônus axial cervical encontra-se di‑ minuído. Em casos mais graves, a criança assume postura de descerebração e tendência a opistótono. Pode ocorrer altera‑ ção da deglutição com incoordenação dos músculos orofarín‑ geos e pneumonias aspirativas. Ao exame físico, observam-se hiper-reflexia, clônus e reflexo cutâneo plantar em extensão. Pode ocorrer persistência dos reflexos primitivos em crianças pequenas. O comprometimen‑ to global da musculatura leva a uma dificuldade da marcha. A incidência de epilepsia é elevada, assim como déficits au‑ ditivos, visuais, distúrbios do sono e irritabilidade. O plano de tratamento interdisciplinar individual deve ser instituído precocemente, priorizando as necessidades de cada paciente. Paralisia cerebral espástica hemiplégica A paralisia cerebral espástica hemiplégica caracteriza-se por déficit motor e espasticidade unilaterais. 1. Incidência: 25 a 40% dos casos de paralisia cerebral.6
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2. Etiologia: insultos pré-natais em 70 a 90% dos casos.6 3. Clínica: a percepção do déficit motor pode se tornar evidente
apenas com o desenvolvimento, dificultando o diagnóstico precoce. No 4º mês, observa-se preferência unilateral para o alcance de objetos e a mão mais fechada no membro acometi‑ do. Ao início da deambulação, torna-se mais nítido o acome‑ timento do membro inferior.
A incidência de crise convulsiva é elevada e, geralmente, asso‑ ciada a déficit cognitivo.6 Paralisia cerebral espástica diplégica Caracteriza-se pelo comprometimento bilateral (frequente‑ mente dos quatro membros), com predomínio dos membros inferiores. 1. Incidência: 10 a 45% dos casos.6 2. Etiologia: a prematuridade é a principal causa de paralisia ce‑ rebral espástica diplégica. A frequência e o déficit motor são inversamente proporcionais à idade gestacional. As lesões mais frequentes são leucomalacia periventricular e infartos venosos hemorrágicos. 3. Clínica: as manifestações clínicas tornam-se mais evidentes no 2º semestre. Em virtude da hipertonia dos membros infe‑ riores, a criança apresenta dificuldade para sentar sem apoio, deambular e manter-se em posição ortostática. Observa-se uma tendência a andar na ponta dos pés. Nos casos mais gra‑ ves, ocorre também comprometimento dos músculos aduto‑ res, causando uma postura em tesoura. As alterações motoras podem ser assimétricas, e alguns pre‑ maturos podem apresentar acometimento concomitante dos membros superiores. Em relação às outras formas de paralisia cerebral, as crises convulsivas são menos frequentes e apresentam melhor res‑ posta terapêutica. Assim, essas crianças, em geral, apresen‑ tam menor comprometimento cognitivo. Paralisia cerebral discinética Caracteriza-se por um déficit na coordenação motora e altera‑ ção na regulação do tônus muscular. Assim, os indivíduos apresentam movimentos involuntários e posturas anormais. 1. Incidência: 8 a 15% dos casos de paralisia cerebral.6 2. Etiologia: associa-se com fatores perinatais, sendo as princi‑ pais etiologias a encefalopatia bilirrubínica e a encefalopatia hipóxico-isquêmica. 3. Clínica: por causa da lesão dos núcleos da base, os indivíduos apresentam comprometimento na programação e na execu‑ ção de movimentos voluntários, na coordenação de movi‑ mentos automáticos e na manutenção da postura. A paralisia cerebral discinética divide-se em duas formas: co‑ reoatetósica e distônica. Forma coreoatetósica Caracteriza-se por movimentos atetósicos (lentos, suaves e distais) e coreicos (rápidos, amplos e proximais) que desapa‑
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recem durante o sono e intensificam-se com a irritabilidade. Os movimentos tendem a ser simétricos, acometem membros e musculatura facial. É a forma típica dos pacientes com se‑ quela neurológica de kernicterus. A inteligência é pouco acometida, porém, a avaliação cog‑ nitiva é dificultada pelas limitações de articulação da fala e motoras. Além disso, é frequente o déficit auditivo secundário à lesão do núcleo ou do nervo vestíbulo coclear. Forma distônica A forma distônica é menos frequente. Inicialmente, os lacten‑ tes afetados são hipotônicos e, em geral, a manifestação clíni‑ ca ocorre entre 6 meses e 2 anos.6 A criança assume posturas bizarras decorrentes da contração sustentada da musculatura do tronco e dos membros. A principal etiologia é a encefalopa‑ tia hipóxico-isquêmica. Paralisia cerebral atáxica 1. Incidência: pouco frequente, correspondendo a 4% dos ca‑ sos.6 2. Etiologia: as principais etiologias são fatores pré-natais e ge‑ néticos relacionados a malformações do sistema nervoso. 3. Clínica: ataxia de tronco, dismetria e incoordenação de tronco são as manifestações mais precoces, entretanto, podem não ser evidentes ao exame físico no 1º ano de vida. Ao exame físi‑ co, observa-se hipotonia, nistagmo, reflexos tendinosos dimi‑ nuídos, marcha atáxica, base alargada e quedas frequentes. O comprometimento intelectual é frequente; porém, leve. Paralisia cerebral hipotônica Caracteriza-se por hipotonia que persiste após o 2º ano de vida, não associada à lesão primária muscular ou lesão do neu‑ rônio motor inferior. 1. Incidência: 1% das paralisias cerebrais.6,7 2. Etiologia: heterogênea, como síndrome hipóxico-isquêmica. 3. Clínica: os pacientes apresentam atraso importante do desen‑ volvimento e da motricidade. A maioria não fica na posição ortostática e não deambula, sendo o prognóstico reservado a resposta às terapias de reabilitação. Paralisia cerebral mista Caracteriza-se por uma apresentação clínica, variando sem predomínio de nenhuma das outras formas de paralisia cere‑ bral. A incidência varia entre 10 e 15%.6,7 Manifestações epilépticas na paralisia cerebral Uma importante função do neurologista infantil ao acompa‑ nhar uma criança com paralisia cerebral é o controle das crises convulsivas (quando presentes), pois este é um fator que pre‑ dispõe à piora cognitiva do paciente. As manifestações epilépticas ocorrem em 48,9% das crian‑ ças portadoras de paralisia cerebral, sendo que, na população geral, o risco é de 0,5%.8,9 Nessas crianças, as manifestações epilépticas geralmente começam no 1º ano de vida e apresen‑ tam íntima correlação com a região cerebral lesada.
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A associação com convulsões é mais frequente na forma quadriplégica espástica (65%),6 por se tratar da forma mais gra‑ ve de paralisia cerebral. Normalmente, encontra-se associada com alterações significativas na neuroimagem e EEG, e podem necessitar de politerapia para controle adequado das crises. A criança com paralisia cerebral hemiplégica normalmente apresenta crises focais no mesmo dimídio acometido, corres‑ pondendo ao lado contralateral à lesão cerebral. Essas crises podem se generalizar. A prevalência de epilepsia nesse grupo é 34 a 60%. Por outro lado, crianças portadoras de paralisia cere‑ bral discinética e diplégica raramente apresentam convulsões.6 Vale ressaltar a importância de se tratar as crises de forma precisa. Recém-nascidos A paquigiria e a hemimegalencefalia são exemplos de distúr‑ bios do desenvolvimento cortical. As convulsões causadas por essas alterações estruturais iniciam-se precocemente e, em sua maioria, não respondem ao tratamento medicamentoso. Em muitos casos, o tratamento cirúrgico é a única alternativa (Figura 5). No RN, a apresentação clínica da paralisia cerebral e das crises convulsivas às vezes é de difícil diagnóstico. O quadro pode se apresentar como crises eletrográficas sem manifesta‑ ções motoras ou crises convulsivas sutis caracterizadas por movimentos orobucolinguais (mastigação, movimentos rítmi‑ cos da língua), desvios oculares, piscamentos palpebrais repe‑ titivos, olhar fixo, apneias. Além disso, as convulsões neona‑ tais podem ser clônicas, tônicas ou miôclonicas. A poligrafia neonatal é o exame mais indicado no período neonatal (Figura 6). Exames de imagem como ultrassonografia transfontanela, TC de encéfalo, RM de encéfalo intraútero e pós-natal e o Spect cerebral são importantes para o diagnóstico de paralisia cerebral, além de auxiliar na avaliação do prognóstico de epi‑ lepsia (Figura 7). É de extrema importância que a família seja bem orientada quanto à necessidade de acompanhamento neurológico e in‑ tervenção precoce por meio de uma equipe multidisciplinar no seguimento dos portadores de paralisia cerebral.
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Figura 5 RM de encéfalo. (A) Corte sagital em T1: lisencefalia. (B) Corte coronal com aumento hemisferial direito: hemimegalencefalia. Fonte: Hospital João Paulo II – FHEMIG.
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Hospital infantil João Paulo II (CGP) Sono espontâneo Fp1-Rf Fp2-Rf F3-Rf F4-Rf F7-Rf F8-Rf C3-Rf C4-Rf P3-Rf P4-Rf T3-Rf T4-Rf T5-Rf T6-Rf O1-Rf O2-Rf Fz-Rf Cz-Rf Pz-Rf Oz-Rf A1-Rf A2-Rf FOTO - Rf
Figura 6 Poligrafia neonatal: atividade irritativa hemisferial direita durante apneia do recém‑nascido.
Figura 8 Síndrome de West: EEG hipsarrítmico.
Fonte: Cortesia da Dra. Andrea Julião do Hospital Felício Rocho (Belo Horizonte, MG).
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Figura 7 Spect cerebral. (A) Normal. (B) Déficit perfusional grave envolvendo todo o hemisfério esquerdo (encefalite). Fonte: Hospital João Paulo II – FHEMIG.
Lactentes As etiologias mais frequentes de paralisia cerebral com crise convulsiva nos lactentes são: síndrome hipóxico‑isquêmica (SHI), hemorragia intracraniana, infecção do SNC, principal‑ mente bacterianas (ênfase à meningite pneumocócica), trau‑ matismo cranioencefálico (TCE) e distúrbios vasculares.6,8 São etiologias diversas com causa pré, peri e pós‑natal. Nessa faixa etária, um motivo de preocupação são as crises do tipo espasmos infantis (EI), que surgem geralmente entre o 3º e o 7º mês de vida. Clinicamente, caracterizam‑se por con‑ trações bruscas de um ou vários grupos musculares, podendo ser unilaterais ou bilaterais, simétricas ou não, durando de 1 a 10 segundos, predominantemente em salvas. Essas contra‑ ções musculares podem ser em extensão, flexão ou mistas (mais frequente). Existe certo predomínio nos períodos de so‑ nolência, principalmente ao despertar, podendo ser precedido ou seguido de choro.10 Nos espasmos infantis, o EEG tem um padrão típico deno‑ minado hipsarritmia, que, ao estar associado a não aquisição ou regressão do desenvolvimento neuropsicomotor, configura a síndrome de West (Figura 8).11 O diagnóstico deve ser preco‑ ce, o que não ocorre em alguns casos porque sua apresentação
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é confundida com sustos, cólicas do lactente ou até mesmo re‑ flexo de Moro. Todos os profissionais que lidam com crianças devem estar alertas a essas manifestações. Crianças maiores de 1 ano Diversas síndromes convulsivas podem ocorrer acima de 1 ano de idade, sendo que, no Serviço de Neurologia do Hospital In‑ fantil João Paulo II, a síndrome de Lennox‑Gastaut (SLG) é uma das mais frequentes.9 Essa síndrome é caracterizada por crises multiformes: tônica, mioclônica, tônico‑clônicas gene‑ ralizadas, parciais, ausência atípicas e crises de queda súbita ao solo (drop-attacks). O EEG mostra complexo espícula onda‑ ‑lenta generalizados menor que 2,5 Hz (Figura 9).11 O paciente geralmente apresenta atraso no desenvolvimento neuropsico‑ motor. No caso de crises convulsivas de difícil controle, deve‑se ter bom senso e sempre tentar a associação de anticonvulsivantes.
Figura 9 EEG ictal: presença de pontas, polipontas generalizadas, com atividade epileptiforme difusa, compatível com síndrome de Lennox‑Gastaut.
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Paralisia Cerebral – Conceito, Etiologia, Classificação e Tratamento •
Tratamento Dieta cetogênica A dieta cetogênica surgiu a partir da observação de que as cri‑ ses convulsivas cessavam momentaneamente com o jejum prolongado, descrito desde a época de Hipócrates. É baseada em grande quantidade de gordura e pequena quantidade de carboidratos e proteínas. A energia deriva da oxidação dos áci‑ dos graxos, na mitocôndria, resultando em corpos cetônicos, que são usados no metabolismo cerebral em vez da glicose. Existem várias hipóteses para o seu efeito, porém ainda não se sabe ao certo o seu verdadeiro mecanismo de ação.12 Essa die‑ ta é individual, calculada de acordo com peso, estatura e ida‑ de; 90 a 95% das calorias provêm de lipídios.6,9 A dieta cetogênica é indicada principalmente para epilepsia refratária ao tratamento convencional. Não deve ser usada em crianças com mitocondriopatias, cardiopatias, hepatopatias, nefropatias, imunodeficiências e hipercolesterolemia prévia. É necessária uma equipe multidisciplinar com neuropedia‑ tra, nutricionista, pediatra e assistente social para o seu início e acompanhamento. Aproximadamente 50 a 60% das crian‑ ças em uso da dieta cetogênica têm uma diminuição de pelo menos 50% das crises convulsivas.12 Além disso, é relatada melhora da atenção, cognição e sono dos pacientes. Dessa forma, é um tratamento eficaz e seguro para epilepsias refratárias. Terapia medicamentosa para o tratamento da espasticidade Os benzodiazepínicos e o baclofeno por via oral são alternati‑ vas medicamentosas disponíveis para o tratamento da espas‑ ticidade nos pacientes com paralisia cerebral. O tratamento deve ser iniciado com doses baixas e ajuste gradual. Os benzodiazepínicos são utilizados como droga antiespás‑ tica com boa resposta na prática clínica. Todavia, deve-se estar atento à possibilidade de um efeito sedativo importante, que inviabiliza a utilização do remédio. O baclofeno é utilizado na dose de 20 a 80 mg/dia, dividi‑ dos em 3 ou 4 doses/dia. Após 8 semanas do início da medi‑ cação, devem-se avaliar a resposta ao tratamento e a continui‑ dade dele (0,5 a 2 mg kg/dia). O uso do baclofeno intratectal é um avanço no tratamento da espasticidade na paralisia cerebral. Ele é indicado em pa‑ cientes com diparesia ou quadriplegia espástica importante para facilitar cuidados e manuseios. É usado também nas dis‑ tonias refratárias a medicamentos.6 O baclofeno intratectal diminui significativamente a espas‑ ticidade e a distonia, com melhora nos cuidados diários. Con‑ tudo, no nosso meio, ainda é pouco usado em razão do custo muito elevado.6 Toxina botulínica A aplicação de toxina botulínica é uma técnica muito utilizada para o controle da espasticidade nos pacientes com paralisia cerebral. Os principais objetivos do tratamento são: prevenir contraturas e deformidades; prevenir e corrigir padrões pato‑ lógicos de movimentos; melhorar o movimento, a postura e as
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condições de marcha; prevenir o aparecimento de dor; possi‑ bilitar o uso de órtese. As indicações do tratamento com toxina botulínica são: hi‑ pertonia espástica dos grupos musculares que interferem na vida diária; músculos antagonistas que interferem na amplitu‑ de de movimentos das atividades funcionais; falha dos méto‑ dos conservadores para o controle da espasticidade. Recomenda-se que o tratamento seja precoce. Dessa forma, espera-se prevenir a incidência de contraturas, deformidades e adiar ou evitar a necessidade de intervenções cirúrgicas. Rizotomia dorsal seletiva A rizotomia dorsal seletiva (RDS) é a abolição dos reflexos eferen‑ tes, por intermédio da interrupção de 30% das vias sensitivas nas raízes lombrossacrais, que inibe a liberação dos neurotransmisso‑ res excitatórios aferentes.6 Está indicada em crianças com diple‑ gia espástica com a marcha prejudicada, pois é um procedimento mais efetivo em membros inferiores. Nesses pacientes, há um ga‑ nho funcional importante, porque, além de melhorar o quadro, preserva a força muscular e a sensibilidade. É indicada também em casos de crianças sem expectativa de ganho funcional, com uma hipertonicidade que prejudica a qualidade de vida.13,14 Esse procedimento proporciona melhora da postura e das condições de higiene e cuidados; diminui o gasto calórico e a dor; retarda e previne o aparecimento de contraturas e defor‑ midades; melhora terapias e cuidados; e reduz o número de procedimentos ortopédicos. Ortopedia O objetivo da avaliação ortopédica na criança com paralisia ce‑ rebral é investigar o aparelho locomotor e procurar por altera‑ ções que interfiram na sua qualidade de vida. A gravidade das deformidades é inversamente proporcional à capacidade res‑ tante e ao potencial de reabilitação. O tratamento ortopédico da paralisia cerebral pode ser divi‑ dido em dois grandes grupos: tratamento conservador e cirúr‑ gico. O ortopedista pediátrico participa em várias etapas do tratamento conservador. Ele atua mediante intervenções pe‑ riódicas, avalia a função e a evolução do tratamento proposto; faz prevenção, controle e correção de deformidades. É sabido que as deformidades aparecem com mais frequência durante as fases de crescimento rápido da criança e, por esse motivo, elas devem ser reavaliadas de forma regular. O tratamento cirúrgico é reservado para aquelas crianças com deformidades estabelecidas ou em fase de instalação que não sejam contidas pelo tratamento conservador. Não existe urgência ou emergência nas correções cirúrgicas, exceto na‑ queles casos de evolução. Reabilitação Fisioterapia A fisioterapia avalia a criança com paralisia cerebral quanto à sua capacidade de realização das atividades diárias, participa‑ ção social e seu déficit motor. O tratamento tem o objetivo de otimizar o estado de saúde e a satisfação da criança, melhorando sua funcionalidade a partir de
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trabalhos que melhoram a motricidade. O fisioterapeuta tem como foco reduzir as alterações primárias e prevenir alterações se‑ cundárias do sistema musculoesquelético, minimizando, assim, as disfunções. Além disso, estimula o desenvolvimento neuropsi‑ comotor e melhora a qualidade da postura e do movimento.15 Fonoaudiologia A fonoaudiologia trabalha com a criança portadora de parali‑ sia cerebral desde seu nascimento, pois age no processo de sucção nutritiva, que é um dos primeiros sinais de organiza‑ ção do SNC. O fonoaudiólogo avalia e trabalha com a funcionalidade e o desenvolvimento, aplicando diferentes técnicas para a facili‑ tação da fala, que são realizadas dentro de um contexto comu‑ nicativo real. Há ainda como objetivos: inibir padrões anor‑ mais de emissão, estabelecer uma melhor coordenação no processo da fala, favorecer a percepção da relação entre o ar e som e melhorar a projeção vocal.6 Equoterapia A equoterapia é a utilização do cavalo como recurso terapêuti‑ co, no tratamento de pacientes portadores de disfunções neu‑ ropsicomotoras. O principal objetivo é melhorar a disfunção do controle do tronco e da pelve, normalmente associado ao tratamento fisioterápico. Ela é indicada para distúrbios do movimento como hipoto‑ nia, hipertonia, ataxia e atetose, independentemente do grau de acometimento.
Comunicação suplementar e alternativa A comunicação suplementar e alternativa desenvolve possibi‑ lidades de comunicação nas crianças com paralisia cerebral e fala disfuncional. Sistemas de comunicação suplementar e/ou alternativos são agrupamentos integrados que operacionalizam a comunica‑ ção desses pacientes. É de grande importância destacar que es‑ ses métodos não são formas de alfabetização, não inibem a fala e não são dependentes de tecnologias, como o c omputador.16 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Classificar os tipos de paralisia cerebral. • Relacionar as etiologias com as manifestações clínicas. • Identificar as manifestações epilépticas. • Conhecer os tratamentos utilizados nas epilepsias de crianças com paralisia cerebral. • Conhecer tratamentos e terapias de reabilitação para as sequelas motoras e cognitivas dos pacientes com paralisia cerebral.
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3.
Musicoterapia A musicoterapia é a utilização da música ou seus elementos para promover comunicação, aprendizagem, expressão e or‑ ganização, para alcançar a necessidade física, cognitiva, emo‑ cional e social dos pacientes.
4.
Inclusão e escolaridade A inclusão na família nas atividades sociais e na escola é extre‑ mamente importante para o desenvolvimento da criança com paralisia cerebral, cabendo ao médico e aos outros profissio‑ nais de saúde reforçar essa importância. As classes devem ser pequenas ou deve haver monitores auxiliares para ajudar. Essas crianças necessitam de uma aten‑ ção especial, pois devem sempre acompanhar sua turma, para ter uma boa convivência social, mesmo que muitas vezes não consigam realizar as mesmas atividades. Por isso, necessitam de atividades diferenciadas e individualizadas.
7.
Estimulação visual Estimulação visual é um processo que procura resgatar o po‑ tencial visual da criança, principalmente para melhorar as condições de relação com o meio, o que ajudará no desenvol‑ vimento intelectual da criança. Para que a estimulação visual seja iniciada, a criança deve ser avaliada pelo oftalmologista para quantificar a capacidade visual com testes específicos, como teste pupilar, nistagmo optocinético, avaliação da acuidade visual e campo visual.
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CAPÍTULO 8
DOENÇAS DESMIELINIZANTES DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL (SNC) Christovão de Castro Xavier André Vinícius Soares Barbosa
Polirradiculoneurite aguda (síndrome de Guillain-Barré) A síndrome de Guillain-Barré (SGB) é uma polirradiculopatia inflamatória aguda que se manifesta precocemente por uma paralisia muscular flácida, geralmente simétrica, ascendente, com hipo ou arreflexia tendinosa, uma dissociação proteinoci‑ tológica no líquido cefalorraquidiano (LCR) e com característi‑ cas progressivas durante 4 semanas, sem presença de um marcador biológico. Nas apresentações clínicas da SGB, existem quatro subti‑ pos que se diferenciam por suas manifestações: • polirradiculopatia aguda inflamatória desmielinizante (PAID); • neuropatia aguda motora axonal (NAMA); • neuropatia aguda motora axonal e sensitiva (NAMAS); • síndrome de Miller Fischer. A forma de apresentação mais comum e que comumente cur‑ sa com melhor prognóstico é a PAID.1 Etiopatologia A SGB é uma doença pós-infecciosa. Cerca de dois terços dos pacientes relatam uma infecção aguda prévia, sendo as mais comuns as do trato respiratório ou gastroentérico, com um in‑ tervalo entre o início dos sintomas e a infecção prodrômica de 1 a 3 semanas, mas, em muitos dos casos, o agente desenca‑ deador da doença permanece desconhecido.1 Os agentes mais comuns são: Campylobacter jejuni, citome‑ galovírus, Epstein-Barr, Mycoplasma pneumoniae e Coxsackie vírus. Com uma menor frequência, também contribuem os ví‑ rus da hepatite A e B, influenza A e B, varicela-zóster, echoví‑ rus e herpes simples. Diversos relatos de casos na literatura indicam uma vacina‑ ção prévia como o fator desencadeante da SGB, dentre elas as vacinas anti-influenza A e antirrábica.1
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Clínica Dois terços dos pacientes têm sintomas de uma infecção pré‑ via 3 semanas antes do início das manifestações clínicas da SGB. A progressão ocorre entre 1 e 3 semanas, quando aproxi‑ madamente 20% dos pacientes necessitam de ventilação me‑ cânica, 40% ficam retidos no leito, 20% andam apenas com assistência, 10% podem andar, mas não correr e 10% têm ape‑ nas sintomas leves. Em seguida, passam por uma fase de esta‑ bilização e melhoram lentamente.1 A paralisia geralmente co‑ meça nas extremidades inferiores e depois ascende. O exame inicial mostra uma fraqueza muscular simétrica. Entretanto, diferenças mínimas entre os lados podem ser no‑ tadas. Na maioria dos pacientes, a fraqueza tem predomínio distal, e, em uma pequena porcentagem dos pacientes, a mus‑ culatura proximal é mais acometida. Os reflexos tendinosos estão habitualmente reduzidos ou ausentes, eventualmente podem estar presentes no início do quadro.1 Paralisia de nervos cranianos pode aparecer em qualquer fase da doença. A paralisia do nervo facial é a mais comum, se‑ guida do nervo acessório. Também relativamente frequentes são as dos nervos glossofaríngeo e vago, causando distúrbios de deglutição e risco de aspiração pulmonar.1 Dor e/ou parestesia são sintomas bastante presentes. A dor pode ser muscular ou secundária às inflamações das raí‑ zes nervosas, comprometendo os membros inferiores, flancos e costas. A dor é mais intensa no início do quadro, e tem uma melhora progressiva. Alterações da sensibilidade vibratória, posicional, dolorosa ou tátil também podem estar presentes, assim como os sinais de irritação meníngea.2 Em casos graves, a doença progride afetando músculos res‑ piratórios, movimentos oculares e função autonômica. A pa‑ ralisia dos músculos respiratórios pode afetar a capacidade vi‑ tal levando à retenção de CO2. A presença de distúrbios autonômicos pode produzir sudorese profusa, hipertensão, hipotensão, constipação, náuseas, retenção urinária, hipoten‑ são postural e arritmias cardíacas que podem ser fatais.2
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Diagnóstico cular grave podem não apresentar os sintomas clássicos de es‑ Não existe um exame complementar classificado como pa‑ forço e aumento de frequência respiratória.1 drão-ouro para a definição do diagnóstico, o qual é realizado Os pacientes gravemente afetados quase sempre apresen‑ com os achados clínicos evidentes de fraqueza muscular pro‑ tam taquicardia sinusal e estão sob risco de desenvolverem ar‑ gressiva, simétrica, dos membros inferiores e superiores, de ritmias cardíacas graves. A monitoração eletrocardiográfica é início agudo, arreflexia tendinosa, principalmente patelar, às recomendada.1 vezes dor e disautonomias leves, sem a presença de febre e o A dor pode ser controlada com analgésicos comuns, anti‑ clássico quadro liquórico de dissociação proteinocitológica.3 -inflamatórios não hormonais (AINH), carbamazepina e gaba‑ As diversas formas de início dos sintomas e a existência de pentina. Entretanto, alguns pacientes podem necessitar do outras patologias com sintomatologias semelhantes dificul‑ uso de opioides. tam o diagnóstico.2 O uso da imunoglobulina endovenosa, na dose de 400 mg/ O exame de LCR demonstra pressão normal, baixa celulari‑ kg/dia por 5 dias ou 1 g/kg/dia por 2 dias, é uma das terapêu‑ dade e concentração proteica acima de 40 mg/L, a partir da 2ª ticas com boas evidências de resposta, quando utilizada na semana de doença. Na 1ª semana, o exame de LCR pode ser fase aguda. A sua indicação é bem estabelecida quando se normal.1 aplica a Escala de Hughes (Tabela 1) na avaliação do paciente, A eletroneuromiografia (ENMG) ajuda confirmar o diag‑ caso ele seja incapaz de andar por menos de 5 m com apoio nóstico em casos duvidosos, sendo importante para a classifi‑ (após nível 3 da escala).2 A velocidade de infusão deve ser len‑ cação dos subtipos da SGB, devendo ser preconizada sua reali‑ ta. Os efeitos colaterais podem incluir: mialgia, desconforto zação após 4 semanas de evolução. Os achados torácico, fadiga, febre, dor de cabeça, meningite asséptica, ec‑ neurofisiológicos são variáveis, dependendo do tempo de iní‑ zema nas mãos, reações anafiláticas, necrose tubular renal, in‑ cio e do subtipo da doença.3 farto cerebral e encefalopatia aguda, porém são raros e os si‑ A ressonância magnética (RM) mostra um espessamento nais e sintomas desaparecem após a retirada da medicação. intratecal das raízes dos nervos espinais e da cauda equina, Deve ser evitada ou usada com cautela em pacientes com pro‑ com vários graus de realce com gadolínio nas imagens em T1. blemas renais.1 Essa alteração não é específica da SGB e pode ser vista em A corticoterapia associada à imunoglobulina tem ainda in‑ neoplasias e outros processos inflamatórios, mas o realce ape‑ dicação controversa, com relatos de literatura mostrando al‑ nas das raízes anteriores é altamente sugestivo de SGB. A RM, guns benefícios abreviando a recuperação do déficit motor e quando solicitada, exclui outras possibilidades diagnósticas, reduzindo o tempo de internação em certos casos. O uso isola‑ como mielite transversa e doenças que causam compressão do do corticosteroide não é indicado.4 medular.1 Outra opção é a plasmaférese, com resposta semelhante à A etiologia da infecção prévia pode ser definida por meio de imunoglobulina, mas de maior complexidade para a execução, cultura de fezes para Campylobacter jejuni, sorologia para cito‑ embora tenha menor custo. O uso combinado desses dois tra‑ megalovírus, Epstein-Barr, varicela-zóster e Mycoplasma ou tamentos não mostrou maior eficácia.5 história de uma vacinação recente.1 Complicações Tratamento As principais complicações da SGB são infecciosas. As crian‑ Na fase aguda, os pacientes com SGB têm indicação de inter‑ ças estão expostas a um risco maior de contraírem pneumo‑ nação hospitalar para seguimento, pelo risco de progressão. nias, infecção urinária e septicemia. Os distúrbios de degluti‑ Cerca de 20% dos casos necessitam de centros de terapia in‑ ção predispõem a aspiração pulmonar. As alterações tensiva e suporte respiratório. respiratórias levam ao surgimento de atelectasias. Em razão A fisioterapia ajuda a evitar atelectasias, escaras de decúbi‑ da imobilidade, existe um risco aumentado de trombose ve‑ to e retração muscular e acelera a recuperação motora.2 nosa profunda. As sequelas em longo prazo incluem fraqueza A fonoaudiologia auxilia no diagnóstico dos distúrbios de persistente, retrações e deformidades ortopédicas.2 deglutição e previne aspiração pulmonar. Manter o paciente sempre muito bem hidratado e em bom estado nutricional é Tabela 1 Escala de graduação de comprometimento indispensável e, para isso, a nutrição enteral e, mais raramen‑ neurológico de Hughes te, a parenteral podem ser necessárias.2 0 – Paciente assintomático A retenção urinária é de ocorrência mais rara, necessitando 1 – Paciente capaz de correr do uso de sonda vesical. 2 – Paciente capaz de andar 5 m sem apoio; porém, incapaz de A monitoração respiratória pode ser feita apenas por obser‑ correr vação clínica; em casos mais graves, deve-se recorrer a avalia‑ 3 – Paciente capaz de andar 5 m com apoio ções laboratoriais e de espirometria. A insuficiência respirató‑ 4 – Paciente restrito ao leito ou à cadeira de rodas ria é mais provável quando a fraqueza atinge os membros 5 – Paciente necessita de ventilação assistida pelo menos uma superiores e principalmente em pacientes com acometimento parte do dia bulbar. A gasometria arterial pode demonstrar a retenção de 6 – Óbito CO2 secundária à hipoventilação. Crianças com fraqueza mus‑
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Doenças Desmielinizantes do sistema nervoso central (SNC) •
Prognóstico Cerca de 90 a 95% dos pacientes pediátricos apresentam recupe‑ ração completa ou apenas sintomas residuais sem prejuízo fun‑ cional em 1 ano. A mortalidade fica em torno de 6% dos casos.1 Encefalomielite disseminada aguda (ADEM) ADEM é uma doença desmielinizante do sistema nervoso cen‑ tral (SNC), polissintomática, normalmente monofásica, com sinais e sintomas neurológicos diversos, refletindo as áreas acometidas, comprometendo preferencialmente a substância branca e, mais raramente, a substância cinzenta subcortical e cortical, secundária a um processo inflamatório imunomodu‑ lado, após uma infecção sistêmica ou a vacinação e com ima‑ gens típicas na RM.1 Epidemiologia e etiologia A incidência da ADEM é muito variada na literatura, mas se‑ guramente é mais elevada do que a relatada, com um expressi‑ vo aumento no diagnóstico após a introdução da RM. A doen‑ ça comumente acomete crianças maiores de 2 anos, mas com vários casos já descritos no 1º ano de vida. É muito mais fre‑ quente nas crianças do que nos adultos e excepcionalmente descrita em idosos.1 É uma doença com distribuição sazonal e de franco predo‑ mínio no inverno, período em que prevalece uma maior inci‑ dência das infecções viróticas e bacterianas, sem grande dife‑ renciação na distribuição por sexo.1 As manifestações clínicas ocorrem com maior frequência entre 3 e 15 dias depois de uma infecção viral, principalmente sarampo, rubéola, caxumba, varicela-zóster, herpes simples, influenza ou após vacinas. A doença é também relatada após outras viroses e algumas infecções bacterianas como Streptococcus beta do grupo A, Clostridium tetani, Mycoplasma sp, Rickettsia sp e Leptospira interrogans.6 Quadro clínico Manifesta-se de forma aguda, podendo mais raramente ter apresentação subaguda. Sinais neurológicos multifocais com envolvimento cerebral, de tronco encefálico e medular costu‑ mam estar presentes, com largo espectro de variação, indo de formas subclínicas às fulminantes.1 Alterações do estado de consciência, sinais neurológicos focais, envolvimento de nervos cranianos, paresias com hipor‑ reflexias, retenção urinária, sinais compatíveis com neurite óptica, distúrbios de conduta e até mesmo arreflexia tendino‑ sa e sinais focais sugestivos de lesão expansiva cerebral têm sido descritos refletindo as áreas desmielinizadas no SNC.1 Pode se apresentar com um curso clínico monofásico com boa resposta ao tratamento e com rápida resolução. Cerca de 50% dos casos recuperam-se completamente. Nos restantes, as complicações neurológicas e sequelas são variáveis. A taxa de mortalidade global é próxima de 30%. São marcas eviden‑ tes de pior prognóstico quando se associam início hiperagudo, coma precoce e crises convulsivas complicadas.1 Nem sempre a ADEM manifesta-se como monofásica, po‑ dendo se apresentar de forma recorrente, caracterizada por
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surgimento de um novo evento clínico, preenchendo todos os critérios para o diagnóstico de ADEM, devendo ocorrer pelo menos 3 meses após o surto inicial da doença ou 4 semanas após completar a corticoterapia, sem novas lesões na RM e com a mesma sintomatologia clínica.1 Nas recidivas que ocorrem 3 meses após o surto inicial da doença ou 4 semanas após completar a corticoterapia, pode ocorrer comprometimento multifocal em novas áreas do SNC, incluindo encefalopatia e outros déficits neurológicos, confir‑ mados por novas lesões na RM, o que caracteriza a forma mul‑ tifásica, e não a forma recorrente. Essa situação dificulta mui‑ to o diagnóstico diferencial com a esclerose múltipla (EM) e a neuromielite óptica (NMO).7 As características das manifestações clínicas nos pacientes portadores de ADEM pós-infecciosa e pós-vacinal são seme‑ lhantes, exceto para o predomínio das manifestações de radi‑ culopatia evidenciada nas formas pós-vacina antirrábica.1 É importante ressaltar a relativa frequência do envolvimen‑ to dos nervos cranianos relacionados à movimentação ocular e à mímica facial, sobretudo o nervo óptico, cujo episódio de neurite ocorre de forma aguda ou subaguda, com comprome‑ timento da visão, diplopia, escotomas e dor à movimentação ocular. A neurite bilateral é mais frequente e, quando unilate‑ ral, aumenta a dificuldade para o diagnóstico diferencial com a EM e a NMO.8 Atenção especial deve ser dada às formas de apresentação atípica simulando, às vezes, um tumor cerebral, a panencefali‑ te esclerosante subaguda, a síndrome de Guillain-Barré e qua‑ dros agudos de psicose.1 Outra apresentação das encefalites pós-infecciosas é a leu‑ coencefalite hemorrágica aguda, também considerada uma variante da ADEM, com curso clínico de rápida evolução, qua‑ se sempre fatal, com sinais neurológicos focais bem evidentes, acompanhados de febre, confusão mental e coma. O exame do LCR é de aspecto xantocrômico em 20% dos casos, havendo pleiocitose com predomínio de polimorfonucleares, hiperpro‑ teinorraquia com glicorraquia normal. A tomografia computa‑ dorizada (TC) e a RM mostram áreas de alterações desmielini‑ zantes com sinais de processo hemorrágico associado.3 Diagnóstico Frequentemente, o quadro clínico é altamente sugestivo de ADEM, mas mesmo assim, para diagnóstico criterioso, utili‑ zam-se estudos eletrofisiológicos, estudos de neuroimagem, exame do LCR e, raramente, biópsia cerebral, tendo em vista a grande semelhança das manifestações clínicas encontradas nas encefalites viróticas.1 O eletroencefalograma (EEG) apresenta alterações inespe‑ cíficas, sendo o padrão anormal mais encontrado o de ativida‑ de difusa de ondas teta-delta de alta voltagem.1 O potencial evocado somatossensitivo mostra resposta anormal nos casos com comprometimento da medula espinal e o potencial evocado visual quando há envolvimento do ner‑ vo óptico.8 A TC ocasionalmente mostra áreas de hipodensidade na substância branca, mas de característica pouco específica e
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muitas vezes tardia, podendo, frequentemente, ser normal. A RM é muito mais sensível, mostrando aumento de sinal em T2 e Flair, acometendo a substância branca preferencialmente, mas podendo evidenciar comprometimento da substância cinzenta subcortical e cortical (Figuras 1 e 2). As lesões podem ser encontradas em gânglios de base, tálamo, tronco encefáli‑
Figura 1 RM de encéfalo, corte axial em Flair, mostrando lesões hiperintensas assimétricas acometendo substância branca bilateralmente. Fonte: Fonseca et al.1
co, cerebelo e medula espinal e mostram captação do contras‑ te paramagnético. Quando as lesões estão no córtex cerebral, são assimétricas, mas se acometem gânglios da base e tálamo, tendem a ser simétricas. O corpo caloso é quase sempre pre‑ servado, mas se nele houver lesões, não se pode excluir a pos‑ sibilidade de ADEM.9 Os achados liquóricos são inespecíficos, sendo os mais fre‑ quentes pleiocitose moderada com predomínio de mononu‑ cleares e hiperproteinorraquia também moderada; entretanto, em um terço dos casos, a celularidade é normal. Em cerca de 60% dos casos, tem-se a elevação da proteína mielínica básica. As pesquisas de bandas oligoclonais costumam ser negativas, mas podem estar presentes de 3 a 30% dos casos.1 Tratamento Até o presente momento, não existe um consenso na literatu‑ ra sobre o tratamento de escolha para os casos de ADEM. A maioria dos trabalhos relata a preferência para a corticotera‑ pia, variando sua metodologia de acordo com a gravidade do paciente. 1. Prednisona ou prednisolona, 2 mg/kg/dia, via oral, nos casos com sintomas mais leves, com redução gradual por um perío‑ do de 6 semanas.10 2. Dexametasona 1 mg/kg/dia, via endovenosa, dividido em 4 doses, nos casos de comprometimento moderado, por 7 dias, seguida de prednisona oral por 6 semanas.10 3. Pulsoterapia com metilprednisolona 30 mg/kg/dia, dose máxima de 1 g, associada a imunoglobulina humana 400 mg/ kg/dia, por 5 dias, seguida de prednisona oral por 6 semanas, nos quadro graves e nos casos com comprometimento de nú‑ cleos da base, tálamo e tronco cerebral.1 Havendo falha da corticoterapia, pode-se recorrer a outras modalidades terapêuticas: plasmaférese, azatioprina (1 a 3 mg/kg/dia, via oral, nas formas corticodependentes) ou ci‑ closporinas.1 Prognóstico Existe uma relação direta do prognóstico com a gravidade do quadro clínico da fase aguda e, principalmente, da área aco‑ metida no SNC. Déficits neurológicos permanentes, distúr‑ bios de aprendizagem e de comportamento e epilepsias são relatados em 10 a 20% dos casos. A taxa de mortalidade referida na literatura oscila entre 15 e 20% dos casos. Os pacientes com pior prognóstico são os que apresentam lesões nos núcleos da base, tálamo e tronco cerebral.1
Figura 2 RM de encéfalo, corte axial em Flair, mostrando lesões hiperintensas simétricas mesencefálicas. Fonte: Fonseca et al.1
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Esclerose múltipla Apesar de ser descrita como uma doença de adultos jovens, cada vez mais são descritos casos de esclerose múltipla (EM) na faixa etária pediátrica, graças aos avanços nos métodos de diagnósticos e à terapêutica modificadora do curso clínico dessa patologia. Trata-se de um processo de etiologia autoimune, com ca‑ racterística de recorrência no tempo e no espaço.1
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Doenças Desmielinizantes do sistema nervoso central (SNC) •
Epidemiologia e etiologia Acomete menores de 16 anos em aproximadamente 5% dos casos, e 1% antes dos 10 anos de idade, sendo que as meninas são mais afetadas que os meninos, na proporção de 2:8.1 A EM está associada a distúrbio do sistema imunológico, que acarreta lesões das fibras mielínicas do SNC. Há perda de mielina, com infiltrado de linfócitos e alguns macrófagos na substância branca, com preservação dos axônios e destruição dos oligodendrócitos.1 Quadro clínico Apresenta episódios de surtos recorrentes, agudos ou subagu‑ dos, de disfunção neurológica que acometem distintos siste‑ mas e estruturas do SNC.1 Geralmente, os principais achados são distúrbios visuais, como escotoma ou amaurose, ataxia cerebelar, vertigens, pa‑ resias ou mielopatias diversas. O intervalo entre os surtos não obedece nenhum padrão ou periodicidade. Nos primeiros surtos, há uma remissão quase completa dos sintomas e, com o avançar do tempo, as remis‑ sões vão se tornando menos completas, instalando-se seque‑ las no SNC de modo progressivo.1 O conceito de surto é definido como sinais e sintomas que ocorrem com duração superior a 24 horas.1 Diagnóstico Realizado pela clínica dos pacientes, é baseado no histórico de surtos de caráter recorrente no tempo e no espaço. Após um primeiro surto, não é possível estabelecer o diag‑ nóstico, mas crianças que apresentem papilite ou neurite re‑ trobulbar, ataxia aguda, parestesias e mielite transversa sem associação a agente infeccioso devem ser seguidas de perto e, se possível, estender a propedêutica.8 No estudo do LCR, há um aumento da gamaglobulina (IgG) com presença de bandas oligoclonais à eletroforese, com celu‑ laridade não excedendo 50 células/mL. O potencial evocado visual (PEV) tem sensibilidade baixa, mas pode mostrar características muito sugestivas com pa‑ drão desmielinizante (diminuição da velocidade com preser‑ vação da forma da onda).1 A RM de encéfalo revolucionou o estudo das doenças des‑ mielinizantes, principalmente nas incidências T2 e Flair, sen‑ do fundamental para documentar a progressão no espaço dos surtos. Dentre os achados mais frequentes, vale citar os 4 mais comuns, sendo necessária a presença de pelo menos 3 para o diagnóstico (critérios de McDonald): • uma lesão com impregnação pelo gadolínio ou 9 lesões com hipersinal em T2; • mínimo de uma lesão infratentorial; • mínimo de uma lesão justacortical; • mínimo de 3 lesões periventriculares.8 Diagnóstico diferencial Dentre os principais diagnósticos diferenciais, destacam-se: ADEM, vasculites, neuromielite óptica (Devic), encefalite her‑
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pética, leucodistrofias, CADASIL, doença de Fabry, gliomas e linfomas.1 Tratamento Nos quadros agudos de desmielinização, inicialmente usa-se pulsoterapia com metilprednisolona na posologia de 30 mg/ kg, no máximo 1 g, por 5 dias, mas pode-se estender a 7 dias quando não há melhora dos sintomas. Não há indicação de tratar surtos que não limitam as atividades. Se não houver me‑ lhora dos sintomas, deve-se usar a plasmaférese ou a imuno‑ globulina humana na posologia 2 g/kg durante 2 a 5 dias. Na literatura, não há evidência de um desses tratamentos ser su‑ perior ao outro. A imunomodulação com interferons é indicada em grupos restritos de crianças com recorrências frequentes, com objeti‑ vo de reduzir o número de surtos, o número de sequelas e a atrofia cerebral observada ao longo do tempo.8 Neuromielite óptica Classicamente conhecida como doença de Devic, foi conside‑ rada há alguns anos como uma variante clínica da EM. É uma entidade rara, mas já descrita em criança a partir dos 5 anos de idade e também com maior prevalência em meninas.1 Fisiopatologia Trata-se de uma doença autoimune, pela produção do anticor‑ po chamado NMO-IgG (antiaquaporina 4), cujo alvo é a pro‑ teína aquaporina 4, um canal de água localizado nos astrócitos ao redor dos vasos do SNC, sendo uma reação mediada por linfócitos B.1 Quadro clínico e diagnóstico O quadro clínico mais comum se dá pela forma de mielite transversa, geralmente extensa, acometendo mais de 2 níveis medulares de forma contínua, concomitante, sucedido ou an‑ tecedido, em dias ou semanas, por neurite óptica, que pode le‑ var a amaurose. Nos casos em que há acometimento do assoa‑ lho do IV ventrículo, ocorrem vômitos incoercíveis, sendo este um sintoma sempre a se valorizar.1 O quadro tem evolução variável, podendo ocorrer em sur‑ tos ou de forma rapidamente progressiva, sendo mais comum acometer vias ópticas ou medula espinal; ao longo do tempo, o quadro leva os pacientes a incapacidades permanentes.1 A RM deve ter aspecto desmielinizante na medula, com predomínio em região central e estendendo por, no mínimo, 3 segmentos medulares. Na região supratentorial, pode ter le‑ são na substância branca dos hemisférios, geralmente com pouca sintomatologia se comparado à EM. No LCR, há pleocitose com predomínio de neutrófilos e hi‑ perproteinorraquia. No soro, o anticorpo anti-NMO pode estar positivo em até 90% dos casos, dos pacientes virgens de trata‑ mento.1 Para se fechar o diagnóstico de NMO em crianças, é preciso haver a presença de neurite óptica, mielite transversa com um dos dados de exames complementares (RM com lesão exten‑
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sa em mais de 3 segmentos medulares ou soropositividade do anticorpo NMO-IgG).8 Tratamento Nos quadros agudos de desmielinização, inicialmente usa-se pulsoterapia com metilprednisolona na dose de 30 mg/kg, no máximo 1 g, por 5 dias, mas pode-se estender a 7 dias quando não há melhora dos sintomas. Não há indicação de tratar sur‑ tos que não limitam as atividades. Se não houver melhora dos sintomas, deve-se usar a plasmaférese ou a imunoglobulina humana na posologia 2 g/kg durante 2 a 5 dias. Não há evi‑ dência de um desses tratamentos ser superior em relação ao outro. Para profilaxia de recorrência, usa-se a associação de corti‑ costeroide, geralmente prednisona 1 a 2 mg/kg/dia, no máxi‑ mo 60 mg, associado a azatioprina 2 a 3 mg/kg/dia, no máxi‑ mo 150 mg/dia.1 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Diagnosticar precocemente e iniciar terapia adequada para os pacientes com Guillain-Barré. • Considerar sempre encefalomielite disseminada aguda como uma possibilidade diagnóstica nos casos pós-infecciosos que cursarem de forma polissintomática. • Reconhecer os diagnósticos diferenciais de encefalomielite disseminada aguda, esclerose múltipla e neuromielite óptica. • Suspeitar de esclerose múltipla em quadro de sintomas neurológicos recorrentes. • Encaminhar os pacientes com suspeita de doenças desmielinizantes para diagnóstico e tratamento adequados.
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CAPÍTULO 9
MIASTENIA GRAVE Josiane Ranzan Rudimar Riesgo
Conceito Miastenia grave (MG) é uma doença autoimune causada por anticorpos que provocam disfunção na junção neuromuscular, levando a diversos graus de fadiga e fraqueza muscular.1,2 Quando a MG é diagnosticada antes dos 18 anos de idade, ela é denominada miastenia grave juvenil (MGJ).3 Já a miaste‑ nia grave neonatal transitória ocorre em 10 a 20% dos recém‑ -nascidos filhos de mães com MG. Por sua vez, as síndromes miastênicas congênitas são raras e heterogêneas, causadas por defeitos genéticos na junção neuromuscular.2,3
Nos caucasianos, meninos e meninas são igualmente afe‑ tados. Nos adolescentes, há predomínio do sexo feminino. O quadro clínico em populações diversas também parece ser he‑ terogêneo.2,3
Fisiopatologia A fisiopatologia da MGJ é semelhante à forma que acomete os adultos. A grande maioria dos pacientes tem como etiologia da MG a destruição dos receptores de acetilcolina por autoan‑ ticorpos na junção neuromuscular. Há evidências de que o anticorpo do receptor de acetilcolina seja diretamente respon‑ sável pelos sintomas. A diminuição do número de receptores ativos de acetilcolina parece ser consequência da ligação dos autoanticorpos, podendo ser por simples ligação, que ocorre no início da doença, ou por destruição dos receptores via pro‑ cesso mediado por complemento.4 No entanto, a concentração plasmática de anticorpos de acetilcolina nem sempre traduz correlação direta com a gravi‑ dade da doença. Em cerca de 10 a 20% dos pacientes, não são encontrados níveis detectáveis de autoanticorpos. Grande parte desses casos tem anticorpos antirreceptor músculo-es‑ pecífico tirosinoquinase (MuSK) como causa da MG.4,5
Quadro clínico O diagnóstico de MG é baseado na apresentação clínica e ca‑ racteriza-se por fraqueza e fadiga flutuantes dos músculos afe‑ tados. Na MGJ, a mais frequente forma de apresentação clíni‑ ca é a ptose intermitente. No entanto, a maioria das crianças evolui com fraqueza muscular generalizada que pode cursar com dor e/ou fadiga da musculatura bulbar e dos membros. Decorrente disso, outros sinais e sintomas também podem ser identificados, como disfonia, disfagia e fraqueza proximal de membros. Os sintomas são flutuantes, geralmente exacer‑ bam-se no fim do dia e melhoram com o repouso. As compli‑ cações que mais frequentemente podem decorrer da MG são infecção pulmonar, aspiração e choque. A crise miastênica ca‑ racteriza-se por insuficiência respiratória, às vezes com neces‑ sidade de suporte ventilatório. Nos casos de MG com anti‑ -MuSK positivo, algumas características clínicas são diferentes dos outros tipos de MG. Os sintomas podem ser mais localiza‑ dos, como fraqueza seletiva da musculatura bulbar, bem como uma ocorrência mais frequente de crises miastênicas como complicação.2,3,5 A miastenia grave ocular (MGO) é, por definição, restrita aos músculos oculomotores, por 2 anos, sem evoluir para ge‑ neralização.6
Epidemiologia A MGJ é um distúrbio raro na infância, com prevalência e inci‑ dência variáveis do ponto de vista geográfico. A apresentação pediátrica da MG é mais comum em orientais que em caucasia‑ nos. Mais de 50% dos casos de MG na China ocorrem em crian‑ ças, com pico de início dos sintomas entre 5 e 10 anos, ao contrá‑ rio da América do Norte, cuja prevalência varia de 10 a 15%.1-3,6
Diagnóstico Além dos sinais e sintomas, a confirmação da doença é basea‑ da em:2,3,5,6 1. Teste do tensilon ou teste com neostigmina: observa-se ótima resposta, com melhora imediata da força, após administração intramuscular de neostigmina em bolo, na dose de 0,025 a 0,05 mg/kg.
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2. Eletroneuromiografia (ENMG): quando é realizada a estimu‑
Timectomia Ainda existem controvérsias acerca da melhor técnica cirúrgi‑ ca e também sobre qual seria o melhor momento para a res‑ secção do timo. Como regra geral, a melhor técnica é uma ti‑ mectomia transtorácica, e a época mais apropriada para a ressecção é durante ou após a puberdade.7 Existe controvérsia sobre a indicação de timectomia em crianças pré-púberes, vis‑ to que, nessa faixa etária, pode ocorrer remissão espontânea.8 Por outro lado, crianças com MG do tipo MuSK positiva não têm se beneficiado com timectomia, que não deve ser realiza‑ da nesse grupo específico.7
Tratamento Basicamente, existem 4 tipos de tratamento para MG: 1. Tratamento sintomático com agentes anticolinesterásicos. 2. Tratamentos crônicos com imunomoduladores, como corti‑ costeroides e outras drogas imunossupressoras. 3. Tratamentos imunomoduladores rápidos com plasmaférese ou imunoglobulina endovenosa. 4. Tratamento cirúrgico com timectomia.7
Prognóstico O prognóstico da MG é bastante variável e depende da idade de início, raça e sexo. As crianças brancas com início da doen‑ ça antes da puberdade têm melhor prognóstico. Nesse grupo específico, a taxa de remissão espontânea da MG é de 44%, e elas também respondem bem à timectomia precoce.6,8,9
lação nervosa repetitiva, identifica-se uma diminuição pro‑ gressiva dos potenciais, denominada resposta de eletrodecre‑ mentação. 3. Pesquisa de anticorpos específicos: receptor de antiacetilcoli‑ na ou anti-MuSK. 4. Imagem do timo: eventuais anormalidades do timo devem ser descartadas. 5. Outras avaliações: convém incluir avaliação da função tireoi‑ diana. Nos casos com apresentação atípica, está indicada ava‑ liação genética para rastreamento de determinadas mutações.
Tratamento sintomático A droga mais usada é a piridostigmina, uma medicação antico‑ linesterásica de rápido início de ação, com uma dose inicial de 0,5 a 1 mg/kg/dia a cada 4 ou 6 horas, com dose máxima de 7 mg/kg/dia.1,7 Tratamentos crônicos com imunomoduladores Os glicocorticoides devem ser usados com cautela em decor‑ rência dos efeitos adversos na infância e ficam reservados para aqueles casos com baixa resposta ao tratamento sintomático. A prednisona pode ser usada em uma dose inicial de 1 mg/kg/ dia, com reajustes conforme cada caso.6,7 A azatioprina e a ci‑ closporina também podem ser opções para tratamento crôni‑ co da MG.7 Tratamento com imunomoduladores rápidos Podem ser usados em casos de crise miastênica, na prepara‑ ção para timectomia ou outra cirurgia, e também podem ser usados como transição antes de outros tratamentos crônicos. Neste grupo, existem duas abordagens principais: plasmafére‑ se e imunoglobulina endovenosa.7 A resposta clínica após plasmaférese pode demorar alguns dias para ser identificada, e seu efeito tem a duração média de 3 até 6 semanas, o que também costuma ser observado após o uso de imunoglobulina endovenosa, cuja dose total é 2 mg/kg, dada durante 2 a 5 dias.7
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Suspeitar do diagnóstico de miastenia grave na infância, sabendo suas principais manifestações clínicas. • Saber como é confirmado o diagnóstico de miastenia grave na infância. • Saber como é feito o tratamento clínico (e eventualmente cirúrgico) de miastenia grave na infância.
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CAPÍTULO 10
DOENÇAS NEUROMUSCULARES Regina Célia Beltrão Duarte
Introdução As doenças neuromusculares representam um grupo de afec‑ ções que comprometem primariamente a unidade motora, constituída pelo motoneurônio medular, raízes e nervos peri‑ féricos, junção mioneural e músculos. São doenças hereditá‑ rias ou adquiridas, sendo que, a maior parte dessas afecções, na criança, é geneticamente determinada. São responsáveis por um grupo heterogêneo de condições clínicas dependendo do local acometido.1-4 Classificação Baseia-se na topografia da lesão e são representadas principal‑ mente por 4 grupos: doenças do neurônio motor, neuropatias, doenças da junção ou placa mioneural e doenças dos múscu‑ los (miopatias).5 As Tabelas 1 e 2 mostram as principais doen‑ ças neuromusculares na infância de acordo com a topografia.
Quadro clínico A idade e o modo de instalação das manifestações clínicas são fatores importantes na avaliação das doenças neuromuscula‑ res na infância, assim como no diagnóstico diferencial. A hipotonia apresenta-se no contexto do quadro clínico de doenças do sistema nervoso central (SNC) e sistema nervoso periférico (SNP-unidade motora). As doenças neuromuscula‑ res são as principais causas de hipotonia na infância.
Tabela 2 Classificação das miopatias2,5 Distrofias musculares Distrofias musculares ligadas ao sexo: Duchenne e Becker Distrofia muscular de Emery-Dreifuss Distrofias de cinturas (LGMD) Distrofia fascioescapuloumeral Distrofias musculares congênitas (DMC)
Tabela 1 Principais doenças neuromusculares na infância2,6
DMC Fukuyama
Neurônio motor
DMC muscle-eye-brain
Amiotrofia espinhal infantil
DMC com deficiência de merosina
Poliomielitea
DMC de Ullrich
Neuropatias
DMC com síndrome da espinha rígida
Polineuropatia hereditária sensitivo-motora I e II e tipo III (Dejerine-Sottas)
Síndrome de Walker-Warburg
Síndrome de Guillain-Barréa Junção mioneural Miastenia neonatal transitória Síndrome miastênica congênita Botulismoa Miastenia gravea Miopatias Distrofias musculares Miopatias inflamatóriasa: dermatomiosite juvenil, polimiosites, miosites infecciosas. a
Adquirida
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Distrofia miotônica congênita Miopatias congênitas Doença central core Doença multiminicore Miopatia centronuclear (miotubular) Desproporção congênita de fibras musculares Miopatia nemalínica Metabólicas: miopatias Deficiência de maltase ácida (doença de Pompe) Distúrbios da beta-oxidação de ácidos graxos Doenças mitocondriais
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Tônus muscular O tônus do tronco e do pescoço é avaliado pela observação O tônus muscular é a resistência do músculo ao estiramento. do controle da cabeça na posição supina e na suspensão venHá dois tipos de tônus: o fásico, que é uma contração rápida tral (Figura 1A e B). Na criança hipotônica, na manobra de susdecorrente do estiramento de alta intensidade, e o postural, pensão ventral, observa-se a ausência do sustento da cabeça, e que é uma contração prolongada decorrente do estiramento os membros ficam pendentes livremente (Figura 1F). Na made baixa intensidade.2,7 A gravidade é um estímulo que provo- nobra de tração, segurando as mãos da criança, em posição suca um estiramento constante dos músculos antigravitacio- pina, não ocorre a flexão da cabeça, que fica pendente para trás nais.2 A manutenção do tônus requer a integridade do SNC e (Figura 1C). Nos membros superiores durante a manobra do do SNP.2,8 “echarpe”, em razão da falta de resistência à movimentação passiva, os cotovelos cruzam além da linha média sem formar os Hipotonia ângulos articulares (Figura 1D); já nos membros inferiores, obA síndrome da criança hipotônica é uma entidade conhecida serva-se atitude em batráquio, em que se verifica a hiperabdudos pediatras. Refere-se a uma criança com hipotonia genera- ção das coxas por conta da fraqueza muscular (Figura 1E).4,9,12 lizada presente desde o nascimento até a infância precoce, ou No quadro clínico das doenças neuromusculares em crianseja, do recém-nascido (RN) ao lactente, resultado de doenças ças maiores, a hipotonia não é o sintoma em evidência, mas agudas e crônicas em qualquer nível do sistema nervoso, des- sim o déficit motor e a hipotrofia de predomínio proximal na de o cérebro até o músculo. cintura escapular e pélvica. Em raros casos, o predomínio é A hipotonia faz parte da postura normal de um bebê pre- distal. Nas crianças maiores que apresentam marcha normal, maturo, mas também é um sintoma decorrente de afecções do o início da doença neuromuscular caracteriza-se por quedas cérebro, medula, nervos e músculos.7,8 Em virtude deste com- frequentes ao chão, dificuldade para levantar-se, para correr e prometimento, a hipotonia é um sintoma decorrente de cau- subir escadas.1,12 O comprometimento proximal da musculatusas de natureza central (SNC), mais frequentes (60 a 80%), ou ra das coxas, bacia e coluna ocasiona uma hiperlordose, com periférica (SNP) (15 a 30%).1,9,10 marcha anserina e o sinal de Gowers (levantar miopático). As principais causas de hipotonia de natureza central são Com a progressão da doença, além do déficit motor e da atrofia encefalopatia hipóxico-isquêmica (é a causa mais frequente muscular, as retrações fibrotendíneas e as deformidades esde hipotonia no RN),7,10 encefalopatias tóxico-metabólicas, in- queléticas nas extremidades e na coluna estarão presentes. fecções do SNC, hemorragias intracranianas, erros inatos do O quadro clínico de doença neuromuscular pode ser assim metabolismo, síndromes congênitas, doenças neurometabóli- resumido: cas e cromossomopatias.8-10 Entre as causas de natureza peri- • hipotonia global; férica, estão as doenças que comprometem a unidade motora • fraqueza muscular (sintoma importante nas doenças neuro(corno anterior da medula espinal até o músculo). Algumas musculares); doenças apresentam manifestações clínicas de natureza cen- • hipo ou arreflexia profunda; tral e periférica, como a doença de Pompe.2,6,11 • dificuldades na sucção, deglutição e respiração; • diagnóstico das doenças neuromusculares. Síndrome da criança hipotônica (floppy baby) No RN e no lactente, o quadro clínico da hipotonia de causa Diagnóstico periférica (doença neuromuscular) apresenta déficit motor, Exame bioquímico hipo ou arreflexia dos reflexos profundos, dos reflexos arcai- Dosagem sérica da creatinofosfoquinase (CPK) é muito utilicos, distúrbios na respiração, sucção, deglutição e outras ma- zada em casos de suspeita de doença neuromuscular; sua elenifestações clínicas, como dismorfismo facial, palato em ogiva, vação indica comprometimento muscular; porém, não é um comprometimento da musculatura facial e ocular, boca em “carpa” e ptose palpebral; o estado da criança é em alerta, contrastando com a hipotonia de causa central decorrente do comprometimento do SNC ou de doenças sistêmicas em que o estado de alerta da criança é precário, com respostas pobres a estímulos visuais e auditivos, além de apresentar distúrbios metabólicos, crises epilépticas e antecedentes pré e perinatais sugerindo sofrimento fetal.8,9,12 A C E No RN com hipotonia decorrente de uma doença neuromuscular, o quadro clínico é de extrema relevância, uma vez que o RN a termo apresenta uma hipertonia fisiológica semiflexora dos 4 membros, enquanto no lactente, cuja hipotonia fisiológica instala-se a partir do 3º mês de vida, o retardo ou a B D F não aquisição das etapas do desenvolvimento neuropsicomotor constitui o aspecto clínico mais valorizado nas doenças Figura 1 Avaliação do tônus neuromuscular. neuromusculares.4,10
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exame de triagem universal para essas doenças, pois algumas doenças motoras não estão associadas com o aumento da CPK. O aumento sanguíneo da CPK diferencia o comprometi‑ mento muscular do neurogênico, embora, em algumas doen‑ ças, o comprometimento seja discreto, como na atrofia espi‑ nal progressiva, e outros estão elevados, como na distrofia muscular de Duchenne (DMD) e de Becker (DMB).2,6,13 Outra enzima solicitada nas doenças neuromusculares é a aldolase, que se encontra com níveis elevados. São exames de baixo custo e disponíveis em vários centros médicos e laboratórios do Brasil.3 Algumas situações transitórias elevam a CPK, como exercícios físicos, injeções intramusculares e traumas.5 Eletroneuromiografia (EMG) É solicitada com o objetivo de auxiliar na diferenciação de qua‑ dros musculares dos neurogênicos, e o tipo de traçado eletro‑ gráfico permite distinguir se o acometimento é de neurônio mo‑ tor, de raízes ou nervos periféricos, da junção mioneural ou da fibra muscular.13 Na criança, é um exame de difícil execução, em razão da pouca colaboração do paciente, ocorrendo, assim, em algumas situações, prejuízos nos registros eletromiográficos.3 Biópsia muscular É útil para a definição do tipo de miopatia ou para excluir qua‑ dros neurogênicos. O procedimento é simples, porém invasi‑ vo, e a análise laboratorial realizada no músculo deve ser feita por profissional experiente e em centros especializados em doenças neuromusculares.6 É o método de diagnóstico mais importante depois da análise molecular no sangue. A biópsia muscular por microscopia óptica complementada pela mi‑ croscopia eletrônica torna‑se necessária no diagnóstico de di‑ ferentes formas de miopatias congênitas com alterações estru‑ turais, assim como nas glicogenoses.12 Ultrassonografia, tomografia computadorizada e ressonância magnética musculares São usadas para o diagnóstico e o acompanhamento de pa‑ cientes com doenças neuromusculares. Nesses casos, há ne‑ cessidade também de profissionais experientes. Estudo molecular É o exame que define o diagnóstico etiológico na maioria das doenças neuromusculares de causa genética; porém, são exa‑ mes que não estão disponíveis em vários centros médicos do Brasil e o seu custo é elevado. Algumas doenças neuromuscu‑ lares com genes identificados são: amiotrofia espinal infantil, polineuropatia hereditária sensitivo‑motora, distrofia miotô‑ nica congênita, distrofia fascioescapuloumeral, distrofia DMD e DMB, miopatias mitocondriais.4,8 Os avanços técnicos mole‑ culares permitem que diversas doenças neuromusculares se‑ jam diagnosticadas pelos testes moleculares inclusive no RN, evitando, assim, a EMG e a biópsia muscular. Avaliação cardiológica Algumas doenças neuromusculares podem apresentar mio‑ cardiopatia, como as glicogenoses, a distrofia muscular congê‑
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nita e as mitocondriopatias. De um modo geral, os pacientes com doenças neuromusculares devem ser avaliados periodi‑ camente pelo cardiologista. Avaliação genética As doenças neuromusculares na infância, na grande maioria, são de origem genética, então, o aconselhamento genético é um componente essencial para as famílias desses pacientes.3 Amiotrofia espinhal infantil (AEI) É uma doença hereditária que se caracteriza pela atrofia mus‑ cular secundária à degeneração de neurônios motores locali‑ zados no corno anterior da medula espinal.14 A incidência des‑ sa patologia é de 1:6.000 a 1:10.000 nascidos vivos,5 representa a causa genética mais comum de óbito na infância e é a segunda forma mais frequente de doença neuromuscular na infância. A frequência de indivíduos portadores (heterozi‑ gotos para a doença) é de 1:40 a 60 indivíduos.5 A AEI é de he‑ rança autossômica recessiva, embora possa ocorrer, ainda que raramente, herança autossômica dominante e ligada ao sexo.14,15 O gene SMN (survival motor neuron) foi identificado no cro‑ mossomo 5q13. Nessa região, existem duas cópias homólogas do gene SMN: uma telomérica chamada de SMN1 e a centro‑ mérica SMN2. Acima de 90% dos casos da AEI são causados por deleção homozigótica do gene SMN1. Ambas as cópias são transcritas, porém a cópia telomérica (SMN1) tem importân‑ cia funcional, pois é a cópia que está ausente na AEI. A altera‑ ção genética do SMN1 é responsável pela redução dos níveis de proteína do SMN. A falta da proteína SMN resulta na dege‑ neração de motoneurônios localizados no corno anterior da medula espinal, causando clinicamente a fraqueza muscular e paralisia muscular progressiva e assimétrica.16,17 A deleção e a mutação de ponto no SMN1 causa perda da proteína do SMN, resultando na degeneração do corno anterior da medula espi‑ nal.6,16 A doença é causada por mutação no gene SMN, locali‑ zado no cromossomo 5q13. Vários estudos têm demonstrado que o número de cópias do gene SMN2 é maior nos pacientes com AEI tipos II e III do que o tipo I. O número de cópias do gene SMN2 produz um fe‑ nótipo mais brando, uma vez que o SMN2 é capaz de codificar até 25% da proteína funcional.14,15 Nos indivíduos afetados, o número de cópias do gene SMN2 determina a gravidade do quadro clínico. O número de cópias do gene SMN2 na AEI tipo I são 2 ou 3, enquanto na tipo II são 3 cópias e na tipo III, de 3 a 4 cópias. A ausência do gene SMN2 não tem consequências clínicas, pois os indivíduos normais apresentam 3 cópias do gene SMN2 e cerca de até 10% desses indivíduos não têm nenhuma cópia do gene SMN2. A AEI é uma doença neuromuscular cuja classificação é ba‑ seada na idade de aparecimento do início dos sintomas. As formas mais precoces e mais letais evoluem para insuficiência respiratória, enquanto as mais leves são incapacitantes por causa da fraqueza muscular, tornando alguns pacientes de‑ pendentes de cadeira de rodas.14
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Quadro clínico1,14 De um modo geral, o quadro clínico da AEI apresenta sinais e sintomas semelhantes e, dependendo da idade do início dos sintomas, é classificada em I, II e III. Os principais sinais e sin‑ tomas da AEI são: fraqueza muscular, hipotonia global, hipo ou arreflexia, fasciculações, retrações fibrotendíneas e defor‑ midades esqueléticas. Tipo I ou doença de Werdnig-Hoffmann: forma mais grave da doença, de início precoce, desde a fase neonatal até os 6 meses de vida, com grave comprometimento motor e respira‑ tório (quadro de insuficiência respiratória). A criança apresen‑ ta hipotonia global e fraqueza muscular com maior compro‑ metimento dos músculos proximais e dos membros inferiores; desse modo, apresentam um grave atraso motor e mais de 90% evoluem para óbito antes de 2 anos de idade (a sobrevida geralmente está relacionada ao suporte ventilatório oferecido), os reflexos profundos estão abolidos, a respiração é abdomi‑ nal, ocorre envolvimento dos músculos da face, língua, man‑ díbula, poupando os músculos extraoculares e os esfinctéricos. Os lactentes permanecem deitados, flácidos, com pouco movi‑ mento e não sustentam a cabeça; fasciculações na língua tam‑ bém podem ser encontradas. Apresentam, com a evolução do quadro, contraturas esqueléticas e retrações fibrotendíneas. Tipo II (forma intermediária): início antes dos 18 meses, com fraqueza e hipotonia menos graves; as crianças chegam a sentar sem apoio, porém não deambulam. Os lactentes afeta‑ dos conseguem sugar e deglutir, e a respiração é adequada nos primeiros meses. Os problemas de deglutição aparecem poste‑ riormente. As crianças evoluem para fraqueza muscular pro‑ gressiva, podem sobreviver até a idade escolar ou adiante; po‑ rém, confinados a uma cadeira de rodas e gravemente incapacitados. Tipo III (doença de Kugelberg-Welander): forma leve da AEI, com início após os 2 anos de idade, caracterizado por fra‑ queza e atrofia muscular de cinturas. A fraqueza é progressiva e proximal envolvendo principalmente os músculos da cintu‑ ra pélvica e depois escapular; os pacientes deambulam; as fas‑ ciculações são encontradas com maior frequência na língua e, com menos frequência, no deltoide, bíceps braquial e quadrí‑ ceps. Normalmente não há envolvimento cardíaco e a inteli‑ gência é normal. Diagnóstico O mapeamento do gene, em 1990, no cromossomo 5q13 e a identificação do gene SMN em 1995 constituem passos impor‑ tantes para o diagnostico da AEI.6,14 Em casos suspeitos de AEI o primeiro exame a ser solicitado é o estudo genético do SMN (deleção desse gene). Outros exames são utilizados, quando o estudo genético não for realizado com a eletroneuro‑ miografia de membros e a biópsia muscular.2 O lócus genético de todas as três formas da AEI está no cromossomo 5. Tratamento2,5,14,17 A AEI é uma patologia genética, debilitante e progressiva, que necessita de cuidados especiais capazes de prolongar e melho‑ rar a qualidade de vida do paciente. Entre esses cuidados, está
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a terapia de suporte, uma vez que não existe tratamento far‑ macológico disponível na atualidade para AEI. A terapia de suporte é realizada com a equipe multidiscipli‑ nar e envolve suporte respiratório, nutricional, cuidados orto‑ pédicos e fisioterapia respiratória e motora (para prevenir as deformidades ósseas e as complicações respiratórias). Os cui‑ dados respiratórios são de extrema importância, por causa da fraqueza muscular e da posição quase frequentemente deita‑ da; os pacientes apresentam uma capacidade limitada para tossir ocorrendo retenção de secreções e infecções respirató‑ rias recorrentes. Nos cuidados nutricionais, as crianças com AEI podem apresentar refluxo gastroesofágico, constipação intestinal, distensão abdominal e dificuldade para o esvazia‑ mento gástrico. A partir dos avanços da genética e da fisiopatologia da AEI, várias estratégias terapêuticas têm sido investigadas para o tratamento, principalmente para aumentar o nível da proteína SMN2. Algumas medicações são consideradas para aumentar os níveis endógenos de proteína SMN2, como as inibidoras de histonas deacetilases, ácido valproico, fenilbutirato, hidroxiu‑ reia e indoprofeno. Entretanto, na atualidade, ainda não exis‑ te tratamento efetivo e eficaz que tenha sido aprovado para a AEI. Outras estratégias são neuroproteção, terapia gênica e uso de células tronco embrionárias.15 Outra estratégia terapêu‑ tica e sem relação com o mecanismo molecular ou biológico exposto anteriormente é a utilização do beta-2 agonista albu‑ terol (salbutamol). Acredita-se que o seu efeito anabolizante induza hipertrofia e previna atrofia muscular com danos à fi‑ bra muscular.5 Na atualidade, não há terapêutica específica para o trata‑ mento da AEI, e sim suporte com cuidados paliativos. A com‑ plicação mais grave é a insuficiência respiratória, cujo manejo do tratamento melhorou em virtude dos avanços tecnológicos de suporte ventilatório. Distrofias musculares De um modo geral, as distrofias musculares são doenças here‑ ditárias lenta ou rapidamente progressivas que afetam sobre‑ tudo o músculo estriado e que têm em comum, na biópsia muscular, um padrão de necrose e regeneração muscular.13,18 As distrofias musculares são um grupo de doenças neuromus‑ culares hereditárias com fenótipos variados.14 A partir do descobrimento do gene da DMD e, posterior‑ mente, o produto, a proteína distrofina, durante os últimos anos têm ocorrido várias descobertas relacionadas a estrutura e função do sarcolema, que é importante para a sobrevivência e a integridade da fibra muscular. A partir das técnicas de biologia molecular, várias proteínas dos músculos foram identificadas, entre elas a alfa-2 laminina (merosina) e o colágeno 6, e outras proteínas do sarcolema, como a disferlina, calpaina, caveolina e proteínas da membrana celular (emerina), cujos defeitos pro‑ duzem diferentes formas clínicas de distrofias musculares. A ruptura do sarcolema decorrente da alteração da proteína do complexo transmembrana leva à destruição da fibra mus‑ cular e, por isso, a maioria das distrofias musculares apresenta aumento das enzimas musculares, principalmente a CPK. Em
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Doenças Neuromusculares •
outro grupo de distrofias musculares, o aumento da CPK é dis‑ creto em razão da degeneração lenta e gradual do músculo (distrofia fascioescapuloumeral e distrofia de Emery-Dreyfuss). Distrofinopatias São distrofias musculares que incluem a DMD e a DMB. São distúrbios de herança recessiva e ligadas ao cromossomo X e afetam sobretudo as musculaturas esquelética e cardíaca.5 A mutação genética para os pacientes de DMD e DMB localiza‑ -se no braço curto do cromossomo X, no Xp21. A doença se deve à mutação do gene da distrofina, que é uma proteína lo‑ calizada junto ao sarcolema cuja função é manter a integrida‑ de da membrana da fibra muscular.13 A ausência da proteína distrofina leva a uma necrose progressiva do músculo, com perda da marcha independente na adolescência, cardiomiopa‑ tia, insuficiência respiratória e morte prematura nos indiví‑ duos afetados e deterioração contínua das fibras musculares (necrose muscular) com substituição do tecido muscular por gordura e tecido conectivo. Nas DMD, há deficiência total da distrofina, enquanto na DMB, a deficiência é parcial, produ‑ zindo um quadro mais leve. De um modo geral, nas distrofinopatias, os primeiros mar‑ cos do desenvolvimento são atingidos e a marcha ocorre nor‑ malmente na grande maioria dos casos. A DMD é a doença neuromuscular mais frequente na infância, com uma incidên‑ cia de 1:3.500 nascidos do sexo masculino.6,18 O quadro clínico tem o seu início entre 3 e 5 anos, e as crianças apresentam quedas frequentes ao chão e dificuldades para levantar, correr e subir escadas. O exame físico mostra fraqueza simétrica, ini‑ cialmente da musculatura pélvica. A marcha é anserina e o pa‑ ciente assume uma posição de hiperlordose, ocasião em que estão presentes o sinal de Gowers e a hipertrofia de panturri‑ lhas; a perda da marcha voluntária ocorre entre 9 e 12 anos de idade. Alguns fatores podem contribuir para a criança perder a capacidade para deambular, como o aparecimento de defor‑ midades nos membros inferiores, aumento do peso corporal, imobilização prolongada e até quadros depressivos. Com a progressão da doença, ocorre comprometimento dos mem‑ bros superiores e da musculatura respiratória. A escoliose e as retrações musculares tornam-se mais evidentes após o confi‑ namento da criança na cadeira de rodas. Cerca de 30 a 50% dos pacientes com DMD têm deficiência intelectual; o com‑ prometimento cardíaco torna-se mais evidente com a progres‑ são da doença. A maioria dos pacientes falece na 2ª década de vida por insuficiência respiratória ou cardíaca. Na DMB, a fre‑ quência é de 1:18.518 nascidos vivos do sexo masculino18 e o quadro clínico é mais brando. O quadro clínico inicia-se após os 5 anos, e a perda da deambulação ocorre a partir dos 16 anos. Os pacientes apresentam quadro clínico semelhante à DMD, com postura hiperlordótica, marcha anserina e fraqueza muscular nas porções proximais dos membros inferiores, o comprometimento cardíaco é maior e o óbito ocorre entre a 2ª e a 3ª década de vida. Com o passar do tempo, a fraqueza mus‑ cular desencadeia um quadro respiratório com tosse fraca e ineficaz para a higiene das vias aéreas, propiciando infecções pulmonares de repetição. Geralmente o óbito ocorre por com‑
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plicações pulmonares, aspiração de corpo estranho e obstru‑ ção de vias aéreas. Diagnóstico de DMD e DMB 1. Dosagem sérica da CPK: encontra-se elevada 5 a 10 vezes do valor normal. 2. Eletroneuromiografia: diferencia a distrofia muscular de qua‑ dros neurogênicos. O padrão é miopático, mas não específico para DMD/DMB. 3. Biópsia muscular: mostra alterações distróficas, e a ausência dessas alterações não descarta a existência de distrofia mus‑ cular. 4. Avaliação cardíaca: radiografia de tórax, eletrocardiograma e ecocardiograma e avaliações periódicas com especialista (car‑ diologista). 5. Teste molecular: reação em cadeia da polimerase (PCR) no sangue para a mutação do gene da distrofia é o teste para con‑ firmar o diagnóstico das distrofinopatias (70%). Em casos em que há confirmação diagnóstica, a biópsia muscular pode ser adiada; porém, se o exame no sangue for normal e a suspeita clínica persistir, a imuno-histoquímica específica para distro‑ fina, realizada em cortes de biópsia muscular, detecta 30% dos casos que não apresentem alterações na técnica da PCR. Tratamento19 Os pacientes com DMD utilizam glicocorticoides como a pred‑ nisona (0,75 mg/kg/dia) ou o deflazacorte (mais usado por ter menos efeitos colaterais – 0,75 mg/kg/dia). Um dos obje‑ tivos é reduzir a necrose das miofibras, que acontece nas dis‑ trofias musculares. Ocorre melhora inicialmente da força mus‑ cular; porém, os efeitos colaterais desses fármacos, em longo prazo, devem ser considerados e incluem ganho de peso e os‑ teoporose, que podem contribuir para a piora do quadro clíni‑ co.5,13 Vários estudos demonstram que casos de DMD tratados precocemente (paciente com marcha preservada) têm uma melhora do prognóstico no longo e no curto prazo, mantendo o paciente deambulando por mais tempo do que se esperaria sem tratamento. Doença de Pompe A doença de Pompe, também chamada de glicogenose tipo II ou deficiência de maltase ácida, é uma doença de herança au‑ tossômica recessiva.11 A doença de Pompe é uma doença neuromuscular que de‑ corre de uma deficiência hereditária da enzima lisossômica al‑ faglicosidase ácida (GAA), responsável pela quebra do glicogê‑ nio nos lisossomos das células. O acúmulo do glicogênio ocorre nas células musculares resultando na deterioração pro‑ gressiva da função muscular. A ausência da atividade enzimá‑ tica na forma infantil da doença de Pompe resulta em depósi‑ tos anormais de glicogênio nos músculos esqueléticos, coração e musculatura lisa, levando a cardiomiopatia hiper‑ trófica, hipotonia, fraqueza muscular, insuficiência respirató‑ ria e óbito.6 A hipotonia é o resultado do depósito de glicogê‑ nio no cérebro, na medula e no músculo, produzindo um quadro misto de hipotonia central e periférica.
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Acomete os pacientes em qualquer idade. Possui, basica‑ mente, duas formas clínicas: antes de 1 ano (infantile-onset), quando ocorre fraqueza muscular, hipotonia, o bebê não sus‑ tenta a cabeça, dando-lhe um aspecto de bebê de pano (hipo‑ tônico), hepatomegalia, dificuldades na respiração e compro‑ metimento cardíaco grave. Como essa forma é rapidamente progressiva, a rapidez na identificação e no reconhecimento dos sinais clínicos é de extrema importância. A outra forma clínica é a tardia, a partir de 1 ano (late-onset), quando ocorre fraqueza muscular nos membros e no tronco, sem envolvi‑ mento cardíaco.6 Algumas doenças entram no diagnóstico diferencial da doença de Pompe na forma infantil, como AEI tipo I, distrofia muscular congênita e algumas mitocondriopatias. Na forma tardia, as principais doenças que entram no diagnóstico dife‑ rencial são distrofias, doenças da junção neuromuscular e AEI tipo II e III. Diagnóstico Uma vez estabelecida a suspeita clínica, a confirmação do diagnóstico requer a demonstração da atividade da enzima GAA diminuída ou ausente, ou a análise do gene GAA, com‑ provando a presença de mutações. As mutações na GAA cau‑ sam a doença. O diagnóstico da doença de Pompe não é fácil, pois as ca‑ racterísticas clínicas são semelhantes a outras doenças neuro‑ musculares que afetam diferentes faixas etárias. Uma vez es‑ tabelecido o diagnóstico, o cuidado multidisciplinar é essencial para otimizar os resultados do tratamento em todos os pacientes com a doença de Pompe. O diagnóstico da doen‑ ça de Pompe é estabelecido por meio da biópsia muscular em fibroblastos ou em outros tecidos, com a demonstração de que a atividade da enzima está deficitária. Um método simples, rá‑ pido e barato é um exame que consiste em algumas gotas de sangue do paciente em papel filtro (DBS – dried blood spot) com dosagem da atividade enzimática da GAA (pode estar com níveis baixos ou ausentes). Nos casos positivos, o diag‑ nóstico deve ser confirmado pela demonstração da baixa ativi‑ dade enzimática da GAA por outros métodos padronizados em células específicas ou pelo sequenciamento do gene GAA comprovando a presença de mutações conhecidas em ambos os alelos. Tratamento É baseado na terapia de reposição enzimática com o Myozy‑ me® endovenoso a cada 15 dias. Até o momento, a doença de Pompe é a única doença neuromuscular com tratamento já es‑ tabelecido. Há necessidade também de abordagem multidisci‑ plinar, em virtude de um amplo espectro de manifestações clí‑ nicas e diferentes tipos de incapacidade funcional. Considerações finais Um ponto importante a ser considerado nas doenças neuro‑ musculares é durante um procedimento anestésico, uma vez que deveria ter a participação da equipe multidisciplinar, em razão do envolvimento de vários sistemas. O paciente pode
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apresentar complicações cardíacas, pulmonares, gastrointes‑ tinais e outras. A consulta pré-anestésica é de fundamental importância para os pacientes com doença neuromuscular, evitando as complicações e resultados danosos aos pacientes. Algumas doenças neuromusculares têm predisposição para a hipertermia maligna, que resulta de uma cascata hipermeta‑ bólica depois da exposição com anestésico inalado, como o halotano ou a succinilcolina. O quadro clínico da hipertermia maligna é caracterizado por rabdomiólise, acidose lática, hi‑ pertermia e coagulação intravascular disseminada.20 O tratamento das doenças neuromusculares envolvem su‑ porte respiratório, tratamento das infecções respiratórias, su‑ porte nutricional, prevenção e correção das contraturas, su‑ porte para andar e sentar, além de terapias para fala e uso de comunicação alternativa, assim como apoio psicológico para os pais e pacientes. De um modo geral, a participação de uma equipe multidisciplinar no tratamento do paciente é de funda‑ mental importância nas doenças neuromusculares, uma vez que a grande maioria dessas afecções não tem terapêutica es‑ pecífica, e a participação de vários profissionais auxiliam na prevenção das complicações e na melhora da qualidade de vida.21 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que a grande maioria das doenças neuromusculares na infância é determinada geneticamente. • Reconhecer que as doenças neuromusculares apresentam um largo espectro de manifestações clínicas dependendo do local acometido, que varia entre corno anterior da medula, nervo periférico, junção mioneural e músculo. O diagnóstico, na grande maioria das vezes, se dá pela análise molecular. • Lembrar que o quadro clínico mais frequente nas doenças neuromusculares é hipotonia global (RN e lactente), fraqueza muscular, hiporreflexia ou arreflexia dos reflexos profundos e distúrbios de respiração, sucção e deglutição. • Saber que as doenças neuromusculares comentadas neste capítulo são as mais frequentes na infância: distrofia muscular de Duchenne e amiotrofia espinal infantil, enquanto a patologia com tratamento já estabelecido é a doença de Pompe, com terapia de reposição enzimática.
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CAPÍTULO 11
NEUROPATIAS PERIFÉRICAS EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES Alexandra Prufer de Queiroz Campos Araujo Anita Seixas Dias Saporta
Definição Neuropatia periférica refere-se a qualquer distúrbio, agudo ou crônico, focal ou generalizado, de causa variada, que decorre de lesão do nervo periférico. Manifestam-se por sintomas e si‑ nais motores e/ou sensitivos e/ou autonômicos. Podem en‑ volver lesão da bainha de mielina e/ou axônio. As neuropatias periféricas podem ser classificadas pela sua topografia ou por sua evolução temporal. 1. Classificação topográfica: a. mononeuropatia – envolvimento de um único nervo peri‑ férico; b. mononeuropatia múltipla – envolvimento de mais de um nervo periférico; c. polineuropatia – envolvimento difuso dos nervos periféricos. 2. Classificação temporal: a. agudas: • por efeitos de agentes tóxicos: arsênico, chumbo, he‑ xano (solventes, cola), organofosforados, tálio; • medicamentos: amiodarona, cisplatina, dapsona, hi‑ dralazina, isoniazida, metronidazol, nitrofurantoína, antirretrovirais análogos dos nucleosídeos (ddC, ddI, d4T), fenitoína, piridoxina, vincristina, hipervitami‑ nose (B6); • processos infecciosos: difteria; • processos inflamatórios: polineuropatia inflamatória aguda ou síndrome de Guillain-Barré; • trauma; • vascular; b. crônicas: • de causa hereditária; • associado a doenças sistêmicas: diabete, síndrome de Churg-Strauss, púrpura de Henoch-Schönlein, doen‑ ça inflamatória intestinal, artrite juvenil idiopática, poliarterite nodosa, Sjögren, lúpus, granulomatose de Wegener, insuficiência renal, hipovitaminoses (B1, B2, B6, B12, E), doença celíaca, hipotireoidismo; • infecciosa: hanseníase;
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• inflamatória: polineuropatia inflamatória desmielini‑ zante crônica. Neste capítulo, serão abordadas a síndrome de Guillain-Barré (SGB), como exemplo de neuropatia periférica aguda inflama‑ tória autoimune, e a doença de Charcot-Marie-Tooth (CMT), como exemplo de neuropatia periférica crônica geneticamen‑ te determinada. Síndrome de Guillain-Barré Epidemiologia A SGB é a principal causa de fraqueza aguda de causa neuro‑ muscular, com incidência anual mundial de 1,3 a 2 por 100.000. A natureza inflamatória da lesão do nervo periférico pode envolver a bainha de mielina (forma desmielinizante) ou o axônio (forma axonal). Tem uma fisiopatogenia que parte de um processo deflagrador, infecção ou imunização, a partir do qual a resposta imunológica é voltada para outros alvos, e não apenas ao agente que a disparou. Dessa forma, uma infecção pelo Campylobacter jejuni pode desencadear a produção de autoanticorpos com reação cruzada para epítopos do axônio.1 Quadro clínico A queixa inicial pode ser de dor nas pernas, que logo é seguida de forma insidiosa e progressiva por fraqueza muscular dos membros inferiores. Dessa forma, surgem dificuldades para pular e correr, levantar-se do chão e dificuldade gradativa na marcha, com quedas podendo evoluir para perda da marcha e até mesmo da capacidade de se sentar. Esse quadro pode ser ou não precedido em 4 semanas por um quadro de infecção de vias aéreas ou gastrointestinal, ou ainda de imunizações.1,2 O auge da fraqueza costuma ocorrer em até 9 dias, seguin‑ do-se uma estabilização nesse pior patamar, para, em cerca de 2 a no máximo 4 semanas, começar uma recuperação gradual que pode durar meses.1,2 Apesar de as manifestações motoras chamarem mais a atenção do leigo, o envolvimento inflamatório do nervo perifé‑
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rico pode ocasionar sintomas e sinais sensitivos e autonômi‑ cos (retenção ou incontinência fecal e vesical, arritmias car‑ díacas ou alterações da pressão arterial, anidrose ou diaforese). Podem ainda estar envolvidos os nervos cranianos, particu‑ larmente o nervo facial e o nervo frênico. Este último determi‑ na a fraqueza diafragmática com insuficiência ventilatória.1,2 Ao exame neurológico, confirma-se a presença da paresia arreflexa, associada ou não a achados sensitivos ou autonômi‑ cos, caracterizando uma síndrome de topografia radicular ou de nervo periférico simétrica. Não há nível sensitivo (situação que sugeriria uma síndrome medular).1,2
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dos casos de polineuropatia são hereditários e, dentre esses, CMT é a causa mais prevalente.6,7 A maioria dos casos é de herança autossômica dominante, embora formas ligadas ao X e autossômicas recessivas não se‑ jam incomuns. Mutações pontuais e variações no número de cópias gênicas em mais de 70 genes responsáveis pela manu‑ tenção da estrutura ou funcionamento dos neurônios periféri‑ cos (neurônios motores e sensitivos) e/ou das células de Schwann (que formam a bainha de mielina) já foram associa‑ das à doença até o momento. Dentre esses, as alterações en‑ contradas em 4 genes – o PMP22 (peripheral myelin protein 22), o GJB1 (gap junction protein beta 1), o MFN2 (mitofusin 2) e MPZ (myelin protein zero) – são responsáveis por mais de 90% dos casos com teste genético positivo.6-8
Diagnóstico O diagnóstico na 1ª semana de doença é fundamental, no en‑ tanto, nessa fase, ele deve ser baseado apenas no quadro clíni‑ co da fraqueza ascendente progressiva associada à presença Classificação de arreflexia.1,2 CMT é o epônimo mais utilizado para se referir a doenças do As alterações características no exame do líquido cefalorra‑ grupo das neuropatias periféricas hereditárias, antes também quidiano (LCR), a dissociação albuminocitológica e a elevação conhecido pela sigla HMSN (hereditary motor-sensory neurodo teor proteico sem elevação da celularidade ocorrem, em ge‑ pathy), acrônimo do termo em inglês para neuropatia heredi‑ ral, a partir da 2ª semana de doença. Seu pico de elevação tária sensitivomotora.6,7 ocorre na 4ª a 6ª semana de doença.1,2 A CMT é classificada em 5 tipos principais, baseados em ca‑ A eletroneuromiografia (ENMG) ajuda no prognóstico e na racterísticas anatomopatológicas, neurofisiológicas e de he‑ definição do diagnóstico. Os casos com envolvimento apenas da rança genética em: mielina (aumento de latência, diminuição de velocidade de con‑ • CMT1 ou desmielinizante e autossômica dominante (ou dução na condução neural) têm prognóstico melhor que as for‑ HMSN1); mas axonais (diminuição de amplitude dos potenciais de ação).1,2 • CMT2 ou axonal e autossômica dominante (ou HMSN2); • CMT3 ou síndrome de Dejerine-Sottas (ou HMSN3); Tratamento • CMT4 ou com herança recessiva; O suporte com monitoração dos sinais de acometimento auto‑ • CMTX ou com herança ligada ao X. nômico (frequência cardíaca, pressão arterial) e ventilatório (capacidade vital forçada, pico de fluxo de tosse) são funda‑ À medida que genes específicos foram descobertos, subtipos mentais. A morbidade da SGB é diretamente relacionada a es‑ identificados por letras foram adicionados a essa classificação sas complicações. A fisioterapia deve ser instituída precoce‑ (p.ex., CMT1A-PMP22, CMT1B-MPZ, CMT2A-MFN2, CM‑ mente. Realizar mudanças de decúbito, evitar posturas T1X-GJB1).6,7 viciosas e evitar acúmulo de secreções ajudam na prevenção Dentro do espectro de polineuropatias hereditárias relacio‑ de complicações como escaras, atelectasia, entre outros. nadas ao termo CMT, existem fenótipos com características Para pacientes com menos de 7 dias de evolução e nas for‑ distintas que são classificados separadamente. São estes: mas graves, o uso de medidas que neutralizem os anticorpos • neuropatia periférica hereditária com suscetibilidade a parali‑ circulantes ajuda a reduzir o tempo de hospitalização, reduz o sia por pressão ou HNPP (do inglês hereditary neuropathy número de casos que precisa de ventilação e aceleram a recu‑ with liability to pressure palsies); peração. Nesse sentido, pode-se optar por um dos esquemas • neuropatia periférica hereditária puramente motora ou HMN abaixo: (do inglês hereditary motor neuropathy); • plasmaférese 50 mL/kg/dose, em 4 a 5 vezes;3 • neuropatia periférica hereditária puramente sensitiva asso‑ • imunoglobulina endovenosa 0,4 g/kg/dia, por 5 dias.4,5 ciada a disautonomia ou HSAN (do inglês hereditary sensory autonomic neuropathy).6,7 Desafios O grande desafio é realizar o diagnóstico clínico e iniciar a Quadro clínico abordagem dentro da janela terapêutica, possibilitando a pre‑ A polineuropatia periférica do tipo comprimento-dependente venção das complicações que são as causas da mortalidade na (padrão luvas e botas) sempre é o sintoma principal de todos SGB. os tipos de CMT, podendo estar isolada ou associada a outros sintomas. O fenótipo “clássico” é caracterizado por início dos Doença de Charcot-Marie-Tooth (CMT) sintomas nas primeiras duas décadas de vida, fraqueza distal, Epidemiologia perda sensitiva, deformidades dos pés (pés cavos e dedos-em‑ A CMT é a doença neurológica hereditária mais frequente no -martelo), e ausência de reflexos aquileus. Esse também é o fe‑ mundo, com prevalência de 1:2.500 pessoas. Na infância, 70% nótipo mais encontrado no subtipo mais frequente da doença,
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CMT1A, que é causado pela duplicação do gene PMP22 (peripheral myelin protein 22), localizado no cromossomo 17p11.2.6-8 O pediatra geral deve estar atento a sinais muitas vezes dis‑ cretos e inespecíficos que podem representar o início da doen‑ ça, como: atraso do desenvolvimento motor e caminhar na ponta dos pés, junto com queixas de tropeços e quedas fre‑ quentes em pré-escolares; e lesões repetitivas nos tornozelos, dificuldades em atividades esportivas e correr mais lentamen‑ te que colegas da mesma idade, em escolares e adolescentes.6-8 Discrepância significativa entre a intensidade dos sintomas e a fraqueza ou déficit sensitivo ao exame é muito comum. Crianças não se queixam muito de dormência, formigamento, cãibras ou dor, mesmo que a perda sensitiva seja evidente. Os primeiros sinais de fraqueza das mãos podem não ser eviden‑ tes até que a criança apresente problemas para se vestir, amar‑ rar os sapatos ou escrever. Geralmente, a doença tem um curso longo e lentamente progressivo, porém alguns pacientes podem ser gravemente comprometidos desde a infância. A neuropatia congênita hi‑ pomielinizante e a síndrome de Dejerine-Sottas são historica‑ mente descritas como formas clínicas infantis raras e graves de CMT, mas atualmente sabe-se que são quadros pertencen‑ tes ao amplo espectro das neuropatias desmielinizantes. A principal diferença entre elas é a idade de início dos sintomas dos pacientes; a primeira é responsável por quadro neurológi‑ co grave em neonatos, e a segunda, em lactentes. Ambas apre‑ sentam características comuns com as da síndrome do bebê hipotônico: hipotonia generalizada inespecífica; displasia de quadril; sucção deficiente; e, nos mais graves, problemas res‑ piratórios. Mutações de novo dos genes MPZ (myelin protein zero), PMP22 e EGR2 (early growth factor 2) estão tipicamente associadas às duas formas, mas não exclusivamente a elas.6-8 Diagnóstico A CMT deve fazer parte do diagnóstico diferencial de qualquer criança com suspeita de neuropatia comprimento-dependen‑ te, e a história familiar negativa não exclui o diagnóstico, pois existem muitos casos decorrentes de mutações novas.6,7 Não é incomum obter o diagnóstico de CMT em casos ini‑ cialmente considerados adquiridos e que apresentaram falha terapêutica ao uso de imunossupressores, ou ainda em casos nos quais a criança estava em tratamento para outra patologia e apresentou início ou agravamento de um quadro de neuro‑ patia antes sutil. Algumas drogas, normalmente neurotóxicas e já citadas no início deste capítulo, são responsáveis por piora clínica de pacientes com CMT, sendo a vincristina a droga de mais alto risco.6,7 A investigação diagnóstica ideal deve sempre incluir a ENMG como exame complementar para confirmar a presença de neuropatia periférica e determinar o seu padrão neuropato‑ lógico de acordo com a velocidade de condução nervosa (VCN) (VCN do nervo mediano: desmielinizante ≤ 35 m/s; interme‑ diário = 35 a 45 m/s; axonal ≥ 45 m/s).6-8 A biópsia de nervo é indicada quando a neuropatia é tão grave que a ENMG não consegue definir seu padrão ou se exis‑ te forte suspeita de neuropatia adquirida (p.ex., neuropatia
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por vasculite), pois permite a pesquisa de achados clássicos como o espessamento dos nervos e o padrão “bulbo-de-cebo‑ la”, que representa ciclos de desmielinização e remielinização, causados por intensa produção de bainha de mielina defeituo‑ sa e redundante, em uma tentativa ineficaz de regeneração neuronal nos tipos desmielinizantes, ou o achado de diminui‑ ção do número de axônios nos tipos axonais. A biópsia pode ser desnecessária quando a testagem genética dos principais genes estão disponíveis.6-8 Pacientes com CMT necessitam de acompanhamento roti‑ neiro por médicos neurologistas e ortopedistas, além de ou‑ tros especialistas, entre eles, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. A investigação genética deve ser feita por gene‑ ticista, mas existem fluxogramas disponíveis e utilizados in‑ ternacionalmente que podem auxiliar o pediatra geral na deci‑ são de quais genes pesquisar, se necessário. Vale lembrar que a realização de um teste genético só deve ser feita por decisão do paciente ou de seus responsáveis (quando os pacientes são menores de idade) e com aconselhamento genético profissio‑ nal adequado.6-8 Tratamento Não há cura para a CMT, e alguns ensaios clínicos realizados não mostraram em humanos os bons resultados obtidos em modelos animais (p.ex., vitamina C). Por essa razão, técnicas de reabilitação constituem a principal estratégia terapêutica para CMT no momento.6,7 A fisioterapia deve trabalhar o fortalecimento muscular, alongamento e equilíbrio, para se manter a mobilidade desses pacientes. Hidroterapias e natação podem ser úteis para fortalecimento da musculatura axial e prevenção de escoliose. A terapia ocupacional deve prover aos pacientes utensílios e métodos para a realização de tarefas de rotina diária, particu‑ larmente auxiliando as crianças na realização de suas tarefas escolares.6,7 Pacientes com fraqueza significativa de pés e tornozelos devem ser avaliados quanto à necessidade de órteses que limi‑ tem o movimento do tornozelo, especificamente a dorsiflexão excessiva na fase de apoio terminal da marcha e/ou flexão plantar durante a oscilação. Cirurgias ortopédicas devem ser indicadas apenas quando outras técnicas de suporte foram utilizadas com todo seu potencial e não obtiveram mais suces‑ so em corrigir limitações funcionais causadas pela progressão da doença.6,7 Alguns estudos mostraram que a dor, mais especificamente cãibras nos membros inferiores, é um dos principais fatores que afetam de modo negativo a qualidade de vida de pacientes pediátricos com CMT. Ela não é do tipo neuropático e costuma estar relacionada a problemas estruturais e funcionais nos membros inferiores ou a cãibras. As dores por calosidades plantares estão relacionadas à distribuição anormal do peso sobre os pés, e palmilhas especiais podem ajudar, mas inter‑ venções cirúrgicas costumam ser necessárias evolutivamente. As cãibras musculares ocorrem tipicamente dos músculos gas‑ trocnêmios e estão frequentemente relacionadas à diminui‑ ção da flexibilidade do tornozelo e ao andar na ponta dos pés.
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Neuropatias Periféricas em Crianças e Adolescentes •
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Dores nos joelhos e quadris estão relacionadas aos mecanis‑ mos de compensação da marcha anormal. Medicamentos como gabapentina, pregabalina, relaxantes musculares e anti‑ -inflamatórios podem ser úteis, mas são inadequados para uso crônico. O manejo da dor e das cãibras é difícil, mas o trata‑ mento fisioterápico e intervenções ortopédicas definitiva‑ mente ajudam e devem ser sempre implementados de acordo com a gravidade do caso.6,7 Recentemente, uma escala que fornece um escore de défi‑ cit funcional foi criada especificamente para a população pe‑ diátrica, a CMTPedS (CMTPedS.org). A escala aborda 7 áreas de medições: força, destreza, sensibilidade, marcha, equilí‑ brio, potência e resistência. Ela apresenta grande potencial para se avaliar a progressão da doença e deve ser muito útil para avaliação terapêutica em futuros ensaios clínicos.6
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Relacionar queixas de alterações na marcha com a possibilidade de neuropatia periférica nas crianças. • Considerar o diagnóstico de SGB nos casos em que esses sintomas se desenvolvem de forma aguda ou subaguda. • Considerar o diagnóstico de CMT em casos de evolução desses sintomas de forma lentamente progressiva. • Iniciar os cuidados terapêuticos para os casos de provável SGB em até 7 dias do início, mesmo sem a confirmação laboratorial. • Saber que a doença de CMT tem formas de herança diferentes e, desse modo, o aconselhamento genético também é diferente.
Prevenção Pacientes com diagnóstico genético positivo podem prevenir a transmissão da CMT para gerações futuras por meio de técni‑ cas de fertilização in vitro assistida, com a pré-seleção de ovos fertilizados que não tenham a mutação. O aconselhamento ge‑ nético apropriado é fundamental na orientação do planeja‑ mento familiar de pacientes com CMT.7,8
1.
Desafios Muitas mutações gênicas e potenciais mecanismos causado‑ res de doença foram estudados nos últimos anos e espera-se que, com novas técnicas de biologia molecular e celular, novos tratamentos para estabilizar ou curar as diferentes formas de CMT sejam desenvolvidos em um futuro próximo.
Referências bibliográficas
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CAPÍTULO 12
ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL NA INFÂNCIA Maria Valeriana Leme de Moura-Ribeiro
Nas duas últimas décadas, o acidente vascular cerebral (AVC) no período perinatal, na infância e adolescência tem sido pro‑ gressivamente reconhecido e valorizado em muitos países. Es‑ tudos populacionais de AVC, observando a idade de 29 dias de vida a 18 anos, apresentam estimativa de 2,4 a 13 crianças por 100.000 habitantes/ano, com média de casos fatais entre 5 e 10%. Na avaliação evolutiva de longo prazo dos sobreviventes, constatam-se, em 50%, deficiências motoras, comprometi‑ mento da linguagem, do comportamento e do aprendizado, com elevado custo econômico e social, além do envolvimento emocional da família e dos cuidadores. Adicionalmente, 30% das crianças acometidas podem apresentar recorrência do AVC. Dentro desse contexto, neonatologistas, pediatras e neurologis‑ tas pediátricos têm procurado solucionar dificuldades relacio‑ nadas a: identificação de sintomas e sinais para o diagnóstico; fatores de risco cardíaco, hematológico, infeccioso, metabólico e outros; exames laboratoriais e de imagens que comprovem o diagnóstico de AVC isquêmico arterial (AVCI), AVC hemorrági‑ co (AVCH) e trombose sinovenosa cerebral (TSVC).1,2 Em recém-nascido normal, o fluxo sanguíneo cerebral é de 45 mL/100 g de tecido/minuto; em lactentes, o fluxo sanguí‑ neo cerebral normal é de 80 mL/100 g de tecido cerebral/mi‑ nuto. Em condições de risco, existe redução do fluxo, isque‑ mia no tecido local e, em decorrência, um conjunto de modificações metabólicas, edema citotóxico, aumento de neurotransmissores excitatórios, alteração da homeostase do cálcio e radicais livres.2 Apesar dessas afirmações, aproximadamente 50% das crianças com AVCI, AVCH e TSVC mantêm-se subdiagnostica‑ das. Para os vários tipos de AVC, é necessário identificar os fa‑ tores de riscos, sendo os mais frequentes: • anormalidades sistêmicas agudas (febre, sepse, desidratação, acidose, gastroenterite viral); • arteriopatias (anemia falciforme, doença de moyamoya, pós‑ -varicela, vasculites inespecíficas); • anormalidades cardíacas (congênita, adquirida, forame oval patente, arritmia);
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• situações agudas (trauma, otite, sinusite, faringite, meningite); • estados protrombóticos (deficiência de metilenotetra-hidro‑ folato redutase, fator V de Leiden, deficiência de proteína S, de proteína C, mutação da protrombina 20210A, deficiência de antitrombina III, hiper-homocisteinemia); • anormalidades sistêmicas crônicas (deficiência de ferro, anor‑ malidades de tecido conectivo, trissomia 21). Entre as vasculopatias não inflamatórias, devem ser lembra‑ das também a síndrome da vasoconstrição cerebral reversível (reversible cerebral vasoconstriction syndrome – RCVS).1,3,4 Recentemente, o International Pediatric Stroke Study (IPSS) divulgou a mensagem: “AVC pode acontecer em qual‑ quer idade”, alertando para os fatores de risco associados às condições genéticas e adquiridas do AVC na infância e adoles‑ cência. Em recentes publicações, pediatras e neonatologistas têm valorizado e reconhecido eventos cerebrovasculares em várias fases: • feto (14ª semana de gestação); • período perinatal (recém-nascido entre 28 semanas de gesta‑ ção e 28 dias de vida pós-natal); • criança (predomínio nos 3 primeiros anos de vida); • adolescentes. Em relação à idade, verifica-se frequência maior de AVCI nos 3 primeiros anos de vida. Várias publicações confirmam maior frequência de acometimento nos 3 primeiros anos de vida, com ênfase no primeiro ano.1,2,8 No feto, o AVC raramente é identificado por ultrassonogra‑ fia transabdominal na mãe gestante em acompanhamento ambulatorial; somente após o nascimento, no 3º ou 4º mês de vida, pode ser detectada a alteração motora (hemiparesia) e objetivamente confirmado o AVC por tomografia computado‑ rizada (TC) ou ressonância magnética (RM) de crânio, cujo território frequentemente acometido é o da artéria cerebral média.
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Acidente Vascular Cerebral na Infância •
Os fatores de risco para icto fetal dependem de: • condições maternas (trombofilias, alteração de coagulação sanguínea, gestante usuária de drogas ilícitas); • fatores placentários; • síndrome do roubo em gemelares monocoriônicos; • causas não identificadas. Nesta abordagem, consideram-se relevantes as informações referentes aos dados maternos e gestacionais, como idade da mãe, número de abortamentos, consanguinidade, infecções, doenças pregressas, uso regular de fármacos, consumo de dro‑ gas (fumo, álcool e drogas ilícitas). Sintomas e sinais de alerta no período perinatal Em neonatos, o AVC ocorre em 1/4.000 nascidos vivos. O quadro clínico agudo manifesta-se no período de 24 a 72 horas após o nascimento e caracteriza-se por hiperexcitabilidade ou alterações da vigilância, reflexo de sucção diminuído, hipoto‑ nia, apneia com ou sem convulsões. O diagnóstico de AVC é confirmado utilizando ultrassonografia transfontanela, TC e RM de crânio; a ultrassonografia com Doppler também é uma avaliação sensível do fluxo sanguíneo regional. Existe, no en‑ tanto, possibilidade de o AVCI ou AVCH ter ocorrido no último trimestre da gestação, sendo essa condição identificada como AVC presumível intragestacional.2,5 No período neonatal, tem sido possível detectar, conjunta‑ mente, fatores complicadores, como hipertensão arterial ma‑ terna, pré-eclâmpsia, parto prolongado, oligoidrâmnio, co‑ rioamnionite, rotura de membranas, alterações placentárias e frequência cardíaca fetal anormal. É recomendável avaliar as condições da placenta, do líqui‑ do amniótico, do cordão umbilical, além dos dados sobre o re‑ cém-nascido. Portanto, deve-se sempre valorizar a avaliação completa, realizada no nascimento, com catalogação das con‑ dições vitais, assim como o índice de Apgar no 1º e no 5º minu‑ tos de vida, que oferece informações sobre frequência cardía‑ ca, esforço respiratório, tônus muscular, atividade reflexa e cor da pele. Quanto à TSVC em neonatos, aproximadamente 40% de‑ senvolvem infarto isquêmico e, destes, há possibilidade de he‑ morragia, comprovada por RM de crânio, em 70%. Na infância, o quadro clínico inaugural caracteriza-se por: manifestações convulsivas típicas ou atípicas, precedidas ou não de modificações da vigilância, particularmente em crian‑ ças com idade inferior a 2 anos. As manifestações epilépticas podem ser breves ou prolongadas, lateralizadas ou generaliza‑ das, constatando-se alterações motoras (hemiparesia, modifi‑ cações posturais) no pós-crise; lactentes que iniciaram as primeiras palavras, após o icto, podem apresentar comprome‑ timento da emissão de sílabas, de palavras, permanecendo o choro, irritabilidade ou apatia. Em crianças de idade superior a 2 anos, a suspeita diagnóstica torna-se preocupante ao sina‑ lizar dor de cabeça súbita, associada ou não a vômitos, indi‑ cando a possibilidade de o AVCI ter se transformado em AVCH.2,3,5
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Com esses achados, a criança acometida deve ser internada imediatamente em unidade de terapia intensiva, visando comprovar o diagnóstico, utilizando recursos de laboratório e exames de imagem, documentadas por TC de crânio, RM por difusão, identificando o local e a extensão do território vascu‑ lar comprometido. Os avanços no conhecimento da fisiopatologia de várias doenças pediátricas, bem como o tratamento de anormalida‑ des sistêmicas, têm prolongado a sobrevivência de crianças e adolescentes, possibilitando, em médio e longo prazos, a ins‑ talação de insultos vasculares, isquêmicos, hemorrágicos e tromboses. De modo geral, a etiologia pode ser identificada em 60% dos AVCI e em 80% dos AVCH, sendo possível ainda constatar recorrência em 30% dos pacientes.6,7 No AVCH em crianças e adolescentes, na ausência de fatores traumáticos, pode se constatar agudamente sintomas e sinais associados à hemorragia cerebral ou subaracnoidea; o quadro neurológico agudo caracteriza-se por dor de cabeça grave, vô‑ mitos, hemiparesia manifestações convulsivas e alterações do comportamento, com frequente comprometimento da cons‑ ciência. A avaliação da causa provável da hemorragia requer: procedimentos laboratoriais para identificar anormalidades he‑ matológicas e defeitos de coagulação; exames por imagens, RM, ângio-RM e arteriografia, para detectar lesões estruturais, como malformações arteriovenosas, aneurismas, cavernomas e mal‑ formação da veia cerebral magna (de Galeno). As imagens obti‑ das fornecem as características das lesões vasculares. Em função da causa básica hemorrágica detectada em crianças e adolescentes, impõe-se a orientação em parceria com cardiologista, hematologista ou neurocirurgião. Portanto, uma vez detectadas as malformações vasculares, a orientação final, o tratamento com o paciente internado em centros de re‑ ferência e o estabelecimento da dinâmica de tratamento pelo neurocirurgião ou pelo médico intervencionista, serão organi‑ zados a seu tempo, visando não somente à possibilidade de re‑ corrência do AVCH, mas também à preservação da vida do pa‑ ciente e à prevenção das sequelas neurológicas de menor gravidade. A TSVC ocorre particularmente no período perinatal e au‑ menta a incidência na puberdade em função de alterações hormonais, uso de contraceptivos e gravidez. A morbidade é elevada (20 a 30%), e a mortalidade, variável entre 10 e 16%. A partir da confirmação do diagnóstico, o tratamento com a criança internada deve observar: cuidados gerais (monitora‑ ção cardiorrespiratória, balanço hidreletrolítico e nutricional, controle de infecções); cuidados específicos (tratamento clíni‑ co, cirúrgico, intervencionista, fisioterapia intra-hospitalar). Para cada criança, devem ser discutidas diariamente, com atenção, as medidas a serem tomadas na dependência da ida‑ de e das condições críticas de saúde (analgésicos, antibióticos, antieméticos, antiedematoso, tranquilizantes, anticonvulsi‑ vantes, repouso, com assessoramento da enfermagem). No tratamento específico do AVCI, pode-se utilizar o ácido acetilsalicílico, via oral, em doses de 1 a 3 mg/kg/dia, com ação antiagregante plaquetária.
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Na TSVC, devem ser identificados os fatores de riscos com monitoração do tratamento com anticoagulantes, durante 6 meses após o evento agudo. Em trombofilias, deve ser consi‑ derada a anticoagulação (fator V de Leiden e mutação da pro‑ trombina; deficiência de proteína S ou C; deficiência de anti‑ trombina III). Na síndrome do anticorpo antifosfolípide, deve-se pesqui‑ sar anticoagulante circulante e estudar laboratorialmente a mãe do recém-nascido com diagnóstico comprovado de trom‑ bose venosa. As delineações no tratamento em neonatos, lactentes, crianças e adolescentes devem ter coparticipação resolutiva de hematologista, cardiologista ou neurocirurgião, observan‑ do a etiologia básica do AVC identificado, visando ao sucesso terapêutico, minimizando as sequelas evolutivas e esclarecen‑ do a hereditariedade. Evolução Interessantes constatações evolutivas têm sido publicadas na literatura internacional e nacional quanto ao impacto da lesão vascular no desempenho evolutivo de crianças e adolescentes, observando as funções intelectuais, neuropsicológicas, com‑ portamentais e acadêmicas.8,9 Assim, o acompanhamento ambulatorial, em longo prazo, tem possibilitado a verificação de alterações relacionadas ao amadurecimento cerebral, com repercussão no aprendizado da escrita, leitura e raciocínio matemático. Do ponto de vista evolutivo, os pacientes apresentaram piores resultados no de‑ sempenho neuropsicológico quando o AVC ocorreu em idade precoce, com extensa lesão córtico-subcortical e com manifes‑ tação epiléptica. O desempenho foi satisfatório quando o AVC ocorreu em idade escolar e na adolescência, sem lesão subcor‑ tical e sem manifestação epiléptica.10 Em relação ao processamento auditivo observando aspec‑ tos evolutivos, foi possível identificar comprometimento da atenção seletiva.9 Com essas constatações, existe necessidade de acompa‑ nhamento prospectivo, amparando também situações emo‑ cionais da criança, dos pais e dos cuidadores.9-11 Concluindo, o pediatra e o neurologista infantil devem es‑ tar atentos às repercussões do AVC no transcorrer do desen‑ volvimento da criança, lembrando que as agressões ao cérebro em desenvolvimento podem determinar sequelas motoras e comportamentais, com repercussão acadêmica e elevado cus‑ to para a sociedade. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Considerar a possibilidade de AVC no período perinatal em recém-nascidos que, após 24 horas, apresentam progressiva alteração da vivacidade clínica, dificuldade na sucção com ou sem convulsão. Nesses pacientes, deve-se solicitar ultrassonografia ou TC de crânio, com urgência.
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• Valorizar a possibilidade de AVC em lactentes em situação de alteração motora súbita em membros (hemiparesia), modificação do comportamento, da vigilância ou da consciência, sendo indicado estudo imediato por imagens (TC de crânio e/ou RM) para confirmar AVC isquêmico, AVC hemorrágico ou trombose sinovenosa cerebral. • Valorizar fatores de risco, na infância e na adolescência, direcionados a anormalidades cardíacas, hematológicas, fatores infecciosos crônicos ou agudos e fatores traumáticos. • Sempre considerar a possibilidade de recorrência do AVC (30%). • Em função do território vascular envolvido e da extensão do comprometimento cerebral, orientar os familiares e cuidadores sobre a importância do acompanhamento evolutivo da criança em médio e longo prazos, visando a identificar alterações motoras, comportamentais e do aprendizado escolar.
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CAPÍTULO 13
ATAXIAS NA INFÂNCIA Simone Carreiro Vieira Karuta
Introdução A ataxia é, por definição, uma alteração da postura e do con‑ trole dos movimentos voluntários que ocorre secundariamen‑ te a uma afecção do cerebelo e das vias cerebelares. A caracte‑ rística mais proeminente é a marcha atáxica, que se dá por uma base alargada e incoordenação na deambulação gerando, no observador, a sensação iminente de que o paciente sofrerá uma queda.1 A ataxia pode ser classificada de acordo com a localização da lesão, como cerebelar, sensorial ou mista. A ataxia cerebe‑ lar ocorre quando há uma afecção em vérmis ou hemisférios cerebelares gerando sintomas como marcha atáxica, ataxia de tronco com instabilidade durante a posição sentada, além de tendência a queda para o lado da lesão hemisférica, dismetria e hipotonia associadas.1 A ataxia sensorial é secundária a uma afecção de nervos pe‑ riféricos ou coluna dorsal da medula e ocasiona alterações na propriocepção e na sensibilidade vibratória desses pacientes. Nesses casos, tem-se o famoso sinal de Romberg positivo (ins‑ tabilidade posicional com os olhos fechados). Já a ataxia mista (cerebelar e sensorial) tem como principal exemplo a ataxia de Friedreich.2 Ainda com relação à classificação as ataxias, elas podem ser ordenadas como agudas ou crônicas, progressivas e não pro‑ gressivas, ou episódicas.3 Ataxias agudas As ataxias agudas são uma queixa relativamente comum no pronto atendimento pediátrico. O termo “aguda” deve ser em‑ pregado quando a dificuldade de marcha e de controle de mo‑ vimentos finos teve início há menos de 72 horas em uma crian‑ ça previamente hígida. Ataxia cerebelar aguda é a causa mais comum de ataxias na infância e engloba 30 a 50% de todos os casos.4 Para facilitar a compreensão sobre os fenômenos que po‑ dem ocasionar ataxia de caráter agudo, a etiologia será aqui di‑ vidida com base na faixa etária dos pacientes.
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Infância precoce Síndrome de opsoclônus-mioclônus-ataxia (Kinsbourne) A síndrome de opsoclônus-mioclônus-ataxia pode estar pre‑ sente em crianças a partir dos 6 meses de idade ou até mesmo, em raras exceções, em crianças ainda mais jovens. Trata-se de uma síndrome paraneoplásica e autoimune que, em 50% dos casos, está associada a neuroblastomas ou ganglioneuroblas‑ tomas.1 O restante da porcentagem relaciona-se à presença de infecções (herpes vírus, HIV, dengue, encefalite autoimune). Apesar de acreditar-se que esta é uma síndrome autoimune, seu mecanismo de ação ainda não está elucidado. A sintomatologia cursa com ataxia de tronco e de membros, movimentos oculares de grande amplitude, rápidos, conjuga‑ dos e caóticos, e mioclonias tanto palpebrais quanto rizoméli‑ cas.1 A essa tríade, agregam-se irritabilidade intensa e regres‑ são do desenvolvimento neuropsicomotor. A exérese do tumor não necessariamente ocasiona melhoria clínica no qua‑ dro da síndrome e não raramente as crianças permanecem acometidas pelos sintomas. Vale a pena ressaltar que a ataxia pode ser sintoma único em alguns casos, e pode preceder, em anos, o aparecimento dos movimentos oculares e mioclonias, postergando, assim, o diagnóstico e tratamento corretos. Não há biomarcadores para essa síndrome, e comumente as crian‑ ças necessitam submeter-se a exame de tomografia computa‑ dorizada (TC) ou ressonância magnética (RM) de tórax como parte da investigação. O tratamento é realizado com corticoterapia e outros imu‑ nossupressores, como imunoglobulina, ciclofosfamida e ritu‑ ximabe.5 Idade pré-escolar (1 a 4 anos) Ataxia cerebelar aguda pós-infecciosa É a causa mais comum de ataxia cerebelar na infância e é res‑ ponsável por aproximadamente 30 a 50% dos casos. Varicela é o vírus mais comumente associado, mas inúmeros outros agentes infecciosos podem estar implicados na sua gênese (Epstein-Barr, hepatite A, Legionella, influenza, herpes vírus
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1376 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 17 NEUROLOGIA
simples, enterovírus, parvovírus B19, Mycoplasma).6 Pacientes submetidos a vacinação também podem experimentar a mes‑ ma sintomatologia. Acredita-se que a patologia está baseada na desmielinização cerebelar pós-infecciosa causada por uma reação cruzada de anticorpos contra epítopos cerebelares.4 A ataxia pode iniciar até 3 semanas após os sintomas sistê‑ micos aparecerem. Os sinais clínicos cursam com uma sín drome cerebelar pura, com ataxia de marcha e de tronco, asso‑ ciadas a irritabilidade. A resolução do quadro é espontânea, ocorre dentro de 2 semanas e não requer intervenções. O exa‑ me de líquido cefalorraquidiano (LCR) revela pleiocitose mo‑ derada, e a RM é comumente normal.6 Cerebelite aguda Resume-se a um quadro que pode surgir após infecção sistê‑ mica ou localizada no próprio cerebelo. Os agentes associados são o rotavírus, Mycoplasma e herpes vírus humano tipo 6. O quadro clínico difere da ataxia cerebelar aguda pós-infecciosa pela presença de sintomas sistêmicos associados, como febre, rigidez de nuca, alterações do nível de consciência e sinais e sintomas de aumento da pressão intracraniana com edema principalmente cerebelar, detectável por exames de neuroi‑ magem. Esta é uma condição que necessita de tratamento precoce, pelo o risco de morte iminente.1 Intoxicação A segunda causa mais comum de ataxia aguda na infância é a ingestão acidental de drogas. As intoxicações por anticonvul‑ sivantes (benzodiazepínicos, fenitoína), chumbo, inseticidas, anti-histamínicos, antitussígenos e álcool são as mais relata‑ das. As alterações clínicas incluem diminuição do sensório, agitação, crises convulsivas e sinais cerebelares.2 Vertigem paroxística benigna É caracterizada por pequenos episódios de vertigem e ataxia com duração aproximada de 1 minuto. Esses episódios não são seguidos de sonolência ou alteração de consciência. Os sintomas predominantes são palidez, nistagmo e medo. Nor‑ malmente essas crianças correm em direção ao cuidador du‑ rante o episódio para que ele lhe dê suporte. São eventos de re‑ solução espontânea ao redor dos 7 aos 10 anos de idade. O exame neurológico mantém-se normal entre os episódios e um dos poucos dados familiares positivos é a presença de mi‑ grânea. Por esse motivo, acredita-se que a vertigem paroxísti‑ ca benigna seja um precursor da migrânea.3 Encefalomielite disseminada aguda (ADEM) ADEM é um fenômeno imunomediado com início após uma doença viral ou imunização e caracteriza-se por encefalopatia (confusão, irritabilidade, sonolência, mudanças de comporta‑ mento) e déficits neurológicos agudos, como ataxia, crises convulsivas, paralisia de nervos cranianos, febre, hemiparesia e meningismo. O ADEM comumente é um transtorno mono‑ fásico, mas pode ser recorrente ou multifásico. A RM revela le‑ sões hiperintensas nas sequências ponderadas de T1 e Flair em regiões de substância branca subcortical, cerebelo e gân‑
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glios da base. O LCR demonstra aumento de células brancas e de proteínas. O tratamento baseia-se em terapias imunomo‑ duladoras. Como primeira escolha, realiza-se pulsoterapia com corticosteroide, seguida de 4 a 6 semanas de corticotera‑ pia oral. Tratamentos com imunoglobulina e plasmaférese também são sugeridos na literatura, mas vale ressaltar que há poucos estudos realizados com essas intervenções em pacien‑ tes com ADEM.7 Idade escolar (5 a 16 anos) Concussão A concussão cerebelar ocorre após um evento de traumatismo craniano e cursa com déficits transitórios cerebelares sem apresentar alteração do nível de consciência. Os sintomas são marcha com a base alargada, instabilidade de tronco e disar‑ tria. A maior parte das crianças que apresenta esse quadro clí‑ nico sofreu previamente um trauma craniano grave, mas há casos pós-traumas de menor impacto que cursam com a sinto‑ matologia de concussão cerebelar. A resolução do quadro é es‑ pontânea. No caso de trauma craniano na faixa etária pediátri‑ ca, atualmente preconiza-se a realização de TC do encéfalo no setor de emergência hospitalar.1,2 Síndrome de Guillain-Barré As crianças podem apresentar ataxia como um sintoma conse‑ quente de alterações na inervação periférica. A síndrome de Guillain-Barré, causa mais comum de paralisia flácida na in‑ fância, é uma polineuropatia inflamatória aguda que ocorre em uma criança previamente hígida e é caracterizada por fra‑ queza muscular progressiva simétrica associada a arreflexia. A fraqueza muscular inicialmente é de predominância distal e acompanha-se de dor neuropática importante. A ataxia resul‑ tante da fraqueza muscular e de perdas sensitivas é um sinto‑ ma muito comum. Em 50 a 70% dos casos, a síndrome é pre‑ cedida em 2 a 4 semanas por um quadro de gastroenterite ou infecção respiratória. Atualmente, sabe-se também da corre‑ lação entre Guillain-Barré e vacinação contra H1N1. O diagnós‑ tico dessa condição se dá pelo exame de LCR, que mostra um aumento importante de proteínas em comparação ao número de células. Essa proteinorraquia pode não estar presente logo no início do quadro, de modo que a RM com realce das raízes nervosas periféricas e de cauda equina, após injeção de gadolí‑ nio, é de grande auxílio no diagnóstico diferencial. Anticorpos antigangliosídeos são identificados em aproximadamente 50% dos casos e auxiliam no diagnóstico, principalmente em se tratando de formas frustas ou apresentações atípicas.8 Síndrome de Miller Fisher A presença de oftlamoplegia, ataxia e arreflexia caracteriza esta variante da síndrome de Guillain-Barré. A incidência da síndrome é de aproximadamente 2 a 4% em crianças e é cau‑ sada por infecção prévia principalmente pelo patógeno Campilobacter jejuni. Essa infecção gera o aparecimento de anticor‑ pos contra os gangliosídeos GQ1b que reconhecem epítopos similares específicos para o Campilobacter jejuni, propiciando toda a sintomatologia. O LCR revela proteinorraquia impor‑
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Ataxias na Infância •
tante, e o tratamento, assim como na síndrome de Guillain‑ -Barré, baseia-se no uso de imunoglobulina endovenosa ou plasmaférese.6 Migrânea basilar A migrânea basilar caracteriza-se por ataques recorrentes de disfunção cerebelar e de tronco que cursam com uma aura com‑ posta por sintomas como ataxia, perda visual, vertigem, zumbi‑ do, hemiparesia alternante e parestesias dos dedos das mãos, pés e ao redor da boca. Pode ocorrer uma perda de consciência abrupta de curta duração. Em geral, após esses sintomas, há o aparecimento de uma forte cefaleia occipital. Náuseas e vômi‑ tos podem estar associados em um terço dos casos.1,3 Acidente vascular cerebelar Ataxia aguda é um sintoma presente no acidente vascular is‑ quêmico cerebelar. Como nesses casos a circulação posterior está comprometida (Figura 1), além de sintomas cerebelares, os pacientes também cursam com alterações de pares crania‑ nos e hemiparesia contralateral. Os fatores de risco associados a esse tipo de infarto são infecções, coagulopatias, doenças autoimunes sistêmicas, distúrbios cardíacos e vasculopatias. O edema local secundário à isquemia pode ocasionar compli‑ cações potencialmente fatais, como compressão de tronco ce‑ rebral, hidrocefalia e herniação das tonsilas cerebelares.1 A ataxia aguda é rara nos pacientes com acidentes vascula‑ res hemorrágicos cerebelares, sendo as malformações arterio‑ venosas a principal causa relacionada. Esclerose múltipla A esclerose múltipla é uma doença crônica desmielinizante e de caráter inflamatório. Os critérios diagnósticos para a doen‑ ça englobam dois episódios independentes de desmielini zação em um intervalo mínimo de 4 semanas, com RM ence‑
Figura 1 Ressonância magnética craniana mostrando infarto cerebelar na sequência de Flair.
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fálica mostrando lesões em diferentes regiões cerebrais. Ao contrário dos adultos, na infância, a ataxia aguda é um sinto‑ ma extremamente comum em pacientes com esclerose múlti‑ pla. As lesões características na RM são dispostas de forma perpendicular ao longo do eixo do corpo caloso (dedos de Dawson).7 Ataxias episódicas São condições neurológicas raras, com incidência aproximada de 1:100.000, caracterizadas por episódios de incoordenação, ataxia e instabilidade postural. Entre os episódios, os pacien‑ tes podem cursar com fraqueza muscular, distonia e ataxia. Até o presente momento, foram identificados 8 tipos genéti‑ cos de ataxias episódicas, sendo o tipo 2 o mais comum. Os ge‑ nes alterados participam do funcionamento dos canais de cál‑ cio e potássio voltagem-dependentes, e esses canais estão presentes em todo o sistema nervoso, mas, particularmente, apresentam-se em grande quantidade no cerebelo. As ataxias episódicas tipo 1 e 2 são precipitadas por estresse físico ou emocional. Vertigem, náuseas e vômitos são os sintomas mais comumente associados e ocorrem em 50% dos pacientes. O tratamento com acetazolamida gera uma resposta dramática.9 Ataxias crônicas Para facilitar a elaboração de uma hipótese diagnóstica em crianças com ataxias de caráter crônico, visto que há uma imensa variedade de doenças dentro dessa classificação, é ne‑ cessário identificar o momento de início da sintomatologia se‑ parando as ataxias como congênitas ou adquiridas; avaliar a evolução do quadro clínico mensurando o caráter progressivo ou não progressivo da doença e apontar a provável etiologia das ataxias crônicas como sendo hereditárias ou não hereditárias.10 Ataxias crônicas não progressivas congênitas Nesta classificação, estão as crianças que apresentam malfor‑ mações cerebelares e de suas vias, de inúmeras causas relacio‑ nadas. A forma de transmissão dessas ataxias pode ser como herança autossômica recessiva, dominante e ligada ao X. To‑ das as entidades manifestam-se com hipotonia desde o nasci‑ mento e com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. A ataxia torna-se evidente após o 1º ano de vida na maioria das crianças, e a principal representante dessa forma é a síndrome de Joubert.11 Trata-se de uma entidade rara de grande variabilidade clí‑ nica e de neuroimagem. Seu modo de herança é autossômico recessivo, caracterizada por alterações na regulação respirató‑ ria no período neonatal, atraso do desenvolvimento neuropsi‑ comotor, inabilidade mental, hipotonia, ataxia e nistagmo. Essa síndrome associa-se a vários graus de hipoplasia vermia‑ na e a alterações na decussação de fibras nervosas na região do pedúnculo cerebelar superior e no trato piramidal, o que oca‑ siona um adelgaçamento na região dos pedúnculos cerebela‑ res gerando a imagem característica da síndrome visualizada no exame de RM: o sinal do dente molar (Figura 2). Clinicamente, o distúrbio envolve vários sistemas e cursa com alterações retinianas, renais, fibrose hepática e polidacti‑
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O astrocitoma (Figura 3) constitui 12% dos tumores na fai‑ xa etária pediátrica, e os sinais e sintomas habituais são cefa‑ leia, ataxia, vômitos, papiledema, paralisia de nervos crania‑ nos e dismetria.3 Ataxias crônicas hereditárias progressivas A forma de herança neste grupo de doenças pode ser autossô‑ mica recessiva, dominante, ligada ao X ou materna (mitocon‑ driais). Neste capítulo, não serão abordadas as ataxias de he‑ rança autossômica dominante, pela raridade dessas doenças na faixa etária pediátrica.10 Ataxias autossômicas recessivas
Ataxia de Friedreich
Figura 2 Ressonância magnética encefálica mostrando o sinal de atrofia dos pedúnculos cerebelares e trato piramidal – sinal do dente molar.
lia. Estudos recentes mostram seis subtipos fenotípicos da doença e mutações em dez genes diferentes relacionados à síndrome de Joubert.12 Ataxias crônicas adquiridas As ataxias crônicas adquiridas, geralmente não progressivas, englobam inúmeras causas: hipóxia, isquemia pré ou pós-na‑ tal, encefalite infecciosa ou pós-infecciosa, intoxicações, tu‑ mores.10 Com relação aos tumores, aproximadamente 85% dos que ocorrem em crianças entre 1 e 12 anos estão localiza‑ dos na fossa posterior. Os maiores representantes de lesões nessa localização são o astrocitoma cerebelar, o glioma de tronco, o ependimoma e o meduloblastoma.
Ataxia de Friedreich é, por definição, a ataxia autossômica re‑ cessiva mais comum e que envolve cerebelo, medula espinal e nervos periféricos. Geralmente, os sintomas iniciam ao redor da puberdade e englobam ataxia de marcha, disartria, perda dos reflexos, nistagmo, cifoescoliose e pés cavos. Doença car‑ díaca normalmente está presente, e a morte desses pacientes deve-se a falência cardíaca ou a arritmias. Diabete ocorre em aproximadamente um terço dos pacientes, e a maior parte de‑ les estará confinado a cadeira de rodas com 15 a 20 anos de doença. Neuropatia auditiva e distúrbios urinários são encon‑ trados em uma menor porcentagem de pacientes com a doen‑ ça. Estudos recentes apontam para uma lentificação no pro‑ cessamento de informações nesses pacientes. Uma variedade de outros sintomas pouco relatados também faz parte da sín‑ drome, como tremor, epilepsia, malformações congênitas, maior incidência de depressão e transtornos afetivos, distúr‑ bios vasomotores e hiposmia. O diagnóstico é realizado pela análise genética, mas exames de neuroimagem avançados (RM funcional, imagem por tensor de difusão e análise estatís‑ tica baseada em tratos) têm sido de grande auxílio no correto entendimento de patofisiologia da doença. A RM convencio‑ nal desses pacientes mostra atrofia da medula espinal sem atrofia cerebelar, dado importante no diagnóstico diferencial. A ataxia de Friedreich se deve a uma expansão do trinucleo‑ tídio guanina-adenina-adenina no íntron 1 do gene X25, que codifica uma proteína chamada frataxina. Na atualidade, o tra‑ tamento baseia-se no uso da coenzima Q10 e do idebenone. O idebenone apresenta função de citoproteção nos fibroblastos de pacientes com AF. O consenso existente é que tanto a coen‑ zima Q10 quanto o idebenone, administrados em altas doses em pacientes com menor tempo de evolução e menor gravida‑ de da doença, geram melhora com relação às alterações cardía‑ cas, mas não há alterações nos sintomas neurológicos.13 Ataxia telangiectasia
Figura 3 Ressonância magnética craniana, corte sagital, mostrando astrocitoma pilocítico (lesão cística).
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Ataxia telangiectasia é um distúrbio caracterizado por início precoce (ao redor dos 3 anos de idade) de ataxia cerebelar as‑ sociada ao aparecimento de telangiectasias oculocutâneas (Figura 4), imunodeficiência, transtornos endocrinológicos e câncer. Ao redor dos 10 anos de idade, esses pacientes estarão confinados a cadeira de rodas. Com frequência, identificam-se distúrbios de movimentos associados ao quadro de base, sen‑
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com Friedreich. O principal critério diagnóstico para ataxia com deficiência de vitamina E são os sintomas descritos asso‑ ciados a baixos níveis plasmáticos de vitamina E. Habitual‑ mente, os pacientes têm início da sintomatologia na infância tardia ou na adolescência. O diagnóstico precoce é de extrema importância, pois permite intervenção terapêutica precoce. A suplementação em altas doses de vitamina E previne a pro‑ gressão da doença e pode reverter alguns sinais neurológicos.16 Doença de Refsum
Figura 4 Presença de telangiectasias oculares em um paciente com diagnóstico de ataxia-telangiectasia.
do a coreia e a distonia os mais comuns. O gene mutado (ATM) está localizado no cromossomo 11q22-23 e é responsável por decodificar uma proteína chamada ATM creatinoquinase, res‑ ponsável pela reparação de DNA alterado em processos meta‑ bólicos ou por agentes tóxicos externos. Detecta-se importan‑ te atrofia cerebelar ao exame de RM, e a maior parte dos pacientes apresenta aumento dos níveis séricos de alfafeto‑ proteína e diminuição dos níveis de imunoglobulinas A e G.12 Ataxia com apraxia oculomotora tipo I
Os sintomas de ataxia cerebelar e apraxia oculomotora têm início entre 2 e 18 anos de idade. Na evolução da doença, os pacientes comumente apresentam dismetria, neuropatia sen‑ sório-motora associada a distonia ou inabilidade mental, hipoalbubinemia, hipercolesterolemia e níveis normais de al‑ fafetoproteína e imunoglobulinas. Não há evidências de insta‑ bilidades cromossômicas nem predisposições a tumores, ao contrário do que se observa na ataxia telangiectasia. Mutações no gene APTX localizado no cromossomo 9q13-3 são encon‑ tradas nos pacientes com ataxia com apraxia oculomotora tipo I.14 Ataxia com apraxia oculomotora tipo II
Pacientes com esse tipo de distúrbio apresentam ataxia de marcha, atrofia cerebelar, neuropatia sensoriomotora, apraxia oculomotora e níveis elevados de alfafetoproteína e imunoglo‑ bulinas. A idade de início varia entre 10 e 22 anos, e a mutação no gene SETX localizado no cromossomo 9q34, foi identifica‑ da nesses pacientes.15 Ataxia com deficiência de vitamina E
A sintomatologia dos pacientes com ataxia secundária a defi‑ ciência de vitamina E é muito semelhante à dos pacientes com ataxia de Friedreich. Titubeação de cabeça, retinopatia e dis‑ tonia são mais comuns em pacientes com deficiência de vita‑ mina E, enquanto cardiomiopatia, intolerância a glicose, esco‑ liose e deformidades nos pés são mais comuns em pacientes
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As principais características clínicas desta doença são ictiose, retinite pigmentar e neuropatia. Ataxia cerebelar, anosmia, surdez, arritmias cardíacas e anormalidades ósseas também podem estar presentes. Os sintomas aparecem antes dos 20 anos de idade e são secundários a uma alteração na degrada‑ ção do ácido fitânico, originada por uma mutação no gene PHYN. Uma dieta restrita em ácido fitânico pode melhorar sig‑ nificativamente a neuropatia periférica e a ataxia.10 Ataxias mitocondriais Neste grupo, encontram-se as mutações de POLG 1 responsá‑ veis pela síndrome de ataxia recessiva mitocondrial; o déficit primário de coenzima Q10, condição tratável se houver suple‑ mentação de coenzima Q10 principalmente em crianças; síndrome de NARP (ataxia cerebelar, neuropatia sensitivomo‑ tora e cegueira noturna); síndrome de Kearns-Sayre, caracteri‑ zada por ataxia, oftalmoplegia externa, retinite pigmentar, blo‑ queio AV completo, hiperproteinorraquia e hiperlacticidemia.12 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conceituar a síndrome atáxica e reconhecer seus principais sinais e sintomas. • Identificar os principais tipos de ataxias de acordo com os sintomas (cerebelar, sensitiva e mistas), com o tempo de início (agudas e crônicas) e de acordo com sua evolução (intermitentes, não progressivas e progressivas). • Saber as causas mais comuns de ataxias agudas e aquelas que são potencialmente danosas e necessitam ser tratadas em caráter de urgência e emergência. • Saber que, dentre as ataxias agudas, a causa mais comum de ataxias na infância é a pós-infecciosa e que habitualmente está correlacionada com o vírus da varicela. • Saber que, das causas de ataxias crônicas progressivas na infância, a mais comum é a ataxia de Friedreich, uma doença heterogênea que compromete não somente sistema nervoso, mas também outros órgãos e sistemas. • Reconhecer na ataxia de Joubert a principal representante das ataxias crônicas de caráter não progressivo. • Identificar as ataxias crônicas progressivas que possuem tratamento medicamentoso potencialmente curativo (deficiência primária de coenzima Q10, deficiência de vitamina E, doença de Refsum).
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CAPÍTULO 14
CEFALEIAS Abram Topczewski
Introdução A cefaleia na infância e na adolescência é um sintoma comum e frequente, que se manifesta associada a um grande número de doenças, sejam elas sistêmicas ou neurológicas. Em virtu‑ de das suas características benignas, na maior parte das vezes, a cefaleia é pouco valorizada ou mesmo negligenciada pelos familiares e mesmo até pelos profissionais. Os dados colhidos coletados na anamnese são de fundamental importância para o diagnóstico e para a orientação terapêutica. Essas informa‑ ções nem sempre são bem definidas, ao se considerar a idade da criança. Sobre a dor, é importante saber: • há quanto tempo apareceu: horas, dias, semanas, meses; • frequência: diária, semanal, mensal; • intensidade: fraca, média, forte, muito forte; • localização: frontal, temporal, parietal, occipito-cervical, di‑ fusa; • período: manhã, tarde, noite, madrugada; • duração: minutos, horas, dias; • limitação das atividades habituais; • existência de fatores precipitantes; • existência de fatores de alívio ou acentuação; • alterações comportamentais ou do humor; • interferência no desempenho escolar; • existência de casos semelhantes nos familiares; • tratamento em curso ou realizado; • consumo de álcool ou substâncias ilícitas. O exame clínico neurológico deve ser minucioso para que pos‑ sam ser detectados sinais de alguma doença sistêmica ou do sistema nervoso. Em muitas ocasiões, a avaliação neuro-oftal‑ mológica se faz necessária, especialmente se considerar a hi‑ pertensão intracraniana e o glaucoma. Quando há suspeita de comprometimento orgânico, tornam-se necessários os exa‑ mes por imagem e os laboratoriais.1
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Causas da cefaleia A cefaleia pode se manifestar de modo agudo ou seguir um cur‑ so crônico. As causas mais frequentes da cefaleia aguda são as doenças infecciosas, a hemorragia intracraniana, o trauma cra‑ niano e os processos inflamatórios. Esse tipo de cefaleia tam‑ bém é, também, denominado de cefaleia secundária. Geral‑ mente a dor é generalizada, porém pode se localizar na região frontal ou occipital, tipo pulsátil. Em algumas ocasiões, a dor pode ser localizada, como nos casos de otite, sinusite e celulite. Quando há comprometimento do sistema nervoso, outros sin‑ tomas poderão podem estar associados, como vômitos, rigidez de nuca e sinais de irritação meníngea. O traumatismo cra‑ nioencefálico é causa frequente de cefaleia aguda generalizada ou localizada. A hipertensão arterial causa cefaleia, localizada na região posterior do crânio e, geralmente, em decorrência de doenças renais, colagenoses ou disfunções endócrinas. A dis‑ função da articulação temporomandibular (ATM), além da dor localizada, pode se irradiar e causar cefaleia na região do vérti‑ ce. Outras causas devem ser mencionadas, como a hipoglice‑ mia consequente a pós-jejum prolongado, dietas e uso inade‑ quado dos hipoglicemiantes. As mudanças do hábito do sono, dormir menos que o habitual necessário, e o estado pós-con‑ vulsivo, devem ser lembrados como causa de cefaleia. Cefaleia primária Migrânea ou enxaqueca, classificada como uma das cefaleias primárias, é outra causa de dor aguda com manifestação re‑ corrente. O quadro costuma ser familiar, pois são encontrados casos semelhantes em 50 a 90% dos parentes próximos.2 Os episódios de dor podem se manifestar com intervalos de dias, semanas ou meses. A incidência no pré-escolar é de 3 a 4%, e no escolar, 4 a 11%; no adolescente, está em torno dos 25% e, nesse caso, predomina no sexo feminino.2,3 Na infância, a dor é frequentemente bilateral, com característica pulsátil. Irrita‑
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bilidade, apatia, anorexia, náuseas e vômitos podem acompa‑ nhar o quadro álgico. Vários são os fatores desencadeantes da migrânea, como certos alimentos (queijos, chocolate, embuti‑ dos, frituras, cítricos, shoyu), bebidas (vinho tinto, destila‑ dos), odores (perfumes, combustível, desinfetantes, tintas), alteração do ritmo de sono e estresse. O diagnóstico é clínico e baseado nas recomendações ICHD-II:4 • 4 a 5 crises por mês; • duração de 1 a 48 horas; • dor uni ou bilateral pulsátil; • de intensidade moderada a forte; • acentuada pelo esforço físico; • náuseas e/ou vômitos, fonofobia, fotofobia. A migrânea sem aura é a forma de apresentação mais frequen‑ te. A migrânea com aura é a menos frequente na infância; pre‑ cedendo a dor, há referência de: • fenômenos visuais (bolinhas coloridas, flashes de luz, linhas interrompidas, redução ou escurecimento de campo visual, macro ou micropsia); • fenômenos sensitivos (formigamento na boca, língua, hemi‑ corpo); • alterações da fala do tipo disfasia ou disartria. O diagnóstico da migrânea é clínico, portanto, os exames labo‑ ratoriais ou por imagem carecem de indicação. Há outras formas de apresentação da migrânea, como a he‑ miplégica. Essas crises podem durar de minutos a 24 a 48 ho‑ ras, podendo ser esporádicas ou familiares. Além do quadro deficitário sensitivomotor, manifestações visuais, náuseas e vômitos podem estar associados. A migrânea basilar, mais frequente nos adolescentes, apre‑ senta-se com alterações do campo visual, disartria, vertigem, diplopia, ataxia, zumbido, parestesias nos membros e altera‑ ção do nível de consciência. A migrânea basilar pode, em cer‑ tas ocasiões, ser confundida com doenças do tronco cerebral, por conta dos múltiplos sintomas que acompanham o quadro. A migrânea oftalmoplégica manifesta-se com dor na região da órbita, uni ou bilateral, de grande intensidade, associada a paralisia transitória dos nervos oculomotores. Há referência de diplopia, estrabismo e ptose palpebral. Essas alterações po‑ dem persistir por semanas ou meses. Nestas três formas da migrânea – hemiplégica, basilar e of‑ talmoplégica –, os exames por imagem são necessários para o diagnóstico diferencial de outras doenças intracranianas (tu‑ mor, alterações vasculares, processos infecciosos ou inflama‑ tórios). Há que se considerar a migrânea menstrual, que pode apre‑ sentar os sintomas no período pré, peri ou pós-menstrual. As crises, em muitas ocasiões, são precedidas por ansiedade, de‑ pressão ou letargia. Síndromes periódicas Alguns sintomas devem ser mencionados, pois são considera‑ dos como precursores da migrânea e que se manifestam espe‑ cialmente no período lactente e no pré-escolar. As característi‑
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cas dos sintomas, a periodicidade e a duração sugerem, fortemente, uma relação muito próxima com o quadro da mi‑ grânea. Este grupo se denomina como síndromes periódicas.5 1. Os vômitos cíclicos que os lactentes apresentam são, em gran‑ de parte das vezes, atribuídos a refluxo gastroesofágico ou in‑ tolerância alimentar, mesmo quando aparecem 1 a 2 vezes/ mês. Há casos em que o início é mais tardio, em torno dos 3 a 4 anos de idade. 2. As dores abdominais periumbilicais são recorrentes e paroxís‑ ticas, por vezes associadas a náuseas, vômitos e palidez cutâ‑ nea. Por conta desses sintomas, que configuram a migrânea abdominal, muitas vezes as crianças são submetidas a uma série de procedimentos laboratoriais que se apresentam nega‑ tivos mais de uma vez. Embora seja mais frequente entre 4 e 5 anos de idade, os sintomas podem ser notados já no 1º ano de vida. 3. As dores nos membros inferiores, especialmente noturnas e durante a madrugada, fazem a criança acordar chorando. Essa queixa pode ser semanal, mensal ou até com intervalos maiores. O quadro doloroso com caráter paroxístico e impro‑ priamente denominado de “dor do crescimento” pode durar em torno de 20 a 30 minutos, e, em seguida, a criança ador‑ mece. Alguns pacientes referem cefaleia durante o dia; porém, nem sempre valorada, embora sigam o cortejo da migrânea. 4. A vertigem paroxística caracteriza-se pela perda do equilíbrio, palidez facial, olhar assustado, nistagmo e vômitos. A criança, nessas circunstâncias, procura se agarrar em alguém ou em algum móvel por conta da sua insegurança. Nota-se o quadro a partir dos 2 anos de idade. 5. A cinetose é um desconforto causado durante a viagem, por conta do movimento de um veículo, mesmo em trajetos cur‑ tos. No caso, a criança apresenta palidez cutânea, náuseas e vômitos. O mesmo acontece, muitas vezes, em parques de di‑ versão. 6. O torcicolo paroxístico manifesta-se pela súbita queda da ca‑ beça para o lado, que pode vir acompanhada por náuseas e vômitos. Pode-se evidenciar a partir do 1º ano e desaparece aos 4 a 5 anos de idade. A duração do quadro pode ser de mi‑ nutos, horas e até dias. Tratamento Há duas modalidades de tratamento para a migrânea: sinto‑ mático e preventivo. O tratamento sintomático visa a aliviar a dor e os eventuais sintomas associados, especialmente as náuseas e os vômitos. Muitas vezes, o uso de sintomáticos e analgésicos é suficiente para melhoria do quadro migranoso.6 Os medicamentos recomendados nessas circunstâncias são: • paracetamol 10 a 15 mg/kg/dose a cada 4 horas; • dipirona 6 a 10 mg/kg/dose a cada 4 horas; • ibuprofeno 10 a 20 mg/kg/dose a cada 6 horas; • naproxeno 2,5 a 5 mg/kg/dose a cada 6 horas; • clorpromazina 0,25 a 0,5 mg/dose a cada 6 horas. Há outra opção para o tratamento da crise aguda, que são os triptanos. Esses medicamentos bloqueiam a vasodilatação ce‑ rebral, bem como os impulsos dolorosos, além de reduzir o
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Cefaleias •
processo inflamatório. Embora vários estudos tenham de‑ monstrado a eficácia desses medicamentos nos pacientes adultos e adolescentes, no caso dos escolares e pré-adolescen‑ tes, há necessidade de mais avaliações. O sumatriptano é o mais usado na forma de spray nasal (5 a 10 mg) ou subcutânea (3 a 6 mg); além desse, há o rizatritano, o zolmitriptano, o eli‑ triptano e o naratriptano. Os efeitos adversos desses medica‑ mentos podem ser a sensação de calor, opressão torácica, for‑ migamentos. O tratamento profilático7,8 segue algumas formalidades para a sua indicação, como 2 a 3 crises ao mês, crises que inter‑ ferem no desempenho adequado das atividades diárias, crises que se acompanham de alterações sensitivas e motoras. Para tanto, deverá ser preenchido um diário que informe o médico quanto a frequência, intensidade, duração e limitações causa‑ das pela dor. Recomendam-se, nesses casos, bloqueadores do canal de cálcio (flunarizina: 5 a 10 mg/dia), que podem causar obstipação, sonolência e ganho de peso. Betabloqueadores, como propranolol (1 a 2 mg/kg/dia) em duas tomadas, po‑ dem causar fadiga, hipotensão, bradicardia e náuseas; são contraindicados em crianças com asma, insuficiência cardíaca e distúrbio de condução. Os anti-histamínicos (cipro-heptadi‑ na, pizotifeno) são eficazes em certos casos; porém, causam sonolência e ganho de peso. Os antidepressivos tricíclicos (amitriptilina, nortriptilina, imipramina, clormipramina, fluo‑ xetina) são também indicados no tratamento profilático da migrânea; porém, podem causar obstipação, perda de peso, retenção urinária e visão borrada. Outra classe de medicamen‑ tos são os anticonvulsivantes (divalproato de sódio, topirama‑ to, lamotrigina, gabapentina), que se mostraram eficazes em alguns estudos realizados. O tempo de tratamento profilático recomendado pela maioria dos especialistas está na faixa dos 6 a 12 meses. O es‑ quema terapêutico preconizado dependerá da experiência do especialista e dos efeitos adversos inerentes a cada paciente. Há outro tipo de cefaleia primária,4 de evolução crônica não progressiva, que é a cefaleia tipo tensão (CTT), a qual compro‑ mete 20 a 25% das crianças e adolescentes.9 Grande parte das vezes, o paciente desperta já com dor, havendo período de acentuação, relacionado a fatores estressantes. As caracterís‑ ticas são: • dor bilateral; • fraca ou moderada; • 15 a 20 dias ao mês; • tipo aperto ou pressão; • duração de 30 minutos a vários dias; • não piora com atividades físicas; • ausência de náuseas ou vômitos; • eventual fonofobia ou fotofobia. As causas determinantes estão, em muitas ocasiões, relacio‑ nadas ao estado de estresse emocional por intercorrências fa‑ miliares, escolares, sociais ou doenças crônicas. Há pacientes que referem algum alívio nos finais de semana ou nos perío‑ dos de férias. O tratamento farmacológico é preconizado com analgésicos e anti-inflamatórios não hormonais (AINH). Os
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antidepressivos (amitriptilina, imipramina, fluoxetina) fazem parte do esquema terapêutico, nesses casos. A terapia psicoló‑ gica, as técnicas de relaxamento, biofeedback, correção postu‑ ral e atividades físicas estão indicadas como tratamento com‑ plementar. A cefaleia crônica com característica progressiva é um qua‑ dro que merece especial atenção, pois é uma queixa relaciona‑ da a doenças orgânicas. A cefaleia, em muitas ocasiões, apare‑ ce esporadicamente e com intensidade leve na fase inicial, porém vai se tornando mais frequente e mais intensa, espe‑ cialmente durante a madrugada ou ao despertar pela manhã. As causas determinantes são várias, como a hipertensão intra‑ craniana, e processos infecciosos e inflamatórios do sistema nervoso central. O quadro pode se iniciar com a cefaleia e, pos‑ teriormente, outros sintomas são referidos, como as náuseas e os vômitos. Nesses casos, a cefaleia tende a piorar por ocasião de algum esforço que possa aumentar a pressão intracraniana, como espirro, tosse, evacuação ou atividade física. São causas de hipertensão intracraniana: tumores cerebrais, hidrocefalia, abscesso cerebral, hematoma intracraniano e malformação vascular. Há que se mencionar como uma das causas de hiper‑ tensão intracraniana o pseudotumor cerebral, que se caracte‑ riza por um aumento do volume do parênquima cerebral por conta do edema de origem não esclarecida. É mais frequente em jovens e mulheres obesas. Pode ser causada por intoxica‑ ção pelas vitaminas A e D, uso de anticoncepcional, tetracicli‑ na, ácido nalidíxico e pela suspensão do uso de corticosteroi‑ de. Nos casos de hipertensão intracraniana, o exame do fundo de olho é relevante, pois pode-se encontrar um sinal impor‑ tante, que é o papiledema. Havendo sinais sugestivos de hi‑ pertensão intracraniana, os exames por imagem tornam-se necessários para o diagnóstico diferencial. A hipotensão liquórica causa cefaleia generalizada, latejan‑ te ou tipo pressão. A dor manifesta-se ao levantar-se após a punção para coleta do líquido cefalorraquidiano (LCR); ao dei‑ tar-se, alivia a dor. Nos pacientes portadores de derivação ven‑ tricular, quando há drenagem excessiva do LCR, evidencia-se a hipotensão liquórica e, consequentemente, a cefaleia. Há medicamentos que podem ser causadores da cefaleia, como os antidepressivos tricíclicos, os estimulantes do sistema nervo‑ so (metilfenidato, anfetamina), protetores gástricos (ranitidi‑ na), anticonvulsivantes, anticoncepcionais, quimioterápicos e antibióticos. As crises epilépticas podem ter como manifesta‑ ção inicial a cefaleia. O consumo de álcool e drogas ilícitas é fa‑ tor determinante da cefaleia que aparece em torno de 60 mi‑ nutos após o consumo. É uma dor generalizada do tipo pressão ou constritiva. A atividade sexual pode causar cefaleia abrupta, intensa, latejante e bilateral, que aparece durante ou após o ato sexual e pode persistir por minutos ou horas. Nota-se que a cefaleia tem várias causas determinantes, se‑ jam elas com características benignas ou com características mais complexas, o que a torna mais preocupante. Em muitas ocasiões, os pacientes procuram os serviços de pronto atendi‑ mento em virtude da intensidade dos sintomas. Deve-se, ini‑ cialmente, procurar aliviar o quadro álgico e, para isso, além dos analgésicos, pode-se ministrar corticosteroide e os neuro‑
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lépticos.10 Os relatos dos pacientes e o exame clínico-neuroló‑ gico minucioso são fundamentais para o possível diagnóstico. Exames laboratoriais e por imagem podem ser um comple‑ mento relevante para o correto diagnóstico e tratamento das cefaleias.
3. 4.
5. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que a cefaleia é uma queixa frequente na infância. • Fazer o diagnóstico diferencial da cefaleia primária e secundária. • Diferenciar as crises periódicas de outros quadros clínicos. • Orientar o tratamento sintomático e profilático.
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CAPÍTULO 15
SÍNDROMES NEUROCUTÂNEAS Gustavo Adolfo Rodrigues Valle
Introdução • outras malformações congênitas, como displasias viscerais As síndromes neurocutâneas são distúrbios congênitos que (agenesias, disgenesias e duplicações). englobam sintomas cutâneos e neurológicos. Apresentam ca‑ racterísticas comuns como tendência a malformações tumo‑ Neurofibromatose (NF) rais e ao aparecimento de manchas pigmentares ou angioma‑ Foi descrita pela primeira vez no século XVIII, mas, em 1882, tosas em tecidos e órgãos ectodérmicos, principalmente pele e Von Recklinghausen descreveu vários aspectos da doença. sistema nervoso, podendo haver participação, em grau variá‑ A neurofibromatose é a mais comum das síndromes neuro‑ vel, do mesoderma e endoderma. São doenças distintas que cutâneas, ocorrendo em 1 a cada 3.000 pessoas.2 Sua herança podem, no entanto, aparecer combinadas, transmitidas por é autossômica dominante de expressão clínica altamente va‑ gene autossômico de dominância regular ou não, com pene‑ riável. Cerca de metade dos casos de neurofibromatose do trância alta ou incompleta, com expressividade variada e com tipo 1 origina-se via mutação espontânea. Existe uma predo‑ grande número de formas abortivas, esporádicas, atípicas ou minância discreta pelo sexo masculino. intermediárias. Com base nas características clínicas, a neurofibromatose Van der Hoeve usou pela primeira vez o termo facomatose pode ser dividida em pelo menos 2 subgrupos. A NF-1 é a clás‑ (do grego lente) para caracterizar a lesão em lente encontrada sica doença de Von Recklinghausen, com neurofibromas múl‑ na retina de pacientes com esclerose tuberosa e neurofibro‑ tiplos, manchas “café-com-leite”, nódulos Lisch, displasia ar‑ matose. Contudo, essas lesões aparecem com frequência terial ou óssea e um maior risco de tumores do nervo óptico e muito baixa. Também sabe-se que as quatro primeiras doen‑ outros. A NF-1 tem sido ligada ao cromossomo 17. A NF-2 é ca‑ ças englobadas sob essa terminologia derivam de anormali‑ racterizada por neuromas acústicos bilaterais e, muitas vezes, dades de folhetos embrionários diferentes e, com o passar do outros tumores intracranianos e intraespinais. Apresenta tempo, outras doenças foram acrescentadas a elas, sendo a poucas lesões cutâneas ou tumores dos nervos periféricos. A maioria sem lesões retinianas “em lente”, não justificando NF-2 é ligada ao cromossomo 22. mais o termo facomatose. Surgiu, então, o termo neuroecto‑ dermose, abrangendo somente moléstias do folheto ectodér‑ Sinais cutâneos da NF-1 mico. No entanto, na sua grande maioria, essas doenças deri‑ As manchas “café-com-leite” são tipicamente lesões pardo‑ vam do folheto mesodérmico, e algumas raras, do folheto -claras, planas, variando de tamanho e configuração, de milí‑ endodérmico. Surgiu, então, o termo neuromesoectodermo‑ metros a centímetros de diâmetro (Figura 1). Estão presentes se. Por fim, para englobar melhor as doenças que comprome‑ ao nascer e podem aumentar de tamanho e número na primei‑ tem um ou mais dos três folhetos, foram denominadas sín‑ ra década. Muitas vezes são encontradas lesões pigmentadas dromes neurocutâneas. nas axilas ou nas regiões intertriginosas, de 1 a 3 mm de diâ‑ As características comuns das síndromes neurocutâneas metro, podendo, por vezes, causar prurido, especialmente são:1 após traumatismo local.2 • manchas ou alterações angiomatosas que aparecem na pele Os neurofibromas derivam dos nervos periféricos e são ou mucosas em qualquer região do corpo; mais frequentes após a puberdade. Depois dessa fase, aumen‑ • formações hiperplásicas localizadas de tipo tumoral; tam de tamanho e número durante toda a idade adulta. São • tumores verdadeiros (blastomatose) originados de células geralmente assintomáticos, podendo, às vezes, provocar dor embrionárias não diferenciadas; ou perda da função pela compressão do nervo (Figura 2).
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Figura 1 Lesões pardo-claras, planas com variação de tamanho e configuração, estando presentes desde o nascimento, podendo aumentar de tamanho e número na primeira década. Fonte: Hospital Federal dos Servidores do Estado – Rio de Janeiro.
Figura 3 Nódulos de Lisch: hamartomas pigmentados da íris. Fonte: Hospital Federal dos Servidores do Estado – Rio de Janeiro.
ma e leucemia mieloide infantil são exemplos de neoplasias que parecem ter maior frequência em pacientes com neurofibromatose.
Figura 2 Neurofibromas em nervos periféricos, mais frequentes após a puberdade. Fonte: Hospital Federal dos Servidores do Estado – Rio de Janeiro.
Os neurofibromas plexiformes tendem a afetar mais a face do que outras regiões, e costumam ser evidentes mesmo na infância. A rapidez de seu crescimento é variável, mas muitas vezes pode induzir a desfiguramento ou perda visual. Sinais oftálmicos Observam-se hamartomas pigmentados da íris (nódulos de Lisch) (Figura 3) em pacientes com mais de 6 anos de idade e são assintomáticos. O glaucoma congênito e a buftalmia ocorrem raramente, em especial quando comparados com a taxa observada na síndrome de Sturge-Weber.2 Sinais esqueléticos A displasia do esfenoide e a pseudoartrose tibial são lesões ósseas displásicas comuns da neurofibromatose. Corpos vertebrais serrilhados também são característicos. A cifoescoliose e a macrocefalia são outras anormalidades que podem estar presentes. Outras neoplasias Uma variedade de neoplasias tem sido atribuída à neurofibromatose. Tumor de Wilms, rabdomiossarcoma, feocromocito-
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Critérios diagnósticos de NF-12 1. Seis ou mais lesões “café-com-leite” com mais de 5 mm de diâmetro antes da puberdade e mais de 15 mm depois da puberdade. 2. Sardas nas áreas axilares ou inguinais. 3. Glioma óptico. 4. Dois ou mais neurofibromas ou um neurofibroma plexiforme. 5. Um parente de 1º grau com NF-1. 6. Dois ou mais nódulos de Lisch. 7. Uma lesão óssea característica (displasia esfenoide, afinamento do córtex dos ossos longos, com ou sem pseudoartrose). Critérios diagnósticos de NF-22 1. Tumor bilateral do VIII nervo. 2. Um parente de 1ºgrau com NF-2 e um tumor unilateral do VIII nervo. 3. Um parente de 1º grau com NF-2 e qualquer dentre duas das seguintes lesões: neurofibroma, meningioma, schwannoma, glioma ou opacidade lenticular subcapsular posterior juvenil. Complicações neurológicas da NF-1 Na NF-1, o tumor mais comum no sistema nervoso central (SNC) é o glioma de nervo óptico, afetando em torno de 15% dos pacientes. Cerca de mais de dois terços são identificados apenas radiograficamente.1,2 Consistem em perda progressiva da visão, atrofia óptica e, menos frequente, dor ou proptose. Eles podem ser uni ou bilaterais e de progressão variável. Dificuldade de aprendizado, distúrbios do comportamento e outros tipos de tumores também podem ocorrer. Complicações vasculares da NF-1 Alguns poucos pacientes com NF-1 desenvolvem displasia arterial sintomática, envolvendo frequentemente a artéria renal ou carótida. A hipertensão sistêmica resulta de estenose da artéria renal, mais comum do que um feocromocitoma, ambas
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complicações da neurofibromatose. Cerca de dois terços desses pacientes podem ter as carótidas estenosadas ou ocluídas, com uma rede distal de vasos colaterais telangiectásicos (síndrome de moyamoya).2 Complicações neurológicas da NF-2 Os tumores acústicos bilaterais são característicos da NF-2. Geralmente os sintomas desenvolvem-se na 2ª ou 3ª década, que consiste em perda auditiva, zumbido, vertigens e flacidez facial. Os meningiomas, os astrocitomas e os ependimomas são encontrados com maior frequência nos pacientes com NF-2. Tratamento Não há tratamento específico para a enfermidade. As crises convulsivas podem ser focais ou generalizadas e amplamente controladas com anticonvulsivantes. A remoção cirúrgica dos tumores do SNC pode prolongar a vida desses pacientes. Algumas poucas pesquisas relacionadas ao uso de cetotifeno e, mais recentemente, everolimo nos neurofibromas ainda são insuficientes para fazer uma avaliação objetiva sobre a eficácia e a segurança dessas drogas na redução desses tumores periféricos.3,4 Quanto ao prognóstico, é melhor quando o tumor é periférico. Já para os tumores intracranianos, a sobrevida depende da sua localização e do seu número. Complexo esclerose tuberosa O primeiro relato conhecido de esclerose tuberosa foi feito por Von Recklinghausen em 1862. Tratava-se de um recém-nascido que, no exame post-mortem, revelou a presença de lesões escleróticas no cérebro e tumores cardíacos. Em 1880, Bourneville descreveu a associação das manifestações clínicas de retardo mental e crises convulsivas com as alterações patológicas cerebrais típicas (tubérculos corticais e nódulos gliais subependimários). Heinrich Vogh, em 1908, descreveu a tríade clínica de convulsões, retardo mental e adenoma sebáceo da face e sua frequente associação com tumores renais e cardíacos. A sua frequência é de aproximadamente 1 caso para cada 30.000 indivíduos. A herança é autossômica dominante, com penetração variável. Cerca de 80% dos casos são esporádicos. Apresenta um predomínio 2 a 3 vezes maior no sexo masculino.5
Figura 4 Lesões cutâneas hipomelanóticas.
Fonte: Hospital Federal dos Servidores do Estado – Rio de Janeiro.
Figura 5 Angiofibromas faciais (adenomas sebáceos). Fonte: Hospital Federal dos Servidores do Estado – Rio de Janeiro.
pés que nos das mãos, e mais comuns em meninas. Geralmente não aparecem antes da adolescência. A placa de Shagreen é uma lesão ligeiramente elevada, com borda irregular e superfície texturada, localizada no dorso ou na região do flanco. É encontrada em 20 a 35% dos pacientes pós-puberdade.6
Manifestações neurológicas Os sintomas neurológicos mais comuns são retardo mental e convulsões. As crises ocorrem em 80 a 90% dos pacientes reManifestações cutâneas conhecidos. São comuns os espasmos infantis, mas qualquer As lesões cutâneas típicas incluem máculas hipomelanóticas tipo de crise pode ocorrer.6 (manchas hipocrômicas) (Figura 4), angiofibromas faciais Aproximadamente 60% dos pacientes têm comprometi(adenomas sebáceos) (Figura 5), fibromas ungueais e placa de mento mental de severidade variável, desde uma ligeira disShagreen. função até graus mais profundos.6 As máculas hipomelanóticas são encontradas em até 90% Os astrocitomas de células gigantes (Figura 6) manifestamdos pacientes e, muitas vezes, são visíveis ao nascer, especial- -se em 6 a 14% dos pacientes com esclerose tuberosa, com promente com o uso de lâmpada ultravioleta.5 babilidade de desenvolver-se durante as duas primeiras décaOs angiofibromas faciais são compostos de elementos vas- das.6 Tipicamente são encontrados nódulos subependimários culares e tecido conjuntivo, alojando-se através do nariz e nos ventrículos laterais e, por vezes, em outras áreas. São de abaixo dos sulcos nasolabiais, em direção ao queixo. Em geral, origem vascular e tendem a se calcificar. As tuberosidades cornão estão presentes ao nascer, surgindo entre 4 e 10 anos de ticais apresentam-se em forma e número variáveis. Tanto as idade e depois aumentam gradualmente. tuberosidades corticais quanto os nódulos subependimários Os fibromas ungueais são lesões carnosas localizadas em (Figura 7) são considerados patognomônicos da esclerose tuvolta ou abaixo das unhas. São mais comuns nos dedos dos berosa.
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sente em 10% dos portadores de esclerose tuberosa.4 O medicamento encontra-se atualmente aprovado para uso nesse tipo de tumor. Algumas pesquisas ainda não aprovadas para a prática clínica vêm estudando a eficácia desse medicamento em outros sintomas da doença, como o comportamento e as crises epilépticas. As convulsões podem se apresentar tanto generalizadas quanto focais, sendo estas extremamente refratárias ao tratamento clínico. Os espasmos infantis podem estar presentes de 1/3 a metade dos pacientes com esclerose tuberosa. A vigabatrina é a droga de eleição nos casos de espasmos associados à esclerose tuberosa.
Figura 6 Astrocitoma de células gigantes.
Cedido por: dra. Lara Brandão – Clínica Radiológica Felipe Matoso.
Figura 7 Setas tracejadas: nódulos subependimários. Setas contínuas: túberes corticais. Cedido por: dra. Lara Brandão – Clínica Radiológica Felipe Matoso.
A esclerose tuberosa pode afetar qualquer parte do corpo, principalmente coração, rins e pulmão.
Doença de Sturge-Weber Fue Schirmer (1860) parece ter sido o primeiro autor a descrever a doença. Em 1879, Sturge caracterizava a doença por nevo vascular da face, convulsões generalizadas ou focais, hemiparesia contralateral, alterações oculares e grande tendência a retardo mental. Em 1897, Kalischer relacionou os sinais neurológicos com o hemangioma cerebral análogo ao nevo facial. Em 1922, Weber sistematizou as alterações radiológicas no hemisfério afetado. Em 1934, Krabbe estudou a localização cortical das calcificações mediante estudo clínico-patológico. Apresenta uma frequência de aproximadamente 1 caso para cada 5.000 indivíduos, de acordo com alguns autores. A transmissão é por herança autossômica dominante, com penetração variável. Em algumas famílias, já foi demonstrada uma herança recessiva. Não há qualquer predileção de raça ou sexo.1,5 Quadro clínico Apenas 10% dos pacientes com angioma cutâneo facial tem lesão intracraniana, e o diagnóstico de síndrome de Sturge-Weber deve ser reservado para esses casos.1 Classicamente, o angioma cutâneo é unilateral na fronte ou em volta dos olhos (Figura 8). Algumas vezes essas lesões são mais extensas, envolvendo grande parte da face e do tronco (Figura 9). A lesão cerebral é geralmente ipsilateral ao nevo facial unilateral. Os distúrbios neurológicos mais comuns são as convulsões. Predominam as convulsões motoras focais ou tônico-clônicas generalizadas, mas outros tipos podem ocorrer.
Genética Existem evidências quanto à heterogeneidade genética fenotípica. Recentes análises da linhagem genética implicam fortemente a região do cromossomo 9 q32-34 como o lócus do gene para pelo menos 1/3 dos pacientes. Em outras famílias, o gene defeituoso parece residir no braço longo do cromossomo 16 (região p13).1 Tudo indica que pelo menos um outro sítio afora o cromossomo 9 está envolvido na esclerose tuberosa. Tratamento A enfermidade em si não tem tratamento. Os tumores cerebrais, renais, ósseos e intestinais podem ser abordados por cirurgia. Recentemente, o uso de um antineoplásico chamado everolimo vem se mostrando eficaz para o tratamento de tumores do SNC do tipo astrocitomas de células gigantes, pre-
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Figura 8 Angioma cutâneo em hemiface ou em volta dos olhos. Fonte: Hospital Federal dos Servidores do Estado – Rio de Janeiro.
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Figura 9 Angioma cutâneo envolvendo grande parte da face e do tronco. Fonte: Hospital Federal dos Servidores do estado – rio de Janeiro.
As perturbações mentais ocorrem em metade dos pacientes com síndrome de Sturge-Weber. Como regra, pacientes com convulsões refratárias têm mais probabilidade de terem retardo mental. Em alguns pacientes cujo angioma cutâneo facial é adjacente ao olho, desenvolve-se glaucoma. radiologia Os estudos radiológicos revelam dados positivos para o diagnóstico da síndrome de Sturge-Weber, principalmente a ressonância magnética (RM). As lesões do hemisfério afetado são vistas desde o nascimento, com importante hemiatrofia cerebral. Os seguimentos periódicos dessas crianças revelam depósitos progressivos de cálcio no hemisfério afetado, além de um angioma leptomeníngeo mais ou menos extenso, bem demonstrado pelo uso do contraste gadolínio na RM (Figura 10). Tratamento As manchas angiomatosas podem ser tratadas com laser de argônio para finalidade estética. Alguns casos apresentam crises epilépticas facilmente controladas com drogas antiepilépticas. Entretanto, os demais pacientes podem ser refratários aos anticonvulsivantes. Particularmente, preocupa a ocorrência de estado de mal epiléptico que pode acentuar o déficit neurológico. Para alguns pacientes, está indicada a cirurgia da epilepsia. O tratamento do glaucoma adquirido inicialmente é clínico, mas nos casos refratários, opta-se pela cirurgia. No glaucoma congênito, o tratamento é sempre cirúrgico. Ataxia-telangectasia Syllaba e Henner, em 1926, estudaram casos de coreoatetose familiar, descrevendo três gêmeos com vasos da conjuntiva bulbar dilatados e ataxia cerebelar. Em 1941, Louis-Barr propôs uma síndrome de caráter evolutivo, unindo as telangiectasias da conjuntiva e pele e distúrbios cerebelares. Em 1957, Boder e Sedgwick estudaram a síndrome do ponto de vista clínico, bioquímico, anatomopatológico e genético, designando-a de ataxia-telangiectasia.1
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Figura 10 Angioma leptomeníngeo com importante hemiatrofia cerebral. Fonte: Hospital Federal dos Servidores do estado – rio de Janeiro.
Quadro clínico O primeiro sintoma a se manifestar é a ataxia cerebelar, de início entre o 8º mês e o 3º ano de vida. Inicia-se com distúrbio da marcha e alargamento da base de sustentação, seguido posteriormente de tremor intencional, disartria e hipotonia global. A coreoatetose pode estar presente como parte do quadro inicial, porém é mais comum nos estágios mais tardios, acompanhados de outras alterações do sistema extrapiramidal. Outras manifestações tardias são as alterações da motricidade ocular extrínseca (nistagmo de fixação, movimentos oculares em “catraca” e dificuldade no olhar conjugado horizontal e vertical). As telangiectasias oculocutâneas podem estar presentes antes do 3º ano, sendo mais comum entre o 3º e o 6º, e exuberantes após o 7º (Figura 11). Aparecem, em geral, na conjuntiva bulbar, desenvolvendo-se posteriormente na face, pescoço, fossa poplítea, pregas flexoras dos membros superiores, nos
Figura 11 Telangiectasias oculocutâneas.
Fonte: Hospital Federal dos Servidores do estado – rio de Janeiro.
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pés e na mucosa bucal, principalmente palato. Surgem algum tempo após a ataxia cerebelar. Observam-se também retardo no desenvolvimento ponderoestatural e sexual e maior frequência de neoplasias do sistema retículo endotelial (doença de Hodgkin, sarcoma de células reticulares e linfossarcoma). Exames complementares Frequentemente encontra-se hipogamaglobulinemia, com redução ou ausência da fração IgA, IgE e IgG baixas e IgM normal ou alta, mas com seu peso molecular diminuído. Há também uma reduzida capacidade imunológica tecidual, com alterações nas reações de hipersensibilidade tardia. Laboratorialmente, podem-se encontrar algumas provas hepáticas alteradas, hemograma com linfopenia e aminoacidúria, com encontro de um peptídio rico em prolina e hidroxiprolina. Os exames de neuroimagem podem mostrar atrofia cerebelar com perda de células de Purkinje e granulares, mais evidente no vérmis cerebelar (Figura 12). Entretanto, é preciso considerar a RM em detrimento da tomografia computadorizada (TC), em razão da hipersensibilidade desses pacientes à radiação ionizante.7 Quanto à genética, a história familiar é positiva em 25 a 40% dos casos (dados da literatura mundial). Alguns pesquisadores acreditam em uma dependência autossômica recessiva, localizada no cromossomo 11 (região q22-23).1 Prognóstico e tratamento Na maioria dos casos, o quadro é progressivo e leva a confinamento no leito no final da 1ª década. Os sinais e sintomas da ataxia-telangiectasia apresentam nítida piora por volta do 6º ano. O tratamento é sintomático e envolve fisioterapia, fonoaudiologia e tratamento de complicações infecciosas e pulmonares. O uso da imunoglobulina endovenosa, a cada 3 ou 4 semanas, pode reduzir a frequência das infecções naqueles
Figura 12 Atrofia cerebelar, mais evidente em vérmis cerebelar. Fonte: Hospital Federal dos Servidores do Estado – Rio de Janeiro.
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pacientes que apresentam deficiência da imunidade humoral. Os betabloqueadores podem reduzir os tremores e melhorar a realização dos movimentos finos. O prognóstico é ruim em virtude das infecções respiratórias de repetição, neurodegeneração, envelhecimento cutaneomucoso acelerado e aumento do risco de desenvolver câncer antes dos 20 anos, principalmente de mama. Incontinência pigmentar A incontinência pigmentar (incontinentia pigmenti) é conhecida desde o princípio do século XX. É uma enfermidade bastante rara, de herança dominante ligada ao cromossomo X. Passou a ser mais conhecida a partir das descrições de Bloch e Sulzberger, por isso também é conhecida com o nome de síndrome de Bloch-Sulzberger.1 Clínica Todos os pacientes apresentam lesões na pele, e 30% deles cursam com distúrbios neurológicos.1 As manifestações cutâneas cursam com três estágios, havendo uma pequena porcentagem de pacientes que desenvolvem um quarto estágio. O primeiro ocorre nas primeiras semanas de vida, em que as lesões observadas são eritematosas, maculares, papulosas, vesiculares, bolhosas e, algumas vezes, pustulosas (Figura 13). A localização preferencial é nos membros inferiores, tronco e couro cabeludo. Este último é de grande importância, pois a maioria dos pacientes com comprometimento neurológico também apresenta lesões dérmicas cefálicas. Essas lesões do primeiro estágio costumam durar de semanas a meses e podem alojar eosinófilos, sendo responsável pela eosinofilia nos estudos sanguíneos.8 No segundo estágio, as lesões passam a ter um aspecto pustuloso, liquenoide e queratoide, desenvolvendo ao longo de alguns meses e afetando preferentemente a pele das pernas e tronco (Figura 14). O terceiro estágio ocorre em continuação do segundo, desenvolvendo-se em poucas semanas, caracterizando-se pelo apareci-
Figura 13 Primeiro estágio: lesões eritematosas, papulosas, vesiculares e pustulosas nos membros inferiores, tronco e couro cabeludo. Fonte: Hospital de la Seguridad Social La Paz, Universidad Autónoma de Madrid.
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mento de placas de coloração violácea ou marrom em região de pernas e dorso que tendem a desaparecer no curso da segunda ou terceira década de vida8 (Figura 15). Cerca de 25% dos casos desenvolvem um quarto estágio, que consiste nas sequelas deixadas pelas lesões anteriores em forma de zonas de hipo ou hiperpigmentadas e atróficas, localizadas geralmente nas pernas8 (Figura 16). As sequelas das lesões do cou-
Figura 14 Segundo estágio: lesões pustulosas, liquenoides e queratoides, afetando a pele das pernas e tronco. Fonte: Hospital de la Seguridad Social La Paz, Universidad Autónoma de Madrid.
Figura 15 Terceiro estágio: placas de coloração violácea ou marrom em região de pernas e dorso, que desaparecem na 2ª ou 3ª década de vida. Fonte: Hospital de la Seguridad Social La Paz, Universidad Autónoma de Madrid.
Figura 16 Quarto estágio: sequelas de lesões anteriores hipo ou hiperpigmentadas e atróficas, localizadas geralmente nas pernas. Fonte: Hospital de la Seguridad Social La Paz, Universidad Autónoma de Madrid.
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ro cabeludo geralmente são manifestadas em forma de mudança de coloração do cabelo, que aparece em tom mais claro. Um terço dos casos pode mostrar zonas cicatriciais ou de alopécia e alterações nas unhas. Além da pele e do cérebro, outros tecidos podem estar afetados, como olhos, dentes e ossos. Os olhos podem mostrar todo tipo de alterações, como microftalmia, opacidade, papilite, deformidades das pálpebras com pouca quantidade de cílios. Os dentes podem se apresentar em menor número, além de ocorrer atraso na sua erupção e deformidades. As alterações ósseas também podem ser de vários tipos e geralmente estão acometidas aquelas subjacentes às lesões cutâneas, como crânio, falanges, metacarpos e metatarsos, costelas e ossos faciais. Na fase adulta, podem surgir tumores queratoides subungueais que, apesar de benignos, costumam ser dolorosos. Alterações do sistema nervoso central As complicações neurológicas consistem em deficiência intelectual, crises epilépticas, paralisia espástica, microcefalia, malformações cerebrais de diversos tipos e ataxia cerebelar. Os pacientes que padecem de transtorno neurológico têm apresentado um quadro de encefalopatia aguda no período neonatal, com uma sintomatologia de crises epilépticas tipo status epilepticus e refratários ao tratamento. O eletroencefalograma (EEG) revela graves alterações funcionais do cérebro nessa fase aguda, inclusive depois de 9 meses ou por anos, durante a fase de sequelas. A neurorradiologia, por meio da TC e da RM cerebral, evidencia alterações importantes do parênquima cerebral, que alcançam a zona subcortical e, às vezes, a zona cortical suprajacente, de modo radial, acompanhada de hemiatrofia cerebral e hipogenesia do corpo caloso. Também são encontradas alterações no cerebelo.9 Tratamento O tratamento é fundamentalmente sintomático no que diz respeito a crises epilépticas, deficiência intelectual e sequelas motoras. Os tumores nos dedos, por serem dolorosos, requerem tratamento cirúrgico. O aconselhamento genético é importante nesses casos. Hipomelanose de Ito Este transtorno foi descrito por Ito em 1952. É o terceiro transtorno neurocutâneo mais frequente, sendo superado apenas pela neurofibromatose tipo I e pela esclerose tuberosa. No entanto, é um quadro que poucos sabem diagnosticar, necessitando que a criança fique totalmente despida, além de ser examinada em ambiente bem iluminado, de preferência à luz natural. A utilização de luz ultravioleta nos casos em que se tenha dúvida, principalmente em pacientes com pele muito branca, aumenta as chances de diagnóstico. A escassez de publicações e a falta de conhecimento sobre a doença são os outros motivos para a dificuldade diagnóstica. A hipomelanose de Ito acomete similarmente ambos os sexos e tem uma grande importância em neurologia pela alta prevalência de alterações do SNC, especialmente crise convulsiva e deficiência intelectual.
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As lesões cutâneas consistem em zonas hipopigmentadas de bordos irregulares em formato de manchas, estrias e desenhos geográficos localizados em qualquer parte do corpo (Figura 17). Essas lesões são observadas em 70% dos casos ao longo do primeiro ano de vida e 4% apresentam outros tipos de lesões cutâneas, como manchas “café-com-leite”, persistência de mancha mongólica, nevo de Ota, nevo marmorato e nevo angiomatoso.10 A deficiência intelectual é a complicação mais importante e de maior prevalência, presente em 60% dos casos.10 O comportamento autista pode estar presente em 10% dos casos, muitos deles com histórico anterior de crises graves. Em 85% dos casos, as crises epilépticas graves são do tipo síndrome de West.10 A associação de crises epilépticas e deficiência intelectual parece estar relacionada com alterações da migração neuronal. Esses defeitos, muitas vezes relacionados a crises epilépticas refratárias, são sujeitos a abordagem cirúrgica após avaliação especializada. A hipotonia, a macrocefalia e a microcefalia também são observadas. A extensão e a localização das lesões cutâneas não estão correlacionadas com a gravidade das complicações neurológicas. Alterações esqueléticas, malformações dos dentes, anomalias genitais, hérnia inguinal, cardiopatia congênita, fenda palatina e hipertelorismo também podem ser observadas na hipomelanose de Ito. O tratamento das lesões cutâneas não é necessário. O cuidado deve ser multidisciplinar, com consultas periódicas com oftalmologista, neurologista e ortopedista pediátrico, depen-
Figura 17 Lesões de bordos irregulares, hipopigmentadas, em formato de manchas, estrias ou desenho geográfico. Fonte: Hospital Federal dos Servidores do estado – rio de Janeiro.
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dendo das anomalias associadas. As convulsões devem ser tratadas com anticonvulsivantes. O prognóstico é determinado pelas anomalias associadas. As lesões cutâneas têm um prognóstico favorável. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer que as síndromes neurocutâneas são doenças congênitas originadas de tecidos e órgãos ectodérmicos, podendo ter comprometimento do mesoderma e endoderma. • Saber que manchas pigmentares e angiomatosas na pele podem traduzir uma causa etiológica de crise epiléptica. • reconhecer as principais características clínicas das síndromes neurocutâneas. • Ter em mente que são doenças que, ao longo da vida, podem causar tumores não somente no sistema nervoso, mas também em outros órgãos do corpo humano.
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SEÇÃO 18
Nutrologia COORDENADORAS
Roseli Oselka Saccardo Sarni Virgínia Resende Silva Weffort
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COORDENADORAS E AUTORES SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
Coordenadoras Roseli Oselka Saccardo Sarni Doutora em Medicina. Pesquisadora Associada do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Professora Titular Livre ‑docente da Disciplina Clínica Pediátrica da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC). Presidente do Departamento de Nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Virgínia Resende Silva Weffort Especialista em Pediatria pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) – Área de Atuação em Nutrologia Pediátrica pela SBP e Associação Brasileira de Nutrologia (Abran). Mestre e Doutora em Pediatria pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP‑USP). Professora Associada do Departamento Materno‑infantil e Responsável pela Disciplina Pediatria da UFTM. Membro da Equipe Multiprofissional de Terapia Nutricional (EMTN) da UFTM. Pesquisadora do Programa de Pós ‑graduação em Atenção à Saúde. Presidente do Comitê de Nutrologia da Sociedade Mineira de Pediatria. Membro do Conselho Científico do Departamento Científico de Nutrologia da SBP. Autores Ângela Peixoto de Mattos Gastroenterologista Pediátrica pela Escola Paulista de Medicina (EPM) da Unifesp e Nutróloga Infantil pela SBP/Abran. Professora Associada do Departamento de Pediatria da Faculdade de
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Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Chefe do Serviço de Nutrologia Pediátrica do Hospital das Clínicas (HC) da UFBA. Anne Lise Dias Brasil Pediatra Nutróloga com Área de Atuação em Nutrologia Pediátrica pela SBP/Abran. Mestre em Pediatria e Doutora em Medicina pela EPM‑Unifesp. Chefe do Setor de Distúrbios do Apetite da Disciplina Nutrologia Pediátrica do Departamento de Pediatria da EPM‑Unifesp. Membro do Departamento de Nutrologia da SBP e da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP). Carlos Alberto Nogueira de Almeida Nutrólogo com Título de Área de Atuação em Nutrologia Pediátrica. Mestre e Doutor em Pediatria pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Universidade de Ribeirão Preto. Diretor do Departamento de Nutrologia Pediátrica da Abran. Membro da Academia Latinoamericana de Nutrologia e do Conselho Científico do International Life Sciences Institute do Brasil. Presidente Eleito da The Obesity Society Latin American Affairs Section. Christiane Araujo Chaves Leite Título de Especialista em Gastroenterologia Pediátrica pela SBP e em Terapia Nutricional Pediátrica pela SBP e Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral. Mestre e Doutora em Pediatria pela EPM‑Unifesp. Professora Adjunta de Pediatria do Departamento de Saúde Materno ‑infantil da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Membro Efetivo do Departamento Científico de Nutrologia da SBP.
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Denise Tiemi Miyakawa Título de Especialista em Pediatria com Área de Atuação em Gastroenterologia Pediátrica e Nutrologia Pediátrica pela SBP. Mestranda em Biotecnologia da Saúde da Criança e do Adolescente pela Faculdades Pequeno Príncipe. Presidente do Departamento de Nutrologia da Sociedade Paranaense de Pediatria. Elza Daniel de Mello Pediatra e Nutróloga com Áreas de Atuação em Nutrologia Pediátrica, Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição Enteral e Parenteral. Mestre e Doutora em Pediatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora de Pediatria da UFRGS. Membro do Departamento Científico de Nutrologia da SBP e do Departamento de Pediatria da Abran. Fabíola Isabel Suano de Souza Doutora em Ciências pela EPM‑Unifesp. Professora Afiliada do Departamento de Pediatria da FMABC. Fernanda Luisa Ceragioli Oliveira Título de Especialista em Pediatria com Área de Atuação em Nutrologia Pediátrica e Nutrição Parenteral e Enteral em Pediatria. Doutora em Pediatria pelo Departamento de Pediatria da EPM ‑Unifesp. Pediatra da Disciplina Nutrologia e Chefe do Setor de Suporte Nutricional e do Ambulatório de Dislipidemia da Disciplina Nutrologia do Departamento de Pediatria da EPM‑Unifesp. Pesquisadora da Pós‑Graduação em Nutrição da Unifesp. Diretora Clínica da EMTN do Instituto de Oncologia Pediátrica/Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer. Membro do Departamento de Nutrição da SPSP e do Conselho Científico do Departamento de Nutrologia da SBP. Fernando José de Nóbrega Doutor em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria pela EPM‑Unifesp. Responsável pelo Setor de Nutrição do Hospital Israelita Albert Einstein. Presidente da Academia Brasileira de Pediatria. Heitor Pons Leite Professor Afiliado da Disciplina Nutrologia e Orientador do Programa de Pós‑graduação em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria do Departamento de Pediatria da EPM‑Unifesp. Hélcio de Sousa Maranhão Especialista em Gastroenterologia Pediátrica, em Pediatria, Área de Atuação em Gastroenterologia Pediátrica, pela SBP, e em Nutrologia Pediátrica pela SBP/Abran. Mestre e Doutor em Pediatria pela
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Unifesp. Professor Associado do Departamento de Pediatria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Coordenador do Programa de Residência Médica em Gastroenterologia Pediátrica do Hospital Universitário Onofre Lopes da UFRN. Jocemara Gurmini Especialista em Pediatria, com Área de Atuação em Gastroenterologia e Nutrologia Pediátrica, e em Nutrição Parenteral e Enteral. Mestre em Ciências da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC‑PR). Professora de Nutrologia Clínica e Pediatria da Escola de Medicina da PUC‑PR. Médica do Corpo Clínico e Coordenadora Técnico ‑administrativa da EMTN do Hospital Pequeno Príncipe. Membro do Conselho Científico do Departamento de Nutrologia da SBP. José Augusto de Aguiar Carrazedo Taddei Professor Associado Livre‑docente do Departamento de Pediatria da EPM‑Unifesp. Luiz Anderson Lopes Professor Titular de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Santo Amaro (Unisa). Médico Pediatra do Departamento de Pediatria e Responsável pelos Ambulatórios de Distúrbios do Crescimento da Disciplina Nutrologia da EPM ‑Unifesp e do Núcleo de Pediatria da Faculdade de Medicina da Unisa. Maria Arlete Meil Schimith Escrivão Pediatra com Área de Atuação em Nutrologia pela SBP/Abran. Mestre e Doutora pelo Programa de Pós ‑graduação em Pediatria da Unifesp. Chefe do Setor de Obesidade da Disciplina Nutrologia do Departa‑ mento de Pediatria da Unifesp. Orientadora do Pro‑ grama de Pós‑graduação em Nutrição da Unifesp. Presidente do Departamento de Nutrição da SPSP. Secretária do Departamento de Nutrologia da SBP. Maria Marlene de Souza Pires Pós‑graduada em Nutrologia e Doutora em Medicina/Pediatria pelo Departamento de Pediatria da FMUSP. Professora Titular do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenadora do Laboratório de Pesquisa Experimental e Clínica em Metabologia e Nutrologia e Professora Orientadora da Pós‑graduação em Ciências Médicas da UFSC. Coordenadora da Residência em Nutrologia e Serviço de Metabologia e Nutrologia do Hospital Infantil Joana de Gusmão (HIJG). Coordenadora do Ambulatório de Puericultura do HIJG. Presidente do Departamento Científico de Nutrologia da Sociedade Catarinense de Pediatria (SCP).
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Maria Paula de Albuquerque Especialista em Pediatria com Área de Atuação em Nutrologia Pediátrica pela EPM‑Unifesp. Doutoranda do Departamento de Endocrinologia da EPM‑Unifesp. Marileise dos Santos Obelar Especialista em Pediatria pela SBP. Pós‑graduada em Nutrologia Pediátrica pelo HIJG/UFSC e em Nutrologia pela Abran. Mestre em Ciências Médicas, com Área de Concentração em Pediatria, pela UFSC. Coordenadora Clínica da EMTN do Hospital Universitário da UFSC e do HIJG. Membro Participante do Departamento de Nutrologia Pediátrica e Terapia Nutricional da SBP. Mauro Fisberg Doutor em Ciências – Nutrição Infantil – pela EPM ‑Unifesp. Professor Associado do Departamento de Pediatria da EPM‑Unifesp. Secretário do Departamento de Nutrologia da SPSP. Coordenador do Centro de Dificuldades Alimentares do Instituto Pensi/Hospital Infantil Sabará. Past President and General Secretary da Sociedad Latinoamericana de Investigación Pediátrica. Membro do Alumni Leadership Program Fellows VII – Partners of the Americas – Kellogg´s Foundation. Membro do Alumni – World Hunger Program – United Nations University. Mônica Lisboa Chang Wayhs Pediatra com Área de Atuação em Nutrologia Pediátrica e Gastroenterologia pela SBP. Mestre em Pediatria e Doutora em Medicina pela EPM‑Unifesp. Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da UFSC. Pediatra Nutróloga do Serviço de Metabologia e Nutrologia do HIJG.
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Rose Vega Patin Especialista em Nutrição Materno‑infantil pela Unifesp. Mestre em Ciências Aplicadas à Pediatria na Área de Nutrição e Doutora em Ciências pelo Programa de Pós‑graduação em Nutrição da Unifesp. Nutricionista da Equipe Multidisciplinar do Centro de Atendimento da Disciplina Infectologia Pediátrica e do Setor de Suporte Nutricional da Disciplina Nutrologia Pediátrica do Departamento de Pediatria da EPM‑Unifesp. Membro Participante do Departamento de Nutrologia da SBP. Silvana Gomes Benzecry Doutoranda em Medicina pelo Departamento de Pediatria da EPM‑Unifesp. Coordenadora e Professora da Disciplina Saúde da Criança da Universidade Estadual do Amazonas. Membro do Departamento de Nutrologia da SBP. Valmin Ramos da Silva Título de Especialista em Pediatria e em Nutrologia pela SBP e Medicina Intensiva Pediátrica pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib/ SBP). Mestre em Biologia Vegetal pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Doutor em Pediatria pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós‑doutor em Educação pela Ufes. Professor Adjunto Doutor de Pediatria. Professor do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Desenvolvimento Local da Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória. Supervisor e Preceptor do Programa de Residência Médica em Pediatria do Hospital Infantil Nossa Senhora da Glória.
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CAPÍTULO 1
AVALIAÇÃO DO ESTADO NUTRICIONAL Virgínia Resende Silva Weffort Roseli Oselka Saccardo Sarni Rose Vega Patin Mauro Fisberg
Introdução A criança apresenta-se em constante crescimento e desenvol‑ vimento. Diante disso, avaliar a evolução (física e mental) em toda consulta torna-se parte obrigatória da semiologia nessa faixa etária. O crescimento é definido pelo aumento linear contínuo, mas não constante, das estruturas que o compõem e resulta da interação de fatores intrínsecos ou orgânicos (ge‑ néticos, neuroendócrinos) e extrínsecos ou ambientais (nutri‑ cionais, condições geofísicas, atividades físicas, vínculo mãe‑ -filho).1 Para o estudo dessas situações, utiliza-se um conjunto de técnicas e medidas que permitem avaliar indicadores que irão definir o estado nutricional do indivíduo ou caracterizar dis‑ túrbios de ordem nutricional, com vistas a estabelecer os ris‑ cos de morbidade e mortalidade. Ao serem aplicadas, essas técnicas irão compor a avalia‑ ção do estado nutricional, cujo objetivo é identificar modifi‑ cações no perfil nutricional individual, associadas ou não a situações de doença, permitindo, assim, uma intervenção adequada no sentido de promover a recuperação ou a manu‑ tenção da saúde. Dentro dessas categorias, vários métodos de avaliação po‑ dem ser utilizados, dependendo das características da avalia‑ ção a ser realizada. Antropometria O valor da antropometria é indiscutível, desde que compo‑ nha registros regulares, precisos e consistentes. Contudo, to‑ das as medidas estão sujeitas a erros, se não forem adequada‑ mente padronizadas; para isso, é necessário manter o treinamento dos observadores quanto às técnicas e ao uso de equipamentos adequados, ajustar os equipamentos necessá‑ rios antes de cada medição, verificar periodicamente os erros dos observadores ao tomar as medidas antropométricas e re‑ petir as medidas até que a diferença entre elas seja a menor possível. Após a obtenção das medidas, faz-se necessário, também, analisá-las de maneira correta. Para tanto, utili‑
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zam-se indicadores, padrões de referência, níveis de corte e classificações adequadas. Uma série de medidas faz parte da avaliação antropométri‑ ca, dependendo do tipo de público ao qual é destinada. Em ge‑ ral, incluem peso, estatura, circunferências corpóreas (crânio, braço, cintura, quadril, panturrilha), dobras cutâneas (tricipi‑ tal, bicipital, suprailíaca, subescapular, panturrilha, abdomi‑ nal) e tamanho dos segmentos corpóreos. O Ministério da Saúde disponibilizou uma publicação para auxiliar na verificação correta de medidas antropométricas.2 Peso O peso é a medida mais comumente realizada na avaliação nu‑ tricional, sendo de fácil obtenção, baixo custo e boa sensibili‑ dade, além de diagnosticar mudanças recentes no estado nu‑ tricional. Lactentes (0 a 2 anos) Para a medida do peso em lactentes, deve-se utilizar balança pediátrica com graduação de 10 g previamente calibrada (se for necessário o uso de qualquer tipo de proteção sobre a ba‑ lança, ela deverá ser colocada antes da calibração). Técnica: o lactente deve estar despido, posicionado de modo que o peso seja igualmente distribuído pela superfície da balança, a fim de proporcionar maior conforto e menor ris‑ co de acidentes para a criança. Os pés ou as mãos do lactente não devem tocar em nenhuma outra superfície. Crianças maiores de 2 anos e adolescentes Pré-escolares, escolares e adolescentes devem utilizar balança do tipo adulto com graduação de 100 g previamente conferida quanto à regulagem, voltando-se ao zero. Técnica: a criança (que se mantenha em pé sem apoio) ou o adolescente devem ser pesados em pé, com os braços estendi‑ dos ao longo do corpo, vestindo o mínimo de roupas possível, descalço, posicionado no centro da plataforma e evitando mo‑ vimentar-se.
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Para coleta do peso atual, deve-se utilizar balança manual ou eletrônica devidamente aferida e com a tara determinada, confirmando-se a marca de zero. Preferencialmente, as pes‑ soas devem ser pesadas em balança tipo plataforma, com rou‑ pas íntimas ou avental hospitalar e sem sapatos. Quando não houver privacidade que permita ao paciente despir-se, espe‑ cialmente em ambulatório, ele deve ser pesado com o mínimo de roupa, descontando-se o peso de suas roupas. O paciente deve ser posicionado no centro da balança, com o peso igual‑ mente distribuído entre os dois pés. O peso habitual é utilizado como referência na avaliação de mudanças recentes de peso e em casos nos quais há impossi‑ bilidade de pesar o paciente. A perda de peso em qualquer porcentagem é sempre considerada significativa do ponto de vista clínico, principalmente em idosos ou crianças. Estatura Para a realização dessa medida, utilizam-se como instrumen‑ tos a régua antropométrica (em crianças de até 24 meses para medir o comprimento) e o antropômetro de madeira (para medir a altura) ou, na sua ausência, uma trena ou fita métrica, com divisões em milímetros, afixada à parede (observando-se que tal parede não tenha rodapé, o que provocaria erro na me‑ dição). 1. Comprimento: em pacientes hospitalizados que não deambu‑ lam, a medição pode ser feita quando estiverem deitados em superfície plana, seguindo o mesmo procedimento realizado em crianças até 2 anos de idade, com uma fita métrica posi‑ cionada em sua lateral. 2. Altura: a pessoa deve ser medida em pé e sem sapatos. Deve estar ereta, com os dois pés unidos e todo o corpo encostado no antropômetro. A cabeça deve estar posicionada de modo que seja possível olhar horizontalmente – plano horizontal de Frankfort. O esquadro deve ficar acima da cabeça, fazendo pressão suficiente para comprimir o cabelo.3
mulas para estimativa da estatura descritas na Tabela 1 e mos‑ tradas na Figura 1.4 Tabela 1 Fórmulas para estimativa da estatura Medida do segmento
Estatura estimada (cm)
Desvio ‑padrão (cm)
Comprimento superior do braço (CSB)
E = (4,35 × CSB) + 21,8
± 1,7
Comprimento tibial (CT)
E = (3,26 × CT) + 30,8
± 1,4
Comprimento a partir do joelho (CJ)
E = (2,69 × CJ) + 24,2
± 1,1
Circunferências corpóreas Várias são as aplicações das circunferências corpóreas. A circunferência do crânio é amplamente utilizada para o acompanhamento do crescimento em crianças até a idade pré-escolar. A medida do punho, quando associada à altura, pode ser útil para avaliar a compleição do indivíduo. A circunferência de cintura é fortemente associada à gordu‑ ra visceral e relacionada ao risco cardiovascular. Existem vá‑ rias formas de aferição, e a mais empregada é a que utiliza o ponto médio entre a última costela fixa e a crista ilíaca supe‑ rior (cintura natural), aproximadamente 2 dedos acima da ci‑ catriz umbilical. Estudos mostram, inclusive, que a circunfe‑ rência abdominal (quando acima do percentil 90) tem boa correlação com o desenvolvimento de dislipidemia, hiperten‑ são arterial e resistência insulínica. O referencial sugerido para comparação é o proposto por Freedman et al.5 (Tabela 2). Para a avaliação do risco cardiovascular, também é possível realizar a circunferência de pescoço a partir dos 10 anos de ida‑ de6 (Tabela 3).
Outra opção para pacientes impossibilitados de permanecer na posição ereta é a medição da extensão dos braços (enverga‑ dura).3 Os braços devem ficar estendidos, formando um ângu‑ lo de 90° com o corpo. Mede-se a distância entre os dedos mé‑ dios das mãos com uma fita métrica flexível. A medida obtida corresponde à estimativa de estatura do indivíduo. Estatura estimada = [0,73 × (2 × envergadura do braço (m)] + 0,43 Para crianças com limitações físicas na faixa etária de 2 a 12 anos, as medidas de segmentos dos membros superiores e in‑ feriores permitem estimar a estatura com a utilização de equa‑ ções propostas por Stevenson.4 As medidas de segmento utili‑ zadas são: comprimento superior do braço (CSB, distância do acrômio até a cabeça do rádio, medida com o membro superior fletido a 90°); comprimento tibial (CT, distância da borda su‑ perior medial da tíbia até a borda do maléolo medial inferior, feita com fita inextensível); e comprimento do membro infe‑ rior a partir do joelho (CJ, distância do joelho ao tornozelo). Usando-se as medidas dos segmentos, são empregadas as fór‑
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A
C
B
Figura 1 Estimativa da estatura por meio das medidas do comprimento superior do braço (A), comprimento do membro inferior a partir do joelho (B) e comprimento tibial (C). Fonte : Stevenson, 1995.4
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AVALIAÇÃO DO ESTADO NUTRICIONAL •
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Tabela 2 Distribuição em percentis da circunferência abdominal segundo sexo e idade Idade (anos)
Brancos
Negros
Meninos
Meninas
Meninos
Percentil
Percentil
Percentil
n
50
90
n
50
5
28
6
44
52
59
34
51
54
61
60
53
90
Meninas Percentil
n
50
90
n
57
36
60
42
50
90
52
56
54
60
34
52
56
52
53
59
7
54
55
61
55
54
64
53
56
61
52
56
57
8
95
59
75
75
58
73
54
58
67
54
58
65
9
53
62
77
84
60
73
53
60
74
56
61
78
10
72
64
88
67
63
75
53
64
79
49
62
79
11
97
68
90
95
66
83
58
64
79
67
67
87
12
102
70
89
89
67
83
60
68
87
73
67
84
13
82
77
95
78
69
94
49
68
87
64
67
81
14
88
73
99
54
69
96
62
72
85
51
68
92
15
58
73
99
58
69
88
44
72
81
54
72
85
16
41
77
97
58
68
93
41
75
91
34
75
90
17
22
79
90
42
66
86
31
78
101
35
71
105
Fonte: Freedman, 1999.5
Tabela 3 Circunferência de pescoço em adolescentes Sexo
Idade (anos)
Sobrepeso (cm)
Obesidade (cm)
Feminino
10 a 12
≥ 29,35
≥ 30,95
13 a 15
≥ 31,25
≥ 32,60
16 a 17
≥ 31,65
≥ 32,45
10 a 12
≥ 29,65
≥ 30,20
Masculino
13 a 15
≥ 33,90
≥ 33,55
16 a 17
≥ 36,45
≥ 38,45
Fonte: adaptada de Ferretti et al., 2015.6
A circunferência do braço é representada pelo perímetro ocu‑ pado pelos tecidos ósseo e muscular acrescido do tecido adipo‑ so. O instrumento a ser utilizado é a fita métrica inextensível. Técnica: a criança ou adolescente deve permanecer em pé com o braço direito estendido paralelamente ao lado do corpo, flexionar até formar ângulo reto com o antebraço. Medir a dis‑ tância entre o acrômio e o olécrano (extremidade do cotovelo) e determinar o ponto médio. Posicionar a fita métrica inexten‑ sível sobre esse ponto. A leitura é feita em milímetros. A circunferência do braço (CB) avalia reservas corpóreas de tecido adiposo e estima a massa magra do indivíduo, enquan‑ to a circunferência muscular do braço (CMB), obtida por meio de uma fórmula a partir das medidas de CB e da dobra cutânea tricipital (DCT), pode estimar o tecido muscular.7 Os resulta‑ dos encontrados são comparados com os valores observados no percentil 50 das tabelas de referência (Tabelas 4 e 5). CMB (cm) = CB (cm) - [0,314 × DCT (mm)] Dobras cutâneas São usadas com o objetivo de monitorar a quantidade de gor‑ dura existente no organismo. Pode-se utilizar a soma dessas
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1401
medidas para verificar a composição corpórea do paciente. Existem várias medidas de dobras cutâneas, porém as mais utilizadas na área clínica são as dobras tricipital, bicipital, subescapular e suprailíaca (Figuras 2 e 3). Essas medidas devem ser coletadas por profissionais devidamente treina‑ dos, pois a falta de habilidade na realização desse procedi‑ mento pode resultar em erros graves. Os resultados obtidos podem ser comparados com tabelas de referência e servir para avaliar o estado nutricional, ou pode-se utilizar o pró‑ prio indivíduo como referencial para acompanhar sua evolu‑ ção. A classificação por percentis obedece à regra de norma‑ lidade, representada por valores entre 5 e 95. Os valores P5-15 e P85-95 devem ser acompanhados, pois são faixas de risco de desnutrição e obesidade, respectivamente. A OMS disponibiliza medidas de dobras cutâneas (tricipital e su‑ bescapular) no seu site,8,9 com tabelas e gráficos, sob a forma de percentis e escore z, para crianças de 3 meses a 5 anos de idade, estratificadas por sexo. Para avaliar a composição corpórea de pacientes obesos, o uso desse método não é in‑ dicado, uma vez que são observados muitos erros na coleta das dobras cutâneas. Nessa situação, as circunferências têm maior validade.
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1402 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
Figura 2 Medidas da circunferência braquial. Fonte: Frisancho, 1990.
Figura 3 Medida da prega cutânea tricipital. Fonte: Frisancho, 1990.
Tabela 4 Valores de referência para circunferência do braço – sexo masculino Circunferência do braço (CB) em mm Idade
5
10
25
50
75
90
95
1 a 1,9
142
146
150
159
170
176
183
2 a 2,9
141
145
153
162
170
178
185
3 a 3,9
150
153
160
167
175
184
190
4 a 4,9
149
154
162
171
180
186
192
5 a 5,9
153
160
167
175
185
195
204
6 a 6,9
155
159
167
179
188
209
228
7 a 7,9
162
167
177
187
201
223
230
8 a 8,9
162
170
177
190
202
220
245
9 a 9,9
175
178
187
200
217
249
257
10 a 10,9
181
184
196
210
231
262
274
11 a 11,9
186
190
202
223
244
261
280
12 a 12,9
193
200
214
232
254
282
303
13 a 13,9
194
211
228
247
263
286
301
14 a 14,9
220
226
237
253
283
303
322
15 a 15,9
222
229
244
264
284
311
320 (continua)
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1402
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AVALIAÇÃO DO ESTADO NUTRICIONAL •
1403
Tabela 4 (continuação) Valores de referência para circunferência do braço – sexo masculino Idade
Circunferência do braço (CB) em mm 5
10
25
50
75
90
95
16 a 16,9
244
248
262
278
303
324
343
17 a 17,9
246
253
267
285
308
336
347
18 a 18,9
245
260
276
297
321
353
379
19 a 24,9
262
272
288
308
331
355
372
25 a 34,9
271
282
300
319
342
362
375
35 a 44,9
278
287
305
326
345
363
374
45 a 54,9
267
281
301
322
342
362
376
55 a 64,9
258
273
296
317
336
355
369
65 a 74,9
248
263
285
307
325
344
355
Fonte: Frisancho, 1981.7
Tabela 5 Valores de referência para circunferência do braço – sexo feminino Idade
Circunferência do braço (CB) em mm 5
10
25
50
75
90
95
1 a 1,9
138
142
148
156
164
172
177
2 a 2,9
142
145
152
160
167
176
184
3 a 3,9
143
150
158
167
175
183
189
4 a 4,9
149
154
160
169
177
184
191
5 a 5,9
153
157
165
175
185
203
211
6 a 6,9
156
162
170
176
187
204
211
7 a 7,9
164
167
174
183
199
216
231
8 a 8,9
168
172
183
195
214
247
261
9 a 9,9
178
182
194
211
224
251
260
10 a 10,9
174
182
193
210
228
251
265
11 a 11,9
185
194
208
224
248
276
303
12 a 12,9
194
203
216
237
256
282
294
13 a 13,9
202
211
223
243
271
301
338
14 a 14,9
214
223
237
252
272
304
322
15 a 15,9
208
221
239
254
279
300
322
16 a 16,9
218
224
241
258
283
318
334
17 a 17,9
220
227
241
264
295
324
350
18 a 18,9
222
227
241
258
281
312
325
19 a 24,9
221
230
247
265
290
319
345
25 a 34,9
233
240
256
277
204
304
342
35 a 44,9
241
251
267
290
317
356
378
45 a 54,9
242
256
274
299
328
362
384
55 a 64,9
243
257
280
303
335
367
385
65 a 74,9
240
252
274
299
326
256
373
Fonte: Frisancho, 1981.7
Índice de massa corpórea Em todas as faixas etárias, pode-se avaliar o estado nutricional pelo índice de massa corpórea (IMC), que é obtido pela equa‑ ção: P(kg)/E(m2). O IMC também pode ser utilizado para classificar o estado nutricional de crianças e adolescentes, no entanto, deve-se le‑ var em consideração a idade e o sexo (Tabela 6).
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1403
O IMC para a idade é recomendado internacionalmente no diagnóstico individual e coletivo dos distúrbios nutri‑ cionais, considerando-se que incorpora a informação da idade do indivíduo e foi validado como indicador de gordu‑ ra corpórea total nos percentis superiores, além de propor‑ cionar continuidade em relação ao indicador utilizado en‑ tre adultos.
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1404 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
A estatura para a idade expressa o crescimento linear da criança. Na condição de índice que melhor aponta o efeito cumu‑ lativo de situações adversas sobre o crescimento da criança, é considerado o indicador mais sensível para aferir a qualidade de vida de uma população. Está presente na Caderneta de Saúde da Criança e também na Caderneta de Saúde do Adolescente. Inquéritos alimentares A investigação do consumo e do hábito alimentar é de suma importância para o diagnóstico nutricional. Para realizar essa avaliação, devem-se considerar situações que possam limitar a disponibilidade e o consumo de alimentos, como fatores cul‑ turais, socioeconômicos, emocionais, estrutura familiar, grau de escolaridade, bem como aqueles relacionados a alimento, sazonalidades e regionalidade.10 A validade e a reprodutividade dos métodos de investiga‑ ção do consumo alimentar dependem muito da habilidade do investigador e da cooperação do entrevistado. Para a avaliação de consumo alimentar, vários métodos es‑ tão disponíveis, com possibilidade de aplicação clínica ou epi‑ demiológica (Tabela 7). Dentre eles, os mais utilizados são o recordatório de 24 horas (informa o consumo no dia anterior ao dia da entrevista), o registro alimentar (informa todos os alimentos consumidos no momento da sua ingestão por 3 ou 4 dias) e o questionário de frequência alimentar (informa a fre‑ quência retrospectiva de consumo de grupos de alimentos em um dado período). Esses métodos reconhecem inadequações alimentares, ou seja, identificam indivíduos em risco nutricional, quantifican‑
do o consumo de energia ou de algum nutriente de interesse. No entanto, para o diagnóstico nutricional, os métodos de consumo alimentar devem ser associados a outros critérios, como antropometria, avaliação clínica e bioquímica. Na área clínica, em pacientes internados, são fundamen‑ tais as anotações referentes a qualidade, quantidade, compo‑ sição da dieta, horários, consistência e quantidade de alimen‑ tos aceitos. Com esse registro, torna-se possível controlar a ingestão hídrica, energética e de outros nutrientes específicos, auxiliando, em um segundo momento, na programação de uma dieta que atenda às necessidades de pacientes em situa‑ ções específicas. Exame clínico O exame clínico complementa o estudo, verificando-se carac‑ terísticas físicas sugestivas de carência ou excesso alimentar na pele e nos anexos, na boca, na língua. Vale ressaltar a im‑ portância da aferição da pressão arterial sistêmica, em todas as consultas para crianças maiores de 3 anos, utilizando-se manguitos apropriados e classificação que leva em conta sexo, idade e estatura. As tabelas para classificação encontram-se disponíveis no manual “Obesidade na infância e adolescência”, do Departamento Científico de Nutrologia da SBP.11 Exames bioquímicos Os exames laboratoriais são as medidas mais objetivas do es‑ tado nutricional. Em muitas situações, para obter-se um diag‑ nóstico do estado nutricional, é necessário combinar diversos indicadores e levar em consideração mais de uma medida,
Tabela 6 Classificação do estado nutricional de crianças e adolescentes Valores críticos
Índices antropométricos Crianças de 0 a 5 anos incompletos
Crianças de 5 a 10 anos incompletos
Peso para idade
Peso para estatura
IMC para idade
Estatura para idade
Peso para idade
IMC para idade
Estatura para idade
< percentil 0,1
< escore z -3
Muito baixo peso para a idade
Magreza acentuada
Magreza acentuada
Muito baixa estatura para a idade
Muito baixo peso para a idade
Magreza acentuada
Muito baixa estatura para a idade
≥ percentil 0,1 e < percentil 3
≥ escore z -3 e < escore z -2
Baixo peso para a idade
Magreza
Magreza
Baixa estatura para a idade
Baixo peso para a idade
Magreza
Baixa estatura para a idade
≥ percentil 3 e < percentil 15
≥ escore z -2 e < escore z -1
Eutrofia
Eutrofia
≥ escore z -1 e ≤ escore z +1
Estatura adequada para a idadeb
Peso adequado para a idade
Eutrofia
≥ percentil 15 e ≤ percentil 85
Peso adequado para a idade
Estatura adequada para a idadeb
> percentil 85 e ≤ percentil 97
> escore z +1 e ≤ escore z +2
Risco de sobrepeso
Risco de sobrepeso
> percentil 97 e ≤ percentil 99,9
> escore z +2 e ≤ escore z +3
Sobrepeso
Sobrepeso
> percentil 99,9
> escore z +3
Obesidade
Obesidade
Peso elevado para a idadea
Sobrepeso Peso elevado para a idadea
Obesidade Obesidade grave
a Uma criança classificada na faixa de peso elevado para a idade pode ter problemas de crescimento, mas esse não é o índice antropométrico mais recomendado para a avaliação de excesso de peso entre crianças. Essa situação deve ser avaliada pela interpretação dos índices de peso para estatura ou IMC para idade. b Uma criança classificada na faixa de estatura para a idade acima do percentil 99,9 (escore z +3) é muito alta, mas isso raramente representa um problema. Contudo, alguns casos correspondem a disfunções endócrinas e tumores. Se houver essa suspeita, a criança deve ser encaminhada para atendimento especializado. Nota: a OMS apresenta referências de peso para estatura apenas para menores de 5 anos pelo padrão de crescimento de 2006. A partir dessa idade, deve-se utilizar o IMC para a idade na avaliação da proporção entre peso e estatura da criança. Fonte: adaptada de WHO, 2006;8 WHO, 2007;9 Brasil – SISVAN, 2011;2 Manual SBP.3
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1404
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AVALIAÇÃO DO ESTADO NUTRICIONAL •
1405
Tabela 7 Tipos de inquérito alimentar Tipo de inquérito
Definição
Pontos críticos
Recordatório de 24 horas
Consiste em uma entrevista na qual a criança e a mãe (ou o adolescente) recordam toda a alimentação ingerida nas 24 horas precedentes
Reflete a alimentação de apenas um dia, que pode ser atípico. Depende da memória do entrevistado. Está sujeito a vieses de resposta
Registro alimentar
Consiste no preenchimento de uma planilha estruturada, na qual deve ser anotada toda a alimentação ingerida durante 3 ou 4 dias alternados (2 dias de semana e 1 de final de semana)
Exige maior tempo e dedicação no preenchimento A anotação pode estar sujeita a modificações desencadeadas pela consulta (p.ex., não incluir alimentos industrializados, ricos em gorduras, sal ou açúcar)
Frequência alimentar
Estima o número de vezes que determinado alimento ou grupo alimentar foi ingerido durante um determinado período
Na prática, é importante que se escolha o alimento ou grupo que se quer avaliar e então se indague sobre a frequência; p.ex., em situações de anemia, perguntar com que frequência se ingere carnes e vísceras
pois esses indicadores podem sofrer variações diárias ou se‑ manais. O uso desses indicadores em pacientes hospitaliza‑ dos permite verificar a massa proteica somática, a integridade das proteínas viscerais e plasmáticas (albumina, pré-albumi‑ na, transferrina e proteína fixadora de retinol) e a competên‑ cia imunológica do indivíduo. Nesses pacientes, destaca-se a participação dos indicadores bioquímicos para verificar a mas‑ sa magra (massa muscular sem gordura), pela relação entre creatinina urinária e altura. Também servem para avaliar a desnutrição grave, por meio da análise de proteínas totais e al‑ bumina, para diagnosticar anemia ferropriva, realizando-se a avaliação da hemoglobinemia e de reservas de ferro séricas (ferritina) ou, ainda, para diagnosticar a recuperação nutricio‑ nal em situações hospitalares, utilizando-se a análise das pro‑ teínas de meia-vida curta, a pré-albumina, que é a proteína transportadora do retinol, e de outras (Tabela 8). Composição corpórea O peso corpóreo como referencial deve ser usado com atenção, pelo fato de que pessoas de mesma compleição corpórea, peso, estatura, idade e sexo podem apresentar diferente distribui‑ ção de tecidos e células. Os dados sobre a composição corpórea têm-se mostrado de relevante importância na avaliação do diagnóstico nutricional e na orientação de condutas que incluam o controle do peso. Com as técnicas descritas anteriormente, procura-se acom‑ panhar a variação das medidas antropométricas durante o processo de crescimento; contudo, dados referentes à compo‑ sição corpórea não podem ser obtidos de modo adequado por meio dessas medidas, de modo que outras técnicas podem complementar o exame físico. Existem vários métodos para a avaliação da composição corpórea: bioimpedância, pesagem hidrostática, densitome‑ tria corpórea total (DXA), também chamada de absorciome‑ tria de duplo feixe de raios X, ressonância magnética (RM), ultrassonografia, tomografia computadorizada (TC) e infra‑ vermelho (Futrex). Considerações finais Avaliar o estado nutricional de um paciente pediátrico é tare‑ fa obrigatória de todo pediatra ou profissional de saúde que tem como objetivo analisar individualmente condutas clíni‑ cas, medicamentosas, intervenção nutricional ou cirúrgica.
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1405
Tabela 8 Indicadores bioquímicos dosados no sangue e valores considerados normais Indicador
Valor normal
Observação
Albumina
≥ 3,5 g/dL
Lactentes ≥ 2,5 g/dL
Transferrina
170 a 250 mg/dL
Fibronectina
30 a 40 mg/dL
Glicemia de jejum
70 a 110 mg/dL
Folato sérico
> 6 ng/mL
Tempo de protrombina
11 a 15 segundos
Alfatocoferol
≥ 0,7 mg/dL
Ácido ascórbico
> 0,2 mg/dL
Retinol
≥ 30 mg/dL
Glutationa redutase
< 20%
Vitamina B12
≥ 200 pg/mL
Fósforo
5 a 8 mg/dL
Zinco
60 a 120 mcg/dL
Colesterol total* (2 a 19 anos de idade)
Desejável: < 150 mg/dL Limítrofe: 150 a 169 mg/dL Aumentado: ≥ 170 mg/dL
LDL-colesterol* (2 a 19 anos de idade)
Desejável: < 100 mg/dL Limítrofe: 110 a 129 mg/dL Aumentado: ≥ 130 mg/dL
HDL-colesterol*
≥ 45 mg/dL
Triglicérides*
Desejável: < 100 mg/dL Limítrofe: 100 a 129 mg/dL Aumentado: > 130 mg/dL
Glicemia de jejum ‑ 8 a 12 horas*
< 100 mg/dL Alterada: > 126 mg/dL
GTTo 2 h*
< 140 mg/dL Alterada: > 200 mg/dL
Jejum de 8 horas
Fonte: SBP, 2012.11
O simples ato de medir e pesar uma criança ou adolescente deve ser acompanhado de uma criteriosa decisão interpreta‑ tiva do momento e, se possível, da evolução no tempo dessas variáveis. Técnicas adequadas e bem treinadas facilitam a rotina e não demandam tempo desnecessário. A informação nutricio‑ nal correta, que abrange história clínica, antecedentes pes‑ soais e familiares, complementados pela avaliação da alimen‑
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1406 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
tação, suas condições de preparo, local, hábitos de vida e da refeição, permite um acompanhamento para o adequado cres‑ cimento e desenvolvimento. Se necessário, deve-se solicitar ajuda de um profissional de outra área ou especialidade para auxiliar no controle do pa‑ ciente. Estabelecer uma rotina facilita a análise nutricional completa sem dificuldades. Para a análise de grupos, é neces‑ sário avaliar o objetivo do estudo e do seguimento para, então, definir qual ou quais ferramentas serão adequadas para a ava‑ liação populacional de crianças e adolescentes. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer as várias técnicas para a realização de uma avaliação nutricional. • Saber interpretar os dados para realizar a classificação do estado nutricional de crianças e adolescentes. • Saber escolher o indicador bioquímico para auxiliar no diagnóstico nutricional.
Referências bibliográficas 1.
Weffort VRS, Lopes LA. Avaliação antropométrica e nutricional. In: Weffort VRS, Lamounier JA. Nutrição na infância: da neonatologia à adolescência. Barueri: Manole, 2009. 2. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departa‑ mento de Atenção Básica. Orientações para a coleta e análise de dados antropométricos em serviços de saúde. Norma Técnica do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional ‑ SISVAN. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publica‑ coes/orientacoes_coleta_analise_dados_antropometricos.pdf. Acessa‑ do em: 27/8/2015. 3. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Departamento de Nutrologia. Ma‑ nual de orientações. Avaliação nutricional da criança e do adolescente. 2012. 4. Stevenson RD. Use of segmental measures to estimate stature in chil‑ dren with cerebral palsy. Arch Pediatr Adolesc Med 1995; 149:658-62.
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1406
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5/5/17 11:46 PM
CAPÍTULO 2
ALIMENTAÇÃO DO LACTENTE À ADOLESCÊNCIA Virgínia Resende Silva Weffort Rose Vega Patin Fabíola Isabel Suano de Souza Roseli Oselka Saccardo Sarni
Introdução Alimentação diz respeito não somente à ingestão de nutrien‑ tes como também aos alimentos que contêm e fornecem os nutrientes, de que forma esses alimentos são combinados en‑ tre si e preparados; quais as características do modo de comer e dimensões culturais e sociais das práticas alimentares. To‑ dos esses aspectos influenciam a saúde e o bem-estar.1 Na faixa etária pediátrica, a alimentação saudável deve possibilitar crescimento e desenvolvimento adequados, otimi‑ zar o funcionamento de órgãos, sistemas e aparelhos e atuar na prevenção de doenças em curto e longo prazo (p.ex., ane‑ mia, obesidade e outras doenças crônicas não transmissíveis). Essa faixa representa uma janela de oportunidades importan‑ te para a implementação de hábitos alimentares e estilo de vida saudáveis com repercussões até a fase adulta. Nos primeiros meses de vida, os sistemas digestório, nervo‑ so, renal e imunológico são imaturos, o que requer ainda maior atenção nas orientações nutricionais fornecidas pelos profis‑ sionais de saúde. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e o Ministério da Saúde (MS) periodicamente disponibilizam ma‑ teriais atualizados sobre o tema alimentação saudável.1-3 Estudos em animais de experimentação e humanos enfati‑ zam a importância dos fatores nutricionais e metabólicos, em fases iniciais do desenvolvimento humano, com efeito, em longo prazo, na programação (programming) da saúde futura.2 O programming é a indução, a deleção ou o prejuízo do de‑ senvolvimento de uma estrutura somática permanente ou ajuste de um sistema fisiológico por um estímulo ou agressão que ocorre em um período suscetível (p.ex., fases precoces da vida), resultando em consequências em longo prazo para as funções fisiológicas. Um exemplo importante de programming em humanos é a relação entre a alimentação no primeiro ano de vida e o desen‑ volvimento de obesidade. O aleitamento materno tem efeito protetor e dose-dependente na redução do risco de obesidade até a idade adulta. O aleitamento materno é a mais sábia estra‑ tégia natural de vínculo, afeto, proteção e nutrição para a
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criança e constitui a mais sensível, econômica e eficaz inter‑ venção para a redução da morbimortalidade infantil.1 Durante o crescimento e a definição da composição corpo‑ ral, os componentes da dieta e dos alimentos são os principais fatores ambientais a afetar o genoma humano. A epigenéti‑ ca representa o conjunto emergente de mecanismos que expli‑ cam de que forma o ambiente e a alimentação/nutrição po‑ dem influenciar o genoma. Verifica-se nas últimas décadas um aumento no consumo de alimentos industrializados ricos em carboidratos simples, gorduras saturadas e trans, e sódio em detrimento da ingestão de preparações caseiras, em todas as faixas etárias. Infeliz‑ mente, as práticas alimentares das crianças brasileiras estão muito aquém das recomendações de uma alimentação ade‑ quada e saudável. Apenas 12,7% das crianças brasileiras de 6 a 59 meses consomem verduras de folhas, 21,8% consomem le‑ gumes e 44,6% consomem frutas diariamente. Também se observou elevado consumo de refrigerantes (40,5%), alimen‑ tos fritos (39,4%), salgadinhos (39,4%), doces (37,8%), na frequência de uma a três vezes na semana. Outro aspecto im‑ portante diz respeito ao excesso de peso que atinge 33,5% das crianças entre 5 e 9 anos de idade. O MS na versão 2014 do Guia Alimentar para a População Brasileira propõe classificação em quatro categorias de ali‑ mentos, definidas de acordo com o tipo de processamento empregado na sua produção, conhecimento importante para as orientações nutricionais.4 A primeira reúne alimentos in natura ou minimamente pro‑ cessados que são aqueles obtidos diretamente de plantas ou de animais (como folhas e frutos ou ovos e leite) e adquiridos para consumo sem que tenham sofrido qualquer alteração após deixarem a natureza. Alimentos minimamente processa‑ dos são alimentos in natura que, antes de sua aquisição, foram submetidos a alterações mínimas. Exemplos incluem grãos secos, polidos e empacotados ou moídos na forma de farinhas, leite pasteurizado, cortes de carne resfriados ou congelados. A segunda categoria corresponde a produtos extraídos de ali‑
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mentos in natura ou diretamente da natureza e usados pelas Recomendações nutricionais5 pessoas para temperar e cozinhar alimentos e criar prepara‑ As dietary reference intakes (DRI) representam a mais recente re‑ ções culinárias. Exemplos desses produtos são: óleos, gordu‑ visão dos valores de recomendação de nutrientes e energia ado‑ ras, açúcar e sal. A terceira categoria corresponde a produtos tados pelos Estados Unidos e Canadá, para as diversas faixas fabricados essencialmente com a adição de sal ou açúcar a um etárias, e vêm sendo publicadas desde 1997, na forma de relató‑ alimento in natura ou minimamente processado, como legu‑ rios parciais elaborados por comitês de especialistas organiza‑ mes em conserva, e pães. A quarta categoria (ultraprocessa‑ dos por uma parceria entre o Institute of Medicine norte-ameri‑ dos) corresponde a produtos cuja fabricação envolve diversas cano e a agência Health Canada. Essas publicações substituem etapas e técnicas de processamento e vários ingredientes, as sucessivas versões das Recommended Dietary Allowances muitos deles de uso exclusivamente industrial. Exemplos (RDA), cuja décima revisão foi editada em 1989. A Tabela 1 apre‑ incluem refrigerantes, biscoitos recheados, “salgadinhos de senta as recomendações para crianças e adolescentes. pacote” e “macarrão instantâneo”. O MS recomenda limitar e A pirâmide alimentar brasileira foi criada em 1999, por pes‑ evitar os alimentos processados e ultraprocessados, respecti‑ quisadores do Departamento de Nutrição da Faculdade de vamente.4 Saúde Pública da Universidade de São Paulo, com o objetivo Os avanços no conhecimento da nutrição e o cenário epide‑ de transformar e reunir conhecimentos científicos sobre a in‑ miológico do país exigem dos profissionais de saúde em geral, gestão alimentar em um instrumento que facilitasse a seleção e dos pediatras em particular, atenção redobrada na orienta‑ e o consumo de todos os grupos de alimentos.6 Em 2013, foi ção da alimentação mais adequada para cada faixa etária. redesenhada para atualização diante dos novos padrões ali‑ A promoção da alimentação saudável tem como base a for‑ mentares de nossa população e melhor adaptação à dieta e aos mação precoce de hábitos alimentares saudáveis, que se inicia hábitos culturais dos brasileiros. O novo desenho da pirâmide com o incentivo ao aleitamento materno e a introdução da ali‑ (Figura 1) conta com redução do valor energético diário para mentação complementar em tempo oportuno e de qualidade, 2.000 kcal (recomendação energética média diária para a po‑ respeitando a identidade cultural e alimentar das diversas re‑ pulação brasileira pela Agência Nacional de Vigilância Sanitá‑ giões brasileiras. Os Dez passos da Alimentação Saudável para ria [Anvisa] em 2005), fracionamento da dieta em seis por‑ Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos recomendados pelo ções diárias, incentivo à prática de atividades físicas e inclusão MS, Organização Pan-Americana da Saúde, Organização de alimentos, como o arroz integral, folhas verde-escuras, pei‑ Mundial da Saúde (OMS) e SBP descrevem de forma didática xes como salmão e sardinha e oleaginosas como castanha-do‑ as recomendações para essa faixa etária:2 -pará. A quantidade de cada alimento no prato irá variar de • Passo 1 – Dar somente leite materno até os 6 meses, sem ofe‑ acordo com a faixa etária e a necessidade calórica, como ilus‑ recer água, chás ou qualquer outro alimento. trado na Tabela 2. Lembrando que para cada grupo são estabe‑ • Passo 2 – Ao completar 6 meses, introduzir de forma lenta e lecidos valores energéticos com equivalentes em energia gradual outros alimentos, mantendo o aleitamento materno (kcal), assim tem-se o número de porções necessárias em cada até 2 anos de idade ou mais. faixa etária. No Manual de Alimentação da SBP, pode-se veri‑ • Passo 3 – Ao completar 6 meses, dar alimentos complemen‑ ficar a conversão das porções em medidas caseiras.3 tares (cereais, tubérculos, carnes, leguminosas, frutas e legu‑ mes) três vezes ao dia, se a criança estiver em aleitamento Alimentação do lactente Aleitamento materno materno. • Passo 4 – A alimentação complementar deve ser oferecida de Amamentar é muito mais do que nutrir a criança. É um pro‑ acordo com os horários de refeição da família, em intervalos cesso que envolve interação profunda entre mãe e filho, com regulares e de forma a respeitar o apetite da criança. repercussões no estado nutricional da criança, em sua habili‑ • Passo 5 – A alimentação complementar deve ser espessa des‑ dade de se defender de infecções, em sua fisiologia e no seu de o início e oferecida de colher; iniciar com a consistência desenvolvimento cognitivo e emocional, e em sua saúde no pastosa (papas/purês) e, gradativamente, aumentar a con‑ longo prazo, além de ter implicações na saúde física e psíquica sistência até chegar à alimentação da família. da mãe.1 O leite humano, por sua complexidade biológica, é • Passo 6 – Oferecer à criança diferentes alimentos ao dia. Uma considerado um alimento vivo que desempenha, além da fun‑ alimentação variada é uma alimentação colorida. ção nutritiva, papéis de proteção, imunomodulação e de pre‑ • Passo 7 – Estimular o consumo diário de frutas, verduras e le‑ venção de doenças degenerativas do adulto. gumes nas refeições. A OMS, o MS e a SBP recomendam aleitamento materno • Passo 8 – Evitar açúcar, café, enlatados, frituras, refrigerantes, por 2 anos ou mais, sendo exclusivo nos primeiros 6 meses. balas, salgadinhos e outras guloseimas nos primeiros anos de Não há vantagens em se iniciar os alimentos complementares vida. Usar sal com moderação. antes dos 6 meses, podendo, inclusive, haver prejuízos à saú‑ • Passo 9 – Cuidar da higiene no preparo e manuseio dos alimen‑ de da criança.1,3 tos; garantir o seu armazenamento e conservação adequados. Apesar dos indiscutíveis benefícios da amamentação para a • Passo 10 – Estimular a criança doente e convalescente a se ali‑ mãe e a criança e das recomendações, extensamente divulga‑ mentar, oferecendo sua alimentação habitual e seus alimen‑ das, a duração média do aleitamento materno total na popula‑ tos preferidos, respeitando a sua aceitação. ção brasileira é de 10 meses, e do aleitamento exclusivo, de 23
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ALIMENTAÇÃO DO LACTENTE À ADOLESCÊNCIA •
1409
Tabela 1 Recomendações nutricionais para crianças e adolescentes 0 a 6 meses
Água total* (L/dia)
0,7
7 a 12 meses
1 a 3 anos
4 a 8 anos
0,8
1,3
1,7
9 a 13 anos
14 a 18 anos
Meninos
Meninas
Meninos
Meninas
2,4
2,1
3,3
2,3
Carboidratos (g/dia)
60
95
130
130
130
130
130
130
Proteínas (g/dia)
9,1
13,5
13
19
34
34
52
46 26
Fibras (g/dia)
-
-
19
25
31
26
38
Gorduras (% kcal/dia)
31
30
30 a 40
25 a 35
25 a 35
25 a 35
25 a 35
25 a 35
Ácido linoleico (g/dia)
4,4
4,6
7
10
12
10
16
12
Ácido alfa-linolênico (g/dia)
0,5
0,5
0,7
0,9
1,2
1
1,6
1,1
Vitaminas A (mcg/dia)
400
500
300
400
600
600
900
700
C (mg/dia)
40
50
15
25
45
45
75
65
D (mcg/dia)
5
5
5
5**
5**
5**
5
5
E (mg/dia)
4
5
6
7
11
11
15
15
K (mcg/dia)
2
2,5
3,0
5
60
60
75
75
Tiamina (mg/dia)
0,2
0,3
0,5
0,6
0,9
0,9
1,3
1,3
Riboflavina (mg/dia)
0,3
0,4
0,5
0,6
0,9
0,9
1,3
1
Niacina (mg/dia)
2
4
6
8
12
12
16
14
Vitamina B6 (mg/dia)
0,1
0,3
0,5
0,6
1
1
1,3
1,2
Folato (mcg/dia)***
65
80
150
200
300
300
400
400 2,4
Vitamina B12
0,4
0,5
0,9
1,2
1,8
1,8
2,4
Ácido pantotênico (mg/dia)
1,7
1,8
2
3
4
4
5
5
Biotina (mcg/dia)
5
6
8
12
20
20
25
25
Colina (mg/dia)
125
150
200
250
375
375
550
400
Minerais Cálcio (mg/dia)
210
270
500
800
1.300
1.300
1.300
1.300
Cromo (mcg/dia)
0,2
5,5
11
15
25
21
35
24
Cobre (mcg/dia)
200
220
340
440
700
700
890
890
Flúor (mg/dia)
0,01
0,5
0,7
1
2
2
3
3
Iodo (mcg/dia)
110
130
90
90
120
120
150
150
Ferro (mg/dia)
0,27
7
10
8
8
11
15
Magnésio (mg/dia)
30
75
11
80
130
240
240
410
360
Manganês (mg/dia)
0,003
0,6
1,2
1,5
1,9
1,6
2,2
1,6
Molibdênio (mcg/dia)
2
3
17
22
34
34
43
43
Fósforo (mg/dia)
100
275
460
500
1.250
1.250
1.250
1.250
Selênio (mcg/dia)
15
20
20
30
40
40
55
55
Zinco (mg/dia)
2
3
3
5
8
8
11
9
Potássio (g/dia)
0,4
0,7
3,0
3,8
4,5
4,5
4,7
4,7
Sódio (g/dia)
0,12
0,37
1
1,2
1,5
1,5
1,5
1,5
Cloro (g/dia)
0,18
0,57
1,5
1,9
2,3
2,3
2,3
2,3
* Água total inclui toda a água contida na alimentação (bebidas e alimentos). ** Como calciferol – 1 mcg = 40 UI de vitamina D. *** 1 mcg de folato = 0,6 mcg de ácido fólico. Fonte: DRI.6
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1410 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
Tabela 2 Necessidade calórica em cada faixa etária e suas respectivas porções em número e energia Crianças 1 a 2 anos
Crianças 2 a 3 anos
Crianças 4 a 8 anos
Adolescente sexo masculino de 9 a 13 anos e sexo feminino e adultos
Adolescente sexo masculino 14 a 18 anos
Necessidade energética média
950 kcal
1.100 kcal
1.500 kcal
2.000 kcal
2.500 kcal
Grupo do arroz, pão, massa, batata, mandioca
3 porções de 75 kcal
5 porções de 75 kcal
4 porções de 150 kcal
6 porções de 150 kcal
8 porções de 150 kcal
Grupo das verduras e legumes
2 porções de 8 kcal
3 porções de 8 kcal
3 porções de 15 kcal
4 porções de 15 kcal
6 porções de 15 kcal
Grupo das frutas
3 porções de 35 kcal
3 porções de 35 kcal
3 porções de 35 kcal
4 porções de 35 kcal
4 porções de 35 kcal
Grupo do leite, queijo e iogurte
3 porções de 120 kcal
3 porções de 120 kcal
3 porções de 120 kcal
3 porções de 120 kcal
3 porções de 120 kcal
Grupo das carnes e ovos
2 porções de 65 kcal
2 porções de 65 kcal
1 porção de 190 kcal
1 porção de 190 kcal
2 porções de 190 kcal
Grupo dos feijões e oleaginosas
1 porção de 20 kcal
1 porção de 20 kcal
1 porção de 55 kcal
1 porção de 55 kcal
2 porções de 55 kcal
Grupo dos óleos e gorduras
1 porção de 37 kcal
1 porção de 37 kcal
1 porção de 73 kcal
1 porção de 73 kcal
1 porção de 73 kcal
Grupo de açúcares e doces
1 porção de 55 kcal
1 porção de 55 kcal
1 porção de 110 kcal
1 porção de 110 kcal
1 porção de 110 kcal
Fonte: Philippi et al.6
LEIT
E
SOJA
IOGURTE
FEIJÃO
FARINHA
ARROZ
ÁGUA
Figura 1 Pirâmide alimentar para crianças e adolescentes. Fonte: SBP.3
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ALIMENTAÇÃO DO LACTENTE À ADOLESCÊNCIA •
dias. Deve-se iniciar o aleitamento natural, sob regime de livre demanda, sem horários pré-fixados imediatamente após o parto, estando a mãe em boas condições, e o recém-nascido com manifestação ativa de sucção e choro. Nos primeiros dias de vida do recém-nascido, as mamas produzem colostro, lí‑ quido rico em proteínas, minerais, fatores de crescimento e imunológicos (células e imunoglobulina A secretora), em vo‑ lume médio de 30 mL/dia. Durante as 2 primeiras semanas de vida, o colostro dá lugar ao leite de transição, e posterior‑ mente ao leite maduro, que supre todas as necessidades nutri‑ cionais do lactente até o 6º mês de vida. É muito importante conhecer e utilizar as definições de aleitamento materno adotadas pela OMS.1 Assim, o aleita‑ mento materno pode ser classificado em: • aleitamento materno exclusivo: quando a criança recebe so‑ mente leite materno, direto da mama ou ordenhado, ou leite humano de outra fonte, sem outros líquidos ou sólidos, com exceção de gotas ou xaropes contendo vitaminas, sais de rei‑ dratação oral, suplementos minerais ou medicamentos; • aleitamento materno predominante: quando a criança recebe, além do leite materno, água ou bebidas à base de água (água adocicada, chás, infusões) ou sucos de frutas; • aleitamento materno: quando a criança recebe leite materno (direto da mama ou ordenhado), independentemente de re‑ ceber ou não outros alimentos; • aleitamento materno complementado: quando a criança recebe, além do leite materno, qualquer alimento sólido ou semissólido com a finalidade de complementá-lo, e não de substituí-lo; • aleitamento materno misto ou parcial: quando a criança rece‑ be leite materno e outros tipos de leite. Alimentação complementar A partir de 6 meses, recomenda-se a introdução de alimentos complementares, já que antes desse período o leite materno é capaz de suprir todas as necessidades nutricionais do lactente. Assim, a alimentação complementar deve prover suficientes quantidades de água, energia, macro e micronutrientes, por meio de alimentos seguros, culturalmente aceitos, economica‑ mente acessíveis e que sejam agradáveis à criança.1 Esse período é de elevado risco para a criança, tanto pela oferta de alimentos desaconselháveis quanto pelo risco de contaminação em razão da manipulação e do preparo inade‑ quado, favorecendo a ocorrência de doença diarreica, desnu‑ trição, deficiência de micronutrientes (p.ex., anemia carencial ferropriva) ou obesidade.3 As crianças amamentadas desenvolvem precocemente o autocontrole de saciedade. É importante que, após a introdu‑ ção de alimentos complementares, os pais e cuidadores não adotem esquemas rígidos de alimentação, como horários e quantidades fixas. Na idade de 6 a 12 meses, o leite materno ainda contribui com aproximadamente metade da energia requerida nessa fai‑ xa etária e 1/3 da energia necessária no período de 12 a 24 me‑ ses. Os alimentos complementares devem suprir aproximada‑ mente 200 kcal/dia entre 6 e 8 meses, 300 kcal/dia entre 9 e 11 meses e 550 kcal/dia dos 12 aos 23 meses. A densidade pro‑
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teica deve ser de 0,7 g/100 kcal dos 5 aos 23 meses. Os lipídios devem assegurar 30 a 45% da energia total. Para garantir a oferta de minerais e vitaminas necessárias ao crescimento, a alimentação complementar deve conter alta densidade desses nutrientes de forma a compensar a pequena quantidade inge‑ rida diariamente.5 A papa principal (mistura múltipla) deve ser oferecida após a criança completar 6 meses de vida (Tabelas 3 e 4) nos horários correspondentes ao almoço ou jantar. Essa refeição deve conter alimentos de todos os grupos: cereais ou tubérculos, legumino‑ sas, carnes e hortaliças (verduras e legumes). Carnes (bovina, suína, frango ou peixe) e ovos cozidos devem fazer parte das re‑ feições a partir do sexto mês de vida sem restrições. O óleo ve‑ getal, de preferência de soja ou canola ou azeite de oliva, por conterem proporções adequadas de ômega 3 e ômega 6, deve ser usado em pequena quantidade e o sal não deve ser adiciona‑ do. No início, os alimentos devem ser amassados com o garfo (consistência de purê), nunca liquidificados ou peneirados. É comum a criança rejeitar alimentos que não lhe são fami‑ liares e esse tipo de comportamento manifesta-se precoce‑ mente. No entanto, com exposições frequentes, os alimentos novos passam a ser aceitos. Em média são necessárias de oito a dez exposições para uma plena aceitação. Importante o pro‑ fissional de saúde tranquilizar os pais. No Brasil, alguns estudos pontuais observaram que a defi‑ ciência de ferro é a principal causa da anemia em crianças me‑ nores de 2 anos. O ferro apresenta-se nos alimentos sob duas Tabela 3 Esquema para a introdução de alimentos em crianças em aleitamento materno ou fórmula infantil Faixa etária
Tipo de alimento
Até o 6º mês
Leite materno exclusivo
Do 6º ao 24º mês
Leite materno complementado
No 6º mês
Frutas (amassadas ou raspadas) Papa principal (mistura múltipla)
Do 7º ao 8º mês
Papa principal
Do 9º ao 11º mês
Gradativamente, passar para a refeição da família com ajuste da consistência
No 12º mês
Alimentação da família (observar adequação)
Tabela 4 Grupos de alimentos utilizados no preparo das papas principais (misturas múltiplas) Cereais ou tubérculos
Leguminosas
Proteína animal
Hortaliças
Arroz
Feijão
Carne bovina
Verduras*
Milho
Soja
Vísceras
Legumes
Macarrão
Ervilha
Carne de aves
Batata
Lentilhas
Carne suína
Mandioca
Grão-de-bico
Carne de peixe
Inhame
Ovos
Cará * Verduras são hortaliças cuja parte comestível são as folhas (p.ex., alface, couve, acelga) e legumes são as hortaliças cuja parte comestível não são as folhas (p.ex., cenoura, chuchu, abóbora).
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1412 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
formas: heme e não heme. O ferro heme, das carnes e vísceras, tem maior biodisponibilidade, não sofrendo influência de fa‑ tores inibidores. As carnes apresentam cerca de 2,8 mg de fer‑ ro por 100 g do alimento, sendo absorvidos em torno de 20 a 30% desse nutriente. O ferro não heme, contido em alimentos de origem vegetal, ao contrário do ferro animal é pouco absor‑ vido pelo indivíduo, cerca de 2 a 10%. Ele pode ter suas taxas de absorção modificadas na presença de agentes facilitadores ou inibidores da sua absorção. O ácido ascórbico é facilitador, e os fitatos, taninos, cálcio e fosfatos possuem efeito inibidor. As frutas devem ser oferecidas após os 6 meses de idade, amassadas ou raspadas, sempre às colheradas. E após o apare‑ cimento da dentição e na dependência do desenvolvimento, em pedaços pequenos ou inteira. O tipo de fruta a ser oferecido deve respeitar as características regionais, custo, estação do ano e o hábito alimentar da família; nenhuma fruta é contraindicada. Os sucos devem ser evitados, mesmo os naturais, por serem muito calóricos e favorecerem o aparecimento de obesidade, além de não proporcionarem o consumo das fibras das frutas. É importante oferecer água potável (após ferver 1 litro de água – 5 xícaras, adicionar 2 gotas (0,1 mL) de hipoclorito de sódio 2,5% e deixar repousar por 30 minutos) a partir da intro‑ dução da alimentação complementar. Os procedimentos de higiene são fundamentais e devem envolver lavagem de mãos, higienização adequada de utensí‑ lios e alimentos e técnicas de conservação. Devem-se lavar os alimentos e deixá-los em uma solução com hipoclorito de só‑ dio 2,5% (10 gotas para 1 litro de água) por 20 minutos. Para redução na concentração de alguns agrotóxicos, mergulhar os alimentos por 20 minutos em solução de bicarbonato de sódio em pó 80 g (1 colher de sopa para 1 litro). Os alimentos prontos não devem ficar mais do que 2 horas à temperatura ambiente, e aqueles alimentos preparados que fo‑ rem ser armazenados sob refrigeração (5 ºC) têm o prazo máximo de consumo de 5 dias. Se congelados, os alimentos não devem ser descongelados à temperatura ambiente; deixar o alimento em um recipiente dentro da geladeira até o descongelamento. A frequência da alimentação complementar varia conforme a idade da criança. A OMS recomenda duas a três refeições ao dia dos 6 aos 8 meses, e três a quatro para as crianças dos 9 aos 24 meses. Após os 12 meses, são recomendados lanches adi‑ cionais. A frequência das mamadas no seio pode ser mantida. Devem-se evitar alimentos industrializados pré-preparados, principalmente os ultraprocessados (refrigerantes, sucos, em‑ butidos, salgadinhos de pacote, macarrão instantâneo),4 condi‑ mentos industrializados, café, chá e outros que ofereçam risco de aspiração (p.ex., pipoca). A oferta de água de coco e de outros líquidos em substituição à água também não é aconselhável. No primeiro ano de vida não se recomenda o uso de mel de abelha. Nessa faixa etária, os esporos do Clostridium botulinum, capazes de produzir toxinas na luz intestinal, podem causar botulismo. Alimentação para crianças não amamentadas Durante os dois primeiros anos de vida a alimentação adequa‑ da é fundamental para o crescimento e desenvolvimento infan‑ til. O aleitamento materno é a melhor opção de alimentação
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para crianças pequenas e é recomendado de forma exclusiva até os 6 meses de vida, devendo ser complementado após essa idade, com a introdução de outros alimentos, mantendo-se a amamentação até os 2 anos ou mais. Diante da impossibilidade do aleitamento materno, deve-se utilizar uma fórmula infantil que satisfaça as necessidades do lactente, conforme recomen‑ dado por sociedades científicas nacionais e internacionais.3,7,8 Todas as fórmulas (infantis para lactentes e de seguimento para lactentes) disponíveis no Brasil são consideradas seguras, pois seguem as resoluções da Anvisa (RDC nº 43 e 44/2011), cuja resolução mais recente foi em 19 de setembro de 2011. Antes do sexto mês, deve ser utilizada uma fórmula infantil para lactentes (primeiro semestre), garantindo, quando em volume e concentração adequados, as necessidades nutricio‑ nais dessa faixa etária. A partir do sexto mês, recomenda-se uma fórmula infantil de seguimento para lactentes (segundo semestre), que, quando ingeridas em volume de 500 mL/dia, proporcionam aproximadamente 60% das necessidades nu‑ tricionais da criança nessa faixa etária. Para as crianças que usam fórmulas infantis, a introdução de alimentos deve seguir o mesmo padrão preconizado para aquelas que estão em aleitamento materno exclusivo (a partir dos 6 meses, Tabela 3). O leite de vaca não é recomendado para crianças menores de 1 ano, tendo em vista que é nutricionalmente inadequado com elevada quantidade de proteínas, sódio, cloretos, cálcio, fósforo; ferro de baixa biosdisponibilidade; quantidades insa‑ tisfatórias de carboidratos, de ácidos graxos essenciais, de vi‑ taminas e de minerais para essa faixa etária. Infelizmente, o uso do leite de vaca ainda é muito dissemi‑ nado no Brasil. No inquérito nacional entre as crianças que re‑ cebiam outros leites, o leite de vaca foi consumido por 62,4% das crianças menores de 6 meses, por 74,6% das crianças de 6 a 12 meses e por aproximadamente 80% das crianças maiores de 12 meses. O consumo de fórmulas infantis foi de 23% em crianças menores de 6 meses, 9,8% na idade de 6 a 12 meses e menor que 1% nas demais idades.1 Alimentação para lactentes entre 1 e 2 anos de idade Nesta faixa etária, a amamentação deve prosseguir. As refei‑ ções devem assemelhar-se às dos adultos segundo o Guia Ali‑ mentar da População Brasileira proposto pelo Ministério da Saúde. As orientações de hábitos alimentares e estilo de vida adequados para toda a família são essenciais tendo em vista que mais de 50% da população adulta brasileira apresenta ex‑ cesso de peso. O consumo de alimentos ultraprocessados deve ser desencorajado ressaltando a importância de preparações caseiras saudáveis.4 Para crianças não amamentadas recomenda-se a ingestão média de 600 mL de leite de vaca associada à alimentação ba‑ lanceada, variada e equilibrada. Os derivados do leite de vaca também podem ser oferecidos. O consumo superior a 700 mL de leite de vaca integral, nessa faixa etária, deve ser desenco‑ rajado e representa importante fator de risco para o desenvol‑ vimento da anemia carencial ferropriva.
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Os alimentos sólidos podem ser oferecidos no prato, com colher pequena, estreita e rasa. Importante que a criança ma‑ nuseie os alimentos nessa fase. Os líquidos devem ser oferta‑ dos em copo ou xícara, de preferência de plástico e inquebrá‑ vel. Nessa fase, inicia-se o treinamento para o uso de utensílios, que envolve estímulo à coordenação e à destreza motora, funcionando como importante incentivo ao desenvol‑ vimento neuropsicomotor. Suplementação vitamínica e mineral A administração de ferro profilático deve ocorrer para todos os lactentes a partir da interrupção do aleitamento materno ex‑ clusivo até os 24 meses de idade (Tabela 5). Tabela 5 Recomendações de suplementação de ferro para lactentes5 Situação
Recomendações para suplementação
Lactentes nascidos a termo, de peso adequado para a idade gestacional, em aleitamento materno exclusivo
Não indicado até 6 meses de idade
Lactentes nascidos a termo, de peso adequado para a idade gestacional, em uso de fórmula infantil até 6 meses de idade e a partir do 6º mês se houver ingestão mínima de 500 mL de fórmula por dia
Não indicado
Lactentes nascidos a termo, de peso adequado para a idade gestacional, a partir da introdução de alimentos complementares
1 mg de ferro elementar/kg/ dia até 2 anos ou 25 mg de ferro elementar por semana até 2 anos de idade
Prematuros maiores que 1.500 g e recém-nascidos de baixo peso, durante todo o 1º ano de vida
2 mg de ferro elementar/kg/ dia, a partir do 30º dia de vida. Após esse período, 1 mg/kg/ dia até 2 anos de idade
O recém-nascido deve receber ao nascimento vitamina K1 na dose de 0,5 a 1 mg por via intramuscular, ou 1 a 2 mg por via oral, como forma de prevenir sangramentos resultantes da ca‑ rência dos fatores de coagulação, dependentes de vitamina K (II, VII, IX e X). O Departamento Científico (DC) de Nutrologia da SBP reco‑ menda a suplementação profilática de vitamina D 400 UI/dia a partir da primeira semana de vida até os 12 meses, e de 600 UI/dia dos 12 aos 24 meses, inclusive para as crianças em alei‑ tamento materno exclusivo, independentemente da região do país. Avaliar a necessidade de suplementação profilática para lactentes em uso de fórmula infantil, tendo em vista que seria necessário o consumo de 1 litro para atendimento das reco‑ mendações. Com respeito ao horário de exposição ao sol, cabe salientar que, antes das 10 e após as 15 horas, o ângulo de inci‑ dência é mais oblíquo, semelhante ao que ocorre no inverno, e, por isso, pouca vitamina D3 é sintetizada pela pele. Por outro lado, a exposição ao sol no período das 10 às 15 horas pode ser associada ao aumento no risco de câncer de pele. Em vista dis‑ so, a suplementação de vitamina D é altamente recomendável.3 O acréscimo de flúor à água de abastecimento público cons‑ titui uma das melhores formas de acesso da população a esse
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elemento. Sua ação é predominantemente tópica sobre os dentes, por meio de deposição de fluoreto de cálcio sobre a su‑ perfície do esmalte. Desse modo, a suplementação de flúor não se justifica em localidades onde há fluoretação da água para abastecimento. Alimentação do pré-escolar O período pré-escolar compreende a faixa etária de 2 a 6 anos, sendo esse um período crítico na vida da criança, em que se torna necessária e importante a sedimentação de hábitos ali‑ mentares, uma vez que essa é uma fase de transição: a criança sai de um período de total dependência (lactentes) para poste‑ riormente entrar em uma fase de maior independência (esco‑ lar e adolescência).3 A criança adquire maior autonomia na marcha, há uma participação cada vez mais ativa na vida familiar e amadure‑ cimento da linguagem e habilidades sociais relacionadas à alimentação. É nessa idade que a criança desenvolve sentidos e diversifica os sabores, e com isso forma suas próprias prefe‑ rências. Essa etapa caracteriza-se por ser um período de diminuição do ritmo de crescimento sendo inferior aos dois primeiros anos de vida (cerca de 2 a 3 kg/ano e 5 a 7 cm/ano), portanto com decréscimo das necessidades nutricionais e do apetite. Muitas vezes, a família atribui a redução fisiológica na inges‑ tão alimentar, frequente nessa fase, à presença de alguma doença, chegando à consulta pediátrica com a queixa de ina‑ petência. Isso pode acarretar diagnósticos errôneos de anore‑ xia e o uso inadequado de medicamentos e suplementos ali‑ mentares. Essa fase também se caracteriza por um comportamento ali‑ mentar imprevisível e variável: a quantidade ingerida pode os‑ cilar, sendo grande em alguns períodos e nula em outros; capri‑ chos podem fazer com que o alimento favorito de hoje seja inaceitável amanhã, ou que um único alimento seja aceito por muitos dias seguidos. Se os pais não considerarem esse com‑ portamento como transitório e reagirem com medidas coerciti‑ vas, ele poderá se transformar em distúrbio alimentar real e per‑ durar em fases posteriores. São características do pré-escolar a neofobia (dificuldade em aceitar alimentos novos ou desconhe‑ cidos) e a rejeição por uma grande variedade de alimentos. Diante desse perfil do pré-escolar faz-se necessária a reali‑ zação de consultas periódicas, com o objetivo de orientação no manejo desses eventos bem como para monitorar o cresci‑ mento e desenvolvimento. Cabe ao pediatra esclarecer aos pais da importância de seus hábitos alimentares como modelo para o comportamento alimentar de seus filhos. Outra mudança dessa fase, comum nos centros urbanos, é o início da vida em creches ou escolas, o que também tem impac‑ to no hábito alimentar. Famílias e escolas devem ser orientadas sobre formas de garantir a nutrição adequada das crianças dessa faixa etária, auxiliando na formação de hábitos futuros. Aos 3 anos de idade, todos os dentes da primeira dentição já apareceram, e as crianças podem aprender a ingerir alimen‑ tos diversificados nas diferentes texturas, amadurecendo des‑ sa forma várias funções. Em relação à saúde bucal, observa-se
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também amadurecimento, sendo a mastigação uma atividade importante para o desenvolvimento da musculatura do rosto. Importante incentivar o consumo de alimentos inteiros segui‑ dos de alimentos crus, em pedaços como a cenoura, ou maçã, por exemplo. Maus hábitos alimentares também levam à aqui‑ sição de deformidades dentárias e de mordida, o que pode le‑ var a criança a ser um respirador bucal. São necessárias orientações gerais para que a conduta ali‑ mentar da criança seja saudável e a formação do hábito ade‑ quada na fase pré-escolar:3,7 1. O esquema alimentar deve ser composto por cinco ou seis re‑ feições diárias (a cada 3 horas), procurando estabelecer uma rotina, dentro de horários que possam atender a demanda da família. 2. É necessário que se estabeleça um tempo definido e suficien‑ te para cada refeição. Se nesse período a criança não aceitar os alimentos, a refeição deve ser encerrada e oferecido algum ali‑ mento apenas na próxima. Não se deve oferecer leite ou outro alimento em substituição à refeição. 3. O tamanho das porções dos alimentos nos pratos deve estar de acordo com as recomendações da criança. É muito fre‑ quente a mãe, por preocupação, servir uma quantidade de ali‑ mento maior do que o necessário. Evitar obrigar a criança a ingerir tudo que está no prato ou de transformar a refeição em um momento de estresse. 4. Quando houver doce de sobremesa, oferecê-lo como sobre‑ mesa dentro do ritual da refeição da família, evitando utilizá‑ -lo como recompensa ao consumo dos demais alimentos. 5. A oferta de líquidos nos horários das refeições deve ser con‑ trolada, porque o suco e a água podem reduzir o tempo de mastigação. O ideal é oferecer a água e o suco natural (máxi‑ mo de 150 mL/dia) nos intervalos das refeições. Estimular o consumo de frutas in natura como sobremesa. 6. O consumo de guloseimas (p.ex., balas, pirulitos, salgadi‑ nhos), embutidos, alimentos industrializados em geral (ricos em carboidratos simples, sódio e gordura saturada e trans) e de bebidas açucaradas como refrigerantes e sucos/néctares industrializados deve ser desestimulado. Importante orientar os pais quanto à leitura de rótulos. 7. Higiene bucal e reforço na retirada de mamadeiras e chupetas é muito importante. 8. A criança deve ser confortavelmente acomodada à mesa com os outros membros da família. A aceitação dos alimentos se dá não só pela repetição à exposição mas também pelo condi‑ cionamento social, e a família é o modelo para o desenvolvi‑ mento de preferências e hábitos alimentares. A criança deve ser encorajada a comer sozinha, mas sempre sob supervisão. É importante deixá-la comer com as mãos e estimular o uso correto dos utensílios. 9. Envolver a criança nas tarefas que incluam as compras e a pre‑ paração das refeições, como participar da escolha do alimento, da sua compra no mercado ou feira e da elaboração dos pratos que não apresentem riscos de acidentes ao manuseio. 10. Cuidados com as preparações caseiras evitando-se: o uso exa‑ gerado de óleo para cocção, consumo frequente de frituras, consumo de carnes com aparas de gordura e pele (no caso das
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aves, como o frango), uso de bacon em preparações nutritivas como o feijão e por fim o acréscimo de condimentos indus‑ trializados com quantidade excessiva de sal. 11. Oferecer alimentos ricos em ferro, cálcio, vitamina A e D e zin‑ co, pois são essenciais nessa fase da vida. A mãe deve dar a carne em pedaços pequenos e com consistência macia e esti‑ mular a criança a mastigá-los e engoli-los. O consumo médio de leite de vaca (em crianças não amamentadas) deve ser de 600 mL/dia.
Sugestões para o planejamento alimentar de crianças de 2 a 3 anos (1.300 kcal) Grupo de pães e cereais: 5 porções: • arroz branco cozido: 2 colheres de sopa; • batata cozida: 1,5 colher de servir ou 1 unidade pequena; • macarrão: 2 colheres de sopa; • pão francês: 1/2 unidade; • pão de forma: 1 unidade; • farinha de mandioca: 1,5 colher de sopa. Grupo de verduras e legumes: 3 porções: • legumes cozidos: 1 colher de sopa do legume picado; • legumes crus: 1 a 2 colheres de sopa; • verdura e folhas cruas: 3 médias/6 pequenas; • verdura e folhas cozidas/refogadas: 1 colher de sopa. Grupo das frutas: 3 porções: • banana nanica: 1/2 unidade; • mamão papaia: 1/2 unidade pequena; • maçã média: 1/2 unidade; • suco de laranja: 200 mL (1/2 copo) de requeijão; • goiaba: 1/2 unidade pequena; • laranja: 1 unidade pequena. Grupo das leguminosas: 1 porção: • feijão cozido (grãos): 1 colher de sopa; • lentilha cozida: 1 colher de sopa rasa; • ervilha cozida: 1 colher de sopa; • grão-de-bico: 1 colher de sopa. Grupo das carnes e ovos: 2 porções: • carne de boi cozida/refogada/grelhada: 2 colheres de sopa rasas ou 1/2 bife pequeno (35 g); • carne de frango cozida/grelhada: 1/2 sobrecoxa ou 1 filé pe‑ queno (35 g); • carne de peixe cozida/grelhada/refogada: 1 posta pequena (65 g); • ovo cozido: 1 unidade; • ovo frito: 1/2 unidade; • bife de fígado: 1/2 bife pequeno (35 g). Grupo do leite e derivados: 3 porções: • leite de vaca líquido: 200 mL; • queijo prato: 2 fatias finas (30 g); • queijo muçarela: 2 fatias médias (40 g); • iogurte de polpa de frutas: 1 pote (120 g);
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Óleo e gorduras: 1 porção: • manteiga ou creme vegetal: 1 colher de chá cheia (5 g); • óleo de soja: 1 colher de sopa rasa. Sugestões para o planejamento alimentar de crianças de 4 a 6 anos (1.800 kcal) Grupo de pães e cereais: 6 porções: • arroz branco cozido: 4 colheres de sopa; • batata cozida: 3 colheres de servir; • macarrão: 3 colheres de servir; • pão francês: 1 unidade; • pão de forma: 2 unidades; • farinha de mandioca: 3 colheres de sopa. Grupo de verduras e legumes: 3 a 4 porções: • legumes cozidos: 1 colher de sopa do legume picado; • legumes crus: 2 colheres de sopa; • verdura e folhas cruas: 3 médias/6 pequenas; • verdura e folhas cozidas/refogadas: 1 colher de sopa. Grupo das frutas: 3 a 4 porções: • banana nanica: 1/2 unidade; • mamão papaia pequeno: 1/2 unidade; • maçã média: 1/2 unidade; • suco de laranja: 100 a 200 mL. Grupo das leguminosas: 1 porção: • feijão cozido (grãos): 2 colheres de sopa ou 1/2 concha média; • lentilha cozida: 2 colheres de sopa cheias; • ervilha cozida: 2 colheres de sopa.
Grupo do leite e derivados: 2 porções: • leite de vaca líquido: 200 mL; • queijo prato: 2 fatia finas (30 g); • queijo muçarela: 2 fatias médias (40 g); • iogurte de polpa de frutas: 1 pote (120 g); • leite em pó integral: 2 colheres de sopa; • queijo minas: 1,5 fatia média.
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Em 2011, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos lançou o My Plate, um guia internacional que pode ser visita‑ do em www.choosemyplate.gov, com a intenção de facilitar as orientações de distribuição dos grupos de alimentos na refei‑ ção respeitando as recomendações nutricionais preconizadas na pirâmide alimentar (Figura 2).9 O DC de Nutrologia da SBP endossa o uso desse instrumento.10 Alimentação do escolar A faixa etária escolar caracteriza-se como uma fase de transi‑ ção entre infância e adolescência e compreende crianças entre 7 e 10 anos de idade. Esse é um período de intensa atividade fí‑ sica, ritmo de crescimento constante, com ganho mais acen‑ tuado de peso próximo ao estirão da adolescência. Observa-se também uma crescente independência da criança, momento em que começa a formar novos laços sociais com adultos e ou‑ tros indivíduos da mesma idade. Essas transformações, alia‑ das ao processo educacional, são determinantes para o apren‑ dizado em todas as áreas e o estabelecimento de novos hábitos, incluindo os alimentares. Além da grande importân‑ cia da família, a escola passa a desempenhar papel de desta‑ que na manutenção da saúde (física e psíquica) da criança. As crianças tornam-se mais fortes, mais rápidas, com maior auto‑ nomia e bem mais coordenadas. É importante, portanto, o in‑ centivo à prática de atividades físicas lúdicas e a limitação do tempo gasto com atividades sedentárias (assistir televisão ou utilizar computadores, tablets e celulares).
Óleo ou azeite de oliva Brócolis
A RE C CE UBÉR T
Grupo das carnes e ovos: 2 porções: • carne de boi cozida/refogada/grelhada: 3 colheres de sopa ou 1 bife pequeno (80 a 100 g); • carne de frango cozida/grelhada: 2 sobrecoxas pequenas ou 1 filé médio (100 a 120 g); • carne de peixe cozida/grelhada/refogada: 1 posta média (150 g); • ovo cozido: 2 unidades; • ovo frito: 1 unidade.
Óleo e gorduras: 1 porção: • manteiga: 1 colher de chá cheia; • óleo de soja: 1 colher de sopa.
CA E O RNES VOS
Açúcar e doces: 1 porção: • açúcar: 1 colher de sopa; • achocolatado: 1 colher de sopa; • doce caseiro: 1 colher de sopa (20 g); • geleia: 2 colheres de sobremesa.
Açúcar e doces: 1 porção: • açúcar: 1 colher de sopa; • achocolatado: 1 colher de sopa; • doce caseiro: 20 g.
LO UL U O
SA
S
• leite em pó integral: 2 colheres de sopa; • queijo minas: 1,5 fatia média.
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LEGUM
IN O
Frutas (sobremesa)
Figura 2 Meu prato.
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Nesse período, os hábitos alimentares da família conti‑ nuam a exercer influência sobre as práticas alimentares. A substituição de refeições por lanches, o consumo de refrige‑ rantes, sucos industrializados pode ser frequente. O consumo regular de refrigerantes fosfatados (bebidas tipo cola) pode contribuir para o aumento da excreção urinária de cálcio, ele‑ vando suas necessidades e contribuindo para o comprometi‑ mento da massa óssea. À deficiência da ingestão de cálcio, soma-se o consumo de alimentos ricos em gordura, sal e açúcares, como “salgadi‑ nhos”, bolachas, lanches, produtos panificados que contêm gorduras trans e saturada, que aumentam o risco de desenvol‑ vimento de doença cardiovascular. Além da deficiência de cál‑ cio, há também a deficiência de vitamina D, ocasionada pela falta de exposição solar e erro alimentar. Raros são os alimen‑ tos que contêm essa vitamina e, nos que a possuem, as quanti‑ dades são muito pequenas. A deficiência de vitamina D e cál‑ cio está relacionada a retardo no crescimento, doenças autoimunes, cânceres, fraturas e desenvolvimento de osteo‑ porose na vida adulta. A adequação no consumo de sal, por meio da redução do sal de adição (< 5 g/dia), dos enlatados, embutidos, salgadinhos e de condimentos industrializados, deve ser preconizada para que se diminua o risco de doenças futuras extremamente prevalentes em nosso meio, como a hi‑ pertensão arterial sistêmica. Escolares e adolescentes estão mais expostos a transtornos alimentares de distintas formas. Se por um lado há a preocupação da comunidade científica e dos próprios pais com o desenvolvimento da obesidade nos indivíduos de tenra idade, por outro deve-se atentar para o fato de que a preocupação excessiva ou mal conduzida com o ganho de peso pode causar transtornos alimentares como a bulimia e a anorexia. Orientações nutricionais O cardápio deve respeitar os hábitos da família e as caracterís‑ ticas regionais. O esquema alimentar deve ser composto por cinco refeições diárias, incluindo: café da manhã, almoço, lan‑ che vespertino, jantar e lanche da noite. A distribuição aceitá‑ vel de grupo de alimentos e número de porções por dia encon‑ tram- se na Tabela 2. A seguir são apresentadas, resumidamente, as diretrizes gerais para a alimentação do escolar:3,7,9 1. Ingestão de nutrientes para prover energia e nutrientes em quantidade e qualidade adequadas ao crescimento, ao desen‑ volvimento e à prática de atividades físicas. 2. Alimentação variada, que inclua todos os grupos alimentares, conforme preconizado na pirâmide de alimentos, evitando-se o consumo de refrigerantes, balas e outras guloseimas. 3. Priorizar o consumo de carboidratos complexos em detrimen‑ to dos simples (a ingestão de carboidrato simples deveria ser inferior a 25% do valor energético total, enquanto o total de carboidrato ingerido deveria ser de 50 a 55% do valor energé‑ tico total). 4. Consumo diário e variado de frutas, verduras e legumes (> 5 porções/dia). Os sucos naturais, quando oferecidos, não de‑ vem ultrapassar a quantidade máxima de 240 mL/dia, sendo
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que uma porção de fruta equivale a aproximadamente 180 mL de suco. 5. Consumo restrito de gorduras saturadas (30% do valor ener‑ gético total): < 2% de trans (para profilaxia de aterosclerose na vida adulta), 10% de monoinsaturadas, < 300 mg de coles‑ terol e 10% de poli-insaturadas (n-6:n-3; 5 a 10:1). 6. Estimular o consumo de peixes marinhos duas vezes por se‑ mana. 7. Controle da ingestão de sal (< 5 g/dia) para prevenção de hi‑ pertensão arterial. 8. Consumo apropriado de cálcio (cerca de 600 mL de leite/dia e/ou derivados) para formação adequada da massa óssea e prevenção da osteoporose na vida adulta. 9. Orientar o escolar e a sua família sobre a importância de ler e interpretar corretamente os rótulos de alimentos industriali‑ zados. 10. Controlar o ganho excessivo de peso pela adequação da inges‑ tão de alimentos ao gasto energético e pelo desenvolvimento de atividade física regular. 11. Evitar a substituição de refeições por lanches. 12. Estimular a prática de atividade física. 13. Reduzir o tempo gasto com atividades sedentárias (TV, videogame e computador). Limitar o tempo de assistir TV em 2 ho‑ ras/dia ou menos. 14. Incentivar hábitos alimentares e estilo de vida adequados para toda a família. 15. Estimular a “autonomia orientada”: que a própria criança sir‑ va seu prato com orientações adequadas das porções.
Sugestão para planejamento alimentar de acordo com o nú‑ mero de porções/dia para crianças em idade escolar (VET: 2.000 kcal) (Tabela 2). • arroz: 4 colheres de sopa (1 porção do grupo dos pães e ce‑ reais); • carne cozida: 1 bife pequeno (80 g) (1 porção do grupo das car‑ nes e ovos); • ervilha: 2 colheres de sopa (1 porção do grupo das leguminosas); • batata cozida: 1,5 colher de servir (1/2 porção do grupo dos pães e cereais); • tomate: 5 fatias (1 porção do grupo das verdura/legumes); • escarola picada: 1 pires cheio (1 porção do grupo das verduras/ legumes); • óleo de soja: 1 colher sopa (1 porção do grupo dos óleos e gor‑ duras); • goiaba: 1 unidade grande (2 porções do grupo das frutas). Alimentação do adolescente Introdução A adolescência, que vai dos 10 aos 19 anos de idade, é um pe‑ ríodo muito especial e de extrema importância pois muitos dos hábitos adquiridos nessa fase serão decisivos na idade adulta. A puberdade inicia-se com o aparecimento de caracteres se‑ xuais secundários, é o determinante neuro-hormonal principal de ambas as mudanças fisiológicas e psicológicas, embora ou‑ tros fatores sociais e de comportamento participem nesse pro‑ cesso. Esse período é caracterizado por uma aceleração global
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de crescimento e maturação, com as alterações diferenciais en‑ tre ambos os sexos. Ambos os sexos apresentam velocidade de crescimento estatural de 5 cm/ano no período pré-púbere e de 8,3 e 9,5 cm/ano no período púbere em meninas e meninos, respectivamente. O crescimento nas meninas é acompanhado de maior incremento na massa gorda comparativamente aos meninos, que aumentam proporcionalmente mais a massa magra. Importante considerar nessa fase o estadiamento pu‑ beral. Em termos de percentual de gordura, os meninos atin‑ gem o pico no início da adolescência e mostram diminuição durante o crescimento rápido (estirão pubertário); as meninas, após diminuição inicial, evidenciam um crescimento constan‑ te no percentual de gordura até os 18 anos de idade. Nessa ida‑ de, os meninos e meninas atingem um percentual de gordura corporal total de 18 e 25%, respectivamente.3,7 Nesse período, ocorre também aumento da densidade mi‑ neral óssea, alcançando pico no final da adolescência, corres‑ pondendo ao estágio 4 de Tanner, e evoluindo gradativamente até a idade de adulto jovem.. As necessidades nutricionais na adolescência são influen‑ ciadas simultaneamente pelos eventos da puberdade e pelo estirão do crescimento. Entretanto, especialmente nessa fase de desenvolvimento, a escolha dos alimentos será potencial‑ mente determinada por fatores psicológicos, socioeconômi‑ cos e culturais que irão interferir diretamente na formação dos hábitos alimentares. Os hábitos alimentares de adolescentes são caracterizados por: • tendência em pular refeições, como o café da manhã e jantar; • fazer refeições fora de casa; • maior frequência a lanchonetes; • consumo de alimentos e bebidas com alta densidade energética; • realizar “dietas” por conta própria (sem supervisão). A nutrição tem papel crítico no desenvolvimento do adoles‑ cente, e o consumo de dieta inadequada pode influir desfavo‑ ravelmente sobre o crescimento somático, maturação e desen‑ volvimento de doenças crônicas. Necessidades nutricionais3 Energia As necessidades energéticas estão aumentadas e guardam es‑ treita relação com a velocidade de crescimento, estadiamento puberal e atividade física. Os requerimentos energéticos au‑ mentam de acordo com a velocidade de crescimento estatural. As necessidades energéticas medias diárias para meninas são de 1.400 a 2.200 kcal entre 9 e 13 anos e 1.800 a 2.400 kcal en‑ tre 14 e 18 anos. Os meninos necessitam 1.600 a 2.600 kcal en‑ tre 9 e 13 anos e 2.000 a 3.200 kcal entre 14 e 18 anos. Proteínas O incremento na incorporação de proteína durante o estirão pubertário pode ser mediado pelo aumento no consumo. No entanto, estudos demonstram que não há profundas mudan‑ ças no consumo proteico durante a puberdade quando ajusta‑ do para o peso corporal. Esse fato é decorrente da maior efi‑
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ciência de utilização da proteína da dieta para retenção relativa à ingestão (aumento na retenção de leucina bruta na puberdade comparativamente à fase pré-púbere). Segundo a DRI 2005, uma dieta para atender esse período de rápido cres‑ cimento pode requerer cerca de 10 a 14% da ingestão total de energia em proteína de alta qualidade. Vitaminas As vitaminas hidrossolúveis, como a tiamina, niacina e ribo‑ flavina, cumprem relevantes funções no metabolismo energé‑ tico, sendo assim importante que as recomendações sobre sua ingestão tenham como base a ingestão energética. Alguns adolescentes, principalmente os fumantes e as ado‑ lescentes que utilizam contraceptivos orais, podem apresen‑ tar deficiência de vitamina C. As necessidades de vitamina B12 também são elevadas e o risco de carência é especialmente alto nos casos de dietas radicais ou vegetarianos estritos. O ácido fólico é importante durante os períodos de grande replicação celular e crescimento. É importante salientar que houve aumento nas recomendações de folato para adolescen‑ tes na idade reprodutiva, tanto para o sexo feminino quanto para o masculino, 300 a 400 μg/dia. A vitamina D tem sido estudada em todos os continentes e da maioria dos países ao redor do mundo. A vitamina D está envolvida no metabolismo do cálcio, fósforo e na mineraliza‑ ção óssea sendo necessários até 10 μg no período de maior ve‑ locidade do crescimento ósseo. O desenvolvimento ósseo tem papel importante na determinação do risco de osteoporose em idades mais avançadas. Minerais A oferta de minerais é imprescindível para o correto funciona‑ mento de numerosos sistemas enzimáticos e para permitir a expansão dos tecidos metabolicamente ativos, que sofrem no‑ tável incremento durante esse período.1 Cálcio
Em razão do desenvolvimento acelerado muscular, esqueléti‑ co e endócrino, as necessidades de cálcio são maiores durante a puberdade e adolescência do que durante a infância ou idade adulta. A taxa de aquisição de massa óssea na adolescência é muito maior durante a puberdade do que em qualquer fase da vida. As mulheres adquirem 92% de sua massa óssea até os 18 anos de idade, tornando a adolescência uma janela de oportu‑ nidade para a prevenção da osteoporose. Grande parte dos adolescentes tem dieta pobre em cálcio. A quantidade de cálcio absorvida de diferentes tipos de dieta é muito variada e a presença de certos nutrientes (proteínas, fósforo) e fatores antinutricionais interferem na sua absorção. Recomenda-se que 60% das necessidades de cálcio sejam for‑ necidas sob a forma de produtos lácteos, em razão da sua alta biodisponibilidade, pois apresenta-se organicamente ligado à caseína. As recomendações estimadas de cálcio para os ado‑ lescentes são de 1.300 mg (Tabela 6). Estudos sugerem que o alto consumo de refrigerantes pelos adolescentes, além do risco direto para a mineralização óssea,
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contribui para o baixo consumo de cálcio, por substituir a in‑ gestão de leite. Tabela 6 Quantidades de alimentos necessários para atingir as recomendações de cálcio para adolescentes Alimentos
Total cálcio (mg)
2 xícaras de leite integral (250 mL)
580
1 fatia de queijo branco (30 g)
205
1 unidade média de batata assada
115
1 filé de peixe
50
1 laranja
96
1 prato de sopa de legumes (300 g)
72
1 bola de sorvete de massa (100 g)
92
1 misto quente
135
TOTAL
1.345
Fonte: SBP, 2012.3
Ferro
As necessidades de ferro aumentam durante a adolescência pelo incremento na massa magra, pelo aumento no volume dos eritrócitos e para suprir as perdas menstruais nas meninas. Nas meninas, após a menarca, a necessidade de ferro é três ve‑ zes maior que a dos meninos. A anemia ferropriva leva a efei‑ tos deletérios com impacto negativo no desenvolvimento físi‑ co-mental e desempenho escolar. As recomendações do ferro são de 8 mg/dia para ambos os sexos nas idades entre 9 e 13 anos e 11 e 15 mg/dia, respectiva‑ mente, para os meninos e meninas entre 14 e 18 anos (Tabela 7). Ressalta-se a maior biodisponibilidade do ferro heme, que se encontra nos alimentos de origem animal, devendo-se mo‑ nitorar o adolescente que ingere pouca quantidade de carnes (bovina, suína, de pescados e de aves). Tabela 7 Quantidade de ferro existente em alguns tipos de carnes
Zinco
O zinco é reconhecido como essencial para o crescimento e a maturação sexual. Atraso de crescimento e hipogonadismo têm sido relatados em adolescentes do sexo masculino com defi‑ ciência de zinco. As recomendações diárias são 8 a 11 mg/dia.15 Orientações para os adolescentes3 1. Considerar que a adolescência é um período de profundas modificações físicas, emocionais e cognitivas. Considerar o estadiamento puberal no planejamento das orientações nu‑ tricionais. 2. Estimular que o adolescente seja fisicamente ativo. 3. Ter rotina com regularidade nos horários de alimentação e lo‑ cais apropriados para as refeições. 4. Comer devagar, mastigando bem e não utilizar ou limitar as quantidades de líquidos ingeridos durante as refeições. 5. Controlar o consumo de bebidas açucaradas, salgadinhos, fast e junk foods nos intervalos ou em substituição às refeições. 6. Estimular consumo adequado de frutas, verduras e legumes, assim como de fontes de cálcio e ferro de boa biodisponibili‑ dade. 7. Respeitar as preferências e os hábitos do adolescente, ajus‑ tando as orientações. 8. Lembrar a importância do consumo de água. 9. Considerar que os portadores de doenças crônicas, como a obe‑ sidade, que consomem bebidas alcoólicas ou drogas, utilizam contraceptivos orais, vegetarianos estritos e fumantes apresen‑ tam risco mais elevado de inadequação nutricional e têm maior necessidade de intervenções nutricionais apropriadas. 10. Levar em consideração os aspectos emocionais e a dinâmica familiar, por vezes sendo benéfica a atuação multiprofissional. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Recomendar alimentação e estilo de vida saudáveis, pois são fundamentais para a saúde em curto e longo prazos. • Informar que a participação da família é essencial para a construção de hábitos alimentares saudáveis. • Conhecer as peculiaridades de cada faixa etária e incluir as orientações na rotina da consulta pediátrica de lactentes a adolescentes.
Carne
Quantidade de ferro (mg)
Bovina (contra-filé grelhado) 1 bife médio (100 g)
1,7
Bovina (coxão duro grelhado) 1 bife médio (100 g)
1,7
Bovina (coxão mole grelhado) 1 bife médio (100 g)
2,6
Bovina (fígado grelhado) unidade grande (100 g)
5,8
Referências bibliográficas
Bovina (lagarto grelhado) 1 bife médio (100 g)
1,9
1.
Bovina (músculo cozido) 2 porções (100 g)
2,4
Bovina (patinho cozido) 2 porções (100 g)
3,0
Frango (asa com pele crua) 2 unidades (100 g)
0,6
Frango (coração cru) 12 unidades (100 g)
4,1
Frango (coxa com pele cru) 2 unidades (100 g)
0,7
Frango (fígado cru) 2 unidades (100 g)
9,5
Frango (peito sem pele cru) 1 unidade (100 g)
0,4
Frango (sobrecoxa com pele cru) 2 unidades (100 g)
0,7
Fonte: SBP.3
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2.
3.
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departa‑ mento de Atenção Básica. Saúde da criança: aleitamento materno e ali‑ mentação complementar / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. – 2. ed. – Brasília: Ministé‑ rio da Saúde, 2015. 184 p. (Cadernos de Atenção Básica; n. 23). Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departa‑ mento de Atenção Básica. Dez passos para uma alimentação saudável: guia alimentar para crianças menores de dois anos: um guia para o pro‑ fissional da saúde na atenção básica / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. 2 ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2013. 72 p. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento de Nutrologia. Manual de orientação: alimentação do lactente, alimentação do pré-escolar, ali‑
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ALIMENTAÇÃO DO LACTENTE À ADOLESCÊNCIA •
mentação do escolar, alimentação do adolescente, alimentação na esco‑ la. 3.ed. São Paulo: Sociedade Brasileira de Pediatria, Departamento de Nutrologia, 2012. 4. Brasil. Ministério da saúde. Secretaria de atenção à saúde. Departa‑ mento de atenção Básica. Guia alimentar para a população brasilei‑ ra/Ministério da saúde, Secretaria de atenção à saúde, Departa‑ mento de Atenção Básica. 2. ed. Brasília: Ministério da saúde, 2014. 156 p. 5. Institute of Medicine. Dietary Reference Intakes. The essential guide to nutrient requirements. Washington: The National Academy Press, 2006. 560 p. 6. Philippi et al. Pirâmide dos alimentos. Fundamentos Básicos da Nutri‑ ção. Barueri: Manole, 2008. p.3-387.
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1419
7.
American Academy of Pediatrics, Committee on Nutrition. Pediatric Nutrition Handbook. Kleinman RE, Greer FR (eds.). 7.ed. Elk Grove Village IL: American Academy of Pediatrics, 2014. 1477p. 8. Agostoni C, Decsi T, Fewtrell M, Goulet O, Kolacek S, Koletzko B et al. ESPGHAN Committee on Nutrition: Complementary feeding: a com‑ mentary by the ESPGHAN Committee on Nutrition. J Pediatr Gastroen‑ terol Nutr 2008; 46(1):99-110. 9. Academy of Nutrition and Dietetics. Position of the Academy of Nutri‑ tion and Dietetics: nutrition guidance for healthy children ages 2 to 11 years. J Acad Nutr Diet 2014; 114(8):1257-76. 10. Weffort VRS et al. Alimentação do lactente a adolescência. Em: Campos Júnior D, Burns DAR (orgs.) Tratado de Pediatria. 3.ed. Barueri: Manole, 2014. p.1989-2012.
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CAPÍTULO 3
CARACTERÍSTICAS E INDICAÇÕES DAS FÓRMULAS INFANTIS Fabíola Isabel Suano de Souza Roseli Oselka Saccardo Sarni
Conceitos e legislação Fórmula infantil (FI) é um produto em forma líquida ou em pó, utilizado sob prescrição e especialmente fabricado para satisfazer as necessidades nutricionais dos lactentes. A So‑ ciedade Brasileira de Pediatria (SBP)1 adota a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde (MS) que reforça a importância do aleitamento mater‑ no exclusivo até o sexto mês e complementado até 2 anos de idade ou mais. O Brasil possui uma regulamentação específi‑ ca sobre FI que foi revisada e publicada em 2011 pela Agência Nacional de Vigilância em Saúde (Anvisa). São três resolu‑ ções vigentes: • RDC n. 43 – “Regulamento técnico para fórmulas infantis para lactentes”; determina a composição de FI para lactentes saudáveis entre 0 e 6 meses. • RDC n. 44 – “Regulamento técnico para fórmulas infantis de seguimento para lactentes”; determina a composição de FI para lactentes saudáveis entre 6 e 12 meses. • RDC n. 45 – “Regulamento técnico para fórmulas infantis para lactentes, destinadas a necessidades dietoterápicas específi‑ cas e fórmulas infantis de seguimento para lactentes e crianças de primeira infância, destinadas a necessidades dietoterápicas específicas”; normatiza a composição de FI com modificações na sua composição e utilizadas em situações especiais como, por exemplo, alergia ao leite de vaca e prematuridade. As resoluções da Anvisa são baseadas em padronizações de órgãos internacionais, como o Codex Alimentarius da Food and Agriculture Organization da Organização Mundial da Saú‑ de (FAO/OMS). O Codex tem mais de 185 representantes de diferentes países. Seus membros, incluindo representantes da Anvisa, reúnem-se periodicamente para atualizar as recomen‑ dações acerca da composição nutricional das FI, quais os nu‑ trientes/substâncias podem ser contemplados, as quantida‑ des mínimas e máximas de cada nutriente, tendo como objetivo principal o adequado atendimento às necessidades nutricionais do lactente e os aspectos de segurança.
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A Anvisa ainda considera para a atualização das resoluções as recomendações da European Society for Paediatric Gas‑ troenterology Hepatology and Nutrition (ESPGHAN), da Dire‑ tiva Europeia (Scientific Committee on Food of the European Commission – SCF) e da Life Science Research Organization (LSRO) da Sociedade Americana de Ciências Nutricionais.2 As fórmulas disponíveis no mercado brasileiro, para obtenção de registro junto à Anvisa, precisam comprovar o atendimento às resoluções e, sendo assim, embora apresentem algumas parti‑ cularidades em sua composição, podem ser consideradas segu‑ ras no atendimento às necessidades nutricionais de lactentes. Recomenda-se, também, que os profissionais de saúde e as entidades que lidam com crianças de primeira infância (até 3 anos de idade) conheçam o Decreto n. 8.552, de 3 de novem‑ bro de 2015 que regulamentou a Lei 11.265 de 3 de janeiro de 2006, que, entre outros pontos, proíbe que produtos que pos‑ sam interferir na amamentação tenham propagandas veicula‑ das nos meios de comunicação. Histórico Em 1867, o químico alemão Von Liebig desenvolveu uma mistu‑ ra de farinha de trigo, malte, leite de vaca, óleos vegetais e bicar‑ bonato de potássio, sem adição de vitaminas e minerais. A mis‑ tura foi considerada como a primeira intenção de uma FI. A composição foi modificada ao longo das décadas visando a ajus‑ tá-la às necessidades nutricionais dos lactentes e tendo como modelo o leite materno. Foram adicionados micronutrientes, oligossacarídeos, e houve modificação na quantidade e na qua‑ lidade da proteína e da gordura, entre outras alterações. Os avanços na composição de FI ocorreram paralelamente à ampliação do conhecimento sobre a composição do leite ma‑ terno e ao incremento nas publicações científicas no campo da nutrição. Mais de 2.000 estudos sobre FI foram publicados nos últimos 5 anos. Entretanto, a maioria deles, avaliando o impacto do uso de FI e seus componentes em desfechos como crescimento e desenvolvimento, é de curta duração, o acompa‑ nhamento dos lactentes se deu por volta de 4 meses, e foram
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CARACTERÍSTICAS E INDICAÇÕES DAS FÓRMULAS INFANTIS •
predominantemente desenvolvidos pela indústria. Cabe res‑ saltar, também, que há poucos resultados desfavoráveis publi‑ cados. São escassos os estudos de longa duração que avaliem desfechos como prevenção de doenças alérgicas e obesidade. Diluição das fórmulas infantis A correta reconstituição das FI na forma de pó é fundamental para que se mantenha a segurança físico-química e microbio‑ lógica da preparação. A diluição correta da FI, com a utilização da medida padrão, garante a adequada osmolaridade da solu‑ ção entre 200 e 350 mOsm/L (isosmolar). A diluição não deve ser feita com outros utensílios e nem se deve adicionar à fór‑ mula, exceto em situações excepcionais e sob prescrição, ou‑ tros componentes como açúcar, mucilagem, espessantes, en‑ tre outros. Levando-se em conta aspectos microbiológicos, a OMS e a Anvisa recomendam que a temperatura da água para diluição das FI não seja inferior a 70°C e que o produto diluído não fi‑ que exposto à temperatura ambiente por mais de 2 horas.3 A recomendação da reconstituição a 70°C se deve ao risco para os lactentes de infecção por Cronobacter spp (Enterobacter sakazakii) que é uma bactéria oportunista, Gram-negativa e termoestável que se mantém na forma esporulada no pó das fórmulas infantis. Por ocasião da diluição em temperatura in‑ ferior a 70°C, o microrganismo é ativado, inicia sua replicação, e há relatos na literatura de ocorrência de infecções graves (sepse, meningite e enterocolite necrosante) em lactentes, es‑ pecialmente os prematuros, com baixo peso ao nascer e com idade inferior a 3 meses. 3 Composição das fórmulas infantis A composição do leite materno tem sido utilizada como refe‑ rência para as FI. A superioridade do leite materno é indiscutí‑ vel, e sua composição é extremamente variável e, ainda, não plenamente elucidada. A quantidade, a biodisponibilidade, a organização e a complexidade das estruturas bioquímicas dos componentes do leite materno não são passíveis de reprodu‑ ção pela indústria. Algumas FI sofrem modificações que as afastam da compo‑ sição do leite materno para ajustar sua composição a situa‑ ções clínicas e necessidades nutricionais específicas, como se
FI polimérica
FI parcialmente hidrolisada
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pode observar nas utilizadas para o tratamento de lactentes com alergia ao leite de vaca e em prematuros. Proteína As FI, em sua grande maioria, possuem como fonte proteica leite de vaca com proporção variável de proteínas do soro e ca‑ seína. A proteína isolada de soja adicionada de metionina (para melhorar o perfil de aminoácidos) também pode ser uti‑ lizada nas FI. Seu uso é indicado para crianças com galactose‑ mia e nas formas IgE mediadas de alergia ao leite de vaca, para lactentes acima de 6 meses (Tabela 1).4 A proteína nas FI pode estar sob a forma intacta (FI polimé‑ rica), hidrolisada (FI parcialmente ou extensamente) ou na forma de aminoácidos livres (fórmulas elementares) (Figu‑ ra 1). Lactentes saudáveis e com trato gastrointestinal íntegro devem receber fórmulas com proteína intacta.5 Somente aqueles com alergia ao leite de vaca e/ou síndrome de má ab‑ sorção podem necessitar de fórmulas extensamente hidrolisa‑ das ou à base de aminoácidos. Algumas evidências sugerem que o uso de fórmulas hidrolisa‑ das, até os 4 meses de vida, em lactentes não amamentados com história familiar de doenças atópicas (pais ou irmãos com asma, rinite, alergia alimentar ou dermatite atópica) associa-se com al‑ guma redução do risco de alguns tipos de doenças alérgicas.6 Carboidratos A principal fonte de carboidratos para fornecimento de ener‑ gia nas FI é a lactose, seguida pela maltodextrina e os políme‑ ros de glicose (Figura 2). FI para lactentes saudáveis devem conter lactose como carboidrato predominante; a lactose tem importante efeito bifidogênico e é um facilitador da absorção de cálcio no trato gastrointestinal. As fórmulas com proteína hidrolisada ou à base de aminoá‑ cido podem ter a lactose substituída por maltodextrina ou po‑ límeros de glicose para contemplar situações clínicas que cur‑ sam com má absorção. As fórmulas isentas de lactose, mas com proteína intacta apresentam osmolaridade baixa e são in‑ dicadas no tratamento da intolerância à lactose, que pode acontecer, por exemplo, após infecção de trato gastrointesti‑ nal que evolua para diarreia persistente e no tratamento de crianças gravemente desnutridas na fase de estabilização.
FI extensamente hidrolisada
FI à base de aminoácidos
Hidrólise
Proteína intacta
Proteína parcialmente hidrolisada
Proteína extensamente hidrolisada
Aminoácidos livres
Figura 1 Classificação das fórmulas infantis em relação a conformação da proteína.
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Tabela 1 Grupo de fórmulas infantis disponíveis, principais características e indicações Grupo
Características
Indicações
Fórmulas infantis para lactentes saudáveis de 0 a 6 meses
Fórmulas poliméricas à base de proteína de leite de vaca, com óleos vegetais (predomínio de TCL) e lactose
Indicadas para lactentes saudáveis, nascidos a termo e com trato gastrointestinal íntegro na impossibilidade do aleitamento materno
Fórmulas infantis para lactentes saudáveis de 6 a 12 meses Fórmulas infantis hidrolisadas e com redução da quantidade de lactose
Fórmulas espessadas
Fórmulas parcialmente ou extensamente ‑ Fórmulas que se afastam da composição do leite hidrolisadas, com predomínio de TCL materno. Revisão sistemática recente não encontra (TCM em quantidades variáveis) e justificativa e/ou benefícios do uso dessas fórmulas redução do conteúdo de lactose (no para lactentes saudáveis, seja em relação à melhora de lugar são adicionados maltodextrina e/ou sintomas gastrointestinais (p.ex.: constipação, cólicas, polímeros de glicose) desconforto, regurgitações) e/ou benefícios em longo prazo (p.ex.: obesidade). Não são seguras para uso em lactentes prematuros (p.ex.: pré‑termos tardios) e/ou com baixo peso ao nascer5 ‑ Fórmulas parcialmente hidrolisadas de soro de leite e extensamente hidrolisadas de caseína podem reduzir o risco de algumas formas de alergias quando utilizadas até os 4 meses de vida em lactentes saudáveis e de risco para atopias6 Fórmulas poliméricas à base de proteína de leite de vaca, com TCL, predomínio de lactose e adição de espessantes (amido de arroz, milho ou batata pré ‑gelatinizado)
‑ Não há evidências de benefícios do uso de fórmulas espessadas para lactentes saudáveis com refluxo fisiológico. Metanálise que incluiu 14 estudos que compararam o uso de FI espessadas vs. não espessadas em lactentes saudáveis encontrou apenas redução discreta no número de regurgitações ao dia, sem impacto clínico e modificações significativas na pHmetria8 ‑ Em lactentes com DRGE associada a baixo ganho de peso pode ser uma alternativa durante a fase de investigação9
Fórmulas extensamente hidrolisadas sem lactose
Podem ser à base de caseína, proteínas do soro de leite e soja/colágeno extensamente hidrolisadas. Contêm cerca de 40 a 50% de TCM e substituição de lactose por maltodextrina ou polímeros de glicose
‑ Utilizadas no tratamento da ALV em lactentes: menores de 6 meses, nos que possuem comprometimento do trato gastrointestinal e naqueles com > 6 meses que não evoluíram bem com fórmulas à base de proteína isolada de soja4 ‑ Opção em quadros de síndrome de má absorção de outras causas (p.ex.: síndrome do intestino curto), na realimentação após jejum prolongado (> 10 a 14 dias) e hipermetabolismo (p.ex.: sepse, choque) em lactentes
Fórmulas extensamente hidrolisadas com lactose
São à base de proteínas do soro de leite extensamente hidrolisadas. Predomínio de lactose e TCL como fonte de gordura
Podem ser utilizadas no tratamento da ALV quando não há comprometimento da vilosidade intestinal (p.ex.: urticária, colite)
Fórmulas com proteína isolada de soja
Contêm proteína de soja isolada e adição de metionina. Predomínio de óleos vegetais (TCL) e substituição de lactose por maltodextrina e/ou polímeros de glicose
‑ Podem ser utilizadas para tratamento da ALV em lactentes com > 6 meses, com formas IgE mediadas, sem comprometimento do trato gastrointestinal4 ‑ Utilizadas na galactosemia
Fórmulas à base de aminoácidos
Possuem aminoácidos livres. Predomínio de TCL (95%) e substituição de lactose por maltodextrina e/ou polímeros de glicose)
‑ Podem ser utilizadas no tratamento da ALV em lactentes com história de anafilaxia e que não estejam em uso regular de fórmulas extensamente hidrolisadas, quando não houve resolução dos sintomas com o uso de fórmulas extensamente hidrolisadas e nas alergias múltiplas com intenso comprometimento nutricional4 ‑ Opção em quadros de síndrome de má absorção grave (p.ex.: intestino curto e atrofia vilositária intensa) com importante comprometimento nutricional
Fórmulas infantis para recém ‑nascidos prematuros
Fórmulas poliméricas à base de proteína de leite de vaca (soro e caseína). Maior quantidade de energia e proteína, percentual variável de gordura às custas de TCM, adição de lactose e maltodextrina e/ou polímeros de glicose. Maior quantidade de micronutrientes. Todas são adicionadas de DHA e ARA
Devem ser utilizadas em RNPT até eles completarem 40 semanas e/ou 1.800 a 2.000 g e/ou a alta hospitalar * Fórmulas hidrolisadas, à base de aminoácidos e espessadas não devem ser utilizadas de forma rotineira em RNPT, exceto em situações especiais e por período limitado. Sua composição não atende às necessidades nutricionais desses lactentes
Fórmulas infantis isentas de lactose
Fórmulas poliméricas à base de proteína de leite de vaca com ácidos graxos de cadeia longa. No lugar da lactose há maltodextrina e/ou polímeros de glicose
Utilizadas na intolerância secundária à lactose (p.ex.: diarreia persistente) e no tratamento da criança gravemente desnutrida (fase de estabilização)
TCL: triglicéride de cadeia longa; TCM: triglicéride de cadeia média; ALV: alergia ao leite de vaca; DRGE: doença do refluxo gastroesofágico; DHA: ácido docosa‑hexaenoico; ARA: ácido araquidônico.
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CARACTERÍSTICAS E INDICAÇÕES DAS FÓRMULAS INFANTIS •
Polissacarídios
Amido
Enzima
Amilase
1423
mendação para uso em lactentes saudáveis8 e não devem ser utilizados, como medida principal, no tratamento da doença do refluxo gastroesofágico.9
Gorduras As FI possuem uma mistura de óleos vegetais (milho, açafrão, soja, girassol) para o fornecimento de ácidos graxos em quan‑ Maltase/ Dissacaridases Lactase Sacarase tidade e qualidade adequados para o crescimento do lactente. isomaltase Localização na (apical) (intermediária) (profunda) vilosidade Em todas é obrigatória a adição dos ácidos graxos essen‑ ciais (linoleico e α-linolênico) e opcional a dos ácidos graxos Glicose + Glicose + Glicose + Monossacarídios frutose galactose glicose poli-insaturados de cadeia longa (LC-PUFAS, ácido docosae‑ xaenoico – DHA e araquidônico – ARA), tendo em vista que é possível a síntese de ambos a partir de ácido α-linolênico e li‑ Figura 2 Estrutura dos principais carboidratos presentes nas fórmulas infantis e vias de digestão/absorção. nolênico, respectivamente (Figura 3). * A lactose é o carboidrato mais utilizado nas fórmulas infantis para A adição de DHA e ARA às FI tem como objetivo ajustar as lactentes saudáveis. Situações clínicas que cursem com atrofia da vilosidade intestinal podem resultar em redução da produção/atividade de lactase e, concentrações plasmáticas desses ácidos graxos. Efeitos em consequentemente, intolerância secundária à lactose. Nessas situações, o relação ao desenvolvimento neuropsicomotor em curto e lon‑ uso de fórmulas infantis com maltodextrina (maltose) e polímeros de glicose pode ser necessário, pois o sistema de dissacaridases maltase/isomaltase fica go prazos ainda são controversos.10 Em fórmulas para recém‑ preservado mesmo em condições de atrofia vilositária intensa. -nascidos prematuros sua adição é obrigatória, uma vez que es‑ sas crianças possuem vias enzimáticas de elongação e Outros tipos de carboidratos como os oligossacarídios e os es‑ dessaturação imaturas e por isso não conseguem formar em pessantes (amido e goma) podem ser adicionados às FI tam‑ quantidades adequadas DHA e ARA (Figura 3). bém com objetivos distintos do fornecimento de energia. Os ácidos graxos de cadeia média (triglicérides de cadeia Os oligossacarídios são carboidratos que não são digeridos média – TCM) são adicionados às FI em situações relaciona‑ e chegam intactos ao cólon onde exercem efeito prebiótico, das à má absorção, pois são rapidamente absorvidos. As FI ex‑ isto é, são fermentados por bifidobactérias. O leite materno tensamente hidrolisadas geralmente contêm 40 a 50% da possui mais de 100 tipos diferentes de oligossacarídios cuja oferta de gordura à custa de TCM visando ao seu uso em situa‑ estrutura química e ações não são completamente conhecidas. ções em que o trato gastrointestinal está comprometido. As FI possuem, em sua maioria, uma mistura de dois tipos simples de oligossacarídios (galacto-oligossacarídio e fruto‑ Minerais e eletrólitos -oligossacarídio) e os efeitos a eles relacionados são de aumen‑ São adicionados na forma de sais de cálcio, fósforo, magnésio, to na frequência, modificação na consistência das evacuações sódio e potássio, tendo como base a quantidade presente no e promoção de efeito bifidogênico.7 leite materno. Fórmulas para prematuros possuem maior Os espessantes, como o amido pré-gelatinizado e a goma, quantidade desses eletrólitos, especialmente cálcio e fósforo, são carboidratos cuja função é espessar as FI. Não há reco‑ tendo em vista a maior demanda desses recém-nascidos. Dissacarídios
Lactose
Sacarose
Maltose
Família n-6
Enzimas
Família n-3
Ácido α-linolênico (C18:3, n-3)*
Ácido linoleico (C18:2, n-6)* Δ6 Dessaturase
Ácido octadecatetraenoico (C18:4, n-3)
Ácido γ linolênico (C18:3, n-6) Elongase Ácido di-homo γ linolênico (C20:3, n-6)
Ácido eicosatetraenoico (C20:3, n-3) Δ6 Dessaturase
Ácido araquidônico (C20:4, n-6)
Ácido eicosapentaenoico (C20:5, n-3) Elongase Ácido docosapentaenoico (C22:5, n-3) Dessaturação Ácido docosaexaenoico (C22:6, n-3)
Figura 3 Metabolismo dos ácidos graxos essenciais.
* Ácidos graxos essenciais.
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1424 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
Ácido graxo poli-insaturado de cadeia longa
7
9
10
8
5 6 3
4
1 H3C
Ácido linoleico (C18:2, n-6 all cis)
2
Ácido graxo saturado de cadeia média
COOH
COOH
H3C Ácido caprílico (C8:0)
Digestão e absorção
Metabolismo
Ácidos graxos de cadeia longa (com mais de 8 carbonos)
Precisa ser emulsificado com sais biliares no íleo terminal para ser absorvido na forma de micelas
Entra na mitocôndria para sofrer β-oxidação somente por processo com gasto energético (ATP) e ligado a uma molécula de carnitina
Ácidos graxos de cadeia média (com menos de 8 carbonos)
Não precisa ser emulsificado e pode ser absorvido diretamente pelo enterócito
Entra na mitocôndria sem gasto de ATP e não precisa de carnitina
Figura 4 Características gerais dos ácidos graxos.
Vitaminas e oligoelementos São adicionadas nas FI vitaminas lipossolúveis (A, D, E K), hi‑ drossolúveis (tiamina, riboflavina, niacina, B6, B12, ácido pantotênico, ácido fólico, vitamina C e biotina) e oligoelemen‑ tos (ferro, selênio, manganês, zinco, molibdênio, flúor, iodo e cobre). A quantidade de oligoelementos acrescida às FI é superior a presente no leite materno, por causa da menor biodisponibi‑ lidade desses micronutrientes, pois eles estão presentes no leite materno na forma de sais ligados a aminoácidos. Outros componentes/substâncias Ainda podem estar presentes nas FI a colina (amina natural encontrada nos lipídios presentes na membrana celular e no neurotransmissor acetilcolina); o inositol (poliálcool cíclico que atua como cofator em diversas reações bioquímicas que contam com a participação das vitaminas do complexo B), os nucleotídeos (compostos com um ácido fosfórico, uma ribose ou desoxirribose e uma base azotada que têm papel relevante na renovação celular no trato gastrointestinal e linfócitos) e probióticos (bactérias que resistem a acidez gástrica e chegam viáveis em número suficiente no trato gastrointestinal).
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Considerações finais Avanços na composição das FI nos últimos anos aumentou a segurança do seu uso em lactentes saudáveis não amamenta‑ dos e com necessidades nutricionais específicas. A referência para composição das FI é o leite materno, que apresenta indis‑ cutível superioridade como um alimento vivo, dinâmico e com grande variabilidade na sua composição. Todas as fórmulas infantis disponíveis no mercado brasileiro são seguras, pois atendem o proposto nas resoluções da Anvisa. Estudos dispo‑ níveis avaliam o impacto das FI no crescimento em curto pra‑ zo. São escassas as publicações descrevendo benefícios em longo prazo. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer o conceito e a legislação que regulamenta as fórmulas infantis no Brasil. • Reconhecer a superioridade do leite materno em relação às fórmulas infantis. • Identificar os principais componentes/nutrientes de uma fórmula infantil. • Reconhecer as diferentes categorias e a composição das fórmulas infantis.
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CARACTERÍSTICAS E INDICAÇÕES DAS FÓRMULAS INFANTIS •
•
Relacionar a composição das fórmulas infantis com as indicações clínicas mais comuns.
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CAPÍTULO 4
MICRONUTRIENTES Ângela Peixoto de Mattos Hélcio de Sousa Maranhão
Introdução Micronutrientes são substâncias necessárias à manutenção do bom funcionamento do organismo e, embora requeridos em pequenas quantidades, são elementos essenciais e devem ser consumidos diariamente por meio da alimentação varia‑ da e equilibrada. As vitaminas e os minerais são os principais representantes desse grupo de nutrientes, e o pediatra deve sempre estar atento para os sintomas e doenças que o seu dé‑ ficit provoca, assim como para os quadros de intoxicação pro‑ duzidos pelo consumo excessivo. Esses produtos estão rela‑ cionados a várias atividades metabólicas do corpo humano, participando em reações como antioxidantes (vitaminas C e E), pré-hormônios (vitamina D), indutores da síntese proteica (vitaminas A e D), coenzimas (vitaminas B1, B2, B3, B5, B7, B9, B12 e K) e ainda em funções não muito bem reconhecidas. São muitos os fatores influentes sobre as necessidades die‑ téticas específicas de cada micronutriente que podem deter‑ minar vários estados de carência: a biodisponibilidade, a capa‑ cidade de armazenamento, as fases (infância, adolescência, gravidez), os hábitos e os estilos de vida do indivíduo, a ocor‑ rência de doenças como os erros inatos do metabolismo e as síndromes de má absorção e a interação com medicamentos. Sob a ótica do panorama atual da fome oculta no mundo, são 5 os principais micronutrientes cuja falta causa grande im‑ pacto na saúde das crianças: iodo, vitamina A, ferro, ácido fóli‑ co e zinco. Outros minerais e vitaminas ganham importância em situações específicas, como cálcio, magnésio, fósforo, co‑ bre, selênio, vitaminas B, D e C. Neste capítulo, o foco está nos microelementos não abor‑ dados em sessões específicas ou cujo déficit ainda é importan‑ te em parte da população mundial ou que tenha se observado relevância atual, em razão dos melhores conhecimentos sobre suas funções. Os capítulos complementares que podem estar relacionados à temática apresentada são: • seção 11 – Endocrinologia; Capítulo 10 – Distúrbios do Meta‑ bolismo do Cálcio, do Fósforo e do Magnésio (cálcio, fósforo, magnésio, vitamina D);
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• seção 17 – Neonatologia; Capítulo 12 – Doença Hemorrágica do Recém-nascido (vitamina K); • seção 24 – Terapia intensiva; Capítulo 12 – Distúrbios meta‑ bólicos do sódio, do potássio e do equilíbrio acidobásico; • seção 19 – Nutrologia; Capítulo 2 – Alimentação do Lactente ao Adolescente (ferro, flúor, vitamina A, vitamina D). Dessa forma, as vitaminas e minerais abordados nesta seção serão: vitaminas A, D, C e do complexo B, cálcio, selênio, co‑ bre e zinco. Vitaminas As vitaminas são consideradas micronutrientes de origem or‑ gânica e adquiridas a partir das fontes alimentares, exceto a vi‑ tamina D, que pode ser sintetizada via exposição solar ade‑ quada. De acordo com a solubilidade, as vitaminas são denominadas lipossolúveis (E, D, K, A) ou hidrossolúveis (complexo B e C). Vitamina A A Organização Mundial da Saúde1 (OMS) estima que a deficiên‑ cia de vitamina A seja responsável, anualmente, por 250 mil a 500 mil crianças cegas, com cerca de 14 milhões de pré-escola‑ res com dano ocular entre 1995 e 2005. No Brasil, consideram‑ -se áreas de deficiência de vitamina A: o Vale do Jequitinhonha, o semiárido nordestino e o Vale do Ribeira. Para a OMS, o Brasil apresenta moderada prevalência de deficiência de vitamina A em pré-escolares, ou seja, entre 10 e 20%. Dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher, em 2006, demonstraram prevalência de deficiência de vitamina A de 17,4% em crianças de 6 a 59 meses, com menor percentual na região Sul (9,9%) e maior no Nordeste (19%) e Sudeste (21,6%). A vitamina A desempenha importante função em vários processos metabólicos do organismo humano. Além de sua re‑ levante participação para a visão, a vitamina A é necessária para hematopoese, desenvolvimento embrionário, diferencia‑ ção celular, integridade epitelial, sistema imune, transcrição
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MICRONUTRIENTES •
genética e função reprodutiva. Escassez ou excesso de vitami‑ na A repercutem de forma negativa no organismo. A deficiên‑ cia da vitamina A é a principal causa de cegueira adquirida em crianças, além de estar relacionada à maior vulnerabilidade para doenças infecciosas, como diarreia, infecções respirató‑ rias e sarampo, determinando grande impacto na morbimor‑ talidade em menores de 5 anos.2 No período perinatal, a deficiência está associada a prema‑ turidade, retardo do crescimento intrauterino e infecções neo‑ natais. Estudos em animais têm demonstrado que o ácido re‑ tinoico está relacionado a fisiologia e plasticidade neuronal do cérebro (neurogênese, diferenciação celular, conectividade de sinapses, potencial eletrofisiológico), plasticidade do compor‑ tamento e memória. O excesso está relacionado a alterações ósseas, alopecia, hepatomegalia, aumento da pressão liquóri‑ ca e efeito teratogênico em fetos. Além da predisposição para infecções, a deficiência de vita‑ mina A também compromete a resposta imunológica do orga‑ nismo à vacinação, oral ou nasal, com importante diminuição de anticorpos IgA e IgG e significativo impacto na efetividade da vacinação em locais com alta prevalência da deficiência. Outra importante função está relacionada ao metabolismo do ferro, por meio da regulação dos níveis de mRNA da hepcidina e da ferritina. A associação do betacaroteno ou retinil acetato contribui para tornar os sais de ferro mais solúveis, aumentan‑ do sua captação pelas células intestinais. A vitamina A é um composto da subclasse dos retinoides, en‑ contrado na alimentação em duas formas: os retinois (origem animal) e os carotenoides (origem vegetal). O retinol é encontra‑ do em alimentos de origem animal, depositado nos tecidos como éster de retinol e em maior concentração no fígado. Convertido em retinal (retinaldeído), é essencial para a visão, formando mo‑ léculas absorvedoras de luz, importantes para situações de baixa luminosidade (estimulação dos bastonetes) e definição de cores (estimulação dos cones). Convertido em ácido retinoico, é fator semelhante ao hormônio do crescimento, com importante fun‑ ção no crescimento e diferenciação das células epiteliais. Os carotenoides são pigmentos encontrados nas plantas. Na forma de carotenos, são responsáveis pela coloração ama‑ relo-alaranjada de frutas e vegetais. O betacaroteno é o pig‑ mento vermelho-alaranjado cuja concentração determina a maior ou menor coloração alaranjada das frutas e verduras. Sua absorção ocorre no duodeno e depende da presença de li‑ pídios, sendo considerado o mais eficiente carotenoide a ser convertido em vitamina A. O retinol é absorvido no intestino delgado, incorporado ao fí‑ gado na forma de éster de retinol e, quando necessário, é trans‑ portado pela proteína ligadora do retinol ao tecido. Ao entrar na célula-alvo, é transformado em éster de retinil, retinal e ácido retinoico. O ácido retinoico é a forma ativa da vitamina A, que se liga aos receptores nucleares e facilita a transcrição genética. São fontes vegetais de vitamina A: cenoura, brócolis, ba‑ tata-doce, espinafre, abóbora, melão persa, couve, azeite de dendê, manga, goiaba, mamão, entre outros vegetais de co‑ loração amarelo-alaranjada ou folhas verde-escuras. Dos ali‑ mentos de origem animal, o fígado apresenta o maior con‑
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teúdo de retinol, mas também são fontes importantes peixes, ostras, óleo de fígado de peixe, gema de ovos, manteiga e margarinas, além do leite materno, que depende do estado corporal de vitamina A materno. A OMS define deficiência de vitamina A como “concentração tissular baixa o suficiente para apresentar consequências adver‑ sas à saúde, mesmo sem evidência clínica de xeroftalmia”. A principal causa da deficiência de vitamina A é a baixa ingestão de vitamina A ou de gorduras. Pode ser secundária a doenças como má absorção, parasitoses, doença inflamatória intestinal, hepatopatias, pancreatopatias e infecções. Está relacionada à desnutrição energético-proteica, deficiência de zinco e vitami‑ na E, com maior risco na infância, gestação e lactação. Clinicamente, a deficiência de vitamina A manifesta-se pe‑ las alterações da visão, anemia, predisposição a infecções, ina‑ petência e alteração do paladar por queratinização das papilas gustativas, alteração do crescimento, deformidades ósseas, xerodermia, queratinização de mucosas dos tratos respirató‑ rio, digestório e geniturinário e hiperqueratose folicular. Os si‑ nais cutâneos não são específicos da deficiência (hiperquera‑ tose folicular ou frinoderma, xerose cutânea ou xerodermia). A cegueira noturna é a manifestação mais precoce. Na cór‑ nea e na conjuntiva, as alterações são predominantemente so‑ máticas, ao passo que, na retina, são funcionais. Chama-se xe‑ roftalmia (“olho seco”) a série de eventos clínicos sucessivos que ocorre nos olhos, resultando em cegueira noturna ou nic‑ talopia, xerose conjuntival, mancha de Bitot (depósito de ma‑ terial espumoso, resultante do acúmulo de células epiteliais descamadas, fosfolípides e bacilos saprófitas), xerose cornea‑ na (fase ainda reversível); em seguida, pode ocorrer úlcera de córnea sem perfuração, tendo como sequela a cicatriz (leuco‑ ma) e queratomalacia, que é o estágio mais avançado da ca‑ rência, quando ocorre necrose com amolecimento da córnea, perfuração e extrusão do cristalino e perda do olho. A cicatriz corneana compreende nébula, mácula e leucoma, que são se‑ quelas resultantes da ulceração corneana de menor extensão. O diagnóstico da deficiência de vitamina A é suspeito pela existência de fatores predisponentes e sinais clínicos da defi‑ ciência. Exames complementares podem ser úteis, como a ci‑ tologia da impressão conjuntival (prova do CICO), a avaliação funcional do comprometimento da visão (prova de adaptação rápida ao escuro e tempo de restauração da visão), a dosagem da concentração de retinol, da proteína carreadora do retinol e da relação proteína carreadora do retinol e transtirretina. A avaliação do estado corpóreo de vitamina A deve ser feito pela dosagem do retinol sérico. Níveis entre 10 e 20 mcg/dL corres‑ pondem à deficiência leve a moderada, e inferiores a 10 mcg/ dL, à deficiência grave.3 O excesso de vitamina A também é prejudicial ao organis‑ mo. São sinais e sintomas da hipervitaminose A: náusea, vô‑ mitos, anorexia, cefaleia, borramento da visão, perda de cabe‑ lo, fraqueza muscular, anemia, emagrecimento, alterações ósseas e aumento da pressão intracraniana. As alterações ós‑ seas observadas na hipervitaminose A, como osteoporose e fraturas, são decorrentes da competição da vitamina A pelos mesmos receptores da vitamina D.
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1428 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
A Tabela 1 resume as indicações e as dosagens para o trata‑ mento da deficiência de vitamina A. Tabela 1 Tratamento da deficiência de vitamina A Lactentes e crianças DEP grave*
Vitamina A (dose) (UI)
0 a 5 meses
50.000
6 a 11 meses
100.000
Acima de 12 meses
200.000
Xeroftalmia, cegueira noturna e/ ou manchas de Bitot
10.000/dia ou 25.000/semana por pelo menos 3 meses
Lesões de córnea ativas (raras)
200.000 nos dias 1, 2 e 14
* DEP: desnutrição energético-proteica grave: dose em dia 1, de acordo com a idade, e repetir no segundo dia e 14 dias depois, quando há sinais clínicos de deficiência.3
A prevenção da deficiência da vitamina A é feita por meio de alimentação variada, qualitativa e quantitativamente ade‑ quada, e incentivo ao aleitamento materno. O “Vitamina A Mais” – Programa Nacional de Suplementa‑ ção de Vitamina A, do Ministério da Saúde, tem por objetivo reduzir e controlar a deficiência de vitamina A em crianças de 6 a 59 meses e mulheres no pós-parto residentes em regiões consideradas de risco (região Nordeste, o Estado de Minas Ge‑ rais – região norte, Vale do Jequitinhonha e Vale do Mucuri – e o Vale do Ribeira, em São Paulo). Nessas regiões de risco, de‑ ve-se fazer a suplementação da vitamina A em megadoses a cada 6 meses, de 100.000 UI para lactentes entre 6 e 11 meses, e de 200.000 UI para crianças entre 12 e 59 meses de idade. As puérperas devem receber 200.000 UI, em dose única, no pós‑ -parto imediato. Essa mesma recomendação é feita pela OMS para as áreas de risco no mundo, ampliando-a para crianças infectadas pelo HIV.3 Não se recomenda a suplementação de vitamina A como uma medida de saúde pública no período neonatal e até os 6 meses incompletos.1,3 Outras formas de prevenção da deficiência de vitamina A são a fortificação de alimentos, como leite e cereais, a manipu‑ lação genética e o uso de sachês de micronutrientes. Por causa da alta prevalência de deficiência global de micronutrientes, a OMS tem sugerido como uma das soluções a fortificação do‑ miciliar dos alimentos por meio do uso de sachês de micronu‑ trientes, contendo, por exemplo, ferro, zinco, vitamina D e A.1 Vitamina D A vitamina D apresenta duas formas biologicamente ativas ca‑ pazes de prevenir e tratar o raquitismo: a vitamina D2 ou ergo‑ calciferol e a vitamina D3 ou colecalciferol. A vitamina D2 tem origem vegetal e é ingerida por seres humanos principalmente nos alimentos fortificados. A vitamina D3 é derivada de seu precursor presente na pele, o 7-de-hidrocolesterol, responsá‑ vel por 90% da vitamina D do organismo, quando em condi‑ ções adequadas de exposição solar aos raios ultravioletas, em‑ bora também possa ser proveniente da dieta por meio de alimentos enriquecidos com vitamina D3 ou outras fontes, como o óleo de fígado de bacalhau, atum, cação, sardinha, gema de ovo, manteiga e pescados gordos (arenque).4
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Após sua formação na pele, a vitamina D sofre nova hidro‑ xilação, sendo transformada em 25-OH-D (calcidiol) no fíga‑ do e, depois, em 1,25-OHD3 (calcitriol) no rim. A enzima responsável por essa última conversão (25-OHD-1-alfa-hi‑ droxilase) tem sua transcrição ativada pelo paratormônio (PTH), que é secretado pela paratireoide em resposta à dimi‑ nuição dos níveis séricos de cálcio, e também de níveis séri‑ cos muito baixos de fosfato. O calcitriol estimula a absorção intestinal de cálcio e fosfatos e, em conjunto com o PTH, es‑ timula a produção e a secreção da citocina conhecida como RANKL (ativador do receptor do fator nuclear kappa-B), que exerce papel fundamental na osteoclastogênese e na ativa‑ ção dos osteoclastos gigantes que induzem a reabsorção ós‑ sea. O PTH e o calcitriol também são responsáveis pela indu‑ ção da reabsorção de cálcio nos túbulos distais do rim. Além de influir no metabolismo de cálcio, o calcitriol é considera‑ do regulador transcripcional de vários genes, sendo sua ação dependente da ligação com o receptor nuclear da vitamina D. A descoberta desses receptores da vitamina D (RVD) em vá‑ rias células não relacionadas à homeostase de cálcio e fósfo‑ ro desencadeou a descoberta de várias outras ações dessa vi‑ tamina, além de sua relação no metabolismo desses micronutrientes e na saúde óssea.4,5 A determinação dos valores séricos da 25-(OH)D é o melhor indicador para definir deficiência, insuficiência, suficiência e toxicidade. Na medida em que ocorre sua diminuição sérica, há o aumento paralelo do PTH. Não há consenso sobre quais seriam níveis adequados de vitamina D total em adultos e suas concentrações normais considerando a latitude geográfi‑ ca ou grupos étnicos, porém, os resultados de vitamina D total são interpretados como:4 • < 10 ng/mL – deficiência; • de 10 a 29 ng/mL – insuficiência; • de 30 a 100 ng/mL – adequado; • > 100 ng/mL – intoxicação. O raquitismo é a apresentação clássica da deficiência da vita‑ mina D em lactentes e crianças maiores. As alterações clínicas e radiológicas podem demorar vários meses para aparecer, de‑ pendendo da velocidade de crescimento da criança, do grau da deficiência da vitamina D e do conteúdo de cálcio da dieta.5 A deficiência de vitamina D provoca um balanço negativo do cálcio (Ca) e fósforo (P). O raquitismo seria provocado pela falta desses dois íons, alterando a mineralização da matriz ós‑ sea e cartilaginosa. Nos adultos, a desmineralização dos ossos é conhecida como osteomalacia. A deficiência de vitamina D diminui a absorção intestinal de Ca da dieta de 30 para 10 a 15%. O cálcio ionizado começa a baixar, com consequente au‑ mento da liberação de PTH (hiperparatireoidismo secundá‑ rio), que tenta compensar o nível sérico de cálcio aumentando a mobilização óssea e a absorção tubular renal. O aumento do PTH também diminui a reabsorção tubular proximal de fosfa‑ tos, resultando em hiperfosfatúria e hiperaminoacidúria. A re‑ lação Ca/P torna-se inadequada para a mineralização óssea. Como o PTH também aumenta a produção renal de 1,25(OH)2 vitamina D, sua concentração está normal ou até elevada. Por
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MICRONUTRIENTES •
isso, o diagnóstico da deficiência de vitamina D é feito pela aferição do nível sérico da 25(OH)D.5 As principais causas da deficiência de vitamina D são: • ingestão usual abaixo dos níveis recomendados (raquitismo nutricional ou carencial, mais comum em menores de 2 anos, sobretudo em menores de 1 ano, ou osteopenia ou osteoporo‑ se em crianças maiores); • exposição solar limitada; • deficiência da conversão renal da vitamina D para sua forma ativa ou por má absorção; • induzida por medicamentos: fenobarbital, hidantoína, carba‑ mazepina, valproato, rifampicina, isoniazida e corticosteroides.4 Fatores de riscos para alterações na mineralização óssea in‑ cluem: baixo peso, dietas deficientes em vitamina D, hábitos de vida inadequados, alergia à proteína do leite de vaca, into‑ lerância à lactose, doença celíaca, fibrose cística, hepatopatias, doença inflamatória intestinal, uso de corticosteroides e vege‑ tarianismo puro. Crianças prematuras e de baixo peso ao nas‑ cer são também de risco para o desenvolvimento do raquitis‑ mo carencial e risco de osteoporose na idade adulta. Além do baixo peso, a obesidade também está associada à deficiência, pois a vitamina D é armazenada eficientemente no tecido adi‑ poso e torna-se não biodisponível.4,5 A anamnese e o exame clínico são importantes na identifi‑ cação da etiologia de deficiência de vitamina D e pode detectar uma deficiência subclínica ou já instalada. As alterações clínicas observadas no raquitismo são descri‑ tas a seguir.4
1429
va-se aparente aumento do espaço articular no sentido longi‑ tudinal (entre a extremidade calcificada da diáfise e o núcleo secundário). Pode haver duplo contorno perióstico na diáfise, resultante do osteoide não calcificado e do alargamento da extremidade dos ossos longos, com fraturas em galho verde e osteoporose. A radiografia de tórax evidencia alargamento das junções costocondrais, ou rosário costal raquítico. Com a evolução do processo, há desmineralização de todas as estru‑ turas ósseas, aparecendo outras alterações que constituirão o chamado “pulmão raquítico”. Nos exames laboratoriais, há diminuição dos valores de fósforo sérico, com concentrações normais de cálcio (exceto nos casos mais graves, em que seus valores podem estar redu‑ zidos) e aumento do PTH e da fosfatase alcalina (Tabela 2). Tabela 2 Estágios da deficiência da vitamina D4,5 Cálcio sérico
Fósforo sérico
Fosfatase alcalina
PTH
Sinais radiológicos
Leve
⇓
N
N
⇑
-
Moderada
N ou ⇓
⇓
⇑
⇑⇑
+
Grave
⇓⇓
⇓⇓
⇑⇑
⇑⇑
++
Estudos mais atuais demonstram que a deficiência de vita‑ mina D pode comprometer o desenvolvimento do sistema nervoso central (SNC) e dos rins e, em virtude das ações na ex‑ pressão genética e na proliferação celular, pode estar associa‑ do a maiores riscos de doenças cardiovasculares, câncer, dia‑ bete, doença metabólica, doença inflamatória intestinal e artrite reumatoide. O tratamento medicamentoso da insuficiência de vitami‑ Sinais gerais na D não é atualmente recomendado. Para o tratamento da Déficit de crescimento ponderoestatural, atraso no desenvol‑ deficiência, além da necessidade de ingestão adequada de vimento neuropsicomotor, palidez, irritabilidade, sudorese, cálcio, deve ser recomendada a ingestão de vitamina D con‑ hipotonia muscular, distensão abdominal, hérnias, aumento forme segue:4,6 do baço e dos gânglios linfáticos (principalmente cervicais), • menores de 1 mês de vida: 1.000 UI/dia; estridor laríngeo e laringoespasmo. • de 1 a 12 meses: 1.000 a 5.000 UI/dia; • maiores de 12 meses: 5.000 UI/dia. Sinais ósseos As alterações ósseas são simétricas e indolores e acometem a A duração deve ser de 2 a 3 meses, seguida de manutenção de cartilagem de crescimento no segmento cefálico: craniotabes, 400 a 1.000 UI/dia por 4 a 6 meses. Depois do primeiro mês aumento do crânio, cabeça “quadrada”, atraso no fechamento de tratamento, é recomendável a dosagem de cálcio, fósforo e das fontanelas, atraso e irregularidades na erupção dentária. magnésio. Após 3 meses, dosam-se cálcio, fósforo, magnésio, No segmento torácico: rosário raquítico, cintura diafragmática fosfatase alcalina, 25-OH-D, paratormônio, cálcio urinário/ (sulco de Harrinson), tórax em peito de pombo ou quilha de creatinina e radiografia dos membros (se houver alteração ao navio. Na coluna: escoliose, lordose e cifose dorsolombar. Nas diagnóstico). extremidades: alargamento epifisário (principalmente punho O tratamento do raquitismo necessita de dosagens maiores e tornozelo), encurvamento da diáfise (joelho varo e joelho e tempo mais prolongado, conforme mostra a Tabela 3. valgo), fraturas (geralmente em galho verde), pé chato. Na cin‑ tura pélvica: pelve estreita, desproporção da relação segmento superior/segmento inferior. Tabela 3 Dosagens para tratamento do raquitismo Estudos radiológicos Extremidade irregular, assumindo o aspecto chamado “em pente”, desmineralização da diáfise e do núcleo epifisário se‑ cundário, que se torna pouco nítido, apagado, e ausência da linha de calcificação provisória na região metafisária. Obser‑
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Faixa etária
Tratamento
Duração
Manutenção
1 a 6 meses 6 a 12 meses
3.000 UI/dia
8 a 12 semanas
400 UI/dia
6.000UI/dia
8 a 12 semanas
400 UI/dia
12 a 18 meses
10.000 UI/dia
8 a 12 semanas
600 UI/dia
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Para a prevenção da deficiência, o Departamento Científico de Nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) reco‑ menda a suplementação profilática de 400 UI/dia a partir da 1ª semana de vida até os 12 meses, e de 600 UI/dia dos 12 aos 24 meses, inclusive para crianças em aleitamento materno exclu‑ sivo. Os recém-nascidos prematuros devem receber suple‑ mentação oral (400 UI/dia) quando o peso for superior a 1.500 g e houver plena tolerância à nutrição enteral.6 Em relação à exposição solar, o mesmo Departamento pre‑ coniza 30 minutos de exposição semanal (ou 6 a 8 minutos/ dia, 3 vezes/semana) para lactentes apenas com fraldas, no 1º ano de vida, ou de 2 horas semanais (17 minutos/dia) em lac‑ tentes em uso de vestimentas com exposição apenas de face e mãos. Salienta-se que a síntese de vitamina D é menor quando a exposição é feita antes das 10 e após as 15 horas. No entanto, a exposição ao sol nesse intervalo pode ser associada ao aumen‑ to no risco de câncer de pele. Em virtude disso, a suplementa‑ ção de vitamina D é altamente recomendável. Crianças e ado‑ lescentes devem ser estimulados à prática de atividades ao ar livre e ao consumo regular de alimentos fontes de vitamina D.6 Vitamina C A vitamina C ou ácido ascórbico é uma substância hidrossolú‑ vel com propriedades redutoras que, ao se oxidar no radical ascorbil, tem capacidade de doar elétrons. O ascorbato, forma‑ do pela dismutação de duas moléculas do radical ascorbil, tem ações enzimáticas e não enzimáticas, contribuindo na absor‑ ção de ferro não heme, na síntese de colágeno, na biossíntese de carnitina e epinefrina, no metabolismo da tirosina e dos hormônios peptídios (TSH, LH e FSH) e na função vascular, pela síntese de óxido nítrico. É estável em solução ácida e so‑ fre prejuízo da estabilidade com exposição à luz solar, ar, aque‑ cimento e alcalinização.3,7 As necessidades diárias de vitamina C variam de 40 a 50 mg para lactentes, 60 a 90 mg para adultos e 120 mg para nu‑ trizes. As melhores fontes de vitamina C são as frutas e os ve‑ getais, como as frutas cítricas, kiwi, manga, brócolis, tomate e pimentas.3 Apesar de a principal causa da deficiência de vitamina C ser a ingestão inadequada, alguns fatores podem ser considera‑ dos de risco: tabagismo, gestação, baixo nível socioeconômico, desnutrição, alterações comportamentais ou disfagia, prática extenuante de atividade física, infância ou senescência, hiper‑ tensão, diabete e obesidade.3 A carência da vitamina C deter‑ mina quadro clínico do escorbuto, doença considerada rara ou raramente diagnosticada. Em geral, ocorre associada a desnu‑ trição energético-proteica, uso de dietas exóticas e em pessoas em condições de cuidados precários. Os achados clínicos observados no escorbuto são mais frequentemente encontrados em crianças entre os 6 meses e os 2 anos de idade. São relacionados ao defeito da forma‑ ção da substância intercelular (colágeno) e constam de he‑ morragias cutâneas, petéquias, púrpuras, equimoses e he‑ matomas gengivais, se houver erupção dentária. Há também dor à manipulação dos membros, principalmente os inferiores, em consequência das hemorragias subperios‑
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teais, além de incapacidades motoras e posições de defesa (antálgicas) que podem simular pseudoparalisias. Nos lo‑ cais com hemorragias subperiosteais volumosas, nas extre‑ midades dos ossos longos, percebem-se tumefações cutâ‑ neas muito dolorosas. A criança evita se movimentar, com receio à aproximação de pessoas. Ainda pode estar presente o rosário costal.3,4,7 O diagnóstico é suspeitado pela verificação da história ali‑ mentar carente e a ausência de sua suplementação prévia. As dosagens de vitamina C na urina e no sangue refletem princi‑ palmente a ingestão recente da vitamina e devem ser avalia‑ das com cautela. Valores inferiores a 0,2 mg/dL devem ser considerados deficientes, ao passo que os valores indicativos de bom estado nutricional são de 0,6 mg/dL ou maiores.3,4 O melhor diagnóstico é feito pelo estudo radiológico dos os‑ sos longos e do tórax. Os achados radiológicos observados de‑ vem-se à alteração de formação do colágeno, que se torna es‑ casso e imperfeito, propiciando as alterações ósseas descritas a seguir: osteopenia (insuficiência da matriz óssea); cortical afilada; linha densa ou branca, que é a linha de classificação provisória, com deposição exagerada e anômala de cálcio; si‑ nal do anel de Wimberger; zona hipodensa ou escorbútica (fai‑ xa de maior transparência entre a linha densa e a diáfise); des‑ lizamentos epifisários e hemorragias subperiosteais nas extremidades dos ossos longos que se evidenciam após o iní‑ cio do tratamento pela formação de nova camada óssea a par‑ tir do periósteo elevado pelo hematoma. Assim, adquirem for‑ ma de imagens estreitas, triangulares e até o clássico aspecto em halteres ou clava. A radiografia de tórax pode evidenciar a presença do rosário costal radiológico nas junções costocon‑ drais. É importante salientar que o rosário costal clínico do desnutrido não tem correspondência radiológica com aquele observado no escorbuto e no raquitismo. O diagnóstico diferencial do escorbuto deve ser feito com doenças neurológicas com paralisias flácidas, raquitismo, sín‑ drome da criança espancada, osteomielites e doenças hema‑ tológicas. O tratamento é feito com a administração de ácido ascórbi‑ co medicamentoso, 300 a 500 mg de vitamina C, fracionada em 2 a 3 doses/dia, administrada preferentemente por via oral, ou, dependendo da gravidade, por via parenteral, até a cura radiológica, em geral após 3 a 4 semanas. Em seguida, passa-se a utilizar profilaxia medicamentosa e/ou alimentos com maiores teores da vitamina C.3,4 Vitaminas do complexo B São 8 as principais vitaminas que compõem o complexo vita‑ mínico B: B1 (tiamina), B2 (riboflavina), B3 (niacina), B5 (áci‑ do pantotênico), B6 (piridoxina), B7 (biotina ou vitamina H), B9 (folacina ou ácido fólico) e B12 (cianocobalamina). A hidrossolubilidade e as fontes alimentares semelhantes são características comuns a todas elas. Os déficits de vitami‑ nas específicas desse grupo dificilmente ocorrem de forma iso‑ lada, estando habitualmente associados à desnutrição energé‑ tico-proteica e ao uso prolongado de dietas com muita restrição de produtos de origem animal.3,4
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Vitamina B1 – tiamina Trata-se de vitamina termossensível de absorção jejunal e não armazenada nos tecidos. Atua nas células na forma de pirofos‑ fato de tiamina, como coenzima da carboxilase em diversos sistemas enzimáticos. A vitamina B1 participa na descarboxi‑ lação oxidativa do ácido pirúvico para a formação de acetil‑ -CoA e do alfacetoglutarato para a formação de succinil-CoA e na síntese de ribose. Sua deficiência compromete o metabolis‑ mo oxidativo associado à diminuição da síntese de ATP no cé‑ rebro até chegar a fenômenos neurodegenerativos.8 As necessidades diárias de vitamina B1 variam de 0,2 a 0,6 mg em lactentes e crianças e de 0,9 a 1,4 mg em adolescentes e adultos. As principais fontes alimentares de tiamina são as carnes, vísceras e farinhas integrais, havendo também con‑ centrações elevadas na levedura de cerveja e no germe de trigo. A deficiência isolada de vitamina B1, muito rara nos dias atuais, resulta no quadro clínico denominado beribéri. Anore‑ xia, perda de peso, fadiga fácil e até mesmo insuficiência car‑ díaca são sintomas frequentemente observados. Acredita-se que o bloqueio do fornecimento energético, com acúmulo de piruvato e alfacetoglutarato, e a não formação de compostos essenciais a uma adequada função cardíaca e do sistema ner‑ voso sejam os mecanismos responsáveis pelos sintomas.3,4,8 Os sintomas clínicos precoces são beribéri neurológico ou seco, com hiper-reflexia, neuropatia periférica e/ou polineuri‑ te com ou sem parestesia, fraqueza muscular, dor nas extremi‑ dades, marcha atáxica e convulsões. Fenômenos cardiovascu‑ lares e gastrointestinais (insuficiência cardíaca, edema de membros inferiores, taquicardia ou bradicardia, dispneia, hi‑ pertensão, náuseas, vômitos, constipação) estão associados ao beribéri úmido. A determinação da deficiência de vitamina B1 pode ser feita pela dosagem da atividade da transcetolase eritrocitária, que aumenta nos quadros de deficiência, e pelos níveis séricos bai‑ xos da transcetolase. A dosagem da tiamina no soro tem baixa especificidade e sensibilidade.3,4 O tratamento requer correção da dieta e administração de 5 a 20 mg/dia até o desaparecimento total dos sintomas.4 Vitamina B2 – riboflavina Trata-se de uma vitamina fotossensível e termoestável que é absorvida no jejuno e excretada na urina, com estocagem mui‑ to limitada nos tecidos. A riboflavina integra a estrutura das flavoproteínas carreadoras de hidrogênio e atua no metabolis‑ mo intermediário, principalmente nos processos de oxidorre‑ dução celular. Sua principal função no organismo é participar, como coenzima, do processo de liberação de energia dentro da célula. Há evidências de que déficits muito importantes de ri‑ boflavina podem interferir no metabolismo do ferro e de ou‑ tras vitaminas do complexo B.3,4,9 As necessidades diárias de vitamina B2 variam de 0,3 a 0,6 mg em lactentes e crianças e de 0,9 a 1,6 mg em adolescentes e adultos. As principais fontes alimentares são vísceras, leite e alguns vegetais de folhas verdes, como alface, brócolis, espi‑ nafre e couve, cereais integrais, fígado, clara de ovo, queijos e carnes.
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Os achados clínicos mais frequentes da carência de ribofla‑ vina são: queilose, queilite angular, glossite, palidez de muco‑ sas e manifestações oculares, como sensibilidade à luz, vascu‑ larização de córnea, lacrimejamento e blefarite angular. A determinação da deficiência de vitamina B2 pode ser fei‑ ta pela dosagem da glutationa-redutase no eritrócito, que se encontra reduzida. O tratamento deve ser realizado com a cor‑ reção da dieta e administração de riboflavina, via oral, na dose de 2 a 6 mg/dia até a melhora dos sintomas.3,4 Vitamina B3 – niacina Importante vitamina do complexo B, absorvida no intestino delgado, apresenta limitado grau de armazenamento no fíga‑ do. As necessidades diárias de vitamina B3 variam de 2 a 8 mg em lactentes e crianças e de 12 a 20 mg em adolescentes e adultos.4 As principais fontes alimentares de niacina são: leite, ovos, carnes, vísceras, pescados, farelo de trigo e grãos de cereais in‑ tegrais, vegetais como batatas, amendoim, pimentão, avelã, caju e jabuticaba. A deficiência de niacina provoca um quadro grave, denomi‑ nado pelagra, que se caracteriza classicamente por dermatite, diarreia e demência, em geral associadas a glossite e anemia. Os sintomas neurológicos variam de ansiedade, apatia, fadiga e depressão a quadros mais tardios de cefaleias, tonturas, irri‑ tabilidade e tremores.3,10 Embora menos frequente atualmente do que no século pas‑ sado, a pelagra ainda ocorre em alguns países em desenvolvi‑ mento, em situações de extrema pobreza e alcoolismo crônico. Os marcadores bioquímicos para o status corpóreo da vitami‑ na B3 são pouco confiáveis. A terapia com niacina, até em do‑ ses fisiológicas, é capaz de reverter as manifestações clínicas da pelagra.10 Vitamina B5 – ácido pantotênico Importante vitamina termolábil do complexo B por atuar no ciclo de Krebs como precursor da coenzima A (CoA). Portanto, a vitamina B5 participa de processos de liberação de energia, assim como da síntese de aminoácidos, ácidos graxos, hormô‑ nios esteroides e da síntese de hemoglobina.3,4 O ácido pantotênico encontra-se amplamente distribuído. Assim, a carência isolada dessa vitamina é extremamente rara. São fontes alimentares ricas em vitamina B5: vísceras, peixes, carnes, ovos, fava, brócolis, legumes, cogumelos e amendoim. As necessidades diárias de vitamina B5 variam de 1,7 a 3 mg em lactentes e crianças e de 4 a 10 mg em adoles‑ centes e adultos. As manifestações da deficiência de vitamina B5 são consi‑ deradas inespecíficas: emagrecimento, distúrbios do cresci‑ mento, cefaleia, irritabilidade, insônia, lesões descamativas na mucosa e distúrbios do comportamento.4 Não há consenso quanto à determinação – laboratorial ou por outros exames complementares – da deficiência de vitami‑ na B5, porém, o estado bioquímico do ácido pantotênico é habi‑ tualmente avaliado com a determinação dos níveis de ácido pantotênico urinário, sanguíneo, plasmático ou eritrocitário.3
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Vitamina B6 – piridoxina A piridoxina participa do processo de transaminação de ami‑ noácidos, síntese de neurotransmissores, síntese da hemoglo‑ bina e do metabolismo de outras vitaminas do complexo B, como a niacina e a folacina. As necessidades diárias de vitamina B6 variam de 0,2 a 1,0 mg em lactentes e crianças e de 1 a 2 mg em crianças maiores, ado‑ lescentes e adultos.11 As carnes são as fontes alimentares mais ri‑ cas em piridoxina, seguidas das vísceras, ovos, leite, batata, ba‑ nana e aveia. Os estados de carência podem resultar do uso de antagonistas (isoniazida, cloranfenicol, hidralazina, cafeína).4 A deficiência de vitamina B6 não produz quadro clínico típi‑ co e inclui irritabilidade excessiva, alterações cutâneas (sebor‑ reia), glossite, estomatite, dermatite periocular, anemia micro‑ cítica hipocrômica com ferro sérico aumentado, linfopenia, fraqueza muscular e até quadros convulsivos em lactentes.3 Na avaliação da deficiência de piridoxina, pode ser empre‑ gado o teste de sobrecarga de triptofano, que, estando em ex‑ cesso no organismo, será convertido em quantidades mensu‑ ráveis de ácido xanturênico, quando deveria ser convertido em niacina.4 Vitamina B7 – biotina Também denominada vitamina H, a biotina tem atuação como coenzima na fixação de CO2 em diversos processos me‑ tabólicos importantes, como na síntese de ácidos graxos e de RNA e no metabolismo de proteínas e glicídios. As necessida‑ des diárias de vitamina B7 variam de 5 a 12 mcg em lactentes e crianças e de 20 a 25 mcg em adolescentes e adultos. As principais fontes alimentares de biotina são: leite, gema de ovo, carnes, vísceras, soja, amendoim e cogumelos. A ca‑ rência de biotina não determina sintomas específicos e acon‑ tece com maior frequência quando há eliminação da microbio‑ ta intestinal, pois é significativamente sintetizada no cólon. Os sintomas habitualmente descritos são: adinamia, ano‑ rexia, hiperestesia, dermatites, inclusive perioral, glossite, alopecia, conjuntivite, ataxia, mialgias, diminuição do apren‑ dizado e retardo mental. Para o tratamento da deficiência, uti‑ lizam-se doses de 100 mcg/dia da vitamina.3,4 Minerais Os minerais participam de importantes processos orgânicos e podem chegar a constituir 4% do peso corpóreo. São ampla‑ mente encontrados na natureza, sob diversas e variadas apre‑ sentações. Aqueles com concentrações superiores a 0,01% do peso corpóreo, como cálcio, magnésio e fósforo, são denomina‑ dos macrominerais; por sua vez, aqueles com concentração cor‑ pórea igual ou abaixo desse ponto de corte, como ferro, sódio, cloro, cobre, selênio, potássio, cromo, manganês, zinco, flúor e iodo, são denominados elementos-traço ou oligoelementos.11,12 Cálcio O cálcio é responsável por aproximadamente metade do con‑ teúdo mineral do corpo, e quase a totalidade da sua forma orgâ‑ nica constitui os ossos e os dentes, seus principais reservató‑ rios corpóreos.11 A homeostase do cálcio sistêmico é alcançada
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pela regulação da vitamina D e do PTH nos órgãos-alvo (intes‑ tino, rins e osso). Essa regulação permite a manutenção dos va‑ lores de cálcio em limites estreitos. O cálcio tem inúmeras fun‑ ções fisiológicas essenciais, incluindo coagulação sanguínea, comunicação celular, exocitose, endocitose, contração muscu‑ lar e transmissão neuromuscular.13 O cálcio plasmático, que está em equilíbrio com o cálcio do líquido extracelular (LEC), é regulado para atingir uma con‑ centração entre 7 e 11 mg/dL no recém-nascido e entre 8,8 e 11 mg/dL em lactentes e crianças.11 Quando a concentração do cálcio plasmático diminui, o PTH é liberado, causando au‑ mento do clearance renal de fosfato e da reabsorção tubular de cálcio, ativação da atividade osteoclástica e da reabsorção ós‑ sea e ativação da vitamina D.13 O cálcio tem absorção ativa mais eficiente no duodeno e no jejuno proximal, no qual o pH é mais ácido. No entanto, pelo tempo de trânsito maior, sua maior absorção se dá no íleo. Em indivíduos normais, a absorção no cólon representa apenas 5% do total de cálcio absorvido, contudo, em pacientes com ressecção do intestino delgado, esse sítio de absorção torna-se especialmente importante. Vários fatores interferem na absor‑ ção do cálcio, como o status da vitamina D, o tempo de trânsi‑ to, a permeabilidade da mucosa intestinal e a presença ou não de oxalatos e fitatos na luz intestinal. A estimativa da necessidade nutricional de cálcio em seres humanos não é simples, pois não há testes bioquímicos que indiquem o status nutricional real do cálcio corpóreo. Lacten‑ tes, crianças e adolescentes, pelo acelerado metabolismo as‑ sociado ao crescimento, estão em particular risco para sua de‑ ficiência, e vários estudos com suplementação diária de cálcio como complementação da dieta já foram realizados em crian‑ ças. Esses estudos sugerem que a suplementação pode favore‑ cer o ganho de massa óssea em crianças com consumo dietéti‑ co de cálcio insuficiente.13 Lactentes jovens em aleitamento materno exclusivo ou em uso de fórmulas infantis para lacten‑ tes habitualmente têm ingestão diária de cálcio adequada.13,14 Crianças com dieta inadequada e/ou capacidade de absor‑ ção do cálcio comprometida por tempo prolongado podem apresentar sintomas de raquitismo semelhantes àqueles asso‑ ciados à deficiência de vitamina D. Não está claro, porém, qual é a extensão dessa deficiência nas populações, pois a hipovita‑ minose D e a deficiência nutricional de cálcio podem coexistir. Além disso, no tratamento do raquitismo é frequente a asso‑ ciação da suplementação de vitamina D e cálcio.14 O leite e os derivados são, sabidamente, a principal fonte de cálcio. Vegetais folhosos verde-escuros e algumas frutas também são fontes desse mineral, contudo, pela baixa biodis‑ ponibilidade, não são considerados como substitutos adequa‑ dos dos alimentos lácteos.14 Selênio O selênio é um micronutriente não metálico relativamente raro. Está presente na natureza tanto na forma inorgânica como na forma orgânica. Nos alimentos de origem animal, en‑ contra-se ligado à cisteína, e, nos de origem vegetal, ligado à metionina.
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O conteúdo normal de selênio no organismo humano pode variar dependendo do teor desse elemento no solo de diferen‑ tes regiões. Aproximadamente 30% do selênio estão contidos no fígado, 15% nos rins, 30% nos músculos e 10% no plasma. O selênio é constituinte de, pelo menos, 15 selenoproteínas e, particularmente, de duas classes importantes de enzimas: a glutationa peroxidase (GPX) e a tiredoxina-redutase. Essas enzimas, ao exercerem controle tissular de radicais livres de oxigênio, estão diretamente envolvidas na defesa antioxidan‑ te do organismo.15 A importância do selênio para o ser humano só foi demonstra‑ da em 1959, ao ser observada sua incorporação a uma proteína leucocitária que, apenas em 1973, foi identificada como a enzima PX. Trata-se de uma enzima vital na proteção de membranas ce‑ lulares contra a agressão de peróxidos solúveis.16 A deficiência de selênio pode ocorrer em pacientes renais crônicos que estão em hemodiálise prolongada, naqueles em nutrição parenteral total prolongada e também nos lactentes alimentados com formulações à base de proteína de soja. En‑ tre as doenças relacionadas com a deficiência de selênio estão: câncer, doenças degenerativas, deficiências imunológicas, ar‑ trite reumatoide e doenças cardíacas.15 Manifestações clínicas de deficiência de selênio são inco‑ muns e, embora ainda pobremente definidas, podem incluir fraqueza muscular, mialgia e, em casos graves, insuficiência cardíaca. A deficiência desse micronutriente parece contribuir para o desenvolvimento da insuficiência cardíaca congestiva em crianças com Kwashiorkor.15,16 Na avaliação de possíveis condições de deficiência, podem‑ -se dosar os níveis séricos, que refletem a ingestão dietética re‑ cente, e os níveis do selênio eritrocitário, que refletem uma in‑ gestão de mais longa duração. A atividade plasmática da glutamina peroxidase e a dosagem plasmática de selenopro‑ teína P também podem ser realizadas.15,16 A dosagem da GPX tem sido utilizada como um marcador do estado de selênio em humanos, contudo, no que diz respei‑ to a sua distribuição plasmática, apenas 12 a 15% do selênio estão ligados a essa enzima. Em condições de baixa ingestão de selênio, tanto os níveis plasmáticos quanto a GPX têm boa relação com o baixo consumo, entretanto, em países nos quais a dieta é rica em selênio, como nos Estados Unidos, e como a atividade da GPX costuma ser máxima na maioria das pessoas, essa enzima perde seu valor como índice de deficiência desse elemento.17 As principais fontes de selênio são carnes, cereais, frutos do mar e castanhas, em particular, a castanha-do-pará. Em con‑ traste com a pequena concentração de 0,01 a 1 mcg/g encon‑ trada na maioria dos alimentos, a castanha-do-pará apresenta uma elevada concentração de 16 a 30 mcg/g. Também o leite humano contém grande quantidade de selênio, com concen‑ tração que varia habitualmente entre 15 e 20 mcg/g. A cocção parece ter pouco efeito na biodisponibilidade do selênio.12,15 Cobre O cobre faz parte da estrutura molecular de várias enzimas, sendo parte da hemoglobina, da ceruloplasmina e também de
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outras proteínas que contêm ferro. Suas funções são correla‑ cionadas com as vias metabólicas das quais essas enzimas participam, por exemplo, síntese de hemoglobina, mineraliza‑ ção óssea, síntese do tecido conjuntivo, função imunológica, formação de mielina, metabolismo do ferro, proteção antioxi‑ dante, atividade anti-inflamatória e coagulação sanguínea.11,12 O corpo humano tem cerca de 50 a 120 mg de cobre corpó‑ reo total, e os níveis teciduais variam, sendo o fígado e o cére‑ bro os sítios mais ricos nesse elemento. No sangue, o cobre é distribuído principalmente entre os eritrócitos e o plasma, sendo 60% em forma de superóxido dismutase de cobre e zin‑ co, e os 40% restantes ligados a outras proteínas e aminoáci‑ dos. No plasma, 93% do cobre está ligado à enzima ceruloplas‑ mina. O remanescente está fracamente ligado a albumina e aminoácidos e funciona como um transporte eficaz de cobre através das membranas celulares.17 A absorção do cobre ocorre, por difusão facilitada, na mu‑ cosa do intestino delgado, enquanto sua saída ocorre por transporte ativo na membrana basolateral da célula.15,17 Os níveis corpóreos de cobre parecem estar de acordo com o equilíbrio absorção-excreção e, embora avanços importan‑ tes tenham sido feitos no entendimento da excreção do cobre, o mecanismo que domina a absorção intestinal ainda não está claro.18 A regulação da absorção e da excreção de cobre é feita principalmente pelo conteúdo de cobre da dieta, e não pelo status de cobre do organismo.15 Quando a quantidade de cobre da dieta é pequena, a ab‑ sorção ocorre provavelmente por mecanismo de transporte ativo saturável, ao passo que, em dietas ricas em cobre, a ab‑ sorção é feita por difusão passiva. A absorção é regulada pela necessidade do organismo. Após sua absorção, o cobre é transportado pela albumina para o fígado, no qual se liga à ceruloplasmina. O cobre não armazenado no fígado volta à circulação ligado à ceruloplasmina e é levado para as células de todos os órgãos que têm receptores de ceruloplasmina em sua superfície. A maior parte do cobre endógeno é secretada pela bile e, após se combinar com o cobre não absorvido, é eli‑ minada pelas fezes.18 Outros fatores que interferem na absorção do cobre são: al‑ tas doses de ácido ascórbico e ingestões excessivas de cálcio e fósforo, que agem aumentando a perda fecal desse nutriente. Os fitatos e as fibras têm efeitos variáveis na absorção do cobre e parecem não interferir tanto quanto ocorre com o zinco. In‑ gestão de zinco superior a 150 mg/dia pode reduzir a absorção intestinal de cobre a partir de mecanismos competitivos.17,18 Os casos clássicos de deficiência de cobre foram relatados na década de 1960 em bebês que consumiam leite de vaca di‑ luído. Como existe armazenamento de cobre no fígado, sua de‑ ficiência desenvolve-se lentamente.17,18 A carência de cobre tem sido relatada em crianças desnutridas, em prematuros e em re‑ cém-nascidos pequenos para a idade gestacional alimentados com leite de vaca integral e em pacientes em nutrição parente‑ ral prolongada. A deficiência desse nutriente caracteriza-se por anemia, neutropenia e anormalidades esqueléticas, como os‑ teopenia e fraturas patológicas, além de despigmentação da pele e de cabelos.15
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A avaliação laboratorial do cobre pode ser realizada com dosagens plasmáticas, urinárias, capilares e de enzimas como a ceruloplasmina e a superóxido dismutase.15 Níveis elevados de cobre sérico e ceruloplasmina são en‑ contrados na intoxicação por cobre, na cirrose biliar primária e na colangite esclerosante primária. O cobre sérico baixo é en‑ contrado na doença de Wilson, na desnutrição, na doença de Menkes e no uso de altas doses de complexos vitamínicos contendo zinco.15 A ingestão de cobre varia de acordo com a alimentação, sendo que os alimentos mais ricos contêm de 0,3 a 2 mg de co‑ bre/100 g. O leite e seus derivados são pobres em cobre. Os alimentos com maior teor de cobre são as carnes, o fígado e os peixes.11 Zinco Componente essencial de grande parte das enzimas responsá‑ veis pelo equilíbrio metabólico, o zinco participa de diversos processos enzimáticos e, por promover rápido turnover celular, é essencial ao crescimento, particularmente em tecidos como ossos, pele e cabelo.11 Sua ação biológica no crescimento, no desenvolvimento cognitivo, na reparação tissular e na replica‑ ção celular torna-o um elemento de grande importância para o organismo, particularmente para o sistema imunológico. É o segundo elemento-traço mais abundante no corpo humano.15 Suas funções podem ser divididas em: • estrutural: funciona como determinante da forma e da dispo‑ sição espacial de enzimas e proteínas; • enzimática: aproximadamente 300 enzimas necessitam do zinco para sua ação catalítica, entre elas a DNA polimerase e a sintetase de transferência do RNA; • reguladora: o zinco é captado ativamente pelas vesículas si‑ nápticas, atuando na atividade neuronal e na memória. O zinco é necessário para síntese proteica, replicação de áci‑ dos nucleicos, divisão celular, metabolismo da somatomedina, modulação da prolactina, ação da insulina e hormônios do timo, tireoide, suprarrenal e testículos. É essencial para o fun‑ cionamento de linfócitos e fibroblastos, o que o torna essen‑ cial na defesa imunológica e na cicatrização.15 A deficiência de zinco, tanto hereditária quanto adquirida, está associada a importantes prejuízos dos mecanismos de defesa do corpo, como atrofia do tecido linfoide, diminuição da resposta à hipersensibilidade cutânea retardada, diminui‑ ção do pool de células produtoras de anticorpos e também da ação dos linfócitos T killer.19 A acrodermatite enteropática é um defeito genético raro e caracteriza-se por imunossupressão, atrofia vilositária, diar‑ reia grave e falha de crescimento; apresenta resposta clínica favorável com a suplementação de zinco, sendo o modelo clí‑ nico da deficiência congênita de zinco de origem genética, au‑ tossômica recessiva por distúrbio de absorção do nutriente.11,20 A deficiência adquirida está habitualmente associada a ní‑ veis baixos de zinco ao nascimento, perdas durante episódios de doença diarreica, fases do crescimento com elevada de‑ manda desse micronutriente, práticas inadequadas da ali‑
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mentação complementar e uso de dietas vegetarianas que apresentam baixa biodisponibilidade. No trato digestório, o zinco exerce importante papel, sendo responsável pela manutenção da estrutura e função da muco‑ sa intestinal. É absorvido e excretado pelo intestino, com pe‑ quena quantidade encontrada na urina. Os aspectos clínicos da deficiência podem estar associa‑ dos à desnutrição energético-proteica, às dietas restritivas e às alterações genéticas. Podem ocorrer acometimentos do crescimento somático, alterações do apetite e do paladar, do sistema imune e retardo do desenvolvimento pubertário. A deficiência pode diminuir a síntese das proteínas ligadas ao transporte do retinol plasmático, levando à deficiência peri‑ férica de vitamina A, pela liberação hepática insuficiente. O diagnóstico é suspeitado pela presença das manifesta‑ ções clínicas sugestivas, na constatação de dieta carente. A dosagem sérica de zinco pode ser útil, embora não reflita com segurança o real estado nutricional em relação ao mineral. O ponto de corte para indicar risco de deficiência do zinco no plasma e no soro é de < 70 mcg/dL (< 10,71 mcmol/L).15 A do‑ sagem de zinco no cabelo pode refletir uma deficiência mais prolongada, sofrendo, entretanto, as mesmas limitações ob‑ servadas na dosagem sérica. A dosagem do zinco eritrocitário também não está claramente definida para avaliar o estado nutricional em relação ao zinco, uma vez que a meia-vida do eritrócito é de 120 dias, não reflete alteração recente, e sua concentração altera com doenças.15 Nos casos duvidosos, sem confirmação laboratorial convin‑ cente, a prova terapêutica pode ser realizada utilizando-se o zinco na dosagem de 1 mg/kg/dia e observando-se a resposta clínica em 5 a 10 dias de uso.11,12 Sabe-se que o zinco tem papel protetor para o prolongamen‑ to da diarreia. Dessa forma, a suplementação do zinco também está indicada na presença de um episódio de diarreia; conforme recomendação da OMS, essa suplementação deve ser feita na dose de 10 mg/dia nas crianças menores de 6 meses e de 20 mg/dia nas crianças maiores de 6 meses, durante 14 dias. As principais fontes alimentares de zinco são carnes, ovos, leite e crustáceos.11,17 Os vegetais apresentam quantidades me‑ nores do mineral e, muitas vezes, contêm substâncias como fitatos que prejudicam a biodisponibilidade e a absorção. De‑ vem-se observar as interações do zinco com cálcio, cobre, cád‑ mio, ferro e vitamina A. A proteína animal aumenta a biodis‑ ponibilidade do zinco.15 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer a importância dos micronutrientes (vitaminas e minerais) para o crescimento e o desenvolvimento saudável da criança e do adolescente. • Entender as principais funções dos micronutrientes, as fontes e as necessidades básicas na alimentação da criança e do adolescente. • Reconhecer sobretudo os estados de carência, mas também os de excesso dos micronutrientes e suas implicações clínicas.
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MICRONUTRIENTES •
• Saber instituir o tratamento dietético e o medicamento adequados às situações de carência e de excesso dos micronutrientes. • Estabelecer mecanismo de prevenção das carências dos micronutrientes por meio de alimentação adequada ou outras políticas de promoção à saúde.
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CAPÍTULO 5
DESNUTRIÇÃO ENERGÉTICO-PROTEICA Silvana Gomes Benzecry Fernando José de Nóbrega
Conceito e classificação No conceito ampliado da desnutrição, entende-se que o esta‑ do de deficiência ou excesso tanto de macronutrientes quanto de micronutrientes causa desequilíbrio entre o suprimento de energia, de nutrientes e a demanda do organismo, alterando a garantia na manutenção, no crescimento e nas funções meta‑ bólicas. Exemplo: uma criança obesa com deficiência de ferro também apresenta desnutrição por esse conceito. A desnutrição energético-proteica (DEP) pode ser classifica‑ da como: primária, quando não há outra doença associada (rela‑ cionada à insegurança alimentar), ou secundária, quando há doença relacionada (geralmente por baixa ou inadequada inges‑ tão alimentar; por alteração na absorção ou por necessidades nutricionais aumentadas e/ou perdas aumentadas de nutrien‑ tes. P.ex., DEP associada a cardiopatias congênitas, doença ce‑ líaca ou síndrome da imunodeficiência adquirida).1-3 Com relação à forma clínica, o tempo e a gravidade contri‑ buem para a definição e a classificação da desnutrição. Identi‑ ficam-se indivíduos emagrecidos (wasted) e/ou com parada de crescimento (stunted), conforme o tempo de curso (Figu‑ ra 1). Em 2012, a World Health Assembly Resolution aprovou um plano de implementação global sobre saúde materna, nu‑
Peso adequado para estatura
Emagrecido
trição de lactentes e crianças pequenas, que especificava seis metas nutricionais globais para 2025. Essa proposta tem como uma das metas a redução de 40% no número de crianças me‑ nores de 5 anos que apresentam déficit estatural (stunting).3,4 Quanto à gravidade, há as formas moderada e grave. Esta últi‑ ma baseia-se em critérios clínicos e laboratoriais e é dividida em: marasmo, kwashiorkor e kwashiorkor-marasmático3,5 (Figura 2). Quadro clínico O conhecimento da clínica e da fisiopatologia da DEP é funda‑ mental para a redução da mortalidade e o êxito da terapia nu‑ tricional. A criança com DEP vive um delicado equilíbrio ho‑ meostático, limítrofe ao colapso endócrino-metabólico. A intrínseca relação das vias de utilização energética promove mudanças intensas em múltiplos sistemas orgânicos: endócri‑ no, imune, nervoso central, gastrointestinal, cardiovascular e renal. A escassez de nutrientes, na DEP moderada e grave, fa‑ vorece hipoglicemia, lipólise, glicólise, glicogenólise e neogli‑ cogênese, secundárias às alterações nos eixos da insulina, com diminuição da produção e aumento da resistência perifé‑ rica pela ação dos hormônios contrarreguladores (hormônio de crescimento, epinefrina e corticosteroides); além disso, há
Parada de crescimento
Emagrecido e com parada de crescimento
Figura 1 Modelo esquemático conforme o tempo de curso da desnutrição.
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DESNUTRIÇÃO ENERGÉTICO-PROTEICA •
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quada dos alimentos regionais disponíveis para as crianças. Por vezes, há práticas inadequadas, como a oferta de mingaus contendo apenas água e farinha, pobres em proteínas e mi‑ cronutrientes (insegurança alimentar): prevalecem as formas graves tipo kwashiorkor. 14. Deficiência de micronutrientes: fome oculta.
Figura 2 Formas graves de desnutrição.
redução no metabolismo com alterações na via tireoidiana de aproveitamento de iodo e conversão hormonal (formas ati‑ vas), a fim de reduzir o gasto de O2 e conservar energia. A redu‑ ção na oferta de fosfatos energéticos promove alterações nas bombas iônicas de membrana celular, cursando com sódio corporal elevado e hiponatremia, hipopotassemia, hipercalce‑ mia e maior tendência a edema intracelular. Ajustado à época de aparecimento e ao grau da DEP, altera‑ ções morfofuncionais do sistema nervoso central (SNC) são esperadas, com mudanças no processo de mielinização do SNC, nas atividades mitóticas dendríticas, produção de neu‑ rotransmissores e no amadurecimento da retina. De forma marcante, as alterações gastrointestinais envolvem insufi‑ ciência pancreática, crescimento bacteriano, atrofia das vilosi‑ dades intestinais, com redução da capacidade absortiva do or‑ ganismo, e comprometimento na produção das dissacaridases, com ênfase na lactase.6,7 Por muito tempo, o kwashiorkor, forma grave, não foi reco‑ nhecido como desnutrição. Foi graças à descrição de Williams, em 1933, que se passou a reconhecer o quadro como desnutri‑ ção. A etimologia da palavra, na língua de Ghana, significa “doença do primogênito, quando nasce o segundo filho”. As causas do kwashiokor são complexas, mas, de acordo com Golden, a causa primária da DEP grave, em geral, associa-se a uma dieta com qualidade nutricional pobre (incluindo defi‑ ciência de zinco, fosforo e magnésio), com consequente perda do apetite, comprometimento do crescimento e resposta des‑ favorável a infecções, modificando a resposta da criança dian‑ te do estresse ambiental.8,9
A avaliação nutricional pode ser realizada por meio de quatro procedimentos básicos: anamnese, exame físico, incluindo a aferição de medidas antropométricas, como medida da cir‑ cunferência braquial (CB), e exames laboratoriais. Na anam‑ nese, deve-se dar ênfase aos antecedentes neonatais (prema‑ turidade, crescimento intrauterino restrito), nutricionais (aleitamento materno – sim ou não; se sim, qual o tempo de exclusivo e total; se não – registrar o motivo; na história ali‑ mentar, identificar se há deficiência na quantidade e/ou qua‑ lidade); aspectos psicossociais, condições de saneamento e moradia, presença ou não de doenças associadas.10 Na ausência de medidas antropométricas, a desnutrição grave também pode ser diagnosticada com base na avaliação clínica, verificando-se a presença de emagrecimento intenso visível; alterações dos cabelos; dermatoses (mais observadas no kwashiorkor), hipotrofia muscular (p.ex., na região glútea) e redução do tecido celular subcutâneo. Com base na antropo‑ metria, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define desnu‑ trição grave como CB < 11,5 cm, escore Z de peso para estatura (ZPE) abaixo de -3, ou pela presença de edema nos pés bilate‑ ral em crianças com kwashiorkor. Quando os recursos estão disponíveis, é preferível avaliar tanto CB quanto ZPE. Contu‑ do, na ausência de recursos, a aferição da CB é simples e con‑ fiável para o diagnóstico de desnutrição grave.6,7 A desnutrição grave deve ser diferenciada em duas formas clínicas de apresentação com parâmetros bem descritos: • kwashiorkor: acomete crianças acima de 2 anos; caracteriza-se por alterações de pele (lesões hipercrômicas, hipocrômicas ou descamativas), acometimento de cabelos (textura, coloração, facilidade de soltar do couro cabeludo), hepatomegalia (estea‑ tose), ascite, face de lua, edema de membros inferiores e/ou anasarca e apatia. O edema geralmente é bilateral simétrico, começa nos pés (marcado 1+ edema, Figura 3A), progride para os pés e as mãos baixas (2+ edema, Figura 3B) e, em casos gra‑ ves, pode envolver a face (3+ edema, Figura 3C) (Figura 4); • marasmo: acomete crianças menores de 12 meses, com ema‑ grecimento acentuado, baixa atividade, irritabilidade, atrofia muscular e subcutânea, com desaparecimento da bola de Bi‑ chat (último depósito de gordura a ser consumido, localizado na região malar), o que favorece o aspecto envelhecido (fás‑ cies senil ou simiesca), com costelas visíveis e nádegas hipo‑ tróficas. O abdome pode ser globoso e raramente com hepato‑ megalia (Figura 5).
Diagnóstico Para o diagnóstico da desnutrição, é fundamental considerar os aspectos geográficos heterogêneos no Brasil, pois há áreas com: 12. Fome por escassez de recursos econômicos (p.ex., região Nor‑ Tratamento deste e alguns bolsões de pobreza das grandes cidades): pre‑ Inicialmente, avalia-se a forma da desnutrição considerando na anamnese os seguintes questionamentos: valecem as formas graves tipo marasmo. 13. Riqueza de recursos naturais (fauna e flora – como na região • quem é esta criança (condições gestacionais maternas, ante‑ cedentes neonatais e pessoais); Norte, Amazônia), mas com desconhecimento da oferta ade‑
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1438 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
A
B
C
Figura 3 Edema da forma Kwashiorkor.
reverter anormalidades metabólicas, iniciar a alimentação. Após estabilização hemodinâmica, hidreletrolítica e acidobási‑ ca (suporte metabólico), inicia-se a alimentação: fornecer no máximo 100 kcal/kg/dia (iniciando com taxa metabólica ba‑ sal acrescida de fator de estresse que varia de 10 a 30%, forne‑ cendo de 50 a 60 kcal/kg/dia no primeiro dia e aumentando de acordo com a avaliação clínica e laboratorial da criança), 130 mL/kg/dia de oferta hídrica e 1 a 1,5 g de proteína/kg/dia, dieta com baixa osmolaridade (< 280 mOsmol/L) e com baixo teor de lactose (< 13 g/L) e sódio. Se a ingestão inicial for infe‑ rior a 60 a 70 kcal/kg/dia, indica-se terapia nutricional por sonda nasogástrica. De acordo com os dias de internação e a si‑ tuação clínica da criança, são recomendados aumento gradual de volume e diminuição gradativa da frequência. Nessa fase, pode ser utilizado um preparado alimentar artesanal contendo 75 kcal e 0,9 g de proteína/100 mL ou fórmula infantil polimé‑ rica isenta de lactose. Em situações de doenças associadas que Figura 4 Kwashiorkor – OMS. cursam com má absorção grave, pode ser necessária a utiliza‑ ção de fórmulas extensamente hidrolisadas ou à base de ami‑ noácidos. Não é prevista recuperação do estado nutricional, e sim sua conservação e a estabilização clínico-metabólica;10-12 • 2ª fase: reabilitação: progredir a dieta de modo mais intensivo, visando a recuperar grande parte do peso perdido, estimular fí‑ sica e emocionalmente, orientar a mãe ou cuidador da criança e preparar para a alta. Devem ser ofertadas 1,5 vez a recomen‑ dação de energia para a idade (cerca de 150 kcal/kg/dia), ofer‑ ta hídrica de 150 a 200 mL/kg/dia e proteica de 3 a 4 g/kg/ dia e menor teor de lactose. Nesta fase, pode-se utilizar prepa‑ rado artesanal sugerido pela OMS contendo 100 kcal e 2,9 g de proteína para cada 100 mL, fórmula infantil com menor con‑ teúdo de lactose ou dieta enteral polimérica pediátrica isenta de lactose para crianças com idade inferior a 1 ano (1 kcal/mL). Figura 5 Características clínicas do marasmo – OMS. Para ajuste da densidade energética de fórmulas infantis (0,7 kcal/mL), podem ser utilizados módulos de polímeros de gli‑ • quando começou a alterar seu peso e/ou altura; cose e lipídios (óleos vegetais), adição máxima de 3%. Esse • onde mora (qual a região, condições de moradia e entorno), procedimento permite que a dieta oferecida apresente melhor integração com equipe de saúde. densidade energética, mas compromete o fornecimento de minerais e micronutrientes. É importante o fornecimento de Na DEP grave, avalia-se a presença de complicações clínicas e preparados com multivitaminas (1,5 vez a recomendação para metabólicas que justifiquem a internação hospitalar. Didatica‑ crianças saudáveis) e de zinco, cobre e ferro; mente, a terapia nutricional pode ser dividida em: • 1ª fase: estabilização: tratar as morbidades associadas com ris‑ • 3ª fase: acompanhamento (ambulatorial para prevenir recaí‑ da): pode ser realizado em hospitais-dia ou ambulatórios e co de morte, corrigir as deficiências nutricionais específicas,
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tem por objetivo prosseguir na orientação, monitoração do crescimento (vigilância dos índices peso por estatura e esta‑ tura por idade) e desenvolvimento da criança, especialmente da relação estatura/idade e intensificação do trabalho da equipe multiprofissional.11,12 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer que fatores maternos, o ambiente fetal e a nutrição da criança nos primeiros meses de vida contribuem para o risco futuro de desnutrição. • Saber que aspectos ambientais, geográficos, sociais/econômicos, saneamento básico e o vínculo familiar contribuem de forma significativa para a desnutrição. • Saber que a deficiência ou o excesso de qualquer nutriente, “senso amplo”, pode causar desnutrição. • Identificar as formas graves marasmo e kwashiorkor • Conhecer a base de todo tratamento inicial das formas graves – equilíbrio hidreletrolítico, térmico e glicêmico. • Não ter pressa na oferta da dieta e em acelerar de modo intenso o ganho de peso.
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CAPÍTULO 6
DISLIPIDEMIA Fernanda Luisa Ceragioli Oliveira Maria Arlete Meil Schimith Escrivão Carlos Alberto Nogueira de Almeida
Introdução A história natural da arteriosclerose inicia-se na infância, caben‑ do ao pediatra sua prevenção, em razão do risco de morbidade e mortalidade na fase adulta, acarretando alto custo à sociedade. Estudos epidemiológicos, como os de Bogalusa, Muscatine e Cincinatti, demonstraram fatores de riscos genéticos e am‑ bientais para o desenvolvimento de arteriosclerose na popula‑ ção pediátrica. Destacam-se o hábito alimentar e o estilo de vida entre os fatores de risco ambientais. Aleitamento materno exclusivo parece ter papel protetor no desenvolvimento de doenças car‑ diovasculares. A dieta, o estado nutricional, a composição cor‑ pórea e o sedentarismo estão associados ao perfil lipídico plas‑ mático da criança e do adolescente. Alto consumo de alimentos industrializados, que apresentam alta densidade energética, além de maior quantidade de sal, açúcar, gorduras saturadas e trans, está associado ao risco de doença cardiovas‑ cular. Estudos com adolescentes que faleceram por traumatis‑ mo e que foram submetidos à autópsia observaram associação entre o perfil lipídico, a pressão arterial sistólica e o grau de ar‑ teriosclerose coronariana. Assim, o pediatra tem responsabilidade na orientação ali‑ mentar e no estilo de vida da criança e do adolescente, além do dever de detectar precocemente fatores de risco como ante‑ cedentes familiares positivos de doenças cardiovasculares (obesidade, hipertensão arterial, dislipidemia, diabete tipo 2, acidente vascular cerebral (AVC), infarto do miocárdio e doen‑ ças coronarianas). Etiologia A dislipidemia pode ser primária ou secundária. Geralmente, as causas primárias decorrem de modificações genéticas do metabolismo lipídico, que podem sofrer influência do fator ambiental, como consumo inadequado de gordura na dieta. As causas secundárias de dislipidemias são hábitos de vida inadequados (dieta rica em carboidratos e/ou gorduras satu‑ radas e trans, tabagismo e etilismo), doenças, síndromes, uti‑
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lização de medicações de uso contínuo ou de longo prazo (Ta‑ bela 1). Entre as causas secundárias, a dislipidemia resultante de obesidade é a mais prevalente. Atualmente, preconiza-se a dosagem de não HDL-coleste‑ rol (não HDL-c em exames de rotina para crianças de 8 a 11 anos e adolescentes acima de 17 anos), sendo considerado ris‑ co aterosclerótico quando a concentração sérica estiver maior que 145 mg/dL. A dosagem do não HDL-c não necessita de je‑ jum de 12 horas. A Sociedade Brasileira de Cardiologia e a So‑ ciedade Brasileira de Pediatria recomendam, na I Diretriz de Prevenção de Arteriosclerose na Infância e Adolescência, que a avaliação do perfil lipídico (triglicérides, colesterol total e fra‑ ções) deve ser realizada em todos os pacientes acima de 10 anos. A conduta baseia-se no fato de que, nessa fase, ocorrem fatores fisiológicos de modificação do perfil lipídico, além de exposição a fatores de riscos ambientais, como tabagismo, ál‑ cool e uso de anticoncepcionais. Tabela 1 Causas de dislipidemias secundárias Estilo de vida Dieta, inatividade física, tabagismo, obesidade, anorexia Uso rotineiro de medicamentos Corticosteroides Ácido retinoico Estrogênios exógenos Drogas imunossupressoras (ciclosporina) Inibidores de protease antiviral HIV Betabloqueadores Testosterona Contraceptivo oral, esteroides anabólicos Doenças Metabólicas: diabete melito tipos 1 e 2, lipodistrofias Distúrbios hormonais: hipotireoidismo, síndrome de Cushing Depósito: Gaucher, Juvenile-Sachs, Niemann-Pick (continua)
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DISLIPIDEMIA •
Tabela 1 (continuação) Causas de dislipidemias secundárias Doenças Tratamento de neoplasias Síndrome de Kawasaki Inflamações crônicas: lúpus sistêmico, artrite reumatoide Cardiopatia congênita: coartação de aorta Hepáticas: cirrose, atresia biliar congênita Renais: insuficiência renal crônica Fonte: Oliveira, Patin, Escrivão, 2010.1
Dislipidemia primária Hipercolesterolemia familiar A hipercolesterolemia familiar é a mais comum dislipidemia primária na criança. Apresenta defeito molecular e atualmen‑ te existem 700 mutações que afetam o processo de síntese do receptor do LDL-colesterol (LDL-c). O defeito no receptor de LDL-c na grande parte das células do organismo acarreta pre‑ juízo na endocitose da fração LDL-c e na produção de coleste‑ rol endógeno, que seria controlado pelo receptor LDL-c hepá‑ tico, acarretando prejuízo em sua inibição nessa doença. É considerada herança autossômica codominante, cujo número de receptores de LDL-c seria 100% de comprometimento nos homozigóticos e 50% nos heterozigóticos. Descrita como a dislipidemia primária mais frequente (1:500) na sua forma he‑ terozigota, é rara a forma homozigota (1:1.000.000). O diagnóstico de hipercolesterolemia familiar é realizado por meio de avaliação da história familiar de evento cardiovas‑ cular, exame físico e perfil lipídico. A análise do DNA para de‑ terminação genética das mutações funcionais do receptor LDL-c confirma o diagnóstico. As manifestações clínicas dermatológicas, como xantomas tendinosos, surgem na infância na forma homozigota. Xanto‑ mas plantares e tuberosos na superfície extensora das mãos, dos joelhos, dos cotovelos e os xantelasmas do arco corneano aparecem na 1ª e na 2ª décadas de vida. O aparecimento de xantomas ocorre tardiamente na 3ª década. Na adolescência, podem-se observar depósitos de colesterol éster nos tendões e nos tecidos frouxos. Nos pacientes homozigotos, a doença arterial coronaria‑ na manifesta-se precocemente, sendo que 50% dos pacien‑ tes têm sintomatologia de angina pectoris aos 20 anos de idade. As doenças cardiovasculares atingem a forma hete‑ rozigótica na 4ª e 5ª décadas nos homens e na 5ª e 6ª déca‑ das nas mulheres. Nos casos homozigóticos, as concentrações séricas de co‑ lesterol variam entre 500 e 1.000 mg/dL, sendo que o aumen‑ to da fração LDL-c atinge cerca de 600 mg/dL, a fração HDL-c apresenta concentrações abaixo da normalidade e a concen‑ tração de triglicérides não está alterada. O colesterol total está elevado, em torno de 235 mg/dL. Diagnóstico O diagnóstico de dislipidemia deve ser efetuado após consta‑ tação de mais de uma mensuração de um perfil lipídico altera‑
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do, coletado adequadamente após 12 horas de jejum, no mes‑ mo laboratório de análises clínicas. Considera-se perfil lipídico alterado quando um ou mais valores séricos de triglicérides, colesterol total e frações estive‑ rem inadequados. A Sociedade Brasileira de Pediatria e a So‑ ciedade Brasileira de Cardiologia recomendam a classificação da I Diretriz Brasileira sobre Dislipidemia e Prevenção da Ate‑ rosclerose (Tabela 2) para determinação do perfil lipídico da criança maior de 2 anos e do adolescente até 19 anos. Também existem valores do perfil lipídico em classificação percentilar por sexo e idade, além de valores de não HDL-c, apoproteína AI e B para crianças e adolescentes. O colesterol total e a fração não HDL-c (fração aterogênica do colesterol) são utilizadas como triagem e não necessitam de 12 horas de jejum, portanto, não devem ser considerados no diagnóstico de dislipidemia. O diagnóstico de dislipidemia deve ser realizado solicitan‑ do perfil lipídico com 12 horas de jejum. No Quadro 1, descre‑ ve-se resumidamente o algoritmo de diagnóstico e conduta das dislipidemias. Tabela 2 Valores séricos do perfil lipídico para crianças maiores de 2 anos e adolescentes Lipoproteínas (mg/dL)
Desejáveis
Valores limítrofes
Aumentados
Colesterol total
< 150
150 a 169
> 170
LDL-c
< 100
100 a 129
≥ 130
HDL-c
≥ 45
Triglicérides
< 100
100 a 129
≥ 130
Fonte: IV Diretriz Brasileira sobre Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose
Prevenção Considerando que o processo arteriosclerótico começa na in‑ fância, parece apropriado iniciar a prevenção e o tratamento o mais rápido possível. Modificações na dieta e no comporta‑ mento da criança só são viáveis quando há mudanças no hábi‑ to alimentar e no estilo de vida de toda a família. A recomendação atual sugerida pela Academia Americana de Cardiologia e pela Academia Americana de Pediatria é que a atividade física seja diária, com redução do tempo gasto com atividades sedentárias (até 2 horas/dia). Preconiza-se que haja avaliação de atividade física em toda consulta com profis‑ sional de saúde. Nas crianças menores de 2 anos, deve-se abo‑ lir o tempo gasto em telas como vídeo e desenhos. Para crianças menores de 5 anos, as medidas recomenda‑ das são atividades lúdicas em ambiente seguro, com espaço, de preferência em atividade familiar pelo menos 1 vez/sema‑ na, tempo gasto em atividades com tela menor que 2 horas/ dia e não colocar televisão no quarto. Em crianças maiores de 6 anos, recomenda-se a realização de atividade física por 1 hora diária, moderada a intensa; ativi‑ dade intensa musculoesquelética 3 vezes/semana e redução para 2 horas/dia de atividade sedentária. Na faixa etária do adolescente, são recomendados exercí‑ cios repetitivos com moderada intensidade (10 a 15 vezes), as‑
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Quadro 1 Algoritmo das dislipidemias Crianças de 8 a 11 anos com não HDL-c > 145 mg/dL Adolescentes História familiar positiva de DCV
Jejum 12 horas: CT, TG, LDL-c, HDL-c
Pais com dislipidemia
Repetir e usar médias
Dislipidemia secundária Condições clínicas
TG > 500 mg/dL
Distúrbios nutricionais → obesidade
LDL-c > 250 mg/dL
encaminhar especialista
Uso regular de medicação Doenças metabólicas, renais/hepáticas Alterações hormonais LDL-c < 110 mg/dL, TG < 100 mg/dL (< 10 anos) e TG < 130 mg/dL (10 a 19 anos)
• • •
Repetir em 1 ano Educação nutricional – fase I (Tabela 3)* Fatores de riscos e estilo de vida
LDL-c entre 110 e 130 mg/dL
• • • •
Reavaliar estilo de vida a cada 3 meses Repetir perfil lipídico em 1 ano Orientar fatores de riscos Tratamento: dieta – fase II (Tabela 3)* aliada à atividade física
TG ≥ 100 mg/dL (< 10 anos) e ≥ 130 mg/dL (10 a 19 anos)
• • • •
Reavaliar estilo de vida a cada mês Repetir perfil lipídico a cada 3 meses Perda de peso, se necessário Orientar dieta específica para alteração de TG:
−− −− −− −−
Aumentar oferta de peixe na dieta Diminuir consumo de carboidratos simples: 10% do valor energético total Limitar consumo de gordura: 30% do valor energético total Evitar consumo excessivo de energia
LDL-c > 130 mg/dL
• • • • • • •
Reavaliar estilo de vida mensalmente Repetir perfil lipídico a cada 3 meses Avaliar causa primária ou secundária Triagem de toda a família Intervenção clínica agressiva Dietoterapia e atividade física Meta: mínima < 130 mg/dL; ideal < 110 mg/dL
Terapia medicamentosa + dietoterapia + atividade física
• •
• •
LDL-c ≥ 190 mg/dL LDL-c ≥ 160 mg/dL associa com fatores:
−− −− −− −−
História familiar positiva Evento precoce de DCV Síndrome metabólica Tabagismo
LDL-c ≥ 130 mg/dL: diabete melito TG > 500 mg/dL > 1.000 mg/dL pós-prandial
}
Alto risco de pancreatite
* American Heart Association. DCV: doença cardiovascular; CT: colesterol total; TG: triglicérides. Fonte: modificada de Oliveira, Patin, Escrivão, 20101 e Expert Panel on Integrated Guidelines for Cardiovascular Health and Risk Reduction in Children and Adolescents Reduction in Children and Adolescents: Summary Report.2
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Tabela 3 Orientação nutricional na prevenção e no tratamento da dislipidemia Fase I ‑ Prevenção Gordura – 30% do valor energético diário
• • • • •
Saturada < 10% Poli-insaturada 10% Monossaturada 10 a 15% Trans < 1% Colesterol < 300 mg/dia
Carboidratos 50 a 60%; 10% carboidratos simples (sacarose, frutose) Proteína 10 a 12% Fase II – Tratamento Gordura – 30% do valor energético diário
• • • • •
Saturada < 7% Poli-insaturada 10% Monossaturada 10 a 15% Trans < 1% Colesterol < 200 mg/dia
Carboidratos 50 a 60% Proteína 10 a 12% Fonte: NCEP, 1992.
sociados à atividade aeróbica. A atividade física regular con‑ trola o peso corpóreo, melhora o condicionamento físico (cardiorrespiratório), melhora a resistência à insulina, adequa a pressão arterial, colabora para a diminuição de LDL-c e trigli‑ cérides e aumenta o HDL-c. A orientação dietética considera que, para atingir as metas de alimentação saudável, com peso corpóreo adequado, perfil lipídico e níveis pressóricos sanguíneos desejáveis, deve-se: • monitorar a necessidade energética adequada para cresci‑ mento e desenvolvimento; • incentivar o consumo de frutas, vegetais, legumes, grãos in‑ tegrais, produtos derivados de leite e carnes (peixes, aves e bovinos); • limitar o consumo das gorduras provenientes dos ácidos gra‑ xos trans (1%); • limitar a ingestão de sal a 6 g/dia; • limitar o consumo de carboidratos simples (açúcar e frutose). O balanceamento da dieta com adequada proporção de proteí‑ na (15 a 12% do total de energia), carboidratos (50 a 60% do total das calorias) e lipídios (30%) parece ser o modo mais prudente de prevenir arteriosclerose nas crianças (maiores de 2 anos) e nos adultos na população geral. Não se recomenda restrição do valor energético total de gordura para crianças menores de 2 anos. Grandes modificações na qualidade de gordura na alimen‑ tação de lactentes podem causar danos significativos na com‑ posição e na função das membranas celulares, podendo afetar o desenvolvimento neurológico e da retina, além de modificar as respostas inflamatórias e imunológicas. Sabe-se que, nessa fase, as necessidades dos lactentes estão aumentadas em ra‑
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zão do crescimento e do desenvolvimento, pois o colesterol tem função primordial na membrana celular e na produção de hormônios esteroides. Os lactentes alimentados com leite ma‑ terno possuem concentrações plasmáticas de colesterol muito maiores que os lactentes alimentados com fórmulas lácteas, ricas em óleos vegetais poli-insaturados e baixo colesterol. As vantagens do aleitamento materno e sua excelente condição de nutrição e crescimento, durante os primeiros meses de vida, garantem que qualquer modificação na alimentação deve ser feita somente após o 6º mês de vida. Tratamento A maioria das crianças que requer tratamento e acompanha‑ mento apresenta elevada concentração de LDL-c e/ou trigli‑ cérides, com ou sem diminuição da fração HDL-c. O tratamen‑ to inicial das crianças com alteração lipídica consiste em modificar a dieta conforme a lipoproteína alterada (LDL-c ou VLDL-c/TG). Enfatiza-se a preocupação da redução de gordu‑ ras para menos de 25%, pois isso compromete o crescimento e o desenvolvimento. A quantidade de minerais e de vitaminas deve ser adequada para promover crescimento e desenvolvi‑ mento normais, além de que muito micronutrientes são po‑ tentes antioxidantes exógenos, que colaboram na proteção do desenvolvimento do processo arteriosclerótico. A meta a ser atingida é a normalização dos valores séricos de triglicérides (> 100 mg/dL para > 10 anos e < 130 mg/dL 10 a 19 anos) e LDL-c (< 130 mg/dL). Nas dislipidemias primá‑ rias, alguns autores preconizam redução de 30% do valor do LDL-c nos adolescentes de 10 a 14 anos, para posteriormente atingir a meta. As crianças maiores de 2 anos de idade com aumento da fração LDL-c , com elevação da ApoB e diminuição da fração HDL-c são orientadas a seguir a fase II, que constitui em dieta normocalórica e com restrição lipídica (Tabela 3). Nas crianças e adolescentes com hipertrigliceridemia, de‑ ve-se aumentar oferta de peixe na dieta, visando ao maior con‑ sumo de ácidos graxos ômega 3, diminuir consumo de carboi‑ dratos simples, limitar o consumo de gordura a 30% do valor energético total e evitar o consumo excessivo de energia. Nes‑ sas crianças, deve-se atentar para o consumo de açúcar e fru‑ tose presentes em alimentos industrializados (bebidas, sucos, refrigerantes, doces, balas, gomas de mascar, bolos prontos, pão doce), pois o excesso desses carboidratos contribui para maior elevação de triglicérides. O incremento do consumo de carboidratos complexos (ba‑ tata, arroz, pães, massas) e a ingestão de fibras (idade + 5 g/ dia, dose máximo 25 g/dia) devem ser sempre incentivados. O consumo de fibra solúvel auxilia na diminuição do LDL-c, assim como a utilização de fitosteróis (2 g/dia), que contribui para a redução de 10% do LDL-c. Frutas, grãos (soja e linhaça) e cereais (aveia) colaboram para o aumento da ingestão de fi‑ bras diária. A meta dietética pode ser atingida com algumas medidas, como: • evitar o consumo de alimentos com alto teor lipídico (indus‑ trializados);
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• trocar alguns alimentos ricos em gorduras saturadas e trans por gorduras poli-insaturadas; • evitar alimentos com alto teor de colesterol (fígado, gema de ovo); • escolher alimentos contendo alto teor de carboidratos com‑ plexos e fibras. A substituição dos alimentos consiste em manter uma escolha de alimentos preferenciais e substituí-los por alimentos ma‑ nufaturados com restrição lipídica, como leite e derivados se‑ midesnatados. A escolha de leite semidesnatado e derivados deve-se à quantidade de vitaminas lipossolúveis contida nes‑ tes alimentos, que têm função de combater os radicais livres como antioxidantes exógenos. Se o objetivo principal é a edu‑ cação nutricional dessas crianças, deve-se ensiná-las “o quê” e “quanto” comer. Parece ser esse o modo mais eficiente de con‑ trolar seu hábito alimentar. Nas modificações da dieta, indica-se a ingestão de alimentos com menor teor de gordura. Essa abordagem é fundamental na educação nutricional, pois envolve a remoção de gorduras visí‑ veis da carne, da pele do frango ou do peru, preferencialmente antes de cozinhar e definitivamente antes de comer. Outra con‑ duta seria retirar o óleo de alimentos enlatados e escolher pre‑ parações que contenham água como veículo, por exemplo, o atum. Deve-se utilizar leite semidesnatado em todas as prepa‑ rações como pudins e bolos. Reduzir a quantidade de óleos ve‑ getais na preparação dos molhos e dos alimentos, preferindo o uso de óleo de soja ou canola, por apresentar maior quantidade de ácidos graxos poli-insaturados ômega 3 (ácido graxo linolê‑ nico). Utilizar azeite de oliva (gordura monossaturada) para preparo de saladas e molhos, por seu efeito benéfico nas lipo‑ proteínas. A troca de alimentos propicia a mudança da escolha, por exemplo, em vez de aperitivos com alimentos de alto teor de lipídios, como amendoim e nozes, preferir pipocas (prepara‑ das na panela com pouco óleo); escolher iogurtes congelados isentos de gorduras em vez de sorvetes. A exclusão envolve certos grupos de alimentos, como petis‑ cos amanteigados e salgadinhos, sendo especialmente difícil retirar da dieta da criança alimentos prediletos ou aqueles que os amigos ou irmãos consomem muito. Nesse impasse, orien‑ ta-se a família a diminuir a frequência do consumo desse ali‑ mento em casa. O hábito da família de consumir grandes quantidades de embutidos (salsicha, linguiça, mortadela e ovos) e industriali‑ zados (pipocas de micro-ondas ou do cinema, bolos, tortas, bolachas, lasanhas) também contribui para aumento do LDL‑ -c. O primeiro grupo de alimentos de origem animal é rico em colesterol e gordura, principalmente a saturada, enquanto o segundo grupo é rico em gordura e gordura trans. A solução é diminuir a frequência de consumo desses alimentos. Com a finalidade de reduzir a ingestão lipídica, deve-se op‑ tar por diminuir a ingestão de gorduras visíveis (limitando o consumo de óleos vegetais, margarina, temperos de salada, maionese, cremes, molhos e manteiga) e reduzir as gorduras invisíveis (limitando o consumo de alimentos panificados in‑
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dustrializados, biscoitos, salgadinhos; carnes processadas; utilizar leite semidesnatado e derivados, escolher a carne mais magra e fazer prevalecer as preparações que não necessitem de fritura (ferver, grelhar, cozinhar e assar). O conhecimento da alimentação das crianças em casa é fundamental para in‑ terferir no hábito familiar, pois a orientação específica para cada família é o único meio de conseguir o sucesso terapêutico. Modelo educacional parece facilitar o tratamento dietético: o primeiro ponto a ser atingido é o conhecimento, por parte dos pais e do paciente, dos alimentos preferidos, identifican‑ do aqueles com altos teores de colesterol e gordura e os de alta quantidade de gorduras saturada e trans, aprendendo, assim, a trabalhar com esses novos conceitos. O segundo passo con‑ siste em ensinar os pais e o paciente como reduzir o consumo de colesterol, como diminuir a ingestão de gordura, como ma‑ nusear o balanceamento dos ácidos graxos, como ler e enten‑ der os rótulos dos alimentos, como fazer substituições ade‑ quadas, como fazer refeições fora de casa e como modificar receitas e menus. O pediatra deve explicar ao paciente e a sua família que o consumo diário de manteiga, margarina ou creme vegetal deve ser monitorado e limitado. Infelizmente, as melhores op‑ ções disponíveis no mercado brasileiro exigem maior poder aquisitivo para obtenção desses produtos. Por meio de novos processos de interesterificação das gorduras do leite de vaca e dos óleos vegetais (milho), conseguiu-se aumentar a consis‑ tência da mistura sem a produção de ácidos graxos trans. A in‑ dicação de margarinas enriquecidas com fitosteróis limita-se aos pacientes dislipidêmicos. As crianças com dislipidemias também são orientadas a de‑ senvolver atividade física regular, seguindo as propostas des‑ critas para a população geral. Eficiente conduta terapêutica dietética com objetivo de modificar o hábito familiar e o estilo de vida da família deve, sempre que possível, ser complemen‑ tada por apoio psicológico e social para obtenção de sucesso pleno. Medicamentoso A terapia medicamentosa deve ser utilizada nas crianças maiores de 10 anos de idade que não responderam adequa‑ damente após 6 meses a 1 ano ao tratamento dietético com mudança do estilo de vida, permanecendo com valor plas‑ mático da fração LDL-c acima de 190 mg/dL, ou acima de 160 mg/dL com história familiar de evento precoce, suge‑ rindo alto risco de desenvolver doença cardiovascular pre‑ cocemente. Os medicamentos utilizados no tratamento das dislipide‑ mias atuam diretamente no aumento da excreção ou do meta‑ bolismo da fração LDL-c, reduzindo a produção dessa fração. Os critérios para tratamento medicamentoso são os mes‑ mos do consenso de 1992, porém a droga de primeira escolha é a estatina. Crianças com anormalidades do perfil lipídico alia‑ das à presença adicional de fatores de risco podem ter seu ponto de corte da concentração sérica de LDL-c reduzido (LDL-c ≥ 160 mg/dL) para iniciar terapia medicamentosa. São considerados fatores de risco:
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• história familiar marcante de doença ou evento cardiovascu‑ lar precoce; • associação à concentração de HDL-c abaixo do normal, valo‑ res elevados de triglicérides e presença de partículas de LDL-c de tamanho pequeno; • associação ao sobrepeso ou obesidade e sinais de síndrome metabólica; • presença de outra condição médica associada ao aumento do risco de aterosclerose, como diabete, aids, lúpus eritematoso sistêmico, transplante de órgão ou câncer; • presença de hipertensão arterial; • tabagismo, assim como exposição passiva ao fumo; • presença de outros marcadores, como elevação de homocis‑ teína e proteína C reativa. Estatinas Considerada a primeira opção para o tratamento medicamento‑ so de dislipidemias em crianças e adolescentes. A estatina é um inibidor da HMG-CoA redutase, que bloqueia a síntese do coles‑ terol. A redução da biossíntese total do colesterol acarreta res‑ posta das células e dos órgãos, aumentando a síntese dessa en‑ zima e do receptor LDL-c. A concentração sérica de colesterol diminui à custa da remoção da fração LDL-c aumentada no fíga‑ do, decorrente do incremento dos receptores LDL-c. Essa medicação parece baixar as concentrações séricas de triglicérides em 15 a 25%, do colesterol total em 21 a 32%, a fra‑ ção LDL-c em 25 a 39% e incrementa a fração HDL-c em 5 a 10%. Os efeitos colaterais das estatinas incluem hepatotoxicida‑ de com aumento das transaminases (geralmente transitório), miotoxicidade com mialgia e/ou raramente rabdomiólise e ainda teratogenicidade. Adolescentes do sexo feminino em uso de estatinas devem estar devidamente orientadas quanto aos métodos contracep‑ tivos. Podem ocorrer ainda interações medicamentosas com aumento do risco de toxicidade (macrolídeos, antifúngicos, inibidores da protease, bloqueadores do canal de cálcio e ci‑ closporina), com diminuição do nível sérico das estatinas (ri‑ fampicina, barbitúricos, e carbamazepina). Sua eficácia e se‑ gurança em crianças e em adolescentes são similares às encontradas em adultos. Deve-se monitorar a função hepática e as enzimas muscu‑ lares. Queixas como insônia, cefaleia e sintomas gastrointesti‑ nais foram observados com o uso desse medicamento. Exis‑ tem estatinas aprovadas pela Food and Drug Administrations (FDA) nos EUA para o uso clínico pediátrico, como sinvastati‑ na, lovastatina, atorvastatina e pravastatina. A American Heart Association desenvolveu manual para uso de estatinas em crianças. Suas recomendações incluem os critérios de seleção (idade e concentração sérica de LDL-c), podendo ser influenciado pela presença e magnitude de ou‑ tros fatores de risco para doença cardiovascular, assim como a presença de xantomas cutâneos. É importante incluir os pais e familiares na decisão do tratamento. Em geral, o tratamento não deve ser iniciado antes dos 10 anos em meninos e antes da menarca nas meninas, devendo-se aguardar o estágio puberal
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de Tanner igual ou maior que II. Doença hepática, insuficiên‑ cia renal, miopatia e gravidez constituem contraindicações para o tratamento medicamentoso com estatinas. Os pacientes em tratamento com estatinas devem ser mo‑ nitorados quanto a crescimento (estatura, peso, IMC), matu‑ ração sexual e desenvolvimento (estádio puberal de Tanner). Dosagens laboratoriais bioquímicas (CK, ALT e AST) devem ser realizadas a cada 3 ou 6 meses. A dieta deve ser monitora‑ da, estimulando o baixo teor de lipídio e deixando clara sua importância para o sucesso do tratamento. As crianças devem ser aconselhadas sobre outros fatores de risco, como ganho de peso, tabagismo e sedentarismo. Embora haja estudos que mostrem segurança e efetividade do tratamento com estati‑ nas em crianças, a ausência de estudos em longo prazo leva essas recomendações a ser usadas com critério. Considerações finais A dislipidemia representa um dos distúrbios nutricionais de‑ correntes da influência genética e é potencializada pelo hábito alimentar e estilo de vida, acarretando modificações no meta‑ bolismo lipídico. O pediatra deve prevenir a ocorrência, esti‑ mulando estilo de vida saudável nas fases precoces de vida e, se necessário, diagnosticando, por meio de investigação de fa‑ tores de risco. Se a doença estiver instalada, deve introduzir a terapia nutricional, estimular a atividade física e monitorar o paciente. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conceituar a gênese da arteriosclerose inicial na infância. • Diagnosticar a dislipidemia. • Identificar a causa da dislipidemia. • Prevenir a dislipidemia. • Tratar a dislipidemia.
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CAPÍTULO 7
OBESIDADE EXÓGENA Maria Arlete Meil Schimith Escrivão Fernanda Luisa Ceragioli Oliveira José Augusto de Aguiar Carrazedo Taddei
Definição A obesidade exógena é um distúrbio do metabolismo energéti‑ co, que acarreta acúmulo excessivo de gordura corporal. Seu desenvolvimento ocorre pela associação de fatores genéticos, ambientais e comportamentais.1,2 Epidemiologia Estilo de vida sedentário e maior consumo de alimentos com alta densidade energética explicam o aumento expressivo da prevalência de obesidade em países desenvolvidos e em de‑ senvolvimento, incluindo todas as faixas etárias.3,4 A condição nutricional da população brasileira mudou nas últimas três a quatro décadas, com ascensão do sobrepeso e da obesidade e declínio do déficit de peso. A Pesquisa de Orçamentos Familiares (2008-2009)5 revelou que 33,5% das crianças de 5 a 9 anos estavam com excesso de peso, sendo que 16,6% dos meninos e 11,8% das meninas eram obesos. Foi detectado um salto no número de crianças de 5 a 9 anos com excesso de peso ao longo de 34 anos. Em 2008-2009, 34,8% dos meninos estavam com o peso acima da faixa consi‑ derada normal pelos referenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 1989, esse percentual era de 15%, contra 10,9% em 1974-1975. Observou-se padrão semelhante nas me‑ ninas, que apresentavam prevalência de excesso de peso de 8,6% na década de 1970, passando para 11,9% no final dos anos 1980 e chegando aos 32% em 2008-2009. Entre os adolescentes (10 a 19 anos) foi verificado percentual de 21,5% para o excesso de peso, oscilando entre 16 e 18% no Norte e Nordeste e entre 20 e 27% no Sudeste, Sul e Centro-Oeste. A obesidade, que foi veri‑ ficada em 1/4 dos casos de excesso de peso nos dois sexos, teve distribuição geográfica semelhante. O aumento de peso em ado‑ lescentes de 10 a 19 anos foi contínuo, nos últimos 34 anos. No período de 1974-1975 a 2008-2009, a prevalência do excesso de peso no sexo masculino aumentou de 3,7 para 21,7% e no sexo feminino, de 7,6 para 19%. Quanto à obesidade, também houve tendência ascendente, indo de 0,4 para 5,9% no sexo masculi‑ no e de 0,7 para 4,0% no feminino, nesse período.
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Quadro clínico No obeso, a protrusão do abdome determina o deslocamento anterior do centro de gravidade corporal, com acentuação da lordose lombar e aumento da inclinação anterior da pelve. Es‑ sas modificações posturais propiciam alterações em estrutu‑ ras músculo-ligamentares das regiões glúteas e dos quadris, que irão influenciar na marcha e no aparecimento de deformi‑ dades distais, como os joelhos valgos e os pés planos valgos.6 O impacto provocado pelo excesso de peso nas articulações dos quadris, joelhos e tornozelos determina desenvolvimento de processos degenerativos, com dores articulares importantes. Alterações de pele são bastante comuns na obesidade, como as estrias, que surgem em razão do esgarçamento da pele provocado pelo excesso de tecido adiposo subcutâneo. Infecções fúngicas e/ou bacterianas também ocorrem com muita frequência nas regiões das dobras, facilitadas pela umi‑ dade local e pelo atrito com tecidos, especialmente os sintéti‑ cos.7 A acantose nigricans, uma hiperpigmentação da pele que surge principalmente nas axilas e no pescoço, pode ser detec‑ tada nos casos de obesidade com hiperinsulinismo.8 Crianças e adolescentes obesos costumam apresentar alte‑ rações do metabolismo da glicose, como resistência insulínica, hiperinsulinemia e intolerância à glicose, que podem culminar com o diabete melito tipo 2.9 Esse tipo de diabete, habitual‑ mente observado em adultos, vem surgindo cada vez mais em indivíduos jovens, em razão do aumento da prevalência de obesidade na infância e na adolescência.10 A resistência insulí‑ nica consiste na incapacidade do organismo de responder à ação da insulina. Para a manutenção da tolerância normal à gli‑ cose, ocorre aumento compensatório da secreção de insulina pelas células betapancreáticas, acarretando o hiperinsulinismo. São considerados normais os valores de glicemia de jejum abai‑ xo de 100 mg/dL e alterados, entre 100 e 126 mg/dL, com indi‑ cação para o teste de tolerância oral à glicose.11 A resistência in‑ sulínica pode ser avaliada pelo índice HOMA-IR (homeostasis model assessment of insulin resistance)12, que apresenta boa cor‑ relação com o clamp euglicêmico-hiperinsulinêmico, conside‑
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rado o padrão-ouro para essa avaliação. Esse índice é calculado hepática. As lesões hepáticas são decorrentes de mecanismos utilizando-se uma fórmula, cujas variáveis são os valores da gli‑ combinados, que envolvem a resistência insulínica e o estres‑ cemia e da insulinemia de jejum: HOMA-IR= glicemia jejum se oxidativo. Em geral, crianças e adolescentes com esteatose (mmol/L) x insulinemia de jejum (uU/mL)/22,5. não têm sintomas. Os casos com esteato-hepatite podem Outra repercussão metabólica bastante comum na obesidade apresentar náuseas, desconforto no quadrante superior direi‑ está relacionada aos níveis adversos de lipídios.13 As alterações to do abdome e hepatomegalia.20,21 mais frequentes do perfil lipídico consistem no aumento dos ní‑ Adolescentes obesas podem apresentar manifestações clíni‑ veis de triglicérides (TG), na diminuição da fração HDL-coleste‑ cas da síndrome dos ovários policísticos (SOP), que são relacio‑ rol (HDL-c) e composição anormal do LDL-colesterol (LDL-c) nadas ao hiperandrogenismo (hirsutismo, acne, irregularida‑ (maior proporção de partículas pequenas e densas, que são mais des menstruais) e à resistência insulínica (obesidade central, aterogênicas). acantose nigricans). O diagnóstico da SOP é difícil de ser feito Tanto a pressão sistólica quanto a diastólica aumentam em adolescentes, pela falta de critérios bem estabelecidos para com o incremento do índice de massa corporal (IMC).14 Há re‑ essa faixa etária e também pela presença de ciclos menstruais lação estreita entre pressão arterial e peso corporal, ocorrendo irregulares, que podem ocorrer até 2 anos após a menarca. O redução da pressão arterial com a perda de peso. Alguns meca‑ diagnóstico nessa faixa etária é baseado principalmente nos nismos estão envolvidos no aumento dos níveis pressóricos achados clínicos e laboratoriais de hiperandrogenismo.22 na obesidade, como a resistência insulínica, a hiperatividade Distúrbios respiratórios são comuns em obesos, em razão do sistema nervoso simpático, as alterações vasculares estru‑ da deposição de gordura na faringe e nas estruturas perifarin‑ turais e funcionais e a ação de proteínas do sistema renina-an‑ geanas, que dificulta a passagem do ar pelas vias aéreas supe‑ giotensina secretadas pelo tecido adiposo.15 A obesidade é riores, e também pela restrição na expansibilidade da caixa to‑ uma das principais causas de hipertensão arterial em crianças rácica, provocada pelo excesso de tecido adiposo na região e adolescentes, favorecendo complicações cerebrovasculares torácica. A apneia obstrutiva do sono caracteriza-se por episó‑ e cardiovasculares futuras.16 A associação entre obesidade, hi‑ dios repetidos de pausas respiratórias durante o sono e múlti‑ pertensão arterial, dislipidemia (aumento de TG, diminuição plos despertares. Costuma acarretar sonolência diurna, déficit de HDL-c) e alterações no metabolismo da glicose (resistência de atenção, dificuldade no aprendizado e aumenta o risco para insulínica, intolerância à glicose ou diabete tipo 2) caracteriza o desenvolvimento de doenças cardiovasculares futuras. A a síndrome metabólica. A síndrome metabólica está relaciona‑ confirmação diagnóstica é feita pela polissonografia.23 da especialmente à adiposidade central (abdominal), com de‑ pósitos viscerais de gordura. O predomínio de receptores beta‑ Diagnóstico -adrenérgicos nessa região explica a elevada atividade lipolítica, O diagnóstico da obesidade, geralmente, é feito por métodos com grande produção de ácidos graxos livres. Esses ácidos antropométricos, que são de fácil aplicação e baixo custo. graxos livres atingem o fígado pela circulação portal e estimu‑ O peso e a estatura são os dados rotineiramente utilizados. lam a síntese de VLDL-c e TG. A transferência de TG para o Com os dados de peso e estatura, calcula-se o IMC = Peso LDL-c favorece a formação de partículas pequenas e densas, (kg)/Estatura2 (m), que apresenta boa correlação com a quan‑ que são mais aterogênicas, e a diminuição dos níveis séricos tidade da gordura corporal. de HDL-c resulta da transferência de colesterol do HDL para o O valor do IMC encontrado deve ser analisado, utilizando‑ VLDL. Os ácidos graxos livres também agem em tecidos peri‑ -se um referencial internacional como o da OMS (2006, 2007).24 féricos insulinodependentes, como o tecido muscular, compe‑ O diagnóstico do excesso de peso é baseado em percentis ou tindo com a captação de glicose pelas células. Ocorre diminui‑ escores z do IMC/idade, como mostrado na Tabela 1. ção da sinalização da insulina, em nível hepático e periférico, com instalação da resistência insulínica e subsequente hipe‑ Tabela 1 IMC/idade rinsulinemia compensatória.17 Percentil Escore z 0 a 5 anos 5 a 20 anos incompletos incompletos Ainda não há um critério bem estabelecido para o diagnós‑ tico de síndrome metabólica em crianças e adolescentes. Um > 85 e ≤ 97 > +1 e ≤ +2 Risco de Sobrepeso sobrepeso dos mais utilizados é o critério da IDF (International Diabetes > 97 e ≤ 99,9 > +2 e ≤ +3 Sobrepeso Obesidade Federation), que se baseia na distribuição central da gordura corporal (circunferência abdominal ≥ P90) e a presença de > 99,9 > +3 Obesidade Obesidade grave dislipidemia, glicemia alterada e hipertensão arterial.18 A pre‑ valência de síndrome metabólica, verificada em estudos com As pregas cutâneas, que fornecem indiretamente a quantidade crianças e adolescentes obesos, varia em função do critério de gordura corporal, também podem ser mensuradas. Há ne‑ diagnóstico utilizado.19 cessidade de treinamento adequado do profissional que irá A doença gordurosa do fígado não alcoólica pode ser encon‑ realizar essas medidas, pois os erros são muito frequentes. As trada em crianças e adolescentes obesos. O aumento de TG e mais utilizadas em crianças são a tricipital e a subescapular. A ácidos graxos livres circulantes contribui para o acúmulo de espessura da prega cutânea (em milímetros) é obtida por meio gordura no fígado, desencadeando a esteatose hepática, que de um plicômetro e deve ser comparada com valores de refe‑ tem possibilidade de progredir para esteato-hepatite e cirrose rência, como os da OMS.24
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A circunferência abdominal (CA) é um parâmetro impor‑ tante a ser avaliado no obeso, pois mede indiretamente os de‑ pósitos intra-abdominais de gordura. A adiposidade central (abdominal) está relacionada ao maior risco para o desenvol‑ vimento de morbidades associadas à obesidade. A medida é realizada com uma fita inextensível, no ponto médio entre a borda inferior da última costela e a borda superior da crista ilíaca. Valores elevados da CA (a partir do percentil 90), em crianças e adolescentes, são associados a alterações metabóli‑ cas, como resistência insulínica, dislipidemias, hipertensão arterial e ao maior risco cardiovascular.25 Sempre que possível, avaliar a composição corporal do obe‑ so. O método considerado padrão-ouro para essa avaliação é a absorciometria por dupla emissão de feixes de raio X ou DXA (dual-energy X-ray absorptiometry), que detecta a quantidade de massa magra e de massa gorda e fornece a distribuição ana‑ tômica da gordura corporal. Trata-se de método pouco invasi‑ vo e bastante utilizado para essa finalidade.26,27 Tratamento A abordagem multidisciplinar é considerada a maneira mais ade‑ quada para o tratamento da obesidade, porque, dessa forma, pre‑ tende-se contemplar seus diversos fatores etiológicos. A equipe de atendimento deve ser formada por pediatra, nutricionista, psicólogo e educador físico. O tratamento geralmente é de longa duração, sendo fundamental a adesão do paciente à equipe. O pediatra, ao realizar a anamnese, deve verificar a idade de início da obesidade e como está evoluindo a doença; os possíveis fatores desencadeantes e mantenedores; os antece‑ dentes familiares de obesidade, hipertensão arterial, dislipi‑ demias, diabete tipo 2 e doenças cardiovasculares; o nível de atividade física desenvolvido pela criança ou pelo adolescente; a presença de distúrbios de comportamento, escolaridade e di‑ nâmica familiar.28 Ao exame físico, deve-se avaliar adequadamente a pressão arterial e detectar possíveis complicações existentes, como pro‑ blemas posturais, ortopédicos, dermatológicos e respiratórios. Os exames subsidiários incluem a dosagem de TG, coleste‑ rol total e frações, glicemia e insulinemia de jejum, AST, ALT, gama-GT, US hepático e avaliação da composição corporal, que pode ser realizada por DXA. O grau de resistência insulíni‑ ca pode ser determinado pelo HOMA-IR. O acompanhamento nutricional visa à reeducação alimen‑ tar, que deve ser feita de forma gradativa. Após a anamnese alimentar e análise do dia alimentar habitual e/ou do registro alimentar de 3 dias, inicia-se a orientação alimentar indivi‑ dualizada, de acordo com a idade, o desenvolvimento puberal e a presença de comorbidades. Inicialmente, o paciente preci‑ sa ser orientado em relação a determinados comportamentos, como: não comer assistindo à TV ou fazendo outras atividades que desviem a atenção do alimento; prestar atenção a tudo que for ingerir; mastigar muito bem os alimentos; não utilizar líquidos com o objetivo de auxiliar a deglutição de alimentos mal mastigados, apenas após a sua deglutição; estabelecer as porções dos alimentos, sem repetições; respeitar os horários das refeições e não comer nos intervalos.29
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O consumo energético deve ser reduzido paulatinamente, sempre com o cuidado de não prejudicar o crescimento e o de‑ senvolvimento da criança ou do adolescente. Os regimes rígi‑ dos são contraindicados, pois podem levar à perda de massa muscular e à diminuição da velocidade de crescimento. A qualidade da dieta também necessita ser observada, cor‑ rigindo-se a ingestão inadequada, principalmente de micro‑ nutrientes. Nos casos de aumento do LDL-c, recomenda-se a redução do consumo de gorduras saturadas (< 7% do valor calórico to‑ tal da dieta), de gorduras trans (< 1% do valor calórico total da dieta) e de colesterol (< 200 mg/dia) e aumento do consumo de fibras solúveis. Deve-se considerar a terapêutica farmacoló‑ gica para os indivíduos com LDL-c persistentemente elevados (> 190 mg/dL sem outros fatores de risco para doenças cardio‑ vasculares ou > 160 mg/dL com outros fatores de risco presen‑ tes), após sucessivas tentativas de modificações na dieta e no estilo de vida.30 Quando ocorrer aumento de TG e diminuição do HDL-c (dislipidemia mais comum na obesidade), além do controle de peso e de mudanças no estilo de vida, orienta-se a diminuição da ingestão de carboidratos simples. As intervenções farma‑ cológicas não são recomendadas para crianças com elevação isolada de TG, a menos que seja muito acentuada (TG > 400 mg/dL), em razão do elevado risco de pancreatite.31 Nas crianças obesas hipertensas, a redução da quantidade de sódio na dieta é importante para a normalização dos níveis pressóricos. Recomenda-se ingestão máxima de 2,3 g/dia de sódio, que corresponde a aproximadamente 5 g de sal.32 Faz parte do tratamento da obesidade o incremento da ati‑ vidade física, que tem a finalidade de aumentar o gasto ener‑ gético e modificar o estilo de vida.33 São várias as vantagens da atividade física: mudanças na composição corporal (perda de massa gorda e preservação ou aumento da massa magra); mo‑ dificações no perfil lipídico; diminuição da resistência insulí‑ nica; diminuição da pressão arterial (exercícios leves e mode‑ rados); contribuição para a melhora dos estados de ansiedade, depressão e baixa autoestima. A indicação do tipo de exercício físico precisa respeitar as li‑ mitações e preferências de cada paciente para prevenir a perda de motivação, que ocorre frequentemente. O programa de exercícios tem que ser desenvolvido de maneira gradativa, priorizando as atividades aeróbicas e de baixo impacto para as articulações, realizadas regularmente. As atividades sedentá‑ rias (p.ex., horas gastas com TV, computador, videogame) de‑ vem ser reduzidas para 2 h/dia. O psicólogo desempenha papel importante na equipe, for‑ talecendo e mobilizando o paciente para suportar o tratamen‑ to, que em geral é lento e com muitos insucessos. Para aqueles pacientes que apresentam distúrbios emocionais mais graves, deve ser avaliada a necessidade de psicoterapia individual e/ ou familiar e também de acompanhamento psiquiátrico. O atendimento em grupo, realizado paralelamente ao aten‑ dimento individual, beneficia muito os adolescentes, pois eles já apresentam capacidade para entender as causas e conse‑ quências da obesidade. No grupo, eles têm oportunidade para
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discutir as dificuldades e os problemas comuns, conseguem se gãos governamentais, indústria alimentícia, sociedades cien‑ fortalecer mutuamente e ficam mais incentivados a controlar tíficas, mídia), com o objetivo de modificar o ambiente o peso, praticar exercícios físicos, aumentar o convívio social, “obesogênico”, que favorece a instalação da obesidade em indi‑ com melhora da autoestima e da adesão ao tratamento. víduos geneticamente predispostos. A participação da família, modificando hábitos alimentares A prevenção do excessivo ganho de peso é mais barata, e estilo de vida inadequados, é de fundamental importância mais fácil e mais eficiente do que o tratamento da obesidade e para o sucesso do tratamento da obesidade em crianças e ado‑ de suas comorbidades plenamente desenvolvidas. lescentes. Desafios Prognóstico As graves consequências da obesidade, as dificuldades para o A obesidade é uma doença de difícil controle, com altos per‑ seu controle, o aumento expressivo da sua prevalência e o alto centuais de insucessos terapêuticos e de recidivas, que acarre‑ custo para a sociedade fazem desse distúrbio nutricional rele‑ ta sérias repercussões orgânicas e psicossociais, especialmen‑ vante problema de saúde pública, que precisa ser combatido te nas formas mais graves.34 desde idades bem precoces. Quanto mais idade tiver a criança Crianças e adolescentes obesos têm grande risco de persis‑ e maior for o excesso de peso, mais difícil será a reversão do tirem obesos na fase adulta, com diminuição da expectativa quadro, em razão dos hábitos alimentares já incorporados e de vida, em razão do aumento da morbimortalidade por doen‑ das alterações metabólicas instaladas. ças cardiovasculares, diabete melito tipo 2, entre outras pato‑ logias associadas à obesidade.35,36 O risco de a obesidade na in‑ Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: fância continuar na vida adulta está relacionado ao tempo da • Reconhecer as principais consequências da obesidade. doença e à sua gravidade. As taxas de remissão diminuem e o • Fazer o diagnóstico do excesso de peso. risco de persistência aumenta com o avanço da idade e com a • Tratar a obesidade e as comorbidades mais frequentes. piora do grau do excesso de peso. • Entender a importância da prevenção precoce do Prevenção A prevenção da obesidade, na infância, pode ser feita a partir dos cuidados primários de saúde37, tendo o pediatra papel de destaque ao realizar o monitoramento ponderoestatural. Quando for verificado aumento excessivo de peso em relação à estatura em uma criança, principalmente com pais obesos, deve ser realizada com maior ênfase a orientação nutricional para evitar o desenvolvimento da obesidade, pois, uma vez instalada, fica muito mais difícil a reversão do quadro. Cabe ao pediatra a promoção do aleitamento materno exclusivo nos primeiros 6 meses de vida e complementado até os 2 anos, que protege contra o desenvolvimento da obesidade, o cuida‑ do com os alimentos complementares, tanto em relação à ida‑ de de introdução quanto à qualidade desses alimentos, assim como a observação de distúrbios da relação mãe-filho e da di‑ nâmica familiar, os quais, muitas vezes, interferem na esfera alimentar e contribuem para a instalação e manutenção da obesidade na infância. A participação da família é de fundamental importância, no sentido de modificar hábitos alimentares inadequados, ofere‑ cendo à criança uma alimentação saudável, com maior consu‑ mo de frutas, legumes e verduras e redução do consumo de alimentos com quantidades elevadas de açúcar, sal, gorduras e de bebidas com baixo valor nutricional, como refrigerantes e sucos artificiais. A família também deve diminuir o comporta‑ mento sedentário, estimulando a criança para ter um estilo de vida ativo. A troca de atividades sedentárias (tempo gasto com TV, computador, videogames) por passeios ao ar livre, cami‑ nhadas, andar de bicicleta, com o envolvimento dos pais, deve ser sempre incentivada. As potenciais estratégias para o controle da obesidade ne‑ cessitam da atuação de toda a sociedade (família, escola, ór‑
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excesso de peso.
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A NUTROLOGIA NA PREVENÇÃO DAS DOENÇAS DO ADULTO – DOENÇA CARDIOVASCULAR Maria Marlene de Souza Pires
Definição São definidas como doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) do adulto e que devem ser prevenidas na infância: obesidade, diabete melito tipo 2 (DM2) , hipertensão arterial sistêmica (HAS), dislipidemia, doença cardiovascular (DCV), osteoporose, síndrome metabólica (SM) e câncer. As DCNT do adulto são um dos grandes desafios para o século XXI, tan‑ to em termos de sofrimento humano quanto de prejuízo para a sociedade e economia dos países, particularmente países de baixa e média renda.1 Nenhum governo pode ignorar o cres‑ cente fardo das DCNT,2-4 portanto, nutrição, saúde materna e infantil, entre outros fatores (genética e ambiente) que são de‑ terminantes para a prevenção dessas enfermidades, devem estar entre as prioridades das políticas de saúde.5 O aumento da prevalência de DCNT do adulto é atribuído principalmente à transição nutricional que tem ocorrido nas últimas déca‑ das.3-5 O conceito de transição nutricional concentra-se em grandes alterações tanto na dieta quanto nos padrões de ativi‑ dade e inatividade física. O mundo tem passado por uma notá‑ vel mudança no comportamento alimentar, padrões de ativi‑ dade e inatividade física, composição corpórea e prevalência de DCNT e, entre elas há que se destacar a DCV como uma das principais causas de morte em todo o mundo. Apesar dos enormes esforços que têm sido empreendidos nas últimas décadas para o esclarecimento de sua patogênese e tratamento, bem como a sua prevenção na população e em nível individual e global, ainda são necessárias novas pesquisas.6 A identificação dos fatores de risco intimamente relacionados com a transição nutricional, das alterações na composição e in‑ gestão de alimentos e bebidas e da atividade física reduzida, que levam à aterosclerose, bem como da necessidade de interven‑ ções para modificação de estilo de vida associado a tratamento farmacêutico, é a base das políticas de prevenção.1,3,6-8 Epidemiologia Globalmente, estima-se que o número anual de óbitos por doen‑ ças infecciosas deverá diminuir, no entanto, o número anual de
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óbitos por DCNT deverá aumentar para 52 milhões em 2030.1 Em 2012, as principais causas de mortes por DCNT foram: • DCV (17,5 milhões – 46,2%); • cânceres (8,2 milhões – 21,7%); • doenças respiratórias, incluindo asma e doença pulmonar obstrutiva crônica (4 milhões – 10,7%); • DM2 (1,5 milhão – 4%).1,9 Essas quatro principais DCNT foram responsáveis por 82% das mortes globais. Mais de 3 milhões dessas mortes ocorre‑ ram antes de 60 anos de idade e poderiam ter sido preveni‑ das.1 Mundialmente, incluindo o Brasil, as DCV constituem a principal causa de morte,1,10 e é bem conhecido que crianças e adolescentes com fatores de risco cardiovascular têm aumen‑ tada sua taxa de progressão da aterosclerose na idade adul‑ ta.3,4,11 Entre esses fatores de risco, estão o excesso de peso e o estilo de vida inadequado.4 A prevalência de sobrepeso e obesidade está aumentando em todo o mundo, afetando todos os grupos de idade, e essas condições na infância são preditivas de obesidade, com todas suas consequências, em adultos.4 No Brasil, o sobrepeso e a obesidade têm aumentado em todas as faixas etárias, incluin‑ do crianças e adolescentes. A Pesquisa de Orçamentos Fami‑ liares (POF) de 2008-20094 mostrou dados contundentes em relação ao aumento da prevalência de sobrepeso e obesidade em crianças (5 a 9 anos de idade) e adolescentes (10 a 19 anos de idade) de 1974/1975 para 2008/2009. Durante esse perío‑ do, a prevalência de sobrepeso aumentou de 10,9% para 34,8% no sexo masculino e de 8,6% para 32% para o sexo fe‑ minino em crianças de 5 a 9 anos, e em adolescentes de 3,7% para 21,7% no sexo masculino e de 7,6% para 19,4% para o sexo feminino.4 A prevalência de obesidade também seguiu esse curso, com aumento do peso em crianças de 5 a 9 anos de idade de 2,9% para 16,6% no sexo masculino e 1,8% para 11,8% no sexo feminino, e em adolescentes também houve au‑ mento expressivo da prevalência de obesidade, de 0,4% para 5,9% no sexo masculino e 0,7% para 4% no sexo feminino.4
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Infelizmente, os novos dados da Pesquisa Nacional de Saú‑ de (PNS-IBGE/2015) referente a 2013 mostram resultados pessimistas em brasileiros com 18 anos ou mais.3,4,12 Compa‑ rando os dados da prevalência de excesso de peso e obesidade na POF 2002-2003/2008-2009 com a PNS-IBGE 2013, obser‑ vou-se aumento da prevalência de sobrepeso e obesidade em ambos os sexos, com maior expressividade no sexo feminino.3 Durante esse período, o sobrepeso aumentou de 42,4% para 57,3% no sexo masculino e de 42,1% para 59,8% no sexo femi‑ nino.3 Aumento similar foi observado na prevalência da obesi‑ dade nesse mesmo período: 9,3% para 17,5% no sexo masculi‑ no e 14% para 25,2% no sexo feminino.3 A prevalência de obesidade abdominal, obtida por meio da medida da circunferência abdominal (CA) na população brasi‑ leira com 18 anos ou mais, mostrou dados contundentes, com maior expressão no sexo feminino, considerando este um fa‑ tor de risco a mais para a gestante e seu filho.3 A obesidade ab‑ dominal está presente em 52,1% no sexo feminino e 21,8% no sexo masculino.3 Em relação a outros fatores de risco para DCV, como HAS, tabagismo, baixa atividade física, baixo con‑ sumo de frutas e legumes, entre outros, que são preditivos de aterosclerose subclínica, a mesma pesquisa estima que a pre‑ valência de HAS é de 22,3%, sendo 25,3% no sexo masculino e 19,5% no sexo feminino.3 Em suma, a morbidade e a mortalidade associadas a DCV continuam a infligir um pesado fardo para os pacientes, suas famílias e o sistema nacional de saúde, sendo necessária uma abordagem focada na sua prevenção com base em interven‑ ções baseadas em evidências.1 Fatores de risco para as doenças cardiovasculares Histórico familiar Uma história familiar positiva (HFP) de DCV precoce em pa‑ rentes de 1º grau confere um risco aumentado de acidente vas‑ cular cerebral (AVC) e doença arterial coronariana (DAC).13 Pesquisas têm apontado que a HFP deve ser utilizada como um dos marcadores para o risco de DCV e pode servir como uma ferramenta na identificação de indivíduos com alto risco de desenvolver essa enfermidade e, assim, ajudar na estratifi‑ cação de risco, intervenção e prevenção da DCV.13,14 Os indivíduos com hipercolesterolemia familiar não trata‑ da têm até 100 vezes mais risco de desenvolver aterosclerose e DCV no início da idade adulta em comparação com indivíduos não afetados.15,16 O risco será tanto maior quanto mais jovem for o familiar afetado, e também quanto maior for o número de familiares de 1º grau acometidos. Cabe ressaltar que a história familiar deve ser sempre atualizada. Também são incluídas nesse histórico familiar as informações sobre obesidade, HAS, dislipidemias, DM2 e tabagismo.13,15-17 Obesidade e morbidades associadas A obesidade tem papel central no desenvolvimento das reper‑ cussões adversas que compõem a SM, reconhecido fator de risco para o DM2 e as DCV.18 O principal interesse no tratamen‑ to da SM como uma entidade clínica é que a adição dos seus
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componentes aumenta drasticamente o risco de aterosclero‑ se.18 Nesse contexto, o tecido adiposo desempenha um papel central, juntamente com uma microbiota intestinal desequili‑ brada, evidência esta que se tornou relevante nos últimos anos. O aumento da adiposidade visceral central, a adição de dislipidemia e a disfunção endotelial aumentam ainda mais os fatores de risco.18 Há ainda que se ressaltar a presença da doen‑ ça hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA), que aumenta expressivamente o risco de um evento cardiovascular.19 Resultados de estudos que analisaram a contribuição da adiposidade na aterosclerose de carótida, em indivíduos com e sem SM, demonstraram que a obesidade promove clusters de fatores de risco cardiovascular.18 Esse cluster de fatores de risco cardiometabólico inclui obesidade abdominal, resistên‑ cia à insulina, dislipidemia aterogênica, triglicérides (TG) sé‑ ricos elevados, apolipoproteína (apo) B, aumento de partícu‑ las de lipoproteínas de baixa densidade (LDL-colesterol), redução do nível de colesterol da lipoproteína de alta densida‑ de (HDL-colesterol) e um estado pró-trombótico e pró-infla‑ matório.19,20 Obesidade materna, na criança e no adolescente Saúde materna e infantil deficiente tem sido associada a um risco aumentado de DCNT, incluindo obesidade, DM2, SM, DCV, entre outras. Além disso, restrição do crescimento fetal,21 efeitos adversos no nascimento e inadequado crescimento na infância têm sido associados com o aumento risco de desen‑ volvimento de DCNT do adulto, entre elas, a DCV.22,23 Estudos têm reportado que exposições adversas durante períodos críti‑ cos de plasticidade (desenvolvimento fetal e infantil) podem alterar a expressão genética e reestruturar permanentemente os tecidos do organismo, redefinindo, assim, metabolismo e função, com consequências em longo prazo.21,24 Alguns dados sugerem que as crianças com baixo peso ao nascer (BPN) mostram um aumento nos depósitos de gordura abdominal e níveis mais altos de algumas adipocitocinas, em comparação com crianças com peso de nascimento adequado.21 Essas adi‑ pocitocinas são responsáveis pela inflamação no tecido adipo‑ so e intravascular.21 Em um estudo realizado em uma popula‑ ção holandesa, incluindo crianças expostas à fome durante o 2º e o 3º trimestres da gravidez, verificou-se que essas crianças apresentaram maior prevalência de HAS, TG elevado e CA au‑ mentada.21 A obesidade materna, o ganho de peso inadequado e a adiposidade estão associados com resultados negativos para as mulheres, com prejuízos para a gestante e o feto, in‑ cluindo aumento do risco de diabete melito gestacional (DMG), pré-eclâmpsia, parto prematuro, óbitos fetais e baixas taxas de amamentação e de crescimento fetal.25,26 Portanto, tanto a obesidade materna quanto a infantil e a do adolescente devem ser consideradas como importantes proble‑ mas de saúde pública em todo o mundo e um dos principais fa‑ tores de risco para o desenvolvimento de DCV, HAS, dislipide‑ mia e alterações no metabolismo da glicose. Além de obesidade, BPN é outro fator de risco independente associado com o de‑ senvolvimento de DCV e DM2.21 Na criança e no adolescente,
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componentes da SM, como adiposidade central, resistência in‑ sulínica, hiperinsulinemia, hipertensão arterial e anormalida‑ des no perfil das lipoproteínas, também podem se sobrepor, au‑ mentando o risco para as DCV.27 Pesquisas têm mostrado que crianças obesas e com valores elevados de CA apresentam maior risco para o desenvolvimento da SM quando adultas. Portanto, há que se considerar que a obesidade abdominal é um importante fator de risco para DCV, com forte associação entre SM na infância e SM na fase adulta.27-29 Adiposidade (sobrepe‑ so, obesidade e obesidade abdominal) é, portanto, um podero‑ so fator de risco para a DCV e é reconhecido nas diretrizes de rastreio e tratamento da obesidade para adultos e crianças.30 A resistência insulínica também tem importante papel nas alterações das lipoproteínas, como o aumento dos níveis de TG e LDL-colesterol e a diminuição do HDL-colesterol. Dados obtidos do Bogalusa Heart Study mostraram que crianças obe‑ sas, quando comparadas com crianças de peso adequado, ti‑ nham maiores chances de apresentar níveis elevados de coles‑ terol total, LDL-colesterol e TG, além de hiperinsulinemia.31,32 Hipertensão arterial sistêmica A elevação da pressão arterial desempenha um papel motor na ativação de crescimento do ventrículo esquerdo por meio de sobrecarga hemodinâmica crônica e aumento da pressão central.33 A hipertrofia ventricular esquerda (HVE) de forma independente prevê aumento da morbidade e mortalidade por DCV.34 Durante as últimas décadas, evidências de estu‑ dos epidemiológicos e clínicos têm indicado que a presença de adiposidade é um forte preditor de HVE.34 As pesquisas do Bogalusa Heart Study observaram que o índice de massa corpórea (IMC) tem um impacto maior sobre HVE do que a pressão arterial (PA). Esses resultados suportam a noção de que a influência adversa em longo prazo dos níveis aumenta‑ dos de IMC e da PA no desenvolvimento de HVE começa na infância, e que o duplo fardo da adiposidade excessiva e PA elevada afeta o ventrículo esquerdo cumulativamente du‑ rante a vida.34 Dislipidemias Grandes estudos de coorte têm demonstrado que o tabagismo e a dislipidemia são os dois fatores de risco mais importantes para o infarto do miocárdio, seguido de DM2, HAS e obesida‑ de.6 Dentre esses fatores, muitos estudos longitudinais já veri‑ ficaram significativas correlações entre perfil lipídico altera‑ do,14,17 ou seja, LDL-colesterol e TG aumentados, HDL-colesterol reduzido e eventos coronarianos.6,15,28,35-39 Hoje em dia, a redu‑ ção dos níveis de LDL-colesterol continua a ser o principal alvo para a prevenção primária de doenças cardiovasculares,6 sen‑ do marcador de DAC. Os resultados do Attica Study sugerem que, à semelhança de outras populações norte-americanas e europeias, a dislipidemia é um forte fator de risco para DCV.6 Portanto, uma vez que existe uma grande quantidade de dados sobre as principais causas de DCV, e não há uma evidência ine‑ quívoca de que a modificação dos fatores de risco pode reduzir a mortalidade, aumentar a esperança de vida e a qualidade de vida, são necessários planos e estratégias de saúde pública efi‑
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cazes, baseados em evidências e capazes de estimar correta‑ mente o risco de DCV.6,40 Considerando que o colesterol sérico geralmente apresenta comportamento padrão ao longo da vida, reforça-se a impor‑ tância da avaliação do perfil lipídico nas crianças e nos adoles‑ centes, especialmente naqueles que apresentam fatores de risco para as DCV.6,39 Diante da gravidade do cenário mundial, a The National Lipid Association recomenda o rastreamento do colesterol universal a partir de 2 anos de idade em pacien‑ tes com história de DCV em parentes de 1º grau.14,38 Dieta, atividade física e sedentarismo A inflamação crônica é conhecida por desempenhar um papel significativo na fisiopatologia de numerosas doenças crônicas, entre elas a DCV. Assim, o impacto de fatores dietéticos sobre a inflamação pode fornecer a chave na redução do risco de doença crônica.41 O consumo em excesso de alimentos com ácidos graxos saturados e gordura trans está associado a risco de DCV, aumento dos níveis séricos LDL-colesterol, redução do HDL-colesterol e aumento da lipoproteína (mudanças pró‑ -inflamatórias, disfunção endotelial). Por outro lado, efeitos protetores e menor risco para desenvolver DCV estão associa‑ dos ao consumo de dietas ricas em gorduras insaturadas (mono e poli-insaturadas). Níveis mais adequados de coleste‑ rol e TG séricos são observados em populações com hábito de consumir peixe regularmente, assim como o consumo de óleo de oliva é relacionado aos melhores níveis de HDL-colesterol.42 A atividade física está associada a resultados positivos para a saúde, enquanto a inatividade física está relacionada a um maior risco de vários problemas de saúde, incluindo obesida‑ de e DCV.43 A atividade física tem sido reconhecida como um comportamento fundamental de saúde em crianças, sendo re‑ comendada para crianças e adolescentes a prática da ativida‑ de física de intensidade moderada a vigorosa com duração de 60 minutos por dia.44 Em relação a atividade física e DCV, são raros os estudos encontrados na literatura com o foco em crianças e adolescentes.9,45-47 Muitos deles apresentam proble‑ mas metodológicos, principalmente relacionados à seleção da amostra e mensuração da atividade física, dificultando estabe‑ lecer clara relação de causa e efeito entre atividade física e per‑ fil de lipoproteínas. Dados do Muscatine Study48 mostraram que estudos longitudinais desde a infância até a adolescência têm o potencial de definir mudanças nos fatores de risco de DCV e podem fornecer informações sobre a previsão de futu‑ ras DCV. Foram avaliadas aptidão aeróbia, força muscular, ati‑ vidade vigorosa e sedentarismo, maturação, pressão arterial, lipídios e composição corpórea em 125 crianças saudáveis por um período de 5 anos (idade média de início do estudo, 10,5 anos). Todos os indivíduos estavam em pré-puberdade preco‑ ce ou na linha de base. Após o ajuste para idade e sexo e consi‑ derando os efeitos de confusão de crescimento e maturação, foram examinadas as alterações na aptidão e na atividade du‑ rante os primeiros 4 anos do estudo. Os resultados mostraram que o aumento de aptidão física pode ajudar a reduzir a preva‑ lência de obesidade na adolescência e provocar mudanças be‑ néficas na relação CT/HDL-colesterol e no LDL-colesterol.48
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Estratégias de prevenção da doença • orientar sobre introdução adequada de alimentos comple‑ cardiovascular mentares, banho de sol e proteção solar, qualidade do sono, Pesquisas têm mostrado que os fatores de risco para DCV são brincadeiras e brinquedos, vitamina D e ferro, entre outros.50 multifatoriais, sendo alguns modificáveis e outros não modifi‑ cáveis (idade, hereditariedade e sexo). Os fatores de risco mo‑ A orientação e os cuidados já devem iniciar na consulta pré‑ dificáveis para DCV são comportamentais, relacionados a in‑ -natal, com orientações à gestante quanto a nutrição, estado gestão de dieta rica em gordura saturada, carboidrato simples e nutricional, atividade física e hábitos de vida. O ambiente, no sódio, inatividade física, tabagismo e consumo excessivo de ál‑ momento da concepção e durante a gestação, influencia de cool, bem como cuidados relacionados aos primeiros mil dias e forma permanente a estrutura, a função e o metabolismo dos infância e adolescência.45,49 Diante desse quadro, a puericultu‑ órgãos-chave, conduzindo a um risco aumentado, para a ges‑ ra é um cenário promissor para intervenção comportamental tante e seu filho, de doenças como obesidade, DM2, DCV, com foco na prevenção, durante a infância, de DCNT do adulto. HAS, entre outras.51 Apesar das diferenças na organização e na prestação de servi‑ Ao nascimento, os cuidados devem ser mantidos com o ços de puericultura ao redor do mundo, essa forma de aborda‑ acompanhamento da lactante e do lactente mensalmente no 1º gem é considerada uma definição importante para prevenção, ano e bimestralmente no 2º ano de vida, para uma adequada quando realizada adequadamente. Os cuidados de puericultu‑ monitoração do crescimento e desenvolvimento. A monitora‑ ra são fontes de saúde, confiança, informação, intervenção e ção rigorosa do crescimento e desenvolvimento é importante, relacionamento com a família. Além disso, podem também tendo em vista que os dois primeiros anos de vida são funda‑ vincular crianças e famílias aos recursos da comunidade, for‑ mentais e considerados críticos, quando a promoção da saúde necendo um apoio adicional para a construção e a manutenção e a ocorrência de agravos podem ter consequências positivas de comportamento saudável, relacionados aos hábitos de vida. ou negativas em curto, médio e longo prazo, segundo os con‑ O pediatra deve estar atento às 15 competências para otimi‑ ceitos de programação metabólica (PM). A orientação nutri‑ zar a sua puericultura:50 cional e o estímulo a um hábito de vida ativo, entre outras 1. Monitoração do crescimento. ações, podem intervir positivamente, prevenindo, reduzindo 2. Monitoração do desenvolvimento neuropsicomotor. ou postergando morbidades que, além de interferirem no cres‑ 3. Avaliação/monitoração da visão/audição. cimento, podem desencadear DCNT do adulto.22,51 O conceito 4. Avaliação ortopédica (quadril, coluna, marcha). de PM, no qual um agravo ou insulto em fases precoces da 5. Orientação nutricional. vida, consideradas críticas para o crescimento/desenvolvi‑ 6. Saúde bucal. mento, pode causar indução, deleção ou desenvolvimento de‑ 7. Saúde cardiovascular. bilitado de uma estrutura somática ou alteração fisiológica 8. Saúde óssea/proteção solar. com consequências na saúde em longo prazo, está cada vez 9. Atividade física. mais sedimentado.22,52 Com o avanço dos conhecimentos so‑ 10. Saúde escolar. bre os mecanismos epigenéticos, ou seja, sobre a forma como 11. Imunizações. o ambiente influencia o fenótipo, tornou-se mais relevante a 12. Lesões não intencionais. hipótese de que é possível intervir no risco de desenvolvimen‑ 13. Segurança alimentar. to de algumas doenças. Assim, a adequada nutrição, incluindo 14. Ecopediatria. o aleitamento materno como prioridade, o afeto e o estímulo a 15. Papel da família e dos brinquedos. um estilo de vida ativo e saudável são fundamentais.22,52,53 A qualidade e a quantidade dos nutrientes e cuidados ge‑ Para tanto, o pediatra deve se apoiar e se atualizar por meio da rais recebidos pela gestante, feto, recém-nato, lactante e lac‑ literatura médica e da epidemiologia e atuar segundo os con‑ tente influenciam o seu crescimento/desenvolvimento e o sensos e protocolos instituídos. Ao cumprir esses pontos, a aparecimento de DCNT do adulto.22,52,53 O estado nutricional prevenção da DCV poderá ser atendida adequadamente. A in‑ materno é um dos pilares determinantes na programação me‑ clusão dessas 15 competências do pediatra na puericultura é tabólica e na composição corpórea fetal.22,52,53 Intervenções prioritária, tendo em vista que elas estão ligadas a nutrição, di‑ precoces devem ser direcionadas à nutrição apropriada antes reta ou indiretamente, e seu foco principal é promover a saúde e durante a gravidez, à promoção do aleitamento materno, à e evitar agravos que possam interferir no processo do cresci‑ prevenção de ganho rápido de peso durante a infância e à pro‑ mento e desenvolvimento da criança. Atitudes na tomada de moção de um estilo de vida saudável.16,22,52,53 decisão incluem: A puericultura feita adequadamente com foco na preven‑ • informar e orientar à mãe sobre seu estado nutricional e de ção primária deve ser estimulada com o objetivo de promover seu filho e os riscos; mudanças de estilo de vida e dieta na população em geral. Os • reforçar a importância da sua dieta e a do seu filho; Departamentos Científicos de Nutrologia e de Aleitamento • orientar sobre os riscos do leite de vaca e a importância do lei‑ Materno da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) adotam a te materno (LM); recomendação da OMS e do Ministério da Saúde (MS) para • na ausência do LM, informar que a melhor escolha é a fórmu‑ que seja mantido o aleitamento materno exclusivo até os 6 la infantil; meses de idade. A partir desse período, está indicada a intro‑
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dução da alimentação complementar, e deve-se estimular a Além de atividade física, alimentação e qualidade do sono, manutenção do aleitamento materno até os 2 anos de idade outro fator importante e agravante é o tabagismo. É importan‑ ou mais, de acordo com a vontade da mãe e da criança, lem‑ te alertar sobre os malefícios do tabagismo sobre a saúde car‑ brando e pontuando que essa continuidade deve ser nutritiva. diovascular. Essa orientação deve incluir alertas sobre tabagis‑ É importante ressaltar que o consumo precoce de alimentos mo dos pais e os efeitos de ser fumante passivo (em casa, na complementares interfere negativamente na manutenção do escola, no trabalho).55 aleitamento materno.51 A introdução da alimentação complementar deve ser varia‑ Desafios da e balanceada, de acordo com as recomendações da pirâmi‑ Reconhecendo o impacto das DCNT do adulto sobre a saúde do de alimentar para cada faixa etária, destacando-se os seguin‑ ser humano e as consequências em nível social e econômico, os tes aspectos: líderes mundiais adotaram uma declaração política com com‑ • equilibrar a ingestão energética com as necessidades de ener‑ promissos fortes para enfrentar o fardo mundial das DCNT do gia para o crescimento e desenvolvimento normais; adulto. Um deles foi o desenvolvimento do Plano de Ação Glo‑ • fazer substituições apropriadas para manter o peso corpóreo bal da OMS para prevenção e controle de doenças não transmis‑ adequado ou perder peso, quando necessário; síveis 2013-2020, incluindo 9 metas globais, as quais têm como • estimular o consumo de frutas, legumes, verduras, grãos inte‑ foco a importância de priorizar ações para reduzir o uso nocivo grais, peixes, aves e carnes vermelhas magras; do álcool, atividade física insuficiente, ingestão excessiva de sal, • até 2 anos, não restringir a ingestão de gorduras; tabagismo, prevenir/controlar a HAS, obesidade e DM2:49 • após 2 anos, limitar a ingestão de alimentos ricos em gorduras • Meta 1 – Redução relativa da mortalidade geral por DCV, cân‑ saturadas (< 10% das calorias/dia), colesterol (< 300 mg/dia) cer, DM2 ou pelas doenças respiratórias crônicas em 25%.
e ácidos graxos trans; • Meta 2 – Redução relativa do uso nocivo do álcool em pelo • limitar a ingestão de sal (< 5 g/dia) e açúcar.2,51,54 menos 10%, conforme o caso, no contexto nacional.
• Meta 3 – Redução relativa da prevalência de atividade física Saúde escolar, saúde óssea e atividade física insuficiente em 10%.
Os programas de saúde escolar, que, além da atividade física, • Meta 4 – Redução relativa da média populacional de ingestão também dispõem de cantinas e cardápios nutricionais saudá‑ de sal ou sódio em 30%.
veis,51 devem ter estratégias com foco na promoção da saúde. • Meta 5 – Redução relativa da prevalência de tabagismo em Antes da orientação da programação de exercícios físicos e da 30%, em pessoas com 15 anos ou mais.
dieta correta para essa prática (crianças e adolescentes), de‑ • Meta 6 – Redução relativa de 25% na prevalência de HAS ou vem ser investigados: contenção da prevalência de HAS, dependendo das circuns‑ • exame físico e avaliação do estado nutricional; tâncias do país.
• atividade física desenvolvida por eles no ambiente escolar e • Meta 7 – Bloqueio do aumento da DM2 e da obesidade.
fora dele; • Meta 8 – Tratamento farmacológico e aconselhamento (in‑ • atitude da família quanto à participação em programas de cluindo o controle glicêmico) de pelo menos 50% das pessoas exercícios físicos, jogos, brincadeiras; que o necessitam para prevenir ataques cardíacos e acidentes • acesso da criança ou do adolescente a locais próprios para a cerebrovasculares.
prática de exercícios físicos; • Meta 9 – 80% de disponibilidade de tecnologias básicas e me‑ • tempo gasto pela criança ou pelo adolescente em atividades dicamentos essenciais, incluídos os genéricos, necessários sedentárias; para tratar as principais DCNT, acessíveis em centros públi‑ • idade relacionada à atividade física escolhida.9,51 cos e privados. Após a anamnese e o exame físico, deve ser orientada ativida‑ de física moderada a intensa durante, no mínimo, 60 minutos diários; essa atividade física deve ser lúdica. Para os adoles‑ centes, também são recomendados exercícios de resistência (10 a 15 repetições) de moderada intensidade, combinados com atividade aeróbica; deve-se também limitar o tempo gas‑ to com atividades sedentárias para 2 horas diárias (p.ex., TV, computador, videogames, tempo ao celular).51 Apesar de serem necessários mais estudos de longo prazo em crianças e adolescentes para se conhecer claramente o pa‑ pel da atividade física nas modificações do perfil lipídico, está bem estabelecido o benefício do exercício físico no controle do peso corpóreo para os indivíduos com obesidade. Estilo de vida fisicamente ativo na infância, além dos benefícios a saú‑ de, predispõe a maior atividade física na vida adulta.51
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) do adulto que devem ser prevenidas na infância. • Identificar fatores de risco para DCNT, principalmente fatores de risco para doença cardiovascular (DCV). • Identificar quais fatores de risco são preveníveis e quais não são. • Conhecer o papel da obesidade no desenvolvimento das repercussões adversas relacionadas a DCV. • Conhecer o papel da adiposidade visceral e sua relação com a DCV. • Identificar a resistência insulínica e seu papel nas alterações das lipoproteínas, como o aumento dos níveis de TG e LDL-colesterol e a diminuição do HDL ‑colesterol.
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• Saber que a elevação da pressão arterial desempenha um papel motor na ativação de crescimento do ventrículo esquerdo por meio de sobrecarga hemodinâmica crônica e aumento da pressão central, e conhecer sua relação com a morbidade e a mortalidade por DCV. • Identificar a importância do rastreamento sérico das lipoproteínas e sua relação com a DCV. • Considerar a importância da avaliação do perfil lipídico nas crianças e nos adolescentes, especialmente naqueles que apresentam fatores de risco para as DCV (história de DCV precoce nos pais ou avós; dislipidemia nos pais, presença de obesidade, HAS, DM2, tabagismo, uso de medicamentos que alteram o perfil lipídico, entre outros). • Orientar hábitos de vida saudáveis, incluindo leite materno exclusivo, introdução de alimentação complementar adequada e atividade física.
Referências bibliográficas 1.
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CAPÍTULO 8.2
A NUTROLOGIA NA PREVENÇÃO DAS DOENÇAS DO ADULTO – OSTEOPOROSE Marileise dos Santos Obelar
Definição A osteoporose é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma doença metabólica óssea sistêmica, carac‑ terizada por diminuição da massa óssea e deterioração da mi‑ croarquitetura do tecido ósseo, com consequente aumento da fragilidade óssea e da suscetibilidade a fraturas.1-3 A doença pode ser uniforme ou afetar com maior intensidade determi‑ nados sítios ósseos.1,2 Na osteopenia, há também diminuição da massa óssea, mas sem comprometimento da sua microar‑ quitetura. Ainda que a osteoporose seja uma enfermidade do adulto, também pode ocorrer em crianças e adolescentes, porém com características particulares, no que se refere a definição, diag‑ nóstico, tratamento e prevenção.4 Além disso, apesar de fazer parte do processo natural de envelhecimento, a osteoporose, no conhecimento atual, tem suas origens na infância, quando medidas preliminares preventivas já devem ser estabelecidas.5 Epidemiologia A osteoporose é uma importante causa de morbidade e morta‑ lidade com significativo impacto social e econômico à saúde pública em todo o mundo. Um estudo realizado na União Eu‑ ropeia mostrou que aproximadamente 6% dos homens e 21% das mulheres entre 50 e 84 anos de idade apresentavam os‑ teoporose.6 No ano de 2020, estima-se que metade dos ameri‑ canos acima de 50 anos terão risco de sofrer fraturas conse‑ quentes a osteoporose.7 Ao redor dos 50 anos de idade a probabilidade de um indi‑ víduo apresentar fratura durante o tempo de vida remanes‑ cente é de 22 e 46%, para o sexo masculino e feminino, respec‑ tivamente.6 Fatores de risco, etiologia e abordagem clínica Vários fatores determinam a taxa de acréscimo ósseo. Fatores intrínsecos como a herança genética, o sexo e a raça não po‑
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dem ser modificados. Já fatores extrínsecos como o peso, a composição corporal, o tabagismo, o consumo de álcool ou be‑ bidas carbonatadas, como os refrigerantes, a nutrição, princi‑ palmente a ingestão de nutrientes como cálcio, vitamina D, proteínas e sódio, a prática de atividade física, o uso de deter‑ minadas drogas e a presença de doenças crônicas podem exer‑ cer modificações com importantes efeitos em curto e longo prazos à saúde óssea.8 Alguns genes como os relacionados ao receptor de vitamina D, ao IGF1 (insulina-like growth factor 1), ao receptor de estrogênio alfa e ao receptor de calcitonina es‑ tão envolvidos na determinação da massa óssea e do risco de osteoporose. O acréscimo ósseo parece ser determinado pelo gene codificador do receptor da lipoproteína de baixa densida‑ de relacionada a proteína 5.5,9,10 Os indivíduos do sexo masculino possuem maior massa ós‑ sea que os do sexo feminino, relacionada a diferenças no con‑ teúdo de cálcio, a geometria e ao tamanho ósseos.5,10 As pes‑ soas de raça negra têm maior massa óssea que as de outros grupos étnicos.11,12 Os prematuros, particularmente os nasci‑ dos com < 28 semanas de idade gestacional, apresentam risco significativo de redução do conteúdo mineral ósseo e de apre‑ sentar doença óssea, pois a maior parte da mineralização in‑ trauterina ocorre no terceiro trimestre.13 Na criança com doença crônica, também há comprometi‑ mento da mineralização óssea, com maior risco do desenvol‑ vimento de fraturas em razão da redução da mobilidade, má absorção intestinal, produção de citocinas inflamatórias, uso de medicamentos que interferem no metabolismo ósseo, como anticonvulsivantes ou corticosteroides sistêmicos, dis‑ túrbios do desenvolvimento puberal e presença de desnutri‑ ção.14 A recorrência de fraturas em indivíduos jovens saudá‑ veis pode ser um indicador de fragilidade óssea subjacente.12 Algumas condições clínicas, genéticas ou adquiridas, que comprometem a qualidade e a quantidade do acréscimo ósseo, levando ao desenvolvimento precoce de osteoporose, estão exemplificadas na Tabela 1.15
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Tabela 1 Causas primárias e secundárias de osteoporose em Pediatria Primárias
Secundárias
Osteogênese imperfeita
Doenças reumatológicas
Síndrome de Bruck
Doenças inflamatórias intestinais
Osteoporose idiopática juvenil
Fibrose cística
Síndrome de Turner
Paralisia cerebral Distrofia muscular Deficiência do hormônio de crescimento Síndrome de Cushing Anorexia nervosa Aids Doenças neoplásicas Insuficiência renal crônica Medicamentos que interferem no metabolismo ósseo, quimioterápicos, anticonvulsivantes, inibidores de bomba de prótons, corticosteroides, inibidores da recaptação de serotonina
Apesar de os fatores genéticos serem responsáveis pela de‑ terminação de até 70% da variabilidade da massa óssea, atin‑ gir o potencial genético requer a otimização dos fatores modi‑ ficáveis.16 A aquisição de massa óssea desde o início da formação do indivíduo é considerada como o fator determinante modificá‑ vel mais importante da saúde esquelética ao longo da vida.5 É importante, durante as consultas de avaliação da saúde da criança, a investigação do pediatra quanto à saúde óssea, que é recomendada no mínimo nos períodos do início da fase pré-escolar ao final da fase escolar e anualmente durante a adolescência. Deve-se questionar sobre a frequência e a quan‑ tidade de ingestão de alimentos lácteos e de fontes não lácteas de cálcio e vitamina D; uso de suplementos de cálcio e vitami‑ na D; duração e frequência de exposição solar e área corporal exposta; consumo de bebidas carbonatadas; exposição ao fumo ativa ou passiva, hábito de consumo de álcool pelos ado‑ lescentes e realização de atividade física, qual o tipo e a fre‑ quência.17 Diagnóstico O principal método de avaliação da mineralização óssea é a densitometria com dupla emissão de raio X (DXA), que mede o conteúdo mineral ósseo e calcula a área de densidade mine‑ ral óssea (DMO). A OMS define DMO adequada em adultos valores obtidos na DXA até mais ou menos 1 desvio-padrão (DP), em relação aos valores médios observados em indiví‑ duos jovens saudáveis (escore T). Assim, são consideradas os‑ teopenia DMO que apresente escore Z entre -1 e -2,5 DP, e os‑ teoporose quando o escore Z da DMO é < -2,5 DP. Para crianças, esses valores devem ser ajustados, segundo a idade e o sexo, utilizando-se o escore Z e não o escore T na sua interpreta‑ ção.4,18 Valores de DMO ≤ -2 devem ser considerados como bai‑
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xa densidade mineral ou baixa massa óssea. Os aparelhos dis‑ poníveis apresentam software com valores padrão de referência para interpretação de valores para crianças maiores de 5 anos. No paciente pediátrico, os sítios preferenciais reco‑ mendados para aferição da DMO são o corpo total, exceto a ca‑ beça, e a coluna. A osteoporose é definida em pediatria quan‑ do houver 1 ou mais fraturas por compressão vertebral (esmagamento), na ausência de doença local ou trauma de alto impacto ou quando houver história de fratura clinicamen‑ te significativa associada a escore DMO Z ≤ -2. Considera-se história de fratura clinicamente significativa apresentar duas ou mais fraturas de ossos longos na idade de 10 anos ou três ou mais fraturas de osso longos em qualquer idade até 19 anos. O diagnóstico de osteoporose em crianças e adolescentes não deve ser realizado baseando-se exclusivamente em critérios de densitometria. As diretrizes internacionais recomendam que, em crianças e adolescentes com risco de fragilidade óssea e osteoporose, a primeira DXA seja solicitada quando o pa‑ ciente possa se beneficiar da intervenção e quando o resultado obtido possa interferir no manejo clínico. Um novo exame de DXA para monitoração do processo, se indicado, deve ser reali‑ zado com intervalo mínimo de 6 a 12 meses.12,18 Tratamento Nas situações clínicas de risco, a conduta na fragilidade óssea inclui otimização da nutrição e da atividade física para promo‑ ção da qualidade do tecido ósseo e tratamento e monitoração das doenças associadas ao comprometimento da saúde óssea. Em condições clínicas como a alergia à proteína do leite de vaca e para crianças e adolescentes que não consomem quan‑ tidades suficientes de cálcio a partir de fontes da dieta, a su‑ plementação de cálcio pode ser necessária. As apresentações mais comuns de cálcio suplementar são o carbonato e o citrato de cálcio, que têm respectivamente 40 e 21% de cálcio elemen‑ tar. O carbonato deve ser ingerido junto às refeições.17 A triagem da deficiência de vitamina D deve ser realizada por meio da dosagem sérica da 25-OH- vitamina D, que é reco‑ mendada para pacientes que apresentam risco aumentado de fragilidade óssea e que apresentam fraturas recorrentes de bai‑ xo impacto. Em prematuros, a dosagem sérica de 25-OH-vita‑ mina D é um índice útil para a avaliação do estado de vitamina D, que necessita ser monitorado nas primeiras semanas de vida, para correção da deficiência, naqueles nascidos de mães com estado de vitamina D comprometido.19 A dosagem sérica de 25-OH-vitamina D ≥ 20 ng/mL é considerada normal para crianças saudáveis, embora alguns considerem que níveis maiores, ≥ 30 ng/mL, poderiam ser desejáveis para a popula‑ ção que apresenta maior risco de fratura.17 Se constatada defi‑ ciência, o tratamento deve ser instituído conforme recomen‑ dações do Departamento de Nutrologia da SBP e AAP.20 Os bifosfonatos inibem a reabsorção osteoclástica e têm sido utilizados para aumentar a DMO e reduzir o risco de fra‑ turas, nas crianças com osteogênese imperfeita, mostrando redução da dor e fraturas associadas e aumento da DMO.21 Há alguns estudos também em crianças com doenças do tecido conjuntivo e crianças que utilizam terapia prolongada
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com corticosteroides, entretanto, seu uso em pediatria perma‑ nece controverso em razão dos efeitos adversos e sua meia-vi‑ da longa.17 Portanto, compete ao pediatra estar atento aos fatores e às situações clínicas que envolvam risco para o desenvolvimento de osteoporose, com o objetivo de condução adequada da in‑ tervenção terapêutica que se constitui em: • orientação alimentar para a saúde óssea; • orientação de atividade física para a saúde óssea; • suplementação nutricional e ou medicamentosa. Prevenção O pediatra deve estimular o consumo diário de alimentos ricos em cálcio, como o leite e seus derivados, e também alimentos ricos em vitamina D (apesar de fontes naturais bastante limi‑ tadas) como os peixes gordurosos (salmão, sardinha e atum) e o óleo de fígado de bacalhau, além de alimentos fortificados. É recomendada a ingestão de 2 a 3 porções de lácteos, para crianças entre 4 e 8 anos, e 4 porções para adolescentes, sendo uma porção correspondente a 240 mL de leite ou iogurte, ou 45 gramas de queijo. Não existem benefícios comprovados quanto a suplementação medicamentosa de cálcio para crian‑ ças e adolescentes saudáveis.17 Na Tabela 2 estão as recomendações de ingestão diária de cálcio e vitamina D para crianças e adolescentes. Tabela 2 Recomendações de cálcio e vitamina D para crianças e adolescentes Recommended Dietary Allowance (RDA) e Adequate Intake (AI) Idade
Cálcio (mg/dia)
Vitamina D (UI/dia)
0 a 6 meses
200*
400**
6 a 12 meses
260*
400**
1 a 3 anos
700
600
4 a 8 anos
1.000
600
9 a 13 anos
1.300
600
14 a 18 anos
1.300
600
14 a 18 anos/gestante/ lactante
1.300
600
> 19 anos/gestante/ lactante
1.000
600
AI. * Para crianças de 0 a 12 meses de idade considera-se a ingestão adequada (AI). Fonte: Institute of Medicine. Dietary Reference Intake, 2011.22
A suplementação de vitamina D é recomendada para lactentes amamentados com leite materno, 400 UI até 1 ano de idade, a menos que a mãe esteja usando suplementos de 60.000 UI/d, ou que a criança tenha exposição solar direta da pele, durante 30 minutos semanais, vestindo apenas fraldas, ou 17 minutos diários expondo apenas as mãos e a face. As crianças cuja ali‑ mentação seja fórmula infantil não precisarão receber a suple‑ mentação se aceitarem pelo menos 1 litro da fórmula por dia ou também se apresentarem exposição solar adequada. A dose diária recomendada para > 1 ano de idade é de 600 UI, e aquelas que estiverem usando medicamentos como anticon‑ vulsivantes ou corticosteroides poderão necessitar até 2 vezes
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a dose da recomendação para manter os níveis séricos adequa‑ dos de vitamina D.17 É importante a promoção da realização de atividades físi‑ cas que apresentem alguma resistência como caminhar, saltar, correr, dançar, subir escadas para otimizar a aquisição de mas‑ sa óssea.17 A osteoporose é uma doença crônica do adulto, no entanto, sua prevenção depende da atuação do pediatra, tendo em vis‑ ta que a DMO do adulto depende do pico de massa óssea ad‑ quirido até o final da 2a década de vida. Cabe, portanto, ao pe‑ diatra, atuar na prevenção dessa enfermidade, identificando fatores de risco, orientando sobre a importância de hábitos de vida saudável e promovendo alternativas para que crianças e adolescentes atinjam a melhor qualidade de massa óssea pos‑ sível. Desafios É de fundamental importância que o binômio saúde e educa‑ ção atue como educação em saúde, iniciando na puericultura da gestante e continuando na pré-escola, escola, universidade e comunidade, em parceria com a mídia. Tendo em vista que a saúde óssea está na dependência também de uma gestação ótima, as janelas de oportunidades nos primeiros mil dias constituem-se uma prioridade. Educação em saúde deve ser uma disciplina adaptada às diferentes idades, com foco nas doenças crônicas não trans‑ missíveis, entre elas, a osteoporose. As ferramentas para essa educação podem se valer da tecnologia atual, com o uso de jo‑ guinhos, sites e atividades interativas na escola, entre os alu‑ nos, em parceria periódica com os pais. O governo deve estar comprometido para que ações assim sejam viáveis. A parceria com a mídia e o seu compromisso com a promoção da saúde viabilizaria a divulgação da impor‑ tância da saúde óssea. O maior desafio é conseguir o apoio dos órgãos governamentais, no que se refere a recursos, dirigidos para saúde, educação e para a manutenção de projetos robus‑ tos e interativos. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar fatores de risco para osteoporose. • Indicar exames para a avaliação da saúde óssea. • Orientar medidas promotoras da saúde óssea. • Intervir preventivamente em pacientes com risco de osteoporose. • Orientar dieta rica em cálcio. • Orientar atividades físicas que melhorem a massa óssea. • Orientar a exposição solar. • Prescrever suplementos alimentares ricos em cálcio e vitamina D ou cálcio e/ou vitamina D medicamentosos para pacientes que apresentem fator de risco para osteoporose e /ou baixa DMO.
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CAPÍTULO 8.3
A NUTROLOGIA NA PREVENÇÃO DAS DOENÇAS DO ADULTO – CÂNCER Marileise dos Santos Obelar
Definição Em um contexto amplo, o câncer representa um grupo de enfer‑ midades caracterizadas pela ocorrência de proliferação celular não controlada de uma população de células com capacidade de invasão dos tecidos adjacentes e potencial de disseminação a distância por via vascular ou linfática. A falta de controle natural do crescimento, da replicação e da diferenciação celular das cé‑ lulas tumorais promove mutações no seu material genético de‑ sencadeando alterações morfológicas e perda de funções fisioló‑ gicas normais. Embora o câncer seja uma doença de base genética, sofre influência ambiental de múltiplos fatores. Nesse contexto, a nutrição desempenha um papel cada vez mais im‑ portante à medida que evolui o conhecimento da relação entre a alimentação e as doenças neoplásicas, na qual os nutrientes dos alimentos podem atuar como fatores desencadeantes ou de pro‑ teção no surgimento do câncer.1 Etiologia e fatores de risco A alteração no controle epigenético dos genes tem sido conside‑ rada como possível mecanismo causal nos cânceres de pulmão, próstata, mama, cólon e sistema hematopoético. As modifica‑ ções epigenéticas são alterações hereditárias na expressão de genes que não requerem mudanças na sequência de DNA.2 Os principais mecanismos de controle epigenético no homem são a metilação do DNA, modificações de histonas, e interferência no RNA (silenciamento). A modificação epigenética principal em mamíferos é a adição de um grupo metil na posição do car‑ bono 5 da citosina na sequência de dinucleotídeos CpG. Os di‑ nucleotídeos CpG encontram-se agrupados em número de dez, em regiões conhecidas como ilhas CpG, que são sítios em que se inicia a transcrição.3 A hipermetilação dessas regiões pode levar ao silenciamento transcricional de genes supressores de tumo‑ res, causando a sua inativação e proporcionando a estimulação de células neoplásicas. A adição covalente de um grupo metil é catalisada pelas ADN metiltransferases (DNMT). Enquanto a DNMT1 está envolvida principalmente na manutenção da meti‑ lação de DNA após a replicação, as DNMT3A e DNMT3B intera‑
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gem na transcrição e são mediadoras da metilação de novo. Vá‑ rios estudos têm demonstrado a superexpressão das DNMT, principalmente DNMT1 e DNMT3B, em vários tipos de câncer.4 O equilíbrio de nutrientes envolvidos no metabolismo pode modular as atividades das DNMT. A modulação da atividade das DNMT parece ter um papel chave na regulação da expres‑ são gênica, que atua tanto na programação fetal quanto na in‑ dução da tumorogênese.5 Estudos epidemiológicos associam condições ambientais não favoráveis e nutrição no início da vida, durante o período pré-natal e na adolescência, com o risco de desenvolvimento de doenças na vida adulta. A exposição a situações adversas durante o período pré-natal pode resultar em mudanças epi‑ genéticas que persistem ao longo da vida e perpetuam-se por várias gerações.5 O folato atua como um cofator crucial no metabolismo de carbonos, desempenhando importante papel na síntese e me‑ tilação do DNA. A deficiência de folato leva a interrupção da síntese, reparo e metilação do DNA, o que pode aumentar o risco de desenvolvimento de alguns tipos de câncer. Por outro lado, há uma preocupação quanto aos possíveis efeitos adver‑ sos que altas doses de folato sintético poderiam promover à progressão de lesões neoplásicas preexistentes.4,6 A dieta atua como fator modulador epigenético que in‑ fluencia também a microbioma intestinal. Estudos revelaram uma associação entre tipo bacteriano predominante na flora intestinal e perfil epigenético. As gestantes que apresentavam como grupo bacteriano da flora intestinal predominantemen‑ te Firmicutes e Bacterioidetes mostraram correlação entre o estado de metilação diferenciado dos genes promotores epige‑ néticos e a presença de obesidade.7,8 Epidemiologia As doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) foram a princi‑ pal causa de morte no mundo em 2012, responsáveis por 38 mi‑ lhões (68%) de 56 milhões de mortes totais, das quais mais de 40% ocorreram prematuramente (em indivíduos < 70 anos), a
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maioria em países de baixa e média renda.9 As DCNT são um dos grandes desafios do século XXI, tanto em termos de sofri‑ mento humano quanto prejuízos socioeconômicos aos países.9 O número de novos casos de câncer a cada ano deve aumentar em todo o mundo aproximadamente 70% até o ano de 2030, com os maiores números esperados nos países de baixa renda. A ampla e crescente adesão ao estilo de vida ocidental se traduzirá ainda em maiores aumentos esperados de certos tipos de câncer. Essa tendência representa grandes desafios para a saúde e o de‑ senvolvimento social sustentável. Entretanto, a prevenção é possível com base na implementação de ações utilizando-se o conhecimento existente sobre os fatores de risco da doença.9,10 Prevenção Estudos mostram que 40 a 50% dos cânceres poderiam ser prevenidos se o conhecimento atual sobre os fatores de risco fosse transformado em estratégias de ações efetivas de saúde pública. Os benefícios da prevenção seriam alcançados com controle do uso de fumo e do consumo de álcool, redução da exposição ambiental a agentes carcinogênicos, educação nu‑ tricional, controle de peso corporal e estimulação da prática de atividade física desde o período pré-natal e no decorrer de to‑ das as fases do crescimento e desenvolvimento da criança, do adolescente até a idade adulta.11,12 A estimulação do aleitamento materno por 6 meses ou mais pode contribuir para uma menor incidência de leucemia nas crianças. Uma metanálise atual mostrou que as crianças amamentadas durante esse período mostraram risco 20% me‑ nor de apresentar leucemia.13 Estudos recentes mostram evidências de que determina‑ dos componentes da dieta podem afetar o processo de carci‑ nogênese. Certos compostos de alimentos que contêm súlfur, os isotiocianatos, derivados biologicamente ativos de glucosi‑ nolatos, encontrados nos vegetais crucíferos (couve-flor, repo‑ lho e brócolis), o dialil disulfide (um composto organossulfu‑ rado do alho), as isoflavonas (soja), os fitoesteróis, o ácido fólico, o selênio, a vitamina E, os flavonoides e as fibras dieté‑ ticas, podem reduzir o risco de câncer.4,5 Esses fitoquímicos atuam como mediadores protetores, alterando os principais mecanismos epigenéticos, com consequências benéficas para a função celular, que incluem controle da proliferação, regula‑ ção da apoptose e redução da inflamação.5 A inibição da atividade de desacetilação de histonas au‑ menta o acesso ao fator de transcrição do DNA e induz a reati‑ vação do gene. Os isotiocianatos inibem a atividade da desace‑ tilação de histonas nas células cancerígenas do cólon, da mama e da próstata, in vitro. As sulforafanas são potentes in‑ dutoras das enzimas da fase 2 de detoxificação, aumentam a acetilação de histonas e inibem a formação de pólipos nos es‑ tudos realizados em animais. Além disso, também foi de‑ monstrada inibição rápida da atividade de desacetilação de histonas em células de humanos, que receberam 68 g de bro‑ tos de brócolis uma única vez.5,14 Inversamente, o dialil disul‑ fide do alho aumenta a acetilação de histonas, que atuam na expressão do gene supressor tumoral, inibindo o crescimento de células tumorais do câncer de cólon in vitro.5
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A microbiota do cólon transforma a fibra da dieta em ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), por meio do processo de fermen‑ tação. O butirato, um dos principais AGCC produzidos, pode in‑ duzir a diferenciação celular, a apoptose e a acetilação de histonas, constituindo-se, assim, um potente agente quimioterapêutico.8 As substâncias químicas presentes em vegetais alimentares consumidos na dieta materna durante a gestação têm a capaci‑ dade de interferir no epigenoma, particularmente via metilação de DNA, e prover proteção durante o desenvolvimento fetal que o acompanhará até a vida adulta, e cujo potencial hereditário portanto determinará impacto à saúde das futuras gerações.3,5 Desafios Diante das pesquisas relatadas, em que as DCNT mostram de‑ pendência da interação ambiental e da genética, as janelas de oportunidades durante os primeiros mil dias de vida do ser humano constituem-se prioridade. Há que se criar estratégias para a construção de parcerias com as organizações governamentais de educação e saúde, não governamentais e empresas, com foco na longevidade do ser humano com qualidade de vida. Deve-se elaborar e sistematizar a progressão de passos em direção à prioridade da qualidade em saúde, nutrição, educa‑ ção, controle ambiental e estilo de vida. Para a viabilidade de mudanças favoráveis, é imprescindí‑ vel a conscientização e o comprometimento da população e dos dirigentes públicos e privados. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar fatores de risco para o câncer. • Intervir precoce e preventivamente em pacientes com risco de câncer. • Orientar medidas promotoras da saúde. • Orientar alimentação saudável. • Orientar atividades físicas que promovam a capacidade vital.
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CAPÍTULO 8.4
A NUTROLOGIA NA PREVENÇÃO DAS DOENÇAS DO ADULTO – DIABETE MELITO TIPO 2 Mônica Lisboa Chang Wayhs
Introdução A alta prevalência do diabete melito (DM) justifica medidas enérgicas para sua prevenção. Dados da International Diabetes Federation (IDF) mostram que 1 em cada 12 pessoas tem DM, sendo a prevalência mundial de 8,7%, ou seja, cerca de 387 mi‑ lhões de pessoas. O Brasil apresenta uma prevalência de 8,68%, com um custo médio anual estimado em US$1.527,27 para o tratamento de cada paciente com DM. A IDF estima que 592 milhões de pessoas serão acometidas pelo DM em 2035; um aumento de 205 milhões de pessoas em 20 anos. Além do impacto pessoal/social e o custo para o sistema de saúde, o diabete esteve associado a cerca de 116.000 óbitos em 2014 no Brasil e cerca de 5 milhões de pessoas no mundo.1 Esti‑ ma-se ainda que o DM seja responsável por um maior risco de doença coronariana, cerebrovascular e doença vascular periférica com consequente redução da expectativa de vida em 12 a 14 anos.1 A prevenção primária do DM deve iniciar na infância, com o controle do excesso de peso, a prática regular de exercícios físicos e uma alimentação saudável. Essa modificação do esti‑ lo de vida reduz o risco da progressão para o DM nos indiví‑ duos considerados de risco, e a identificação deles é funda‑ mental.2 São considerados de risco quem apresenta um ou mais destes fatores: hipertensão arterial, obesidade abdomi‑ nal, hipertrigliceridemia, HDL-colesterol baixo, hiperglicemia, acantose nigricans e hiperuricemia. Os fatores de risco para DM podem ser classificados em modificáveis e não modificáveis. São fatores não modificáveis: genética, idade e história de diabete gestacional. Os fatores modificáveis são: obesidade, inatividade física e alimentação (excesso de calorias, baixa ingestão de fibras, alto índice glicê‑ mico e razão ácidos graxos poli-insaturados/saturados baixa). O uso crônico de algumas medicações também está relaciona‑ do ao maior risco de DM, como corticosteroides, ácido nicotí‑ nico, hormônio da tireoide, antagonistas beta-adrenérgicos, tiazídicos, fenitoína, pentamidina, drogas antipsicóticas e in‑ terferon alfa. Esses fatores modificáveis são o foco da inter‑
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venção para a prevenção do DM. Inicialmente, devem-se pro‑ mover modificações no estilo de vida do paciente, visando a uma composição corpórea saudável, emagrecimento quando necessário e estímulo à atividade física. O conjunto de inter‑ venções resultará na mudança do estilo de vida do indivíduo e na consequente redução do risco de DM.3 Gestação e os primeiros anos A hipótese Thrifty propõe que a má nutrição do feto e da crian‑ ça nos primeiros meses de vida leva a alterações permanentes da estrutura e da função de vários órgãos, como o pâncreas, predispondo tardiamente ao aparecimento do DM.4 Essa hi‑ pótese foi demonstrada pela associação entre o baixo peso ao nascer seguido de um rápido ganho ponderal com um alto ris‑ co do desenvolvimento do DM. Outro exemplo são os indiví‑ duos que, durante a Segunda Guerra Mundial, foram expostos à fome em seu período fetal, vindo a apresentar maior risco do desenvolvimento do DM.5 Ao encontro dessa hipótese, a epi‑ genética relaciona o ambiente embrionário à alteração da me‑ tilação de genes, o que predisporia ao desenvolvimento de doenças crônicas relacionadas ao gene.6 Considerando-se que a causa primária do DM são fatores ambientais e que a desnu‑ trição do feto e do neonato pode resultar no desenvolvimento inadequado das células beta do pâncreas e resistência insulí‑ nica, é imprescindível que a prevenção do DM inicie já no pe‑ ríodo pré-natal, por meio da adequada nutrição da gestante e do seu controle de peso. O período gestacional e os primeiros dois anos da criança, os 1.000 dias, são conhecidos pelo impacto que exercem na saúde da criança no longo prazo, determinando o apareci‑ mento ou não de enfermidades na vida adulta. Estudos de‑ monstraram que a mãe é capaz de passar informações do am‑ biente externo para seu filho durante a gestação e a lactação, influenciando no risco futuro para a saúde da criança.4,5 A ali‑ mentação da mãe durante a gestação exerce influência direta sobre o risco futuro de DM e síndrome metabólica para seu fi‑ lho. Recomenda-se que a gestante evite o consumo de alimen‑
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tos crus, faça no mínimo 5 refeições diárias (para evitar a hi‑ poglicemia), não ingira bebidas alcoólicas, reduza o consumo de sal e limite o consumo de açúcar refinado e bebidas com cafeína.7 Além da alimentação, são vários os fatores mater‑ nos que exercem influência nesse período com impacto na vida adulta: perfil genético, primeiros anos de vida, estado nutricional, idade, composição corpórea, estilo de vida (ativi‑ dade física, fumo, consumo de álcool), paridade e fatores ex‑ ternos (infecções, poluição). Outro fator que predispõe a criança ao maior risco de DM na vida adulta é a ocorrência de resistência insulínica materna durante a gestação, particu‑ larmente diabete gestacional, mas também o DM e doenças cardiovasculares. Estudos recentes com animais demonstra‑ ram que o perfil genético paterno também exerce influência no risco futuro para o concepto. Para um maior impacto na prevenção do DM, deve-se modificar o estilo de vida dos pais antes mesmo da concepção, melhorando sua composição corpórea, alimentação e atividade física.8,9 Controle da obesidade A prevalência do DM está associada à da obesidade, conse‑ quentemente, o controle da obesidade está diretamente rela‑ cionado à prevenção do DM.2 A obesidade é um importante fa‑ tor de risco, principalmente a obesidade central, verificada por meio da medida da circunferência abdominal. Estudos suge‑ rem que a associação entre uma maior circunferência abdomi‑ nal e o risco de desenvolver DM é maior do que para o IMC.10 A prevenção da obesidade inicia já nos primeiros meses de vida por meio do aleitamento materno. Lactentes que receberam predominantemente o leite materno nos primeiros 6 meses de vida apresentaram menor prevalência de obesidade na adoles‑ cência. Esse efeito protetor do leite materno é maior quanto mais duradouro é o aleitamento materno.11 Recomenda-se a in‑ trodução da alimentação complementar no período correto, evoluindo para uma dieta rica em verduras, frutas, legumino‑ sas, cereais integrais e oleaginosas, com adequado balanço energético, além da redução do teor de gorduras saturadas e a não ingestão de gorduras trans. Na prevenção da obesidade, a participação da família é fundamental, educando a criança para hábitos de vida saudáveis.12 Além de uma alimentação saudável e a prática de atividade física, deve-se monitorar o crescimento da criança por meio do preenchimento dos gráficos de cresci‑ mento, identificando precocemente situações de risco.13 Atividade física A atividade física é extremamente importante para a preven‑ ção de várias enfermidades crônicas, entre elas o DM. O im‑ pacto da atividade física na prevenção é estabelecido já na ges‑ tação, visto que a realização de atividade física moderada durante a gestação está relacionada ao menor risco para a criança do desenvolvimento futuro de obesidade e outras doenças crônicas, como o DM.14 Indivíduos fisicamente ativos, em geral, são mais saudáveis e têm uma expectativa de vida maior. Qualquer forma de atividade física, seja estruturada (atividade esportiva) ou não estruturada (atividades do dia a dia), é associada a vários benefícios para a saúde. A prescrição
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de exercícios físicos deveria ser o primeiro item na prevenção e no tratamento das enfermidades crônicas.15 A inatividade física também é um fator de risco modificá‑ vel. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a inatividade física como o 4º principal fator de risco para mor‑ bidade global e mortalidade precoce.16 O risco de desenvolver doenças crônicas de uma pessoa inativa é igual a de um obe‑ so ou fumante. Um indivíduo obeso fisicamente ativo apre‑ senta risco igual ou até inferior de uma pessoa sedentária com peso normal.15 Um programa de prevenção do DM com‑ parou mudanças no estilo de vida, uso de metformina e pla‑ cebo em 3.232 adultos com excesso de peso. A inatividade fí‑ sica foi considerada como o tempo médio assistindo televisão e sentado no trabalho. Após cerca de 3 anos de acompanha‑ mento, o grupo submetido a mudanças no estilo de vida apre‑ sentou redução significativa no tempo de inatividade física. Entretanto, todos os grupos apresentaram um risco de desen‑ volver DM de 3,4% para cada hora gasta assistindo televisão. Analisando esses resultados em conjunto, pressupõe-se que intervenções no estilo de vida devem reduzir o tempo de se‑ dentarismo (assistindo televisão), além de estimular a ativi‑ dade física regular.17 A OMS recomenda que crianças entre 5 e 17 anos de idade devam acumular no mínimo 60 minutos de atividade física diária, com intensidade moderada a vigorosa. Para essa faixa etária, a OMS considera atividade física: brincadeiras, jogos, esportes, atividades recreativas, locomoção (caminhadas, bi‑ cicletas, patins) educação física ou exercício planejado. A maior parte da atividade física deve ser aeróbica, com ativida‑ des de intensidade vigorosa no mínimo 3 vezes/semana.16 Alimentação A alimentação tem um papel primordial tanto no desenvolvi‑ mento quanto na prevenção do DM. Os componentes bioativos dos alimentos influenciam atividades fisiológicas ou celulares dos seres que os consomem. Esses componentes bioativos, como flavonoides, vitaminas e carotenoides, são encontrados principalmente em frutas e vegetais, apresentando atividades antioxidantes, anti-inflamatórias e anticancerígenas, além de exercerem papel protetor contra o DM. Os alimentos que contêm componentes bioativos são co‑ nhecidos como alimentos funcionais, ou seja, são alimentos que apresentam benefício além do nutricional, reduzindo ou minimizando o risco de algumas doenças. Os grãos integrais, além de fornecerem fibras solúveis e insolúveis, têm compo‑ nentes bioativos (carotenoides, fitatos, fitoestrogênios, ácidos fenólicos e tocoferóis), aumentam a secreção do “glucagon like peptide” (GLP-1) e do peptídeo intestinal (PYY) e reduzem a secreção da grelina, induzindo a saciedade e reduzindo a in‑ gestão energética, além de melhorar a função das células beta do pâncreas e a secreção de insulina. As leguminosas (feijão, ervilha, lentilha, amendoim e soja) e as oleaginosas são fonte de proteína, carboidratos não digerí‑ veis (fibras, amidos resistentes e oligossacarídeos) e compo‑ nentes bioativos (ácidos graxos, polifenóis, isoflavonas), além de apresentarem efeito hipoglicemiante.
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Os fitoestrogênios, principalmente isoflavonas e ligninas presentes na soja e na linhaça, são associados com a preven‑ ção do DM, tanto em estudos in vivo quanto in vitro. O meca‑ nismo pelo qual os fitoestrogênios exercem seu efeito antidia‑ bete ainda é desconhecido e são necessários mais estudos para comprovar sua associação com o DM. O uso de fontes ali‑ mentares de fitoestrogênios, particularmente soja e linhaça, pode ser considerado parte de um padrão de dieta saudável, sendo esta relacionada à prevenção do DM.18 Embora esses componentes bioativos estejam relaciona‑ dos à melhora da função da células beta e induzam a intole‑ rância à glicose, ainda são necessários novos estudos para de‑ terminar o potencial clínico desses componentes na prevenção do DM.19,20 Apesar de a deficiência de vitamina D estar asso‑ ciada a hiperglicemia e ao risco de DM, ainda não há evidên‑ cias suficientes para recomendar a suplementação da vitami‑ na D para prevenção do DM em indivíduos considerados de risco ou para redução da resistência insulínica e hiperglicemia nos indivíduos com pré-diabete.10,21 Dietas que envolvam maior consumo de frutas e verduras, peixes, azeite de oliva, produtos integrais, nozes e o menor con‑ sumo de carnes vermelhas, gordura saturada, gordura trans, re‑ frigerantes e álcool estão associadas à redução do risco de DM. A qualidade da gordura ingerida é mais importante para a redução do risco de DM do que a quantidade, observando-se uma diminuição do risco de DM associado à maior ingestão de ácidos graxos poli-insaturados do tipo ômega 6. Não foi obser‑ vada a mesma associação com a ingestão de ômega 3.10,22 A in‑ gestão de carne vermelha e da carne vermelha processada também está relacionada ao maior risco de DM.10 A ingestão de fibras, principalmente provenientes de cereais e grãos inte‑ grais, está relacionada à redução do risco de DM. Entretanto, independentemente da quantidade de fibra ingerida, alimen‑ tos com baixo índice glicêmico e baixa carga glicêmica apre‑ sentam associação com menor risco de desenvolver DM.10 Atualmente, recomenda-se uma abordagem holística da alimentação na prevenção do DM em decorrência do entendi‑ mento que os alimentos/nutrientes interagem de forma sinér‑ gica ou antagônica. Essa interação entre os alimentos modifica o efeito esperado na saúde em relação ao obtido quando ava‑ liado isoladamente. Nesse sentido, várias combinações de die‑ tas vêm sendo estudadas, como a dieta mediterrânea. Nas die‑ tas mediterrâneas, há um alto consumo de azeite de oliva, legumes, cereais integrais, frutas e vegetais, com consumo moderado de vinho, peixe, leite e derivados e baixo consumo de frango, carne bovina e seus derivados, alimentos altamente processados, grãos refinados e açúcares. Cada componente dessa dieta apresenta um benefício isolado que, em conjunto, atuam na prevenção do DM. Seu efeito antioxidante inibe o desenvolvimento da resistência insulínica e disfunção das cé‑ lulas beta. O alto teor de magnésio reduz o risco da deficiência de magnésio, também reduzindo o risco de resistência insulí‑ nica. Os alimentos ricos em fibra, além de serem fontes de magnésio, retardam o esvaziamento gástrico, prolongando a digestão e a absorção da glicose com consequente redução dos níveis de insulina. Esse padrão dietético foi associado à redu‑
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ção significativa no risco de desenvolver DM, mesmo nos indi‑ víduos considerados de alto risco. O consumo moderado de ál‑ cool e o revesterol presente no vinho estão associados à melhora da sensibilidade à insulina. Apesar de não haver um consenso na sua recomendação para prevenção do DM, a dieta mediterrânea apresenta benefícios nutricionais já comprova‑ dos que podem contribuir para a prevenção primária do DM.23 A OMS faz as seguintes recomendações em relação a dieta: • atingir o balanço energético e um peso saudável; • limitar a ingestão de energia proveniente de gordura, preferindo o consumo de gorduras insaturadas e eliminando a gordura trans; • aumentar o consumo de frutas, vegetais, legumes, cereais in‑ tegrais e oleaginosas; • limitar a ingestão de açúcares; • limitar o consumo de sal.24 Microbiota intestinal A composição da microbiota intestinal está associada ao apare‑ cimento de várias enfermidades, entre elas o DM. Acredita-se que uma microbiota intestinal “não saudável” seja responsável pelo aumento da permeabilidade intestinal e da resposta imune da mucosa, contribuindo para o desenvolvimento do DM. Foi demonstrado que indivíduos com DM apresentam menor con‑ centração de bifidobactérias (Gram-positivas que exercem ação anti-inflamatória). Observou-se também que a resposta infla‑ matória da mucosa intestinal, com maior concentração de cito‑ cinas pró-inflamatórias, está associada à resistência insulínica. Consequentemente, a modulação da microbiota intestinal por meio do uso de probióticos poderia contribuir para a prevenção do DM. Estudos com Lactobacillus rhamnosus GG, Lactobacillus acidophilus, Bifidobacterium bifidum e Bifidobacterium animalis ssp lactis demonstraram efeitos positivos no controle da infla‑ mação intestinal, melhora da sensibilidade à insulina e tolerân‑ cia a glicose.25 Entretanto, ainda são necessários mais estudos para que se possa determinar a real aplicabilidade clínica do uso de probióticos para a prevenção do DM. Dietas ricas em gordura alterariam a microbiota intestinal, com consequente aumento da permeabilidade intestinal e translocação de antígenos mi‑ crobianos, endotoxemia metabólica e resistência insulínica. Além da prevenção individual, é importante lembrar da prevenção coletiva, principalmente por meio do controle da epidemia de obesidade. A prevenção do DM não deve ser ba‑ seada em medidas de repercussão imediata ou em uma única medida. A intervenção deve ser metódica e mantida por um longo período. O simples ato de fornecer informação e medi‑ das educativas para a população não é suficiente para a pre‑ venção do DM. O processo educativo deve ser acompanhado de modificações ambientais e culturais que possam propiciar e possibilitar as mudanças no estilo de vida, estimulando a ati‑ vidade física e uma alimentação saudável. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Orientar a gestante sobre a prevenção futura do DM da criança. • Orientar a família e os cuidadores sobre o início da prevenção primária do DM, que deve ocorrer na
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A NUTROLOGIA NA PREVENÇÃO DAS DOENÇAS DO ADULTO – DIABETE MELITO TIPO 2 •
infância, com o controle do peso, a prática regular de exercícios físicos e uma alimentação saudável. • Reconhecer a inatividade física como um fator relacionado ao maior risco do DM, estimulando a atividade física. • Saber que prevenção do DM está diretamente relacionada ao controle do excesso de peso. • Saber que a prevenção do DM está relacionada a uma abordagem holística da dieta, com a combinação de vários alimentos baseada no aumento do consumo de frutas, vegetais, legumes, cereais integrais e oleaginosas, além da limitação do consumo de gorduras saturadas, gorduras trans e açúcares simples.
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TERAPIA NUTRICIONAL EM SITUAÇÕES ESPECIAIS – DÉFICIT DE CRESCIMENTO DE CAUSA NUTRICIONAL Luiz Anderson Lopes Maria Paula de Albuquerque Valmin Ramos Silva Virgínia Resende Silva Weffort
O processo de crescimento é definido pelo aumento das estru‑ o início da puberdade, que pode ocorrer em idades diferentes turas e dos tecidos que compõem o indivíduo; apresenta-se de para cada indivíduo e sexo, observando limites definidos.3 forma contínua, porém não constante, e resulta da interação Durante as fases de crescimento rápido, o organismo apre‑ da mensagem genética herdada e de fatores de crescimento senta-se mais vulnerável aos agravos para o crescimento, e as (constitucionais, ambientais, emocionais e, especialmente no implicações são notadas de modo mais rápido. Brasil, nutricionais). A análise das características antropométricas ao nasci‑ Seguindo um padrão geneticamente definido (potencial de mento, reflexo das condições intraútero, é importante e guar‑ crescimento), os seres vivos apresentam variações na veloci‑ da relação com o processo de crescimento pós-natal, embora dade das mudanças, não apenas ponderoestatural, como tam‑ possam não ser menos sensíveis, quando relacionados os va‑ bém de órgãos e/ou sistemas, que caracterizam as chamadas lores-limite.4 fases do crescimento. Do ponto de vista da herança genética, observou-se que a Entre as fases de crescimento rápido, nenhum período se correlação entre a estatura dos pais e a de seus respectivos fi‑ aproxima do gestacional, quando as intensas mudanças an‑ lhos é menor quando as condições socioeconômicas e ambien‑ tropométricas envolvem não apenas a hiperplasia e a hipertro‑ tais são mais favoráveis (provavelmente associada à menor fia celulares, como também a diferenciação e a especialização presença de agravos do crescimento). Essa correlação mostra‑ das células. -se maior quando o estrato socioeconômico é menos favorável Após o nascimento, durante os 2 primeiros anos de vida, a (provavelmente associado à presença de consequências para o velocidade de crescimento é a maior entre as observadas na crescimento que, ao repetirem para os filhos condições inade‑ fase pós-natal; mas este é também o período em que ocorre quadas vividas pelos pais, acabam por aproximar as estaturas desaceleração dos ganhos em peso e comprimento, com im‑ finais de ambos). Entre os agravos do crescimento que passam, portantes implicações para as necessidades nutricionais. no nosso meio, a desempenhar papel de maior importância Assim, ao comparar as medianas e os limites da normalida‑ dentro da etiologia das situações associadas ao déficit do cres‑ de (± 2 escores z) definidos para o crescimento de meninos, cimento, ressaltam-se as características alimentares. espera-se aumento de ± 25,8 cm (24,9 a 26,8 cm) na estatura É interessante notar que não apenas a estatura final do in‑ de nascimento durante o 1º ano e de ± 13 cm (10,7 a 13,4 cm) divíduo como toda a cronologia dos eventos associados ao durante o 2º ano; o peso de nascimento deve aumentar em ± crescimento (atraso na erupção dentária, atraso puberal, atra‑ 6.900 g (5.500 a 7.600 g) ao final do 1º ano, enquanto durante so na maturação sexual e no desenvolvimento psicomotor, o 2º ano o aumento deve ser de ± 2.600 g (1.700 a 3.300 g); o além de menor ritmo de crescimento) podem ser modificadas. perímetro cefálico deve aumentar cerca de 11,6 cm (± 11,6 cm) Associam-se às consequências alimentares outros fatores, durante os 12 primeiros meses, ao passo que durante o 2º ano como os ambientais (físicos: clima, altitude, insolação, nível o aumento deve ser de ± 2,2 cm (2 a 2,4 cm).1 Assim, nesse pe‑ de ruídos, irradiações ionizantes, entre outros; químicos: po‑ ríodo, é esperada a gradual diminuição dos volumes consumi‑ luentes, fumo, drogas, entre outros; ou biológicos: agentes in‑ dos e a adequação das recomendações alimentares, em fun‑ fecciosos, parasitários, entre outros), lesões orgânicas e emo‑ ção da velocidade de crescimento, com o avançar da idade.2 cionais,5 que podem agir sinergicamente e acentuar o déficit Durante os períodos pré-escolar e escolar, os ganhos de cres‑ de crescimento. cimento passam a ser mais constantes e de menor intensidade A expressão desses agravos sobre o crescimento pode en‑ (comparado aos 2 primeiros anos); observa-se aceleração com volver outros sistemas do organismo.
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O sistema endócrino é um dos mais citados entre aqueles Com base em crianças e adolescentes com déficit de cresci‑ que podem associar-se aos erros alimentares. Descreve-se que mento atendidas em ambulatório público, a média de idade de a secreção hormonal pode estar alterada nos casos de erros ali‑ sensibilização para o déficit de crescimento é de 49 meses mentares primários (desnutrição energético-proteica primá‑ (quando as crianças passam a diferir de seus pares na escola); ria; fome oculta; seletividade importante); pode também estar contudo, serão necessários mais 44 meses para que os familia‑ associada a distúrbios na fase de secreção e/ou síntese hor‑ res, na maioria das vezes encaminhados pelos pediatras que monal (contaminantes alimentares), da diminuição no trans‑ assistem à criança, cheguem para a avaliação do especialista.7 porte dos hormônios pela circulação ou até mesmo das modi‑ Esse longo tempo decorrido é de fato crucial para a defini‑ ficações na metabolização periférica de certos hormônios. ção das possibilidades diagnósticas com vistas à correção do O prognóstico quanto ao crescimento fica ainda mais reser‑ agravo apresentado; quanto mais precocemente identificado, vado quando indivíduos com situação de retardo do crescimen‑ maiores são as chances de intervenção e sucesso terapêutico. to intrauterino continuam expostos a graus variados de altera‑ Com base nesses atendimentos, é interessante notar que o ções alimentares no período pós-natal. Essa implicação sobre o perfil das crianças que procuraram avaliação por apresenta‑ crescimento pode ser decorrente não apenas da carência pri‑ rem déficit de crescimento vem se modificando; os meninos mária de alimentos, mas também do seu consumo inadequado, eram encaminhados pelos pediatras com mais frequência desencadeando processo conhecido como “fome oculta”. para atendimento por apresentarem diagnóstico de baixa es‑ Em seres humanos, Dagnelie et al.6 estudaram crianças ho‑ tatura, e os responsáveis estavam menos sensibilizados pela landesas (4 aos 18 meses de idade) cujas famílias seguiam die‑ condição. Atualmente, as meninas são trazidas pelos familia‑ ta macrobiótica, diferente daquelas executadas por familiares res em maior frequência, mesmo que o déficit de crescimento onívoros. Para as primeiras, o déficit ponderal chegou a 29,5%, não seja tão intenso (zona de vigilância do crescimento), mas e o estatural a 20,9%. Em valores absolutos, crianças cujos as famílias apresentam-se profundamente preocupadas com a pais seguiam dieta macrobiótica deixaram de ganhar 1.300 g e situação de menor crescimento. de crescer 3,5 cm, para o período corrigido de 1 ano. Essa mudança pode ser decorrente do padrão social para a Lopes et al.,7 estudando a ingestão alimentar de crianças de definição de beleza que cobra das meninas mais altura e, para‑ baixa estatura (-2 escores z) ou em zona de vigilância do cres‑ lelamente, menos peso, indiferentemente do padrão genético cimento (entre -1 e -2 escores z), em atendimento ambulato‑ e da fase do crescimento. rial, descreveram que 87% das crianças apresentaram erro ali‑ Essas implicações sociais/psicológicas5 podem ter influên‑ mentar quantitativo e/ou qualitativo associado ao déficit de cia desde idades muito tenras. Para meninos e meninas pré‑ crescimento. A dieta dessas crianças mostrou alto consumo -púberes, espera-se ganho de peso durante a fase de repleção, de proteínas (cerca de 275% acima dos valores recomendados) que antecede o estirão pubertário. Preocupadas com os pa‑ e menor consumo de energia (cerca de 15% a menos que os va‑ drões vigentes, essas crianças, ao se perceberem mais gordi‑ lores recomendados). nhas, têm restringido voluntariamente a ingestão alimentar Considerando o fato de que dietas restritivas, ricas em com vistas a promover a perda de peso; como resultado, pode proteínas e pobres em energia implicam menores chances de haver diminuição do ritmo de crescimento durante a fase de ganho de peso, o erro nutricional induzido nessa circunstân‑ estirão pubertário (menor possibilidade de atingir a estatura cia pode comprometer o ganho estatural de crianças e de ado‑ final). Essa correlação deve ser explicada aos pacientes e, por lescentes. vezes, representa maneira importante para se contornar o Ao analisar a dieta consumida pelas mães desses pacientes, comportamento alimentar inadequado. os autores descrevem valores mais equilibrados e interpretam o Comprometimento do crescimento é também observado comportamento como resultante de concepções pessoais, da entre crianças atletas que praticam esportes com elevada fre‑ influência de informações veiculadas pela mídia associadas a quência e intensidade, ainda agravado pela inadequada orien‑ conhecimentos parciais sobre nutrição e/ou tabus alimentares. tação alimentar.8 Um alimento ou nutriente, de forma isolada, dificilmente Essas características representam um somatório de fatores pode ser responsabilizado pelos efeitos sobre o crescimento, a negativos que não apenas contribuem para o déficit de cresci‑ não ser que se demonstre carência específica, difícil de ser mento, como também podem implicar modificações fisiológi‑ constatada em função de os erros alimentares incluírem, em cas e metabólicas importantes, como o atraso ou a ausência de sua maioria, diferentes nutrientes. ciclos menstruais completos, diminuição do panículo adiposo, Assim, não apenas a desnutrição por carência primária está modificações do metabolismo da glicose e desgaste prematuro, envolvida com o déficit de crescimento; carências específicas por sobrecarga, das estruturas relacionadas à atividade física. atribuídas a tabus ou monotonia alimentares também podem Constitui queixa frequente na prática pediátrica associada interferir no processo. aos casos de déficit de crescimento o menor consumo alimen‑ Nessa direção, muitos pais deixam que concepções pes‑ tar quantitativo e qualitativo, segundo os padrões familiares, soais interfiram no julgamento da gravidade da situação; com ou que as crianças são muito seletivas quanto à composição frequência, identificam causalidade quanto ao ritmo de cresci‑ da dieta. Afastados os componentes comportamentais asso‑ mento ao atribuí-lo a características familiares: “Eu sou pe‑ ciados à recusa alimentar, essa queixa pode estar vinculada a queno, minha esposa é pequena, meu filho será pequeno”.7 algumas situações de doença; por outro lado, a fisiopatologia
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1472 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
da seletividade apresentada pode ser decorrente da carência quando têm de se deslocar para a escola, de carro ou de ônibus, logo após a ingestão alimentar. nutricional de micronutrientes. No Brasil, a que se apresenta com mais altas prevalências é Associado a essa característica, é também citado que as pró‑ a carência em ferro. Nessa condição, associada ou não a sinais ximas refeições do dia são realizadas em horários diferentes e clínicos de anemia, um dos primeiros sinais notados é a dimi‑ são de composição inadequada (substituição das refeições por nuição ou a parada do ganho ponderoestatural, que será pro‑ lanches rápidos ou salgadinhos nos horários previstos para o porcional à intensidade da doença e pode estar associada ao “recreio” ou intervalo, o almoço e o lanche da tarde).8 Essas características são frequentes entre escolares que resi‑ atraso do desenvolvimento neuropsicomotor. Outro micronutriente frequentemente associado à recusa dem em capitais e que, apesar de terem poder aquisitivo sufi‑ e/ou à seletividade alimentar é o zinco; esse elemento está di‑ ciente para a compra de alimentos adequados fora do ambiente retamente vinculado à função das papilas gustativas na per‑ domiciliar, acabam não o fazendo em razão das escolhas pes‑ cepção dos gostos básicos; a carência relaciona-se com a dimi‑ soais e da falta de informação/formação desses alunos. Esse nuição da diferenciação celular, o atraso da maturação sexual problema alimentar é ainda agravado pela indisponibilidade de e o processo de crescimento de forma indireta, já que participa alimentos saudáveis e adequados à faixa etária dessas crianças na maior parte das cantinas das escolas do país. de um grande número de reações enzimáticas. Outro aspecto relacionado ao erro alimentar e ao crescimen‑ A carência de zinco pode ser suspeitada quando a criança relata a diminuição da percepção dos gostos dos alimentos ou to em estatura diz respeito ao metabolismo ósseo. A formação a necessidade do acréscimo de quantidade de aditivos alimen‑ do esqueleto e a quantidade de massa óssea apresentam, du‑ tares (ketchup, mostarda, sal, açúcar, vinagre) em excesso; rante a infância e a adolescência, fases de maior atividade rela‑ esse comportamento alimentar pode implicar erros qualitati‑ cionadas com os processos de maturação e crescimento rápi‑ vos e/ou quantitativos na dieta que acentuam o comprometi‑ dos; desse modo, existe, nessas fases, maior demanda para mento do crescimento, já desencadeado pela carência do mi‑ nutrientes (especialmente o cálcio) relacionados à formação do tecido ósseo; ao final da puberdade e/ou início da juventude, cronutriente na alimentação. Para crianças que apresentam déficit de crescimento sig‑ irá atingir seu valor máximo (pico de massa óssea). Fatores alimentares ou ambientais que possam modificar o nificativo e que necessitam de terapia com hormônio de cres‑ cimento, a suplementação com zinco parece mostrar efeitos processo de formação e diferenciação da massa óssea (exposi‑ positivos, mas os dados ainda são controversos. Na discussão ção ao sol, atividade física, ingestão de cálcio), quando inade‑ dos resultados, considera-se que a carência de outros nu‑ quados, agem de modo antagônico ao processo de maturação/ trientes ou grupos de nutrientes possa ter sido envolvida, difi‑ crescimento, expondo os indivíduos a riscos de osteopenia e cultando a interpretação desses resultados, principalmente osteoporose em idades mais precoces. Em relação à ingestão de cálcio, descreve-se que os adoles‑ quando se procura atribuí-los a um único elemento. Essas considerações sobre os efeitos da suplementação ali‑ centes consomem quantidades inadequadas desse mineral; mentar com vitaminas e sais minerais podem ser estendidas a os motivos para essa restrição incluem até mesmo o fato de os todos os resultados descritos; essas observações podem estar adolescentes associarem a ingestão de produtos lácteos, espe‑ relacionadas a medidas de correção dos hábitos alimentares, cialmente o leite, ao tipo de dieta consumida por lactentes, o dos horários das refeições e mesmo à maior atenção dos pais/ que pode configurar comportamento não aceito pelo grupo. Desse modo, a ingestão alimentar incorreta associada a não familiares com a alimentação daqueles que apresentam déficit observação dos horários para as refeições, a menor prática de de crescimento.8 esportes e a baixa exposição solar podem definir condições si‑ Nesse sentido, o estudo do hábito alimentar de crianças portadoras de déficit de crescimento mostrou diferenças signi‑ nérgicas que atuam como fatores negativos para o crescimen‑ ficativas quanto a horários e o tipo de alimento consumido em to, principalmente se ocorrerem durante as fases de cresci‑ mento mais rápido. cada refeição. Esse foi o erro alimentar mais diagnosticado. Em outras ocasiões, têm sido verificados casos de crianças Os erros alimentares são descritos principalmente para aque‑ las crianças cujos pais trabalham em horário integral; nesses ca‑ e de adolescentes para os quais os erros alimentares descritos sos, o cuidado com a alimentação ou fica delegado à instituição são agravados pela excessiva prática de esportes, inadequados (creche/escola) ou a terceiros que, muitas vezes, não estão à faixa etária e às características individuais, sem nenhuma muito atentos ao que ocorre e estão ainda menos sensibilizados preocupação com os aspectos alimentares decorrentes da para as repercussões futuras dos erros alimentares. Outro ponto maior carga de trabalho. Pesquisadores da área de educação física têm demonstrado a ser comentado é que as modificações do cardápio ou de horá‑ relação direta entre orientação nutricional adequada e o desem‑ rio têm características peculiares, de acordo com a faixa etária. É prática frequente entre crianças e adolescentes o início de penho físico de atletas de qualquer idade e, nesse ponto, não se suas atividades diárias sem realizarem o desjejum, em razão deve esquecer de que, na faixa etária pediátrica, esses pequenos do horário escolar, ou por acordarem mais tarde e unir essa re‑ atletas ainda estão em fase de crescimento. Contudo, em algu‑ feição ao almoço. Em alguns casos, configura hábito familiar mas modalidades (p.ex., judô, halterofilismo), podem-se en‑ não realizar a primeira refeição; outras vezes, crianças e ado‑ contrar práticas alimentares que são igualmente prejudiciais à saúde e negativas no que se refere ao processo de crescimento lescentes alegam que se sentem nauseadas e desconfortáveis
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TERAPIA NUTRICIONAL EM SITUAÇÕES ESPECIAIS – DÉFICIT DE CRESCIMENTO DE CAUSA NUTRICIONAL •
(consumo de suplementos alimentares – proteínas, aminoáci‑ dos específicos, vitaminas). Esse comportamento é frequente entre grupos de atletas e/ou alunos de academias, sem nenhu‑ ma orientação ou acompanhamento médico específico. O pe‑ diatra deve estar atento a essas práticas. Uma orientação frequentemente solicitada na consulta pe‑ diátrica de pacientes com déficit de crescimento refere-se à utilização de hormônio ou suplementos que possam vir a pro‑ mover o crescimento da criança cuja estatura não corresponde à expectativa dos pais. Embora não seja o ponto de discussão para este capítulo, convém salientar que, quando indicada, a terapia hormonal tem seus resultados potencializados pela orientação nutricional correta. Em muitos dos casos comentados, os erros alimentares esti‑ veram associados a condições socioeconômicas que predispo‑ riam às alterações descritas, mas, em grande parte dos demais, eles estiveram associados a mitos e crendices envolvendo o comportamento alimentar. Desse modo, a identificação e a orientação dessas condições são necessárias para que possa ser garantida a expressão do potencial de crescimento individual.8 Em alguns casos, infelizmente associados ao comprometi‑ mento do crescimento de crianças, foram identificados hábi‑ tos alimentares (macrobiótica, vegetarianismo estrito) com graus diferentes de restrição.4 Essa condição particularmente frequente em casais mais jovens ou com maior acesso à infor‑ mação (infelizmente, inadequada) deve ser conduzida com cautela e envolver mais pessoas ligadas à criança, para que al‑ gum êxito terapêutico possa vir a ser alcançado. Outro comportamento familiar frequente é a diminuição/ retirada de certos alimentos da dieta de lactentes, de crianças e de adolescentes, em função da orientação alimentar realiza‑ da para aqueles adultos que apresentam alguma doença (p.ex., obesidade, diabete melito), na esperança de evitar o apareci‑ mento de doenças específicas ou alcançar um modelo corpó‑ reo específico (temor de ganhar peso). Dietas pobres em açúcar ou lipídios ou muito ricas em fibras ou outros alimentos com alta porcentagem de fatores antinu‑ tricionais têm sido apontadas como potencialmente limitado‑ ras do ganho ponderoestatural. Causa frequente em países de‑ senvolvidos, esse fator tem ganhado espaço em nosso meio em razão da transição alimentar e da modificação do perfil nutri‑ cional da sociedade com aumento dos casos de obesidade e do diagnóstico mais delicado de estados de carência (fome oculta). Ao observar crianças e adolescentes obesos, têm-se consta‑ tado, em relação à altura, que esses indivíduos são pouco maio‑ res que seus pares em sexo e idade, considerados eutróficos; acredita-se que essa diferença não seja mantida na vida adulta. Por outro lado, o estudo da maturação orgânica nesses in‑ divíduos tem mostrado idade mais avançada, sendo essa a possível explicação para o fato de apresentarem estatura pou‑ co maior, durante certo período, e estatura final igual ou me‑ nor do que o previsto. Grande parte dessa dificuldade em se estimar a repercus‑ são de um agravo para o crescimento sobre a estatura final de‑ ve-se ao fato de não ser definida ferramenta que possibilite co‑ nhecer o potencial de crescimento de um indivíduo e, de posse
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dessa informação, estabelecer o índice de correlação entre a intensidade do agravo, especialmente o nutricional, e o desvio ponderoestatural diagnosticado. Considerações finais Os erros alimentares estão presentes em grande parte dos ca‑ sos de déficit de crescimento e mantêm-se durante longos pe‑ ríodos, em razão de falsas concepções e tabus alimentares. O ritmo de trabalho dos pais (principalmente nos grandes centros urbanos) e o grande número de atividades das crian‑ ças e dos adolescentes (escolas, atividades físicas) podem es‑ tar agindo de maneira sinérgica com as mensagens veiculadas pela mídia para influenciar os hábitos alimentares de modo a acentuar os erros relacionados ao consumo alimentar. Dietas quantitativa e/ou qualitativamente inadequadas estão sendo consumidas e/ou oferecidas a crianças e adoles‑ centes, sendo que as restrições decorrentes de condição so‑ cioeconômica desfavorável não são os únicos fatores a serem responsabilizados. Nessas condições, a educação nutricional assegura condi‑ ções ideais e promove hábitos alimentares adequados que, as‑ sociados à vida saudável, poderão garantir condições para aque‑ les que mais necessitam: os indivíduos em fase de crescimento. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer os períodos de estirão de crescimento. • Saber identificar, na anamnese, os fatores que podem alterar o crescimento. • Reconhecer a importância da alimentação saudável no crescimento. • Saber acompanhar a velocidade de crescimento para o diagnóstico correto de baixa estatura.
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CAPÍTULO 9.2
TERAPIA NUTRICIONAL EM SITUAÇÕES ESPECIAIS – CARDIOPATIAS Heitor Pons Leite Silvana Gomes Benzecry
Introdução A desnutrição é frequente em crianças com cardiopatias con‑ gênitas e varia conforme o método de avaliação e a população estudada.1 O retardo ponderoestatural observado nos cardio‑ patas está associado a fatores hemodinâmicos, sobretudo à hi‑ pertensão pulmonar e à insuficiência cardíaca, e também ao baixo peso de nascimento e outras anomalias associadas. Efeitos da cardiopatia sobre o estado nutricional A insuficiência cardíaca prejudica a extração, a transferência e a utilização de energia, causando alterações no metabolis‑ mo com consequente disfunção de tecidos e órgãos, desnu‑ trição e retardo do crescimento. Os mecanismos clássicos para explicar a caquexia cardíaca são: ingestão calórica defi‑ ciente, hipermetabolismo, hipóxia celular e redução da ab‑ sorção intestinal de nutrientes.2 Mais recentemente, têm sido estudados os efeitos da interação neuro-hormonal-imu‑ ne no desequilíbrio entre as vias metabólicas e anabólicas.3 Terapia nutricional A terapia nutricional melhora o estado nutricional e permite que a criança enfrente o trauma cirúrgico em melhores condições. No planejamento da cirurgia cardíaca, devem ser consideradas as alterações fisiopatológicas inerentes às cardiopatias: • dificuldade de eliminação de água; • aumento do trabalho da musculatura respiratória; • maior propensão às complicações da terapia nutricional: o ex‑ cesso de oferta hídrica pode causar descompensação cardía‑ ca; a hiperalimentação pode aumentar o gasto energético, a frequência cardíaca e o consumo miocárdico de oxigênio; a oferta excessiva de carboidratos aumenta a liberação de insu‑ lina que, por seu efeito antinatriurético, promove retenção de sódio; • necessidades específicas de potássio, cálcio, magnésio e fós‑ foro, cuja deficiência pode prejudicar a função cardíaca.
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Estratégia nutricional no pré-operatório de cirurgia cardíaca O atendimento deve ser feito por equipe multidisciplinar (cardio‑ logista, pediatra/nutrólogo, nutricionista, psicólogo, fonoaudió‑ logo e assistente social). A avaliação nutricional é obrigatória, pois identifica pacientes com maior risco nutricional e que po‑ dem ser beneficiados por intervenção nutricional precoce. A via preferencial de alimentação é a digestiva, devendo ser ado‑ tadas medidas posturais antirrefluxo para prevenir aspiração. Nas crianças cardiopatas, a dispneia e as infecções frequentes de vias aéreas causam astenia e diminuição da ingestão ali‑ mentar. Recomenda-se oferta calórica de 120 a 150 kcal/kg/ dia para lactentes.4 Para aumentar a oferta energética sem o risco de sobrecarga cardíaca, acrescentam-se à dieta módulos de carboidrato (até 5%) e lipídio (triglicérides de cadeia média ou óleo de soja), com o cuidado de se evitar as gorduras satura‑ das e os ácidos graxos trans. As concentrações séricas de potás‑ sio, magnésio, cálcio e fósforo devem ser monitoradas. A suple‑ mentação está indicada quando a ingestão não satisfaz as recomendações e os pacientes estão em uso de diuréticos. O paciente deve ser reavaliado mensal ou até semanalmente, conforme a necessidade. Em acompanhamento ambulatorial multidisciplinar, a orientação clínica e nutricional periódica de cardiopatas desnutridos durante 6 meses promoveu aumento da oferta de micronutrientes, acompanhada de melhora signifi‑ cativa nos escores Z das relações antropométricas.5 Nos casos mais graves, em que não há ganho ponderal ape‑ nas com a via oral, a nutrição por sonda enteral permite que a criança receba maior quantidade de energia (150 a 170 kcal/ kg/dia). A dieta por sonda enteral deve ser infundida de modo contínuo ou lentamente, para propiciar menos oscilações do gasto energético e melhor aproveitamento dos nutrientes ad‑ ministrados.6 A infusão em bolo ou por gavagem pode causar distensão gástrica, reduzir a complacência pulmonar no pa‑ ciente em ventilação pulmonar mecânica, tem maior risco de aspiração e menor aproveitamento energético. Em neonatos
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prematuros em tratamento de canal arterial persistente com indometacina e ibuprofeno, considerar o uso de nutrição ente‑ ral trófica (15 mL/kg), que está associada ao menor tempo para se atingir a nutrição enteral plena.7 A tentativa de recuperação nutricional muito rápida pode pro‑ vocar insuficiência cardíaca durante a fase de recuperação nutri‑ cional, que é atribuída aos seguintes fatores: aumentos na vole‑ mia e na taxa metabólica, elevando o consumo de oxigênio e o débito cardíaco; retenção excessiva de sódio; relativa deficiência de vitaminas e íons; e diminuição da contratilidade cardíaca. Por‑ tanto, a realimentação deve ser gradual, monitorando-se a tole‑ rância à oferta de nutrientes para que se evite a descompensação cardíaca. Em algumas cardiopatias com repercussão hemodinâ‑ mica muito importante, a terapia nutricional não é bem-sucedi‑ da, provavelmente por conta do gasto energético muito acentua‑ do e pelo não aproveitamento dos nutrientes administrados por via digestiva. Nesses casos, excepcionalmente, a nutrição paren‑ teral pode ser utilizada para complementar a oferta de nutrientes. Suplementação de micronutrientes Os micronutrientes são essenciais no metabolismo interme‑ diário e oxidativo. É provável que, nos cardiopatas, a oferta habitualmente recomendada não seja suficiente para atender às necessidades aumentadas pelo hipermetabolismo, que au‑ menta o consumo de tiamina, selênio e carnitina. A suple‑ mentação de micronutrientes cuja ingestão está deficiente pode melhorar a função miocárdica. A tiamina ou vitamina B1 é uma vitamina hidrossolúvel que atua como coenzima em vários processos metabólicos, em especial no metabolismo dos carboidratos. Seus estoques são muito pequenos, portanto, a oferta insuficiente pode levar, em curto prazo, ao risco de deficiência, que também seria in‑ duzido pelo uso de furosemida. A deficiência grave de tiamina pode causar um quadro grave de insuficiência cardíaca des‑ compensada chamado “shoshin beribéri” que, se não for pron‑ tamente reconhecido e tratado, resulta em choque hemodinâ‑ mico e morte. O tratamento é feito com tiamina na dose de 25 a 100 mg via endovenosa, lentamente, diluídos em 100 mL de solução salina ou glicosada, durante 1 semana, seguido de 35 mg/dia via oral por mais 6 semanas.8 O selênio tem efeito protetor do miocárdio contra o estresse oxidativo. As recomendações de selênio segundo a faixa etária são de 15 mcg até 6 meses, 20 mcg de 7 meses a 3 anos, 30 mcg de 4 a 8 anos, 40 mcg de 9 a 14 anos e 55 mcg para maiores de 14 anos.9 A hemoglobina, os índices hematimétricos e a ferritina sérica são parâmetros suficientes para diagnosticar a deficiência de ferro e indicar a suplementação. Não se deve esquecer, entre‑ tanto, que o ferro, quando suplementado em excesso, pode in‑ duzir ao estresse oxidativo e favorecer a proliferação bacteriana. Crianças com cardiopatia congênita têm menor massa mi‑ neral óssea quando comparadas às saudáveis, independente‑ mente do estado nutricional antropométrico.10 O pediatra deve monitorar vitamina D, cálcio e fósforo séricos e, se neces‑ sário, fazer suplementação. A contratilidade miocárdica depende primariamente do me‑ tabolismo lipídico. A carnitina atua no transporte de ácidos gra‑
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xos de cadeia longa para dentro da mitocôndria, onde sofrem betaoxidação e são convertidos em acetilcoenzima A, para pos‑ terior entrada no ciclo de Krebs e na cadeia respiratória para produção de energia. A carnitina é um composto amônio qua‑ ternário biossintetizado ou ingerido por dietas ricas em produ‑ tos de origem animal, como carne, peixe e leite. A suplementa‑ ção de L-carnitina na dose de 100 mg/kg/dia pode promover melhora clínica em pacientes com miocardiopatia dilatada quando comparada ao tratamento convencional. Na Tabela 1, são mostradas algumas orientações práticas para a terapia nutricional em regime ambulatorial. Tabela 1 Orientações práticas para a terapia nutricional da criança cardiopata em regime ambulatorial Sintoma
Conduta
Anorexia
A dieta deve ser fracionada durante o dia, priorizando-se a oferta dos alimentos de maior preferência da criança. Devem ser ingeridos primeiro aqueles com maior densidade energética. Para aumentar a densidade energética dos alimentos, adicionar óleo de soja ou, se possível, azeite de oliva
Taquipneia
Aleitamento materno: revisar a técnica de amamentação, colocar a criança sentada (pernas abertas, abdome junto ao da mãe e face de frente para o seio materno) Outros alimentos: diminuir o volume e aumentar a frequência, adotando-se a posição sentada
Constipação
Aumentar a oferta de fibras, ajustar a quantidade de água, pois o uso de diurético, associado à restrição hídrica, pode causar desidratação
Diarreia
Ajustar oferta hídrica considerando as perdas fecais. Preferir alimentos de consistência branda; ofertar 5 a 6 refeições/dia, aumentar a ingestão de alimentos ricos em fibras solúveis (aveia, frutas com casca, inhame, mandioca) e evitar os ricos em fibras insolúveis (cereais integrais, milho, verduras e legumes com casca), evitar alimentos ricos em lactose, substituir o leite convencional pelo com baixo teor de lactose
Náuseas e vômitos
Rever as doses de digoxina e outras medicações (a intoxicação digitálica pode se iniciar com vômitos). Comer devagar, mastigando bem. Evitar excesso de açúcar, gordura e temperos. Preferir alimentos frios ou em temperatura ambiente. Preferir alimentos macios (purês, massas bem cozidas, arroz). Evitar excesso de líquidos durante as refeições. Não deitar após a alimentação
Segurança alimentar
Corrigir erros quantitativos e qualitativos, horário das refeições, orientar sobre higiene dos alimentos e utensílios e a forma de ofertar os alimentos
Insegurança da mãe ou do cuidador
O apoio multiprofissional para as mães é muito importante para ajudá-las a lidar com dificuldades do tratamento (cansaço, vômitos, administração de múltiplos medicamentos). Diante das dificuldades expostas pela mãe, deve-se confortá- -la, ressaltando que a persistência e os esforços para alimentar seu filho serão recompensados. Mesmo que a criança não se alimente como a mãe acha que deveria, é importante a proximidade física com ela durante os horários de alimentação. Reforçar que a alimentação do seu filho deve ser uma experiência positiva, e não uma situação estressante. Deixar a criança decidir quando está satisfeita. Se ela não cresce normalmente por causa da cardiopatia, a cirurgia cardíaca pode permitir que ela cresça mais rapidamente, com chance de recuperar peso e estatura. Crianças cardiopatas muitas vezes atingem um crescimento satisfatório na adolescência. A equipe deve estar sempre disposta a tirar as dúvidas e a incentivar29
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1476 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
Estratégia nutricional no período pós- -operatório de cirurgia cardíaca As dificuldades da terapia nutricional no período pós-operató‑ rio dependem do risco cirúrgico. Pacientes de médio e baixo risco cirúrgico, em geral, recebem alta da UTI nos primeiros dias após a cirurgia e são realimentados pela via oral sem in‑ tercorrências. Os de alto risco cirúrgico têm maior instabilida‑ de hemodinâmica, permanecem por mais tempo em ventila‑ ção pulmonar mecânica e na UTI. Nesses, em geral, não é possível atingir, nos primeiros dias após a cirurgia cardíaca, uma oferta que satisfaça as necessidades estimadas de ener‑ gia. A nutrição por sonda enteral deve ser iniciada, se possível, nas primeiras 24 a 48 horas, posicionando-se o paciente em proclive de 30 a 45°.
cialmente, nos pacientes com desnutrição grave, tempo de cir‑ culação extracorpórea muito prolongado ou se houver choque no intra ou pós-operatório. Dietas enterais industrializadas feitas especificamente para crianças menores de 12 meses têm maior teor energético (1 kcal/mL), mas também de proteínas e eletrólitos. Quando coexistem as situações de restrição de oferta hídrica e aumento das perdas insensíveis de água, o uso de dietas concentradas pode predispor à sobrecarga renal de solutos. Portanto, se houver indicação para o uso dessas die‑ tas, deve-se monitorar o balanço hídrico, eletrólitos séricos, ureia, diurese e densidade urinária. Recomenda-se que a os‑ molalidade das fórmulas infantis, para administração oral ou intragástrica, seja inferior a 460 mOsm/kg, o que equivale à osmolaridade de 400 mOsm/L. Fórmulas com osmolaridade maior que 300 mOsm/L podem causar diarreia quando admi‑ nistradas por sonda pós-pilórica. Quando o estresse metabólico decorrente da cirurgia entra em fase de resolução, o que geralmente ocorre após 7 a 10 dias, deve-se aumentar gradativamente a oferta de energia para se alcançar o anabolismo.
Critérios para a escolha das dietas enterais Para a seleção de uma dieta adequada às necessidades do pa‑ ciente, o pediatra deve conhecer, além da composição da fór‑ mula, as possíveis alterações nos processos fisiológicos de di‑ gestão e absorção acarretados pela cardiopatia. Em relação ao paciente, os seguintes itens devem ser considerados: capacida‑ de digestiva e absortiva do trato gastrointestinal, necessidades Nutrição parenteral no período pós-operatório nutricionais específicas, que variam conforme a situação clínica, de cirurgia cardíaca e necessidade de restrição hídrica e de eletrólitos. Em relação à Se o paciente não puder receber nutrição oral ou enteral efeti‑ fórmula, o grau de absorção é determinado pela forma e pela va em até 5 dias, deve-se iniciar nutrição parenteral para atin‑ concentração de cada nutriente (p.ex., uso de proteína inteira gir os seguintes parâmetros: ou hidrolisada; de lactose ou de polímeros de glicose). • energia: 1 a 1,2 vez a taxa metabólica basal (TMB). A TMB (em kcal/kg/dia) é estimada pela fórmula: 55 - (2 × idade em anos); Carga renal potencial de solutos • aminoácidos: 2,5 g/kg/dia; A carga renal potencial de solutos (CRPS) é a quantidade de • lipídios: 1 a 2 g/kg, com emulsões a MCT/LCT 20% (com trigli‑ cérides de cadeia longa e cadeia média em proporções iguais); solutos endógenos ou da dieta que precisaria ser excretada pela urina se nenhum deles fosse utilizado na síntese de no‑ • relação nitrogênio:calorias não proteicas 1:150 a 1:100; vos tecidos ou excretado por vias extrarrenais.11 É expressa • eletrólitos, conforme as recomendações para a faixa etária e condição clínica; pela seguinte fórmula: • vitaminas e oligoelementos nas doses recomendadas para crianças, inclusive selênio. CRPS = Na [mEq] + K [mEq] + Cl [mEq] + P [mEq] + proteína [g]/0,175 A carga renal de soluto (CRS) é a CRPS subtraída da parcela da CRPS que é excretada por vias extrarrenais e dos nutrientes utilizados para síntese de novos tecidos. Exceto quando há diarreia, as perdas extrarrenais são pequenas e podem ser ig‑ noradas. Então, a estimativa da CRS é: CSR = CRPS – (0,9 × ganho ponderal diário em g). A CRPS deve ser considerada um fator importante na manutenção do equilíbrio hídrico nas se‑ guintes situações: • fase aguda das doenças, quando a ingestão hídrica estiver di‑ minuída, especialmente na presença de febre; • uso de dietas de alta densidade energética; • temperatura ambiente elevada; • quando a capacidade de concentração renal está diminuída, como na doença renal crônica e na desnutrição grave. Em criança maiores de 1 ano de idade, devem ser utilizadas dietas pediátricas; nas menores, leite materno ordenhado ou, na sua ausência, fórmulas modificadas para lactentes. A fór‑ mula à base de hidrolisado proteico pode ser considerada, ini‑
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O acompanhamento nutricional por equipe multidisciplinar deve continuar após a alta hospitalar. Enteropatia perdedora de proteínas É uma doença caracterizada por dilatação de vasos linfáticos intestinais com consequente perda de proteínas, hipoalbumi‑ nemia, linfopenia, efusões pleurais e pericárdicas, diarreia, es‑ teatorreia e distúrbios hidreletrolíticos. No paciente cardiopa‑ ta, é mais frequente como uma complicação da cirurgia de Fontan, mas pode também ser secundária a situações como pericardite constritiva, miocardiopatia e estenose de valva tri‑ cúspide. Há uma hipótese multifatorial para explicar sua gê‑ nese após a cirurgia de Fontan, segundo a qual a lesão primá‑ ria seria causada pelo baixo débito cardíaco que ocorre após a cirurgia, o que acarretaria má perfusão da mucosa gastrointes‑ tinal. O consequente aumento da impedância vascular mesen‑ térica em conjunto com a congestão vascular causada pelo au‑ mento da pressão venosa resultaria em alteração da função do enterócito. Após perda para a luz intestinal, as proteínas linfá‑
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ticas são decompostas em aminoácidos e reabsorvidas na cir‑ culação portal. A doença manifesta-se quando a perda intestinal excede a capacidade de síntese proteica do paciente, havendo maior re‑ dução das proteínas de turnover lento, como a albumina e al‑ gumas imunoglobulinas. O aumento da pressão dos vasos lin‑ fáticos após a cirurgia de Fontan também contribui para a redução de absorção intestinal de nutriente. A diminuição da absorção de nutrientes (especialmente ácidos graxos de cadeia longa) e a constante demanda por ressíntese proteica aumen‑ tam o risco de desnutrição e atraso do crescimento. Essa ente‑ ropatia ocorre em 3 a 18% dos pacientes submetidos à cirurgia de Fontan. O tempo de aparecimento é variável (semanas a anos), sendo em média 3,5 anos após a cirurgia. Recomenda‑ -se que, após a cirurgia, seja feita avaliação periódica para veri‑ ficar perda proteica fecal, mesmo quando não há sintomas, com o clearance de 24 horas de alfa-1-antitripsina nas fezes.12 Para a terapia nutricional, deve ser prescrita fórmula láctea desengordurada (com menor teor de ácidos graxos de cadeia longa) acrescida de triglicérides de cadeia média, carboidrato e com maior oferta proteica. Os módulos de carboidratos e proteínas devem ser utilizados em proporções adequadas, de modo a reconstituir o teor de energia similar ao das fórmulas poliméricas completas. Quilotórax O quilotórax é uma complicação rara do pós-operatório cardía‑ co. Ocorre por lesão direta do ducto torácico em cirurgias de correção de coarctação da aorta, ligadura de canal arterial ou colocação de shunts arteriais sistêmico-pulmonares extracar‑ díacos. Pode ainda ser secundário à oclusão da veia cava supe‑ rior por trombo e em situações em que há aumento de pressão venosa, como cirurgias que envolvem anastomose cavopulmo‑ nar para o tratamento paliativo da síndrome do coração esquer‑ do hipoplásico. São cirurgias mais comuns associadas a essa complicação: correção total da tetralogia de Fallot, cirurgia de Fontan, de Glenn e transplante cardíaco. Pode haver desnutri‑ ção por perda de proteína no líquido quiloso; há também perda de sódio, cálcio e bicarbonato. Pode ocorrer imunodeficiência por diminuição de linfócitos e hipogamaglobulinemia. A exem‑ plo do tratamento da enteropatia perdedora de proteínas, de‑ vem-se utilizar dietas sem ácidos graxos de cadeia longa e fór‑ mula láctea desengordurada enriquecida com triglicérides de cadeia média, módulos de carboidratos e proteína. Os triglicéri‑ des de cadeia média não passam pelo sistema linfático, entran‑ do diretamente na circulação portal. Se o quilotórax é muito importante e não diminui com as modificações na dieta, reco‑ menda-se o jejum por via digestiva e a nutrição parenteral, cujo objetivo é não apenas manter o estado nutricional, mas repor as perdas de eletrólitos pelo líquido quiloso.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber diagnosticar as intercorrências clínicas. • Ter conhecimento para escolher a dieta enteral mais adequada. • Ter conhecimento para resolver as intercorrências clínicas.
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CAPÍTULO 9.3
TERAPIA NUTRICIONAL NAS DOENÇAS NEUROLÓGICAS Jocemara Gurmini Denise Tiemi Miyakawa
Introdução Dados epidemiológicos recentes sobre encefalopatia crônica na infância mostram uma prevalência de 65 casos a cada 1.000 nas‑ cidos vivos prematuros com peso inferior a 1.500 g. Uma série de estudos de coorte realizados na Inglaterra com bebês nascidos em 2006 e com idade gestacional entre 22 e 26 semanas (EPICure 2) mostrou que a sobrevida desses prematuros aumentou entre os anos de 1995 e 2006, porém, a proporção de lesões neurológicas graves em relação ao número de pacientes vivos foi mantida.1 A expectativa de vida de pacientes com encefalopatia tem aumentado gradativamente, chegando a 25 anos para pacien‑ tes do sexo masculino gravemente comprometidos. Entre es‑ ses pacientes, 52 a 92% apresentam variados graus de disfagia que se não for adequadamente diagnosticada leva à desnutri‑ ção e a uma maior morbidade e mortalidade.2 O aumento da prevalência de crianças com encefalopatia grave, o aumento da sobrevida, a influência que as complica‑ ções crônicas podem exercer sobre a qualidade de vida do doente e a dificuldade do autocuidado justificam a importân‑ cia do entendimento das particularidades do atendimento e do acompanhamento desses pacientes. Deficiências nutricionais As deficiências nutricionais causam parada no crescimento e desenvolvimento, diminuição da força muscular, alterações no sistema imunológico, prejuízo nas funções gastrointesti‑ nais e cardiorrespiratórias, alteração de comportamento com irritabilidade ou apatia e depressão, redução de energia para as reabilitações, desmineralização óssea com ou sem fraturas associadas. Colaboram para o aparecimento da desnutrição na encefalopatia crônica as alterações de cavidade oral, como mal conservação dentária e palato em ogiva. Outras alterações que podem ser encontradas são: o distúrbio de deglutição, a doen‑ ça do refluxo gastroesofágico, os distúrbios de motilidade in‑ testinal, os efeitos colaterais de medicações e as mudanças das necessidades energéticas secundárias a crises convulsivas de difícil controle, distonias, infecções.2-4
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Paciente com encefalopatia crônica, na maioria das vezes faz uso de mais de um anticonvulsivante ou outra medicação neu‑ rológica que, se por um lado controlam os sintomas, por outro podem trazer efeitos colaterais indesejáveis como deficiência de vitaminas do complexo B, vitamina D e carnitina, depressão do sistema nervoso central atrapalhando a alimentação, hiper‑ trofia de gengiva e xerostomia, que, associada a higiene precária e ao bruxismo, aumenta o risco de cárie e infecções orais.3,4 A enfermidade neurológica leva a alterações motoras de graus variados, tornando a criança dependente de um cuida‑ dor por toda a vida, inclusive na alimentação. Pacientes com baixa ingestão energética também ingerem menos micronu‑ trientes com uma redução em 15 a 50% de ferro, selênio, zinco, ácido graxos essenciais, vitaminas C, D e E.5,6 Comorbidades Os pacientes com encefalopatia crônica apresentam outros acometimentos além do neurológico como, por exemplo, a doença do refluxo gastroesofágico, que ocorre de forma silen‑ ciosa, podendo se manifestar com alteração do comportamen‑ to e levar a graus variados de lesão de mucosa esofágica, que vão da esofagite ao esôfago de Barret ou a estenose péptica.4,7 Não são raras as ocasiões em que quadros de infecções pul‑ monares de repetição levam a internações frequentes e pro‑ longadas. As pneumonias podem ser causadas por uma doen‑ ça pulmonar preexistente (p.ex., malformações ou displasia broncopulmonar), doença do refluxo gastroesofágico, imuno‑ deficiência secundária a desnutrição e aspiração pela disfagia.7 A paralisia cerebral é uma das enfermidades com maior asso‑ ciação com fraturas. A maioria ocorre nas extremidades inferio‑ res, principalmente fêmur (70 a 80%) e, geralmente, está asso‑ ciada a mínimo ou nenhum trauma. Além do aumento nos gastos com saúde, a fratura gera dor, úlcera por pressão, perda óssea adicional, dificuldade no posicionamento, falta da criança nas atividades escolares e diminuição da qualidade de vida. En‑ tre os fatores de risco para a baixa massa óssea estão a falta de deambulação durante a formação óssea, as imobilizações fre‑
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quentes decorrentes de cirurgias ortopédicas, a nutrição prejudi‑ cada em razão de disfagia, o uso de anticonvulsivantes, a prema‑ turidade, a pouca exposição ao sol, a deficiência de vitamina D e a deficiência de hormônio do crescimento. Crianças e adolescen‑ tes com limitações motoras moderadas e graves são mais vulne‑ ráveis a baixa massa óssea com aumento no risco de fraturas.5,7,8 Avaliação da condição nutricional No atendimento do paciente com encefalopatia crônica, uma história clínica detalhada é de grande importância. Dados re‑ ferentes a causa da doença neurológica, duração e evolução, informações perinatais, medicamentos utilizados, doenças associadas, internações, profissionais que o acompanham, te‑ rapias e antecedentes alimentares são informações importan‑ tes para o atendimento desses pacientes.5,7 Na avaliação da alimentação deve-se questionar quem ali‑ menta a criança, local, consistência do alimento, o tempo gas‑ to em cada refeição, escape de alimentos para fora da boca, presença de tosse, palidez cutânea, cianose, regurgitação ou vômitos durante a refeição. Algumas informações na alimen‑ tação oral sinalizam riscos nutricionais: tempo prolongado para a alimentação, refeições estressantes para o cuidador e a criança, ausência de ganho de peso nos últimos 2 a 3 meses se lactente ou anos se criança maior, sinal de alteração respirató‑ ria durante a alimentação.4 No exame físico observar tônus muscular, nível de atividade, presença de movimentos involuntários, contraturas, deformi‑ dades, úlceras por pressão, sinais de doença pulmonar crônica, constipação intestinal e carências nutricionais específicas.5-7 Em pediatria, o crescimento normal sugere uma criança saudável. No entanto, existem algumas dificuldades a serem superadas na avaliação do paciente com dificuldades motoras. Há a necessidade de balanças especiais ou da pesagem do cui‑ dador com a criança descontando o peso do cuidador. Além disso, as deformidades, as contraturas, os espasmos, a esco‑ liose e a impossibilidade de ficar em pé dificultam a medida da estatura. Para a verificação da estatura foram criadas algumas fórmulas que fornecem a estatura estimada, sendo as mais co‑ nhecidas as desenvolvidas por Stevenson et al. Elas utilizam medidas de segmentos como comprimento de tíbia, altura do joelho e comprimento do braço, podendo ser usadas para crianças de ambos os sexos até 12 anos de idade.9 Tabela 1 Fórmulas para o cálculo da estatura estimada Medida do segmento
Cálculo da estatura estimada
DP
Comprimento de braço
(4,35 x CB) + 21,8
± 1,7
Comprimento de tíbia
(3,26 x CT) + 30,8
± 1,4
Altura do joelho
(2,69 x AJ) + 24,2
± 1,1
Fonte: Stevenson, 1995.9
Algumas considerações sobre a avaliação da condição nutri‑ cional, principalmente a antropometria, têm sido levantadas em revisões recentes sobre o tema. Com relação à estatura, ela é estimada, necessitando de equipamentos, técnica para as medidas e o conhecimento de qual a melhor equação a ser em‑
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pregada, principalmente para pacientes acima de 12 anos de idade. Pacientes com encefalopatia tendem a ser menores e a nutrição parece ter mais efeito sobre o peso e as reservas de gordura que sobre o crescimento linear. Dados contraditórios foram verificados em um estudo publicado por Martínez-Costa em 2011, que mostrou que pacientes submetidos a gastrosto‑ mia antes de 18 meses apresentaram melhores índices de esta‑ tura em relação aos que receberam cuidados nutricionais mais tardiamente, talvez porque a melhora do aporte nutricional ocorreu em fases nobres do crescimento. Outro dado relevante diz respeito a lesão cerebral que poderia causar ruptura das co‑ nexões hipotálamo-corticais, levando a alterações na homeos‑ tase da energia e saciedade. Condições como deficiência de hormônio de crescimento e puberdade prolongada com menor estirão também poderiam comprometer a estatura final.5,10 Curvas Questiona-se qual a melhor curva de crescimento a ser empre‑ gada, qual o percentil a ser considerado adequado e o emprego ou não de curvas especiais que talvez reflitam como um grupo de pacientes com encefalopatia cresceu e não como deveriam crescer.11 Em 1996, Krick et al., a partir da análise retrospectiva de da‑ dos antropométricos de peso e estatura de 360 crianças com encefalopatia crônica quadriplégica espástica, entre 0 e 120 meses, elaboraram curvas de estatura para a idade, peso para a idade e peso para a estatura – comparadas com as curvas do NCHS (National Center for Health Statistics).12 Day et al. em 2007 desenvolveram curvas de crescimento baseado nas medidas de pacientes neuropatas acompanhados no Estado da Califórnia (Estados Unidos), a partir de dados ar‑ quivados (1987-2002) de peso e estatura de 24.920 pacientes. Foram criadas curvas de 2 e 20 anos para os sexos masculino e feminino e o traçado comparando as curvas do CDC. Nesse es‑ tudo, foi considerada neuropatia a lesão não progressiva do cé‑ rebro ocorrida durante a vida intrauterina ou período perinatal, caracterizado por paralisia, espasticidade ou controle alterado dos movimentos ou postura e que se manifestava antes dos 2 a 3 anos de vida. Foram excluídos pacientes com lesão pós-natal (trauma, tumor...) e outros diagnósticos (autismo, síndrome de Down, doença degenerativa). Os grupos foram separados pela capacidade motora segundo o Gross Motor Function Clas‑ sification System (GMFCS). As limitações para o estudo foram a perda de seguimento dos pacientes com lesão leve e a não validação dos métodos para avaliação da estatura.11 Brooks et al. em 2011 utilizaram 102.163 aferições de peso da coleta dos dados referente ao trabalho de 2007 de Day et al. para determinarem os percentis de peso para a idade de acordo com sexo e capacidade funcional que se associavam a piores desfechos clínicos. O trabalho resultou em curvas de peso para a idade com demarcação de faixa na qual, estatisticamente, havia maior ocorrência de afecções clínicas e risco de morte.11,13 Talvez as curvas de crescimento empregadas poderiam ser as mesmas utilizadas para crianças saudáveis, respeitando-se o canal de crescimento. A avaliação combinada de indicadores permite melhorar o diagnóstico nutricional.
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Composição corporal A avaliação da composição corporal também poderia contribuir na avaliação nutricional. As pregas cutâneas, principalmente a tricipital, já foi considerada como mais sensível que o peso para identificar indivíduos nutridos. Mais recentemente, verificou‑ -se que as pregas poderiam subestimar os estoques de gordura, uma vez que a sua distribuição estaria concentrada na região abdominal (central). O DEXA (dual-energy X-ray absorptiometry) parece ser um dos melhores métodos para determinar se os estoques de gordura estão adequados ou depletados, apesar das dificuldades quanto ao posicionamento do paciente para o exame.14 A bioimpedância é um método portátil, rápido, pro‑ missor, mas a movimentação do paciente e as alterações no es‑ tado de hidratação são alguns desafios a serem superados.4,14-16 Avaliação da deglutição Sempre que possível solicitar avaliação de um profissional es‑ pecializado (otorrinolaringologista e fonoaudiólogo). Já na primeira consulta é importante inspecionar ativamente como a criança se alimenta. Deve-se observar a posição da criança, os utensílios utilizados (tamanho e material), consistência, escape de alimento, tempo que o alimento permanece na boca, presença de tosse, alteração na voz ou dispneia. Exames complementares Na avaliação do paciente com encefalopatia crônica alguns exames podem auxiliar a abordagem inicial e seguimento. Cabe lembrar que esses pacientes podem apresentar outras comorbidades não relacionadas à doença neurológica, como doença celíaca, fibrose cística e doença inflamatória intestinal, que agravam a condição nutricional.6 Algumas medicações podem interferir nas avaliações séricas. Um exemplo é o fenobarbital, que pode aumentar o volume cor‑ puscular médio, e outros anticonvulsivantes, que podem alterar a absorção de vitamina D e B12 .6 Na Tabela 2 seguem algumas sugestões de exames comple‑ mentares. Tabela 2 Exames complementares Exames séricos Albumina e pré-albumina Hemograma, ferro sérico, ferritina Cálcio, fósforo, fosfatase alcalina, vitamina D (25-OH-D) Vitamina B12 e folato Zinco e carnitina (ácido valproico) Perfil lipídico Gama GT, transaminases, amilase Avaliação da deglutição 1. Videodeglutograma 2. FEES – fiberoptic endoscopic evaluation swallowing safety Exame endoscópico da deglutição, permite a avaliação da sensibilidade da mucosa Avaliação do aparelho digestório Radiografia contrastada de esôfago, estômago e duodeno Endoscopia digestiva alta com biópsias
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Orientações nutricionais específicas Determinar as necessidades nutricionais de pacientes porta‑ dores de necessidades especiais é passível de falhas, principal‑ mente pela falta de parâmetros para comparação, pelas defor‑ midades físicas que impossibilitam a mensuração e pelo crescimento e desenvolvimento anormais. As necessidades energéticas para pacientes que não deambulam parecem ser muito próximas das necessidades basais, uma vez que alguns estudos mostraram que após a gastrostomia houve um ganho de peso, das pregas cutâneas e das circunferências com 75 a 80% das necessidades energéticas para idade e sexo.4,17 Seguem na Tabela 3 alguns métodos para determinar a ne‑ cessidade energética do paciente com comprometimento neu‑ rológico. Tabela 3 Métodos para determinar a necessidade energética diária de crianças neurologicamente comprometidas 1. Referência de ingestão diária pelo gasto energético basal Ingestão energética (kcal/dia) = gasto energético basal x 1,1 2. Calorimetria indireta Ingestão energética (kcal/dia) = {gasto energético basal x tônus muscular x atividade} + crescimento, em que: GEB (kcal/dia) = superfície corporal (m2) x razão energética padrão (kcal/m2/h) x 24 Tônus muscular = 0,9, se baixo; 1, se normal; 1,1, se aumentado Atividade = 1,1, se acamado; 1,2, se cadeirante ou engatinha e 1,3, se deambula Crescimento = 5 kcal/g de ganho de peso desejado 3. Estatura 15 kcal/cm em criança sem disfunção motora 14 kcal/cm em criança com disfunção motora, mas que deambula 11 kcal/cm em criança que não deambula Fonte: NCP 2008; 23:597-607/JPGN 2006; 43:123-135/ Paediatr Child Health 2009; 14:395-401.
Para melhorar a ingestão oral A fonoaudiologia pode contribuir auxiliando no posiciona‑ mento e na orientação quanto aos utensílios adequados para as refeições, textura e consistência a ser oferecida, avaliação quanto à segurança da alimentação via oral. A nutrição pode contribuir com orientações visando a ade‑ quar a consistência dos alimentos, aumentando a densidade calórica das refeições com o uso de módulos de gordura e car‑ boidratos e promover a manutenção do adequado aporte hí‑ drico. A orientação de refeições menores com intervalos cur‑ tos, a utilização de espessantes e o uso de fórmulas poliméricas podem ser estratégias para a intervenção nutricional. Convém salientar que, quando possível, esses pacientes devem receber uma abordagem multidisciplinar. Via alternativa de alimentação (sonda) Diante de uma criança com encefalopatia crônica, está indica‑ da uma via alternativa de alimentação (gastrostomia) nas se‑ guintes situações: ganho de peso inadequado e falha no cresci‑ mento apesar das tentativas de melhorar a ingestão energética pela via oral, refeições longas com mais de 30 minutos, ali‑ mentação oral insegura, com risco de aspiração.4,5,7
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TERAPIA NUTRICIONAL NAS DOENÇAS NEUROLÓGICAS •
A sonda enteral estaria indicada em casos de uso por um curto período, já a gastrostomia, em situações em que a tera‑ pia nutricional enteral será realizada por tempo prolongado (> 6 semanas). Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Acompanhar o estado nutricional do paciente neuropata, evitando que a disfagia e a baixa ingestão comprometam o crescimento dessa criança. • Reconhecer os sinais de insegurança e insuficiência da via oral, necessitando a indicação de via alternativa de alimentação (sonda). • Reconhecer as complicações relacionadas a esses pacientes, prevenindo e tratando de maneira adequada. • Entender que o sucesso da terapia nutricional nem sempre é a retirada da sonda, mas a melhoria da condição nutricional, reduzindo a morbidade e mortalidade.
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CAPÍTULO 9.4
TERAPIA NUTRICIONAL EM SITUAÇÕES ESPECIAIS – DOENÇA RENAL Elza Daniel de Mello
Introdução O manejo nutrológico da criança com nefropatia é, ao mesmo tempo, amplo e específico. Amplo porque depende da situa‑ ção clínica envolvida, uma vez que a própria insuficiência re‑ nal crônica (IRC) pode ser considerada um quadro sindrômi‑ co; e específico porque depende do comprometimento da função renal em cada situação.1-3 As causas de IRC são várias, sendo as mais prevalentes as congênitas (hipoplasia ou displasia renal e uropatia obstruti‑ va) e as adquiridas (glomerulonefrite crônica, glomerulonefri‑ te membranoproliferativa e glomerulonefrite esclerosante fo‑ cal segmentativa).2 A desnutrição pode comprometer, de forma reversível, a função renal. Ela diminui a taxa de filtração glomerular (TFG), assim como a capacidade de concentrar e acidificar a urina. Com a melhora do estado nutricional, essas funções podem normalizar.1-3 As crianças com IRC, sobretudo com idade até 4 anos, de‑ vem ser cuidadosamente orientadas do ponto de vista nutri‑ cional, para que se possa assegurar a taxa de crescimento, preferencialmente acima do percentil 5 de altura para idade. Quanto mais precoce a ocorrência da IRC (TFG menor que 30%), potencialmente maior é o impacto da doença no cresci‑ mento da criança. A estatura baixa é um fator muito impor‑ tante na qualidade de vida dessas crianças. As consequên‑ cias da IRC são: desequilíbrio hidreletrolítico, acúmulo de toxinas endógenas e exógenas, hipertensão arterial sistêmi‑ ca, acidose metabólica, anemia, osteodistrofia renal, anore‑ xia e desnutrição. Além disso, muitos pacientes necessitam de corticoterapia, que interfere em vários aspectos nutricio‑ nais, como comprometimento ósseo, resistência insulínica e obesidade.1-5 A própria IRC interfere na secreção de adipocito‑ cinas, mediada por processos inflamatórios. Maggio et al. es‑ tudaram a associação da função renal com os níveis séricos de insulina e glicemia, verificando que, quando estão altera‑ dos, são fator de risco cardiovascular importante. Também descreveram que níveis normais de resistina expressavam
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uma adequação do estado nutricional e metabólico, sugerin‑ do que a resistina poderia ser um marcador do estado infla‑ matório e nutricional em crianças com IRC.6 A IRC tem como uma das complicações a uremia, que pode determinar náuseas, astenia, fadiga, diminuição da atenção, comprometimento do desempenho escolar, retardo de cresci‑ mento, alteração do débito urinário, respiração encurtada, ede‑ ma de face e extremidades e amenorreia em adolescentes. Portanto, a uremia compromete o desenvolvimento normal da criança e todos os esforços devem ser utilizados para evitá-la ou retardá-la pelo maior tempo possível.1-4 Outras consequências metabólicas da IRC são as seguintes:3,5,7 1. Expansão do volume extracelular: o fluido extracelular man‑ tém-se próximo do normal até os estágios finais da IRC, uma vez que os rins têm a capacidade de aumentar a excreção de sódio. Quando essa função é perdida, observa-se aumento do sódio sérico com consequente retenção hídrica (edema e hipervolemia) e hipertensão arterial. 2. Acidose metabólica: ocorre mais nos estágios finais da doença, mas compromete o estado nutricional, determinando degrada‑ ção de aminoácidos e comprometimento da massa magra. A acidose metabólica aumenta o catabolismo proteico e reduz a proteína corpórea; determina perda óssea e doença óssea; oca‑ siona uma progressão mais rápida da perda da função renal; in‑ duz a várias doenças endócrinas; aumenta o nível sérico de al‑ gumas citocinas pró-inflamatórias e da inflamação sistêmica; aumenta a mioglobulina beta-2; determina hipertrigliceride‑ mia; e, quando grave, ainda causa hipotensão e fraqueza. 3. Anemia: em razão do comprometimento da produção da eritro‑ poetina; por isso, a conduta está baseada no uso da eritropoeti‑ na recombinante humana e ferro endovenoso. Se o nível sérico de ferritina estiver baixo, pode-se também suplementar ferro.8 4. Doença cardiovascular: é a principal causa de morte no pa‑ ciente adulto. 5. Osteodistrofia renal: relacionada com as alterações no meta‑ bolismo do cálcio, fósforo e calcitriol, pelo hiperparatireoidis‑ mo e acúmulo de alumínio.9
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TERAPIA NUTRICIONAL EM SITUAÇÕES ESPECIAIS – DOENÇA RENAL •
6. Alterações no perfil lipídico: aumento sérico dos triglicérides e
diminuição das lipoproteínas de alta densidade. 7. Alteração no metabolismo da insulina: ocorre redução na secre‑ ção de insulina quando há comprometimento de 50% da função renal, contribuindo para perda de massa magra. No entanto, com a piora da função renal, a depuração da insulina diminui, havendo aumento de insulina com risco de hipoglicemia. 8. Alteração no trato digestório: refluxo gastroesofágico, esofagi‑ te, gastrite, náusea, vômito e paladar metalizado, especial‑ mente nos estágios finais.
Vários fatores que contribuem para a redução da ingestão ali‑ mentar e o aumento do catabolismo na IRC estão apresenta‑ dos na Tabela 1.5 Tabela 1 Fatores que contribuem para a anorexia e o aumento de catabolismo proteico na IRC1,3,7 Redução da ingestão alimentar
Alteração do paladar Inflamação crônica Restrição alimentar iatrogênica Uso de muitos medicamentos Aspectos psicológicos Uremia Diálise peritoneal (saciedade precoce)
Aumento do catabolismo proteico
Resistência insulínica Acidose metabólica Presença de outras enfermidades Hiperparatireoidismo Inflamação crônica decorrente de peritonite, depuração reduzida de citrinas inflamatórias, inflamação relacionada à diálise
Orientação nutricional No manejo conservador da IRC, devem-se adotar medidas die‑ toterápicas baseadas nas alterações metabólicas. A síntese de 1,25-di-hidroxicolecalciferol e a excreção de fósforo estão dimi‑ nuídas, ocasionando osteodistrofia e hiperfosfatemia. Sendo assim, deve-se:1-3 • restringir a ingestão de produtos lácteos, chocolate, nozes e bebidas à base de cola; • suplementar vitamina D e cálcio; • prescrever quelantes de fósforo sem alumínio nem magnésio; • priorizar as fórmulas lácteas ou de soja com relação cálcio:fósforo 2:1; • prevenir e tratar a hipertensão arterial secundária, com con‑ trole da ingestão de sódio e de fluidos (repor líquidos de acor‑ do com a perda urinária e as perdas insensíveis); • repor vitaminas e suplementar ácido fólico. O aporte de proteínas é fundamental para o crescimento linear, mas quando se restringe o fósforo e o sódio, esse acaba sendo consequentemente controlado. O ferro deve ser especialmen‑ te ofertado se o paciente estiver em uso de eritropoetina e/ou os níveis séricos de ferritina e transferrina estiverem diminuí‑ dos. O aumento dos níveis de triglicérides é secundário à me‑
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nor atividade da lipase hepática e é discutível se o controle da ingestão de carboidratos seja eficaz.1,3 Se os pacientes estão em diálise, o controle de sódio, potás‑ sio e fluidos deve ser individualizado. Cabe ressaltar que sem‑ pre se perde alguma porção de proteína para o líquido dialisa‑ do e a glicose é absorvida. O balanço nitrogenado deve ser mantido positivo para garantir o crescimento linear.2,6,10 As principais considerações nutricionais são:1-5,7,10-12 1. Fósforo: na IRC e no aumento sérico do paratormônio e da fosfatase alcalina, com ou sem hiperfosfatemia, deve-se utili‑ zar quelante de fósforo, dieta pobre em fósforo e suplementar vitamina D e cálcio. Na perda tubular pós-transplante, deve‑ -se suplementar fósforo. Os alimentos ricos em fósforo são lei‑ te e seus derivados, carne, frango, peixe, ovo e nozes. A Tabe‑ la 2 mostra a restrição de fósforo necessária conforme o peso corpóreo. 2. Sódio: deve ser controlado na hipertensão arterial sistêmica, na retenção hídrica e na terapia com corticosteroide, mas de‑ ve-se aumentar sua suplementação quando a perda urinária for maior ou ocorrer perda peritoneal para o líquido dialisado. Conforme a quantidade de sódio liberado, uma conduta é ne‑ cessária: 3 a 4 g de sódio (habitual dieta sem sal adicional). Os alimentos são preparados com pouco sódio e limita-se inges‑ tão de altas fontes, como pizzas, embutidos, alimentos em conserva, temperos prontos: 2 g de sódio – alimentos prepa‑ rados sem sal. 3. Potássio: ocorre hiperpotassemia quando a taxa de filtração glomerular é menor de 5%. Nesses casos, a dieta deve ser res‑ trita em potássio. Todavia, na terapia com diurético e na hipo‑ potassemia secundária à diálise peritoneal, pós-transplante ou diarreia, o potássio deve ser reposto. Fontes dietéticas são sucos, frutas e nozes. 4. Proteína: na criança com menos de 2 anos de idade com IRC, deve ser ingerida quantidade menor ou igual a 0,15 g/cm/dia de proteína. Naquelas com mais de 2 anos, deve-se seguir a RDA (recommended dietary allowance) para a estatura da criança. Quando estiver em hemodiálise e com mais de 2 anos de idade, ofertar quantidade menor ou igual de 0,3 g/cm/dia de proteína. Na vigência de diálise peritoneal, o aporte geral‑ mente deve ser maior e, pós-transplante, a RDA de proteína deve ser aquela definida para estatura e idade. Geralmente as crianças ingerem mais proteínas de alimentos sólidos, então, a ingestão de leite e derivados deve ser controlada. Cerca de 70% das proteínas devem ser de alto valor biológico, sendo as fontes carne, peixe, queijo, ovo e leite. Deve-se salientar que, pelo alto conteúdo de fósforo, habitualmente deve-se limitar a ingestão de queijo, ovos e leite. A Tabela 3 mostra as neces‑ sidades nutricionais de proteína nas crianças em diálise.3 5. Calorias: quando a criança estiver desnutrida, ofertar 80 a 100% da RDA para estatura e idade. Na criança com menos de 2 anos de idade, com IRC e sem tratamento dialítico, deve-se ofertar 6 a 12 kcal/cm/dia; na maior de 2 anos de idade em hemodiálise, 10 kcal/cm/dia. A ingestão oral comumente vai ser comprometida. Inicialmente, suplementos via oral po‑ dem ser suficientes, mas, quando a taxa de crescimento co‑ meça a desacelerar, passa a ser necessário uso de sonda ou
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gastrostomia para que o aporte necessário seja ingerido. Quando a criança estiver em diálise peritoneal, deve-se aten‑ tar que a glicose do líquido dialítico é absorvida, representan‑ do 8 a 12 kcal/kg/dia. Esse aspecto deve ser valorizado se es‑ tiver sendo observado excesso de peso, e não desnutrição. Pode ser necessário ofertar preparações com 2 kcal/mL quan‑ do houver restrição hídrica. 6. Vitaminas e minerais: deve-se garantir o aporte de todas as vi‑ taminas e os minerais conforme recomendado para todas as crianças na mesma faixa etária e sexo, exceto para as vitami‑ nas A e D. A excreção da vitamina A pode estar comprometida e a hipervitaminose A pode estar associada com hipercalce‑ mia, anemia e hiperlipidemia. A vitamina D deve ser prescrita na sua forma ativa para prevenir a osteodistrofia. Tabela 2 Restrição de fósforo na IRC4 Peso corpóreo (kg)
Fósforo permitido (mg/dia)
< 10
< 400
10 a 20
< 600
20 a 40
< 800
> 40
< 1.000
Tabela 3 Necessidade de proteínas em crianças em diálise4 Meninas e meninos
Recomendação de ingestão proteica (g/kg/dia) Diálise peritoneal
Hemodiálise 3
Pré-termo
3a4
0 a 6 meses
2,1 a 3
2,1
6 a 12 meses
2a3
1,5 a 2
1 a 2 anos
2a3
1,5 a 1,8
2 anos a puberdade
2,5
1 a 1,5
Puberdade Pós- -puberdade
2
1 a 1,5
1,5
1 a 1,5
As Tabelas 4, 5 e 6 mostram as orientações gerais no manejo nutrológico das disfunções renais. No paciente com cálculo renal, também é necessária uma orientação nutrológica. A formação dos cálculos no trato uriná‑ rio é um fenômeno multifatorial que resulta da supersaturação urinária, nucleação, agregação, retenção e crescimento dos cris‑ tais. Em geral, a cristalização decorre de anormalidades na com‑ posição urinária que causam a supersaturação dos promotores (cálcio, oxalato e ácido úrico) ou a diminuição dos inibidores da formação de cristais (citrato, glicosaminoglicanos e nefrocalci‑ na), ou ambos. Outros fatores também envolvidos na litogênese são pH urinário, volume urinário e dieta. Existem vários tipos de cálculos renais que diferem em composição e patogênese. Cerca de 80% dos cálculos contêm sais de cálcio compostos por oxalato ou fosfato, sendo o distúrbio metabólico frequentemen‑ te associado a hipercalciúria. Múltiplos fatores podem influen‑ ciar o modo como a dieta promove alterações urinárias que le‑ vam à formação de cálculos. A baixa ingestão de líquidos ou a desidratação podem aumentar a concentração e mudar o pH da urina, como também causar hipocitratúria. A alta ingestão de sódio estimula a hipercalciúria e diminui a concentração de ci‑ trato urinário. A dieta rica em proteína animal aumenta o ácido úrico e o cálcio urinário. O cálcio influencia a concentração uri‑ nária de cálcio e oxalato. As modificações da dieta para controle da formação de cálculo, nos pacientes com hipercalciúria, tam‑ bém requerem alterações de outros componentes da dieta além do cálcio, como oxalato, sódio e purinas. Algumas pesquisas de‑ monstram que a baixa ingestão de cálcio diminui a excreção uri‑ nária de cálcio; porém, essa restrição pode levar à hiperoxalúria secundária. A menor disponibilidade de cálcio na luz intestinal para ligação com o oxalato resulta em maior quantidade de oxa‑ lato livre dentro do trato gastrointestinal e aumenta, assim, o risco para litíase renal pelo consequente aumento da concentra‑ ção urinária de oxalato. Um ponto importante a ser destacado é que a restrição de cálcio da dieta torna-se inapropriada, pois também pode levar à deficiência de cálcio e perda da massa ós‑ sea. Na literatura, discute-se muito sobre o papel do cálcio na dieta para crianças com hipercalciúria e litíase renal. Assim, re‑
Tabela 4 Orientação nutrológica geral da insuficiência renal aguda2,3 IRA sem diálise
IRA com diálise peritoneal ou hemodiálise
IRA com diálise contínua
Energia
Conforme idade e sexo
Conforme idade e sexo
Conforme idade e sexo
Proteína
Conforme idade e sexo ou menos, dependendo da ureia
Conforme idade e sexo mais 0,2 g/kg na hemodiálise e mais 0,4 g/kg na diálise peritoneal
Mínimo de 2,5 g/kg
Sódio
Depende do nível sérico e da volemia
Depende do nível sérico e da volemia
Geralmente sem restrições e pode ser necessária suplementação
Potássio
Muito restrito
Restrito
Geralmente sem restrições e pode ser necessária suplementação
Fósforo
Muito restrito
Restrito
Geralmente sem restrições e pode ser necessária suplementação
Fluidos
Variam de acordo com a diurese
Variam de acordo com a diurese
Pode ser necessária suplementação
Micronutrientes
Muito restrito em vitaminas lipossolúveis
Limitado em vitaminas lipossolúveis
Pode ser necessária suplementação, especialmente de selênio e tiamina
IRA: insuficiência renal aguda.
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TERAPIA NUTRICIONAL EM SITUAÇÕES ESPECIAIS – DOENÇA RENAL •
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Tabela 5 Orientação nutrológica geral na síndrome nefrótica2,3 Energia
Conforme idade e sexo
Proteína
Conforme idade e sexo
Sódio
1 a 3 mEq/kg, pode variar conforme edema ou hipertensão
Potássio
Sem necessidade de restrição
Fósforo
Sem necessidade de restrição
Fluidos
Variam conforme diurese
Micronutrientes
Conforme idade e sexo
Tabela 6 Suporte nutrológico geral na insuficiência renal crônica2,3 Taxa de filtração glomerular < 15 a 59 mL/ min/1,73 m2 (estágios 3 a 5)
Em hemodiálise
Em diálise peritoneal
Energia
Conforme sexo e idade
Conforme sexo e idade
Conforme sexo e idade
Proteína
Taxa de filtração glomerular 30 a 59 mL/ min/1,73 m2 (estágio 3) = 100 a 140% × necessidades diárias/kg de peso corpóreo ideal Taxa de filtração glomerular < 15 a 29 mL/ min/1,73 m2 (estágios 4 e 5) = 100 a 120% × necessidades diárias/kg de peso corpóreo ideal
Necessidades diárias + 1 g/kg de peso corpóreo ideal
Necessidades diárias + 0,15 a 0,3 g/kg de peso corpóreo ideal (dependendo da idade)
Sódio
1 a 3 mEq/kg, varia de acordo com edema e hipertensão
1 a 3 mEq/kg, varia de acordo com edema e hipertensão
1 a 3 mEq/kg, varia de acordo com edema e hipertensão
Potássio
Maioria tolera > 3 mEq/kg/dia
1 a 3 mEq/kg/dia, mas varia conforme nível sérico e idade
Geralmente sem restrição
Fósforo
Limitado a 80 a 100% × necessidades diárias para manter níveis séricos normais
Limitado a 80 a 100% × necessidades diárias para manter níveis séricos normais
Limitado a 80 a 100% × necessidades diárias para manter níveis séricos normais
Fluidos
Geralmente sem restrição
Repor diurese, perdas insensíveis e ultrafiltração
Repor diurese, perdas insensíveis e mais aproximadamente 1 L
Micronutrientes
100% necessidades diárias e suplementar vitaminas hidrossolúveis, se necessário
100% das necessidades diárias e repor vitaminas hidrossolúveis
100% das necessidades diárias e repor vitaminas hidrossolúveis
comenda-se a ingestão de cálcio referente às recomendações para a faixa etária e a redução da ingestão de sal e de oxalato. O oxalato está presente em grande quantidade nos alimentos de origem vegetal, no entanto, somente espinafre e ruibarbo são considerados alimentos de alto risco, pois apresentam gran‑ de concentração de oxalato biodisponível. Amendoim, amên‑ doa, chocolate, noz pecã e chá instantâneo são considerados alimentos de moderado risco.13 Assim, no suporte nutricional do paciente com IRC, é fun‑ damental otimizar a nutrição, prevenir a osteodistrofia e man‑ ter a velocidade de crescimento. O impacto da IRC no cresci‑ mento depende da gravidade e da duração da insuficiência renal. A terapia nutrológica é individualizada e realizada pre‑ ferencialmente por uma equipe multidisciplinar, contando, pelo menos, com profissionais de nefrologia e nutrologia pe‑ diátricas, nutrição, enfermagem e psicologia. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender que a orientação nutricional da criança com nefropatia é muito individualizado. • Saber os princípios básicos para cada enfermidade nefrológica. • Saber que a conduta nutricional deve ser precoce no início da doença e que, quando adequada, altera de forma positiva a evolução da doença nefrológica.
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CAPÍTULO 9.5
TERAPIA NUTRICIONAL EM SITUAÇÕES ESPECIAIS –CÂNCER Elza Daniel de Mello
Introdução A terapia nutricional (TN) na criança com câncer é muito impor‑ tante, uma vez que a prevalência dessa condição é grande. Fo‑ ram estimados, para o ano de 2014, no Brasil, 394.450 casos no‑ vos de câncer, excluindo-se os tumores de pele não melanoma.1 A incidência das neoplasias pediátricas difere de acordo com o tipo de tumor, a idade, o sexo e a etnia, mas, em geral, a incidência total de tumores malignos na infância é ligeira‑ mente maior no sexo masculino e normalmente afeta as célu‑ las do sistema sanguíneo e os tecidos de sustentação.1,2 As neoplasias mais frequentes na infância são leucemias, tumo‑ res do sistema nervoso central (SNC) e linfomas, seguidos de neuroblastoma, nefroblastoma ou tumor de Wilms, retino‑ blastoma, tumores germinativos, osteossarcoma e os sarco‑ mas de partes moles.1 As formas mais comuns de tratamento antineoplásico incluem quimioterapia, radioterapia, cirurgia e transplante de medula óssea. O tratamento, assim como a doença em si, tem efeitos agressivos, deixando o organismo mais vulnerável e aumentando o risco de desnutrição.3-5 Pacientes pediátricos com câncer podem apresentar algum grau de desnutrição ao diagnóstico e elevada incidência de desnutrição após o início do tratamento. Levantamentos de‑ monstram que de 6 a 50% dos pacientes pediátricos com cân‑ cer já apresentam algum grau de desnutrição no momento do diagnóstico.3 Cabe ressaltar que essa ampla prevalência de desnutrição por ocasião do diagnóstico e durante o tratamen‑ to pode ser decorrente também do método utilizado para ava‑ liação nutricional, além da época da publicação do estudo. Houve grande progresso no tipo de tratamento (está menos tóxico) e na qualidade do manejo dos efeitos adversos (trata‑ mento antiemético e das mucosites) e da TN (mais precoce). Verifica-se que o estado nutricional começa a deteriorar-se ra‑ pidamente após o início do tratamento e que alguns pacientes permanecem desnutridos por um tempo considerável durante sua terapia. Há evidências crescentes de que o estado nutri‑ cional ruim está associado negativamente com a ocorrência de toxicidade à quimioterapia e até mesmo com a evolução da
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doença.4 Isso reforça a necessidade do desenvolvimento de métodos baseados em evidências e eficientes para o diagnósti‑ co do estado nutricional e da TN em pacientes oncológicos pe‑ diátricos. Os motivos que determinam a perda de peso e a desnutri‑ ção ao diagnóstico são variáveis, sempre envolvendo deficiên‑ cia de energia e/ou inflamação que ocasiona perda de massa gorda e de massa livre de gordura.1,3,4 Redução da ingestão ali‑ mentar, alteração do gasto energético, absorção e metabolis‑ mo de nutrientes, além de complicações, como toxicidade oral e gastrointestinal, nefrotoxicidade e infecções, têm papel im‑ portante na etiologia da desnutrição no câncer infantil.4-6 Pode-se também observar sobrepeso e obesidade, que não deixa de ser risco nutricional e desnutrição, pois há aumento de massa gorda sem aumento de massa magra. Vários fatores po‑ dem afetar o peso do paciente pediátrico com câncer, incluindo medicamentos, alimentação e falta de exercício físico. A qui‑ mioterapia de indução e reindução, por exemplo, inclui o uso de altas doses de esteroides ao longo de semanas, o que leva as crianças e os adolescentes a ganharem peso rapidamente. O tra‑ tamento com glicocorticoides causa aumento significativo no consumo de energia, e esse efeito contribui para o ganho de peso excessivo e a obesidade. Esse aspecto é muito observado nos pacientes submetidos a tratamento para leucemia linfocíti‑ ca aguda. Esse excesso de peso é um fator de risco adicional para surgimento de diabete melito tipo 2, hipertensão arterial e doenças cardiovasculares, além do próprio risco oriundo das quimioterapias. Portanto, além de todos os fatores citados ante‑ riormente, a própria terapia antineoplásica pode induzir efeitos colaterais gastrointestinais (náusea, vômitos, mucosite oral e intestinal, esofagite, diarreia ou constipação), além de altera‑ ções de digestão e absorção de nutrientes, aumentando, portan‑ to, o risco nutricional desses pacientes.4-7 Nos pacientes oncológicos pediátricos, a desnutrição tem correlação com maior número de infecções, menor resposta terapêutica, maior probabilidade de recidivas e menores taxas de sobrevida.7-10
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1488 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
Avaliação nutricional É necessário, então, que esses pacientes tenham seu estado nu‑ tricional estabelecido no momento da internação ou logo após o seu diagnóstico. A precocidade em identificar os pacientes em risco nutricional ou com desnutrição contribui para a institui‑ ção de medidas de intervenção nutricional cada vez mais preco‑ ces, facilitando a recuperação e a melhora do prognóstico.1,11,12 Para a classificação do estado nutricional, é necessária uma avaliação nutricional completa, que inclui parâmetros antropométricos (peso, estatura, medidas de dobra cutânea tricipital [DCT] e circunferência muscular do braço [CMB]), bioquímica, clínica e dietética. Essa avaliação é semelhante em qualquer criança e adolescente.1,5 São considerados critérios para diagnosticar a criança com risco nutricional:6 • perda total de peso > 5% do peso usual no mês anterior ao diagnóstico da doença; • peso menor que o percentil 5 para idade; • altura menor que o percentil 5 para idade; • peso para altura menor que o percentil 5; • peso < 90% do peso corpóreo ideal para altura; • DCT menor que o percentil 10 para idade e sexo; • CMB menor que o percentil 5 para idade e sexo; • índice de massa corpórea menor que o percentil 5 para idade e sexo; • albumina sérica < 3,2 g/dL; • ingestão oral < 80% das necessidades estimadas. Deve-se também tentar determinar os níveis séricos de vita‑ minas A, C, E e D, zinco e selênio.1,5,9,10,12 Terapia nutricional O principal objetivo da TN em crianças em risco nutricional ou desnutridas submetidas à quimioterapia e/ou à radioterapia é oferecer energia, fluidos e nutrientes em quantidades adequa‑ das para manter as funções vitais e a homeostase, minimizando os efeitos adversos causados pelo tratamento e favorecendo um balanço nitrogenado positivo, de modo a garantir crescimento e desenvolvimento adequados com qualidade de vida.1,2,13 A TN deve ser indicada e iniciada precocemente em todas as crianças com risco nutricional ou desnutridas, desde que em condições hemodinâmicas estáveis. Várias são as possibi‑ lidades de administração da TN, desde a enteral, via oral ou via sonda, até a parenteral, sendo essa última somente indica‑ da na vigência da impossibilidade total ou parcial do uso do trato gastrointestinal. A TN via oral é a mais recomendada e deve ser a primeira opção quando a ingestão alimentar for me‑ nor do que 75% das recomendações em até 5 dias consecuti‑ vos. A TN por sonda deve ser considerada mediante a impossi‑ bilidade da utilização da via oral ou na presença de ingestão alimentar inadequada (menor do que 60% das recomenda‑ ções por até 5 dias consecutivos), sem expectativa de melhora da ingestão. A descontinuidade da TN deve ser realizada me‑ diante instabilidade hemodinâmica, e sua suspensão deve ser programada quando a ingestão oral alcançar 60 a 70% das re‑ comendações por 2 a 3 dias consecutivos.1,3-5,12,13
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1488
A determinação das necessidades nutricionais pode ser ob‑ tida por meio de várias equações, não havendo, na literatura, recomendação específica para crianças com câncer submeti‑ das à quimioterapia e à radioterapia. Por isso, na clínica, para cálculo das necessidades calóricas, podem-se adotar as equa‑ ções da DRI 2006, de Holliday e Segar (1957) ou as recomen‑ dações da Aspen (2002)1 (Tabela 1). Em crianças desnutridas em recuperação, que necessitam de oferta calórica adicional para corrigir déficits de crescimen‑ to, as fórmulas podem ser calculadas com o peso observado no percentil 50 para estatura. Crianças com maior estresse meta‑ bólico, como grandes cirurgias e infecções, ou com aumento de perdas podem ter necessidades aumentadas de proteínas. Nesses casos, pode-se utilizar a relação N:calorias não protei‑ cas em torno de 1:80 a 1:100. Pode-se também utilizar a reco‑ mendação da Aspen (2002), que sugere um aumento de 15 a 50% das recomendações de proteínas para idade em caso de perda de peso e desnutrição.1,3,12,13 Os pacientes oncológicos apresentam vários efeitos colate‑ rais do tratamento que interferem com a ingestão alimentar, como saciedade precoce, náuseas, vômitos, xerostomia, muco‑ site, úlceras orais, disfagia, odinofagia, esofagite, anorexia e neutropenia. A seguir, serão listadas algumas sugestões de ma‑ nejo para o paciente com cada um desses efeitos colaterais.1,2,13 Saciedade precoce Modificar a consistência da dieta, preferindo aqueles com fi‑ bra abrandada e menor quantidade de fibra solúvel; aumentar o fracionamento da refeição e diminuir o volume; aumentar a densidade calórica das preparações; não ingerir líquidos nas refeições; evitar excesso de lipídios nas preparações. Náuseas e vômitos Conscientizar o paciente e o acompanhante da necessidade da alimentação, apesar das náuseas e dos vômitos, oferecendo uma segunda vez a refeição, aproximadamente 20 minutos após a primeira oferta; aumentar o fracionamento da dieta e reduzir o volume por refeição, oferecendo de 6 a 8 refeições ao dia; dar preferência a alimentos mais secos, de consistência branda; evitar jejuns prolongados; mastigar ou chupar gelo 40 minutos antes das refeições; evitar preparações que conte‑ nham frituras e alimentos gordurosos ou alimentos muito do‑ ces, e aquelas com temperaturas extremas, dando preferência aos alimentos gelados; evitar beber líquidos durante as refei‑ ções, ingerindo-os em pequenas quantidades nos intervalos; manter a cabeceira elevada (45°) durante e após as refeições; realizar as refeições em locais arejados, evitando locais fecha‑ dos onde possa se propagar o cheiro da refeição; orientar o consumo de alimentos cítricos (p.ex., suco e picolé de limão ou maracujá); revisar a prescrição e os horários de administra‑ ção de medicamentos antieméticos e daqueles que podem causar náuseas e vômitos.
Xerostomia Estimular a ingestão de alimentos mais prazerosos; adequar os alimentos conforme aceitação, ajustando a consistência quando
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Tabela 1 Necessidades nutricionais DRI 2006 Meninas e meninos De 0 a 3 meses: (89 × peso (kg) - 100) + 175 De 4 a 6 meses: (89 × peso (kg) - 100) + 56
De 7 a 12 meses: (89 × peso (kg) - 100) + 22 De 13 a 35 meses: (89 × peso (kg) - 100) + 20 Meninos De 3 a 8 anos: 88,5 - 61,9 × idade + fator atividade × (26,7 × peso + 903 × altura) + 20 De 9 a 18 anos: 88,5 - 61,9 × idade + fator atividade × (26,7 × peso + 903 × altura) + 25 Meninas De 3 a 8 anos: 135,3 - 30,8 × idade + fator atividade × (10 × peso + 934 × altura) + 20 De 9 a 18 anos: 135,3 - 30,8 × idade + fator atividade × (10 × peso + 934 × altura) + 25 Qual fator atividade usar 1 = atividades do dia a dia 1,16 = meninas com + de 30 a 60 min de atividade moderada 1,13 = meninos com + de 30 a 60 min de atividade moderada 1,31 = meninas com + 60 min de atividade moderada 1,26 = meninos com + 60 min de atividade moderada Qual peso utilizar 0 a 5 anos de idade Com baixo peso: utilizar o P/E do percentil 50 ou do escore Z = 0,00 Eutróficos: utilizar peso atual Com sobrepeso ou obesos: utilizar P/E no percentil 95 ou o escore Z= +2,00 5 a 19 anos Com baixo peso: utilizar o peso com base no IMC/I do percentil 50 ou do escore Z = 0,00 Eutróficos: utilizar peso atual Com sobrepeso ou obesos: utilizar o peso com base no IMC/I no percentil 95 ou o escore Z = +2,00 Obs.: esses ajustes em relação ao peso atual não devem ultrapassar 20% Holliday e Segar (1957)
0 a 10 kg: 100 kcal/kg
10 a 20 kg: 1.000 kcal + 50 kcal/kg para cada kg acima de 10 kg Mais de 20 kg: 1.500 kcal + 20 kcal/kg para cada kg acima de 20 kg Aspen (2002) De 0 a 1 anos: de 90 a 120 kcal/kg De 1 a 7
anos: de 75 a 90 kcal/kg De 7 a 12 anos: de 60 a 75 kcal/kg De 12 a 18 anos: de 30 a 60 kcal/kg De 18 a 25 anos: de 25 a 30 kcal/kg
necessário; utilizar complementos nutricionais industrializados com flavorizantes cítricos; dar preferência a alimentos umedeci‑ dos; utilizar gotas de limão nas saladas e bebidas; ingerir líquidos junto com as refeições para facilitar a mastigação e a deglutição; adicionar caldos e molhos às preparações; dar preferência a ali‑ mentos umedecidos; usar ervas aromáticas como tempero nas preparações, evitando sal e condimentos em excesso; mastigar e chupar gelo feito de água, água de coco e suco de fruta adoçado; utilizar goma de mascar ou balas sem açúcar com sabor cítrico para aumentar a produção de saliva e a sensação de sede.
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Mucosite e úlceras orais Modificar a consistência da dieta de acordo com o grau de mu‑ cosite; evitar alimentos secos, duros ou picantes;
utilizar ali‑ mentos à temperatura ambiente, fria ou gelada; diminuir o sal das preparações; consumir alimentos mais macios e pastosos; evitar vegetais frescos crus; evitar líquidos e temperos abrasi‑ vos; revisar a prescrição e os horários da administração dos analgésicos; intensificar a higiene oral, de acordo com as con‑ dições clínicas do paciente, desde a escovação dentária com escova extramacia até bochechos com água.
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Disfagia Modificar a consistência da dieta conforme aceitação; em caso de disfagia a líquidos, semilíquidos e pastosos, usar es‑ pessantes; em caso de disfagia a alimentos sólidos, orientar o paciente a ingerir pequenos volumes de líquido junto com as refeições para facilitar a mastigação e a deglutição; evitar ali‑ mentos secos; dar preferência a alimentos umedecidos; usar preparações de fácil mastigação e/ou deglutição; estimular a mastigação em caso de disfagia para sólidos. Odinofagia Modificar a consistência da dieta conforme aceitação pelo pa‑ ciente (pastoso ou líquido); aumentar o fracionamento da re‑ feição e diminuir o volume; utilizar alimentos secos e em tem‑ peratura ambiente; não utilizar sal nas preparações; evitar condimentos ácidos, assim como sucos e frutas que possam irritar a mucosa; orientar a mastigação cuidadosa para dimi‑ nuir aerofagia. Esofagite Modificar a consistência da dieta de acordo com a aceitação do paciente (intensidade da dor); aumentar o fracionamento da dieta e reduzir o volume por refeição, oferecendo de 6 a 8 refei‑ ções/dia; quando necessário, utilizar complementos nutricio‑ nais com flavorizantes não cítricos; evitar alimentos secos e duros; utilizar alimentos em temperatura ambiente; utilizar dieta hipolipídica e pobre em fibras insolúveis; diminuir o sal das preparações; dar preferência a alimentos na consistência pastosa (carnes macias, bem cozidas, picadas, desfiadas ou moídas) ou liquidificados; usar papas de frutas e sucos não ácidos; mastigar bem os alimentos evitando a aerofagia; man‑ ter a cabeceira elevada (45°) durante e após as refeições; evi‑ tar a ingestão de café, bebidas alcoólicas, refrigerantes ou qualquer bebida gaseificada; evitar condimentos ácidos que possam irritar a mucosa.
Anorexia Mostrar ao paciente e ao acompanhante a importância da ali‑ mentação, apesar da disgeusia e da disosmia; estimular a in‑ gestão de alimentos mais prazerosos para aqueles em que a disgeusia está aumentada; aumentar o fracionamento da die‑ ta e reduzir o volume por refeição, oferecendo de 6 a 8 refei‑ ções/dia; modificar a consistência dos alimentos conforme aceitação, liquidificando-os quando necessário; dar preferên‑ cia a alimentos com sabores mais fortes e em temperaturas ex‑ tremas para estimular outros sentidos.
Neutropenia Higienizar adequadamente todas as frutas e verduras que se‑ rão utilizadas, dando sempre preferência ao cozimento delas; não utilizar probióticos; utilizar água potável fervida guardada em geladeira ou mineral de 1 L com padrão de qualidade sem reutilizar embalagem; ingerir leites e derivados preferencial‑ mente esterilizados e em embalagens pequenas; utilizar pre‑ parações que foram confeccionadas nos padrões das Boas Prá‑ ticas de Segurança Alimentar; não ingerir oleaginosas, nem
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chás em sachês ou folhas secas; sempre preferir alimentos in‑ dustrializados em embalagens individuais. Considerações finais Pode-se ver que o risco nutricional e a desnutrição são extre‑ mamente prevalentes nos pacientes pediátricos com câncer e que o número de casos novos aumenta a cada ano. As causas da desnutrição são multifatoriais e a sua presença determina pior resposta terapêutica, qualidade de vida e taxa de sobrevi‑ vência. Assim, apesar da inexistência de protocolos específicos de avaliação nutricional e de TN para o paciente oncológico, todo profissional que maneja esse tipo de enfermidade deve se apropriar de um tipo de protocolo ou mesmo desenvolver o seu, pois assim estará, com certeza, instituindo precocemente a TN, podendo mudar o curso da doença de seu paciente. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender que o manejo nutricional da criança com câncer é muito importante. • Saber que o manejo nutricional deve ser precoce no início da doença e que esse manejo, quando adequado, altera de forma positiva a evolução do câncer. • Saber as principais manifestações adversas no paciente com câncer em tratamento e como manejar.
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TERAPIA NUTRICIONAL EM SITUAÇÕES ESPECIAIS – CÂNCER •
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CAPÍTULO 9.6
SÍNDROME DO INTESTINO CURTO Christiane Araujo Chaves Leite
Etiologia e fatores de risco para falência intestinal A síndrome do intestino curto (SIC) é uma condição que ocor‑ re como resultado de má absorção por uma doença congênita ou como resultado de uma ressecção cirúrgica de uma porção significativa do intestino.1 A quantidade de ressecção do intes‑ tino ou remanescentes geralmente determina o grau de má ab‑ sorção e consequentemente a necessidade de nutrição enteral especializada ou nutrição parenteral (NP).1 A falência intesti‑ nal (FI) no contexto da SIC é definida como uma dependência de NP para manter um mínimo de energia e a necessidade de fluidos para o crescimento em crianças. As causas comuns de SIC em lactentes e crianças incluem a enterocolite necrosante, volvo de intestino médio, atresias intestinais e gastrosquise (Tabela 1).2,3 Tabela 1 Causas de falência intestinal em crianças Atresia
Enterocolite necrosante
Volvo de intestino médio
Trombose arterial
Defeitos da parede abdominal
Trombose venosa
Gastrosquise
Intussuscepção
Onfalocele
Doença inflamatória intestinal
Doença de Hirschsprung
Ressecção intestinal pós- -traumática
Fonte: adaptada de Yildiz, 2012.3
Adaptação bem-sucedida refere-se à capacidade de surgi‑ rem alterações estruturais e fisiológicas que permitam que pa‑ cientes com SIC e FI cresçam e se mantenham saudáveis en‑ quanto recebem nutrição oral ou enteral. Preditores de adaptação bem-sucedida incluem a idade do paciente, o diag‑ nóstico subjacente que causou SIC, o comprimento e a porção do intestino delgado e/ou do intestino grosso ressecado, a presença ou ausência da válvula ileocecal e/ou cólon, poten‑ cial adaptativo intrínseco do intestino remanescente, a saúde
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dos outros órgãos que auxiliam na digestão e absorção, e a pre‑ sença de sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado.4,5 As taxas às quais dietas enterais são oferecidas no pós-opera‑ tório e os tipos de dietas enterais utilizadas também têm sido associados com os resultados da SIC.5,6 Incidência e taxas de sobrevivência Embora a incidência global de SIC seja de apenas 1.200/100.000 nascidos vivos, a taxa de mortalidade da doença é alta.7 As taxas de sobrevivência relatadas em SIC pediátrica variam de 73 a 89%, tornando SIC pediátrica uma das condições mais letais na idade de lactente e na infância.5,8-10 Um programa de trata‑ mento multidisciplinar tem sido associado com uma melhor sobrevivência.11 Complicações e conduta geral As complicações mais importantes da SIC referem-se à necessi‑ dade de administrar NP venosa central.12 Doença hepática pode desenvolver-se e caracteriza-se por esteatose, colestase e até mesmo cirrose. Complicações relacionadas ao cateter venoso central podem ocorrer, como a ruptura do cateter, trombose ve‑ nosa central e sepse bacteriana ou fúngica. Outras complica‑ ções comuns dependem da duração, natureza e anatomia cirúr‑ gica do intestino delgado remanescente. Diarreia e má absorção, distúrbios hidreletrolíticos, deficiências de micronutrientes, hi‑ persecreção gástrica, úlceras anastomóticas e supercrescimen‑ to bacteriano podem ocorrer em crianças com SIC.4 Essas crian‑ ças necessitam de cuidadoso monitoramento contínuo e tratamento, mesmo quando há um crescimento somático nor‑ mal ou uma história de ressecção intestinal limitada.13 O tratamento médico deve se concentrar principalmente na nutrição, que inclui o acompanhamento preciso da oferta de calorias, micronutrientes, fluidos e eletrólitos. Normal‑ mente, os pacientes necessitam de NP por um período. A maioria pode ser submetida à transição para a nutrição enteral plena.6 O padrão-ouro para o sucesso é o crescimento, uma vez que a NP tenha sido completamente interrompida, e a ma‑
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nutenção normal do estado nutricional de vitaminas e a fun‑ (DHANP). DHANP ocorre em 40 a 60% das crianças que rece‑ ção hepática.14 beram cursos prolongados de NP.19,20 Bebês com DHANP Crianças com SIC muitas vezes requerem medicamentos podem ter mudanças progressivas na histologia hepática, in‑ para otimizar o tratamento. Hipersecreção de ácido gástrico cluindo fibrose e eventualmente cirrose. Dados recentes confir‑ pode prejudicar a absorção de nutrientes e precipitar diarreia; maram que a doença hepática em doentes que receberam NP é bloqueio ácido com inibidores da bomba de prótons pode ser fortemente associada com a sobrevivência; em um estudo de útil nessas situações. Loperamida, fibras, octreotide e colesti‑ coorte de 78 crianças com SIC, a taxa de sobrevivência entre ramina podem ser úteis para o controle das fezes volumosas e aqueles com colestase (concentração de bilirrubina direta > 2 líquidas ou do débito da ostomia. Em pacientes com a exposi‑ mg/dL) foi próxima de 20%, em comparação com 80% naque‑ ção prolongada à NP, o ácido ursodesoxicólico pode acelerar a les sem colestase.9 Esses dados confirmam uma taxa muito ele‑ melhoria na colestase bioquímica. Sobrecrescimento bacteria‑ vada de mortalidade em crianças com SIC e doença hepática no no intestino delgado pode ser tratado com esquemas rotati‑ colestática incapazes de serem descontinuadas da NP.6 vos de antibióticos enterais. Suplementação de vitaminas e minerais, em especial as vitaminas lipossolúveis A, D, E, e K, é Fatores de risco predisponentes à DHANP fundamental para a preservação do estado nutricional de e tratamento crianças com SIC. Vários fatores de risco para o desenvolvimento de DHANP fo‑ A terapia mais importante para as crianças com SIC e FI é a ram identificados, incluindo nascimento prematuro, disrup‑ introdução precoce da nutrição enteral. O acesso direto ao tra‑ ção da circulação entero-hepática dos ácidos biliares, estase to gastrointestinal permite a distribuição contínua de formula‑ intestinal com o subsequente sobrecrescimento bacteriano, ções apropriadas que maximizem a oportunidade para a ab‑ sepse relacionada ao cateter, precoce ou recorrente, ingestão sorção. excessiva de glicose, causando hiperinsulinismo e esteatose A nutrição enteral é o fator isolado mais significativo na subsequentes, e alta oferta parenteral de proteína, gordura e/ promoção da adaptação intestinal, e pode desempenhar um ou carboidrato.4,6,21-23 O diagnóstico de DHANP tem historica‑ papel na redução da frequência de doença hepática associada mente sido estabelecido por testes bioquímicos de rotina da à FI. O leite materno é provavelmente a melhor escolha nos função hepática, incluindo transaminases hepáticas, bilirrubi‑ primeiros meses, por causa da presença de fatores tróficos, na conjugada, albumina e tempo de protrombina. O padrão‑ como o fator de crescimento epidérmico. Fórmulas hidrolisa‑ -ouro permanece sendo a histopatologia hepática, mas a pouca das ou à base de aminoácidos podem ser benéficas na descon‑ idade, tamanho pequeno e estado de saúde precário de mui‑ tinuação de crianças de NP, talvez em razão de uma carga anti‑ tos dos lactentes com suspeita de SIC e DHANP tornam as gênica menor e por serem de mais fácil absorção.6 biópsias do fígado de rotina e em série difíceis de executar. A alimentação contínua nasogástrica (NG), inicialmente Não há uma única teoria que consiga explicar todas as ca‑ seguida por alimentação NG no pernoite e alimentação em bo- racterísticas da DHANP, e essa falta de clareza em relação à fi‑ lus durante o dia, é recomendada a fim de utilizar a função do siopatologia tem dificultado os esforços de tratamento. Estra‑ intestino delgado existente e incentivar a alimentação oral. tégias para a prevenção e tratamento da DHANP incluem Atualmente, não existe evidência suficiente na literatura alimentação enteral precoce, reduzindo a frequência e/ou du‑ para fundamentar a utilização rotineira de pectina, glutamina, ração de infusões de NP, e as técnicas assépticas de cuidados hormônio de crescimento, IGF-1 ou Saccharomyces boulardii com o cateter para reduzir sepse. A administração oral de áci‑ como fatores tróficos no processo de adaptação.15 do ursodeoxicólico pode melhorar o fluxo de bile da vesícula Não há evidências suficientes sobre os efeitos dos probióti‑ biliar e reduzir a estase. Com doença hepática avançada no ce‑ cos em crianças com SIC. A segurança e a eficácia do uso de nário de dependência prolongada na NP, são por vezes neces‑ probiótico nessa coorte de alto risco devem ser avaliadas em sários transplantes hepático e intestinal.2 Na medida em que a ensaios grandes e bem definidos, para que se possa validar DHANP tem sido associada a um mau prognóstico entre os adequadamente a sua utilização.16 pacientes com SIC, a identificação precoce de crianças com uma alta probabilidade de doença progressiva seria o ideal. Nutrição parenteral – doença hepática Promover a reabilitação intensiva médica, nutricional e cirúr‑ associada gica estaria, então, associada a uma melhor chance de adapta‑ O tratamento da SIC pediátrica foi revolucionado com a publi‑ ção completa, evitando a doença hepática em fase terminal e cação em 1968 do primeiro relato de caso de sucesso de uma suas complicações e risco de vida. Dados recentes sugerem criança, cujo crescimento e desenvolvimento foram mantidos que a oferta, por via parenteral, de gorduras enriquecidas com com NP administrada através de um cateter venoso central.17 ácidos graxos ômega-3 pode beneficiar crianças com DHANP,24 Desde então, NP tornou-se amplamente aceita como a terapia e ensaios nessa área estão em curso. primária de suporte em crianças com FI de SIC, e a mortalidade decorrente de desidratação e desnutrição foi essencialmente Considerações cirúrgicas eliminada.18 No entanto, essa terapia salva-vidas trouxe consi‑ A maioria das vezes, a cirurgia é a terapia mais apropriada go um conjunto de complicações agudas e crônicas graves e, às para alcançar a nutrição completa. Uma terapia cirúrgica fre‑ vezes, fatais, incluindo a doença hepática associada à NP quentemente utilizada é a colocação de dispositivos para a
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alimentação diretamente dentro do trato gastrointestinal. Ti‑ picamente, são tubos de gastrostomia. No entanto, tubos gastrojejunais ou de jejunostomia também desempenham um papel em pacientes com motilidade anormal gástrica e/ ou duodenal. O objetivo principal desses tubos é a adminis‑ tração contínua de nutrição enteral. A administração contí‑ nua, constante de nutrição enteral é mais provável de ser to‑ lerada do que a alimentação em bolus em crianças com SIC, pelo menos nas etapas iniciais.25 Transplante intestinal O transplante intestinal é indicado quando FI é considerada permanente e a administração de NP está resultando em com‑ plicações com risco de vida. Essa situação foi definida operacio‑ nalmente como lesão significativa do fígado com hipertensão portal e disfunção de síntese hepática, infecções múltiplas pelo cateter central, trombose de pelo menos duas veias centrais e/ ou episódios graves frequentes de desidratação (Tabela 2).3,26
baixa quanto 60%,28 alguns têm argumentado que o transplan‑ te deve ser o tratamento preferencial para pacientes seleciona‑ dos com FI permanente.26,28,29 Não obstante, o transplante ain‑ da carrega significativa morbidade e mortalidade, os pacientes devem receber a supressão imune ao longo da vida, e as taxas de sobrevida em 5 anos (em média 50%) ainda estão abaixo do ideal.26 Se os resultados do transplante continuarem a melhorar, as indicações para transplante continuarão a ser tema debatido ativamente para a FI entre as equipes de transplantadores. Tabela 3 Contraindicações para o transplante de intestino Absolutas Malignidade não ressecável Doença com risco de vida não relacionado ao sistema digestivo Distúrbios neurológicos Relativas Deficiências imunológicas graves Doenças autoimunes multissistêmicas
Tabela 2 Indicações de transplante de intestino em crianças
Anatomia vascular inadequada para garantir patência em longo prazo
Gastrosquise
Prematuridade com doença pulmonar
Vólvulo
Fonte: adaptada de Yildiz, 2012.3
Enterocolite necrosante Pseudo-obstrução Atresia intestinal Aganglionose/Hirschsprung Retransplante Inclusão de microvilosidade Má absorção grave Tumores Fonte: adaptada de Yildiz, 2012.3
Os transplantes intestinais mais comuns podem ser classifica‑ dos da seguinte forma: • intestino isolado, ou transplante de intestino delgado, com ou sem o intestino grosso; • em bloco fígado-intestino, ou a inclusão do duodeno, pân‑ creas, fígado, intestino delgado e em uma peça de modo a não perturbar o trato biliar; • multivisceral, ou a remoção e substituição do intestino nativo anterior e médio. A escolha do enxerto depende muitas vezes do tamanho do re‑ ceptor, da presença ou ausência de doença significativa do fíga‑ do, e da existência de alterações patológicas significativas que se prolongam para além do intestino delgado (p.ex., pseudo‑ -obstrução afetando estômago e intestino delgado) (Tabela 3).3 Desde o início do transplante intestinal em uso clínico na década de 1980,27 os resultados após esse procedimento melho‑ raram dramaticamente. A média de sobrevivência de 1 ano após o transplante do intestino é de 80%,28 e em alguns centros essa sobrevida é superior a 90%. Porque NP crônica é cara e complicada,29 e a sobrevivência média de 5 anos pode ser tão
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer as principais causas de SIC na infância. • Elaborar história que possa identificar os fatores que levam à SIC. • Reconhecer as principais complicações nutricionais, metabólicas e infecciosas da SIC. • Conhecer os princípios da terapia nutricional enteral utilizados na SIC. • Conhecer as indicações de NP na SIC. • Identificar sinais clínicos associados com a DHANP. • Reconhecer a condição de FI permanente e indicação de transplante de intestino.
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CAPÍTULO 10
DIFICULDADES ALIMENTARES Anne Lise Dias Brasil Maria Marlene de Souza Pires
Introdução Apesar de a maioria das crianças ter o apetite apropriado e cres‑ cimento adequado para sua idade, frequentemente os pais re‑ latam que o comportamento alimentar de seus filhos é impre‑ visível e variável, ou que, na grande maioria, só comem aquilo que querem e na hora que desejam. Isso determina interven‑ ção, especialmente o emprego de estratégias coercitivas e con‑ troladoras, como ameaças, punições, súplicas e subornos, que acabam gerando a recusa real dos alimentos e tornam o am‑ biente tenso e conflitante.1 O interesse da criança pelo alimento modifica-se nas diferen‑ tes fases do seu desenvolvimento. Nos primeiros meses de vida ela é muito voraz, o contato com o mundo é por meio de sua mãe, por meio do aleitamento materno. Com o passar dos meses, ela encontra outras maneiras de se relacionar, e o interesse pelo ali‑ mento começa a diminuir. Depois do primeiro ano de vida esse desinteresse fica mais visível, culminando com a chegada do se‑ gundo ano, em que as brincadeiras assumem o papel principal em suas vidas.2 Nessa época comem menos, pois não necessitam de tanta energia em razão da menor velocidade de crescimento.3 Na fase pré-escolar e escolar, começam a sofrer influência das propagandas da indústria de alimentos, dos colegas da es‑ cola e dos amigos. O interesse maior pelo alimento volta no início da adolescência, quando a preocupação com o que vão comer fica bem nítida. Essa preocupação pode sofrer influên‑ cias do modismo alimentar e do medo da obesidade, e os des‑ vios de uma alimentação saudável são bastante frequentes.4
Epidemiologia A dificuldade em se alimentar é um comportamento comum durante a infância. Aproximadamente 25 a 35% das crianças são descritas por seus pais como tendo dificuldades na alimen‑ tação.6 Levy et al. referem que a recusa alimentar e a aversão a alimentos são frequentemente encontrados na prática pediá‑ trica e estima que acima de 25% das crianças com crescimento e desenvolvimento normais e 80% daquelas que têm altera‑ ções apresentam dificuldades alimentares.7 Entre o quadro de dificuldades alimentares, o perfil deno‑ minado de picky eating é um problema relativamente comum durante a infância, no entanto, as estimativas de prevalência são inconsistentes e variam entre 14 e 50% em crianças no início da idade pré-escolares, 7 a 27% mais tarde e diminui para 3% na idade de 6 anos.8
Definição Muitas têm sido as terminologias utilizadas para descrever esta condição clínica comum durante a primeira infância, o que dificulta o diagnóstico, a intervenção e a implementação de terapia. A definição sugere um comportamento alimentar que tem consequências para a harmonia familiar, o crescimen‑ to e o desenvolvimento.4 O recente Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5a edição, não cobre todo o espectro observado na clí‑
Quadro clínico Em geral, os quadros de inapetência são característicos e espe‑ rados no desenvolvimento normal da criança. Costumam se manifestar principalmente entre os 14 meses e os 5 anos de ida‑ de.9 Momentos de passagem evolutiva na vida da criança po‑ dem contribuir para a manifestação de recusa alimentar, como o nascimento, pois exige intensa adaptação da criança e de seus pais. Um segundo momento crítico é o desmame, por ser uma fase de separação da dupla mãe-filho; e é também nessa fase
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nica pediátrica, portanto, há necessidade de que as pesquisas sejam aprofundadas. Há também poucas evidências clínicas que suportam condutas que devam ser tomadas nos diferen‑ tes perfis clínicos. Entende-se como dificuldades alimentares os diferentes comportamentos encontrados durante a primeira infância, como apetite seletivo com e sem repercussões clínicas, dietas restritivas e monótonas, aversão sensorial ao alimento, transtorno emocional associado à atitude de evitar alimentos, síndrome de recusa generalizada, disfagia funcional, neofo‑ bia e anorexia.5
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DIFICULDADES ALIMENTARES •
que ele inicia os alimentos sólidos, que coincide com a fase da eclosão dos dentes. O terceiro ocorre no segundo ano de vida, quando o interesse pelos alimentos se desloca para o ambiente e sua exploração, por meio das brincadeiras.10 Posteriormente, por volta dos 3 anos, a criança tende a uti‑ lizar a recusa ao alimento como uma maneira de firmar sua posição, para discriminar sua vontade da do adulto, para ten‑ tar controlar o ambiente e fazer pequenos testes de indepen‑ dência. É uma fase em que a criança tende a rejeitar novos ali‑ mentos, demonstrando ter preferência por aquilo que conhece e que, portanto, pode controlar. Essas situações, se bem com‑ preendidas e toleradas pelos pais, tendem a ser manifestações temporárias.4 Por outro lado, quando persistem, os sintomas podem indi‑ car algum tipo de distúrbio ambiental ou relacional. É comum que o sintoma se instale após uma fase em que a criança tenha passado por uma adaptação importante, ou que tenha manifes‑ tado algum comportamento de autonomia, reagindo com ina‑ petência, e isso, de alguma forma, não pôde ser compreendido ou respeitado pelos pais.4 Uma crise transitória pode mobilizar ansiedade ou agressividade nos pais, que, diante da recusa ali‑ mentar, forçam a criança a comer. A criança, por sua vez, res‑ sente-se e perde o prazer em se alimentar. O círculo vicioso completa-se quando a mãe se preocupa com a situação, faz chantagem, mobiliza a família, entra em desespero e acaba cas‑ tigando a criança. O resultado dessa dinâmica prejudica o vín‑ culo afetivo e a autoestima, sobretudo da criança.4 Por ser muito sensível ao ambiente familiar, a criança fre‑ quentemente capta dificuldades, conflitos, alterações impor‑ tantes de humor dos pais e reage a essas situações recusando-se a comer. Os pais, por sua vez, deslocam sua atenção do conflito ambiental ou familiar para o sintoma da criança. Dessa forma, não solucionam a crise original e prendem o filho a um sintoma que, em sua raiz, denuncia os conflitos da dinâmica familiar.11 Períodos de mudança na família como o nascimento de ir‑ mãos, ingresso da criança na creche ou escola, separação da figu‑ ra materna ou paterna, ou mesmo a morte de um parente próxi‑ mo também podem afetar a criança, causando inapetência.12 Em geral, as dificuldades alimentares manifestam-se quan‑ do o ambiente familiar é conturbado, com problemas conju‑ gais, figura paterna ausente, omissa ou violenta, manifesta‑ ções de ansiedade, depressão ou agressividade excessiva.13 É comum crianças com distúrbio alimentar apresentarem uma série de recusas, estabelecerem um cardápio próprio, com‑ posto por alimentos de que gostam, e sentirem-se desconfortá‑ veis para comer diante de outras pessoas. À medida que a crian‑ ça cresce e mantém o distúrbio alimentar, pode ocorrer prejuízo na sua vida social e na da família.14,15 Há uma grande dificuldade em apontar as causas do desen‑ volvimento de distúrbios alimentares e identificar se esses quadros iniciam-se nos sentimentos da mãe ou no comporta‑ mento de seus filhos.13 Por um lado, condições familiares e ambientais desfavoráveis podem contribuir para o desenvolvi‑ mento ou agravamento dos distúrbios alimentares.16 No en‑ tanto, a alimentação da criança é fundamental para a seguran‑ ça e manutenção de um ambiente familiar agradável.17
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Problemas alimentares infantis têm impacto não só na saú‑ de da criança, mas no bem-estar da família como um todo. São muitas vezes associados com a diminuição do bem-estar emo‑ cional e psicológico dos pais. A autoestima da mãe tende a ser influenciada ao perceber-se ineficaz na alimentação de seu fi‑ lho. Essa percepção é baseada nas suas próprias necessidades e não nas necessidades reais da criança.17 Os pais influenciam na alimentação dos seus filhos desde o primeiro ano de vida, durante a introdução alimentar. Contro‑ lam o que e quando devem comer e, muitas vezes, acabam in‑ fluenciando também na quantidade, prejudicando a capacida‑ de da criança de perceber-se saciada ou provocando fobia dos alimentos, que os pais a “forçam” a comer em determinada quantidade.18 Os pais, em especial as mães, estão muito envolvidos nesse processo. Participam da socialização dos filhos no âmbito da alimentação, selecionam e preparam os alimentos, além de ser modelo de referência de comportamento alimentar. Ansieda‑ de e precipitação materna com relação a problemas e dificul‑ dades na alimentação de seu filho, como durante a transição de alimentos líquidos para papas e alimentos sólidos, podem facilitar a rejeição alimentar.18 Mudança no comportamento alimentar também pode ser uma forma de a criança diferenciar as suas vontades das de seus pais, fazer testes de independência, expressar falta de sin‑ tonia e necessidade de autonomia.13 Os hábitos alimentares dos pais têm forte influência nesse processo. É importante que o ambiente em que a criança está in‑ serida seja composto por pessoas com hábitos alimentares sau‑ dáveis e com o consumo de uma variedade de alimentos.19 Além disso, as interações durante as refeições são de suma importân‑ cia na aceitação de novos alimentos e desempenham papel fun‑ damental no desenrolar das dificuldades alimentares infantis.15 Vários distúrbios alimentares são apresentados pelos pais como uma única queixa: “meu filho não come”, que pode ser entendido como a criança com o perfil de comer seletivamente e pode se apresentar em diferentes estágios: seletividade láctea, recusa em comer determinados alimentos (picky/fussy eating: comer seletivamente, exigente), indisciplina alimentar (finicky eating: mimado, enjoado para comer), comer aos pouquinhos, bocadinho (food jags) e neofobia.20 Embora haja grande variação nas definições de comer sele‑ tivamente, desde comer uma variedade limitada de alimentos, comer em pequena quantidade, medo de experimentar novos alimentos (neofobia alimentar) e comportamentos alimenta‑ res anormais, todos são aceitos como características de picky eating. Bem como todos estão associados a problemas de com‑ portamento, ao estresse parental, à ansiedade e a problemas psicossociais na infância, e, em alguns estudos, a um fator de risco para desenvolver anorexia nervosa.21 Estudos mostram que crianças denominadas de picky eaters, apresentam neofobia alimentar ou têm fortes preferências por certos alimentos, preparações alimentares e por grupos alimentares.22 É um termo complexo, cuja definição ainda não é clara, entretanto, é descrito como o consumo inadequado de uma variedade de alimentos.23
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As crianças denominadas picky ou fussy eaters consomem quantidades pequenas de alimentos e apresentam alimenta‑ ção restrita e limitada, especialmente em alimentos ricos em micronutrientes, como frutas, verduras e carnes, aceitam so‑ mente poucos tipos de alimentos, preferindo líquidos aos sóli‑ dos, preferem alimentos doces e gordurosos, e snacks em vez de alimentos adequados para as refeições.8,22,23 Crianças seletivas tendem a rejeitar vegetais, evitam ali‑ mentos desconhecidos, apresentam uma alimentação monó‑ tona e geralmente fazem uma refeição diferente da consumida pela família.21 Esse comportamento tende a limitar o contato com novos alimentos, refletindo de forma negativa na quali‑ dade e variedade da sua alimentação.24 Seletividade alimentar é um dos mais frequentes distúrbios alimentares, caracteriza‑ do pela recusa alimentar, pouco apetite e desinteresse por ali‑ mentos e variedade inadequada,25 sendo comum durante a fase pré-escolar.21,24 Pode estar relacionada com experiências negativas envolvendo pressão para comer,25 curto período ou ausência de aleitamento materno, alimentação pouco variada no ambiente domiciliar,26 ansiedade e sensibilidade sensorial por parte da criança.27 A neofobia alimentar, que é o medo de alimentos novos, não familiares, rejeição dos alimentos com base na apresenta‑ ção visual e odor, muitas vezes está acompanhada por rituais durante a alimentação, por exemplo, os alimentos têm de es‑ tar dispostos de forma determinada no prato, ou no almoço deve sempre haver o mesmo tipo de alimento e outro no jantar, só são aceitos determinados alimentos industrializados da marca que conhece pelos rótulos, ou não aceita o mesmo ali‑ mento que está acostumada a comer quando é apresentado em formato diferente do habitual.28 Em geral, a queixa dos pais é de que a alimentação é restri‑ ta e monótona,29 com muitos alimentos que nunca provou, como frutas, verduras e legumes e com baixo consumo de ali‑ mentos proteicos e caloria total.30 No entanto, a dieta pode ser rica em guloseimas e snacks, o que coloca a criança em risco para obesidade.30,31 É importante observar se a neofobia é associada a outros traços de personalidade, como níveis elevados de ansiedade, timidez, negatividade e neofobia em geral. A importância des‑ sa relação reside na sugestão de que novos alimentos são se‑ melhantes a novos estímulos, como pessoas desconhecidas e situações não rotineiras. Todos os aspectos do “não familiar” são respondidos de forma conflitante. É proposto que a neofo‑ bia alimentar seja considerada uma fobia no sentido clínico, já que representa um medo inapropriado em resposta a um estí‑ mulo, o qual não é proporcionalmente prejudicial.4 A prevalência desse distúrbio alimentar é desconhecida tanto em crianças como em adultos. Acredita-se que seja mí‑ nima na primeira infância, cresça rapidamente e atinja um pico em torno dos 2 anos de idade, fase em que o desenvolvi‑ mento cognitivo permite a formação do conceito de alimento e, que diminua naturalmente com o avanço da idade. Não há diferença na prevalência entre os sexos e variação de acordo com características inerentes ao próprio estilo de vida dos in‑ divíduos. Casos que não são solucionados na infância podem
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se prolongar na adolescência e chegar à idade adulta acarre‑ tando sérios danos à saúde.32 Diagnóstico Para o diagnóstico das dificuldades alimentares, faz-se neces‑ sária anamnese, com coleta de dados gestacionais, crescimen‑ to, desenvolvimento e recordatório alimentar. A história clínica é fundamental na avaliação do crescimento, desenvolvimento e hábitos alimentares. Devem-se detalhar as‑ pectos da gestação, tipo e condições de parto (hipóxia neonatal, parto pélvico ou transverso), peso e comprimento da criança ao nascimento e anormalidades neonatais, como icterícia prolon‑ gada e hipoglicemia neonatal sem causa aparente, aleitamento materno.33,34 Avaliar sinais e sintomas de doenças sistêmicas, como síndrome de má absorção, cardiopatias, pneumopatias, entre outros, e o uso de medicações, como a corticoterapia, que possam comprometer o metabolismo.33,34 É necessário que o exame físico também seja detalhado in‑ cluindo a investigação de estigmas específicos, pois várias sín‑ dromes comprometem o crescimento, o desenvolvimento e os hábitos alimentares.33,34 A coleta de dados como o exame físico, antropometria e da caderneta de saúde são de extrema importância. Primeiramen‑ te, para adequada avaliação nutricional, deve-se certificar de que os dados antropométricos foram aferidos adequadamente. A aplicação de técnica correta de coleta das medidas antropo‑ métricas é de extrema importância para a avaliação do cresci‑ mento ponderoestatural, o diagnóstico e a terapêutica. A esta‑ tura da criança deve ser correlacionada à estatura de seus pais, pois a expressão fenotípica está na dependência da interpela‑ ção da genética e do meio ambiente.33,34 Cabe ressaltar que algumas deficiências nutricionais espe‑ cíficas podem ocorrer sem comprometimento antropométrico imediato, e sua detecção depende da realização de cuidadosa anamnese nutricional. A fome oculta, deficiência isolada ou combinada de micronutrientes, pode ser identificada e confir‑ mada utilizando-se a monitoração do crescimento e desenvol‑ vimento, associada à historia da gestação, história alimentar e exames clínicos e bioquímicos.33,34 Tratamento Os estimulantes do apetite geralmente não são indicados para os distúrbios alimentares. Suplementos vitamínicos e de mine‑ rais devem ser utilizados quando a qualidade da alimentação não é adequada.5 O mais importante, após descartada e/ou tra‑ tada a deficiência de micronutrientes e outras enfermidades, é instituir a educação alimentar. Sabe-se que a não aceitação de legumes, verduras e frutas também é queixa frequente, no entanto, é importante, nesses casos, que a criança não seja forçada a ingerir os alimentos de que não gosta, no entanto, deve-se introduzir dois novos ali‑ mentos dos grupos alimentares por semana, com preparações coloridas e atrativas. Esses alimentos devem ser repetidos duas a três vezes por semana, até que sejam aceitos naturalmente.4 Quando a seletividade persiste por mais tempo, as prefe‑ rências alimentares são mais enraizadas, e as crianças apre‑
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sentam maiores dificuldades em experimentar novos alimen‑ tos, sugerindo que o tratamento deva ser iniciado assim que se identifique o problema alimentar.21 A indisciplina alimentar (ingestão de salgadinhos ou gulosei‑ mas antes das principais refeições; substituição de refeições por beliscos; horários irregulares de refeições; fracionamento ina‑ dequado da dieta) está presente em quase todos os casos e refle‑ te a indisciplina presente em todos os setores da vida da criança. É primordial que os pais sejam reforçados quanto a sua capaci‑ dade em colocar limites e modificar padrões inadequados.4 A seletividade láctea é um distúrbio alimentar caracteriza‑ do pela preferência por alimentos pastosos que derretem na boca e líquidos, principalmente os lácteos. Pode estar relacio‑ nado com experiências traumáticas envolvendo alimentos só‑ lidos e dificuldade na evolução da consistência das papinhas no primeiro ano de vida.35 Esse comportamento alimentar gera muita ansiedade e medo nos pais, pois temem que a criança se desnutra e não cresça adequadamente, sendo co‑ mum a família aumentar a densidade calórica dos alimentos aceitos pela criança ou oferecê-los em grande quantidade para compensar a dificuldade alimentar.36 Quando diagnosticada a seletividade láctea, a terapia nutri‑ cional deve basear-se na evolução progressiva da consistência dos alimentos, na mudança dos utensílios (mamadeira, copo, colher, garfo) e na oferta de alimentos que podem ser pegos com as mãos.36 Diante do pedido de leite por parte das crianças, os pais devem oferecer alimentos sólidos ou semissólidos que são aceitos, permitindo a diferenciação entre fome e sede.36 A atuação nas reações neofóbicas deve ser a repetição à ex‑ posição de um novo alimento para que passe a ser conhecido, sem coerção ou pressão para a criança experimentá-lo, mas deixando bem clara a expectativa de quem está oferecendo. É necessária, também, uma rotina bem estabelecida para a de‑ gustação do novo alimento, na presença de outras pessoas da família as quais servirão de modelo.37,38 Deve-se ter cautela ao definir que a criança não gosta de de‑ terminado alimento ou grupo alimentar, pois muitas vezes os alimentos são pouco expostos e a decisão é feita de forma pre‑ cipitada.37 Por outro lado, a superexposição não parece ser in‑ teressante, podendo diminuir a aceitação e aumentar a aver‑ são ao novo alimento.28 A preferência pelo sabor doce é inata ao ser humano, mas a exposição a novos sabores rege o paladar da criança. Quando ela é amamentada ao seio materno, a aceitação de alimentos novos é facilitada, pois permite o contato inicial da criança com odores e sabores variados.39,40 A introdução da alimentação complementar e da família também é um momento importante para a estruturação dos hábitos alimentares e prevenção de comportamentos seleti‑ vos. Quando a introdução de alimentos sólidos, no primeiro ano de vida, é adequada, diminui a propensão de a criança de‑ senvolver distúrbios alimentares.38 A aceitação de determinados alimentos recebe inúmeras in‑ fluências.41 De modo geral, a introdução alimentar é mediada pelas preferências da criança, pelas decisões maternas e pelo contexto social e afetivo em que os alimentos são oferecidos.38
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Prognóstico Para a maioria das crianças, a alimentação é um processo na‑ tural e que, quando presente, nos casos considerados graves, em 1 a 2% está associada com pequeno ganho de peso. Dificul‑ dades alimentares não só interferem no desenvolvimento ini‑ cial da criança, mas têm sido associadas a déficits no desen‑ volvimento cognitivo, problemas de comportamento, bem como transtornos de ansiedade e transtornos alimentares du‑ rante a infância, adolescência e início da vida adulta. Por isso, é extremamente importante identificar, compreender e tratar problemas precoces de alimentação. Regulação do apetite e comportamento alimentar adequado são fundamentais não só para sobrevivência mas também para favorecer o adequado crescimento e desenvolvimento da criança, a saúde, a preven‑ ção de doenças e a socialização.42 É importante a compreensão e a parceria dos pais para que eles possam incentivar a variedade e o equilíbrio na alimenta‑ ção de criança.18 A identificação do distúrbio alimentar de forma correta e pre‑ coce permite o encaminhamento da criança a profissionais ha‑ bilitados, resultando em melhor prognóstico do quadro e mini‑ mizando carências nutricionais consequentes da alimentação pouco variada.14 Após diagnosticado o distúrbio alimentar e an‑ tes de iniciar a terapia com a criança, os pais devem ser cons‑ cientizados de que o tratamento é um processo lento, depen‑ dente do apoio, da colaboração e do envolvimento da família.14,36 A família constitui um grande campo de aprendizado para a criança e cabe aos pais expor alimentos saudáveis em casa, co‑ locar limites de horário e determinar o local das refeições.37 Prevenção A aprendizagem é central no desenvolvimento da conduta ali‑ mentar adequada. Esta, por sua vez, é estabelecida pelo con‑ dicionamento social, a sugestão sensorial dos alimentos e a sensação pós-ingestão da alimentação.41,43,44 O contexto social adquire um papel preponderante nesse processo, principalmente pelas estratégias que os pais utilizam para a criança se alimentar ou para aprender a comer alimentos novos. Essas condutas são fundamentais para a aquisição das preferências alimentares da criança e o autocontrole da inges‑ tão alimentar.41,43,44 As experiências precoces da criança com o alimento (tanto no ambiente pré-natal como pós-natal) influenciam as prefe‑ rências alimentares, as escolhas e as aversões durante a ali‑ mentação na infância e mesmo na vida adulta.41,43,44 A exposição repetida é o processo de familiarização com os alimentos que se inicia com o desmame. É o primeiro passo para a criança aprender a conhecer os sabores dos alimentos e aceitá-los, estabelecendo um padrão alimentar.41,44 A refeição familiar é o contexto social no qual a criança tem oportunidade de comer com os irmãos e os pais, que lhe ser‑ vem de modelos. A interação positiva nesse momento e a ali‑ mentação variada permitem a formação de um hábito alimen‑ tar adequado.41 O aleitamento materno e a introdução de alimentos comple‑ mentares depois de 6 meses de idade reduziram as chances de
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comer seletivo durante a primeira infância, indo ao encontro das diretrizes atuais da American Academy of Pediatrics e da Sociedade Brasileira de Pediatria. Ou seja, a amamentação ex‑ clusiva por 6 meses e a introdução de alimentos complementa‑ res a partir dos 6 meses de idade favorecem a prevenção de com‑ portamentos alimentares pouco saudáveis, especialmente variedade limitada de alimentos, durante os anos pré-escola‑ res.41,43-45 A família é fundamental nesse processo, pois é responsável pelo ambiente durante as primeiras experiências alimentares das crianças. Em ambientes agradáveis é maior a chance de ocorrer aceitação de novos alimentos.41,43,44 Os pais devem rever seus hábitos alimentares e comporta‑ mentos durante a alimentação. Quando a família consome ali‑ mentos saudáveis e os disponibiliza em casa facilita com que a criança os aceite.31 Se a alimentação da família também é res‑ trita, os alimentos não aparecerão em vezes suficientes para possibilitar segurança e interesse da criança em prová-lo.18 O comportamento dos pais durante a exposição de novos ali‑ mentos é determinante para promover a aceitação da criança.18,45 Eles devem motivar a experimentação, sem enfatizar quantidade e não devem expressar frustração diante da reação da criança. É comum os pais, no desespero de ver a monotonia alimen‑ tar de seus filhos e na tentativa de fazê-los experimentar novos alimentos, pressionarem a criança a comer. Estudo de O’Connor et al.46 avaliou a associação de diversas práticas parentais para promover o aumento do consumo de alimentos saudáveis. Identificaram que quando os pais disponibilizaram esses ali‑ mentos em casa, faziam da refeição uma oportunidade de ensi‑ namento, não eram rudes e não forçavam o consumo, tinham filhos mais propensos a aceitar os novos alimentos.46 A consciência dos pais a respeito da importância dos seus comportamentos na alimentação dos seus filhos é importante para que haja um trabalho em conjunto. Comportamentos como chantagens, punições e recompensas para estimular a criança a comer devem ser erradicados, pois terão efeitos negativos e re‑ forçarão a recusa alimentar,24,47 influenciando significativamente na formação das preferências alimentares das crianças.18 Os pais têm um papel crucial na transformação de um ali‑ mento desconhecido em familiar,16 devem impor limites sem perder o controle e forçar a criança a comer.26 É comum as crianças rejeitarem o alimento no primeiro contato, por isso a oferta deve ser feita de forma natural e repetidamente, dimi‑ nuindo a resposta neofóbica diante do novo alimento.18,30 Informações positivas e o contato visual do novo alimento facilitam a sua aceitação por parte da criança. Pré-escolares tendem a se interessar por informações adicionais, como os benefícios do alimento à saúde.37 A nomeação e classificação do alimento também podem incentivar o seu consumo, como por exemplo, estimular a criança a identificar a que grupo o ali‑ mento pertence.19 Alguns pesquisadores sugerem que até mesmo jogos de videogame podem ser veículo de exposição de novos alimentos e de educação nutricional, possibilitando mudanças no comportamento alimentar infantil.29 A criança deve se sentir segura e atraída para provar o novo alimento, e para isso o momento da refeição deve ser calmo e a
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cor, a textura e o cheiro do alimento devem ser agradáveis. Va‑ riar o cardápio, por meio de técnicas de preparo e cortes dife‑ rentes pode aumentar a aceitação e evitar a monotonia ali‑ mentar. No entanto, disfarçar alimentos rejeitados por meio de preparações culinárias não é interessante, pois atrapalha a relação de confiança entre filhos e seus pais.41 Deixar a criança participar da compra e elaboração dos pratos são comporta‑ mentos que contribuem para deixá-la segura diante de novos alimentos, facilitando a aceitação.36 Desafios Considerando a baixa prevalência no cumprimento das diretri‑ zes de alimentação infantil, há que se criar programas em parce‑ ria com políticas de saúde, tendo como base a pediatria e a pue‑ ricultura, com foco na importância de práticas de alimentação saudável, no período gestacional até a adolescência, principal‑ mente durante os primeiros mil dias de vida da criança, e, assim, promover comportamentos alimentares saudáveis.48,49 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender os determinantes familiares e culturais que podem influenciar a ingestão alimentar. • Compreender a importância dos fatores emocionais na alimentação e nutrição, particularmente a alimentação excessiva e a deficiência do crescimento não orgânico. • Formular o diagnóstico de dificuldades alimentares da criança a partir da história clínica. • Identificar os fatores de risco e desencadeantes das dificuldades alimentares. • Identificar características do comportamento infantil e familiar a partir da história clínica. • Distinguir variações de padrões de dificuldades alimentares. • Identificar práticas inadequadas dos pais, no manejo do hábito alimentar. • Identificar características do comportamento infantil normal e anormal, por meio de observação clínica do paciente. • Orientar os pais a respeito das dificuldades alimentares da criança. • Orientar os pais sobre como conduzir a criança diante de suas dificuldades.
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CAPÍTULO 11
TERAPIA NUTRICIONAL ENTERAL E PARENTERAL Heitor Pons Leite
Nutrição enteral Quando iniciar A definição de terapia nutricional enteral (NE) é ampla. De Nas primeiras 24 a 48 horas de admissão do paciente, desde acordo com o regulamento do Ministério da Saúde, é definida que haja estabilidade hemodinâmica e trato digestivo funcio‑ como o alimento para fins especiais, com ingestão controlada nante. São parâmetros indicativos de função intestinal ade‑ de nutrientes, na forma isolada ou combinada, de composição quada: ruídos hidroaéreos e ausência de distensão abdominal definida ou estimada, especialmente formulada e elaborada ou vômitos e resíduo gástrico em pequena quantidade. Em pa‑ para uso por sondas ou via oral, industrializado ou não, utili‑ cientes graves, são sinais de perfusão intestinal adequada: a zada exclusiva ou parcialmente para substituir ou comple‑ estabilização dos sinais vitais, a não necessidade de expan‑ mentar a alimentação oral em usuários desnutridos ou não, sões de volume hídrico e de drogas vasoativas e equilíbrio aci‑ conforme suas necessidades nutricionais, em regime hospita‑ dobásico e de lactato sérico normal. A intolerância à NE pode lar, ambulatorial ou domiciliar, visando à síntese ou à manu‑ ser sinal de hipoperfusão intestinal consequente à piora clíni‑ tenção de tecidos, órgãos ou sistemas.1 Para a European So‑ ca, o que indica sua interrupção. ciety for Parenteral and Enteral Nutrition (ESPEN), o termo São pontos importantes a ser considerados na NE por sonda: abrange alimentos dietéticos destinados a fins medicinais es‑ • a sonda deve ter pequeno diâmetro, de modo a ocasionar o pecíficos.2 Nesta parte do capítulo, será abordada exclusiva‑ menor desconforto possível ao paciente; mente a NE administrada por sonda. • em pacientes gravemente doentes, a infusão contínua é pre‑ ferencial em relação à intermitente; Indicações • as dietas devem ser isotônicas e administradas em bomba de A NE por sonda é indicada na presença ou risco de desnutri‑ infusão; ção quando a via oral é insuficiente para evitar a perda de • a medida mais importante para se reduzir o risco de aspiração peso. O paciente deve estar em estabilidade hemodinâmica, e é posicionar o paciente em proclive de 30 a 45°. seu trato gastrointestinal, viável. Na prática, as principais si‑ tuações que justificam o seu uso são: prematuridade, ventila‑ Dietas ção pulmonar mecânica, desnutrição grave, estados hiper‑ Para selecionar a dieta, o médico deve conhecer a condição clí‑ metabólicos e doenças neurológicas. nica do paciente e a composição da fórmula. Em relação ao pa‑ ciente, os seguintes aspectos devem ser considerados: Contraindicações • capacidade digestiva e absortiva do trato gastrointestinal; 1. Absolutas: íleo paralítico, obstrução intestinal e enterocolite • necessidades nutricionais específicas, conforme a situação necrosante. clínica; 2. Relativas: vômitos, dismotilidade intestinal, hemorragia di‑ • necessidade de restrição hídrica e de eletrólitos. gestiva, fístula entérica de alto débito, doses elevadas de dro‑ gas alfa-adrenérgicas e de bloqueadores neuromusculares. Composição da dieta Nessas condições, podem-se infundir volumes menores de Em relação à forma de apresentação dos nutrientes, as dietas dieta, na medida da tolerância do paciente. Mesmo volumes são classificadas em poliméricas e pré-digeridas. muito pequenos podem favorecer a perfusão intestinal, libe‑ 1. Poliméricas: contêm carboidratos, lipídios e proteínas na for‑ rar entero-hormônios e melhorar a função de barreira do trato ma intacta e necessitam das funções digestiva e absortiva gastrointestinal. normais.
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TERAPIA NUTRICIONAL ENTERAL E PARENTERAL •
2. Pré-digeridas: as dietas semielementares contêm nutrientes
parcialmente digeridos (hidrolisado proteico e polímeros de glicose) e triglicérides de cadeia média e de cadeia longa. Requerem função intestinal mínima para a absorção. As elementares são constituídas por aminoácidos livres. São in‑ dicadas para crianças com síndrome do intestino curto, dimi‑ nuição da capacidade absortiva, doença pancreática ou hepa‑ tobiliar. Podem ainda ser utilizadas em crianças gravemente doentes durante a resposta inflamatória sistêmica, quando ocorre alteração na permeabilidade e redução da superfície absortiva do epitélio intestinal.3
Carga renal potencial de solutos A carga renal potencial de solutos (CRPS) é a quantidade de solutos endógenos ou da dieta que precisaria ser excretada pela urina se nenhum deles fosse utilizado na síntese de no‑ vos tecidos ou excretado por vias extrarrenais.4 Consiste de componentes não metabolizáveis da dieta, especialmente ele‑ trólitos além das quantidades necessárias, e de compostos ni‑ trogenados resultantes do metabolismo proteico. É expressa pela seguinte fórmula:
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Dietas para crianças menores de 1 ano Em lactentes, o leite materno ordenhado é a melhor opção. Quando seu uso não é possível, recorre-se ao uso das fórmu‑ las lácteas modificadas. As dietas enterais industrializadas, feitas especificamente para crianças menores de 1 ano, men‑ cionadas anteriormente, são indicadas quando há necessi‑ dade de restrição hídrica, como em cardiopatas. A prematu‑ ridade requer o uso de fórmula láctea especial, caso o uso do leite materno não seja possível. Essa fórmula tem maior teor de energia (0,81 kcal/mL), proteínas, triglicérides de cadeia média, vitaminas e minerais e menor teor de lactose do que as fórmulas para crianças a termo.
Via de administração A NE é administrada preferencialmente por via nasogástrica. Quando há perspectiva de uso da NE por períodos superiores a 3 meses, o médico deve considerar a gastrostomia ou a jejunosto‑ mia. Pacientes em estado grave podem ter atonia gástrica por fatores como sepse, aumento da pressão intracraniana e medi‑ camentos que diminuem a motilidade do trato gastrointestinal. Nas situações em que há retardo do esvaziamento gástrico e ris‑ co de broncoaspiração, o médico pode indicar o uso da via pós‑ CRPS = Na [mEq] + K [mEq] + Cl [mEq] + P [mEq] + proteína [g]/0,175 -pilórica (extremidade da sonda além da segunda porção duode‑ nal ou no jejuno), que permite ofertar maior volume de dieta. A A real carga renal de solutos (CRS) é a CRPS subtraída a parce‑ posição da sonda deve ser confirmada por radiografia de abdo‑ la da CRPS excretada por vias extrarrenais e dos nutrientes me e pH do líquido aspirado (≥ 7,0 na posição pós-pilórica). utilizados para síntese de novos tecidos. Exceto quando ocor‑ Ressalte-se, contudo, que a medida mais eficaz e obrigatória re diarreia, as perdas extrarrenais são pequenas e podem ser contra a aspiração é manter o paciente rigorosamente em procli‑ ignoradas. O médico deve estar atento em relação à CRPS nas ve a 30 a 45°. seguintes situações: A infusão rápida ou por gavagem pode causar distensão gás‑ • fase aguda das doenças, quando a ingestão hídrica estiver di‑ trica, associa-se a maior risco de aspiração e menor aproveita‑ minuída, especialmente na presença de febre; mento energético. Em pacientes em ventilação pulmonar mecâ‑ • uso de dietas com alta densidade energética e de nutrientes; nica, a dieta deve ser administrada de modo contínuo ou lento, • temperatura ambiente elevada; o que possibilita menores oscilações do gasto energético e me‑ • quando a capacidade de concentração renal está diminuída, lhor aproveitamento dos nutrientes administrados. Em neona‑ como na doença renal crônica e na desnutrição grave. tos prematuros, a infusão contínua associa-se a menores altera‑ ções na mecânica pulmonar do que a infusão por gavagem. Crianças que têm aumento de perdas hídricas (febre, diarreia, taquipneia, sudorese) e não podem expressar a sensação de Técnica de administração sede estão em risco de desidratação hipertônica, devendo, As sondas devem ser de silicone ou poliuretano. O volume ini‑ por essa razão, receber água livre adicional. Esse cuidado é cial e a velocidade de infusão são determinados pelo peso cor‑ particularmente importante em crianças neuropatas. Algu‑ póreo e pela tolerância do paciente. Inicia-se em geral com 25 mas dietas industrializadas para NE, feitas especificamente a 50% das necessidades estimadas, aumentando-se gradati‑ para crianças menores de 1 ano, têm maior teor energético (1 vamente até chegar ao volume total por volta do 2º ao 4º dia. O kcal/mL), mas também proteico, o que aumenta a CRPS. sistema fechado permite a infusão contínua de dieta enteral Portanto, quando houver indicação dessas dietas, deve-se por até 24 horas. Caso este não seja disponível, deve-se dividir monitorar eletrólitos séricos, ureia, diurese, balanço hídrico e o volume total diário em 8 frascos e infundir o conteúdo de um osmolaridades sérica e urinária. frasco durante 2 horas, a cada 3 horas. Osmolaridade Cuidados com a administração da dieta enteral Conhecer a osmolaridade da dieta é outro ponto importante, • Posicionar o paciente em proclive a 30 a 45°; pois fórmulas com alta osmolaridade podem causar diarreia • verificar se há resíduo gástrico antes de cada infusão por gava‑ quando administradas por via pós-pilórica. A osmolaridade gem e a cada 3 horas na infusão contínua; se presente, des‑ das fórmulas infantis para administração oral ou intragástri‑ contar do volume a ser infundido; ca deve ser inferior a 400 mOsm/L (osmolalidade < 450 • utilizar bomba de infusão para administrar a dieta. Se a infusão mOsm/kg).5 for por gravidade, pode-se inadvertidamente administrar a die‑
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ta muito rapidamente, o que causa cólicas, distensão abdomi‑ nal e diarreia; • lavar a sonda com água destilada após a infusão da dieta.
Monitoração • Oferta de nutrientes e balanço hídrico, sinais vitais, estado nutricional; • velocidade de gotejamento da dieta, posição da sonda após crise de tosse ou vômito; • glicosúria, glicemia, ureia, eletrólitos, cálcio, fósforo, gasome‑ tria e albumina sérica. Particularidades do neonato A NE deve ser iniciada no 1º dia de vida, objetivando atingir as recomendações energéticas estimadas por volta da 2ª ou 3ª semana. Nos prematuros, o leite materno ordenhado acresci‑ do de suplemento é a melhor opção. Quando não for possível, a fórmula láctea especial para prematuros deve ser utilizada. Recomenda-se não aumentar a oferta de volume além de 20 mL/kg/dia. A maior parte dos prematuros tem ganho ponde‑ ral aceitável com oferta energética final entre 110 e 130 kcal/ kg/dia. A Tabela 1 mostra uma sugestão de regime inicial de volume para administração de NE em neonatos. Tabela 1 Esquema de regime inicial de nutrição enteral em recém-nascidos Peso
Frequência
Volume inicial
Infusão contínua
2 mL/kg/h (24 mL/kg/dia) Aumentos diários de 0,5 a 1 mL/kg/h
< 1.000
A cada 2 h
2 mL/kg
1.000 a 1.500 g
A cada 2 h
2 a 4 mL/kg
1.500 a 2.500 g A cada 2 h
3 a 5 mL/kg
> 2.500 g
5 a 10 mL/kg
A cada 3 h
Complicações Podem ser mecânicas, gastrointestinais e metabólicas. Nas Tabelas 2, 3 e 4 estão resumidas as complicações mais fre‑ quentes, suas prováveis causas e o tratamento. Tabela 2 Complicações mecânicas da nutrição enteral Complicação
Provável causa
Prevenção
Obstrução da sonda
Falha em irrigar a sonda regularmente; uso de medicação pela sonda; dieta rica em fibras
Irrigar a sonda com água após cada infusão da dieta e após a administração de medicações; usar medicação na forma líquida. Para a infusão de dietas ricas em fibras, utilizar sonda de calibre 10
Aspiração pulmonar
Redução dos reflexos protetores das vias aéreas, atonia gástrica, íleo, sonda mal posicionada
Em pacientes com redução do nível de consciência ou em ventilação mecânica, optar pela via pós- -pilórica. Infundir a dieta lentamente com a criança em decúbito elevado; monitorar resíduo gástrico (continua)
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Tabela 2 (continuação) Complicações mecânicas da nutrição enteral Complicação
Provável causa
Prevenção
Mau posicionamento ou deslocamento da sonda
Técnica de passagem incorreta; tosse ou vômito
Técnica correta de introdução da sonda; monitorar a posição diariamente
Remoção acidental da sonda
Paciente agitado; fixação inadequada
Fixação correta da sonda; vigilância constante; sedar se necessário
Tabela 3 Complicações gastrointestinais da nutrição enteral Complicação
Provável causa
Prevenção/tratamento
Diarreia
Infusão muito rápida Alta osmolalidade da dieta Intolerância à lactose Fórmula com alto teor lipídico Intolerância alimentar Alteração da flora intestinal por antibioticoterapia Contaminação bacteriana da dieta
↓ velocidade da infusão ↑ a diluição ou mudar a fórmula Usar fórmula sem lactose ↓ teor de gordura da dieta Usar fórmula de hidrolisado proteico Não usar antidiarreicos; considerar vancomicina ou metronidazol via oral Técnica asséptica de preparo e administração; o frasco de infusão não deve permanecer por mais de 8 h em temperatura ambiente; preferir dietas prontas
Distensão abdominal
Uso de antiácidos e antibióticos Infusão muito rápida; fórmula hipertônica ou com alto teor de gordura, uso de narcóticos, íleo
Considerar a suspensão das drogas ↓ fluxo ou volume da infusão; considerar mudança da fórmula; rever uso de drogas que causam atonia gástrica
Náuseas e vômitos
Multifatorial
↓ fluxo; considerar mudança de fórmula; afastar processo infeccioso
Constipação intestinal
Dieta pobre em resíduos; desidratação
Considerar dieta rica em fibras; manter a hidratação
Tabela 4 Complicações metabólicas da nutrição enteral Complicação
Provável causa
Prevenção/ tratamento
Hiperglicemia
Estresse metabólico
↓ velocidade de infusão; monitorar glicosúria e glicemia
Desidratação
Dietas com alta carga renal de soluto, oferta hídrica inadequada
Monitorar eletrólitos, ureia, hematócrito ↓ oferta proteica ↑ oferta hídrica
Hipopotassemia
Anabolismo e falta de oferta; perdas por diarreia, líquidos digestivos ou uso de diuréticos
Monitoração frequente do potássio nessas situações
Hiperpotassemia
Insuficiência renal; acidose metabólica
↓ oferta de potássio, tratar a causa básica
Hipernatremia
Fórmulas com alto teor de sódio; oferta hídrica insuficiente
Considerar mudança da fórmula; ↑ oferta hídrica (continua)
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TERAPIA NUTRICIONAL ENTERAL E PARENTERAL •
Tabela 4 (continuação) Complicações metabólicas da nutrição enteral Complicação
Provável causa
Prevenção/ tratamento
Hipofosfatemia
Realimentação do desnutrido grave; uso de antiácidos
Monitoração frequente do fosfato nessas situações
Hipercapnia
Dieta hipercalórica, com alto teor de carboidratos em pacientes com insuficiência respiratória
↑ proporção de lipídios como fonte calórica
Nutrição parenteral A nutrição parenteral (NP) é indicada quando o trato gastroin‑ testinal está comprometido por doença ou tratamento, ou a via enteral é insuficiente para suprir as necessidades nutricio‑ nais. Pacientes sem perspectiva de receber NE efetiva em 5 a 7 dias são candidatos à NP. Nos desnutridos graves e neonatos prematuros que não têm perspectiva de ser alimentados em curto prazo pela via digestiva, recomenda-se iniciar a NP em até 48 horas. Está indicada principalmente nos pacientes des‑ nutridos crônicos, naqueles em risco de desnutrição por doen‑ ça aguda ou pós-operatório complicado, na síndrome de má absorção intestinal e nos neonatos prematuros.6,7 Para formular a NP, o médico deve conhecer o estado nutri‑ cional e metabólico do paciente, escolher a via de acesso e de‑ terminar meta nutricional a ser atingida. Via de acesso 1. Periférico ou central, a depender da osmolaridade da solução e do tempo que se pretende utilizar. O periférico deve ser utili‑ zado para NP por tempo inferior a 2 semanas. Permite a infu‑ são de soluções com osmolaridade de até 600 mOsm/L e, por um tempo curto, entre 600 e 900 mOsm/L. Há maior risco de complicações, como flebite e extravasamento, que se reduz quando o acesso venoso é trocado a cada 48 horas. A fórmula a seguir é útil para estimar a osmolaridade de NP em crianças:8 Osmolaridade (mOsm/L) = (A × 8) + (G × 7) + (Na × 2) + (P × 0,2) – 50
G: glicose (g/L); A: aminoácidos (mg/L); Na: sódio (mEq/L); P: fósforo (mg/L) 2. Acesso venoso central: quando a osmolaridade da solução é
≥ 900 mOsm/L. É obtido por punção ou dissecção de vaso peri‑ férico calibroso (veias basílica, cefálica ou jugular externa) ou vaso profundo (veias jugular interna, subclávia ou femoral); a extremidade distal do cateter deve ser localizada na entrada da veia cava superior (ou inferior) com o átrio direito. O cateter ve‑ noso central de inserção periférica (PICC) é vantajoso, pois se associa ao menor risco de trombose e infecção em relação à fle‑ botomia. Para o acesso venoso profundo, o médico deve utilizar cateter de silicone ou poliuretano, que será de uso exclusivo para NP. Em caso de NP prolongada, como ocorre em trata‑ mento de pacientes com síndrome do intestino curto, conside‑ rar o cateter central totalmente ou semi-implantável.
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Oferta hídrica As necessidades hídricas basais diárias são de 100 mL/100 kcal metabolizadas, contudo, a oferta hídrica pode variar con‑ forme a situação clínica. A avaliação diária do peso, do estado de hidratação, da densidade urinária, do volume de diurese e do balanço hídrico fornece boa estimativa do estado de hidra‑ tação. O médico deve ofertar maior volume hídrico se há febre, aumento de temperatura ambiente, hipermetabolismo e per‑ da de líquidos por diarreia ou sucos do tubo digestivo. Na insu‑ ficiência renal aguda, prescrever o volume adequado para su‑ prir as necessidades nutricionais estimadas e associar a diálise peritoneal para a retirada do excesso de líquidos. Para o cálculo das necessidades hídricas, utiliza-se a fór‑ mula de Holliday e Segar, que estima a atividade metabólica diária a partir do peso corpóreo (Tabela 5).9 Tabela 5 Necessidades hídricas basais estimadas9 Peso corpóreo
Volume
≤ 10 kg
100 mL/kg
10 a 20 kg
1.000 mL + 50 mL/kg para cada kg acima de 10 kg
> 20 kg
1.500 mL + 20 mL/kg para cada kg acima de 20 kg
Oferta de energia O gasto energético é o somatório das necessidades para man‑ ter o metabolismo basal, a atividade e o crescimento. Em crianças sadias, a taxa metabólica basal (TMB) representa aproximadamente 50% do gasto energético total; a atividade e o crescimento representam os outros 50%. A estimativa das necessidades de energia para crianças que não estão em es‑ tresse metabólico é mostrada na Tabela 6. Tabela 6 Necessidades estimadas de energia segundo a faixa etária10,11 Idade
Kcal/peso corpóreo
Neonato prematuro
110 a 120
0a1
90 a 120
1a7
75 a 90
7 a 12
60 a 75
12 a 18
30 a 60
> 18
25 a 30
Na criança em estresse metabólico, não há consumo de ener‑ gia para crescimento e atividade física, portanto, uma oferta baseada em recomendações para crianças sadias é excessiva. Se não é possível medir o gasto energético, a TMB, que é a energia necessária para manter os processos vitais do organis‑ mo, pode ser estimada pela fórmula de Seashore:12 TMB (kcal/dia) = (55 – 2 × idade em anos) × (peso em kg)
Deve-se evitar a hiperalimentação, que acarreta hiperglice‑ mia, hipofosfatemia, hipopotassemia, hipomagnesemia, de‑
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1506 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
ficiência de tiamina, hipercapnia, hipertrigliceridemia e es‑ teatose hepática. Oferta de nutrientes Glicose A taxa de infusão de glicose, equivalente à produção endógena de glicose, deve ser inicialmente de 2 a 5 mg/kg/minuto (2 a 4 mg/kg nos adolescentes e 4 a 5 mg/kg nas crianças menores), podendo ser aumentada até 12,5 g/kg/minuto (equivalente ao máximo de 18 g/kg/dia). Soluções com concentração de glicose inferior a 2,5% devem ser evitadas, pelo risco de hemó‑ lise e hiperpotassemia. A hiperglicemia pode causar diurese osmótica, prejudica a função imune e a cicatrização. Não há vantagens do controle glicêmico rígido com insulina em crianças. O tratamento in‑ tensivo da hiperglicemia com insulina pode causar hipoglice‑ mia, portanto, o médico deve, inicialmente, tratar a causa e re‑ duzir a velocidade de infusão de glicose quando a glicemia chegar a 140 a 150 mg/dL. Apenas nos casos de hiperglicemia grave (acima de 180 a 200 mg/dL) indica-se infundir insulina na dose de 0,01 a 0,05 U/kg/hora, em diluição de 0,1 U/mL. O risco de mortalidade e morbidade em crianças com hiper ou hipoglicemia é maior do que nas eutróficas.13 Lipídios Os lipídios são fonte de ácidos graxos essenciais, de energia e integram a estrutura das membranas celulares. Para prevenir a deficiência de ácidos graxos essenciais, 2 a 4% das calorias devem ser ofertadas como ácido linoleico. Emulsões lipídicas
As emulsões lipídicas endovenosas contêm triglicérides de ca‑ deia longa (LCT) ou uma mistura deles com triglicérides de ca‑ deia média (MCT/LCT) em proporções iguais, o que torna a metabolização lipídica mais rápida. Elas contêm 1,2% de fos‑ folípides de ovo como emulsificante. As emulsões a 20% são mais facilmente depuradas em pacientes recebendo doses de elevadas de lipídios, sendo vantajosas em relação às emulsões de menor concentração. A emulsão com mistura de óleo de soja, óleo de oliva, MCT e óleo de peixe (SMOF) teria efeitos benéficos em reduzir a inflamação, prevenir a colestase e mo‑ dular o sistema imune. É indicada para pacientes em NP por períodos maiores que 15 dias. O médico deve restringir a oferta de emulsões lipídicas na insuficiência hepática, sepse, distúrbios da coagulação, pan‑ creatite, hipertensão pulmonar e síndrome do desconforto respiratório. Na hiperbilirrubinemia neonatal, quando a bilir‑ rubinemia indireta está próxima ao nível de indicação de ex‑ sanguineotransfusão ou há quadro clínico compatível com sepse, a oferta de lipídios não deve ultrapassar 1 g/kg/dia. A hipertrigliceridemia satura o sistema da lipase lipoprotei‑ ca, resultando em depuração lipídica via fagocitose pelo siste‑ ma retículo-endotelial do fígado e dos pulmões e possível de‑ pressão da função imune. Portanto, a concentração sérica de triglicérides deve ser monitorada em pacientes que recebem NP com lipídios. Os atuais valores considerados como limites
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de tolerância para hipertrigliceridemia são: 250 mg/dL para neonatos e 300 a 400 mg/dL para crianças maiores. Emulsões lipídicas, por conterem ácidos graxos poli-insa‑ turados, são suscetíveis à oxidação. Se infundidas na presença da luz, pode haver formação de hidroperóxidos lipídicos, que são citotóxicos. Para minimizar o problema, recomenda-se co‑ brir o frasco e utilizar equipo de infusão de cor escura. Aminoácidos A necessidade proteica varia de acordo com o estado nutricio‑ nal, a faixa etária e o grau de catabolismo do paciente. As reco‑ mendações de acordo com a faixa etária são mostradas na Tabe‑ la 4. Para promover o anabolismo, a relação nitrogênio/calorias não proteicas deve estar entre 1/150 e 1/250. A oferta excessiva de aminoácidos pode causar acidose, desconforto respiratório, uremia, hiperamonemia, disfunção hepática, aumento do con‑ sumo de oxigênio e icterícia colestática. São parâmetros de mo‑ nitoração da oferta proteica: dosagem sérica de ureia, amônia, albumina e pré-albumina, gasometria e balanço nitrogenado. Em pacientes em estresse metabólico, adota-se uma rela‑ ção entre 1:90 e 1:150 visando a minimizar os efeitos do cata‑ bolismo proteico. Para o cálculo da relação nitrogênio:calorias não proteicas, somam-se as calorias fornecidas pela glicose e pelo lipídio e considera-se que cada 1 g de proteína correspon‑ de a 0,16 g de nitrogênio ou 1 g de nitrogênio está contido em 6,25 g de proteína. Informações para o cálculo da oferta de energia e da relação nitrogênio:calorias não proteicas: • 1 g de glicose (mono-hidratada) = 3,4 kcal; • 1 g de proteína = 4 kcal; • 1 g de lipídio = 9 kcal.* * A presença do glicerol na emulsão lipídica fornece 0,2 kcal/ mL, portanto: • emulsões lipídicas a 10% = 1,1 kcal/mL; • emulsões lipídicas a 20% = 2 kcal/mL. A distribuição das calorias totais segue as seguintes proporções: • carboidratos: 40 a 50%; • lipídios: 25 a 40%; • proteínas: 8 a 20% (> 20% se houver hipercatabolismo). As recomendações de oferta de aminoácidos, carboidrato e lipí‑ dio segundo a faixa etária, para início e progressão da NP, são mostradas na Tabela 7.14,15 Eletrólitos A oferta de eletrólitos deve atender às necessidades basais e, quando necessário, repor as perdas anormais. Se houver ne‑ cessidade de correção hidreletrolítica, deve-se utilizar acesso venoso paralelo ao da NP. O médico deve considerar a condi‑ ção clínica do paciente, as perdas concomitantes, o uso de me‑ dicamentos e os procedimentos que possam alterar as concen‑ trações séricas de eletrólitos. Em crianças desnutridas graves, há diminuição do potássio intracelular, magnésio e fósforo e ganho de sódio e água. Durante o anabolismo, as necessidades de fósforo, potássio e magnésio são maiores.
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TERAPIA NUTRICIONAL ENTERAL E PARENTERAL •
1507
Tabela 7 Recomendações de oferta diária de proteína, carboidrato e lipídio para início e progressão da nutrição parenteral14 Início
Progressão
Meta
Lactentes (< 1 ano)
Pré-termo
Termo
Pré-termo
Termo
Pré-termo
Termo
Proteína (g/kg/dia)
1,5 a 3
1,5 a 3
1
1
3a4
2a3
Glicose (mg/kg/min)
5a7
6a8
1a 2 mg/kg/min/dia
1a 2 mg/kg/min/dia
8 a 12 (máx.: 14 a 18 g/dia)
8 a 12 (máx.: 14 a 18 g/dia)
Lipídios (g/kg/dia)
1a2
1a2
0,5 a 1
0,5 a 1
3 a 3,5 (máx.: 0,17 g/ kg/h)
3 (máx.: 0,15 g/kg/h)
Crianças (1 a 10 anos) Proteína (g/kg/dia)
1a2
1
1,5 a 3
Glicose (mg/kg/min)
10% glicose
5% glicose
8 a 10
Lipídios (g/kg/dia)
1a2
0,5 a 1
2a3
Proteína (g/kg/dia)
0,8 a 1,5
1
0,8 a 2,5
Glicose (mg/kg/min)
3,5 ou 10% de glicose
1 a 2 ou 5% de glicose
5a6
Lipídios (g/kg/dia)
1
1
1 a 2,5
Adolescentes
Cálcio e fósforo
A oferta segue a relação cálcio:fósforo 1,3:1. Restrições de volu‑ me hídrico podem favorecer a precipitação desses íons se for utilizado o fósforo inorgânico (fosfato de potássio 2 mEq/ mL); nesse caso, recomenda-se oferta hídrica de 120 a 150 mL/kg/dia e solução pediátrica de aminoácidos em concen‑ tração > 25 g/L. Para evitar o risco de precipitação, o médico deve utilizar a solução de fósforo orgânico, que contém 1 mmol/mL de fósforo e 2 mmol/mL de sódio. A soma das ofer‑ tas de cálcio e magnésio não deve ultrapassar 16 mEq/L para haver estabilidade da mistura. As recomendações diárias de eletrólitos por via parenteral, considerando-se funções orgâni‑ cas e perdas normais, são mostradas na Tabela 8.16
Oferta de micronutrientes Os micronutrientes devem fazer parte de todas as formula‑ ções de NP. As recomendações de oferta diária de vitaminas e oligoelementos,17 mostradas nas Tabelas 9 e 10, respectiva‑ mente, satisfazem as necessidades das crianças saudáveis e não consideram os estados de hipercatabolismo, situação em que são provavelmente maiores, mas não foram estabeleci‑ das. O médico não deve incluir formulações que contenham vitamina A em pacientes que estejam em método dialítico e, naqueles com colestase, reduzir ou suprimir a oferta de cobre e manganês.
Tabela 8 Recomendações de oferta diária de eletrólitos por via parenteral16 Eletrólito
Neonatos
Lactentes/crianças
Adolescentes e crianças > 50 kg
Adolescentes e crianças > 50 kg
Sódio
2 a 5 mEq/kg
2 a 5 mEq/kg
1 a 2 mEq/kg
1 a 2 mEq/kg
Potássio
2 a 4 mEq/kg
2 a 4 mEq/kg
1 a 2 mEq/kg
1 a 2 mEq/kg
Cálcio
2 a 4 mEq/kg
0,5 a 4 mEq/kg
10 a 20 mEq/dia
10 a 20 mEq
Fósforo
1 a 2 mmol/kg
0,5 a 2 mmol/kg
10 a 40 mEq/dia
10 a 40 mmol
Magnésio
0,3 a 0,5 mEq/kg
0,3 a 0,5 mEq/kg
10 a 30 mEq/dia
10 a 30 mEq
Acetato
O necessário para manter o equilíbrio acidobásico
Cloreto
O necessário para manter o equilíbrio acidobásico
Tabela 9 Recomendações de oferta diária de vitaminas por via parenteral17 Vitamina
Crianças e RN a termo (dose total)
RN pré-termo (dose por kg/peso)
A (UI)
2.300
1.640
E (mg)
7
2,8
K (mcg)
200
80
D (UI)
400
160
C (mg)
80
25 (continua)
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1508 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 18 NUTROLOGIA
Tabela 9 (continuação) Recomendações de oferta diária de vitaminas por via parenteral17 Vitamina
Crianças e RN a termo (dose total)
RN pré-termo (dose por kg/peso)
Tiamina (mg)
1,2
0,35
Riboflavina (mg)
1,4
0,15
Piridoxina (mg)
1
0,18
Niacina (mg)
17
6,8
Pantotenato (mg)
5
2
Biotina (mcg)
20
6
Folato (mcg)
140
56
B-12 (mcg)
1
0,3
Tabela 10 Recomendações de oferta diária de oligoelementos por via parenteral14,16,17 Oligoelemento
Neonatos pré-termo < 3 kg (mcg/kg/dia)
Neonatos a termo 3 a 10 kg (mcg/kg/dia)
Crianças 10 a 40 kg (mcg/kg/dia)
Adolescentes > 40 kg (por dia)
Zinco
400
50 a 250
50 a 125
2 a 5 mg
Cobre
20
20
5 a 20
200 a 500 mcg
Manganês
1
1
1
40 a 100 mcg
Cromo
0,05 a 02
0,2
0,14 a 0,2
5 a 15 mcg
Selênio
1,5 a 2
2
1a2
40 a 60 mcg
Doses máximas diárias: zinco 5 mg; selênio 100 mcg; cobre 500 mcg; cromo 5 mcg; manganês 50 mcg.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que a nutrição por sonda enteral é indicada na presença ou risco de desnutrição, quando a via oral é insuficiente para suprir as necessidades nutricionais. • Saber que o paciente deve ter estabilidade hemodinâmica e trato gastrointestinal viável. • Saber que a nutrição parenteral é indicada quando o trato gastrointestinal está comprometido por doença ou tratamento, ou a via enteral é insuficiente para suprir as necessidades nutricionais. • Lembrar que pacientes previamente eutróficos, sem perspectiva de receber nutrição enteral efetiva em 5 a 7 dias, são candidatos à nutrição parenteral. • Lembrar que, nos desnutridos graves e neonatos prematuros, a recomendação é iniciar a nutrição parenteral em até 48 horas.
Referências bibliográficas 1.
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TERAPIA NUTRICIONAL ENTERAL E PARENTERAL •
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SEÇÃO 19
Onco ‑hematologia COORDENADORA
Denise Bousfield da Silva
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COORDENADORA E AUTORES SEÇÃO 19 ONCO-HEMATOLOGIA
Coordenadora Denise Bousfield da Silva Especialista em Pediatria pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), em Cancerologia Pediátrica pela Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica e em Hematologia e Hemoterapia pela Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (ABHH). Mestre em Ciências Médicas, com Área de Concentração em Pediatria, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da UFSC. Coordenadora do Serviço de Onco‑hematologia e da Residência Médica de Cancerologia Pediátrica e de Hematologia Pediátrica do Hospital Infantil Joana de Gusmão. Presidente do Departamento Científico de Onco‑hematologia da SBP. Autores Ana Paula Kuczynski Pedro Bom Especialista em Pediatria pela SBP e em Cancerologia Pediátrica pela Sociedade Brasileira de Cancerologia (SBC). Mestre e Doutora em Pediatria pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Titular da Disciplina Pediatria do Departamento de Pediatria da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC‑PR). Médica Pediatra Cancerologista do Hospital Pequeno Príncipe. Andréa Gadelha Nóbrega Lins Especialista em Oncopediatria pelo Hospital Osvaldo Cruz e pelo Insituto Boldrini. Professora da Disciplina Módulo Oncologia do Departamento de Saúde da Criança e Adolescente da Universidade de Medicina FAMENE.
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Célia Martins Campanaro Especialista em Pediatria, com Área de Atuação em Hematologia Pediátrica pela ABHH/AMB/SBP. Doutora em Ciências da Saúde pela Unifesp. Professora Adjunta da Disciplina Hematologia Pediátrica do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina de Jundiaí. Fernando de Almeida Werneck Especialista em Oncologia Pediátrica pela Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica (Sobope) e em Pediatria pela SBP. Mestre em Medicina pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor‑assistente de Propedêutica Médica da Universidade Severino Sombra. Membro da Histiocyte Society. Isa Menezes Lyra Doutora em Medicina e Saúde pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora Titular IV da Universidade Salvador/Laureate International Universities. Hematopediatra da UFBA e da Fundação de Hematologia e Hemoterapia da Bahia. Pesquisadora Colaboradora do Centro de Pesquisa Gonçalo Muniz (Fiocruz). Presidente do Departamento de Hematologia e Hemoterapia Pediátrica da SBP. José Henrique Silva Barreto Especialista em Oncologia Pediátrica pelo Hospital Martagão Gesteira e Residência em Pediatria pelo Hospital Universitário Professor Edgard Santos. Mestre em Epidemiologia em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. Doutor em Medicina e Saúde pela UFBA. Membro Efetivo da Sobope e da Sociedade Baiana de Pediatria (Sobape). Membro do Departamento de Onco
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‑hematologia da Sobape e do Departamento de Onco‑hematologia da SBP. Josefina Aparecida Pellegrini Braga Professora Doutora Adjunta do Departamento de Pediatria e Chefe do Setor de Hematologia Pediátrica do Departamento de Pediatria da EPM ‑Unifesp. Membro do Departamento de Onco ‑hematologia da SBP e Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP). Liane Esteves Daudt Especialista em Pediatria pela AMB/SBP, em Hematologia e Hemoterapia e Área de Atuação em Transplante de Medula Óssea pela AMB/ABHH. Professora Doutora Adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Famed‑UFRGS). Chefe do Serviço de Hematologia Clínica e Transplante de Medula Óssea do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Membro do Departamento Científico de Onco‑hematologia da SBP e da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul. Mara Albonei Dudeque Pianovski Doutora em Saúde da Criança e do Adolescente pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
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Professora Adjunta do Departamento de Pediatria do Hospital de Clínicas da UFPR. Médica Pediatra Cancerologista do Hospital Erasto Gaertner. Maria Lydia Mello de Andréa Especialista em Pediatria pela USP e em Oncologia Pediátrica pela Sobope. Mestre em Pediatria pela USP. Maria Zélia Fernandes Especialista em Hematologia pelo Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro. Professora Doutora do Departamento de Medicina Clínica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora Doutora Nível Superior IV da Universidade Potiguar. Médica do Hospital Infantil Varela Santiago. Membro Efetivo da SBP, Sobope e SBHH. Sandra Regina Loggetto Mestre em Pediatria na Área de Hematologia Pediátrica pela EPM‑Unifesp. Hematologista Pediatra do Centro de Hematologia de São Paulo e do Hospital Infantil Sabará. Membro do Departamento de Hematologia e Oncologia da SPSP e SBP.
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CAPÍTULO 1
INTERPRETAÇÃO DO HEMOGRAMA E DAS PROVAS DE COAGULAÇÃO Denise Bousfield da Silva Sandra Regina Loggetto
Introdução O hemograma é um exame laboratorial de baixo custo que for‑ nece informações qualitativas e quantitativas dos glóbulos vermelhos, dos glóbulos brancos e das plaquetas. O sangue deve ser armazenado a 4°C durante 24 horas, em‑ bora o mais indicado seja o analisar o mais rápido possível. Podem ser utilizados como anticoagulante a heparina, o citra‑ to ou o ácido etilenodiamino tetra-acético (EDTA), sendo este último o mais recomendado porque induz menos alterações morfológicas.1 Na interpretação do hemograma, devem ser considerados a história clínica, o exame físico e as variações interlaboratoriais re‑ lacionadas à qualidade do equipamento, capacitação técnica do profissional e qualidade do esfregaço sanguíneo. Outras variáveis a serem analisadas incluem hemólise do material, excesso de an‑ ticoagulante, sangue mal conservado, presença de crioaglutina‑ ção, dificuldade da coleta e sítio de obtenção da amostra.1,2 Fatores demográficos, fatores biológicos e influências ex‑ ternas (variação diurna, gravidez, trabalho de parto, mens‑ truação, exercício, tabagismo, local da coleta, obesidade) po‑ dem interferir na avaliação do hemograma.1,2 Em relação à interpretação das provas de coagulação, de‑ vem-se considerar a história clínica do paciente, os exames la‑ boratoriais anteriormente realizados, a presença de fatores as‑ sociados como doenças e uso de medicações, antecedentes pessoais e familiares de hemorragia ou trombose, histórico de distúrbios menstruais pessoais ou familiares.1-3 As informações sobre o método de coleta da amostra de sangue e o tempo entre a coleta e o processamento do exame devem ser considerados na interpretação clínica, pois interfe‑ rem nos resultados, caso as normas padronizadas não sejam rigorosamente observadas no processamento.1-3 Interpretação do hemograma Avaliação do leucograma O leucograma fornece o número total dos glóbulos brancos e sua contagem diferencial no sangue periférico. Na sua inter‑
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pretação, devem ser considerados o contexto clínico do pa‑ ciente, as variáveis anteriormente descritas, as doenças subja‑ centes e o uso de medicamentos.1-5 É importante lembrar que a interpretação do leucograma deve ser criteriosa em decorrência de sua baixa sensibilidade e especificidade.1,3 O pediatra, portanto, deve considerar o con‑ texto clínico do paciente para identificar suas hipóteses diag‑ nósticas.2-4 A média da contagem de leucócitos na população caucasia‑ na é de 6.000 a 7.000/mm3, mas a grande variabilidade leva os limites de referência a 4.000 a 11.000/mm3 (média de ± 2 desvios padrão).1-4 Em relação à etnia, os indivíduos da raça negra podem ter o número de leucócitos totais cerca de 20% menor do que os da raça branca. Nesses indivíduos, a contagem de neutrófilos é em torno de 200 a 600 células/mm3 abaixo do observado na raça branca.1-4 O número de neutrófilos ao nascer é geralmente maior do que nas crianças mais velhas e eleva-se durante as primeiras horas de vida. Esse aumento costuma estar relacionado à ele‑ vação das formas jovens imaturas e decresce em torno de 72 horas de vida. Os linfócitos passam posteriormente a ser as cé‑ lulas mais numerosas e permanecem assim nos primeiros 4 anos de vida. Após esse período até a vida adulta, ocorre pre‑ domínio dos neutrófilos no sangue periférico.2,3,5,6 O número absoluto de eosinófilos ao nascer é maior do que o dos adultos, e a eosinofilia pós-natal observada em alguns estudos foi relacionada ao uso de transfusões sanguíneas e de medidas de suporte terapêutico.1,2,5 O número absoluto de monócitos também é mais elevado nos recém-nascidos (RN) do que nos demais períodos da vida.2,4 Os valores globais e diferenciais dos leucócitos de acordo com a idade encontram-se listados na Tabela 1.2,7 Leucocitose A leucocitose é definida como contagem leucocitária acima de 2 desvios padrão da média para idade. Geralmente resulta do
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1516 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 19 ONCO-HEMATOLOGIA
Tabela 1 Valores de referência dos leucócitos conforme a idade Leucócitos totais
Neutrófilos
Idade
Média
Variação
Média
Variação
%
Linfócitos Média
Variação
%
Monócitos Média
%
Eosinófilos Média
%
Nasc.
18,1
9,0 a 30,0
11,0
6,0 a 26,0
61
5,5
2,0 a 11,0
31
1,1
6
0,4
2
12 h
22,8
13,0 a 38,0
15,5
6,0 a 28,0
68
5,5
2,0 a 11,0
24
1,2
5
0,5
2
24 h
18,9
9,4 a 34,0
11,5
5,0 a 21,0
61
5,8
2,0 a 11,5
31
1,1
6
0,5
2
1 sem.
12,2
5,0 a 21,0
5,5
1,5 a 10,0
45
5,0
2,0 a 17,0
41
1,1
9
0,5
4
2 sem.
11,4
5,0 a 20,0
4,5
1,0 a 9,5
40
5,5
2,0 a 17,0
48
1,0
9
0,4
3
1 mês
10,8
5,0 a 19,5
3,8
1,0 a 9,0
35
6,0
2,5 a 16,5
56
0,7
7
0,3
3
6 meses
11,9
6,0 a 17,5
3,8
1,0 a 8,5
32
7,3
4,0 a 13,5
61
0,6
5
0,3
3
1 ano
11,4
6,0 a 17,5
3,5
1,5 a 8,5
31
7,0
4,0 a 10,5
61
0,6
5
0,3
3
2 anos
10,6
6,0 a 17,0
3,5
1,5 a 8,5
33
6,3
3,0 a 9,5
59
0,5
5
0,3
3
4 anos
9,1
5,5 a 15,5
3,8
1,5 a 8,5
42
4,5
2,0 a 8,0
50
0,5
5
0,3
3
6 anos
8,5
5,0 a 14,5
4,3
1,5 a 8,0
51
3,5
1,5 a 7,0
42
0,4
5
0,2
3
8 anos
8,3
4,5 a 13,5
4,4
1,5 a 8,0
53
3,3
1,5 a 6,8
39
0,4
4
0,2
2
10 anos
8,1
4,5 a 13,5
4,4
1,8 a 8,0
54
3,1
1,5 a 6,5
38
0,4
4
0,2
2
16 anos
7,8
4,5 a 13,0
4,4
1,8 a 8,0
57
2,8
1,2 a 5,2
35
0,4
5
0,2
3
21 anos
7,4
4,5 a 11,0
4,4
1,8 a 7,7
59
2,5
1,0 a 4,8
34
0,3
4
0,2
3
Número dos leucócitos em milhares/mcL; variações estimadas em limites de confiança de 95%; neutrófilos incluem bastões em todas as idades e pequeno número de metamielócitos e mielócitos nos primeiros dias de vida. Nasc.: nascimento; sem.: semana(s). Fonte: Dallman, 1977.7
aumento do número de neutrófilos. Pode ainda ocorrer pelo aumento de linfócitos, eosinófilos ou monócitos, e eventual‑ mente pela presença de células mieloides ou linfoides anor‑ mais.1-4 Neutrofilia Os neutrófilos exercem a função de quimiotaxia e fagocitose, representando a primeira linha de defesa contra infecções bacterianas.1-4 A abordagem inicial do paciente com neutrofilia envolve história clínica e exame físico detalhados, visando a determi‑ nar a presença ou a ausência de infecção, inflamação ou malig‑ nidade.2 Na Tabela 2, estão listadas algumas das principais causas hereditárias e adquiridas de neutrofilia (neutrófilos > 8.000/ mm3 em adultos; > 7.000/mm3 nos RN prematuros e > 13.000/mm3 no RN a termo).1-4 Reação leucemoide É definida pela leucometria maior que 50.000 leucócitos/ mm3, associada ao aumento no número de células mieloides imaturas. Pode haver desvio até promielócito e eventualmen‑ te até mieloblasto. Deve ser diferenciada da leucemia mieloide crônica ou da leucemia mieloide juvenil. As principais causas de reação leucemoide são:1-4 • infecções piogênicas; • doenças inflamatórias (glomerulonefrite aguda, artrite reu‑ matoide juvenil); • insuficiência hepática; • acidose diabética; • síndrome de Down (doença mieloproliferativa transitória).
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Tabela 2 Causas de neutrofilia Hereditárias Neutrofilia hereditária, rearranjo defeituoso da integrina em resposta a citocinas e quimiotáticos, distúrbios metabólicos hereditários, síndrome de hiperimunoglobulina D, urticária familiar ao frio com leucocitose, etc. Adquiridas Infecções (bacterianas, algumas virais e fúngicas, algumas parasitoses) Dano e infarto tecidual Inflamação aguda e crônica grave (gota, artrite reumatoide, etc.) Hemorragia aguda, hipóxia aguda, estresse pelo calor Distúrbios endócrinos e metabólicos Doenças malignas, síndromes mieloproliferativas Administração de medicamentos (adrenalina, corticosteroide, lítio) Rebote pós-neutropenia, administração de citocinas Intoxicação por medicamentos e agentes químicos (ferro, etilenoglicol) Reações de hipersensibilidade Tabagismo, exercício vigoroso Envenenamento (escorpião, cobra) Eclâmpsia e pré-eclâmpsia Dor aguda, convulsões epilépticas, choque elétrico Doença de Kawasaki, taquicardia paroxística Transfusão em pacientes em estado crítico, infusão de crioprecipitado Neutrofilia crônica idiopática Fonte: adaptada de Bain, 2007.1
Eosinofilia Os eosinófilos têm função na mediação de processos inflama‑ tórios associados à alergia, na defesa contra parasitas meta‑ zoários helmínticos e em certos distúrbios cutâneos alérgicos e neoplásicos.1,2,4 O grau de eosinofilia pode ser categorizado em: leve (500 a 1.500 células/mm3), moderado (> 1.500 a 5.000 células/ mm3) e grave (> 5.000 células/mm3).1
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Interpretação do Hemograma e das Provas de Coagulação •
1517
O termo síndrome hipereosinofílica define a contagem de eosinófilos no sangue periférico > 1.500 células/mm3 na au‑ sência de causa secundária identificável.3,8 Algumas causas de eosinofilia (> 500/mm3) estão listadas na Tabela 3.
inflamatórios, sendo um dos principais a histamina. Possuem também receptores de IgE na membrana citoplasmática.2,6 Algumas causas de basofilia reacional e as associadas às síndromes mieloproliferativas (contagem absoluta > 100 a 150 /mm3) estão listadas na Tabela 7.
Linfocitose A contagem de linfócitos é mais elevada em lactentes e crian‑ ças, e sua contagem não difere entre os sexos nem entre os grupos étnicos.1,2 A linfocitose reativa é o termo utilizado para definir a linfo‑ citose policlonal transitória em paciente sem história de dis‑ túrbio hematológico e que tem uma condição médica prova‑ velmente associada com a linfocitose. É importante enfatizar que os lactentes e as crianças são mais propensos às altera‑ ções reacionais.1,2 O diagnóstico diferencial depende da idade e dos sintomas do paciente. A presença de anemia, trombocitopenia ou neu‑ tropenia associada à linfocitose pode sugerir o diagnóstico de processo maligno, e o paciente deve ser imediatamente referi‑ do ao hematologista.1,2 As Tabelas 4 e 5 descrevem, respectivamente, algumas cau‑ sas de linfocitose (> 4.000/mm3 nos adolescentes com mais de 12 anos e nos adultos) e linfocitose atípica.
Leucopenia A leucopenia é definida pela redução da contagem total de leu‑ cócitos prevista para um indivíduo sadio de mesmo sexo, ida‑
Monocitose Os monócitos participam da fagocitose de células mortas, se‑ nescentes, corpos estranhos, regulação da função de outras cé‑ lulas, processamento e apresentação de antígenos, reações in‑ flamatórias e destruição de microrganismos e células tumorais.2 Algumas causas mais comuns de monocitose (> 800/mm3) estão descritas na Tabela 6. Basofilia Os basófilos representam menos do que 0,4% do número total de leucócitos ao nascimento e, a partir do 1º mês de vida e du‑ rante a fase adulta, passam a representar 0,5% do número to‑ tal de leucócitos circulantes. Produzem diversos mediadores
Tabela 4 Causas de linfocitose Constitucionais Síndrome de DiGeorge, rearranjo defeituoso da integrina Adquiridas Infecções virais Certas infecções bacterianas (coqueluche, brucelose, tuberculose) Malária Fase aguda da doença de Chagas Linfocitose transitória relacionada com o estresse (infarto do miocárdio, trauma, crises de anemia na doença falciforme) Administração de adrenalina Contração muscular vigorosa (exercício intenso, status epilepticus) Administração de citocinas (interleucina-3, fator estimulante de colônias de neutrófilos) Reações alérgicas a medicamentos Vasculites Doença do soro Doença de Gaucher Timoma Pós-esplenectomia Beta-talassemia intermediária Distúrbios endócrinos (hipertireoidismo, hipopituitarismo, etc.) Leucemias linfoides e síndromes linfoproliferativas Fonte: adaptada de Bain, 2007.1
Tabela 3 Causas de eosinofilia
Tabela 5 Causas de linfocitose atípica
Doenças alérgicas e autoimunes
Infecções virais (HIV, EBV, CMV, hepatite B crônica) e bacterianas
Hipersensibilidade medicamentosa (penicilina, nitrofurantoína, ouro e sulfonamidas)
Infecções protozoárias (toxoplasmose, malária, babesiose)
Doenças parasitárias, particularmente quando há invasão tecidual (protozooses, nematódeos, trematódeos, cestódeos, ectoparasitas, como escabiose e miíase)
Imunizações Doença do soro Doença do enxerto versus hospedeiro
Doenças cutâneas (pênfigo, herpes gestacional, foliculite pustular eosinofílica, síndrome de descamação cutânea familiar, etc.)
Hipersensibilidade a drogas (fenitoína sódica, fenotiazinas, estreptoquinase, etc.)
Hematopoéticas: leucemia mieloide crônica, policitemia, doença de Hodgkin, leucemia linfoblástica aguda, leucemia eosinofílica, doenças mieloproliferativas
Sarcoidose
Síndrome hipereosinofílica idiopática Outras causas (após radioterapia, diálise peritoneal crônica, hemodiálise, deficiência de IgA, colite ulcerativa, hipopituitarismo, etc.)
Lúpus eritematoso sistêmico
Doença de Hodgkin Doença de Kawasaki Histiocitose hemofagocítica familiar Fonte: adaptada de Bain, 2007.1
Fonte: adaptada de Bain, 2007.1
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1518 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 19 ONCO-HEMATOLOGIA
de, estado fisiológico e etnia. Pode ocorrer pela diminuição do número dos neutrófilos ou linfócitos.1-4 Neutropenia A neutropenia nas crianças de 2 semanas de vida até 1 ano de idade é definida quando a contagem absoluta de neutrófilos é < 1.000/mm3 e após 1 ano de idade, quando essa contagem for < 1.500/mm3. É importante estar ciente de que os africanos e, em menor nível, os afroamericanos e afrocaribenhos, pos‑ suem contagem de neutrófilos mais baixas. Pode ser classifi‑ cada em: • leve, quando o número absoluto de neutrófilos está entre 1.000 e 1.500 células/mm3; • moderada, quando a contagem de neutrófilos estiver entre 500 e 1.000 células/mm3; grave, quando o número de neutrófilos for < 500/ mm3.1-4 As infecções recorrentes representam importante consequên‑ cia clínica para esses pacientes. Entretanto, é imprescindível estar ciente de que as alterações quantitativas e qualitativas dos neutrófilos diminuem as reações inflamatórias e que os si‑ Tabela 6 Causas de monocitose Infecções crônicas (tuberculose miliar, sífilis congênita, etc.) Recuperação de agranulocitose e melhora de infecção aguda
nais e sintomas clássicos de infecção podem não estar presen‑ tes, ser mascarados ou retardados.2 Algumas das principais causas de neutropenia estão descri‑ tas nas Tabelas 8 e 9. Linfocitopenia A linfocitopenia é observada comumente como parte da res‑ posta aguda ao estresse. No indivíduo adulto, a linfocitopenia é definida quando o número absoluto de linfócitos está infe‑ rior a 1.000 células/mm3 e, no 1º ano de vida, quando está in‑ ferior a 2.500/mm3. Podem ocorrer também reduções nas subpopulações de linfócitos circulantes que caracterizam di‑ versos distúrbios específicos, como os estados de imunodefi‑ ciência primária ou adquirida.1-3 Algumas causas frequentes de linfocitopenia estão descritas na Tabela 10. Os leucócitos podem ainda apresentar alterações morfoló‑ gicas, conforme listado na Tabela 11.2 Pancitopenia A pancitopenia é outra alteração que pode ocorrer no sangue periférico e se caracteriza pela presença de anemia, leucope‑ nia e trombocitopenia. A leucopenia geralmente ocorre por di‑ minuição do número de neutrófilos. A pancitopenia frequen‑ temente é determinada por substituição (como nas leucemias e linfomas) ou por insuficiência da medula óssea. Entretanto, algumas vezes, a pancitopenia pode ocorrer pela retenção das
Malária Babesiose Granulomatose linfomatoide
Tabela 8 Causas de neutropenia adquirida
Doença de depósito lipídico
Sem doença de base
Condições inflamatórias crônicas (doença de Crohn, colite ulcerativa, artrite reumatoide, lúpus eritematoso sistêmico)
Imune
Neoplasias mieloides Síndromes mielodisplásicas Carcinomas Doença de Hodgkin e outros linfomas
Medicamentosa (antineoplásicos; antimicrobianos, como meticilina, sulfonamidas, penicilina, cefalosporina, cloranfenicol; antireumáticos, como penicilamina, ibuprofeno; anticonvulsivantes, como fenitoína, carbamazepina, ácido valproico; anti-inflamatórios, analgésicos, benzodiazepínicos, tiazídicos, etc.)
Administração de citocinas
Radiação e metais pesados
Desmopressina
Idiopática
Síndromes de neutropenia e imunodeficiência de diversas causas
Com doença de base
Hemodiálise em longo prazo Endocardite
Leucemias, linfomas, doença metastática Infecções Deficiência de vitamina B12 ou de ácido fólico
Pós-esplenectomia Fonte: adaptada de Bain, 2007.
1
Sequestro reticuloendotelial Má absorção
Tabela 7 Causas de basofilia Leucemias: leucemia mieloide crônica (LMC), leucemia mieloide aguda (rara), alguns casos de leucemia linfoblástica aguda (LLA) Ph+ Distúrbios mieloproliferativos Doença de Hodgkin
Síndromes metabólicas Fonte: adaptada de Bain, 2007.1
Tabela 9 Neutropenia com história anterior positiva Fenótipo anormal: anemia de Fanconi, disceratose congênita, síndrome de Shwachman-Diamond, osteopetrose, etc.
Basofilia reacional: hipotireoidismo, hiperlipidemia, colite ulcerativa, artrite reumatoide juvenil, reações de hipersensibilidade imediata, administração de estrógeno, síndrome hipereosinofílica idiopática, varicela, pós‑esplenectomia, etc.
Fenótipo normal, sem infecções graves e repetidas: neutropenia crônica, neutropenia benigna familiar
Fonte: adaptada de Bain, 2007.1
Fonte: adaptada de Bain, 2007.1
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1518
Fenótipo normal, com infecções repetidas: neutropenia cíclica, agranulocitose infantil, anormalidades das células T e B, etc.
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Interpretação do Hemograma e das Provas de Coagulação •
Tabela 10 Causas de linfocitopenia Hereditárias Síndromes de imunodeficiências congênitas Adquiridas
Tabela 11 Algumas anormalidades morfológicas nos leucócitos Anormalidade morfológica
Possíveis patologias
Granulações tóxicas
Doenças infecciosas Doenças inflamatórias Doenças autoimunes Toxemia Gestação Uso de fator estimulante de colônias de granulócitos e monócitos Cirurgia, trauma, infarto (dano tecidual) Tratamento com corticosteroide
Corpúsculos de Döhle (inclusões citoplasmáticas azuis, mais comumente vistas nos neutrófilos)
Doenças infecciosas Doenças inflamatórias Doenças autoimunes Queimaduras Cirurgia, trauma, infarto (dano tecidual) Síndromes mielodisplásicas Gestação Uso de fator estimulante de colônias de granulócitos e monócitos Plaquetopenia familiar associada à mutação do gene MYH9 Anomalia de May-Hegglin (quando associada à leucopenia, a plaquetas gigantes e à trombocitopenia)
Estresse agudo (trauma, cirurgia, infecção aguda, queimaduras) Insuficiência renal aguda e crônica Administração de hormônio adrenocorticotrófico ou corticosteroide Síndrome de Cushing Sarcoidose Artrite reumatoide Lúpus eritematoso sistêmico Carcinomas Alguns linfomas não Hodgkin Doença de Hodgkin (particularmente doença avançada) Síndromes mielodisplásicas Síndrome de imunodeficiência adquirida Terapia citotóxica e imunossupressora Irradiação Alcoolismo Uso de eritropoetina Anemias aplástica, megaloblástica e ferropriva Sepse fúngica ou bacteriana
Grânulos de Alder-Reilly (inclusões azurofílicas citoplasmáticas)
Avaliação do eritrograma A análise completa do eritrograma inclui a avaliação da hemo‑ globina (Hb), do hematócrito (Ht), dos índices hematimétri‑ cos e do esfregaço periférico (Tabelas 13 e 14). Os valores nor‑ mais de Hb e Ht estão na Tabela 15. Ainda é importante avaliar os reticulócitos (células vermelhas imaturas sem núcleo), cujos valores normais para o RN são 2,5 a 6,5%, caindo para valores de adultos (0,5 a 1,5%) com 15 dias de vida.9 A obser‑ vação da morfologia das hemácias por meio do esfregaço peri‑ férico auxilia o diagnóstico de várias doenças, como na ane‑ mia ferropriva e talassemia menor, em que se tem hipocromia e microcitose, na anemia falciforme com as hemácias em foice, policromasia indicando hemácias jovens, volumosas e mais azuladas, anisocitose (variação no tamanho das hemácias) e poiquilocitose (alteração na forma da hemácia).1,6 A policitemia, segundo a Organização Mundial da Saúde, ocor‑ re quando a Hb é maior do que 18,5 g/dL nos homens e maior do que 16,5 g/dL nas mulheres. Pode ser primária (policitemia vera ou policitemia primária familial) ou secundária (algumas doen‑ ças renais, tumor de fossa posterior do cérebro, cardiopatia con‑ gênita cianótica, defeitos na síntese de 2,3-difosfoglicerato, altitu‑ des elevadas, transfusão materno-fetal ou feto-fetal, alterações na molécula de Hb que aumentam sua afinidade pelo oxigênio, doença pulmonar crônica, apneia do sono, idiopática).11
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1519
Mucopolissacaridoses Síndromes mielodisplásicas Mutações da mieloperoxidase Síndrome de Chédiak-Higashi
Vacuolização no citoplasma
Doenças infecciosas Conservação in vitro do sangue com ácido etilenodiamino tetra-acético (EDTA)
Hipersegmentação nos neutrófilos (> 5% dos neutrófilos com 5 ou mais lóbulos)
Deficiência de vitamina B12 ou de folato Síndromes mielodisplásicas Anemia ferropriva (raramente) Defeito genético (muito raro) Insuficiência renal crônica Tratamento com corticosteroide Tratamento com hidroxiureia Queimaduras extensas
Hipossegmentação nuclear nos neutrófilos
Anomalia de Pelger-Huet Síndromes mielodisplásicas Síndromes mieloproliferativas (raramente)
Fonte: adaptada de Bain, 2007.1
células em um baço aumentado ou pela destruição periférica de células maduras.1,2 Na Tabela 12, estão listadas algumas causas de pancitopenia.
1519
Fonte: Silva e Loggetto, 2014.2
Tabela 12 Causas de pancitopenia Hereditárias Anemia de Fanconi, disceratose congênita, osteopetrose, distúrbios metabólicos Adquiridas Anemias aplásticas e hipoplásticas Infiltração da medula óssea por neoplasia Infecções agudas e crônicas Síndrome hemofagocítica Síndrome da imunodeficiência adquirida Hiperesplenismo Lúpus eritematoso sistêmico Drogas (sulfonamidas, rifampicina, quinidina, etc.) Doença do enxerto versus hospedeiro crônica ou grave Fusariose Imunocitopenia combinada Fonte: adaptada de Bain, 2007.1
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1520 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 19 ONCO-HEMATOLOGIA
Tabela 13 Parâmetros relacionados com a análise da série vermelha no hemograma Unidade
Significado
Valor de referência
Contagem de GV
x10 /mm
Fornece o número de GV
1 a 10 anos: 4,1 a 5,1 milhões/mm3 Mulher: 4 a 5,4 milhões/mm3 Homem: 4,5 a 6,1 milhões/mm3
Hb
g/dL
Proteína de cor avermelhada
Varia com idade e sexo (Tabela 14)
Ht
%
Proporção do volume do sangue que é ocupado pelas células vermelhas
Varia com idade e sexo (Tabela 14)
HCM
Picogramas (pg)
Média da Hb contida dentro do GV HCM = Hb /GV
27 a 32 pg
VCM
Fentolitros (fL)
Volume médio do GV VCM = Ht × 1.000/GV
Varia com idade e sexo (Tabela 14)
CHCM
g/dL
Concentração média de Hb em um volume de GV CHCM = Hb/Ht
Varia com idade e sexo (Tabela 14)
RDW
%
Medida de intensidade de anisocitose, isto é, da variação do tamanho dos GV em uma amostra de sangue
11,5 a 15%
6
3
Índices hematimétricos
GV: glóbulos vermelhos; Hb: hemoglobina; Ht: hematócrito; HCM: hemoglobina corpuscular média; VCM: volume corpuscular médio; CHCM: concentração da hemoglobina corpuscular média; RDW: amplitude de variação eritrocitária (red cell distribution width). Fonte: Silva e Loggetto, 2014.2
Tabela 14 Valores da média e do limite inferior da normalidade para hemoglobina, hematócrito, VCM e CHCM de acordo com a idade e o sexo Idade
Hb (g/dL) Média
RNT
18,0
Ht (%) -2DP 15,0
VCM (fL)
CHCM (g/dL)
Média
-2DP
Média
-2DP
58
45
108
98
33
30
Média
-2DP
1 semana
17,0
13,5
54
42
107
88
33
28
2 semanas
16,0
12,5
52
39
105
86
33
28
1 mês
14,0
10,0
43
31
104
85
33
29
2 meses
11,5
9,0
35
28
96
77
33
29
3 a 6 meses
11,5
9,5
35
29
91
74
33
30
6 a 24 meses
12,0
10,5
36
33
78
70
33
30
2 a 6 anos
12,5
11,5
37
34
81
75
34
31
6 a 12 anos
13,5
11,5
40
35
86
77
34
31
12 a 18 anos Feminino Masculino
14,0 14,5
12,0 13,0
41 43
36 37
90 88
78 78
34 34
31 31
18 a 49 anos Feminino Masculino
14,0 16,0
12,0 13,0
42 47
37 40
90 90
80 80
34 34
31 31
RNT: recém-nascido a termo; Hb: hemoglobina; Ht: hematócrito; VCM: volume corpuscular médio; CHCM: concentração da hemoglobina corpuscular média; DP: desvio padrão. Fonte: adaptada de Orkin et al., 2009;6 Barone, 2006.9
Tabela 15 Valores de referência mínimos para hemoglobina e hematócrito, de acordo com idade e sexo, segundo a Organização Mundial da Saúde Idade/sexo
Hemoglobina (g/dL)
Hematócrito (%)
6 meses a 59 meses
11,0
33
5 a 11 anos
11,5
34
12 a 14 anos
12,0
36
> 15 anos (feminino) não gestante
12,0
36
Gestante
11,0
33
> 15 anos (masculino)
13,0
39
Fonte: WHO, 2001.10
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1520
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Interpretação do Hemograma e das Provas de Coagulação •
A interpretação do eritrograma deve ser feita em conjunto com dados de história clínica, exame físico, idade e sexo do paciente.1,6 O paciente com anemia pode ser avaliado em função do ta‑ manho dos glóbulos vermelhos (VCM = volume corpuscular médio). Por exemplo, na suspeita de uma anemia carencial, a hemácia microcítica sugere deficiência de ferro, enquanto a hemácia macrocítica sugere deficiência de vitamina B12 e/ou de ácido fólico (Tabela 16). O diagnóstico das anemias também é muito auxiliado pela correta interpretação dos índices hema‑ timétricos (Tabela 17), bem como da poiquilocitose observada no esfregaço periférico (Tabela 18) e das inclusões dentro dos
1521
glóbulos vermelhos (GV) (Tabela 19).12,13 A presença de eritro‑ blastos circulantes (eritrócitos jovens nucleados) sugere qua‑ dro de hemólise. Reticulócitos diminuídos sugerem falha de produção na medula óssea (hipoplasia e aplasia), e aumenta‑ dos sugerem aumento da eritropoese (anemias hemolíticas).6 Avaliação das plaquetas No laudo do hemograma, encontram-se não só o número de plaquetas, mas também parâmetros pouco utilizados, como vo‑ lume plaquetário médio (VPM), índice de amplitude de distri‑ buição do tamanho das plaquetas (PDW = platelet distribution
Tabela 16 Diagnóstico diferencial das anemias conforme o tamanho da hemácia (VCM) Tipo de anemia conforme o VCM
Possíveis patologias
Anemias normocíticas (VCM normal)
Anemias hemolíticas congênitas (eritroenzimopatias, defeitos de membrana eritrocitária, hemoglobinopatias) Anemia hemolítica adquirida (anemia hemolítica autoimune) Perda de sangue aguda Anemia de doença crônica ou da inflamação Anemia de inflamação aguda Insuficiência renal crônica Aplasia pura ou adquirida da série vermelha Aplasia de medula óssea congênita ou adquirida Infiltração tumoral da medula óssea Hiperesplenismo
Anemias microcíticas (VCM diminuído)
Deficiência de ferro Síndromes talassêmicas Anemia de doença crônica ou da inflamação quando associada a anemia ferropriva Envenenamento pelo chumbo Hemoglobina instável Anemia sideroblástica
Anemias macrocíticas (VCM aumentado)
Anemia megaloblástica (deficiência de vitamina B12 ou de ácido fólico) Anemia por deficiência de tiamina Aplasia de medula óssea congênita ou adquirida Aplasia pura ou adquirida da série vermelha Medicamentos que interferem na eritropoese (p.ex., valproato, zidovudina, alguns imunossupressores) Infiltração tumoral da medula óssea Anemia diseritropoética congênita Síndrome mielodisplásica Hepatopatias Hipotireoidismo
VCM: volume corpuscular médio. Fonte: adaptada de Fonseca, 2007;4 Campanaro e Chopard, 2014.13
Tabela 17 Alterações nos índices hematimétricos relacionados à série vermelha e diagnóstico da anemia Parâmetro Contagem de GV
Alteração
Possíveis patologias
Hipocromia e microcitose com: Aumento da contagem de GV
Traço alfa ou beta-talassemia
Diminuição da contagem de GV
Anemia ferropriva
Hipocromia
Anemia ferropriva Traço alfa ou beta-talassemia
Aumentado
Hiperlipidemia pode elevar falsamente a HCM
CHCM
Aumentado
Esferocitose Alguns casos de anemia falciforme ou doença da HbC Anemia hemolítica autoimune (AHAI)
RDW
Elevado
Anemia ferropriva Doença da HbH (alfatalassemia) S-beta-talassemia
Normal
Traço alfa ou beta-talassemia
HCM
GV: glóbulos vermelhos; HCM: hemoglobina corpuscular média; CHCM: concentração da hemoglobina corpuscular média; RDW: amplitude de variação eritrocitária (red cell distribution width). Fonte: Silva e Loggetto, 2014.2
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1521
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1522 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 19 ONCO-HEMATOLOGIA
Tabela 18 Poiquilocitose e suas possibilidades diagnósticas Poiquilocitose
Forma da hemácia
Possibilidades diagnósticas
Acantócitos
Vesículas na membrana celular
Insuficiência renal, pós-esplenectomia, hepatopatias
Dacriócitos
Hemácias em lágrima
Anemia ferropriva, anemia megaloblástica, talassemias
Drepanócitos
Hemácias em foice
Anemia falciforme, doença falciforme, traço falciforme
Eliptócitos ou ovalócitos
Hemácias em forma de charuto
Eliptocitose hereditária, anemia ferropriva, anemia megaloblástica, talassemias
Esferócitos
Hemácias esféricas, pequenas e hipercrômicas
Esferocitose, anemia hemolítica autoimune
Esquizócitos
Hemácias fragmentadas
CIVD, queimaduras, hemólise microangiopática
Estomatócitos
Área central da célula lembra boca (células com áreas estreitas e alongadas na região central)
Estomatocitose hereditária
Hemácias aglutinadas
Agrupamentos de hemácias
Hemácias em rouleaux (hemácias empilhadas)
Empilhamento de hemácias
Hemólise causada por um anticorpo contra hemácias (crioaglutininas na AHAI) Bloqueio da carga negativa na superfície do eritrócito pelas proteínas plasmáticas. Comum em processos inflamatórios com VHS aumentada
Hemácias crenadas
Hemácias com várias pontas pequenas
Uremia, síndrome hemolítico-urêmica, deficiência de piruvatoquinase, artefato de técnica
Hemácias em alvo
Com halo branco com área central hipocorada
Deficiência de ferro, talassemias, hemoglobinopatias C, D e E, pós-esplenectomia, doença hepática
Hemácias policromáticas
Reticulócitos, azulados
Anemias hemolíticas
CIVD: coagulação intravascular disseminada; VHS: velocidade de hemossedimentação; AHAI: anemia hemolítica autoimune. Fonte: Silva e Loggetto, 2014.2
Tabela 19 Inclusões nos glóbulos vermelhos vistas no esfregaço periférico e seus significados Inclusões Aneis de Cabot Corpúsculos de Heinz
Significado
Patologias
Restos do fuso mitótico remanescente de mitose anômala – forma de anel ou de 8
Anemias hemolíticas graves
Grânulos azuis que ocorrem pela precipitação da hemoglobina oxidada
Deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD)
Restos de cromatina nuclear que não foram eliminados dos GV maduros
Hipofunção esplênica Asplenia
Inclusões de hemoglobina H
Precipitação de cadeias betaglobina em excesso (tetrâmeros de betaglobina)
Alfatalassemia
Pontilhado basófilo
Grumos de RNA ou agregados de ribossomos que formam minúsculos grânulos no citoplasma
Talassemia Intoxicação por chumbo Anemias hemolíticas
Corpúsculos de Howell-Jolly
Fonte: Silva e Loggetto, 2014.2
width; avalia a heterogeneidade do tamanho das plaquetas) e plaquetócrito (PCT). A contagem normal das plaquetas (150.000 a 450.000/mm3) é igual para todas as faixas etárias.6,9 O VPM ainda é um exame que exige melhor definição em relação a sua metodologia (modo de estocagem do sangue, vo‑ lume do anticoagulante, tempo entre a coleta e a realização do exame, temperatura do paciente no momento da coleta, tec‑ nologia utilizada e tipo de população em estudo), sugerindo‑ -se que cada laboratório defina seu próprio valor de referência em função da população atendida e dos equipamentos utiliza‑ dos. Em aparelhos cuja metodologia seja a do princípio da im‑ pedância, o valor de referência para o VPM encontrado foi de 8 a 13 fL e para o PDW 9 a 14 fL, enquanto aparelhos que utili‑ zam o sistema óptico observou VMP normal entre 7,4 a 11,2 fL e o PDW entre 44 e 56%. Portanto, ao analisar esses valores, deve-se verificar o valor de referência do laboratório no qual o exame foi realizado.14
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1522
Quando se interpreta a série plaquetária no hemograma, devem ser considerados o número (trombocitopenia, normal e trombocitose), a morfologia (microplaquetas, macroplaque‑ tas, plaquetas gigantes, anisocitose plaquetária e degranula‑ ção de plaquetas) e, se disponível, o VPM.6 A principal causa de trombocitopenia em pediatria é a trombocitopenia imune/púrpura trombocitopênica imunoló‑ gica (PTI), porém inúmeras outras patologias podem reduzir o número de plaquetas (Tabela 20). Cuidado com o diagnóstico das púrpuras congênitas, evitando classificá-las de forma equivocada como PTI, pois implica tratamento diferente. Nas púrpuras congênitas, o VPM é fator importante para o diag‑ nóstico, como na síndrome de Wiskott-Aldrich (VPM dimi‑ nuído pela presença de microplaquetas) ou síndrome de Bernard-Soulier (VPM aumentado pela presença de macro‑ plaquetas) (Tabela 21). Medicações também causam trombo‑ citopenia (Tabela 22).
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Interpretação do Hemograma e das Provas de Coagulação •
1523
Tabela 20 Causas de trombocitopenia em pediatria Deficiência de produção Congênitas (raras) Anemia de Fanconi Síndrome de Bernard-Soulier Síndrome de Wiskott-Aldrich Trombocitopenia amegacariocítica Trombocitopenia com ausência do rádio Adquiridas Anemia aplástica Deficiência de folato ou vitamina B12 Infecções bacterianas; virais (síndrome da imunodeficiência adquirida, hepatite C, rubéola, citomegalovírus, herpes simples) Medicamentos; neoplasias; radioterapia Toxoplasmose
Aumento de destruição Causas imunológicas Trombocitopenia imune/púrpura trombocitopênica imunológica (PTI) Doenças autoimunes; medicações Púrpura pós-transfusional; trombocitopenia isoimune e aloimune neonatal Causas não imunológicas Anemia hemolítica microangiopática crônica Cardiopatias congênitas e adquiridas Cateteres CIVD Coagulopatias Próteses Púrpura trombocitopênica trombótica Síndrome hemolítico-urêmica Síndrome de Kasabach-Merritt Período neonatal: aspiração, distúrbios metabólicos, fototerapia, hipertensão pulmonar persistente e pós-exsanguinotransfusão
Sequestro Esplenomegalia Hemangioma gigante
Artefatos de técnica Pseudotrombocitopenia Satelismo plaquetário Plaquetas gigantes (contador não consegue identificar como plaquetas, subestimando sua contagem)
CIVD: coagulação intravascular disseminada. Fonte: Silva e Loggetto, 2014.2
Tabela 21 Classificação das trombocitopenias hereditárias em função do tamanho das plaquetas Patologia Clínica e laboratório Morfologia: plaquetas pequenas – VPM diminuído Síndrome de Wiskott-Aldrich (SWA) Imunodeficiência grave Eczema Defeito da proteína WAS Trombocitopenia ligada ao X: forma moderada da SWA Morfologia: plaquetas de tamanho normal – VPM normal Distúrbio plaquetário familiar com predisposição Propensão a evoluir para síndrome mielodisplásica ou LMA a LMA Plaquetas com disfunção Trombocitopenia amegacariocítica congênita Trombocitopenia hipomegacariocítica evoluindo para aplasia de medula óssea Trombocitopenia amegacariocítica com sinostose Sinostose radiulnar, com ou sem outras malformações radiulnar Possível perda auditiva neurossensorial Megacariócitos ausentes ou reduzidos Trombocitopenia com ausência do rádio Aplasia bilateral do rádio com ou sem outras malformações Trombocitopenia grave no 1º ano de vida Diminuição dos megacariócitos Morfologia: plaquetas grandes – VPM aumentado Defeito do complexo glicoproteico (GP) Ib/IX/V Síndrome de Bernard-Soulier TS prolongado Sangramentos Homozigotos: defeito de agregação plaquetária com ristocetina; plaquetas gigantes Heterozigotos: trombocitopenia moderada, agregação com ristocetina normal; plaquetas grandes Síndrome velocardiofacial (DiGeorge) Defeito no coração direito e palato Síndrome de Evans Imunodeficiência das células T Doença de von Willebrand IIB tipo plaquetário Defeito de agregação plaquetária com ristocetina (hiper-reativa) Macrotrombocitopenia benigna do Mediterrâneo Trombocitopenia ligada ao X com diseritropoese Trombocitopenia-talassemia ligada ao X Síndrome de Jacobsen Síndrome de Paris-Trousseau Trombocitopenia relacionada ao MYH9: Anomalia de May-Hegglin Síndrome de Sebastian Síndrome de Fechtner Síndrome de Epstein Síndrome da plaqueta cinza Síndrome da plaqueta de Montreal
Dismegacariocitopoese Anemia Sangramentos Defeito na síntese da cadeia de globina da beta-talassemia Displasia eritroide e mieloide Deficiência mental, alterações cardíacas e faciais Aumento do número de megacariócitos, micromegacariócitos Grânulos nas plaquetas Fenótipo mais leve que síndrome de Jacobsen Aumento do número de megacariócitos, micromegacariócitos Grânulos nas plaquetas Doenças relacionadas à mutação do gene MYH9 Sangramentos, perda auditiva neurossensorial, glomerulonefrite e catarata
Plaquetas pálidas por ausência ou redução de grânulos alfa Agregação plaquetária espontânea TS prolongado Tendência ao sangramento Macrotrombocitopenia com expressão plaquetária Tendência moderada ao sangramento de glicoforina A Perda auditiva Presença de glicoforina A na superfície das plaquetas
VPM: volume plaquetário médio; LMA: leucemia mieloide aguda; TS: tempo de sangramento. Fonte: adaptada de Loggetto, 2014.15
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1524 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 19 ONCO-HEMATOLOGIA
Tabela 22 Principais medicações que causam trombocitopenia Mecanismo imunológico Nível 1 (deve preencher critérios 1 a 4)**
Paracetamol*, alprenolol, aminoglutetimida, ácido aminossalicílico, amiodarona, anfotericina B, anrinona, atorvastatina, cefalotina, clorotiazida, clorpromazina, cimetidina, danazol*, deferoxamina, diatrizoato de meglumina, diatrizoato sódico, diazepam, diazóxido, diclofenaco, dietilestilbestrol, difluormetilornitina, digoxina*, etambutol, haloperidol, heparina, indinavir, interferon-alfa, ácido iopanoico, isoniazida, levamizol, lítio, meclofenamato, mesalamina, meticilina, metildopa*, minoxidil, ácido nalidíxico, nafazolina, nitroglicerina, novobiocina, oxprenolol, pentoxifilina, piperacilina, quinidina*, quinino*, rifampicina*, sulfassalazina, sulfasoxazol, tamoxifeno, tiotixeno, tolmetina, trimetoprim-sulfametoxazol*, vancomicina
Nível 2 (deve preencher critérios 1 a 3)**
Acetazolamida, ampicilina, captopril, carbamazepina*, clorpropamida*, fenitoína, fluconazol, glibenclamida, hidroclorotiazida*, ibuprofeno, ouro*, oxifenbutazona, oxitetraciclina, procainamida*, ranitidina*, sulindaco, ticlopidina
Inibição da produção Álcool, anticonvulsivantes, benzeno e derivados, cloranfenicol, estrógeno, irradiação ionizante e quimioterápicos * Medicamentos mais comuns que causam trombocitopenia autoimune. ** Critérios de nível de evidência para associar a medicação como causa de trombocitopenia: A medicação precede a trombocitopenia, com normalização das plaquetas após suspensão do medicamento. A única medicação utilizada antes da trombocitopenia foi o medicamento em questão. Com sua suspensão, as plaquetas normalizam. Mesmo utilizando outras medicações depois, as plaquetas mantêm-se normais. Exclusão de outras causas de trombocitopenia. Novo contato com a medicação em questão resulta mais uma vez em trombocitopenia. Fonte: adaptada de Thienelt e Calverley, 2009.16
Falsa trombocitopenia pode ocorrer em função do anticoagu‑ lante utilizado, uma vez que agregados plaquetários podem ser formados na presença de EDTA, resultando em pseudo‑ trombocitopenia (incidência 0,1%). A coleta de sangue com citrato, ou mesmo com EDTA, desde que a leitura do exame seja imediata, elimina a possibilidade de pseudotrombocito‑ penia. A leitura da lâmina do hemograma é importante para detecção da pseudotrombocitopenia.17 Trombocitemia indica aumento do número de plaquetas de causa desconhecida (trombocitemia essencial) e trombocitose ocorre quando existe uma causa para a plaquetose (secundária ou reativa). Em pediatria, a trombocitose secundária é mais fre‑ quente do que trombocitemia essencial (Tabela 23). A plaque‑ tose é classificada em leve (> 500.000 a 700.000/mm3), mode‑ rada (> 700.000 a 900.000/mm3), grave (> 900.000 a 1.000.000/mm3) e extrema (acima de 1.000.000/mm3).18 Fisiologia da hemostasia O sistema hemostático é composto por uma série de eventos integrados que envolvem vasos sanguíneos, plaquetas, fatores de coagulação, anticoagulantes naturais e proteínas da fibrinó‑ lise. A resposta primária da hemostasia (endotélio e plaque‑ tas), após uma lesão vascular, resulta na formação de um trom‑ bo plaquetário de efeito hemostático transitório. A partir do entotélio lesado, ocorre exposição de colágeno tipo I e III, se‑ guido de ligação do fator de von Willebrand, que é responsável pela adesão e posterior agregação plaquetária. A ativação se‑ quencial dos fatores de coagulação (fase secundária ou de coa‑ gulação sanguínea) resulta na formação de uma rede de fibrina que reforça esse trombo, coibindo de forma definitiva a perda sanguínea decorrente da lesão vascular. Os anticoagulantes naturais controlam a ação dos fatores coagulantes, evitando que a geração de trombina seja excessiva, impedindo, assim, a oclusão vascular. Os anticoagulantes naturais de maior rele‑ vância fisiológica são o inibidor da via do fator tecidual (tissue
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1524
Tabela 23 Principais causas de trombocitose em pediatria Primária
Secundária
Contagem plaquetária > 1.000.000/mm3
Geralmente contagem plaquetária < 800.000/mm3
Morfologia das plaquetas: dismórficas, grandes ou pequenas
Morfologia das plaquetas: grandes, sem dismorfismo
Síndromes mieloproliferativas (raras): policitemia vera, trombocitemia essencial, leucemia mieloide crônica
Infecções (37 a 78% dos casos) Anemias ferropriva e hemolítica (3,7 a 12%) Doenças inflamatórias crônicas: doença inflamatória intestinal, artrite reumatoide juvenil, poliarterite nodosa e doença de Kawasaki (2 a 9%) Lesão tecidual: traumas, cirurgias ou queimaduras (3,3 a 21%) Neoplasias: hepatoblastoma (1 a 3%) Esplenectomia Medicamentos: corticosteroides e alcaloides da vinca
Fonte: Silva e Loggetto, 2014.2
factor pathway inhibitor – TFPI), a proteína C, a proteína S e a antitrombina. A coagulação deve estar integrada a fibrinólise, permitindo que ocorra a dissolução do coágulo de fibrina e a manutenção da hemostasia. O desequilíbrio na hemostasia por alterações de um de seus componentes pode resultar no apare‑ cimento de doenças hemorrágicas ou trombóticas.3,6,19 Apresentação clínica e tipo de sangramento As alterações do número ou da função plaquetária, e menos comumente a telangiectasia hemorrágica hereditária ou a des‑ fibrinoginemia, expressam-se predominantemente por san‑
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Interpretação do Hemograma e das Provas de Coagulação •
gramentos mucosos e cutâneos de intensidade variável, como epistaxe, sangramento gengival e menorragia.6,19 Sangramen‑ tos no coto umbilical ou o atraso na cicatrização de ferimentos sugere deficiência de fator XIII.6 É importante também estar ciente de que sangramentos localizados podem decorrer de outros problemas não relacionados a coagulação, por exemplo, epistaxe unilateral resultante de trauma local.6 A púrpura corresponde ao extravasamento de hemácias dos vasos para pele ou tecido celular subcutâneo. Diversos mecanismos podem estar envolvidos na sua formação, como fragilidade capilar, alterações da hemostasia e aumento da pressão do sangue circulante nos capilares. Em relação ao seu tamanho, pode ser classificada como petéquia (menor que 2 mm de diâmetro), púrpura (entre 2 mm e 1 cm de diâmetro) e equimose (maior que 1 cm de diâmetro).19 As manifestações clínicas das coagulopatias por deficiência de fatores de coagulação são variadas e incluem hemartrose, hematoma, hematúria, sangramento no sistema nervoso cen‑ tral e no período pós-operatório.19 A forma aguda da coagulação intravascular disseminada (CIVD) representa uma ativação maciça da coagulação com consumo exacerbado de fatores de coagulação, plaquetas e de fatores anticoagulantes. Na sua forma crônica, há uma ativa‑ ção constante da coagulação, com menos intensidade e com compensação variável das deficiências dos fatores consumi‑ dos nesse processo. O quadro clínico da CIVD depende da doença de base que a determinou e caracteriza-se por sangra‑ mentos especialmente na CIVD aguda, que podem se mani‑ festar como hematomas, sangramentos simultâneos nos lo‑ cais de punção venosa ou feridas operatórias, além de fenômenos trombóticos e tromboembólicos variados.19 As alterações da hemostasia na doença hepática são decor‑ rentes da colestase (interfere na absorção da vitamina K pelo trato gastrointestinal); da deficiência de síntese; da hiperten‑ são portal; da diminuição da depuração de fatores de coagula‑ ção ativados; da redução da depuração das toxinas provenien‑ tes do trato gastrointestinal; e da trombocitopenia nos pacientes com hiperesplenismo secundário a hipertensão portal.19 As considerações diagnósticas para o neonato com sangra‑ mento são diferentes daquelas das crianças maiores e adoles‑ centes. Além disso, é importante levar em conta as diferenças dos valores normais para essa faixa etária na seleção e na in‑ terpretação dos exames laboratoriais de investigação da he‑ mostasia.6 Avaliação laboratorial da hemostasia Na interpretação das provas de coagulação, devem ser sempre considerados a correlação clínico-laboratorial, os resultados de exames anteriormente realizados e os fatores associados, como doenças, uso recente ou atual de medicamentos (espe‑ cialmente drogas antiplaquetárias, anticoagulantes e antifibri‑ nolíticas), antecedentes pessoais de hemorragias ou equimo‑ ses em locais não característicos de traumas, antecedentes familiares de hemorragias ou tromboses e a presença de dis‑ túrbios menstruais.3
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1525
1525
Os cuidados e as informações sobre o método de coleta (garroteamento prolongado, dificuldade de acesso venoso, etc.) e o tempo entre a coleta e a realização do exame laborato‑ rial interferem nos resultados, caso as normas padronizadas não sejam obedecidas durante o processamento.3 Na avaliação inicial da hemostasia, o tipo de exame labora‑ torial a ser solicitado difere dependendo da clínica e da fase de coagulação a ser estudada, conforme listado a seguir. Coagulação primária3,6,20,21 • Contagem de plaquetas, volume médio plaquetário e avalia‑ ção morfológica plaquetária. • Tempo de sangramento (técnica de Duke, na orelha; técnica de Ivy, no antebraço): teste de baixa sensibilidade e reprodu‑ tibilidade. Esse teste pode estar prolongado nos defeitos fun‑ cionais plaquetários, congênitos e adquiridos (medicamen‑ tos, uremia, cardiopatia congênita cianótica), na doença de Von Willebrand, nas vasculites e nas desordens do tecido con‑ juntivo. • Agregação plaquetária, com utilização de um agente agonista como ristocetina, adrenalina, noradrenalina, ADP e ATP: ava‑ lia a função plaquetária. • Citometria de fluxo: quantificação das glicoproteínas da membrana plaquetária. • Microscopia eletrônica: avaliação da ultraestrutura anatômi‑ ca das plaquetas. • PFA-100 (platelet function analyzer): tem sido utilizado para a determinação laboratorial da função plaquetária in vitro sob uma metodologia de alto fluxo, capaz de uma avaliação rápi‑ da e simples, eliminando em grande parte os fatores interfe‑ rentes observados na agregometria convencional. Consiste em medir o tempo necessário para a formação de um tampão plaquetário na presença de uma membrana sintética, permi‑ tindo determinar o nível da função plaquetária. Não é sensí‑ vel para avaliação de distúrbios vasculares e do colágeno. Coagulação secundária e avaliação da formação de fibrina3,6,20,21 • Tempo parcial de tromboplastina ativado (TTPA): avalia a via intrínseca da coagulação (fatores XII, XI, IX, VIII, X, V, II e I). Deve-se interpretar o resultado da relação entre o paciente e o controle do dia. É utilizado para monitoramento da terapia com heparina não fracionada. • Tempo de protrombina (TP), atividade da protrombina (AP) e índice normatizado internacional de correção de cada reagen‑ te (INR): avalia a via extrínseca da coagulação (fatores VII, X, V, II e I). Deve-se interpretar valorizando o INR. Prolonga‑ mento do TP, além dos valores de referência, geralmente não é observado até que o nível funcional de um desses fatores es‑ teja menor que 30% ou o fibrinogênio esteja abaixo de 100 mg/dL. TP prolongado isoladamente pode refletir deficiência grave do fator VII. Esse teste também é útil para o monitora‑ mento do efeito de anticoagulantes cumarínicos. • Tempo de trombina (TT): mede a formação do coágulo após a adição de trombina ao sangue citratado. Encontra-se alterado nas deficiências ou anormalidades do fibrinogênio, na pre‑
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1526 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 19 ONCO-HEMATOLOGIA
sença de produto de degradação do fibrinogênio/fibrina, nas paraproteinemias e na presença de algum inibidor de reação, mais comumente a heparina não fracionada. • Fibrinogênio: dosagem quantitativa. • Dosagem de fatores específicos da coagulação.
Atividade fibrinolítica, estabilidade da fibrina e regulação/ativação da coagulação3,6,20,21 • Tempo de lise da euglobina: diminuído quando ocorre au‑ mento da atividade do plasminogênio ou da plasmina. • Atividade do plasminogênio. • Alfa-2-antiplasmina. • Produtos de degradação da fibrina: quando aumentado reflete a formação intravascular de fibrina. • Dímero-D plasmático: quando aumentado reflete a formação intravascular de fibrina. • Proteína C. • Proteína S. • Antitrombina. • Fator IV plaquetário: proteína liberada a partir dos grânulos alfaplaquetários e com alta afinidade pela heparina, inibindo a atividade da antitrombina. Estudo das tromboses3,6,20,21 • Anticorpos antifosfolípides (anticorpos anticardiolipina, anti‑ coagulante lúpico, etc.): aumentam o risco de trombose arte‑ rial. Podem estar associados com distúrbios autoimunes, doenças infecciosas, deficiências imunes adquiridas, maligni‑ dades hematológicas, distúrbios linfoproliferativos, etc. • Proteína C. • Proteína S. • Antitrombina. • Homocisteína: aumentada, eleva o risco de trombose. • Fator V de Leiden (resistência à proteína C ativada). • Mutação do gene da protrombina. • Fibrinogênio: certas disfibrinogenemias aumentam o risco de trombose venosa. Os testes de triagem iniciais habitualmente utilizados para avaliação dos distúrbios hemorrágicos incluem hemograma com contagem plaquetária, TP, TTPA e TT. Quando os tempos desses testes estiverem alterados, devem ser retestados com mistura com plasma de indivíduo normal-controle. Caso os re‑ sultados normalizem, é indicativo de deficiência de fator de coagulação, e quando ainda persistem prolongados, sugere-se pesquisar a presença de inibidores.3 A Tabela 24 descreve os testes laboratoriais inicialmente utilizados na investigação dos distúrbios agudos da hemosta‑ sia e as condições clínicas que podem estar associadas.20
Tabela 24 Testes laboratoriais de primeira linha utilizados na investigação dos distúrbios agudos da hemostasia TP
TTPa
TT
Fibrinogênio
CP
Condição clínica
N
N
N
N
N
Hemostasia normal Alteração na função plaquetária Deficiência do fator XIII Distúrbio vascular da hemostasia Deficiência leve de fator da coagulação Doença de Von Willebrand leve Distúrbios da fibrinólise
P
N
N
N
N
Deficiência do fator VII Anticoagulação oral Anticoagulante lúpico (alguns reagentes) Deficiência leve dos fatores II, V ou X
N
P
N
N
N
Deficiência dos fatores VIII, IX, XI, XII Deficiência da pré-calicreína Deficiência do quininogênio de alto peso molecular Anticoagulante circulante Deficiência leve dos fatores II, V ou X
P
P
N
N
N
Deficiência de vitamina K Anticoagulantes orais Deficiência dos fatores II, V ou X Deficiência múltipla de fatores (p.ex., na insuficiência hepática) Deficiência combinada dos fatores V e VIII
P
P
P
N ou anormal
N
Grande quantidade de heparina Doença hepática Distúrbio/deficiência do fibrinogênio Inibição da polimerização da fibrina Hiperfibrinólise
N
N
N
N
D
Trombocitopenia
P
P
N
N ou anormal
D
Transfusão maciça
P
P
P
D
D
Coagulação intravascular disseminada
Doença hepática
Doença hepática aguda TP: tempo de protrombina; TTPa: tempo parcial de tromboplastina ativado; TT: tempo de trombina; CP: contagem de plaquetas; N: normal; P: prolongado; D: diminuído. Fonte: Laffan e Manning, 2012.20
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Interpretação do Hemograma e das Provas de Coagulação •
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Interpretar as séries vermelha, branca e plaquetária na avaliação do sangue periférico, descrevendo sua variação de acordo com faixa etária, fatores biológicos e outros fatores externos envolvidos. • Identificar as alterações qualitativas e quantitativas celulares que podem ser observadas no hemograma e suas correlações com a história clínica e o exame físico, fundamentais para o raciocínio clínico e a construção das hipóteses diagnósticas. • Interpretar as provas de coagulação, levando em consideração as limitações dos testes de hemostasia, os resultados de exames laboratoriais anteriormente realizados, os antecedentes pessoais e familiares de sangramento ou trombose, a presença de fatores externos ou doenças associadas e sua correlação com o quadro clínico do paciente.
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Tratado de Pediatria 4ed.indb 1527
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CAPÍTULO 2
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL DAS ANEMIAS
Denise Bousfield da Silva Sandra Regina Loggetto
Introdução de Embden-Meyerhof) e a via da pentose fosfato. A via da gli‑ O eritrócito maduro é uma célula anucleada com uma mem‑ cólise anaeróbica é utilizada para reduzir a meta-hemoglobina brana celular envolvendo moléculas de hemoglobina (Hb) (FE3+) para a forma usual da Hb Fe2+, além de disponibilizar as densamente compactadas em seu interior. Essas células são moléculas de ATP para fornecimento de energia para as bom‑ produzidas na medula óssea e, no estágio de reticulócitos, são bas de sódio, potássio e cálcio. A via da pentose fosfato atua liberadas para viver em média 120 dias na circulação. São pro‑ principalmente inativando o peróxido de hidrogênio, que tem duzidos diariamente em torno de 1012 novos eritrócitos por intenso potencial oxidativo e, por conseguinte, lesivo para as meio de processo complexo e regulado de eritropoese.1,2 moléculas intraeritrocitárias. A eritropoetina regula a eritropoese de acordo com a ten‑ As células senescentes são removidas pelos macrófagos do são de oxigênio nos tecidos dos rins. A produção de eritro‑ sistema reticuloendotelial, presentes no baço, na medula ós‑ poetina, portanto, aumenta quando a Hb, por algum motivo sea e no fígado.1 metabólico ou estrutural, é incapaz de liberar oxigênio nor‑ A molécula de Hb presente nos eritrócitos tem a função de malmente, quando o oxigênio atmosférico está baixo ou transporte de oxigênio e de gás carbônico. Para que a Hb esteja quando há disfunção cardíaca, pulmonar ou lesão na circula‑ em contato estreito com os tecidos e para o sucesso das trocas ção renal que afete a liberação de oxigênio ao rim.2 gasosas, o eritrócito deve ser capaz de passar repetidamente As moléculas da Hb são compostas de quatro cadeias poli‑ através da microcirculação, manter a Hb na forma reduzida peptídicas, sendo dois pares de cadeias iguais, cada qual liga‑ (ferrosa) e manter o equilíbrio osmótico, apesar da alta con‑ da ao heme, que, por sua vez, contém um átomo de ferro. centração da proteína (Hb) na célula.1,2 Na vida fetal, antes da 8ª semana, predominam as hemo‑ Ao nascimento, os recém-nascidos a termo e pré-termo globinas embrionárias e, após esse período, a hemoglobina são policitêmicos, eritroblastêmicos, hipervolêmicos, hiper‑ fetal (duas cadeias alfa e duas cadeias gama). A partir do nas‑ siderêmicos e apresentam altos níveis de Hb e hematócrito. O cimento, a Hb fetal decresce progressivamente, sendo substi‑ volume corpuscular médio dos eritrócitos também é elevado tuída paulatinamente pela Hb A. Na vida adulta, cerca de no recém-nascido. Após as primeiras respirações no período 95% da Hb presente nos eritrócitos são do tipo A1 (duas ca‑ pós-natal, ocorre aumento importante da pressão arterial de deias alfa e duas cadeias beta) e o restante é constituído pela oxigênio, inibindo a produção de eritropoetina. Aliada à pro‑ Hb A2 (duas cadeias alfa e duas cadeias delta) e/ou fetal (Hb dução eritrocitária diminuída, a vida média da hemácia fetal F). Essa transição decorre da maior ou menor produção das é em torno de 90 dias. Os valores da Hb diminuem progressi‑ diversas cadeias de globina ao longo da evolução intra e ex‑ vamente até que a necessidade de oxigênio tecidual seja trauterina.1,3 maior do que aquela que a Hb circulante possa fornecer. As‑ Mutações na molécula da Hb podem causar alterações de sim, com a diminuição da oxigenação, os rins respondem au‑ sua solubilidade ou estabilidade, levando a uma sobrevida mentando a produção de eritropoetina. A Hb mais baixa na menor das hemácias circulantes.1 anemia fisiológica ocorre entre 6 e 12 semanas de idade pós‑ O eritrócito possui várias enzimas, como aquelas que o pro‑ -natal, quando as concentrações de Hb nos recém-nascidos a tegem dos insultos oxidativos, ou seja, catalase, peroxidase de termo, de peso adequado para idade gestacional, atingem va‑ glutationa, superóxido dismutase, meta-hemoglobina reduta‑ lores entre 9,5 e 11 g/dL. Essa anemia é fisiológica, do tipo se e redutase de glutationa. As duas principais vias metabóli‑ normocrômica e normocítica, refletindo o ajuste hematológi‑ cas em operação nos eritrócitos são a glicólise anaeróbica (via co desse período da vida.3,4
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Diagnóstico Diferencial das Anemias •
Definição e epidemiologia Anemia é definida pela redução da concentração de Hb e/ou massa eritrocitária, com variações de acordo com a idade, o sexo, a raça e a altitude em relação ao nível do mar.3,4 Em ge‑ ral, o limiar para definição de anemia é o hematócrito (Ht) ou a Hb abaixo de dois desvios padrão da média da população normal.3 Na Tabela 1, estão descritos os índices hematimétricos con‑ forme idade e sexo.5 A prevalência da anemia nos Estados Unidos, nas crianças menores de 5 anos, no período de 2000 a 2009, variou de 14,4% a 11,8%.6 Mujica-Coopman et al. publicaram, em 2015, revisão siste‑ mática sobre a prevalência da anemia na América Latina e Ca‑ ribe e verificaram que, na Guatemala, no Brasil, na República Dominicana e na Bolívia, a anemia foi identificada como mo‑ derado problema de saúde pública, com prevalência variando de 21,4 a 38,3%. No Panamá e no Haiti, a anemia foi conside‑ rada como um grave problema de saúde pública, com preva‑ lência de 40% e 45,5%, respectivamente. As mais baixas taxas de anemia foram encontradas no Chile (4%), na Costa Rica (4%), na Argentina (7,6%) e no México (19,9%).7 No Brasil, em 2006, a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS) demonstrou prevalên‑ cia de 20,9% de anemia nas crianças de 6 a 59 meses, sendo que na Região Nordeste ocorreu a maior frequência (25,5%).8 Classificação e causas das anemias As anemias podem ser classificadas do ponto de vista fisiológi‑ co e morfológico. São frequentemente utilizadas ambas as abordagens no diagnóstico diferencial das anemias e muitas vezes mais de um mecanismo podem estar envolvidos.3,4
1529
A anemia pode ser categorizada do ponto de vista fisiológi‑ co em alterações na produção efetiva dos eritrócitos, na qual a taxa de produção está diminuída, e nos distúrbios em que há destruição ou perda de eritrócitos (Tabela 2).3,4,9,10 A classificação morfológica (Tabela 3) baseia-se no volume cor‑ puscular médio (VCM), segundo o qual as anemias podem ser di‑ vididas em microcíticas (VCM abaixo do normal para sexo e idade), macrocíticas (VCM acima do valor esperado para sexo e idade) e normocítica (VCM dentro dos valores da normalidade).3,4,9,10 A anemia que ocorre no período neonatal é decorrente de hemorragia, hemólise e hematopoese deficiente. Nas anemias por hemorragia, encontra-se história de sangramento no neo‑ nato ou acidente obstétrico. A anemia pode ainda ser determi‑ nada por coagulação intravascular disseminada (CIVD), trom‑ bocitopenias e doença hemorrágica do recém-nascido. A hemólise geralmente é consequente a alterações de membra‑ na eritrocitária, incompatibilidade sanguínea materno-fetal, defeitos enzimáticos e hemoglobinopatias.4,11 Diagnóstico clínico A abordagem inicial do paciente com anemia inclui a anamne‑ se e o exame físico detalhados, visando a identificar sua possí‑ vel etiologia. A presença das manifestações clínicas está rela‑ cionada à velocidade e à intensidade de instalação da anemia, à idade em que a anemia ocorre e à curva de dissociação do oxigênio da hemoglobina.2 A maioria das crianças com anemia leve não apresenta si‑ nais ou sintomas. Algumas crianças podem apresentar sinais/ sintomas gerais, como palidez das mucosas, fadiga, cansaço, anorexia e irritabilidade.3,4,9,10 A palidez possui pobre sensibilidade em predizer anemia leve, mas correlaciona-se bem com anemia grave.6 Estudo rea‑
Tabela 1 Valores da média e do limite inferior da normalidade para hemoglobina, hematócrito, VCM e CHCM de acordo com a idade e o sexo Idade
Hb (g/dL) Média
Ht (%) -2DP
VCM (fL)
Média
-2DP
Média
CHCM (g/dL) -2DP
Média
-2DP
RNT
18,0
15,0
58
45
108
98
33
30
1 semana
17,0
13,5
54
42
107
88
33
28
2 semanas
16,0
12,5
52
39
105
86
33
28
1 mês
14,0
10,0
43
31
104
85
33
29
2 meses
11,5
9,0
35
28
96
77
33
29
3 a 6 meses
11,5
9,5
35
29
91
74
33
30
6 a 24 meses
12,0
10,5
36
33
78
70
33
30
2 a 6 anos
12,5
11,5
37
34
81
75
34
31
6 a 12 anos
13,5
11,5
40
35
86
77
34
31
12 a 18 anos Feminino Masculino
14,0 14,5
12,0 13,0
41 43
36 37
90 88
78 78
34 34
31 31
18 a 49 anos Feminino Masculino
14,0 16,0
12,0 13,0
42 47
37 40
90 90
80 80
34 34
31 31
RNT: recém-nascido a termo; Hb: hemoglobina; Ht: hematócrito; VCM: volume corpuscular médio; CHCM: concentração da hemoglobina corpuscular média; DP: desvio padrão. Fonte: adaptada de Bugnara et al., 2009;3 e Barone, 2006.5
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Tabela 2 Algumas causas de anemia segundo a classificação fisiológica Deficiência de produção
Eritropoese inefetiva
Destruição aumentada
Aplasia da medula óssea adquirida e congênita Infiltração por neoplasias Osteopetrose Mielofibrose Doença renal crônica Hipotireoidismo Hipopituitarismo Insuficiência pancreática Doenças inflamatórias crônicas Má nutrição proteica Hemoglobinas mutantes com afinidade diminuída pelo oxigênio
Deficiência de ferro, ácido fólico e vitamina B12 Anemias sideroblásticas Síndromes talassêmicas Anemias hereditárias do metabolismo dos folatos Anemias deseritropoéticas primárias Protoporfirias eritropoéticas
Defeitos de membrana eritrocitária Defeitos no metabolismo eritrocitário Defeitos na hemoglobina (estruturais e de síntese) Anemia mediada por anticorpos Infecções Hemoglobinúria paroxística noturna Medicamentos Dano mecânico ou térmico ao eritrócito
Fonte: adaptada de Bugnara et al., 2009;3 e Campanaro e Chopard, 2014.4
Tabela 3 Algumas causas de anemia, segundo a classificação morfológica Anemias microcíticas
Anemias macrocíticas
Anemias normocíticas
Deficiência de ferro Intoxicação pelo chumbo Síndromes talassêmicas Anemias sideroblásticas Doença inflamatória crônica Algumas anemias hemolíticas congênitas com hemoglobina instável
Deficiência de vitamina B12 e ácido fólico Anemia responsiva à tiamina Aplasia medular congênita ou adquirida Infiltração da medula óssea por neoplasias Anemias deseritropoéticas Doença hepática Hipotireoidismo Medicamentosa (valproato, imunossupressores, etc.) Síndromes mielodisplásicas
Anemias hemolíticas congênitas Anemias hemolíticas adquiridas (mediadas por anticorpos, secundárias a infecções agudas e microangiopáticas) Perda sanguínea aguda Doença renal crônica Hiperesplenismo Infiltração medular por neoplasias Aplasia da medula óssea congênita ou adquirida
Fonte: adaptada de Bugnara et al., 2009;3 e Campanaro e Chopard, 2014.4
lizado por Luby et al. demonstrou que a palidez de conjuntiva, língua, mãos e leito ungueal apresentou 93% de sensibilidade e 57% de especificidade no diagnóstico de anemia em pacien‑ tes cuja hemoglobina era menos que 5 g/dL. A sensibilidade diminuía para 66% quando o nível de hemoglobina estava en‑ tre 5 e 8 g/dL.12 Dependendo da intensidade e da velocidade de instalação da anemia, ocorre hipercinese circulatória, com taquicardia, pulso amplo, cardiomegalia e presença de sopro sistólico.3,4,9,10 Alguns aspectos na história clínica da criança com anemia podem estar associados com causas específicas e podem auxi‑ liar no diagnóstico, conforme descrito a seguir.3,6,11 Idade Nos neonatos, a anemia é geralmente resultante de perda san‑ guínea, isoimunização, anemia hemolítica congênita ou infec‑ ção congênita. A prematuridade predispõe ao desenvolvimento precoce de deficiência de ferro; anemia detectada entre o 3º e o 6º mês sugere hemoglobinopatia. Em recém-nascido a termo, com peso adequado para idade gestacional, com idade inferior a 6 meses, é improvável ocor‑ rer anemia por deficiência nutricional do ferro. Causas adquiridas de anemia são mais prováveis nas crianças de mais idade, especialmente a anemia por deficiência de ferro. Sexo Algumas causas de anemia hereditária são ligadas ao cromos‑ somo X, como a deficiência de glicose-6-fosfato desidrogena‑ se (G6PD) e a deficiência de piruvatoquinase.
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Raça/etnia Hemoglobina S e C são mais comuns em negros e populações hispânicas. As síndromes talassêmicas são mais comuns em indiví‑ duos oriundos do Mediterrâneo e do sudeste asiático. Sinais/sintomas Mudanças na coloração da urina e icterícia sugerem anemia hemolítica. Sangramento nas fezes, hematêmese, epistaxe importante ou perda menstrual excessiva sugerem anemia por perda san‑ guínea e/ou deficiência de ferro. Atraso no desenvolvimento neuropsicomotor pode estar associado com deficiência de ferro, deficiência de vitamina B12 e ácido fólico e com anemia de Fanconi. Sintomas infecciosos, como febre ou tosse, e aplasia secun‑ dária a hepatite sugerem etiologia infecciosa da anemia. Fatores dietéticos Dieta pobre em ferro, vitamina B12, ácido fólico e outros oli‑ goelementos sugerem anemia carencial. Introdução de leite de vaca antes do 1º ano de vida sugere anemia por deficiência de ferro. História de pica, geofagia ou pagofagia sugere presença de deficiência de ferro. História prévia de anemia e história familiar Episódios prévios de anemia sugerem hereditariedade. Anemia em paciente que previamente tinha avaliação labo‑ ratorial documentada normal sugere etiologia adquirida.
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Diagnóstico Diferencial das Anemias •
1531
Hiperbilirrubinemia no período neonatal sugere etiologia Tórax hemolítica. • Ausência unilateral da musculatura peitoral: síndrome de Po‑ Microcitose ao nascimento sugere perda intrauterina crôni‑ land. ca ou síndrome talassêmica. Familiares com histórico de icterícia, cálculos de vesícula Mão ou esplenomegalia sugerem anemia hemolítica hereditária. • Polegar trifalângico: aplasia de série vermelha; • hipoplasia da eminência tenar: anemia de Fanconi; Medicamentos e exposição a agentes tóxicos • unhas em forma de colher: deficiência de ferro; Anemia após exposição a medicamentos oxidantes ou fava su‑ • unhas distróficas: disceratose congênita. gere anemia por deficiência de G6PD. Baço O uso de fenitoína pode induzir a anemia macrocítica. A exposição a cloranfenicol e agentes imunossupressores • Esplenomegalia: anemia hemolítica congênita, leucemia, lin‑ pode determinar anemia aplástica. foma, infecção aguda e hipertensão portal. O uso de anti-inflamatórios não hormonais (AINH) ou áci‑ do acetilsalicílico (AAS) podem favorecer as perdas sanguí‑ Sistema nervoso central neas. • Irritabilidade, apatia: deficiência de ferro; • ataxia: deficiência de vitamina B12; Doenças de base associadas • acidente vascular cerebral: anemia falciforme. Doença renal, neoplasias malignas, doenças inflamatórias/ Diagnóstico laboratorial autoimunes podem estar associadas com anemia. Os exames laboratoriais devem ser direcionados pela anamne‑ Exame físico se e pelo exame físico. O exame do sangue periférico (hemo‑ Além da história clínica, o exame físico minucioso do paciente grama) e a contagem de reticulócitos são os procedimentos com anemia também pode fornecer algumas orientações em mais úteis para avaliação laboratorial inicial do paciente com relação à causa da anemia, conforme listado a seguir.3,9,10 anemia. Antes da leitura da lâmina, é importante avaliar dis‑ tensão, fixação e coloração, além de verificar se não há artefa‑ Pele tos produzidos pelo excesso de anticoagulante ou por estoca‑ • Hiperpigmentação: anemia de Fanconi; gem prolongada.13 • púrpura, petéquia: anemia hemolítica autoimune com trom‑ Na análise do eritrograma, deve ser considerada sua avalia‑ bocitopenia, síndrome hemolítico-urêmica, aplasia de medu‑ ção quantitativa e morfológica, conforme elencado a seguir.3,13-16 la óssea e infiltração da medula óssea; Avaliação quantitativa do eritrograma • icterícia: anemia hemolítica e hepatite; • hemangioma cavernoso: anemia hemolítica microangiopática; Ht é a proporção do volume da amostra que é ocupada pelos • úlceras em membros inferiores: hemoglobinopatia S, hemo‑ eritrócitos. Seu resultado é expresso em porcentagem. No mi‑ globinopatia C e talassemia. cro-hematócrito, há retenção de plasma (1 a 4%), conduzindo a diluição da amostra e resultando em redução de 1 a 2 pontos Face abaixo da sua medida real. • Fronte, malar e maxilar proeminentes: anemias hemolíticas O Ht pode estar reduzido pela utilização de anticoagulante congênitas, talassemia maior, deficiência grave de ferro. em excesso, conduzindo, assim, à desidratação dos eritrócitos. Situações que aumentam o volume plasmático, como gravi‑ Olhos dez, insuficiência renal, insuficiência cardíaca e decúbito pro‑ • Micrognatia: anemia de Fanconi; longado, também podem levar à redução do Ht. • tortuosidade da conjuntiva e tortuosidade ou microaneuris‑ A concentração da Hb é dosada por método colorimétrico mas dos vasos retinianos: hemoglobinopatias S e C; ou espectrofotométrico (resultado expresso em g/dL). • catarata: deficiência de G6PD, galactosemia com anemia he‑ A hematimetria (contagem de eritrócitos) é realizada por molítica no período neonatal; método automático, fornecendo resultados mais precisos. É • hemorragia vítrea: hemoglobinopatia C; realizada em sangue total diluído em meio isotônico. • hemorragia retiniana: anemia crônica e grave; O volume corpuscular médio (VCM) avalia o tamanho mé‑ • edema palpebral: mononucleose infecciosa, enteropatia ex‑ dio do eritrócito, e seu resultado é expresso em picogramas. A concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM) sudativa com deficiência de ferro, insuficiência renal; representa a concentração média de HB por eritrócito, com re‑ • cegueira: osteopetrose. sultado expresso em mg/dL ou em porcentagem. É a base da Boca cromia da hemácia. Seu limite superior é de 36 mg/dL, consi‑ derando que concentrações maiores tendem a cristalização, • Glossite: deficiência de vitamina B12 e deficiência de ferro; exceto no caso de pacientes com diagnóstico de esferocitose. • queilite angular: deficiência de ferro.
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A amplitude de variação no tamanho das hemácias (RDW) tem valor de referência entre 11,5 e 14,5%. Esse valor pode va‑ riar de acordo com o tipo de contador automático utilizado. Está dentro da normalidade nos traços alfa e betatalassêmicos e encontra-se aumentado na deficiência de ferro, na doença da hemoglobina H e na SB talassemia. A contagem de reticulócitos representa o número de eritró‑ citos imaturos no sangue periférico. Deve ser corrigida de acordo com a fórmula: contagem de reticulócitos corrigida = contagem de reticulócitos do paciente × Ht do paciente/Ht normal para idade, sexo e raça. Aumenta quando a produção medular de eritrócitos está elevada e diminui nas anemias hi‑ poproliferativas. Os valores de referência variam com a idade do paciente. Avaliação morfológica do eritrograma A macrocitose (aumento de volume dos eritrócitos) pode ocor‑ rer na insuficiência hepática, no hipotireoidismo, em deficiên‑ cias de vitamina B12 e de ácido fólico, mielodisplasia e aplasia de medula óssea. A microcitose (diminuição de volume dos eritrócitos) ocor‑ re em doenças crônicas. Quando associada à hipocromia, pode estar relacionada à anemia ferropriva, síndromes talas‑ sêmicas e anemia sideroblástica. A anisocitose define a presença de macro e microcitose si‑ multaneamente. Não apresenta especificidade diagnóstica. A policromasia é definida pela presença de eritrócitos jo‑ vens com DNA citoplasmático que se coram azulados. Está presente nas anemias hemolíticas. A poiquilocitose representa a variação do formato do eritró‑ cito. Os esferócitos são eritrócitos de tamanho pequeno, com forma esférica e hipercromático. Geralmente podem ser obser‑ vados na esferocitose e em anemias hemolíticas autoimunes. Os eliptócitos/ovalócitos são eritrócitos de forma elíptica. Podem estar presentes em eliptocitose, anemias carenciais, talassemias e, mais raramente, em outras anemias. Os estomatócitos geralmente representam um artefato e raramente têm significado clínico. Podem ocorrer na estoma‑ tocitose, nas doenças hepáticas e nos pacientes que fazem uso de asparaginase. Os drepanócitos representam os eritrócitos em forma de foice. Estão presentes na doença falciforme. Os esquizócitos representam fragmentos de eritrócitos de tamanhos diferentes e formas bizarras. Ocorrem nos pacien‑ tes com próteses valvulares ou vasculares, na síndrome hemo‑ lítico-urêmica, em pacientes com queimaduras graves, na CIVD e nas microangiopatias. Os acantócitos são eritrócitos pequenos com projeções irre‑ gulares. Ocorrem em abetalipoproteinemia, hepatopatias, pa‑ cientes esplenectomizados, na deficiência de tocoferol no re‑ cém-nascido e na insuficiência renal. Os dacriócitos são eritrócitos em forma de lágrima. São for‑ mados provavelmente pelo retardo da saída da medula óssea. Podem estar presentes na anemia megaloblástica, em talasse‑ mias e na esplenomegalia.
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Os codócitos são eritrócitos em forma de alvo. Ocorrem pelo excesso de membrana, fazendo a Hb se distribuir em um anel periférico com uma zona densa central. Podem estar pre‑ sentes em talassemias, hemoglobinopatia C, deficiência de ferro e doença hepática grave. O rouleaux representa a aglutinação das hemácias forman‑ do pilhas. Ocorre principalmente no mieloma múltiplo, na gravidez, nos processos infecciosos, na anemia hemolítica au‑ toimune e na hipergamaglobulinemia. As inclusões que podem ser observadas no interior das he‑ mácias estão relacionadas a diferentes doenças e são decor‑ rentes do aumento ou de defeitos da eritropoese. A presença das inclusões depende também da capacidade do baço de reti‑ rar da circulação as hemácias malformadas. As principais in‑ clusões que podem estar presentes nas hemácias são:3,13 • anel de Cabot: figura em forma de anel constituída por filamen‑ to fino que resulta de restos mitóticos de mitoses anômalas. Presente nas anemias megaloblásticas e nas mielodisplasias; • corpúsculos de Howel-Jolly: corpúsculo de inclusão pequeno, basófilo, formado por restos nucleares de mitoses anômalas. Presente em pacientes esplenectomizados com anemia he‑ molítica ou anemia megaloblástica. Indicam hipofunção es‑ plênica ou asplenia; • pontilhado basófilo: são agregados de ribossomos remanes‑ centes, vistos como granulações variáveis em número e tama‑ nho. Presente nas talassemias, na intoxicação pelo chumbo e em defeitos enzimáticos; • corpúsculo de Heinz: são precipitados de Hb desnaturada que podem ser encontrados aderidos a membrana das hemácias. Presente na deficiência de G6PD, hemoglobinopatias e nas anemias hemolíticas por medicamentos. No hemograma, também é importante avaliar o leucograma e a contagem e morfologia plaquetárias.3,4,9,14 As informações detalhadas sobre essa análise podem ser obtidas no Capítulo 1 – Interpretação do Hemograma e de Provas de Coagulação. Outros exames a ser considerados, dependendo da suspei‑ ta clínica, incluem:3,4,9,14 • avaliação de ferro circulante: ferro sérico, capacidade total de ligação do ferro, saturação da transferrina; • avaliação das reservas de ferro: ferritina. Deve-se considerar que a ferritina é uma proteína de fase aguda e pode estar ele‑ vada em processos infecciosos e inflamatórios; • pesquisa de defeitos da Hb: eletroforese de Hb em pH alcalino e ácido para identificação das hemoglobinopatias, com con‑ firmação pelo método de cromatografia líquida de alto desem‑ penho; • pesquisa de autoanticorpos: teste de Coombs direto e indireto para identificação dos anticorpos antieritrocitários; • avaliação dos defeitos enzimáticos: dosagem das enzimas eri‑ trocitárias específicas; • avaliação dos defeitos da membrana eritrocitária: fragilidade osmótica a temperatura ambiente e a 37°C; • dosagens de ácido fólico e vitamina B12; • avaliação da hematopoese: mielograma e/ou biópsia de me‑ dula óssea;
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Diagnóstico Diferencial das Anemias •
• • • •
testes de função renal e hepática; pesquisa de sangue oculto nas fezes; pesquisa de sangramentos em trato gastrointestinal e urinário; pesquisa de disfunções hormonais: TSH, T4 livre e hormô‑ nios sexuais; • sorologias específicas: vírus de Epstein-Barr e parvovírus B19; • pesquisa genética: na suspeita de aplasia congênita de medu‑ la óssea, como a anemia de Fanconi; • pesquisa de infecções congênitas: principalmente na anemia em menores de 6 meses de idade.
Tratamento O diagnóstico correto da etiologia da anemia é fundamental para que sejam instituídas as medidas terapêuticas e profiláti‑ cas adequadas. A terapêutica para cada tipo de anemia é abor‑ dada em capítulos específicos deste Tratado de Pediatria. A indicação de transfusão de concentrado de hemácias de‑ pende da etiologia da anemia, da idade da criança, das condi‑ ções clínicas e da necessidade de suporte ventilatório e hemo‑ dinâmico.4 Em capítulo específico deste livro, são abordadas as indicações de concentrado de hemácias e hemoderivados. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Descrever a eritropoese e identificar a anemia fisiológica da infância. • Definir anemia e reconhecê-la como importante problema de saúde pública. • Apontar a classificação fisiológica e morfológica das anemias. • Identificar as principais causas de anemia. • Descrever o diagnóstico clínico e laboratorial para identificar os tipos de anemia. • Formular os principais diagnósticos diferenciais para o paciente com anemia.
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CAPÍTULO 3
EPIDEMIOLOGIA E DIAGNÓSTICO PRECOCE DO CÂNCER NA CRIANÇA Denise Bousfield da Silva José Henrique Silva Barreto Mara Albonei Dudeque Pianovski
Introdução e definição O comportamento biológico das células malignas é determina‑ do pelo padrão de expressão gênica. O acúmulo progressivo de alterações genéticas e epigenéticas são os fatores determinan‑ tes para o desenvolvimento da doença.1 O câncer, em nível molecular, é uma doença causada pela combinação de alterações hereditárias (célula germinativa) e adquiridas (célula somática) no genoma. Essas aberrações conduzem a alterações no perfil de expressão gênica, a qual determina distúrbios no crescimento celular, falha na diferen‑ ciação ou redução da apoptose.1 O DNA das células neoplásicas pode adquirir mutações pontuais, inserções virais, amplificações, deleções ou rearran‑ jos dos genes, podendo, assim, alterar os processos de cresci‑ mento e desenvolvimento normais.1 O câncer na criança difere daquele que ocorre no indivíduo adulto, em decorrência do tipo de célula progenitora envolvida e dos mecanismos de transformação maligna.1 Na criança, as neoplasias geralmente afetam as células do sistema sanguíneo e os tecidos de sustentação; já no adulto, comprometem as células dos epitélios, que recobrem os dife‑ rentes órgãos.1-4 Os cânceres pediátricos mais frequentes são as leucemias, os tumores do sistema nervoso central e os lin‑ fomas. Entretanto, observa-se que há considerável variação mundial nessa ocorrência, geralmente relacionada a fatores demográficos e socioeconômicos da área estudada.1,4 Nos estudos atualmente disponíveis, observa-se que os adultos e as crianças podem eventualmente ter o mesmo tipo histológico de câncer, no entanto, seu comportamento biológico pode não ser equivalente. Esse fato pode ser claramente observado em relação à leucemia linfoblástica aguda pré-B, que possui prognóstico muito bom nas crianças com os atuais protocolos de tratamento, en‑ quanto, no adulto, a mesma doença possui prognóstico pior.1 Diferentemente do adulto, as neoplasias malignas pediátri‑ cas tendem a apresentar menores períodos de latência, cres‑ cem quase sempre rapidamente, em geral são invasivas e res‑ pondem melhor à quimioterapia.1-4
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No Brasil, de acordo com os dados atualmente consolida‑ dos nos registros de câncer, infelizmente, muitos pacientes ainda são encaminhados ao centro de tratamento com doen‑ ças em estádio avançado.2-6 Nesse contexto, desde 1981, com a criação da Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica (Sobope), têm sido cons‑ tantemente realizadas campanhas para população em geral e cursos de educação continuada aos profissionais da saúde, ob‑ jetivando divulgar os sinais e sintomas de alerta relacionados com a doença. Foi instituído também, em nível nacional, o dia 23 de novembro como alerta para o diagnóstico do câncer pe‑ diátrico, visando a informar a população e profissionais da saúde pela mídia escrita e falada sobre os sintomas e sinais re‑ lacionados ao diagnóstico precoce. A doença, quando detectada em estádios iniciais, possibili‑ ta maior percentagem de cura aos pacientes, além de permitir a realização de um tratamento menos agressivo, com conse‑ quente redução das complicações agudas e tardias dele decor‑ rentes. Nesse aspecto, o pediatra tem papel fundamental, pois lhe compete incluir e investigar a hipótese de câncer em algu‑ mas situações clínicas da prática pediátrica.1,3,4 Epidemiologia e fatores de risco Na criança, o câncer compreende de 0,5 a 3% de todas as neo‑ plasias malignas, estimando-se, no mundo, incidência anual de 200.000 casos. Sua incidência é de aproximadamente 124 casos a cada milhão de crianças brancas e de 98 casos por mi‑ lhão de crianças afrodescendentes.1 Nos EUA, são diagnosticados ao ano, aproximadamente 1 a 2 casos de câncer em cada 10.000 crianças com 14 anos de ida‑ de ou menos.1 Estima-se que ocorrerão cerca de 12.600 novos casos de câncer em crianças e adolescentes no Brasil por ano em 2016 e 2017. As regiões Sudeste e Nordeste apresentarão os maiores números de novos casos, 6.050 e 2.750, respectivamente, se‑ guidas pelas regiões Sul (1.320), Centro-Oeste (1.270) e Norte (1.210).2
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Epidemiologia e Diagnóstico Precoce do Câncer na Criança •
Estudos epidemiológicos têm demonstrado que a frequên‑ cia de todos os tipos de câncer combinados, na criança e no adolescente, é geralmente maior no sexo masculino, nas crianças menores de 5 anos de idade e no grupo de adolescen‑ tes entre 15 e 19 anos de idade.4 O câncer não é uma doença frequente, mas representa a pri‑ meira causa de óbito por doença nos países desenvolvidos e no Brasil, entre crianças e adolescentes de 1 a 19 anos de idade.2,3 Em relação à etiologia, atualmente se reconhece que o apa‑ recimento do câncer na criança está diretamente vinculado a uma multiplicidade de causas e que, em alguns tipos de cân‑ cer, a suscetibilidade genética tem papel importante. Entre os fatores de risco, estão os familiares (retinoblastoma), as sín‑ dromes genéticas, a radiação ionizante e não ionizante, as drogas citotóxicas (ciclofosfamida, etoposídeo), a exposição ao asbesto na infância, o dietilestilbestrol, o cloreto de vinila, o vírus de Epstein-Barr e o vírus linfotrópico da célula T (HTLV1), entre outros.1,4 É descrito na literatura um vasto número de doenças raras ligadas à instabilidade cromossômica, ao defeito de replicação e/ou no reparo do DNA que apresentam risco elevado de de‑ senvolvimento de neoplasias ao longo da vida. As mutações e os rearranjos que se acumulam, secundários a dano no DNA que não foram corretamente reparados, podem ser resultantes da ativação de um proto-oncogene ou da inativação dos dois alelos de um gene supressor de tumor. Entre as síndromes cro‑ mossômicas com risco aumentado para o desenvolvimento de neoplasia, estão a trissomia 21 (numérica), a síndrome WARG (microdeleção do gene WT1) e as de instabilidade cromossô‑ mica (ataxia telangiectasia, anemia de Fanconi, síndrome de Bloom, síndrome de Nijmegen, disceratose congênita e xero‑ derma pigmentoso).1,7 A trissomia 21 tem envolvido o gene GATA 1 que interfere na diferenciação celular. Esses pacientes têm risco aumentado para o desenvolvimento de leucemias (cerca de 20 vezes maior), neoplasias de testículo, gástricas e hepáticas.7 A anemia de Fanconi cursa com suscetibilidade de apareci‑ mento precoce de leucemia mieloide em 15.000 vezes e apareci‑ mento mais tardio de tumores sólidos (hepatocarcinoma 10%).1,7 Entre as síndromes gênicas que apresentam predisposição para desenvolver neoplasias, incluem-se as síndromes de defi‑ ciência de crescimento (como a de Noonan, Leopard), as sín‑ dromes com aceleração do crescimento (como a hemi-hiper‑ trofia idiopática, síndrome de Beckwith-Wiedemann, etc.), as síndromes neurocutâneas (neurofibromatose, esclerose tube‑ rosa, síndrome de Proteus) e as síndromes de imunodeficiên‑ cia/imunodesregulação.1,7 A neurofibromatose é a mais frequente síndrome hereditária de predisposição a tumores. Entre as neoplasias de maior risco, estão a leucemia mielomonocítica juvenil, os tumores malignos dos nervos periféricos, o glioma óptico e o feocromocitoma.1,7 Embora as crianças com síndromes com predisposição a neoplasias correspondam a cerca de 3% dos casos diagnosti‑ cados, elas devem ser constantemente supervisionadas e ava‑ liadas pelos pediatras, visando o diagnóstico precoce da doen‑ ça neoplásica, bem como o aconselhamento genético.1,7
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O câncer na faixa etária pediátrica é raramente hereditário e, na maioria dos casos, não apresenta história familiar e/ou associações com alterações genéticas ou congênitas. Entre‑ tanto, o retinoblastoma (tumor maligno intraocular) pode ser de origem genética em 40% dos casos.1,4 Um aspecto peculiar do sul e sudeste do Brasil é a maior in‑ cidência de tumor do córtex suprarrenal (TCSR), quando com‑ parada com outras regiões do mundo. Enquanto nos EUA a in‑ cidência é de 0,3 por milhão de crianças menores de 15 anos, e na França, de 0,2 por milhão de crianças nessa mesma faixa etária, no Paraná, estima-se incidência de 3,5 por milhão, ou seja, de 12 a 18 vezes maior do que nos países citados. Essa maior incidência está relacionada à mutação TP53 R337H, en‑ contrada em todas as crianças com TCSR, que a recebem de um dos progenitores.4,5 Diagnóstico e quadro clínico A história clínica, baseada principalmente na queixa principal, e o exame físico são os passos iniciais no processo de diagnós‑ tico do câncer. A história familiar e a presença de doenças ge‑ néticas ou de doenças constitucionais também podem auxiliar na elaboração diagnóstica.1,4 O alto nível de suspeição deve estar presente no raciocínio médico, o que permite atenção especial a determinados sinais e sintomas, promovendo dessa maneira um reconhecimento mais rápido da neoplasia. É importante estar ciente de que, na maioria das vezes, esses sinais/sintomas são similares aos de doenças benignas, comuns da infância, motivo pelo qual o pediatra deve estar atento, pois o câncer é uma doença mimetizante.1,4 Considerando que os sinais e sintomas do câncer infantoju‑ venil são geralmente inespecíficos e que, não raras vezes, a criança ou o adolescente podem ter o seu estado geral de saú‑ de ainda não comprometido no início da doença, é fundamen‑ tal que o pediatra considere a possibilidade diagnóstica da doença diante de alguns sinais e sintomas que possam sugerir determinadas neoplasias, conforme listados na Tabela 1.4 Alterações no hemograma, como leucocitose ou leucope‑ nia, associada principalmente à presença de neutropenia, ou ainda, pancitopenia, podem refletir infiltração de medula ós‑ sea por neoplasias, geralmente, leucemias, linfomas, neuro‑ blastoma e retinoblastoma.1,4 O aspirado de medula óssea está indicado na presença de:1 • depressão significativa e inexplicada de uma ou mais células; • blastos ou alterações leucoeritroblásticas no sangue periférico; • associação com linfonodomegalia ou hepatoesplenomegalia inexplicada; • associação com massa mediastinal anterior. A presença de dor nos membros, associada a mais de um parâ‑ metro alterado no hemograma, sugere neoplasia maligna, e não doença reumatoide, mesmo na ausência de blastos no sangue periférico.1 O pediatra também deve estar atento e evitar o uso de corti‑ costeroide, já que esses medicamentos podem mascarar o quadro clínico, selecionar células leucêmicas resistentes e pio‑ rar o prognóstico dos pacientes.1
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Tabela 1 Sinais e sintomas de câncer na criança e no adolescente Sinais e sintomas
Neoplasias
Aumento de volume em partes moles (história de trauma é comum, porém não tem relação de causa e efeito)
Sarcomas, leucemias
Aumento de volume de testículo
Leucemias, tumores de células germinativas
Cefaleia matutina, persistente, podendo estar associada a alterações neurológicas, diabete insípido, neurofibromatose, radioterapia prévia para tratamento de leucemia
Tumores de sistema nervoso central (SNC) Histiocitose de células de Langerhans
Dor abdominal, massa abdominal
Tumores sólidos; diferenciar de hepatoesplenomegalia
“Dor de dente” rebelde ao tratamento
Linfomas, rabdomiossarcomas
Dor nas costas, que piora na posição supina, com ou sem sinais de compressão medular
Linfomas, neuroblastoma, tumor neuroectodérmico primitivo, rabdomiossarcoma, leucemias
Dor óssea ou articular, especialmente se persistente e despertar a criança à noite, associada ou não a edema, massa ou limitação funcional
Leucemias, tumores ósseos malignos, neuroblastoma
Equimoses, petéquias e outros sangramentos
Envolvimento medular por leucemias, linfomas, neuroblastoma
Estrabismo, nistagmo
Retinoblastoma, tumores do SNC
Excessivo ganho de peso
Carcinoma de córtex suprarrenal
Exoftalmia, equimose palpebral
Neuroblastoma (sinal do guaxinim), rabdomiossarcoma, histiocitose de células de Langerhans
Febre prolongada de causa não identificada
Linfomas, leucemias, neuroblastoma, sarcoma de Ewing
Hematúria, hipertensão arterial sistêmica
Tumor de Wilms
Hepatoesplenomegalia
Leucemias, linfomas
Heterocromia, anisocromia
Neuroblastoma
Leucocoria ou “reflexo do olho de gato”
Retinoblastoma
Linfonodomegalias assimétricas, lembrando “saco de batatas”
Linfoma de Hodgkin
Linfonodomegalia cervical baixa em adolescente
Carcinoma de tireoide
Linfonodomegalias, especialmente em região auricular posterior, epitroclear e supraclavicular
Leucemias e linfomas
Nevos com modificação de características prévias, em áreas de exposição solar ou de atrito
Melanoma (raro na criança)
Obstrução nasal, sangramento
Rabdomiossarcoma, angiofibroma
Otalgia crônica e/ou otorreia crônica, especialmente se associada a dermatite seborreica
Histiocitose de células de Langerhans, rabdomiossarcoma
Palidez, fadiga
Anemia, por envolvimento de medula óssea
Perda de peso inexplicada
Linfoma de Hodgkin, sarcoma de Ewing
Prurido, sudorese noturna
Linfoma de Hodgkin
Pseudopuberdade precoce
Carcinoma de córtex suprarrenal
Sangramento vaginal
Rabdomiossarcoma
Tosse seca, persistente
Leucemia ou linfoma, com massa de mediastino
Fonte: Silva et al., 2014.4
Na suspeita de câncer, é imprescindível o encaminhamen‑ to imediato a um centro especializado no diagnóstico e no tra‑ tamento da doença. Os exames complementares necessários para o diagnóstico e a avaliação da extensão clínica da doença (estadiamento) variam de acordo com o tipo histológico da neoplasia maligna primária. Na Tabela 2, estão listadas as neoplasias malignas pediátri‑ cas mais frequentes de acordo com a idade e o sítio primário. Tratamento e prognóstico As chances de cura, a sobrevida, a qualidade de vida do pa‑ ciente e a relação efetividade/custo da doença são maiores
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quanto mais precoce for o diagnóstico do câncer. O tratamento do câncer inicia-se com o diagnóstico e o estadiamento corre‑ tos. Deve ser efetuado em centro especializado pediátrico, por equipe multiprofissional, compreendendo diversas modalida‑ des terapêuticas (quimioterapia, cirurgia, radioterapia, imu‑ noterapia, transplante de célula-tronco hematopoética e/ou de órgãos), aplicadas de forma racional, individualizada e de acordo com o tipo histológico e a extensão clínica da doença.1,4 Dependendo da história natural, do órgão afetado, do grau de disseminação e da diversidade de resposta à terapêutica antineoplásica, pode ocorrer acentuada variabilidade entre as taxas de sobrevida nas crianças diagnosticadas com diferentes tumores.1
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Epidemiologia e Diagnóstico Precoce do Câncer na Criança •
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Tabela 2 Neoplasias predominantes de acordo com a idade e o sítio primário Neoplasias
< 1 ano
1 a 3 anos
3 a 11 anos
12 a 21 anos
Leucemias
Leucemia congênita LMA LMMoA LMC juvenil
LLA LMA LMC juvenil
LLA LMA
LLA LMA
Linfomas
Muito raro
LNH
LNH LH
LH LNH
Sistema nervoso central
Meduloblastoma Ependimoma Astrocitoma/glioma Papiloma do plexo coroide
Meduloblastoma Ependimoma Astrocitoma/glioma Papiloma do plexo coroide
Astrocitoma cerebelar Meduloblastoma Astrocitoma/glioma Ependimoma Craniofaringioma
Astrocitoma cerebelar Astrocitoma Craniofaringioma Meduloblastoma
Cabeça e pescoço
Retinoblastoma Neuroblastoma Rabdomiossarcoma
Retinoblastoma Neuroblastoma Rabdomiossarcoma
Rabdomiossarcoma Linfoma
Linfoma Sarcoma de partes moles
Torácica
Neuroblastoma Teratoma
Neuroblastoma Rabdomiossarcoma Teratoma
Linfoma Neuroblastoma
Linfoma Sarcoma de Ewing
Abdominal
Neuroblastoma Nefroma mesoblástico Tumor de Wilms (> 6 meses) Tumor do seio endodérmico (testículos)
Neuroblastoma Tumor de Wilms Leucemia Hepatoblastoma Rabdomiossarcoma
Neuroblastoma Tumor de Wilms Linfoma Hepatoma Rabdomiossarcoma
Linfoma Carcinoma hepatocelular Sarcoma de partes moles Disgerminomas
Geniturinário
Teratoma
Rabdomiossarcoma Tumor do seio endodérmico (testículos) Sarcoma de células claras (rim)
Extremidade
Fibrossarcoma
Fibrossarcoma Rabdomiossarcoma Sarcoma de Ewing
Teratocarcinoma Teratoma Carcinoma embrionário do testículo Carcinoma embrionário e tumores do seio endodermal do ovário Rabdomiossarcoma
Osteossarcoma Sarcoma de Ewing Sarcoma de partes moles
LMA: leucemia mieloide aguda; LMMoA: leucemia mielomonocítica aguda; LMC juvenil: leucemia mieloide crônica juvenil; LLA: leucemia linfoide aguda; LNH: linfoma não Hodgkin; LH: linfoma de Hodgkin. Fonte: Kinburn et al., 2011.8
Em diversos centros oncológicos pediátricos, observa-se di‑ -se do diagnóstico, do tratamento, das complicações e das con‑ ferença substancial nas taxas de sobrevida em participantes de dutas a serem adotadas durante e após o término do trata‑ ensaios clínicos terapêuticos quando comparados com aqueles mento. realizados em hospitais gerais de câncer. Nos EUA, por exem‑ Considerando o impacto multidimensional do câncer, é fun‑ plo, constatou-se que a probabilidade de uma criança sobrevi‑ damental a participação da equipe multiprofissional desde o ver 5 anos após o diagnóstico de neoplasia maligna passou de início do tratamento, pois a cura da doença envolve não somen‑ 28% em 1960 para aproximadamente 70% no final da década de te a recuperação biológica, mas o bem-estar, a qualidade de 1980 em decorrência das estratégias anteriormente descritas.4 vida do paciente/família, bem como sua reintegração social.1,3 No Brasil, nos últimos anos, houve marcante melhoria na sobrevida das crianças com câncer, decorrente da utilização Prevenção de protocolos cooperativos de tratamento, coordenados pela A prevenção primária em oncologia visa a interromper a evolu‑ Sobope. Os resultados obtidos para a maioria dos tipos histo‑ ção da doença pela ação antecipada com base no conhecimen‑ lógicos são similares aos de países desenvolvidos.4 to de sua história natural. Na criança/adolescente, raramente Na faixa etária pediátrica, é relevante realizar ações que vi‑ é possível a prevenção primária do câncer, pois os fatores am‑ sem a contribuir para o diagnóstico precoce do câncer, como a bientais exercem pouca ou nenhuma influência.1,3 Portanto, atuação efetiva da atenção básica no seguimento, vigilância e não existem medidas efetivas de prevenção primária para im‑ promoção da saúde da criança e do adolescente; estratégias de pedir o desenvolvimento do câncer na faixa etária pediátrica, divulgação de informações para profissionais e para popula‑ exceto a vacinação contra hepatite B e contra o papilomavírus ção abordando o diagnóstico precoce; programa de educação humano (HPV).3,4,6 continuada para os profissionais que atuam com cuidados pri‑ No entanto, é fundamental atuar na prevenção secundária mários e aumento da comunicação entre os serviços, primário nessa faixa etária, principalmente no diagnóstico precoce da e especializado, objetivando acelerar o encaminhamento des‑ doença, objetivando detectar o câncer em seu estágio inicial ses pacientes.3 de desenvolvimento. Outra modalidade da prevenção secun‑ Sugere-se que o pediatra faça o seguimento clínico de seu dária é o rastreamento, que, nas crianças, não se mostra efeti‑ paciente junto à equipe da oncologia pediátrica, cientificando‑ va ou é restrita a uma pequena percentagem de pacientes,
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como aqueles com determinadas malformações e síndromes genéticas.3,4 Considerando que, na criança, o retinoblastoma pode ser hereditário, é importante, nesses casos, a realização do acon‑ selhamento genético.1,4 Na vida adulta, o câncer pode ter origem na combinação de vários fatores, como os genéticos, ambientais e de modos de vida, como tabagismo, inatividade física, alimentação inade‑ quada, excesso de peso, consumo excessivo de álcool, exposi‑ ção a radiações ionizantes e a agentes infecciosos específicos.3,4,6 O pediatra pode orientar a família da criança e/ou adoles‑ cente a incorporar ações de prevenção primária para evitar/re‑ duzir o desenvolvimento de câncer na vida adulta, com ênfase nos fatores associados ao modo de vida em todas as idades e com intervenções de combate a agentes ambientais e ocupa‑ cionais cancerígenos.4,6,7 Na infância e na adolescência, ocorrem mudanças, não apenas biológicas, mas também psicológicas, que podem ser modificadas de forma favorável ou desfavorável ao desenvol‑ vimento de doenças. Portanto, a aquisição de hábitos de vida saudáveis nessa fase é vista, hoje, como a estratégia preventi‑ va que pode ajudar os indivíduos a se manterem saudáveis por mais tempo, evitando doenças crônicas na idade adulta.4,6 Nesse sentido, nas primeiras décadas de vida, é imprescin‑ dível difundir o conhecimento sobre os efeitos dos fatores de risco na expectativa média de vida da população, além de de‑ senvolver estratégias preventivas que envolvam diversos seto‑ res da sociedade. Outro aspecto a ser considerado em oncologia é a preven‑ ção terciária, cuja finalidade é reduzir os custos sociais e econômicos dos estados da doença na população pela reabili‑ tação e reintegração precoces dos indivíduos. As ações neces‑ sárias para a viabilização das estratégias de prevenção terciá‑ ria incluem o desenvolvimento de um sistema de busca ativa de casos; disponibilidade de métodos terapêuticos efetivos; promoção da reabilitação; implantação de registros de câncer; além de educação, orientação e apoio psicossocial para os pa‑ cientes.6,9 A reabilitação deve ser iniciada tão logo o câncer seja diag‑ nosticado, devendo ser planejada a cada etapa do tratamento. A equipe de saúde é responsável por diagnosticar e prevenir eventuais limitações produzidas pela doença e pelo tratamen‑ to; familiarizar-se com os conceitos e o valor da reabilitação; identificar as áreas técnicas de apoio necessárias; encaminhar adequadamente o paciente; e cooperar integralmente com to‑ dos os profissionais envolvidos.6,9 Em relação à prevenção quaternária em oncologia, estão in‑ seridos os cuidados paliativos, cujo objetivo é a melhoria da qualidade de vida dos doentes, prevenindo e aliviando seu so‑ frimento e de seus familiares mediante a detecção e o trata‑ mento, o mais precoce possível, dos sintomas relacionados com a doença.6,9 Considerando que a infância e a adolescência são períodos críticos do desenvolvimento em que, além da formação de há‑ bitos de vida, a exposição a fatores ambientais pode afetar a estrutura ou a função de órgãos ou tecidos, comprometendo a
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saúde do adulto, é fundamental a orientação sobre os fatores de risco conhecidos para o câncer relacionados a exposições de longa duração, como a ausência da prática regular de exer‑ cícios físicos, a alimentação inadequada, a exposição à radia‑ ção ultravioleta sem proteção, o uso de tabaco e de álcool, a não vacinação contra agentes infecciosos, como hepatite B e contra HPV, e a prática sexual sem proteção.4 Atualmente, o desenvolvimento de testes genéticos permi‑ te identificar mutações em genes supressores de tumor, iden‑ tificando, assim, portadores de risco. Entretanto, é importante estar alerta para as possíveis consequências éticas, psicosso‑ ciais e econômicas de identificar, na criança/adolescente, um risco aumentado para o câncer na vida adulta.4 Desafios A potencial importância do sistema imune na etiologia, pato‑ logia, morbidade e terapia do câncer ainda permanece especu‑ lativa em razão do inadequado entendimento dos componen‑ tes básicos da oncogênese e biologia imune. Desafios futuros para melhorar o entendimento dessa interação permitirão a criação de novas imunoterapias efetivas contra as neoplasias malignas pediátricas, especialmente naqueles pacientes com doença residual mínima e naqueles com alto risco para recor‑ rência.1 Outro desafio a ser considerado é o detalhamento do perfil genético para cada criança com câncer, produzindo, assim, não somente a melhoria no manejo clínico, mas a validação de ensaios clínicos promissores com a introdução da nova era da medicina molecular individualizada.1 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar a incidência e os fatores predisponentes e de risco para o desenvolvimento do câncer na criança. • Reconhecer o câncer pediátrico como importante causa de mortalidade e apontar os sinais e sintomas relacionados à doença. • Conhecer os diferentes tipos histológicos da doença de acordo com a idade e o sítio primário. • Apontar os tipos histológicos mais comuns de câncer na criança. • Reconhecer a relevância da participação do pediatra e da equipe multiprofissional no tratamento da doença. • Identificar os níveis de prevenção em oncologia.
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CAPÍTULO 4
LEUCEMIAS Ana Paula Kuczynski Pedro Bom
Introdução As leucemias são as neoplasias mais comuns da infância, cor‑ respondendo a aproximadamente 28% de todos os tipos de câncer na faixa etária pediátrica.1 Associadas às outras neopla‑ sias malignas da infância, são as doenças com maior índice de mortalidade no Brasil e nos demais países.1,2 A sobrevida global das crianças vem aumentando pro‑ gressivamente e relaciona-se sobretudo ao aperfeiçoamento constante dos protocolos de tratamento quimioterápico, bem como aos cuidados intensivos de suporte. Entre eles, destacam-se o tratamento apropriado e precoce de infecções, indicações transfusionais precisas e cuidados de terapia in‑ tensiva.3 A etiologia ainda é desconhecida, mas existem fatores de risco diretamente relacionados às leucemias na infância: • radiação ionizante: exposição pré-natal a radiografias, irra‑ diação terapêutica;3 • agentes quimioterápicos: alquilantes e epipodofilotoxinas au‑ mentam o risco para leucemia mieloide aguda;4 • condições genéticas: síndrome de Down (incidência 20 vezes maior),5 neurofibromatose tipo 1, síndrome de Klinefelter, síndrome de Kostmann, anemia de Fanconi; • tabagismo paterno e materno.6 As leucemias linfoides agudas (LLA) são as mais comuns, cor‑ respondendo de 75 a 80% dos casos, seguidas pelas leucemias mieloides agudas (LMA), entre 15 e 20%. A leucemias mieloi‑ des crônicas (LMC) são incomuns, variando de 2 a 5% na in‑ fância e adolescência.1 Leucemia linfoide aguda Epidemiologia Acredita-se que a incidência brasileira seja semelhante à nor‑ te-americana, com cerca de 4.900 casos novos por ano.2,3 A faixa etária mais comum varia do 2º ao 4º ano de vida, sendo incomum no recém-nascido. Há uma discreta predominância no sexo masculino (1,2:1).3
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Biologia e patologia A LLA é uma neoplasia maligna com origem na medula óssea, decorrente de uma expansão clonal de células progenitoras, associada a mutações que inibem a apoptose. Em consequên‑ cia à multiplicação desordenada de células anormais (linfo‑ blastos), ocorre uma diminuição na produção de precursores de eritrócitos, leucócitos normais e plaquetas.3 Manifestações clínicas Os sinais e sintomas da LLA são decorrentes da infiltração neoplásica (linfoblastos) na medula óssea e da disseminação dessas células pela corrente sanguínea, para outros órgãos e sistemas.3 Geralmente, a evolução é de dias ou semanas, com piora gradativa ou mesmo súbita.3 A dor óssea é frequente, em geral ocorre em membros, princi‑ palmente inferiores, e pode tornar-se muito intensa, impedindo a deambulação. Ocorre em qualquer horário, diurno ou noturno, e é de difícil controle com analgésicos habituais. Artralgias e even‑ tualmente artrites, resultantes de infiltrações articulares, podem ser confundidas com doenças reumatológicas.3 Alguns pacientes podem apresentar dor em determinado segmento de coluna vertebral, geralmente toracolombar, e, à radiografia, pode ser observado colapso vertebral. Pelo com‑ ponente de medula óssea vermelha em diversos ossos durante a infância, mais de 50% das crianças com leucemia apresen‑ tam anormalidades no esqueleto, entretanto, esse fato ocorre em menos de 10% nos pacientes adultos.5 Embora o diagnós‑ tico da doença seja feito por meio de punção de medula óssea, as lesões ósseas podem preceder os achados clínicos. A febre também é um sintoma muito prevalente e pode ocorrer em cerca de 50 a 60% dos casos, sendo uma manifes‑ tação relacionada à produção de citocinas pelas células nor‑ mais ou leucêmicas. Frequentemente pode estar associada à infecção bacteriana, relacionada à neutropenia presente ao diagnóstico.3 Palidez, astenia, petéquias e equimoses também são sinto‑ mas comumente presentes ao diagnóstico.
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Leucemias •
No exame clínico, além da palidez, fenômenos hemorrági‑ cos e febre, frequentemente são observadas hepatomegalia, esplenomegalia e linfonodomegalias generalizadas. Outros ór‑ gãos, como timo, rins, pele, ovários, testículos e sistema nervoso central (SNC), também podem ser acometidos. Cerca de 5 a 10% das crianças apresentam infiltração no SNC ao diagnóstico, porém raramente apresentam sintomas neuroló‑ gicos como cefaleia, vômitos, distúrbios visuais ou crises con‑ vulsivas.3 Pacientes com subtipo L2 (linfoblasto da linhagem de célu‑ las T) podem apresentar sintomas respiratórios, como tosse, taquipneia e dispneia, pela presença de massa (aglomerados de linfonodos) no mediastino. Não é uma situação comum, porém, torna-se imprescindível a realização de radiografia de tórax nos pacientes que apresentem essa sintomatologia.3 Exames complementares Ao diagnóstico, o hemograma revela várias alterações sugesti‑ vas da doença e, muito raramente, não evidencia alterações significativas.3 A anemia é evidente em praticamente todos os casos e, em geral, é normocrômica, normocítica, com diminuição do nú‑ mero de reticulócitos. Pode ser leve, moderada ou grave.3 O número de leucócitos é quase sempre aumentado, não sendo rara leucopenia. Em algumas crianças, pode ser obser‑ vada hiperleucocitose, acima de 50.000/mm3, o que indica maior gravidade. Os blastos (linfoblastos) quase sempre são descritos em porcentagens variadas. Linfocitose pode ocorrer e, em um grande número de pacientes, observa-se neutrope‑ nia. Considera-se neutropenia grave quando a contagem abso‑ luta de neutrófilos está abaixo de 500/mm3, estando relacio‑ nada a um maior risco de infecção grave. Os outros tipos de leucócitos normais (eosinófilos, monócitos e basófilos) geral‑ mente estão diminuídos ou ausentes.3 A trombocitopenia ocorre na maioria dos pacientes,7 e, em aproximadamente 75% dos casos, a contagem é inferior a 100.000 plaquetas/mm3. Entretanto, trombocitopenia isolada é um evento raro. A gravidade e o grau do sangramento correla‑ cionam-se com o grau da trombocitopenia. Hemorragia grave é rara mesmo com uma contagem de plaquetas abaixo de 20.000/mm3, a menos que febre e infecção (ambas podem afe‑ tar a função e a meia-vida das plaquetas) estejam associadas.7 Outras alterações laboratoriais devem ser avaliadas, po‑ dendo refletir o grau do excesso da proliferação e destruição das células leucêmicas.3 Na primeira avaliação, devem ser soli‑ citados ureia, creatinina, eletrólitos, ácido úrico, gasometria, enzimas hepáticas, albumina, desidrogenase lática e sorolo‑ gias. Caso o paciente tenha histórico de febre, também devem ser solicitadas hemoculturas, uroculturas e proteína C reati‑ va.3 A radiografia de tórax deve ser feita em todos os pacientes, e a do esqueleto, em situações mais específicas de acordo com as queixas dolorosas.8 O envolvimento extramedular da doença pode ser detecta‑ do clinicamente ou demonstrado por exames e procedimen‑ tos específicos. Os sítios mais comuns são SNC, testículos, fí‑ gado, rins, linfonodos e baço. Entretanto, qualquer local pode
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estar envolvido na apresentação inicial ou nas recidivas (como pele, intraocular, cavidades pleurais e pericárdicas e ovários).3 A infiltração do SNC é observada em 5% dos pacientes, sendo analisada por meio do líquido cefalorraquidiano (LCR).3 Eletroencefalograma, tomografia computadorizada (TC) e res‑ sonância magnética (RM) de crânio e/ou de coluna vertebral podem ser indicados em situações muito eventuais e bem es‑ pecíficas, conforme as apresentações clínicas.3 Doença testicular raramente é demonstrada clinicamente ao diagnóstico e, em geral, manifesta-se como aumento de vo‑ lume indolor, sendo mais frequente unilateral.3 Quando há suspeita clínica, indica-se biópsia bilateral. A recidiva isolada testicular pode ocorrer logo após o término do tratamento até vários anos depois, porém tem sido menos frequente com a in‑ tensificação dos últimos protocolos de tratamento.3 O diagnóstico é confirmado pelo mielograma, avaliando-se as características citomorfológicas dos blastos. Para o diag‑ nóstico de LLA, devem ser observados, no mínimo, 25% de linfoblastos na medula óssea. De acordo com a classificação Franco-Americano-Britânica (FAB), existem três subtipos de blastos: L1, L2 e L3. O subtipo L1 é o mais comum.3 A imunofenotipagem realizada pela citometria de fluxo permite confirmar o diagnóstico e detectar doença residual mínima. Pela expressão de imunoglobulina citoplasmática e de superfície, podem ser indicados os três estágios de matu‑ ração de precursor B, ou seja, pró-B, pré-B e B maduro. O an‑ tígeno CD10 (CALLA: antígeno comum da LLA), presente em 90% das leucemias pró-B e 95% das pré-B, indica bom prognóstico. Os antígenos CD2, CD3, CD5 e CD7 estão pre‑ sentes nas leucemias de células T, com prognósticos mais re‑ servados.9 A citogenética complementa a análise dos blastos, poden‑ do evidenciar alterações cromossômicas e indicadores de prognóstico. Essas alterações podem ser numéricas ou estru‑ turais e ocorrem em cerca de 60 a 85% dos casos de LLA.3 Fatores prognósticos O tratamento da LLA é direcionado de acordo com determina‑ das condições clínicas e biológicas, caracterizadas como fato‑ res prognósticos:10 • Favoráveis: idade entre 1 e 9 anos; leucometria abaixo de 50.000/mm3; linfoblastos precursores de células B; hiperdi‑ ploidia > 50 cromossomos; ETV6-RUNX1; doença residual mínima após a terapia de indução < 0,01%. • Desfavoráveis: idade inferior a 1 ano e superior a 9 anos; leu‑ cometria acima de 50.000/mm3; linfoblastos precursores de células T; hipodiplidia < 44 cromossomos; BCR-ABL1 t(9;22) (q34;q11), Ph1; MLL-AF4 (rearranjos do 11q23); t(4;11). Diagnóstico diferencial Deve ser realizado com condições não malignas e malignas, conforme segue:3 • artrite reumatoide juvenil; • trombocitopenia imune primária; • aplasia de medula óssea; • mononucleose infecciosa e outras infecções;
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• outras neoplasias: leucemia mieloide aguda, neuroblastoma, linfoma não Hodgkin, rabdomiossarcoma metastático; • histiocitose das células de Langerhans e síndromes hemofa‑ gocíticas. Tratamento3,11,12 Ao suspeitar ou diagnosticar um paciente com leucemia, o pe‑ diatra não deve prescrever corticosteroides, pois eles atuam na lise dos blastos, o que dificulta muito a análise futura do mielograma, retardando o diagnóstico em muitas ocasiões. As crianças com leucemia que recebem corticosteroides previa‑ mente ao diagnóstico são classificadas como alto risco e trata‑ das com protocolos mais agressivos de quimioterapia, conse‑ quentemente, com maiores riscos de complicações. Lembrar que as crianças com plaquetopenias, sem outras alterações do hemograma, em geral diagnosticadas como púr‑ puras trombocitopênicas, também não devem ser tratadas com corticosteroides antes de realizarem o mielograma. O tratamento específico para LLA consiste em quimiotera‑ pia. O progresso no tratamento da LLA na infância e na ado‑ lescência está baseado na terapia ajustada ao grupo de risco, com taxas de sobrevida livre de doença de 79 a 82%. O transplante de medula óssea (TMO) para esses pacientes é indicado em poucas situações, entre elas para as recidivas precoces. Leucemia mieloide aguda (LMA) Epidemiologia A LMA é mais prevalente em crianças menores de 2 anos de idade e maiores de 10 anos, principalmente entre 15 e 20 anos. Não há diferenças em relação ao sexo e há uma maior incidên‑ cia em negros, hispânicos e asiáticos. O subtipo M3 (leucemia promielocítica) é mais observado em hispânicos e latinos.4 Biologia e patologia A LMA decorre de alterações nas células precursoras hemato‑ poéticas primitivas da medula óssea, resultando na expansão de células leucêmicas que não completam a diferenciação nor‑ mal. Essas alterações são transformações clonais resultantes de rearranjos cromossômicos e mutações gênicas.4
terações de pele (lesões nodulares, avermelhadas ou purpúri‑ cas), comprometimento de SNC e, raramente, testicular. O sarcoma granulocítico ou cloroma geralmente se manifesta in‑ filtrando a região orbitária ou periorbitária, causando ptose e raramente infiltrando ossos.4 Exames complementares O hemograma geralmente é sugestivo da doença, evidencian‑ do anemia normocrômica normocítica, leucopenia e, mais fre‑ quentemente, leucocitose, associados a plaquetopenia e presença de mieloblastos. Cerca de 20% dos pacientes4 apre‑ sentam número de leucócitos acima de 100.000/mm3. Assim como na LLA, outras alterações laboratoriais devem ser avaliadas, podendo refletir o grau do excesso da prolifera‑ ção e destruição das células leucêmicas.3 É importante tam‑ bém analisar os exames relacionados à coagulação, pois os tempos de trombina e tromboplastina parcial podem ser prolongados, além da presença de hipofibrinogenemia, que é comum na leucemia promielocítica aguda.4 Caso o paciente tenha histórico de febre, também devem ser solicitadas hemo‑ culturas, uroculturas e proteína C reativa.4 O mielograma, incluindo diferenciação morfológica, imu‑ nofenotipagem e citogenética, confirma o diagnóstico, bem como direciona o tratamento e correlaciona com o prognósti‑ co. Análise do LCR para pesquisa da doença no SNC também deve ser realizada.4 A nova classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS) aceita que a presença de, no mínimo, 20% de mielo‑ blastos na medula óssea é suficiente para o diagnóstico da LMA, com algumas exceções.13 Segundo a classificação morfológica (FAB), os subtipos da LMA na infância e na adolescência são:4 • M0: indiferenciada ou com mínima diferenciação; • M1: mieloblástica aguda sem maturação; • M2: mieloblástica aguda com maturação; • M3: promielocítica aguda hipergranular; • M3v: promielocítica aguda variante microgranular; • M4: mielomonocítica; • M4Eo: mielomonocítica com eosinofilia; • M5a: monocítica aguda; • M5b: monocítica aguda com diferenciação; • M6: eritroleucemia; • M7: megacarioblástica.
Manifestações clínicas O quadro clínico é decorrente do comprometimento infiltrati‑ vo da medula óssea por células leucêmicas (mieloblastos), com consequente diminuição das células progenitoras nor‑ Diversos anticorpos monoclonais são utilizados em conjunto mais. Também pode estar associado ao comprometimento ex‑ com a classificação morfológica orientando o diagnóstico, en‑ tramedular.4 tre eles: CD34, HLA-DR, CD13, CD14, CD15, CD33, CD65 e Os sintomas mais frequentes são palidez, astenia e fenô‑ CD36.4 menos hemorrágicos, geralmente com início súbito e piora As alterações genéticas ocorrem em aproximadamente 75% gradativa. Pode haver febre secundária à infecção associada. A dos casos e foram consideradas como fatores de risco na re‑ dor óssea ocorre com menos frequência.4 classificação da LMA pela OMS.14 Os pacientes foram dividi‑ Os pacientes com subtipo M3 geralmente evoluem com he‑ dos em 3 grupos: morragia importante, por causa da associação com coagulação • favorável: presença de t(8;21) (AML1/ETO), inv(16) (CBFβ/ intravascular disseminada (CIVD) e fibrinólise secundária.4 MYH11) e t(15;17) (PML-RARA); A doença extramedular pode se manifestar como hipertro‑ • intermediário: +8, +21, 11q23 e pacientes com cariótipo nor‑ fia gengival, hepatoesplenomegalia, linfonodenomegalias, al‑ mal;
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Leucemias •
• desfavorável: cariótipo complexo (três ou mais anormalida‑ des citogenéticas distintas em um clone leucêmico), monos‑ somia 7, monossomia 5, del (5q) e cromossomo 3 anormal. Crianças com síndrome de Down Elas têm algumas particularidades em relação à LMA compa‑ radas às outras crianças, como: idade ao diagnóstico em geral é menor, morfologia mais prevalente é M7, índices de remis‑ são completa são maiores e a sobrevida livre de doença é mais elevada. A toxicidade relacionada ao tratamento é igual, exce‑ to a toxicidade pulmonar durante a indução e a mucosite du‑ rante a intensificação do tratamento, que são maiores. As crianças maiores de 2 anos de idade têm um prognóstico mais reservado.4 A síndrome mieloproliferativa transitória (SMT) acomete cerca de 10% dos recém-nascidos com síndrome de Down e regride espontaneamente entre 4 e 8 semanas4. Entretanto, a presença de blastos no sangue periférico com número equiva‑ lente ao da medula óssea pode sugerir quadro de leucemia ver‑ dadeira. Esta, mesmo sendo transitória, pode estar associada ao aparecimento de LMA megacarioblástica nos primeiros anos de vida. As alterações citogenéticas e moleculares ainda não são bem conhecidas, e algumas crianças com SMT podem evoluir para fibrose hepática e óbito.4 Tratamento Os pacientes com LMA requerem terapia de suporte imediata, pois, em geral, necessitam de suporte transfusional, trata‑ mento de infecções associadas e dos distúrbios metabólicos geralmente relacionados à hiperleucocitose.4 Apesar da evolução dos protocolos específicos de quimiote‑ rapia, o prognóstico desses pacientes ainda é reservado, com sobrevida livre de eventos variando de 25 a 50%. As principais causas de falhas no tratamento são a resistência aos quimiote‑ rápicos e a mortalidade relacionada ao tratamento.4 A terapia específica consiste em quimioterapia intensiva e, em geral, o sucesso do tratamento baseia-se em vários ciclos com altas doses de citarabina após a remissão.4 As crianças com subtipo M3 também são tratadas com o ácido transretinoico (ATRA), o qual promove a diferenciação dos promielócitos. Elas têm um bom prognóstico, porém de‑ vem receber cuidados intensivos, pelo risco muito elevado de hemorragias, inclusive em SNC, podendo ser fatal.4,14 O transplante de célula-tronco hematopoética (TCTH) pode ser efetivo para pacientes em recidiva e para o grupo des‑ favorável.15 Leucemia mieloide crônica Epidemiologia A LMC é uma doença muito rara na infância, correspondendo aproximadamente a 2 a 5% do total das leucemias. Mais de 80% dos casos são diagnosticados em maiores de 4 anos de idade e 60% depois dos 6 anos de idade, aumentando a inci‑ dência com a idade.
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Não há diferenças significativas entre os sexos e as etnias, e não foi estabelecido componente hereditário. A radiação ioni‑ zante tem sido relacionada a uma provável etiologia na LMC em adultos, porém, em crianças, ainda é inconclusivo.16 Biologia e patologia Caracteriza-se por ser uma doença mieloproliferativa, com hi‑ perplasia mieloide na medula óssea, hematopoese extrame‑ dular e leucocitose com presença de precursores mieloides no sangue periférico.16 O marcador citogenético específico, cromossomo Philadel‑ phia (Ph), resulta da translocação recíproca entre os cromos‑ somos 9 e 22 t(9;22)(q34;q11), com fusão dos genes BCR-ABL. Está presente em cerca de 90 a 95% dos pacientes com LMC.16 Manifestações clínicas e alterações laboratoriais A evolução da LMC ocorre em três fases: crônica, acelerada e blás‑ tica, com variações no quadro clínico e laboratorial dos pacientes. Fase crônica16 Nesta fase, em geral, os pacientes encontram-se clinicamente estáveis por vários anos e têm uma evolução média de 3 a 4 anos. Alguns podem ser assintomáticos e a maioria pode ter sintomas inespecíficos, como astenia, cefaleia, perda de peso, sudorese e febrícula. Cerca de 70% dos pacientes apresentam esplenomegalia, podendo ter sintomas relacionados, como dor e aumento de volume abdominal. No hemograma, a he‑ moglobina pode variar de 8 a 12 g/dL, o número de leucócitos é muito elevado, geralmente acima de 50.000/mm3, com des‑ vio nuclear à esquerda, sem blastos ou pequena porcentagem. As plaquetas são normais ou até mesmo aumentadas. Na fase crônica, a medula óssea é hipercelular, com hiper‑ plasia das séries granulocítica e megacariocítica, frequente‑ mente também com aumento de precursores mieloides, eosi‑ nófilos e basófilos. Nessa fase, mesmo no mielograma há pequena quantidade de blastos, geralmente em torno de 5%. Fase acelerada16 Pode ocorrer gradual ou abruptamente, com piora dos sintomas. Os pacientes não respondem bem à terapêutica convencional, e a fase tem duração média de 3 a 6 meses. Os sintomas acen‑ tuam-se e são relacionados à anemia, podendo ocorrer fenôme‑ nos hemorrágicos e dor óssea. Geralmente, nessa fase, ocorre aumento da esplenomegalia, e o fígado pode também estar au‑ mentado. No hemograma, é evidente a piora da anemia, o nú‑ mero de leucócitos geralmente aumenta, o número de blastos também aumenta e as plaquetas diminuem, permanecendo ge‑ ralmente entre 50.000 e 100.000/mm3. No mielograma, obser‑ va-se aumento dos blastos, entre 10 e 30%. Fase blástica16 Em geral, ocorre subitamente, com piora da sintomatologia, inclusive dos sintomas hemorrágicos. Além de hepatoesple‑ nomegalia, os pacientes também podem apresentar linfono‑
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domegalias generalizadas. Nesta fase, não há resposta eficaz ao tratamento e geralmente os pacientes podem sobreviver no máximo até 6 meses. O hemograma revela anemia grave, leu‑ cocitose com aumento do número de blastos, podendo chegar até 30% ou mais. O número de plaquetas geralmente é menor que 20.000/mm3. Outras alterações laboratoriais incluem ácido úrico e desi‑ drogenase lática, que geralmente estão aumentados na fase blástica. O mielograma confirma o diagnóstico, junto com a altera‑ ção característica da citogenética, a presença do cromossomo Ph. No mielograma, na fase blástica, os blastos aumentam aci‑ ma de 30%. Tratamento Para muitos centros de tratamento, o TMO permanece como a melhor indicação para as crianças com LMC. Ele deve ser indi‑ cado precocemente para uma melhor sobrevida do paciente, a qual pode variar de 40 a 80%, caso seja realizado no primeiro ano da fase crônica.17 Apesar de alguns pacientes na fase crônica responderem bem a tratamentos com hidroxiureia e interferon-alfa, eles não são curativos.16 O mesilato de imatinibe tem mostrado resultados promis‑ sores em adultos. Em crianças, geralmente é prescrito, sobre‑ tudo na fase acelerada da doença, tendo respostas favoráveis por um período determinado, sem muitas evidências de altas taxas de sobrevida.18 Na fase blástica, geralmente ocorre resistência aos quimio‑ terápicos, com sobrevida mediana de 3 a 6 meses. São poucos os pacientes que se beneficiam com o TMO nessa fase, com ín‑ dices de sobrevida prolongada abaixo de 15%.16 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Considerar queixa de dor óssea progressiva, acompanhada de febre, palidez e astenia como altamente sugestivas de leucemia aguda. • Lembrar que manifestações hemorrágicas de início súbito, associadas a febre e palidez, devem entrar no diagnóstico diferencial de leucemias agudas, principalmente as mieloides. • Pesquisar linfonodomegalias generalizadas com crescimento rápido, hepatoesplenomegalia, petéquias e equimoses nos pacientes com quadro clínico sugestivo de leucemia. • Interpretar hemograma indicativo de leucemia aguda no paciente com anemia normocrômica normocítica, leucocitose com ou sem linfocitose, plaquetopenia e presença de blastos. • Considerar, em criança assintomática com esplenomegalia, o diagnóstico diferencial de leucemia mieloide crônica. • Identificar os diagnósticos diferenciais das leucemias. • Encaminhar, em caráter de urgência, os pacientes com diagnósticos altamente sugestivos de leucemia para centros pediátricos de referência em onco-hematologia.
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CAPÍTULO 5
LINFOMA NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA Maria Lydia Mello de Andréa Andréa Gadelha Nóbrega Lins
Linfomas não Hodgkin Os linfomas não Hodgkin (LNH) são alterações monoclonais, com origem no sistema imunológico. São causados pela trans‑ formação de células progenitoras de origem linfoide em seus diferentes momentos de maturação. Os LNH podem apresentar diferentes aspectos clínicos e morfológicos na infância e na adolescência. Esse fato prova‑ velmente se deve à exposição maior do sistema imunológico no adolescente provocando mudanças significativas. A classificação dos LNH baseia-se nas diferentes linhagens linfoides que lhe dão origem.
respiratórias graves se submetidos à anestesia geral. Nesses pa‑ cientes, o diagnóstico pode ser tentado por meio da análise de líquido pleural e/ou mielograma. Vale lembrar que aproxima‑ damente 70% desses pacientes têm a medula óssea compro‑ metida ao diagnóstico. Para que se tenha material representati‑ vo para todas as análises necessárias para o diagnóstico, é ideal a exérese de um linfonodo inteiro ou uma biópsia da massa suspeita de pelo menos 1 cm3. Nos demais pacientes, o diag‑ nóstico deve ser tentado em linfonodos periféricos sempre que presentes, evitando grandes cirurgias que levam a um atraso no tratamento. Nas grandes massas abdominais, o diagnóstico pode ser conseguido via coleta de líquido ascítico e/ou punção Epidemiologia biópsia da massa dirigida por ultrassonografia. É importante Nos EUA, 800 (6,5%) dos 12.400 casos novos de câncer em que, por qualquer um dos métodos, se consiga material sufi‑ crianças, adolescentes e adultos jovens, até 20 anos, são LNH. ciente para diagnóstico completo: histologia, imuno-histoquí‑ Representam 3% de todos os casos de crianças de 0 a 5 anos e mica ou imunofenotipagem e citogenética, quando indicada. 9% dos casos de 15 a 19 anos.1 A classificação dos LNH da infância é considerada mais fá‑ Internacionalmente, os linfomas de Burkitt (LB) são mais cil que dos adultos. Os LNH da criança são, em quase toda sua frequentes em áreas tropicais, como na África Equatorial. Sua totalidade, linfomas de alto grau de malignidade que, de acor‑ distribuição é semelhante à malária. No Brasil, a incidência do com a sua origem celular, são hoje classificados conforme a média de câncer na infância foi de 154,3 por milhão; crianças Organização Mundial da Saúde (OMS) em 3 subgrupos: de 1 a 4 anos de idade tiveram uma incidência maior. A taxa de • linfomas de células B (Burkitt e difuso de grandes células); incidência por região no Brasil, por milhão de crianças meno‑ • linfomas linfoblásticos T e pré-B; res de 19 anos de idade, variou de 13,57 por milhão em Salva‑ • linfomas de grandes células anaplásicos. dor a 39,01 em Jaú, sugerindo fatores específicos ambientais nas diferentes regiões.2 Os LB são caracterizados morfologicamente por células linfoi‑ As causas do aparecimento dos LNH têm sido bastante es‑ des monomórficas que, segundo os morfologistas, teriam o as‑ tudadas. A infecção pelo vírus de Epstein-Barr (EBV) e a ma‑ pecto de “céu estrelado”. Na medula óssea e/ou sangue perifé‑ lária têm sido descritos como cofatores, porém a falta de docu‑ rico (FAB L3), são relativamente uniformes, têm quantidade mentação desses fatores em países em desenvolvimento moderada de citoplasma basofílico e são vacuolizados conten‑ dificulta a conclusão. do núcleo de cromatina reticular.3 As células expressam imunoglobulinas de superfície (IgM k Diagnóstico e classificação ou l, de cadeias leves) e envolvem translocações específicas O diagnóstico dos LNH requer análise histopatológica da mas‑ envolvendo o oncogene C-MYC. A mais comum dessas anor‑ sa ou do líquido mais representativo. Deve ser tentado pela for‑ malidades citogenéticas, presente em 80% dos casos, é a ma menos invasiva possível. Pacientes portadores de massa translocação t(8;14)(q24;q32). Os demais apresentam t(2;8) mediastinal são de alto risco para complicações cardíacas e/ou (p12;q24) e t(8;22)(q24;q11).
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A grande maioria dos linfomas linfoblásticos tem sua origem em células T (80%). Os demais originam-se de células pré-B. Os linfomas T apresentam imunofenótipo das células tímicas em estágio intermediário ou tardio de diferenciação. As neopla‑ sias de células T são caracterizadas por várias anormalidades citogenéticas que causam ativação de fatores de transcrição, decorrentes de translocações específicas nos genes receptores de células T. Alguns genes são considerados importantes fato‑ res de transcrição, como HOX11(TLX1), TAL1(SCL), TAL2, LYL1, BHLHB1, LMO1 e LMO2. Estudos recentes sugerem que a per‑ da de heterozigosidade de 6q14-q24 esteja relacionada a um pior prognóstico nesses linfomas. Os linfomas linfoblástico de células B precursoras expressam desoxinucleotidil transfe‑ rase terminal (TdT) e não expressam imunoglobulinas, o que pode ser importante para diferenciá-los dos linfomas B ma‑ duros que pedem tratamento diferenciado.4 Os LNH de grandes células podem ser difusos de grandes cé‑ lulas, oriundos de células B, CD20+, tratados com os mesmos protocolos dos linfomas B, enquanto os anaplásicos de grandes células, oriundos de células T ou nulas, são, na grande maioria das vezes, CD30+ e expressam a enzima anaplasicolinfoma cinase (ALK). Aproximadamente 80% apresentam a t(2;5) (p23;q35). Crianças ALK+ parecem ter melhor prognóstico.5 Manifestações clínicas As manifestações clínicas do LNH variam de acordo com o tipo histológico e com o local primário. Os linfomas B, como já dito, podem ser LB ou linfomas não Hodgkin difusos de gran‑ des células B (LNHDGCB). Esses dois tipos manifestam-se de formas diferentes em crianças e adolescentes. De acordo com a maior ou menor presença do DNA do EBV, o LB pode ser considerado endêmico ou esporádico, não ha‑ vendo características capazes de prover uma distinção segura entre esses dois tipos. Os tumores endêmicos têm sido descri‑ tos nos países em desenvolvimento com 50 a 100% contendo DNA-EBV. Estão mais frequentemente associados a massas mandibulares inicialmente descritas na África, hoje vistas na Amazônia brasileira e na Turquia. Isso sugere que as caracte‑ rísticas clínicas podem sofrer ações ambientais além das do hospedeiro. Em países afluentes, a associação com o EBV é muito menor (10 a 20%). Além da já citada massa mandibular que abala os dentes, principalmente os molares, o LB tem como principal sintoma a “dor de dente”; pode estar associado a envolvimento orbital evoluindo para compressão de pares cranianos (III, IV, VI). Na África Equatorial e no Brasil, esses tumores desenvolvem massa extradural, cuja manifestação maior é dor nas costas, podendo levar a paraplegia. Uma ma‑ nifestação clínica pouco frequente, mas bastante típica do LB, é a invaginação intestinal. Diante de um quadro obstrutivo de‑ corrente de invaginação em uma criança com mais de 2 anos de idade, o diagnóstico de LB sempre deve ser lembrado. A la‑ parotomia com ressecção da massa causadora da invaginação está indicada. É uma das poucas cirurgias indicadas no trata‑ mento dos linfomas. O Burkitt esporádico, também conhecido como Burkitt americano, tem como principais manifestações massas abdo‑
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minais resultantes de comprometimento de linfonodos do mesentério cujas manifestações são dor abdominal sem sinais de obstrução, aumento de volume do abdome, compressão de estruturas abdominais como fígado e árvore biliar. Ao exame físico, essas crianças apresentam um abdome volumoso, com massas nodulares imprecisas comparadas a um saco de bata‑ tas, algumas vezes com ascite volumosa que pode mostrar cé‑ lulas neoplásicas, ajudando no diagnóstico. O comprometi‑ mento de ovário nas meninas e do testículo nos meninos é descrito. O Burkitt esporádico pode ter manifestações de cabe‑ ça e pescoço do tipo infiltração de tonsilas palatinas, linfono‑ dos e glândulas salivares. Mais frequentemente, apresentam infiltração da medula óssea ao diagnóstico e comprometimen‑ to ósseo. O comprometimento do tórax pelo LB é extrema‑ mente raro. Os linfomas B primários de mediastino (LBPM) são hoje considerados uma entidade à parte. É uma doença de prog‑ nóstico reservado que merece um tratamento mais agressivo que os demais linfomas. O comprometimento do parênquima pulmonar é mais frequentemente observado nos LBPM. Dentre os linfomas de células B, os difusos de grandes célu‑ las têm como manifestação clínica mais frequente o compro‑ metimento de linfonodos de múltiplas cadeias. O comprome‑ timento do sistema nervoso central (SNC) e da medula óssea é raro nessa patologia. Os linfomas linfoblásticos de células B precursoras frequentemente se apresentam com doença mais localizada, envolvendo pele, tecidos moles, osso, tonsila ou um único local linfonodal periférico. Crianças com linfoma linfoblástico de células T tipicamen‑ te se apresentam com massa mediastinal e/ou adenopatia cervical/supraclavicular. A medula óssea frequentemente está infiltrada e, por definição, tem menos que 25% de blastos. As manifestações clínicas dependem do local primário de aco‑ metimento; quando linfonodal periférica chama atenção do pediatra o aumento de volume dos linfonodos periféricos, principalmente cervicais e supraclaviculares, mas que podem comprometer qualquer cadeia. Os linfomas primários de me‑ diastino têm como manifestação inicial tosse rebelde ao trata‑ mento seguida de insuficiência respiratória, edema de fossas supraclaviculares, cervical e de face, que evoluem para uma síndrome de veia cava superior. Essa formação predispõe a tromboses. Esses linfomas também podem invadir o pericár‑ dio com formação de derrame pericárdio e possível tampona‑ mento cardíaco. Essa situação caracteriza uma emergência oncológica, e o diagnóstico e o tratamento devem ser feitos ur‑ gentemente, pois o risco de morte é iminente. Nos casos de comprometimento nodal disseminado, a hepatomegalia e a esplenomegalia são frequentes; comprometimento renal é de‑ tectado na tomografia computadorizada (TC) ou na ultrasso‑ nografia, embora a função renal frequentemente esteja preser‑ vada; infiltração do SNC pode estar associada a paralisia de nervos cranianos, sinais de hipertensão intracraniana com ce‑ faleia e vômitos. Os linfomas anaplásicos de grandes células (LAGC) apre‑ sentam-se frequentemente com envolvimento extranodal (60%), incluindo pele, osso e partes moles. Têm uma evolução
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Linfoma na Infância e Adolescência •
mais indolente, com linfadenopatia com características duvi‑ dosas, muitas vezes confundindo o pediatra com linfonodos de origem não maligna. São frequentemente acompanhados dos chamados sintomas B – febre prolongada, perda de peso e prurido nos adolescentes. Podem aparecer em qualquer idade pediátrica e têm sido mais frequentes nos meninos. Linfade‑ nopatia esteve presente em 88 a 97% das diferentes séries. Os linfonodos periféricos são os mais comprometidos, seguidos dos retroperitoneais e mediastinais. O comprometimento do SNC ou da medula óssea é mais raro nesses linfomas que nos demais.6 Achados laboratoriais Os exames laboratoriais são fundamentais no diagnóstico e no estadiamento dos LNH. 1. Hemograma: pode ser normal, visto que a maioria dos linfo‑ mas não acomete a medula óssea. Nos casos de LNHLT com infiltração de medula, que, por definição, deve ser até 25%, o hemograma não manifesta alterações. Já na leucemia Burkitt (LB), as manifestações no sangue periférico podem mostrar alterações nas três séries, como observado nas demais leuce‑ mias. 2. VHS: a velocidade de hemossedimentação, totalmente ines‑ pecífica, costuma estar aumentada. 3. DHL: a desidrogenase lática, enzima intracelular, está tão mais elevada quanto a quantidade de células tumorais e a in‑ tensidade de apoptose (morte celular espontânea). A DHL tem sido considerada fator prognóstico principalmente nos linfomas B. Quanto mais elevada, pior o prognóstico. 4. Acido úrico: também pode estar elevado em consequência da morte celular espontânea. 5. Ureia e creatinina: devem fazer parte da avaliação inicial dos linfomas, visto que a infiltração linfomatosa dos rins e a lise tumoral com precipitação de urato nos túbulos renais podem levar à elevação. 6. TGO, TGP e gama GT: podem refletir comprometimento hepá‑ tico por infiltração do parênquima e/ou compressão das vias biliares pela massa abdominal ao diagnóstico. 7. Eletrólitos: Na, K, Ca, P e Mg fazem parte da avaliação da sín‑ drome de lise pré-tratamento e função renal. 8. Mielograma de três pontos diferentes: a infiltração medular pelo linfoma pode ser focal, e a coleta de material para mielograma de três pontos diferentes torna a avaliação mais fidedigna. 9. Imunofenotipagem do material do mielograma, líquido pleu‑ ral e ascítico se presentes, e líquido cefalorraquidiano (LCR), se a celularidade estiver aumentada, pode ajudar na determi‑ nação da linhagem celular que originou o tumor. 10. Coleta de LCR: é fundamental na avaliação inicial para esta‑ diamento e orientação terapêutica. Avaliação por imagens São obrigatórios no diagnóstico e estadiamento dos LNH os seguintes exames de imagem: • radiografia de tórax: investigação de massa do mediastino, metástases pulmonares e ainda eventuais processos infeccio‑ sos associados;
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• ultrassonografia do abdome: avaliação de toda a cavidade, fí‑ gado e baço e, principalmente, rins, vias urinárias e sistema coletor; • ultrassonografia do tórax: em caso de suspeita de derrame pleural; • ecocardiograma: em caso de suspeita de infiltração e derrame pericárdico; • ultrassonografia de testículo: em caso de aumento de volume testicular; • TC de tórax e abdome: sempre que as condições do paciente permitirem: • ressonância magnética (RM) de crânio: em caso de sinais clí‑ nicos de comprometimento central; • RM de coluna: em caso de manifestações clínicas de compres‑ são radicular (emergência). Os exames a seguir não são obrigatórios, mas podem colaborar com o estadiamento: • PET-CT-FDP: tomografia com mapeamento das áreas com‑ prometidas com glicose marcada; • mapeamento ósseo; • endoscopia. Diagnóstico diferencial O diagnóstico diferencial dos LNH pode variar intensamente com as manifestações clínicas iniciais, que se devem, na maio‑ ria das vezes, ao local primário de comprometimento. As patologias que mais fazem parte da chave de diagnósti‑ cos diferenciais dos linfomas são as infectocontagiosas que cursam com febre, linfadenopatia e hepatoesplenomegalia. Linfomas primários de linfonodos periféricos, principalmen‑ te os que cursam com febre, podem ter como diagnóstico dife‑ rencial as linfadenopatias febris de origem infecciosa (toxoplas‑ mose, mononucleose, citomegalovírus, tuberculose, doença da arranhadura de gato e outros). Fatores importantes na avaliação: • história e exame físicos bem feitos; • características dos linfonodos: –– localizados: dependendo da localização, merecem diag‑ nóstico diferencial com outras massas não ganglionares; na região inguinal, com hérnias e atopias testiculares; –– múltiplas cadeias: geralmente os linfonodos são acompa‑ nhados de hepatomegalia e/ou esplenomegalias; –– consistência: geralmente endurecida; –– coalescentes; –– aderidos a planos profundos; –– com linfonodos satélites; –– sem sinais inflamatórios, como calor, rubor, flutuação, pouco ou nada dolorosos; –– tamanho: os linfonodos do linfoma são geralmente maio‑ res (> 2,5 cm) e apresentam crescimento progressivo; –– ausência de sinais flogísticos. Dentro das patologias neoplásicas, os linfomas podem ser confundidos com comprometimento linfonodal do rabdo‑ miossarcoma, neuroblastoma, linfo-histiocitose maligna e ou‑ tros mais raros.
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Os linfomas primários de mediastino são massas que com‑ prometem o mediastino médio e o anterior e que têm, como diagnóstico diferencial, tumores germinativos (muito mais ra‑ ros), tireoide mergulhante e o próprio timo. Os linfomas abdominais, na maioria das vezes, são tão agressivos que chegam como grandes massas com comprome‑ timento de múltiplos órgãos, de modo que os diagnósticos di‑ ferenciais são geralmente com outros tumores, como neuro‑ blastoma ou rabdomiossarcoma. Menos frequentemente, os linfomas podem ter sua origem em órgãos abdominais locali‑ zados como fígado, merecendo o diagnóstico diferencial com hepatoblastoma e hepatocarcinoma; linfoma primário de ová‑ rio merece diagnóstico diferencial com tumores germinativos, adenocarcinoma e até torção ovariana; raros, mas muito co‑ nhecidos, os linfomas primários do intestino delgado (válvula ileocecal), que se manifestam com obstrução intestinal por in‑ vaginação, merecem diagnóstico diferencial com as causas não malignas de invaginação em crianças. São considerados fatores de risco para o diagnóstico de neoplasias e, principalmente, dos linfomas as seguintes mani‑ festações: • linfadenopatia, com aumento de linfonodos com crescimento progressivo e que, na suspeita de uma infecção, não involuí‑ ram como o esperado; • febre por mais de 7 dias sem outro diagnóstico patente; • associação com hepato e/ou esplenomegalia; • perda de peso acentuada (> 10%) nos últimos 2 meses; • sudorese profusa e/ou prurido nos pacientes mais velhos – adolescentes. Se o pediatra ficar atento a uma ou mais dessas manifestações e encaminhar o paciente precocemente para o especialista, terá chance de fazer um diagnóstico mais precoce e, portanto, aumentar a probabilidade de cura. Fatores prognósticos Os principais fatores prognósticos do LNH na infância e ado‑ lescência são: 1. Estadiamento: determinação da extensão de comprometi‑ mento da doença. Quanto maior o estadiamento, pior o prog‑ nóstico: • estádio I: linfonodo ou massa tumoral completamente res‑ secado (raro); • estádio II: tumor primário ressecado sem margens. Ausên‑ cia de comprometimento em qualquer outra localização; • estádio III: tumores irressecáveis, todos os primários de mediastino e a grande maioria dos tumores abdominais, excetuando os invaginados ressecados e os raros primários de ovário totalmente ressecados. Todos os linfomas que ti‑ verem comprometimento supra e infradiafragmático; • estádio IV: metástases hematogênicas (a distância), me‑ dula óssea e/ou SNC comprometidos. 2. Má resposta ao tratamento. 3. Nível de DHL ao diagnóstico: principalmente para os linfo‑ mas B. 4. Tratamento instituído.
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Tratamento O tratamento dos LNH é sempre quimioterápico. O papel da cirurgia, na grande maioria das vezes, está na biópsia para diagnóstico e, raramente, como já citado, em linfomas locali‑ zados de ovário ou válvula ileocecal com invaginação. Mesmo nessas situações, a complementação quimioterápica se impõe. É importante ficar claro que, embora algumas vezes se ma‑ nifeste de forma localizada, os linfomas são doenças sistêmi‑ cas. Tentativas do cirurgião de grandes exéreses são mutilan‑ tes, atrasam a quimioterapia e são responsáveis por piores prognósticos. A intensidade do tratamento (doses e tempo) depende do subtipo histológico e do estadiamento. Quanto maior o esta‑ diamento, mais intensivo será o tratamento e com maior risco de efeitos colaterais imediatos e tardios. Diagnóstico precoce e bem feito é a principal colaboração do pediatra para com esses pacientes.7 Doença de Hodgkin A doença de Hodgkin (DH) foi primeiramente descrita na se‑ gunda metade do século XX, pelos patologistas Sternberg e Reed. Acredita-se que tenham sido as primeiras descrições da histopatologia da DH. Reed, em particular, fez uma descrição de células gigantes multinucleadas que permitiu, na época, a dife‑ renciação dessa patologia com a tuberculose, muito frequente‑ mente associada. Durante muitos anos, permaneceu a dúvida se seria uma doença infecciosa ou uma patologia monoclonal e, portanto, neoplásica. Foi o sucesso no cultivo das células de Reed-Sternberg que permitiu a demonstração de que se tratava de células de natureza maligna, reforçando a ideia de uma doen‑ ça verdadeiramente maligna. Epidemiologia A DH tem uma distribuição bimodal em relação à idade, com diferenças étnicas e geográficas. Em países industrializados, os picos ocorrem ao redor dos 20 anos e, mais tarde, ao redor dos 50 anos. Nos países em desenvolvimento, o primeiro pico ocorre antes da adolescência. Na forma infantil, existe uma li‑ geira predominância do sexo masculino, enquanto, em ado‑ lescentes, essa diferença não tem sido observada. A DH é rara‑ mente observada antes dos 5 anos de idade. É rara em crianças, mas é comum em pacientes com imunodeficiência infectados por vírus. As características epidemiológicas sugerem que a etiologia pode variar com a idade na apresentação. Exposição intensa e precoce a agentes infecciosos poderia aumentar o risco da forma infantil da DH. O EBV tem sido implicado na origem da DH tanto em estudos sorológicos como epidemiológicos. Essa hipótese é reforçada pela evidência de genomas de EBV por hibridização in situ nas células de Reed-Sternberg. Os tumores com genoma posi‑ tivos para EBV são mais frequentes em crianças menores de 10 anos em países em desenvolvimento. A doença pode ser o resul‑ tado de múltiplos processos patológicos que incluam infecção vi‑ ral e exposição a um hospedeiro geneticamente suscetível. Casos de DH em uma mesma família sugerem uma predisposição gené‑ tica ou exposição a agente etiológico comum ou até ambos. A
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maior frequência de DH em parentes de 1º grau, principalmente do mesmo sexo e gêmeos, tem sido mostrado na literatura. Diagnóstico e classificação O diagnóstico da DH, assim como do LNH já descrito anterior‑ mente, é feito pela biópsia do local comprometido de maior re‑ presentatividade. Ao contrário do LNH, a grande maioria das manifestações da DH é linfonodal periférica. Mesmo quando se observam manifestações de mediastino e/ou abdominal, elas vêm acompanhadas de comprometimento periférico. DH com comprometimento mediastinal ou abdominal isolado são, respectivamente, 10% e 3% das DH na infância e adoles‑ cência. Atualmente, com base em estudos de imunofenotipa‑ gem das células linfocíticas e histiocíticas e das células de Reed-Sternberg da DH clássica, a DH é classificada em imuno‑ fenótipo I (DH com predominância linfocitária) e DH II ou clássica. De acordo com esse critério, a DH tipo I apresenta po‑ sitividade ou negatividade para cadeia J, CD20+, CD79a+ e cé‑ lulas linfocíticas ou histiocíticas +. O tipo clássico tem cadeia J negativa, CD20+/-, CD79a+/-, CD30+, CD15+/- e células de Reed-Sterberg +. Na última classificação europeia-americana, o imunofenótipo II (DH clássica) engloba os tipos anterior‑ mente descritos como esclerose nodular, celularidade mista e depleção linfocitária. Esses achados fazem uma distinção cla‑ ra entre DH clássica e depleção linfocitária Definição de subtipos histológicos A classificação de Rye, universalmente aceita, define quatro subtipos histológicos na DH: predomínio linfocitário (PL), ce‑ lularidade mista (CM), depleção linfocitária e esclerose nodu‑ lar. Com o desenvolvimento da quimioterapia, essa classifica‑ ção deixou de ter relevância prognóstica. Manifestações clínicas Como já dito, a DH é predominantemente linfonodal periférica, ao contrário do LNH na infância, cujo comprometimento mais frequente se dá em órgãos e linfonodos internos. A grande maioria da DH é cervical e supraclavicular. Os linfonodos com‑ prometidos são endurecidos, geralmente não são únicos, mas formam um conglomerado de linfonodos no qual um é maior e mais central, com outros menores coalescentes e aderidos a planos profundos. Podem aparecer avermelhados e sensíveis à palpação, mas não dolorosos como os processos inflamatórios. Dois terços dos pacientes apresentam algum grau de compro‑ metimento mediastinal, porém, vale lembrar que comprometi‑ mento de mediastino exclusivo é raro. A preocupação com a abordagem diagnóstica da criança portadora de massa de me‑ diastino e síndrome de cava ou mediastino superior, descritos anteriormente para LNH, é também pertinente para DH. Linfa‑ denopatias inguinal e axilar podem ser mais raramente locais primários de acometimento da DH. Doença primária exclusiva subdiafragmática é muito rara – menos de 3% dos casos. Sinais e sintomas Além do aumento de uma ou mais cadeias linfonodais, perifé‑ ricas, na maioria das vezes, a DH costuma cursar com febre
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diária maior que 38°C, anorexia, fadiga, prurido e perda de peso lenta e progressiva. Os sintomas sistêmicos são mais fre‑ quentemente vistos em doença avançada. Achados laboratoriais Na grande maioria das vezes, as contagens hematimétricas não têm maior especificidade na DH localizada. Nos casos mais avançados, pode-se observar anemia resultante de alterações na mobilização do ferro. A anemia hemolítica Coombs positivo pode, em alguns casos, estar associada à DH. Nesses casos, é acompanhada de reticulocitose e hiperplasia normoblástica da medula óssea. Várias manifestações autoimunes podem estar presentes ao diagnóstico da DH: anemia hemolítica autoimune, neutropenia autoimune, plaquetopenia autoimune (PTI) e sín‑ drome nefrótica. A VHS, o cobre sérico e a ferritina podem estar aumentados, refletindo alteração do sistema reticuloendotelial. Diagnóstico diferencial O diagnóstico diferencial da DH na infância e na adolescência deve ser feito principalmente com as doenças infectocontagio‑ sas que cursam com linfadenopatias e febre. Dentre elas, me‑ recem citação especial a mononucleose, a tuberculose, a toxo‑ plasmose, a citomegalovirose e, quando localizada, a doença da arranhadura de gato. Na maioria das vezes, o diagnóstico dessas patologias é feito por meio das sorologias e pesquisa por PCR que, quando negativos, orientam para a biópsia diag‑ nóstica. Entre DH e LNH, a história evolutiva pode ajudar muito na orientação. Os LNH são geralmente mais agressivos e com histórias muito mais curtas. A DH é mais indolente, e a referência de aumento de linfonodos é de semanas ou meses. Outro fator relevante são as alterações bioquímicas de ácido úrico e DHL, mais frequentemente observados nos LNH. Ain‑ da dentro dos diagnósticos neoplásicos, o diferencial com lin‑ fonodos metastáticos de outros primários, como carcinoma de rinofaringe e sarcomas de partes moles, deve ser lembrado. Fatores prognósticos O principal fator prognóstico da DH é, sem dúvida, o estadia‑ mento, que, na DH, obedece a classificação de Ann Arbor: • estádio I: envolvimento de uma única cadeia de linfonodo (I) ou de um único local ou órgão extralinfático (IE); • estádio II: duas ou mais regiões linfonodais (II) ou órgãos do mesmo lado do diafragma (IIE); • estádio III: envolvimento acima e abaixo do diafragma (III). Se for extralinfático, IIIE; se ambos (IIIES); • estádio IV: comprometimento difuso ou sistêmico de um ou mais órgãos extralinfáticos ou tecidos com ou sem envolvi‑ mento de linfonodos. Nota: a presença de febre, sudorese noturna e/ou perda de peso maior que 10% nos últimos 6 meses em qualquer estádio recebe o sufixo B. A ausência de qualquer desses sintomas re‑ cebe o sufixo A. Os sintomas B, grandes massas de mediastino, extensão extranodal da doença e estádios IIIB e IV são também fatores prognósticos relevantes.
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Na década de 1970, o estadiamento da DH era feito por meio de laparotomia exploradora para identificação de doença infradiafragmática, que preconizava a esplenectomia para me‑ lhor avaliação da doença esplênica. A partir da década de 1980, com os avanços dos métodos diagnósticos não invasivos e a evolução da quimioterapia sistêmica para crianças, a laparoto‑ mia estadiadora caiu em desuso. Hoje, fazem parte da avalia‑ ção diagnóstica e estadiamento da DH em crianças os seguin‑ tes exames e avaliações: • exame físico com medida dos linfonodos; • hemograma completo, VHS, testes de função renal e hepática, nível de fosfatase alcalina; • biópsia de linfonodo (hematoxilina eosina e imuno-histoquí‑ mica); • radiografia de tórax com medida da relação com mediastino; • TC de pescoço e de tórax; • TC ou RM de abdome e de pelve; • biópsia de medula óssea, exceto para estádios IA/IIA; • PET-CT, mais recente, que pode ser útil na determinação de todos os locais de acometimento; • mapeamento ósseo, para crianças com dores ósseas, e fosfa‑ tase alcalina elevada, se o PET-CT não for disponível. Tratamento O tratamento da DH em criança baseia-se sempre na quimio‑ terapia sistêmica, algumas vezes associada à radioterapia. O uso da radioterapia, ou pelo menos em doses mais altas, tem sido evitado em crianças em virtude das sequelas graves de crescimento e desenvolvimento. A literatura diverge quanto ao melhor tratamento, sempre na tentativa de manter os altos índices de cura da patologia obtidos nos dias de hoje, com os menores efeitos colaterais imediatos e tardios. Para os está‑ dios iniciais, a maioria dos autores advoga menos ciclos de quimioterapia associados a doses mais baixas e campos me‑ nores de radioterapia. Nos estádios III, preconiza-se frequen‑ temente o esquema denominado “sanduíche”, no qual se faz a quimioterapia (3 ciclos) intercalada com radioterapia nos campos envolvidos ao diagnóstico, seguidos de mais 3 ciclos de quimioterapia. Já nos estádios IV, a divergência de condu‑ tas tem sido maior. Alguns autores preconizam quimioterapia mais intensiva, com número maior de ciclos e a adição de no‑ vas drogas sem radioterapia, reservando-a para as situações de recidiva. Outros preconizam a radioterapia no primeiro tra‑ tamento nos locais de envolvimento inicial com campos mais estendidos. Sem dúvida, o melhor que se pode fazer por esses pacientes é o diagnóstico precoce, em estádios iniciais, o que propicia altos índices de cura com tratamentos menos agressi‑ vos. Os esquemas quimioterápicos mais frequentemente usa‑ dos em pediatria são o OPPA – vincristina, procarbazina, prednisona e doxorrubicina – intercalados com ABVD – do‑ xorrubicina, bleomicina, vimblastina e dacarbazina. Infeliz‑ mente, embora os índices de cura sejam hoje muito elevados, a atenção tem sido voltada para os efeitos colaterais, principal‑ mente os tardios, consequentes ao tratamento. A Tabela 1 mostra os principais efeitos colaterais em portadores de DH tratados com químio e/ou radioterapia.
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Tabela 1 Eventos adversos relacionados ao tratamento na DH Eventos adversos
Tratamento associado
Toxicidade gonadal em meninos
Agentes alquilantes
Infertilidade feminina
Radioterapia, agentes alquilantes
Tireoide: hipotireoidismo, nódulos, câncer
Radioterapia (pescoço/tórax)
Toxicidade cardíaca: pericardite, pancardite, miopatia, doença coronariana, lesão valvar, defeito de condução
Antracíclicos, radioterapia (tórax)
Pulmão: fibrose
Bleomicina, radioterapia
Músculo esquelético: alterações de crescimento, assimetrias
Radioterapia
Necroses avasculares
Corticosteroides
Neoplasias secundárias
Radioterapia, agentes alquilantes, etoposídeo, antracíclicos
DH: doença de Hodgkin. Fonte: Metzger et al., 2011.8
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer a incidência e entender os fatores que influenciam a frequência dos linfomas. • Identificar os sinais e sintomas da doença dependendo do local da massa linfoide primária e da presença de doença disseminada. • Identificar as características das linfonodomegalias que sugerem malignidade. • Conhecer a classificação histológica dos LNH e de DH. • Identificar os principais exames laboratoriais e de imagem para avaliação da extensão da doença. • Saber os principais diagnósticos diferenciais de acordo com a localização primária da doença. • Apontar os princípios gerais para o tratamento e os principais fatores prognósticos. • Reconhecer a relevância da participação do pediatra no diagnóstico precoce dos linfomas e compreender que o prognóstico está relacionado à adequada investigação e ao tratamento em centro pediátrico de referência em oncologia.
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CAPÍTULO 6
TUMORES SÓLIDOS Denise Bousfield da Silva José Henrique Silva Barreto Mara Albonei Dudeque Pianovski
Introdução Tumor sólido é uma massa constituída pela multiplicação das células de um tecido, sem a estrutura dos processos inflama‑ tórios ou parasitários conhecidos. Pode também ser definido como qualquer aumento de volume desenvolvido em uma parte qualquer do corpo.1 De acordo com seu comportamento e características biológicas, pode ser maligno ou benigno, con‑ forme apresente ou não tendência a se estender, a fazer me‑ tástase e a cursar com recidiva após ablação.1,2 Os tumores sólidos representam cerca de metade das neo‑ plasias pediátricas, sendo que os tumores do sistema nervoso central (SNC) correspondem ao tipo mais frequente da infân‑ cia. As massas abdominais são um importante contingente de tumores sólidos na faixa pediátrica, sendo representadas prin‑ cipalmente pelo tumor de Wilms e pelo neuroblastoma. Ou‑ tros tumores sólidos encontrados na faixa infantojuvenil são retinoblastoma, sarcomas de partes moles, tumores hepáticos, tumores das células germinativas, tumores do córtex suprar‑ renal, tumores ósseos e outros tumores menos frequentes.1,2 Neste capítulo, serão abordados o tumor de Wilms, o neu‑ roblastoma, os tumores hepáticos, os tumores de células ger‑ minativas, os tumores do córtex suprarrenal, o retinoblasto‑ ma e os sarcomas de partes moles. Tumores abdominais Os tumores abdominais ocorrem frequentemente em crianças, e a sua origem é variada. Seu comportamento depende da his‑ togênese, da localização e de suas relações com órgãos vizi‑ nhos. A avaliação desses tumores requer urgência para deter‑ minar sua malignidade, sua relação com órgãos vizinhos, além de verificar a existência de compressão de órgãos vitais ou a presença de hemorragia.2 A história clínica e o exame físico realizados com rigor, na maioria das vezes, fornecem subsídios sobre a natureza do tu‑ mor, pois existem determinadas características que já levam a suspeitar da natureza da massa (Tabela 1).
A idade é um fator importante para nortear a linha de racio‑ cínio diagnóstico. Tumores ou massas que são detectados no período neonatal são, na grande maioria das vezes, de nature‑ za benigna, correspondendo, na sua quase totalidade, a mal‑ formações e defeitos do desenvolvimento embrionário. À pro‑ porção em que se afasta do período neonatal, aumenta a chance de malignidade da lesão.1,2 No lactente e na criança, a presença de um tumor abdomi‑ nal determina aumento significativo na possibilidade de ser um tumor maligno. A sua localização no abdome já sugere malignidade. A frequência de comportamento maligno das massas retroperitoneais aproxima-se de 80%, traduzindo um aumento das lesões não renais, enquanto a frequência de le‑ sões renais permanece a mesma.1 Na Tabela 2, são apresenta‑ das algumas características obtidas ao exame físico e à radio‑ grafia simples do abdome, que auxiliam no raciocínio clínico e na percepção da localização anatômica da massa. Os dois tumores abdominais malignos mais comuns na in‑ fância são o tumor de Wilms e o neuroblastoma. Ainda são ob‑ servados os tumores hepáticos, as massas gonadais, represen‑ tadas pelos tumores de células germinativas, e os tumores do córtex suprarrenal, mais frequentes no sudeste e sul do Brasil. Tabela 1 Características dos tumores abdominais segundo as especificações da anamnese e do exame físico Tumor benigno
Tumor maligno
Idade
< 1 ano
> 1 ano (2 a 6 anos)
Evolução
Lenta
Rápida
Estado geral
Mantido
Comprometido
Localização
Abdome inferior, retroperitônio e rins
Abdome superior
Consistência
Móvel
Fixo
Dor
Presente (processos inflamatórios, torções)
Ausente
Fonte: Silva et al., 2014.1
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Tumores Sólidos •
Tabela 2 Características das massas segundo sua localização no abdome Tumores intra-abdominais
Tumores retroperitoneais
Mobilidade
Móvel à palpação
Fixo à palpação
Loja renal
Vazia
Ocupada
Respiração
Move-se
Não se move
Radiografia
Desloca os gases para trás no perfil e preserva a sombra do psoas em PA
Desloca os gases para frente no perfil e apaga a sombra do psoas em PA
PA: posteroanterior. Fonte: Silva et al., 2014.1
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tumor é vista pelo pediatra durante o exame físico de rotina. Por ser de crescimento insidioso, é comum que os pais não no‑ tem a presença da massa e achem que a criança está normal‑ mente engordando no abdome. As manifestações clínicas, em ordem de frequência, são a presença de massa palpável (60%), hipertensão arterial (25%), hematúria (15%), dor abdominal (8%), obstipação intestinal (4%), perda de peso (4%) e infec‑ ção do trato urinário (3%).1 A palpação do abdome deve ser feita com delicadeza, pois o tumor pode se romper com facili‑ dade, piorando o prognóstico. A avaliação inicial é feita com a realização de radiografia simples do abdome nas incidências posteroanterior (PA) e perfil, para avaliar a localização intra ou retroperitoneal da massa, além de verificar a presença de calcificação. Outro pro‑ cedimento importante no diagnóstico do tumor de Wilms é a realização de ultrassonografia abdominal, que fornece infor‑ mações sobre tamanho, localização, presença de trombo em vasos renais e de lesão no rim contralateral. É um exame de baixo custo, mas deve ser realizado por profissionais que te‑ nham experiência em oncologia. A realização da tomografia computadorizada (TC) do abdome é complementar e necessá‑ ria para detectar lesões menos visualizadas, relações com ór‑ gãos vizinhos e proceder ao estadiamento clínico da doença. A radiografia do tórax é necessária para detectar metástases pul‑ monares.1,2 O tratamento envolve cirurgia, quimioterapia e/ou radiote‑ rapia, dependendo do estadiamento clínico.1,2 A assistência a esses pacientes deve sempre ser realizada em serviço especia‑ lizado no diagnóstico e tratamento do câncer infantojuvenil.
Tumor de Wilms Também conhecido por nefroblastoma, é o tumor maligno pri‑ mário do rim mais comum e o segundo tumor maligno do re‑ troperitônio na infância. A incidência desse tumor é de 7 por milhão de crianças menores de 16 anos de idade, parecendo ser mais baixa no Japão e em Cingapura e mais elevada na Es‑ candinávia, na África e no Brasil.3,4 A frequência desse tumor é igual para ambos os sexos, e cerca de 78% dos casos acontece na faixa etária de 1 a 5 anos, com pico de incidência entre 3 e 4 anos.3,4 Geralmente ocorre de forma esporádica, mas 1% é de ori‑ gem familiar. Algumas anomalias e síndromes genéticas têm sido associadas ao risco aumentado de tumor de Wilms, como síndrome de Beckwith-Wiedemann (11p15.5), síndrome WAGR (tumor de Wilms, aniridia, anomalia geniturinária, re‑ tardo mental), síndrome Denys-Drash (esclerose mesangial difusa, pseudo-hermafroditismo e tumor de Wilms) e anoma‑ Neuroblastoma lias do trato geniturinário (criptorquidia, hipospádia, pseudo‑ É um tumor complexo, com comportamento biológico diverso, -hermafroditismo, disgenesia gonadal, malformações renais e cujo tratamento permanece um desafio para o oncologista pe‑ do sistema coletor). A aniridia e a hemi-hipertrofia são ano‑ diátrico. Tem origem nas células primordiais da crista neural malias congênitas mais raras e devem ser acompanhadas de que formam a medula suprarrenal e os gânglios simpáticos. É perto em função da chance de associação a esse tumor.4,5 Al‑ o tumor mais comum entre os lactentes, correspondendo a 7% de todas as malignidades. Possui pico de incidência por volta guns genes supressores estão reconhecidamente envolvidos na gênese do tumor de Wilms, entre eles o WT1, que codifica dos 2 anos de idade. Cerca de 75% dos pacientes com essa um fator de transcrição importante no desenvolvimento nor‑ neoplasia possuem menos de 4 anos de idade e 90% são me‑ mal do rim e das gônadas. A identificação de uma pequena de‑ nores de 10 anos. Raramente é visto em crianças maiores de 14 leção no cromossomo 11 (11p13) determina o aparecimento do anos de idade.6 Existe um risco aumentado de neuroblastoma em pacien‑ tumor de Wilms. Esse gene tem sido identificado na síndrome WAGR e Denys-Drash e em alguns casos de tumor bilateral. tes com neurofibromatose, doença de Hirschprung, hetero‑ cromia da íris, síndrome hidantoíno-fetal e síndrome álcool‑ Mutações específicas do WT1 têm sido descritas em apenas 10% ou menos dos casos esporádicos desse tumor.3 A deleção -fetal. Da mesma forma que para o tumor de Wilms, tem sido 11p15 associada ao gene supressor WT2 é vista em associação à relatada maior frequência em pessoas com a síndrome de síndrome de Beckwith-Wiedemann. A perda de expressão do Beckwith-Wiedemann.2,5,6 De acordo com a localização, 40% estão presentes na glân‑ gene localizado em 11p15, derivado da mãe, sugere que o lócus 11p15 está sujeito a imprinting genômico (inativação do alelo). dula suprarrenal, seguidos da cadeia paraespinal (25%), tórax Cerca de 20% das síndromes associadas ao tumor de Wilms (15%), pescoço (5%) e pelve (5%).2 Suas manifestações clínicas diferem com a localização, têm perda de alelo no braço longo do cromossomo 16. Acredi‑ ta-se que a mutação nesse lócus predispõe ao surgimento do mas existe um cortejo sintomatológico descrito relacionado às manifestações sistêmicas e síndromes paraneoplásicas asso‑ tumor de Wilms.3,4 O tumor de Wilms é assintomático ou oligossintomático e, ciadas. O achado mais comum é o de massa palpável ao longo na maioria das vezes, é descoberto pelos familiares ao acari‑ da cadeia simpática periférica, na maioria das vezes assinto‑ ciar, brincar ou banhar as crianças. Outra porcentagem desse mática ou oligossintomática. A presença de metástases ao
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diagnóstico ocorre em 75% dos casos. Quando presentes, os cientes com neuroblastoma estádios 3 e 4, respectivamente, ao sintomas relacionados às metástases determinam os achados diagnóstico.5-7 A maior parte da ferritina é secretada e provavel‑ clínicos. É comum encontrar sintomas referentes à liberação mente derivada do tumor, caracterizando-se como indicador de catecolaminas produzidas pelo tumor, como sudorese, hi‑ prognóstico importante. Quando aumentada ao diagnóstico, pertensão arterial, irritabilidade, rubor e palpitação. A doença com valores maiores que 142 ng/mL em crianças com mais de 6 metastática determina queixa de dor óssea, achados de ane‑ meses, indica pior prognóstico, especialmente em doenças es‑ mia decorrente da infiltração da medula óssea, proptose e tádios 3 e 4. Quanto mais baixa a ferritina, melhor o prognóstico. equimose palpebral nos casos com metástase orbitária e ptose Normalmente, níveis mais altos desse marcador são vistos em palpebral (síndrome de Horner), nos casos de tumor primário lactentes com menos de 6 meses.2,5-7 cervical. Em lactentes, são comuns as metástases hepáticas e O inventário ósseo é recomendado para avaliar metástases a presença de nódulos subcutâneos.5,6 nesse sistema orgânico em função da alta frequência de aco‑ A presença de febre é um relato constante nessa doença metimento ósseo. Deve ser feito pela realização de radiografia (37%). Outra manifestação encontrada refere-se aos sintomas do esqueleto, complementado pela cintilografia óssea.2 neurológicos decorrentes da síndrome da compressão medular O tratamento envolve cirurgia, quimioterapia e utilização nos casos de neuroblastoma de localização paraespinal (19%). de modificadores da resposta biológica. Essa terapêutica deve Nesses casos, chamam atenção as queixas de fraqueza, formi‑ ser realizada em centros especializados no câncer infantojuve‑ gamento, alterações no tônus muscular e impossibilidade de nil. O prognóstico depende de critérios específicos e envolve caminhar. Trata-se de uma emergência oncológica, necessitan‑ idade, histologia, determinação da ploidia do DNA e da ex‑ do de intervenção nas primeiras 24 horas do bloqueio medular pressão do oncogene MYC-N, estadiamento e grupo de risco. sob o risco de irreversibilidade do quadro. Outra manifestação Vale ressaltar que esse tumor ainda apresenta resultados pou‑ vista no neuroblastoma é a síndrome da opsomioclonia, tam‑ co alentadores para os oncologistas pediátricos, quando a bém conhecida como síndrome da dança dos olhos. As crian‑ criança apresenta doença metastática ao diagnóstico. Chama‑ ças com essa síndrome e que recebem quimioterapia para neu‑ -se a atenção para a possibilidade de amadurecimento desse roblastoma na dependência do estadiamento possuem melhor tumor, evoluindo para cura espontânea em alguns casos.2,5,6 prognóstico que aquelas que não são submetidas a essa modali‑ dade terapêutica.6 Outra síndrome paraneoplásica encontrada Tumores hepáticos primários com o neuroblastoma é a síndrome de Verner-Morrison, carac‑ Aproximadamente 60 a 70% de todos os tumores hepáticos terizada por diarreia crônica e intratável, secundária à produção primários em crianças são malignos, sendo que os mais co‑ de um peptídio vasoativo intestinal (VIP), melhorando apenas muns são o hepatoblastoma e o carcinoma hepatocelular. com a remoção do tumor primário e controle da doença.5-7 Dentre as lesões benignas mais comuns, destacam-se o he‑ Dos exames diagnósticos, além dos de imagem já referidos mangioma e os hamartomas.2,8,9 para o tumor de Wilms, está indicada a realização de resso‑ O hepatoblastoma é mais frequente do que o carcinoma he‑ nância magnética (RM) para os casos de tumor paraespinal patocelular, acometendo principalmente as crianças mais jo‑ que necessite de intervenção neurocirúrgica.5,6 vens, com idade média ao diagnóstico de 1 ano. Por sua vez, o Nesse tumor, torna-se útil o exame em medicina nuclear, carcinoma hepatocelular atinge mais comumente as crianças com o mapeamento de corpo inteiro com metaiodobenzilgua‑ mais velhas, com idade média ao diagnóstico de 12 anos. Es‑ nidina (MIBG), cujo tropismo para as células do neuroblasto‑ ses tumores acontecem mais no sexo masculino.2,5 ma evidencia atividade da doença.2,5,6 Outras anormalidades têm sido descritas associadas ao Importante na avaliação laboratorial é a realização do he‑ hepatoblastoma, incluindo hemi-hipertrofia, divertículo de mograma, pois a invasão da medula óssea pode levar a citope‑ Meckel, agenesia renal e de glândula suprarrenal, além de hér‑ nias periféricas. O aspirado e/ou a biópsia de medula óssea nia umbilical.8,10 Crianças prematuras ou com peso muito bai‑ podem levar ao diagnóstico, evitando cirurgia abdominal caso xo ao nascimento parecem apresentar um risco maior de de‑ o tumor seja considerado irressecável. O estadiamento exige senvolver hepatoblastoma.9 realização de aspirados de medula óssea obtidos por várias Existe forte associação entre o carcinoma hepatocelular e o punções e no mínimo duas biópsias de medula óssea.5,6 vírus da hepatite B, que pode ser adquirido de mães soroposi‑ Em todas as crianças com suspeita de neuroblastoma, de‑ tivas (transmissão vertical) ou por exposição a produtos san‑ vem ser dosados os produtos da degradação das catecolaminas, guíneos contaminados.9 a dopamina, o ácido vanilmandélico e o ácido homovanílico, na Alguns fatores parecem predispor a essa neoplasia, entre urina e/ou no sangue. Funcionam como marcadores biológicos, eles tirosinemia, galactosemia, atresia biliar, cirrose colestáti‑ normalizando com o controle da doença e voltando a ficar alte‑ ca familiar progressiva, anemia de Fanconi, neurofibromatose, rados quando em atividade. Chama a atenção que nem todos os ingestão de aflatoxinas, tratamentos com esteroides anaboli‑ pacientes apresentam alteração nesses marcadores biológicos zantes e imunodepressão iatrogênica.9,11 ao diagnóstico, mas é desejável sua dosagem nessa fase de diag‑ Em geral, os tumores hepáticos são descobertos na consul‑ nóstico e no seguimento da doença. Entre outros marcadores, ta com o pediatra em função da queixa de distensão abdomi‑ encontra-se a ferritina. Concentrações plasmáticas altas de fer‑ nal ou massa palpável, além da perda de peso, anorexia e febre. ritina têm sido vistas em aproximadamente 50 a 66% dos pa‑ A icterícia é rara.9
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A avaliação laboratorial inclui hemograma e testes de fun‑ ções hepática e renal. O nível sérico de alfafetoproteína está aumentado nos hepatoblastomas e, em menor frequência, nos hepatocarcinomas.2,9 Os exames de imagem incluem TC e RM do abdome. Rara‑ mente os tumores hepáticos malignos mostram calcificações. A ultrasonografia do abdome pode demonstrar a presença e a extensão de uma massa sólida.2,9 O tratamento é cirúrgico associado à quimioterapia adju‑ vante. A ressecção completa da massa tumoral é fundamental para a cura, sendo o transplante hepático uma opção para os pacientes com localização tumoral que impede a cirurgia de ressecção simples. A sobrevida média dos casos de hepato‑ blastoma é de 70%, e, nos casos de hepatocarcinomas, essa estimativa é de apenas 25%.9
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clavicular comprometido. A presença de calcificações pode ajudar a diferenciar o timo dos linfomas.2,5,9 O germinoma do SNC quase sempre se situa na região pi‑ neal, e seus sintomas são decorrentes do crescimento do tu‑ mor e de manifestações endócrinas associadas.12 O comportamento biológico desses tumores varia da forma benigna do teratoma maduro ao carcinoma embrionário e o coriocarcinoma, ambos altamente malignos. No entanto, es‑ ses tumores de comportamento agressivo apresentam impor‑ tante quimiossensibilidade, sendo que, após a introdução dos regimes quimioterápicos baseados em derivados da platina, observou-se grande melhora na sobrevida dessas crianças.9,12 É importante o médico estar atento, pois lesões malignas podem aparecer em locais de onde um tumor benigno foi pre‑ viamente retirado.12 Níveis séricos de alfafetoproteína podem estar elevados em tumores de seio endodérmico, independentemente da locali‑ zação. Pacientes com carcinoma embrionário e coriocarcino‑ ma podem apresentar níveis elevados de beta-HCG, o que au‑ xilia no diagnóstico dessas doenças.12
Tumores de células germinativas Os tumores das células germinativas constituem cerca de 2% de todas as malignidades pediátricas. Localizam-se primaria‑ mente nas gônadas (ovários e testículos), assim como em uma variedade de localizações extragonadais, cuja região mais aco‑ metida é a sacrococcígea. Regiões menos afetadas incluem o Tumores do córtex suprarrenal mediastino, o retroperitônio, a vagina e a loja pineal.2,12 Os tumores do córtex suprarrenal (TCSR) são raros e sua inci‑ As manifestações clínicas estão relacionadas com a locali‑ dência é semelhante na maioria dos países, variando de 0,2 a zação do tumor primário. Os tumores ovarianos podem ser as‑ 0,3 por milhão de crianças menores de 15 anos de idade. No sintomáticos, determinar sintomas compressivos em função sul e sudeste do Brasil, contudo, há uma incidência aumenta‑ do tamanho do tumor ou expressar alterações em relação aos da desses tumores, sendo 15 vezes maior do que nas demais distúrbios endócrinos associados a alguns tipos de tumores. regiões do mundo.13,14 Pesquisas procurando entender a razão Os tumores ovarianos representam aproximadamente 25% de de a incidência ser maior no Paraná levaram à identificação de todos os tumores de células germinativas pediátricos, sendo uma mutação em um gene de supressão tumoral, na linhagem que a maioria deles ocorre no final da infância, com pico de in‑ germinativa (TP53 R337H), em 97,2% das crianças avalia‑ cidência aos 10 anos de idade. Os mais comuns são os disger‑ das.13,14 Essa mutação altera as propriedades funcionais da minomas e os tumores do seio endodérmico. Os teratomas proteína sob determinadas circunstâncias, como pH alcalino e imaturos representam cerca de 10% das massas ovarianas. Es‑ elevação de temperatura. Como é uma mutação que ocorre sas pacientes geralmente são levadas ao pediatra por causa da nas células germinativas, pode ser identificada e alertar o pe‑ dor pela torção do pedículo ou pelo surgimento de massa ab‑ diatra para dar maior atenção para os sinais clínicos e labora‑ dominal.2,5,8-10 toriais do tumor, após ser detectada no “teste do pezinho”. A avaliação radiológica inicial deve incluir radiografia sim‑ A distribuição dos TCSR quanto à idade é bimodal, com um ples de abdome, que pode mostrar calcificações no tumor. A pico na 1ª e outro na 5ª década de vida. O comportamento bio‑ ultrassonografia abdominal demonstra se a massa tem nature‑ lógico do tumor nas crianças é diferente daquele no adulto. za cística ou mista, e a TC mostra com precisão o local de ori‑ Entretanto, em ambos os casos, há maior frequência no sexo gem do tumor e suas relações com estruturas vizinhas.2,5,8-10 feminino.15 Os tumores testiculares cursam com massa sólida indolor, Crianças com TCSR podem apresentar-se clinicamente frequentemente acompanhada de hidrocele.2,5,9,10 com uma das 4 associações de sinais descritas a seguir:15,16 Os tumores da região sacrococcígea determinam efeito • síndrome virilizante: meninas apresentando clitorimegalia, compressivo pélvico ou manifestam-se como massa de cresci‑ pubarca precoce ou hirsutismo, voz grave, hipertrofia muscu‑ mento exofítico nessa região. São geralmente benignos em lar, crescimento acelerado e acne; meninos com pseudopu‑ lactentes menores de 2 meses de idade, porém, apresentam‑ berdade precoce, com os sinais típicos de aumento de tama‑ -se malignos com o avançar da idade. O toque retal revela uma nho do pênis, sem aumento concomitante do volume massa endurecida entre o reto e o sacro.2,9 testicular, crescimento acelerado, hipertrofia muscular; Os tumores de localização intratorácica têm apresentação • síndrome de Cushing: obesidade centrípeta, fácies de “lua clínica relacionada à compressão traqueobrônquica, incluindo cheia”, giba, pletora, retardo do crescimento, hipertensão ar‑ tosse, dispneia, dor torácica e até mesmo a síndrome da com‑ terial, hipotrofia muscular, acne, abdome proeminente; pressão da veia cava superior. A radiografia simples de tórax • forma mista: combinação de sinais clínicos de virilização e demonstra massa mediastinal anterior, e o diagnóstico é defi‑ síndrome de Cushing. Pode ocorrer também associação com nido por biópsia do tumor primário ou de um linfonodo supra‑ hiperaldosteronismo;
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• forma não funcionante: na ausência de manifestações clíni‑ cas ou laboratoriais de aumento de produção hormonal adre‑ nocortical. Essa forma de apresentação é mais comum no adulto, sendo muito rara (< 5%) na criança. Algumas síndromes genéticas predispõem ao desenvolvimen‑ to de TCSR e estão relacionadas na Tabela 3.17 No entanto, nos pacientes dos estados do Paraná, de Santa Catarina e de São Paulo, o TCSR ocorre, na grande maioria das vezes, sem associação a essas síndromes. Após estabelecida a hipótese clínica, o pediatra pode solici‑ tar a avaliação das concentrações séricas de DHEA-S (sulfato de deidroepiandrosterona), cortisol, testosterona, além de ul‑ trassonografia abdominal ou TC/RM de abdome, desde que disponíveis com agilidade. Caso não seja possível realizar es‑ ses exames com presteza, é aconselhável encaminhar para serviço de oncologia pediátrica. Uma vez detectada massa tu‑ moral, o tratamento a ser instituído é a cirurgia. Quimiotera‑ pia adjuvante pode ser empregada nos casos em que não é possível a ressecção total do tumor ou se houver doença me‑ tastática.15,16 Além do tratamento oncológico, é fundamental a participação dos profissionais de endocrinologia pediátrica. Diferentes combinações de quimioterápicos, associadas ou não ao uso de mitotano, têm sido utilizadas. O uso adequado do mitotano deve ser monitorado com determinações séricas frequentes para atingir a concentração terapêutica mínima e não tóxica. Os efeitos colaterais secundários ao uso do mitota‑ no são frequentes e incluem náuseas, vômitos, diarreia e su‑ pressão da suprarrenal contralateral. Também podem ocorrer
sintomas neurológicos como letargia, sonolência, mudança de humor e, mais raramente, coma. Com frequência, há falta de adesão, por intolerância gástrica. Pacientes em quimioterapia apresentam, frequentemente, vômitos secundários aos citos‑ táticos, acompanhados ou não de dor abdominal. Essas mani‑ festações clínicas podem dificultar o diagnóstico de crise de insuficiência suprarrenal, comum nos pacientes que estão em uso de mitotano. Assim, as crianças tratadas com quimiotera‑ pia incluindo cisplatina, doxorrubicina, etoposídeo, que po‑ dem provocar vômitos em até 48 horas ou mais após adminis‑ tração, devem receber adequada terapia antiemética e reposição endovenosa de corticosteroide durante esse período, além de rigoroso controle dos níveis de pressão arterial, para detectar precocemente hipotensão.15,16 É muito importante que se faça o diagnóstico precoce, pois quanto menor o tumor e se localizado, maiores são as chances de cura. A Tabela 4 apresenta a sobrevida dos pacientes com TCSR de acordo com o estadiamento clínico.15 Retinoblastoma É a neoplasia maligna intraocular mais comum da criança, ocorrendo em cerca de 1 para cada 20.000 nascidos vivos.18,19 A incidência anual, nos EUA, é de 3,58/milhão de crianças até a idade de 15 anos.2,18 Esse tumor pode comprometer somente um olho (unilate‑ ral) ou ambos (bilateral). Em países desenvolvidos, a doença unilateral é diagnosticada durante o 2º ou 3º ano de vida, en‑ quanto a bilateral se manifesta mais precocemente, sendo
Tabela 3 Síndromes genéticas que predispõem aos tumores de córtex suprarrenal Síndromes
Manifestações clínicas
Defeitos moleculares
Beckwith-Wiedemann
Macrossomia, macroglossia, onfalocele, visceromegalia, hemi-hipertrofia, hipoglicemia neonatal e vários tumores (nefroblastoma, TCSR, neuroblastoma e hepatoblastoma)
Perda alélica ou imprinting da região cromossômica 11p15 (genes H19, p57kip2 e IGF-II)
Li-Fraumeni
Suscetibilidade familiar a vários cânceres (mama, TCSR, cérebro, leucemia, sarcomas)
Mutação germinativa do p53
McCune-Albright
Displasia fibrosa poliostótica, manchas “café com leite”, puberdade precoce, tumores endócrinos
Mosaicismo para mutação ativadora do gene GNAS1
Complexo de Carney
Doença adrenocortical primária pigmentada, schwannomas, mixomas, lentigo
Mutação no lócus 2p16
Neoplasia endócrina múltipla tipo 1
Hiperparatireoidismo, tumor duodenal pancreático, tumores hipofisários
Mutação germinativa do gene menin
TCSR: tumor do córtex suprarrenal. Fonte: traduzido de Gicquel et al., 2000.17
Tabela 4 Classificação do tumor do córtex suprarrenal em crianças, de acordo com o estádio ao diagnóstico e a sobrevida aos 5 anos Estádio
Descrição
Sobrevida
I
Tumor com menos de 200 g e que tenha sido totalmente retirado por cirurgia; e ausência de metástases
91,1%
II
Tumor com mais de 200 g e que tenha sido totalmente retirado por cirurgia; e ausência de metástases
III
Tumor residual* ou que não pode ser ressecado
-
IV
Metástase
-
52,7%
*Tumor residual: presença de tecido neoplásico microscópico após a ressecção cirúrgica. Fonte: Michalkiewicz et al., 2004.15
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diagnosticada no 1º ano. Apresentação após os 5 anos de idade é rara.18-20 A apresentação mais comum é a do reflexo ocular branco, ou sinal do “olho do gato”. Seguem-se, em frequência, o estra‑ bismo, o eritema conjuntival e a diminuição da acuidade vi‑ sual. Tumores localizados próximo à mácula podem ser visua‑ lizados mais precocemente que aqueles localizados na periferia. Menos comumente, o retinoblastoma pode se mani‑ festar por celulite orbitária, dilatação unilateral da pupila, he‑ terocromia, nistagmo e atraso de crescimento.21 Embora a maioria das crianças com retinoblastoma tenha in‑ teligência normal, até 5% podem apresentar retardo mental.21 Com frequência, o tumor é inicialmente identificado pelos pais, que consultam então o oftalmologista. Fotografias feitas com flash podem salientar a mancha branca no olho, facilitan‑ do o diagnóstico. O pediatra deve estar atento para pesquisar o reflexo do “olho do gato” em consultas de rotina. O tumor pode se estender além do globo ocular, através do nervo óptico, para o espaço subaracnóideo e para o cérebro. Por via hematogênica, dá metástases para ossos, medula ós‑ sea e fígado. Linfonodos regionais também podem ser com‑ prometidos.2,21 O retinoblastoma comporta-se como herança autossômica dominante, com penetrância incompleta. Todos os tumores bilaterais são hereditários (30%) e 15% dos casos têm doença unilateral (70% do total). Em somente 12% dos pacientes, há história familiar positiva para retinoblastoma.20 Segundo Knudson, em nível gênico, é preciso que haja duas mutações para se desenvolver o tumor. Essa teoria é co‑ nhecida como “two hit mutation”, ou seja, mutação em dois eventos. No caso dos tumores bilaterais, a primeira mutação ocorre na célula germinativa, e a segunda, na célula somática. Nos tumores esporádicos, ou seja, não hereditários, as duas mutações ocorrem na célula somática. Por esse motivo, os tu‑ mores bilaterais costumam se apresentar no 1º ano de vida e com múltiplos focos, enquanto os esporádicos são únicos e aparecem mais tardiamente.2,20 O diagnóstico deve ser feito por oftalmologistas experien‑ tes nesse tumor, com base nos achados do exame oftalmológi‑ co. Ele deve ser realizado sob anestesia geral, com as pupilas dilatadas e o uso de oftalmoscopia indireta, que permite visão ampla de toda a retina. Calcificação intratumoral é um achado característico do retinoblastoma. Ecografia ocular permite a análise das características do tumor e seu tamanho. TC é utili‑ zada para estadiamento. Análise do líquido cefalorraquidiano (LCR) e da medula óssea, quando pertinente, complementa a avaliação da extensão da doença.2 Quanto aos diagnósticos diferenciais, para os tumores uni‑ laterais, deve-se considerar a possibilidade de hamartomas astrocíticos (vistos em esclerose tuberosa) e granuloma por Toxocara canis. Quando ocorre descolamento de retina, o diagnóstico diferencial inclui a persistência vítrea primária hi‑ perplásica, a forma avançada de doença de Coats e a retinopa‑ tia da prematuridade.8 O tratamento inclui diferentes modalidades, como enu‑ cleação, radioterapia externa, crioterapia, fotocoagulação (la-
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ser), placas radioativas localizadas e quimioterapia sistêmica. A enucleação está indicada quando há perda de visão com pre‑ sença de tumor ativo, glaucoma secundário ao tumor e na fal‑ ta de resposta às outras formas de tratamento.8 A complexidade do tratamento do retinoblastoma exige a participação conjunta do oftalmologista, do oncologista pe‑ diátrico e do radioterapeuta, lembrando que o pediatra é parte fundamental do sucesso terapêutico, cabendo a ele o diagnós‑ tico precoce. Aconselhamento genético deve ser feito, salientando-se que os irmãos devem ser examinados logo após o nascimento e pe‑ riodicamente no período de maior risco de aparecimento do tu‑ mor, em geral até 5 anos de idade. A Tabela 5 apresenta o risco para ocorrência de retinoblastoma nas crianças subsequentes.22 Quarenta por cento das crianças com retinoblastoma here‑ ditário apresentam risco de desenvolver segunda neoplasia não ocular até a 4ª década da vida. A mais comum é o osteos‑ sarcoma, que ocorre com incidência 200 a 500 vezes maior do que o esperado para a população normal. Outras neoplasias sarcomatosas também têm sido encontradas, como fibrossar‑ coma, angiossarcoma, rabdomiossarcoma, além de carcinoma de células escamosas, histiocitoma fibroso, neuroblastoma e meningioma.2,11 O prognóstico depende essencialmente do estádio em que é feito o diagnóstico. Assim, tumores intraoculares em estádio inicial são curáveis em mais de 90% dos casos, grande parte com preservação da visão. Tumores com invasão de SNC rara‑ mente são curáveis e, mesmo assim, à custa de tratamento quimioterápico muito agressivo.2,21 Tumores de partes moles Os tumores de partes moles na criança constituem um grupo heterogêneo de doenças, frequentemente malignas e de ori‑ gem mesenquimal, ou de seus derivados (músculos, tecidos conectivos, fibroso e adiposo, tecidos de suporte e vascular).2,10 Nos EUA, a incidência anual dos sarcomas de partes moles é de 11 por milhão de crianças e adolescentes com idade infe‑ rior a 20 anos, representando 7,4% das malignidades primá‑ rias para essa faixa etária.2,11 Tabela 5 Risco de retinoblastoma para as crianças subsequentes Pais x x x -
Irmãos Nº 1 Nº 2
Descendente 50% 50% 50% 15% 6% 50% 50% <0,5%
= retinoblastoma bilateral; = retinoblastoma unilateral; x x = retinoblastoma unifocal; x = retinoblastoma multifocal; = olho normal; - = criança não afetada, filha de sobrevivente de retinoblastoma. Considerar os pais e/ou crianças como normais desde que tenham sido examinados e não haja presença de regressão espontânea ou retinoma no fundo de olho. Fonte: traduzida de Sinniah e Meadows, 1992.21
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Os sarcomas de partes moles apresentam incidência dis‑ cretamente mais elevada no sexo masculino e na etnia negra. Estão associados com distintas alterações cromossômicas, contrastando, assim, com a raridade de translocações obser‑ vadas nos adultos.9 O rabdomiossarcoma (RMS) é originário da musculatura estriada e representa o mais frequente sarcoma entre crianças e adolescentes até 14 anos de idade. Correspondem a aproxi‑ madamente 5% de todos os casos de câncer em pacientes me‑ nores de 15 anos e cerca de dois terços dos casos ocorrem em crianças até os 6 anos de idade. Outros tipos de sarcomas são raros e apresentam maior incidência nos adolescentes.9 Histologicamente, o RMS pode ser classificado em embrio‑ nário, alveolar, indiferenciado e pleomórfico. Os dois princi‑ pais subtipos, embrionário e alveolar, apresentam alterações moleculares distintas que atualmente estão sendo utilizadas para diagnóstico e seguimento da doença.2,9 O subtipo embrionário é o mais frequente em crianças, cor‑ respondendo a cerca de 60 a 70% dos casos. Geralmente, loca‑ liza-se na região da cabeça e do pescoço, no trato geniturinário ou no paratesticular.9,22 O subtipo alveolar corresponde a 20% de todos os RMS. É mais frequente em adolescentes e geralmente acomete as ex‑ tremidades, o tronco e o períneo.2,9,10 Os subtipos pleomórfico e indiferenciado são raros, corres‑ pondendo a cerca de 5% dos casos.9 As manifestações clínicas variam de acordo com a localiza‑ ção do tumor primário e com a presença ou ausência de me‑ tástases.2,9,10 Os tumores de cabeça e pescoço podem assestar-se em ór‑ bita, região oral, nasofaringe, seios paranasais, ouvido médio e região cervical. Podem acometer o SNC por invasão direta, causando paralisia dos nervos cranianos, sintomas menín‑ geos e irregularidade respiratória, quando invadem o tronco cerebral.9,10 Os tumores localizados no tronco e nas extremidades são mais frequentes em adolescentes e ocorrem mais nas porções proximais dos membros inferiores.9,10 Queixas de hematúria, sangramento vaginal, massas poli‑ poides exteriorizadas na vagina ou uretra, obstrução urinária, obstipação intestinal e a presença de massa testicular ou para‑ testicular devem levantar a suspeita diagnóstica de sarcoma em aparelho geniturinário. Os sarcomas de partes moles po‑ dem também se localizar no abdome, e a sintomatologia de‑ pende do local primário do tumor. Outras localizações são comprometidas com menos frequência.9,22 As metástases ocorrem com maior frequência para pulmão, osso e medula óssea. A invasão do SNC pode ser observada nos tumores de cabeça e pescoço.2,9,10 Considerando que a presença de tumoração local é a mani‑ festação mais frequente da doença, é importante o pediatra enfatizar o monitoramento de qualquer tumoração em partes moles e indicar sua ressecção completa em caso de dúvidas em relação ao diagnóstico. O diagnóstico é realizado pela história clínica, exame físico minucioso, exames de imagem, biópsia ou ressecção do tumor
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e pelo estudo anatomopatológico e/ou imuno-histoquímico. A pesquisa de translocação no tecido tumoral auxilia na esco‑ lha do esquema de quimioterapia. Outros exames laborato‑ riais, como hemograma, bioquímica, mielograma e/ou bióp‑ sia de medula óssea, complementam o estadiamento clínico.2,9 A avaliação diagnóstica tem por objetivo definir a extensão da doença para o planejamento adequado da abordagem terapêutica multidisciplinar, de acordo com o estadiamento clínico.1,2 A cirurgia, quando possível, é o tratamento inicial de esco‑ lha e deve ser realizada por meio da ressecção tridimensional com margem macroscópica mínima de 1 a 2 cm. A quimiotera‑ pia sistêmica deve ser realizada de acordo com o grau do tu‑ mor, visando à citorredução primária e à erradicação das me‑ tástases.10 A radioterapia está indicada para pacientes com tumor residual micro ou macroscópico.9,10,22 Certas anomalias congênitas e condições genéticas, como a síndrome de Li-Fraumeni e a neurofibromatose tipo I, são os mais fortes fatores de risco conhecidos para o desenvolvimen‑ to do RMS, apesar de elas explicarem somente pequena por‑ centagem dos casos.2,9 Os fatores prognósticos dos tumores de partes moles in‑ cluem a presença ou ausência de metástases a distância, a lo‑ calização primária, a ressecabilidade cirúrgica, a histologia, a idade do paciente ao diagnóstico e a resposta ao tratamento (mais importante variável prognóstica).2,9 Nos EUA, os casos de RMS diagnosticados no período de 1985-1994 apresentaram taxa de 64% de sobrevida em 5 anos. Nesse estudo, as crianças mais jovens tiveram maior taxa de sobrevida que as mais velhas e que os adolescentes. O prog‑ nóstico também foi mais favorável para as crianças com RMS embrionário em relação àquelas com RMS alveolar.2,9 Desafios O diagnóstico precoce das neoplasias da infância e da adoles‑ cência está diretamente relacionado à adequada investigação clínica realizada por pediatras, clínicos e cirurgiões, partindo do conhecimento epidemiológico, realizando anamnese, exa‑ me físico minucioso e solicitando exames complementares básicos. Diante da suspeita ou do diagnóstico já confirmado, o especialista deve ser imediatamente acionado, proporcionan‑ do intervenção imediata, o que contribui para resultados posi‑ tivos no controle da doença. Com igual importância, o conhecimento do perfil genético para cada criança com câncer vem a contribuir para um me‑ lhor manejo clínico e para a instituição de ensaios clínicos pro‑ missores com a introdução da nova era da medicina molecular individualizada. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que o diagnóstico de neoplasia maligna em crianças é raro e que o diagnóstico precoce tem impacto positivo para o prognóstico. • Compreender que o prognóstico da doença maligna na infância depende primariamente do tipo do tumor, da extensão da doença ao diagnóstico e da rápida resposta ao tratamento.
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Tumores Sólidos •
• Saber que a maioria dos tumores na criança e no adolescente é passível de cura, desde que o diagnóstico seja precoce. • Conhecer os diferentes tipos histológicos da doença de acordo com a idade e o sítio primário. • Reconhecer a relevância da participação do pediatra no diagnóstico precoce das neoplasias da infância e da adolescência e compreender que o prognóstico está diretamente relacionado à adequada investigação clínica e ao encaminhamento para centro de referência para tratamento adequado e rapidamente instituído.
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CAPÍTULO 7
HISTIOCITOSE DE CÉLULAS DE LANGERHANS Fernando de Almeida Werneck Andréa Gadelha Nóbrega Lins Maria Zélia Fernandes
Introdução A histiocitose de células de Langerhans (HCL é uma doença causada pela proliferação clonal de células CD 1a+/CD207+, que é caracterizada por um espectro de variados graus de en‑ volvimento e disfunção orgânica. A HCL tem origem nas célu‑ las dendríticas de precursores mieloides. A ativação da proteí‑ na quinase mitogênica ativada (MAPK) é uma característica universal das células da HCL CD1a+ /CD207+ (langerina+). A histiocitose pode se manifestar de várias formas: em al‑ guns casos, evolui com remissão espontânea, no entanto, com envolvimento multissistêmico; o tratamento mais comum é feito com corticosteroides e agentes quimioterápicos.2-4 Atualmente, a histiocitose das células de Langerhans (HCL) é considerada um distúrbio clonal, uma proliferação de células dendríticas (células de Langerhans patológicas), linfó‑ citos, eosinófilos e histiócitos normais mediado por citocinas, ou um processo reativo consequente a uma infecção viral. Pode ocorrer em qualquer idade, com pico de incidência em indivíduos entre 1 e 3 anos de idade.4,5 A incidência é de 2 a 5 por milhão com predileção pelo sexo masculino (1,5:1).6 Histórico Paul Langerhans descreveu pela primeira vez, em 1868, as cé‑ lulas epidérmicas com múltiplos pseudópodos, que passaram a ser chamadas de células de Langerhans. Por causa da etiologia desconhecida, a HCL tinha sido cha‑ mada por Liechstenstein, em 1953, de histiocitose X (HX), unificando o termo e agrupando três doenças distintas: doen‑ ça de Hand-Schüller-Christian, doença de Letterer-Siwe (Fi‑ gura 1) e granuloma eosinofílico.7 Em 1973, Christian Nezelof introduziu, de forma definitiva, o termo “histiocitose de célu‑ las de Langerhans”, após o uso da microscopia eletrônica, des‑ cobrindo grânulos de Birbeck nas células da HX, que eram idênticos aos anteriormente descritos em células de Lan‑ gerhans epidérmicas e, portanto, sugeriu reclassificá-las como HCL.1 Sabe-se, atualmente, que os histiócitos da HCL origi‑
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nam-se a partir das células dendríticas mieloides, e não de cé‑ lulas de Langerhans da pele.1 Em 1985, na Filadélfia, foi fundada a Histiocyte Society, que recomenda o uso da expressão histiocitose de células de Langerhans para todas as formas conhecidas da doença. Em 1987, a Histiocyte Society dividiu a síndrome histiocítica em três classes (Tabela 1).5 Mais recentemente, um esquema de classificação foi atualizado pela Histiocyte Society, dividindo as histiocitoses em quatro classes (Tabela 2).2
Figura 1 Doença de Letterer-Siwe.
Tabela 1 Classificação antiga 1953: Histiocitose X 1973: Histiocitose de Langerhans
Hand-Schüller-Christian Doença de Letterer-Siwe Granuloma eosinofílico
1987: Classificação da síndrome histiocítica
Classe I: histiocitose de Langerhans Classe II: histiocitose não Langerhans Classe III: histiocitose maligna
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Histiocitose de Células de Langerhans •
Tabela 2 Classificação atual das histiocitoses Distúrbios de células dendríticas
Histiocitose de células de Langerhans (HCL), secundária a processos dendríticos Xantogranuloma juvenil Histiocitomas solitários com um fenótipo dendrítico
Distúrbios relacionados a macrófagos
Síndromes hematofagocíticas primárias e secundárias Doença de Rosai-Dorfman Histiocitoma solitário com um fenótipo macrofágico
Distúrbios histiocíticos malignos
Leucemias monocíticas (LMA M4 e LMA M5) Tumor extramedular de células monocíticas
Sarcoma histiocítico
Relacionado a células dendríticas e macrofágicas
Considerações epidemiológicas Os dados epidemiológicos da HCL são bastante escassos. Re‑ centemente, reportou-se uma incidência de 2,6 a 8,9 casos por milhão de crianças por ano na Inglaterra, França e Suécia.8-10 A HCL pode estar presente em qualquer idade, desde o período neonatal até a senilidade.3,7 O pico de incidência ocorre na fai‑ xa etária de 1 a 4 anos,3 sendo considerada uma doença rara em adultos. A forma multissistêmica ocorre mais frequentemente em lactentes: 60 a 70% dos casos são diagnosticados em menores de 2 anos de idade; acometimento ósseo unifocal tende a ocor‑ rer em maiores de 2 anos de idade, e 50% dos casos ocorrem antes dos 5 anos.11 Ambas as formas atingem igualmente am‑ bos os sexos.3 Considerações fisiopatológicas As células de Langerhans são um tipo de célula dendrítica, sendo assim denominada em função de sua capacidade para formar longas extensões citoplasmáticas, por meio das quais estabelecem um contato íntimo umas com as outras. Normal‑ mente, não têm atividade fagocítica; sua principal função é apresentar antígenos aos linfócitos T e B. Esse grupo celular é composto pelos seguintes tipos: células de Langerhans, célu‑ las dendríticas linfoides, células reticulares interdigitantes e células dendríticas reticulares. Embora a imunorreatividade da célula de Langerhans seja bem definida, pouco se sabe so‑ bre suas propriedades funcionais dinâmicas. Há uma grande especulação no meio científico quanto à na‑ tureza da doença: • doença inflamatória: os dados indicativos nesta direção são processo reacional; acúmulo de células imune nas lesões; ní‑ veis elevados de citocinas; resposta ao tratamento imunossu‑ pressor; • doença infeciosa: sequência de DNA de poliomavírus detecta‑ do em sangue de pacientes com HCL; infecções virais ativas pioram os sintomas e a evolução da HCL; • doença neoplásica: doença clonal. Entretanto, contra essa possibilidade, tem-se que o curso de uma neoplasia verdadei‑ ra é invariavelmente progressivo, enquanto na histiocitose é possível encontrar remissão espontânea.12 Na histopatologia,
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os achados de neoplasia são geralmente homogêneos, e na histiocitose, heterogêneos.12
Considerações diagnósticas As manifestações clínicas variam de uma lesão única benigna até um quadro disseminado e fatal, por se tratar de doença sis‑ têmica. Os sinais e sintomas podem variar de acordo com o lo‑ cal acometido.14 Os achados clínicos são bastante variáveis, daí a importância de conhecê-los. O prognóstico também é variável, sendo o comprometi‑ mento funcional de órgãos vitais como medula óssea e fígado os fatores associados à pior evolução. O tratamento das formas sistêmicas é baseado na quimio‑ terapia. Já as formas localizadas podem ser conduzidas com terapêutica mais simples. Não há evidências inequívocas de que a radioterapia seja benéfica para o tratamento das lesões de sistema nervoso central (SNC). O diagnóstico definitivo é feito por meio de exame histopa‑ tológico da lesão, sendo mandatória a utilização de técnica imuno-histoquímica, com positividade dos marcadores CD1a e CD207, que corresponde à presença dos grânulos de Birbeck à microscopia eletrônica.6 Apresentação clínica Nos ossos, a apresentação clínica mais frequente é a falha ós‑ sea (lesões osteolíticas) ou abaulamento em determinada su‑ perfície óssea, que pode ser dolorosa ou não, mais comum em crânio3 (Figura 2), vértebras (Figura 3), ossos longos (Figura 4 e 5) e pelve. Quando há acometimento orbitário, pode haver proptose.11 A radiografia simples é um bom auxiliar no diagnós‑ tico das lesões ósseas. Na coluna, o processo lítico pode resul‑ tar em compressão ou colapso do corpo vertebral.3,11 No ouvido médio, causa destruição dos ossículos, podendo ocorrer otor‑ reia,14 e na mandíbula, há dor e tumefação, acompanhadas de gengivas hipertrofiadas com perda dos dentes ou queda fácil deles. No lactente, a pele é um dos locais mais acometidos. Mui‑ tas vezes, uma dermatite seborreica resistente ao tratamento
Figura 2 Lesões líticas típicas de granuloma eosinofílico.
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Figura 3 Vértebra plana.
fibrose se dá pela destruição do tecido pulmonar.7 A tomogra‑ fia computadorizada (TC) de tórax é necessária para identificar as lesões cístico-nodulares (Figura 6). A presença das células de Langerhans na análise histopatológica do lavado broncoal‑ veolar pode definir o diagnóstico.3 O envolvimento do fígado e do baço é comum nas formas graves com doença disseminada e pode indicar mau prognósti‑ co. A presença de ascite pode ser um sinal de disfunção hepáti‑ ca acompanhada de icterícia e alteração das provas funcionais hepáticas. A colangite esclerosante secundária está bem des‑ crita em pacientes com HCL que tenham alteração hepática.15 O comprometimento do trato gastrointestinal pode se ma‑ nifestar com distúrbios de má absorção com perda proteica enteropática; o diagnóstico pode ser confirmado por biópsia da mucosa intestinal por endoscopia.3 Classicamente, o comprometimento do sistema endócrino caracteriza-se pela presença do diabete insípido (que, algu‑ mas vezes, é diagnosticado antes da histiocitose), juntamente com o achado da lesão lítica (principalmente em crânio) e da exoftalmia, identificando a doença de Hand-Schüller-Chris‑ tian (Figura 7). Pode haver deficiência do hormônio do cresci‑ mento, com ocorrência de nanismo, hipogonadismo e atraso de puberdade.
Figura 4 Lesão lítica tipo insuflante.
Figura 6 Envolvimento pulmonar na doença de Letterer‑ -Siwe. Figura 5 A mesma lesão lítica após 1 mês de terapia.
pode ser o caminho para o diagnóstico. Podem ser confundi‑ das também com dermatite das fraldas, quando acometem as regiões inguinais e perianais. Quando atigem o couro cabelu‑ do, podem causar a alopecia.11 Caracteristicamente, há presen‑ ça de rash purpúrico eczematoide com aspecto maculopapulo‑ so, o qual frequentemente descama e ulcera, podendo ser porta de entrada para microrganismos.14 A linfadenite, ou hipertrofia ganglionar, pode ser a única ou inicial manifestação da doença (menos de 10% dos casos), de‑ vendo ser investigada como parte de um diagnóstico diferen‑ cial das linfonodomegalias. A cadeia mais afetada é a cervical. O envolvimento pulmonar, a tosse seca e a dispneia com es‑ forços compõem a apresentação comum da doença. O diag‑ nóstico diferencial com pneumonia é impreciso. A presença de
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Figura 7 Doença de Hand-Schüller-Christian.
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Histiocitose de Células de Langerhans •
O diagnóstico definitivo é feito por meio de exame histopa‑ tológico da lesão, sendo fundamental a utilização de técnica de imuno-histoquímica, que revela a positividade para os marcadores CD1a e o citoplasmático CD207. Aspectos laboratoriais e de imagem A avaliação radiológica deve incluir radiografia de todo o es‑ queleto, que pode demonstrar lesões líticas ou insuflantes, únicas ou múltiplas (Figuras 5 a 7). No tórax, pode haver infil‑ trado intersticial ou micronodular; a imagem de “favo de mel” é característica do comprometimento pulmonar.7,13 Comple‑ tam a investigação diagnóstica a radiografia e a TC de tórax, mesmo que não haja manifestação respiratória. Caso ocorra leucopenia, trombocitopenia ou anemia de causa não justifi‑ cável, recomendam-se hemograma completo, mielograma e/ ou biópsia de medula óssea. Observa-se comprometimento hepático, com alterações de: função hepática, transaminases, fosfatase alcalina, bilirrubinas, proteínas totais e albumina. A avaliação da densidade urinária após teste de privação hídrica por 12 horas é importante para o diagnóstico do diabete insípi‑ do. A presença de esplenomegalia ao exame físico também é considerada um fator de risco. Considerações terapêuticas Atualmente, o tratamento da HCL baseia-se nas orientações da Histiocyte Society, que adota critérios e protocolos, além de instituir uma conduta equiparada entre as instituições que diagnosticam a doença. Apesar de a doença continuar sendo um enigma, o tratamento depende de sua extensão e do nú‑ mero de órgãos comprometidos.3 As drogas mais comumente utilizadas são os corticosteroi‑ des, vinblastina, metotrexato e 6-mercaptopurina. A lesão ós‑ sea única isolada pode ser resolvida com curetagem acompa‑ nhada de biópsia, ou injeção local de corticosteroides. Na última versão do protocolo LCH IV da Sociedade de Histioci‑ tose, chama a atenção a necessidade da rápida intervenção para transplante de medula óssea ou terapia de resgate com elevadas doses de citarabina e cladribina, para casos que não mostram pronta reversão com a terapia convencional.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Definir histiocitose. • Descrever a fisiopatologia e a epidemiologia da doença. • Identificar os sinais e sintomas da doença, bem como os critérios laboratoriais e de imagem para o diagnóstico. • Descrever a classificação da histiocitose. • Trabalhar em colaboração com outros especialistas para auxiliar na terapêutica instituída.
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11. Tabela 3 Classificação das síndromes histiocíticas L – Histiocitose de células de Langerhans
Histiocitose de células indeterminadas; doença de Chester-Erdheim; xantogranuloma disseminado ou extracutâneo
C – Xantogranuloma juvenil cutâneo (JXG)
Xantogranuloma do adulto; retículohistiocitoma solitário; histiocitose benigna cefálica, xantomas disseminatum (XD), histiocitose nodular progressiva, xantogranuloma necrobiótico, retículohistiocitose multicêntrica
R – Doença de Rosai Dorfman (RDD)
Familial, clássica, extranodal, associada a tumor/leucemia, autoimune associada
M – Histiocitose maligna
Células indeterminadas ou histiocíticas ou células dendríticas ou sarcoma de células de Langerhans
H – Linfo-histiocitose hemofagocítica (HLH)
Síndrome de ativação macrofágica
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CAPÍTULO 8
EMERGÊNCIAS ONCOLÓGICAS Denise Bousfield da Silva Maria Lydia Mello de Andréa Andréa Gadelha Nóbrega Lins
Introdução Nas últimas décadas, houve importante incremento na sobre‑ vida dos pacientes com câncer em virtude da utilização de es‑ quemas terapêuticos mais intensivos e eficazes e das melho‑ res terapias de suporte.1-4 A terapia antineoplásica e a própria doença podem ocasio‑ nar eventos adversos, gerando sinais/sintomas que geralmen‑ te não são de domínio dos médicos que não atuam nessa espe‑ cialidade pediátrica. Entretanto, algumas situações clínicas na criança e no adolescente com câncer são consideradas emer‑ gências/urgências e devem ser rapidamente reconhecidas e adequadamente tratadas. As principais emergências/urgências oncológicas são as in‑ fecciosas/inflamatórias, as metabólicas, as hematológicas e as mecânicas, consequentes às lesões que ocupam espaço físi‑ co ou que comprimem estruturas adjacentes.1,3,4 Consideran‑ do a extensão do tema, este capítulo prioriza algumas emer‑ gências/urgências oncológicas mais frequentes e de maior significado clínico para o pediatra, como síndrome da veia cava superior/síndrome mediastinal superior, hiperleucocito‑ se, síndrome de lise tumoral, compressão da medula espinal e as secundárias aos quadros infecciosos. As complicações infecciosas, principalmente em decorrên‑ cia da granulocitopenia, representam a maior causa de morta‑ lidade nessa população. Vários fatores determinam maior vul‑ nerabilidade às infecções nesses pacientes, como doses mais intensas dos antineoplásicos, determinando neutropenia mais profunda e prolongada; uso de dispositivos invasivos; quebra das barreiras de pele e mucosa; desnutrição proteico‑ -calórica; uso de antimicrobianos de amplo espectro nos pa‑ cientes internados; instituição de técnicas mais avançadas de suporte de vida (cateteres intravasculares, cirurgia, nutrição parenteral); além da própria doença de base.1,3,4 Diversos estudos documentaram que o risco para aquisição de infecções foi variável de acordo com o tipo de neoplasia. Nos linfomas, por exemplo, os riscos estavam associados à altera‑ ção da imunidade celular, que, por sua vez, determinava maior
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risco às infecções virais. Nos pacientes com leucemia, cuja neutropenia é mais profunda e prolongada, houve maior pre‑ disposição às infecções bacterianas invasivas. A utilização de cateter venoso central e o transplante de célula-tronco hemato‑ poética (TCTH) também contribuíram para que esses pacien‑ tes fossem mais suscetíveis às infecções.1 Anormalidades qua‑ litativas na função dos polimorfonucleares, consequentes à malignidade de base (em especial as leucemias agudas) ou ao tratamento quimioterápico ou radioterápico, podem também contribuir para o aumento das infecções nesses pacientes.1 Nesse contexto, é importante lembrar que o uso de antimi‑ crobianos de largo espectro nesses indivíduos contribuiu para reduzir significativamente a mortalidade por infecções bacte‑ rianas, no entanto, permitiu a emergência de infecções fúngi‑ cas graves.1,3,4 Síndrome da veia cava superior/síndrome mediastinal superior Representa um conjunto de sinais e sintomas decorrentes de compressão, obstrução ou trombose da veia cava superior. Nos casos em que houver compressão da traqueia, utiliza-se o termo síndrome mediastinal superior. A síndrome da veia cava superior, em geral, coexiste nas crianças com massas me‑ diastinais, compressão traqueal e dificuldade respiratória, sendo então, os termos utilizados como sinônimos.1-4 Na criança, a veia cava superior tem parede fina e baixa pressão intraluminal, além de ser rodeada pelo timo e linfono‑ dos, facilitando, assim, que infecção e/ou tumor nessa área possam comprimir a veia cava superior e determinar redução importante do retorno venoso, deslocamento ou obstrução dos grandes vasos, coração e árvore traqueobrônquica. É im‑ portante lembrar ainda que a traqueia e o brônquio fonte direi‑ to na criança são mais complacentes que no adulto, o que faci‑ lita sua compressão. A aproximação íntima com as estruturas adjacentes, a compressão e o edema combinados diminuem o fluxo na traqueia, bem como o retorno venoso da cabeça, pes‑ coço e parte superior do tórax.1,3,4
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Etiologia A mais comum causa primária da síndrome da veia cava supe‑ rior/síndrome mediastinal superior na faixa etária pediátrica é o câncer, sendo o linfoma não Hodgkin o mais frequente, es‑ pecialmente o linfoma T linfoblástico. Outras neoplasias que podem determinar essas síndromes são doença de Hodgkin, neuroblastoma, tumores de células germinativas, sarcomas, leucemias linfocíticas agudas e câncer de tireoide. A oclusão de cateteres venosos centrais (causa secundária), tumores be‑ nignos, granulomas mediastinais e infecções também podem determinar o aparecimento dessas síndromes.1-4 Sinais e sintomas Os mais frequentes sinais e sintomas dessa síndrome são disp‑ neia, tosse, disfagia, ortopneia e rouquidão. Outros sinais e sintomas que podem ocorrer são ansiedade, edema e pletora de face e pescoço, cefaleia, tontura, letargia, confusão mental, síncope, visão distorcida e dor torácica. Os sintomas são agra‑ vados pela posição supina ou quando o paciente é colocado na posição fetal para punção lombar. Sinais de efusão pleural e pericárdica também podem estar presentes. Em crianças e adolescentes, em comparação com os adultos, os sintomas costumam evoluir rapidamente (em dias).1-4 Diagnóstico1-4 É feito pela história clínica e pelo exame físico, valorizando os sinais e sintomas anteriormente descritos. • Radiografia de tórax: presença de massa em mediastino ante‑ rior e superior. Podem também ser observadas efusões pleu‑ ral e pericárdica. Os pacientes com tumores torácicos maiores que 45% no seu diâmetro transtorácico são mais provavel‑ mente sintomáticos. • Hemograma completo: pode apresentar sinais que sugiram a presença de leucemia ou de linfoma com comprometimento da medula óssea (anemia, trombocitopenia, leucopenia, leu‑ cocitose, neutropenia ou presença de blastos). • Aspirado/biópsia de medula óssea, sob anestesia local: pode revelar a presença de blastos leucêmicos ou a infiltração me‑ dular por outras neoplasias malignas. • Painel bioquímico: elevações séricas da ureia, ácido úrico e desidrogenase lática, sugerindo doença linfoproliferativa. • Alfafetoproteína e gonadotrofina coriônica elevadas, sugerin‑ do tumores de células germinativas. • Tomografia computadorizada (TC): avalia as distorções da anatomia normal e, mais detalhadamente, a extensão da compressão traqueal. • Ecocardiograma: verifica se os sinais estão sendo determina‑ dos pelo tromboembolismo ou pela efusão pericárdica. • Teste de função pulmonar e de avaliação fluxo/volume: em casos pertinentes, avaliam a reserva pulmonar e a resiliência. • Análise microscópica: da efusão pleural ou pericárdica ou dos linfonodos. A biópsia da massa mediastinal para diagnóstico definitivo deve ser realizada, quando necessário. É importan‑ te, no entanto, que o diagnóstico seja realizado pelo procedi‑ mento menos invasivo possível, pela possibilidade de insufi‑ ciência respiratória e cardiovascular, quando se utiliza
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sedação ou anestesia geral. A realização do procedimento sob anestesia geral leva a: diminuição do tônus da musculatura respiratória, aumento do tônus da musculatura abdominal, desaparecimento do movimento caudal do diafragma, relaxa‑ mento da musculatura lisa do brônquio e diminuição do volu‑ me pulmonar. Essas alterações determinam agravamento dos efeitos extrínsecos da compressão da veia cava. É importante também enfatizar que, nesses pacientes, a entubação tra‑ queal pode ser extremamente difícil, agravando a compressão da veia cava e provocando grave (às vezes fatal) instabilidade circulatória. Alguns pacientes não toleram a extubação até que a massa torácica seja reduzida.
Tratamento Quando essa síndrome é determinada por uma doença malig‑ na, algumas vezes, é impossível, no início do quadro clínico, estabelecer o diagnóstico tecidual, e pode ser necessário ini‑ ciar a terapia empírica. Historicamente, o tratamento tradicio‑ nal tem sido a radioterapia (em torno de 200 cGy), conside‑ rando que a maioria dos linfomas é extremamente sensível. Entretanto, a rápida diminuição da massa e do linfonodo pode dificultar ou impossibilitar o diagnóstico tecidual definitivo.1-4 Na criança, o edema traqueal determinado pela radiotera‑ pia pode ocorrer durante horas após o procedimento, prova‑ velmente pela maior compressibilidade das estruturas respira‑ tórias e pela inabilidade de seu lúmen mais estreito em acomodar-se após o edema nas pequenas vias aéreas. Caso os sintomas do paciente piorem por conta do edema das vias aé‑ reas determinado pela radioterapia empírica, pode ser neces‑ sário o uso de metilprednisolona endovenosa, na dose de 1 mg/kg a cada 6 horas. Se o desconforto respiratório evoluir com comprometimento das trocas gasosas (insuficiência res‑ piratória), com hipoxemia e/ou hipercapnia, palidez, cianose, alteração do nível de consciência ou instabilidade hemodinâ‑ mica, devem-se evitar procedimentos mais invasivos que ne‑ cessitem de sedação, optando-se pelo emprego de suporte ventilatório não invasivo, por meio de máscara facial ou nasal. A entubação traqueal pode comprometer ainda mais as trocas gasosas e desencadear alterações hemodinâmicas muitas ve‑ zes letais.1-4 Na suspeita de leucemia ou de massas linfomatosas, o uso de corticoterapia sistêmica ou quimioterapia, incluindo ciclo‑ fosfamida, vincristina e/ou antraciclinas, é atualmente a tera‑ pia padrão e prontamente disponível nos hospitais. Infeliz‑ mente, a quimioterapia também pode determinar alterações nas características histológicas e dificultar a interpretação diagnóstica em 48 horas. Alguns pacientes com síndrome da veia cava superior e síndrome mediastinal superior podem apresentar alteração do estado mental, hiperleucocitose ou in‑ suficiência renal decorrente da síndrome de lise tumoral e de‑ vem ser tratados adequadamente para essas complicações concomitantes.1,3,4 As neoplasias menos responsivas, como teratoma, linfoma de grandes células, neuroblastoma, tumores das células ger‑ minativas ou tumores benignos, podem não responder pron‑ tamente à radioterapia e/ou à quimioterapia, no sentido de
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resgatar o paciente de uma situação emergencial, e necessitar, assim, de ressecção cirúrgica.1,3,4 A criança com essa síndrome deve ser mantida sentada, em decúbito lateral esquerdo, pois esse procedimento diminui o efeito da massa sobre as vias aéreas.4 A infusão endovenosa em membro superior é contraindicada, pelo risco de trombose, flebite e inadequada distribuição dos medicamentos.1,3,4 Caso essa síndrome ocorra em paciente com acesso venoso central, deve ser considerado o diagnóstico de tromboembo‑ lismo venoso extenso. Se não houver contraindicação, o cate‑ ter pode permanecer e a infusão de terapia trombolítica deve ser iniciada. A anticoagulação pode ser realizada com hepari‑ na sistêmica ou com a de baixo peso molecular por via subcu‑ tânea. A heparina de baixo peso molecular tem se tornado a terapia de escolha nas crianças em virtude de seu perfil de se‑ gurança e falta de interação com outros medicamentos. A an‑ ticoagulação deve ser mantida por, no mínimo, 3 meses com a heparina de baixo peso molecular ou com warfarina via oral.1 Hiperleucocitose É definida pela presença de leucócitos no sangue periférico em número superior a 100.000/mm3. No entanto, observa-se que a hiperleucocitose clinicamente significante ocorre quando os leucócitos estão superiores a 200.000/mm3 na leucemia mie‑ loide aguda (LMA) e superiores a 300.000/mm3 na leucemia linfoide aguda (LLA) e na leucemia mieloide crônica (LMC). As crianças que apresentam hiperleucocitose são de risco para distúrbios metabólicos.1-4 Etiologia A hiperleucocitose é observada em 5 a 20% das crianças re‑ cém-diagnosticadas com leucemia. É mais comumente en‑ contrada nos pacientes no 1º ano de vida com LLA e LMA, na fase blástica da LMC, na LLA T derivada com massa mediasti‑ nal e na leucemia com translocações envolvendo 11q23. O au‑ mento da viscosidade sanguínea não aumenta somente pela hiperleucocitose, mas pela interação entre o endotélio lesado e os blastos leucêmicos. Os mieloblastos são células menos deformáveis, de tamanho maior que os linfoblastos e aderem‑ -se mais facilmente ao endotélio vascular.1-3 Sinais e sintomas Muitos pacientes são assintomáticos ao diagnóstico, porém outros apresentam alterações no status mental, cefaleia, visão turva, convulsões, coma, sintomas de acidente vascular cere‑ bral, papiledema, priapismo e dactilite. A leucoestase pulmo‑ nar e a hemorragia pulmonar secundária podem causar disp‑ neia, hipóxia, acidose e cianose.1-4 No paciente com hiperleucocitose, a morte pode ser deter‑ minada por trombose ou hemorragia no sistema nervoso cen‑ tral (SNC), leucoestase pulmonar e pelos distúrbios metabóli‑ cos que acompanham a síndrome de lise tumoral.1-4 Diagnóstico O diagnóstico é inicialmente fundamentado na história clínica e no exame físico minucioso. A avaliação laboratorial deve in‑
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cluir hemograma, desidrogenase lática, eletrólitos, ácido úrico, função renal e coagulograma. A radiografia de tórax pode reve‑ lar a presença de massa mediastinal ou infiltrado intersticial difuso. Outros exames de imagem devem ser solicitados na suspeita de leucoestase no SNC.1-4 Tratamento Embora ainda não haja estudos controlados e randomizados para o tratamento da hiperleucocitose, recomenda-se a utili‑ zação de hidratação endovenosa (3 L/m2/dia), alopurinol (250 a 500 mg/m2/dia, via oral, máximo de 800 mg) ou ura‑ to-oxidase recombinante (0,1 a 0,2 mg/kg/dia, via endoveno‑ sa). A urato-oxidase converte o ácido úrico em alantoína, um produto mais solúvel na urina do que o ácido úrico. Os distúr‑ bios metabólicos, acidobásico e a função renal devem ser constantemente monitorados e corrigidos.1,3 Os pacientes com contagem de plaquetas inferiores a 20.000/mm3 devem receber concentrado de plaquetas para prevenir o aparecimento de hemorragia cerebral.1-4 A administração de concentrado de hemácias deve ser evi‑ tada se o paciente estiver hemodinamicamente estável, em ra‑ zão do aumento da viscosidade sanguínea.1-4 A leucaférese e a exsanguinotransfusão podem rapidamente baixar o número de leucócitos e melhorar a coagulopatia.1-4 Entretanto, o papel desses procedimentos na prevenção e no manejo das compli‑ cações relacionadas à leucostase são ainda questionáveis.2 As limitações associadas à leucaférese incluem a necessidade de anticoagulação, a dificuldade de acesso em crianças pequenas e a indisponibilidade do procedimento em muitos hospitais.1 Considerando que a quimioterapia é a abordagem mais efe‑ tiva para o tratamento da hiperleucocitose, o tratamento qui‑ mioterápico sistêmico deve ser iniciado logo que as anormali‑ dades metabólicas e a função renal sejam corrigidas.2 Síndrome de lise tumoral A síndrome de lise tumoral consiste de anormalidades metabóli‑ cas resultantes da morte das células tumorais e da liberação de seu conteúdo na circulação. A tríade clássica dessa síndrome in‑ clui hiperuricemia, hiperfosfatemia e hiperpotassemia. A hipo‑ calcemia pode ser secundária à formação de fosfato de cálcio, ad‑ vindo da hiperfosfatemia. As manifestações dessa síndrome geralmente aparecem 12 a 72 horas após o início da terapia citotó‑ xica, embora possam ocorrer antes do início do tratamento. É fun‑ damental seu reconhecimento, pois é uma condição prevenível, que ocorre rapidamente e que pode levar o paciente a óbito.1-7 Etiologia Esta síndrome ocorre principalmente em pacientes com tumores de alta fração de proliferação, naqueles com massas volumosas ou muito disseminadas e nos tumores sensíveis a terapia citotóxi‑ ca. É mais comumente descrita nos pacientes com linfoma de Burkitt, linfoma linfoblástico, LLA (principalmente T-derivada com hiperleucocitose) e naqueles com doença extramedular ex‑ tensa, embora possa também ser observada em outras doenças neoplásicas. A síndrome de lise tumoral é rara na LMA e na LMC, apesar do número de leucócitos elevados.1-4
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Sinais e sintomas Resultam da liberação na circulação de produtos da degrada‑ ção citoplasmática e nuclear das células malignas. O potássio, principal íon intracelular, aumenta no soro, e sua excreção en‑ contra-se prejudicada pela disfunção renal. O rápido aumento do potássio pode conduzir a arritmias e parada cardíaca. Os ácidos nucleicos são metabolizados em ácido úrico, pouco so‑ lúveis em meio ácido, o que facilita seu depósito nos túbulos coletores renais, podendo levar a insuficiência renal.1-7 Os linfoblastos são ricos em fosfato, e seus níveis elevados no soro são também exacerbados pela acidose metabólica. Quando a relação cálcio/fósforo for maior que 60, o fosfato de cálcio pre‑ cipita na microcirculação, causando hipocalcemia secundária. A precipitação dos cristais de ácido úrico e de fosfato de cálcio dentro dos túbulos renais e da microcirculação leva à insuficiên‑ cia renal aguda. O risco de falência renal é maior quando há infil‑ tração do tumor no parênquima renal e no caso de compressão renal por obstrução venosa ou ureteral.1-6 Os sinais e sintomas da síndrome de lise tumoral incluem dor abdominal, sensação de plenitude, dor lombar, náusea, vômitos, diarreia, desidratação, tetania, insuficiência cardíaca, disritmias cardíacas, letargia, hematúria, convulsões, altera‑ ções do nível de consciência e possível morte súbita.1-7 Diagnóstico O diagnóstico é inicialmente realizado pela história clínica e pelo exame físico, com especial atenção na pressão arterial, no ritmo e na frequência cardíaca, presença de massa abdominal e de efusões pleurais, além da presença de ascite, sinais de compressão de veia cava superior ou de síndrome mediastinal superior e sinais de anoxia cerebral.1-4 Os exames complementares devem incluir a solicitação de hemograma, desidrogenase lática, eletrólitos, ácido úrico, fun‑ ção renal, albumina sérica e parcial de urina. Dependendo do quadro clínico e laboratorial, devem ser solicitados também eletrocardiograma, ecocardiograma, ultrassonografia e TC.1-4,7 O encontro da tríade clássica da síndrome, com ou sem al‑ terações renais, fecha o diagnóstico.1 Tratamento O melhor tratamento é a prevenção, utilizando hidratação vi‑ gorosa e medicamentos que reduzam o nível de ácido úrico, além da correção dos distúrbios metabólicos associados. A hi‑ dratação é provavelmente o fator mais importante na preven‑ ção da síndrome de lise tumoral, determinando aumento do fluxo urinário e da taxa de filtração glomerular. Os pacientes devem receber hidratação de 3 L/m2/dia, exceto nos casos em que haja evidência de insuficiência renal.1-7 Os pacientes com alto risco para o desenvolvimento dessa síndrome devem ser monitorados clínica e laboratorialmente 4 a 6 horas após o início da quimioterapia.1-6 Coiffier et al.5 propõem intervenção terapêutica de acordo com os fatores de risco ao diagnóstico. O paciente considerado de baixo risco deve ser avaliado clinicamente e monitorado constantemente para verificar sinais/sintomas de síndrome de lise tumoral. Aqueles considerados de risco intermediário
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devem receber hidratação e manejo inicial com alopurinol. No entanto, caso o paciente desenvolva hiperuricemia, a terapia com urato-oxidase recombinante deve ser iniciada. A hidrata‑ ção e a utilização da urato-oxidase recombinante é recomen‑ dada para aqueles pacientes que apresentam hiperuricemia prévia ao tratamento, para os pacientes considerados de alto risco (linfoma de Burkitt, linfoma linfoblástico, LLA B precur‑ sora, LLA com leucometria ≥ 100.000/mm3, leucemia não linfocítica aguda com leucometria ≥ 50.000/mm3) e para aqueles pacientes de risco intermediário que desenvolvem hi‑ peruricemia apesar da hidratação e do uso de alopurinol. O ris‑ co intermediário inclui os pacientes com linfoma B precursor de células grandes e difusas, LLA com leucometria entre 50.000 e 100.000/mm3, leucemia não linfocítica aguda com leucometria entre 10.000 e 50.000/mm3 e outras malignida‑ des que possuam proliferação importante e resposta rápida esperada ao tratamento.5 Embora o uso de bicarbonato de sódio para alcalinizar a urina seja historicamente recomendado, não há clara evidên‑ cia demonstrando seu benefício. Alguns autores recomenda‑ vam a alcalinização para manter o pH urinário entre 7 e 7,5, fundamentado no seu efeito protetor para as células do túbulo renal em relação ao ácido úrico e a hemoglobinúria. A alcalini‑ zação excessiva (pH urinário > 7,5), no entanto, pode levar à piora da nefropatia, pois, no pH > 7,5, pode ocorrer formação de cálculos de xantina e hipoxantina, e no pH de 8 ou mais, o fosfato de cálcio pode cristalizar nos rins. Portanto, os fatores mais importantes para prevenção dessa síndrome são a hidra‑ tação vigorosa e a utilização de medicamentos que reduzam o nível de ácido úrico.5,6 A função renal e as alterações metabólicas devem ser moni‑ toradas e a frequência de sua solicitação depende dos fatores de risco que o paciente apresente. O volume urinário deve ser mantido acima de 80 a 100 mL/m2/hora e a densidade uriná‑ ria não deve ser maior que 1.010.1 O uso de diuréticos nos pacientes com baixo débito uriná‑ rio deve ser criteriosamente indicado. Muitos pacientes po‑ dem apresentar alterações hemodinâmicas com hipovolemia que deve ser apropriadamente corrigida.1 Caso o fluxo urinário diminua para menos de 60 mL/m2/ hora ou < 1 mL/kg/hora, a furosemida pode ser utilizada na dose de 0,5 a 1 mg/kg, por via endovenosa. Intervenções adicio‑ nais (carbonato de cálcio, kayexalato, etc.) devem ser iniciadas caso as anormalidades metabólicas piorem, no sentido de evitar a diálise.1 Caso o fluxo urinário permaneça baixo ou o paciente mantenha níveis de fosfato persistentemente elevados, indu‑ zindo a hipocalcemia sintomática apesar das terapêuticas insti‑ tuídas, deve-se solicitar que um nefrologista faça o seguimento em conjunto, pois a diálise pode ser necessária quando essas in‑ tervenções medicamentosas falham em corrigir os distúrbios metabólicos, quando a oligúria persiste ou quando a hipervole‑ mia e a hipertensão arterial são incontroláveis.1,3,5,7 Quando necessário, é preferível a utilização de hemodiálise à diálise peritoneal, pois a correção das anormalidades eletro‑ líticas é mais rápida. A diálise peritoneal está contraindicada na presença de massas abdominais ou pélvicas.1
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Compressão da medula espinal A incidência da compressão aguda da medula espinal nas crianças com câncer é de 3 a 5% e frequentemente ocorre na apresentação clínica da doença. A maioria dos casos decorre de tumores que envolvem o espaço epidural ou subdural e, menos comumente, de metástases.1,2,4 Essa condição clínica requer atenção urgente, visando a minimizar a disfunção neu‑ rológica em longo prazo.1 Etiologia As neoplasias pediátricas que mais comumente determinam compressão medular são os tumores neurais (neuroblastoma), os sarcomas (Ewing, osteossarcoma, rabdomiossarcoma), o lin‑ foma não Hodgkin e os tumores de células germinativas. Even‑ tualmente, os pacientes com leucemias, linfoma de Hodgkin e tumor de Wilms podem apresentar compressão medular.1,2,4 Sinais e sintomas A dor nas costas que não alivia quando o paciente está em de‑ cúbito dorsal ou a dor radicular está presente em 80% das crianças com compressão da medula espinal. Outros sinais e sintomas incluem fraqueza, anormalidades sensoriais e/ou motoras e alterações esfinctéricas. É importante lembrar que essas alterações podem progredir rapidamente e que a com‑ pressão medular por período de 24 horas ou mais pode resul‑ tar em sequelas permanentes.1,2,4 Diagnóstico A história clínica e o exame clínico, com atenção especial ao neurológico, são fundamentais para auxiliar no diagnóstico. Geralmente com base nos achados do exame físico, o nível de compressão medular pode ser determinado. Entretanto, au‑ sência de fraqueza ou de anormalidades sensoriais não exclui a possibilidade de compressão da medula espinal. Na maioria dos casos, o quadro clínico é de dor nas costas, localizada ou irradiada, normalmente associada a tensão ou dor da região da coluna envolvida.1,2,4 Em relação aos exames complementares, a ressonância magnética (RM) é o padrão-ouro para o diagnóstico. Nos ca‑ sos em que houver contraindicação para realização da RM ou nos locais em que não estiver disponível, pode ser realizada a TC com contraste ou a mielografia. A radiografia de coluna pode evidenciar presença de lesão lítica.1,2,4 O mielograma deve ser realizado principalmente na suspei‑ ta de doenças linfoproliferativas ou neuroblastoma e caso haja sinais de comprometimento medular no hemograma.1,2 Tratamento A instituição terapêutica precoce é fundamental para recupe‑ ração das funções neurológicas.1,2,4 A dexametasona é o tratamento inicial para os pacientes com compressão da medula espinal, visando a diminuir o ede‑ ma, inibir a resposta inflamatória, estabilizar a membrana vascular e melhorar o resultado da deficiência neurológica.8 A dose de dexametasona sugerida para crianças é de 1 a 2 mg/kg, seguida de 0,25 a 0,5 mg/kg a cada 6 horas.1,2,4,8
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A terapêutica posterior deve ser definida na dependência do diagnóstico estabelecido. A quimioterapia é recomendada principalmente para linfomas, leucemias e neuroblasto‑ ma.1,2,4,8 Particularmente nas crianças muito jovens, prefere-se utilizar como primeira linha a quimioterapia, para diminuir as sequelas de longo prazo, determinada pela laminectomia ou pela radiação espinal.8 A cirurgia descompressiva está indicada se o tipo histológi‑ co do tumor não é conhecido ou se os sinais/sintomas neuro‑ lógicos progridem apesar do uso da quimioterapia e/ou radio‑ terapia.1,2,4,8 Emergências infecciosas As doenças infecciosas continuam sendo a principal causa de morbidade e mortalidade em pacientes pediátricos imunossu‑ primidos. Pacientes de alto risco são aqueles com grave e pro‑ longada neutropenia, principalmente quando associada a ou‑ tras comorbidades frequentes na criança com câncer, como mucosite grave, linfopenia, hipogamaglobulinemia e altera‑ ções da flora intestinal.9,10 Definição de neutropenia febril Neutropênico de alto risco para infecções é o paciente com número ≤ 500 neutrófilos/mm3 no nadir (representa o ponto mais baixo da curva de contagem das células sanguíneas) da quimioterapia, ou com menos de 1.000 neutrófilos que ainda não atingiu o nadir-índice, mas ainda está em queda. O pa‑ ciente deve ser considerado com febre quando apresenta um pico de 38°C ou pelo menos dois picos de 37,8°C nas 24 ho‑ ras.9,10 Etiologia das infecções Mais de 80% dos agentes que colonizam o paciente neutropê‑ nico são organismos da flora bacteriana endógena. Os princi‑ pais agentes patogênicos em pacientes imunossuprimidos são:10 • bactérias Gram-positivas: Staphylococcus aureus, Streptococcus (alfa-hemolítico), Enterococcus, Corynebacterium, Listeria sp, Clostridium difficile; • bactérias Gram-negativas: enterobactérias (Escherichia coli, Klebsiella, Enterobacter, Serratia), Pseudomonas aeruginosa, Stenotrophomonas maltophilia e os anaeróbios; • fungos: Candida sp, Aspergillus sp, Zygomycetes, Cryptococcus; • outros: Pneumocystis jirovecii, Toxoplasma gondii, Stromgyloides stercoralis, Cryptosporidium; • vírus: Herpes simplex, varicela zóster, citomegalovírus, vírus Epstein-Barr, vírus sincicial respiratório, adenovírus, vírus influenza e parainfluenza. Fatores de risco O tempo de neutropenia é provavelmente o fator prognóstico mais importante em relação às infecções dos imunossuprimi‑ dos. Pacientes neutropênicos por mais de 7 dias são fortes candidatos a infecções mais graves. Outro fator importante na evolução desses pacientes é a presença ou não de foco infec‑ cioso detectável. Os pacientes que evoluem com febre de ori‑
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gem indeterminada (FOI), com culturas negativas, habitual‑ mente têm defervescência do processo mais rápida. O tipo de câncer também pode corroborar para evoluções mais tormen‑ tosas, como as leucemias e os linfomas de Burkitt.9 São fatores de melhor prognóstico a previsão de menos do que 7 dias de neutropenia e poucas ou nenhuma comorbidade. Sempre que for diagnosticada neutropenia febril em um paciente com cân‑ cer, caracteriza-se como uma situação de emergência.9,10 Conduta e tratamento É importante sempre verificar os sinais vitais e a estabilidade hemodinâmica do paciente. Caso haja instabilidade hemodi‑ nâmica, deve ser garantida uma boa via de acesso venoso, a hemocultura deve ser coletada, além de ser administrado soro fisiológico 0,9%, 20 mL/kg aberto, e ser iniciada antibiotico‑ terapia de largo espectro, o mais rápido possível (piperacilina/ tazobactam 300 mg/kg/dia a cada 8 horas ou meropenem 120 mg/kg/dia, a cada 8 horas, e vancomicina 40 mg/kg/dia a cada 6 horas). A escolha do antibiótico de largo espectro deve ser feita de acordo com o padrão de sensibilidade de cada serviço. Após a entrada no hospital, esse paciente pode ter seu prognóstico melhorado, se a primeira dose do antibiótico for administrada em até 20 minutos. É importante que o intensi‑ vista esteja ciente do caso e, conforme a evolução clínica, o pa‑ ciente seja encaminhado para unidade de terapia intensiva (UTI). Assim que possível, os exames laboratoriais devem ser coletados para tentar determinar o agente etiológico e o local da infecção.9,10 Caso o paciente esteja hemodinamicamente estável, veri‑ ficar pela história clínica e exame físico a presença de foco de infecção. É importante não se esquecer de perguntar sobre o hábito intestinal, dor para evacuar e/ou dor à micção. A dor para evacuar sugere lesão anal, o que, nesses pacientes, pode evoluir rapidamente para processo infeccioso regional por Gram-negativo e/ou anaeróbio, de difícil controle. Deve-se solicitar também radiografia de tórax e verificar a presença de cateter venoso, próteses e outros dispositivos invasivos. A ultrassonografia abdominal pode ajudar no diagnóstico da ti‑ flite, mostrando distensão e até espessamento de alças. O material de escarro, urina e fezes deve ser coletado, se indi‑ cados. A hemocultura de sangue periférico e do cateter, se presente, é imprescindível para pesquisa de bactérias, fun‑ gos e germes oportunistas, além da pesquisa para vírus, nos casos pertinentes.9,10 Em pacientes considerados portadores de FOI, sem foco, sem cateter e com radiografia de tórax normal, deve-se admi‑ nistrar soro de manutenção durante as primeiras 24 horas, dada a possibilidade de ocorrer instabilidade hemodinâmica. É importante coletar hemocultura e iniciar piperacilina/tazo‑ bactam na dose de 300 mg/kg/dia a cada 8 horas ou cefepi‑ ma 50 mg/kg/dose a cada 8 horas. Considerando que as in‑ fecções bacterianas e fúngicas são as complicações infecciosas mais comuns no paciente neutropênico, a introdução e a con‑ tinuidade da antibioticoterapia empírica, bem como a associa‑ ção de terapia antifúngica, quando pertinente, continuam sendo a melhor conduta para esses pacientes.9
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Condutas para diferentes localizações de infecção em pacientes neutropênicos9,10 Em pacientes com cateter, devem-se tomar as mesmas medi‑ das citadas anteriormente para o paciente com FOI, coletar hemocultura do cateter e do sangue periférico e acrescentar vancomicina (40 mg/kg/dia, a cada 6 horas), pelo risco de agentes Gram-positivos resistentes a piperacilina/tazobac‑ tam. A vancomicina pode ser precocemente retirada, caso as hemoculturas para Gram-positivos resistentes sejam negati‑ vas após 72 horas. Pacientes com infecções de vias aéreas superiores, incluin‑ do tonsilites, otites e sinusites (diagnóstico clínico, e não ra‑ diológico), celulites, adenites bacterianas ou condensações pulmonares, devem receber pelo menos piperacilina/tazo‑ bactam e vancomicina, cabendo a discussão sobre a introdu‑ ção de metronidazol ou clindamicina para cobertura de agen‑ tes anaeróbicos nas infecções graves de boca e seios da face. Pacientes neutropênicos febris com infecções abdominais e sinais de abdome agudo têm a tiflite como principal diagnóstico. Trata-se de infecção grave do cólon por anaeróbios e/ou Gram‑ -negativos. Infecções perianais também são de extrema gravida‑ de, devendo o paciente receber tratamento rápido com cobertu‑ ra para anaeróbios e Gram-negativos, sendo hoje preconizado o meropenem, na dose de 120 mg/kg/dia, a cada 8 horas. A asso‑ ciação com amicacina, 15 mg/kg/dia em dose única diária, pode ser utilizada em situação extrema, por ter ação sinérgica com o meropenem. Lembrar que a tiflite desses pacientes é uma infecção abdominal difusa e que o tratamento é sempre clínico. O papel do cirurgião fica reservado para situações mais graves, de sangramentos incontroláveis e desequilíbrio hemodinâmico, as quais estão associadas à alta taxa de mortalidade. Em pacientes com insuficiência respiratória, deve-se inves‑ tigar a possibilidade de pneumonite intersticial. A ausculta pulmonar é pobre, observa-se hipóxia na gasometria, e a ra‑ diografia de tórax apresenta pouca alteração de imagem em relação à hipóxia. É importante pensar também, quando perti‑ nente, na possibilidade de bactérias atípicas, processos virais, Pneumocystis jirovecii e introduzir, além da piperacilina/tazo‑ bactam e vancomicina, a claritromicina (15 mg/kg/dia, a cada 12 horas), sulfametoxazol-trimetoprim (20 mg/kg/dia de tri‑ metoprima a cada 6 horas) e ganciclovir (10 mg/kg/dia, a cada 12 horas) até que seja possível estabelecer mais clara‑ mente a etiologia. A tentativa de diagnosticar o agente etioló‑ gico deve ser explorada o máximo possível. O diagnóstico é feito pela demonstração de cistos ou trofozoítos em material pulmonar ou a pesquisa de anticorpos monoclonais. Vigilân‑ cia respiratória constante, controle pela oximetria e contato com a UTI são imprescindíveis nesses casos. O lavado brôn‑ quico também deve ser sempre considerado nesses pacientes para tentar estabelecer o diagnóstico o mais precoce possível. A associação de antibióticos ou mudança de tratamento deve ser pensada, se a febre não se resolver em 2 a 3 dias. Tratamento com antifúngicos9,10 Se a febre persiste por mais que 4 a 7 dias ou retorna após os esquemas descritos, a terapia antifúngica deve ser instituída.
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O mais conhecido dos antifúngicos é a anfotericina lipossomal, de eficácia bastante comprovada, mas que tem como fator li‑ mitante a grande toxicidade, principalmente em crianças que necessitam de outros medicamentos (quimioterápicos), cuja toxicidade somada a ela pode ser mais um fator agravante. Atualmente, os azoles (fluconazol, posaconazol e voriconazol) têm sido testados com sucesso, e trabalhos mostram resultados semelhantes na profilaxia e no tratamento das candidemias. Dentre as echinocandinas, a caspofungina e a micafungina pare‑ cem ter excelente ação no tratamento de Candidas e Aspergillus spp, embora não tenham atividade contra Zygomycetes, Cryptococcus neoformans ou Fusarium spp. O fluconazol tem sido a droga de escolha para tratamento empírico, de primeira linha (10 mg/kg/dia em dose única), levando em consideração ser a Candida o agente etiológico mais frequente. Caso o paciente oncológico já esteja recebendo o fluconazol profilaticamente, a droga preconizada em nosso meio tem sido a micafungina (2 a 4 mg/kg/dia, por via endovenosa). Para pacientes que perma‑ necem neutropênicos, a terapia antifúngica deve ser mantida até a resolução da neutropenia. O voriconazol tem sido reser‑ vado para pacientes com fortes indícios ou diagnóstico de fun‑ gos filamentosos (Aspergillus principalmente). Atenção especial deve ser dada ao seguimento das hemo‑ culturas e antibiogramas e, sempre que possível, os antibióti‑ cos devem ser mantidos ou mudados de acordo com os dados microbiológicos. De acordo com a literatura, apenas 25% das infecções no paciente neutropênico febril tem o agente etioló‑ gico determinado. Em 53% dos casos, foram identificados agentes etiológicos em pacientes com FOI. Bacteriemia é a principal responsável pelo maior índice de diagnósticos mi‑ crobiológicos, sendo o Streptococcus viridans, o Pseudomonas spp e a Escherichia coli os agentes mais isolados.9 Pacientes imunossuprimidos (portadores de neoplasia em tratamento ou fora de tratamento por 6 meses ou menos) com herpes zóster ou varicela, independentemente do número de granulócitos, devem ser internados em isolamento e tratados com aciclovir na dose de 500 mg/m2/dose, a cada 8 horas.9,10 O paciente granulocitopênico febril jamais deve receber alta com antibióticos por via oral e muito menos sem antibióti‑ cos, com diagnóstico de processo viral. Todo indivíduo granu‑ locitopênico febril deve ser medicado para infecção bacteriana com antibióticos por via endovenosa, pelo menos nas primei‑ ras 48 horas, além de se coletar os exames laboratoriais perti‑ nentes, incluindo as hemoculturas. Desafios A melhoria da taxa de cura do câncer pediátrico está relacionada não somente ao tratamento específico realizado em centros de referência em oncologia pediátrica, mas também ao diagnóstico precoce da doença e ao pronto reconhecimento e atendimento às emergências oncológicas. Portanto, a capacitação profissio‑ nal constante e o monitoramento clínico, laboratorial e de ima‑ gem, quando pertinentes, são fundamentais para o rápido e efi‑ ciente atendimento das emergências oncológicas, visando a reduzir a morbidade e a mortalidade nesses pacientes.
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Novos agentes microbianos têm surgido, incluindo as bac‑ térias multirresistentes, os agentes fúngicos e virais, apesar dos avanços nos cuidados de suporte às doenças infecciosas. Portanto, é fundamental o desenvolvimento de novos testes diagnósticos, bem como a descoberta de novos antimicrobia‑ nos, além do adequado entendimento da função imune e de como ela é afetada pelo câncer e sua terapia. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar os fatores predisponentes/de risco para as emergências oncológicas. • Apontar as principais emergências oncológicas. • Diagnosticar e avaliar, do ponto de vista clínico, laboratorial e de imagem, as principais emergências oncológicas. • Realizar a terapêutica inicial das principais emergências oncológicas. • Estar ciente de que as doenças infecciosas representam a principal causa de morbidade e mortalidade nos pacientes com câncer.
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CAPÍTULO 9
DISTÚRBIOS QUALITATIVOS DOS FAGÓCITOS Mara Albonei Dudeque Pianovski Denise Bousfield da Silva
Introdução A pele e as mucosas constituem a primeira linha de defesa do corpo humano contra microrganismos. Caso ocorra perda da sua integridade, as células fagocitárias (neutrófilos, monóci‑ tos e macrófagos) constituem a próxima linha de defesa. O neutrófilo é particularmente sensível à ação de substâncias quimiotáticas e move-se rapidamente em direção aos qui‑ mioatraentes, sendo uma resposta rápida e importante. O pro‑ cesso de internalização dos microrganismos (fagocitose) en‑ volve sua aderência à superfície da célula, o que desencadeia a extensão de um pseudópodo para encarcerar a bactéria ou fungo em uma vesícula endocítica, ou fagossomo. Após a fago‑ citose, os mecanismos pelos quais o fagolisossomo os destrói podem ser divididos em dependentes ou independentes de oxigênio.1 Anormalidades em uma ou mais etapas da função dos fagó‑ citos (neutrófilos e monócitos), como adesão, quimiotaxia, in‑ gestão, degranulação e metabolismo oxidativo, podem resul‑ tar em alterações clínicas.2 A anamnese de um paciente com suspeita de distúrbios de função de fagócitos deve incluir informações detalhadas sobre episódios infecciosos (frequência, gravidade, local, duração, etiologia, resposta à terapêutica, complicações). Na investiga‑ ção da história familiar, o pediatra deve estar atento para in‑ fecções recorrentes, morte por infecções graves, neoplasias em outras crianças, presença de consanguinidade (aumenta a possibilidade de doenças com padrão de herança autossômico recessivo, como é o caso de algumas deficiências combinadas graves e algumas formas genéticas de doença granulomatosa crônica).3 Ao exame físico, deve ser dada atenção para o comprometi‑ mento do desenvolvimento ponderoestatural, que pode ser secundário a infecções de repetição. Linfonodomegalias e he‑ patoesplenomegalia podem ser encontradas em pacientes com doença granulomatosa crônica, síndrome de imunodefi‑ ciência adquirida (aids) e imunodeficiência comum variável. A pele é um local importante que pode apresentar ao pediatra
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muitas informações, desde cicatrizes que revelam infecções preexistentes até infecções ativas, ou eczema e púrpura (como no caso da síndrome de Wiskott-Aldrich). Ulcerações de mu‑ cosas são sinalizadoras de alteração da função de fagócitos. Os cabelos podem demonstrar albinismo parcial, coloração pra‑ teada, como na síndrome de Chédiak-Higashi (SCH), ou, mais raramente, alertar para síndrome de Job, quando ruivos.1-4 Os principais exames de triagem para investigação de doença dos fagócitos e seus diagnósticos diferenciais incluem: • hemograma e contagem de reticulócitos, para avaliar número de leucócitos, presença de anemia hemolítica e trombocito‑ penia; • dosagem de imunoglobulinas séricas (IgG e subclasses, IgA, IgM e IgE) e complemento hemolítico total (CH50), para ava‑ liar imunidade humoral; • testes cutâneos de hipersensibilidade tardia, para avaliar a função de linfócitos T; • radiografia de cavum e tórax; • sorologia para HIV; • teste de redução do NBT (nitroblue tetrazolium), para avaliar o metabolismo oxidativo dos neutrófilos, triglicerídios, fibrino‑ gênio e ferritina (síndrome hemofagocítica); • aspirado de medula óssea, para excluir leucemias e pesquisar hemofagocitose.2,4 A seguir, serão apresentadas doenças dos fagócitos, suas ma‑ nifestações clínicas, testes laboratoriais específicos e possibili‑ dades terapêuticas. A Figura 1 apresenta um algoritmo para investigação de pa‑ cientes com infecções de repetição, com os respectivos diag‑ nósticos. Doenças resultantes dos distúrbios de adesão Deficiência de adesão leucocitária tipo I Doença na qual a adesão dos fagócitos, a quimiotaxia e a in‑ gestão de micróbios opsonizados estão prejudicadas em virtu‑ de das mutações no gene responsável por integrinas. A carac‑
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Anemia hemolítica Considerar deficiência de G6PD dos neutrófilos, síndrome de McCleod com doença granulomatosa crônica
Albinismo parcial, grânulos anormais: Considerar síndrome de Chédiak-Higashi
Grânulos anormais, anomalia de Pelger-Huet: considerar deficiência de grânulos específicos
Corpúsculos de Howell-Jolly: asplenia funcional 1. Avaliação inicial Anamnese, exame físico, história familiar Contagem de leucócitos com diferencial, plaquetas e reticulócitos Morfologia dos leucócitos Culturas
Trombocitopenia + eczema: síndrome de Wiskott-Aldrich Neutrófilos < 1.500/mm3: avaliação de neutropenia
Defeitos anatômicos ou obstrutivos: defeitos não imunológicos do hospedeiro
Se normal
Dosagem de imunoglobulinas diminuída: síndromes de hipogamaglobulinemia
2. Avaliação quantitativa de complemento/Ig
Dosagem de complemento diminuída: síndrome de hipocomplementenemia
Imunoglobulinas IgE sérica C3, C4, CH50
Considerar doenças dos linfócitos T (número, testes cutâneos, estimulação in vitro, HIV)
Se normal
Teste do NBT alterado, ausência de produção de superóxido: doença granulomatosa crônica Mieloperoxidase ausente/ diminuída: deficiência de mieloperoxidase
Considerar neutropenia cíclica, não identificada no primeiro leucograma
3. Avaliação fagocítica Teste do NBT
Produção diminuída de superóxido: deficiência de G6PD dos neutrófilos (grave); doenças da via da glutationa
Produção de superóxido Citometria de fluxo para quantificar glicoproteínas CD11/CD18 de superfície Coloração para mieloperoxidase
Quimiotaxia anormal somente com o soro do paciente: deficiência de complemento, defeitos quimiotáticos humorais adquiridos, periodontite juvenil Diminuição da ingestão somente com o soro do paciente: defeitos de opsoninas
IgE > 2.500 UI/mL: síndrome de hiper-IgE
Estudos de quimiotaxia: Janela cutânea de Rebuck Ensaios in vitro com soro do paciente e controle Ensaios de ingestão com soro do paciente e controle como opsoninas
Ausência ou diminuição acentuada de CD11/CD18: doença de deficiência dessas glicoproteínas Quimiotaxia anormal com soro controle: doença primária de deficiência de grânulos específicos dos fagócitos, deficiência de CD11/ CD18, síndrome de Chédiak-Higashi, disfunção da actina dos neutrófilos Diminuição da ingestão com soro controle: disfunção da actina do neutrófilo
Figura 1 Algoritmo para avaliação de pacientes com infecções de repetição. Fonte: traduzida e modificada de Dinauer, 2014.2
terística dessa doença é a ocorrência de infecções bacterianas e fúngicas de repetição, graves, sem a formação de pus, apesar da neutrofilia persistente. Na forma grave, os pacientes apre‑ sentam onfalite e retardo na queda do cordão umbilical. Ou‑ tras manifestações clínicas incluem gengivite, periodontite, estomatite, ulcerações da língua e faringe, infecções recorren‑ tes indolentes e necróticas da pele, das membranas mucosas gastrointestinais, abscessos perirretais, otites e pneumonias. A maioria das infecções é causada por Staphylococcus aureus e enterobactérias Gram-negativas. Infecções fúngicas ocorrem principalmente por Candida albicans e Aspergillus.2 O diagnóstico pode ser feito por citometria de fluxo, anali‑ sando a presença de integrina alfa beta-2 (CD11) e subunida‑ des compartilhadas CD18. Ensaios funcionais de neutrófilos demonstram defeitos na aderência, quimiotaxia, ingestão me‑ diada por C3bi e ativação da cadeia respiratória.2,4
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O tratamento inclui antibióticos e antifúngicos, e a profila‑ xia com sulfametoxazol-trimetoprim parece ser útil, assim como limpeza periódica dos dentes por profissional e uso de bochechos com clorexidina. O prognóstico é reservado com alta incidência de óbito antes dos 2 anos de idade. O trans‑ plante de célula-tronco hematopoética (TCTH) está indicado como tratamento curativo.4 Deficiência de adesão leucocitária tipo II Semelhante à deficiência de adesão leucocitária do tipo I, de herança autossômica recessiva, as crianças que a apresentam também podem cursar com periodontite, infecções recorren‑ tes como celulite, otite média e pneumonia, sem a formação de pus, apesar de leucometrias periféricas de 30.000 a 150.000 células/mcL. Contudo, os neutrófilos têm valores normais de CD18 e as infecções não são tão graves como no
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Distúrbios Qualitativos dos Fagócitos •
tipo I. Além disso, apresentam baixa estatura, fácies plana com ponte nasal alargada e deficiência mental grave. O defeito funcional dos neutrófilos está associado à ausência de receptor para selectina, que é essencial para a função de aderência.2,4 Alterações adquiridas da aderência Os neutrófilos podem apresentar diminuição da adesividade secundária a medicamentos como corticosteroides e epinefri‑ na. Ocorre neutrofilia no sangue periférico, pois as células são facilmente liberadas do pool marginal para o circulante. Por outro lado, a adesividade dos neutrófilos pode ser dramatica‑ mente aumentada em condições clínicas como sepse bacteria‑ na por Gram-negativo, lesão térmica grave, pancreatite, trau‑ ma, hemodiálise e bypass cardiopulmonar. Anfotericina B causa aumento da agregação dos neutrófilos, principalmente quando associada à infusão de granulócitos.2 A Tabela 1 apresenta a classificação e a investigação das doenças de disfunção leucocitária associadas a quimiotaxia, opsonização e poder microbicida. Doenças decorrentes de defeitos na quimiotaxia Diversas alterações fisiopatológicas podem estar presentes na origem da disfunção leucocitária quimiotática. Assim, podem ser vistas doenças associadas a defeitos na geração de agentes quimiotáticos, excessiva produção de agentes inativadores dos fatores quimiotáticos, inibidores da resposta dos neutrófi‑ los aos fatores quimiotáticos, níveis aumentados de fatores quimiotáticos, gerando desativação da quimiotaxia, defeitos nos fagócitos, além de miscelânea de outras etiologias.2,4 Síndrome do leucócito preguiçoso (lazy leukocyte) Por alteração da estrutura proteica da membrana que se torna mais rígida, os neutrófilos apresentam dificuldade para se mo‑ bilizar e entrar na circulação, em resposta aos estímulos infec‑ ciosos. Os pacientes apresentam infecções recorrentes como estomatites, otites, gengivites e febre de baixo grau. A conta‑ gem de neutrófilos é normal, assim como a capacidade de fa‑ gocitose e a atividade bactericida. A medula óssea apresenta achados normais. Recrutamento de neutrófilos no teste de ja‑
Tabela 1 Classificação das doenças dos leucócitos quanto à função comprometida Função
Doença
Quimiotaxia
Síndrome do leucócito preguiçoso Hiper-IgE associada a eczema e infecções recorrentes
Opsonização
Deficiência de complemento Deficiência de anticorpos antibactérias específicos
Poder bactericida
Síndrome de Chédiak-Higashi Deficiência de mieloperoxidase Doença granulomatosa crônica Deficiência de glutationa peroxidase leucocitária Deficiência de G6PD
Fonte: traduzida de Bonilla, 2011.4
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nela cutânea é diminuído, enquanto o de monócitos apresenta resposta normal.2,4 Síndrome de hiper-IgE (inicialmente identificada como síndrome de Job) É uma doença caracterizada por concentrações séricas de IgE aumentadas (em geral, maiores que 2.000 U/mL), infecções estafilocócicas recorrentes da pele e de vias aéreas inferiores, pneumatoceles, dermatite pruriginosa crônica eczematoide, anormalidades esqueléticas (escoliose, fraturas de repetição) e dentárias, além de hiperextensão das articulações. No he‑ mograma, encontra-se eosinofilia. Está associada com inibi‑ ção da resposta dos neutrófilos aos fatores quimiotáticos. Em 1966, foram descritas duas meninas com cabelos ruivos, pele pouco pigmentada, com hiperextensão das articulações e abscessos frios, cujo quadro clínico foi caracterizado como sín‑ drome de Job. Sabe-se atualmente que somente uma pequena porcentagem de pacientes com hiper-IgE apresentam essas ca‑ racterísticas, e considera-se que a síndrome de Job possa ser um subtipo variante da síndrome de hiper-IgE. O tratamento inclui antibioticoterapia profilática para Staphylococcus aureus (diclo‑ xaciclina ou sulfametoxazol-trimetoprim), tratamento para in‑ fecções agudas com antibiótico endovenoso, drenagem cirúrgi‑ ca de infecções profundas e ressecção de cistos pulmonares, além da monitoração para escoliose e fraturas. O prognóstico geralmente é bom, se prontamente tratada.2,4 Defeitos da opsonização Função alterada de células B resulta em produção inadequada ou ausente de imunoglobulinas, principalmente do tipo IgG. Pacien‑ tes com essas síndromes de deficiência de anticorpos apresen‑ tam infecções recorrentes por bactérias piogênicas, como Staphylococcus aureus, S. pneumoniae e Hemophilus influenzae. O principal problema que se origina é que os micróbios não são efe‑ tivamente removidos do hospedeiro pelo sistema fagocítico. A deficiência de complementos também pode dificultar o reconhe‑ cimento das bactérias pelos fagócitos, principalmente quando se trata de deficiência de C3, porque essa é a proteína precursora de duas importantes opsoninas, a C3b e a C3bi. Os pacientes apre‑ sentam infecções de repetição causadas por pneumococos. Já pacientes com deficiência de componentes C55, C6, C7, C8 ou C9 são particularmente sensíveis a infecções por meningococo ou gonococo. A avaliação diagnóstica inclui determinação dos níveis de complemento sérico, dosagem de imunoglobulinas e dos ní‑ veis de anticorpos bacterianos específicos. O tratamento consiste do uso agressivo de antibióticos por via endovenosa e imuniza‑ ção para H. influenzae, S. pneumoniae e Neisseria meningitidis.2,4 Alterações da fagocitose e do poder bactericida Os fagócitos matam os microrganismos usando diversos com‑ postos citotóxicos, que incluem uma variedade de polipeptídios armazenados em grânulos intracelulares e liberados nos vacúo‑ los fagocíticos após a fagocitose. Quando não são destruídos, es‑ ses agentes infecciosos podem ser disseminados pelo sistema reticuloendotelial, gerando infecções de difícil tratamento.
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As doenças citadas a seguir incluem defeitos de imunidade que residem principalmente na capacidade de englobar e des‑ truir os microrganismos.
nal (hepatoesplenomegalia), hemograma para detectar cito‑ penias, monitoramento da disfunção hepática e dosagem de ferritina sérica e receptor solúvel da interleucina-2.4,5
Síndrome de Chédiak-Higashi É uma doença rara, de transmissão autossômica recessiva, que compromete múltiplos órgãos e resulta de defeitos na morfogê‑ nese dos grânulos. Esses defeitos, nos múltiplos tecidos, se de‑ vem à mutação no gene CHS1, que codifica uma proteína im‑ portante para o tráfico lisossomal. Grânulos gigantes, azurófilos e coalescentes nos neutrófilos resultam em granulopoese inefi‑ caz e neutropenia, com retardo na degranulação, que ocorre de forma incompleta, e quimiotaxia ineficaz. É caracterizada por albinismo oculocutâneo parcial, cabelo prateado, pigmentação reduzida na íris, infecções bacterianas de repetição, gengivite, periodontite e, em alguns pacientes, diátese hemorrágica mo‑ derada, neuropatias cranianas e periféricas, fraqueza muscular e ataxia, associadas com defeitos do quiasma óptico.2,4-6 Podem ocorrer ainda fotofobia, palidez de fundo óptico, nistagmo, su‑ dorese excessiva, hepatoesplenomegalia, linfonodomegalia ge‑ neralizada, anemia e trombocitopenia na fase acelerada da doença, na qual se identifica também hemofagocitose pelos histiócitos. Aproximadamente 85% dos indivíduos afetados desenvolvem a fase acelerada, com infiltração linfoproliferati‑ va na medula óssea e sistema reticuloendotelial.4 O diagnóstico é feito pelo achado de grânulos gigantes nos granulócitos de sangue periférico e nos progenitores mieloides da medula óssea. O gene LYST é o único conhecidamente as‑ sociado à SCH.5 O tratamento inclui profilaxia com sulfametoxazol-trime‑ toprim, antibioticoterapia endovenosa para infecções agudas, ácido ascórbico (20 mg/kg/dia), que pode normalizar o defei‑ to quimiotático e a função bactericida, e DDAVP antes de pro‑ cedimentos invasivos para auxiliar o controle de sangramento. O tratamento curativo é o TCTH antes ou no início da fase ace‑ lerada. Transfusões de plaquetas e hemácias podem ser neces‑ sárias, assim como lentes corretivas para melhorar a acuidade visual. Está indicada também reabilitação para as complica‑ ções neurológicas.2,4,5 Exames oftalmológicos devem ser feitos anualmente. Para pacientes com início atípico na adolescência ou no adulto jo‑ vem, está indicada a realização de: ultrassonografia abdomi‑
Síndrome de Griscelli (SG) Doença autossômica recessiva descrita por Griscelli et al., que cursa com albinismo parcial associado a imunodeficiência.6,7 Clinicamente, lembra a SCH, pois o paciente apresenta cabelo prateado e linfo-histiocitose hemofagocítica. Três subtipos são descritos, sendo que os pacientes SG3 apresentam apenas disfunção pigmentar, os SG1 apresentam comprometimento neurológico primário, e os SG2, alterações imunológicas gra‑ ves que levam a infecções recorrentes e síndrome hemofagocí‑ tica. A doença é secundária à mutação nos genes MYO5A (GS1, Elejalde), RAB27A (GS2) ou MLPH (GS3).7 O exame do cabelo à microscopia óptica é um método fácil para diferenciar as duas síndromes. Na SCH, observam-se agregados regulares de melanina, enquanto na SG, os pigmen‑ tos são distribuídos irregularmente em grumos. O exame da pele biopsiada de SCH apresenta melanossomos gigantes nos melanócitos e queratinócitos, enquanto a pele da SG mostra acúmulo maciço de melanossomas maduros com queratinóci‑ tos contendo melanossomas esparsos.6 O diagnóstico diferencial das doenças que cursam com ca‑ belo prateado é mostrado na Tabela 2. O tratamento de escolha é o TCTH. Tratamento imunossu‑ pressor pode ser usado para manter o paciente estável ou in‑ duzir remissão até conseguir TMO.7 Doença granulomatosa crônica (DGC) Nesta doença, os neutrófilos apresentam fagocitose normal, porém o poder bactericida está comprometido e a digestão de bactérias catalase-positivas é deficiente, dada a marcante re‑ dução na produção de H2O2. Resulta de mutações em um dos quatro genes que codificam subunidades essenciais da NADPH-oxidase. Como consequência da reduzida produção de peróxido de hidrogênio, no vacúolo fagocítico, a iodiniza‑ ção da bactéria ingerida é prejudicada, e tanto bactérias como fungos ingeridos permanecem viáveis nos fagócitos protegi‑ dos da imunidade humoral e dos antibióticos que não pene‑ tram na célula. A mobilidade dos fagócitos colonizados disse‑ mina os microrganismos vivos no sistema reticuloendotelial.
Tabela 2 Diferenciação laboratorial entre síndrome de Griscelli, síndrome de Chédiak-Higashi e doença de Elejalde Investigação
Síndrome de Griscelli
Síndrome de Chédiak-Higashi
Doença de Elejalde
Esfregaço de sangue periférico
-
Grânulos proeminentes e organelas gigantes nos leucócitos
-
Microscopia óptica do cabelo
Grumos de melanina grandes e pequenos de padrão irregular
Pequenos grumos de melanina, dispostos regularmente
Grumos de melanina grandes e pequenos de padrão irregular
Histopatologia da pele
Pigmentação excessiva dos melanócitos na camada basal e pigmentação escassa na pele ao redor de áreas pigmentadas
Grandes melanossomos nos melanócitos e queratinócitos
Grânulos de melanina de tamanho irregular dispersos na camada basal
Microscopia eletrônica da pele
Melanossomos maduros nos melanócitos e, em alguma extensão, nos queratinócitos
Grandes melanossomos nos melanócitos e queratinócitos
Melanossomos em diferentes estágios de formação nos melanócitos
Fonte: traduzida e modificada de Sahana et al., 2012.6
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Distúrbios Qualitativos dos Fagócitos •
Ocorre em uma incidência de aproximadamente 1:250.000 in‑ divíduos, com predomínio no sexo masculino 7:1 feminino, sendo, em geral, de herança recessiva ligada ao X.2,4 Os principais locais de infecção são os que estão em contato com o ambiente externo, como pulmões, pele, trato gastrointes‑ tinal e linfonodos. Podem ser observadas gengivite e estomatite ulcerada. Disseminação hematogênica pode causar abscessos hepáticos e osteomielite. Os agentes patogênicos mais comuns incluem S. aureus, Aspergillus fumigatus ou nidulans e bacilos Gram-negativos, como Serratia marcescens e várias espécies de Salmonella. Coriorretinite e lesões destrutivas da substância branca têm sido descritas. Glomerulonefrite por depósito de complexos imunes pode ocorrer e, mais raramente, lúpus erite‑ matoso sistêmico ou discoide e artrite reumatoide juvenil.2,4 Os exames laboratoriais demonstram leucocitose com neu‑ trofilia, anemia resultante de infecções e hipergamaglobuline‑ mia. A síndrome de McLeod, ou seja, anemia hemolítica leve, acantocitose e diminuição da expressão do antígeno Kell decor‑ rente de um defeito no antígeno Kx das hemácias, ocorre em pa‑ cientes com grandes deleções no gene localizado em Xp21.1. O teste do NBT é positivo. A geração de peróxido de hidrogênio pelos neutrófilos é reduzida. A análise por citometria de fluxo pode detectar redução da di-hidroxirodamina123 e da rodami‑ na123. Esse teste pode também ser usado para detectar portado‑ res nas formas ligadas a X.4 O tratamento consiste em uso de antibióticos que penetram nos leucócitos (p.ex., sulfametoxazol-trimetoprim, rifampicina), interferon-gama na dose de 50 mcg/m² por via subcutânea, 3 ve‑ zes/semana (efeito benéfico provavelmente relacionado ao au‑ mento da síntese de óxido nítrico, aumento da produção de supe‑ róxido e por estimular vias microbicidas não oxidativas). O tratamento curativo é o TCTH alogênico.2,4 Deficiência de mieloperoxidase A enzima mieloperoxidase (MPO) é necessária para a reação de iodinização nos neutrófilos, cuja finalidade é matar as bac‑ térias fagocitadas. É uma doença rara, de herança autossômi‑ ca recessiva, com expressividade variável e manifestações clí‑ nicas menos intensas do que na DGC. Raramente pode ocorrer candidíase disseminada. Os testes para diagnóstico são a iodi‑ nização, o poder bactericida e a coloração para MPO.2,4 É importante lembrar que, além da forma hereditária, po‑ de-se encontrar deficiência de mieloperoxidase em determi‑ nadas situações clínicas, como leucemias mieloides agudas (M2, M3 e M4), síndrome mielodisplásica, leucemia mieloide crônica, gravidez, anemia ferropriva, intoxicação por chumbo, lipofuccinose e linfoma de Hodgkin.2 Pacientes assintomáticos não necessitam de tratamento. Para aqueles com infecções fúngicas, o tratamento deve ser in‑ tensivo. Está indicado o controle da glicemia. Deficiência de glutationa peroxidase Doença de evolução benigna, não costuma apresentar infec‑ ções de repetição. Cursa com fagocitose normal e poder bacte‑ ricida intracelular diminuído. É de herança autossômica re‑ cessiva. O teste do NBT é semelhante ao encontrado na DGC,
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e a dosagem da enzima nos neutrófilos está intensamente di‑ minuída. Não requer tratamento.2 Deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase nos leucócitos Em alguns pacientes com deficiência de glicose-6-fosfato desi‑ drogenase (G6PD), a enzima está diminuída nos neutrófilos, em porcentagens menores que 5%, prejudicando a geração de peróxido de hidrogênio. Infecções bacterianas podem ser per‑ sistentes e eventualmente fatais, principalmente por germes catalase-positivos. A transmissão é ligada ao cromossomo X. O diagnóstico deve ser suspeitado em crianças com anemia hemolítica congênita não esferocítica, nas quais os níveis de G6PD são muito baixos ou naqueles com alta frequência de in‑ fecções. Os exames laboratoriais para diagnóstico incluem ati‑ vidade de G6PD nos neutrófilos < 5% do normal, teste do NBT alterado e estresse oxidativo intensamente diminuído, asso‑ ciado a anemia hemolítica crônica não esferocítica com conta‑ gem reticulocitária elevada, e atividade G6PD diminuída nos eritrócitos.2,4 O tratamento é semelhante ao realizado para crianças com DGC, exceto no que diz respeito ao uso de interferon gama re‑ combinante, pois seu benefício nesses casos ainda não foi de‑ monstrado. O prognóstico não é claro, em razão do pequeno número de pacientes relatado.4 Linfo-histiocitose hemofagocítica familiar (FHL) É uma síndrome de hiperativação imune, caracterizada por si‑ nais e sintomas clínicos de inflamação grave e descontrolada. Pode ser familiar ou desencadeada por agentes infecciosos, dentre os quais se destaca, pela frequência, o vírus Epstein-Barr. A FHL é herdada de forma autossômica recessiva, causada por mutações bialélicas em 1 dos 5 genes, correspondentes aos 5 subtipos da doença (FHL1-FHL5).5 De acordo com a Socie‑ dade de Histiocitose, na ausência de história familiar ou de testes genéticos específicos, 5 de 8 critérios devem estar pre‑ sentes para estabelecer o diagnóstico: febre, esplenomegalia, citopenias (2 ou mais séries), hipertrigliceridemia (> 265 mg/ dL) ou hipofibrinogenemia (< 150 mg/dL), hemofagocitose na medula óssea, no baço, no linfonodo ou no fígado, sem evi‑ dência de neoplasia, diminuição da atividade das células natural killer, ferritina sérica > 500 mcg/L e aumento de CD25 so‑ lúvel (> 2.400 U/mL).8,9 Clinicamente, pode ser confundida com sepse e acredita-se que, por esse motivo, o pediatra seja induzido a não pensar no diagnóstico. A participação do he‑ matopediatra é importante para confirmação diagnóstica e orientação terapêutica. O tratamento consiste de imunossupressor (etoposídeo, de‑ xametasona e ciclosporina) até que se encontre doador de me‑ dula óssea. Costuma recidivar precocemente e, nessa situação, o prognóstico é sombrio, razão pela qual o TCTH deve ser reali‑ zado logo após a primeira remissão, para os casos de FHL. Para pacientes com linfo-histiocitose hemofagocítica associada a in‑ fecção ou neoplasia, o tratamento recomendado é imunossu‑ pressor, além do tratamento da doença desencadeante.2,8,9
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que criança com infecção bacteriana recorrente e contagem normal de neutrófilos pode ter função anormal destes. • Descrever a classificação de disfunção fagocitária baseada em motilidade e migração, quimiotaxia, opsonização e morte bacteriana. • Identificar as doenças de disfunção fagocitária. • Reconhecer os sinais clínicos de disfunção fagocitária. • Iniciar a investigação diagnóstica adequada para cada tipo de disfunção fagocitária. • Conhecer o papel do TCTH no tratamento da disfunção fagocitária grave. • Orientar-se com hematologista pediátrico. • Iniciar profilaxia com antibióticos, ácido ascórbico (quando pertinente) e tratamento apropriado das infecções, além da higiene bucal adequada.
Referências bibliográficas 1.
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CAPÍTULO 10
TUMORES DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL Andréa Gadelha Nóbrega Lins
Introdução e epidemiologia O tumor de sistema nervoso central (SNC) é o tumor sólido mais frequente em crianças menores 15 anos de idade, apre‑ sentando pico de incidência em torno dos 10 anos, segundo da‑ dos do Instituto Nacional do Câncer (Inca).1 No Brasil, estima‑ -se sua incidência em torno de 8 a 15% das neoplasias infantis, enquanto nos EUA se encontra em torno de 25% (Tabela 1).2 Esses tumores ocorrem na fossa posterior em 70% dos casos e, em outros locais, em 30%. Nos primeiros 2 anos de vida, há uma predominância para os tumores supratentoriais, enquan‑ to entre 2 e 10 anos de idade há predominância de tumores in‑ fratentoriais. São descritos dois fatores predisponentes conhe‑ cidos: exposição à radiação ionizante e distúrbios genéticos.2 Esses tumores formam um grupo muito heterogêneo, po‑ dendo originar-se de vários tecidos e locais do SNC. A classifica‑ ção mais usada desses tumores foi desenvolvida pela Organiza‑ ção Mundial da Saúde (OMS), que os avalia de acordo com sua origem histológica e quanto ao grau de malignidade (Tabela 2).4 Estudos de biologia molecular e de citogenética têm eviden‑ ciado que cada tumor tem uma identidade molecular própria. Dessa forma, alguns tumores de SNC podem ser agrupados e classificados quanto ao seu comportamento biológico, a exem‑ plo do meduloblastoma. Essa classificação pode ser útil quanto a diagnóstico, orientação terapêutica, prognóstico e prevenção.4
Considerações anatômicas do SNC O SNC é revestido pelas meninges dura-máter, aracnoide e pia-máter. A mais externa é a dura-máter, que tem dois folhe‑ tos. O folheto externo é aderido à tábua óssea. Em algumas áreas, o folheto interno da dura-máter destaca-se do externo para formar pregas que dividem a cavidade craniana em com‑ partimentos que se comunicam amplamente. Por meio de uma das pregas da dura-máter (conhecida como tenda do ce‑ rebelo), separa-se o cérebro em região supratentorial e infra‑ tentorial.6 A aracnoide é uma meninge que fica entre a dura-máter e a pia-máter. Ela separa-se da pia-máter pelo espaço subaracnói‑ deo que contém líquido cefalorraquidiano (LCR), artérias e veias.6 Há grande comunicação entre os espaços subaracnói‑ deos do encéfalo e da medula. A aracnoide tem granulações que perfuram a dura-máter e terminam em seios venosos. A pia-máter é muito fina e fica na superfície do SNC. As trabécu‑ las que formam a aracnoide fundem-se com a pia-máter for‑ mando uma estrutura conhecida como leptomeninge.7 O LCR é produzido em sua maioria (400 a 500 mL/dia) pelo plexo coroide (estrutura que se localiza dentro dos ventrículos), circula dentro dos ventrículos e passa para o espaço subaracnói‑ deo através das vilosidades da aracnoide, para serem absorvi‑ dos pelo sangue.6
Tabela 1 Estimativa para novos casos de tumores na criança e no adolescente nos EUA em 2014, segundo o SEER3 Crianças (0 a 14 anos)
Adolescentes (15 a 19 anos)
26% - Leucemia linfoide aguda 21% - Tumores de SNC 7% - Neuroblastoma 6% – Linfoma não Hodgkin 5% - Tumor de Wilms 5% - Leucemia mieloide aguda 4% - Tumor de Wilms 4% - Linfoma de Hodgkin 3% - Rabdomiossarcoma 3% - Retinoblastoma
15% - Linfoma de Hodgkin 11% - Carcinoma de tireoide 10% - Tumores de SNC 8% - Tumor de células germinativas testiculares 8% - Linfoma não Hodgkin 8% - Leucemia linfoide aguda 7% - Tumores ósseos 6% - Melanoma 4% - Leucemia mieloide aguda 2% - Tumor de células germinativas de ovário
SEER: Surveillance, Epidemiology, and End Results Program, do National Cancer Institute (NCI).
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Tabela 2 Classificação da Organização Mundial da Saúde para tumores de SNC na infância5 Tumores astrocíticos
I
Astrocitoma subependimário de células gigantes
•
Astrocitoma pilocítico
•
II
Astrocitoma pilomixoide
•
Astrocitoma difuso
•
Xantoastrocitoma pleomórfico
•
Astrocitoma anaplásico
III
IV
•
Glioblastoma
•
Glioblastoma de células gigantes
•
Gliossarcoma
•
Tumores oligodendrogliais Oligodendroglioma
•
Oligodendroglioma anaplásico
•
Tumores oligoastrocíticos Oligoastrocitoma
•
Oligoastrocitoma anaplásico
•
Tumores ependimários Subependimoma
•
Ependimoma mixopapilar
•
Ependimoma
•
Ependimoma anaplásico
•
Tumores de plexo coroide Papiloma de plexo coroide
•
Papiloma atípico de plexo coroide
•
Carcinoma do plexo coroide
•
Outros tumores neuroepiteliais Glioma angiocêntrico
•
Glioma coroide do III ventrículo
•
Tumores neurogliais: neurais e mistos Gangliocitoma
•
Ganglioglioma
•
Ganglioglioma anaplásico
•
Astrocitoma desmoplásico infantil e ganglioglioma
•
Tumor neuroepitelial disembrioplásico
•
Neurocitoma central
•
Neurocitoma extraventricular
•
Linfoneurocitoma cerebelar
•
Paraganglioma do cordão espinal
•
Tumor glioneuronal papilar
•
Tumor glioneuronal formador de rosetas do IV ventrículo
•
Tumor de pineal Pineocitoma Tumor do parênquima pineal de diferenciação intermediária
• •
•
Pineoblastoma Tumor papilar da região pineal
• •
•
Tumores embrionários Meduloblastoma
•
Tumor neuroectodérmico primitivo do sistema nervoso central
•
Tumor teratoide/rabdoide atípico
• (continua)
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Tumores do Sistema Nervoso Central •
Tabela 2 Classificação da Organização Mundial da Saúde para tumores de SNC na infância5 (continuação) Tumores de nervos cranianos e espinais
I
Schwannoma
•
Neurofibroma
•
Perineurioma
•
Tumor maligno da bainha nervosa
II
III
•
•
•
•
IV
•
Tumores meníngeos Meningioma
•
Meningioma atípico
•
Meningioma maligno anaplásico
•
Hemangiopericitoma
•
Hemangiopericitoma anaplásico
•
Hemangioblastoma
•
Tumores da região selar Craniofaringioma
•
Tumor granular da neuro-hipófise
•
Pituicitoma
•
Oncocitoma fusocelular da adeno-hipófise
•
SNC: sistema nervoso central.
Síndromes associadas aos tumores de SNC2 • Síndrome de Li-Fraumeni: associa-se aos gliomas; • neurofibromatose tipo I (Figura 1): associa-se aos gliomas de nervo óptico e meningiomas; • esclerose tuberosa: associa-se a gliomas e ependimomas (Figura 2). Diagnóstico É feito por meio da análise de: • manifestações clínicas; • imagens; • estudo histopatológico/imuno-histoquímico/biologia molecular. Manifestações clínicas8,9 Os sinais e sintomas, na grande maioria dos casos, são secundários ao aumento da pressão intracraniana (PIC) provocada
Figura 2 Glioma em paciente com esclerose tuberosa. Fonte: arquivo pessoal da autora.
Figura 1 Manchas “café-com-leite”. Fonte: arquivo pessoal da autora.
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pela presença do tumor. Vale a pena salientar que o aumento da PIC não se dá exclusivamente em torno da lesão, mas é distribuído por todo o SNC pelo LCR. Crianças pequenas com fontanelas abertas têm a capacidade de expandir o conteúdo craniano e, assim, a clínica inicialmente é própria. Os sintomas podem ser divididos em gerais e localizados.
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Sintomas gerais (Figura 3) • astrocitoma de baixo grau, astrocitoma de alto grau, craniofaTríade clássica da hipertensão intracraniana (HIC) (cefaleia, ringioma e tumores de células germinativas: linha média (hivômitos, letargia), entre outros, descritos a seguir. potálamo, tálamo, glândula pituitária e glândula pineal). 1. Cefaleia: pelo aumento da PIC e por distensão da dura-máter, dos vasos e dos nervos cranianos (que têm terminações ner- Os principais sinais e sintomas dos tumores intracranianos vosas sensitivas). Piora quando o paciente está em decúbito e, em crianças e suas incidências são divididos pela idade:8 algumas vezes, o acorda no meio da noite. A posição supina 1. < 4 anos de idade: macrocefalia (41%); náusea e vômito (30%); (30°) melhora a cefaleia por melhorar o retorno venoso. irritabilidade (24%); letargia (21%); alteração da marcha e da 2. Vômito em jato: ocorre em 70% dos casos de HIC. Ocorre pelo coordenação (19%); perda de peso (14%); abaulamento de aumento da PIC e por distensão do assoalho do IV ventrículo. fontanela, hidrocefalia (13%); convulsões, papiledema, cefa3. Letargia (Figura 3) e distúrbios de comportamento: 20% dos leia (10%); sinais neurológicos focais (10%); sinais e sintomas casos de HIC. O paciente apresenta-se sonolento, com reduinespecíficos de HIC (9%); deficiência motora focal (7%). ção do nível de consciência. 2. > 4 anos de idade: cefaleia (33%); náusea e vômito (32%); al4. Papiledema: ocorre em 80% dos casos de HIC. O nervo óptico teração da marcha e coordenação (27%); papiledema (13%); é envolvido por um prolongamento do espaço subaracnóideo, convulsões (13%); sinais e sintomas inespecíficos de HIC sendo assim circundado por LCR. Com o aumento da PIC (10%); estrabismo (7%); macrocefalia (7%); paralisia de ner(que é distribuída pelo LCR para todo o SNC), há uma comvos cranianos (7%); letargia (6%); nistagmos (6%). pressão da veia oftálmica (que tem um trajeto parcial dentro do nervo), dificultando, assim, o retorno venoso e promoven- Imagem do o ingurgitamento da veia central da retina. O papiledema é Os tumores do SNC têm a capacidade de disseminação para detectado pelo exame de fundo de olho. outras partes do SNC, mas raramente atingem outros órgãos. 5. Paralisia do VI par: apresenta-se com desvio medial do olho Inicialmente deve ser feita a tomografia computadorizada por paresia ou paralisia do músculo reto lateral do olho. Dessa (TC) de crânio, pois é um exame com boa sensibilidade. No forma, o olho não consegue fazer abdução completa porque o entanto, deve ser seguida por ressonância magnética (RM) do reto medial, que está normal, traciona o olho para dentro. O crânio sempre com contraste (gadolínio), considerando que é paciente apresenta então diplopia e o desvio da cabeça (Figu- um exame sem radiação e com melhor acurácia que a TC. ra 3) compensatório para o mesmo lado da lesão (serve para Após o diagnóstico do tumor de SNC, o paciente deve fazer compensar a diplopia). exames para estadiamento (para avaliar a extensão da doen6. Crianças pequenas: macrocefalia (pela fontanela ainda aberta, permitindo que o encéfalo possa expandir seu conteúdo), fontanelas abauladas, disjunção das suturas, irritabilidade, atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, olhar “do sol poente” (olhos voltados para baixo, deixando a esclera visível entre a pálpebra superior e a íris; elevação da sobrancelha; fronte proeminente). Sintomas localizados8 1. Coluna: dor nas costas, disfunção intestinal, bexiga neurogênica. 2. Suprasselar: deficiência visual, endocrinopatias (diabete insípido, hipotireoidismo, puberdade precoce, atraso no desenvolvimento de caracteres sexuais secundários), perda ou ganho de peso, aumento da PIC, síndrome diencefálica. 3. Tronco cerebral: déficit neurológico, hemiparesia, aumento da PIC. 4. Hemisférios cerebrais: hemiparesia, aumento da PIC, convulsão, mudança de comportamento. Os principais tumores do SNC, de acordo com a região encefálica acometida e a estrutura cerebral comprometida, são:2,7 • astrocitoma de baixo grau, astrocitoma anaplásico, glioblastoma multiforme e craniofaringioma: região supratentorial (região acima da tenda do cerebelo); • astrocitoma cerebelar, meduloblastoma e ependimoma: tumor de tronco cerebral infratentorial (cerebelo e tronco cerebral);
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Letargia/estrabismo
Estrabismo (paralisia do VI par)
Opistótono
Posição desviada da cabeça
Figura 3 Sinais e sintomas dos tumores intracranianos do SNC. Fonte: arquivo pessoal da autora.
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Tumores do Sistema Nervoso Central •
ça), bem como deve ser encaminhado para tratamento em serviço de referência em oncologia pediátrica. Para medulo‑ blastomas, tumores neuroectodérmicos primitivos (PNET) e ependimomas, é necessário realizar RM da coluna, já que es‑ ses tumores têm mais facilidade de disseminação liquórica. Devem ainda ser realizados o mielograma e a biópsia de me‑ dula óssea (em alguns casos) para os pacientes com medulo‑ blastoma, pelo risco de invasão na medula óssea. Alguns ca‑ sos precisam de cintilografia óssea. Os tumores supratentoriais são mais frequentes em crian‑ ças menores de 2 anos de idade. Os tipos histológicos incluem glioma de baixo grau (astrocitoma pilocítico, fibrilar), glioma de alto grau (astrocitoma anaplásico, glioblastoma multifor‑ me) e craniofaringioma (Figura 4). Os tumores infratentoriais são mais frequentes em crianças entre 2 e 10 anos de idade. Em 60% dos casos, os tumores da infância são infratentoriais. Os tipos histológicos são astroci‑
Astrocitoma pilocítico de vias ópticas
1581
toma cerebelar, meduloblastoma, ependimoma e tumor de tronco cerebral (Figura 5). Estudo histopatológico Os tumores de SNC incidem em qualquer idade e podem se originar em todos tecidos que o constituem, formando, assim, um grupo muito heterogêneo. O termo maligno ou benigno tem diferentes conotações para SNC. Os tumores podem ser histologicamente benignos, mas em áreas inoperáveis, ou seja, com comportamento maligno. Segundo a OMS,5 os tumores de SNC são classificados quanto a sua origem histológica em: 1. Tumores de tecidos neuroepiteliais: • células gliais: maioria dos tumores é de origem das células gliais (gliomas): -- astrócitos: responsáveis pela sustentação e nutrição dos neurônios; -- oligodendrócitos: fabricam mielina;
Tumor ventricular (plexo coroide)
Craniofaringioma (cístico sólido)
Figura 4 Exames de imagem de alguns tumores supratentoriais. Fonte: arquivo pessoal da autora.
Astrocitoma cerebelar
Meduloblastoma
Tumor de tronco cerebral
Figura 5 Exames de imagem de alguns tumores infratentoriais. Fonte: arquivo pessoal da autora.
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• • • • • •
-- células ependimárias: revestem os ventrículos; -- microglias: células de defesa do SNC; neurônios: enviam impulsos nervosos (tumor raro); plexo coroide: dentro dos ventrículos (células responsá‑ veis pela produção de LCR); meninges: revestimento externo do cérebro e medula espinal; células de Schwann: produzem mielina; hipófise: glândula; pineal: glândula.
Gliomas é a denominação que se refere a astrocitomas, oligo‑ dendrogliomas e ependimomas. 2. Tumores embrionários:
• meduloblastoma (PNET cerebelar); • PNET de SNC (não cerebelares); • tumores teratoides/rabdoides atípicos.
Citologia do LCR O LCR deve ser avaliado por sua capacidade de disseminar es‑ ses tumores para qualquer parte do SNC. É obrigatório descar‑ tar a HIC antes da coleta desse exame. É contraindicada a punção liquórica para diagnóstico. Ela deve ser realizada pelo especialista para estadiamento, com segurança, aproximada‑ mente 2 semanas após a exérese da lesão. Tipos de tumores mais frequentes É importante citar que, apesar do tipo histológico, o prognósti‑ co dos tumores de SNC depende de sua localização, pois exis‑ tem tumores de histologia bastante favorável, porém a doença é de prognóstico reservado pela impossibilidade de ressecção.
Consenso multidisciplinar, preocupando-se com a aborda‑ gem cirúrgica (método Delphi), classificou os tumores em:11 1. Tumores de baixo grau: • 39% são de região supratentorial e linha média, incluindo hipotálamo, quiasma, nervo óptico, sistema ventricular e outras estruturas da linha média; • 32% em cerebelo; • 13,1% no córtex cerebral; • 4,5% na medula espinal; • 10% no tronco cerebral. 2. Tumores de alto grau: • 63% são corticais; • 28% na linha média estruturas supratentoriais; • 11% no tronco cerebral. Gliomas diencefálicos2,8,11 Pico de incidência em torno de 3 anos de vida. Tendem a ser de baixo grau (somente o astrocitoma pilocítico e o fibrilar que são vistos nessa região em crianças). Em 10 a 20% dos casos, associam-se com a neurofibromatose tipo 1. À medida que as crianças crescem, a progressão desses tumores tende a dimi‑ nuir. A visão é ameaçada em todas as idades. Apresentam-se com grandes tumores durante a infância e hidrocefalia (pode ser um fator complicador). São crônicos e recidivantes. O ob‑ jetivo geral é “ganhar tempo”, controlando a progressão do tu‑ mor com estratégias clínicas, visando a minimizar os danos. Portanto, o tratamento utilizado é a quimioterapia. Ressecção cirúrgica não é o tratamento padrão atual recomendado para gliomas hipotalâmicos/quiasmáticos, pelo risco de danos vi‑ suais (Figura 6).
Astrocitomas2,8 • Localização supratentorial: hipotálamo, vias ópticas (quias‑ ma/nervo óptico) e corticais; • localização infratentorial: cerebelo (hemisfério cerebelar). São gliomas e correspondem a 42% das neoplasias do SNC na faixa etária pediátrica. Podem acometer todas as regiões do SNC e, em 15% dos casos, associam-se a neurofibromatose tipo 1 (NF1). A localização anatômica determina a ressecabili‑ dade (que é um fator prognóstico relevante). Quanto maior a ressecção, maior a sobrevida, tanto para os tumores de baixo quanto para os de alto grau. São classificados pela OMS em difusos e pilocíticos, e divi‑ didos em baixo e alto grau: 1. Pilocíticos: grau I (baixo grau). 2. Difusos: astrocitoma difuso de baixo grau (grau II): • astrocitoma anaplásico (grau III); • glioblastoma multiforme (grau IV). Novos marcadores biológicos aliados a modernas técnicas de radioterapia (radioterapia de intensidade modulada – IMRT; com feixe de protóns) estão alterando as avaliações de risco e, consequentemente, as decisões clínicas.10
Figura 6 Gliomas diencefálicos: tálamo, hipotálamo e quiasma. Fonte: arquivo pessoal da autora.
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Tumores do Sistema Nervoso Central •
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Glioma infratentorial de baixo grau2,8 É um tumor que pode conter áreas cístico-sólidas. Quando in‑ fratentorial, tende a atingir o hemisfério cerebelar (Figura 7). Podem comprimir o IV ventrículo provocando um quadro de HIC. Tem indicação de cirurgia. Se a ressecção for completa, não precisa de tratamento complementar.
A classificação histológica realizada pela OMS subdivide o meduloblastoma em 4 tipos:12 • desmoplásico/nodular; • extensiva nodularidade; • anaplásico; • grandes células.
Glioma pontino difuso2,8,11 É o tumor de tronco cerebral (ponte) que cresce intrinseca‑ mente ao tronco. Consenso neurocirúrgico anterior concluiu que a biópsia não era indicada, porque a identificação histoló‑ gica não alterou a terapia ou o prognóstico. Contudo, um con‑ senso atual, validando o refinamento de abordagens cirúrgi‑ cas, considerou o tumor pontino difuso (Figura 8) um alvo seguro para biópsia estereotáxica, apenas para efeito de estu‑ do clínico e em casos selecionados (para explorar a natureza biológica desses tumores).
O consenso mais atual classifica o meduloblastoma em 4 sub‑ grupos moleculares distintos, ou seja, WNT, SHH (Via Sonic hedgehog), grupo 3 (Myc) e grupo 4.12
Gliomas de alto grau (astrocitoma anaplásico e glioblastoma multiforme)2,8 Correspondem a 10% dos tumores de SNC na infância, ocorren‑ do classicamente em regiões corticais e gânglios basais (Figu‑ ra 9). São tumores infiltrativos, irregulares e com áreas de ne‑ crose. São altamente vascularizados, sugerindo interferência do fator de crescimento vascular endotelial (vascular endothelial growth factor – VEGF). No entanto, o uso de terapia-alvo, anti‑ -VEGF (bevacizumabe), em crianças foi desapontador. Meduloblastoma (tumor embrionário)12 Tumor embrionário de pequenas células redondas e azuis da fossa posterior (Figura 10). Considerado um PNET do cerebe‑ lo. É altamente maligno. Comum em menores de 10 anos de idade. Corresponde a aproximadamente 20% dos tumores de SNC em crianças.
Figura 7 Glioma infratentorial de baixo grau. Fonte: arquivo pessoal da autora.
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Figura 8 Glioma pontino difuso. Fonte: arquivo pessoal da autora.
Figura 9 Glioma de alto grau. Fonte: arquivo pessoal da autora.
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• alto risco: 3 anos de idade ou menos, cirurgia com massa residual > 1,5 cm, presença de metástases e/ou histologia anaplásica/grandes células. A terapêutica inicial visa a combater a HIC (urgência) com a realização de derivação ventricular peritoneal (DVP) ou com derivação ventricular externa (DVE) (Figura 11). A cirurgia com ressecção tumoral seguida da radioterapia (de crânio e medula espinal) e quimioterapia são ferramentas fundamentais para o tratamento. O transplante de célula-tronco hematopoética (TCTH) está indicado em casos selecionados. A taxa de sobrevida em 5 anos para o grupo padrão é de 81% (protocolo COG); para o de alto risco, de 65% (protocolo COG); e para os lactentes é de 70% (protocolo Head Start).
Figura 10 Meduloblastoma. Fonte: arquivo pessoal da autora.
A etiologia do meduloblastoma é desconhecida na maioria dos casos, mas tem grande associação com síndromes familiares, como a síndrome de Gorlin (gene PTCH1), síndrome de Turcot (gene APC), síndrome de Li-Fraumeni (gene TP53) e anemia de Fanconi (gene BCRA2). Do ponto de vista clínico, o tumor acomete o cerebelo, promovendo compressão do IV ventrículo e obstrução na passagem do LCR. Dessa forma, apresenta-se com quadro clínico de HIC, com cefaleia matutina, vômito, letargia, ataxia de tronco, disfunção dos VI e IV pares cranianos, além de papiledema. Em crianças com fontanela anterior aberta, ocorre macrocefalia e olhar “do sol poente”. A característica por imagem é de um tumor cerebelar (preferencialmente no verme cerebelar), bem definido, heterogêneo e captando bem o contraste. Inicialmente, deve ser feita a TC de crânio, mas obrigatoriamente deve ser realizada a RM de crânio para avaliação com maior precisão anatômica. Esse tumor tem forte tendência a se disseminar para dentro do SNC. Em 35% dos casos que ocorrem nas crianças, há metástases ao diagnóstico e 10% em adultos. Raras metástases ocorrem a distância, como na medula óssea, nos ossos e no fígado. Em adultos, podem ser observadas metástases pulmonares. Para estadiamento, devem ser realizadas RM da coluna (antes da cirurgia) e coleta do LCR para análise citológica (coletar durante ou após a cirurgia). Não deve ser realizada punção liquórica antes da cirurgia, pelo risco de o paciente estar com HIC e a punção causar descompressão, levando a herniação cerebelar. O mielograma/biópsia de medula óssea e a cintilografia óssea devem ser realizados somente em casos selecionados. O meduloblastoma pode ser estratificado em:12 • risco padrão: pacientes com mais de 3 anos de idade, cirurgia com tumor residual de, no máximo, de 1,5 cm, LCR com citologia oncótica negativa e ausência de metástases;
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Ependimoma13 Incidem mais em crianças menores de 5 anos de idade. A apresentação é heterogênea, incluindo hemorragias, necrose, cistos e padrão infiltrativo de crescimento. Ocorrem em todo o sistema nervoso, mas são mais comuns na região posterior do cérebro pediátrico. Tendem a disseminar para coluna espinal. Localizam-se em dois terços dos casos na fossa posterior e em um terço no córtex (supratentorial). O tratamento visa à ressecção cirúrgica e à radioterapia. Embora a quimioterapia adjuvante seja rotina para a maioria das crianças com tumores cerebrais malignos, para o ependimoma, os ensaios clínicos não mostraram qualquer benefício de sobrevida, mesmo nas recaídas da doença. Existem dois subtipos distintos de ependimoma de fossa posterior: • grupo posterior fossa A: encontrado predominantemente em lactentes, sendo associado com mau prognóstico, apesar de terapia agressiva; • grupo fossa posterior B: encontrado em crianças mais velhas e adultos, com bom prognóstico. Os tumores ependimais estão atualmente classificados apenas pelo exame histopatológico. No entanto, estudos identificaram 9 subgrupos moleculares em uma grande coorte de 500 tumores, 3 em cada compartimento anatômico do SNC (coluna vertebral, fossa posterior e supratentorial).
Figura 11 Derivação ventricular peritoneal (DVP) e válvula implantada. Fonte: arquivo pessoal da autora.
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Tumores do Sistema Nervoso Central •
Craniofaringioma8,12 É comum na região suprasselar. Trata-se de tumor benigno, originário dos remanescentes da bolsa de Rathke. Associa-se frequentemente a alteração hormonal (diabete insípido, pu‑ berdade precoce, baixa estatura, entre outros). O exame de imagem revela presença de massa selar/su‑ prasselar, cística/sólida e multilobulada. A lesão cística é preenchida por conteúdo proteico e hemorrágico. Calcifica‑ ções são frequentes, na ordem de 70%. Em relação à abordagem terapêutica, não há consenso na literatura. Alguns centros fazem a cirurgia exclusiva. Caso seja completamente ressecado, não necessita de terapia comple‑ mentar, porém a completa ressecção pode resultar em aumen‑ to da morbidade endócrina e neurológica. Outros centros fa‑ zem a radioterapia exclusiva, e outros ainda fazem a associação de ambos. Alguns centros têm utilizado o interfe‑ ron no componente cístico para impedir sua evolução. A taxa de sobrevida é em torno de 80 a 100%, com associa‑ ção da cirurgia e da radioterapia. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber identificar os sinais e sintomas dos tumores do SNC de acordo com as regiões cerebrais acometidas. • Identificar as síndromes que mais se associam aos tumores do SNC. • Conhecer a classificação histológica dos tumores de SNC na infância. • Identificar os principais exames de imagem para avaliação da doença e sua extensão. • Saber os principais diagnósticos diferenciais de acordo com a localização primária da doença. • Apontar os princípios gerais para o tratamento e os principais fatores prognósticos. • Reconhecer a relevância da participação do pediatra no diagnóstico precoce dos tumores do SNC. • Compreender que o prognóstico está relacionado à adequada investigação e tratamento em centro pediátrico de referência em oncologia.
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CAPÍTULO 11
TUMORES ÓSSEOS Ana Paula Kuczynski Pedro Bom
Introdução la originária.1 Pacientes com retinoblastoma hereditário, sín‑ Os tumores ósseos caracterizam-se por uma proliferação anor‑ dromes de Rothmund-Thomson, Li-Fraumeni e Werner têm mal de células em determinado local do esqueleto. Podem ser uma predisposição maior para desenvolver a doença. Sugere‑ primários, quando se desenvolvem originalmente no próprio -se que alterações nos genes RB1, RECQL4, TP53 e WRN, asso‑ tecido ósseo; ou secundários, quando são provenientes de ou‑ ciadas a essas doenças, respectivamente, podem ter um papel tro local. Os tumores primários são mais frequentes em crian‑ na patogênese do osteossarcoma. Em relação à citogenética, ças, adolescentes e adultos jovens, podendo ser benignos ou há cariótipos altamente complexos, com muitas anormalida‑ malignos.1 des numéricas e estruturais, porém anormalidade citogenética Os tumores benignos geralmente têm evoluções muito len‑ consistente ainda não foi identificada.3,4 Existem três subtipos tas, muitas vezes iniciando na infância e sendo diagnostica‑ convencionais de osteossarcoma: osteoblástico, condroblásti‑ dos apenas na idade adulta. Frequentemente, o diagnóstico co e fibroblástico, conforme a predominância da matriz do te‑ por imagem é suficiente, sendo raro necessitar de biópsia. O cido tumoral.1 O tratamento e a evolução dos três subtipos são tratamento nem sempre é realizado pela intervenção cirúrgica. iguais. Há outros subtipos menos comuns, como paraosteal, Os tumores ósseos benignos mais comuns na infância e na periosteal e central de baixo grau, correspondendo a 5% dos adolescência são osteocondroma, encondroma, osteoblasto‑ casos. Os subtipos paraosteal e o de baixo grau têm prognósti‑ ma, osteoma osteoide, cisto aneurismático e displasia fibrosa.1 co favorável com ressecção cirúrgica completa.5 Os tumores malignos, ao contrário, têm crescimento rápido e progressivo, manifestando-se geralmente com aumento de Manifestações clínicas e diagnóstico volume doloroso, sem alívio com analgésicos comuns. A maio‑ Geralmente, as queixas mais comuns são dor e aumento de ria dos pacientes apresenta-se com metástases ao diagnóstico. volume no local acometido, com piora progressiva e, em geral, Correspondem aproximadamente a 8% das neoplasias malig‑ sem melhora com o uso de analgésicos ou anti-inflamatórios nas da infância e adolescência, sendo os mais comuns o os‑ prescritos de rotina. Frequentemente os sintomas são atribuí‑ teossarcoma e o tumor de Ewing.1 dos a traumatismos relacionados a quedas ou decorrentes de prática esportiva, o que, não raro, leva ao atraso do diagnósti‑ Osteossarcoma co. Dor no período noturno, sintomas associados, como febre Epidemiologia e perda de peso, e persistência ou piora da dor devem alertar O osteossarcoma é o tumor ósseo maligno mais comum em os pediatras e ortopedistas a uma urgente investigação ou en‑ crianças e adolescentes, correspondendo a mais de 60% dos caminhamento para um centro de tratamento especializado.6 casos. O pico de incidência é na 2ª década de vida, sendo co‑ O osteossarcoma geralmente ocorre na porção metafisária mum durante a fase do estirão da puberdade, com predomínio dos ossos longos, sendo mais frequente no fêmur distal e na tí‑ no sexo masculino (1,4:1). A incidência anual nos EUA é de bia proximal, seguida pelo úmero proximal e fêmur proximal. 4,4 por milhão.2 Cerca de 50% dos pacientes apresentam o tumor no fêmur. Os ossos planos, entre eles, a pelve, podem estar acometidos em Biologia e patologia 20% dos casos.6 O osteossarcoma de alto grau é derivado principalmente das Aproximadamente 15 a 20% dos pacientes apresentam me‑ células mesenquimais primitivas e parcialmente da linhagem tástases detectáveis ao diagnóstico, sendo o pulmão o local de células osteoblásticas, permanecendo ainda incerta a célu‑ mais comum, correspondendo a 90% dos sítios de metástases.
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Tumores Ósseos •
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Outros locais menos acometidos são os outros ossos e, menos quimioterápicos, sendo geralmente 1 ano o tempo global de frequente ainda, as linfonodomegalias, que podem estar pre‑ tratamento.7 As metástases pulmonares e/ou em outros ossos sentes e próximas aos locais dos tumores primários, em geral devem ser ressecadas, caso contrário, não há possibilidades nos pacientes diagnosticados tardiamente.6 de cura para o paciente.6 A radiografia simples do osso afetado é útil para evidenciar A radioterapia convencional é pouco eficaz, e o controle lo‑ algumas alterações, como lesões osteoblásticas, osteolíticas cal do tumor primário deve ser feito sempre que possível, com ou mistas. Geralmente, há um componente de tecidos moles ressecção cirúrgica completa.6 com calcificações irregulares, resultantes de neoformação ós‑ Com a quimioterapia associada à cirurgia, a sobrevida glo‑ sea. Podem também ser observadas espículas ósseas. Uma bal e a sobrevida livre de eventos para pacientes com doença área triangular de calcificação periosteal entre a margem do não metastática podem variar aproximadamente de 65 a 75% tumor e o tecido normal é conhecido como triângulo de Cod‑ em 5 anos.7 Pacientes com metástases pulmonares ou ósseas man, o qual é característico do osteossarcoma.6 A ressonância têm uma sobrevida de aproximadamente 25 a 50% em 5 magnética (RM) é a melhor modalidade para acessar o com‑ anos.8 ponente de tecidos moles, as relações do tumor com os teci‑ dos adjacentes, vasos e nervos e a extensão intramedular, cuja Sarcoma de Ewing avaliação é essencial para indicação da cirurgia definitiva. A O sarcoma de Ewing, o tumor neuroectodérmico primitivo RM deve incluir todo osso envolvido e as articulações próxi‑ (PNET), o sarcoma de Ewing extraósseo e o PNET toracopul‑ mas, para que nenhuma lesão deixe de ser observada, assim monar (tumor de Askin) fazem parte dos tumores da família como o tumor intramedular, que pode não ter contato direto Ewing (TFE). Em virtude das semelhanças histológicas, imu‑ com a lesão primária.6 no-histoquímicas e de translocações cromossômicas, sugere‑ Ao diagnóstico, é necessário ainda realizar tomografia com‑ -se que esses tumores tenham a mesma origem, ou seja, a par‑ putadorizada (TC) de tórax para pesquisa de metástases pul‑ tir das células progenitoras mesenquimais da medula óssea. O monares e cintilografia óssea para detecção de metástases nos sarcoma de Ewing ósseo é mais comum e geralmente acomete outros ossos.6 ossos longos, pelve e esqueleto axial.9 A avaliação completa do paciente deve incluir hemograma, funções renal e hepática, desidrogenase lática (LDH), fostata‑ Epidemiologia se alcalina (FA), ecocardiograma, eletrocardiograma e audio‑ O sarcoma de Ewing é o segundo tumor primário ósseo malig‑ metria. Não há marcador específico para osteossarcoma, en‑ no mais comum na infância e na adolescência. A incidência tretanto, elevações do LDH e, em especial, da FA estão aproximada é de 9 a 10 casos por 1 milhão em pacientes entre relacionadas a prognósticos mais reservados.6 10 e 19 anos de idade nos EUA. A ocorrência desse tumor é 9 Preferencialmente, a avaliação do paciente com suspeita vezes mais comum em caucasianos, com leve predominância de tumor ósseo deve ser realizada em instituições que tenham no sexo masculino (1,1:1).10 uma equipe especializada já na indicação da biópsia da lesão. O ideal é que o material seja encaminhado para serviços de Biologia e patologia anatomia patológica e biologia molecular. Somente com o es‑ Na histopatologia, o sarcoma de Ewing apresenta-se como tudo histopatológico se confirma o diagnóstico.2 proliferação uniforme de pequenas células redondas, azuis, com citoplasma eosinofílico e nucléolos não evidentes. Pseu‑ Tratamento e prognóstico dorrosetas podem ocasionalmente estar presentes no PNET. Associado ao tratamento específico do tumor, os pacientes Cerca de 80% dos sarcomas de Ewing e de PNET expressam o com dor devem receber analgesia, uma vez que a maioria apre‑ marcador imuno-histoquímico CD99 (produto do gene MIC2), senta grandes massas tumorais ao diagnóstico. No tratamento sendo útil para auxiliar o diagnóstico.11 Aproximadamente da dor de forte intensidade, a administração de derivados 95% dos sarcomas de Ewing /PNET têm uma translocação es‑ opioides é o mais indicado.6 pecífica, t(11;22)(q24;q12), caracterizada como EWSR1-FLI1 O tratamento direcionado para o tumor consiste em qui‑ pela biologia molecular.12 mioterapia e cirurgia. A quimioterapia neoadjuvante contribui para a diminuição do tumor e, consequentemente, facilita a Manifestações clínicas e diagnóstico ressecção tumoral, além de atuar no controle ou na supressão Os sintomas mais frequentes são dor e aumento de volume do de micrometástases não identificáveis com os métodos habi‑ local acometido, com piora progressiva, podendo limitar os tuais.2 Os quimioterápicos mais utilizados são metotrexato movimentos. Nos pacientes com comprometimento da colu‑ em altas doses, doxorrubicina e cisplatina. Alguns centros de na vertebral, eventualmente podem aparecer sintomas neuro‑ tratamento também incluem o uso de ifosfamida.6,7 Atual‑ lógicos decorrentes de compressão de raízes nervosas. Nos mente, poucos pacientes são submetidos à amputação de diagnósticos tardios, também podem ocorrer febre, hiporexia, membros, porém, a ressecção cirúrgica deve ser completa. perda de peso, astenia e anemia.10 Nas cirurgias conservadoras, são indicadas endopróteses e en‑ O sarcoma de Ewing primário ósseo pode acometer ossos xertos ósseos, vascularizados ou não.6,7 Depois da cirurgia, os longos, chatos e planos, ocorrendo em membros inferiores pacientes permanecem em quimioterapia com os mesmos (41%), pelve (26%), parede torácica (16%), membros superio‑
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res (9%), coluna vertebral (6%), mãos e pés (3%) e crânio (2%).10 Os tumores extraósseos acometem com maior frequência o tórax (32%), seguido por extremidades (26%), cabeça e pesco‑ ço (18%) e retroperitônio (16%). Em 9% dos casos, ocorrem em outros locais.13 Aproximadamente 25% dos pacientes apresentam metás‑ tases ao diagnóstico.10 O pulmão e os ossos são os locais mais acometidos, seguidos pela medula óssea. Geralmente, as me‑ tástases pulmonares são assintomáticas. Os pacientes com metástases ósseas e/ou em medula óssea podem referir dor nos locais acometidos. Nos diagnósticos muito tardios, alguns pacientes podem apresentar linfonodomegalias, próximas ao local do tumor primário. Os pacientes com metástases pulmo‑ nares têm melhor prognóstico do que os que apresentam me‑ tástases em outros locais.14 A radiografia simples revela destruição óssea com margens pouco definidas, associada a descolamento do periósteo com aspecto de “casca de cebola”. A RM é o exame mais adequado para complementar a radiografia simples, pois permite deta‑ lhar todas as características do tumor, as relações com os teci‑ dos adjacentes, vasos e nervos e a extensão intramedular.15 Para o estadiamento, é necessário solicitar TC de tórax, cin‑ tilografia óssea e biópsia de medula óssea. A tomografia por emissão de pósitrons (PET-CT) vem sendo indicada em al‑ guns centros de referência de tratamento.15 A avaliação completa laboratorial do paciente deve ser a mes‑ ma referida anteriormente em relação ao osteossarcoma. Diagnóstico diferencial A osteomielite pode ter quadro clínico e achados radiológicos semelhantes ao sarcoma de Ewing. Nos pacientes com doença metastática, sintomas inespecíficos como febre e comprome‑ timento do estado geral podem simular sintomas de septice‑ mia. As crianças menores de 5 anos de idade com doença dis‑ seminada também podem ter sintomatologia semelhante às leucemias agudas e ao neuroblastoma avançado.15 Fatores prognósticos Pacientes com metástases ao diagnóstico têm baixos índices de cura, com sobrevida global em 5 anos de 20 a 40%, varian‑ do conforme os centros de tratamento.14 A doença metastática é mais prevalente quando os tumores são maiores que 8 cm e quando localizados no esqueleto axial.14 Foram definidos 4 grupos de risco para o sarcoma de Ewing:14 1. Favorável: idade abaixo de 14 anos com tumores localizados, exceto em pelve. 2. Intermediário: idade acima de 14 anos com tumores localiza‑ dos ou localização pélvica. 3. Desfavorável – pulmonar: metástases pulmonares isoladas. 4. Desfavorável – extrapulmonar: metástases extrapulmonares. Assim como para o osteossarcoma, não existe um marcador específico para sarcoma de Ewing, entretanto, níveis elevados de LDH estão relacionados a piores prognósticos.15
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Tratamento Anteriormente à era da quimioterapia, menos de 10% dos pa‑ cientes com TFE sobreviviam, apesar da utilização da radio‑ terapia. A partir da utilização de combinações de quimioterá‑ picos associados à cirurgia e à radioterapia, os índices de cura tornaram-se superiores a 50%. A maioria dos centros de tra‑ tamento segue as orientações dos grupos cooperativos espe‑ cíficos para o tratamento dos TFE, visando a melhores resul‑ tados.15 Após a confirmação do diagnóstico por meio da biópsia do tumor, o paciente deve ser submetido ao tratamento quimio‑ terápico, antes do tratamento cirúrgico local. Os protocolos in‑ dicam de 4 a 6 ciclos de combinação de drogas, como ifosfami‑ da, etoposídeo, vincristina, dactinomicina, ciclofosfamida e doxorrubicina.15 O tratamento local com cirurgia, sempre que possível, deve ser direcionado para ressecção completa do tumor, com pre‑ servação do membro. Entretanto, dada a complexidade do sis‑ tema musculoesquelético e a localização do tumor primário, alguns tumores podem ser ressecados apenas parcialmente e outros podem ser irressecáveis. Nessas eventualidades, é indi‑ cada a radioterapia, bem como para os tumores com margens cirúrgicas comprometidas pelo tumor.15 Após o tratamento cirúrgico e/ou radioterápico, os pacien‑ tes continuam recebendo quimioterapia, em geral, com os mesmos quimioterápicos inicialmente utilizados. O tratamen‑ to global é comumente de 12 meses.15 As baixas chances de cura nos pacientes com doença me‑ tastática não têm mudado significativamente, apesar de déca‑ das de pesquisas e terapias mais intensivas. Pela evidência da baixa sobrevida nesse grupo de pacientes, a radioterapia fre‑ quentemente é o tratamento de escolha para o controle local da doença, não se levando em consideração o risco de uma se‑ gunda neoplasia tardia. Portanto, os protocolos de tratamento atuais recomendam a terapia local para todos os sítios conhe‑ cidos de doença metastática. Evidências recentes sugerem que a terapia local agressiva pode estar associada à maior so‑ brevida livre de doença nesse grupo de pacientes.16 O papel do transplante de célula-tronco hematopoética (TCTH) autólogo, utilizando altas doses de quimioterapia para pacientes de alto risco, com metástases ao diagnóstico ou para as recidivas, ainda é controverso. A maioria desses estudos re‑ lata sobrevida livre de eventos de 20 a 30% em um período de 2 a 3 anos.17 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Relacionar queixas de dor e aumento de volume com piora progressiva aos tumores ósseos malignos. • Considerar o diagnóstico de tumor ósseo nos pacientes com histórico prévio de trauma ou de queda e que apresentam piora dos sintomas dolorosos. • Encaminhar, em caráter de urgência, os pacientes com sintomas/sinais e achados radiográficos característicos de tumor ósseo para centros de referência especializados.
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• Saber que o osteossarcoma e o sarcoma de Ewing são os tumores ósseos primários malignos mais comuns na infância e na adolescência. • Reconhecer que o risco de micrometástases no osteossarcoma é alto. • Apontar os fatores prognósticos e os princípios gerais do tratamento para os tumores ósseos malignos. • Identificar os diagnósticos diferenciais para o sarcoma de Ewing.
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CAPÍTULO 12
HEMOGLOBINOPATIAS Denise Bousfield da Silva Sandra Regina Loggetto
Introdução A beta-talassemia homozigota, geralmente denominada beta‑ No ser humano adulto sadio, aproximadamente 95% da he‑ -talassemia maior, é o resultado do estado homozigoto, tanto do tipo moglobina (Hb) é constituída por HbA (também chamada de beta+ quanto do tipo beta0 ou, em casos mais raros, de um compo‑ HbA1) e o restante por HbA2 e/ou HbF (fetal). A HbA1 é for‑ nente heterozigoto de beta+/beta0 talassemia. Pacientes homozi‑ mada por um tetrâmero, de duas cadeias de globina alfa e duas gotos para os genes da beta-talassemia+ costumam ser afetados cadeias de globina beta.1 A HbA2 é composta por duas cadeias com menos gravidade que aqueles homozigotos para genes beta0, alfa e duas cadeias delta, e a HbF, por duas cadeias alfa e duas sendo capazes, assim, de produzir alguma HbA.2,6,7 2,3 cadeias gama (< 1 a 2% em indivíduos adultos). O termo beta-talassemia intermediária é resultante de dife‑ As hemoglobinopatias (Hb variantes) podem ser divididas rentes interações genéticas e refere-se ao paciente sintomático em dois grandes grupos: as talassemias (diminuição da produ‑ com beta-talassemia, mas que não requer regime transfusional ção de cadeia globina) e as variantes estruturais da Hb (HbS, durante pelo menos os primeiros anos de vida. A Hb de 7 g/dL é HbC, etc.).2 o nível geralmente utilizado para distinguir a talassemia inter‑ Mundialmente, tem sido descrito um grande número de mediária da beta-talassemia maior.2,5-7,9 hemoglobinas variantes, porém a maioria não causa proble‑ Mutação no gene da betaglobina tem importância na produ‑ mas clínicos ou hematológicos. Neste capítulo, serão aborda‑ ção da HbE, comum no sudeste da Ásia. A associação da HbE/ das as talassemias e a doença falciforme, em decorrência de beta-talassemia resulta em quadro grave de talassemia.5 sua importância clínica. As talassemias alfa decorrem de alterações nos grupamentos de genes codificadores de globinas alfa (alfa-1 e alfa-2). O gene do lócus Talassemias alfa é duplicado nos seres humanos, tendo, portanto, cada indiví‑ As talassemias são doenças hereditárias e heterogêneas que duo, quatro genes de cadeia alfaglobina. A alfa-talassemia0 resulta determinam deficiências seletivas na síntese de cadeias de da deleção em ambas as cadeias alfa do cromossomo 16. Caso a mu‑ globina, resultando em eritropoese ineficaz, hemólise intra‑ tação ocorra em ambos os cromossomos, não haverá produção de medular e anemia de grau variável. São classificadas segundo cadeias alfa e será impossível a vida extrauterina (--/--).2,4,5,7,8 a cadeia polipeptídica afetada, sendo as do tipo alfa e beta as A alfa-talassemia+ resulta na redução da produção de ca‑ 2,4-7 mais frequentes e bem definidas. deias alfa, em geral, por conta da deleção de um ou dois lócus No cromossomo 16, localizam-se os genes que codificam a de cadeia alfa no cromossomo afetado. Portanto, na alfa-talas‑ produção das globinas alfa, e no cromossomo 11, os genes da semia, ocorre deleção de 1, 2, 3 ou 4 genes. A Hb de Constant beta, delta e gama.5-8 Spring (HbCS) é uma variante em que a mutação do gene da O padrão de herança da doença geralmente é autossômico alfaglobina pode produzir fenótipo talassêmico.2,5,7,8 recessivo, sendo causada por alterações nesses genes, que va‑ Os indivíduos com traço alfa ou beta-talassêmico podem riam desde total deleção ou rearranjos do lócus até mutações ser inteiramente assintomáticos e não terem conhecimento pontuais.2,5-7 de seu diagnóstico.2,4,6-8 Há dois tipos principais de subclassificação das beta-talas‑ semias, identificadas por beta mais (beta+) e beta zero (beta0), Epidemiologia que refletem a redução ou a ausência de síntese das cadeias Os indivíduos com beta-talassemia são mais comumente en‑ beta, respectivamente.2,6,7 contrados no Mediterrâneo, Oriente Médio, sul e sudeste da
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Ásia e no sul da China. A HbE ocorre com maior frequência no sudeste da Ásia. Estima-se que 1,5% da população mundial (80 a 90 milhões de pessoas) tenha o gene da beta-talassemia. No Brasil, estima-se que tenham 221 casos de talassemia in‑ termediária e 301 de talassemia maior, sendo que, na região sudeste, está localizada a maioria dos casos.1-6 A alfa-talassemia é mais frequente na África tropical, Orien‑ te Médio, China, Índia, sudeste da Ásia e algumas regiões do Pacífico sul. As formas mais graves da doença estão no Medi‑ terrâneo e sudeste da Ásia. No Brasil, estima-se que ocorra em 4% da população.1,2,4,5,8 Fisiopatologia A beta-talassemia decorre de falha na produção de cadeias de betaglobina, conduzindo a um relativo excesso de cadeias alfa. O excesso da cadeia alfa determina instabilidade e incapacida‑ de em formar tetrâmeros solúveis, levando à precipitação den‑ tro das células. O grau de excesso de cadeia alfa determina a gravidade subsequente das manifestações clínicas, as quais são mais importantes na forma homozigota. Ocorre hemólise e hematopoese extramedular, além da eritropoese ineficaz, re‑ sultando em aumento da absorção do ferro pelo intestino e acentuação da sobrecarga de ferro, com consequente incre‑ mento no dano aos órgãos. Nesses pacientes, a hepcidina, re‑ guladora dos estoques de ferro, está diminuída, permitindo a absorção pelo intestino, mesmo na presença de sobrecarga de ferro.1-7 As síndromes alfa-talassêmicas decorrem de falha na pro‑ dução de cadeias alfa, levando a um relativo excesso das ca‑ deias beta. A toxicidade decorrente do excesso de cadeias beta sobre a membrana da célula vermelha parece ser menor que a decorrente do excesso das cadeias alfa na beta-talassemia. As síndromes alfa-talassêmicas ocorrem pela perda de 1 gene (carreador silencioso da alfa-talassemia: αα/α-), 2 (alfa-ta‑ lassemia menor: αα/-- ou α-/α-), 3 (doença da HbH: α-/--) ou 4 genes da cadeia alfa (Hb de Bart: --/--).1-5,8 Diagnóstico clínico A grande maioria dos pacientes com alfa ou beta-talassemia menor é assintomática. Na talassemia intermediária, o paciente é sintomático e seu grau de gravidade é variável, na dependência da presença de outras mutações na Hb.2-5,7,8,10 A beta e a alfa-talassemia maior correspondem ao grau má‑ ximo da doença. A primeira está associada à anemia depen‑ dente de transfusão, em longo prazo, e a última é incompatí‑ vel com a vida extrauterina.2-5,7 As crianças com beta-talassemia maior nascem bem, por‑ que a produção da cadeia beta não é essencial para vida fetal e período perinatal imediato. Portanto, os sintomas decorrentes da doença iniciam geralmente no 2º semestre de vida, quando a produção de cadeia de gamaglobina diminui e normalmente é substituída pela produção de betaglobina para formar a Hb adulta (HbA1 – alfa-2/beta-2). Assim, o diagnóstico na beta‑ -talassemia maior é realizado em torno dos 6 a 12 meses de vida.2-7
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A expressão clínica da gravidade do fenótipo é heterogênea e depende de uma variedade de fatores, baseados nas diferentes mutações que produzem a beta-talassemia e nas interações com alterações em outras cadeias de globinas. Esses pacientes apresentam palidez, irritabilidade, icterícia, retardo do cresci‑ mento e distensão abdominal pela presença de hepatoespleno‑ megalia, refletindo a presença de anemia hemolítica crônica.2-7 As mudanças ósseas em crânio, ossos faciais, costelas e os‑ sos das extremidades são decorrentes da expansão medular. A hepatomegalia é proeminente no curso precoce da doença por causa da destruição aumentada das células sanguíneas e pela eritropoese extramedular. A taxa acelerada de eritropoese au‑ menta a absorção intestinal de ferro, conduzindo a um estado crônico de sobrecarga de ferro. Os cálculos biliares e a inflama‑ ção do trato biliar podem decorrer da anemia hemolítica crôni‑ ca. A esplenomegalia maciça decorre precocemente do au‑ mento da taxa de destruição das células vermelhas e em razão da presença de hematopoese extramedular esplênica, poden‑ do conduzir ao quadro clínico característico do hiperesplenis‑ mo.2-7,11 As crianças com beta-talassemia maior apresentam defi‑ ciências imunes, particularmente secundárias à perda precoce da função esplênica. Os indivíduos com beta-talassemia maior ou com talassemia intermediária podem ter risco aumentado de fenômenos tromboembólicos após a esplenectomia.2,6,7,11 Na beta-talassemia maior, também são observadas anor‑ malidades endócrinas (hipogonadismo, retardo de crescimen‑ to, diabete melito, hipotireoidismo, etc.) atribuíveis em parte à sobrecarga crônica de ferro. Anormalidades cardíacas, in‑ cluindo a insuficiência cardíaca e as arritmias fatais, são fre‑ quentes causas de óbito.2,6,7 Os pacientes que apresentam infecção pelo eritrovírus hu‑ mano (parvovírus) B19 apresentam anemia acentuada, com contagem de reticulócitos próximo a zero e frequentemente requerem suporte transfusional.2,6,7 Em suma, os pacientes com beta-talassemia maior apre‑ sentam manifestações clínicas decorrentes da anemia crônica, dos estigmas da hemólise crônica, do dano dos órgãos decor‑ rentes da sobrecarga de ferro (pelas transfusões sanguíneas e pelo turnover de ferro acelerado), dos efeitos sistêmicos e lo‑ cais da rápida expansão da massa eritrocitária intra e extrame‑ dular, além das eventuais infecções decorrentes das transfu‑ sões sanguíneas.2-7 Na beta-talassemia intermediária, o quadro clínico é variável. Esses indivíduos na infância não necessitam de transfusões re‑ gulares para sobreviver, mas apresentam os estigmas clássicos da doença, incluindo expansão da medula óssea, hepatoesple‑ nomegalia e anemia hemolítica crônica. No início ou durante a adolescência, eles necessitarão de transfusões sanguíneas repe‑ tidas e/ou esplenectomia. É importante lembrar que muitos desses pacientes podem desenvolver sobrecarga de ferro mes‑ mo na ausência de terapia transfusional crônica, requerendo consideração para o uso de terapia quelante de ferro.2,6,7,12 Quanto ao traço beta-talassêmico (talassemia menor), a maioria dos pacientes é assintomática, apresentando leve anemia.2-7
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O carreador silencioso da alfa-talassemia (αα/α-) é essen‑ cialmente assintomático do ponto de vista clínico e laborato‑ rial.2,4,5,7,8 Na alfa-talassemia menor, em que há perda de 2 ge‑ nes (αα /-- ou α-α-), a manifestação clínica (anemia leve) pode ser semelhante a da beta-talassemia menor.2,4,5,7,8 Na doença da HbH (--/-α ou, mais raramente, por muta‑ ções que não envolvam a deleção), o paciente apresenta ane‑ mia hemolítica crônica moderada, com todos os seus estig‑ mas, como hepatoesplenomegalia, úlceras de perna e doença do trato biliar prematura. O recém-nascido é sintomático, ge‑ ralmente com icterícia e anemia. As alterações esqueléticas, metabólicas e de desenvolvimento decorrem da eritropoese ineficaz e tendem a ser menos graves que nos pacientes com beta-talassemia maior. O quadro clínico do paciente com doença da HbH é muito semelhante ao indivíduo com talasse‑ mia intermediária, não requerendo, em sua maioria, suporte transfusional crônico na 1ª década de vida.2,4,5,7,8 A Hb de Bart (ausência total da síntese de cadeia alfa) é uma condição incompatível com a vida extrauterina. A morte fetal por hidropsia geralmente ocorre no final do 2º para o 3º trimestre de gravidez.2,4,5,7,8 Diagnóstico laboratorial Os principais diagnósticos diferenciais da doença são a ane‑ mia ferropriva e a anemia das doenças crônicas.2,4,5 A abordagem inicial para detecção das hemoglobinopatias deve incluir avaliação clínica, hemograma, esfregaço sanguí‑ neo, contagem de reticulócitos, pesquisa de corpos de Heinz, eletroforese de Hb em acetato celulose ou citrato agarose e fo‑ calização isoelétrica em agarose.2,4-7 Caso o diagnóstico permaneça incerto, podem ser utiliza‑ das outras técnicas laboratoriais. A etapa final para identifica‑ ção das Hb variantes ou incomuns são os métodos de diagnós‑ tico molecular obtidos pelas técnicas de sequenciamento de DNA (amplificação e sequenciamento dos genes da globina pela reação de polimerase em cadeia – PCR e detecção das de‑ leções pela PCR).2,6,7 Na beta-talassemia maior, a anemia é importante (Hb 3 a 4 g/dL), hipocrômica e microcítica, e com presença de células em alvo e “em lágrima” no esfregaço sanguíneo. Pode também ser observada, com coloração especial, a presença de corpos de Heinz que representam as cadeias de alfaglobina precipita‑ das no interior das hemácias. A contagem de leucócitos e de reticulócitos é elevada. A contagem de plaquetas geralmente é normal. Na presença de hiperesplenismo, pode ser observada pancitopenia.2-7 Os pacientes com beta-talassemia menor tipicamente apre‑ sentam anemia leve (em geral, Ht > 30%), hipocrômica e mi‑ crocítica, hematimetria normal a elevada e amplitude de varia‑ ção do tamanho das hemácias (RDW) normal. A sobrevida das hemácias e a contagem de reticulócitos geralmente são nor‑ mais. Na eletroforese ou na cromatografia de alto desempenho, observa-se elevação da HbA2. Algumas formas de traço beta‑ -talassêmico podem não estar associadas à elevação da HbA2, como traço talassêmico delta-beta ou gama-delta-beta ou quando o traço talassêmico está associado com a mutação do
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gene da deltaglobina. Padrões eletroforéticos mais complexos podem ser observados nos pacientes com traço beta-talassêmi‑ co que tenham associação com o gene da anemia falciforme.2,5-7 O diagnóstico pré-natal é baseado no teste de DNA e pode ser realizado durante o 1º trimestre de gestação, obtido em amostras da vilosidade coriônica (tipicamente com 10 a 12 se‑ manas de gestação) ou nas células do fluido amniótico, obti‑ das pela amniocentese (tipicamente após 15 semanas de ges‑ tação). O teste genético pré-natal pode estar disponível para o casal que é de alto risco para ter um recém-nascido com hemo‑ globinopatias e que entenda os riscos e benefícios do procedi‑ mento após ter recebido o aconselhamento genético. No en‑ tanto, deve-se considerar que o diagnóstico pré-natal pode ser influenciado por questões éticas, sociais e culturais.6,7 Em relação às síndromes alfa-talassêmicas, o diagnóstico dos indivíduos carreadores silenciosos somente pode ser reali‑ zado via análise de DNA. No indivíduo com alfa-talassemia menor, o padrão da eletroforese de Hb é normal, podendo ser observadas pequenas elevações na HbH. Em alguns indiví‑ duos α-/α-, o diagnóstico somente é realizado por técnicas moleculares genéticas.2,7,8 Na doença da HbH, a anemia é moderada, as hemácias são microcíticas e a eletroforese de Hb mostra a presença de 5 a 30% de HbH. A HbH apresenta curva de dissociação do oxigê‑ nio desviada para esquerda, comprometendo, assim, o trans‑ porte de oxigênio. Em colorações especiais, podem ser obser‑ vados os corpos de inclusão. Ao nascimento, pode ser detectado cerca de 20 a 40% de Hb de Bart (gama 4). A genoti‑ pagem baseada no DNA é necessária para o diagnóstico preci‑ so, especialmente no período pré-natal.2,7,8 As Tabelas 1 e 2 descrevem, respectivamente, as caracterís‑ ticas clínico-laboratoriais da alfa-talassemia e o diagnóstico diferencial das beta-talassemias. Tratamento O efetivo controle das talassemias requer os tratamentos indi‑ vidual e comunitário, baseados em processos educacionais para conscientização sobre a doença. O aconselhamento gené‑ tico deve ser realizado para os casais de risco.2-8
Tabela 1 Características clínico‑laboratoriais da alfa ‑talassemia Fenótipo
Características clínica e laboratorial
Portador silencioso da alfa‑talassemia
Sem alteração hematológica Hb de Bart no período neonatal (1 a 2%)
Traço da alfa ‑talassemia
Leve anemia hipocrômica e microcítica Hb de Bart no período neonatal (5 a 6%)
Doença da HbH
Anemia moderada a grave Hb de Bart no período neonatal (20 a 30%)
Hidropsia fetal com Hb de Bart
Mais de 80% de Hb de Bart Sobrevida curta
Hb: hemoglobina. Fonte: Loggeto e Veríssimo, 2014.5
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Tabela 2 Diagnóstico diferencial entre as beta-talassemias Características clínica e laboratorial
Talassemia maior
Talassemia intermediária
Talassemia menor
Idade ao diagnóstico
Menos de 2 anos
Mais de 2 anos
Qualquer idade
Hb (g/dL)
<7
8 a 10
> 10
Hepatoesplenomegalia
Grave
Moderada/grave
Não
Hb fetal (%)
> 50
10 a 50 (até 100)
Normal
HbA2 (%)
<4
>4
>4
Pais
Ambos com aumento de HbA2
Um ou ambos com HbF aumentada ou HbA2 limítrofe
Um com aumento de HbA2
Hb: hemoglobina. Fonte: Loggeto e Veríssimo, 2014.5
Atualmente, a única medida curativa disponível para os pa‑ cientes com beta-talassemia maior é o transplante de célula‑ -tronco hematopoética (TCTH). No entanto, é necessária ava‑ liação cuidadosa pré-transplante dos pacientes de risco em relação à sobrecarga de ferro, já que esse é um fator prognósti‑ co importante. Os indivíduos com regime transfusional e tera‑ pia quelante de ferro adequada para prevenir o dano tecidual determinado pelo ferro apresentam uma sobrevida global e li‑ vre de doença em torno de 90% e 80%, respectivamente. Os riscos e benefícios de se indicar o TCTH são paciente-específi‑ cos, baseados em estudo do caso e levando em consideração os valores, a qualidade de vida, as preferências do indivíduo/ família e o entendimento da morbidade e mortalidade relacio‑ nada ao procedimento.2,6,7 O tratamento não curativo da beta-talassemia varia de acordo com o tipo da doença. Indivíduos com traço beta-talas‑ sêmico não são sintomáticos, podem ter discreta anemia e não requerem terapia específica.2,4-7 Pacientes com beta-talassemia intermediária devem ser cuidadosamente monitorados na progressão de sua anemia e/ ou no desenvolvimento de piora das complicações da hemóli‑ se e da eritropoese extramedular, nas limitações da atividade do indivíduo e de seu crescimento e desenvolvimento, visan‑ do à indicação de transfusão sanguínea. Esses pacientes po‑ dem eventualmente desenvolver sobrecarga de ferro mesmo sem o uso de transfusões sanguíneas por causa do aumento da absorção de ferro associada ao aumento da taxa de eritro‑ poese e destruição celular. A terapia quelante de ferro está in‑ dicada se a ferritina sérica for > 1.000 ng/dL ou se o exame de imagem ou outros estudos sugerirem a presença de sobrecar‑ ga de ferro em órgãos críticos, como o fígado e o coração. Téc‑ nicas de imagem, como a ressonância magnética (RM) com R2 e T2*, são utilizadas para avaliação do ferro em tecido he‑ pático e cardíaco, respectivamente, permitindo real controle da carga de ferro do organismo. As medicações utilizadas para quelação de ferro (por via oral ou subcutânea) possuem indi‑ cações precisas, conforme protocolos de tratamento específi‑ cos e devem ser manuseadas por hematologistas.2,4-7,12 Os princípios do tratamento para beta-talassemia maior fundamentam-se no regime de hipertransfusão crônica com‑ binada com terapia quelante de ferro e medidas de suporte di‑ recionadas às complicações da expansão eritroide e da sobre‑
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carga de ferro. Nesses indivíduos, a absorção oral acelerada de ferro também contribui para sobrecarga total de ferro. Outras preocupações do tratamento incluem o adequado controle do suprimento sanguíneo nesses pacientes para evitar as doen‑ ças associadas às transfusões, tratamento das complicações endócrinas relacionadas com a sobrecarga de ferro (incluindo a suplementação hormonal para permitir crescimento e pu‑ berdade normais), controle da osteoporose e esplenectomia, caso ocorra hiperesplenismo.2,4-7 O regime de hipertransfusão crônica realizado a cada 2 a 4 semanas (Hb pré-transfusional entre 9,5 e 10 g/dL), conforme as necessidades individuais do paciente, foi introduzido na te‑ rapia desses indivíduos, objetivando reduzir a eritropoese e a absorção intestinal de ferro. A supressão da eritropoese possi‑ velmente reduz a expansão do volume sanguíneo requerido pela medula hiperplástica. Os benefícios desse regime de hi‑ pertransfusão iniciado precocemente naquelas crianças que claramente apresentem estigmas de beta-talassemia maior in‑ cluem reduções na hepatoesplenomegalia, correção parcial do desenvolvimento esquelético anormal e melhora, pelo menos em curto prazo, da dilatação cardíaca e da função sistólica, além da melhora na capacidade de carrear o oxigênio. Antes de se iniciar o regime de hipertransfusão crônica, é importante realizar a genotipagem das células vermelhas para subgrupos Rh e antígenos de compatibilidade menores, além de utilizar concentrados leucodepletados e, se possível, irradiados, vi‑ sando a diminuir a aloimunização e outras complicações transfusionais nesses indivíduos.2,4-7 A esplenectomia está indicada quando houver aumento de 50% ou mais do requerimento transfusional em 1 ano. Esse procedimento está associado à redução do requerimento trans‑ fusional, apesar de seu benefício ser geralmente transitório.2,6,7 O desenvolvimento de agentes farmacológicos capazes de promover substancial aumento da HbF durante a vida adulta é uma abordagem promissora, embora a eficácia clínica não te‑ nha sido demonstrada nos pacientes com a forma grave da be‑ ta-talassemia. O aumento significativo da síntese de HbF pode reduzir a gravidade clínica, promovendo Hb adicional para o transporte de oxigênio e reduzindo a quantidade de cadeias de alfaglobina livre. Várias drogas citotóxicas e outras formas de estresse grave da medula óssea aumentam o número de clo‑ nes de células fetais e, assim, elevam a síntese de HbF. O uso
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desses medicamentos tem sido bem-sucedido nos pacientes A Hb liberada durante a hemólise na anemia falciforme com anemia falciforme e em alguns com beta-talassemia in‑ consome o óxido nítrico para a sua transformação em meta‑ termediária, porém seu sucesso na talassemia maior tem sido -hemoglobina. Assim, a deficiência relativa de óxido nítrico menos frequentemente observado. Possíveis razões para essa também tem papel na fisiopatologia da doença, favorecendo a discrepância consistem no fato de que os pacientes com beta‑ vasoconstrição.17 -talassemia maior têm consideravelmente maior quantidade A associação desses fatores, ou seja, a polimerização da de requerimento de síntese de HbF antes que ocorra a melho‑ HbS, junto com a adesão das hemácias, dos leucócitos e das ra clínica. Terapias experimentais com esses indutores da sín‑ plaquetas e a redução da biodisponibilidade do óxido nítrico tese de HbF, bem como terapia gênica, estão atualmente em contribuem para formação de microtrombos na circulação pe‑ estudo.2,6,7 riférica, que são os responsáveis pelo quadro clínico de vaso‑ -oclusão no paciente com doença falciforme, determinando Doença falciforme sintomas álgicos, acidente vascular cerebral, síndrome toráci‑ A doença falciforme é o termo utilizado para definir um grupo ca aguda, osteonecrose, hipertensão pulmonar, úlceras de per‑ de alterações genéticas caracterizadas pelo predomínio da he‑ nas e toda a sintomatologia característica da doença.2,14-16 moglobina S (HbS). Essas alterações incluem a anemia falci‑ forme (HbSS), as duplas heterozigoses, ou seja, as associações Diagnóstico clínico de HbS com outras variantes de hemoglobinas, como HbD e A gravidade da evolução clínica da doença depende dos níveis HbC, e as interações com talassemias (HbS/B talassemia, de HbF, da concomitância de alfa-talassemia e dos haplótipos HbS/B+ talassemia, HbS/alfa-talassemia). Essas associações associados ao gene da HbS. Os níveis de HbF estão inversa‑ possuem particularidades e graus variados de gravidade. A he‑ mente associados com a gravidade da doença. Assim, o qua‑ terozigose para HbS (traço falciforme) define uma situação re‑ dro clínico, dependendo do genótipo da doença, é caracteriza‑ lativamente comum, mas clinicamente benigna.2-5,13 do por episódios de dores osteoarticulares, dores abdominais, infecções e sintomas respiratórios (taquipneia, dispneia, tosse Epidemiologia e dor torácica), retardo do crescimento e da maturação sexual, A doença falciforme é encontrada em toda a Europa e em algu‑ complicações oftalmológicas, acidente vascular cerebral mas regiões da Ásia, além da África e Américas. No Brasil, a (AVC) e comprometimento crônico de múltiplos órgãos, siste‑ distribuição da doença é heterogênea, sendo predominante mas ou aparelhos. A maioria dos pacientes com doença falci‑ entre negros e pardos, embora também ocorra entre brancos. forme não costuma apresentar esplenomegalia, pois os repeti‑ dos episódios de vaso-oclusão determinam fibrose e atrofia do No sudeste do Brasil, a prevalência média de heterozigotos (portadores) é de 2%. No entanto, observa-se que esse valor baço.2,4,5,18 sobe para cerca de 6 a 10% entre os afrodescendentes. Com As manifestações clínicas de maior relevância da doença base nessa prevalência, estima-se, no Brasil, o nascimento de estão detalhadas a seguir. cerca de 200.000 pessoas anualmente com traço falciforme e Crises dolorosas 3.500 com doença falciforme.1,2,4,5 Representam as complicações mais frequentes da doença falci‑ Fisiopatogenia forme e comumente constituem sua primeira manifestação. A A HbS é uma Hb anormal, resultante da troca de ácido glutâ‑ vaso-oclusão é iniciada e mantida por interações entre as he‑ mico pela valina na posição 6 da cadeia beta do gene da globi‑ mácias falcizadas, células endoteliais e constituintes plasmáti‑ na A. A polimerização dessa Hb é o determinante primário da cos. A dor aguda é causada por dano tecidual isquêmico, resul‑ gravidade da doença, entretanto, há outros fatores que contri‑ tante da oclusão do leito microvascular por hemácias falcizadas buem na fisiopatologia da doença, como mudanças na estru‑ durante a crise. Pode ocorrer em qualquer parte do corpo, mas tura e função da membrana da célula vermelha, distúrbios no são mais comuns nos ossos longos e no abdome.2,3,18 controle do volume celular, aumento na aderência ao endoté‑ lio vascular e fenômenos inflamatórios crônicos, exacerbados Síndrome torácica aguda (STA) por episódios agudos.2,4,5,14 É uma das complicações pulmonares agudas que pode deter‑ A leucocitose e a inflamação característica da anemia falci‑ minar mortalidade e importante morbidade na criança e no forme levam à ativação leucocitária, e a molécula de adesão L‑ adolescente com doença falciforme. O termo STA é utilizado -selectina do glóbulo branco promove a adesão do leucócito ao para definir um evento agudo em paciente com doença falci‑ endotélio. O estado inflamatório constante ativa as plaquetas forme, caracterizado pela presença de febre e/ou sintomas de modo que suas moléculas de adesão (GP 1b-IX) também se respiratórios (taquipneia, dispneia, tosse e dor torácica), expressam, e proteínas plasmáticas, como o fator de Von Wil‑ acompanhado de infiltrado pulmonar recente à radiografia de lebrand, passam a ter importante papel nesse mecanismo de tórax. É mais frequente nos pacientes com anemia falciforme adesão ao endotélio. Durante o estresse inflamatório, a adesão (HbSS). Representa a 2ª causa mais comum de hospitalização das hemácias SS ao endotélio vascular pode estar ampliada e uma das mais frequentes causas de óbito nesses pacientes. como resultado do aumento dessas proteínas plasmáticas e do Sua patogênese é complexa, e a identificação da causa especí‑ aumento de expressão de VCAM-1.2,14-16 fica é, algumas vezes, difícil de ser estabelecida.2,19
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Febre É um sintoma comum presente em muitas manifestações da doença falciforme. Frequentemente pode ser sinal de infecção bacteriana ou estar associada a outras condições, como a STA e crises vaso-ocluvivas. As infecções nesses pacientes são fre‑ quentes e, geralmente, graves. Constituem causa importante de mortalidade, sobretudo nas crianças. Os patógenos mais frequentes são as bactérias encapsuladas, sendo o pneumoco‑ co responsável por mais de 70% das infecções. Outros patóge‑ nos responsáveis são estafilococos, neisséria, micoplasma e Haemophilus influenzae. As salmonelas podem ser causa de infecção grave alcançando a corrente sanguínea pelos fenôme‑ nos de vaso-oclusão na microcirculação intestinal. A infecção ocorre principalmente pelo desenvolvimento da asplenia fun‑ cional (94% dos pacientes apresentam aos 5 anos de idade), levando à deficiência da opsonização de bactérias encapsula‑ das. Outro fator predisponente à infecção nesses pacientes são as áreas de infarto tecidual, decorrentes do efeito fisiopa‑ tológico da doença, que propiciam o surgimento de focos de infecção. Defeitos na ativação do sistema complemento e defi‑ ciência do zinco também são apontados como fatores predis‑ ponentes à infecção.2,4,5,20-22 Crise de sequestro esplênico aguda (CSE) É a 2ª causa mais comum de morte em crianças menores de 5 anos de idade. A etiologia é desconhecida. No entanto, tem se observado que as infecções virais parecem preceder a maioria dos episódios. Na anemia falciforme, a CSE pode ocorrer nos primeiros meses de idade, sendo menos frequente após os 6 anos. Nos pacientes em que esplenomegalia é persistente (HbSC e S-talassemias), a CSE pode ocorrer acima dessa faixa etária. Os sinais clínicos principais dessa síndrome incluem aumento súbito do baço e redução intensa da hemoglobina, podendo evoluir para choque hipovolêmico.2-5,23 Crise aplástica No paciente com doença falciforme, a principal causa de apla‑ sia medular eritrocítica é a infecção pelo eritrovírus humano (parvovírus) B19, que acomete principalmente crianças na fai‑ xa etária de 4 a 10 anos, por seu tropismo pelas células precur‑ soras eritropoéticas. O quadro inclui febre variável, palidez e fraqueza, podendo evoluir para falência cardíaca em conse‑ quência da acentuação da anemia. Observa-se redução acen‑ tuada dos níveis de hemoglobina e da contagem de reticulóci‑ tos. Trata-se geralmente de um evento transitório.2-5,20 Acidente vascular cerebral (AVC) É uma das mais graves complicações da doença falciforme. Quando isquêmico, resulta de infarto em áreas irrigadas pelas artérias cerebrais do polígono de Willis. O AVC hemorrágico, mais comum em adultos, responde por 5% dos casos e apre‑ senta mais morbimortalidade. O AVC isquêmico ocorre princi‑ palmente em pacientes com HbSS, sendo raro naqueles com HbSC e S/talassemias. A incidência dessa complicação é de 11% até os 18 anos de idade, sendo mais comprometidas as crianças a partir dos 3 a 4 anos. As manifestações neurológi‑
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cas são predominantemente focais. As recidivas dos AVC pro‑ vocam danos maiores e aumentam ainda mais os índices de mortalidade. Pacientes que apresentam sintomas neurológi‑ cos agudos devem sempre ser internados e investigados, prin‑ cipalmente se houver febre ou cefaleia, devendo ser excluída a possibilidade de meningite.2,4,5,16,24,25 Priapismo É a ereção persistente e dolorosa do pênis, não acompanhada de desejo ou estímulo sexual. Pode ocorrer na doença falcifor‑ me em todas as faixas etárias, sendo mais frequente após os 10 anos de idade. São descritos dois tipos de priapismo: o de alto fluxo (não isquêmico) e o de baixo fluxo (isquêmico), mais co‑ mum na doença falciforme. Os corpos cavernosos ficam rígi‑ dos e edemaciados, e o paciente relata dor. Alguns fatores de‑ sencadeantes são febre, desidratação, exposição ao álcool, uso de maconha ou cocaína e uso de agentes psicotrópicos.2,4,5,26,27 Crise hemolítica Acontece geralmente após infecção, principalmente por Mycoplasma pneumoniae, ou quando há associação com deficiência enzimática de glicose-6-fostato desidrogenase (G6PD) ou esfe‑ rocitose. Clinicamente, ocorrem piora da palidez por diminuição repentina da Hb e reticulocitose, acompanhada de icterícia.2,4,5 Outras manifestações Os pacientes com doença falciforme podem ainda apresentar manifestações crônicas em órgãos, como alterações cardiopul‑ monares, renais, oftalmológicas, ósseas, cutâneas (úlceras de perna), no sistema hepatobiliar e no crescimento e no desen‑ volvimento.2,3 Diagnóstico laboratorial2,4,5,28,29 O diagnóstico precoce da doença pelo programa de triagem neonatal, aliado aos cuidados multiprofissionais, permitiu re‑ duzir significativamente a morbidade e a mortalidade decor‑ rentes da doença, além de propiciar o aconselhamento genéti‑ co para pessoas com traço para hemoglobinas variantes. No Brasil, o diagnóstico pelo teste de triagem neonatal pas‑ sou a ser obrigatório em todos os estados desde junho de 2001, por meio do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN). Atualmente, a maioria dos programas de triagem neonatal uti‑ liza os métodos de focalização isoelétrica ou cromatografia lí‑ quida de alta resolução (HPLC). Todo resultado positivo deve ser repetido em mesma amostra para confirmação. Os casos que apresentarem padrão inconclusivo ou duvidoso pela téc‑ nica de escolha devem ser reavaliados por outro método, vi‑ sando a aumentar a sensibilidade e a especificidade. Os pa‑ drões de Hb detectados são descritos na ordem da maior concentração da Hb expressa, por convenção universalmente estabelecida, conforme descrito a seguir: 1. Padrão FA: sem doença falciforme. Esse fenótipo é expresso pela predominância da HbF ao nascimento. Esses pacientes não são necessariamente normais do ponto de vista hemato‑ lógico. Não têm doença falciforme, mas podem ter outros dis‑ túrbios raros da série ertitrocitária.
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2. Padrão FAS: traço falciforme. 3. Padrão FSC: doença SC. 4. Padrão FSD: doença SD. 5. Padrão FS: doença SS (anemia falciforme), S/beta0 talassemia
ou HbS associada à persistência hereditária da Hb fetal (PHHF). 6. Padrão FSA: S/beta+ talassemia. Em alguns pacientes, a por‑
centagem da HbA é muito pequena e pode resultar em um fe‑ nótipo FS. O diagnóstico definitivo pode necessitar de avalia‑ ção de exames laboratoriais dos pais ou estudo molecular da criança ou repetição do exame laboratorial da criança após 9 meses de idade.
O diagnóstico da alfa-talassemia pode ser suspeitado quando se encontra a Hb de Bart no teste da triagem neonatal. Caso a criança tenha recebido transfusão sanguínea (inclu‑ sive intrauterina), é necessária nova coleta de sangue 3 meses após a última transfusão, ou no 6º mês de vida, quando o perfil hemoglobínico geralmente já está estabelecido. O diagnóstico laboratorial completo da doença falciforme no período pós-natal inclui a realização de hemograma com contagem de reticulócitos, além da detecção da HbS e da sua associação com outras frações. A anemia da DF é normocrômica e normocítica. A contagem de reticulócitos varia entre 3 e 25%, sendo mais baixa nos pa‑ cientes com hemoglobinopatia SC. Na associação S/PHHF, não há hemólise. A concentração basal de Hb, isto é, aquela deter‑ minada com a criança estável, varia entre 6 e 12 g/dL, sendo mais elevada nas crianças com hemoglobinopatia SC. Valores reduzidos do volume corpuscular médio (VCM) e/ou da hemo‑ globina corpuscular média (HCM) podem indicar associação com beta-talassemia (S/beta-talassemia) ou co-herança de al‑ fa-talassemia. É importante descartar a possibilidade de ane‑ mia ferropriva e deficiência nutricional comum em pediatria. A leucocitose é um achado frequente, podendo ocorrer desvio para esquerda, mesmo com o paciente fora de crise. É impor‑ tante o conhecimento desse dado, principalmente quando da avaliação de processos infecciosos, pois nem sempre é sinal de infecção. O grau de leucocitose basal guarda relação com a gravi‑ dade clínica da doença, ou seja, quanto mais elevada a leucome‑ tria, mais grave o quadro clínico. A contagem de plaquetas em geral está elevada, podendo atingir níveis de até 1.000.000/ mm3. Plaquetopenia pode estar presente nos quadros de hipe‑ resplenismo (doença SC e na S/beta-talassemia). A presença de hemácias “em foice” é achado clássico na DF, mas nos recém‑ -nascidos elas estão ausentes, pelo elevado nível de HbF, tornan‑ do-se evidentes após o 1º ano de vida. Outros achados incluem hemácias em alvo (principalmente na S/beta-talassemia e he‑ moglobinopatia SC), corpúsculos de Howell-Jolly (refletem hi‑ pofunção esplênica), eritroblastos circulantes (entre 5 e 20%), hemácias fragmentadas, policromasia e, mais raramente, esfe‑ rócito. À microscopia de contraste de interferência, podem ser observadas depressões intracelulares que revelam perda de fun‑ ção esplênica (quantificação de hemácias com pits), podendo constituir-se em critério de avaliação da função esplênica. A técnica mais eficaz para detecção da HbS e da sua associa‑ ção com outras frações é a eletroforese de Hb em acetato de ce‑
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lulose ou em agarose, em pH alcalino (pH variável de 8 a 9). Como certas Hb apresentam migrações similares em eletrofo‑ rese alcalina, eventualmente há necessidade de se introduzir outra técnica eletroforética, que se realiza em agarose utilizan‑ do o pH ácido. É necessário também realizar a dosagem de HbF pela desnaturação alcalina e da HbA2 por técnica de eluição. Tratamento O aconselhamento genético, considerando os referenciais da bioética, é um fator importante na redução da incidência da doença.2,4,5,14 O diagnóstico e o tratamento precoces da DF contribuíram para aumentar a sobrevida e melhorar expressivamente a qua‑ lidade de vida dessas pessoas. É importante o pediatra estar ciente e alerta para os sinais e sintomas de risco que podem ser observados na criança com doença falciforme, conforme lista‑ do a seguir:2,4,5,14 • aumento súbito da palidez; • piora súbita da icterícia; • distensão abdominal; • aumento do baço ou do fígado; • hematúria; • priapismo; • dor sem resposta ao tratamento; • tosse ou dificuldade respiratória; • febre; • alterações neurológicas (convulsões, letargia, fraqueza mus‑ cular, mudança de comportamento); • impossibilidade de ingerir líquidos, vômitos, diarreia e sinais de desidratação. O risco de infecção nesses pacientes pode ser diminuído pelo uso de antibióticos profiláticos (penicilina e, nos casos de aler‑ gia, eritromicina) dos 3 meses até os 5 anos de idade e pela imunização (incluindo vacinação contra Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae tipo B, neisséria, hepatite B e influenza). A dose profilática de penicilina G benzatina é de 50.000 U/kg/dose, a cada 21 dias. A penicilina oral é utilizada na dose de 125 mg, 2 vezes/dia, até o peso de 15 kg ou até os 3 anos de idade; 250 mg, 2 vezes/dia até o peso de 15 a 25 kg ou dos 3 aos 5 anos de idade; e de 500 mg, 2 vezes/dia em crian‑ ças com peso maior que 25 kg. Caso o paciente seja alérgico à penicilina, pode-se utilizar a eritromicina na dose de 20 mg/ kg, 2 vezes/dia, por via oral. No entanto, apesar da disponibi‑ lidade das vacinas pneumocócicas e contra Haemophilus influenzae, além da profilaxia com penicilina, essas crianças são ainda de risco para infecções invasivas pelo pneumococo e ou‑ tros organismos, principalmente em decorrência da asplenia funcional. Portanto, os pacientes com doença falciforme e fe‑ bre devem ser avaliados e tratados prontamente, visando a re‑ duzir a morbidade e a mortalidade pela maior suscetibilidade a infecções por organismos encapsulados.2-5,14 Febre2,4,5,14,21,22 Os pacientes com febre deveriam ser avaliados dentro das 4 horas de início do sintoma, identificando e valorizando princi‑
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palmente sinais de instabilidade hemodinâmica, grau de pali‑ dez, tamanho do baço, saturação de oxigênio e presença de si‑ nais e sintomas neurológicos. A febre deve ser considerada como urgência clínica pelo risco de sepse. O uso empírico de antibiótico de amplo espectro deve ser considerado. A avaliação laboratorial inicial deve incluir hemograma com‑ pleto, contagem de reticulócitos e hemocultura. Considerar a realização de punção lombar com cultura do fluido espinal, caso os sinais meníngeos estejam presentes, ou nos pacientes com menos de 1 ano de idade sem foco definido, mesmo sem sinais de irritação meníngea ou nas crianças com sinais de toxemia. Outros exames laboratoriais ou de imagem devem ser solicita‑ dos de acordo com o quadro clínico de apresentação ou evoluti‑ vo do paciente. Todos os pacientes menores de 3 anos de idade e com temperatura superior a 38,3°C devem ser internados. Os pacientes não hospitalizados devem ser seguidos diariamente. Considerando que os pacientes com doença falciforme con‑ tinuam sendo de risco para bacteriemia pelo Streptococcus pneumoniae e pelos organismos que não podem ser preveni‑ dos pela imunização, como Salmonella, Escherichia coli e Staphylococcus aureus, a antibioticoterapia parenteral deve ser administrada, mesmo antes dos estudos laboratoriais e de imagem estarem prontos. Nesses pacientes, recomenda-se utilizar a ceftriaxona, por via parenteral, na dose de 50 a 75 mg/kg (dose máxima de 4 g/dia). Nas regiões com alta preva‑ lência de resistência antimicrobiana ao S. pneumoniae, doses mais elevadas podem ser utilizadas (75 a 100 mg/kg). A van‑ comicina (15 mg/kg endovenoso, dose máxima de 1 g) é geral‑ mente utilizada para pacientes com suspeita de meningite ou para os pacientes que apresentem instabilidade hemodinâmi‑ ca. Nos pacientes alérgicos à cefalosporina, pode ser adminis‑ trada a clindamicina na dose de 10 a 15 mg/kg. Nas infecções com foco evidente, a antibioticoterapia deve ser direcionada. Em caso de pneumonia, a associação com macrolídeo deve ser considerada, pela incidência aumentada de clamídia e mi‑ coplasma. Nos pacientes com doença falciforme e osteomielite, o pa‑ tógeno mais comum é a Salmonella, seguido pelo Staphylococcus aureus e Gram-negativos entéricos. Deve ser realizado es‑ quema de cobertura para Staphylococcus aureus e Salmonellas, com cefuroxima na dose de 100 mg/kg/dia, visando a obter adequada penetração óssea. Na avaliação da febre, se não for detectada nenhuma etio‑ logia, os antibióticos devem ser mantidos por 72 horas e sus‑ pensos caso as hemoculturas sejam negativas e o paciente es‑ teja clinicamente estável. Os pacientes podem receber alta após 72 horas com antibiótico via oral, se estiverem afebris, sem toxemia e com nível de hemoglobina seguro. Crise vaso-oclusiva dolorosa2,4,5,14,30 Os principais fatores desencadeantes da crise vaso-oclusiva dolorosa são frio, traumas, esforço físico, desidratação, infec‑ ções e hipóxia. Caso o paciente apresente vômitos, devem-se garantir a administração de antiemético e a hidratação endo‑ venosa de manutenção. Evitar a hiper-hidratação porque o pa‑
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ciente com doença falciforme tem água corporal aumentada e risco de desenvolver edema agudo de pulmão, principalmente os que possuem algum grau de cardiopatia. Nesses pacientes, devem ser evitadas as mudanças bruscas de temperatura. As articulações acometidas devem ser aquecidas. É importante efetuar o tratamento imediato e eficaz da dor, mesmo quando inicialmente for de leve intensidade, pois a própria dor pode levar à piora da crise. Caso não haja melhora da dor após 24 horas da abordagem inicial, o paciente deve ser internado para intensificação do tratamento. As normas orientadoras da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o tratamento da dor usam uma abordagem em 3 níveis (leve, moderada e grave). Os diferentes tipos de analgé‑ sicos são classificados em função de cada uma das 3 fases des‑ sa estratificação. A terapêutica da dor deve ser iniciada no pri‑ meiro nível e ser gradualmente aumentada caso o controle da dor seja insuficiente. Na dor de intensidade leve, usam-se os analgésicos convencionais, menos potentes, como a aspirina 10 mg/kg/dose via oral, a cada 4 horas, dipirona 5 a 10 mg/ kg/dose via oral, a cada 6 horas (dose máxima 1 g/dia) e para‑ cetamol 10 mg/kg/dose via oral, a cada 6 horas (dose máxima 1 g/dia), em associação a anti-inflamatórios (como o ibuprofe‑ no 5 a 10 mg/kg/dia via oral, a cada 6 horas, máximo 2 g/dia). Caso o paciente não melhore após 3 dias, deve ser investigada a causa da persistência da dor e deve ser instituída mudança no tratamento. Na dor de intensidade moderada, administram-se analgési‑ cos de potência intermediária, designados de opioides fracos. Eles atuam na transmissão do sinal de dor, essencialmente na fase final, quando ocorre a interpretação do sinal por parte do cérebro. A codeína (0,5 a 0,75 mg/kg/dose, a cada 4 horas) é um exemplo, com dose máxima de 60 mg/dia. Tramadol, na dose de 0,5 mg/kg, a cada 6 horas, também é uma opção, po‑ rém não é recomendado para crianças, podendo ser usado em adolescentes. Esses dois níveis de fármacos podem ser usados em associação nos casos de gravidade intermediária. Na dor de intensidade grave, utilizam-se analgésicos mais potentes, os opioides fortes, sendo o produto de referência a morfina (0,1 a 0,15 mg/kg endovenosa ou subcutânea, a cada 3 a 4 horas, com máximo de 10 mg/dose). A dose da morfina por via oral é de 0,3 a 0,6 mg/kg, a cada 4 horas. Os opioides podem ser administrados por várias vias, como oral, subcutâ‑ nea, intramuscular, endovenosa e transdérmica. Os eventos adversos incluem náuseas, vômitos, sedação e depressão res‑ piratória. Convulsões podem estar associadas ao uso de opioi‑ des, principalmente ao uso prolongado da meperidina. No caso de suspeita de intoxicação do sistema nervoso central (SNC) pela morfina, usar como antídoto a nalorfina (0,1 mg/ kg/dose endovenosa, intramuscular ou subcutânea). Na evidência de controle insuficiente da dor ou de intole‑ rância aos fármacos empregados, podem ser utilizadas ou as‑ sociadas outras medicações, como antidepressivos, anticon‑ vulsivantes e anti-histamínicos. É importante estar ciente dos mecanismos de ações das medicações ao associá-las e manter observação clínica constante do paciente pela possibilidade de potencialização de seus eventos adversos.
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Após melhora da dor, é recomendado reduzir as doses do analgésico, mantendo-se os intervalos de modo a respeitar a meia-vida do fármaco, até controle adequado e suspensão da medicação. Síndrome torácica aguda2,4,5,19,31 Nos pacientes com STA, deve ser imediatamente iniciada, na admissão, a cobertura com antibiótico para infecção bacteria‑ na. A saturação de oxigênio medida pela oximetria de pulso deve ser instituída. A oxigenoterapia está indicada para man‑ ter a saturação de oxigênio > 92%. Inicia-se a antibioticotera‑ pia venosa em doses habituais, em virtude da alta probabilida‑ de de infecção bacteriana com cefalosporina de 2ª ou 3ª geração. Se houver suspeita de Mycoplasma pneumoniae ou Chlamydia pneumoniae, acrescentar ao tratamento a eritromi‑ cina, na dose de 30 a 50 mg/kg/dia (máximo de 2 g/dia), por via oral, a cada 6 horas, ou claritromicina na dose de 15 mg/ kg/dia endovenosa, a cada 12 horas. Naqueles pacientes graves, com grande infiltrado pulmo‑ nar ou infiltrado pulmonar progressivo, deve ser considerada a adição de vancomicina para cobertura de bactérias resistentes à cefalosporina, como Staphylococcus aureus resistente à me‑ ticilina. O paciente deve ser constantemente monitorado com oximetria de pulso. A transfusão sanguínea para esses pacientes está indicada quando houver piora da taquidispneia, hipoxemia e/ou des‑ saturação, envolvimento multilobar, queda da Hb ≥ 2 g/dL da basal. A fisioterapia respiratória deve ser iniciada, além de es‑ pecial atenção à sedação e à depressão respiratória. A terapia broncodilatadora pode ser efetiva em pacientes com sibilância ou doença obstrutiva das vias aéreas à avaliação inicial. Não elevar a Hb pós-transfusional acima de 10 g/dL, pelo risco de hiperviscosidade. Caso a Hb pré-transfusional seja ≥ 11 g/dL, realizar transfusão de troca. Em pacientes com asma diagnosticada, considerar trata‑ mento com broncodilatadores. O uso de corticosteroide favo‑ rece o reaparecimento da dor após o tratamento da STA e deve ser empregado com a devida precaução. Crise de sequestro esplênico aguda (CSE)2,4,5,23 Na presença de CSE, está indicada a hospitalização imediata. A correção da hipovolemia com soluções cristaloides pode ser feita, enquanto se aguarda a transfusão de hemácias. Geral‑ mente uma transfusão sanguínea é suficiente, pois a maior parte do sangue sequestrado retorna para a circulação à medi‑ da que a esplenomegalia regride, determinando elevação súbi‑ ta da Hb e hemoconcentração com aumento da viscosidade sanguínea, que é fator desencadeante de outras complicações, como AVC isquêmico ou mesmo crises vaso-oclusivas. A es‑ plenectomia deve ser programada após duas CSE ou após um primeiro episódio grave, pela alta taxa de recorrência (50%) e mortalidade (10 a 15%). As vacinas contra as bactérias encapsuladas devem ser atualizadas antes da cirurgia e a antibioticoterapia profilática com penicilina deve ser realizada após o procedimento. O pa‑ ciente deve ser sempre encaminhado para o hematologista pe‑
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diátrico, que definirá a melhor conduta em relação à indicação de esplenectomia para cada caso. Crises aplásticas2,4,5,20,32 O tratamento consiste de estabilização hemodinâmica pela transfusão de hemácias com monitoração até a elevação dos reticulócitos. Geralmente ocorre após processos infecciosos, e as graves estão, na maioria das vezes, relacionadas ao eritroví‑ rus humano (parvovírus) B19. Essas crises são geralmente au‑ tolimitadas, com duração de 7 a 10 dias, e raramente se repe‑ tem. O tratamento é sintomático, e a administração de transfusão de concentrado de hemácias fenotipadas e filtradas está indicada nos casos de descompensação hemodinâmica. Acidente vascular cerebral2,4,5,16,24 No paciente com doença falciforme que apresente AVC, o trata‑ mento do seu episódio agudo deve ser realizado em regime hospitalar. Os pacientes com sintomas sugestivos precisam ser submetidos à avaliação neurológica imediata, bem como exa‑ mes de imagem, como RM ou tomografia computadorizada (TC) cerebral ou arteriografia, com os cuidados prévios neces‑ sários aos procedimentos com contrastes. A transfusão sim‑ ples ou a de troca, dependendo do nível de Hb no momento do evento, deve ser iniciada imediatamente. Se o hematócrito (Ht) estiver < 30%, orienta-se transfundir concentrado de hemácias 10 mL/kg. Se o Ht estiver > 30%, deve-se realizar a exsanguino‑ transfusão parcial, mantendo-se a Hb em torno de 10 g/dL. Os pacientes devem ser mantidos no regime crônico de transfusão para redução do nível de HbS para menos de 30% durante os primeiros 2 anos de terapia. Caso o paciente se mantenha bem após esse período, a HbS pode ser mantida < 50%. Nos pacientes com doença falciforme, está indicada a reali‑ zação de Doppler transcraniano anualmente a partir dos 2 anos de idade, visando a detectar os pacientes com risco para desenvolver o primeiro AVC. Está indicado o regime crônico de transfusão sanguínea para aqueles indivíduos que apresen‑ tem a velocidade do fluxo sanguíneo nas principais artérias ce‑ rebrais do polígono de Willis > 200 cm/segundo, visando à prevenção primária do AVC. Cerca de 46 a 90% dos pacientes não tratados apresentam risco de recorrência do AVC. Transfusões sanguíneas2,4,5,33,34 A anemia crônica não é, por si só, indicação de transfusão san‑ guínea para os pacientes com doença falciforme. As transfusões sanguíneas estão indicadas sob circunstâncias especiais e em todas as situações em que a anemia determine repercussões clí‑ nicas, como: na queda da Hb de 2 g/dL ou mais do valor basal com repercussão hemodinâmica, na crise aplástica, no seques‑ tro esplênico, na STA, na hipóxia crônica, no cansaço e dispneia com Hb abaixo do nível basal e na falência cardíaca. O volume de hemácias a ser transfundido é de 10 a 15 mL/kg, e a Hb alvo pós-transfusional deve estar em torno de 10 g/dL. Deve-se dar preferência pela utilização de hemácias deleucotizadas (origi‑ nadas a partir do uso de filtros para a remoção de leucócitos), com triagem negativa para HbS e fenotipadas (para evitar a aloi‑ munização eritrocitária). Existem situações nas quais a exsan‑
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guinotransfusão parcial é preferível, por possibilitar a redução hematológica pela redução da incidência de episódios vaso‑ da HbS e da hiperviscosidade, como no AVC e na STA. -oclusivos. A hidroxiureia promove elevação no nível de HbF Pacientes com anemia falciforme submetidos à anestesia ge‑ (em cerca de 60% dos pacientes tratados), eleva a taxa de Hb, ral para realização de cirurgias eletivas devem realizar transfu‑ do VCM e reduz o número de reticulócitos. Outra resposta fa‑ sões simples de concentrado de hemácias, ou exsanguinotrans‑ vorável desse agente terapêutico tem sido a diminuição da ex‑ fusão ou transfusão de troca, visando a prevenir complicações pressão de moléculas de adesão, bem como a promoção da di‑ que podem ocorrer durante o procedimento, como hipóxia, hi‑ minuição das proteínas receptoras localizadas nas células poperfusão, estase e acidose metabólica. A Hb deve ser mantida endoteliais, diminuindo a adesão vascular e contribuindo, em torno de 10 g/dL, e a porcentagem de HbS, reduzida. Em ci‑ desse modo, para a redução das crises vaso-oclusivas. Essa rurgias de urgência, a transfusão simples pode ser utilizada. Ci‑ medicação deve ser prescrita e controlada pelo hematologista rurgias pequenas, sem anestesia geral, não necessitam de trans‑ pediátrico. fusão, pois as complicações são raras. Os medicamentos quelantes de ferro (desferoxamina, defe‑ rasirox ou deferiprona) estão indicados na sobrecarga de ferro Priapismo2,4,5,27 secundária às transfusões sanguíneas. O diagnóstico é clínico. A ultrassonografia com Doppler pode A suplementação com ácido fólico (1 mg/dia) por via oral é confirmar a redução ou a ausência de fluxo sanguíneo na artéria recomendada. cavernosa, assim como o estudo gasométrico, por meio da aspi‑ ração do corpo cavernoso, que mostrará pH ácido e hipoxemia. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: A informação educacional é ferramenta importante, tanto • Definir hemoglobinopatias. no esclarecimento do priapismo quanto na complicação da • Descrever a fisiopatologia e a epidemiologia das doença e na orientação das medidas domiciliares na sua ocor‑ hemoglobinopatias. rência. O tempo de instituição do tratamento é determinante • Identificar o diagnóstico clínico e laboratorial das para o prognóstico dos pacientes, pois o priapismo pode levar hemoglobinopatias. a alterações irreversíveis, causando distúrbios sexuais, como • Interpretar os padrões de hemoglobina detectados impotência. O tratamento objetiva reverter as ereções indese‑ pelo programa de triagem neonatal para doença jáveis, aliviar a dor e preservar a função sexual. Nos episódios falciforme. agudos, estão recomendados banhos mornos, hidratação oral, • Tratar as complicações agudas das hemoglobinopatias. esvaziamento da bexiga, analgésicos e exercícios físicos (ca‑ • Reconhecer a importância do diagnóstico precoce das minhada). Caso não haja melhora em poucas horas (máximo hemoglobinopatias e do aconselhamento genético, de 2 horas), o paciente deve ser hospitalizado para hidratação considerando os referenciais da bioética. e analgesia endovenosas, além do uso de ansiolíticos e oxige‑ noterapia, se necessário. Se, após 4 horas, o quadro persistir, deve-se solicitar a avaliação de urologista para realizar medi‑ Referências bibliográficas das anestésicas e cirúrgicas (punção dos corpos cavernosos, 1. Borgna-Pignatti C, Galanello R. Thalassemias and related disorders: drenagem sanguínea por shunts ou por operações abertas). quantitative disorders of hemoglobin synthesis. In: Greer JP, Foerster J, A exsanguinotransfusão vem sendo questionada pela au‑ Rodgers GM, Paraskevas F, Glader B, Arber DA et al. (eds.). Wintrobe’s sência de evidências de eficácia e pelo risco de ocorrência da clinical hematology. 12.ed. Baltimore: Lippincott Williams & Wilkins, síndrome de Aspen (indução de AVC) em pacientes com ane‑ 2009. p.1292-313. mia falciforme que receberam transfusão para o tratamento de 2. Cunningham MJ, Sankaran VG, Nathan DG, Orkin SH. The thalasse‑ priapismo. mias. In: Nathan DG, Orkin SH, Ginsburg D, Look AT. Nathan and Oski’s Transplante de célula-tronco hematopoética (TCTH)2,4,5,20,32 A única terapia que permite a cura da doença falciforme é o TCTH alogênico utilizando, como doador, irmão HLA (antíge‑ nos leucocitários humanos) compatível e não afetado, poden‑ do o doador ser portador de traço falciforme. Entretanto, al‑ guns fatores devem considerados na indicação do TCTH, como o risco do procedimento, a doença do enxerto versus hospedeiro, a mortalidade e a morbidade do TCTH. A indica‑ ção de TCTH nesses pacientes, portanto, deve ser restrita a ca‑ sos cuidadosamente selecionados. Outros medicamentos2,3,4,35,36 Inúmeros estudos têm descrito o uso de hidroxiureia em pes‑ soas com doença falciforme, conduzindo à melhora clínica e
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CAPÍTULO 13
LINFONODOMEGALIAS Maria Lydia Mello de Andréa Liane Esteves Daudt Denise Bousfield da Silva
Introdução As linfonodomegalias (aumento dos linfonodos) localizadas ou disseminadas são características de uma enorme gama de patologias em pediatria. Aparecem em doenças do sistema imunológico, fazem parte frequente das patologias infeccio‑ sas e de várias doenças neoplásicas. São frequentes em crian‑ ças e, na maioria das vezes, são decorrentes de respostas passageiras a infecções benignas. Portanto, a palpação de linfonodos nas regiões cervical, axilar e inguinal é frequente em crianças.1 É menos evidente no período neonatal, pois o tecido linfá‑ tico aumenta progressivamente de volume com a exposição a antígenos que acontece durante a infância. Os linfonodos são unidades anatômicas encapsuladas, de estrutura altamente organizada e distribuídas ao longo dos va‑ sos linfáticos. Estima-se que existam pelo corpo humano cer‑ ca de 500 linfonodos, com diâmetros variados, principalmen‑ te nas regiões da cabeça e pescoço, occipitais, auriculares, submandibulares, axilares, supraclaviculares, inguinais e epi‑ trocleares.2 Assim, a idade e a localização anatômica são im‑ portantes na avaliação clínica. São considerados normais, nas crianças até 12 anos de idade, linfonodos de até 1,5 cm na re‑ gião inguinal, de até 0,5 cm na região epitroclear e de até 1 cm nas demais regiões.1,2 Os mecanismos de aumento dos linfonodos são prolifera‑ ção de linfócitos e histiócitos (estímulo antigênico) e infiltra‑ ção por células extrínsecas.3 Distinguir um linfonodo inflamatório de um neoplásico pode ser um desafio para o pediatra, e o grande dilema é saber quando biopsiar para diagnóstico. As crianças possuem mais tecido linfoide que os adultos, e nelas a resposta linfoide é muito mais rápida e mais exacerba‑ da que no adulto. Considera-se linfonodomegalia suspeita o aumento de um nódulo linfático maior que 1 cm, em mais de um local anatô‑ mico; os linfonodos epitrocleares com mais de 0,5 cm; e o lin‑ fonodo inguinal quando maior que 1,5 cm.2
Abordagem diagnóstica O pediatra deve, por meio de exame físico detalhado, classifi‑ car a linfonodomegalia em localizada ou disseminada. O com‑ prometimento linfonodal é chamado de localizado quando apenas uma cadeia está comprometida ou até duas contíguas, e disseminado quando se verifica aumento de linfonodos em cadeias não contíguas, acima e abaixo do diafragma, frequen‑ temente associados a hepato e/ou esplenomegalias.3 Por exemplo, as linfonodomegalias localizadas aparecem mais fre‑ quentemente em processos bacterianos agudos (adenite bac‑ teriana), no entanto, podem ser a primeira manifestação de um linfoma ou ainda de um tumor sólido, de um processo tu‑ berculoso, etc. As linfonodomegalias disseminadas estão cor‑ relacionadas a processos virais diversos, infecções bacterianas sistêmicas, doenças inflamatórias imunologicamente media‑ das e doenças neoplásicas, como as leucemias2,3 (Tabelas 1 a 5). Tabela 1 Doenças inflamatórias imunomediadas Lúpus eritematoso sistêmico Artrite reumatoide juvenil Doença do soro (gânglios regridem após o exantema)
Tabela 2 Doenças crônicas granulomatosas Doença da arranhadura de gato Micobactéria atípica Mycobacterium tuberculosis Sarcoidose
Tabela 3 Doenças infecciosas sistêmicas Não exantemáticas
Exantemáticas
Bacteriana
Escarlatina
Tuberculose
Rubéola
Sífilis
Sarampo
Toxoplasmose Citomegalovírus, vírus da imunodeficiência humana (HIV), vírus Epstein-Barr (EBV) Malária Febre tifoide
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Tabela 4 Linfonodomegalias generalizadas por processos neoplásicos Leucemias Linfomas Neuroblastomas Doença de células de Langerhans
Tabela 5 Linfonodomegalias generalizadas por outras causas Complicações pós-difenil-hidantoína Anemia hemolítica autoimune Doenças de depósito (Gaucher e Niemann-Pick) Doença hemofagocítica hereditária e doença hemofagocítica secundária
Quanto às linfonodomegalias localizadas ou regionais, o pediatra deve obrigatoriamente verificar se existe uma causa específica na região que explique a linfonodomegalia. É im‑ portante que se tenha claro as diferentes áreas de drenagem correspondentes às diferentes regiões linfonodais1-3 (Tabela 6). Outros fatores importantes no julgamento clínico1-5 1. Presença ou não de sintomas sistêmicos: febre e sua duração. Febre por mais de 7 dias com linfonodomegalia localizada ou disseminada deve chamar a atenção do pediatra para doenças mais graves, como neoplasias (linfomas), doenças do sistema imunológico (lúpus eritematoso sistêmico), tuberculose, etc. Outros sintomas associados, como perda de peso, sudorese profusa e prurido, indicam a necessidade de diagnóstico dife‑ rencial com neoplasias e tuberculose.
Tabela 6 Correlação da localização com a etiologia Região
Drenagem
Patologias mais frequentes
Occipitais
Couro cabeludo
Patologias do couro cabeludo
Submaxilares, submentonianos, cervicais
Mucosas e lábios, dentes, gengivas e língua
Gengivoestomatite herpética, outras infecções da cavidade oral e da orofaringe, linfomas
Supraclaviculares
À direita: drenam mediastino À esquerda: drenam abdome
Linfomas, tuberculose, histiocitose
Mediastinais e hilares
Pulmão e mediastino
Fibrose cística Tuberculose: 86% unilateral Bilaterais com calcificações Eritema nodoso Histoplasmose Coccidioidomicose Sarcoidose Pneumoconiose Neoplásicos: Linfoma não Hodgkin ou leucemias T Doença de Hodgkin Ganglioneuroma/neuroblastoma de mediastino posterior Outros: Cistos de duplicação esofágica Broncogênicos e pericárdio Teratomas, cisto dermoide Bócio subesternal
Axilares
Mãos, braços, parede torácica, inflamações ou infecções locais, parede abdominal lateral superior, parte da mama
Artrite reumatoide: mãos e punhos Doença da arranhadura de gato BCG do deltoide Tumores de partes moles Linfomas
Epitrocleares
Extremidades inferiores
Infecções locais graves Tumores das extremidades
Inguinais
Escroto e pênis, vulva e vagina, pele do baixo abdome, períneo e região glútea, parte inferior do canal anal, extremidades inferiores
Linfogranuloma venéreo Apendicite Infecção urinária Linfomas e tumores de partes moles Massas não ganglionares: hérnias, lipomas, aneurismas, testículo, ovário ou baço ectópico, endometriose
Ilíacos
Pelve, genitália interna e bexiga
Infecções Rabdomiossarcoma Tumores germinativos
Poplíteos
Extremidades inferiores
Infecções locais graves Tumores das extremidades
Abdominais/pélvicos
Extremidades inferiores, pelve, órgãos abdominais
Infecções a distância Adenite mesentérica Linfomas e neuroblastomas
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Linfonodomegalias •
2. Características do linfonodo: linfonodos elásticos, móveis, in‑
dolores, de tamanho não maior que 2 a 3 cm são frequente‑ mente reacionais. Linfonodos duros, elásticos, pouco doloro‑ sos, aderidos a planos profundos, coalescentes com outros linfonodos, frequentemente gerando uma massa maior que 4 cm, são características das neoplasias principalmente linfomas (doença de Hodgkin e, menos frequentemente, linfoma não Hodgkin). Linfonodos dolorosos, com sinais flogísticos (calor e/ou rubor), pouco aderidos a planos profundos e mais fre‑ quentemente únicos são sugestivos de processo bacteriano. Deve-se verificar também a presença ou ausência de supuração. 3. Local ou locais de comprometimento e a associação com a drenagem dos linfonodos: são considerados patológicos e não reacionais os linfonodos retroauriculares, supraclaviculares, epitrocleares, poplíteos, mediastinais e abdominais. Linfono‑ dos nessas regiões devem ser pesquisados. 4. Idade: a maior ou menor valorização do linfonodo depende também da idade do paciente. Os linfonodos normalmente não são palpados nos recém-nascidos e atingem tamanho considerável com 1 ano de idade, aumentando até a puberda‑ de. São comuns na adolescência e adultos jovens. Após 40 anos de idade, são geralmente tumorais.
Investigação complementar Hemograma completo, bioquímica, funções renal e hepática, desidrogenase lática (DHL) e ácido úrico podem ser inicialmen‑ te solicitados. O hemograma pode orientar para a suspeita de um quadro infeccioso. Se bacteriano, pode ser observada leuco‑ citose com neutrofilia; se viral, há predomínio de linfócitos com atipias, desde que as demais séries, vermelha e megacariocítica, estejam normais. Sempre que o hemograma mostrar bicitopenia ou pancitopenia, deve-se pensar em doença comprometendo a medula óssea. A bioquímica é importante para avaliar a presen‑ ça de uma doença sistêmica ou de um quadro de linfonodome‑ galia localizada. A DHL é uma enzima intracelular que aumenta em todos os processos em que haja lise celular. A elevação da DHL associada a linfonodomegalias deve orientar para o diag‑ nóstico de síndromes hemolíticas e/ou morte celular espontâ‑ nea (neoplasias agressivas, como leucemias e linfomas). O ácido úrico, por sua vez, é encontrado em quantidade elevada nas cé‑ lulas neoplásicas e pode estar aumentado no momento do diag‑ nóstico das linfonodomegalias por linfomas e/ou leucemias.3,6 Exames adicionais, na dependência do quadro clínico, in‑ cluem:3,6 • sorologias para toxoplasmose, mononucleose, citomegaloví‑ rus, HIV; • intradermorreação ou teste de Mantoux (PPD); • radiografia de tórax posteroanterior (PA) e perfil; • ultrassonografia abdominal e do linfonodo com Doppler. Se houver alterações hematológicas concomitantes, pensar na possibilidade de diagnóstico por punção de medula óssea.3,6 Sinais de alerta para a necessidade de biópsia2 • Presença persistente e inexplicável de febre e/ou perda de peso e/ou sudorese noturna;
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• linfonodomegalia generalizada e hepato e/ou esplenomega‑ lia; • gânglios aderidos a planos profundos ou à pele, de crescimen‑ to rápido, coalescentes e endurecidos; • localização supraclavicular ou de mediastino; • aumento progressivo do gânglio ou sua não regressão em 4 se‑ manas ou mais; • gânglios de tamanho maior que o inicial, após 2 semanas de uso de antibióticos; gânglios que não diminuem de tamanho após 4 a 6 semanas ou que não retornam ao tamanho normal em 8 a 12 semanas, principalmente se associados a novos si‑ nais e/ou sintomas; • investigação laboratorial: negativa, e o gânglio se mantém por mais de 8 semanas. As linfonodomegalias de cabeça e pescoço, com sinais infla‑ matórios associados, estão frequentemente associadas a cau‑ sas bacterianas, como Staphylococcus aureus e Streptococcus beta-hemolítico. O pediatra pode realizar teste terapêutico com amoxicilina ou cefalosporina. Outras causas infecciosas de aumento de linfonodos cervicais incluem doença da arra‑ nhadura de gato, micobactérias não tuberculosas, toxoplas‑ mose, vírus Epstein-Barr, citomegalovírus ou HIV.1 Aumento isolado de linfonodos supraclaviculares em geral reflete doença transportada pelos ductos torácicos do abdome, se do lado esquerdo (nódulos de Virchow) e do tórax, se do lado direito.1 A linfonodomegalia mediastinal está, na maioria das vezes, relacionada a uma doença mais grave. Bower et al. mostraram que, de 173 casos de massa mediastinal, 41% eram neoplasias. Na Universidade de Minnesota, de 68 massas de mediastino anterior, 43% eram doença de Hodgkin, 25% linfoma não Hodgkin, 17% leucemias e 9% histoplasmose.5 O linfonodo escolhido para biópsia deve ser o maior e mais significativo. O ideal é que essa biópsia seja feita em um centro especializado para que o material seja pesquisado na forma mais completa possível, incluindo anatomopatologia, imuno‑ -histoquímica, culturas para aeróbios, anaeróbios e fungos. O linfonodo principal deve, sempre que possível, ser retirado in‑ teiro para que o patologista possa analisar sua estrutura com‑ pleta.1,3,4 Indicar biópsia de linfonodo se: • história e exame físico sugerem neoplasia; • linfonodomegalia maior que 2,5 cm na ausência de sinais de infecção; • linfonodomegalia persistente ou em progressão; • ausência de redução do linfonodo após 2 semanas de antibio‑ ticoterapia; • linfonodomegalia supraclavicular. Conduta para linfonodos não associados a fatores de risco Sempre que existir a presença de sinais flogísticos, o pediatra pode realizar o teste terapêutico com antibióticos, mas deve manter observação com controle seriado até o desapareci‑ mento. Sugere-se que o profissional meça com régua e mar‑
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que todos os diâmetros e a localização do linfonodo, e biopsiar em caso de: crescimento progressivo e não regressão em 8 se‑ manas.3,5 Inicialmente, a observação rigorosa é a conduta recomen‑ dável, assim como o uso de analgésicos e calor local a cada 4 horas, o que pode, algumas vezes, auxiliar na resolução do pro‑ cesso. Quando a linfonodomegalia sugere processo bacteriano, em função do achado da tumefação, de eritema na pele, de dor local e de febre, a hipótese de foco bacteriano deve ser conside‑ rada e indicada antibioticoterapia. Entre os antimicrobianos recomendados, citam-se as penicilinas, as cefalosporinas ou a eritromicina, por um período de 7 a 14 dias, nas doses usuais utilizadas em pediatria. Nesses casos, o hemograma completo com a velocidade de hemossedimentação (VHS) pode auxiliar no acompanhamento. Se houver presença de fistulização ou necessidade de drenagem cirúrgica, a pesquisa do agente etio‑ lógico deve ser realizada. A observação clínica, associada ou não à investigação laboratorial, está indicada em crianças com linfonodomegalia localizada, móvel, não coalescente, indolor, sem sinais flogísticos locais, não associada à queixa de ema‑ grecimento e à febre persistente. Muitas vezes, nesses casos, a linfonodomegalia está relacionada à hiperplasia reativa, na qual, geralmente, ocorre a regressão espontânea.2,3,5 O pediatra é o principal responsável pelo diagnóstico preco‑ ce e pelo encaminhamento da criança para centros competen‑ tes para diagnóstico preciso. Outros recursos diagnósticos 1. Ultrassonografia: pode ser útil nos casos agudos para diferen‑ ciar lesões supurativas ou não supurativas, tecidos moles ou lesões císticas. Caracteristicamente na doença de Kawasaki, a aparência do linfonodo à ultrassonografia é de um “cacho de uva”, sendo que esse achado pode ser útil no diagnóstico dife‑ rencial com doenças bacterianas.1,3,7 2. Punção aspirativa por agulha: punção e aspiração do conteú‑ do de um linfonodo com sinais flogísticos ou com suspeita de infecção pode ser realizada visando à coleta de material para cultura e pesquisa direta. Deve ser solicitada cultura para bac‑ térias aeróbicas, anaeróbicas e micobactérias. Pesquisa e cul‑ tura para fungos devem ser incluídas nas lesões unilaterais crônicas. A análise citológica também é útil em sugerir malig‑ nidade, mas, na suspeita de neoplasia, a biópsia excisional é mandatória. Importante ressaltar que a punção aspirativa pode ocasionar uma fístula, principalmente se houver supu‑ ração tuberculosa. Essa complicação deve considerada ao se indicar esse procedimento.1,8 3. Biópsia e aspirado de medula óssea: indicados em caso de suspeita de leucemia ou linfoma.3 Tratamento Nos casos pertinentes, pode ser indicada a farmacoterapia descrita a seguir.9 Antibioticoterapia via oral • Azitromicina: > 6 meses: 10 mg/kg dose inicial; após, 5 mg/ kg/dia por 3 a 4 dias;
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• • • • •
cefuroxima: 20 a 30 mg/kg, divididos a cada 12 horas; cefalexina: 25 a 50 mg/kg, divididos a cada 6 horas; claritromicina: 15 mg/kg, divididos a cada 12 horas; clindamicina: 10 a 20 mg/kg, divididos a cada 6 horas; eritromicina: 30 a 50 mg/kg, divididos a cada 6 horas.
Anti-inflamatórios não hormonais via oral • Ibuprofeno: 5 a 10 mg/kg, divididos a cada 6 ou 8 horas (má‑ ximo 1.200 mg/dia); • nimesulida: 50 a 100 mg, divididos a cada 12 horas (crianças maiores de 12 anos); • naproxeno: 5 a 7 mg/kg, divididos a cada 8 ou 12 horas. Considerações finais Linfonodomegalias são frequentes na infância e, apesar da etiologia benigna e transitória na maioria dos casos, o diag‑ nóstico correto é fundamental para o tratamento de doenças infecciosas ou malignas. O exame físico completo e a história clínica são, na maioria dos casos, suficientes para elaborar a suspeita diagnóstica. Cabe ao pediatra o diagnóstico precoce e o encaminhamen‑ to da criança para centros competentes para diagnóstico pre‑ ciso, quando necessário. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer que as linfonodomegalias são frequentes na criança e que a realização da história clínica e do exame físico detalhado é importante. • Saber que na avaliação das linfonodomegalias devem ser considerados a idade do paciente, a presença de sinais/sintomas sistêmicos, a localização anatômica e o tamanho do linfonodo. • Identificar os mecanismos de aumento dos linfonodos e a correlação da localização com a etiologia. • Definir linfonodomegalia localizada e disseminada. • Apontar a abordagem diagnóstica e a terapêutica inicial. • Identificar os sinais de alerta para necessidade de biópsia.
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CAPÍTULO 14
HEMOTERAPIA EM PEDIATRIA Célia Martins Campanaro Isa Menezes Lyra Liane Esteves Daudt
Introdução Pacientes em situações de risco e com necessidade de suporte hemoterápico tornam-se cada vez mais frequentes em pedia‑ tria. O conhecimento da prática hemoterápica clínica faz-se cada vez mais necessário, respeitando as peculiaridades das diferentes faixas etárias. Os hemocomponentes são separados por meios físicos a partir da coleta de sangue de doadores voluntários. Os hemo‑ derivados são compostos preparados de forma industrial a par‑ tir de pool de doadores e passam por processos de inativação viral, visando à redução do risco da transmissão de doenças.1,2 O processo de doação de sangue inicia com a entrevista de candidatos à doação, associada aos testes sorológicos obriga‑ tórios, para o vírus da imunodeficiência humana adquirida (HIV), sífilis, hepatites B e C, vírus linfotrópico humano tipo I e II (HTLV I e HTLV II) e doença de Chagas, além da triagem de alterações de enzimas hepáticas e anemia.1,3,4 Apesar de todos os cuidados e controles no preparo de he‑ mocomponentes e hemoderivados, sempre devem ser ponde‑ rados o risco e o benefício do procedimento, bem como as dife‑ renças fisiológicas entre as diversas fases do desenvolvimento da criança, do período intraútero à adolescência.1,3 Princípios gerais5-8 1. A indicação de transfusões deve considerar parâmetros clíni‑ cos, evitando adotar limites exclusivamente laboratoriais. 2. Sempre considerar a possibilidade de utilizar terapia alterna‑ tiva à transfusão. 3. Observar que a prescrição médica tem validade de 24 horas. 4. A identificação segura do paciente deve sempre ser verificada. 5. Sempre conferir a identificação no rótulo do hemocomponen‑ te: nome do paciente, grupo sanguíneo ABO e Rh e realização dos testes de compatibilidade pré-transfusionais, além da prescrição do dia. 6. Não adicionar medicamentos a hemocomponentes durante a infusão.
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7. Não realizar infusão do hemocomponente em paralelo na
mesma linha venosa. Exceção: solução de cloreto de sódio 0,9% em casos excepcionais. 8. Observar o paciente durante toda a transfusão, principalmen‑ te nos primeiros 10 minutos, e registrar qualquer sintoma ou sinal adverso. No caso de indício de qualquer reação transfu‑ sional, deve-se suspender a transfusão imediatamente, tomar as medidas terapêuticas imediatas e notificar a agência trans‑ fusional. 9. Se houver indicação para aquecimento do sangue antes da transfusão, utilizar aquecedores específicos dotados para esse fim.
Indicações de hemocomponentes diferenciados1,3,4 Irradiados A irradiação de hemocomponentes tem por objetivo limitar a proliferação de linfócitos T e, em consequência, prevenir a doença do enxerto versus hospedeiro transfusional. Pode ser aplicada em concentrado de plaquetas e hemácias. Indicações Transfusão intrauterina e recém-nascidos (RN) que foram a ela submetidos; exsanguinotransfusão; prematuridade; RN com peso de nascimento inferior a 1.200 g; RN em uso de oxi‑ genação por meio de membrana extracorpórea (ECMO); por‑ tadores de imunodeficiências congênitas; pacientes candida‑ tos ou já submetidos a transplantes de órgãos sólidos ou de célula-tronco hematopoética (TCTH); pacientes em quimiote‑ rapia ou tratamento imunossupressor; e receptores de hemo‑ componentes obtidos a partir de doadores aparentados. Hemácias lavadas São utilizadas na prevenção de reações alérgicas graves, me‑ diadas por proteínas circulantes e do complemento e na ne‑ cessidade de retirar o excesso de citrato e potássio.
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Indicações Pacientes hipercalcêmicos, com baixa tolerância à sobrecarga de potássio; portadores de deficiência de IgA; podem ser utili‑ zadas em neonatos e em transfusões intrauterinas. Leucorreduzidos (deleucotizados ou filtrados) Tem por objetivo a remoção de leucócitos e, consequentemen‑ te, a diminuição do risco de sensibilizações pelo HLA. Podem ser aplicados a hemácias e plaquetas. Para serem considera‑ dos eficazes, deve reduzir a concentração de leucócitos em va‑ lores inferiores a 5 × 106.
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Período neonatal e menores de 4 meses Diferem nesta faixa etária por variações fisiológicas, como re‑ duzida volemia, anemia fisiológica da infância, diminuição da produção de eritropoetina endógena e baixa tolerância às mu‑ danças fisiológicas relacionadas ao estresse. Apesar de existirem inúmeros estudos, ainda há controvér‑ sias na indicação, nos riscos e nos benefícios da transfusão nesse grupo, assim como a avaliação dos sinais clínicos nos prematuros. Devem ser utilizados entre 10 e 20 mL por kg de peso a cada procedimento. O tempo máximo de infusão do he‑ mocomponente é de 4 horas.
Indicações Indicações para RN a termo até 4 meses de vida Prevenção de reações febris não hemolíticas em pacientes • Hb < 7 g/dL, reticulocitopenia, sintomas de anemia; com indicações de transfusões múltiplas; candidatos a trans‑ • Hb < 10 g/dL associada à necessidade de oxitenda ou capuz plantes de órgãos sólidos e células-tronco hematopoéticas; com oxigênio < 35%, ventilação mecânica com pressão média pacientes com sorologias citomegalovírus (CMV)-negativos de vias aéreas inferior a 6 cmH2O, apneia, bradicardia, taqui‑ ou desconhecidos; gestantes CMV-negativos; imunossuprimi‑ cardia, taquipneia; dos e transfusões intrauterinas. • baixo ganho ponderal (< 10 g/dia em 4 dias com suporte caló‑ rico adequado); Hemácias fenotipadas • Hb < 12 g/dL em crianças submetidas à oxigenação extracor‑ Indicadas em portadores de doenças com necessidade de pórea, com cardiopatia cianótica; oxigenoterapia com oxiten‑ transfusão de concentrado de hemácias regulares, por toda a da ou capuz com oxigênio > 35%; ventilação mecânica sob vida ou em longo prazo, como talassêmicos em hipertransfu‑ pressão positiva acima de 6 a 8 cmH2O; são, portadores de doença falciforme e anemias por falência • Hb < 15 g/dL, ECMO, cardiopatia congênita cianótica, RN de medular. A identificação de maior número de antígenos, além muito baixo peso (< 1.000 g) na 1ª semana de vida. do sistema ABO e Rh, priorizando-se os mais imunogênicos, busca reduzir a chance de alossensibilização e reações trans‑ Reconstituição de sangue total fusionais.1,4,8,9 A reconstituição de sangue total é obtida a partir da combina‑ ção entre concentrado de hemácias e plasma fresco congelado Indicações de transfusão de (PFC), preferencialmente do mesmo doador. É indicada em hemocomponentes em pediatria exsanguinotransfusão em RN com risco de kernicterus por hi‑ Concentrado de hemácias perbilirrubinemia, após bypass cardiopulmonar, necessidade A transfusão de concentrado de hemácias (CH) em pediatria de oxigenação por meio de circulação extracorpórea, ECMO e visa à correção de hipóxia tecidual, causada por baixos níveis transfusão maciça.1,2,4 de hemoglobina (Hb). As bolsas de CH apresentam hematócri‑ to entre 65 e 75% e durabilidade entre 35 e 42 dias, de acordo Exsanguinotransfusão com o tipo de anticoagulante utilizado. A dose recomendada A troca de duas volemias, equivalente a 80 mL/kg no RN a ter‑ em cada transfusão é de 10 a 15 mL/kg (eleva 2 a 3 g/dL de Hb). mo e 100 mL/kg em prematuros, é capaz de remover até 85% O RN a termo possui Hb de 15 a 18 g/dL ao nascimento, das hemácias e 25 a 45% da bilirrubina sérica. A reconstitui‑ passa por redução fisiológica no 2º e 3º meses de vida, chegan‑ ção de sangue nesse caso deve combinar CH compatíveis com do a Hb de 10 g/dL, volta a elevá-la a 11 g/dL após os 6 meses a mãe e PFC compatíveis com o RN.1,3,5,10,11 de idade e alcança valores iguais aos adultos na adolescência. Mudanças fisiológicas acompanham a transição do prema‑ Transfusão intrauterina turo, RN a termo (de 0 a 28 dias de vida), lactente jovem, até 4 Na transfusão intrauterina, devem ser utilizadas hemácias meses e após os 4 meses até o 2º ano de vida e a adolescência. grupo O negativo, sem antígenos eritrocitários implicados, Diferem quanto a dosagem de Hb, volemia e resposta fisiológi‑ com máximo de 5 dias após coleta, irradiados e filtrados, se‑ ca à hipovolemia, hipóxia e maturidade do sistema imunológi‑ guindo a fórmula:2,4,11 co. As variações ocorrem de forma mais sensível até os 4 me‑ ses de vida, o que justifica a divisão de indicações volemia (mL) × transfusionais em dois grandes períodos, antes e após os 4 (Ht desejado – Ht pré-transfusão) Volume da transfusão = meses de vida. intrauterina (mL) Ht da bolsa de As crianças menores de 4 meses requerem tipagem ABO e concentrado de hemácias Rh (com anti-D) apenas com tipagem de glóbulos vermelhos, pois os anticorpos plasmáticos ABO inicialmente presentes após o nascimento são de origem materna.1-3
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Lactentes maiores de 4 meses de idade e crianças A partir dos 4 meses, os protocolos são comuns até o final da adolescência. Cabe lembrar que as indicações transfusionais devem valorizar as manifestações clínicas e o diagnóstico, e não somente valores de Hb e hematócrito. Frequências cardía‑ ca e respiratória, perfusão periférica, consciência, alterações do sono, irritabilidade e fadiga devem ser consideradas e ana‑ lisadas individualmente.3,11 Indicações
• Perda sanguínea aguda, geralmente associada a hipovolemia e manifestações clínicas, não responsiva a outras terapias; • perda de 15% da volemia em procedimento cirúrgico; • procedimentos cirúrgicos emergenciais com anemia impor‑ tante e repercussão clínica; • cirurgias cujos valores pré-operatórios de Hb estejam entre 7 e 10 g/dL; quando a volemia é mantida, esses valores são se‑ guros na maioria dos procedimentos cirúrgicos; • disfunção respiratória ou insuficiência cardíaca: pacientes com doença pulmonar grave ou cardiopatias cianóticas com redução da saturação arterial de oxigênio devem ser transfun‑ didos a fim de manter Hb de 12 a 13 g/dL; • anemia crônica: esses pacientes normalmente toleram valo‑ res entre 6 e 7 g/dL de Hb, pois mantêm o volume intravascu‑ lar e a oxigenação tecidual adequados. A indicação transfu‑ sional é definida pelas manifestações clínicas e doença de base; • pacientes oncológicos, quando em quimioterapia ou pós‑ -TCTH, com Hb inferior a 7 g/dL; • pacientes submetidos à radioterapia, com Hb < 8 g/dL; • pacientes portadores de talassemia maior ou intermediária em hipertransfusão devem manter Hb pré-transfusional en‑ tre 9 e 10,5 g/dL; • pacientes com doença falciforme com risco alto ou antece‑ dente de acidente vascular cerebral, a fim de reduzir os níveis de HbS; • pacientes críticos: depende da clínica e do diagnóstico.1,5,6
gramento retiniano sem alteração visual, hemorragia vaginal com necessidade de até 2 absorventes/dia. 3. Grau II – melena, hematêmese, hemoptise, hematúria e san‑ gramento vaginal sem necessidade transfusional em 24 horas e sem instabilidade hemodinâmica, epistaxe ou sangramento orofaríngeo com duração maior de 1 hora. Hematoquezia mo‑ derada 2+ ou +. Hemoglobinúria > 2+. Sangramento em locais de manipulação. Presença de hemácias em fluidos de cavida‑ de em exame microscópico (indicação terapêutica). 4. Grau III – melena, hematêmese, hemoptise, hematúria (in‑ clusive sangramento sem coágulo), sangramento vaginal, he‑ matoquezia, epistaxe e sangramento orofaríngeo, em áreas de manipulação, músculo esquelético ou em partes moles, com necessidade de transfusão nas 24 horas após o início, sem instabilidade hemodinâmica; sangramento intracavitário gra‑ ve; hemorragia em sistema nervoso central (SNC), visualiza‑ da na tomografia computadorizada (TC), sem consequências clínicas. 5. Grau IV – sangramentos graves: retiniano com alteração vi‑ sual, SNC com sinais e sintomas; hemorragias com instabili‑ dade hemodinâmica.2,4,5
A transfusão de CP está indicada em trombocitopenias, em virtude da baixa produção de plaquetas pela medula óssea, como aplasias, mielodisplasias, neoplasias; pacientes em qui‑ mioterapia, radioterapia; coagulação intravascular dissemina‑ da (CIVD), após cirurgia com circulação extracorpórea ou em alterações funcionais e qualitativas das plaquetas (p.ex., sín‑ drome de Bernard-Soulier). Na trombocitopenia imune, só há indicação de transfusão de plaquetas em hemorragias graves com risco de morte (sobretudo SNC). As indicações de CP po‑ dem ser terapêuticas e profiláticas.
Indicações profiláticas Descrevem-se a seguir os procedimentos mais frequentes e o número mínimo de plaquetas suficientes para conter sangra‑ mentos e situações de risco hemorrágico com indicação profi‑ lática.2,5,9 • broncoscopia ou endoscopia sem biópsia: 20.000/mm3; Concentrado de plaquetas • broncoscopia ou endoscopia com biópsia: 50.000/mm3; Os concentrados de plaquetas (CP) podem ser por obtidos • líquido cefalorraquidiano (LCR): 20.000/mm3; pela doação de hemocomponentes, após centrifugação do • anestesia epidural, extração dentária, toracocentese, para‑ plasma rico em plaquetas. O volume final de cada unidade é centese, laparotomia, biópsia hepática, inserção de cateter cerca de 50 mL de plasma com 0,55 a 0,8 × 1011 de plaquetas. central por punção: 50.000/mm3; Concentrações maiores podem ser obtidas pela técnica de afé‑ • cirurgias oftalmológicas e neurológicas: 100.000/mm3; rese, com menor exposição do receptor a antígenos de doado‑ • neonatos portadores de trombocitopenia aloimune ou falha res. A transfusão deve ser realizada em 30 minutos. A dose é de produção: 20.000 mm3. 1 UI a cada 5 a 10 kg de peso do paciente ou 5 a 10 mL de con‑ Situações e risco centrado de plaquetas obtidos por aférese.1,2,5 A Organização Mundial da Saúde (OMS) organizou uma • Leucemias agudas e TCTH: 10.000/mm3; classificação de risco hemorrágico, que pode ser considerada • leucemia promielocítica: 20.000/mm3; na tomada de decisão: • pacientes com sinais de hemorragia, febre alta, hiperleucoci‑ 1. Grau 0 – sem evidência de sangramento. tose, plaquetopenia de instalação rápida ou alterações na coa‑ 2. Grau I – sangramento menor: petéquias, sangramento orofa‑ gulação: 20.000 plaquetas/mm3; ríngeo, epistaxe por menos de 1 hora, púrpura; sangramento • trombocitopenia grave crônica apresentando hemorragias, nas fezes: traço ou 1+/4; hemoglobinúria: traço ou 1+/4; san‑ porém com discussão caso a caso.
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Indicações terapêuticas Descrevem-se a seguir condições clínicas frequentes e o núme‑ ro mínimo de plaquetas suficientes para conter hemorragias.1,2,5 • Febre, infecções e alterações da hemostasia, sem riscos de sangramento: 10.000/mm3; • mucosites, terapia anticoagulante, risco de hemorrágico an‑ tes da próxima avaliação: 20.000/mm3; • CIVD, leucocitose extrema, transfusão maciça com sangra‑ mento ativo, hemorragia importante: 50.000/mm3; • traumatismo cranioencefálico (TCE), politraumatizados: < 100.000/mm3; • neonatos com sangramentos: 50.000/ mm3; • leucemias agudas e TCTH: 10.000/mm3; • leucemia promielocítica: 20.000/mm3; • pacientes com sinais de hemorragia, febre alta, hiperleucoci‑ tose, plaquetopenia de instalação rápida ou alterações na coa‑ gulação: 20.000 plaquetas/mm3; • trombocitopenia grave crônica apresentando hemorragias, porém com discussão caso a caso. Contraindicações (exceto em presença de hemorragias com risco de morte) • Púrpura trombocitopênica trombótica; • trombocitopenia induzida por heparina (HIT); • trombocitopenia imune: neste caso, transfusão associada à terapia imunossupressora. Transfusão de componentes do plasma em pediatria Plasma fresco congelado Preparado a partir de uma unidade de sangue total ou, menos frequentemente, por técnica de aférese e congelado dentro das primeiras 8 horas da coleta a uma temperatura de -18 a -20°C com volume aproximado > 180 mL. Contém todos os fa‑ tores de coagulação e outras proteínas presentes no plasma original, porém diluídas em função da quantidade da solução anticoagulante utilizada para a coleta. Deve ser utilizado para tratamento de distúrbios da coagulação, em que há deficiência de múltiplos fatores e na indisponibilidade de concentrados de coagulação, que têm menor risco de contaminação viral. Por não se tratar de um concentrado de uma proteína ou fator específico, não deve ser usado para correção de uma deficiên‑ cia isolada. Também não deve ser usado como fonte de albu‑ mina, outros nutrientes ou expansor de volume.7,8 Possui os mesmos riscos de transmissão de infecções que o CH. Indicações 1. CIVD: nesse distúrbio da hemostasia, há redução dos fatores de coagulação, notadamente de fibrinogênio, fator VIII e fator XIII.2 Clinicamente, o paciente pode apresentar desde sangra‑ mento microvascular importante a alterações laboratoriais isoladas. O uso de PFC, que pode estar associado ao uso de CP e crioprecipitado, está indicado quando há sangramento. Não usar no paciente sem hemorragia.1,4,5 2. Hepatopatias: a redução dos fatores da coagulação (I, II, VII, IX, X) está relacionada ao grau de lesão hepática, cuja evidência la‑
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boratorial é o alargamento do tempo de protrombina. A coagu‑ lopatia do hepatopata é complexa, com anormalidades associa‑ das a plaquetas, fibrinólise, inibidores da coagulação e disfibrinogenemia. Habitualmente, os pacientes não cursam com sangramento, salvo na presença de fatores predisponen‑ tes.2,4 O PFC está indicado em pacientes hepatopatas na presen‑ ça de sangramentos. A utilização profilática desse componente sanguíneo em situações como cirurgias e biópsias pode ser rea‑ lizada, porém corrige de forma incompleta o distúrbio hemostá‑ tico. Alterações plaquetárias e vasculares parecem ser mais im‑ portantes nessas situações. A resposta ao uso de PFC em hepatopatas é imprevisível e não há correlação entre tempo de protrombina (TP) e risco de sangramento. Questiona-se o bene‑ fício da reposição diante de um TP alargado sem sangramento. 3. Sangramento grave secundário ao uso de anticoagulantes orais antagonistas da vitamina K ou reversão urgente da anti‑ coagulação: recomenda-se utilizar vitamina K associada ou, quando disponível, prefere-se o complexo protrombínico. 4. Correção do TP e/ou do tempo de tromboplastina parcial ativa‑ da (TTPA): = 1,5 do controle para a idade em pacientes com san‑ gramento ou que serão submetidos a procedimento invasivo. 5. Uso em plasmaférese terapêutica: púrpura trombocitopênica trombótica. 6. Transfusão maciça com sangramento por coagulopatia: a coa‑ gulopatia no trauma é complexa, tem como fatores envolvi‑ dos perda sanguínea, acidose, hipotermia, consumo, fibrinó‑ lise e hemodiluição, associados à lesão endotelial. Ocorre principalmente associada ao trauma grave com perda de cer‑ ca de 40% da volemia. A diluição dos fatores essenciais para manter a coagulação adequada ocorre após perda de 1,2 vezes da volemia para fatores da coagulação e 2 volemias para pla‑ quetas. O uso de medidas de ressuscitação eficazes é essen‑ cial pode minimizar a ocorrência desse distúrbio. A avaliação clínica do paciente é essencial para o seu adequado manejo.5 7. Correção ou profilaxia de sangramento na indisponibilidade de concentrados de fatores específicos da coagulação (anti‑ trombina, proteína C, proteína S, fatores II, V, X e XI): no Bra‑ sil, aplica-se principalmente à deficiência dos fatores V e XI.
Contraindicações • Expansor volêmico; • sangramento sem coagulopatia; • correção de testes anormais da coagulação sem sangramento; • reposição proteica; • prevenção de hemorragia intraventricular no RN. A dose indicada é de 10 a 15 mL/kg para uma correção de 25 a 30% da atividade normal dos fatores da coagulação. Essa dose é suficiente para atingir a hemostasia na maioria dos casos. Crioprecipitado (Crio) Obtido a partir da centrifugação do precipitado que aparece quando o PFC é descongelado a 4°C. É rico em fator VIII, fibri‑ nogênio, fibronectina, fator XIII e fator de Von Willebrand. Apresenta volume final de 10 a 15 mL. Possui os mesmos ris‑ cos de transmissão de infecções dos hemocomponentes.
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Indicações Correção de sangramentos nas deficiências congênitas ou ad‑ quiridas de fibrinogênio (como na CIVD) e fator XIII. Não deve ser usado para correção de fator VIII ou de fator de Von Willebrand nos pacientes portadores de hemofilia A ou doen‑ ça de Von Willebrand, porque já é disponível no mercado con‑ centrado desses fatores pasteurizados e mais seguros para o tratamento dessas doenças.9 A dose indicada é de 1 a 2 unidades para cada 10 kg de peso corpóreo, aumentando o nível do fibrinogênio em 60 a 100 mg/dL. Uso em até 4 horas. Em pacientes menores de 2 anos de idade, uma unidade é suficiente para obtenção do efeito hemostático. Indicações de transfusão de hemoderivados em pediatria Concentrado de fatores de coagulação A medicina transfusional moderna favorece o uso de deriva‑ dos específicos do sangue, como os concentrados de fatores, em relação ao uso de sangue não fracionado, pois esses produ‑ tos fornecem altas concentrações, ausência de impurezas e menores riscos transfusionais, já que são submetidos à inati‑ vação viral. Nos casos específicos para as hemofilias A e B, concentrados recombinantes, não derivados do plasma hu‑ mano, já estão disponíveis.6,8 São eles: • concentrado de fator VIII e IX (ver Capítulo 15 – Distúrbios Hemorrágicos e Trombóticos em Pediatria); • complexo protrombínico; • concentrado de FVIIa; • concentrados de antitrombina III, proteína S e proteína C. Albumina Proteína plasmática natural obtida do plasma de doadores (96% de albumina e 4% de globulinas e outras proteínas). Tem meia-vida de 15 a 20 horas, sendo que somente 10% da albu‑ mina permanece na circulação após 2 horas. A reposição de al‑ bumina está indicada quando há necessidade de expansão de volume associada a hipovolemia e hipoproteinemia. Não exis‑ te evidência de que a albumina tenha algum papel na suple‑ mentação nutricional, na correção da ascite ou do edema peri‑ férico secundário à hipertensão portal. Indicações Insuficiência hepática aguda ou crônica; após paracentese por ascite; RN com sepse ou doença da membrana hialina; proce‑ dimentos de plasmaférese; indução de diurese em combina‑ ção com diurético em pacientes com sobrecarga volumétrica; enteropatias ou nefropatias com perda proteica; hipoalbumi‑ nemia (< 1,8 g/dL); choque não hemorrágico; alterações car‑ diovasculares decorrentes de hipovolemia associadas a cirur‑ gias com circulação extracorpórea; choque; taquicardia significativa; queimaduras extensas; grandes perdas líquidas para o terceiro espaço; transplante hepático; e ressecção hepá‑ tica superior a 40%.6,8
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Imunoglobulina endovenosa (IG EV) A imunoglobulina é preparada a partir do pool de plasma de doadores humanos e liofilizada. Indicações Imunodeficiência humoral primária, excluindo-se os pacien‑ tes com deficiência específica de IgA e secundária; tromboci‑ topenia imune primária (PTI), anemia hemolítica autoimune (AHAI); síndrome de Kawasaki; síndrome de Guillain-Barré; trombocitopenia aloimune neonatal; trombocitopenia secun‑ dária a doença autoimune materna (PTI, AHAI); e sepse no RN. A utilização de Ig endovenosa nos casos de sepse nos RN mostra resultados conflitantes na literatura médica, e até que novos dados estejam disponíveis, uma indicação criteriosa deve ser observada.7,8 Complicações da transfusão de hemocomponentes Complicações agudas São consideradas agudas as reações que ocorrem durante a transfusão ou até 24 horas após seu início. 1. Reação hemolítica: geralmente resulta da incompatibilidade ABO, mas pode decorrer de qualquer aloanticorpo produzido pelo receptor. Apesar de rara (1:30.000), tem alta mortalida‑ de.5,12 Podem ocorrer náusea, sibilos, dores lombar e torácica, hipotensão, CIVD e insuficiência renal aguda secundária à he‑ moglobinúria. A maioria dos casos se deve a erros na tipagem do paciente ou hemoderivados, ou impressão errônea do ró‑ tulo. O tratamento é de suporte. Em caso de suspeita, a trans‑ fusão deve ser suspensa imediatamente e iniciada hidratação rigorosa para manter boa diurese. Podem ser prescritos diuré‑ ticos, como furosemida e manitol, além de suporte respirató‑ rio, se necessário. O melhor tratamento é a prevenção, fazen‑ do tipagem confirmatória ABO sempre antes das transfusões.13 2. Reações febris não hemolíticas: são comuns (1:200) e relacio‑ nadas à presença de citocinas produzidas pelos leucócitos re‑ manescentes na bolsa. O tratamento inclui a suspensão da transfusão para afastar reação hemolítica e sepse. O alívio sin‑ tomático é obtido com o uso de antitérmicos. A leucorredu‑ ção pré-estocagem do composto previne essa reação.13 3. Reações alérgicas e anafiláticas: cursam com sintomas desde reações alérgicas leves, como espirros ou lesões urticarifor‑ mes até anafilaxia. Apesar de mais frequentes após a transfu‑ são de plasma ou plaquetas, também podem ocorrer após a transfusão de CH. Estima-se uma frequência de 1:1.000 de reações leves a moderadas e de 1:150.000 de reações graves.5,12 Em indivíduos deficientes de IgA, o risco é maior pela presen‑ ça de anticorpos anti-IgA. O tratamento é de suporte. As rea‑ ções leves e moderadas respondem ao uso de anti-histamíni‑ cos, enquanto a anafilaxia deve ser tratada com adrenalina e corticosteroide endovenoso. A leucorredução não previne. Hemoderivados lavados diminuem reações desse tipo.2,6,13 4. Sobrecarga circulatória: causa importante de óbito relaciona‑ do à transfusão e merece ser reconhecida de forma adequada.
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A hipervolemia aguda decorre da infusão de grandes volumes que superam a capacidade de compensação fisiológica. Sinais e sintomas associados incluem cefaleia, dispneia, edema pulmonar, hipertensão sistólica e insuficiência cardíaca con‑ gestiva. Os pacientes com insuficiência cardíaca ou renal apresentam maior risco, devendo ser monitorados adequada‑ mente e receber a transfusão mais lentamente, cerca de 1 mL/ kg/h (normal 2,5 mL/kg/h). O tratamento consiste da redu‑ ção hídrica e de diuréticos.1,10,11 Em pacientes com anemia crô‑ nica, que apresentam maior volume plasmático, recomen‑ dam-se infusão lenta e uso associado de diuréticos. 5. Injúria pulmonar aguda relacionada à transfusão (TRALI): definida como síndrome caracterizada por desconforto respi‑ ratório agudo durante a transfusão, ou em até 6 horas após, sem evidência de lesão pulmonar prévia. Manifesta-se com dispneia, hipoxemia, edema pulmonar bilateral não cardiogê‑ nico, hipotensão, febre, e radiografia de tórax apresentando infiltrado pulmonar bilateral sem evidência de sobrecarga cir‑ culatória.1,4 Pode ter início após a transfusão de qualquer he‑ moderivado contendo plasma e cursa com melhora em 2 a 3 dias após o seu início. É a principal causa de mortalidade rela‑ cionada à transfusão nos EUA.12 O tratamento é de suporte e não há maneiras práticas de prevenção.1,10,11 6. Contaminação bacteriana: deve ser suspeitada na presença de febre (> 38°C) com aumento de pelo menos 2°C na tempe‑ ratura corpórea em relação ao valor pré-transfusional, duran‑ te a transfusão ou em até 24 horas após, sem evidência de in‑ fecção prévia.4 Pode ocorrer no momento da coleta por má assepsia, se o doador apresentar bacteriemia ou durante a es‑ tocagem por manipulação inadequada. As manifestações clí‑ nicas estão associadas ao crescimento bacteriano durante a estocagem e a presença de endotoxinas. O paciente apresen‑ ta febre e calafrios, podendo evoluir para choque séptico. De‑ ve-se suspeitar quando ocorre a presença de qualquer come‑ morativo de sepse, que não seja apenas a febre durante a transfusão. O manejo inclui suspensão imediata da transfu‑ são, coleta de culturas da bolsa e do paciente, início de anti‑ bióticos de amplo espectro e medidas de suporte hemodinâ‑ mico.1,6
Complicações metabólicas São mais frequentes em neonatos e pacientes maciçamente transfundidos:10 1. Hipocalcemia e hipoglicemia: associada à presença de citrato na solução conservante. 2. Hiperpotassemia associada à transfusão de grandes volumes, exsanguinotransfusão ou utilização de produtos irradiados (aumento da lise celular pela irradiação). 3. Acúmulo de manitol: quando presente na solução conservan‑ te, provoca diurese osmótica. 4. Acúmulo de adenina, principalmente em neonatos que rece‑ bem grandes volumes de CH, associada à nefrotoxicidade. Complicações tardias Podem ser imunológicas e não imunológicas. Ocorrem após as primeiras 24 horas da transfusão.
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Imunológicas 1. Reação hemolítica tardia: pode ocorrer em 0,05 a 0,07% dos pacientes transfundidos e suas manifestações clínicas são discretas, admitindo-se que sejam subdiagnosticadas. São causadas pela presença de anticorpos antieritrocitários tar‑ dios, sendo os do sistema Rh e Kell os mais frequentes. Rara‑ mente necessita de tratamento específico, porém a diurese, a função renal e a coagulação devem ser observadas. A preven‑ ção é feita pelo uso de hemácias fenotipadas em pacientes com chances de politransfusão.1,10 2. Doença do enxerto versus hospedeiro pós-transfusional: rara e grave, muitas vezes fatal. Ocorre pela fixação e proliferação de linfócitos do doador imunocompetente em um receptor imunocomprometido ou não, porém incapaz de os eliminar. Pode ocorrer em pacientes imunocompetentes com HLA si‑ milares aos do doador. As manifestações clínicas são febre, enterocolite com diarreia, náuseas, vômitos, anorexia, exan‑ tema maculopapular de distribuição centrífuga, atingindo palmas das mãos e planta dos pés com evolução para lesões vesicobolhosas, comprometimento hepático e pancitopenia. Essa complicação ocorre entre 8 e 30 dias após a transfusão. A letalidade é alta e a prevenção é realizada pelo uso de hemo‑ componentes irradiados em pacientes de risco.1,11,13 3. Refratariedade à transfusão de plaquetas: frequentemente re‑ lacionada à alossensibilização contra Ag HLA em pacientes politransfundidos, febre, esplenomegalia, ação de drogas (an‑ tibióticos e antifúngicos), sepse, CIVD. O diagnóstico é basea‑ do na resposta ruim após a transfusão de CP. O tratamento consiste no controle das causas não imunológicas, quando presentes. Devem ser priorizadas plaquetas por aférese ABO compatíveis. A profilaxia é feita pelo uso de CP leucorreduzi‑ das (filtradas).1,6,10 4. Imunomodulação: necessita de maiores estudos e está basea‑ da na identificação de melhor sobrevida pós-transplante re‑ nal, na evolução da doença de Crohn, na redução de abortos espontâneos e no aumento de infecções em pós-operatórios em pacientes politransfundidos.1,8,14 Não imunológicas 1. Sobrecarga de ferro: somente uma pequena fração de ferro é excretada em condições normais do organismo. Consideran‑ do-se que cada unidade de CH possui 200 a 250 mg de ferro e a taxa fisiológica de excreção diária é em torno de 1 a 2 mg/dia, é esperado que pacientes submetidos a transfusões múltiplas apresentem sobrecarga de ferro. É mais frequente em porta‑ dores de hemoglobinopatias e doenças relacionadas à falên‑ cia medular. Deve ser tratada por meio de protocolos específi‑ cos, com quelantes de ferro.1,9,13 2. Doenças infecciosas: as infecções virais e bacterianas são bas‑ tante raras atualmente, em consequência do desenvolvimen‑ to de técnicas de maior sensibilidade e especificidade; no en‑ tanto, a identificação de novos agentes infecciosos com possibilidades de transmissão por hemocomponentes ainda é um fator de risco. Podem ser transmitidas por transfusões de hemocomponentes as seguintes doenças: HIV1 e HIV2, hepa‑ tites B e C, HTLV I e HTLV II, CMV, parvovírus B19, doença de
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Chagas, malária, babésia, sífilis, doença de Creutzfeldt-Jakob (encefalopatia degenerativa) e febre do oeste do Nilo.1,8
Na prática da medicina transfusional moderna, são essenciais o conhecimento de riscos e a associação da clínica aos resulta‑ dos de exames laboratoriais na indicação de hemocomponen‑ tes, assim como no acompanhamento de possíveis reações transfusionais, precoces ou tardias.13-15 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer os diferentes hemocomponentes, hemoderivados e componentes do plasma. • Descrever as indicações para hemoterapia e seus princípios básicos. • Acompanhar corretamente os procedimentos transfusionais. • Reconhecer as principais complicações transfusionais. • Identificar a terapêutica adequada para as complicações transfusionais. • Explicar os riscos e os benefícios da transfusão aos pacientes/familiares.
Referências bibliográficas 1.
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CAPÍTULO 15
DISTÚRBIOS HEMORRÁGICOS E TROMBÓTICOS EM PEDIATRIA Josefina Aparecida Pellegrini Braga Isa Menezes Lyra Célia Martins Campanaro
Introdução As doenças hemorrágicas são frequentes em pediatria, con‑ trastando com as tromboembólicas, mais raras. Ambas po‑ dem ser classificadas como congênitas ou adquiridas.1
As petéquias são lesões planas, com menos de 2 mm, sem desaparecimento a digitopressão, indicando comprometi‑ mento da fase primária da coagulação, com problemas na quantidade e/ou na qualidade das plaquetas. As equimoses são sangramentos cutâneos planos, com mais de 2 mm, isolados e que podem estar presentes em situa‑ ções de comprometimento das fases primária e secundária (plaquetas e fatores de coagulação). Os hematomas, por sua vez, são elevados, constituídos por hemorragias mais profun‑ das e têm maior duração (7 a 14 dias), estando relacionados a distúrbios na fase de formação da trombina. Definem-se como púrpura as lesões hemorrágicas cutâneas contíguas e superficiais.
Investigação clínica Na investigação dos distúrbios hemorrágicos e trombóticos, a histórica clínica é a base do diagnóstico, com a busca de infor‑ mações sobre início, frequência e duração dos sintomas, relação com trauma, local e tipo de manifestação, presença e intensidade de sangramentos profundos ou superficiais, cutâ‑ neos e/ou mucosos; locais acometidos; idade de início das manifestações; relato de traumas e exposição a drogas; ante‑ cedentes pessoais de cirurgias, resposta a estresse hemostáti‑ co prévio, por exemplo, traumas significativos e extrações Investigação laboratorial dentárias seguidas de hemorragias ou dificuldade de cicatriza‑ A partir da anamnese e do exame físico, devem ser solicitados ção; e histórico menstrual. Em relação aos antecedentes fami‑ os testes laboratoriais de hemostasia, como tempos de sangra‑ liares, devem ser questionados o histórico menstrual das mu‑ mento (TS), trombina, tromboplastina parcial ativada (TTPA) lheres e a presença de tromboses, hemorragias, acidentes e protrombina (TP), assim como a contagem de plaquetas, vasculares cerebrais, embolias e flebites na família. discutidos no Capítulo 1 – Interpretação do hemograma e das O exame físico dos distúrbios hemorrágicos deve observar provas de coagulação. sangramentos cutâneos, mucosos e sinoviais, homogeneida‑ A seguir, serão abordados os distúrbios hemorrágicos e de ou não das lesões, locais acometidos e sinais de outras trombóticos, congênitos e adquiridos, mais frequentes em pe‑ doenças crônicas ou agudas que podem estar relacionadas ao diatria, bem como suas manifestações clínicas, seu diagnósti‑ distúrbio da coagulação. O encontro de hemorragias cutâneas co e seu tratamento. em locais onde os traumas não são habituais, como face inter‑ na dos membros, dorso e tórax, e sangramentos prolongados Doenças hemorrágicas em pediatria após venopunção ou ferimentos cortantes, além da observa‑ Doenças relacionadas às alterações plaquetárias podem ser ção das articulações com aumento de volume, dor e calor, congênitas ou adquiridas. A trombocitopenia imune primária compatíveis com hemartroses, são importantes para o diag‑ (PTI) é a causa mais frequente de plaquetopenia na infância.4-6 nóstico das doenças da coagulação.1-3 O tipo de lesão hemorrágica auxilia no delineamento dos Plaquetopenias congênitas rumos da investigação, sugerindo a fase de coagulação sanguí‑ • Anemia de Fanconi; nea envolvida. Os distúrbios da hemostasia podem ser dividi‑ • síndrome de Wiskott-Aldrich: herança autossômica recessiva dos em primários e secundários. A hemostasia primária está ligada ao X, plaquetopenia, microplaquetas, eczemas e representada pelos vasos e plaquetas, e a secundária, pelos fa‑ imunodeficiência; tores da coagulação. • hipoplasia e aplasia megacariocítica;
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• síndrome de Bernard-Soulier: plaquetas gigantes, caráter • drogas: quimioterápicos, álcool, anticonvulsivantes, benzeno autossômico recessivo e relacionado à consanguinidade; e derivados, cloranfenicol. • síndrome de Tar: agenesia do rádio e plaquetopenia; • trombastenia de Glanzmann: herança autossômica recessiva, Na suspeita de plaquetopenias familiares, a investigação da quadro clínico variável, defeito na qualidade das plaquetas contagem de plaquetas dos familiares próximos é essencial, com prejuízo da adesividade plaquetária; bem como a pesquisa de consanguinidade. • doença de Von Willebrand (DvW) tipo IIB; Nas plaquetopenias identificadas no período neonatal, de‑ • anomalia de May-Heglin: herança autossômica dominante, ve-se afastar a suspeita de infecções congênitas, toxicidade plaquetopenia, plaquetas gigantes, inclusões citoplasmáticas por drogas, aplasias megacariocíticas e problemas primários em granulócitos; de medula óssea. • síndrome da plaqueta cinza: alteração nos grânulos alfa; Pseudoplaquetopenias podem ocorrer quando existem mi‑ • doenças do pool plaquetário: alterações nos grânulos densos, crocoágulos na amostra, na presença de macroplaquetas que que podem estar associados a outras síndromes raras, como não são contadas pelos aparelhos (p.ex., na PTI) e nas situa‑ Chédiak-Higashi e Wiskott-Aldrich. ções de satelismo plaquetário e uso de heparina. Plaquetopenias adquiridas Secundárias ao aumento da destruição Imunológicas
• PTI; • induzida por drogas: paracetamol, ácido acetilsalicílico, ácido valproico, barbitúricos, benzodiazepínicos, carbamazepina, cefalotina, cimetidina, clotrimazol, hidantoína, digoxina, diuréticos, fenilbutasona, heparina, iodeto de potássio, iso‑ niazida, levamisol, penicilinas, quinidinas, rifampicina, sul‑ fas, vancomicina, xilocaína; • síndrome de Evans; • trombocitopenia aloimune (recém-nascido): sensibilização prévia materna com anticorpo antiplaqueta e passagem pela membrana transplacentária em mecanismo similar, agressão às plaquetas do feto; • anafilaxia; • após transplante. Não imunológicas
• Anemia hemolítica microangiopática; • síndrome hemolítico-urêmica: plaquetopenia, anemia microangiopática, comprometimento renal; • púrpura trombocitopênica trombótica: rara em pediatria; • cardiopatias congênitas cianóticas; • síndrome de Kasabath-Merritt; • insuficiência renal crônica; • hiperesplenismo (aumento do pool esplênico). No período neonatal: • fototerapia; • aloimunização Rhesus; • exsanguinotransfusão; • policitemia; • infecção. Secundárias à redução da produção • Anemia aplástica, síndromes mielodisplásicas; • infiltração de medula óssea por neoplasias, infecções; • secundárias à radioterapia; • secundárias a deficiências nutricionais: vitamina B12, ácido fólico, ferro;
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Distúrbios da hemostasia secundária (fatores de coagulação) Distúrbios congênitos relacionados aos fatores de coagulação: DvW e hemofilias. Doença de Von Willebrand1,7-10 A DvW ocorre por defeito quantitativo ou qualitativo no fator proteico de Von Willebrand, interrompendo a hemostasia pri‑ mária. É classificada em 6 subgrupos. Prevalência Estima-se que a prevalência de DvW alcance 1% da população, porém o diagnóstico ainda se mostra insuficiente em decorrência das dificuldades laboratoriais e da heterogeneidade da doença. Manifestações clínicas As manifestações clínicas são sangramentos cutâneos, muco‑ sos, com equimoses e hematomas, podendo ser prolongados após extrações dentárias, epistaxes, hematúrias e hemorra‑ gias menstruais. Nos antecedentes familiares, a descrição de parentes próximos com história de hemorragias e ciclos hiper‑ menorrágicos é frequente. Um dado importante da anamnese é o histórico da frequência e da gravidade dos episódios hemorrágicos. Diagnóstico O diagnóstico deve ser suspeitado, inicialmente, por história clínica e exame físico, TTPA, TS prolongado e/ou plaquetope‑ nia limítrofe. A confirmação diagnóstica é feita por meio da dosagem espe‑ cífica do antígeno e de multímeros do fator de Von Willebrand (FvW), cofator da ristocetina e curva de agregação plaquetária com ristocetina. Os testes de resposta à desmopressina (DDVAP), além de auxiliarem no diagnóstico, determinam a li‑ nha terapêutica a ser seguida.1,7-10 A Tabela 1 apresenta as características de cada subgrupo e as principais alterações laboratoriais.1,7-10 Tratamento Os cuidados gerais no paciente portador de DvW incluem evi‑ tar uso de anti-inflamatórios não hormonais (AINH) e utilizar
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Distúrbios Hemorrágicos e Trombóticos em Pediatria •
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Tabela 1 Doença de Von Willebrand: classificação e diagnóstico laboratorial Tipo I
Tipo IIa
Tipo IIb
Tipo II N
Tipo II M
Tipo III
Frequência
70 a 80%
15 a 30%
15 a 30%
15 a 30%
15 a 30%
1 a 3%
Herança
HAD
HAD
HAD
HAD
HAD
HAR
TS
Normal ou prolongado
Normal ou prolongado
Prolongado
Normal
Normal ou prolongado
Prolongado
F VIII:C
Normal ou ↓
Normal ou ↓
Normal ou ↓
↓↓
Normal ou ↓
↓↓
FvW-ag
↓
Nl ou ↓
Nl ou ↓
Nl
Nl ou ↓
↓↓
FvW-R:co
↓
↓↓
↓
Nl
↓↓
↓↓
Ripa:LD
Ausente
Ausente
Presente
Ausente
Ausente
Ausente
Multímeros FvW
Todos presentes
Ausentes grandes e intermédios
Ausentes grandes
Todos presentes
Todos presentes
Variável
Resposta à DDAVP
Boa
Variável
Não usar (associado a plaquetas i)
Variável
Sem resposta
Sem resposta
HAD: herança autossômica dominante; HAR: herança autossômica recessiva; TS: tempo de sangramento; F VIII:C: nível de atividade coagulante do fator VIII; FvW-ag: antígeno do fator de Von Willebrand; FvW-R:co: cofator de ristocetina do FvW; Ripa:LD: agregação plaquetária induzida por baixas doses de ristocetina; DDAVP: desmopressina. Fonte: adaptada de Loggetto, 2007;7 Ministério da Saúde, 2006;11 Armstrong e Konkle, 2006.10
antifibrinolíticos na prevenção de hemorragias mucosas e em hemorragias leves. A DDAVP é indicada nas situações de médio risco em pa‑ cientes responsivos e na reposição de FvW nas hemorragias graves e nos pacientes não responsivos à DDAVP. É contrain‑ dicada em pacientes hipertensos, cardiopatas, com antece‑ dentes de convulsão e epilepsia. Os principais efeitos adver‑ sos são cefaleia, rubor facial, hipo ou hipertensão e taquicardia. Em hemorragias da mucosa oral, do trato gastrointestinal e de menorragia, podem ser utilizados antifibrinolíticos, como ácido aminocaproico ou ácido tranexâmico. O uso do concen‑ trado de FvW é restrito aos casos graves e de pacientes não responsivos à DDAVP. O tratamento e o acompanhamento dos pacientes devem ser realizados em locais com hematolo‑ gistas, equipe médica e multidisciplinar, além da necessidade de possuir suporte hemoterápico.7-10 Hemofilias As hemofilias são um grupo de distúrbios hemorrágicos, de herança autossômica recessiva ligada ao cromossomo X, afe‑ tando mais pacientes masculinos, com raras exceções. Apro‑ ximadamente 30% das mutações acontecem de novo, não ha‑ vendo história familiar positiva.12-14 Decorrem da diminuição da produção do fator deficiente, da produção de um fator com atividade funcional diminuída ou ambas. Na hemofilia A, o distúrbio está relacionado ao fator VIII, e na hemofilia B, ao fator IX.11,12,15,16 São classificadas em: grave, quando o fator VIII ou IX é in‑ ferior a 1%; moderada, quando o fator VIII ou IX está entre 1 e 5% e leve, quando o fator VIII ou IX está entre 5 e 50%, de acordo com o percentual de atividade de fator deficiente.11,12,15,16 Os fatores VIII e IX são essenciais na geração normal da trombina, sendo a deficiência associada a distúrbio hemorrá‑ gico cuja gravidade é relacionada ao nível de fator deficiente.
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Prevalência Estima-se que a incidência de hemofilia A seja de 1:5.000 a 1:10.000 nascimentos masculinos. A hemofilia A é mais fre quente perfazendo 80 a 85% dos casos, enquanto a hemofilia B ocorre em 10 a 15%, sem diferenças quanto ao grupo étnico.11-13,16 Manifestações clínicas São precoces desde o nascimento nos casos graves, intensifi‑ cando-se com o crescimento da criança, quando as oportuni‑ dades de traumas aumentam. As formas leves e moderadas podem apresentar-se tardiamente. A grande maioria dos re‑ cém-nascidos com hemofilia grave é assintomática, entretan‑ to, de 3 a 5% podem apresentar hematoma subgaleal ou he‑ morragia intracraniana no período neonatal.11-13,16 Os sangramentos excessivos após circuncisão, durante a erupção dentária, a presença de equimoses e hemartroses ao engatinhar e no início da deambulação, bem como a presença de hematomas pós-vacinais extensos e equimoses, hemorra‑ gias musculares e hemartroses associados a atividades habi‑ tuais ou traumas mínimos devem alertar para o diagnóstico da doença.11-13,16 As hemorragias mais frequentes são as articulares (hemar‑ troses) e os sangramentos musculares relacionados ou não a traumas. As hemorragias espontâneas são bastante comuns e as hemartroses acometem principalmente joelhos, cotovelos, tornozelos, ombros e coxofemorais. São descritas, inicialmen‑ te, a partir da percepção de calor e formigamento local, segui‑ dos de limitação de movimentos e dor.11-13,16 Sangramentos repetidos na mesma articulação levam a he‑ martrose crônica, com consequentes processos degenerativos locais, limitação prolongada de movimentos, atrofia muscular e perda funcional da articulação. As hemorragias de maior gra‑ vidade são as do sistema nervoso central, do iliopsoas e os he‑ matomas cervicais e retrofaríngeos, os quais devem ser pron‑ tamente tratados.11-13,16
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Outra complicação que pode ocorrer em pacientes hemofí‑ licos é a presença de inibidor, que são anticorpos neutralizan‑ tes da classe IgG, que acomete 25% dos pacientes com hemofi‑ lia A e 3 a 5% dos portadores de hemofilia B. Clinicamente, caracteriza-se por resposta diminuída ao concentrado de fator aplicado. Gestantes portadoras de hemofilia, com fetos do sexo mas‑ culino confirmados como hemofílicos ou sem investigação diagnóstica, devem ser encaminhadas para parto tipo cesárea, evitando riscos para o neonato.11-13,16 Diagnóstico É baseado em história clínica, exame físico e provas de coagulação, encontrando-se TTPA prolongado e corrigido após mistura com 50% de plasma normal (TTPA da mistura). Os demais testes encontram-se normais. A identificação e a classificação das hemofilias são feitas pela quantificação dos fatores de coagulação específicos VIII e IX.11-13,16 Tratamento Consiste na reposição do fator deficiente e depende da gravi‑ dade do sangramento. Devem ser utilizados produtos indus‑ trializados específicos (hemoderivados). A administração de fator deve ser feita por profissionais experientes, pela punção em veias periféricas com cuidado e compressão posterio‑ res.11-13,15,16 A fórmula prática para cálculo de dose de fator a ser admi‑ nistrada difere para a reposição de fator VIII e IX, de acordo com a meia-vida do fator. O Ministério da Saúde disponibiliza em seu site o Manual de Tratamento das Coagulopatias Hereditárias para consulta com protocolos de tratamento em diversas situações.11 A realização de punções liquóricas deve ser precedida de correção de fator. Pacientes com traumatismo craniano de‑ vem receber fator e ser submetidos à tomografia computadori‑ zada (TC), permanecendo em observação por 24 horas, com nova dose de fator em 12 horas. Cuidados gerais O atendimento ao paciente hemofílico deve ser realizado por equipe multidisciplinar e multiprofissional em serviços de re‑ ferência, com participação da família e de cuidadores. Como medidas gerais, deve-se evitar o uso de AINH e de medicações intramusculares. Está indicada a utilização de fatores de repo‑ sição antes de procedimentos de risco hemorrágico, além da prevenção de acidentes.13 Distúrbios adquiridos relacionados aos fatores de coagulação Entre os distúrbios adquiridos da coagulação, destacam-se os descritos a seguir. Coagulação intravascular disseminada Segundo a Sociedade Internacional de Trombose e Hemosta‑ sia (ISTH), a coagulação intravascular disseminada (CIVD) é uma síndrome adquirida caracterizada por ativação intravas‑
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cular da coagulação, com perda da localização, derivada de di‑ versas causas. Ela pode se originar na microvasculatura ou cau‑ sar dano a ela, o que, se suficientemente grave, pode gerar disfunção orgânica. Tem como etiologias sepse, infecções gra‑ ves, traumas, complicações obstétricas, hemólise intravascu‑ lar, anormalidades vasculares (hemangiomas gigantes e aneu‑ rismas de grandes vasos), destruição de órgão (pancreatite), reações imunológicas (rejeição ao transplante, reação transfu‑ sional grave), reação a toxinas exógenas (picada de cobra) e doenças malignas.14 Apresenta como característica fisiopato‑ gênica principal a geração desregulada e excessiva da trombina. Doenças hepáticas A lesão das células parenquimatosas do fígado causa diminui‑ ção do nível plasmático dos fatores da coagulação (exceto do fator VII e do fvW). A trombocitopenia geralmente decorre da presença de hiperesplenismo associado, autoimunidade, CIVD, deficiência de folato e diminuição na produção de pla‑ quetas. Pode haver ainda disfunção plaquetária que também contribui para a alteração da hemostasia. Deficiência de vitamina K Causada pelo uso de antibióticos e medicações que causem al‑ terações da flora intestinal; por nutrição parenteral prolonga‑ da; distúrbios na absorção de gorduras (doença celíaca); insufi‑ ciência pancreática e icterícia obstrutiva; em recém-nascidos que não receberam vitamina K ao nascimento; e em indivíduos em uso de anticoagulantes orais cujo mecanismo de ação é a interferência na síntese de fatores dependentes de vitamina K. Autoanticorpos Presentes em pacientes com doenças autoimunes, mulheres jovens após parto e neoplasias. Nesses casos, ocorrem hemor‑ ragias graves. Anticorpo antifosfolípide É um autoanticorpo dirigido contra fosfolípides (FL) ou com‑ plexos de proteínas plasmáticas ligadas a FL. Caracteristica‑ mente, observa-se prolongamento do TTPA e, ocasionalmen‑ te, do TP, que não corrige com a mistura. A ocorrência de hemorragias é rara e, paradoxalmente, associa-se a plaqueto‑ penias, abortos de repetição e tromboses. Em todos os casos, o tratamento deve ser direcionado para o controle da causa de base, além da manutenção da terapia de suporte.11-13,15,16 Distúrbios trombóticos Os distúrbios trombóticos têm apresentado aumento na fre‑ quência nos últimos anos, seja por melhores condições de diagnóstico, pela maior sobrevida ou cura de doenças graves, cujo tratamento e sequelas estão relacionados aos distúrbios da hemostasia e à trombofilia.17 Geralmente, têm etiologia multifatorial, com associação entre predisposição genética e fatores adquiridos. Desde o pe‑ ríodo neonatal até a vida adulta, a criança apresenta mecanis‑ mos fisiológicos protetores de tromboses, mais intensos nos
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Distúrbios Hemorrágicos e Trombóticos em Pediatria •
primeiros meses de vida, baseados na reduzida capacidade de gerar trombina, quando comparada a um adulto.17 Manifestações clínicas Dependem da faixa etária e do local da trombose. Em recém‑ -nascidos, predominam as tromboses em cateteres, as vascula‑ res e as espontâneas da veia renal, na qual são encontradas he‑ matúria, proteinúria, massas abdominais e disfunção renal. A trombose em veias previamente cateterizadas pode ser assin‑ tomática ou de evolução para esplenomegalia e hipertensão portal tardia, como as tromboses pós-cateterismo umbilical. Em membros afetados por obstruções vasculares, encon‑ tram-se aumento de volume, dor com piora à movimentação, perfusão comprometida, empastamento, distensão venosa su‑ perficial e alterações da coloração da pele. A presença e a sus‑ peita de embolias pulmonares em crianças justificam a inves‑ tigação de distúrbios trombóticos. As obstruções arteriais são mais raras, e os achados clínicos são palidez e redução da tem‑ peratura local, dor e ausência ou diminuição dos pulsos distais. Os acidentes vasculares cerebrais têm apresentações múlti‑ plas, desde cefaleias e alterações sensoriais até hemiparesias, convulsões e coma.14,17 Avaliação laboratorial Apresenta variação de acordo com a idade e, de forma isolada, raramente necessita de tratamento, o qual segue sobretudo as manifestações clínicas e epidemiológicas.18-20 A investigação e o diagnóstico laboratorial de doenças tromboembólicas em pe‑ diatria são feitos a partir das dosagens de proteínas envolvidas no sistema de fibrinólise. Sua diminuição leva à redução dos fatores protetores de trombose, predispondo trombogênese. É importante ressaltar a necessidade da correlação clínica e epidemiológica ao se discutir as condutas a ser tomadas, assim como a confiabilidade na experiência dos laboratórios. As prin‑ cipais alterações encontradas, de forma isolada ou combinada, que podem ser adquiridas ou congênitas, são descritas a seguir: • proteína S baixa; • proteína C baixa; • antitrombina baixa; • fator V de Leiden baixo; • gene mutante da protrombina presente; • homocisteína alta; • displasminogenemia; • deficiência de fator XII. Indica-se a investigação de trombofilia nas seguintes situações:18 • neonatos e crianças com trombose venosa ou acidente vascu‑ lar cerebral, sem cateteres centrais ou infecções associadas; • adolescentes sem fatores de risco, com trombose; • em crianças e adolescentes com história familiar, a investiga‑ ção não é obrigatória, mas é recomendável, visando à triagem familiar. Os principais distúrbios congênitos trombóticos na infância e na adolescência estão relacionados às deficiências de fator V de Leiden, proteína C e proteína S.
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Fatores externos Os fatores de risco para trombose em crianças e adolescentes, associados ou não a alterações laboratoriais sugestivas de trombofilia, são: • cateteres centrais e periféricos; • desidratação; • infecções com formação de anticorpos antifosfolípides; • cirurgias e traumas; • neoplasias; • pós-quimioterapia (uso de asparaginase causando déficit de fibrinogênio); • vasculites; • anticoncepcionais; • aumento de fatores VIII e de fibrinogênio (transfusão de crio‑ precipitado); • doença hepática relacionada aos baixos níveis de proteína C, S e antitrombina; • anticoagulação com warfarina: baixos níveis de proteína S e C; • anticoagulação com heparina: baixos níveis de antitrombina; • deficiências nutricionais com elevação de homocisteína; • gravidez relacionada aos baixos níveis de proteína S; • síndrome nefrótica decorrente dos baixos níveis de proteínas C e S e à lipoproteína A (Lpa) alta; • cardiopatias congênitas complexas, nas quais são encontra‑ dos baixos níveis de proteínas C, S e antitrombina; • reações inflamatórias que elevam o fator VIII e a Lpa e redu‑ zem a proteína S. Tratamento O tratamento das doenças trombóticas em pediatria visa a es‑ tabilizar o trombo, prevenir a embolização e estimular a fibri‑ nólise. Pode ser realizado com utilização de heparina, contro‑ lado pelo TTPA e tendo o sulfato de protramina como antídoto, no caso de hemorragias. A heparina de baixo peso molecular é outra opção terapêutica, com vantagens como facilidade de administração, menor risco hemorrágico e menor necessidade de coleta de exames de controle, sendo controlada pelo fator Xa e TTPa. A manutenção do tratamento é individual, dependendo da gravidade do quadro clínico e dos fatores de risco congênitos ou externos associados, devendo ser acompanhada por hema‑ tologistas pediátricos.17,18,20 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender a fisiologia da hemostasia. • Saber que, na maioria dos casos, os distúrbios hemorrágicos e trombóticos são adquiridos ou secundários a outros fatores de risco. • Descrever as principais causas de plaquetopenia congênitas e adquiridas. • Reconhecer que a doença de Von Willebrand é a coagulopatia hemorrágica hereditária mais frequente e saber diferenciá-la das hemofilias. • Diferenciar as manifestações hemorrágicas decorrentes de alterações da hemostasia primária e secundária.
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• Avaliar, pela história clínica e pelo exame físico, a suspeita diagnóstica e a necessidade de investigação laboratorial para os distúrbios hemorrágicos e trombóticos. • Obter história familiar detalhada para delinear qualquer indício de distúrbio hereditário. • Escolher os testes de triagem laboratorial na investigação dos distúrbios hemorrágicos e trombóticos e saber interpretá-los. • Reconhecer as situações de emergência. • Descrever as intervenções terapêuticas iniciais para os distúrbios hemorrágicos e trombóticos. • Orientar-se com hematologista pediátrico, sempre que necessário.
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CAPÍTULO 16
TROMBOCITOPENIA IMUNE PRIMÁRIA Denise Bousfield da Silva Liane Esteves Daudt Sandra Regina Loggetto
Introdução e definição A trombocitopenia imune primária (primary immune thrombocytopenia – antigamente chamada de púrpura trombocito‑ pênica imune – PTI) na criança é geralmente um distúrbio agudo, autolimitado e imunomediado. É caracterizada pela presença de trombocitopenia periférica isolada (contagem de plaquetas < 100.000/mm3) e ausência de condições secundá‑ rias que reduzam a contagem plaquetária.1-5 Os principais diagnósticos diferenciais de trombocitopenia na criança estão listados na Tabela 1.1-5 O consenso internacional publicado no ano de 2010 classi‑ fica a púrpura em: • recém-diagnosticada, quando a remissão da trombocitopenia ocorre em período < 3 meses; • persistente, quando a trombocitopenia persiste por período entre 3 e 12 meses; • crônica, quando a trombocitopenia persiste por 12 meses ou mais.2 A PTI recém-diagnosticada representa cerca de 80 a 85% dos casos nas crianças.1-5 Etiopatogenia e epidemiologia A PTI é uma doença heterogênea, de patogênese complexa, envolvendo alteração na apresentação do antígeno e na ativa‑ ção da célula T, distúrbio na estimulação das células e dos an‑ ticorpos e alteração na ativação/supressão do sistema de complemento.4,7,8 Em alguns estudos sobre PTI, foi demonstrado que os anti‑ corpos antiplaquetários podem determinar supressão na pro‑ dução de novas plaquetas, em virtude da diminuição do nú‑ mero dos megacariócitos e da inibição de sua maturação.1,7,8 Entretanto, os fatores que desencadeiam a formação desses anticorpos ainda não estão completamente entendidos.1,4,9 A história familiar de trombocitopenia em parentes de 1º grau pode ser identificada em uma porcentagem pequena de crianças com PTI. A trombocitopenia familiar, portanto, é
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Tabela 1 Diagnóstico diferencial de trombocitopenia na criança Pseudotrombocitopenia gestacional/neonatal Distúrbios congênitos ou hereditários (síndrome de Wiskott-Aldrich, síndrome de trombocitopenia com ausência do rádio (TAR), etc.) Etiologia infecciosa (infecções congênitas, infecções virais, tuberculose, etc.) Falha da trombopoese (anemia aplástica, anemia de Fanconi, etc.) Distúrbios das plaquetas gigantes (anomalia de May-Hegglin, síndrome de Bernard-Soulier, etc.) Malignidades: principalmente leucemias e distúbrios linfoproliferativos Sequestro plaquetário (hiperesplenismo, sarcoidose, etc.) Medicamentosa (penicilina, cefalosporinas, sulfonamidas, anti ‑inflamatórios não hormonais, heparina, etc.) Nutricional: condições relacionadas à deficiência de vitamina B12 e de ácido fólico Processos consultivos (hemangioma gigante, coagulação intravascular disseminada, síndrome hemolítico-urêmica, síndromes hemofagocíticas, etc.) Dilucional Distúrbios vasculares do colágeno (lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide, síndrome antifosfolípide, etc.) Imunomediada (PTI, síndrome de Evans, trombocitopenia neonatal aloimune, pós-vacinal, imunodeficiência comum variada, etc.) Outras causas: relacionadas à transfusão, insuficiência hepática, deficiência de trombopoetina, síndrome de Alport, hipertermia e hipotermia Fonte: adaptada de D’Orazio et al., 2013.6
mais provavelmente decorrente de trombocitopenia não imu‑ ne hereditária.4,5 A trombocitopenia na PTI geralmente se segue a uma doen‑ ça viral aguda em crianças previamente hígidas.4,5 Estudos desenvolvidos por alguns autores em relação à função plaquetária na PTI recém-diagnosticada demonstra‑
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ram que, apesar de a criança possuir a contagem de plaquetas extremamente baixa ao diagnóstico, os episódios hemorrági‑ cos são menos graves que naqueles pacientes que possuem trombocitopenia secundária à falha medular, por causa da presença de plaquetas jovens, granulares e hemostaticamente efetivas.6 Na PTI crônica, algumas vezes é descrita a associação com outras doenças autoimunes, ou sua ocorrência em conjunção com uma condição de base que predisponha os pacientes a distúrbios autoimunes.2,4 A incidência anual da PTI nas crianças clinicamente sinto‑ máticas é de 2,2 a 5,5 casos/100.000 crianças. A idade de iní‑ cio é variável, embora ocorra um pico de incidência entre 2 e 6 anos de idade.2,4 Casos de trombocitopenia grave sintomática em crianças com menos de 2 meses de idade podem ser secundários a anti‑ corpos antiplaquetas adquiridos passivamente da mãe com PTI ou sensibilizada por antígeno plaquetário da criança.2,4,5 A PTI recém-diagnosticada afeta ambos os sexos na mes‑ ma proporção. A doença ocorre principalmente no inverno e na primavera, quando as infecções virais são mais frequen‑ tes.2,4,5 A PTI crônica desenvolve-se em 15 a 20% dos casos, predo‑ minando no sexo feminino e na idade superior a 10 anos. Outros fatores que sugerem a cronicidade da doença são a con‑ tagem de plaquetas ao diagnóstico > 50.000/mm3, sangra‑ mentos discretos e de início insidioso. A incidência anual esti‑ mada da forma crônica é de 0,46 casos/100.000 crianças.2,4,5,9 Na população brasileira, não há dados estatísticos publica‑ dos em relação a sua incidência e prevalência. Quadro clínico O quadro clínico típico da PTI caracteriza-se por uma criança previamente saudável e que apresenta subitamente equimo‑ ses e/ou petéquias. Em torno de 60% dos casos, há uma his‑ tória prévia de infecção, geralmente antecedendo o quadro clí‑ nico em cerca de 1 mês.1,4,5 A PTI associada à vacinação contra sarampo, rubéola e ca‑ xumba (SRC ou tríplice viral) é rara, ocorrendo em aproxima‑ damente 2,6 casos para 100.000 doses da vacina.1,4,5 A epistaxe ocorre em cerca de 20 a 30% dos casos. A hema‑ túria, o sangramento oral e o gastrointestinal são observados em menor frequência. Não é descrito, no quadro clínico de PTI, presença de sintomas sistêmicos, como anorexia, dores articulares ou perda de peso. No exame físico, não há aumento significativo de linfono‑ dos, fígado ou baço, embora este último possa estar levemente aumentado em 10% dos pacientes.4,5 Na fase aguda da doença, quando a contagem plaquetária está < 20.000/mm3, há maior risco de sangramentos modera‑ dos.1,4,9 No estudo publicado pelo Grupo de Estudo Intercontinen‑ tal de PTI na Infância, que analisou 863 pacientes, observou‑ -se que 2,9% dos casos registrados apresentaram sangramen‑ tos mais significativos, definidos como epistaxe, sangramento gastrointestinal e/ou hemorragia intracraniana. Entre os pa‑
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cientes com sangramentos mais significativos, a contagem de plaquetas era ≤ 20.000/mm3 em 86% dos casos.10 As hemorragias graves, como as intracranianas (0,1 a 0,5%), são raras podendo ocorrer em qualquer período do curso da doença. Fatores de risco identificados para o desenvolvimento de hemorragia intracraniana incluem: contagem de plaquetas inferior a 20.000/mm3 (particularmente < 10.000 mm3); his‑ tória recente de traumatismo craniano; uso recente de agentes inibidores plaquetários; infecções; presença de malformação arteriovenosa; e presença de alteração na função plaquetária/ distúrbios na hemostasia.2,4 Na PTI, além da contagem plaquetária, alguns fatores de confusão devem ser considerados na variabilidade da tendên‑ cia hemorrágica, como as alterações da integridade do vaso sanguíneo e da função plaquetária; presença de doença de Von Willebrand concomitante; defeitos plaquetários qualitati‑ vos herdados e a atividade física do paciente. No entanto, até o momento, desconhece-se um fator fidedigno capaz de predi‑ zer a criança que desenvolverá hemorragia intracraniana, pro‑ vavelmente pelo polimorfismo dos genes envolvidos na he‑ mostasia e na resposta imune.11 Diagnóstico O diagnóstico deve ser fundamentado na história clínica, no exame físico, na exclusão de outras causas de trombocitope‑ nia (ver Tabela 1), no hemograma e na avaliação do esfregaço sanguíneo.1,2,4,5 O diagnóstico de leucemia deve ser excluído na presença de dor óssea, hepatoesplenomegalia ou linfonodomegalia signifi‑ cativa. Apesar da existência de controvérsias, muitos hemato‑ logistas recomendam a realização do mielograma quando houver necessidade do uso de corticosteroides. No entanto, é importante enfatizar que é incomum o achado de trombocito‑ penia isolada em pacientes com leucemia aguda, exceto nos lactentes e pré-escolares com síndrome de Down, nos quais a trombocitopenia, em algumas situações, pode anteceder a leucemia megacarioblástica aguda.1,2,4,5 A possibilidade diagnóstica de distúrbio congênito das pla‑ quetas deve ser considerada, em caso de história de púrpura de desenvolvimento insidioso (semanas a meses), presença de plaquetopenia nos primeiros meses de vida ou história fa‑ miliar de trombocitopenia. A avaliação laboratorial mais relevante na criança com PTI recém-diagnosticada é o hemograma completo com a análise do esfregaço sanguíneo. A contagem de plaquetas é tipica‑ mente baixa, mas a concentração de hemoglobina, os índices eritrocitários, a contagem leucocitária total e diferencial são normais. Ocasionalmente, a concentração de hemoglobina pode estar reduzida se o paciente tiver apresentado um episó‑ dio hemorrágico importante.4,5 Em relação à avaliação do esfregaço sanguíneo, observam‑ -se morfologia normal de todas as linhagens celulares, exceto a presença de algumas plaquetas maiores no sangue periférico; leve eosinofilia, sem relação prognóstica (20% dos casos); e a presença de linfocitose atípica no sangue periférico de alguns pacientes, sugerindo infecção viral concomitante.4,5
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O volume plaquetário médio costuma ser normal ou eleva‑ do (> 8 fL). Caso o volume plaquetário médio esteja diminuído, outros diagnósticos, como a síndrome de Wiskott-Aldrich, de‑ vem ser considerados.6 No paciente com quadros clínico e laboratorial típicos, ne‑ nhum exame adicional é rotineiramente necessário para o diagnóstico. No entanto, o aspirado da medula óssea (mielo‑ grama) deve ser realizado para excluir outros diagnósticos, quando se observar:2,4,5 • linfadenomegalia e/ou hepatoesplenomegalia inexplicadas; • presença de outras anormalidades no hemograma (neutrope‑ nia, anemia inexplicada e presença de células atípicas); • falha da terapêutica medicamentosa inicial utilizada. A realização do mielograma naqueles pacientes em que hou‑ ver necessidade de utilizar corticosteroide tem sido também a conduta prática utilizada pela maioria dos hematologistas, vi‑ sando a não mascarar o diagnóstico de leucemia aguda.4,5 Na PTI, o mielograma revela normocelularidade com matu‑ ração eritroide e mieloide normais. As unidades formadoras de colônias de megacariócitos, em geral, estão aumentadas, ou pelo menos normais em número na PTI recém-diagnosti‑ cada. Na PTI crônica, já foi observada diminuição dessas uni‑ dades. O nível de trombopoetina endógena está geralmente normal ou levemente aumentado, por razões que permane‑ cem inexplicadas.7 Tratamento Nesse capítulo, será abordada a terapêutica na PTI recém‑ -diagnosticada, considerando que representa a maioria dos ca‑ sos na criança e que a PTI persistente e crônica deve ser segui‑ da pelo hematologista pediátrico. Geral A maioria das crianças com PTI recém-diagnosticada não tem sintomas de sangramento significativo, apesar das baixas conta‑ gens de plaquetas, e pode ser conduzida sem uma terapêutica específica direcionada para elevar a contagem de plaquetas. Nes‑ ses casos, as plaquetas produzidas e liberadas pela medula óssea são jovens, granulares e exibem boa função hemostática.2,4,5 A hospitalização para esses pacientes está condicionada a: • tratamento a ser administrado; • presença de sangramento clínico significativo e/ou plaqueto‑ penia importante; • situações em que não haja confiabilidade nos familiares em relação à adesão as orientações realizadas; • família residir em local que não seja de acesso fácil ao atendi‑ mento hospitalar em caso de emergência. É importante que os pais/responsáveis sejam informados que, na maioria dos casos, o curso clínico da doença é autolimitado. Os familiares/responsáveis devem ser ainda orientados em relação à proibição para prática de esportes de contato ou ati‑ vidades com alto risco para traumatismo craniano. É funda‑ mental também a orientação para evitar o uso de medicações antiagregantes plaquetárias ou anticoagulantes.2,4,5
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Específico Diversos estudos têm demonstrado que vários tratamentos es‑ pecíficos podem elevar mais rapidamente o número de pla‑ quetas, entretanto, todos possuem eventos adversos e, até o momento, não há evidências de que alterem a fisiopatologia de base da doença nem aumentem a chance de remissão com‑ pleta.2,4,5 As decisões terapêuticas, portanto, devem estar mais pau‑ tadas na sintomatologia do que exclusivamente na contagem de plaquetas. A terapêutica específica deve ser recomendada para as crianças que apresentem sintomas hemorrágicos sig‑ nificativos ou alto risco para ele.2,4-6,9-11 Independentemente da forma de tratamento, cerca de 3% das crianças podem evoluir para quadro de hemorragia mais significativa. Nesse contexto, é importante lembrar que o sangramento para o sistema nervoso central pode ocorrer mesmo nos pacientes que utilizaram o tratamento medica‑ mentoso.2,4,5 As condutas terapêuticas atualmente utilizadas dependem mais da experiência clínica e da decisão em conjunto com os pais/responsáveis (após devidamente esclarecidos) do que de estudos clínicos randomizados e controlados.2,4 Em relação à escolha da terapia, é fundamental enfatizar que ela deve ser individualizada, considerando, além da con‑ tagem de plaquetas, a presença de sinais e sintomas hemorrá‑ gicos, os custos, os eventos adversos do tratamento e a quali‑ dade de vida para as crianças/adolescentes e seus pais/ responsáveis.2,4,5 Nesse contexto, é importante lembrar que as crianças com contagem de plaquetas entre 20.000 e 30.0000/mm3 geral‑ mente vivem bem e não apresentam manifestações hemorrá‑ gicas significativas.2,4,5 As estratégias terapêuticas de primeira linha para PTI estão listadas na Tabela 2.1,2,4-6,8,9 A transfusão de plaquetas nos pacientes com PTI está indi‑ cada somente em sangramentos com risco de óbito, em doses mais elevadas que as habitualmente utilizadas, e em associa‑ ção com corticosteroide endovenoso e/ou imunoglobulina endovenosa, uma vez que a meia-vida das plaquetas também está reduzida na PTI.1,2,4,5,8,9 Em relação à esplenectomia, raramente é utilizada em crianças com PTI recém-diagnosticada. Esse procedimento pode ser justificado para pacientes com PTI crônica que não responderam à terapêutica específica e que possuam sangra‑ mentos significativos. É importante verificar a presença de baço acessório e realizar também sua retirada. Em geral, é efe‑ tiva, pois o baço é o maior sítio de destruição plaquetária ex‑ travascular, bem como sítio primário das células B, as quais produzem anticorpos contra as glicoproteínas da membrana plaquetária. A contagem de plaquetas costuma aumentar ime‑ diatamente após a esplenectomia, alcançando o valor máximo em 1 a 2 semanas do período pós-operatório. A taxa de respos‑ ta completa a esplenectomia, segundo diversos estudos, varia de 60 a 80%.2,4-6 Pacientes esplenectomizados possuem risco, no longo pra‑ zo, para trombose e infecção. Assim, as crianças que serão es‑
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Tabela 2 Principais intervenções terapêuticas de primeira linha para a PTI1,2,4-6,8,9 Medicamento
Dose
Ação
Corticosteroide
Prednisolona ou prednisona, 4 mg/kg/dia, por 4 dias, ou 1 a 2 mg/kg/dia, via oral (dose máxima de 60 mg), por 2 a 3 semanas, independentemente da contagem de plaquetas, em razão dos efeitos adversos associados ao tratamento prolongado Dexametasona (principalmente nas formas refratárias e crônicas) na dose de 20 a 40 mg/m2 por 4 dias, via oral ou endovenosa, a cada 15 a 28 dias, por 4 a 6 ciclos (dose máxima de 40 mg/dia) Metilprednisolona em alta dose (30 mg/kg/dia por 3 dias, dose máxima de 1.000 mg). Pode ser uma alternativa efetiva e menos dispendiosa que a imunoglobulina endovenosa na presença de sangramentos mais expressivos
Inibe a fagocitose e a síntese de anticorpos e aumenta a estabilidade do endotélio microvascular
Imunoglobulina*
0,8 a 1 g/kg/dia endovenosa, por 1 a 2 dias. É contraindicada nos pacientes com deficiência congênita de IgA. No caso de sangramento grave, pode-se indicar a imunoglobulina associada ao corticosteroide
Inibe a atividade fagocítica das células do sistema reticuloendotelial, provavelmente por ocupação dos receptores Fc, resultando, assim, na sobrevida das plaquetas opsonizadas. Atua também alterando as subpopulações do linfócito T e na função da célula B, reduzindo a produção de autoanticorpos
Imunoglobulina anti-D**
Produz elevação da contagem das plaquetas em 50 a 77% dos casos, desde que administrada em doses suficientes (50 a 75 mcg/ kg endovenosa)
IgG anti-D é um antissoro policlonal contra o antígeno Rh (D) dos eritrócitos. Anticorpos aderidos a eritrócitos Rh + diminuem a destruição de plaquetas. Parecem ter pouco ou nenhum efeito no sistema imune
* Eleva o número de plaquetas em mais de 80% das crianças. A resposta terapêutica é mais rápida do que com uso do corticosteroide. O efeito é transitório, permanecendo por aproximadamente 2 a 4 semanas. ** A imunoglobulina anti-D é um procedimento terapêutico menos dispendioso que a imunoglobulina intravenosa e pode ser utilizado para os pacientes Rh positivo, com teste de Coombs direto negativo e com baço funcionante (não recomendado para esplenectomizados). Seu efeito terapêutico permanece entre 1 e 5 semanas. Certo grau de hemólise é comumente observado, podendo, às vezes, ser grave e estar associado com insuficiência renal. A formulação endovenosa não é disponível em nosso meio.
plenectomizadas devem receber vacinas contra pneumococo, Haemophilus influenzae tipo b e Neisseria meningitidis pelo menos 2 semanas antes da cirurgia. Naquelas crianças em que a esplenectomia foi realizada em uma situação de emergên‑ cia/urgência para tratamento de hemorragia aguda, a vacina‑ ção deve ser realizada logo após o procedimento cirúrgico. A profilaxia com penicilina está indicada para todos os pacien‑ tes com idade inferior a 5 anos e naqueles com idade superior a 5 anos no momento da cirurgia, pelo menos por 2 anos após a esplenectomia. O efeito benéfico da penicilina em crianças mais velhas é controverso na literatura. Todos os pacientes es‑ plenectomizados devem ser orientados a procurar imediata‑ mente um serviço médico na presença de febre ou de doença sistêmica.1,2,4-6 Os pacientes com PTI persistente ou crônica devem ser en‑ caminhados para seguimento e manejo com o hematologista pediátrico. As terapias de segunda linha devem ser reservadas para os pacientes com PTI crônica e que mantenham trombocitope‑ nia importante e sintomas hemorrágicos significativos.1,2,4,5 A menstruação excessiva nas adolescentes pode ser contro‑ lada com antifibrinolíticos e/ou anticoncepcionais.2,4 Prognóstico A maioria das crianças com PTI recém-diagnosticada não re‑ quer tratamento específico e, em 80 a 85% dos casos, o distúr‑ bio resolve-se sem sequelas, em um período de até 6 meses.
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Somente 15 a 20% das crianças desenvolvem a forma crônica da doença, cujo comportamento é similar à PTI do adulto.1,2,4,5 A remissão espontânea da doença ocorre principalmente durante os primeiros 2 anos após o diagnóstico. A taxa de re‑ missão reduz consideravelmente após esse período.12 Desafios Não há, no momento, ferramentas efetivas para predizer o ris‑ co de sangramento no paciente com PTI. Futuros ensaios clí‑ nicos no tratamento da PTI deveriam enfocar mais as manifes‑ tações hemorrágicas e aquelas relacionadas à morbidade da doença do que apenas a correção da contagem plaquetária.1,2,4,11 Os biomarcadores genéticos, atualmente em estudo, visam a predizer a evolução da doença e realizar a estimativa prognósti‑ ca. A identificação desses preditores de recuperação trará bene‑ fícios não somente para os profissionais na decisão terapêutica, mas para qualidade de vida dos pacientes e seus familiares.4,12 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Definir e classificar a PTI. • Identificar sua etiopatogenia e epidemiologia. • Reconhecer o quadro clínico da PTI e os principais diagnósticos diferenciais. • Apontar os fatores de risco para sangramentos significativos. • Identificar o tratamento geral e específico para PTI. • Conhecer o prognóstico da doença.
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CAPÍTULO 17
SÍNDROME HEMOFAGOCÍTICA Ana Paula Kuczynski Pedro Bom
Introdução Subtipos por mutação de lócus A síndrome hemofagocítica (SH), também denominada linfo‑ • LHF1: defeito genético pouco conhecido;3 -histiocitose hemofagocítica, é uma doença incomum, caracte‑ • LHF2: mutação no gene PRF1 que codifica a perforina, uma rizada por ativação expressiva do sistema imune, sendo po‑ proteína atuante na apoptose presente em linfócitos T e tencialmente fatal.1 O reconhecimento da doença e o natural killer (NK);4 diagnóstico precoce são essenciais para a sobrevida dos pa‑ • LHF3: mutação no lócus do gene UNC13D, que codifica a pro‑ cientes. teína Munc 13-4, interagindo na maturação dos grânulos de células citolíticas;5 Epidemiologia • LHF4: mutação no lócus do gene STX11, que codifica a proteí‑ Trata-se de uma síndrome primariamente pediátrica, sendo na sintaxina 11, resultando em defeito na degranulação;6 mais comum em lactentes, com incidência maior em menores • LHF5: mutação no lócus do gene STXBP2, que codifica a sinta‑ de 3 meses, sem predominância em relação ao sexo.1 xina ligadora da proteína 2 (Munc 18-2). Essa proteína liga-se à Estima-se que aproximadamente 1 entre 3.000 crianças in‑ sintaxina 11 e promove a liberação dos grânulos citotóxicos.7 ternadas por ano em algum hospital pediátrico nos EUA terá a síndrome.2 No Brasil, ainda não há uma estimativa da inci‑ A probabilidade de identificar uma mutação é maior em crian‑ dência anual de casos novos por ano, com poucos relatos des‑ ças menores. Em um estudo com 476 crianças norte-america‑ critos na literatura nacional. nas, uma mutação genética foi identificada em 45% das que tinham menos de 1 ano de vida. Nas crianças entre 2 meses e 1 Classificação ano, 1 a 2 anos e maiores de 2 anos, a frequência de identifica‑ As variações das SH têm sido sugeridas desde a descrição do ção de mutação genética foi de 39%, 20% e 6%, respectiva‑ primeiro caso como “reticulocitose hemofagocítica familiar” mente.2 Em outro estudo envolvendo 174 adultos (idade entre em 1952.3 18 e 75 anos), 14% apresentavam uma mutação genética, com As formas descritas como “SH primária” são para relacionar defeitos parciais nas funções das proteínas.8 a presença de uma doença genética prévia, e a “SH secundá‑ ria”, para evidenciar uma doença desencadeada por outro fator Subtipos relacionados a mutações associados etiológico. Tanto a forma primária como a secundária podem a imunodeficiências graves ser desencadeadas por infecções ou outros eventos imunoló‑ • Síndrome de Griscelli tipo 2: causada por mutação no gene gicos ativadores, e as mutações genéticas podem estar presen‑ RAB27A, que codifica a proteína GTP. É caracterizada por hi‑ tes em pacientes de qualquer faixa etária e com qualquer his‑ popigmentação, deficiência imunológica, trombocitopenia e tórico familiar.3 Estão listados a seguir alguns aspectos clínicos alterações neurológicas;9 e laboratoriais das SH primárias e secundárias. • síndrome de Chédiak-Higashi: causada por mutações no CHS/LYST, que codifica uma proteína reguladora lisossomal. SH primária Caracteriza-se por albinismo oculocutâneo parcial, defeitos Também denominada linfo-histiocitose hemofagocítica fami‑ nos neutrófilos, neutropenia e alterações neurológicas;10 liar (LHF), é causada por mutação genética em determinado • doença linfoproliferativa ligada ao X: o tipo 1 é causado por lócus da LHF ou em algum gene responsável por uma das sín‑ mutações no SH2D1A, que codifica um ativador de linfócitos dromes de imunodeficiências graves. T e NK; o tipo 2 é causado por mutações no BIRC4, que codifi‑
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Síndrome Hemofagocítica •
ca proteínas, as quais protegem as células da apoptose. Tam‑ bém pode ser denominada doença Duncan e está relacionada a complicações da infecção pelo vírus Epstein-Barr (EBV);11 • doença granulomatosa crônica: doença genética heterogênea associada a infecções bacterianas e fúngicas.3
SH secundária (esporádica ou adquirida) Relaciona-se, em geral, a pacientes que não apresentam uma mutação familiar conhecida, porém são portadores de defei‑ tos genéticos (como defeitos heterozigóticos, mutações resul‑ tando em expressão parcial de proteínas) e tem um fator de‑ sencadeante identificado, que são: 1. Infecções: as associações com infecções por vírus são as mais frequentes, predominando o EBV.12 Destacam-se outros, como citomegalovírus, parvovírus, herpes simples, vírus vari‑ cela zóster, vírus do sarampo, vírus herpes humano-8, vírus influenza H1N1 e vírus da imunodeficiência humana (HIV). Podem estar isolados ou combinados. Menos comumente, bactérias, parasitas (leishmaniose, malária) e fungos também podem ser desencadeantes.13 2. Neoplasias malignas: geralmente leucemias linfoides e linfo‑ mas.13 Frequentemente, nesses pacientes, a SH pode ser de‑ sencadeada por algum agente infeccioso, no decorrer do tra‑ tamento. 3. Doenças reumatológicas: dentro deste grupo de doenças, a SH pode ser denominada síndrome de ativação macrofágica (SAM), sendo artrite reumatoide juvenil a associação mais comum. A SAM também pode ser desencadeada pela doença de Kawasaki.3 Fisiopatologia A SH não é uma doença maligna e caracteriza-se por um pro‑ cesso inflamatório exacerbado disseminado, causado por uma ativação anormal do sistema imune. Presume-se que todo o processo decorra da perda da regulação de macrófagos ativa‑ dos e linfócitos.12 Na SH, os linfócitos T e NK falham em eliminar macrófagos ativados e, consequentemente, a perda da regulação normal do feedback resulta na excessiva ativação macrofágica. Como resultado final, ocorre uma elevação persistente no sangue pe‑ riférico e em tecidos do interferon-gama, fator de necrose tu‑ moral-alfa (TNF-alfa), interleucinas (IL-1b, IL-6, IL-8, IL-10, IL-12) e do receptor solúvel da IL-2 (CD25).14 Acredita-se que o excesso de citocinas inflamatórias seja responsável pela maio‑ ria dos sinais e sintomas da doença, pela falência múltipla dos órgãos e pelas altas taxas de mortalidade.12 Associados à apresentação de antígenos e à produção exa‑ cerbada de citocinas, os macrófagos também podem fagocitar células hospedeiras. A hemofagocitose refere-se ao aprisiona‑ mento das células sanguíneas e da medula óssea pelos macró‑ fagos. As células ou fragmentos celulares podem ser visualiza‑ dos no citoplasma dos macrófagos, em materiais de biópsias de linfonodos, baço, fígado e medula óssea. Embora possa ser um marcador de excesso de ativação macrofágica, sustentan‑ do o diagnóstico de SH, a hemofagocitose isolada não é patog‑ nomônica nem obrigatória para o diagnóstico.3
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Manifestações clínicas A SH apresenta-se como uma doença febril associada ao en‑ volvimento de múltiplos órgãos. Portanto, os sinais e sinto‑ mas da SH podem ser confundidos com infecções, febre de origem indeterminada, hepatite ou encefalite. A febre geral‑ mente é prolongada e intermitente, estando presente em cer‑ ca de 95% dos casos. Esplenomegalia e hepatomegalia volu‑ mosas são muito comuns, podendo estar associadas a linfonodomegalias, rash, em geral transitório, e sintomas neu‑ rológicos.3 Anormalidades neurológicas já foram descritas em um ter‑ ço de pacientes com SH, entre elas convulsões, alterações do nível de consciência (incluindo manifestações graves consis‑ tentes com encefalites) e ataxia.12 Pacientes com SH têm um risco aumentado para desenvol‑ ver a síndrome da encefalopatia posterior reversível (PRES), a qual se manifesta como cefaleia, alteração da consciência, dis‑ túrbios visuais e/ou convulsões. Ao exame, os pacientes po‑ dem apresentar hemorragias na retina e edema do nervo ópti‑ co.3 A ressonância magnética (RM) encefálica pode mostrar áreas hipodensas ou necróticas. Aproximadamente 50% dos pacientes têm anormalidades do líquido cefalorraquidiano (LCR), especialmente hiperproteinorraquia, estando associa‑ do a um maior índice de mortalidade e sequela neurológica.15 A PRES está associada com achados característicos na RM, incluindo edema cerebral vasogênico, predominantemente nos hemisférios cerebrais posteriores.3 Alterações laboratoriais 1. Citopenias: especialmente anemia e trombocitopenia são ob‑ servadas em mais de 80% dos pacientes. Podem ocorrer tar‑ diamente na SAM, sobretudo nas crianças com artrite reuma‑ toide juvenil.3 2. Níveis séricos de ferritina: nível sérico muito alto de ferritina é comum na SH; níveis acima de 500 foram descritos em mais de 90% de pacientes estudados.3 3. Função hepática e alterações da coagulação: quase todos os pacientes têm hepatite, manifestando-se com elevação de en‑ zimas (transaminases, gama GT), desidrogenase lática (LDH) e bilirrubinas. Aumento de triglicérides e hipofibrinogenemia, causados por disfunção hepática e coagulação intravascular disseminada (CIVD) também são frequentes. Os achados de biópsia hepática geralmente evidenciam acúmulos de linfóci‑ tos e hepatite crônica com infiltração linfocítica periportal.3 Diagnóstico Avaliação inicial A maioria dos pacientes com SH manifesta-se inicialmente com quadro grave, apresentando envolvimento de múltiplos órgãos, citopenias, alteração de função hepática e sintomas neurológicos. Muitos pacientes têm um histórico de interna‑ ções prolongadas ou piora do seu quadro clínico, sem um diag‑ nóstico preciso antes da possibilidade de uma SH ser cogitada. Nesses casos, deve ser realizada investigação rápida incluindo hemograma, punção aspirado/biópsia de medula óssea, tes‑
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tes de função hepática e da coagulação, ferritina e avaliação neurológica, com o objetivo de iniciar o tratamento o mais rá‑ pido possível.2 Os pais das crianças com suspeita de SH devem ser ques‑ tionados sobre consanguinidade, doenças familiares, antece‑ dentes infecciosos, histórico de febre recorrente e deficiências imunológicas preexistentes (como HIV, doenças reumatológi‑ cas, uso de imunossupressores, etc.). No exame físico completo minucioso, deve-se focar na identificação de rash, sangramento, linfonodomegalias, hepa‑ toesplenomegalia, sinais neurológicos, além do exame do apa‑ relho cardiovascular e respiratório. Todos os pacientes devem realizar hemograma, coagulo‑ grama (incluindo tempo de atividade da protrombina – TAP, tempo parcial de tromboplastina ativada – TTPA, fibrinogênio, D-dímero), ferritina sérica, enzimas hepáticas, bilirrubinas, albumina, LDH e triglicérides.3 Com base nos sintomas e sinais de envolvimento específico de determinado órgão e/ou do grau de suspeita da SH, estu‑ dos adicionais devem ser realizados, como listados a seguir: • culturas de sangue, medula óssea, urina, LCR e outros líqui‑ dos que possam estar infectados; pesquisa de vírus por meio de titulações e reação em cadeia da polimerase (PCR) para EBV, citomegalovírus, adenovírus e outros vírus suspeitos. É essencial o acompanhamento dos níveis de possíveis vírus que venham a ser identificados para que o tratamento com te‑ rapia antiviral apropriada seja realizada;3 • punção aspirado e biópsia de medula óssea: devem ser reali‑ zados em todos os pacientes para avaliar a causa de citope‑ nias e/ou para detectar hemofagocitose. Também deve ser realizada cultura da medula óssea, associada ao exame mi‑ croscópico para pesquisa de agente infeccioso (leishmaniose, malária). Deve ainda ser investigada a presença de neoplasia maligna com invasão da medula óssea. Na SH, a celularidade da medula óssea pode ser alta, baixa ou normal.2 Importante lembrar que, em alguns pacientes, a hemofagocitose só apa‑ rece tardiamente no curso da doença, mesmo na fase de me‑ lhora clínica;2 • Eletrocardiograma, radiografia de tórax e ecocardiograma.3 Critérios diagnósticos A Sociedade Internacional de Histiocitose, baseada no proto‑ colo de tratamento HLH-2004,2 definiu critérios para o diag‑ nóstico da SH: 1. Identificação de mutações nos genes: PRF1, UNC13D, STX11, STXBP2, Rab27A, SH2D1A ou BIRC4. ou 2. Cinco dos seguintes achados: • febre ≥ 38,5°C; • esplenomegalia; • citopenias, pelo menos de duas linhagens: hemoglobina < 9 g/dL (para lactentes menores de 4 semanas, hemoglobina < 10 g/dL para as outras faixas etárias); plaquetas < 100.000/ mm3; contagem absoluta de neutrófilos < 1.000/mm3; • hipertrigliceridemia > 265 mg/dL e/ou hipofibrinogenemia (fibrinogênio < 150 mg/dL);
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• • • •
hemofagocitose na medula óssea, baço, linfonodo ou fígado; atividade de célula NK baixa ou ausente; ferritina > 500 ng/mL; aumento de CD25 solúvel.
Em razão das altas taxas de mortalidade da SH na ausência de tratamento apropriado, McClain et al.3 nem sempre requerem esses critérios diagnósticos para indicar o tratamento. Esses autores não atrasam o tratamento enquanto aguardam os re‑ sultados de exames imunológicos e genéticos especializados. É comum para um paciente apresentar apenas 3 ou 4 dos 8 critérios diagnósticos, mas também ter sintomas neurológicos, hipotensão e insuficiência respiratória ou renal. Para abordar essa questão, foi proposta uma modificação para esses crité‑ rios, sendo necessário 3 dos 4 critérios (febre, esplenomegalia, citopenias, hepatite) mais 1 dos 4 marcadores imunológicos (hemofagocitose, aumento de ferritina acima de 3.000 ng/ mL, hipofibrinogenemia, ausência ou diminuição importante da função da célula NK).3,16 Jordan et al.2 também consideram essa modificação de critérios suficientes para o diagnóstico. Outras considerações para o diagnóstico Embora a hemofagocitose e altos níveis de ferritina sejam mui‑ to sugestivos para o diagnóstico da SH, devem-se considerar: • hemofagocitose não é patognomônica nem é necessária para o diagnóstico da SH. Para pacientes com falência de múlti‑ plos órgãos, com perfil imunológico típico de SH e com doen‑ ça aguda, as avaliações seriadas de medula óssea para hemo‑ fagocitose podem ser conduzidas simultaneamente com o início do tratamento;3 • com base na experiência de McClain et al.,3 em crianças com níveis de ferritina maiores que 3.000 ng/mL com quadro clí‑ nico característico, o diagnóstico deve ser condizente com SH. Quando os níveis de ferritina são maiores que 10.000 ng/mL, o diagnóstico de SH deve ser altamente sugestivo. Diagnóstico diferencial A SH pode simular várias doenças que cursam com febre, pan‑ citopenia, alterações hepáticas ou neurológicas. Citopenias, níveis muito elevados de ferritina e alterações de funções he‑ páticas (AFH) são muito úteis para distinguir SH de outras si‑ tuações. A frequência de AFH é tão alta na SH que a ausência dessas alterações deve levar a uma busca minuciosa de um diagnóstico alternativo. É importante lembrar também que a SH pode ocorrer em associação com muitas outras condições que estão inclusas em seu diagnóstico diferencial.3 Alguns diagnósticos diferenciais que devem ser considera‑ dos estão listados a seguir: 1. Infecções/septicemia: compartilham muitas características semelhantes com SH, como febre, citopenias e alterações he‑ páticas. Tanto septicemia como SH podem evoluir com CIVD e inflamação disseminada com liberação aumentada de cito‑ cinas. Entretanto, a SH geralmente é desencadeada por infec‑ ção viral, ao contrário da septicemia, que é caracteristicamen‑ te causada por bactéria ou fungo e não cursa com ativação linfocitária. Em um grupo de 19 crianças com diagnóstico ini‑
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Síndrome Hemofagocítica •
cial de febre de origem indeterminada, foram detectados ní‑ veis extremamente altos de ferritina e LDH nos pacientes que tiveram diagnósticos subsequentes de SH.17 Níveis de ferriti‑ na tendem a se manter estabilizados em pacientes com infec‑ ções, mas estão propensos a aumentar drasticamente na SH.3 2. Hepatopatia/insuficiência hepática: tanto doença hepática primária como SH podem cursar com hepatomegalia e altera‑ ções de funções hepáticas. Também ambas podem causar coagulopatia com TAP e TTPA prolongados, hipofibrinogene‑ mia e aumento de D-dímero. Ambas as doenças podem ainda causar encefalopatia. Contudo, ao contrário da hepatopatia, a SH é uma doença multissistêmica. Na SH, ocorre envolvi‑ mento mais expressivo de outros órgãos, citopenias, níveis muito altos de ferritina e alterações neurológicas. Excesso de citocinas circulantes não é observado em pacientes com doenças primárias hepáticas.3 3. Encefalite: pode ser causada por microrganismos e por doen‑ ça autoimune. As manifestações clínicas podem variar desde déficits neurológicos súbitos até coma. Na SH, além das apre‑ sentações neurológicas, que podem ser idênticas às da ence‑ falite, os pacientes também apresentam envolvimento mais extenso de órgãos, além das diversas alterações laboratoriais que não ocorrem nas encefalites isoladas.3 4. Maus-tratos: podem ter apresentação clínica semelhante à SH com envolvimento de sistema nervoso central (SNC). As manifestações clínicas podem variar desde irritabilidade até coma, e os achados podem ser de hemorragias em retina e in‑ tracranianas em ambos os casos.18 A maioria das crianças víti‑ mas de maus-tratos com lesão cerebral também pode ter alte‑ rações laboratoriais, como TTPA prolongado. Entretanto, citopenias, alterações hepáticas e altos índices de ferritina não são característicos de maus-tratos.
Tratamento e prognóstico A partir do primeiro protocolo de tratamento (HLH-94) para SH, proposto pela Sociedade de Histiocitose em 1994, houve aumento significativo da sobrevida dos pacientes, para 54%, com um seguimento mediano de 6 anos.19 Geralmente, a maior barreira para o tratamento e para o prognóstico favorável para pacientes com SH é o atraso no diagnóstico. Vários aspectos podem contribuir para esse atra‑ so, por exemplo, ser uma doença rara, manifestações clínicas muito variadas e escassez de especificidade dos achados clíni‑ cos e laboratoriais. Toda criança com quadro sugestivo de SH deve ser avaliada por um hematologista, e aqueles pacientes agudamente enfer‑ mos devem ser transferidos para centros de tratamento onde possam receber o tratamento específico. O objetivo do tratamento consiste em suprimir o processo inflamatório disseminado, destruindo as células imunes. A te‑ rapia de indução baseada no protocolo HLH-94 consiste em série de tratamento semanal com dexametasona e etoposídeo (VP-16), seguido por ciclosporina. Pacientes com doença em SNC recebem o metotrexato (MTX) intratecal. Após a indução, os pacientes que se recuperaram param o tratamento, e aque‑ les que não responderam devem continuar até que sejam dire‑
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cionados ao transplante alogênico. Esse tipo de tratamento também está indicado para aqueles pacientes com mutações genéticas e/ou envolvimento de SNC.3 Em 2004, foi iniciado outro protocolo (HLH-2004) incluin‑ do modificações, como o início da ciclosporina mais precoce‑ mente (durante a fase indução) e o acréscimo da hidrocortiso‑ na ao MTX intratecal. Até que os resultados desse novo protocolo estejam disponíveis, McClain et al.3 preferem indi‑ car o protocolo HLH-94. Quando a SH é desencadeada por uma infecção aguda e o paciente encontra-se clinicamente estável, o tratamento deve ser direcionado para a infecção.3 Entretanto, se o paciente esti‑ ver gravemente enfermo, o tratamento específico para a SH não deve ser adiado enquanto se aguarda a resolução da infecção.3 Na eventualidade de uma doença reumatológica, quando o paciente está estável o suficiente para adiar a terapia para SH, McClain et al.3 indicam terapia com corticosteroides e/ou tra‑ tamento específico para a doença desencadeante. Para as crianças com SAM, o aumento da dosagem do imunossupres‑ sor geralmente é suficiente.3 Apesar do aumento significativo da sobrevida com a utili‑ zação do protocolo HLH-94, a mortalidade de pacientes com SH ainda é alta. O prognóstico também é muito desfavorável para pacientes com baixa faixa etária, acometimento do SNC e falha da terapia de indução.3 Indicações para transplante de célula-tronco hematopoética (TCTH) alogênico Pacientes com mutações genéticas, doenças malignas, recidi‑ vas durante ou após o tratamento da SH e/ou presença de doença em SNC necessitam de TCTH alogênico.3 Como as respostas ao tratamento da SH são desconhecidas ao o iniciar, todos os pacientes e familiares (pais e irmãos) de‑ vem ser encaminhados para pesquisa do HLA, possibilitando, assim, identificação precoce de um possível doador. Nesses casos, caso seja necessário realizar o TCTH alogênico, esses pacientes teriam sobrevida significativamente maior.3 Se os ir‑ mãos forem considerados como possíveis doadores, eles tam‑ bém devem ser submetidos à pesquisa de mutações genéticas. Tratamento de suporte Quase todos pacientes necessitam de transfusões de hemode‑ rivados para prevenção e controle de sangramento, profilaxia de infecções oportunistas e antibióticos de largo espectro. O controle da pressão arterial é essencial para minimizar os ris‑ cos de PRES.3 Considerações finais As crianças que não são submetidas ao tratamento têm sobre‑ vida de poucas semanas ou meses, em razão da falência de múltiplos órgãos. Em geral, a maior dificuldade para o tratamento é o atraso do diagnóstico. A sobrevida pode aumentar significativamen‑ te com a terapia específica para SH, a qual não deve ser adiada enquanto se aguardam testes imunológicos ou análises gené‑ ticas.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer a importância do diagnóstico da síndrome hemofagocítica por conta de sua gravidade e dificuldades diagnósticas. • Descrever a classificação da doença e seus principais diagnósticos diferenciais. • Apontar as manifestações clínicas e laboratoriais da síndrome hemofagocítica. • Identificar os critérios diagnósticos, lembrando que hepatopatia e manifestações neurológicas são muito frequentes. • Indicar o tratamento inicial e o prognóstico da doença.
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CAPÍTULO 18
TRANSPLANTE DE CÉLULA ‑TRONCO HEMATOPOÉTICA Liane Esteves Daudt
Introdução O transplante de célula-tronco hematopoética (TCTH), anti‑ gamente chamado de transplante de medula óssea, é a infu‑ são da célula-tronco hematopoética no receptor, após altas doses de quimioterapia e/ou radioterapia para ablação da me‑ dula óssea (MO) doente e a imunossupressão necessária para pega. Nos últimos 30 anos, esse procedimento vem sendo pro‑ gressivamente utilizado como alternativa de cura para muitos pacientes portadores de neoplasias hematológicas, aplasia de MO, imunodeficiências congênitas, hemoglobinopatias, erros inatos do metabolismo, alguns tumores sólidos e doenças au‑ toimunes.1
• sangue periférico (SP): as células são coletadas por leucoafé‑ rese. Mais frequentemente utilizada para TCTH autólogos; • sangue de cordão umbilical e placentário (SCUP): alternativa em transplantes alogênicos, principalmente não aparentados. Segundo a compatibilidade HLA • Compatíveis: quando a tipagem HLA do doador é idêntica à do receptor; • parcialmente compatíveis (mismatch): em geral, 1 a 2 antíge‑ nos HLA distintos; • haploidênticos: doadores familiares com metade dos alelos do HLA compatíveis.
Classificação e tipos Segundo o regime de condicionamento O TCTH pode ser classificado de acordo com o tipo de doador, • Mieloablativo: utiliza doses de quimioterapia e/ou radiotera‑ sua compatibilidade, origem da célula-tronco hematopoética pia letais à medula óssea; e tipo de condicionamento.2 Essas informações são importan‑ • transplante de intensidade reduzida (não mieloablativo ou tes para determinar as indicações para cada patologia, sua minitransplante): baseia-se na imunossupressão para impe‑ evolução, manejo e complicações. dir que o receptor rejeite as células do doador favorecendo a troca gradual e a tolerância da hematopoese do receptor para Segundo o doador das células hematopoéticas a do doador.1-4 • Autólogo: do próprio paciente; O sistema de histocompatibilidade humano • singênico: o doador é um irmão gêmeo univitelino; • alogênico: o doador é um indivíduo geneticamente distinto, O sucesso do TCTH alogênico depende do conhecimento do em geral com compatibilidade do sistema de histocompatibi‑ complexo de histocompatibilidade maior (major histocompatilidade humano (HLA); bility complex – MCH) humano, representado nos antígenos • aparentados: doadores familiares, em geral irmão HLA-com‑ leucocitários humanos (human leucocyte antigen – HLA) que patível; determinam a compatibilidade tecidual e a resposta imune. • não aparentados: doadores adultos ou unidades de sangue de Está localizado no cromossomo 6, é altamente polimórfico cordão umbilical obtidas nos registros nacionais e internacio‑ possuindo mais de 200 genes identificados. Tem padrão de nais; requer compatibilidade HLA. herança mendeliano simples em bloco dos haplótipos; entre irmãos, a compatibilidade HLA ocorre em 25% dos nascimen‑ Segundo a origem das células-tronco tos. Os genes do HLA mais envolvidos na resposta imune são: hematopoéticas os genes da classe I (regiões HLA-A, HLA-B e HLA-C) expres‑ • Medula óssea (MO): é a fonte mais comum em transplantes sos pela maioria das células somáticas; e os genes da classe II alogênicos pediátricos; (região D, famílias M, O, P, Q ou R) normalmente expressos
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pelas células imunes, como linfócitos B, linfócitos T ativados, macrófagos, células dendríticas e células epiteliais do timo. A principal função dessas moléculas é apresentar peptídios deri‑ vados dos patógenos às células T e iniciar a resposta imune ce‑ lular adaptativa.5 A resposta imune contra os antígenos HLA representa a maior barreira para a realização do TCTH alogênico, e a com‑ patibilidade dos alelos de classe I (A e B) e classe II (DR, DP e DQ) são os principais determinantes do resultado do procedi‑ mento.1,4 Indicações em pediatria O TCTH é a alternativa de cura para várias doenças, entretanto, em razão dos riscos em curto e longo prazos associados ao procedimento, sua indicação restringe-se ao tratamento de doenças cuja a sobrevida com o TCTH é significantemente su‑ perior à sobrevida com o tratamento convencional (p.ex., qui‑ mioterapia), ou quando o transplante pode promover uma melhora significativa da qualidade de sobrevida, como a elimi‑ nação da necessidade de regimes de hipertransfusão nos pa‑ cientes com hemoglobinopatias. Suas indicações são conti‑ nuamente avaliadas, considerando os resultados em estudos clínicos, novas alternativas terapêuticas, custos e melhora das medidas de suporte que possam beneficiar os resultados ime‑ diatos e tardios (Tabela 1). O TCTH autólogo é preferido para pacientes portadores de doenças sensíveis a quimioterapia, como linfomas, tumores sólidos (neuroblastoma) e, mais recentemente, em algumas doenças autoimunes, como lúpus eritematoso sistêmico e ar‑ trite reumatoide juvenil. O TCTH alogênico é indicado para o tratamento de leucemias e outras doenças com envolvimento da MO (mielodisplasias, aplasias) e doenças congênitas, como erros inatos e imunodeficiências (Tabela 1).1,4 No Brasil, a por‑ taria GM n. 2.600, de 21 de outubro de 2009, regulamenta as indicações de TCTH pelo Sistema Único de Saúde (SUS), além de estabelecer os critérios de priorização para a lista de atendi‑ mento favorecendo os pacientes com maior urgência, curabili‑ dade e tempo de espera.6
Tabela 1 Possíveis indicações de TCTH em pediatria TCTH autólogo
TCTH alogênico
Doença de Hodgkin em segunda remissão
Leucemia mieloide aguda
Linfomas não Hodgkin em segunda remissão
Leucemia linfocítica aguda de muito alto risco ou em segunda remissão
Neuroblastoma
Aplasia de medula óssea
Tumores germinativos
Síndromes mielodisplásicas Hemoglobinopatias Imunodeficiências congênitas Osteopetrose Erros inatos do metabolismo
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Síndromes de falência medular Na infância, o TCTH alogênico de doador aparentado compatí‑ vel é a primeira escolha terapêutica, por oferecer taxa de so‑ brevida livre de doença de 90%. Entretanto, deve ser realizado o mais cedo possível após o diagnóstico, pois entre os fatores que reduzem essa resposta está o numero de transfusões pré‑ vias. Nos pacientes sem doador familiar compatível, é indica‑ do após falha da terapia imunossupressora. As síndromes de falência medular constitucionais também são indicações de TCTH alogênico, como a anemia de Fanconi, a síndrome de Diamond-Blackfan e a disceratose congênita.7 Leucemia linfoide aguda (LLA) Atualmente, mais de 80% das crianças com diagnóstico de LLA são curadas sem a necessidade de terapia de resgate. En‑ tretanto, pacientes classificados como de muito alto risco, re‑ fratários ou que recaem com a terapia convencional podem se beneficiar do TCTH alogênico.3,7 Leucemia mieloide aguda (LMA) e síndrome mielodisplásica (SMD) Apesar da melhora das curvas de sobrevida de crianças porta‑ doras de LMA, o TCTH permanece como melhor alternativa de cura para pacientes com doença de alto risco. Atualmente, está indicado o TCTH alogênico em primeira remissão para pacientes portadores de LMA ou SMD sem fatores de bom prognóstico e para todos os pacientes em segunda remissão ou refratários.3,7 Leucemia mieloide crônica (LMC) O TCTH alogênico ainda é considerado a alternativa de cura em crianças. Entretanto, o desenvolvimento de drogas inibi‑ doras das tirosinoquinases, como o imatinibe, capazes de in‑ duzir remissão molecular em longo prazo, vem modificando as estratégias de tratamento de pacientes com LMC com cro‑ mossoma Philadelphia positivo (t(9:22)) e questionando a in‑ dicação em pacientes que são bons respondedores.1,7 Imunodeficiências congênitas A síndrome de imunodeficiência combinada severa, outras imunodeficiências congênitas graves e síndromes histiocíticas hereditárias têm como opção de cura o TCTH alogênico. O diag‑ nóstico e o encaminhamento precoces para o centro de trans‑ plante é fundamental para obter os melhores resultados.1,7 Erros inatos do metabolismo O TCTH alogênico é uma alternativa de cura para pacientes se‑ lecionados portadores de mucopolissacaridoses, adenoleuco‑ distrofia, osteopetrose e outras doenças metabólicas raras.7 Hemoglobinopatias O TCTH alogênico é, até o momento, a única alternativa de cura para as hemoglobinopatias. Em geral, está indicado para pacientes jovens portadores de betatalassemia maior e ane‑ mia falciforme com manifestações clínicas graves, como aci‑ dente vascular cerebral.1,2
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Linfomas e tumores sólidos na infância O TCTH autólogo está indicado em casos de linfoma de Hodgkin e linfomas não Hodgkin a partir da segunda remissão, e de tumores sólidos quimiossensíveis, como tumores de célu‑ las germinativas, em segunda remissão ou neuroblastoma de alto risco. Também pode trazer benefícios no sarcoma de Ewing metastático ou em segunda remissão, no meduloblasto‑ ma e em tumores primitivos do sistema nervoso central (SNC) disseminados ou em segunda remissão, no retinoblastoma ex‑ traocular e no tumor de Wilms após a segunda remissão.3,7 Quimerismo No TCTH autólogo, o principal efeito antitumoral é exercido pela quimioterapia de altas doses usada no condicionamento. O TCTH alogênico provê a presença de um sistema genetica‑ mente diverso (quimerismo) formado pelas células hemato‑ poéticas e imunes do doador. A figura Chimera, originária da mitologia grega, gerou o termo quimerismo, que representa esse estado no qual um organismo possui células derivadas de duas ou mais linhagens zigóticas com função e impacto na sua sobrevida.8 No TCTH alogênico, a atividade do sistema imune competente do doador no organismo do receptor desenvolve dois mecanismos contraditórios: a doença do enxerto contra o hospedeiro (DECH) e o efeito enxerto contra o tumor. Doença do enxerto contra o hospedeiro A DECH resulta da atividade do sistema imunológico compe‑ tente do doador, principalmente dos linfócitos, que reconhece as células dos tecidos do receptor como estranhas e monta uma resposta imune para destruí-las ou impedir seu cresci‑ mento. É a consequência da interação entre os antígenos ex‑ pressos nas células do receptor e os linfócitos T maduros do doador. É a principal complicação após TCTH alogênico, po‑ dendo acontecer apesar do uso profilático de imunossupres‑ são e da perfeita compatibilidade HLA. Sua incidência varia entre 20 e 80% nos estudos pediátricos e depende do número de fatores de risco presentes, como: grau de incompatibilida‑ de entre doador e receptor, regime de condicionamento, doa‑ dor não aparentado, idade avançada, doadora multípara, ori‑ gem da célula-tronco (SP: maior incidência; SCUP: menor incidência) e aloimunização prévia.1,9 A DECH tem duas apresentações clínicas e patofisiológicas distintas: aguda e crônica. A DECH aguda ocorre nos primei‑ ros meses após o transplante e caracteriza-se por citotoxicida‑ de contra órgãos-alvo, como pele (eritrodermia maculopapu‑ lar), intestino (diarreia secretória) e fígado (colestase).1,9 A DECH crônica é a principal causa de mortalidade tardia não associada à recaída. Sua apresentação clínica assemelha-se a doenças autoimunes, como esclerodermia, síndrome de Sjö‑ gren, cirrose biliar primária, bronquiolite obliterante, anemia e/ou plaquetopenia imune e imunodeficiência crônica. Os sintomas geralmente se manifestam nos primeiros 3 anos após o TCTH e, frequentemente, nos pacientes que também apresentaram DECH aguda.1 O manejo da DECH inclui a profilaxia com imunossupres‑ sores, sendo os inibidores da calcineurina (p.ex., ciclosporina
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ou tacrolimo) associados ao metotrexato os mais usados. Nos pacientes com manifestações clínicas maiores de DECH, é ne‑ cessário aumentar a imunossupressão para controle da doen‑ ça, e a corticoterapia é a melhor escolha como terapia inicial.1,9 Efeito enxerto contra leucemia A reação imunológica desencadeada pela diferença genética entre o receptor e o doador, chamada de efeito enxerto contra a leucemia, pode trazer efeitos benéficos, pelo controle da doença neoplásica. Pacientes com DECH, principalmente crô‑ nica, apresentam menos recaídas. Apesar de ser difícil a disso‑ ciação clínica e laboratorial da atividade dos linfócitos T com‑ petentes do doador entre a DECH e o efeito de imunovigilância, esse fenômeno é fundamental para a compreensão dos resul‑ tados superiores obtidos com o TCTH alogênico para as doen‑ ças onco-hematológicas e abre o caminho para técnicas de imunoterapia celular como forma de aumentar a imunidade específica após o TCTH sem aumentar os riscos do desenvolvi‑ mento de alorreatividade e de DECH.1,4,8 Procedimento do TCTH Condicionamento É o regime preparatório para a infusão da célula-tronco hema‑ topoética. Tem três objetivos: criar espaço na medula óssea do paciente, erradicar a doença neoplásica e evitar a DECH. As‑ sim, além do efeito de mieloablação, também deve ser imu‑ nossupressor. É realizado com altas doses de quimioterapia e/ou radiote‑ rapia de acordo com a doença e as condições do paciente. Os esquemas mais convencionais utilizam combinações de bus‑ sulfano, ciclofosfamida, etoposídeo e irradiação corporal total. Em pediatria, a escolha do melhor condicionamento deve con‑ siderar os possíveis efeitos deletérios da quimioterapia e da ra‑ dioterapia em curto prazo, ou seja, a toxicidade imediata, como mucosite, doença veno-oclusiva hepática, infecções, bem como sua toxicidade tardia (déficit de crescimento, se‑ gunda neoplasia, distúrbios endócrinos e outros).1,3,10 Coleta das células-tronco hematopoéticas Nos transplantes autólogos, a coleta de células-tronco é reali‑ zada com o paciente em remissão, e o material é criopreserva‑ do para, posteriormente, submeter o paciente ao regime de condicionamento. Nos transplantes alogênicos, a coleta das células do doador costuma ser realizada após o condiciona‑ mento no próprio dia da infusão, sem criopreservação. Os doa‑ dores devem ser cuidadosamente avaliados quanto a sua saú‑ de e possíveis causas de aumento no risco anestésico antes da doação de medula. Medula óssea As células são coletadas das cristas ilíacas posteriores por meio de punções por agulha e com o doador sob anestesia (Fi‑ gura 1). São removidos entre 10 e 15 mL de medula por quilo‑ grama de peso do receptor (aproximadamente 2 a 5 × 108 célu‑ las nucleadas/kg de peso do receptor). Em crianças, costuma-se limitar a coleta a 20 mL/kg de peso do doador. Os
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riscos para o doador são poucos, mas o procedimento requer equipe treinada e capacitada.1 Sangue de cordão umbilical e placentário É coletado no centro obstétrico logo após o nascimento, antes ou após a dequitação, tanto de partos normais como de cesáreas, por meio de punção das veias do cordão umbilical, e criopreservado para utilização posterior. Atualmente, há em funcionamento, no Brasil e no mundo, diversos bancos de SCUP alogênico. O material tem a vantagem de ser rapidamente disponibilizado e permite compatibilidade HLA de até 60% (4/6). Entretanto, sua celularidade é limitada, levando a um tempo de pega maior, com retardo na reconstituição imune.1,3 Sangue periférico As células-tronco hematopoéticas são coletadas do SP por aférese na fase de recuperação de um ciclo de quimioterapia e/ou após a administração de fatores de crescimento hematopoéticos (p.ex., filgrastima). Em crianças, seu uso é limitado pelo peso mínimo necessário para a realização da aférese, a colocação de cateter venoso central e tempo prolongado do procedimento (2 a 4 horas). Suas vantagens são: não expor o doador/ paciente ao desconforto da coleta de medula no centro cirúrgico; pega mais rápida; possível menor contaminação do enxerto com células tumorais. Os transplantes alogênicos com células-tronco periféricas estão associados à maior incidência de DECH, sendo pouco utilizados em crianças.3 Infusão de células-tronco hematopoéticas As células provenientes de qualquer uma das três fontes são infundidas através de cateter venoso central, no leito do paciente, aproveitando o mecanismo de migração para o nicho da MO. No TCTH alogênico de MO, se existir incompatibilidade sanguínea ABO maior, é necessário remover os eritrócitos e/ou o plasma do receptor para retirar os anticorpos A ou B e evitar reação hemolítica durante a infusão. Nos transplantes autólogos, as células são descongeladas no momento da infu-
são. O agente utilizado na criopreservação (dimetilsulfóxido – DMSO) pode causar reações alérgicas graves, náuseas, vômitos, hipertensão, bradicardia, nefrotoxicidade e distúrbios hemodinâmicos. Os pacientes devem receber hiper-hidratação. Manitol pode ser usado para forçar diurese. Anti-histamínicos e corticosteroides são administrados antes para reduzir os efeitos colaterais. Os pacientes devem ser cuidadosamente monitorados.1 Pega A pega ou enxertia da célula-tronco hematopoética ocorre quando o paciente mantém mais de 500 granulócitos/mm³ por 3 dias consecutivos. Normalmente, ocorre próximo do 10º dia após a infusão de células autólogas e entre o 15º e o 21º dia após a infusão de células alogênicas.1,3 Considera-se que houve uma enxertia de plaquetas quando contagens acima de 20.000/mm³ são mantidas sem que o paciente tenha recebido transfusões de plaquetas por mais de 7 dias. Reconstituição imune após TCTH O sistema imune do receptor reconstitui-se de forma gradual (Figura 2) durante o primeiro ano após o TCTH. O regime de condicionamento destrói neutrófilos, monócitos, macrófagos e linfócitos da hematopoese normal e provoca lesão das mucosas, reduzindo a integridade da barreira mucocutânea. Potencialmente, todos os pacientes submetidos ao TCTH perdem precocemente todos os linfócitos B e T após o condicionamento, perdendo a memória imunológica acumulada pela exposição prévia a agentes infecciosos, antígenos do ambiente e vacinas. Da mesma forma, a imunidade passiva adquirida do doador não oferece uma proteção segura em longo prazo, pois a transferência imunológica é variável e depende do tempo de exposição entre a vacinação do doador e a realização do TCTH, assim como a presença de DECH e de imunossupressão.1,2
Neutropenia
TCTH
1
2
Dia + 100
3
4
Meses após o TCTH
5
6
7
8
9
10
11
12
Bactérias Fungos Herpes zoster
HVS/VSR Pneumocystis carini
Citomegalovírus Bactérias respiratórias Pneumonia intersticial idiopática DECH aguda
DECH crônica
Figura 2 Padrão de ocorrência de infecções após o TCTH de acordo com o período de surgimento.
Figura 1 Coleta de células-tronco hematopoéticas da crista ilíaca posterior para transplante.
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TCTH: transplante de células-tronco hematopoéticas; HVS: herpes vírus simples; VSR: vírus sincicial respiratório; DECH: doença enxerto contra hospedeiro.
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O primeiro período após o TCTH, tanto autólogo como alogê‑ prática transfusional antes do TCTH também se reflete no re‑ nico, é caracterizado pela fase de aplasia até a recuperação dos sultado final e os mesmos cuidados devem ser aplicados, utili‑ neutrófilos do enxerto. As complicações infecciosas são seme‑ zando criteriosamente os indicativos para a transfusão sem lhantes àquelas dos pacientes com neutropenia severa agrava‑ expor o paciente a aloimunização. da pela mucosite, secundária ao condicionamento. Também existe o risco para infecções fúngicas invasivas, como a asper‑ Suporte nutricional gilose e infecções virais. A mortalidade secundária a infecção O estado nutricional precário é um fator de prognóstico nega‑ desse período é por sepse bacteriana, pneumonia e infecções tivo. Manter um adequado suporte nutricional é fundamental fúngicas.1,3 durante o procedimento. Como a maioria dos pacientes apre‑ A segunda fase da reconstituição imune corresponde ao pe‑ senta mucosite com limitação da ingesta e absorção, a utiliza‑ ríodo imediato após a pega do enxerto e caracteriza-se por de‑ ção de nutrição parenteral total é prática comum nos TCTH ficiência da imunidade celular com redução do número e fun‑ alogênicos. Após a alta, também é importante manter a aten‑ ção das células citotóxicas. As infecções virais, como ção sobre o estado nutricional, inclusive sobre a qualidade citomegalovírus (CMV), adenovírus e outros vírus respirató‑ biológica e higiênica dos alimentos. rios e entéricos, apresentam maior incidência e gravidade. Na terceira e última fase, cerca de 6 meses após, a maioria Cuidado com cateter central dos pacientes apresenta deficiência de imunoglobulinas, prin‑ Apesar de os cateteres venosos centrais serem indispensáveis cipalmente de IgG2, e redução na resposta a antígenos polissa‑ no TCTH, estão associados a complicações infecciosas e trom‑ carídios. Os pacientes são mais vulneráveis a infecções por boembólicas. As medidas assépticas e uma equipe treinada bactérias encapsuladas (p.ex., S. pneumoniae e H. influenzae). para o seu manejo são fundamentais.1,2 A ocorrência e a gravidade da DECH é o principal fator em re‑ Toxicidade após o TCTH tardar a reconstituição imune e favorecer essas infecções.1,3 Uma vez que os pacientes submetidos ao TCTH permane‑ A toxicidade do TCTH pode ser dividida em precoce ou aguda, cem sob risco de infecções bacterianas, virais e fúngicas por quando se manifesta durante ou nos primeiros meses do pro‑ um longo período, são importantes as medidas para preven‑ cedimento, e tardia. Está principalmente relacionada ao efeito ção e tratamento precoce, tomadas de acordo com o grau de tóxico das altas doses de quimioterapia e radioterapia utiliza‑ imunossupressão e da reconstituição imune.3 Elas incluem: da no condicionamento e representa uma parcela significativa proteção ambiental; quartos com filtro de ar e fluxo contínuo; entre as causas de mortalidade relacionada ao procedimento. lavagem rigorosa das mãos; evitar contato com pessoas passí‑ veis de contágio (p.ex., escola); medidas profiláticas com o Toxicidade aguda uso de antibióticos, antifúngicos e antivirais e antipneumocis‑ As mais frequentes na pediatria são:1-3,10 tose; e medidas para identificação precoce de reativação do • mucosite oral e em todo o trato gastrointestinal, náuseas, vô‑ CMV (antigenemia anti-CMV ou PCR quantitativo) e de infec‑ mitos e diarreia de intensidade variável; ções fúngicas (antígeno galactomanana, reação em cadeia da • cistite hemorrágica secundária à toxicidade direta do esque‑ polimerase [PCR], tomografias seriadas). A imunização após ma de condicionamento ao urotélio ou a infecções virais, o transplante permite readquirir a proteção obtida com calen‑ principalmente do grupo poliomavírus. Requer medicações dário vacinal da infância e oferecer proteção contra patógenos uroproteroras (mesna) durante o condicionamento, e o trata‑ mais frequentes e com maior severidade após o procedimento. mento consiste em hiper-hidratação; Vacinas com organismos vivos podem causar doença em imu‑ • síndrome de obstrução sinusoidal: caracterizada por hepato‑ nossuprimidos e devem ser aplicadas de forma criteriosa, res‑ megalia dolorosa, hiperbilirrubinemia e retenção de líquidos peitando o momento da reconstituição imune, o uso de imu‑ com aumento de peso e ascite durante as primeiras 3 sema‑ nossupressor e a presença de DECH.1,2 nas após o condicionamento. É mais frequente em pacientes oncológicos submetidos a vários esquemas de quimioterapia Tratamento de suporte durante o TCTH previamente. O tratamento inclui restrição hídrica, medidas Nas ultimas décadas, houve marcada melhora dos resultados de suporte hemodinâmico e infusão de defibrotide, quando obtidos com TCTH, reflexo direto do progresso no tratamento disponível; de suporte oferecido aos pacientes antes e após o procedimen‑ • outros: como insuficiência renal aguda, hipertensão, pneu‑ to. Além das medidas anti-infeciosas e da moderna tecnologia monite intersticial, neurotoxicidade e síndrome capilar. de diagnósticos, outros aspectos são fundamentais para o su‑ Toxicidade tardia cesso do TCTH, conforme serão descritos a seguir. Os efeitos tardios após o TCTH estão relacionados a uma com‑ Hemoterapia binação de fatores, como a doença de base, o condicionamen‑ É necessário uso de hemocomponentes de qualidade e em to utilizado e as complicações agudas. Em crianças, a escolha quantidade adequada. Concentrados de hemácias e de pla‑ do condicionamento influencia diretamente os efeitos tardios, quetas devem sempre ser irradiados e deleucotizados; há pre‑ como baixo crescimento, retardo puberal e alterações endócri‑ ferência por plaquetas de doador único (plaquetaférese). A nas que devem ser monitoradas e diagnosticadas precoce‑
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mente. Os condicionamentos que incluem irradiação corpórea apresentam maior risco de toxicidade neuroendócrina, en‑ quanto as altas doses de alquilantes aumentam o risco de alte‑ rações endócrinas e puberais e infertilidade. A ocorrência de segunda neoplasia, leucemia e mielodisplasias, além de tumo‑ res do SNC e sarcomas, também é aumentada após TCTH. Perspectivas Nas últimas duas décadas, o TCTH vem sendo cada vez mais utilizado para o tratamento de crianças portadoras de doenças hematológicas. Entretanto, o procedimento ainda apresenta uma considerável possibilidade de falha, relacionada sobretu‑ do a complicações imunológicas, como a DECH, a recaída da neoplasia ou o profundo estado de imunodeficiência que favo‑ rece a ocorrência de infecções fatais. Estratégias que visam a melhorar a terapia de suporte, selecionar o melhor doador e aumentar o efeito imune sem causar DECH são hoje valoriza‑ das e estimuladas para se obter melhores resultados. Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea – REDOME O REDOME é o banco nacional de dados de tipagem HLA com informações de possíveis doadores voluntários de MO. É man‑ tido pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca) e disponibiliza, para os centros de TCTH cadastrados pelo Ministério da Saú‑ de, a busca de doadores não aparentados e unidades de san‑ gue de cordão umbilical. As informações necessárias para a doação e os dados do registro nacional estão disponíveis nas páginas do Inca (http://www.inca.gov.br/redome) e do Mi‑ nistério da Saúde do Brasil (http://portal.saude.gov.br).
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que o TCTH autólogo se dá quando o doador é o próprio paciente. • Saber que, no TCTH alogênico, o doador é um indivíduo com compatibilidade HLA, podendo ser familiar ou não aparentado. • Conhecer as indicações em pediatria: neoplasias hematológicas (leucemias e linfomas), aplasia de medula óssea, imunodeficiências congênitas, hemoglobinopatias, erros inatos do metabolismo, alguns tumores sólidos e doenças autoimunes. • Reconhecer as principais complicações: toxicidade do condicionamento, infecções, doença do enxerto contra o hospedeiro, infertilidade, retardo do crescimento, segunda neoplasia.
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Berenice Dias Ramos Manoel de Nóbrega
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COORDENADORES E AUTORES SEÇÃO 20 OTORRINOLARINGOLOGIA
Coordenadores Berenice Dias Ramos Especialista em Otorrinolaringologia e na Área de Atuação de Foniatria pela Associação Médica Brasileira (AMB) e pela Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cervicofacial (ABORL‑CCF). Mestre em Otorrinolaringologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Preceptora da Residência Médica na Área de Otorrinolaringologia Pediátrica e Foniatria do Serviço de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC‑RS). Professora do Curso Extensivo de Foniatria da ABORL‑CCF. Presidente do Departamento Científico de Otorrinolaringologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Manoel de Nóbrega Doutor em Ciências Médicas pela Unifesp. Professor Afiliado do Departamento de Otorrinolaringologia da Unifesp. Autores Ana Maria Alvarez Especialista em Linguagem pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia (CFF). Doutora em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Professora do Programa de Pós ‑graduação do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). Diretora Clínica e Coordenadora da Academia da Mente.
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Denise Rotta Ruttkay Pereira Mestre em Pediatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Fellow em Otorrinolaringologia Pediátrica no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Especialista em Otorrinolaringologia pela ABORL‑CCF. Eulália Sakano Médica Otorrinolaringologista do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutora em Ciências Médicas – Área de Concentração em Otorrinolaringologia – pela Unicamp. Professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Gabriela Cintra Fonoaudióloga. Especialista em Audiologia pelo CEFAC e em Políticas e Gestão da Saúde da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais/ Referência Técnica em Saúde Auditiva. Mestre em Ciência da Saúde/Saúde da Criança e Adolescente pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Isamara Simas de Oliveira Otorrinolaringologista pelo Hospital das Clínicas da UFMG e pela ABORL‑CCF. Mestre e Doutoranda pelo Programa de Pós‑graduação em Cirurgia e Oftalmologia da Faculdade de Medicina da UFMG. Coordenadora da Residência de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da UFMG. José Faibes Lubianca Neto Mestre e Doutor pelo Programa de Pós‑graduação em Ciências Médicas da UFRGS. Professor
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Associado do Departamento de Clínica Cirúrgica da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFSCPA). Chefe da Divisão de Otorrinolaringologia Pediátrica do Hospital da Criança Santo Antônio (HCSA), Serviço de Otorrinolaringologia do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre (CHSCPA). Fellowship em Otorrinolaringologia na Divisão de Otorrinolaringologia Pediátrica do Massachusetts Eye and Ear Infirmary, Harvard Medical School, EUA. Manuel Ruttkay Pereira Especialista em Pediatria e Neonatologia pela SBP. Mestre e Doutor em Pediatria pela PUC‑RS. Professor Adjunto de Pediatria na PUC‑RS e UFRGS. Fellow em Neonatologia no Health Sciences Centre, Universidade de Manitoba, Canadá. Maria Beatriz Rotta Pereira Especialista em Otorrinolaringologia pela ABORL ‑CCF. Mestre em Pediatria pela UFRGS. Fellow em Otorrinolaringologia Pediátrica no Health Sciences Centre, Universidade de Manitoba, Canadá. Preceptora de Otorrinolaringologia Pediátrica no Hospital São Lucas da PUC‑RS. Maria Inês Dornelles da Costa‑Ferreira Especialista em Audiologia pelo CFF e em Neuropsicologia pela UFRGS. Doutora em Linguística Aplicada pela PUC‑RS. Professora do Curso de Fonoaudiologia da Faculdade Fátima. Professora Substituta do Departamento de Fonoaudiologia da UFCSPA. Mariana Cardoso Guedes Mestre em Ciências pela FMUSP. Especialista em Audiologia pela Irmandade Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Diretora Clínica do Centro de Estudos e Reabilitação em Fonoaudiologia. Coordenadora do Curso de Especialização em Processamento Auditivo do CPós/Esamaz.
Rebecca Maunsell Doutora em Ciências Médicas pela FCM‑Unicamp. Renata C. Di Francesco Professora Livre‑docente da Disciplina Otorrinolaringologia da FMUSP. Médica‑assistente da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do HC ‑FMUSP. Responsável pela Otorrinolaringologia Pediátrica. Diretora do Departamento de Otorrinolaringologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo. Ricardo Godinho Especialista em Otorrinolaringologia e Cirurgia Cervicofacial pela ABORL‑CCF. Doutor em Pediatria pela UFMG e Harvard University. Professor do Programa de Mestrado em Biotecnologia e Gestão da Inovação do Centro Universitário de Sete Lagoas. Fellow em Otorrinolaringologia Pediátrica no Massachusetts Eye and Ear Infirmary, Harvard Medical School. Professor Adjunto de Otorrinolaringologia do Curso de Medicina da PUC ‑MG. Professor de Otorrinolaringologia do Curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Rita Carolina Krumenauer Mestre em Ciências da Saúde (Pediatria) pela UFCSPA. Assistente da Divisão de Otorrinolaringologia Pediátrica do HCSA, Serviço de Otorrinolaringologia do CHSCPA. Observership em Otorrinolaringologia Pediátrica no Serviço de Otorrinolaringologia do Toronto Sick Kids Hospital, Canadá. Tania Sih Professora da FMUSP. Secretária Geral da Interamerican Association of Pediatric ORL. Presidente do Comitê de Pediatria da International Federation of ORL Societies e da International Society of Otitis Media.
Melissa A. G. Avelino Mestre, Doutora e Pós‑doutora em Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço pela Unifesp. Fellow em Otorrinopediatria pela Unifesp. Professora Adjunta da Universidade Federal de Goiás (UFG) e da PUC‑GO. Chefe da Unidade de Cabeça e Pescoço do Hospital das Clínicas da UFG.
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CAPÍTULO 1
PROCESSAMENTO AUDITIVO E TRANSTORNOS DE APRENDIZAGEM Berenice Dias Ramos Maria Inês Dornelles da Costa‑Ferreira Mariana Cardoso Guedes Ana Maria Alvarez
A influência do processamento auditivo na aprendizagem Ao escutar uma música, assistir a uma aula ou conversar com al‑ guém, inúmeros processos são desencadeados para que se pos‑ sa apreciar a melodia, compreender o que está sendo explicado pelo palestrante ou escutar uma conversa e elaborar uma res‑ posta.1 Durante as 24 horas do dia, as pessoas são expostas a vá‑ rias informações auditivas, muitas delas simultâneas, e compe‑ te ao sistema auditivo identificar as mensagens que interessam a cada indivíduo, diminuindo ou anulando as interferências que servem apenas para dificultar o entendimento.1 A realização dessas tarefas conta com a participação do sistema nervoso central (SNC) e é denominada processamento auditivo (PA).2 Essas habilidades incluem a localização do som, a com‑ preensão da fala no ruído, a compreensão de uma mensagem, mesmo quando ela está distorcida ou fragmentada, a capaci‑ dade para eleger estímulos apresentados a uma orelha, igno‑ rando informações apresentadas à orelha oposta, o reconheci‑ mento de estímulos diferentes apresentados simultaneamente a ambas as orelhas e a percepção de pequenas e rápidas mu‑ danças nos estímulos sonoros, como as diferenças de frequên‑ cia, intensidade ou duração.2 O uso dessas habilidades é extremamente importante em uma sala de aula, por exemplo, em que o aluno deve focalizar a atenção no que é dito pelo professor e ignorar qualquer outro estímulo que possa interferir negativamente na escuta: con‑ versa dos colegas, movimentação de cadeiras, passos no corre‑ dor, barulho do ventilador, buzinas na rua ou gritos no pátio da escola.1 A criança que apresenta bom funcionamento do siste‑ ma nervoso auditivo central entenderá a professora com facili‑ dade, enquanto a que tem transtorno do PA (TPA) poderá ter dificuldade em compreender o que está sendo dito, o que pode interferir negativamente no seu processo de aprendizagem.1 Em uma fala normal, as informações auditivas atingem o sistema nervoso em uma sucessão muito rápida.3 O processa‑ mento de cada uma delas deve ser feito em poucos milisse‑ gundos para que seja possível acompanhar o raciocínio.3 A
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criança com TPA temporal poderá apresentar dificuldades para adquirir a linguagem e transtorno da aprendizagem.3 Isso ocorre, por exemplo, porque a discriminação das sílabas /ba/, /da/, /ga/, /pa/, /ta/, /ka/ é feita à custa dos primeiros 40 milissegundos, o que é um período curto demais para quem tem dificuldades para detectar estímulos acústicos breves.3 Essas dificuldades podem ocorrer em qualquer faixa etária e admite‑se que a perda auditiva por um período prolongado seja uma das principais etiologias.4 A otite média recorrente, principalmente quando ocorre nos primeiros 2 anos de vida, é uma das causas de TPA.5 As avaliações audiológicas convencionais não refletem o cotidiano de uma sala de aula, de um pátio de recreio ou um campo de futebol.1 Esse talvez tenha sido o motivo da dificul‑ dade, até a presente data, em auxiliar crianças com transtor‑ nos de aprendizagem e que apresentam audiometrias normais ou muito próximas ao normal.1 Sempre que um paciente apre‑ sentar queixas auditivas incompatíveis com os limiares auditi‑ vos, deve‑se pensar em ampliar a investigação, utilizando os métodos diagnósticos disponíveis.1 Definição de PA PA refere‑se à eficiência e à efetividade com que o sistema ner‑ voso auditivo central utiliza a informação auditiva.2 Em outras palavras, PA é um conjunto de habilidades específicas das quais o indivíduo depende para compreender o que ouve. É uma atividade mental, isto é, uma função cerebral e, assim sendo, não pode ser estudada como um fenômeno unitário, mas sim como uma resposta multidimensional aos estímulos recebidos por meio da audição.2 O som, após ser detectado pela orelha interna, sofre inúme‑ ros processos fisiológicos e cognitivos para que seja decodifi‑ cado e compreendido.2 Esses mecanismos e processos do sis‑ tema auditivo incluem habilidades como lateralização e localização espacial do som, compreensão da fala no ruído, compreensão de uma mensagem, mesmo quando ela está dis‑ torcida ou fragmentada; capacidade para eleger estímulos
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apresentados a uma orelha, ignorando informações apresen‑ tadas à orelha oposta e/ou reconhecer estímulos diferentes apresentados simultaneamente a ambas as orelhas; capacida‑ de de discriminar e identificar pequenas mudanças nos estí‑ mulos como diferenças de frequência, intensidade ou duração e capacidade de detectar e perceber modulações e intervalos mínimos em uma sequência de sons.2 Neuroplasticidade e aprendizagem Períodos de maior neuroplasticidade A neuroplasticidade ocorre durante toda a vida.4 Se não fosse assim, não se aprenderia mais depois de uma determinada idade, mas isso não acontece.5 Toda vez que se aprende algo, ocorre uma mudança no cérebro.4 O período de maior neuro‑ plasticidade se dá nos primeiros anos de vida, principalmente nos primeiros meses, quando as conexões sinápticas se for‑ mam mais rapidamente.4 Como ocorre a aprendizagem A aprendizagem pressupõe recepção, organização e retenção de novas informações associadas às já armazenadas, com a possibilidade de resgate a qualquer momento.4 Os processos de aprendizagem modelam o cérebro de forma que os circui‑ tos mais usados tornam‑se mais rápidos, enquanto os que não são utilizados se dissolvem.4 Durante a aprendizagem, formam‑se conexões sinápticas entre os neurônios do cérebro, portanto, para que ela ocorra, é necessária uma repetição das informações, preferencialmente por meio de várias vias: audi‑ tiva, visual e somestésica.4 Quando várias informações são acrescentadas ao material já aprendido, formam‑se associa‑ ções que auxiliam na retenção da informação e também no resgate da informação, quando necessário.4 Dessa forma, para que ocorra a aprendizagem, é necessário o gerenciamento da atenção e da memória.4 Nas últimas décadas, os estudos de neuroimagem e de ele‑ trofisiologia trouxeram um enorme avanço nos conhecimen‑ tos de como o cérebro recebe, processa e armazena as infor‑ mações.4,6 A ressonância magnética funcional (RMf) fornece informa‑ ções sobre a localização das áreas da fala, linguagem e apren‑ dizagem.6 Os exames eletrofisiológicos, como o eletroencefa‑ lograma (EEG), o potencial evocado auditivo do tronco encefálico (PEATE) com estímulo clique ou com estímulo de fala e o potencial auditivo de longa latência (P300), avaliam o tempo de transmissão e o processamento dessas informa‑ ções.3,7 Atualmente, sabe‑se quais são as áreas que decodifi‑ cam a informação auditiva, as áreas que fazem as análises fo‑ nológica, lexical e semântica, e as áreas que elaboram as respostas.3,6 Embora alguns desses novos exames ainda sejam utilizados quase que exclusivamente em pesquisas, acredita ‑se que em breve será possível definir, com mais certeza, a me‑ lhor maneira de auxiliar os pacientes. Neuroplasticidade e audição A maturação das vias auditivas centrais depende não só do au‑ mento da idade cronológica, mas também da estimulação e da
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interação com o meio.4 Quando uma criança está privada da audição ou se a sua percepção auditiva ocorre de maneira dis‑ torcida – por exemplo, na vigência de uma perda auditiva neu‑ rossensorial ou pela simples presença de efusão em orelha média, ocorre um tipo de “plasticidade negativa” e as áreas au‑ ditivas não amadurecem adequadamente, podendo apresen‑ tar dificuldade ou déficits para processar os estímulos acústi‑ cos.5 Essas dificuldades são caracterizadas, em grande parte, pela dificuldade na análise refinada de padrões sonoros e nos aspectos físicos que diferenciam um som do outro.3 Como consequência, os processos aferentes necessários para a corre‑ ta percepção da fala tornam‑se falhos e/ou mais lentos, po‑ dendo prejudicar o desenvolvimento típico da linguagem oral e escrita.5 Por outro lado, quando a audição é normalizada e assim permanece, o indivíduo passa a receber estímulos consisten‑ tes, constantes e específicos, e as conexões podem se reesta‑ belecer em virtude de uma “plasticidade positiva”, por meio de brotamento de axônios e aumento do número de sinapses no sistema.3,4 Essa capacidade de reorganização do SNC diante de estí‑ mulos e tarefas adequadas e a necessidade de se aproveitar a plasticidade nos períodos mais sensíveis para o desenvolvi‑ mento da linguagem, ou seja, nos primeiros anos de vida, jus‑ tifica, por exemplo, a triagem auditiva neonatal universal, para o diagnóstico precoce da deficiência auditiva.3 Igualmen‑ te importante é a monitoração da orelha média e da audição das crianças pequenas, pois sabe‑se que perdas leves e mode‑ radas também podem repercutir negativamente no aprendiza‑ do da língua e no desempenho acadêmico.3,5 Geralmente, a criança que apresentou otite média aguda recorrente ou otite média com efusão nos 5 primeiros anos de vida normaliza completamente os limiares auditivos quando ocorre a cura da doença, no entanto, o PA pode manter‑se alterado durante um longo período, provocando impacto no desenvolvimento da fala e da linguagem oral e transtornos de aprendizagem.1,3,5 Diagnóstico diferencial dos transtornos de aprendizagem Na clínica diária, frequentemente se recebem pacientes com dificuldades de aprendizagem, que incluem desde dificulda‑ des com a aquisição e o desenvolvimento da linguagem oral, como os transtornos fonológicos – caracterizados por trocas ou omissões de sons na produção de fala – ou de fluência, como também dificuldades específicas escolares, na maior parte das vezes relacionadas ao desempenho na leitura e na escrita, tanto na sua forma como no conteúdo.1 Em alguns ca‑ sos, esses déficits escolares podem ser superados, em curto espaço de tempo, com algumas orientações, pois se devem à metodologia inadequada.1 No entanto, algumas dessas crian‑ ças apresentam um transtorno específico da linguagem ou da aprendizagem e merecem uma avaliação mais cuidadosa em busca de um diagnóstico diferencial, a fim de se identificar a melhor maneira de ajudá‑las.1 As crianças com transtornos múltiplos ou mais acentuados geralmente são diagnosticadas e tratadas mais precocemente.1
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Processamento Auditivo e Transtornos de Aprendizagem •
Aquelas com transtornos mais leves e específicos, muitas ve‑ zes, são consideradas desinteressadas, não só pelos professo‑ res, mas também pelos próprios pais, podendo ser chamadas de preguiçosas ou, pior ainda, pouco inteligentes.1 Esses rótu‑ los, além de não contribuírem, podem trazer várias conse‑ quências negativas para o desenvolvimento emocional e para o processo terapêutico.1 Uma criança que apresente dificulda‑ de específica para números e cálculos matemáticos (discalcu‑ lia), por exemplo, leva a pensar em problemas de atenção e/ ou de memória se não encontrar pelo menos um profissional que saiba que esse transtorno existe e que merece um atendi‑ mento especializado.1 Mais frequente ainda, o transtorno es‑ pecífico da leitura (dislexia), que afeta 2 a 5% da população, dependendo da classificação utilizada, pode ter um prognósti‑ co muito melhor, quando é diagnosticado tão logo surjam as primeiras dificuldades.1 Essas crianças costumam apresentar exames neurológico, otorrinolaringológico, oftalmológico e psicossocial normais.1 A maioria delas também apresenta ava‑ liações como EEG, PEATE, tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética (RM) normais.1 O diagnóstico diferencial com outras afecções é extrema‑ mente importante, pois dele dependem a reabilitação e o prognóstico. Quando a alteração é leve, o diagnóstico diferen‑ cial torna‑se mais difícil. Transtornos do déficit de atenção/hiperatividade (TDAH), transtornos da linguagem, transtornos da leitura e da expres‑ são escrita, transtornos da aprendizagem, transtornos psíqui‑ cos e deficiência mental leve são afecções que devem ser iden‑ tificadas porque podem ser confundidas com alteração de PA, embora essas afecções possam coexistir.1‑3 Assim sendo, a distinção de um quadro ou outro depende de uma avaliação multidisciplinar e de uma bateria de testes que envolve, no mínimo, a avaliação auditiva (audiometria to‑ nal, vocal, imitanciometria e testes comportamentais do PA), exame completo da linguagem oral e escrita (expressão e com‑ preensão dos aspectos fonéticos, fonológicos, lexicais, semân‑ ticos, sintáticos e pragmáticos), exame da atenção e da memó‑ ria (bateria neuropsicológica) e exames eletrofisiológicos e de imagem, quando necessários.1
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Testes comportamentais de PA Atualmente, existem muitos testes para avaliação de habilidades relacionadas ao PA. É importante que a escolha seja criteriosa e que o examinador conheça não só o padrão de normalidade para cada faixa etária, mas também a sensibilidade e a especificidade de cada teste. É importante que a bateria comportamental consi‑ ga avaliar tanto a percepção de estímulos verbais como de estímu‑ los não verbais, que envolve a discriminação espectral e temporal das características acústicas de um som e também a integração entre as vias auditivas direita e esquerda, ou seja, o processamen‑ to binaural da informação. Basicamente, os testes podem ser clas‑ sificados de acordo com as 4 categorias descritas a seguir. Tarefas monoaurais de baixa redundância Baseadas no conceito de que o ouvinte normal é capaz de en‑ tender a fala, mesmo quando incompleta ou distorcida, essas tarefas envolvem a apresentação de palavras com redução da redundância extrínseca do sinal. O objetivo dos testes mo‑ noaurais de baixa redundância é avaliar a habilidade de fecha‑ mento auditivo do ouvinte quando o sinal auditivo não é claro. São sensíveis a disfunções/lesões de tronco encefálico e cór‑ tex auditivo primário e indivíduos com baixas habilidades de atenção seletiva podem apresentar baixo desempenho nessas tarefas. Avaliam uma via de cada vez (aferência direita e afe‑ rência esquerda) (Figura 1). Fazem parte dessa categoria os testes de fala com ruído branco, teste de fala filtrada e teste de fala comprimida. O pediatric speech intelligibility (PSI) e o synthetic sentence identification (SSI) também se incluem nessa categoria quando reali‑ zados com mensagem competitiva ispilateral. Tarefas de interação binaural As tarefas de interação binaural envolvem a apresentação de informações auditivas sequenciais e/ou complementares apresentadas à direita e à esquerda simultaneamente, basea‑
Testes para avaliação do PA A metodologia utilizada na avaliação e no diagnóstico diferen‑ cial das disfunções auditivas inclui a história clínica e os da‑ dos sobre desenvolvimento, comunicação e linguagem, com‑ binados aos achados dos testes comportamentais e eletrofisiológicos.1 Audiometria tonal liminar É utilizada para estabelecer os limiares auditivos nas duas ore‑ lhas. Logoaudiometria Índice percentual de reconhecimento da fala (IPRF) e limiar de reconhecimento da fala (LRF), que avaliam o reconheci‑ mento de palavras em diferentes intensidades, comparando o desempenho das duas orelhas.
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VAI JAZ MEL Figura 1 Tarefa monoaural de baixa redundância.
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das no conceito de que ouvintes normais são capazes de pro‑ cessar informações de maneira binaural, isto é, utilizando as duas orelhas (Figura 2). Avaliam a habilidade auditiva de inte‑ ração binaural, da qual dependem a localização e a lateraliza‑ ção de estímulos auditivos, as mudanças de limiar determina‑ das por meio de mascaramento, a detecção de sinais acústicos em ambientes ruidosos e a fusão binaural. São sensíveis a dis‑ funções/lesões de tronco encefálico baixo. Os testes mais utili‑ zados em nosso meio são o masking level difference (MLD), re‑ comendado para crianças maiores de 9 anos de idade, e o teste de fusão binaural, recomendado para crianças entre 5 e 9 anos. Tarefas de escuta dicótica Estas tarefas envolvem a apresentação de estímulos diferen‑ tes a ambas as orelhas simultaneamente e têm o objetivo de
BOLA
BOLA
BOLA
avaliar as habilidades auditivas de separação e integração bi‑ naural, baseadas nos princípios de que ouvintes normais são capazes de compreender duas pessoas falando ao mesmo tempo (integração binaural) e de ignorar um dos falantes e di‑ rigir a atenção para o outro (separação binaural). São tarefas que envolvem atenção e são utilizadas para estudar o nível de funcionamento e integridade dos lobos temporais e do corpo caloso (Figura 3). São sensíveis a disfunções/lesões de cone‑ xões inter‑hemisféricas e intra‑hemisféricas de hemisfério di‑ reito e esquerdo. Os testes mais utilizados nessa categoria são o teste dicótico de dígitos (TDD), o teste dicótico consoante ‑vogal e o teste staggered spondaic word (SSW). Tarefas de processamento temporal Um dos testes destinados à avaliação do processamento tem‑ poral é denominado ordenação temporal e envolve a apresen‑ tação de tríades de sons não verbais que diferem entre si por frequência ou duração (Figura 4). Esse teste é baseado em dois princípios: • a capacidade dos ouvintes normais de perceber, associar e in‑ terpretar os padrões não verbais da mensagem recebida, como ritmo, entonação e ênfase; • a capacidade de resolução temporal do sistema auditivo auxi‑ lia o indivíduo a discriminar pequenas variações acústicas que ocorrem no sinal. Essas habilidades são fundamentais na percepção da fala. O teste avalia a habilidade de percepção, reprodução e nomea‑ ção de padrões temporais e é sensível a disfunções/lesões in‑ tra e inter‑hemisféricas, sendo que a comparação das duas modalidades de resposta, reprodução, por meio de murmúrio,
Figura 2 Tarefa de interação binaural.
BOTA
FORA PEGA
FOGO
HÁ MUITOS ANOS DURANTE O PERÍODO DA ESCRAVIDÃO
A PORTA LARGA PARA SER MAIS RÁPIDO
A PORTA LARGA PARA SER MAIS RÁPIDO
BOTA FORA PEGA FOGO
Figura 3 Tarefas de escuta dicótica.
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Processamento Auditivo e Transtornos de Aprendizagem •
e nomeação, tem mostrado ser de grande utilidade no diag‑ nóstico diferencial de déficits de hemisfério direito, inter ‑hemisféricos e de hemisfério esquerdo. Como exemplo, são utilizados os testes pitch pattern sequency (PPS) e o duration pattern sequency (DPS). A avaliação da habilidade de resolução temporal também pode ser avaliada por meio de testes não verbais de processa‑ mento temporal que medem a capacidade de detectar peque‑ nos intervalos de tempo (milissegundos) entre os estímulos, que podem ser tons puros ou ruído branco. É considerada uma tarefa cortical relacionada à discriminação auditiva. Os testes utilizados são o random gap detection test (RGDT) e o gaps‑in‑ noise (GIN).
1643
Tabela de apresentação dos resultados da avaliação do PA1 Visando facilitar a compreensão dos resultados da avaliação do PA, foi elaborada uma tabela a partir da proposta de Mu‑ siek,3 utilizando parâmetros nacionais. Sempre que o resulta‑ do estiver fora da área colorida, será considerado alterado. Como o PA melhora até atingir os valores iguais aos do adulto, os resultados de uma determinada criança devem ser compa‑ rados com a padronização para a sua faixa etária. As tabelas elaboradas serão apresentadas por faixa etária de 7 a 11 anos de idade e a partir de 12 anos (Figuras 5 a 10). Medidas eletroacústicas e eletrofisiológicas2,3 Imitanciometria A imitanciometria (impedanciometria ou timpanometria) é útil ao oferecer informações sobre o funcionamento da orelha média. O reflexo estapediano contralateral, quando presente, demonstra a integridade das vias auditivas que cruzam o tron‑ co encefálico baixo.
Tarefas de atenção auditiva sustentada8 A atenção auditiva sustentada é fundamental para o desenvol‑ vimento de algumas habilidades comunicativas e aprendiza‑ gem, e, mais recentemente, está disponível no Brasil a possibilidade de complementar a bateria de avaliação do pro‑ cessamento auditivo com o teste de habilidade de atenção au‑ ditiva sustentada (THAAS). A literatura mostra que a atenção Emissões otoacústicas (EOA) sustentada e a vigilância são alguns dos processos que carac‑ Avaliam o sistema auditivo periférico, particularmente as cé‑ terizam a atenção e são fundamentais tanto para o processo lulas ciliadas externas da cóclea. de aprendizagem como para que o indivíduo mantenha um bom desempenho em testes comportamentais. A atenção sus‑ Medidas eletrofisiológicas tentada refere‑se ao processo envolvido em deter‑se em um Utilizadas para complementar a avaliação comportamental, determinado estímulo, durante um período. A vigilância é a nos casos em que a avaliação comportamental não é possível e habilidade para manter‑se preparado para responder a um si‑ como uma forma de documentar os benefícios da intervenção. nal intermitente. O THAAS é baseado no auditory continuous Os exames eletrofisiológicos mais utilizados são: performance test (ACPT), que é empregado clinicamente para • PEATE com estímulo clique: pesquisa a integridade auditiva; medir a atenção auditiva. O THAAS é utilizado para avaliar a • PEATE com estímulo de fala sintetizado em 40 ms da síla‑ atenção auditiva sustentada; nesse teste, a criança deve res‑ ba/da/: oferece informações sobre o processamento auditivo; ponder para apenas um estímulo auditivo específico (palavra • P300: é considerado um potencial cognitivo porque depende alvo), mantendo a atenção e a concentração na tarefa por um da atenção e da discriminação do paciente a um estímulo raro, período prolongado, e está disponível para os profissionais da que ocorre em períodos aleatórios. Ocorre por volta de 300 fonoaudiologia, sem custo.8 milissegundos após a apresentação do estímulo. O P300 pode
FINO GROSSO FINO
Figura 4 Tarefas de processamento temporal.
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Tratado de Pediatria 4ed.indb 1644
60
Interação binaural
Integração
Separação
Integração
Separação
75/65
35 25
5
6
7
Interação binaural
Aus.
20
15
12
10
8
6
5
4
3
2
GIN (ms)
Resolução temporal
40
30
25
20
15
10
5
2
RGDT (ms)
Integração
Separação
ED
Consoante‑vogal AL
ED
Dic. NV IB
60
Interação binaural
Integração
Separação
Integração
Separação
Interação binaural
Hab aud
Aus.
20
15
12
10
8
6
5
4
3
2
GIN (ms)
Resolução temporal
40
30
25
20
15
10
5
2
RGDT (ms)
Integração
Separação
ED
Consoante‑vogal AL
ED
Dic. NV IB
AL: atenção livre; Dic. NV: teste dicótico não verbal; DPS: teste duration pattern sequency; ED: escuta direcionada; GIN: teste gaps‑in noise; IB: integração binaural; MCI: mensagem competitiva ipsilateral; MLD: teste masking level difference; N: tarefa de nomeação; OC: orelha competitiva; ONC: orelha não competitiva; PPS: teste pitch pattern sequency; PSI: teste pediatric speech intelligibility; RGDT: random gap detection test; SSI: teste synthetic sentence identification; SSW: teste staggered spondaic word. * Realizado clinicamente – ausência de pesquisa para a faixa etária.
Figura 6 Valores de referência dos testes de processamento auditivo utilizados para 8 anos de idade.
0
0 Sequencialização temporal
1
2
10
20
Figura ‑fundo auditiva
35
5
6
7
3
42
MLD (dB)*
30
52
75
80/75
DPS N
4
Figura‑fundo auditiva
70
80/75
PPS N
40
50
60
70
85/82
ONC
8
80
OC
9
80
ED
Padrão de normalidade ‑ 8 anos de idade SSW
80
IB
Dicótico de dígitos
90
‑15
Fusão binaural
≥ 10
‑10
Fala filtrada
100
0
PSI/SSI ‑ MCI
AL: atenção livre; Dic. NV: teste dicótico não verbal; DPS: teste duration pattern sequency; ED: escuta direcionada; GIN: teste gaps‑in noise; IB: integração binaural; MCI: mensagem competitiva ipsilateral; MLD: teste masking level difference; N: tarefa de nomeação; OC: orelha competitiva; ONC: orelha não competitiva; PPS: teste pitch pattern sequency; PSI: teste pediatric speech intelligibility; RGDT: random gap detection test; SSI: teste synthetic sentence identification; SSW: teste staggered spondaic word. * Realizado clinicamente – ausência de pesquisa para a faixa etária.
Figura 5 Valores de referência dos testes de processamento auditivo utilizados para 7 anos de idade.
Sequencialização temporal
0
0
Hab aud
1
10
2
3
20
Figura ‑fundo auditiva
75/65
MLD (dB)*
30
52
75
DPS N
4
Figura‑fundo auditiva
70
PPS N
40
50
60
70
85/82
ONC
8
80
OC 9
80
ED
Padrão de normalidade ‑ 7 anos de idade SSW
80
IB
Dicótico de dígitos
90
‑15
Fusão binaural ≥ 10
‑10
Fala filtrada
100
0
PSI/SSI ‑ MCI
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60
Separação
Aus.
20
15
12
10
8
6
5
4
3
2
GIN (ms)
Resolução temporal
40
30
25
20
15
10
5
2
RGDT (ms)
Integração
Separação
ED
Consoante‑vogal AL
ED
Dic. NV IB
60
Aus.
20
15
12
10
8
6
5
4
3
2
GIN (ms)
Resolução temporal
40
30
25
20
15
10
5
2
RGDT (ms)
Integração
Separação
ED
Consoante‑vogal AL
ED
Dic. NV IB
AL: atenção livre; Dic. NV: teste dicótico não verbal; DPS: teste duration pattern sequency; ED: escuta direcionada; GIN: teste gaps‑in noise; IB: integração binaural; MCI: mensagem competitiva ipsilateral; MLD: teste masking level difference; N: tarefa de nomeação; OC: orelha competitiva; ONC: orelha não competitiva; PPS: teste pitch pattern sequency; PSI: teste pediatric speech intelligibility; RGDT: random gap detection test; SSI: teste synthetic sentence identification; SSW: teste staggered spondaic word. * Realizado clinicamente – ausência de pesquisa para a faixa etária.
Figura 8 Valores de referência dos testes de processamento auditivo utilizados para 10 anos de idade.
Interação binaural
Sequencialização temporal
Hab aud
Separação
0
0 Integração
1
5
6
7
10 Separação
70
8
2
Integração
78
MLD (dB)*
3
Interação binaural
90
DPS N
20
Figura ‑fundo auditiva
90
PPS N
30
52
85
ONC
4
Figura‑fundo auditiva
70
95/95
OC
40
50
60
70
80
ED
Padrão de normalidade ‑ 10 anos de idade SSW
9
80
80
IB
Dicótico de dígitos
90
‑15
Fusão binaural
≥ 10
‑10
Fala filtrada
100
0
PSI/SSI ‑ MCI
AL: atenção livre; Dic. NV: teste dicótico não verbal; DPS: teste duration pattern sequency; ED: escuta direcionada; GIN: teste gaps‑in noise; IB: integração binaural; MCI: mensagem competitiva ipsilateral; MLD: teste masking level difference; N: tarefa de nomeação; OC: orelha competitiva; ONC: orelha não competitiva; PPS: teste pitch pattern sequency; PSI: teste pediatric speech intelligibility; RGDT: random gap detection test; SSI: teste synthetic sentence identification; SSW: teste staggered spondaic word. * Realizado clinicamente – ausência de pesquisa para a faixa etária.
Figura 7 Valores de referência dos testes de processamento auditivo utilizados para 9 anos de idade.
Sequencialização temporal
Interação binaural
Integração
Hab aud
Separação
0 Integração
1
0
5
10
54
6
7
8
2
63
MLD (dB)*
3
Interação binaural
90
DPS N
20
Figura ‑fundo auditiva
90
PPS N
30
52
85
ONC
4
Figura‑fundo auditiva
70
95/95
OC
40
50
60
70
80
ED
Padrão de normalidade ‑ 9 anos de idade SSW
9
80
80
IB
Dicótico de dígitos
90
‑15
Fusão binaural ≥ 10
‑10
Fala filtrada
100
0
PSI/SSI ‑ MCI
Processamento Auditivo e Transtornos de Aprendizagem •
1645
5/5/17 11:47 PM
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1646
60
Aus.
20
15
12
10
8
6
5
4
3
2
GIN (ms)
Resolução temporal
40
30
25
20
15
10
5
2
RGDT (ms)
Integração
Separação
ED
Consoante‑vogal AL
ED
Dic. NV IB
60
Integração
Separação
Sequencialização temporal
Aus.
20
15
12
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8
6
5
4
3
2
GIN (ms)
Resolução temporal
40
30
25
20
15
10
5
2
RGDT (ms)
Integração
Separação
ED
Consoante‑vogal AL
ED
Dic. NV IB
AL: atenção livre; Dic. NV: teste dicótico não verbal; DPS: teste duration pattern sequency; ED: escuta direcionada; GIN: teste gaps‑in noise; IB: integração binaural; MCI: mensagem competitiva ipsilateral; MLD: teste masking level difference; N: tarefa de nomeação; OC: orelha competitiva; ONC: orelha não competitiva; PPS: teste pitch pattern sequency; PSI: teste pediatric speech intelligibility; RGDT: random gap detection test; SSI: teste synthetic sentence identification; SSW: teste staggered spondaic word. * Realizado clinicamente – ausência de pesquisa para a faixa etária.
Figura 10 Valores de referência dos testes de processamento auditivo utilizados para 12 anos de idade em diante.
Interação binaural
0
0
Hab aud
1
5
6
7
10 Separação
73
8
2
Integração
80
MLD (dB)*
3
Interação binaural
90
DPS N
20
Figura ‑fundo auditiva
90
PPS N
30
52
91
ONC
4
Figura‑Fundo auditiva
70
95/95
OC
40
50
60
70
80
ED
Padrão de normalidade ‑ 12 anos de idade SSW
9
80
80
IB
Dicótico de dígitos
90
‑15
Fusão binaural
≥ 10
‑10
Fala filtrada
100
0
PSI/SSI ‑ MCI
AL: atenção livre; Dic. NV: teste dicótico não verbal; DPS: teste duration pattern sequency; ED: escuta direcionada; GIN: teste gaps‑in noise; IB: integração binaural; MCI: mensagem competitiva ipsilateral; MLD: teste masking level difference; N: tarefa de nomeação; OC: orelha competitiva; ONC: orelha não competitiva; PPS: teste pitch pattern sequency; PSI: teste pediatric speech intelligibility; RGDT: random gap detection test; SSI: teste synthetic sentence identification; SSW: teste staggered spondaic word. * Realizado clinicamente – ausência de pesquisa para a faixa etária.
Figura 9 Valores de referência dos testes de processamento auditivo utilizados para 11 anos de idade.
Interação binaural
Sequencialização temporal
Hab aud
Separação
0 Integração
1
0
5
6
7
10 Separação
71
8
2
Integração
78
MLD (dB)*
3
Interação binaural
90
DPS N
20
Figura ‑fundo auditiva
90
PPS N
30
52
91
ONC
4
Figura‑Fundo auditiva
70
95/95
OC
40
50
60
70
80
ED
Padrão de normalidade ‑ 11 anos de idade SSW
9
80
80
IB
Dicótico de dígitos
90
‑15
Fusão binaural ≥ 10
‑10
Fala filtrada
100
0
PSI/SSI ‑ MCI
1646 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 20 OTORRINOLARINGOLOGIA
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Processamento Auditivo e Transtornos de Aprendizagem •
1647
ser aplicado em todas as faixas etárias, a partir dos 7 anos de De maneira geral, sob o ponto de vista do diagnóstico dife‑ idade, desde que o indivíduo compreenda a tarefa solicitada. rencial, à luz das neurociências e da neuropsicologia, os TPA po‑ Seria a manifestação eletrofisiológica da estratégia do SNC deriam ser descritos dentro das seguintes síndromes m aiores.10 para executar uma tarefa que requer atenção; • TPA verbal: decorre de inabilidades de fala/linguagem, e os si‑ • mismatch negativity (MMN): é semelhante ao P300, porém nais mais comuns são: baixa habilidade de discriminação fonê‑ não requer atenção. Ocorre em torno de 200 ms, sendo possí‑ mica, vocabulário de recepção e de emissão pobre, dificuldade vel utilizá‑lo em crianças mais jovens. de articulação fonêmica, dificuldade em evocação de palavras, substituições grafêmicas secundárias às substituições fonêmi‑ Recomendações para a solicitação cas e comprometimento de leitura, tanto no aspecto de recodi‑ de avaliação do PA2,3 ficação fonêmica (relação letra‑som) como no de compreensão. A bateria completa de avaliação que inclui testes monoaurais e Nesse quadro, as funções visuoespaciais e as de prosódia (en‑ dicóticos, assim como os testes de processamento temporal, tonação da fala) são geralmente bem desenvolvidas. só pode ser aplicada a partir dos 7 anos de idade, pois é neces‑ • TPA não verbal: decorre de inabilidades na percepção ou pro‑ sária maturação neurológica. Já existe uma padronização na‑ dução das informações não verbais, como análise de tons pu‑ cional de respostas bem estabelecida para essa idade. ros, sons musicais e prosódia. Alguns exames podem ser realizados a partir dos 5 anos, com a finalidade de acompanhar o amadurecimento das vias Sintomatologia1,2 auditivas e das habilidades necessárias para o PA. Assim, • Dificuldade em compreender a linguagem falada em mensa‑ crianças com histórico de dificuldades ou atrasos no desenvol‑ gens competitivas, em ambiente ruidoso ou em ambientes re‑ vimento da fala e da linguagem e crianças com risco para TPA verberantes; podem ser precocemente avaliadas e, caso o atraso maturacio‑ • dificuldade em entender solicitações; nal seja evidenciado, podem ser incluídas em um processo de • respostas inconsistentes ou inapropriadas; reabilitação informal que envolva a estimulação da audição. • falam “quê?” e “ãh?” frequentemente; • levam mais tempo para responder perguntas orais; Indicações de avaliação do PA1‑3 • dificuldade em manter a atenção auditiva; A avaliação do PA deve sempre ser realizada quando há difi‑ • distração; culdade de compreensão da linguagem oral e/ou escrita e • dificuldade em seguir orientações ou comandos verbais com‑ queixas relacionadas à aprendizagem ou ao desempenho es‑ plexos; colar, histórico de otite média recorrente ou sempre que se • dificuldade em localizar a fonte sonora; quiser qualificar a audição.2 • dificuldade em apreciar rimas e segmentar os sons da fala; • habilidades musicais ou de canto pobres; Contraindicações para a avaliação do PA1‑3 • dificuldade de leitura e escrita; O exame não deve ser realizado em pacientes com perda audi‑ • dificuldade de aprendizagem. tiva grave ou profunda ou com assimetria muito grande entre as orelhas, pela forma de apresentação dos estímulos e pela Incidência do TPA1 intensidade mínima de apresentação dos testes.2 Além disso, De 2 a 3% dos escolares apresentam TPA primário, ou seja, ainda não há testes sensíveis e específicos padronizados para isolado e independente de outras dificuldades ou transtornos. crianças menores de 5 anos. Outro ponto importante é que o É mais frequente em meninos do que em meninas. indivíduo deve ter linguagem suficiente para compreender as Comorbidades2 instruções e a tarefas a serem realizadas durante as provas. Não é recomendado realizar a avaliação quando há efusão O TPA pode ocorrer de forma isolada ou coexistir com outras na orelha média ou obstrução tubária, evidenciadas pela otos‑ alterações, como TDAH, transtornos específicos do desenvol‑ copia e/ou imitanciometria. vimento da linguagem, transtorno da leitura ou dislexia, trans‑ torno do desenvolvimento da expressão escrita, alterações das Transtorno do processamento auditivo funções executivas, deficiência auditiva, envelhecimento, etc.2 De acordo com a Academia Americana e a Sociedade Britânica de Audiologia, o TPA é uma alteração no processamento per‑ Diagnóstico do TPA ceptual da informação auditiva no SNC e na atividade neuro‑ O primeiro passo é afastar problemas sensoriais, como a pre‑ biológica responsável por esse processamento, manifestando sença de uma perda auditiva periférica, cognitivos, emocio‑ ‑se como dificuldades de percepção de sons verbais e/ou não nais e/ou familiares.1,2 Verificar fatores predisponentes como verbais,2,9 resultando em um fraco desempenho em uma ou otite média aguda recorrente ou crônica e história familiar de mais das habilidades anteriormente referidas. transtorno de aprendizagem.2 Indivíduos com TPA têm dificuldade em usar a informação Muitas vezes, essas crianças são encaminhadas diretamen‑ auditiva para se comunicar, aprender, atribuir um significado te para uma pedagoga ou psicóloga, sem fazer nenhum diag‑ e memorizar a mensagem falada.2 nóstico, o que certamente dificulta o tratamento.1
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1647
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1648 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 20 OTORRINOLARINGOLOGIA
A anamnese deve ser cuidadosa, a fim de identificar a real dificuldade escolar: dificuldade de atenção, dificuldade de compreensão das explicações da professora, dificuldade no di‑ tado, dificuldades na fala e na linguagem, dificuldade na leitu‑ ra (dislexia), dificuldade para cálculos matemáticos (discalcu‑ lia) e dificuldade para lembrar os temas apresentados na aula.1 O exame físico deve ser minucioso, verificando equilíbrio estático e dinâmico, motricidade fina, acuidade visual, otosco‑ pia e acuidade auditiva.1 A avaliação comportamental descrita deve ser dirigida para os problemas apresentados pelo paciente. Tratamento do TPA A terapia do TPA depende dos resultados obtidos na avaliação e do tipo de alteração encontrada. A abordagem deve ser abrangente e geralmente inclui:1 • modificações ambientais que visem promover uma melhor escuta; • localização preferencial no ambiente: duas primeiras filas centrais, na sala de aula; • uso de amplificação sonora ou de sistemas auxiliares de escu‑ ta (SAE) durante o treinamento e/ou em situação de aprendi‑ zagem; • treinamento específico das habilidades auditivas disfuncionais; • desenvolvimento das habilidades cognitivas de atenção e me‑ mória; • desenvolvimento das habilidades linguísticas específicas; • conhecimento de estratégias metacognitivas e metalinguísticas. Atualmente, é consenso que o treinamento auditivo acusticamen‑ te controlado é o procedimento padrão no tratamento do TPA. Há forte evidência científica sobre os benefícios do treinamento audi‑ tivo formal e altamente controlado, sendo esse o procedimento mais estudado e com o mais alto grau de recomendação.2,9‑11 A literatura também aponta que modificações ambientais, como o gerenciamento do ruído e o tratamento acústico no ambiente, são altamente benéficas no tratamento e gerencia‑ mento dos TPA, com níveis de evidência 1 e 2, sendo, portan‑ to, fortemente recomendadas.2,9‑11 Além disso, os órgãos de classe norte‑americano e britânico recomendam, no processo de reabilitação do processamento auditivo, a utilização de sistemas auxiliares de escuta como os de frequência modula‑ da – conhecidos como sistemas de frequência modulada (FM) – quando o exame diagnóstico apontar dificuldades es‑ pecíficas em testes monoaurais de baixa redundância, com prejuízo nas habilidades de fechamento auditivo, figura ‑fundo e atenção seletiva. O uso de tecnologia auxiliar que promove a melhora da relação sinal‑ruído no ambiente de aprendizagem formal auxilia na manutenção da atenção sus‑ tentada e seletiva, facilita a percepção da fala e resulta em melhora significativa na transmissão dos potenciais eletrofi‑ siológicos auditivos.2,9 Os pais, cuidadores e professores devem ser orientados para tentar manter o ambiente livre de ruídos. Em casa, evitar manter televisão ou aparelhos de som ligados durante os horá‑ rios de estudo.
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Perspectivas1 Muito ainda deve ser estudado na área do PA para que se pos‑ sam auxiliar os pacientes com dificuldades de aprendizagem. A evolução do conhecimento nessa área depende da evolução das neurociências. As pesquisas nessa área estão introduzin‑ do novos conhecimentos com precisão e velocidade impres‑ sionantes. As novas aquisições podem beneficiar de maneira significativa as crianças que frequentam os consultórios com transtorno de linguagem e aprendizagem. Os profissionais atuantes na área da pediatria devem estar preparados para es‑ sas mudanças. O primeiro passo é escutar as queixas dos pa‑ cientes e estar disposto a investigá‑las, o mais profundamente possível, evitando atrasos no início do tratamento. O segundo passo é estar atento a todos os avanços já disponíveis na atua‑ lidade e estar capacitado para utilizá‑los. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender a importância do processamento auditivo na aprendizagem. • Fazer a suspeita diagnóstica de transtorno do processamento auditivo (TPA). • Saber quando solicitar uma avaliação do processamento auditivo. • Identificar as crianças que não têm condições de realizar uma avaliação do processamento auditivo. • Orientar pais, cuidadores e professores sobre as medidas para melhorar as condições de escuta.
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Processamento Auditivo e Transtornos de Aprendizagem •
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CAPÍTULO 2
TRIAGEM AUDITIVA Ricardo Godinho Isamara Simas de Oliveira Gabriela Cintra
Introdução Uma das principais características da sociedade contemporâ‑ nea é a supervalorização dos meios de comunicação: crianças com bom desempenho comunicativo serão incluídas com mais facilidade e se destacarão no ambiente social e profissional.1 A perda auditiva é o déficit sensorial que mais comumente compromete a comunicação, e aqueles que já experimenta‑ ram a privação dos sentidos são os mais capazes de ensinar sobre a sua importância: “A surdez é o maior dos infortúnios, a perda do estímulo mais vital: o som da voz que nos traz a lin‑ guagem, desencadeia os pensamentos e nos põe em compa‑ nhia intelectual dos homens” (Helen Keller, escritora cega e surda que viveu no início do século XX). Sem as oportunidades adequadas para detecção precoce, diagnóstico e intervenção, crianças surdas ou com outros pro‑ blemas auditivos apresentarão significativas dificuldades para o desenvolvimento socioemocional, da linguagem e da cogni‑ ção, que resultarão em comprometimento no desempenho educacional, na empregabilidade e na inclusão social. O pediatra ocupa papel de destaque na identificação precoce e no encaminhamento do diagnóstico das perdas auditivas na infância. Entretanto, estudo realizado com 127 pediatras asso‑ ciados à Sociedade Mineira de Pediatria identificou que apenas 37% deles conhecem os procedimentos e as condutas adequa‑ das para a triagem auditiva neonatal. Apenas 60% reconhecem as emissões otoacústicas como exame de referência para crian‑ ças de baixo risco e apenas 40% identificam o potencial evoca‑ do auditivo do tronco encefálico (PEATE) como a melhor op‑ ção para as crianças de alto risco. Os achados desse estudo sugerem uma real necessidade de se estabelecer uma forma mais efetiva de divulgar as vantagens da triagem auditiva neo‑ natal, as técnicas disponíveis para sua realização e quais as condutas mais adequadas para as etapas pós-triagem.2,3 Portanto, pediatras e neonatologistas devem se unir aos médicos de família e da comunidade, trabalhando em parceria com otorrinolaringologistas, fonoaudiólogos e outros profis‑ sionais da saúde, para construir uma rede de cuidados inte‑
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1650
gral, sustentável e acessível, centrada na família e com compe‑ tência cultural para desenvolver um plano de tratamento para as crianças com problemas auditivos. O universo da criança com problemas auditivos Período crítico do desenvolvimento da linguagem e privação auditiva A partir da 26ª semana de gestação, o feto humano já é capaz de identificar sons. Neonatos discriminam sons específicos de seu idioma e preferem melodias musicais aos ruídos ambien‑ tais. Também conseguem diferenciar os sons que lhes são fa‑ miliares, principalmente a voz da própria mãe. Durante os pri‑ meiros dias de vida, a voz materna certamente funciona como o maior elo entre a criança e a mãe e, durante toda a infância, será o estímulo que mais sentimentos evocará. Estudos sobre o amadurecimento e a plasticidade do siste‑ ma auditivo têm demonstrado evidências da existência de um período crítico para o desenvolvimento da linguagem, que vai até os 3 anos de idade, em que o sistema nervoso central (SNC) é mais sensível e melhor se adapta aos estímulos lin‑ guísticos auditivos e visuais. Portanto, a privação precoce dos estímulos auditivos interfere no desenvolvimento das estrutu‑ ras neurais relacionadas a audição, fala e comunicação. Diagnóstico e intervenção precoce da perda auditiva na infância Para que ocorra a maturação adequada das vias auditivas do tronco cerebral e das regiões encefálicas relacionadas, é neces‑ sário que ocorra a estimulação sonora. A detecção de altera‑ ções auditivas e a intervenção iniciada até os 6 meses de idade garantem à criança o desenvolvimento da compreensão e da expressão da linguagem, bem como o seu desenvolvimento social, comparável com as crianças normais da mesma faixa etária. Além disso, as crianças portadoras de perda auditiva que são adequadamente tratadas antes dos 6 meses de idade demonstram uma significativa vantagem no desenvolvimento
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Triagem Auditiva •
das habilidades de comunicação quando comparadas a crian‑ ças com semelhante potencial cognitivo, mas que foram iden‑ tificadas tardiamente. Além do aparelho de amplificação sonora individual (AASI), o implante coclear bilateral simul‑ tâneo tem sido uma importante possibilidade para crianças ainda no 1º ano de vida. Cerca de 30% das crianças com perda auditiva também apresentam alguma síndrome ou outra malformação ou outro déficit sensorial e/ou comprometimento neurológico associa‑ do que podem interferir com o processamento da informação auditiva. Portanto, o diagnóstico precoce também atenua a in‑ fluência desses outros fatores. A criança com perda auditiva também está inserida em um contexto que pode favorecer ou dificultar o diagnóstico preco‑ ce e a forma adequada do tratamento. Por esses motivos, os contextos social e familiar devem ser avaliados junto com os resultados da triagem auditiva e do diagnóstico da surdez. Classificação da perda auditiva A hipoacusia ou perda auditiva pode ser classificada quanto à sua localização, idade de início e intensidade. As perdas audi‑ tivas também devem ser entendidas, considerando-se as inte‑ rações entre essas diferentes classificações e suas diferentes etiologias e formas de evolução. Quanto ao seu início, a hipoacusia pode ser classificada em: • hipoacusia pré-lingual: desenvolve-se nos primeiros meses de vida; • hipoacusia precoce: ocorre antes de 2 anos e meio de idade; • hipoacusia tardia: ocorre após 2 anos e meio de idade. Quanto à sua localização, a hipoacusia pode ser classificada em: • hipoacusia de condução: a lesão encontra-se na orelha exter‑ na e/ou média, impedindo a transmissão normal da onda so‑ nora para a cóclea; • hipoacusia sensorial: a lesão encontra-se na cóclea; • hipoacusia neural: a lesão encontra-se nas vias auditivas (VIII par, tronco cerebral, vias auditivas centrais) ou no córtex au‑ ditivo cerebral; • hipoacusia mista: há uma combinação das hipoacusias de condução e sensorial ou neural. Northern e Downs classificaram os graus de intensidade das perdas auditivas nas frequências de 500, 1.000 e 2.000 Hz para crianças (Tabela 1).4 Impacto da perda auditiva no desempenho comunicativo e social Crianças com perda auditiva mínima (16 a 25 dB) têm mais di‑ ficuldades para ouvir algumas consoantes, e o impacto pode ser mais significativo na fase de aquisição da linguagem. Essa perda auditiva pode ser flutuante, geralmente associada a epi‑ sódios de otite média aguda e otite média com efusão, que são frequentes nos primeiros 2 anos de vida. Pode ser persistente quando associada à otite média com efusão crônica (perma‑ nência de efusão na orelha média por mais de 3 meses) ou em crianças com sequelas de infecções otológicas (perfuração
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1651
1651
Tabela 1 Classificação dos graus de hipoacusia em crianças segundo Northern e Downs4 Classificação dos graus de perda auditiva para as frequências de 500, 1.000 e 2.000 Hz em crianças
Média da perda auditiva em 500, 1.000 e 2.000 Hz
Audição normal
0 a 15 dB NA
Perda auditiva discreta
16 a 25 dB NA
Perda auditiva leve
26 a 40 dB NA
Perda auditiva moderada
41 a 70 dB NA
Perda auditiva severa
71 a 90 dB NA
Perda auditiva profunda
> 90 dB NA
dB: decibel; NA: nível de audição.
timpânica, otite atelectásica ou otite adesiva). Na ausência dessas patologias, deve-se avaliar a possibilidade de perda au‑ ditiva sensorioneural ou de malformação da cadeia ossicular ou da orelha externa. Em caso de perda auditiva leve (26 a 40 dB), ouve-se bem quando as pessoas falam em voz alta. A criança geralmente tem dificuldade para ouvir fala cochichada ou distante. Pode apresentar retardo na aquisição da linguagem, leves proble‑ mas na fala, como trocas de alguns fonemas (“t” por “d”, “f ” por “v”, “p” por “b”, “q” por “g”). Aquelas em fase de alfabetização podem apresentar trocas na escrita e podem ser taxadas como desatentas (é mais fácil escutar o colega ao lado do que a pro‑ fessora, que nem sempre está próxima). Daí a grande impor‑ tância de um posicionamento adequado dessa criança na sala de aula (primeira fila e em cadeiras centrais). Em situações em que o diagnóstico está estabelecido, é ne‑ cessário tratar da doença da orelha média ou pode ser neces‑ sário o uso de AASI. Em ambiente escolar, as crianças com perda leve ou perdas maiores beneficiam-se do sistema de fre‑ quência modulada (FM) que possibilita a comunicação, via microfone, da professora com o AASI do aluno. Todas as crianças com perda auditiva moderada (de 41 a 70 dB) não escutam a maioria das palavras de uma conversa fala‑ da em intensidade normal. Também apresentam problemas de fala, retardo no desenvolvimento da linguagem, dificuldade no aprendizado e “desatenção”. As complicações mais graves das otites (perfurações da membrana timpânica, destruição ou ruptura da cadeia ossicular), alguns casos de otite média com efusão crônica e os colesteatomas podem causar essa per‑ da auditiva. As perdas sensorioneurais, incluindo as perdas auditivas genéticas autossômicas dominantes, podem causar perdas leves ou moderadas na infância, que podem evoluir du‑ rante a juventude. Nesses casos, o AASI está indicado. A criança com deficiência auditiva grave (71 a 90 dB) so‑ mente escuta se a pessoa fala mais alto e está bem próxima. Geralmente, é capaz de identificar sons ambientais e pode dis‑ tinguir vogais, mas não consoantes. A fala e a linguagem não se estabelecem espontaneamente se esse nível de perda audi‑ tiva está presente desde o nascimento. O AASI está indicado, além de ser necessário o monitoramento do processo de adap‑ tação do aparelho e de reabilitação.
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Na presença da perda auditiva profunda (acima de 90 dB), comparada com a incidência da anemia falciforme (1:1.427), as crianças somente ouvem sons muito altos e não ouvem o hipotireoidismo (1:3.900), fibrose cística (1:10.657) e fenilce‑ som da voz. tonúria (1:20.000) (Tabela 2).7 O implante coclear está indicado em crianças com perdas É muito importante ressaltar que os programas de triagem auditivas graves e profundas. auditiva devem ser acompanhados de uma infraestrutura ou Quando a hipoacusia é unilateral de grau moderado ou pro‑ rede de referências para o diagnóstico etiológico, para a adap‑ fundo, a criança apresenta dificuldades importantes para loca‑ tação do AASI ou implante coclear e todo o processo de reabi‑ lizar a fonte sonora e para discriminar sons em ambientes rui‑ litação. Portanto, a triagem auditiva neonatal é também um dosos. Demonstra mais cansaço ao final do dia, por causa da compromisso com as outras etapas. São estratégias para os maior necessidade de concentração. Portanto, pode ter um programas de triagem auditiva neonatal universal (TANU): desempenho escolar inadequado, com maior possibilidade de • Informar aos pais sobre a importância e a existência da tria‑ repetência, além de distúrbios comportamentais. O AASI pro‑ gem auditiva. move melhor desempenho comunicativo e escolar. • Conscientizar pediatras e profissionais da saúde a respeito da necessidade da triagem antes da alta hospitalar e da impor‑ Triagem auditiva tância de seu papel na detecção precoce da surdez. O conhecimento do universo da criança com perda auditiva ou • Conscientizar os dirigentes de entidades hospitalares e os di‑ da criança surda e dos impactos socioeconômicos relaciona‑ retores médicos de maternidades para promover a TANU dos, por parte dos profissionais da saúde que se ocuparão da dentro do hospital. identificação e do tratamento precoce, é o princípio que fun‑ • Conscientizar a enfermagem sobre o apoio e a valorização da damenta o desenvolvimento de programas para a triagem au‑ TANU. ditiva neonatal, quais sejam: • Envolver os convênios, para que forneçam cobertura para • A prevalência da doença deve justificar a realização da tria‑ esse tipo de procedimento (como é o caso do teste do "pezi‑ gem populacional. nho"), e também o Sistema Único de Saúde (SUS). • Os procedimentos utilizados devem conseguir separar indiví‑ • Disponibilizar maior número de serviços especializados em duos com e sem a doença triada. audiologia e otologia pediátrica. • Os tratamentos propostos para a doença devem ser capazes • Preparar as escolas para realizar um trabalho de estimulação de eliminar ou amenizar os efeitos indesejáveis decorrentes precoce com bebês. da doença testada. • Apoiar a comunidade surda. • Os custos devem justificar a efetividade encontrada após o • Orientar e apoiar de modo adequado a “família com perda au‑ tratamento. ditiva”. • É preciso que existam recursos disponíveis para diagnóstico e tratamento. Outro importante componente dos programas de triagem au‑ • Deve haver aceitação entre os profissionais envolvidos e a po‑ ditiva é o sistema de armazenamento e de avaliação de infor‑ pulação. mações, que monitora a evolução das crianças identificadas, diagnosticadas e em reabilitação e o desempenho dos progra‑ Nos Estados Unidos, estima-se que 2 a cada 1.000 nascidos vivos mas. apresentem deficiência auditiva que necessite de intervenção te‑ Além da TANU, a triagem auditiva em lactentes e escolares rapêutica.5 Na Inglaterra, foi relatada prevalência de 1,06/1.000 também pode representar um importante papel na identifica‑ nascidos vivos para perdas auditivas maiores de 40 dB.6 ção das perdas auditivas que se desenvolverão durante a in‑ Neonatos que ficaram internados em uma unidade de tra‑ fância. tamento intensivo (UTI) neonatal apresentam um risco ainda Triagem auditiva neonatal universal maior de hipoacusia (2:100). Na realidade brasileira, dentre as doenças passíveis de ras‑ A identificação ao nascimento de todas as crianças com perda treamento ao nascimento, a surdez em neonatos tem uma in‑ auditiva é o ideal. A TANU consiste no rastreamento auditivo cidência significativa (1 a 3:1.000), principalmente quando de todos os recém-nascidos, preferencialmente antes da alta Tabela 2 Incidência encontrada no programa de triagem neonatal de Minas Gerais Doenças
Período de estudo
Crianças triadas
Casos
Proporção (incidência)
16
4.086.385
2.863
1:1.427
9/9/2013
20
4.845.627
1.231
1:3.936
1/7/2003
30/6/2013
10
2.461.685
231
1:10.657
10/9/1993
9/9/2013
20
4.845.627
238
1:20.359
Início
Término
Anos
Doença falciforme
1/3/1998
28/2/2014
Hipotireoidismo congênito
10/9/1993
Fibrose cística Fenilcetonúria
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Triagem Auditiva •
hospitalar, e é considerada o melhor meio para identificar crianças nascidas com deficiência auditiva moderada, grave e profunda. Sem a TANU, o diagnóstico seria feito geralmente aos 2 ou 3 anos de idade. Uma triagem em hospitais é obviamente desejada para se ter acesso à maioria das crianças. O preparo dos hospitais para a triagem neonatal é fundamental. Aquelas crianças que não fo‑ ram avaliadas no hospital devem ser triadas no 1º mês de vida. Todos os neonatos que ficaram internados em uma UTI neonatal, apresentando um risco aumentado de hipoacusia, devem ser submetidos a uma triagem auditiva próximo ao pe‑ ríodo de alta. Recém-nascidos com indicadores de risco para deficiência auditiva (IRDA) devem ser submetidos a um pro‑ tocolo especial de avaliação auditiva8 (Tabela 3). Em sinergia com o Joint Committee on Infant Hearing (JCIH), no Brasil, em 2010, foi criado o Comitê Multiprofissio‑ nal em Saúde Auditiva (Comusa), formado por representan‑ tes da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Associação
Tabela 3 Indicadores de risco para deficiência auditiva (IRDA) Hereditariedade: história familiar de perda auditiva sensorioneural na infância Síndromes que contemplem perda auditiva sensorioneural ou condutiva Malformação da cabeça e do pescoço Infecção congênita: TORCHS Permanência em UTI neonatal por 2 ou mais dias TORCHS: toxoplasmose, rubéola, citomegalovirose, herpes e sífilis.
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Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cervicofacial (ABORL-CCF), Academia Brasileira de Audiologia (ABA), So‑ ciedade Brasileira de Fonoaudiologia (SBFa) e Sociedade Bra‑ sileira de Otologia (SBO). Esse comitê desenvolveu proposta para TANU com protocolo diferenciado para crianças nascidas com e sem IRDA8,9 (Figura 1). Avaliação objetiva da audição O modelo de referência para a TANU envolve as emissões otoacústicas (EOA) e o PEATE. Emissões otoacústicas As EOA são constituídas por energia acústica produzida na ore‑ lha interna de forma espontânea ou em resposta a um estímulo sonoro. São originadas principalmente das células ciliadas ex‑ ternas (CCE).10-12 Para captá-las, utiliza-se uma oliva acoplada a um microfone que é colocado no conduto auditivo externo. É um exame rápido, objetivo (nos testes de triagem, as res‑ postas são dadas como “passa” ou “falha”), sensível, não inva‑ sivo e aplicável em locais sem tratamento acústico.13,14 Na maioria das vezes, é realizado em crianças durante o sono na‑ tural. Por todas essas características, foi o exame que tornou viável a TANU. É importante ressaltar que a captação das EOA não tem como objetivo quantificar a alteração auditiva, e sim detectar sua ocorrência e, dessa forma, confirmar a integridade da fun‑ ção coclear.13,14 São divididas em dois tipos: EOA espontâneas e evocadas. As EOA espontâneas são aquelas geradas na ausência de estí‑ mulo sonoro. Estão presentes em cerca de 30 a 40% dos indiví‑
TANU
RN sem IRDA EOA
Passa Orientação Triagem antes do ingresso na escola
Falha PEATE-a Antes da alta hospitalar
Falha Retorno em 15 a 30 dias
Passa Orientação Triagem antes do ingresso na escola
RN com IRDA PEATE-a
Passa Orientação Triagem antes do ingresso na escola
Passa Orientação Monitoramento até 3 anos
Falha Retorno em 15 dias ou encaminhamento direto para diagnóstico
Passa Orientação Monitoramento até 3 anos
Falha Encaminhamento para diagnóstico
Falha Encaminhamento para diagnóstico
Figura 1 Fluxograma com proposta para TANU, com protocolo diferenciado para crianças nascidas com e sem IRDA.
TANU: triagem auditiva neonatal universal; RN: recém-nascido; IRDA: indicadores de risco para deficiência auditiva; EOA: emissões otoacústicas; PEATE-a: potencial evocado auditivo de tronco encefálico automático.
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duos com função auditiva periférica normal, sendo, por isso, de baixa especificidade. A presença é sinal de funcionamento nor‑ mal da cóclea, porém a ausência não significa necessariamente prejuízo à audição. Têm maior aplicabilidade em pesquisa.10,11 As EOA geradas por estimulação sonora são conhecidas como evocadas (EOAev), estão presentes em 99% das orelhas normais e, por sua vez, dividem-se em dois tipos: transientes (EOAevT) e por produto de distorção (EOAevPD). A principal diferença entre as duas é na estimulação em frequências espe‑ cíficas pela EOAevPD, enquanto a EOAevT reflete a estimula‑ ção de uma ampla extensão da cóclea de maneira inespecífica – geralmente de 300 a 5.000 Hz.10,11 As alterações cocleares são as de maior prevalência ao nas‑ cimento e as CCE são mais vulneráveis a doenças e lesões do que as células ciliadas internas. Desse modo, a presença de EOAev demostra a presença de funcionalidade das CCE, o que diminui a probabilidade de haver perda auditiva periférica.13,14 Alterações na orelha externa ou média (como verniz, rolha de cerume ou otite média com efusão) podem tornar as EOA au‑ sentes sem, no entanto, definir perda auditiva permanente. Na ausência de EOAev, o paciente deve ser conduzido à avalia‑ ção com otorrinolaringologista para realização de otoscopia e imitanciometria (timpanometria), sendo encaminhado para o reteste após essa avaliação. Na triagem auditiva, habitualmente são captadas as EOAevT. Quando elas estão presentes, as características mais importantes a ser avaliadas são: reprodutibilidade (maior que 50%) e nível de resposta maior que o ruído (relação sinal/ruí‑ do > 6 dB).13,14 Os critérios adotados de “passa” e “falha” variam de acordo com os programas de triagem e os protocolos dos equipamentos utilizados. Como é um método que avalia apenas a função coclear (em especial das CCE), na presença de alterações retrococleares ou neuropatias auditivas, as EOA podem estar presentes, mas a criança pode apresentar perda auditiva significativa. Dessa forma, torna-se necessário expandir a propedêutica nos casos com suspeita ou com IRDA. Potencial evocado auditivo de tronco encefálico O PEATE, ou brainstem evoked response audiometry (BERA), é um exame que avalia a atividade eletrofisiológica do sistema auditivo10,11 em resposta a um estímulo sonoro, desde o nervo coclear até o mesencéfalo (colículo inferior).13,14 É um exame objetivo e não invasivo. São utilizados eletro‑ dos sobre os lóbulos das orelhas (ou região mastóidea) e a fronte, além de uma sonda colocada no conduto auditivo que emite estimulação sonora no ouvido testado, não causando nenhum tipo de dor. No entanto, contrações da musculatura da face podem causar interferência na captação da resposta. Dessa forma, nas crianças pequenas e pouco colaborativas, pode ser necessária a sedação. O PEATE automático (PEATE-a), ou PEATE-triagem, é uti‑ lizado nos protocolos de triagem auditiva para os pacientes com IRDA ou naqueles em que houve falha nas EOAev. A utili‑ zação desse exame na triagem auditiva em crianças de maior
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risco é sugerida por autores que demostram que essa popula‑ ção apresenta uma maior ocorrência de perdas auditivas retro‑ cocleares, que não podem ser identificadas quando se utiliza o registro das EOAev.9 O PEATE-a apresenta maior rapidez de realização do que o PEATE convencional. Os equipamentos, de maneira geral, fa‑ zem o estímulo sonoro (geralmente em intensidades mais bai‑ xas: 35 dB NA) e é observada a resposta. O examinador não vi‑ sualiza as ondas captadas. O próprio equipamento apresenta resultados diretos como “passa” e “falha”. Triagem auditiva neonatal universal – modelo brasileiro No Brasil, a implantação da Política Nacional de Saúde Auditi‑ va em 2004, pelo Ministério da Saúde, foi considerada um marco. A atenção à saúde auditiva deveria ser praticada de for‑ ma integral ao cidadão com perda auditiva, abrangendo exa‑ mes e consultas necessárias para detecção, diagnóstico, sele‑ ção, adaptação e fornecimento de AASI, acompanhamento e monitoramento dos pacientes adaptados.15 A existência da Política Nacional, somada à publicação da Lei Federal n. 12.303 de 2010,16 impulsionou a proliferação de ações de triagem auditiva neonatal no Brasil. No entanto, ações de triagem como política pública de saúde são ainda in‑ cipientes, sendo a maioria caracterizada por serviços isolados, sem centralização dos dados em esfera governamental e sem garantia da continuidade do cuidado. Como exemplo de pro‑ gramas de âmbito estadual, norteados por políticas públicas no Brasil, podem ser destacados os modelos de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. No contexto das redes de atenção a saúde, o Ministério da Saúde instituiu, em 2012, a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, objetivando ampliar o acesso e a qualificação do atendimento às pessoas com deficiência.17 A Rede de Cuida‑ dos é composta por ações e serviços de saúde a ser desenvolvi‑ dos na atenção básica, atenção especializada e atenção hospi‑ talar. Na atenção especializada, foram instituídos os Centros Especializados em Reabilitação, responsáveis pela reabilita‑ ção de duas ou mais modalidades de deficiência auditiva, físi‑ ca, intelectual e visual, e mantidos os serviços de reabilitação com apenas uma modalidade de reabilitação. A atenção à saú‑ de auditiva no SUS, portanto, deve estar integrada à Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência. Os pontos de atenção à saúde auditiva da Rede de Cuidados são os serviços de saúde que prestam atendimento à pessoa com deficiência auditiva, entre eles: serviços de reabilitação auditiva, centros especiali‑ zados em reabilitação com modalidade auditiva, serviços de implante coclear, ambulatórios de otorrinolaringologia, unida‑ des básicas de saúde, serviços de triagem auditiva neonatal, entre outros. Esses pontos devem estar integrados em uma re‑ lação horizontal com a ordenação do cuidado realizada pela atenção básica. Em um programa de triagem auditiva neona‑ tal, a criança com perda auditiva deve transitar entre esses pontos de atenção no tempo certo, com o custo e a qualidade adequados e de forma humanizada. A gestão da Rede, ou seja, a definição dos fluxos de referência e contrarreferência, as es‑
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tratégias de acesso, a organização do financiamento e a regula‑ ção na esfera municipal, é realizada pela respectiva secretaria municipal de saúde. No âmbito estadual, a gestão é da secreta‑ ria de Estado de saúde. Pelo princípio da regionalização, a atenção especializada e a hospitalar devem estar distribuídas nas regiões de saúde do Estado, configurando serviços de refe‑ rência para os demais municípios. As estratégias de acesso dos cidadãos de toda a região de saúde aos serviços de referên‑ cia devem ser pactuadas, portanto, no âmbito estadual. Dessa forma, a triagem auditiva neonatal, o diagnóstico funcional e a reabilitação fazem parte de um processo contí‑ nuo e indissociável para que se alcance o desfecho esperado em crianças com perdas auditivas permanentes. Triagem auditiva em lactentes Cerca de 20 a 30% das crianças com perda auditiva desenvol‑ vem essas perdas nos primeiros anos de sua infância. Toda queixa dos pais em relação à possível perda auditiva deve ser acompanhada de avaliação auditiva completa. Os pais são res‑ ponsáveis por identificar cerca de 70% dessas crianças. A ava‑ liação continuada do desenvolvimento da linguagem e da fala deve ser seguida da avaliação auditiva formal para todas as crianças que não atingem os marcos do desenvolvimento no período adequado. Todas as crianças que sofreram um episódio de meningite bacteriana ou encefalite virótica devem ser avaliadas preferen‑ cialmente antes da alta hospitalar. Estudos envolvendo amos‑ tras mais abrangentes de lactentes são necessários até que to‑ dos os fatores de risco para perda auditiva progressiva ou flutuante sejam mais bem definidos (Tabela 4). Considera-se necessária a avaliação auditiva semestral até os 3 anos de i dade. Triagem auditiva em escolares Um adolescente de 16 anos tem um vocabulário de cerca de 80.000 palavras, ou seja, aprendeu 5.000 palavras por ano, o que equivale a uma média de 13 palavras por dia. Nesse processo de aprendizado, muitas palavras vão se fixando si‑ multaneamente. Os sons das novas palavras vão se tornando familiares e associam-se a um significado. Quando o desenvol‑ vimento da linguagem apresenta problemas, o vocabulário torna-se reduzido em relação à idade da criança. Em conse‑ quência, ela pode não entender muitas mensagens, passando a apresentar dificuldades no aprendizado. A triagem auditiva em escolares faz parte da abordagem pluralística para detecção da perda auditiva tardia ou progres‑ siva durante a infância. Uma maneira de se realizar essa tria‑ gem é o exame de todas as crianças que iniciam a vida escolar (em torno dos 6 anos). É importante que essa avaliação tam‑ bém seja oferecida anualmente para todos os escolares. Os principais problemas auditivos em escolares são reversí‑ veis e relacionam-se à presença de cerume no conduto auditi‑ vo, otites, disfunção tubária e presença de corpo estranho den‑ tro da orelha.18 As disfunções neurológicas na área auditiva também repre‑ sentam uma importante causa de desempenho escolar inade‑
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Tabela 4 Fatores de risco para perda auditiva adquirida ou progressiva em lactentes Preocupação relacionada a perda auditiva ou atraso no desenvolvimento da linguagem História familiar de perda auditiva Síndromes que contemplem perda auditiva sensorioneural ou condutiva Malformação da cabeça e do pescoço Infecção congênita: TORCHS Indicadores neonatais: hiperbilirrubinemia com exsanguinotransfusão, hipertensão pulmonar persistente associada à ventilação mecânica, uso de oxigenação por membrana extracorpórea Baixo peso ao nascer (abaixo de 2.500 g) ou muito baixo peso ao nascimento (abaixo de 1.500 g) Uso de drogas ototóxicas Ventilação mecânica por tempo prolongado Infecção pós-natal associada a perda auditiva (TORCHS) ou meningite bacteriana Trauma cranioencefálico com sintomas relacionados a equilíbrio ou audição Encefalite ou labirintite virótica Doenças neurodegenerativas: síndrome de Hunter Neuropatias sensoriais e motoras: Charcot-Marie-Tooth, ataxia de Friedreich Exposição excessiva a ruído Citomegalovirose Displasia broncopulmonar ou doença pulmonar crônica Terapia com diuréticos Otite média de repetição ou otite média crônica com efusão TORCHS: toxoplasmose, rubéola, citomegalovirose, herpes e sífilis.
quado. É importante ressaltar que, sendo a comunicação um fenômeno multissensorial, uma criança com problemas audi‑ tivos pode ter um desenvolvimento normal, por suprir seu problema com uma atenção maior ou por aproveitar melhor outros sentidos, além de cuidados especiais socioambientais e de fatores diversos relacionados ao sistema de ensino. Os estudantes com distúrbios de aprendizado podem ser avaliados de uma maneira especial (avaliação do processa‑ mento auditivo), além da triagem auditiva. Sabe-se que a re‑ cepção dos sons da fala envolve um sistema de integração complexo, incluindo a recepção, a discriminação e o reconhe‑ cimento de diferentes sons dentro de determinado sistema linguístico. Portanto, o processamento auditivo ultrapassa a realidade da simples detecção de sinais acústicos. Outros inúmeros fatores, como baixa autoestima, dificul‑ dade no relacionamento interpessoal, dinâmica familiar con‑ flituosa, desmotivação e método educacional inadequado, po‑ dem influenciar no processo ensino-aprendizagem, levando o aluno a apresentar dificuldades de aprendizado não relaciona‑ das a alterações da audição periférica. Esses fatores também devem ser analisados ao se abordar uma criança com proble‑ mas auditivos.
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Considerações finais Partindo da premissa de que a intervenção precoce é funda‑ mental para o desenvolvimento da linguagem oral em crian‑ ças com perdas auditivas, o pediatra, muitas vezes responsá‑ vel pela ordenação do cuidado da criança, deve ter ciência da dinâmica da Rede de Cuidados em seu território. Deve conhe‑ cer os pontos de atenção de referência, os protocolos e as es‑ tratégias de encaminhamento pactuadas em seu território, evitando, assim, a permanência desnecessária de crianças em filas de espera para acesso a serviços não conectados em rede. No setor de saúde suplementar, partindo da mesma pre‑ missa, é fundamental que o pediatra e o neonatologista esta‑ beleçam uma rede de referência e contrarreferência com otor‑ rinolaringologistas, fonoaudiólogos e demais profissionais envolvidos no cuidado ao deficiente auditivo, com pactuação de protocolos e condutas que visam à definição diagnóstica e ao início da intervenção em 6 meses. Além da identificação precoce e do encaminhamento opor‑ tuno, os pediatras podem verificar a presença de fatores de ris‑ co relacionados com a perda auditiva progressiva, flutuante ou de início tardio, assegurando a monitoração auditiva e a avaliação dos marcos de desenvolvimento da linguagem.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Aproximar-se do universo da criança com problemas auditivos. • Compreender a importância do período crítico para o desenvolvimento da linguagem e o impacto da privação auditiva. • Identificar a perda auditiva no período neonatal: objetivo da triagem auditiva neonatal universal (TANU). • Diagnosticar a etiologia da perda auditiva e iniciar a intervenção até os 6 meses de vida da criança. • Entender os programas de triagem auditiva neonatal, em lactentes ou em escolares, como um processo controlado, centrado nas famílias e com indicadores de qualidade. • Envolver-se com a identificação e o diagnóstico precoces e também com o processo de reabilitação auditiva, incluindo o uso de aparelhos de amplificação sonora individual, o implante coclear e a estimulação auditiva e da linguagem.
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CAPÍTULO 3
OTITE MÉDIA AGUDA Tania Sih
Introdução A otite média aguda (OMA) é uma infecção com desenvolvi‑ mento rápido de sinais e sintomas de inflamação aguda na ca‑ vidade da orelha média. É uma das razões mais frequentes de visitas aos médicos em crianças menores de 15 anos de idade, entretanto, mesmo com alta prevalência, é uma entidade auto‑ limitada e com baixa incidência de complicações e mortalida‑ de. É fundamental um diagnóstico preciso e acurado, evitando o uso desnecessário de antimicrobianos, com consequências danosas para o paciente e para a comunidade como um todo. Definição A OMA é definida como a presença de líquido (efusão) preen‑ chendo a cavidade da orelha média sob pressão, com início abrupto dos sinais e sintomas causados pela inflamação dessa região. Epidemiologia A otite média é uma das doenças infecciosas mais comuns na infância. Avaliando-se diagnósticos feitos em consultórios em 1990, nos Estados Unidos, foram identificadas 24,5 milhões de visitas realizadas por otite média.1 Em crianças menores de 15 anos de idade, a otite média foi o diagnóstico mais frequen‑ te, em especial nos 2 primeiros anos de vida.1 Até os 3 anos de idade, 3 em cada 4 crianças terão apresentado pelo menos um episódio de OMA, e com 2 anos de idade, 1 em cada 5 crianças terá otite média recorrente.2 Fatores de risco Os fatores de risco para OMA podem depender do hospedeiro (da própria criança) ou decorrer de fatores ambientais. Fatores relacionados ao hospedeiro Com relação à idade, a ocorrência do primeiro episódio de OMA antes dos 6 meses é um fator de risco importante para a recor‑ rência das OMA. Crianças com fenda palatina, síndrome de Down, malformações craniofaciais, imunodeficiência e discine‑
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sia ciliar primária apresentam risco aumentado para OMA. A suscetibilidade genética é importante na otite média, sendo de‑ terminada, em parte, pela contribuição de genes em regiões cro‑ mossomais distintas: 10q e 19q. As diferenças raciais na tuba au‑ ditiva (TA) tornam a otite média mais prevalente em grupos étnicos como esquimós, aborígenes e índios americanos. Outros fatores, como alergia, doença do refluxo gastroesofágico, etnia e sexo, apresentam dados discordantes quanto ao seu risco real.3 Fatores ambientais Evidências epidemiológicas mostram que a OMA costuma de‑ correr de infecções das vias aéreas superiores (IVAS), e que tanto IVAS quanto OMA apresentam maior incidência nos me‑ ses mais frios (inverno). As creches e os berçários representam um fator de risco considerável no desenvolvimento da OMA, em especial pela alta prevalência de infecções respiratórias, fa‑ cilitando a contaminação viral entre as crianças. Outro fator de risco de reconhecida importância é o tabagismo passivo. Por outro lado, o aleitamento materno é um fator de prote‑ ção; estudos demonstram que amamentar por 3 meses dimi‑ nui o risco de OMA em 13% e amamentar por mais de 6 meses protege a criança das recorrências das otites até o 3º ano de vida.4 No caso de crianças que tomam mamadeira, os pais de‑ vem cuidar para que não a tomem deitadas, sugerindo-se que a cabeça fique elevada. O uso de chupetas e de mamadeiras com bico com cápsula tipo “empurra e puxa” também é consi‑ derado fator de risco na recorrência das OMA. História natural A maioria das crianças (80%) apresenta evolução favorável du‑ rante um episódio de OMA, com resolução espontânea. Essa melhora independe da adesão ao tratamento ou do tipo de me‑ dicação. A resolução espontânea fica evidente quando se opta por observação inicial, com melhora dos sintomas em 60% dos pacientes depois de 24 horas e ausência de sintomas residuais em 80% das crianças após 2 a 3 dias. Portanto, a história natural da OMA é extremamente favorável em 70 a 80% dos pacientes.3
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Patogênese influenzae não tipável subiu de 41 para 56%. Entretanto, a fre‑ A OMA é mais prevalente no lactente e na criança pequena. quência de sorotipos não vacinais da PCV7 aumentou no flui‑ Essa predisposição decorre de fatores anatômicos e imunoló‑ do da orelha média.6 O sorotipo 19A foi a maior causa de subs‑ gicos, característicos dessa faixa etária. tituição da doença após a introdução da PCV7. A TA ventila a orelha média. Durante o repouso, encontra‑ A maioria dos patógenos da orelha média deriva da nasofa‑ -se fechada. Sua luz é virtual e abre-se de forma intermitente ringe, porém nem todos os patógenos da nasofaringe são oto‑ pela contração do músculo tensor do véu palatino durante a patógenos. Culturas da nasofaringe obtidas durante episódios deglutição ou o bocejo. Existem diferenças importantes entre de OMA mostram entre 22 e 44% de pneumococo, 50 e 71% de a TA da criança e do adulto. As diferenças mais relevantes são H. influenzae não tipável e 17 e 19% de M. catarrhalis. A bacte‑ a TA mais curta e mais horizontalizada na criança, o que facili‑ riologia da miringite bolhosa é a mesma da OMA. ta a progressão de microrganismos (vírus e bactérias) da rino‑ Com base nos achados clínicos, é difícil sugerir que a faringe para a orelha média.3 OMA possa ser causada por este ou aquele microrganismo. Ao nascimento, o sistema imunológico da criança é imaturo. Alguns estudos sugerem que a febre, a otalgia importante e o O recém-nascido apresenta altos níveis de IgG materna, que abaulamento da membrana timpânica (MT) possam ser vão progressivamente diminuindo, tornando-se pouco efeti‑ mais intensos quando o organismo causador for o pneumo‑ vos por volta dos 5 a 6 meses de idade. Por outro lado, a criança coco.7 Entretanto, outros estudos apontaram que a OMA produz gradualmente mais IgG, IgA e IgM próprias, atingindo causada pelo H. influenzae não tipável estaria associada com um platô quando a criança está maior. É interessante notar a OMA bilateral e uma inflamação mais grave da MT.8 A OMA que essas fases coincidem com a época de início e de desapare‑ acompanhada de conjuntivite purulenta (síndrome otite‑ cimento dos episódios de OMA na maioria das crianças. -conjuntivite) é sugestiva de H. influenzae não tipável. Uma A OMA geralmente é desencadeada por um processo infec‑ variabilidade geográfica substancial é observada na propor‑ cioso (IVAS em geral), associado a um determinado grau de ção das OMA causadas pela M. catarrhalis. disfunção da TA e do sistema imunológico. É comum a OMA ser precedida por IVAS. Os vírus agiriam como copatógenos, Suscetibilidade bacteriana aos antibióticos predispondo à infecção bacteriana. Essa seria a explicação Atualmente, os estudos de OMA usam os novos dados da li‑ para a sazonalidade da OMA, mais comum nos meses de in‑ nha de corte, definidos pelo Clinical and Laboratory Standards verno, quando as infecções virais são mais frequentes. Institute (CLSI), para avaliar a sensibilidade do pneumococo com relação à penicilina: Microbiologia • pneumococo sensível: concentração inibitória mínima (CIM) A OMA é causada por vírus respiratórios e/ou infecção bacte‑ ≤ 2 mcg/mL; riana no espaço da orelha média, como resultado da resposta • pneumococo com sensibilidade intermediária: CIM ≤ 4 mcg/mL; do hospedeiro à infecção. A OMA ocorre mais frequentemente • pneumococo resistente com CIM ≤ 8 mcg/mL. como consequência de uma IVAS que causa inflamação/dis‑ função da TA, à pressão negativa da orelha média e ao movi‑ Para a CIM de amoxicilina oral, os parâmetros são: mento de secreções, contendo os vírus causadores da IVAS e • sensível: CIM < 2 mcg/mL; as bactérias patogênicas, para a cavidade da orelha média. • intermediário: CIM < 4 mcg/mL; Chonmaitree et al. encontraram que 63% de 864 episódios de • resistente: CIM ≤ 8 mcg/mL. IVAS em crianças menores de 4 anos de idade eram positivos para vírus respiratórios e adenovírus, coronavírus e vírus res‑ No Brasil, dados de 2012 do Sistema Regional de Vacinas piratório sincicial (VRS) relacionados com a OMA.5 O VRS e o (SIREVA) mostram que 96% das cepas de pneumococo são adenovírus estão entre os vírus mais comumente associados à sensíveis à penicilina (CIM ≤ 2 mcg/mL), 4% têm suscetibili‑ OMA. dade intermediária (CIM ≤ 4 mcg/mL) e 0% de cepas com re‑ O padrão-ouro para determinar a etiologia bacteriana da sistência.9 Vale lembrar que o estudo do SIREVA é feito com OMA é a cultura do fluido da orelha média por meio da timpa‑ cepas de doenças invasivas, e não pela timpanocentese, po‑ nocentese, da drenagem através dos tubos de ventilação ou pela rém, é possível inferir que as cepas de pneumococo que cau‑ otorreia espontânea. Bactérias são encontradas em 50 a 90% sam as doenças invasivas sejam similares àquelas que causam dos casos de OMA com ou sem otorreia. O Streptococcus pneu- as OMA. A partir desses resultados, pode-se inferir que a amo‑ moniae, o Haemophilus influenzae não tipável e a Moraxella ca- xicilina na dose habitual (50 mg/kg) é perfeitamente satisfa‑ tarrhalis são os principais otopatógenos bacterianos e frequen‑ tória, no nosso meio, na abordagem da OMA causada por temente colonizam a nasofaringe. O Streptococcus pyogenes do pneumococo. grupo A é responsável por menos de 5% dos casos de OMA. Algumas cepas de H. influenzae produzem a enzima beta‑ A bacteriologia da OMA mudou muito após a introdução da lactamase, sendo, então, resistentes às penicilinas. Atualmen‑ vacina conjugada do pneumococo; antes da adoção da vacina te, em virtude das diferentes fontes e variações geográficas, com 7 sorotipos (PCV7), o S. pneumoniae era o microrganismo entre 60 e 80% dos H. influenzae são considerados sensíveis a mais isolado nos casos de OMA. Após a introdução da PCV7, a doses regulares e altas de amoxicilina, e 10% de M. catarrhalis proporção do S. pneumoniae diminuiu de 48 para 31% e o H. são sensíveis à amoxicilina/clavulanato.
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Sinais e sintomas São sintomas constantes a otalgia (criança que manipula mui‑ to a orelha), o choro excessivo, a febre, as alterações de com‑ portamento e do padrão do sono, a irritabilidade, a diminui‑ ção do apetite e até a diarreia. Como sinais de OMA, os achados da MT na otoscopia e na pneumotoscopia represen‑ tam, de maneira mais característica, os sinais da OMA. MT com hiperemia ou opacidade, abaulamento, diminuição da mobilidade e otorreia aguda são sinais típicos. A idade da criança (< 24 meses), a gravidade dos sintomas, a presença de otorreia aguda e a bilateralidade direcionam o tratamento da OMA de maneira mais incisiva. Além de descrever a história Figura 1 Espéculos de otoscópio: o ideal e o inadequado. natural da evolução da OMA, um estudo de metanálise de da‑ dos de pacientes individuais, realizado por Rovers et al., na • visualização: é necessário que o MAE esteja livre de cerume, descamações e debris. Para remover o cerume, seja com cure‑ Holanda, mostra o efeito dos antibióticos no tratamento da ta, sucção delicada ou lavagem, a criança deve ser encami‑ doença,4 evidenciando que, nas crianças com OMA bilateral, a nhada para um especialista habilitado, para não causar danos história natural é pior, sendo o benefício obtido com o antibió‑ à integridade física e psicológica da criança. tico, maior. Da mesma forma, as OMA acompanhadas de otor‑ reia espontânea e aguda têm um benefício muito maior quan‑ do tratadas com antibióticos. A otorreia define o diagnóstico, A OMA deve sempre ser confirmada pela otoscopia. São sinais pois é necessária a presença de efusão ou líquido na cavidade de alteração da MT encontrados na OMA: mudanças de trans‑ da orelha média para estabelecer o diagnóstico de OMA. Por‑ lucidez, forma, cor, vascularização e integridade. O achado tanto, atualmente, a bilateralidade é um marco que indica mais significativo no diagnóstico da OMA é o abaulamento da uma doença mais grave, e a presença de otorreia espontânea MT, com sensibilidade de 67% e especificidade de 97% (Figu‑ ra 2). A coloração avermelhada da MT pode ser consequência indica a certeza da patologia.2 Eventualmente, a OMA pode ter como complicações as do reflexo da hiperemia da mucosa do promontório, visualiza‑ da através de um tímpano normal, que pode gerar confusão mastoidites e evoluir para um colesteatoma. durante o exame e acentuar-se quando a criança estiver cho‑ Diagnóstico rando. Entretanto, a hiperemia da MT pode indicar a fase ini‑ O diagnóstico preciso e acurado no início do quadro é de cial da OMA, e, na sequência, ocorrer a opacidade e até mes‑ fundamental importância. Um bom otoscópio com lâmpa‑ mo a perfuração espontânea da MT com otorreia súbita. A Academia Americana de Pediatria (AAP) recomenda para o das halógenas, espéculos de tamanho adequado ao diâme‑ tro do conduto auditivo externo, limpeza e remoção de ceru‑ diagnóstico de OMA: história de início agudo de sinais e sintomas, me e possibilidade de otoscopia pneumática fazem parte presença de efusão na orelha média, com sinais e sintomas de in‑ desse contexto. Uma simples hiperemia da MT quando a flamação da orelha média. A AAP considera que o melhor méto‑ criança estiver chorandopode levar a muitos diagnósticos do para diagnosticar efusão na orelha média é a pneumo-otosco‑ errados de OMA. Vale lembrar que a otalgia é extremamente pia, uma vez que a efusão reduz a mobilidade da MT. importante, porém não se deve confundi-la com a otalgia da otite externa das crianças que estão expostas a água de pis‑ Tratamento cinas. Essa otalgia cursa sem febre, sem história pregressa A história natural da OMA, por meio de estudos com metanáli‑ de IVAS e com relação causa/efeito: a orelha da criança es‑ se, comprovou que a resolução espontânea ocorre em mais de teve em contato com água de mar ou piscinas, situação mais 80% dos casos, com melhora sem antibiótico, e geralmente sazonal, ocorrendo, em geral, no verão. Já a OMA incide não ocorrem complicações. O acompanhamento, a observa‑ mais nos meses frios, na vigência ou sequência de uma IVAS ção e o monitoramento dessas crianças são de extrema impor‑ tância. Caso elas não começem a melhorar rapidamente, o an‑ e com febre. A identificação para o diagnóstico otoscópico acurado de tibiótico pode, então, ser considerado. OMA pode ser difícil se não houver condições adequadas. São fundamentais, portanto, os seguintes fatores: • otoscópio com uma iluminação adequada; • espéculo auricular que realmente penetre no meato acústico ex‑ terno (MAE). O formato afunilado é importante (Figura 1), pois penetra no MAE. Além do formato, é importante utilizar um es‑ péculo com maior diâmetro possível, determinado pela idade da criança, para obter melhor iluminação e maior campo de visão; • posição: recomenda-se que a criança esteja sentada no colo Figura 2 Variações de aspectos de membranas timpânicas da mãe, permitindo a contenção adequada da cabeça; na OMA.
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Em 2013, a AAP lançou um conjunto de diretrizes com rela‑ ção ao tratamento da OMA.10 A primeira recomendação muito importante é tratar a dor com analgésicos, independentemente de o antibiótico ser ou não administrado. A segunda recomendação é dar antibiótico para OMA, seja ela bilateral ou unilateral, em crianças com 6 meses de idade ou mais, com sinais e sintomas graves (otalgia e temperatura alta – 39°C) ou caso os sintomas já persistam há pelo menos 48 horas. A terceira recomendação na qual o médico deve dar anti‑ biótico é na OMA bilateral em crianças com menos de 24 me‑ ses de idade, sem sinais ou sintomas graves (otalgia moderada há menos de 48 horas, temperatura < 39°C). A quarta recomendação no caso de OMA em criança entre 6 e 23 meses de idade sem sinais ou sintomas graves (otalgia < 48 horas, temperatura < 39°C) é o médico monitorar de perto a evolução ou prescrever antibiótico (com base em decisão conjunta médico/pais). Caso se decida por observar sem dar antibiótico, mas a evolução mostrar piora ou falhar em melho‑ rar dentro de 48 a 72 horas, então, deve-se dar antibiótico. A quinta recomendação nos casos de OMA uni ou bilateral em crianças com idade acima de 24 meses, sem sinais ou sin‑ tomas graves (otalgia leve há < 48 horas, temperatura < 39°C) é o médico observar de perto a evolução do quadro ou prescre‑ ver antibiótico (com base em decisão conjunta médico/pais). Caso se decida por observar sem dar antibiótico, mas a evolu‑ ção piorar ou falhar em melhorar dentro de 48 a 72 horas, en‑ tão, deve-se dar antibiótico. Caso o médico decida tratar da OMA com um antimicrobia‑ no, a AAP recomenda a amoxicilina.10 Crianças com idade > 2 anos e com sintomas mais graves devem tomar o antibiótico por 10 dias. Crianças entre 2 e 5 anos de idade com OMA mo‑ derada, por 7 dias; e crianças < 6 anos também com OMA leve, entre 5 e 7 dias. Crianças com alergia à penicilina, tipo anafi‑ lactoide, podem receber macrolídeo ou clindamicina (esta também no caso de pneumococo resistente). A amoxicilina pode ser dada se a criança não a recebeu nos últimos 30 dias, não tiver conjuntivite purulenta e não for alérgica à penicilina. Ao tomar a decisão de tratar a OMA com um antimicrobia‑ no, caso a criança tenha recebido amoxicilina nos últimos 30 dias ou tenha conjuntivite purulenta associada ou histórico de OMA recorrente que não responde à amoxicilina, o médico deve prescrever um antibiótico com cobertura adicional para betalactamase (clavulanato associado à amoxicilina ou uma cefalosporina, como a cefuroxima ou a ceftriaxona, se a crian‑ ça apresentar vômitos ou diarreia). Se a criança não melhorar ou até mesmo piorar da OMA dentro de 48 a 72 horas e já estiver tomando um antibiótico, recomenda-se a troca do medicamento por outro com espec‑ tro de ação mais amplo. Nos casos de OMA recorrente, não devem ser prescritos an‑ tibióticos como profilaxia das recidivas. Os tubos de ventilação podem estar indicados na OMA re‑ corrente (3 episódios em 6 meses, ou 4 em 1 ano, com 1 dos episódios nos últimos 6 meses).
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A vacina conjugada para o pneumococo e a anual da influenza estão recomendadas para todas as crianças. Os médicos devem encorajar a amamentação exclusiva por pelo menos 6 meses e desencorajar a exposição ao tabagismo passivo. Outros fármacos, como corticosteroides, anti-histamínicos, descongestionantes e anti-inflamatórios não hormonais, não têm sustentação científica, pois não há estudos confiáveis do tipo randomizado controlado que atestem sua eficácia. Quanto às indicações para procedimentos de drenagem ou evacuação da efusão da orelha média (timpanocentese e/ou miringotomia) durante episódio de OMA, elas estão restritas a resposta insatisfatória à antibioticoterapia, imunodeficiência, doença grave e complicações supurativas, como mastoidite. Considerações finais O impacto da OMA na criança excede o desconforto e o sofri‑ mento associados com episódios individuais da doença. A OMA é uma das causas principais para as crianças receberem antibióticos. Dar o suporte para a prevenção da doença é uma estratégia importante para reduzir a prescrição abusiva de an‑ timicrobianos e, de maneira subsequente, diminuir o surgi‑ mento de resistência. A OMA e seu tratamento, bem como suas complicações, têm um impacto significativo nos custos econômicos para a sociedade. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender a epidemiologia básica, os fatores de risco do hospedeiro e do meio ambiente. • Conhecer as diferenças anatômicas da tuba auditiva na criança e no adulto, bem como a alta prevalência das infecções respiratórias virais que antecedem a OMA. • Reconhecer que o diagnóstico acurado de OMA só é possível por meio da otoscopia realizada com ferramentas (otoscópios) adequadas. • Conhecer as recomendações para o tratamento da OMA com base no conjunto de diretrizes lançadas em 2013 pela Academia Americana de Pediatria (AAP). • Estar atualizado quando ao perfil de resistência antimicrobiana na comunidade. • Saber das medidas preventivas gerais e da importância da vacinação contra o pneumococo e a influenza.
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CAPÍTULO 4
OTITE MÉDIA COM EFUSÃO Tania Sih
Introdução e definição A otite média com efusão (OME) é uma inflamação da orelha média com uma coleção de líquido ou efusão retrotimpânica, sem sinais ou sintomas de infecção aguda e sem perfuração da membrana timpânica. A otite média com efusão crônica (OMEC) é aquela em que a efusão permanece por < 3 meses sem sinais inflamatórios agudos. A OME pode ser considerada um continuum da otite média aguda (OMA), uma vez que, após um episódio de OMA bem conduzido, até 70% das crianças podem apresentar efusão na orelha média (EOM) ao final de 2 semanas, 40% ao final de 1 mês e cerca de 10% ao final de 3 meses, levando à OMEC.1 Essa efusão, serosa ou mucoide, pode causar dificuldade audi‑ tiva (hipoacusia) condutiva de leve a moderada, flutuante ou persistente, com repercussões potenciais para impactar no de‑ senvolvimento da fala, da linguagem e das habilidades cogniti‑ vas. A incidência ou a prevalência da OME é aparentemente assintomática e pode não ser identificada pelos pais (e, por isso, muitas vezes não chama a atenção do médico). Epidemiologia e fatores de risco A OMA e a OME justificam aproximadamente 33% dos atendi‑ mentos pediátricos realizados nos Estados Unidos, com im‑ pactos médico, social e econômico evidentes. A incidência de EOM é responsável por uma proporção grande de consultas durante os primeiros 5 anos de vida, variando de 22% no 1º ano até 40% com 4 a 5 anos de idade: 1 consulta em 3 com diagnóstico de EOM e 5 a 10% de efusão assintomática em consultas de rotina.2 Em menores de 3 anos de idade, a OME está frequentemente relacionada a episódios de OMA, apesar da possibilidade de ocorrer sem qualquer evidência anterior de infecção aguda. Os fatores de risco são idênticos para as diversas formas de otite média (OM) e seu reconhecimento auxilia na determina‑ ção de intervenções que podem levar à sua redução: • idade: o 1º episódio de OMA antes dos 6 meses de idade é um fator preditivo de recorrência;
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• gênero: sexo masculino é fator de risco independente; • creches: a exposição a outras crianças, principalmente quan‑ do há mais de 6 delas na mesma sala, aumenta o risco de OM, particularmente em menores de 2 anos de idade; • aleitamento artificial: o aleitamento materno até o 6º mês de vida diminui a incidência de OM, enquanto o artificial, além de não conferir imunidade, propicia a ocorrência de refluxo da rinofaringe para a orelha média; • predisposição genética: maior incidência de OM em membros de uma mesma família; • anormalidades craniofaciais (síndromes de Down, de Trea‑ cher Collins, entre outras) e defeitos anatômicos e funcionais do palato (fenda palatina submucosa ou completa): em virtu‑ de da disfunção tubária; • sazonalidade: a incidência das OM aumenta nas estações frias. Também são identificados como fatores de risco a exposição ao tabagismo passivo, autismo, fatores étnicos (aborígenes, esqui‑ mós e índios americanos), prematuridade e uso de chupetas. Etiopatogênese A etiopatogênese da OM é multifatorial: disfunção da tuba au‑ ditiva, microrganismos virais ou bacterianos, alergias, altera‑ ções anatômicas ou craniofaciais predisponentes. Muitos des‑ tes fatores podem interferir na função da mucosa respiratória, associados ou não à disfunção da tuba auditiva (TA), resultan‑ do na presença de EOM. Isoladamente, a disfunção tubária (por inflamação ou por falha do mecanismo de abertura) é o fator mais importante na etiologia da doença. Crianças com efusão persistente da orelha média apresentam uma função tubária deficiente. Quando a TA não se abre (p.ex., por uma fa‑ lha do músculo tensor do véu palatino), a troca gasosa da ore‑ lha média para a microcirculação da mucosa causa uma dimi‑ nuição da pressão (pressão negativa) nessa cavidade, seguida por uma transudação de efusão (teoria do hydropsis ex vacuo). A adenoide obstruindo o tórus tubal e potencialmente infecta‑
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da com otopatógenos bacterianos (S. peumoniae, H. influenzae não tipável e M. catarrhalis) pode ser coadjuvante na obstru‑ ção da TA. A obstrução da TA é comum em meninas na puber‑ dade (relacionada com alterações hormonais), e a disfunção da TA também pode estar associada com a obesidade e com a apneia obstrutiva do sono em crianças.3 Provocações nasais com vírus como rhinovirus e influenza A também podem resultar em obstrução da TA.4 A OME é fre‑ quentemente encontrada após um episódio de OMA, que habitualmente é precedido por uma infecção das vias aéreas superiores (IVAS). A IVAS determina edema da mucosa respi‑ ratória da rinofaringe e da TA que, ao se fechar, aumenta a pressão da orelha média, favorecendo a aspiração de micror‑ ganismos (vírus e bactérias) desde a rinofaringe até a orelha média. Quando ocorre uma pressão negativa muito intensa (p.ex., propiciada pela aterrissagem de avião ou em mergu‑ lhos), ocorre o barotrauma, causando a barotite. Diagnóstico É primordial estabelecer o diagnóstico diferencial entre OMA e OME. A OME é diagnosticada pela presença de EOM, com au‑ sência dos sinais e sintomas de uma infecção aguda (abaula‑ mento e hiperemia da membrana timpânica, febre e otalgia) que caracterizam a OMA. A doença apresenta-se desde uma forma silenciosa, com hipoacusia condutiva leve e não percep‑ tível pelo paciente, até uma hipoacusia mais importante, acompanhada ou não de zumbido e instabilidade do equilíbrio. A anamnese da criança com OME geralmente contribui pouco para o diagnóstico. Crianças pequenas ficam mais irri‑ tadas, levam a mão à orelha, costumam não atender quando chamadas, apresentam desatenção, alteração do sono, dificul‑ dades na escola e atraso no desenvolvimento motor, caracteri‑ zando um quadro de interpretações variadas, geralmente não relacionadas à OME. Crianças maiores em geral aumentam o volume da televisão e falam mais alto. Entretanto, em aproxi‑ madamente 50% dos casos de OME, não há queixas específi‑ cas das crianças nem dos pais. A pneumo-otoscopia é a ferramenta ideal no diagnóstico da OME, não só para avaliar a mobilidade da membrana timpâni‑ ca (MT) que está diminuída, mas também para visualizar o ní‑ vel líquido ou hidroaéreo na orelha média. Dependendo do es‑ tágio mais ou menos avançado da OME, a MT pode estar mais espessada, com menor translucidez e mobilidade, com au‑ mento da vascularização radial (Figuras 1 a 3). Estágios ainda mais avançados da doença podem exibir graus variados de re‑ tração ou mesmo atelectasia da MT. A realização de exames audiométricos é essencial. Depen‑ dendo da faixa etária, varia o tipo de avaliação auditiva: em crianças menores, uma audiometria comportamental; em ou‑ tras faixas etárias, é importante estabelecer o limiar auditivo com audiometria tonal e vocal. A imitanciometria (timpano‑ metria), indicada para todas as idades, é um método objetivo para avaliar a mobilidade da MT e a função tubária. Timpano‑ gramas do tipo B e C (traçado plano ou achatado) configuram o diagnóstico de OME.5 A pesquisa do reflexo do músculo do estapédio também é útil, pois sua ausência pode ser indicativa
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Figura 1 Membrana timpânica normal.
Figura 2 Barotrauma (barotite).
Figura 3 OME.
de efusão e de comprometimento timpanossicular. A intensi‑ dade da hipoacusia pode ser avaliada pela audiometria tonal. Perdas auditivas > 30 dB são consideradas suficientes para justificar intervenção. Diminuição de 30 dB significa que os sons da conversação normal são percebidos como sussurros.
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Os testes audiométricos são essenciais para orientar na esco‑ lha entre condutas expectantes e/ou intervencionistas. Tratamento e prognóstico A história natural da OME, na maioria da vezes, é de boa evo‑ lução; a efusão desaparece espontaneamente, sem interven‑ ção ativa. Contudo, quanto mais tempo persistir a efusão, me‑ nor será a chance de resolução e maior a possibilidade de intensificar a hipoacusia condutiva, causando alterações es‑ truturais da MT. Decisões quanto à abordagem da OME de‑ pendem da duração e da lateralidade (uni ou bilateral) da doença, junto com a gravidade e a natureza dos sintomas as‑ sociados. É importante identificar crianças com fatores de ris‑ co para problemas de fala, linguagem e aprendizado (hipoacu‑ sia sensorioneural, variações no espectro do autismo, síndrome de Down, anormalidades craniofaciais, fenda palati‑ na, atraso no desenvolvimento, alterações visuais) e proceder a avaliação da audição para intervenção mais precoce. A conduta na OME em crianças sem os fatores de risco cita‑ dos e sem sintomatologia significativa deve ser expectante, pois 75 a 90% dos casos se resolvem em 3 meses. Nesse perío‑ do, os pais são informados sobre uma diminuição temporária da audição. A monitoração da audição deve ser realizada tam‑ bém nos casos em que a OME persistir por mais de 3 meses ou a qualquer momento em que houver suspeita de atraso no de‑ senvolvimento da linguagem, problemas de aprendizado ou hipóteses de hipoacusia. Algumas crianças com OME têm risco aumentado para de‑ senvolverem alterações estruturais na MT, quando a pressão negativa na orelha média predispõe à bolsa de retração, à ate‑ lectasia e até ao colesteatoma. Essas alterações devem ser evi‑ tadas ao monitorar a evolução da doença e seguindo as condu‑ tas apresentadas na Tabela 1, que traz um sumário das diretrizes propostas pela Academia Americana de Otorrinola‑ ringologia para a prática clínica sobre a indicação dos tubos de ventilação nas crianças.6 Terapias médicas, como uso de antibióticos, descongestio‑ nantes sistêmicos, corticosteroides orais e anti-histamínicos, não são indicadas no tratamento da OME. Fica evidente que, se a criança tiver um quadro de base, por exemplo uma alergia respiratória, ela terá necessidade de tratar essa condição, pois o paciente precisa ser visto de um modo holístico. No entanto, os fármacos citados não são indicados no tratamento per se da OME. Ensaios clínicos randomizados não mostraram benefí‑ cio da administração de corticosteroides, quando comparados com placebo.7 Os efeitos colaterais potenciais da administra‑ ção de corticosteroides sistêmicos no tratamento da OME não justificam seu uso de rotina nessa entidade. Os fármacos mais populares no tratamento da OME são os descongestionantes nasais e orais, isoladamente ou em combinação com anti-his‑ tamínicos pelo conceito que eles reduzam a congestão da mu‑ cosa da TA. Entretanto, Cantekin et al. estudaram 553 crian‑ ças com OME em estudo randomizado, duplo cego, controlado por placebo com a administração da combinação de descon‑ gestionante oral e anti-histamínico que mostrou não haver efi‑ cácia com esses fármacos.8
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Quando há persistência da OME monitorada pela otosco‑ pia e pela avaliação audiométrica, preconiza-se o tratamento cirúrgico. A cirurgia compreende a timpanotomia, com aspira‑ ção da secreção da orelha média e a colocação de tubo de tim‑ panostomia, também conhecido como tubo de ventilação (TV), que poderá ser feita com ou sem a adenoidectomia.9,10 A inserção do TV é um procedimento fundamental na restaura‑ ção da pressão adequada na orelha média, na evacuação da se‑ creção e na restauração da audição, diminuindo os riscos para alterações do desenvolvimento da fala, da linguagem e de ha‑ bilidades cognitivas. A colocação dos TV melhora significati‑ vamente a audição, reduz a prevalência da efusão e reduz a in‑ cidência de episódios agudos de OMA, sendo uma via excelente para drenagem de secreção e também de adminis‑ tração de antibiótico tópico, quando necessário. Os TV melho‑ ram a qualidade de vida nas crianças com OME, a recorrência de OMA ou ambas. A associação da adenoidectomia com a in‑ serção dos TV é realizada quando a OME está associada com obstrução nasal importante por hiperplasia das adenoides ou até mesmo quando a adenoide funciona como um reservató‑ rio de microrganismos (p.ex., biofilmes e persistência intrace‑ lular de bactérias) que impactaria diretamente da rinofaringe para a TA em direção à orelha média.11,12 Crianças que necessi‑ tam de uma segunda colocação de TV devem ter suas adenoi‑ des removidas, independentemente do seu tamanho. Reforçando as indicações cirúrgicas, há 3 tipos de crianças que são candidatas melhores para a colocação do TV: 1. Grupo 1 – crianças suscetíveis com problemas anatômicos que causem a otite média: fenda palatina, alterações faciais como síndrome de Down, Treacher Collins, disostoses craniofaciais, imunodeficiências, certas populações (esqui‑ mós, aborígenes, índios americanos). 2. Grupo 2 – crianças sob o risco de atraso na fala, na linguagem, no aprendizado ou no desenvolvimento como decorrência da EOM; crianças que têm um risco maior de atraso ou transtor‑ no do espectro do autismo ou transtorno global do desenvol‑ vimento, cegueira ou comprometimento visual grave. 3. Grupo 3 – crianças que sofrem de qualidade de vida baixa ou com estado de saúde funcional inadequado: transtorno do sono, sofrimento emocional, limitações na atividade, proble‑ mas escolares e efeitos adversos ao tratamento.13 Nos casos de alterações estruturais da MT (atelectasia e bolsas de retração), a colocação do TV é obrigatória. Se houver evolu‑ ção para um colesteatoma, a timpanomastoidectomia deve ser, então, considerada. O tratamento medicamentoso ou cirúrgico pode não curar definitivamente a OME em alguns poucos casos, mas apenas a controlar. Nessas situações especiais, a cura definitiva ocorre com o desenvolvimento e a maturação da TA e do sistema imune. Considerações finais A OME é uma inflamação da mucosa da orelha média com a presença de efusão retrotimpânica, sem sinais ou sintomas de infecção aguda e com MT íntegra. Pode se manifestar de for‑
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Otite Média com Efusão •
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Tabela 1 Sumário das afirmações propostas pelas diretrizes para colocação dos tubos de ventilação6 Afirmações
Ação
Força
OME com duração curta
Os médicos NÃO devem colocar TV em crianças que apresentaram somente 1 episódio de OME com duração < 3 meses
Recomendação (contra)
Teste de audição
Os médicos devem obter testes para avaliar a audição (adequados à idade), caso a OME persista por mais de 3 meses (com a OME crônica) OU antes da cirurgia, quando a criança for candidata à colocação do TV
Recomendação
OME crônica bilateral, com dificuldade auditiva
Os médicos devem indicar a colocação de TV bilateral em crianças com OME bilateral com duração > 3 meses (OME crônica) e dificuldades auditivas documentadas
Recomendação
OME crônica com sintomas
Os médicos devem colocar TV em crianças com OME uni ou bilateral com duração ≥ 3 meses (OME crônica) e com sintomas que podem ser atribuídos à OME, os quais incluem, mas não são limitados a: problemas de equilíbrio (vestibulares), baixo desempenho escolar, problemas de comportamento, desconforto no ouvido e qualidade de vida reduzida
Opcional
Vigilância para a OME crônica
Os médicos devem reavaliar com intervalo de 3 a 6 meses as crianças com OME que não receberam TV, até que a efusão não esteja mais presente, ou quando uma perda auditiva importante for detectada, ou se suspeitar de anormalidades estruturais da membrana timpânica ou da orelha média
Recomendação
OMA recorrente sem fluido na orelha média
Os médicos NÃO devem colocar TV em criança com OMA recorrente que não tenha efusão ou fluido na orelha média na hora de avaliá-la como candidata para a cirurgia
Recomendação (contra)
OMA recorrente com fluido na orelha média
Os médicos devem indicar TV bilateral em crianças com OMA recorrente que apresentem, na hora da avaliação para a cirurgia, efusão ou fluido uni ou bilateral da orelha média
Recomendação
Crianças com risco
Os médicos devem determinar se uma criança com OMA recorrente ou com OME, com qualquer duração, esteja com um risco aumentado para fala e linguagem ou com problemas de aprendizado escolar decorrentes da otite média, por conta de fatores sensoriais, físicos, cognitivos ou comportamentais
Recomendação
Crianças em situação de risco para serem colocados TV
Os médicos devem colocar TV em crianças com risco para OME uni ou bilateral que não parece ter resolução rápida, como na apresentada no timpanograma tipo B (achatado) ou na persistência de efusão por mais de 3 meses (OME crônica)
Opcional
No período perioperatório, os médicos devem educar os pais e os cuidadores das crianças que irão colocar TV sobre a duração estimada da função do tubo, recomendando agendar um seguimento das consultas e detecção das complicações possíveis
Recomendação
Otorreia aguda através do TV
Os médicos devem prescrever antibióticos somente sob a forma de gotas tópicas para ouvido, sem necessidade de antibióticos por via oral, para as crianças que apresentarem otorreia aguda não complicada, através do TV
Recomendação forte
Precauções com a água
Os médicos NÃO devem encorajar, de rotina, precauções profiláticas com relação à água (como o uso de tampões de orelha, bandanas ou toucas de banho para cobrir as orelhas, ou evitar a natação ou esportes aquáticos) para as crianças que têm TV
Recomendação (contra)
Educação pré ‑operatória
TV: tubos de ventilação.
ma silenciosa, sem sintomatologia aparente e ter uma boa istória natural, com resolução espontânea, que ocorre na h maioria das vezes. Entretanto, é necessário ficar atento à per‑ sistência ou ao aumento da hipoacusia, bem como às altera‑ ções estruturais da MT, como retração e atelectasia. A otoscopia pneumática é fundamental para o diagnóstico diferencial entre OMA e OME. Nos casos pouco sintomáticos, o tratamento é inicialmente expectante, sem a necessidade de fármacos por via oral. Entretanto, em situações específicas (como alterações da audição e da estrutura da MT), deve ser preconizado o tratamento cirúrgico da OME com miringoto‑ mia e colocação de tubo de ventilação com ou sem adenoidec‑ tomia.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender que a OME é resultado de um continuum da OMA silenciosa. • Saber que a otoscopia, após um episódio de OMA, demora para ficar normal. • Fazer a suspeita diagnóstica por meio de alterações auditivas com reflexo no comportamento e na irritabilidade. • Saber que exames de avaliação auditiva são essenciais. • Reconhecer as crianças que fazem parte do grupo de risco para a OME (Down, disostoses craniofaciais). • Saber da história natural favorável com conduta expectante na maioria dos casos. • Reservar o tratamento cirúrgico (colocação de tubos de ventilação) para alterações específicas da audição e para alterações estruturais da membrana timpânica.
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CAPÍTULO 5
DISTÚRBIOS DA ORELHA EXTERNA Manoel de Nóbrega
Introdução Neste capítulo, serão abordadas as principais doenças infeccio‑ sas da orelha externa. Também serão apresentados os dados publicados no Clinical Pratice Guideline: Acute Otitis Externa, su‑ plemento da Academia Americana de Otorrinolaringologia e Ci‑ rurgia de Cabeça e Pescoço, de 2014.1 Otite externa aguda difusa A otite externa aguda (OEA) é definida como uma inflamação difusa do conduto auditivo externo (CAE), podendo envolver o pavilhão auricular e/ou a membrana timpânica (MT). A doença é de rápida instalação, geralmente em 48 horas. O principal sintoma é a dor de ouvido intensa (70% dos casos) que piora com a manipulação do pavilhão, com a abertura e fe‑ chamento da boca ou com a colocação do espéculo auricular. Pode ser acompanhada de prurido (60%) ou sensação de ple‑ nitude auricular (22%). Pode ocorrer perda auditiva (32%) quando existe otorreia. Com a evolução do processo, pode ocorrer estenose do CAE, adenopatia e abaulamento do pavi‑ lhão auricular simulando otomastoidite aguda. A etiologia da OEA é multifatorial. A limpeza regular do CAE remove o cerume, importante barreira contra a umidade e a infecção. O cerume cria um pH levemente ácido que inibe a infecção, especialmente pelo P. aeruginosa. É mais frequente no verão, em regiões de clima quente. As causas locais são maceração cutânea (“limpeza” do CAE), la‑ var o CAE com sabonete (modificando o pH do CAE), alta umidade, tempo quente, aumento do tempo de exposição na água (nadadores regulares – “orelha de nadador”), retenção de água no CAE por cerume, otorreia crônica das otites médias crônicas, persistência de corpo estranho, utilização prolongada de gotas otológicas e usuários de aparelhos de amplificação sonora individuais. É caracterizada por hiperemia difusa, edema e aparecimento de exsudato purulento (Figuras 1 e 2). Ocorre celulite da epider‑ me e da derme do CAE com inflamação aguda e edema variável.
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Em 2007, ocorreram 2,4 milhões de consultas médicas por OEA nos Estados Unidos (8,1 consulta por cada 1.000 habi‑ tantes), sendo menos da metade em crianças de 5 a 14 anos de idade.2 Cerca de 98% das OEA nos Estados Unidos são causadas por bactérias. As bactérias mais comuns são Pseudomonas aeruginosa (20 a 60% de prevalência), Staphylococcus aureus (10 a 70%) e as infecções polimicrobianas. Outros patógenos in‑ cluem outros Gram-negativos além do P. aeruginosa, responsá‑ veis por 2 a 3% dos casos.3,4 O envolvimento por fungos é muito raro na OEA primária; é mais comum ocorrer na otite externa crônica, após tratamento prolongado com gotas otológicas e, menos frequentemente, após antibioticoterapia s istêmica. O tratamento antibiótico tópico é o tratamento de escolha. Os antibióticos de uso sistêmico têm ação bastante limitada. Apesar disso, cerca de 20 a 40% dos pacientes com OEA rece‑ bem antibiótico sistêmico, associado ou não ao tratamento tó‑ pico otológico. Os antibióticos sistêmicos geralmente escolhi‑ dos costumam não funcionar contra P. aeruginosa e S. aureus, além de poderem causar efeitos colaterais e/ou causarem au‑ mento da resistência bacteriana. A resistência bacteriana é bem menos comum no trata‑ mento tópico otológico em virtude da alta concentração da droga no CAE, geralmente erradicando todos os microrganis‑ mos suscetíveis. A concentração da droga sistêmica no sítio de lesão é consideravelmente muito menor quando compara‑ da com a obtida com a droga tópica otológica. As medidas preventivas incluem: remoção do cerume obs‑ trutivo; acidificação do CAE antes e depois de nadar (p.ex., utili‑ zando solução de ácido acético a 2% ou ácido bórico); secar o CAE utilizando secador de cabelo; usar protetores auriculares (no caso de nadadores regulares); e evitar o trauma do CAE. Diagnóstico diferencial Os diagnósticos diferenciais mais comuns de otalgia e otorreia são: dermatoses do CAE (dermatite atópica e dermatite sebor‑
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reica), otite externa aguda localizada (furunculose), otite ex‑ terna vírica, síndromes da articulação temporomandibular, doenças dentárias, tonsilites, abscessos peritonsilares, abs‑ cessos retrofaríngeos, processo estiloide alongado, otite mé‑ dia crônica colesteatomatosa e otorreia em pacientes com tubo de ventilação. Otite externa eczematosa Reação de hipersensibilidade alérgica da pele do pavilhão au‑ ricular e/ou CAE. É desencadeado por medicamentos tópicos (antibióticos como a neomicina e sulfonamídicos), tinturas, xampus, sabonetes, brincos e alergia alimentar. O sintoma principal é o prurido auricular, às vezes, associa‑ do à otorreia. Raramente existe otalgia. Quando presente, de‑ ve‑se suspeitar de infecção secundária. Ao exame otoscópico, observa‑se descamação em grande quantidade, às vezes, pele úmida com secreção ou cerume. A pele do CAE pode estar hi‑ peremiada, com edema, cianótica ou com pequenas fissuras. Otite externa aguda localizada A dor geralmente é de média intensidade, que piora com a ma‑ nipulação da região afetada e com a movimentação do pavi‑ lhão auricular. É o furúnculo de CAE: comprometimento de um ou mais folículos pilosos, localizados no terço externo, geralmente por S. aureus.
Inicia‑se com edema e hiperemia localizada junto ao(s) folículo(s) envolvido(s), podendo assumir coloração amarela‑ da quando há coleção purulenta, envolta por halo hiperêmico. Na maioria das vezes, a doença é autolimitada, evoluindo espontaneamente para a cura. O tratamento pode ser feito com calor local, incisão e drenagem nos casos mais graves, as‑ sociados a antibióticos sistêmicos com cobertura para S. aureus, agente etiológico mais comum. Otite externa vírica A infecção viral do CAE causada pela varicela, pelo sarampo ou pelo herpes vírus é rara, mas é um importante diagnóstico diferencial das OEA. O herpes zóster oticus (síndrome de Ramsay‑Hunt) causa vesículas no pavilhão que podem se estender pelo CAE. O diagnóstico diferencial é feito com lesão pelo herpes zóster que acomete a orelha externa sob a forma de vesículas no pavi‑ lhão e também CAE, otalgia intensa, paresia ou paralisia facial periférica, perda da gustação dos 2/3 anteriores da hemilín‑ gua e diminuição do lacrimejamento ipsilateral por compro‑ metimento do nervo facial e, em raras instâncias, comprome‑ timento do ramo vestibular do nervo cocleovestibular. O tratamento é feito com drogas antivirais sistêmicas e cor‑ ticosteroide sistêmico.5 Erisipela Celulite aguda superficial causada pelo estreptococo beta‑he‑ molítico do grupo A. A pele apresenta coloração vermelho bri‑ lhante, bem demarcada (Figura 3). O tratamento é feito com antibióticos por via oral ou endovenosa, se a resposta for insu‑ ficiente. Otomicose São infecções causadas por fungos no CAE. Podem ser infec‑ ções primárias ou superpostas à infecção bacteriana. São mais frequentes em países de clima tropical e subtropical, em con‑ sequência do calor e da umidade. Podem ser causadas tam‑
Figura 1 Otite externa aguda difusa. Note hiperemia e edema de todo o conduto externo (seta grande) e a presença do exsudato (seta pequena).
Figura 2 Otoscopia do conduto auditivo externo (CAE) mostrando hiperemia, edema e otorreia purulenta.
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Figura 3 Erisipela do pavilhão auricular.
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Distúrbios da Orelha Externa •
bém pelo uso indiscriminado de gotas otológicas de antibióti‑ cos e contato com a água. São pacientes de risco os portadores de diabete melito, HIV, imunodeficiências, pacientes em uso de terapia imunossu‑ pressora ou de antibióticos de largo espectro. O principal sintoma é o prurido auricular. Não raramente, esse prurido transforma-se em otalgia, de graus variáveis. O paciente pode referir também sensação de “ouvido tapado” e hipoacusia. Os agentes mais comuns são as espécies de Aspergillus (60 a 90%) e de Candida (10 a 40%). À otoscopia, observa-se presença de descamação epitelial e colônias de fungos, de cores variáveis (branco, semelhante ao algodão, sugere Candida albicans; marrom sugere Aspergillus fumigatus; preto sugere Aspergillus niger) (Figura 4).6 O tratamento inclui limpeza do CAE e utilização de anti‑ fúngicos tópicos (raramente usam-se antifúngicos sistêmicos ou associados). Antibioticoterapia tópica está contraindicada. Otite externa maligna Também chamada de otite externa necrotizante, é uma infec‑ ção agressiva do CAE que afeta predominantemente idosos, pacientes diabéticos e imunocomprometidos.7 Em mais de 90% dos casos, é causada pelo Pseudomonas aeruginosa. Ini‑ cia-se pelo CAE, mas pode causar osteomielite da base do crâ‑
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nio e invadir partes moles, orelha média, orelha interna e cére‑ bro. A paralisia facial periférica é um dos sinais mais precoces, podendo envolver também o nervo glossofaríngeo e o nervo espinal acessório. A presença de tecido de granulação é classi‑ camente vista na junção da porção cartilaginosa com a óssea do CAE. O tratamento inclui debridamento cirúrgico do tecido de granulação e antibióticos sistêmicos com cobertura para infec‑ ções causadas por pseudomonas e estafilococos. Miringite bolhosa Presença de vesículas ao nível da MT, de etiologia viral, mas que, em muitas vezes, se acompanha de infecção bacteriana secundária. O tratamento inicialmente é feito com calor local e analgésicos por via oral. A associação de anti-inflamatórios não hormonais e antibióticos tópicos e/ou sistêmicos depen‑ de da evolução do quadro. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer os diferentes tipos de otite externa. • Saber reconhecer a otite externa difusa e diferenciá-la das otites médias agudas supuradas. • Fazer o diagnóstico diferencial entre as diferentes otites externas. • Instituir corretamente o tratamento clínico para as diferentes otites externas.
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7. Figura 4 Otomicose: as setas apontam as colônias de fungos dentro do conduto auditivo externo (CAE).
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CAPÍTULO 6
SÍNDROME DO RESPIRADOR ORAL Renata C. Di Francesco
Introdução A respiração oral é um sintoma comum na infância, em geral, consequente à obstrução nasal crônica. A mudança do padrão respiratório induz adaptações fun‑ cionais que têm sido associadas a desvios do padrão de cresci‑ mento dentocraniofacial, além de repercussões sistêmicas como maior frequência de infecções das vias aéreas superiores (IVAS) e distúrbios do sono. Outro fator de controvérsia é definir o que é respiração oral. Sabe-se que a respiração exclusivamente oral é rara e sua de‑ terminação é bastante subjetiva. Há pacientes com obstrução nasal e, portanto, respiração oral, e outros apenas com o hábi‑ to ou postura de boca aberta, o que atrapalha a mensuração desse sintoma.1 É imprescindível, assim, o diagnóstico da cau‑ sa da obstrução nasal.
O desenvolvimento do maciço facial resulta da interação de diversos fatores, tanto sistêmicos (genéticos, endócrinos, me‑ tabólicos e comportamentais) quanto locais (dentição, hábi‑ tos inadequados, como uso de chupeta e sucção de dedo, alte‑ rações musculares e respiração).4 As características faciais são determinadas geneticamente. Assim, determinam-se os tipos faciais que vão receber in‑ fluência das funções orofaciais (respiração, mastigação e de‑ glutição), que devem ser preservadas, de modo a garantir um desenvolvimento craniofacial harmonioso. Qualquer altera‑ ção funcional nas crianças resulta em distúrbios do cresci‑ mento. O crescimento da face é completado em idade precoce. Ses‑ senta por cento do crescimento craniofacial ocorre durante os 4 primeiros anos, e 90% até os 12 anos. O desenvolvimento da mandíbula completa-se por volta dos 18 anos de idade.4 Epidemiologia A respiração oral gera sinais diferentes, ativando sistemas A respiração oral é muito comum e está presente em 25 a 50% distintos para o estímulo do crescimento, podendo resultar em das crianças entre 8 e 10 anos.1,2 Descrevem-se como princi‑ uma variação morfológica da face. Há íntima relação entre os pais causas: rinite alérgica (81,4%), aumento de tonsilas farín‑ componentes funcionais e estruturais na cabeça e no pescoço. geas (79,2%), aumento de tonsilas palatinas (12,6%) e desvio O indivíduo com respiração oral apresenta um crescimento de septo nasal obstrutivo (1%), em uma coorte que investigou desarmônico da face, o que resulta em típicas características crianças de 3 a 9 anos de idade.3 faciais: Chedid et al.2 encontram uma prevalência de cerca de 26% • maxila atrésica; entre crianças de 5 e 6 anos de idade, por meio de questionário • protusão de incisivos superiores; aplicado a pais de pré-escolares. • mordidas aberta e cruzada; • eversão de lábio inferior; Repercussões da respiração oral • lábio superior hipodesenvolvido; Distúrbios do crescimento craniofacial • narinas estreitas; A falta da respiração nasal em crianças resulta em aumento da • hipotonia da musculatura perioral. resistência nasal e, consequentemente, respiração oral, o que prejudica sobremaneira a harmonia do desenvolvimento den‑ Alterações craniofacias tocraniofacial. Sugere-se que a obstrução nasal e a consequente suplência por Grande parte do desenvolvimento da face ocorre após o respiração oral resultem em alterações posturais que alteram o nascimento da criança. O crescimento pós-natal ocorre em crescimento e o desenvolvimento craniofacial: posição mais bai‑ conjunto com o desenvolvimento de funções fisiológicas bási‑ xa da língua e da mandíbula e elevação da posição da cabeça. Se cas, como a respiração nasal e a alimentação. a postura da mandíbula e da língua rebaixadas for mantida du‑
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Síndrome do Respirador Oral •
rante o crescimento, pode alterar a relação dos arcos dentários, causando um aumento da altura facial inferior e palato estreito. Segundo Enlow e Hans, a patência da via aérea é funda‑ mental para o desenvolvimento da face e crescimento e desen‑ volvimento do complexo nasomaxilar.4 A passagem do ar pro‑ move a reabsorção óssea na parte interna das fossas nasais e a deposição óssea na parte externa, contribuindo para o rebai‑ xamento do palato duro. Quando a respiração oral se torna habitual, diversas mu‑ danças posturais podem ocorrer, gerando alterações neuro‑ musculares, esqueléticas e dentárias. Para se criar uma passa‑ gem de ar pela boca, os lábios tornam-se entreabertos, a mandíbula é mantida em uma posição inferior e a língua é des‑ locada para baixo e para frente. Se a boca é mantida aberta durante um longo período, é possível que o crescimento da mandíbula seja levado a uma rotação maior para baixo e para trás, o que permite a irrupção contínua dos dentes posteriores e o crescimento alveolar excessivo. Está instalada a mordida aberta esquelética. Isso decorre da falta de contato entre os dentes superiores e inferiores durante a deglutição, que deve‑ ria acontecer cerca de mil vezes por dia. Os músculos supra‑ -hióideos contraem-se, enquanto o masseter, o pterigóideo in‑ terno e o temporal ficam relaxados, dificultando o fechamento da mandíbula. O crescimento alveolar e a irrupção dentária ir‑ restritos inibem, cada vez mais, a volta da mandíbula à sua po‑ sição original, perpetuando as modificações craniofaciais. Alterações dentárias
Dentre os pacientes com obstrução nasal, há uma maior pre‑ valência de classe II dentária de Angle, atresia maxilar, além de maior frequência de mordida aberta, principalmente na pós-puberdade. No momento da instalação da obstrução nasal, a gravidade e a duração dessa obstrução, associada ao tipo de padrão fa‑ cial, são muito importantes na gravidade das consequências sobre a morfologia craniofacial e oclusal. Alterações musculares
A postura de boca aberta e o rebaixamento da língua para pas‑ sagem do ar na via bucal não permitem que haja o contato adequado da língua com o palato, gerando uma descompensa‑ ção das forças musculares orofaciais. Associadas às alterações esqueléticas dentocraniofaciais, há repercussões musculares, referentes à hipotonia da muscu‑ latura perioral. Assim, instalam-se distúrbios das funções de fala, deglutição e mastigação. Analisando-se as funções de de‑ glutição e mastigação, observa-se que elas se encontram alte‑ radas na maioria das crianças com hiperplasia adenotonsilar; 90,35% e 82,3% respectivamente. Com a correção do distúr‑ bio respiratório, há uma melhora importante dessas funções. No 3º mês pós-operatório, 64,5% apresentavam alteração da deglutição e 67,7% de mastigação, sem nenhuma intervenção fonoaudiológica.5 Acredita-se que, conforme o indivíduo cresce, se a obstru‑ ção nasal não for tratada e o padrão respiratório não se norma‑ lizar, poderá ocorrer um agravamento desse padrão vertical de
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crescimento da face. Esses dados são de grande importância clínica, já que, ao se avaliar um paciente em relação ao seu pa‑ drão respiratório (presença ou não de obstrução nasal, sua causa e tempo de instalação) e sabendo a diferença que o pa‑ drão facial individual representa, tem-se condições de fazer um plano de tratamento com mais segurança. Distúrbios sistêmicos A conexão entre distúrbio respiratório do sono e respiração oral é clara.3 A causa mais comum na faixa etária pré-escolar é o aumento das tonsilas faríngea e palatinas, e varia desde o ronco primário até a apneia obstrutiva do sono, com pico entre 2 e 6 anos de idade.6 A apneia obstrutiva do sono tem prevalência descrita na li‑ teratura de 1 a 2%7 em crianças e pode estar associada a défi‑ cits de crescimento, enurese secundária, cor pulmonale, dis‑ túrbios de comportamento, problemas neurocognitivos, pobre desempenho escolar e infecções repetidas do trato respirató‑ rio superior.6 Os problemas no desempenho escolar relacionam-se a défi‑ cit nas funções executivas e há, ainda, déficits no comporta‑ mento e regulação emocional, desempenho acadêmico e pro‑ blemas na atenção seletiva e sustentada; crianças menores de 5 anos podem apresentar enurese. Déficit de crescimento A obstrução das vias aéreas superiores, quando grave e asso‑ ciada à apneia obstrutiva do sono, pode determinar déficit de crescimento. Na apneia do sono, há redução da proteína ligadora do fator semelhante à insulina, que reflete na redução da secreção do hormônio de crescimento. Nessas crianças, a secreção de hor‑ mônio de crescimento é afetada, embora elas apresentem por‑ centagem normal de sono de ondas lentas (estágio do sono em que o hormônio é secretado) e episódios de obstrução das vias aéreas durante o sono REM.7 Vários autores relatam aumento da velocidade de cresci‑ mento após o tratamento, mostrando que há uma mudança nos percentis das crianças 6 meses após a adenotonsilectomia.8 Sintomas neurocognitivos Os respiradores orais com distúrbios respiratórios do sono ge‑ ralmente não apresentam sonolência diurna, e sim sintomas como hiperatividade, comportamento rebelde, agressividade, isolamento social e problemas de aprendizado e atenção.9 Um grande estudo norte-americano demonstrou apneia obstruti‑ va do sono em 18% das crianças, com notas 10% piores no primeiro ano escolar (idade de cerca de 6 anos), havendo me‑ lhora significativa após adenotonsilectomia. Há déficits espe‑ cíficos no aprendizado e em processos mentais em crianças com apneia do sono.9 Apesar da visão tradicional de que o ronco habitual ou ron‑ co primário é uma condição benigna, recentemente pode-se demonstrar que essas crianças também têm um risco aumen‑ tado para déficit neurocomportamentais. Observa-se grande melhora desses sintomas após a adenotonsilectomia.
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Problemas cardiovasculares As alterações cardiovasculares já foram comprovadas em inú‑ meros estudos e ocorrem de forma subclínica na maioria das vezes, o que realça a importância de um método de triagem nas crianças com apneia obstrutiva do sono. A apneia não tratada na infância pode resultar em hipertro‑ fia ventricular direita, cor pulmonale e hipertensão sistêmica. Há redução da fração de ejeção (< 35%) em 37% das crianças menores de 7 anos com OSAS clinicamente diagnóstica, sem evidência clínica de hipertensão pulmonar.8 Estudos mostram que as crianças com apneia obstrutiva do sono apresentam uma pressão diastólica mais alta do que crianças com ronco primário. O grau de elevação da pressão arterial está relacionado com a gravidade da apneia do sono. Muitos fatores podem estar associados à elevação da pressão arterial, particularmente a ativação do sistema nervoso simpá‑ tico secundária a despertares ou interrupção do sono, e de me‑ nor importância à hipoxemia, que é estímulo para vasocons‑ trição do leito pulmonar.8 Infecções de repetição Há uma significativa correlação entre otites médias aguda e secretora com a obstrução nasal. Sintomas como roncos, obs‑ trução nasal e respiração oral estão fortemente associados à otite média secretora e IVAS.10 A otite média com efusão (secretora) afeta entre 50 e 80% das crianças com obstrução das vias aéreas superiores aos 5 anos de idade. A criança apresenta perda auditiva, problemas no desenvolvimento na linguagem e distúrbios escolares e de comportamento. Rinossinusites são comuns no respirador oral. Dentre os principais fatores de risco das rinossinusites em crianças está o aumento da tonsila faríngea e a carga de bactérias nela pre‑ sente, anormalidades nasossinusais, incluindo-se desvio sep‑ tal, atresia de coanas, além da rinopatia alérgica e das imuno‑ deficiências. As infecções do trato respiratório inferior também são fre‑ quentes em crianças respiradoras orais. Essas crianças frequentemente usam drogas antibióticas e respiratórias (cor‑ ticosteroides tópicos, sistêmicos, anti-histamínicos) e apre‑ sentam um consumo maior dos recursos de saúde, principal‑ mente os menores de 5 anos. Isso se deve ao número de internações, frequência a serviços de emergências e a especia‑ listas, e grande uso de medicamentos, em sua maior parte pe‑ las infecções de repetição. Crianças submetidas à adenotonsi‑ lectomia reduzem o custo anual em 20%.10 Tratamento O tratamento clínico ou cirúrgico do paciente com respiração oral deve ser iniciado pela causa da obstrução respiratória. A identificação da causa da obstrução e seu tratamento devem
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ser sempre precoces, melhorando a qualidade de vida e as re‑ percussões no curto e no longo prazos. Na grande maioria das vezes, o tratamento deve ser com‑ plementado com tratamento ortodôntico e fonoaudiológico. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer a alta frequência de pacientes que apresentam respiração oral na fase pré-escolar. • Conhecer as principais causas da respiração oral. • Identificar o paciente respirador oral. • Reconhecer as principais repercussões craniofaciais, funcionais e sistêmicas da respiração oral. • Identificar, dentre os pacientes com respiração oral, aqueles que apresentam apneia obstrutiva do sono. • Identificar as causas da respiração oral e suas repercussões e saber como encaminhar o tratamento com as diversas especialidades médicas envolvidas, assim como direcionar a fonoaudiólogos e ortodontistas.
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CAPÍTULO 7
RINOSSINUSITE Eulália Sakano
Introdução A rinossinusite ocorre com frequência na criança, sendo uma das causas mais frequentes de consulta ao médico ou de ab‑ senteísmo escolar. Embora a sua incidência e prevalência não sejam bem definidas, acredita-se que afete quase 31 milhões de pessoas a cada ano.1 Está associada a vários fatores predispo‑ nentes, que podem variar dependendo da idade. Estudos pros‑ pectivos mostraram uma incidência de 6 episódios por ano de infecções virais de vias aéreas superiores (IVAS) em crianças entre 6 meses e 3 anos de idade, sendo que 8% apresentaram evolução para rinossinusite aguda bacteriana (RSAB).2 Aproximadamente 50% dos casos de rinossinusite aguda (RSA) não tratados melhoram espontaneamente, em geral, até 4 semanas do início do quadro.3,4 Definição A rinossinusite é definida como uma inflamação da mucosa nasossinusal, podendo ser classificada, de acordo com a dura‑ ção dos sintomas, em aguda (até 12 semanas), recorrente (6 ou mais episódios agudos ao ano, sem sintomas nas intercri‑ ses) e crônica (mais de 12 semanas).5 Aspectos anatômicos No recém-nascido, os seios maxilares, os seios esfenoidais e 2 a 3 células etmoidais já estão presentes, entretanto, apenas os maxilares e etmoidais têm tamanho suficiente para apresen‑ tarem rinossinusite. Aos 4 anos de idade, o seio etmoidal já está formado. O assoalho do seio maxilar atinge o mesmo ní‑ vel do assoalho da fossa nasal em torno de 7 a 8 anos de idade. Os seios frontais não estão presentes ao nascimento, mas, com o crescimento de células etmoidais anteriores em direção cranial, estarão formados em torno dos 5 anos. Os seios esfe‑ noidais estão completamente desenvolvidos aos 15 anos.6 Sinais e sintomas A rinossinusite na criança é caracterizada pela presença de 2 ou mais sintomas, sendo que um deles deve ser a obstrução/
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congestão nasal ou secreção nasal anterior/posterior. Tosse e dor/pressão facial podem estar associados.6 Ao exame endoscópico nasal, os sinais presentes devem ser: secreção mucopurulenta do meato médio e/ou edema de mucosa no meato médio e/ou pólipos nasais.5,6 Ao exame tomográfico dos seios paranasais, alterações de mucosa nasal no complexo ostiomeatal e/ou seios paranasais podem ser visualizados.5,6 Rinossinusite aguda Classificação De acordo com a European Position Paper on Rhinosinusitis and Nasal Polyps,6 pode ser classificada em RSA viral (resfria‑ do ou gripe), cujos sintomas duram até 10 dias, RSA pós-viral, em que há piora dos sintomas após 5 dias ou persistência dos sintomas após 10 dias e com menos de 12 semanas de evolu‑ ção; e RSAB, que é um pequeno grupo da RSA pós-viral em que são observados pelo menos 3 dos seguintes sintomas/si‑ nais: secreção mucopurulenta nasal e retronasal, febre (> 38°C), dor facial ou piora dos sintomas após fase inicial da evolução (Tabela 1). Diagnóstico diferencial 1. Corpos estranhos nasais e atresia de coana unilateral: sinto‑ mas geralmente unilaterais, facilmente diferenciados por meio da história clínica e do exame endoscópico nasal. 2. Rinite alérgica: em geral, não apresenta rinorreia purulenta ou febre. Tabela 1 Classificação da rinossinusite aguda RSA viral
Resfriado, gripe
RSA pós-viral
Piora após 5 dias ou persistência > 10 dias, duração < 12 semanas
RSA bacteriana
Secreção mucopurulenta nasal, febre, dor facial, piora clínica, duração < 12 semanas
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3. Adenoidite: pode ter quadro clínico muito semelhante, com
secreção nasal ou posterior, purulenta, febre ou tosse, dificul‑ tando, muitas vezes, o diagnóstico correto.
Bacteriologia As bactérias mais frequentemente encontradas na infecção si‑ nusal bacteriana aguda são Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae não tipável, Moraxella catarrhalis, Streptococcus beta-hemolítico do grupo A e S. aureus.7 Diagnóstico Para o diagnóstico da RSA na criança, a história e o exame clí‑ nico incluindo a endoscopia nasal são fundamentais e sufi‑ cientes. O exame anterior da cavidade nasal pode ser realizada com espéculo nasal ou utilizando um otoscópio com espéculo mais largo. Entretanto, a boa visualização da mucosa do mea‑ to médio ou da presença de secreção somente é conseguida com a endoscopia nasal, utilizando-se um fibroscópio rígido ou flexível, realizada de preferência após descongestionada a mucosa (Figura 1). Auxilia na identificação de hiperemia, ede‑ ma, degeneração polipoide, pólipos, crostas ou verificação da drenagem de secreção purulenta em meato médio. As culturas para diagnóstico de RSAB realizadas por en‑ doscopia nasal no nível de meato médio são pouco invasivas e associadas a menor morbidade. Entretanto, nas crianças com infecção sinusal, os resultados não apresentam equivalência com as culturas obtidas por punção antral. Embora estudos avaliando a associação entre a presença de bactéria no meato médio em crianças com IVAS e a duração dos sintomas te‑ nham mostrado que a presença de S. pneumoniae, H. influenzae ou M. catarrhalis em culturas do meato médio, obtidas por endoscopia nasal, estavam relacionadas com o tempo mais prolongado da duração dos sintomas,8 a cultura não é neces‑ sária na RSA não complicada. A radiografia simples não é recomendada para o diagnóstico da RSA em crianças.1 A interpretação de achados na radiografia deve ser feita com cuidado, pois alterações semelhantes podem ser observadas também nas RSA virais não complicadas. Em‑ bora a sinusite seja diagnosticada na maioria dos pacientes uti‑
Figura 1 Endoscopia nasal mostrando secreção no nível de meato médio.
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lizando-se apenas a história e o exame físico, incluindo a endos‑ copia nasal, pacientes com sintomas persistentes mesmo após tratamento adequado, recorrentes ou com complicações (orbi‑ tárias ou intracranianas) requerem estudos por imagem, sendo a tomografia computadorizada (TC) a modalidade de escolha.9 Tratamento Embora aproximadamente 50% das crianças com RSA evo‑ luam para cura espontânea, a antibioticoterapia é indicada para resolução mais rápida dos sintomas e para se evitar com‑ plicações orbitárias ou intracranianas. Portanto, nos casos não complicados de RSA, a utilização de sintomáticos é recomen‑ dada.6 O diagnóstico correto e o tratamento adequado são im‑ portantes para prevenir a rinossinusite recorrente ou crônica. O tratamento antimicrobiano é empírico, devendo cobrir os germes mais frequentemente encontrados na infecção sinusal aguda. Na escolha do antibiótico, deve-se também ser consi‑ derado a gravidade da doença e o uso recente de antibióticos (risco de infecção com organismos resistentes). Nas crianças com RSA não complicada, sem uso prévio de antibióticos, a amoxicilina é ainda a escolha adequada, podendo ser utiliza‑ dos também amoxicilina/ácido clavulânico e cefalosporinas. Nos casos de hipersensibilidade a qualquer desses antibióti‑ cos, azitromicina, claritromicina ou sulfametoxazol/trimeto‑ prim podem ser utilizados. A associação do corticosteroide intranasal tópico com a an‑ tibioticoterapia é recomendada no tratamento da RSA. Exis‑ tem também algumas evidências de que a utilização, em crianças maiores de 12 anos, de alta dose de corticosteroide in‑ tranasal tópico pode ser eficaz como monoterapia no trata‑ mento da RSA.6 Não existem evidências para a utilização de tratamento ad‑ juvante como descongestionantes, anti-histamínicos ou irri‑ gação nasal no tratamento da RSA.6 Complicações da rinossinusite aguda Embora não frequentes, as complicações da RSA são graves e necessitam de diagnóstico precoce e tratamento adequado. Po‑ dem ser classificadas de acordo com o acometimento em: orbi‑ tal, intracraniana e óssea (Figura 2). A complicação mais fre‑ quente é a orbitária, com disseminação da infecção através de deiscências da lâmina papirácea ou através de veias avalvulares. Na criança com edema palpebral, com ou sem proptose, com ou sem dor, com ou sem alteração da mobilidade ocular, com ou sem alteração da acuidade visual, principalmente após quadro de IVAS, a suspeita de complicação orbitária é fundamental. A TC deve ser realizada para definir a extensão da infecção e classificar o tipo de complicação, definindo o tra‑ tamento com antibiótico endovenoso. Na evidência de abs‑ cesso ou sem melhora ao tratamento após 24 a 48 horas, a in‑ dicação é de drenagem cirúrgica + antibioticoterapia. Rinossinusite crônica Definição Inflamação da mucosa nasossinusal, com duração superior a 12 semanas, caracterizada por 2 ou mais sintomas, um dos
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Rinossinusite •
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A
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Figura 2 Complicação de rinossinusite aguda. (A) Complicação orbitária direita. (B) TC de seios paranasais, em corte axial, mostrando abscesso subperiosteal direito.
quais deve ser obstrução ou congestão nasal ou secreção nasal anterior ou posterior, associados a dor facial, tosse ou altera‑ ções na endoscopia nasal ou na TC dos seios paranasais. Nas rinossinusites crônicas (RSC), alguns fatores de risco devem ser investigados, como IVAS de repetição, alergia, ade‑ noide, doenças sistêmicas (discinesia ciliar, imunodeficiência e fibrose cística), refluxo gastroesofágico e variações anatômi‑ cas da cavidade nasal (desvio septal, concha média bolhosa, variações do processo unciforme). Acredita-se que variações da anatomia do meato médio possam ocasionar, quando associados à inflamação da muco‑ sa nasal, o bloqueio dos óstios de drenagem, propiciando a manutenção da inflamação crônica da mucosa sinusal (Figu‑ ra 3). Entretanto, nas crianças, não há evidências de que anor‑ malidades anatômicas possam ter relação com a RSC.6 Apesar da pequena quantidade de estudos, a adenoide pode estar relacionada com a RSC na criança, pela retenção de secreção nasal causada pela hipertrofia adenoideana, pela presença de biofilme em sua superfície (reservatório de bacté‑ rias) ou pela falta de resposta imunológica do tecido adenoi‑ deano.6 Embora a relação entre alergia e rinossinusite recorrente ou crônica não seja definida e provavelmente não exista, em indi‑ víduos com RSC, a história de alergia está presente em torno de 80% dos casos. O mesmo não ocorre em indivíduos nor‑ mais em que a incidência de alergia ocorre em 15 a 20%. Da mesma maneira, a relação entre RSC e refluxo gastroe‑ sofágico é discutível. Entretanto, crianças com sinusites refra‑ tárias a tratamento e que apresentavam refluxo gastroesofági‑ co, quando tratadas deste, apresentaram melhora do quadro sinusal, mostrando que pode haver uma correlação entre os
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Figura 3 Endoscopia nasal com visualização de adenoide (seta) bloqueando a coana.
dois.10 Estudos mais controlados, porém, são necessários para tornar válida essa relação. Deficiência seletiva de IgA ou deficiências de subgrupos de IgG e níveis baixos de imunoglobulina devem ser investigados nos pacientes com rinossinusite recorrente ou crônica.6 A fibrose cística (FC) é uma doença hereditária cujo defeito genético resulta de anormalidades no braço longo do cromos‑ somo 7, causando alterações qualitativas ou quantitativas da proteína CFTR, reguladora do transporte transmembrana do íon cloro. Como consequência, o líquido de superfície das vias aéreas superiores e inferiores sofrem modificações, resultando na presença de muco espesso e diminuição do clearance mu‑ cociliar, que predispõem à inflamação e à infecção crônica por Staphylococcus aureus e Pseudomonas aeruginosa. A doença sinusal é uma manifestação comum nos fibrocísticos, com prevalência de 92 a 100% dos casos.11 A discinesia ciliar primária (DCP) é uma doença hereditária autossômica recessiva que apresenta infecções recorrentes do trato respiratório superior e inferior, além de infertilidade masculina. É caracterizada por anormalidades na ultraestru‑ tura dos cílios que determinam uma atividade ciliar alterada e, como consequência, alterações no clearance mucociliar. Em quase 50% dos casos, ocorre a tríade situs inversus, bronquiec‑ tasia e sinusite, conhecida como síndrome de Kartagener, que é causada pela redução ou ausência congênita da função ciliar. O diagnóstico pode ser feito pelos teste da sacarina e estudo da ultraestrutura do cílio.5 Na avaliação da rinossinusite recorrente ou crônica, a en‑ doscopia nasal e a TC dos seios da face são importantes, e o tratamento visa principalmente a determinar as causas da re‑ corrência ou da cronificação com os tratamentos específicos. A antibioticoterapia é utilizada nos episódios de agudização da sinusite crônica, devendo cobrir os mesmos germes da agu‑ da, porém com maior prevalência para o S. aureus, anaeróbios e fungos, e por tempo prolongado. Não há evidências para o
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uso de antibioticoterapia endovenosa isolada para o trata‑ mento da RSC.6 O corticosteroide tópico intranasal é considerado, como no adulto, o principal medicamento no tratamento da RSC na criança. Nos casos de falha no tratamento adequado da RSC, a indi‑ cação cirúrgica deve ser considerada: adenoidectomia com ou sem irrigação sinusal e/ou cirurgia endoscópica dos seios aco‑ metidos. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que a rinossinusite viral aguda é extremamente frequente na infância. • Saber que menos de 10% das crianças com rinossinusite aguda viral evoluem para uma rinossinusite aguda bacteriana. • Saber diferenciar a história, os sinais e os sintomas da rinossinusite aguda viral e da bacteriana. • Saber quando e como indicar a melhor terapia antimicrobiana para a rinossinusite aguda bacteriana. • Identificar os sinais e sintomas de complicações orbitárias e intracranianas. • Saber quais os fatores predisponentes para a rinossinusite na infância.
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CAPÍTULO 8
TONSILITES E FARINGITES Maria Beatriz Rotta Pereira Manuel Ruttkay Pereira Denise Rotta Ruttkay Pereira
Introdução As infecções das vias aéreas superiores (IVAS) têm prevalên‑ cia elevada e são causas comuns de consultas médicas. Dor de garganta é a 3ª maior queixa entre pacientes que procuram serviços de emergência, e as tonsilites e faringites agudas são responsáveis por aproximadamente 5% das consultas médi‑ cas. Tonsilites e faringites são IVAS de ocorrência frequente e autolimitadas. Na maioria das vezes, as crianças e os adultos recuperam-se rapidamente (3 a 4 dias), mas, ocasionalmente, podem desenvolver complicações.1-3 As infecções em tonsilas palatinas e faringe são mais fre‑ quentemente de origem viral, mas podem ser causadas por bactérias, sobretudo o estreptococo beta-hemolítico do grupo A (EBHGA), responsável pela única infecção bacteriana na garganta cujo tratamento com antibióticos está definitiva‑ mente indicado, com o objetivo de prevenir sequelas supurati‑ vas e não supurativas.1,4 Apesar da necessidade de tratamento com antibacterianos não estar presente na maioria das vezes, tonsilites e faringites são exemplos antigos de prescrição inadequada de antibióti‑ cos. A possibilidade de iatrogenias, os custos mais elevados do tratamento e, principalmente, o surgimento de cepas bac‑ terianas resistentes aos antimicrobianos são consequências óbvias do emprego desnecessário desses medicamentos.3,5 Função das tonsilas palatinas As principais funções das tonsilas palatinas são: atuar como tecido imunocompetente local, secretando imunoglobulinas nas criptas (são capazes de produzir as 5 classes de imunoglo‑ bulinas IgA, IgG, IgM, IgD e IgE) e produzindo cadeias J que completarão a estrutura molecular das imunoglobulinas A. Com isso, impedem a replicação bacteriana e viral no trato res‑ piratório superior, representando a primeira linha de defesa contra doenças infecciosas na região; posteriormente, migram para outras áreas do trato respiratório superior.6 As complicações sistêmicas das infecções tonsilares pelo EBHGA diminuíram consideravelmente após o advento da an‑
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tibioticoterapia.7 Desde então, também se reduziram as tonsi‑ lectomias por tonsilites recorrentes e crônicas. Por outro lado, aumentaram as indicações de tonsilectomia por obstrução da via aérea superior secundária à hipertrofia tonsilar.6 Incidência das tonsilites e faringites Em crianças e adolescentes, em especial naqueles em que o contato é muito próximo, como nas escolas, a transmissão ocorre por meio de gotículas de saliva, com período de incuba‑ ção de 1 a 4 dias. As infecções de origem viral correspondem a 75% dos casos em crianças menores de 3 anos e diminuem após a puberdade, tanto nos casos agudos quanto nos recor‑ rentes. Nos EUA, 15 a 30% das crianças com tonsilites e farin‑ gites agudas apresentam o EBHGA nos testes culturais. O nú‑ mero repete-se no Brasil, onde o EBHGA está presente em 24% das tonsilites e faringites em crianças entre 2 e 12 anos de idade.1,3,6,7 Etiologia Vários vírus, bactérias e alguns fungos podem causar tonsilites e faringites. Entre os vírus, os agentes mais comuns são ade‑ novírus, influenza, parainfluenza, coxsackie, vírus sincicial respiratório, herpes e vírus de Epstein-Barr (EBV). EBHGA (20 a 30 % das etiologias bacterianas), Haemophillus (15%), Moraxella (15%), Staphylococcus aureus (20%), pneumococo (1%), germes anaeróbios, clamídia e micoplasma são as bacté‑ rias envolvidas na gênese das infecções faringotonsilares. Com exceção de situações individuais, parece não haver ne‑ cessidade de diagnóstico e tratamento de tonsilites e faringi‑ tes causadas por bactérias que não o EBHGA.1,3 O Streptococcus viridans é a bactéria mais encontrada nas tonsilas palatinas de indivíduos sem infecção aguda, corrobo‑ rando a importância da flora normal da cavidade orofaríngea para a interferência bacteriana, que é a ação de certas bacté‑ rias em relação à inibição do crescimento ou aderência de ou‑ tras, potencialmente patogênicas. Nunca é demais lembrar que o uso repetido de antibióticos pode causar um desequilí‑
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brio dessa flora, além de contribuir para o aparecimento de re‑ sistência bacteriana.6 Antes dos 3 anos de idade, a prevalência das infecções bac‑ terianas de orofaringe é baixa, em virtude da proteção forneci‑ da pela IgG materna. As tonsilites e faringites por EBHGA são mais frequentes na faixa de 3 a 15 anos de idade, e a preocupa‑ ção em relação a essa etiologia deve-se ao seu potencial de causar infecções purulentas e invasivas, escarlatina, glomeru‑ lonefrite e febre reumática, sendo altamente transmissível e capaz de se disseminar rapidamente em creches e escolas.1,4-6 Aspectos da história e do exame físico podem sugerir a ori‑ gem viral ou bacteriana, infelizmente com baixa especificida‑ de e sensibilidade. Coriza, obstrução nasal, espirros, rouqui‑ dão, aftas (coxsackie ou herpes) e sintomas gastrointestinais associam-se frequentemente a doenças virais, acompanhados ou não de elevações da temperatura corpórea.1 Já a infecção por EBHGA costuma ter início súbito, febre ≥ 38°C, dor de garganta e achados no exame físico que incluem hiperemia, hipertrofia e exsudato tonsilar, junto com linfade‑ nopatia cervical anterior e subângulo mandibular dolorosa. Si‑ nais de envolvimento mais extenso das vias aéreas superiores (coriza, espirros) não costumam estar presentes nas infecções pelo estreptococo (Tabela 1).1-5 Diagnóstico É consenso que o diagnóstico da faringotonsilite estreptocóci‑ ca deve ser suspeitado por meio de dados clínicos e epidemio‑ lógicos e confirmado por exame cultural ou pelo teste rápido Tabela 1 Achados clínicos e epidemiológicos sugestivos de infecção por EBHGA ou vírus Infecção por EBHGA Dor de garganta de início súbito Idade entre 5 e 15 anos Febre Cefaleia Náusea, vômitos, dor abdominal Hiperemia faringotonsilar Exsudato faringotonsilar Petéquias no palato Linfadenopatia cervical anterior dolorosa Ocorrência no inverno ou início da primavera História de contato com indivíduo com faringotonsilite estreptocócica Exantema escarlatiniforme Infecção por vírus Conjuntivite Coriza Tosse Diarreia Rouquidão Estomatite ulcerativa Exantema viral
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de detecção do antígeno estreptocócico. Há intensa sobreposi‑ ção de sinais e sintomas entre faringotonsilites estreptocóci‑ cas e virais. Assim, a identificação das faringotonsilites por EBHGA, baseada exclusivamente em sinais clínicos, é consi‑ derada imprecisa e não recomendada. Por outro lado, doenças cursando sem febre e com a presença de conjuntivite, tosse, rouquidão, coriza, exantema e diarreia sugerem fortemente uma etiologia viral.8 O exame cultural da orofaringe é considerado o padrão-ou‑ ro para o diagnóstico de infecção por EBHGA e apresenta uma sensibilidade de 90 a 97%. Cuidado deve ser exercido para que o material seja obtido das duas tonsilas palatinas e da parede da faringe, sem tocar em outros locais da cavidade oral. A maior desvantagem do método reside no tempo necessário (20 a 48 horas) para a obtenção do resultado.1,2,4,7-9 O teste rápido de detecção do antígeno estreptocócico é um método adequado, com especificidade de 95% e sensibilidade de 75%. Dessa forma, um resultado positivo no teste rápido não exige confirmação por cultura e permite o tratamento imediato. Em crianças e adolescentes, havendo forte suspeita de infecção bacteriana, um resultado negativo com o teste rá‑ pido não exclui a etiologia estreptocócica e indica a necessida‑ de de exame cultural. Já em adultos, em razão da incidência baixa de faringotonsilite por EBHGA e do risco muito baixo de febre reumática subsequente, o resultado do teste rápido ne‑ gativo costuma ser suficiente. Essa técnica oferece extrema ra‑ pidez na obtenção do resultado (na própria consulta), mas seu custo pode ser um fator limitante.1,2,4,7-9 As diretrizes mais recentes contraindicam a realização do teste da antiestreptolisina O (ASLO), proteína C reativa e leu‑ cograma para o diagnóstico de infecção pelo EBHGA. Exceção pode ser feita em relação ao uso conjugado do teste cultural e da ASLO para a identificação do estado de portador. Nesses casos, uma cultura positiva associada a uma não elevação da ASLO sugere a situação de portador do EBHGA.2,4,5 Indiscutivelmente, há a necessidade de diminuir ainda mais o tempo e o custo da identificação precisa da infecção es‑ treptocócica para, com tratamento adequado, evitar complica‑ ções não piogênicas tardias, como a febre reumática, sem, no entanto, prescrever antibióticos desnecessariamente. As complicações das infecções por EBHGA são classifica‑ das em supurativas e não supurativas. Febre reumática (rara em adultos) e glomerulonefrite aguda são as principais com‑ plicações não supurativas, geralmente presentes 1 a 3 sema‑ nas após a infecção. Já as complicações supurativas incluem abscesso peritonsilar, abscesso retrofaríngeo e adenite/abs‑ cesso cervical.6 Situações especiais de tonsilites agudas Mononucleose infecciosa O diagnóstico diferencial das faringotonsilites agudas deve in‑ cluir a mononucleose infecciosa, doença causada pelo EBV, agente altamente linfotrópico. A maioria dos casos de mono‑ nucleose infecciosa não é diagnosticada e muitas crianças apresentam níveis elevados de anticorpos da classe IgG contra o antígeno do capsídeo viral (IgG anti-VCA), o que denota in‑
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fecção passada. O vírus causa edema difuso dos tecidos linfáti‑ cos do anel de Waldeyer, região cervical, axilar e inguinal. Pro‑ duz odinofagia intensa, que pode causar desidratação e aumento das tonsilas palatinas e faríngeas, podendo causar obstrução importante das vias aéreas superiores.1,5,7 A anamnese costuma revelar uma doença com início rápido dos sintomas, que podem se manter por semanas e, frequen‑ temente, um tratamento mal sucedido com antibióticos.1,6 Ao exame, o paciente geralmente apresenta mal-estar geral, astenia, temperatura normal ou elevada, tonsilas palatinas muito aumentadas e com exsudato, hepatomegalia e espleno‑ megalia.1,6 A investigação laboratorial deve incluir cultura de material obtido das tonsilas (para afastar o diagnóstico de infecção bac‑ teriana coexistente), hemograma completo (leucocitose, às vezes intensa, e linfocitose são alterações clássicas), pesquisa de linfócitos atípicos e testes sorológicos para estabelecer a responsabilidade do EBV. Testes que buscam anticorpos con‑ tra o antígeno do capsídeo do EBV (anti-VCA) estão disponí‑ veis na maioria dos laboratórios, e níveis de IgM anti-VCA > 1:10 e de IgG anti-VCA > 1:320 evidenciam infecção aguda ou recente. Já o monoteste (pesquisa de anticorpos heterófilos da classe IgM ou teste de Paul Bunnell) é um exame mais comum e barato, mas não é fidedigno na fase inicial da doença e em crianças menores de 5 anos de idade.1,6
Tabela 2 Antibióticos recomendados para faringotonsilite estreptocócica
Abscesso peritonsilar É um processo mais grave que a tonsilite aguda. Produz dor de garganta unilateral intensa, sialorreia, trismo, febre e compro‑ metimento do estado geral. Na maioria das vezes, é causado por Staphylococcus aureus ou flora múltipla de germes anaeró‑ bios na maioria das vezes requer hospitalização.6
§ Apesar de a amoxicilina em uma dose diária ser recomendada pelas diretrizes de 2009 da American Heart Association e de 2012 da Infectious Diseases Society of America, a sua superioridade não foi comprovada definitivamente, e a Food and Drug Administration (EUA) não a aprovou para crianças < 12 anos. a Evitar em pacientes com hipersensibilidade imediata à penicilina. b Resistência do EBHGA a estes fármacos é bem documentada e varia geográfica e temporalmente. Fonte: adaptada de Shulman et al.2
Tratamento clínico Tonsilites e faringites virais Alívio dos sintomas com analgésicos/antitérmicos e hidrata‑ ção. Reavaliação clínica em 48 a 72 horas nos casos em que não houver remissão da febre.1,3,6 Tonsilites e faringites bacterianas O tratamento com antimicrobianos encurta a fase aguda da doença, diminui o potencial de transmissão e reduz o risco de sequelas supurativas e não supurativas associadas às infecções por EBHGA. O emprego correto de antibacterianos até 9 dias após o início do quadro infeccioso é capaz de impedir a febre reumática. Dessa forma, na impossibilidade de efetuar exame cultural ou teste rápido de detecção do antígeno estreptocócico (conduta ideal), recomenda-se reavaliar em 48 a 72 horas todo paciente com quadro clínico de faringotonsilite aguda.1,2,4,7,9 Os antibióticos de 1ª escolha são a penicilina e a amoxicili‑ na (Tabela 2). Para prevenir a febre reumática, a penicilina ou a amoxicilina devem ser administradas oralmente por 10 dias, inclusive quando o paciente ficar assintomático após os pri‑ meiros dias de tratamento. A penicilina G benzatina por via in‑ tramuscular está indicada para os que não aderem ao trata‑ mento oral pelo prazo recomendado.2
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Fármaco/Via
Dose
Duração ou quantidade
Indivíduos não alérgicos à penicilina Penicilina V/oral
Crianças: 250 mg, 2 ou 3 vezes/dia; adolescentes e adultos: 250 mg, 4 vezes/dia ou 500 mg, 2 vezes/dia
10 dias
Amoxicilina/oral§
50 mg/kg/dia, 2 ou 3 vezes/dia (máx. 1.000 mg/dia)
10 dias
Penicilina G benzatina/ intramuscular
< 27 kg: 600.000 UI; > 27 kg: 1.200.000 UI
1 dose
Indivíduos alérgicos à penicilina Cefalexinaa/oral
20 mg/kg/dose, 2 vezes/dia (máx. 500 mg/dose)
10 dias
Cefadroxila/oral
30 mg/kg, 1 vez/dia (máx. 1 g)
10 dias
Clindamicina/oral
7 mg/kg/dose, 3 vezes/dia (máx. 300 mg/dose)
10 dias
Azitromicinab/oral
12 mg/kg, 1 vez/dia (máx. 500 mg)
5 dias
Claritromicinab/oral
7,5 mg/kg/dose, 2 vezes/dia (máx. 250 mg/dose)
10 dias
Os novos macrolídeos (claritromicina e azitromicina) são efetivos no tratamento da doença, havendo inclusive estudos demonstrando superioridade na erradicação do EBHGA, quando comparados à penicilina. Por outro lado, evidências recentes e significativas sobre o aparecimento de EBHGA re‑ sistentes aos macrolídeos devem restringir seu uso aos pa‑ cientes com história de hipersensibilidade à penicilina.1,2,4,9 Cefalosporinas orais de 1ª geração (cefalexina ou cefadro‑ xil) tomadas durante 10 dias são alternativas aceitáveis, prin‑ cipalmente em pessoas alérgicas à penicilina, não esquecendo que até 10 a 15% dos indivíduos sensíveis à penicilina também o são às cefalosporinas. Apenas pacientes com hipersensibili‑ dade imediata (anafilática ou do tipo I) à penicilina não de‑ vem ser tratados com cefalosporinas.2 Tratamentos curtos (5 dias ou menos) com cefalosporinas de 1ª e 2ª geração e claritromicina já foram testados e compro‑ varam a erradicação do estreptococo, mas ainda não existem evidências definitivas que justifiquem sua recomendação.2,4,9 Sulfonamidas não devem ser empregadas no tratamento da faringotonsilite por EBHGA.2,4,5,9 Em situações de tonsilites recorrentes e crônicas, há que se aventar a possibilidade etiológica ou de copatogenicidade por
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parte de bactérias produtoras de betalactamase e anaeróbios. Sendo assim, a escolha recai sobre amoxicilina + ácido clavu‑ lânico, cefalosporinas de 2ª geração ou clindamicina, lem‑ brando que ainda não existe consenso quanto à melhor con‑ duta nessas situações.1,2,4,10 Tratamento cirúrgico Tonsilectomia é o procedimento cirúrgico realizado com ou sem adenoidectomia. Nos últimos anos, a remoção das tonsilas palati‑ nas tem sido realizada muito mais por obstrução da via aérea su‑ perior do que por infecções recorrentes, e permanece como a se‑ gunda cirurgia ambulatorial mais frequente em crianças. Assim, a maioria das tonsilectomias é conduzida ambulatorialmente, re‑ servando a necessidade de internação hospitalar para aqueles muito pequenos (< 2 a 3 anos) ou que apresentem comorbidades. Na avaliação clínica, determina-se o tamanho das tonsilas palatinas e a intensidade da obstrução pela classificação de Brodsky (Figura 1). Nessa classificação, grau I corresponde à ocupação, por parte das tonsilas palatinas, de < 25% do espaço entre os pilares; grau II, de 25 a 50%; grau III, de 50 a 75%; e grau IV, > 75% desse espaço. Os graus III e IV são considerados obstrutivos. Já as adenoides (tonsilas palatinas faríngeas) têm seu grau de obstrução definido com o endoscópio flexível ou pela radiografia de cavum, lembrando que a exposição ao raio X deve ser evitada tanto quanto possível. A endoscopia também apresenta a vantagem de conferir um aspecto dinâmico ao exa‑ me, pois auxilia na diferenciação entre uma hiperplasia signifi‑ cativa pura e aquela que é simplesmente exacerbada por uma reação inflamatória aguda.11-13
Figura 1 Classificação de Brodsky para avaliação das tonsilas palatinas.
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Indicações Hiperplasia das tonsilas palatinas Hiperplasia adenotonsilar é a causa mais comum de distúr‑ bios respiratórios durante o sono. Nas apresentações mais le‑ ves, a criança com esses distúrbios apresenta ronco noturno, respiração oral, enurese, sono sem descanso e apneias. Duran‑ te o dia, as manifestações incluem sonolência, boca seca, alte‑ rações do comportamento, respiração ruidosa, fala anasalada, halitose e obstrução nasal crônica. Pacientes com obstrução mais intensa e apneias evidentes durante o sono são classifi‑ cados como portadores da síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS).12,13 As diretrizes mais recentes, baseadas em estudos observa‑ cionais, apontam que a criança com aumento de tonsilas pala‑ tinas e faríngeas e alterações respiratórias durante o sono, e que também apresenta retardo no crescimento, rendimento escolar insuficiente, enurese ou outras alterações no compor‑ tamento, beneficia-se da remoção das tonsilas palatinas e fa‑ ríngeas, sendo suficientes a história e o exame físico cuidado‑ sos para definir a indicação cirúrgica, sem o auxílio do padrão-ouro para o diagnóstico de SAOS, que é a polissono‑ grafia.13 Ronco noturno não confirma nem exclui distúrbios respira‑ tórios significativos durante o sono e, em situações não bem definidas, a polissonografia auxilia na graduação da gravidade da doença e na correlação entre os sintomas e as alterações no sono, permitindo a indicação ou não do procedimento cirúrgi‑ co. Estudos observacionais demonstram que a adenotonsilec‑ tomia nas crianças com hiperplasia adenotonsilar e polissono‑ grafia anormal melhora a qualidade de vida, o padrão de sono, a transição “noite e dia” e previne ou melhora comorbidades como atraso no crescimento e rendimento escolar pobre.13 Faringotonsilites recorrentes A escolha entre o acompanhamento clínico continuado e a tonsilectomia no manejo das faringotonsilites recorrentes também exige uma atenção individualizada, com a definição dos aspectos positivos e negativos de cada uma das opções. Diretrizes atualizadas recomendam o procedimento para crianças que atendam os critérios de Paradise, isto é, infec‑ ções recorrentes, caso elas se repitam mais que 7 vezes ao ano, ou 5 vezes por ano nos últimos 2 anos, ou 3 vezes anuais nos últimos 3 anos e que se acompanharam de uma ou mais das seguintes manifestações ou testes: febre > 38°C, adenopatia cervical dolorosa, exsudato tonsilar ou teste positivo para EBHGA, seja ele teste rápido ou exame cultural.2,11-13 A tonsilectomia também pode ser útil nas crianças com tonsilites e faringites recorrentes que não atendam os critérios de Paradise, mas que apresentam determinadas condições, como febre periódica, estomatite aftosa, intolerância ou hiper‑ sensibilidade a vários antibióticos ou história de abscesso pe‑ ritonsilar. Nas tonsilites crônicas e recorrentes, o processo de transporte e apresentação dos antígenos pode ficar compro‑ metido. As tonsilas palatinas se tornariam incapazes de exer‑ cer sua função protetora local e, dessa maneira, a remoção de tonsilas recorrentemente doentes acarretaria benefícios ao pa‑
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ciente. Por outro lado, alguns poucos estudos mostraram mí‑ nimas diminuições nas concentrações séricas de imunoglobu‑ linas nos tecidos adjacentes logo após a cirurgia, que normalizaram depois de 1 a 2 meses. Até o momento, não existem estudos que demonstrem repercussão significativa da tonsilectomia sobre o sistema imunológico.11-13 Nos casos em que os episódios de infecção de garganta não estiverem bem documentados, recomenda-se um período de observação de 12 meses, em virtude da história natural de re‑ solução espontânea da doença. Contraindicações da cirurgia Além dos riscos inerentes ao ato cirúrgico, provavelmente ape‑ nas coagulopatias significativas representem uma contraindi‑ cação não absoluta à tonsilectomia, pela possibilidade maior de hemorragia após o procedimento. Acompanhamento pe‑ rioperatório por hematologista está indicado para crianças com doença de Von Willebrand ou outras alterações tratáveis da coagulação.11,12 Complicações A cirurgia de remoção das tonsilas palatinas tem morbidades associadas que incluem anestesia geral, eventual hospitaliza‑ ção, dor de garganta prolongada, recusa alimentar, desidrata‑ ção, mudança temporária da voz e hemorragia durante e após o procedimento. Os anestésicos podem causar desorientação, náusea e vô‑ mitos. A cirurgia produz dois ferimentos abertos que podem doer por aproximadamente 1 semana. Já o sangramento ime‑ diato (primeiras 24 horas após a operação) acontece em 0,2 a 2% das vezes, e a hemorragia posterior (mais de 24 horas após o procedimento), em 0,1 a 3% dos casos. O sangramento pós‑ -tonsilectomia é geralmente bem controlado, mas, às vezes, exige reintervenção e transfusão sanguínea, já que, em casos graves, pode levar à morte. Na ausência de dados atuais, as taxas de mortalidade varia‑ ram entre 1 em 16.000 e 1 em 35.000 casos na década de 1970.11,12 Considerações finais A maioria das tonsilites e faringites é viral, exigindo apenas tratamento sintomático e não necessitando de tratamento com antibióticos. O diagnóstico das tonsilites e faringites exige a realização de excelentes anamnese e exame clínico. As infecções bacterianas das tonsilas palatinas e da faringe perfazem aproximadamente 30% do total, e seu tratamento deve visar ao germe mais frequente, que é o estreptococo. O diagnóstico de infecção por essa bactéria deve ser realiza‑ do com a comprovação por exame cultural ou pelo teste rápi‑ do de detecção do antígeno estreptocócico, pois os critérios e escores exclusivamente clínicos são imprecisos e têm pouco valor preditivo. Infelizmente, no Brasil, o custo do teste rápido e o tempo necessário para o recebimento do resultado do exame cultural são obstáculos frequentemente intransponíveis.
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O tratamento da faringotonsilite por EBHGA visa a encur‑ tar a fase aguda da doença, diminuir a transmissibilidade e re‑ duzir o risco de sequelas supurativas e não supurativas asso‑ ciadas às infecções por esse germe. Antibacteriano iniciado até 9 dias depois do início do quadro infeccioso é capaz de im‑ pedir a febre reumática, principalmente em crianças. Adenotonsilectomia atenua ou remove os sintomas relacio‑ nados aos distúrbios respiratórios do sono e à SAOS, melho‑ rando, assim, a qualidade de vida de crianças selecionadas. A tonsilectomia diminui a frequência de faringotonsilites graves e recorrentes nas crianças que atendem os critérios de Paradise. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer que a maioria das infecções na garganta tem origem viral, algumas exigindo reconhecimento específico, como a mononucleose infecciosa. • Entender que a bactéria causadora de infecções nas tonsilas palatinas e na faringe que geralmente exige tratamento é o estreptococo beta-hemolítico do grupo B. • Saber que a identificação desse germe deve ser realizada por exame cultural ou teste rápido de detecção do antígeno estreptocócico, pois os critérios clínicos são imprecisos. • Reconhecer que penicilina ou amoxicilina são os medicamentos de primeira escolha no tratamento da infecção pelo estreptococo. • Lembrar que, para a prevenção da febre reumática, o antibiótico pode ser iniciado até 9 dias após o início da doença. • Entender que a remoção das tonsilas palatinas diminui a frequência das faringotonsilites graves e recorrentes em crianças que atendem aos critérios de Paradise.
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CAPÍTULO 9
DISFAGIA NA INFÂNCIA Melissa A. G. Avelino Rebecca Maunsell
Definição Entende-se por disfagia qualquer distúrbio na deglutição, cau‑ sado por alimentos líquidos, sólidos ou ambos. A disfagia na infância muitas vezes é um desafio diagnósti‑ co para o especialista, pois a respiração e a deglutição têm em comum a mesma estrutura anatômica, ou seja, comparti‑ lham o mesmo espaço no desempenho de duas funções dis‑ tintas e fundamentais para o desenvolvimento da criança. Entretanto, além das alterações estruturais locais do trato ae‑ rodigestivo, existe também a dependência de um bom funcio‑ namento do sistema nervoso central (SNC) para manutenção de uma deglutição adequada, não sendo incomum causas as‑ sociadas de distúrbios nos tratos digestivo e respiratório. Bas‑ ta lembrar que a obstrução das vias aéreas é exacerbada pela alimentação. Fisiologia da deglutição normal É preciso entender que a deglutição adequada é dividida em 3 fases: 1. Fase oral: ao nascer e até cerca de 3 a 4 meses de vida, o bebê apre‑ senta reflexos de sucção e deglutição bem desenvolvidos (constri‑ ção da musculatura do lábio e da boca e elevação da língua); pos‑ teriormente, esses reflexos desaparecem e o bebê passa a ter um controle voluntário, dissociando a sucção da deglutição. A partir do momento em que a alimentação deixa de ser só líquida, a fase oral permite que o alimento sólido passe pelo processo de masti‑ gação, o que depende dos movimentos e da ação coordenada da língua, da mandíbula e da musculatura orofacial. O vedamento labial e a pressão da língua contra o palato mole permitem a pro‑ pulsão do bolo alimentar para a parte posterior da cavidade oral. 2. Fase faríngea: esta é a fase mais complexa e inicia quando o bolo alimentar chega na orofaringe. Nesse momento, ocorre elevação do palato para fechamento da nasofaringe e a base da língua empurra o alimento, evitando o refluxo de alimento pelo nariz. A laringe eleva-se e a glote fecha-se enquanto o es‑ fíncter esofágico superior relaxa. Nesse ponto, o bolo alimen‑ tar é empurrado para o esôfago.
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3. Fase esofágica: o bolo alimentar é empurrado em direção ao
estômago por conta da motilidade esofágica. Assim que o bolo atinge o esôfago, a respiração, que havia sido interrompi‑ da pelo fechamento glótico, é reassumida.
Fatores neurológicos Um bom funcionamento da deglutição depende dos pares de nervos cranianos, como V (trigêmeo), VII (facial), IX (glosso‑ faríngeo), X (vago), XI (acessório) e XII (hipoglosso), envolvi‑ dos na motricidade de grupos musculares e do bom funciona‑ mento e maturidade do SNC. A fase faríngea depende totalmente da integridade do SNC. Achados clínicos O quadro mais típico e também mais temido da disfagia é a as‑ piração, com episódios recorrentes de infecções das vias aé‑ reas inferiores que podem evoluir com doenças pulmonares crônicas. As manifestações podem ser variadas, como engas‑ gos, dificuldade na mastigação, escape do alimento, recusa ali‑ mentar e sucção inadequada, que podem determinar um défi‑ cit ponderoestatural como primeira manifestação clínica. Alguns pacientes podem apresentar uma respiração ruidosa que se inicia ou piora durante a deglutição, porque a sucção e a deglutição exacerbam a dispneia. Às vezes, pode se tratar uma compressão traqueal posterior pelo próprio esôfago. Em alguns casos, a aspiração manifesta-se sob a forma de en‑ gasgos, tosse, cianose, apneia e bradicardia durante a alimenta‑ ção, ou ainda pode ser um grande desafio quando se apresenta de forma sutil, sobretudo em pacientes com doenças neurológicas. Avaliação clínica É fundamental para o diagnóstico a observação da criança du‑ rante a alimentação (sucção e/ou deglutição), avaliando, as‑ sim, a tonicidade e a coordenação durante a deglutição, além da presença do reflexo de tosse. Em caso de criança com com‑ prometimento neurológico, retirar o máximo de informações para detectar a gravidade do problema.
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Após observação inicial, o exame físico para avaliação da • pseudodivertículo traumático da faringe; boca, língua, mandíbula e palato mole deve ser complementa‑ • perfuração do esôfago. do pelo exame de videonasofibroscopia, que permite avaliar de forma dinâmica o palato, a faringe e a laringe, e se há pre‑ Tratamento sença de estase de saliva e/ou secreções. A avaliação dos pa‑ O tratamento da disfagia na infância depende da etiologia e, res de nervos cranianos também deve ser sempre realizada. principalmente, da gravidade, podendo se tratar desde uma Muitos exames já foram utilizados para avaliar a disfagia na dificuldade bem leve (fácil resolução) até uma incapacidade infância, entre eles ultrassonografia, cintilografia, nasofibros‑ completa da deglutição. Entretanto, o objetivo final sempre copia, manometria e eletromiografia, mas muitos desses exa‑ visa a prevenir as complicações respiratórias e, ao mesmo mes são utilizados para adultos, havendo dificuldades de tempo, garantir um bom estado nutricional e principalmente adaptação do uso para crianças. qualidade de vida à criança. Assim sendo, a avaliação propedêutica da deglutição na in‑ Os defeitos anatômicos necessitam, na grande maioria das fância hoje consiste na realização do videodeglutograma e da vezes, de intervenções cirúrgicas, como nas atresias e esteno‑ videoendoscopia da deglutição, sendo que a maior parte dos ses de esôfago e nas fístulas traqueoesofágicas. Os mecanis‑ autores concorda que eles são complementares. mos obstrutivos das vias aéreas superiores, como laringoma‑ A grande vantagem da videoendoscopia da deglutição é lácias, atresias de coanas, entre outros, devem ser, sempre que que ela pode ser realizada no próprio leito, às vezes até mesmo possível, solucionados. Quando a traqueostomia se fizer ne‑ na UTI. Permite avaliar a deglutição em consistências diferen‑ cessária, deve-se estar atento à escolha adequada da cânula e tes e se há presença de aspiração (alimento corado) sem radia‑ ao uso de válvula fonatória. ção. Já o videodeglutograma permite também a avaliação do O refluxo gastroesofágico normalmente não é responsável esôfago, estômago e duodeno. por quadros de disfagia, mas, em grande parte das vezes, agra‑ va esses casos, necessitando de tratamento antirrefluxo. Classificação das causas de disfagia Os casos de disfagia secundários a distúrbios neurológicos necessitam de uma abordagem multidisciplinar, a qual depen‑ 1. Defeitos anatômicos: • obstrução nasal: atresia de coanas, desvio septal, rinite neo‑ de da gravidade dos sintomas. Às vezes, além de oxigenotera‑ pia, é necessário o uso de medicações antirrefluxo, além de natal obstrutiva; outras medidas como mudança do volume e consistência do • fenda palatina, fenda submucosa; alimento. Primeiramente, deve-se avaliar a possibilidade de • laringomalácia; • síndrome de Pierre Robin; manutenção da alimentação oral e, quando isso não for possí‑ • macroglossia; vel, pode ser necessária uma via alimentar alternativa. A gas‑ • atresia de esôfago; trostomia deve sempre ser considerada quando a sonda naso‑ • fístula traqueoesofágica; gástrica for necessária por período mais longo. • estenose congênita de esôfago; Alguns pacientes neuropatas, mesmo após gastrostomia, • estenose de esôfago secundária (cáustica, esofagite péptica); podem persistir com microaspiração de saliva levando a bron‑ • compressão externa (vascular, tumor); copneumonias de repetição ou quadros pulmonares crônicos. • tumor de esôfago. Embora não exista um consenso sobre a melhor opção nesses 2. Neuromusculares e distúrbios cerebrais: casos, a traqueostomia (técnica mais simples e muito utiliza‑ • deficiência mental; da anteriormente), além de inibir a elevação da laringe, não • paralisia cerebral; previne totalmente essas aspirações mesmo com cuff insufla‑ • paralisia de nervos cranianos (V, VII, IX, X, XI, XII); do. Assim, outras técnicas, como a aplicação de toxina botulí‑ • alterações de tronco: imaturidade, síndrome de Mobius, Gui‑ nica em glândulas salivares, a submandibulectomia com liga‑ lain-Barré, poliomielite; dura do ducto parotídeo e a separação laringotraqueal, têm • distúrbios musculares: miastenia, miotonia, síndrome de Du‑ ganhado cada vez mais espaço nesse cenário. chenne, dermatomiosite; • disfunção faríngea congênita; Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • acalasia cricofaríngea; • Reconhecer os distúrbios de deglutição na infância e • síndromes: CHARGE, Cornelia de Lange, Prader-Willi, Haller‑ seus fatores causais. man-Streiff, alcoólica fetal. • Entender que os distúrbios da deglutição podem 3. Distúrbios inflamatórios: acometer a fase oral, faríngea e esofágica da • espasmo cricofaríngeo; deglutição, sendo importante uma anamnese • ingestão de corrosivos; minuciosa e uma avaliação clínica adequada para um • infecções: candidíase, estomatite herpética ou esofagite, Ste‑ bom diagnóstico e tratamento. vens-Johnson, aids. • Orientar os pais sobre a importância de avaliação e 4. Trauma: tratamento muldisciplinares em crianças com disfagia. • corpo estranho;
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Disfagia na Infância •
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CAPÍTULO 10
DISFONIA NA INFÂNCIA Melissa A. G. Avelino Rebecca Maunsell
Introdução Um importante fator a ser considerado em crianças é o desen‑ O termo disfonia refere-se a uma anormalidade da voz perce‑ volvimento e as alterações fisiológicas que o trato vocal sofre da bida pelo ouvinte. Geralmente, isso ocorre quando a voz é de‑ infância para a idade adulta. Ao nascimento, a laringe está posi‑ sagradável ao ouvinte ou interfere com a comunicação da cionada em região mais alta do pescoço, de forma a facilitar a res‑ criança. Trata-se de um termo amplo e difícil de quantificar e piração e a deglutição. Com o crescimento, a laringe descende, o estudar. Normalmente, a disfonia é percebida como uma voz que não afeta propriamente a fonação, mas a ressonância do trato diferente do normal para aquela idade ou gênero. vocal. A frequência dos formantes do trato vocal diminui, assim A incidência de disfonia na infância no Brasil, conforme es‑ como a frequência fundamental com a produção de uma voz tudo realizado em escolas, pode ser descrita como variando de mais grave. A estrutura das pregas vocais também é diferente nas 6 a 23%. Em crianças, o pico de incidência das disfonias ocorre crianças: o tecido subepitelial é mais vascular e menos denso, o entre 5 e 10 anos de idade. que o torna mais suscetível à edema inflamatório pós-traumático A voz é uma produção sonora emocional, que expressa sen‑ durante o abuso vocal. O tamanho das pregas vocais também so‑ timentos e emoções, revela saúde e outras características. É fre mudanças com o crescimento. Um fato de interesse é que a fre‑ uma das extensões mais fortes da personalidade. quência da voz tem muito pouca diferença entre meninos e meni‑ Na maior parte das vezes, as disfonias ou os distúrbios vocais nas até a puberdade. A partir da puberdade, em decorrência do observados na infância são atribuídos ao uso incorreto da voz aumento dos níveis de hormônio masculino, ocorre uma queda ou ao abuso vocal, relacionados às características comporta‑ na frequência e a consequente emissão de voz mais grave. As pre‑ mentais típicas da primeira infância. Por esse motivo, educado‑ gas vocais ganham volume e tornam-se mais retangulares, o que res, pais e pediatras dão pouca importância aos distúrbios da exige uma mudança nos padrões de controle muscular na sua vi‑ voz. Infelizmente, a falta de avaliação dessas crianças pode cau‑ bração. Dificuldades nesse controle podem resultar em quebras sar alterações no comportamento social e emocional, compro‑ de registro característico dos meninos durante a puberdade. Es‑ metendo também o desenvolvimento pedagógico. Além disso, sas dificuldades podem persistir até os 20 anos de idade ou mais, uma criança que arrasta um problema vocal para a idade adulta caracterizando os distúrbios de muda vocal. tem chances de escolha profissional mais reduzidas. É preciso ainda pensar no aparelho fonador em suas 3 su‑ A disfonia persistente não tratada desencadeia mecanis‑ bestruturas: força, fonte e filtro. A força é a força pulmonar mos de compensação fonatória como esforço vocal inadequa‑ que impulsiona a voz; a fonte é a laringe; e o filtro é o trato aé‑ do e tensão muscular, além de, muitas vezes, trazer repercus‑ reo superior. Atentar para a prosódia da voz e as estruturas da sões nas relações sociais e no desenvolvimento psicológico da ressonância, que podem levar à origem de problemas no trato criança. Alguns trabalhos descrevem crianças e adolescentes aéreo superior. É o caso das hipertrofias de tonsilas palatinas e que relataram que seus distúrbios vocais resultaram em uma adenoides, que levam à produção de uma voz hiponasal ou atenção negativa e limitaram sua participação em atividades “abafada”, ou das fendas palatinas e insuficiências velopalati‑ escolares e lúdicas. nas, que levam à produção de uma voz hipernasal ou “uma A falta de um diagnóstico preciso pode ainda atrasar o diag‑ voz que escapa pelo nariz” (fanha). nóstico de patologias laríngeas tratáveis e comprometer ou‑ tras funções laríngeas primordiais, como a respiração. De uma Causas de disfonia na infância forma geral, falta informação para os clínicos em relação à ava‑ Não se pode ignorar, em especial nas crianças, por conta da proximidade das estruturas das vias aéreas, que a laringe faz liação e ao tratamento dos distúrbios da voz em crianças.
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Disfonia na Infância •
parte da via aérea superior e, portanto, pode ser acometida pe‑ los processos inflamatórios e infecciosos que atingem a via aé‑ rea superior. As disfonias na infância podem ser classificadas, de uma forma geral, em:1 • infecciosas; • anatômicas; • congênitas; • inflamatórias; • neoplásicas; • neurológicas; • iatrogênicas. Outra classificação bastante utilizada é a descrita por Wilson:2 • orgânicas: • estenose subglótica; • web laríngeo; • sulco vocal; • malformação de pregas vocais; • paralisia de pregas vocais; • papilomatose; • trauma laríngeo; • alterações morfológicas da região velofaríngea, cavidade oral ou nariz; • distúrbios neurológicos; • deficiência mental; • perda auditiva. Distúrbios orgânicos secundários a abuso vocal ou fonotrauma: • nódulos, pólipos e queratoses; • fonação de banda vestibular; • laringite inespecífica. Disfonia funcional: • distúrbio de muda vocal; • distúrbio psicológico; • imitação de outros; • mutismo eletivo. Distúrbios vocais secundários a fatores associados: • alergia e distúrbios das vias aéreas superiores; • tensão pré-menstrual. As causas infecciosas relacionam-se às laringites, na sua maio‑ ria virais, que ocorrem mais frequentemente nos primeiros 2 anos de vida. Caracterizam-se por quadros transitórios, autoli‑ mitados que ocorrem dentro de um contexto infeccioso de fe‑ bre e outros comemorativos de infecções de vias aéreas supe‑ riores (IVAS). Entre as causas anatômicas, incluem-se aquelas relaciona‑ das ao processo de crescimento e desenvolvimento da laringe e seus ajustes. Além do processo de desenvolvimento do trato vocal, não se pode ignorar o processo de desenvolvimento psi‑ cológico e psicossocial da criança, que pode contribuir para as também chamadas disfonias funcionais. Os distúrbios de muda vocal também se encaixam nesse subgrupo.
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Desde o recém-nascido, a percepção de choro anormal pode ser um importante sinal. Nessa faixa etária, uma altera‑ ção patológica com potencial risco de morte pode ser ignorada, como as paralisias uni ou bilaterais de pregas vocais, as este‑ noses subglóticas congênitas e as membranas laríngeas, além de distúrbios neurológicos, tumores como a papilomatose la‑ ríngea e as doenças endocrinológicas. Frequentemente, exis‑ tem sintomas respiratórios concomitantes, como os ruídos e os sinais de esforço, no entanto, muitas vezes a alteração vocal pode preceder o sintoma respiratório e deve ser um sinal de alerta para o pediatra. Qualquer alteração vocal associada a sintomas respiratórios (estridor, ronco, chiado ou esforço) ou distúrbios de deglutição deve ser avaliada imediatamente, pois pode indicar uma situação de risco de morte. Alterações discretas do choro no recém-nascido podem re‑ tardar o diagnóstico de alterações, como a paralisia unilateral das pregas vocais, as micromembranas não obstrutivas, os cis‑ tos congênitos das cordas vocais e outras alterações mínimas. Algumas vezes, a disfonia só passa a ser percebida com o iní‑ cio da fala. Das causas de disfonias orgânicas secundárias ao abuso vo‑ cal ou inflamatórias, o exemplo clássico é dado pelos nódulos vocais, que correspondem à causa mais frequente de disfonia na infância. Gray et al.3 descrevem a ocorrência de nódulos vo‑ cais em crianças disfônicas em cerca de 38 a 78% dos casos. Os nódulos vocais ocorrem mais frequentemente em meninos, com um pico de ocorrência entre 5 e 10 anos de idade. Caracte‑ rizam-se por reação edematosa geralmente bilateral e simétri‑ ca (“em espelho”) que ocorre justamente na porção média das pregas vocais, coincidindo com o seu maior ponto de tensão e de contato durante a fonação. São, portanto, uma reação infla‑ matória decorrente do fonotrauma. Outras lesões fonotrau‑ máticas menos frequentes na infância são os pólipos de pre‑ gas vocais. Outros distúrbios inflamatórios são aqueles que ocorrem concomitantemente a processos inflamatórios difusos da via aérea com acometimento da laringe, como a rinite alérgica, o refluxo gastroesofágico e as atopias das vias aéreas inferiores. Avaliação clínica A história clínica é o primeiro passo para uma avaliação vocal. As queixas apresentadas podem estar relacionadas a diversos aspectos da qualidade vocal. A voz pode ser percebida como “muito aguda”, “muito baixa”, “muito soprosa” ou “falha” ou de difícil entendimento. Podem estar associados também outros sintomas, como pigarro, engasgos, dor e cansaço para falar. Fatores de risco comportamentais devem ser lembrados, como a participação em corais ou teatro, atividades esportivas, hábito de gritar e limpar a garganta ou pigarrear. Fatores de risco médicos para as disfonias devem ser ques‑ tionados, como: entubação prolongada, uso de traqueostomia, presença de fendas laríngeas e malformações de vias aéreas ou digestiva conhecidas, malformação de Arnold-Chiari, distúr‑ bios do sistema nervoso central, presença de refluxo gastroe‑ sofágico e esofagite eosinofílica, presença de doença de vias aéreas inferiores como asma, displasia, fibrose cística, alergias,
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doenças do tecido conectivo, IVAS de repetição, anormalida‑ des craniofaciais, uso de medicações, distúrbios da deglutição, obstrução de vias aéreas superiores e inferiores e distúrbios psicológicos. Os fatores desencadeantes, a concomitância de infecções respiratórias e os problemas respiratórios e de deglutição asso‑ ciados devem ser averiguados. Algumas características especí‑ ficas podem inclusive direcionar o diagnóstico. Um histórico de disfonia que se apresenta sempre pior pela manhã pode su‑ gerir a presença de laringite por refluxo gastroesofágico, ou a disfonia persistente com esforço respiratório progressivo pode indicar a presença de papilomatose laríngea. A disfonia que se agrava no fim do dia e nos dias de maior atividade física e que melhora durante as férias e períodos de menor abuso vocal pode estar associada a lesões fonotraumáticas, como os nódu‑ los vocais. Além disso, a conversa descontraída com a criança e a observação de sua interação com os cuidadores pode reve‑ lar sinais de tensão muscular e esforço vocal por meio da con‑ tração da musculatura cervical e ingurgitação vascular e, mui‑ tas vezes, os padrões de abuso vocal inseridos no contexto psicossocial da criança. Exame da laringe O exame endoscópico é essencial para a visualização da larin‑ ge. O diagnóstico preciso sem a visualização da laringe é im‑ possível. O exame com o nasofibrolaringoscópio flexível per‑ mite a visualização das estruturas anatômicas da via aérea superior e da laringe. Em crianças colaborativas, permite ain‑ da a realização de provas fonatórias em que se podem defla‑ grar padrões de abuso e mau uso das estruturas supraglóticas. Esse exame é realizado em consultório, podendo ser utilizada a aplicação tópica de anestésico nasal. Independe da colabora‑ ção da criança, no entanto, esta é desejável para uma melhor avaliação, principalmente da superfície das pregas vocais, para que se possam aplicar provas fonatórias que trazem in‑ formações valiosas na indicação de fonoterapia. Em crianças um pouco maiores, geralmente a partir dos 5 anos, muitas vezes é possível realizar uma laringoscopia com telescópio rígido e videoestroboscopia, o que permite a visua‑ lização detalhada da superfície das pregas vocais. Tanto o exame com fibra flexível quanto a telescopia rígida realizadas em crianças dependem fundamentalmente da ex‑ periência do examinador, tanto com o atendimento de crian‑ ças quanto com as patologias mais prevalentes nessa faixa etária. É essencial que ele consiga transmitir segurança e con‑ fiança para a criança e para os pais. Não raramente, no caso das disfonias, esses exames precisam ser repetidos em algum momento, portanto, é importante que se construa uma rela‑ ção de confiança, mesmo que isso exija múltiplas consultas, para o condicionamento da criança. Na presença de disfonia significativa e sintomas respirató‑ rios associados, pode ser necessário o exame sob anestesia, para melhor exploração da laringe e exame da traqueia. Woo4 resumiu de forma bastante clara as indicações para exame de pacientes pediátricos com disfonia:
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• ao nascimento, quando a qualidade da voz é ruim; • durante a infância, quando uma nova disfonia está presente com ou sem associação de fala/articulação de linguagem ou prosódia; • após a correção de estenose laríngea; • após a correção de estenose laríngea quando a qualidade da voz for ruim para a escola; • na puberdade, em virtude das anomalias de timbre e volume; • depois da puberdade, em virtude da disfunção vocal; • disfonia na infância de etiologia incerta. Tratamento O tratamento da disfonia na infância depende tanto do diag‑ nóstico quanto da idade da criança. No caso das lesões fonotraumáticas, como os nódulos vo‑ cais, o tratamento consiste inicialmente em orientação fono‑ terápica. A fonoterapia deve enfocar medidas de higiene vocal para redução de padrões de comportamento abusivo da voz, como o hábito de gritar. Em crianças mais novas, muitas vezes essa orientação deve começar e, às vezes, se limitar apenas à orientação dos cuidadores. Nas crianças mais velhas ou a par‑ tir dos 6 ou 7 anos, essas medidas podem ser aplicadas direta‑ mente a elas. A atuação junto a crianças disfônicas com altera‑ ções funcionais é limitada pelo fato de que normalmente elas não têm um parâmetro de normalidade, já que sempre se co‑ nheceram com a voz disfônica. Da mesma forma, crianças têm muito mais dificuldade de compreender a necessidade de mu‑ danças comportamentais. É essencial o comprometimento da família e a experiência do terapeuta no tratamento de crianças. Diversos artifícios podem ser utilizados de forma bastante lú‑ dica para melhorar a percepção das sensações orais de uma fo‑ nação facilitada com menor esforço. A melhor coordenação da respiração e uso da musculatura e da ressonância vocal tam‑ bém podem ser ensinadas para crianças, com técnicas bastan‑ te difundidas.5 Quando há indicação cirúrgica de remoção de lesões como cistos ou papilomas, deve-se atentar para a máxima preserva‑ ção das estruturas e dos tecidos adjacentes, para evitar a ocor‑ rência de cicatrizes nas pregas vocais que podem deixar se‑ quelas permanentes na qualidade vocal. No caso das lesões fonotraumáticas, a indicação cirúrgica reserva-se para crianças que apresentaram pouca ou nenhu‑ ma melhora com fonoterapia e cuja disfonia está limitando as atividades diárias. De uma forma geral, após cerca de 12 ses‑ sões de fonoterapia, a criança deve ser reavaliada e alguma resposta deve conseguida. Crianças que não apresentam uma boa adesão ao tratamento fonoterápico em geral não apresen‑ tam um bom condicionamento para as orientações pós-opera‑ tórias, o que pode levar a resultados insatisfatórios. Vale salientar a importância da abordagem e da comunica‑ ção multiprofissional tanto na avaliação clínica quanto no tra‑ tamento das disfonias na faixa etária pediátrica, envolvendo pediatra, otorrinolaringologista e fonoaudiólogo. Só dessa for‑ ma é possível responder aos questionamentos da família e da criança e assegurar resultados satisfatórios e duradouros.
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Disfonia na Infância •
Bibliografia
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Elaborar uma história clínica relevante que permita reconhecer os fatores de risco para as principais condições que levam à disfonia. • Conhecer as principais patologias responsáveis por quadros disfônicos nas diversas faixas etárias. • Saber orientar os pais quanto à necessidade de procurar um otorrinolaringologista para investigação diagnóstica e orientação.
4.
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CAPÍTULO 11
DISTÚRBIOS DA LARINGE José Faibes Lubianca Neto Rita Carolina Krumenauer
Introdução Neste capítulo, serão abordadas as principais causas não in‑ fecciosas de distúrbios da laringe que geram estridor (congêni‑ tas ou adquiridas), exceto a papilomatose laríngea, que, mes‑ mo infecciosa, requer tratamento cirúrgico especializado. As causas infecciosas de estridor, comuns em lactentes, incluin‑ do laringite estridulosa, falso crupe e laringotraqueobronquite, são quase sempre manejadas exclusivamente pelo pediatra. Definições Estridor É o som gerado pela turbulência do ar durante a passagem por sítio parcialmente obstruído. Pode ser inspiratório, expirató‑ rio ou bifásico. Essa característica depende da localização e do tipo de alteração na árvore respiratória. É importante diferen‑ ciá-lo de outros ruídos respiratórios, como o sibilo e o ronco. A sibilância é um som similar a um assovio audível durante a ex‑ piração e geralmente se deve a doença pulmonar. O ronco é principalmente inspiratório, com timbre mais grave, e, em crianças, é tipicamente causado por hiperplasia adenotonsilar. O manejo do estridor só pode ser adequado após o diagnóstico preciso de sua causa. Laringe infantil A laringe da criança difere da laringe do adulto em diversos as‑ pectos (Tabela 1). A compreensão dessas diferenças é funda‑ mental para o entendimento da fisiopatologia da laringomalá‑ cia e das outras causas de estridor. A Figura 1 traz uma visão endoscópica da laringe infantil. A laringe infantil está mais alta no pescoço, com a cartila‑ gem cricoide no nível da 4ª vértebra cervical (no adulto, encon‑ tra-se entre a 6ª e a 7ª vértebras cervicais). Por isso, a epiglote faz contato com o palato, o que ajuda a explicar a respiração nasal exclusiva durante os primeiros 6 meses de vida e a capa‑ cidade de a criança alimentar-se (mamar) e respirar ao mesmo tempo. A epiglote tende ao formato em ômega, com pregas ariepiglóticas redundantes, que podem obstruir o lúmen já
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comprometido. O ângulo entre a epiglote e a glote é mais agu‑ do no recém-nascido, predispondo à obstrução mais rápida. Ao nascimento, a laringe tem aproximadamente 1/3 do ta‑ manho que atingirá na fase adulta. As cartilagens aritenoides e cuneiformes são relativamente maiores em neonatos e lac‑ tentes. O diâmetro da luz da subglote no recém-nascido varia entre 5 e 7 mm. Diâmetro de 4 mm ou menos representa este‑ Tabela 1 Diferenças principais da laringe infantil em relação a do adulto Característica
Lactente
Adulto
Posição da cricoide
4a vértebra cervical
7a vértebra cervical
Posição do hioide
Sobre cartilagem tireóidea
Acima da cartilagem tireóidea
Processo vocal aritenoide
1/2 da glote
1/4 a 1/7 da glote
Cuneiformes
Proeminentes
Pouco visíveis
Epiglote
Posterior e tubular
Verticalizada
Tecido submucoso supraglótico
Frouxo
Aderido
Epiglote Falsa prega vocal
Prega vocal
Cuneiformes
Comissura anterior
Prega ariepiglótica Aritenoide
Figura 1 Laringe normal de criança de 12 meses de idade, vista em fibronasolaringoscopia.
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nose, ou seja, o tubo endotraqueal de 3,5 mm deve passar sem dificuldades no momento da entubação de um recém-nascido a termo. A túnica mucosa laríngea do recém-nascido e do lac‑ tente é mais frouxa e menos fibrosa que a do adulto, o que au‑ menta o risco de edema e obstrução durante a manipulação. Um edema circunferencial de 1 mm dentro da laringe infan‑ til leva à redução do espaço glótico em cerca de 60% (Figura 2). Isso pode ocorrer nos casos de edema de mucosa pós-refluxo gastroesofágico (RGE) e ser falsamente taxado como “crupe recorrente”.1 Essa mudança é ainda mais dramática na presen‑ ça de estenose subglótica. Avaliação do estridor Apesar de laringomalácia e estenose subglótica serem as cau‑ sas mais frequentes de estridor em lactentes, existem outras alterações que causam estridor e não devem ser tratadas com base em diagnóstico presuntivo.1 É importante identificar, sob visualização direta endoscópica, a causa do estridor e as co‑ morbidades e as lesões sincrônicas associadas.2,3 A endosco‑ pia é a melhor maneira de fazer o diagnóstico específico e pla‑ nejar o tratamento.4 Embora, na maior parte das vezes, as alterações congênitas sejam a causa de estridor em recém-nascidos e lactentes, ele pode não estar presente ao nascimento. É o caso, por exemplo, de alguns prematuros. Pela relativa fraqueza da musculatura inspiratória, podem não conseguir produzir pressão inspirató‑ ria negativa suficiente para gerar vibração do tecido mucoso. Assim, podem apresentar obstrução sem estridor. Quando o estridor já estiver presente ao nascimento, geralmente as cau‑ sas são obstruções fixas, como membranas laríngeas e/ou es‑ tenose subglótica congênita. Frequentemente, o estridor apa‑ rece de forma lenta ou como períodos de exacerbação (alimentação, choro, decúbito), produzindo dispneia, cianose ou apneia.4 A avaliação dos pacientes com estridor requer detalhamen‑ to completo do sintoma, como data de início, característica, intensidade, fatores agravantes e de alívio, progressão e com‑
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plicações.4,5 O estridor inspiratório é característico de lesões extratorácicas e é gerado pelo colapso das estruturas laríngeas, consequente à pressão negativa criada na caixa torácica pelo movimento de inspiração. A lesão da estenose subglótica, mesmo sendo extratorácica, produz estridor bifásico, por não ter sua morfologia modificada pelas pressões da via aérea. A traqueomalácia produz estridor predominantemente expira‑ tório. Exceção ocorre no caso de comprometimento da tra‑ queia intra e extratorácica, quando há estridor bifásico. A coleta da história deve ser sistematizada para se ter no‑ ção inicial rápida da gravidade do quadro. É útil assegurar que estridor raramente é emergência e tranquilizar os pais para ob‑ ter o máximo de informações. Deve-se, nessa fase, detalhar parâmetros como gravidade, progressão, presença de dificul‑ dades alimentares, ganho de peso, cianose, comprometimen‑ to do sono e, no caso de já terem sido solicitados, exames de imagem. Embora, muitas vezes, os pais superestimem o sin‑ toma estridor, a sua impressão subjetiva sobre a gravidade da obstrução deve ser levada em conta. A progressão do estridor dá pistas importantes. Quadros instantâneos ou agudamente progressivos geralmente se as‑ sociam a infecções ou a corpos estranhos. Quadros graves reci‑ divantes, diagnosticados clinicamente em emergências pediá‑ tricas como “laringite”, podem esconder estenose subglótica e/ ou RGE. Progressão mais lenta, mas com gravidade crescente, é vista em casos de papilomatose laríngea e hemangiomas subglóticos. Casos em que ocorrem dificuldades na alimenta‑ ção, com ou sem aspiração, levando a baixo ou nenhum ganho de peso, denotam necessidade de intervenção. Cianose respi‑ ratória deve ser diferenciada de cianose cardiovascular, pois a última ocorre independentemente da dificuldade respiratória. Cianose respiratória sempre é sinal de gravidade e de necessi‑ dade de intervenção. Também a dificuldade respiratória que persiste e atrapalha o sono deve denotar gravidade. Nesse caso, existe uma exceção à regra da localização da lesão e a predominância sintomática durante sono ou vigília. A papilo‑ matose laríngea, ao contrário da maioria de outras causas su‑ praglóticas e glóticas, piora o padrão respiratório durante o sono (Tabela 2).6 Por fim, casos que se apresentam com exa‑ mes de imagem prévios mostrando malformações pulmona‑ res, cardíacas ou de grandes vasos merecem pronta atenção e avaliação sob anestesia geral.
Tabela 2 Parâmetros para caracterizar obstrução respiratória6
Figura 2 A abertura triangular da laringe infantil normal tem área aproximada de 14 mm2. Quando ocorre 1 mm de edema, a área é reduzida para 5 mm2, apenas 35% do normal.
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Acordado vs. dormindo
Inspiratório vs. expiratório
Obstrução que piora no sono é faríngea (com exceção da papilomatose de laringe); especialmente tonsilas faríngeas e palatinas
Obstrução inspiratória é extratorácica: às vezes, nasal ou faríngea; geralmente laríngea; laringomalácia; paralisia de pregas vocais bilateral
Obstrução que piora na vigília é laríngea, traqueal ou brônquica. Exacerbada pelo exercício
Obstrução expiratória é intratorácica: imita asma; traqueal ou brônquica; traqueo/ broncomalácia; anel vascular; compressão extrínseca
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A caracterização clínica do sintoma não é suficiente para o diagnóstico preciso.7 Holinger8 relatou uma série de 219 pa‑ cientes, em que houve 58 diagnósticos clínicos errôneos, cor‑ rigidos pela fibronasolaringobroncoscopia. Os principais diag‑ nósticos errôneos foram asma, crupe e bronquiolite. Por isso, exame endoscópico é indispensável, uma vez que determina a causa exata do sintoma, além de excluir concomitância de ou‑ tras lesões na via aérea. Em torno de 30% dos pacientes com estridor, referenciados ao otorrino pelo não especialista, com diagnóstico presuntivo, apresenta doença diferente daquela para a qual estão sendo tratados. Nenhum outro exame, como fluoroscopia, esofagograma baritado ou radiograma lateral de pescoço, é tão definitivo e esclarecedor como a endoscopia. Dependendo do serviço onde o paciente é avaliado, pode variar o tipo de procedimento inicial: nasofibrofaringolaringos‑ copia (NFL) no consultório versus laringotraqueobroncosco‑ pia no bloco cirúrgico. Alguns autores defendem que a NFL em consultório é suficiente e segura para diagnosticar a maioria dos pacientes com estridor de característica extratorácica sem sinais de gravidade, reservando a broncoscopia para casos em que os achados iniciais são insuficientes para explicar a gravi‑ dade do estridor ou para aqueles com história e apresentação sugestiva de lesão intratorácica.9 Por outro lado, existem os que preferem, já de início, avaliar globalmente a via aérea sob anestesia geral. Estes apoiam-se na chance de existir lesão sin‑ crônica na via aérea em até 30% dos casos, que pode passar despercebida à NFL de consultório.1,10 Talvez o que explique melhor essa discrepância seja o tipo de população avaliada. Pacientes avaliados em consultório privado ou mesmo em am‑ bulatório de hospitais públicos geralmente são acometidos por formas leves de laringomalácia, sem repercussão sistêmica. Nesses pacientes, a NFL no próprio consultório parece ser sufi‑ ciente. No entanto, aqueles avaliados em hospitais, sejam pro‑ venientes de enfermarias de pneumologia ou de unidades de tratamento intensivo (UTI), representam população selecio‑ nada e tendem a ter comorbidades associadas.10 Nesses casos, utiliza-se a laringotraqueobroncoscopia em bloco cirúrgico. Epidemiologia do estridor As incidências relativas das causas de estridor variam muito dependendo do local de onde provêm os dados. Se for consi‑ derada a experiência de serviços pediátricos de urgência, muito provavelmente as infecções e, dependendo do nível de complexidade do hospital, os corpos estranhos serão as causas mais comuns. Em casuísticas de serviços de otorrino‑ laringologia pediátrica situados dentro de hospitais terciá‑ rios, no entanto, os dados serão necessariamente diferentes, sendo as malformações congênitas da laringe as causas prin‑ cipais11-4 (Tabela 3). Se forem somadas as anomalias congê‑ nitas da laringe com trauma interno da laringe e com infec‑ ções (geralmente com comprometimento principal laríngeo), têm-se em torno de 70% de todas as causas de estridor em menores de 30 meses em terreno otorrinolaringológico.1 Sa‑ lienta-se que a laringomalácia é a mais comum anomalia congênita da laringe e a principal causa de estridor não infec‑ cioso na infância.
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Tabela 3 Causas de estridor em crianças com idade inferior a 30 meses em duas casuísticas otorrinolaringológicas Alteração
Lubianca (n = 125)
Holinger (n = 219)
Laringomalácia
58%
60%
Estenose subglótica
19%
20%
Paralisia de pregas vocais
12%
13%
Outras
11%
7%
Total
100%
100%
Laringomalácia O termo laringomalácia foi introduzido em 1942 e descrevia colapso de estruturas supraglóticas durante a inspiração (Fi‑ gura 3). Anteriormente, doenças congênitas da laringe que ge‑ ravam estridor eram descritas conjuntamente como “estridor laríngeo congênito”. A etiologia exata da laringomalácia é desconhecida e conti‑ nua sendo uma área de grande interesse e pesquisa. As teorias da etiologia incluem teoria anatômica, cartilaginosa e neuroló‑ gica. A teoria anatômica baseia-se em 3 constatações. A pri‑ meira é a existência de tecido laríngeo flácido redundante cau‑ sando estridor. No entanto, existem crianças com achados anatômicos típicos de laringomalácia sem sintomatologia de obstrução respiratória. A segunda constatação leva em conta que pacientes com laringomalácia apresentam encurtamento das pregas ariepiglóticas quando comparados a crianças sem a doença, e que a cirurgia de ressecção dessas pregas corrige a alteração, deixando o aspecto glótico mais semelhante aos ca‑ sos normais. Por fim, a terceira e mais antiga propõe imaturi‑ dade do tecido cartilaginoso. Também houve a tentativa de as‑ sociar anormalidades intrínsecas do tecido laríngeo à laringomalácia, porém estudos histológicos de espécimes de biópsia falharam em demonstrar condropatia ou outras altera‑ ções ultraestruturais, excluindo essa hipótese. A teoria neurológica é a mais bem embasada pela literatura atual. Reconhece que a laringomalácia possa ser consequência de uma alteração do sistema de integração entre nervos perifé‑
Figura 3 Imagem típica do colabamento supraglótico na laringomalácia.
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ricos e núcleos do tronco encefálico responsáveis pela respira‑ ção e patência da via aérea, levando ao produto final que é a diminuição do tônus laríngeo. À medida que a criança cresce, os sintomas provavelmente resolvem secundariamente ao amadurecimento dessa inervação. O reflexo adutor laríngeo (reflexo vagal) é responsável pela função e pelo tônus laríngeo. Testes sensitivos laríngeos em crianças com laringomalácia demonstraram que o limiar do estímulo sensitivo necessário para despertar o reflexo e desencadear a resposta motora típi‑ ca (adução das pregas vocais) está elevado em crianças com doença moderada/grave comparadas àquelas com doença leve. Esses dados explicam também a associação entre larin‑ gomalácia e outros distúrbios neurológicos.11 Epidemiologia Conforme já mencionado, a laringomalácia é a anomalia con‑ gênita da laringe mais comum. Sua prevalência na literatura é variável (19,4 a 75%), dependendo dos critérios utilizados no estudo e do local de origem dos dados.12 Meninos são 2 vezes mais afetados que meninas. Geralmente, é uma doença autoli‑ mitada, mas, em raros casos, pode produzir episódios graves de apneia, cor pulmonale e deficiências de desenvolvimento. Quadro clínico e diagnóstico É muito importante para o pediatra diferenciar laringomalácia de outras condições que causam respiração ruidosa. Não é in‑ frequente a confusão diagnóstica com traqueomalácia, asma, bronquiolite e hiper-reatividade brônquica. Identificar a fase do ciclo respiratório também ajuda a determinar o nível da obstrução. A sintomatologia da laringomalácia é caracterizada por es‑ tridor inspiratório variável, que se inicia nas primeiras 2 sema‑ nas de vida, geralmente tem seu pico entre a 6ª e a 8ª semanas e resolução completa entre 18 e 24 meses. O diagnóstico geral‑ mente é feito antes dos 4 meses de vida. O estridor pode ocor‑ rer em repouso, mas piora com agitação, choro e alimentação. O sintoma também é relacionado à posição da criança, sendo agravado pela posição supina e aliviado pela pronação. O com‑ prometimento respiratório na laringomalácia geralmente não é grave e a criança, na maioria das vezes, não apresenta ciano‑ se e dispneia. Mais frequentemente, observam-se dificulda‑ des para alimentação, incluindo regurgitação, engasgos, tosse e mamadas demoradas pelas diversas pausas. Lactentes com laringomalácia podem ter dificuldade em coordenar a sequên‑ cia sugar–engolir–respirar, necessária para a amamentação, como resultado de sua obstrução respiratória. A demanda me‑ tabólica aumentada pela incoordenação respiração/alimenta‑ ção pode ser grave a ponto de comprometer o ganho ponde‑ roestatural, embora isso não seja comum. Outros sintomas associados menos frequentes, porém preocupantes, são ta‑ quipneia, retrações supraesternais e intercostais, cianose, pectus excavatum e apneia obstrutiva.12 A laringomalácia tem sido associada à apneia do sono em crianças. Não há evidências que indiquem a necessidade de realizar polissonografia na avaliação inicial de rotina em todos os casos de laringomalácia. Evidências de nível IV e V emba‑
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sam a solicitação do exame em casos graves para monitorar o impacto da laringomalácia no sono, bem como o efeito da su‑ praglotoplastia na qualidade do sono e na síndrome da apneia e hipopneia obstrutiva do sono (SAHOS), embora parâmetros clínicos sejam relativamente sensíveis tanto para indicar a ci‑ rurgia quanto para monitorar seus efeitos (desaparecimento do estridor, do esforço respiratório, retomada do crescimento ponderoestatural). Evidências de nível IV embasam a extra‑ polação de indicações de polissonografia nas adenotonsilecto‑ mias para casos de laringomalácia de aparecimento tardio, principalmente nas crianças obesas, com malformações cra‑ niofaciais ou com má resposta ao tratamento cirúrgico prévio.6 A comorbidade mais frequentemente associada com a la‑ ringomalácia é o RGE, que está presente em 65 a 100% das crianças com laringomalácia.13 A obstrução da via aérea da laringomalácia gera pressão negativa intratorácica que facilita o refluxo de ácido para os tecidos laringofaríngeos, levando a refluxo laringofaríngeo. A mucosa laríngea, sensível à exposi‑ ção ácida, torna-se edemaciada. O edema supraglótico resulta em colapso dos tecidos em direção à luz e piora dos sintomas obstrutivos. Inicia-se, então, um ciclo vicioso de obstrução, RGE e piora do edema. É difícil determinar o que vem primeiro, se o RGE ou a la‑ ringomalácia. Um estudo comparando índices de RGE em crianças no pré e no pós-operatório de tratamento cirúrgico da laringomalácia sugere que há melhora significativa do refluxo quando é aliviada a obstrução da via aérea pela supragloto‑ plastia.13 Por outro lado, há também evidências demonstrando que o tratamento clínico do RGE é eficaz em diminuir os sinto‑ mas da laringomalácia. O consenso é que o RGE deve ser trata‑ do em todos os pacientes com laringomalácia e sintomas ali‑ mentares. Cabeceira elevada durante a amamentação e uso de mamadeiras que minimizam a aerofagia podem diminuir o número de eventos de refluxo. Não há estudos controlados de‑ monstrando qual seria o regime de tratamento mais efetivo para RGE em pacientes com laringomalácia. Em geral, utilizam-se bloqueadores de bomba de hidrogênio ou blo‑ queadores H2 e agentes pró-cinéticos. Em crianças com doen‑ ça moderada a grave, estudos complementares (esofagograma, videofluoroscopia, e pHmetria de 24 horas) podem ser úteis para avaliação de prognóstico e manejo. Conforme o resultado desses estudos, pode-se optar por tratamento medicamento‑ so complementar ou até cirurgia de fundoplicatura. O diagnóstico pode ser feito no consultório, por meio de NFL, ou, em casos mais graves, no bloco cirúrgico, sob aneste‑ sia geral com ventilação espontânea. A decisão de realizar o exame endoscópico em ambulatório ou em bloco cirúrgico de‑ pende das condições clínicas do paciente (rápida progressão do estridor, cianose, dificuldades alimentares importantes), das comorbidades associadas (malformações craniofaciais, al‑ terações anatômicas e funcionais cardíacas) e da eventual desproporção entre os sintomas do paciente e os achados na NFL do consultório. Quando a endoscopia for realizada sob anestesia geral, na medida do possível, é aconselhável não a aprofundar, permitindo movimentação da laringe, já que o diagnóstico da laringomalácia é dinâmico. O examinador pode
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observar a movimentação das estruturas laríngeas durante a respiração espontânea e diferenciar laringomalácia de outras causas de estridor inspiratório, como paralisia de pregas vo‑ cais. Os achados da endoscopia que caracterizam laringomalá‑ cia incluem pregas ariepiglóticas curtas; cartilagens cuneifor‑ mes exageradamente grandes que são aspiradas para a luz da laringe durante a inspiração; epiglote tubular exageradamente alongada em forma de ômega, que se curva sobre si mesma; colapso interno das aritenoides; e ângulo externo agudo da epiglote na entrada laríngea. Essas condições favorecem o co‑ lapso laríngeo durante a inspiração.12
O sucesso do tratamento cirúrgico (supraglotoplastia) é de aproximadamente 94%, com uma baixa taxa de complicações. Cirurgia revisional pode ser necessária em torno de 20% das crianças, e sua necessidade é diretamente influenciada pelo número e tipo de comorbidades apresentadas pelo paciente. O fator prognóstico mais importante para o sucesso cirúrgico é a presença de comorbidades. Pacientes com malformações car‑ díacas, respiratórias e esqueléticas de cabeça e pescoço, além daqueles com paralisias e outras alterações encefálicas, alcan‑ çam índice máximo de sucesso de 50% e, não raras vezes, ne‑ cessitam de traqueostomia.
Tratamento A cirurgia é indicada nos casos de retardo de crescimento, difi‑ culdade importante na alimentação (com baixo ou nenhum ganho ponderoestatural), esforço respiratório importante com tiragem (algumas vezes com pectus escavatum), episódios de disfunção respiratória com cianose e necessidade de entuba‑ ção. A decisão de operar é individualizada e baseada também na saúde geral da criança e no seu desenvolvimento. A técnica cirúrgica é individualizada de acordo com a alteração anatô‑ mica laríngea que o paciente apresenta. Nos casos em que há pregas ariepiglóticas curtas, a cirurgia é a sua simples secção, uni ou bilateralmente. No serviço dos autores, realiza-se roti‑ neiramente a secção bilateral. Já quando há redundância dos tecidos laríngeos posteriores, a ressecção desses tecidos, asso‑ ciada geralmente à secção das pregas ariepiglóticas, é suficien‑ te para aliviar o sintoma. Quando, no entanto, o problema é a retroprojeção da epiglote, que obstrui a supraglote, a glossoe‑ piglotopexia é o tratamento de escolha. A cirurgia é a supra‑ glotoplastia, termo que designa globalmente a ressecção das pregas ariepiglóticas e/ou de porção lateral da epiglote, além da redundância mucosa posterior, dependendo do tipo de al‑ teração anatômica presente. Qualquer um dos procedimentos citados pode ser realizado com instrumentos frios ou a laser. Em alguns raros casos, é ne‑ cessária a traqueostomia, na maioria das vezes transitória. Es‑ tudo recente dos autores, com série de casos de pacientes sub‑ metidos a tratamento cirúrgico para laringomalácia, demonstrou eficácia e segurança da supraglotoplastia em la‑ ringomalácia grave, sem relatos de complicações, quando rea‑ lizado tratamento individualizado com cirurgia minimamente invasiva.14 É consenso que o RGE deve ser tratado em todos os pacientes com laringomalácia e sintomas alimentares. Não há estudos controlados demonstrando qual seria o regime de tra‑ tamento mais efetivo para RGE em pacientes com laringoma‑ lácia. Em geral, utilizam-se bloqueadores de bomba de hidro‑ gênio ou bloqueadores H2 e agentes pró-cinéticos.
Desafios Quando se trata de laringomalácia, a suspeição diagnóstica e o encaminhamento precoce do paciente com estridor ao otorri‑ nolaringologista é o principal desafio na prática clínica. A grande maioria dos casos de estridor tem evolução favorável e resolução espontânea. Contudo, o diagnóstico precoce da laringomalácia permite um acompanhamento adequado e preparo dos pais para uma possível, ainda que improvável, in‑ tercorrência respiratória. Além disso, a avaliação do otorrino‑ laringologista permite o diagnóstico diferencial da laringoma‑ lácia com outras causas de estridor.
Prognóstico O curso clínico é benigno na maioria dos pacientes, e a resolu‑ ção dos sintomas ocorre até os 18 meses de idade, optando-se, sempre que possível, pelo tratamento conservador.3 Entretan‑ to, pode haver complicações que tornam necessária a intervenção cirúrgica, o que ocorre em torno de 10% do total.
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Diagnóstico diferencial do estridor na infância Estenose subglótica A estenose subglótica caracteriza-se por lúmen menor que 4 mm na região da cartilagem cricoide, em crianças a termo.12 Embora alguns autores classifiquem a estenose subglótica como a 3ª causa mais comum de estridor em recém-nascidos e lactentes,3 no nosso meio, parece ser a 2ª causa mais comum, ocorrendo em até 20,5% dos pacientes (somando-se as congê‑ nitas e as adquiridas). A estenose subglótica é considerada congênita na ausência de entubação prévia ou causa traumáti‑ ca aparente. As falhas incompletas na recanalização da laringe na vida embrionária determinam os seus diversos tipos. Nem sempre é fácil diferenciar entre forma adquirida e con‑ gênita, pois, algumas vezes, não se tem oportunidade de ava‑ liar o estridor antes do manuseio da via aérea por outros pro‑ fissionais para controle da disfunção respiratória aguda, como em casos de entubação endotraqueal, cricotireoidostomia ou traqueostomia de urgência. A sintomatologia (estridor expiratório ou bifásico) pode não se manifestar até que haja alguma situação desencadean‑ te. A maioria dos casos surge após infecções do trato respirató‑ rio. A doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) também está associada ao desenvolvimento de estenose subglótica.12 A suspeita diagnóstica é feita pelo quadro clínico. O primei‑ ro exame pode ser a NFL flexível com anestesia tópica, que também exclui atresia de coanas e a estenose da abertura piri‑ forme. Em geral, no entanto, recorre-se à endoscopia rígida sob anestesia geral que permite, quando necessário, a corre‑ ção da lesão no mesmo tempo diagnóstico (Figura 4). Lesões associadas de via aérea e esôfago podem estar presentes em 19 a 58% das crianças.
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Figura 4 Videofibronasolaringoscopia em nível de pregas vocais demonstrando estenose membranosa na região subglótica.
O tratamento pode ser expectante nos casos menos graves, pois a maioria dos pacientes com estenose subglótica congêni‑ ta resolve os sintomas com o crescimento. Deve-se realizar tratamento clínico intensivo das infecções de vias aéreas, evi‑ tando-se entubação/traqueostomia. Alguns autores sugerem a simples incisão descompressiva anterior da cartilagem cri‑ coide (“cricoidsplit”) antes de se tentar a traqueostomia.12 As indicações de traqueostomia são necessidade de entubação, insucesso de extubação e não passagem de broncoscópio de 3,5 mm durante a avaliação. O tratamento cirúrgico pode envolver dilatação com balão (útil nos casos adquiridos de estenoses recentes) ou com dila‑ tadores específicos e laser de dióxido de carbono. O manejo endoscópico pode ser utilizado, e seu sucesso é inversamente proporcional à gravidade da estenose. A reconstrução laringo‑ traqueal (laringoplastia com enxerto de cartilagem costal, au‑ ricular ou tireóidea) pode ser realizada a partir de 1 ano de ida‑ de, mas é preferencialmente retardada até o 4º ano de vida ou mais. Há, no entanto, relato de cirurgia da estenose subglótica em crianças prematuras nos primeiros meses de vida em si‑ tuações especiais. Paralisia de pregas vocais As paralisias são a 3ª anomalia congênita mais comum de la‑ ringe,1 podendo ser uni ou bilaterais. Em geral, a paralisia bila‑ teral é secundária à malformação de sistema nervoso central (SNC) – a principal é a síndrome de Arnold-Chiari – enquanto paralisia unilateral é causada por lesões periféricas, geralmen‑ te traumáticas (especialmente trauma de parto, mas também após procedimentos cardíacos e torácicos). Entre outras cau‑ sas de paralisia de pregas vocais em neonatos, estão hidroce‑ falia, infecções, neoplasias, trauma de entubação, trauma cer‑ vical e asfixia.
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As paralisias podem estar associadas a diversas anomalias congênitas que devem ser excluídas, como meningomielocele, outras paralisias de nervos cranianos, estenose subglótica congênita, laringomalácia, malformações cardiovasculares e tumores de mediastino. É indispensável avaliar o paciente por exame de imagem de SNC, tórax e abdome, além de avaliação clínica neurológica. A paralisia unilateral pode ser assintomática ao nascimen‑ to. A obstrução respiratória é mínima, com períodos de agra‑ vamento em situações de estresse. Pode haver estridor bifási‑ co, aspiração e choro rouco ou fraco. Já a paralisia bilateral apresenta-se com insuficiência respiratória aguda e estridor importante, podendo necessitar de entubação ou traqueosto‑ mia de urgência. O diagnóstico de certeza é feito pela NFL com a criança em respiração espontânea, a fim de que se possa comparar a mobilidade das pregas vocais. A paralisia unilateral geralmente não necessita de trata‑ mento específico. O acompanhamento clínico e a fonoterapia são geralmente suficientes. Em crianças maiores, existem pro‑ cedimentos cirúrgicos para melhora da fonação. O tratamento definitivo da paralisia bilateral deve ser retar‑ dado o máximo possível (no mínimo por 12 meses), porque a maioria dos pacientes sem comorbidades associadas melhora espontaneamente. A traqueostomia, quando tenha sido ne‑ cessária, é mantida até 4 anos de idade, quando se deve avaliar a possibilidade de tratamento cirúrgico por meio de cordoto‑ mia, aritenoidectomia e outras técnicas que visam a aumentar a luz da laringe. Hemangioma de laringe Hemangiomas são os tumores mais comuns na infância, ocor‑ rendo com maior frequência em meninas, na proporção de 2 a 3:1. Os hemangiomas subglóticos são relativamente raros, e aproximadamente 50% dos pacientes têm associados heman‑ giomas cutâneos de cabeça e pescoço (Figura 5). A sintomatologia inicia-se tipicamente em torno dos 2 me‑ ses de vida e é de intensidade crescente. O estridor é bifásico, piora com choro, esforço e infecções de vias aéreas. O tumor ti‑ picamente apresenta fase de crescimento rápido durante 6 a 10 meses, depois se torna estacionário até iniciar fase de lenta involução. Embora a sintomatologia desapareça antes, a reso‑ lução completa dos hemangiomas ocorre em torno de 70% dos casos aos 5 a 7 anos de idade.1 Radiografias de pescoço e tórax podem demonstrar um es‑ treitamento assimétrico da laringe subglótica, que também é visto na estenose subglótica e na papilomatose laríngea. O diag‑ nóstico é feito por endoscopia. Visualiza-se estreitamento assi‑ métrico do lúmen da subglote e um tumor compressível, de su‑ perfície lisa e coloração avermelhada ou vinhosa (ver Figura 5). A biópsia geralmente não é necessária e, quando realizada, pode provocar sangramento de grau variado, que geralmente é menos intenso do que o esperado. A tomografia computadori‑ zada (TC) de pescoço e tórax é útil para avaliar a extensão da lesão para mediastino e tórax. A manutenção de uma via aérea permeável e anatômica é o principal objetivo do tratamento, que deve ser o menos agres‑
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Figura 5 Lesão hemangiomatosa de face e pescoço em criança de 3 meses e videolaringoscopia mostrando o hemangioma subglótico em região lateral e posterior da subglote.
sivo possível, já que a lesão tende a involuir ao longo do tempo. Alguns pacientes apresentam disfunção respiratória significa‑ tiva e necessitam de intervenção nos primeiros meses de vida. As opções terapêuticas são variadas, devendo ser adequadas a cada caso. A traqueostomia é realizada em caso de obstrução respira‑ tória aguda (cuidadosamente, evitando-se o sítio de lesão para não causar sangramentos). O tratamento inicial pode ser feito com corticoterapia sistêmica em doses regressivas, que reduz o tamanho do tumor, mas apresenta efeitos adversos. Aplica‑ ções de corticosteroide ou substância esclerosante intralesio‑ nal também são utilizadas como terapia adjuvante. Em 2009, surgiram os primeiros relatos do uso do propranolol via oral como tratamento de primeira linha para hemangiomas larin‑ gotraqueais, baseados no sucesso do seu uso em hemangio‑ mas cutâneos.12 Atualmente, o propranolol é alternativa eficaz e segura como opção inicial ou em casos refratários a outras terapias, associados ou não a corticosteroides.12 Vaporização com laser de CO2 é o tratamento ideal para os hemangiomas capilares, restritos à região lateroposterior da subglote, sendo alternativa segura, principalmente se aplica‑ do por via endoscópica. A exérese cirúrgica aberta com coloca‑ ção de molde laríngeo apresenta como principal desvantagem o risco de estenose pós-operatória. A embolização e o uso de interferon e agentes quimioterápicos são opções para lesões refratárias ao tratamento convencional e podem ser necessá‑ rios quando há envolvimento mediastinal ou de outros órgãos. Diafragmas e atresia laríngea Representam uma falha na recanalização da laringe durante o desenvolvimento pré-natal. Os diafragmas são membranas de espessura variável que se estendem parcialmente sobre a la‑ ringe ou por toda a glote (atresia). A atresia de laringe está ge‑ ralmente associada à agenesia traqueal e, na maioria dos casos, é incompatível com a vida.12 É vista associação com mi‑ crodeleções do cromossomo 22q11 (síndrome velocardiofacial) em alguns casos. Aproximadamente 75% dos diafragmas ocorrem na glote, podendo se estender para subglote. Diafragmas supraglóticos são extremamente raros. A membrana em geral interliga a porção membranácea das pregas vocais, restringindo seus movimentos.
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Os dois principais sintomas dos diafragmas congênitos de laringe são a obstrução respiratória e a disfunção vocal. A membrana, quando pequena, é geralmente assintomática, e a gravidade da sintomatologia correlaciona-se diretamente com a sua extensão. O diagnóstico é feito por meio da NFL e da la‑ ringoscopia direta sob anestesia geral, que permite palpação e avaliação da extensão da lesão para subglote (Figura 6). A maioria dos diafragmas de maior extensão é fibrosa com borda côncava posterior, enquanto os restritos às pregas vocais são membranosos. O tratamento é baseado na extensão da lesão e na gravidade dos sintomas. Pode incluir secção do diafragma por via endos‑ cópica (a frio ou com laser de CO2), laringofissura e dilatações para prevenir recidiva. Devem-se evitar áreas cruentas opostas no ato cirúrgico, para evitar sinéquias e estenoses. Algumas ve‑ zes, utilizam-se os stents de Keel para esse fim, que permane‑ cem in situ por 2 semanas. Aproximadamente 40% dos casos, conforme a gravidade do acometimento, acabam necessitando de traqueostomia, que em geral não é definitiva.12 Papilomatose laríngea É o tumor benigno da laringe mais frequente em crianças e está associado a alta morbidade, o que se deve principalmente às várias intervenções a que são submetidos os pacientes e à traqueostomia. Quanto mais precoce é a necessidade de seu diagnóstico, pior sua evolução. A média de idade no diagnósti‑ co é de 4 anos. Crianças diagnosticadas com idade inferior a 3 anos têm 3,6 vezes mais chance de se submeter a mais do que 4 procedimentos cirúrgicos por ano e quase 2 vezes mais chan‑ ce de ter 2 ou mais sítios anatômicos acometidos do que aque‑ las diagnosticadas após os 3 anos. Muitos pacientes desenvol‑ vem lesões traqueais após a traqueostomia, a qual deve ser evitada sempre que possível.
Figura 6 Videofibronasolaringoscopia demonstrando membrana laríngea anterior.
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Distúrbios da Laringe •
Mais prevalente no sexo masculino, tendo incidência maior nos primeiros anos de vida e tendência a regredir na puberda‑ de, a papilomatose laríngea é causada pelo papilomavírus hu‑ mano (HPV) tipo 6 e 11. Há associação entre papilomatose la‑ ríngea e condiloma acuminado materno presente durante o parto. A etiologia venérea é reforçada pelo fato de que 90% das lesões genitais são também causadas por HPV 6 ou 11, com se‑ quência de DNA idêntica à encontrada nos vírus de laringe. Os sintomas clássicos da papilomatose laríngea são disfo‑ nia e dispneia. O estridor é frequente, tendo início gradual e progressivo por semanas ou meses. A disfunção respiratória aguda é rara pela instalação lenta da obstrução de via aérea. No entanto, observa-se tendência atual de acometimento em crianças menores, nas quais o pequeno lúmen laríngeo favore‑ ce a obstrução aguda. O diagnóstico é feito com visualização direta por laringoscopia e biópsia (Figura 7). O papiloma de laringe é uma entidade de difícil tratamento, em razão de sua recorrência e complicações, que podem in‑ cluir danos irreversíveis à voz. A remoção endoscópica mecâ‑ nica, com micropinças, com laser, microdebridador ou eletro‑ cautério, parece ter índice de sucesso semelhante, embora atualmente haja uma tendência em favor do uso do microde‑ bridador. O interferon tem sido usado como agente imunomo‑ dulador. Pode ser utilizado como terapia adjuvante, induzin‑ do proteínas efetoras que irão inibir a replicação viral. Com a suspensão do tratamento, no entanto, existe tendência de re‑ cidiva de lesões. A infiltração intralesional do antiviral cidofo‑ vir pode levar à remissão permanente da doença em alguns pacientes, porém, atualmente, seu uso na papilomatose larín‑ gea não está liberado no Brasil. Resultados promissores têm sido obtidos com uso de bevacizumabe, um agente quimiote‑ rápico antiangiogênese, em casos agressivos de papilomatose. No entanto, ainda não está bem estabelecida sua segurança para uso pediátrico. A vacina para HPV nos casos de papilo‑ matose laríngea já instalada ainda está sendo estudada, e pa‑ rece ser mais uma opção terapêutica nesses casos.
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Considerações finais Estridor é sintoma e não diagnóstico; ele pode ser inspiratório, expiratório ou bifásico, conforme sua localização e tipo de al‑ teração na árvore respiratória. Em lactentes, as principais causas de estridor são altera‑ ções laríngeas. Laringomalácia e estenose subglótica são as mais frequentes. Mesmo nos casos com diagnóstico clínico presuntivo, é im‑ portante identificar, sob visualização direta endoscópica, a causa do estridor e as comorbidades associadas. Essa é a me‑ lhor maneira de fazer o diagnóstico específico e planejar o tra‑ tamento. A avaliação clínica dos pacientes com estridor requer deta‑ lhamento completo do sintoma. O estridor inspiratório é ca‑ racterístico de lesões extratorácicas, e o expiratório é caracte‑ rístico de lesões intratorácicas. As alterações na subglote geralmente se apresentam com estridor bifásico. A laringomalácia é a anomalia congênita da laringe mais co‑ mum. A sintomatologia é caracterizada por estridor, que inicia nas primeiras 2 semanas de vida e piora com agitação, choro e alimentação. O curso clínico é benigno na maioria dos pacien‑ tes, e a resolução dos sintomas ocorre até os 18 meses de idade, optando-se quase sempre pelo tratamento conservador. A estenose subglótica é a segunda alteração laríngea mais comum na infância e deve ser sempre aventada em pacientes com história de entubação prévia, dificuldades de entubação e/ou com laringites de repetição. Outras causas de estridor são paralisia de pregas vocais, he‑ mangioma de laringe, diafragmas e atresias laríngeas e papilo‑ matose laríngea. A aspiração de corpo estranho é outra causa não infecciosa importante, que deve ser suspeitada a partir da história e do início súbito da sintomatologia. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Avaliar e iniciar o processo diagnóstico da criança com estridor. • Distinguir laringomalácia de outras causas de estridor. • Descartar diagnósticos mais graves. • Orientar os pais e referir o paciente a outros especialistas, segundo a indicação. • Garantir medidas de apoio sempre que necessário.
Referências bibliográficas 1. 2. 3.
4. Figura 7 Videonasofibrolaringoscopia demonstrando papilomatose laríngea extensa.
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Tratado de Pediatria 4ed.indb 1698
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Pneumologia COORDENADOR
Leonardo Araujo Pinto
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COORDENADOR E AUTORES SEÇÃO 21 PNEUMOLOGIA
Coordenador Leonardo Araujo Pinto Pediatra e Pneumologista Pediátrico. Doutor em Saúde da Criança e do Adolescente pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Departamento de Pediatria e do Programa de Pós‑graduação em Pediatria da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC‑RS). Presidente do Comitê de Pneumologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Autores Ana Alice Amaral Ibiapina Parente Pneumologista Pediátrica. Mestre em Pediatria e Doutora em Pesquisa Clínica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora Adjunta de Pediatria da UFRJ. Antonio Fernando Ribeiro Especialista em Pediatria pela Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Doutor em Saúde da Criança pela FCM‑Unicamp. Cássio da Cunha Ibiapina Professor Associado do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (FM‑UFMG). Cristina Gonçalves Alvim Professora Associada do Departamento de Pediatria da FM‑UFMG.
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Diego Brandenburg Pneumologista pediátrico pela Universidade de Santiago do Chile. Coordenador do Laboratório de Função Pulmonar do Hospital da Criança Santo Antônio. Pneumologista Pediátrico do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Edna Lúcia Santos de Souza Mestre em Assistência Materno‑infantil e Doutora em Medicina e Saúde pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora Associada do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Bahia da UFBA. Coordenadora do Serviço de Pneumologia Pediátrica do Hospital Universitário Professor Edgard Santos da UFBA. Elenara da Fonseca Andrade Procianoy Pediatra e Pneumologista Pediátrica. Doutora em Ciências Pneumológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro Efetivo do Departamento de Pneumologia da SBP. Fernando Augusto de Lima Marson Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente e Doutor em Ciências pela Unicamp. Pesquisador Associado ao Centro de Investigação em Pediatria e Professor do Mestrado Acadêmico em Genética Médica da FCM‑Unicamp. Gilberto Bueno Fischer Professor Titular de Pediatria da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Chefe do Serviço de Pneumopediatria do Hospital da Criança Santo Antônio.
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Helena Teresinha Mocelin Especialista em Pediatria pelo Hospital da Criança Conceição. Mestre em Pediatria e Doutora em Pneumologia pela UFRGS. Membro Efetivo do Comitê de Pneumologia da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul. João Paulo Becker Lotufo Doutor em Pediatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Responsável pelo Tema “Drogas” na SBP e Sociedade de Pediatria de São Paulo. Responsável pelo Ambulatório Antitabágico do Hospital Universitário da USP. Criador do Projeto de Prevenção às Drogas no Ensino Fundamental e Médio “Dr Bartô e os Doutores da Saúde”. José Dirceu Ribeiro Especialista em Pediatria e Pneumologia Pediátrica pela SBP e Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Mestre em Clínica Médica, Doutor, Livre ‑docente e Titular em Pediatria pela Unicamp. Coordenador do Setor de Pneumologia Pediátrica do Departamento de Pediatria da FCM‑Unicamp. Laura Maria de Lima Belizario Facury Lasmar Doutora em Pediatria pela UFMG. Professora Associada do Departamento de Pediatria da FM ‑UFMG. Professora do Curso de Pós‑graduação em Ciências da Saúde da Criança e do Adolescente – Orientadora Plena – da UFMG. Coordenadora da Unidade de Pneumologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG. Leandro Meirelles Nunes Médico Plantonista da UTI Neonatal do HCPA. Especialista em Pediatria e Neonatologia pelo HCC e SBP. Doutor em Saúde da Criança e do Adolescente pela UFRGS. Professor‑assistente do Departamento de Pediatria da UFRGS. Professor Adjunto do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Feevale. Maria de Fátima Bazhuni Pombo March Doutora em Doenças Infecciosas e Parasitárias pela UFRJ. Professora Associada de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFRJ. Membro do Departamento Científico de Pneumologia da SBP.
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Norberto Ludwig Neto Chefe do Serviço de Pneumologia Pediátrica e Fibrose Cística do Hospital Infantil Joana de Gusmão. Presidente do Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística e do Departamento de Pneumologia da Sociedade Catarinense de Pediatria. Paulo Augusto Moreira Camargos Professor Titular do Departamento de Pediatria da FM‑UFMG. Membro da Unidade de Pneumologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG. Pesquisador do CNPq e FAPEMIG. Assistant Étranger da Faculté de Médecine Saint‑Antoine da Université Pierre et Marie Curie (Paris VI), França. Sérgio Luís Amantéa Professor Adjunto do Departamento de Pediatria da UFCSPA. Chefe da Emergência Pediátrica do Hospital da Criança Santo Antônio. Doutor em Medicina – Pneumologia – pela UFRGS. Coordenador do Programa de Pós‑graduação: Atenção à Saúde da Criança e do Adolescente da UFCSPA. Sidnei Ferreira Especialista em Pediatria e em Pneumologia Pediátrica pela UFRJ/SBP. Professor Adjunto de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFRJ e da Universidade Estácio de Sá. Professor do Serviço de Pneumologia Pediátrica do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (UFRJ). Membro do Comitê Científico de Doenças Respiratórias da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro. Editor da Revista Bioética. Valentina Coutinho Baldoto Gava Chakr Especialista em Pneumologia Pediátrica e Mestre e Doutora em Pediatria e Saúde da Criança pela PUC ‑RS. Professora Adjunta das Disciplinas Promoção da Saúde da Criança e do Adolescente, Internato em Pediatria e Pediatria – Estágio do Departamento de Pediatria da UFRGS. Research Fellow em Pneumologia Pediátrica pela Indiana University, EUA.
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CAPÍTULO 1
TABAGISMO PASSIVO João Paulo Becker Lotufo
Introdução Essa exposição pode ser oral ou dérmica, indo para a pele ou O tabagismo passivo é a inalação da fumaça de derivados do boca da criança.3 tabaco, como cigarro, charuto, cigarrilhas, cachimbo, narguilé A fumaça que sai da ponta do cigarro e se difunde homoge‑ e outros produtores de fumaça, por indivíduos não fumantes, neamente no ambiente contém em média 3 vezes mais nicoti‑ que convivem com fumantes em ambientes fechados, respi‑ na, 3 vezes mais CO e até 50 vezes mais substâncias canceríge‑ rando as mesmas substâncias tóxicas que o fumante inala. O nas do que a fumaça que o fumante inala diretamente. Foram tabagismo é considerado uma doença (CID F17.2) pela Organi‑ estudadas as variáveis sociodemográficas e clínicas em 115 zação Mundial da Saúde (OMS) desde 1992. O tabagismo ativo crianças de 0 a 5 anos. Crianças expostas ao tabagismo apre‑ é a primeira causa de morte evitável no mundo, o álcool é a se‑ sentam maior risco de desenvolver otite, sibilância, rinite e ir‑ gunda e o tabagismo passivo é a terceira. A fumaça do cigarro é ritação ocular.4 uma mistura de aproximadamente 4.720 substâncias tóxicas Atualmente, o fumo está cada vez mais concentrado entre diferentes que se constituem de duas fases fundamentais: a os mais pobres e menos escolarizados. Consequentemente, gasosa e a particulada. A fase gasosa é composta, entre outros, pode-se dizer que a população mais pobre é a que deve sofrer por monóxido de carbono (CO), amônia, cetonas, formaldeído, também com o tabagismo passivo. acetaldeído e acroleína. A fase particulada contém nicotina e A divulgação do tabagismo passivo pelo grupo antitabágico alcatrão. O alcatrão é um composto de mais de 40 substâncias do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU‑ comprovadamente cancerígenas, formado a partir da combus‑ -USP) entre 2002 e 2005 e a percepção dos malefícios do taba‑ tão dos derivados do tabaco, entre elas, arsênio, níquel, benzo‑ gismo passivo pelos funcionários do HU-USP facilitou a pireno, cádmio, resíduos de agrotóxicos, substâncias radioati‑ implantação da proibição do fumo dentro e no entorno do vas, como o polônio 210, acetona, naftalina e até fósforo P4/ Hospital, 4 anos antes da lei de proibição do fumo em ambien‑ P6, substâncias usadas em veneno para matar rato.1 te fechado ser implantada em São Paulo (2009). O CO tem afinidade com a hemoglobina (Hb) presente nos Diagnosticar o tabagismo como uma doença ajudou a habi‑ glóbulos vermelhos do sangue, que transportam oxigênio para litar a implementação de programas de tratamento da depen‑ todos os órgãos do corpo. A ligação do CO com a Hb forma o dência da nicotina no mundo. Há crescente preocupação em composto chamado carboxi-hemoglobina, que dificulta a oxi‑ todo o mundo em relação às leis de proibição do fumo em am‑ genação do sangue, privando alguns órgãos do oxigênio e cau‑ biente fechado. A lei brasileira é mais avançada, pois inclui co‑ sando doenças como a aterosclerose. berturas externas como “área fechada”. O tabagismo passivo pode ocorrer na forma indireta (de Polaska e Koniesko analisaram 12 trabalhos após o ano segunda mão), com a fumaça que sai da ponta do cigarro ou a 2000 indicando a eficácia dessas medidas. No mundo, todos que é expirada pelo fumante ativo, ou de terceira mão, com o os trabalhadores hospitalares foram protegidos do tabagismo que é depositado no mobiliário.2 Fumo de terceira mão (THS) passivo. A redução de cotinina em amostras biológicas redu‑ refere-se aos componentes do fumo passivo que aderem a su‑ ziu-se de 57 a 89% após a implantação da Lei Ambiente Livre perfícies interiores e persistem no ambiente. Pouco se sabe so‑ do Cigarro. A diminuição de nicotina nos locais de trabalho e a bre os níveis de exposição e as medidas corretivas possíveis percepção disso entre os funcionários provou a efetividade da para reduzir a exposição potencial em áreas contaminadas. implantação da Lei Ambiente Livre do Cigarro.5 Exposição à nicotina a partir de resíduo THS pode ser 6,8 ve‑ Comprovou-se a presença de cotinina urinária em 23,8% zes mais elevada em crianças e 24 vezes superior em adultos. das crianças de 0 a 5 anos que frequentaram o pronto-socorro
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de Pediatria do HU-USP. Cinquenta e um por cento das crian‑ Aconselhamento breve ou intervenção breve ças eram fumantes passivas, e os filhos de mães fumantes Quem faz o aconselhamento ou intervenção breve para taba‑ apresentaram maiores níveis de cotinina urinária, sendo estes gismo pode fazê-lo também para as outras drogas lícitas. Vale ainda mais elevados nos filhos de casais nos quais pai e mãe lembrar que a experimentação da maconha, que ocorre por eram fumantes. O fumo é um hábito mais comum entre ho‑ volta dos 17 anos, está pouco abaixo da experimentação do ta‑ mens do que entre mulheres, mas o uso do tabaco pelas mu‑ baco (20% e 25%, respectivamente), e o álcool é a droga mais lheres está aumentando e começando cada vez mais cedo.6 experimentada até os 17 anos de idade (59%) (Figura 1). O tabagismo passivo agudo ou crônico na infância pode an‑ Aconselhamento breve significa conversar com a família teceder os sintomas do tabagismo ativo de pais e avós. A infla‑ sobre os riscos de droga lícita em suas casas. Inicialmente, é mação da mucosa respiratória dos fumantes passivos na in‑ preciso saber se há pais fumantes, alcoólatras, usuários de fância é responsável pelas infecções respiratórias do trato maconha e/ou outras drogas nas famílias. A partir daí, inicia‑ inferior, pelo aumento de crianças sibilantes, por asma, tanto -se a conversa, fornecendo informações e aumentando a dis‑ exacerbações quanto casos novos, por otites médias agudas e cussão do assunto das drogas na família. A presença dessa dis‑ pela rinite que pode anteceder ou ajudar a desencadear a asma. cussão e a trocas de ideias na família foi o único fator positivo Quando relacionado à gestação, o tabagismo pode desenca‑ na diminuição da experimentação de drogas pelos jovens, su‑ dear recém-nascidos de baixo peso ou prematuros, além de perando a presença de espiritualidade, esportes, atividades ser associado à síndrome da morte súbita em lactentes fuman‑ culturais ou sociais na família. tes passivos. Há ainda dados importantes, como redução da Durante as consultas habituais, os médicos podem seguir uma orientação padrão com perguntas para abordar os pacien‑ função pulmonar no próprio recém-nascido.7 Dentro desse enfoque, a prevenção do tabagismo passivo é tes sobre a questão de drogas. Além disso, podem distribuir de extrema importância para a saúde dos adultos e das crian‑ material adequado para a faixa etária, como os livretos do Dr. ças. Diversas leis ao redor do mundo dificultam a possibilida‑ Bartô, projeto implantado no HU-USP e a ser implantado no de do tabagismo passivo. Uma delas é a proibição de se fumar Hospital Darcy Vargas e no Instituto da Criança em São Paulo em ambientes fechados. Na Inglaterra, proíbe-se fumar em (www.drbarto.com.br). Quanto mais intenso e repetitivo em automóveis em que haja crianças, pois elas seriam tabagistas novos aspectos, maior o alcance do aconselhamento ou da passivas. Em Nova York, proíbe-se fumar em praças e praias, cessação da droga em questão. Nos casos de consumo rotinei‑ pois aqueles que estiverem no entorno do fumante ativo se‑ ro, a intervenção deve ocupar um tempo maior de orientação. riam tabagistas passivos. Em estudo piloto realizado no HU-USP em São Paulo, en‑ A melhor maneira de se prevenir o tabagismo passivo, fun‑ tre os pacientes atendidos, o álcool preponderou no consumo ção do pediatra e de qualquer médico ou trabalhador da saúde, familiar (43,5%), seguido por tabaco (34,5%), maconha é a intervenção ou aconselhamento breve nas consultas médi‑ (27,5%) e crack (11,5%). A presença de problemas respirató‑ cas ou de enfermagem, orientando sobre o tabagismo tanto rios nas famílias foi relatada por 64,1% dos entrevistados, sen‑ ativo quanto passivo.8-12 do que 44,5% relataram presença de asma, 21,7% bronquite,
Aconselhamento breve nas escolas: Experimentação de drogas no último ano
Sexo
Pais vivem juntos
Diálogo no relacionamento familiar
Reprovação escolar anterior
Atividade extra escolar
Atividade esportiva
Frequenta atividade religiosa
Meninos
Meninas
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Não
Álcool
23,3% (314)
26% (378)
22% (353)
27,4% (324)
22% (454)
33,8% (216)
37% (155)
23% (536)
27%* (536)
20% (144)
25% (267)
24% (427)
22% (54)
25% (640)
Cigarro
7% (94)
6,9% (101)
5,3% (83)
9% (106)
5,3% (108)
12,5% (80)
14,2% (59)
5,7% (135)
7,6%* (152)
5,8% (41)
5,9% (62)
7,6% (133)
5,8% (14)
7% (181)
Maconha
5,3% (72)
3,9% (57)
3,9% (61)
5,2% (61)
3,5% (71)
8,1% (5,2)
11,3% (47)
3,4% (81)
5%* (111)
3,4% (24)
4,9% (52)
4,4% (77)
4,1% (10)
4,6% (119)
Crack
2,2% (29)
1,7% (25)
1,5% (24)
2,2% (26)
1,3% (26)
4,2% (27)
2,9% (12)
1,7% (39)
2%* (40)
1,7% (12)
1,6% (17)
2,1% (37)
2,1% (5)
1,9% (49)
Figura 1 Aconselhamento breve nas escolas – experimentação de drogas em 2015.
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Tabagismo Passivo •
2,2% enfisema. Apesar de o álcool ser o maior consumo nas fa‑ mílias, não correspondeu aos temas escolhidos pelos residen‑ tes e a distribuição do material didático. Os temas que os resi‑ dentes mais resolveram abordar nas orientações foram: tabaco (34,5%), álcool (31%), maconha (15,5%), crack (8,6%) e ou‑ tros (8,6%). O tempo gasto no aconselhamento breve foi em torno de 1 a 4 minutos (96,5%), com mediana de 2 minutos (34%). A opinião dos pais é que essa orientação foi interessan‑ te (100%) e a maioria mostrou-se disposta a conversar nova‑ mente sobre esses temas (98,8%), sendo que a avaliação (de 0 a 10) atribuídas pelos pais a esse aconselhamento foram nota 9 para 9,75% dos casos e 10 para 81,7%.13 Ou seja, há uma gran‑ de adesão por parte dos pais ao aconselhamento breve sobre drogas na consulta pediátrica. Essas orientações ocupam pou‑ co tempo e foram bem aceitas pelas famílias, que gostariam de ter novos aconselhamentos em consultas futuras. O pediatra deve tornar as intervenções ou aconselhamentos sobre drogas uma rotina. Em estudo das leis antifumo em diversos países, como Es‑ tados Unidos, Alemanha e Uruguai, verificou-se diminuição de doenças cardíacas e pulmonares. Após 1 ano da Lei Am‑ biente Fechado Livre do Tabaco, observou-se diminuição de 15% em hospitalizações por ataque cardíaco, 16% em interna‑ ções por acidente vascular cerebral (AVC) e 24% em hospitali‑ zações por problemas respiratórios, como asma ou doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). Esses trabalhos apoia‑ ram posições fortes da Associação Americana do Coração a lu‑ tar por “Legislações mais fortes que significariam reduções imediatas nos problemas de saúde relacionados ao tabagismo, o que acontece em decorrência da diminuição do fumo passi‑ vo e do número de pessoas que deixam de fumar por causa dessas leis”. De todos os países estudados, hoje o Brasil tem a menor porcentagem de homens fumantes: 21,6%. Em segundo lugar vem o Reino Unido, com 22,8%, seguido por Estados Unidos, com 24%. Nos Estados Unidos, durante o período de 19752000, aproximadamente 795.000 mortes (550.000 homens e 245.000 mulheres) foram evitadas, como resultado de mu‑ danças no comportamento de fumar. No entanto, essas mor‑ tes representam aproximadamente 30% das mortes por cân‑ cer de pulmão que, potencialmente, poderiam ter sido evitadas durante o período de 1975-2000 se o cigarro fosse eli‑ minado completamente. No período de 10 anos (1991-2000), essa fração foi aumentada para cerca de 37%. Apesar de um grande impacto de mudança de comportamento do fumante, o esforço de controle do tabaco ainda é necessário para reduzir a carga da doença.14 O Brasil está entre os países com os maiores índices de ex‑ -fumantes, com a menor taxa de homens fumantes em relação ao total da população, comparado com outros países. Segundo o levantamento feito entre outubro de 2008 e março de 2010, 46,4% dos homens brasileiros e 47,7% das mulheres brasilei‑ ras que disseram que fumavam diariamente no passado tinha abandonado a dependência. O número é o terceiro mais alto, atrás apenas do Reino Unido (com 57,1% para os homens e 51,4% para as mulheres) e dos Estados Unidos (48,7% e
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50,5%, respectivamente). Em quarto lugar, o Uruguai também apresenta um bom resultado, com 42,8% de homens e 41% de mulheres ex-fumantes. A pior situação é encontrada na China (12,6% de homens e 16,8% de mulheres) e na Índia (12,1% e 16,2%). A luta contra o tabaco e as outras drogas lícitas deve conti‑ nuar, e os pediatras podem fazer a diferença. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar o risco relativo de drogas na família. • Saber fazer o aconselhamento breve sobre a droga identificada. • Distribuir material adequado em sua intervenção. • Repetir, a cada consulta, o aconselhamento breve, aprofundando os conhecimentos da família em relação às drogas.
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CAPÍTULO 2
DISTÚRBIOS TRAQUEOBRÔNQUICOS Elenara da Fonseca Andrade Procianoy Diego Brandenburg
Introdução Doenças da traqueia e dos brônquios podem ser congênitas ou adquiridas. A anomalia congênita mais comum é a traqueo‑ malácia e, entre as anomalias adquiridas mais comuns, estão as lesões traqueobrônquicas secundárias à entubação tra‑ queal, prolongada ou não.1 Os avanços no tratamento de crian‑ ças criticamente doentes, seja por prematuridade extrema, malformações complexas ou outras doenças graves, são os principais determinantes da criação desse grupo especial de pacientes que apresentam lesões complexas da via aérea.1 O manejo desses pacientes é também complexo e exige atendi‑ mento especializado e multidisciplinar. O pediatra geral deve saber identificar os sinais e os sintomas associados à patologia da via aérea e encaminhar esses pacientes para avaliação. As alterações traqueobrônquicas costumam manifestar-se por respiração ruidosa, seja estridor, ronco ou sibilo. A idade do início dos sintomas e a gravidade dependem da etiologia, da localização e da extensão do distúrbio traqueobrônquico. Distúrbios congênitos manifestam-se logo ao nascimento ou nos primeiros meses de vida. Distúrbios que afetam a traqueia (centrais) produzem sons ditos homofônicos, ou seja, de aus‑ culta simétrica no tórax. Distúrbios que causam obstrução di‑ nâmica da via aérea extratorácica geram ruídos inspiratórios, enquanto os que causam obstrução dinâmica da via aérea intratorácica geram ruídos expiratórios. Se a obstrução for fixa, o ruído será inspiratório e expiratório. No caso de obstrução difusa e variável das vias aéreas, como a observada na asma, os sibilos serão difusos e polifônicos, ou seja, assimétricos. Distúrbios que causam obstrução fixa dos brônquios geram ruídos bem localizados e que não diminuem após tosse ou broncodilatador. Apesar de muitas vezes os pacientes apresentarem sinto‑ matologia exuberante, as alterações das vias aéreas centrais são frequentemente inaparentes ou não diagnosticadas pela radiografia comum de tórax.2 No entanto, essas alterações po‑ dem mostrar sinais indiretos, como assimetria dos volumes pulmonares, aumento do hilo, desvio do mediastino, atelecta‑
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sia persistente e hiperinsuflação localizada. A maioria dos pa‑ cientes necessita de endoscopia das vias aéreas e/ou tomo‑ grafia computadorizada (TC) para investigação diagnóstica. A aquisição helicoidal das imagens permite a realização de re‑ construções multiplanares bi ou tridimensionais, que são es‑ pecialmente úteis na avaliação da extensão da doença e no planejamento cirúrgico.2 As doenças traqueobrônquicas são relativamente inco‑ muns. Neste capítulo, serão abordados os distúrbios da tra‑ queia e dos brônquios mais graves ou mais frequentes em pe‑ diatria. Atresia traqueal Atresia, agenesia ou aplasia da traqueia é muito rara e muito gra‑ ve. O defeito consiste de ausência parcial ou completa da tra‑ queia abaixo da laringe. Se o remanescente da traqueia não esti‑ ver conectado com o trato gastrointestinal via fístula traqueo ou broncoesofágica, a situação será incompatível com a vida. A atresia traqueal pode ser diagnosticada intraútero, e a reconstrução traqueal pode ser realizada por cirurgia fetal. Os sinais de atresia traqueal ocorrem imediatamente após o nas‑ cimento: o recém-nascido apresenta disfunção respiratória grave, cianose, não tem choro audível e não consegue ser en‑ tubado e ventilado.1 Estenose traqueal congênita É uma condição rara em que um segmento, frequentemente distal, ou toda a extensão da traqueia apresenta anéis cartila‑ ginosos completos ou quase completos, nesse caso, com a por‑ ção membranosa da traqueia muito estreita, causando dimi‑ nuição do diâmetro traqueal (Figura 1). A gravidade dos sintomas é variável e depende da localiza‑ ção e da extensão da estenose, podendo manifestar-se como dificuldade respiratória neonatal grave, muitas vezes fatal, ocasionar sintomas obstrutivos somente durante os exercícios ou permanecer assintomática até a vida adulta. Geralmente, as crianças apresentam estridor, pneumonia ou ambas as ma‑
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Figura 1 Tipos de estenose traqueal congênita.
nifestações nos primeiros meses de vida. Sibilância, episódios de cianose, taquipneia ou tosse também podem estar presen‑ tes. O sinal mais frequente é o sibilo expiratório monofônico refratário ao broncodilatador, se a estenose estiver localizada na porção intratorácica, ou bifásico, se afetar tanto a porção intratorácica quanto a extratorácica da traqueia. Pacientes maiores podem, além do sibilo, ter pneumonia recorrente.3 As estenoses traqueais congênitas estão frequentemente associadas a outras malformações da árvore traqueobrônqui‑ ca. A mais comum, presente em cerca de 50% dos pacientes, é a artéria pulmonar esquerda anômala, que se origina da artéria pulmonar direita e passa para o lado esquerdo por trás da tra‑ queia, ocasionando-lhe algum grau de estreitamento. Outras malformações observadas são agenesia ou hipoplasia pulmo‑ nar unilateral e brônquios lobares médio e inferior esquerdo com origem no brônquio principal. TC com reconstrução tridimensional da via aérea é o melhor exame para diagnóstico e avaliação da extensão da estenose e da presença de anormalidades da artéria pulmonar, de ramos traqueobrônquicos anormais, anormalidades do arco aórtico e da maioria de outras causas raras de obstrução traqueal. A broncoscopia é reservada para dúvida diagnóstica ou necessi‑ dade de confirmação do local e da gravidade da estenose. O manejo também depende da gravidade da estenose, va‑ riando desde conduta conservadora, aguardando o crescimen‑ to da criança e da via aérea, até dilatação com balão, ressecção ou reconstrução do segmento estenótico.1,3 Traqueomalácia e broncomalácia A malácia da traqueia e dos brônquios é um distúrbio relativa‑ mente comum, caracterizado pelo aumento do colapso dinâ‑ mico da traqueia ou brônquio durante a respiração, resultando em obstrução da via aérea e sintomas clínicos. Colapso dinâ‑ mico da traqueia extratorácica causa sintomas inspiratórios incluindo estridor, aumento da fase inspiratória da respiração e diminuição dos volumes pulmonares. Colapso da traqueia intratorácica, seja generalizado ou localizado, causa sintomas expiratórios incluindo sibilância, tosse tipo “de cachorro”, au‑ mento da fase expiratória da respiração, alçaponamento de ar
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e diminuição da remoção da secreção das vias aéreas com ten‑ dência ao acúmulo de secreções e sinais de bronquite ou episódios frequentes de infecção respiratória. Casos mais gra‑ ves podem se manifestar com cianose, dificuldade na alimen‑ tação, episódios de sufocação, apneias ou mesmo por dificul‑ dade de extubação, que pode ser observada ainda no período neonatal, após a correção cirúrgica de atresia de esôfago. En‑ tretanto, muitas crianças não apresentam manifestações até 2 ou 3 meses de idade. Na broncomalácia, a apresentação clínica é semelhante, com infecções respiratórias recorrentes localizadas, sibilância expi‑ ratória localizada persistente e até desconforto respiratório.1-3 A traqueomalácia pode ser congênita ou adquirida (Figu‑ ra 2). A traqueomalácia congênita resulta de anormalidades no processo de maturação da via aérea, com um aumento da relação entre a porção muscular e cartilaginosa da traqueia, le‑ vando a fraqueza localizada ou generalizada da parede tra‑ queal. A traqueomalácia congênita ocorre em aproximada‑ mente 1:2.100 crianças, sendo o distúrbio traqueal congênito mais comum. Casos congênitos geralmente associam-se a anomalias cardiovasculares, como duplo arco aórtico, artéria inominada anômala ou sling da artéria pulmonar. Algumas ve‑ zes, a traqueomalácia associa-se à atresia de esôfago com fís‑ tula traqueoesofágica. Ela também pode resultar de uma anor‑ malidade congênita da estrutura cartilaginosa da traqueia decorrente de doenças do tecido conjuntivo (condroplasias e policondrites).4,5 Frequentemente, a traqueomalácia associa‑ -se a laringo ou broncomalácia. A traqueomalácia adquirida re‑ sulta de trauma, compressão extrínseca, lesão por pressão po‑ sitiva na via aérea, infecção ou inflamação na traqueia que teve um desenvolvimento normal. Traqueomalácia intratorá‑
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Figura 2 Tipo de traqueomalácia. Tipo I: notável alteração da relação cartilagem/membrana (largura/profundidade) e do diâmetro anteroposterior traqueal. Decorre de anomalias intrínsecas da cartilagem. Tipo II: é a mais frequente; geralmente localizada e congênita, secundária a compressão extrínseca. Pode ser adquirida. Tipo III: localizada e pós-traqueostomia ou pós-ventilação prolongada em recém-nascidos.
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Distúrbios Traqueobrônquicos •
cica adquirida é particularmente comum em prematuros que desenvolveram displasia broncopulmonar. A broncomalácia congênita decorre da ausência ou debili‑ dade da cartilagem brônquica e compressão extrínseca da via aérea. A forma adquirida pode ser pós-infecciosa ou pós‑ -transplante pulmonar. Embora exames de imagem, especialmente a TC, possam ajudar a identificar o colapso da traqueia e dos brônquios, a vi‑ sualização direta da via aérea por fibrobroncoscopia ou bron‑ coscopia rígida com a criança sedada, mas em ventilação espontânea, movimentos respiratórios profundos e com a posição da cabeça, pescoço e tronco o mais neutra possível, evitando-se a hiperextensão do pescoço, é a melhor opção para diagnóstico. Não existe um critério padronizado para es‑ tabelecimento do diagnóstico da traqueomalácia por endosco‑ pia; geralmente, redução da luz traqueal acima de 25% do diâ‑ metro é considerada significativa; redução acima de 50% é considerada diagnóstica. Na avaliação dinâmica da bronco‑ malácia, o estímulo da tosse ou manobras expiratórias devem ser executados quando possível.4 O tratamento da traqueo e da broncomalácia depende da etiologia e da gravidade do colapso da via aérea. A traqueoma‑ lácia congênita e a broncomalácia frequentemente são benig‑ nas e autolimitadas, com resolução espontânea até os 2 anos de idade. Para os pacientes mais sintomáticos, o tratamento envolve uso de pressão positiva, traqueostomia ou cirurgia re‑ paradora, conforme a gravidade do caso e a localização da ma‑ lácia.4,5 A correção cirúrgica deve ser realizada em crianças com ataques obstrutivos com risco de morte, pneumonias re‑ petidas (mais do que 3 episódios em 1 ano) e impossibilidade de extubação. A aortopexia é reconhecida como o procedi‑ mento cirúrgico padrão para correção de traqueomalácia. A tração e a fixação da aorta junto ao esterno possibilitam maior espaço no mediastino, tanto que o segmento de traqueia com malácia não é mais comprimido pelo esôfago ou pelas estrutu‑ ras vasculares adjacentes. Em crianças cuja aorta já está locali‑ zada anteriormente, ou em casos de traqueomalácia de longa extensão, a aortopexia não é suficiente, e o caso deve ser enca‑ minhado para centros com experiência em cirurgia pediátrica de vias aéreas. O uso de órteses na via aérea (stents) deve ser considerado; porém, em pediatria, os resultados com o uso de stents não são animadores. Mais recentemente, técnicas de traqueoplastia têm sido descritas com melhores resultados. O manejo da broncomalácia é semelhante à traqueomalácia, sendo a possibilidade de utilização de órteses, próteses ou re‑ construção ainda mais remota. Traqueobroncomegalia congênita (síndrome de Mounier-Kuhn) É uma condição rara, caracterizada por marcada dilatação da traqueia e dos brônquios principais com brusca transição para vias aéreas periféricas de calibre normal. A etiologia é incerta, mas parece estar relacionada a defeito congênito do tecido conjuntivo, uma vez que existem casos associados a cutis laxa em crianças ou síndrome de Ehlers-Danlos em adultos, além de uma possível forma familiar de padrão recessivo.1 Atual‑
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mente, alguns casos adquiridos têm sido descritos em prema‑ turos submetidos a ventilação e como complicação de doen‑ ças respiratórias crônicas. A atrofia das fibras elásticas e musculares da traqueia e brônquios principais favorece o sur‑ gimento de protuberâncias da mucosa traqueal por entre os anéis cartilaginosos, formando divertículos e tornando a pare‑ de traqueal mais colapsável. O colapso da via aérea produz al‑ çaponamento aéreo e dificulta o clearance pulmonar, favore‑ cendo as infecções respiratórias e levando à formação de bronquiectasias, enfisema e fibrose pulmonar. As manifestações clínicas da traqueobroncomegalia costu‑ mam ocorrer na via adulta, embora alguns casos tenham sido relatados em crianças. O diagnóstico é realizado pela medida do diâmetro traqueal feita via TC de tórax, que se encontra au‑ mentado (cerca de 3 vezes o desvio-padrão ou maior ou igual à largura do corpo vertebral). Não existe um tratamento especí‑ fico.6 Fístula traqueoesofágica Fístula traqueoesofágica (FTE) é uma anomalia congênita do trato respiratório comum, com uma incidência de aproxima‑ damente 1:3.500 recém-nascidos vivos. A FTE tipicamente ocorre com atresia de esôfago. A fístula decorre de um defeito na septação lateral do intestino primitivo em esôfago e tra‑ queia. Os seguintes tipos descritos são: • tipo A: atresia de esôfago isolada; • tipo B: atresia de esôfago com FTE proximal (1% dos casos); • tipo C: atresia do esôfago com FTE distal (85% dos casos); • tipo D: atresia de esôfago com FTE proximal e distal (3% dos casos); • tipo E: FTE sem atresia de esôfago ou fístula em H (4% dos c asos). A FTE está associada à gestação gemelar de primigestas idosas, baixo peso ao nascimento, outras malformações (cerca de 50% dos casos), frequentemente como parte das síndromes de Vacterl ou Charge, e, especialmente, com cardiopatia con‑ gênita ou defeitos geniturinários. Os sintomas da FTE dependem da presença ou não de atre‑ sia de esôfago associada. Durante a gestação, a presença de polidrâmnio pode alertar para presença de atresia de esôfago, a qual está associada à atresia de esôfago isolada em 85% dos casos e à atresia de esôfago com FTE em 32% dos casos. Pa‑ cientes com atresia de esôfago tornam-se sintomáticos logo após o nascimento: apresentam quantidade excessiva de sali‑ vação espumosa e aerada, babam, não conseguem deglutir e parecem estar se asfixiando, com dificuldade respiratória e cianose. A presença da FTE entre a traqueia e o esôfago distal (tipo C) leva a distensão gástrica e possibilidade de pneumo‑ nia aspirativa em razão do refluxo de conteúdo gástrico para os pulmões através da FTE. Pacientes com FTE isolada em H (tipo E) apresentam sintomas conforme o tamanho do defeito; se for grande, podem apresentar tosse e asfixia associadas à alimentação desde o período neonatal; se for pequeno, podem apresentar sintomas mais tardios, como tosse crônica e pneu‑ monias de repetição. Ocasionalmente, a FTE só é diagnostica‑
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da na vida adulta, durante a investigação de alterações pulmo‑ nares crônicas, como bronquiectasias. O diagnóstico de FTE associada a atresia de esôfago fica fa‑ cilitado pela presença de ar no estômago, vista na radiografia. O diagnóstico de FTE isolada é mais difícil; o trajeto fistuloso deve ser demonstrado por exames de imagem com contraste hidrossolúvel ou por endoscopia esofágica e broncoscopia. Pela broncoscopia, pode-se visualizar o orifício da fístula ou pode-se injetar uma pequena quantidade de azul de metileno, que pode ser visualizado posteriormente no esôfago. O tratamento consiste da ligadura cirúrgica da fístula. Na FTE isolada, a abordagem cirúrgica comum é a cervical; se houver atresia de esôfago associada, utiliza-se a toracotomia direita com anastomose primária dos segmentos esofágicos, caso a distância entre os segmentos permita.1,5,6
Tabela 1 Causas de compressão vascular da via aérea em crianças
Brônquio traqueal Representa 80% do total de variantes anatômicas da árvore brônquica. Ocorre sempre do lado direito e representa o brôn‑ quio do lobo superior direito. Geralmente, emerge da parede lateral da traqueia a cerca de 2 cm acima da carena traqueal, a qual se bifurca posteriormente em brônquio intermediário e brônquio principal esquerdo. Algumas vezes, o brônquio tra‑ queal associa-se a outros distúrbios congênitos, como anoma‑ lias das costelas ou vértebras, tetralogia de Fallot ou síndro‑ mes como Down, Klippel-Feil, Vater e outras.1,5 Pode ser um achado endoscópico ocasional ou pode estar associado a pneumonias de repetição ou atelectasia recorrente no lobo su‑ perior direito.
Artéria pulmonar esquerda aberrante (sling da artéria pulmonar)
Compressão vascular da traqueia A compressão vascular da via aérea não é incomum, mas a maioria das crianças é assintomática ou minimamente sinto‑ mática.1 A compressão geralmente é causada por anomalias congênitas da configuração dos grandes vasos (arco aórtico e artéria pulmonar) ou por aumento dos vasos estruturalmente normais7 (Tabela 1). A compressão vascular da traqueia mais comum é a compressão pela artéria inominada, seguida por duplo arco aórtico e sling da artéria pulmonar. São comumen‑ te chamadas de anel vascular, por envolverem a via aérea e o esôfago (nesse caso, os anéis são completos, como o duplo arco aórtico e o arco aórtico à direita, com persistência do duc‑ to arterioso), embora nem todas as anomalias dos grandes va‑ sos sejam caracterizadas por um anel vascular (anéis incom‑ pletos, como a artéria subclávia direita anômala e anel de artéria pulmonar).8 Os sintomas de apresentação do anel vascular são variáveis, incluindo disfagia, infecções respiratórias recorrentes, estri‑ dor, tosse, sibilância, disfunção respiratória aguda e apneia, que costumam surgir ou piorar durante as mamadas ou com agitação. Algumas crianças necessitam de suporte ventilatório e algumas podem se tornar ventilatório-dependentes mesmo após correção cirúrgica.7 É frequente as crianças serem erro‑ neamente diagnosticadas como portadoras de asma de difícil controle. A maioria das crianças apresenta sintomas de início
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Anomalias da aorta duplo arco aórtico arco aórtico interrompido (após reparo cirúrgico) arco aórtico do lado direito com artéria subclávia esquerda aberrante com ramificação em imagem de espelho e ligamento arterioso direito arco aórtico esquerdo com artéria subclávia direita aberrante e ligamento arterioso direito aorta descendente à direita e ligamento arterioso direito arco aórtico cervical Síndrome da ausência da válvula pulmonar
Doença cardiovascular adquirida cardiomiopatia dilatada aneurisma da aorta ou ductus arteriosus Fonte: extraída de McLaren et al., 2008.7
logo após o nascimento, porém, em cerca de 60% dos casos, o diagnóstico é definido em torno de 1 ano de idade.8 O diagnóstico de compressão da via aérea é mais bem estabe‑ lecido pela broncoscopia rígida e/ou flexível. Exames de imagem, incluindo TC de alta resolução com contraste e reconstrução tri‑ dimensional, ressonância magnética (RM), ecocardiografia e, eventualmente, arteriografia, são necessários para melhor avalia‑ ção da vasculatura intratorácica e planejamento cirúrgico. O tratamento cirúrgico é reservado para compressão vascu‑ lar sintomática e varia conforme a patologia. Deve-se conside‑ rar a alta incidência de anéis traqueais completos associados a sling da artéria pulmonar e a presença de traqueomalácia loca‑ lizada no local da compressão. Embora o alívio da compressão vascular melhore a via aérea, é necessário um tempo para sua normalização. Frequentemente, essas crianças necessitam de traqueostomia até estabilização. Atresia e estenose brônquica A atresia brônquica é a interrupção da comunicação brônquica, e a estenose é um estreitamento brônquico localizado. Ambos manifestam-se por hiperinsuflação localizada na radiografia de tórax, frequentemente como achado ocasional. Na esteno‑ se brônquica, infecções distais e sibilância localizada não re‑ versível com broncodilatador são manifestações frequentes. O diagnóstico geralmente é feito por fibrobroncoscopia, poden‑ do ser limitado pelo calibre da via aérea e diâmetro do endos‑ cópico. Lesões mais periféricas podem ser diagnosticadas por estudo tomográfico. O manejo é de suporte, com antibiotico‑ terapia precoce na suspeita de infecções. Fisioterapia é discu‑ tível. O tratamento cirúrgico por lobectomia ou segmentecto‑ mia está indicado nas infecções graves ou recorrentes e na hiperinsuflação com compressão adjacente.9,10
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Distúrbios Traqueobrônquicos •
Obstrução brônquica As obstruções extrínsecas ou compressões resultam frequen‑ temente de uma anomalia vascular (ver Tabela 1), malforma‑ ções císticas, como o cisto broncogênico, ou adenomegalias com ou sem fístula. Obstruções brônquicas intrínsecas podem ser decorrentes de impactação de secreção em doenças supu‑ rativas, como fibrose cística, asma hipersecretora ou bronqui‑ te plástica. Outras causas, como hamartomas, plasmocitomas e outros tumores endobrônquicos, felizmente são raros em pediatria. Essas alterações tipicamente se apresentam com infecções recorrentes distais à obstrução, sibilância localizada ou atelec‑ tasias. O diagnóstico geralmente é feito por fibrobroncoscopia e complementado por métodos de imagem de alta resolução. A fibrobroncoscopia ainda possibilita a realização de biópsia, lavado e escovado brônquico ou eventuais procedimentos te‑ rapêuticos de desimpactação ou lavado. O tratamento cirúrgi‑ co, quando indicado, é geralmente curativo e evita a recorrên‑ cia dos sintomas.6 Cisto broncogênico Apesar de relativamente raros, os cistos broncogênicos repre‑ sentam a forma mais comum de lesão cística do mediastino. Os cistos broncogênicos resultam do desenvolvimento em‑ brionário anômalo do intestino no 1º trimestre de gestação. Geralmente são únicos, mas podem ser múltiplos e costumam ser preenchidos por fluido ou muco. Podem estar localizados ao longo de toda árvore brônquica, peri-hilares ou intraparen‑ quimatosos, com predileção pela região pericarinal. Estão geralmente justapostos à arvore brônquica, mas não se comu‑ nicam com ela. Cistos broncogênicos também podem ser en‑ contrados em outras localizações, como septo interatrial, pes‑ coço, abdome e espaço retroperitoneal.9 Em lactentes e crianças menores, os cistos broncogênicos podem se apresentar com tosse, sibilância e até desconforto respiratório, especialmente quando há compressão importan‑ te de estruturas adjacentes, sobretudo nos cistos subcarinais. Crianças maiores podem apresentar infecções respiratórias re‑ correntes. No entanto, a maioria dos lactentes e crianças é as‑ sintomática, e as lesões císticas podem ser ocasionalmente diagnosticadas na radiografia de tórax ou na investigação de sintomas gastrointestinais ou cardiológicos. A popularização da ecografia fetal, aliada a maior qualidade técnica dos equipa‑ mentos, permitiu o diagnóstico precoce de várias lesões císti‑ cas torácicas no feto, possibilitando inclusive o tratamento ci‑ rúrgico precoce em determinados casos. Radiografias de tórax em dois planos ou com esôfago contrastado podem ser sufi‑ cientes para o diagnóstico. A TC de tórax e a RM descrevem melhor o tipo, a localização, o efeito de massa e a eventual vas‑ cularização anômala para o planejamento cirúrgico.9 A fibro‑ broncoscopia auxilia no diagnóstico e na avaliação do grau de obstrução da via aérea.
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O tratamento cirúrgico é recomendado em todos os casos sintomáticos, sendo preferível via toracoscopia. A punção ou a aspiração dos cistos deve ser considerada como um paliativo ou solução temporária, sendo reservadas a casos sintomáticos que não têm condições cirúrgicas. Em recém-nascidos assin‑ tomáticos, as intervenções cirúrgicas, se indicadas, devem ser realizadas entre 3 e 6 meses de vida, para permitir o desenvol‑ vimento pulmonar. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Ter conhecimento de que as alterações traqueobrônquicas costumam manifestar-se por respiração ruidosa, seja estridor, ronco ou sibilo. • Saber que a malácia da traqueia e dos brônquios é um distúrbio relativamente comum, caracterizado pelo aumento do colapso dinâmico da traqueia ou brônquio durante a respiração, resultando em obstrução da via aérea e sintomas clínicos. • Saber que a compressão vascular da via aérea não é incomum, mas a maioria das crianças é assintomática ou minimamente sintomática.
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CAPÍTULO 3
BRONQUIECTASIAS Paulo Augusto Moreira Camargos Cristina Gonçalves Alvim Laura Maria de Lima Belizario Facury Lasmar Cássio da Cunha Ibiapina
Introdução Trata-se de doença que leva a morbidade elevada, prejuízo im‑ portante para a qualidade de vida e representa um pesado far‑ do para o paciente e seus familiares, especialmente em países em desenvolvimento. Tem sido considerada como “doença órfã”, pela percepção de ser rara em países desenvolvidos e mais frequente em países em desenvolvimento, provavelmen‑ te em razão das condições socioeconômicas que predispõem a número maior de infecções respiratórias, dificuldade de aces‑ so ao tratamento precoce e adequado, presença de ambiente com irritantes das vias aéreas, falhas nas taxas de imunização e deficiências nutricionais. Com os avanços da tomografia computadorizada (TC), as bronquiectasias estão sendo cada vez mais diagnosticadas em países desenvolvidos. Entretanto, permanece o seu caráter de “doença órfã” e, em uma era de relativa pletora de diretrizes, apenas duas publicações recentes buscaram sistematizar o manejo das bronquiectasias em crianças e adultos.1,2 É, pois, imperativa a necessidade de projetos de pesquisa de colaboração interinstitucional (nacional e internacional) na busca de um conhecimento aprofundado da fisiopatologia que propiciará, por sua vez, o desenvolvimento de regimes te‑ rapêuticos apropriados para essa heterogênea enfermidade que não poupa nenhuma faixa etária. Os conhecimentos ora disponíveis levam a crer que a prevenção, o diagnóstico preco‑ ce e o tratamento adequado contribuiriam para a redução dos danos psicossociais com ela relacionados. Nesse contexto, cabe ao pediatra um papel estratégico, so‑ bretudo no que se refere à precocidade do diagnóstico, pois ele atua, frequentemente, no cenário em que os pacientes são vis‑ tos pela primeira vez. Definição Bronquiectasias foram observadas em 1808 por Jean-Bruno Cayol e descritas pela primeira vez há cerca de dois séculos (1819) por René Laënnec, o inventor do estetoscópio. Consti‑ tuem basicamente alterações estruturais da árvore brônquica
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(do grego, bronchus, brônquio, eektasis, dilatação), caracteri‑ zadas pela dilatação anormal e distorção da arquitetura dos brônquios, ao longo da sua segmentação, na maioria das vezes de caráter permanente, de etiologia variável, que leva a doen‑ ça pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) restritiva ou mista. Etiologia e classificação Prevalece até hoje a clássica subdivisão em bronquiectasias as‑ sociadas ou não à fibrose cística (FC), que tem papel fundamen‑ tal no raciocínio clínico, no diagnóstico diferencial e no trata‑ mento. Além da FC, um elenco de enfermidades, lideradas pelas infecções do trato respiratório inferior (ITRI), propiciam o seu desenvolvimento. Representam, em última instância, se‑ quelas de afecções diversas, ocorridas nos primeiros anos de vida, principalmente processos infecciosos, por exemplo, bron‑ quiolite viral aguda por adenovírus e ITRI pelo vírus da influenza. Houve progressiva redução do papel do vírus do sarampo, da Bordetella pertussis e do M. tuberculosis com a vacinação especí‑ fica, o que deve ser traduzido para a necessidade de manuten‑ ção de elevadas taxas de cobertura vacinal para essas condições. A Tabela 1 reúne as principais enfermidades que contri‑ buem para a instalação, o desenvolvimento e a progressão das bronquiectasias. O reconhecimento das causas mais comuns é importante, pois a prática clínica revela inaceitável retardo en‑ tre o início dos sintomas e o diagnóstico. O diagnóstico etiológi‑ co frequentemente implica mudanças de tratamento e melhor prognóstico, entretanto, em número não desprezível de casos, não se consegue estabelecer a etiologia com precisão. Nesse úl‑ timo caso, a literatura tende a denominá-las “idiopáticas”. É possível que os quadros pós-infecciosos, aspirativos, com comprometimento da imunidade e a discinesia ciliar respon‑ dam, juntos, por cerca da metade das situações em que foi possível identificar a etiologia.3 Epidemiologia A prevalência de bronquiectasias tem íntima relação com a in‑ cidência e a prevalência de FC, com a frequência das infecções
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Tabela 1 Principais causas de bronquiectasias 1.
Fibrose cística
2.
Infecção do trato respiratório inferior (vírus e bactérias)
3.
Imunodeficiências primárias ou adquiridas
4.
Doenças aspirativas (distúrbios da deglutição, refluxo gastroesofágico, fístula traqueoesofágica, aspiração e retenção prolongada de corpo estranho nas vias aéreas)
5.
Malformações congênitas brônquicas, pulmonares e vasculares (“enfisema lobar”, broncomalácia grave, anel vascular)
6.
Discinesia ciliar primária
do trato respiratório, condições socioeconômicas e de acesso aos serviços de saúde desfavoráveis e ao diagnóstico tardio de condições predisponentes. As bronquiectasias não associadas à FC (BNAFC) apresentam‑se com maior frequência e gravida‑ de em populações de baixa renda em que o atraso diagnóstico tende a ser mais comum. Na Nova Zelândia, Al Subie e Fitzgerald observaram preva‑ lência de BNAFC igual a 4/100.000 crianças. Em populações de risco, como aborígenes australianos e habitantes de ilhas da região Ásia‑Pacífico, a prevalência alcançou patamares que variaram de 20 a 1.470/100.000 crianças.4 Fisiopatogenia e anatomopatologia O processo inflamatório desencadeado por quadros infeccio‑ sos prévios pode levar a um círculo vicioso de fenômenos, como obstrução brônquica, redução do clearance mucociliar, produção excessiva e estase de secreções que comprometem a estrutura anatômica das paredes brônquicas, tornando‑as mais espessas e levando à inflamação crônica e, por fim, à di‑ latação, à perda da integridade estrutural e à destruição brôn‑ quica. Essa última tem relação direta com a intensidade e a duração do insulto original que, quando de menor monta, concorre para a instalação de dilatações cilíndricas (dilatação uniforme), às vezes reversíveis, ou saculares/císticas ou vari‑ cosas, geralmente irreversíveis. Podem ter caráter difuso, uni ou bilateral (sugerindo doença subjacente sistêmica ou que envolve ambos os pulmões) ou estar localizadas em um deter‑ minado lobo ou segmento pulmonar (sugerindo, por exemplo, a presença de condições que levam a adenomegalia peri‑hilar importante e persistente, malformação congênita ou corpo es‑ tranho retido nas vias aéreas e até mesmo as suas complica‑ ções em longo prazo, caso tenham sido retirados tardiamente). Refletem, assim, o resultado final de uma variedade de pro‑ cessos fisiopatológicos que tornam as paredes brônquicas en‑ fraquecidas, cronicamente inflamadas e com produção exces‑ siva, retenção de secreções, infecção bacteriana secundária e supuração pulmonar (Figura 1). A evolução é imprevisível, pois depende da doença subjacente, da precocidade do diag‑ nóstico, do tratamento apropriado e da adesão a ele. Quadro clínico Constitui desafio diagnóstico peculiar para o clínico, pois as anormalidades obtidas tanto à anamnese quanto ao exame físi‑ co assemelham‑se a qualquer uma das pneumopatias crônicas.
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Figura 1 Ressecção pulmonar em caso de fibrose cística. Observar o caráter gravíssimo e irreversível das bronquiectasias varicosas e saculares, com intensa supuração pulmonar. Esse aspecto macroscópico não é exclusivo da fibrose cística, pois é comum em bronquiectasias em estágio avançado, independentemente da etiologia.
O sintoma mais comum que leva à suspeita clínica é a tosse crônica e persistente (por mais de 8 a 12 semanas), geralmente produtiva, presente em 80 a 90% das crianças com bronquiec‑ tasias. Tende a predominar pela manhã, após a criança se le‑ vantar, característica semiológica denominada “toilette brôn‑ quica”. Entre as crianças capazes de expectorar (geralmente a partir dos 5 a 7 anos de idade), 60 a 70% delas apresentam ex‑ pectoração mucopurulenta, ou seja, a ausência dessa altera‑ ção em pré‑escolares não afasta o diagnóstico. Alguns pacientes apresentam exacerbações episódicas de origem infecciosa, caracterizadas por aumento da frequência e da intensidade da tosse e da produção de expectoração, que podem estar associadas a febre, torácica, dispneia e elevação de proteína C reativa.5 A hemoptise, causada por erosão do tecido das vias respirató‑ rias inflamadas adjacente aos vasos pulmonares, ocorre em me‑ nos de 10% dos pacientes, mesmo durante essas exacerbações. Déficit ponderoestatural, dispneia, baixa tolerância ao exercício e hipocratismo digital são incomuns nas fases ini‑ ciais de bronquiectasias, mas tendem a se desenvolver com a progressão da doença. Crepitações persistentes, localizadas ou difusas, mesmo após o correto tratamento dos episódios de exacerbação infecciosa ou pneumonias de repetição (compro‑ vadas radiologicamente), também constituem sinais de sus‑ peita ao exame físico. Podem estar associadas a condições que levam a aspiração de material exógeno ao trato respiratório, a saber, aspiração de secreções do sistema digestivo (saliva, conteúdo gástrico), como ocorre nos distúrbios de deglutição em geral (associados
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ou não a quadros neurológicos) e distúrbios esofágicos funcio‑ nais ou estruturais ou ainda de corpos estranhos, especial‑ mente se eles não forem removidos em tempo hábil. Em ou‑ tras palavras, a anamnese deve, necessariamente, contemplar ainda questões dirigidas para essas condições, como disfagia, “engasgo” e déficits neuropsicomotores. A presença de consanguinidade e história familiar de bronquiectasia em parentes de 1º grau apontam para a possi‑ bilidade de doenças genéticas, como FC, imunodeficiência congênita e discinesia ciliar. Cabe ressaltar que a maior extensão das bronquiectasias não leva, obrigatoriamente, a uma expressão clínica mais grave. Diagnóstico A subdivisão das bronquiectasias em dois eixos (associadas ou não associadas à FC), orienta para a primazia da dosagem de cloretos no suor como um dos exames de primeira linha. Con‑
siderando que a triagem neonatal para FC tem até 3 a 5% de resultados falso‑negativos, o teste do suor (ver Capítulo 2 – Fi‑ brose Cística) deve ser realizado mesmo naquelas crianças triadas no período neonatal. A radiografia simples de tórax deve ser solicitada na primei‑ ra consulta de todas as crianças que apresentem quadro clíni‑ co sugestivo de bronquiectasia, embora sua sensibilidade e es‑ pecificidade sejam reduzidas para lesões em estágio inicial. Ao longo do acompanhamento, deve ser repetida apenas se houver indicação clínica.2 O estudo radiológico pode evidenciar resolução incompleta de imagens determinadas por episódio prévio de ITRI. Dessa forma, é essencial que sejam avaliadas todas as radiografias anteriores que porventura tenham sido feitas, com vistas à ob‑ tenção de um diagnóstico presuntivo de bronquiectasias, mui‑ to especialmente se as imagens tiverem topografia e padrão semelhantes.
Figura 2 Bronquiectasias secundárias a bronquiolite obliterante pós‑infecciosa.
Figura 3 Bronquiectasias secundárias a aspiração de corpo estranho de natureza orgânica (amendoim) removido tardiamente.
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As anormalidades tomográficas geralmente não corres‑ pondem à doença subjacente, mas fornecem o diagnóstico anatômico definitivo quando revelam em um ou ambos os pulmões: • dilatação da parede e da luz bronquial (o diâmetro interno é maior que aquele da artéria pulmonar adjacente, conjunto que compõe o chamado de “sinal do anel de sinete”); • brônquios visíveis na periferia dos campos pulmonares (quando distam 1 cm ou menos da superfície pleural); • dilatações cilíndricas (quando há desaparecimento da redu‑ ção progressiva habitual do calibre à medida que se avança para a porção mais distal da árvore brônquica), sacular ou cís‑ tica (que denotam quadros mais avançados). Outros achados sugestivos de bronquiectasia compreendem constrições irregulares e impactações mucoides. Atelectasias Figura 4 Bronquiectasias difusas nos lobos inferiores. (o enfraquecimento da parede brônquica torna‑a facilmente Observar espessamento difuso de paredes brônquicas. colapsável), hiperinsuflação, fibrose, broncocele e hipertrofia Atelectasia em lobo inferior esquerdo com bronquiectasias da vasculatura brônquica são alterações associadas à presença de permeio em paciente com agamaglobulinemia congênita. Encaminhado aos 9 anos de idade com de bronquiectasias (Figuras 5 a 7). Como mencionado para diagnóstico de “asma e pneumonias de repetição”. IMC radiografia simples do tórax, a TCAR só deve ser repetida em = 10,9 (escore Z = ‑4,35), VEF1, VEF1/CVF, CVF e FEF25‑75% caso de necessidade clínica e de acordo com as recomenda‑ iguais a 24%, 36%, 29% e 20% dos valores previstos, ções de baixa irradiação (técnica conhecida pela expressão respectivamente; não houve variação significativa após “As Low As Reasonably Achievable” e pela sigla ALARA).2,6 broncodilatador. Pais consanguíneos e um irmão falecido com pneumonia. Imagens adquiridas em inspiração e expiração forçadas de‑ vem ser rotineiramente solicitadas para descartar ou confir‑ mar bronquiolite obliterante pós‑infecciosa (BOPI), uma das A tomografia computadorizada de tórax de alta resolução causas de bronquiectasias em nosso meio. (TCAR) constitui o exame de escolha para se detectar a exis‑ Presença de infecção viral e/ou bacteriana grave em crian‑ tência ou não de bronquiectasias. Para interpretação mais ças menores de 3 anos com a persistência dos sintomas por acurada, a TCAR deve ser realizada com o paciente clinica‑ mais de 6 semanas sugere que as bronquiectasias tenham a mente estável, ou seja, longe de episódios de exacerbação cri‑ BOPI como doença de base. O paciente com BOPI mantém va‑ teriosamente tratados.
Figura 5 Paciente com discinesia ciliar, encaminhado aos 3 anos de idade com diagnóstico de “asma e pneumonia de repetição”. Lobectomia por causa da persistência de área de atelectasia e supuração crônica. Fragmento de via aérea foi submetido à análise ultraestrutural no Centro de Microscopia Eletrônica da Universidade Federal de Minas Gerais (ver Figura 6).
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riados graus de comprometimento clínico: tosse com expecto‑ ração, dessaturação aos esforços, crepitações fora das exacer‑ bações. Ao lado da história clínica, a detecção de imagens de atenuação em mosaico é muito sugestiva de BOPI, uma das poucas situações em que a TCAR contribui para o diagnóstico etiológico das bronquiectasias (Figura 3).7 A terceira etapa deve ser feita de forma sequencial, indivi‑ dualizada de acordo com a história clínica, visando ao diag‑ nóstico etiológico caso esse objetivo não tenha sido alcançado com os métodos já mencionados. A atenção compartilhada entre o pediatra e o pneumopediatra é fundamental para uma
investigação bem-sucedida. A anamnese com as principais suspeitas clínicas irá conduzir a propedêutica etiológica. A Figura 7 e a Tabela 2 sintetizam a propedêutica inicial e complementar para esclarecer a etiologia, avaliar a gravidade e acompanhar a evolução das bronquiectasias na infância, ca‑ bendo ressaltar que estudos muito recentes têm destacado o papel promissor da ressonância magnética (RM) do tórax. A avaliação psicológica e a aplicação de questionários sobre qualidade de vida são interessantes durante o acompanha‑ mento, na medida em que esses paciente manifestam ansie‑ dade, depressão e adinamia de caráter crônico.
Figura 6 Microscopia eletrônica do paciente apresentado na Figura 5 revela ausência de braços externos de dineína em diversos axonemas ciliares e anormalidades do par central de microtúbulos.
Propedêutica inicial
Radiografia de tórax
ITRI grave ou prolongada
Teste do suor
Fibrose cística
BQ pós-infecciosa
BOPI TCAR Malformações Provas de função pulmonar Suspeita clínica de bronquiectasia (BQ)
Diagnóstico e acompanhamento
Exame de escarro Broncofibroscopia/ LBA
Propedêutica complementar
Aspiração Imunodeficiência
Pesquisa de: Discinesia ciliar
ABPA
Figura 7 Algoritmo para a abordagem diagnóstica das bronquiectasias.
TCAR: tomografia computadorizada de alta resolução; ITRI: infecção de trato respiratório inferior; BOPI: bronquiolite obliterante pós-infecciosa; LBA: lavado broncoalveolar; ABPA: aspergilose broncopulmonar alérgica.
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Bronquiectasias •
Tabela 2 Propedêutica complementar para esclarecer a etiologia, avaliar a gravidade e acompanhar a evolução Exames
Indicação
Provas de função pulmonar, especialmente a espirometria com prova broncodilatadora e teste da caminhada de 6 minutos
Podem ser realizadas a partir de 3 a 4 anos de idade, sugerem o diagnóstico de asma (quando de resposta positiva ao broncodilatador) ou BOPI, quando o valor do FEF25-75% for inferior a 30% do previsto e houver história de ITRI grave em idade inferior a 3 anos, com manutenção de sintomas. Fornece, ainda que parcialmente, dimensão da gravidade funcional (p.ex., nos pacientes candidatos a transplante pulmonar ou que se beneficiarão de ressecções localizadas de áreas mais acometidas) e da eventual deterioração da doença ao longo do acompanhamento. Há controvérsias sobre seu poder discriminatório nas fases de exacerbação ou de estabilidade clínica
Exame de escarro, espontâneo ou induzido, ou swab nasal/orofaríngeo nas crianças que não conseguem expectorar
Análise de citologia, citometria, cultura e antibiograma para guiar antibioticoterapia. O isolamento persistente de Staphylococcus aureus e/ou Pseudomonas aeruginosa pode indicar ABPA ou fibrose cística como doença de base
Broncofibroscopia e lavado broncoalveolar
Indicados em casos de opacidades ou hiperinsuflação localizadas em um único lobo e para exclusão de compressões extrínsecas ou obstruções intrínsecas. Realização de lavado broncoalveolar para cultura/antibiograma e pesquisa de gotículas de gordura nos macrófagos alveolares visando ao diagnóstico presuntivo de aspiração oriunda do trato digestivo
Avaliação de aspiração recorrente
Videodeglutograma, esofagograma, pHmetria de 24 horas
Avaliação da função imunológica (atenção compartilhada com imunologista)
Leucograma, dosagem de imunoglobulinas, anticorpos específicos para antígenos vacinais (p.ex., pneumococo e tétano), dosagem de di-hidrorodamina, imunofenotipagem de linfócitos, teste tuberculínico e sorologia para HIV
Pesquisa de discinesia ciliar
Fração exalada de óxido nítrico nasal: como rastreamento em maiores de 5 anos. Estudo morfológico dos cílios por microscopia óptica (análise da frequência do batimento ciliar) e eletrônica (ultraestrutura dos cílios); confirmação diagnóstica de discinesia ciliar a partir do escovado nasal para obtenção de células da mucosa ou em fragmentos de tecido pulmonar retirado de cirurgia ou biópsia; estudos genéticos
Pesquisa de ABPA
Eosinofilia periférica, elevação de IgE total, teste cutâneo para Aspergillus e sorologia específica (IgE e IgG) para A. fumigatus
ABPA: aspergilose broncopulmonar alérgica.
Tratamento O tratamento visa a prevenir a perda da função pulmonar, com atenção ao cuidado integral da saúde da criança (nutrição, crescimento, desenvolvimento, imunização). Em virtude da sua complexidade, a atenção desde o diagnóstico deve, neces‑ sariamente, ter perfil interdisciplinar, ou seja, a equipe deve ser composta, no mínimo, por pediatra, pneumopediatra,
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imunologista pediátrico, enfermeiro, fisioterapeuta, nutricio‑ nista e especialista em saúde mental. O tratamento será orientado pelo diagnóstico etiológico, ou seja, para bronquiectasias associadas ou não à FC (ver Capítulo 2 – Fibrose Cística). Dessa forma, diante de uma criança ou adolescente com qualquer das enfermidades passíveis de trata‑ mento específico, ele deve ser introduzido tão logo seja feito o diagnóstico de certeza, como é o caso de imunodeficiências, re‑ fluxo gastroesofágico, fístula traqueoesofágica, corpo estranho retido nas vias aéreas e correção de malformações congênitas. Dado o seu caráter potencialmente progressivo e por vezes irreversível, várias outras medidas terapêuticas, farmacológi‑ cas e não farmacológicas, são recomendáveis. Todavia, como "doença órfã", denominação que pressupõe a carência de estu‑ dos, da pesquisa fundamental à aplicada, muitas das aborda‑ gens terapêuticas descritas a seguir para o tratamento de ma‑ nutenção, isto é, longe das exacerbações, carecem de evidências científicas sólidas para sua adoção e, portanto, têm forte componente empírico. Essas limitações, por outro lado, clamam pela participação proativa do pediatra na atenção que esses pacientes requerem, pois esse conjunto de medidas reú‑ nem potencialidades para se obter, em alguns casos, a rever‑ são das alterações estruturais brônquicas.4 Além do manejo da doença subjacente, é crucial promover a educação em saúde para o paciente e seus familiares. Ela é di‑ recionada ao diagnóstico precoce, ao acompanhamento perió‑ dico e à busca por melhor qualidade de vida, que quase sempre estará afetada pela gravidade do quadro clínico-funcional.8 Tratamento de manutenção A fisioterapia respiratória é recomendada diariamente. A dre‑ nagem postural é a terapia padrão, mas pode aumentar o re‑ fluxo gastroesofágico. A disponibilidade de várias técnicas para a limpeza das vias respiratórias e a falta de clara superio‑ ridade de uma sobre a outra exige que as escolhas sejam indi‑ vidualizadas. Todos os pacientes devem ser encorajados a pra‑ ticar atividade física. Revisão sistemática da Biblioteca Cochrane concluiu que os estudos sobre o uso prolongado de antibióticos para bron‑ quiectasia purulenta em crianças e adultos indicaram uma pe‑ quena melhora nos sintomas, mas não houve melhora na fun‑ ção pulmonar ou nas taxas de exacerbações.9 Sendo assim, permanece a dúvida quanto ao melhor esquema terapêutico, mas há uma tendência a tratar as exacerbações e evitar o uso contínuo em virtude do risco de desenvolvimento de resistên‑ cia antimicrobiana. O uso de dornase-alfa está contraindicado em BNAFC. En‑ saio clínico randomizado, duplo-cego, multicêntrico, com 349 adultos com bronquiectasia, mostrou aumento nas exacerba‑ ção e taxas de internação (risco relativo de 1,35 e 1,85, respec‑ tivamente) e declínio da função pulmonar mais rápido (redu‑ ção VEF1 de 3,6% no grupo rhDNase e de 1,6% no grupo placebo). A solução salina hipertônica parece melhorar a função pul‑ monar e reduzir a frequência de exacerbações em pessoas com doença pulmonar supurativa. O pré-tratamento com bronco‑
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dilatador de curta duração é recomendado. O manitol inalado é outro agente osmótico promissor. Macrolídeos são antibióticos que possuem atividades anti‑ -inflamatórias e podem reduzir a hipersecreção de muco em adultos com bronquiectasias e crianças com FC. A evidência atual para a recomendação universal em bronquiectasias não fibrocísticas em crianças é insuficiente. Anticolinérgicos como a atropina podem lentificar o trans‑ porte mucociliar e predispor a mais estase do muco. O tiotró‑ prio foi avaliado em um estudo em adultos, sem controle, com estados de hipersecreção resistentes aos macrolídeos (incluin‑ do bronquiectasias); ele reduziu os sintomas diários e melho‑ rou a qualidade de vida, mas não é recomendado em crianças. Sintomas de asma em crianças com bronquiectasias devem ser tratados por seu próprio mérito, ou seja, se existir asma as‑ sociada. Em relação a medicações broncodilatadoras, quando apenas os estudos controlados com placebo foram analisados, não houve diferenças significativas entre os grupos em ne‑ nhum dos desfechos. Corticosteroides inalatórios têm pouco papel na abordagem das bronquiectasias em crianças quando a asma não coexiste. Tratamento das exacerbações infecciosas É recomendado isolar o agente etiológico pelo exame de escar‑ ro ou swab orofaríngeo. No escarro induzido, utilizam-se nebulizações com solução salina hipertônica a 4,5% em pacientes com valores do VEF1 superiores ou iguais a 60% do previsto, pós-broncodilatador. Quando os com valores do VEF1 pós-broncodilatador são inferiores a 60% do previsto, in‑ dica-se a solução salina a 0,9%. As amostras de escarro devem ser processadas em até 2 horas após a coleta e consideradas satisfatórias quando apresentam contaminação por células escamosas inferior a 20%, viabilidade celular superior a 50% e possibilidade de leitura de pelo menos 400 células. A escolha do antibiótico é guiada pelo resultado da cultura e antibiograma. A Tabela 3 apresenta os agentes etiológicos mais frequentes isolados nas culturas e opções de tratamento. O tratamento pode ser por via oral, em ambiente ambulatorial, ou endovenoso, em ambiente hospitalar, dependendo da gra‑ vidade clínica. Tratamento cirúrgico As indicações de cirurgia têm diminuído à medida que a pre‑ venção, o diagnóstico precoce e a abordagem multidisciplinar se tornaram mais eficazes. A Tabela 4 resume essas indicações. Prevenção A prevenção requer a melhoria das condições sociais, que po‑ dem diminuir as infecções respiratórias graves e melhorar o acesso, não postergando o diagnóstico e a possibilidade de complicações. Trabalho realizado na Unidade de Pneumologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Ge‑ rais com acompanhamento de 23 crianças por um tempo mé‑ dio de 6 anos (máximo de 19 anos) demonstrou que, embora a idade do insulto pulmonar tenha sido antes dos 12 meses em
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Tabela 3 Tratamento das exacerbações Agente etiológico
Antibiótico de escolha
Streptococcus pneumoniae
Amoxicilina, penicilina, ampicilina
Haemophilus influenzae
Amoxicilina, amoxicilina e clavulanato, ceftriaxona
Moraxella catarrhalis
Amoxicilina e clavulanato, ceftriaxona
Staphylococcus aureus
Amoxicilina e clavulanato, cefalexina, oxacilina, vancomicina
Pseudomonas aeruginosa
Ciprofloxacino, ceftazidima
Tabela 4 Indicações e contraindicações para ressecção pulmonar nas bronquiectasias Indicações
Indicações relativas
Contraindicações
Pobre controle dos sintomas (secreção purulenta, exacerbações frequentes), apesar da terapêutica otimizada Déficit de crescimento, apesar da terapêutica otimizada Hemoptises graves e recorrentes, incontroláveis, por embolização da artéria brônquica
Doença localizada com sintomas persistentes moderados
Bronquiectasias generalizadas Criança (< 6 anos de idade) Doença minimamente sintomática
69% dos casos e os pacientes tenham mantido sintomas per‑ sistentes após esse insulto, a média de idade ao diagnóstico da BOPI foi de 5,7 anos. Cabe ressaltar que a maioria dos pacien‑ tes foi encaminhada ao serviço com diagnóstico de asma ou pneumonia de repetição.10 As doenças respiratórias crônicas têm ocupado de forma crescente a clínica pediátrica. A assistência às crianças com doença crônica deve ser feita pelo pediatra compartilhando a responsabilidade e o trabalho intimamente com especialistas. Esse compartilhamento assegura que o tratamento da criança com doença crônica não fragmente a unidade familiar e que a assistência seja focada sobre a criança, e não sobre a doença. Em resumo, o objetivo da assistência contínua e comparti‑ lhada é tentar deter as consequências do distúrbio biológico às suas manifestações mínimas, estimular o crescimento e o de‑ senvolvimento dentro das potencialidades existentes, ajudar a criança na maximização em todas as áreas possíveis, evitan‑ do ou diminuindo o impacto comportamental e social. Desafios Eles são vários e, sem dúvida, passam pela urgente melhoria da organização dos serviços de saúde na busca pelo diagnósti‑ co precoce e manejo adequado, medidas que podem contri‑ buir para redução da morbidade nas bronquiectasias associa‑ das ou não à fibrose cística.
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Bronquiectasias •
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer o diagnóstico de bronquiectasias em nosso meio, condição que deve ser sempre suspeitada em indivíduos com tosse produtiva crônica e expectoração mucopurulenta. • Saber o diagnóstico diferencial e reconhecer que a causa mais frequente de bronquiectasias não associadas à FC é pós-infecciosa. • Havendo suspeita clínica, deve-se solicitar tomografia computadorizada, mesmo diante de radiografia de tórax normal. • O diagnóstico definitivo e o manejo incluem estreita e duradoura parceria entre pediatra, familiares e pneumopediatra.
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CAPÍTULO 4
BRONQUIOLITE VIRAL AGUDA Sérgio Luís Amantéa
Introdução A bronquiolite viral aguda (BVA) é a infecção do trato respira‑ tório inferior mais comum em crianças pequenas. A doença resulta da obstrução inflamatória das pequenas vias aéreas, possui gravidade variável, manifestando-se mais frequente‑ mente por formas leves, que podem evoluir para apresenta‑ ções graves, em casos mais incomuns. Ocorre mais durante os primeiros 2 anos de idade, com uma incidência maior em lac‑ tentes menores de 6 meses.1,2 É uma das causas mais frequentes de internação hospitalar nessa faixa etária. Entretanto, embora seja reconhecida como uma entidade associada a grande morbidade, possui dificul‑ dades intrínsecas até na padronização de sua definição. As ca‑ racterísticas anatômicas e fisiológicas do aparelho respiratório do lactente são determinantes no quadro clínico apresentado da BVA. A superfície de troca gasosa nos pulmões ainda não está plenamente desenvolvida e a resistência aérea é alta nos primeiros meses de vida, determinando uma frequência respi‑ ratória mais elevada. Além disso, os anticorpos adquiridos passivamente da mãe durante a vida intrauterina e que prote‑ gem contra uma variedade de patógenos caem bruscamente nos primeiros meses após o nascimento, expondo o bebê a di‑ versas doenças. O pulmão da criança de baixa idade é relativa‑ mente mal adaptado a suportar agressões e desenvolvem en‑ fermidades mais facilmente.2 Crianças com BVA produzem uma doença heterogênea que se estende além das lesões citopatogênicas diretas do vírus no epitélio bronquiolar. Os danos causados pelo agressor contri‑ buem para a resposta imune e inflamatória do hospedeiro, po‑ dendo comprometer o desenvolvimento normal das pequenas vias aéreas.2 O conhecimento da história natural da infecção viral, espe‑ cialmente sobre o vírus sincicial respiratório (VSR), principal agente etiológico, é útil para as estratégias de prevenção e no auxílio das necessidades de recursos que devem ser disponibi‑ lizados para o adequado tratamento.2,3
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Epidemiologia O VSR é um paramixovírus de RNA, envelopado sem as glico‑ proteínas de superfície, hemaglutinina e neuraminidase. Exis‑ tem dois grandes subtipos (A e B), que muitas vezes circulam concomitantemente. O significado clínico e epidemiológico da variação das cepas não foi determinado, mas evidências suge‑ rem que as diferenças antigênicas podem afetar a suscetibili‑ dade à infecção, e algumas cepas podem ser mais virulentas do que outras.2,3 A fonte de infecção é geralmente um membro da família ou colega da creche ou escola, com enfermidade respiratória apa‑ rentemente benigna. O homem é a única fonte de infecção na natureza. As crianças maiores e os adultos podem tolerar me‑ lhor situações de edema bronquiolar quando comparados aos lactentes e, assim, são capazes de expressar manifestações clí‑ nicas menos exuberantes, mesmo quando infectados pelos vírus. A transmissão ocorre normalmente por contato direto ou próximo a secreções contaminadas, que podem envolver gotí‑ culas ou fômites. O período de incubação é de 2 a 8 dias, com uma média de 4 a 6 dias. O período de disseminação viral é normalmente de 3 a 8 dias, mas pode prolongar-se, especial‑ mente em lactentes mais novos, nos quais a disseminação pode continuar até por 3 ou 4 semanas. As infecções pelo VSR não conferem imunidade completa, sendo comuns as reinfec‑ ções durante a vida.3 Outros agentes causais da BVA também estão bem deter‑ minados, como influenza, rinovírus, parainfluenza (tipos 1 e 3), adenovírus, metapneumovírus, bocavírus humano, entre outros.3 Por volta dos 2 anos de idade, quase todas as crianças já te‑ rão sido infectadas por um dos agentes etiológicos da BVA, de‑ senvolvendo ou não a enfermidade, sendo que as apresenta‑ ções severas ocorrem em bebês de baixa idade, entre 1 e 3 meses de vida.3 Baixo peso ao nascimento, desnutrição, idade materna, amamentação e aglomeração também são fatores de
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Bronquiolite Viral Aguda •
risco para infecções das vias aéreas inferiores e associadas com BVA. A incidência da BVA no 1º ano de vida é de 11%, caindo para cerca de 6% durante o 2º ano de vida. O pico de incidência ocorre entre 2 e 5 meses de idade. Nas crianças menores de 1 ano, o risco de hospitalização pela doença é de aproximada‑ mente 2%.3 Como o diagnóstico no nosso meio é estabelecido em bases clínico-radiolólogicas, há alguma dificuldade em firmar um conhecimento exato da distribuição da doença na população. A mortalidade das crianças hospitalizadas por BVA variam de 1%, naquelas previamente hígidas, a 3,5%, nas crianças com história prévia de doenças cardíacas, displasia broncopulmo‑ nar, prematuridade e imunodeficiências. As infecções bacte‑ rianas secundárias podem aumentar a morbidade e a mortali‑ dade por BVA; no nosso meio, esse aspecto ainda não está bem documentado, mas o uso de antibióticos é frequente du‑ rante a hospitalização. Patogênese O tipo de lesão e as manifestações clínicas induzidas pelas en‑ fermidades virais nas vias respiratórias são provavelmente uma combinação da afinidade dos vírus por células específicas em segmentos específicos das vias respiratórias (tropismo), o efeito destruidor ao nível celular (virulência), o calibre das vias aéreas do hospedeiro e a resposta imunológica que ocorre. O VSR in vitro é um dos menos agressivos entre os vírus respi‑ ratórios, porém sua grande afinidade pelo epitélio bronquiolar explica sua tendência a produzir problemas respiratórios im‑ portantes. A inoculação do VSR ocorre provavelmente através da su‑ perfície da mucosa nasal. Depois de um período de incubação assintomático de 4 a 5 dias, a criança infectada desenvolve sintomas característicos da infecção respiratória superior. A disseminação para as vias respiratórias baixas causam meca‑ nismos pouco compreendidos, mas, supostamente, mediante inspiração de secreções infectadas que produzem pneumonia ou bronquiolite. Do ponto de vista anatômico, os mecanismos responsáveis pela lesão das vias aéreas são o efeito citopático viral direto pela interação celular entre o vírus e o hospedeiro e o efeito in‑ direto mediado por mecanismos imunológicos. A resposta imunológica primária consiste de infiltração te‑ cidual produzida pela migração de leucócitos polimorfonu‑ cleares e macrófagos depois da liberação de mediadores quí‑ micos procedentes das células epiteliais agredidas. Essas células liberam mais mediadores, que alteram a permeabilida‑ de endotelial, a camada epitelial e o transporte de íons, geran‑ do inflamação com migração celular adicional e edema. O con‑ teúdo luminal aumentado por secreções e detritos é responsável, em parte, pela obstrução das vias aéreas, produ‑ zindo limitações no fluxo de ar, assim como atelectasias e con‑ sequente desequilíbrio da ventilação-perfusão. A contração do músculo liso é outro mecanismo potencial da obstrução das vias aéreas. Além disso, as anormalidades
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dos sistemas adrenérgico e colinérgico comuns nas viroses respiratórias e o sistema não adrenérgico/não colinérgico (NANC) também podem induzir broncoconstrição em virtude do dano epitelial. Os neuropeptídios são os mediadores quími‑ cos mais estudados nesse processo.3 Os mecanismos patogênicos na bronquiolite permanecem, todavia, indefinidos. A capacidade de recuperação depois da infecção com VSR relaciona-se com os níveis secretórios das imunoglobulinas IgA, IgG e IgM e de anticorpo dependentes da citotoxicidade mediada por células.2 Esses mecanismos po‑ deriam ser os responsáveis pelos sintomas leves observados nas reinfecções. A variação dos achados clínicos em crianças pequenas poderia ocorrer como consequência da falta de de‑ senvolvimento das defesas individuais do hospedeiro.3 Diagnóstico Achados clínicos Considerando que o diagnóstico da BVA deve ser estabelecido dentro de bases clínicas, é importante ter uma visão detalhada dos principais fatores a se considerar, conforme descrito a se‑ guir. Idade Bronquiolite afeta crianças com menos de 2 anos de idade. En‑ tretanto, 90% dos casos que necessitam de hospitalização são crianças com menos de 12 meses de idade. O pico de incidên‑ cia das hospitalizações está centrado entre 3 e 6 meses de ida‑ de. Além disso, nos últimos anos, muitos estudos voltados para o tema têm incluído exclusivamente pacientes com até 12 meses de idade, justificando que, entre os 12 e 24 meses de idade, o risco de asma poderia ser mais elevado, o que dificul‑ taria a avaliação de intervenções em função de fisiopatologias diferentes.1,3 Febre Lactentes com bronquiolite podem ter febre ou história de fe‑ bre. Essa manifestação é mais marcada na fase prodrômica da doença. A ausência de febre não exclui o diagnóstico de bron‑ quiolite, entretanto, a presença de temperaturas elevadas ou manifestações de toxemia requerem avaliação cuidadosa para outras causas, antes que o diagnóstico de BVA seja firmado de maneira definitiva.1,3 Tosse Manifestação comum nos quadros de BVA. Geralmente seca, associada à sibilância, é uma das primeiras manifestações de comprometimento pulmonar na bronquiolite.1,3 Taquipneia O aumento da frequência respiratória é um sinal importante nas infecções do trato respiratório inferior (bronquiolite e pneumonia). Traduz a resposta do organismo ao acometimen‑ to pulmonar pelo agente infeccioso, em uma tentativa de com‑ pensar os mecanismos geradores de prejuízo na mecânica pul‑ monar e na troca gasosa.1,3
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Tiragem Tiragem subcostal, intercostal e supraclaviculares são comu‑ mente vistas em lactentes com BVA. Em algumas situações, esse esforço respiratório pode estar associado a presença de tórax hiperinsuflado, o que pode facilitar um diagnóstico clíni‑ co diferencial entre BVA e pneumonia.1,3 Crepitações Crepitações inspiratórias disseminadas por todos os campos pulmonares são manifestações comuns, mas não universais, nos portadores de BVA. No Reino Unido, diferentemente dos EUA, crepitações são consideradas quase que obrigatórias para o diagnóstico de bronquiolite. Nesses locais, a presença de sibilância, sem crepitações, sugere um diagnóstico definido por sibilância induzida por vírus.4,5 Sibilância No Reino Unido, as definições atribuídas a bronquiolite des‑ crevem sibilância aguda expiratória como um achado comum, mas não universal, fazendo um contraponto com o que ocorre nos EUA, com a presença de crepitações. As diferenças de va‑
lorização atribuída à presença desses dois sintomas (entre EUA e Reino Unido) contribui para a dificuldade na extrapola‑ ção e interpretação de dados comuns.1-5 Avaliação da gravidade A avaliação da gravidade da doença com base nas manifesta‑ ções clínicas é outro desafio frente ao diagnóstico. Alguns ins‑ trumentos de avaliação procuram compilar o efeito de variá‑ veis clínicas, constituindo escores frequentemente utilizados em estudos clínicos para avaliação da gravidade da doença. O respiratory distress assessment instrument (RDAI)(Tabela 1) e o respiratory assessment abstract change score (RACS), apesar de englobarem os principais desfechos clínicos avaliados na BVA (frequência respiratória, tiragem e sibilância) e de possuí‑ rem boas propriedades discriminativas, não abrangem todos os determinantes de gravidade da doença. Outras tentativas de expressar com maior simplicidade os dados compilados, sem a necessidade de cálculos, também têm sido publicadas, e a gravidade pode ser determinada pela caracterização do pa‑ ciente em qualquer estrato de avaliação, o que simplifica a afe‑ rição (Tabela 2).
Tabela 1 Instrumento de avaliação de desconforto respiratório (respiratory distress assesment instrument – RDAI) Variável
Escore 0
Variação 1
2
3
4
3/4
Total
Sibilância (ausculta) Expiração
Não
Final
1/2
Inspiração
Não
Parcial
Toda
0-2
Localização
Não
Segmentar (< 2 de 4 campos pulmonares)
Difusa (≥ 3 de 4 campos pulmonares)
0-2
Somatório parcial
0-4
0-8
Retrações (visual) Supraclavicular
Não
Leve
Moderada
Marcada
0-3
Intercostal
Não
Leve
Moderada
Marcada
0-3
Subcostal
Não
Leve
Moderada
Marcada
0-3
Somatório parcial
0-9
Somatório final (maior escore = doença mais grave)
0-17
Tabela 2 Avaliação da gravidade da bronquiolite Leve
Moderada
Grave
Alimentação
Normal
Menos que o normal
Não aceita
Frequência respiratória (mrpm)
i 2 meses > 60/min h 2 meses > 50/min
> 60/min
> 70/min
Tiragem
Leve
Moderada
Grave
Batimentos de asa do nariz / gemência
Ausente
Ausente
Presente
Sat. O2
> 92%
88 a 92%
< 88%
Comportamento geral
Normal
Irritável
Letárgico
Fonte: modificada de New Zealand guidelines e SIGN guidelines. * Não há necessidade da presença de todos critérios para definição de gravidade
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Bronquiolite Viral Aguda •
Evolutivamente, o quadro clínico inicia com rinorreia, tosse e febre baixa, que evolui para dificuldade respiratória associada a sinais de obstrução brônquica e sibilância. A doença é autoli‑ mitada na maioria dos casos. A presença de cianose indica hipóxia e caracteriza gravida‑ de, que pode vir associada a episódios de apneia, principal‑ mente em prematuros. Alguns fatores de base que podem acometer um hospedei‑ ro portador de BVA têm sido avaliados sob um contexto de ris‑ co atrelado a apresentações mais graves da doença. Em uma análise conjunta, vários achados clínicos e labora‑ toriais podem caracterizar apresentações da doença atreladas a maior gravidade:1-5 Achados radiológicos A radiografia de tórax pode ser útil nos casos graves, quando ocorre piora súbita do quadro respiratório ou quando existem doenças cardíacas ou pulmonares prévias. Os principais acha‑ dos são: hiperinsuflação torácica difusa, hipertransparência, retificação do diafragma e até broncograma aéreo com um in‑ filtrado de padrão intersticial. Frequentemente, podem-se ob‑ servar áreas de atelectasias secundárias a tampões mucosos e infiltrados de baixa densidade com discreto espessamento pleural. Entretanto, a avaliação radiológica não deve ser consi‑ derada uma medida de avaliação universal para todos os pa‑ cientes portadores de BVA. Em um enfoque mais objetivo, deve ser considerada uma medida de exceção, restrita aos quadros mais graves, como já referidos, ou quando outro diag‑ nóstico for considerado. Como instrumento de caracterização de gravidade, também possui limitações, já que pacientes po‑ dem ter formas graves de apresentação da doença com uma radiografia de tórax normal.1-4 Achados laboratoriais Exames laboratoriais não devem ser solicitados considerando a obtenção de informações úteis para consolidação diagnóstica. A própria identificação do agente (cultura, sorologia, imu‑ nofluorescência ou biologia molecular) não tem indicação para ser realizada de rotina. Podem ser úteis para consolida‑ ção de informações de vigilância epidemiológica e, em alguns serviços, para a alocação de pacientes em leitos hospitalares em uma estratégia de isolamento de coorte.1-4 Por questões operacionais (facilidade, rapidez e custo), a técnica de imunofluorescência é a mais frequentemente utili‑ zada. O material deve preferencialmente ser obtido por técni‑ ca de aspiração nasofaríngea. As técnicas de biologia molecular (PCR real time) podem ser úteis, embora possuam limitações intrínsecas à técnica (custo, laboratório especializado), nem sempre disponíveis em todos os serviços assistenciais. A própria sensibilidade do método tem gerado algumas discussões acerca da sua validade em um contexto isolado de diagnóstico. Nessas situações, a identifica‑ ção de material genético de mais de um agente viral traz ques‑ tionamentos quanto a diferenças de interpretação do achado em um contexto clínico, salientando dúvidas quanto à possibi‑ lidade de codetecção frente a diagnósticos de coinfecção.1-4
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Quadro 1 Fatores de risco na BVA Avaliação de risco São considerados critérios clínicos de gravidade identificados na evolução da BVA Nível de evidência A
Intolerância ou inapetência alimentar Presença de letargia História pregressa de apneia Sinais de desconforto respiratório: taquipneia, tiragem grave, gemência e cianose
São considerados fatores de risco para evolução com gravidade na BVA Nível de evidência B
Faixa etária < 12 semanas Presença de tabagismo domiciliar Presença das seguintes comorbidades: cardiopatia congênita instável hemodinamicamente (cardiopatias congênitas cianóticas, hipertensão pulmonar), imunodeficiência, doença pulmonar crônica e prematuridade
Nível de evidência C
Tempo curto de evolução da doença (< 72 h) Maior número de irmãos no domicílio Pobreza e superlotação Ausência de aleitamento materno Ser portador de síndrome de Down Ser portador de doença neuromuscular
Nível de evidência D
Baixo peso ao nascimento < 2.500 g Mãe jovem Baixa idade ao início da estação do VSR
Evidências insuficientes para que sejam considerados fatores de risco para gravidade Nível de evidência D
Algum agente etiológico específico Diferenças na sorotipagem viral: VSR A ou B Carga viral elevada de VSR na nasofaringe Alguns polimorfismos genéticos
Não têm sido considerados fatores de risco para gravidade Nível de evidência C
Atopia
Tratamento Na grande maioria dos pacientes, a evolução é benigna e o pro‑ cesso evolui para a cura sem a necessidade de nenhuma inter‑ venção. Os pacientes são assistidos em casa e o princípio do tratamento está fundamentado em uma terapêutica eminen‑ temente sintomática (controle da temperatura, do status hí‑ drico e nutricional, bem como acompanhamento da evolução do comprometimento respiratório). A necessidade de internação hospitalar é infrequente, ocor‑ rendo em cerca de 1 a 2% dos pacientes com faixa etária infe‑ rior a 1 ano de idade. Nestes, os critérios para indicação da hospitalização estão basicamente focados no grau de compro‑ metimento do sofrimento respiratório e na presença de fato‑ res de risco associados. Cuidados intensivos podem ser neces‑ sários para os pacientes hospitalizados, em taxas variáveis de 10 a 15%.3
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A
B
C
Figura 1 Radiografia de tórax de um lactente com sinais de hiperinsuflação pulmonar, sugestivo de bronquiolite viral aguda.
São pontos comuns a qualquer rotina assistencial direcio‑ nada para pacientes hospitalizados a oxigenoterapia, a manu‑ tenção do status hídrico, o mínimo manuseio e a precoce iden‑ tificação de complicações associadas. Sob o ponto de vista da evidência, cada vez mais as tera‑ pêuticas de benefício questionáveis têm sido abandonadas. Recentemente, a Academia Americana de Pediatria reconhe‑ ceu a dificuldade de se identificar subgrupos em que a tera‑ pêutica inalatória venha a trazer benefícios inequívocos. Até mesmo a indicação de testes terapêuticos, buscando identifi‑ car melhora atrelada à utilização de drogas beta-2-agonistas, tem sido abandonada.3 A política do “quando mais é menos”, fundamentada por uma análise mais robusta dos dados de literatura disponíveis, tem valorizado a importância de condutas expectantes de su‑ porte e monitoração.3 Dentro desse princípio, serão apresentados, na sequência, aspectos importantes no manejo terapêutico dessa situação, discriminados a partir de três situações: tratamento não far‑ macológico, tratamento farmacológico e suporte ventilatório. Na Figura 2, observa-se uma dinâmica compilada dos pas‑ sos terapêuticos a ser adotados. Alguns critérios de admissão hospitalar são apresentados na tentativa de reforçar a impor‑ tância da avaliação clínica e dos fatores de risco (Tabela 3). Tratamento não farmacológico Medidas gerais O atendimento deve ser organizado, procurando manter o lac‑ tente calmo com mínimo manuseio. Muitas vezes, a presença da mãe é fundamental para esse objetivo. A hipertermia, quando presente, deve ser tratada. Importante referir que a presença de febre elevada não é um achado comum na fase pulmonar da doença e, sempre que estiver presente, é preciso atentar para complicações associadas. A cabeceira do leito deve ser mantida preferencialmente elevada. Obstrução nasal e rinorreia, quando presentes, de‑ vem ser aliviadas com higiene e aspiração. Trata-se de uma medida importante, não só por questões de conforto, mas também para evitar comprometimento da mecânica respira‑ tória nos lactentes muito pequenos, quando ainda são respira‑ dores nasais exclusivos. A aspiração nasal deve ser prescrita a partir da observação de sinais de desconforto. Sua recomen‑
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Tabela 3 Critérios de admissão hospitalar – BVA A ser recomendada Idade inferior a 4 a 6 semanas Não aceitação da ingesta (~50% inferior da ingesta normal) Desidratação Letargia História de apneia Taquipneia (moderada a grave) Disfunção respiratória moderada a grave Saturação de O2 < 91% em ar ambiente Presença de comorbidades: cardiopatia congênita com repercussão clínica, hipertensão pulmonar, doença neuromuscular, pneumopatia dependente de oxigênio, imunodeficiência, quando o diagnóstico é duvidoso A ser considerada Presença de outras comorbidades: cardiopatias congênitas de menor repercussão clínica, doença pulmonar crônica, história de prematuridade, síndrome de Down Evolução rápida da sintomatologia (< 24 a 48 horas) Aspectos socioambientais: situação econômica desfavorável, fatores geográficos, dificuldade de transporte ou acesso à assistência
dação de aplicação, de maneira fixa e regular, não parece trazer benefícios. A prevenção da infecção cruzada deve sempre ser conside‑ rada como etapa de extrema importância, principalmente para portadores de infecção pelo VSR. Existem dois modos primários de transmissão da infecção pelo VSR: contato direto com grandes partículas de secreção e autoinoculação pelas mãos (após contato com material conta‑ minado). A transmissão por pequenas partículas de aerossol não é tão importante. Portanto, as mãos devem ser cuidadosamente lavadas, an‑ tes e após o contato com o doente. Atenção especial deve ser dada para a deposição de secreções e materiais contaminados, visto que podem permanecer infectantes (por viabilidade do agente viral) por várias horas em roupas, luvas, estetoscópios e mãos. Medidas de isolamento de contato são obrigatoria‑ mente requeridas. Caso não haja disponibilidade de um quar‑ to privativo ou de um quarto de isolamento comum aos porta‑
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História - Avaliar fatores de risco para doença grave (Quadro 1): idade < 12 semanas, prematuridade, doença pulmonar crônica, doença cardíaca congênita, doença neuromuscular, história pregressa de apneia - Avaliar evolução dos sintomas: apneia, chiado, tosse, nutrição e ingestão de líquidos Exame físico - A frequência respiratória, os movimentos do tórax, expiração prolongada, as recessões, o uso da musculatura acessória, sibilância, crepitações, cianose, estado geral, estado mental, hidratação Investigações - A saturação de oxigênio, teste virológico (imunofluorescência ou PCR), em situações especiais ou alocação para isolamento específico Outros conforme juízo individual: radiografia de tórax, hemograma, íons Definir gravidade: - leve, moderada ou grave (Tabelas 1 e 2) Critérios de internação (Tabela 3)
Bronquiolite leve Orientação para os pais Evitar procedimentos desnecessários e dolorosos Observar em casa
Bronquiolite moderada ou grave Abordagem de "manipulação mínima", especialmente para lactentes < 3 meses Posição prona preferencial Lavagem e aspiração nasal (se secreção abundante) Oxigênio por cânula nasal ou máscara para manter SatO2 > 90-92% Fluidos e nutrição: - Restaurar a perda de líquidos e tratar a desidratação - Dieta com volumes menores e frequentes (estímulo ao aleitamento materno) - Se VO inadequada: alimentar por sonda gástrica - Se alimentação enteral não tolerada; dar cristaloide EV - Manutenção de 100 mL/kg, (considere 80 mL/kg nos casos graves) - Pacote farmacológico (vide considerações no texto)
Investigações adicionais (indicação individualizada – casos mais graves) Hemograma completo, PCR (suspeita de infecção bacteriana) Eletrólitos séricos (suspeita de desequilíbrio) Gases sanguíneos (dificuldade respiratória grave) Radiografia de tórax (febre prolongada, SatO2 < 90%, critério de UTI ou gravidade, diagnóstico diferencial necessário)
Reavaliação horária (casos graves) e a cada 2 h (casos moderados)
Deterioração clínica/insuficiência respiratória iminente Apneias, alto aporte de O2, baixa saturação de O2, aumento do esforço respiratório ↓ Indicar UTI (dependendo das condições locais) Considerar CPAP nasal: nível 7 cmH2O ↓ Piora status clínico e mental h PaCO2 > 60 mmHg Apneias Considerar ventilação mecânica
Figura 2 Fluxograma assistencial na BVA.
dores da doença, uma distância mínima de 2 metros entre cada leito da unidade deve ser obedecida.3 Aporte hídrico Uma vez que o paciente desenvolva quadro de sofrimento res‑ piratório progressivo, com risco de falência respiratória, a sus‑ pensão da administração de líquidos e/ou alimentos pela via oral é mandatória. Frequências respiratórias > 60 a 70 mrpm, principalmente na vigência de obstrução nasal, vêm a aumen‑ tar o risco de aspiração para o trato respiratório. Nesses pacientes, a ração hídrica diária deve ser ofertada por via pa‑ renteral. Dessa maneira, deve estar ajustada à taxa de manu‑ tenção, determinada por peso, idade ou superfície corpórea. Ajustes podem ser necessários em função de potenciais com‑ plicações associadas. Na presença de desidratação (diminui‑
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ção da ingesta e/ou aumento das perdas insensíveis), o aporte hídrico deve ser aumentado em taxas superiores às de manu‑ tenção. Por outro lado, algumas situações especiais podem ne‑ cessitar de restrição no aporte hídrico ofertado (aumento da secreção de ADH, edema pulmonar).3 Portanto, nesses pa‑ cientes, é fundamental uma adequada monitoração (clínica e laboratorial), já que eles apresentam extrema labilidade no seu equilíbrio hídrico. Uma vez estabelecido o plano inicial de reposição hídrica, deve-se sempre considerar possibilidade de ajustes ao longo da evolução da doença.1-3 Fisioterapia Sob a ótica da evidência, as técnicas de fisioterapia respirató‑ ria possuem uma moderada recomendação para que não se‑ jam utilizadas, prática fundamentada pela análise crítica de
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uma série de estudos de literatura, delineados com pequenas limitações metodológicas, mesmo que achados radiológicos de atelectasias sejam encontrados em uma parcela significati‑ va desses pacientes.3-7 Tratamento farmacológico Oxigênio A administração de oxigênio deve sempre ser considerada no tratamento dos pacientes hospitalizados com bronquiolite. Deve ser aquecido e umidificado, devendo ser preferencial‑ mente administrado por cânula nasal. Máscara, campânula ou oxitenda têm sido cada vez menos utilizadas, mesmo com a possibilidade de uma maior oferta e controle das concentra‑ ções de oxigênio administradas. Cânulas nasais de alto fluxo para fornecimento de misturas de ar-oxigênio têm sido cada vez mais utilizadas, pela possibilidade de diminuir o esforço respiratório. Embora estudos ainda careçam de maior apro‑ fundamento e refinamento metodológicos, resultados são fa‑ voráveis e apontam até para a possibilidade de diminuição da necessidade de entubação e suporte ventilatório. Uma vez indicada a suplementação de oxigênio, é necessá‑ rio monitorar (de maneira contínua ou intermitente frequen‑ te) a saturação de oxigênio por oximetria de pulso, visando a mantê-la em níveis superiores a 90%. A saturação de oxigênio nunca deve ser analisada de maneira isolada, devendo ser in‑ terpretada em associação com as manifestações clínicas pre‑ sentes. Não se pode desconsiderar que quedas temporárias nos níveis de saturação ocorrem em uma série de outros even‑ tos clínicos (p.ex., asma), sendo que isso não vem a caracteri‑ zar prejuízo ou dano futuro, desde que o paciente esteja está‑ vel clinicamente. Além disso, alguns estudos têm relacionado a rotina de monitoração contínua por oximetria a um aumento nas taxas de permanência hospitalar. Também é preciso refe‑ rir que a indicação da oxigenoterapia pode ser necessária, ain‑ da que o paciente não apresente níveis baixos de saturação de O2 ou hipoxemia.3,8 Broncodilatadores (alfa e beta-adrenérgicos) Embora ainda sejam as drogas mais frequentemente prescri‑ tas para pacientes portadores de BVA, seus reais benefícios ca‑ recem de fundamentação e evidências científicas. Vários broncodilatadores têm sido avaliados como opção terapêutica no tratamento desses pacientes, entretanto, apenas as drogas beta-2-agonistas (principalmente o salbutamol) e as drogas com propriedades alfa-adrenégicas (adrenalina) têm mereci‑ do maiores considerações dentro de atuais protocolos tera‑ pêuticos. Entretanto, mesmo nesse contexto, a maioria dos ensaios clínicos tem falhado em demonstrar benefícios clínicos sus‑ tentados e consistentes. Os desfechos utilizados para caracte‑ rização da melhora nos estudos com resposta favorável têm sido o principal fator limitante para garantir a validade externa dos resultados. Escores clínicos, nessa faixa etária, não pos‑ suem validação por testes de função pulmonar e possuem uma variabilidade de avaliação intrínseca ao método. Consi‑ derando a utilização de desfechos de maior relevância clínica
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como resolução da doença, a necessidade de internação ou o tempo de hospitalização, os benefícios não são identificados.9 Estudos que apontam benefício para utilização dessas dro‑ gas têm sido considerados metodologicamente mais fracos e, frequentemente, incluem crianças mais velhas com história de sibilância prévia. Recente revisão sistemática da Cochrane não foi capaz de demonstrar benefícios clínicos associados a utilização da tera‑ pêutica, entretanto, a presença de potenciais efeitos adversos (taquicardia, tremores), atrelados ao próprio custo da medica‑ ção trazem questionamentos se os efeitos indesejados não vi‑ riam a suplantar os benefícios demonstrados. No momento, esse tem sido o posicionamento mais fre‑ quentemente recomendado à luz dos dados disponíveis na li‑ teratura. A recomendação de uma utilização cautelosa, com manutenção justificada por resposta clínica observada, até en‑ tão realizada em muitos serviços e recomendada por muitos protocolos, tem deixado de ser uma rotina universal.9-11 O problema é complexo, pois, apesar de todos esses questio‑ namentos, não se pode desconsiderar que alguns pacientes pa‑ recem demonstrar benefício com a utilização da terapêutica, o que dificulta qualquer posicionamento totalmente consolidado. A tentativa de definir quais pacientes virão a apresentar re‑ versibilidade à custa de uma constrição muscular presente na via aérea é o grande desafio que a literatura não foi, até o mo‑ mento, capaz de responder. Mesmo os estudos delineados com o objetivo de avaliar isoladamente benefícios em um sub‑ grupo de lactentes portadores de sibilância prévia têm falhado em apresentar resultados conclusivos e favoráveis à utilização da terapêutica.9-11 A adrenalina inalatória é outra medicação frequentemente administrada para pacientes portadores de BVA. Consideran‑ do que hiperemia e edema de mucosa são responsáveis por al‑ guns dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos na gênese do processo obstrutivo da BVA, a estimulação dos receptores alfa-adrenérgicos poderia agregar benefícios à estimulação dos betarreceptores por parte dos broncodilatadores. A adre‑ nalina possui essas propriedades (beta e alfa-adrenérgicas), com potencial ação farmacológica para reduzir o extravaza‑ mento microvascular (capilar e pós-capilar), reduzir o edema sobre a mucosa brônquica e promover broncodilatação por re‑ laxamento da musculatura brônquica.9-11 Vários estudos têm sido conduzidos procurando determi‑ nar os potenciais benefícios da adrenalina em pacientes com BVA em diferentes cenários. Assim como nos broncodilatado‑ res da classe beta-adrenérgica, não há dados capazes de defi‑ nir com segurança qual subgrupo de pacientes portadores de BVA poderia se beneficiar dessa terapêutica. Sob a ótica de evidência, tanto broncodilatadores da classe dos beta-adre‑ nérgicos quanto a adrenalina (propriedades alfa e beta-adre‑ négicas) têm forte recomendação para que não sejam utiliza‑ dos como rotina na BVA, juízo fundamentado pela análise crítica de uma série de estudos de literatura, delineados com pequenas limitações metodológicas.10,11 Sendo assim, à luz do conhecimento atual, essas drogas não devem ser recomendadas no tratamento de rotina dos pa‑
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cientes portadores de BVA, necessitando de novos dados foca‑ dos sobretudo na determinação das características de um sub‑ grupo que poderia se beneficiar da terapêutica. Até que isso seja definido, é importante que outras questões também se‑ jam ponderadas: dose ideal, intervalo de administração e questões relacionadas à segurança em terapêuticas mais pro‑ longadas, aspectos também sem resposta fundamentada. Solução salina hipertônica Estudos advindos de pacientes portadores de fibrose cística vieram a sugerir que a utilização de soluções salinas hipertôni‑ cas (3%, 5% e 7%) administradas por via inalatória melhoraria o clearance mucociliar de lactentes portadores de BVA. Dados de literatura chegaram a sugerir que pudesse ser utilizada de maneira universal nos portadores de BVA, visto reduzir tempo de internação e demonstrar melhora na redução de escores clí‑ nicos.12 Revisão sistemática da Cochrane incluiu 11 estudos envol‑ vendo 1.090 crianças com BVA: 500 pacientes internados (5 ensaios clínicos), 65 pacientes ambulatoriais (1 ensaio clínico) e 525 pacientes do departamento de emergência (4 ensaios clínicos). Um total de 560 pacientes recebeu solução salina hi‑ pertônica (solução salina 3%, n = 503; solução salina 5%, n = 57). Os doentes tratados com nebulização salina 3% apresen‑ taram menor tempo de internação hospitalar em comparação àqueles tratados com nebulização salina a 0,9%. Efeitos de melhora sobre escore clínico de avaliação foram observados em ambos os grupos de pacientes (ambulatoriais e interna‑ dos). Os 4 ensaios clínicos conduzidos no serviço de urgência não mostraram quaisquer efeitos significativos de curto prazo (30 a 120 minutos) com a utilização de até 3 doses de nebuli‑ zação salina a 3%. Sob o ponto de vista de efeitos adversos as‑ sociados, não foram relatados eventos significativos atribuí‑ dos à inalação de solução salina hipertônica.12 Recente metanálise estabeleceu a hipótese de que o trata‑ mento da BVA com solução salina hipertônica poderia dimi‑ nuir sobremaneira tanto a duração quanto a taxa de hospitali‑ zação, se mais ensaios clínicos randomizados fossem delineados e considerados para análise de efeito. Após análise e tratamento dos dados de 11 estudos, concluiu-se que a solu‑ ção salina hipertônica seria capaz de reduzir significativamen‑ te tanto a taxa de admissão quanto a duração da hospitaliza‑ ção. A partir desses dados, com evidências de 1 resultado favorável em uma análise de eficácia e de custo-efetividade, chegou-se a sugerir sua utilização no tratamento dos pacien‑ tes portadores de BVA. Entretanto, ainda dentro desse cenário, é importante refe‑ rir que muitos questionamentos permanecem à luz desses achados. Críticas foram estabelecidas fazendo uma referên‑ cia de que o efeito da inalação poderia estar associado a dife‑ renças assistenciais atreladas ao local de tratamento, isto é, o seu efeito poderia ser mais marcado naqueles locais em que a duração total da admissão viesse a superar os 3 dias de inter‑ nação.12 Sendo assim, sob o ponto de vista da evidência, a solução salina hipertônica tem recomendações para sua utilização,
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embora essas sejam ainda fracas, visto estarem fundamenta‑ das em estudos com achados de menor consistência metodo‑ lógica. Corticosteroides As bases lógicas para sua utilização estão relacionadas a uma possível importância da inflamação na gênese do processo. O papel da inflamação é sustentado por evidências relacionadas a um aumento de mediadores pró-inflamatórios e achados en‑ contrados por ocasião de exames anatomopatológicos em por‑ tadores de BVA.13 Apesar do seu uso frequente (36% dos casos, em alguns centros) e dos seus potenciais benefícios teóricos, os corticos‑ teroides sistêmicos não têm demonstrado eficácia no trata‑ mento da BVA, sendo, por isso, contraindicados. Recente revisão sistemática da Cochrane, incluindo 17 es‑ tudos, com mais de 2.500 participantes, evidenciou ausência de efeito para desfecho de internação hospitalar, quando com‑ parado a placebo, e do tempo total de hospitalização pela doença.13 A tentativa de demonstrar dados diferentes, por meio de metanálise composta por 6 estudos de 12 selecionados, evi‑ denciou uma menor permanência hospitalar, uma menor du‑ ração de sintomas (0,43 dias) e uma melhora no escore clínico, sugerindo benefícios atrelados a utilização da terapêutica. En‑ tretanto, como limitação da análise, merece ser reforçado que em apenas 2 estudos foram incluídos pacientes com etiologia viral identificada (VSR).3-13 Outro aspecto terapêutico relacionado à utilização de corti‑ costeroides está centrado na sua administração por via inala‑ tória, com o intuito de se obter uma redução da sibilância que frequentemente sucede a bronquiolite aguda. Abul-Ainine et al. avaliaram os efeitos da budesonida por via inalatória versus placebo em 161 lactentes portadores de BVA por VSR. Não fo‑ ram capazes de encontrar benefícios em curto prazo quanto à duração da sintomatologia e do período de hospitalização, nem em seguimento de maior duração (12 meses), conside‑ rando a ocorrência de sintomas respiratórios.3,13 Sob a ótica de evidência, corticosteroides têm forte recomen‑ dação para não serem utilizados no tratamento da BVA, dados que têm sido fundamentados pela análise crítica da literatura, incluindo ensaios clínicos bem delineados e m etanálises.3,13 Outros Várias outras drogas têm sido alvo de estudos para tratamento da bronquiolite viral aguda e de suas complicações. Em casos especiais, apontam para a possibilidade de benefícios associa‑ dos à utilização, entretanto, carecemos de maiores evidências e fundamentação científica: surfactante exógeno, misturas ga‑ sosas de hélio e oxigênio (heliox), desoxirribonuclease huma‑ na recombinante (Dnase), macrolídeos, entre outras.14 Suporte ventilatório Dependendo da população amostrada, a necessidade de venti‑ lação mecânica pode oscilar entre 5 e 15% dos pacientes inter‑ nados. Os maiores candidatos são lactentes menores de 3 me‑
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ses, pacientes com displasia broncopulmonar, portadores de desnutrição proteicocalórica, síndrome de Down, cardiopatias congênitas e pacientes que adquiriram bronquiolite intra-hos‑ pitalar. O tempo de ventilação mecânica oscila entre 5 e 15 dias, período no qual o processo obstrutivo deve começar a re‑ solver-se. Ao manejar um paciente em ventilação mecânica, indepen‑ dentemente do equipamento (respirador mecânico) que se tem disponível, é fundamental o conhecimento das bases fi‑ siopatológicas associadas à doença. As limitações de fluxo, principalmente expiratórios (impostos pela presença do pro‑ cesso obstrutivo), poderão resultar em aumento nos volumes e pressões expiratórios finais (auto-PEEP), que aumentarão o risco de barotrauma e não permitirão que as trocas gasosas ocorram de maneira adequada. Portanto, na estratégia de ven‑ tilação, é fundamental que se estabeleçam tempos expirató‑ rios suficientes para que o volume corrente expiratório possa ser completamente exalado. O resultado final implicará no uso de frequências respiratórias mais baixas (geralmente < 20 mrpm), com tempos inspiratórios adequados e tempos expi‑ ratórios mais longos. Não se devem empregar volumes corren‑ tes elevados, o que também aumenta o risco de barotrauma/ volutrauma (geralmente < 10 mL/kg), e deve-se tentar limitar os picos de pressão inspiratória a valores < 35 cmH2O. A fração inspirada de oxigênio deve ser ajustada para buscar uma satu‑ ração de oxigênio superior a 90%. O uso de pressão expiratória positiva final (PEEP) é outro assunto controverso dentro das estratégias ventilatórias em pacientes com patologia obstruti‑ va. Embora alguns pacientes possam se beneficiar de sua utili‑ zação, os valores fisiológicos limitam esse uso, pelos poten‑ ciais riscos de complicações que podem advir do seu emprego em lactentes portadores de doença obstrutiva.15
Medidas preventivas Imunização passiva A imunoglobulina endovenosa específica (IGEV-VSR) e o anti‑ corpo monoclonal humanizado para VSR (palivizumabe) têm se mostrado efetivos na prevenção da infecção pelo VSR em populações de risco.16,17 No nosso meio, encontra-se comercialmente disponível para uso apenas o palivizumabe. As recomendações estabele‑ cidas para sua utilização na América do Norte recentemente sofreram atualização e podem ser vistas, de maneira sumari‑ zada, no Quadro 2.17 É importante referir que os benefícios advindos dessa pre‑ venção devem ser avaliados de maneira crítica quanto ao cus‑ to-benefício. Contextos geográficos, epidemiológicos e econô‑ micos devem ser considerados antes da incorporação universal da recomendação.
Quadro 2 Profilaxia com anticorpo monoclonal humanizado (palivizumabe) na BVA por VSR A profilaxia com palivizumabe* 1
É recomendada, no primeiro ano de vida, para recém ‑nascidos com idade gestacional < 29 semanas
2
Não é recomendada para recém-nascidos saudáveis com idade gestacional > 29 semanas
3
É recomendada, no primeiro ano de vida, para recém ‑nascidos pré-termo portadores de doença pulmonar crônica da prematuridade definida por: idade gestacional < 32 semanas, associada a necessidade de oxigênio (> 21%), por pelo menos 28 dias após o nascimento
4
No primeiro ano de vida é indicada para lactentes portadores de doença cardíaca com repercussão hemodinâmica significativa
5
No primeiro ano de vida, pode ser indicada até um máximo de cinco doses mensais (15 mg/kg/dose), durante a temporada do VSR, naqueles lactentes que preenchem os critérios de utilização do imunobiológico. Lactentes com critérios de utilização, nascidos ao longo da temporada do VSR virão a requerer menos doses
6
Não é recomendada no segundo ano de vida, exceto para os lactentes que necessitaram de pelo menos 28 dias de suplementação de oxigênio, após o nascimento, e que continuam a requerer alguma intervenção médica (oxigênio suplementar, terapia crônica com corticosteroide ou diurético)
Tabela 4 Critérios de alta hospitalar
7
Manter a monitoração depois da retirada do oxigênio (6 a 12 horas), incluindo um período de sono
Deve ser descontinuada no caso de o lactente necessitar de hospitalização associada a VSR
8
No primeiro ano de vida, pode ser considerada nos lactentes com anomalia pulmonar ou doença neuromuscular capazes de prejudicar a capacidade de clearance das secreções das vias aéreas superiores
9
Nos dois primeiros anos de vida (< 24 meses), pode ser considerada durante a temporada do VSR nas crianças profundamente imunocomprometidas
10
Não é recomendada para crianças portadoras de fibrose cística ou síndrome de Down, em função de os dados disponíveis serem insuficientes para um juízo crítico consolidado
11
Não é recomendada para prevenção de VSR associada a cuidados de saúde
Critérios de alta hospitalar Não existem critérios universais capazes de englobar com se‑ gurança a alta hospitalar de todos os pacientes portadores de BVA. Na Tabela 4, é possível observar alguns dados importan‑ tes que devem ser considerados por ocasião desse processo de alta.
Planejar a alta junto aos pais desde a internação hospitalar (acordar previamente os critérios de alta) Critérios de alta: Frequência respiratória adequada para idade, sem sinais clínicos de desconforto respiratório Saturação de O2 > 93% em ar ambiente Ingesta adequada Cuidadores capazes de realizar adequadamente higiene das vias aéreas superiores Cuidadores capazes de entender orientações fornecidas: Evolução e motivos para retorno (sinais de alerta) Possibilidade de revisão médica após a alta
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* Recomendações estabelecidas a partir de política da AAP: Updated Guidance for Palivizumab Prophylaxis Among Infants and Young Children at Increased Risk of Hospitalization for Respiratory Syncytial Virus Infection, 2014.
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Complicações As complicações da bronquiolite podem ser divididas em agu‑ das e crônicas (sequelas). As complicações agudas estão relacionadas às complica‑ ções habituais das pneumopatias decorrentes de hiperinsufla‑ ção pulmonar e ocorrem em até 79% das crianças; em 24%, são mais sérias. As complicações respiratórias são mais fre‑ quentes (60%), seguidas das infecções (41%), complicações cardiovasculares (9%), alterações eletrolíticas (19%) e outras (9%). As complicações também são mais frequentes em pa‑ cientes prematuros (87%), crianças com alterações cardíacas congênitas (93%) e crianças com outras anomalias congênitas (90%). Crianças com 33 a 35 semanas gestacionais têm o mais alto nível de complicações (93%), com longas hospitalizações e alto custo de internação comparado com outros prematuros (p < 0,004).18 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer que a BVA é uma das causas mais frequentes de internação hospitalar nessa faixa etária. • Considerar que o diagnóstico da BVA deve ser estabelecido dentro de bases clínicas e que é importante ter uma visão detalhada dos principais fatores, como sibilos e crepitantes associados ou não a taquipneia e tiragem. • Reconhecer que, na grande maioria dos pacientes, a evolução é benigna e o processo evolui para a cura sem a necessidade de nenhuma intervenção. • Considerar sempre a administração de oxigênio no tratamento dos pacientes hospitalizados com bronquiolite. • Reconhecer que é necessária a saturação de oxigênio por oximetria de pulso, visando a mantê-la em níveis superiores a 90%.
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CAPÍTULO 5
SIBILÂNCIA RECORRENTE PÓS-VIRAL Leonardo Araujo Pinto
Introdução A bronquiolite aguda (BA) tem sido definida em muitos estu‑ dos como uma infecção respiratória aguda (IRA), geralmente de etiologia viral, associada ao primeiro episódio de sibilância e/ou dificuldade respiratória em crianças com menos de 1 ano de idade. É considerada a principal causa de hospitalização no 1º ano de vida.1 Após uma BA com hospitalização, 30 a 40% dos pacientes voltam a apresentar crises de sibilância recor‑ rente (SR). A SR pós-viral está associada à importante morbi‑ dade na pediatria. Segundo estudos clínicos e consensos, o primeiro episódio (BA) deve ser manejado apenas com tratamento de suporte, incluindo oxigenioterapia e suporte ventilatório, se necessário. Já para os lactentes com SR pós-bronquiolite, o tratamento prescrito é extremamente variável, dependendo das caracte‑ rísticas do paciente.2 Quando etiologias mais graves, como fi‑ brose cística ou cardiopatias congênitas, podem ser excluídas, os pacientes com SR são frequentemente manejados com me‑ dicamentos testados e utilizados no manejo da asma. Entre‑ tanto, existe uma grande variação nas medidas terapêuticas prescritas, e os lactentes sibilantes também são frequente‑ mente manejados de forma conservadora (suporte), conside‑ rando o diagnóstico de sibilância transitória da infância e a ca‑ racterística benigna na evolução de médio ou longo prazo.3 Dessa forma, muitos pacientes com SR são tratados confor‑ me entendimento particular do médico-assistente.2 Dessa for‑ ma, é fundamental que sejam descritas diretrizes específicas para esse tópico, como uma tentativa de uniformizar e melho‑ rar o manejo dos lactentes com SR. Diagnóstico diferencial O termo sibilância recorrente ou lactente sibilante pode ser considerado um diagnóstico sindrômico e, antes de iniciar a terapêutica, sempre é fundamental considerar o diagnóstico etiológico mais provável. O diagnóstico de asma em lactentes é desafiador,4 e deve-se sempre diferenciar as causas mais fre‑ quentes de sibilância (sibilância transitória da infância e
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asma) de outras causas mais raras. Entre as causas mais raras ou secundárias, algumas de grande relevância para o diagnós‑ tico diferencial são citadas na Tabela 1.5 Para se fazer o diagnóstico diferencial, uma cuidadosa his‑ tória clínica deve ser inicialmente realizada, prestando aten‑ Tabela 1 Diagnóstico diferencial, sinais que podem sugerir alguma doença de maior gravidade e exames complementares que podem ser indicados no lactente com sibilância recorrente Diagnóstico etiológico
Sinais de alerta
Exames complementares
Bronquiolite obliterante
Bronquiolite grave com hospitalização seguida de sintomas contínuos Oxigenoterapia por período prolongado
TC de tórax Cintilografia perfusional Radiografia de tórax
Imunodeficiências
Infecções repetidas de resolução lenta Mãe com infecção por HIV Infecções em diversos sítios Baixo peso
Imunoglobulinas séricas Anti-HIV NBT
Fibrose cística
História de íleo meconial Suor salgado Esteatorreia/baixo peso HF de fibrose cística Hipocratismo digital
Eletrólitos no suor Estudo genético
Traqueobroncoma‑ lácia
Sintomatologia que modifica com o posicionamento do bebê
Fibrobroncoscopia
Displasia broncopulmonar; doença pulmonar crônica da prematuridade
Prematuridade Uso de ventilação mecânica ou oxigenoterapia Sintomas contínuos desde o período neonatal
Radiografia de tórax
TC: tomografia computadorizada; NBT: teste do nitroazul de tetrazólio; HF: história familiar. Fonte: adaptada de Alampi et al., 2009.6
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Sibilância Recorrente Pós-viral •
ção em alguns sinais clínicos que podem ser utilizados como “sinais de alerta”. Início dos sintomas e evolução pós-bronquiolite aguda É importante questionar quanto ao surgimento dos primeiros sintomas, se ocorreram desde o início da vida ou mais tardia‑ mente. No primeiro caso, deve-se atentar para doenças congê‑ nitas, como malformações da via aérea. A história neonatal da criança também deve ser realizada de forma minuciosa, prin‑ cipalmente em relação ao uso de ventilação mecânica e oxige‑ noterapia, o que pode levar à suspeita de displasia broncopul‑ monar ou doença pulmonar crônica (DPC) da prematuridade. Padrões de sibilância Quando transitório, pode estar associado a vírus respiratórios, hiper-reatividade brônquica ou asma; se persistente, podem‑ -se considerar anomalias congênitas e outras doenças, como discinesia ciliar ou bronquiolite obliterante.7,8 Características dos sintomas associados à sibilância Tosse durante a alimentação pode estar associada a vômitos ou engasgos, caracterizando distúrbio da deglutição. Doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) pode causar tosse logo após a ingestão alimentar. Tosse seca noturna pode estar rela‑ cionada com asma atópica.9 Em pacientes com tosse crônica produtiva, devem-se investigar DPC supurativas associadas a bronquiectasias. Qualquer sintoma respiratório associado a esteatorreia e di‑ ficuldade de ganho ponderal pode estar relacionado à fibrose cística. Sibilância persistente modificando-se de acordo com o posicionamento do paciente pode ser associada a traqueoma‑ lácia ou anomalias de grandes vasos. Casos de bronquiolite grave, com sintomas contínuos e uso prolongado do O2, po‑ dem sugerir a possibilidade de bronquiolite obliterante.7 Por fim, sibilância associada com cardiopatias congênitas e insufi‑ ciência cardíaca pode apresentar-se clinicamente com taquip‑ neia, cianose durante as mamadas e baixo ganho ponderal. Avaliação clínica dos fenótipos de sibilância Para pacientes que não apresentam nenhum dos “sinais de alerta” (ver Tabela 1) para doenças mais raras, pode-se seguir com a avaliação dos fenótipos de sibilância. Os estudos de coorte e consensos de asma e sibilância (www.ginasthma. com) descrevem diversos padrões distintos de sibilância que podem ocorrer durante a toda infância, assim como a sua evo‑ lução. Especificamente para os primeiros anos de vida, desta‑ cam-se dois fenótipos que devem ser investigados para, sem‑ pre que possível, receberem tratamentos mais específicos. 1. Sibilância transitória/não atópica: sibilos durante os 2 e 3 pri‑ meiros anos de vida e não mais após essa idade. Esses pacien‑ tes apresentam sibilância desencadeada principalmente por vírus que tende a desaparecer com o crescimento. 2. Asma atópica: caracterizada por sibilância associada aos se‑ guintes itens:
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• manifestação de atopia: eczema, rinite, conjuntivite, aler‑ gia alimentar, eosinofilia e/ou níveis séricos elevados de IgE total; • sensibilidade comprovada pela presença de IgE específica a alimentos na infância precoce e, em seguida, IgE especí‑ fica a aeroalérgenos; • sensibilização a aeroalérgenos especialmente se exposto a níveis elevados de alérgenos perenes no domicílio; • pai e/ou mãe com história de asma. Para diferenciar esses dois fenótipos, pode-se utilizar o índice preditor de asma (Asthma Predictive Index – API), que é um escore clínico usado para estimar o risco de um lactente sibi‑ lante apresentar ou desenvolver asma atópica, conforme des‑ crição a seguir: 1. Critérios maiores: • um dos pais com asma; • diagnóstico de dermatite atópica. 2. Critérios menores: • diagnóstico médico de rinite alérgica; • sibilância não associada a resfriado; • eosinofilia maior ou igual a 4%. Pacientes com 1 critério maior ou 2 menores devem ser consi‑ derados de alto risco para asma. No caso de pacientes com API negativo, mais de 90% dos lactentes ou pré-escolares estarão livres dos sintomas até os 6 anos de idade, ficando claro o ca‑ ráter transitório desse fenótipo e a acurácia do escore. Os medicamentos antiasmáticos podem ser mais eficazes e são indicados em pacientes de alto risco para asma, enquanto pacientes com sibilância transitória pós-viral devem receber um manejo mais conservador. Se existe dúvida quanto à clas‑ sificação, pode-se realizar um teste terapêutico com medica‑ mentos para asma (corticosteroides inalatórios são a primeira escolha). Entretanto, não se deve insistir nesse tratamento se não houver resposta. Diagnóstico Pacientes sem os chamados “sinais de alerta” podem ser ma‑ nejados de acordo com o fenótipo mais provável e não neces‑ sitam de exames complementares se os sintomas são leves. Entretanto, sempre que há “sinais de alerta”, assim como SR com sinais de gravidade ou sem resposta ao tratamento, é pre‑ ciso seguir os passos para uma investigação mais detalhada (ver Tabela 1). Para a realização do diagnóstico correto de sibi‑ lância, de acordo com o quadro clínico do paciente, por vezes, alguns exames complementares podem ser necessários: 1. Radiografia de tórax: pode mostrar áreas de hiperinsuflação, atelectasias, infiltrados intersticiais, cardiomegalia sugerindo diagnósticos mais prováveis, de acordo com os dados apre‑ sentados na Tabela 2. Geralmente é solicitado em casos de SR não responsiva a broncodilatadores (ver Tabela 1). 2. Tomografia computadorizada (TC) de tórax de alta resolução: pode definir o diagnóstico de bronquiolite obliterante. Os achados mais característicos são bronquiectasias, alçapona‑ mento aéreo e perfusão em mosaico.
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3. Fibrobroncoscopia (FB): a FB rígida tem sua importância no
diagnóstico e na retirada de corpos estranhos; a FB flexível auxilia no diagnóstico de fístulas traqueoesofágicas com ou sem estenose de esôfago, traqueo e broncomalácia, anel vas‑ cular e outras compressões cardíacas, granuloma ou estenose traqueal. 4. Eletrólitos no suor: esse teste deve ser realizado em todo lac‑ tente sibilante com sinais de baixo ganho ponderal, alteração nas fezes ou história familiar de FC. Além disso, alguns acha‑ dos como baqueteamento digital, valor de tripsina imunor‑ reativa (IRT) limítrofe e doença de característica supurativa também podem indicar o exame. Valores abaixo de 30 em ge‑ ral afastam a possibilidade. Resultados entre 30 e 60 são con‑ siderados limítrofes e devem ser repetidos. Valores acima de 60 são considerados positivos, mas também devem ser repe‑ tidos para a confirmação do diagnóstico. 5. Videodeglutograma: é considerado um dos melhores testes para avaliação e diagnóstico dos distúrbios da deglutição, que podem estar associados a sibilância recorrente ou persistente. 6. Dosagem de imunoglobulinas séricas (IgA, IgG, IgM e IgE): pode ser considerado um bom teste de triagem para imuno‑ deficiências congênitas e pode ser definitivo nos casos de hi‑ pogamaglobulinemia.
Manejo farmacológico na prevenção das crises Os lactentes que não apresentam sinais de alerta devem ser classificados em dois grupos principais: asma atópica ou sibi‑ lância transitória induzida por vírus. A diferenciação entre es‑ ses dois grupos é mais facilmente realizada de forma retros‑ pectiva em crianças maiores. Entretanto, o API e os dados da história podem sugerir o diagnóstico de asma atópica: história familiar de asma ou rinite alérgica, presença de sintomas na‑ sais na criança, como obstrução nasal e prurido constante, ou episódios de sibilância somente controlados por uso de bron‑ codilatadores e corticosteroides. Existem também dados da anamnese que sugerem o diagnóstico de sibilância transitória induzida por vírus, como ausência de história pessoal ou fami‑ liar de atopia, tendência a apresentar episódios somente no inverno, com redução expressiva no verão. Entretanto, as cri‑ ses de sibilância em asmáticos atópicos também podem ser induzidas por infecções virais, o que pode confundir ainda mais a diferenciação entre esses dois fenótipos. Dessa forma,
Tabela 2 Avaliação clínica dos fenótipos de sibilância com a utilização do índice preditivo de asma Critérios maiores Um dos pais com asma Diagnóstico de dermatite atópica Critérios menores
a utilização de teste terapêutico com medicamentos antias‑ máticos pode ser muito útil na diferenciação desses fenótipos. Com relação à profilaxia das crises em lactentes, o uso de corticosteroides inalatórios tem sido muito discutido. Muitos estudos apontam para vantagem de seu uso em crianças com crises frequentes, graves e que necessitam uso de costicoste‑ roides orais. Estudos de longo prazo com uso de corticosteroi‑ des inalados em doses moderadas têm mostrado que eles po‑ dem interferir na estatura final, porém, em lactentes com perfil sugestivo de asma, com sintomatologia intensa e neces‑ sidade frequente de corticosteroides orais, o inalatório deve ser preferido e utilizado com espaçadores valvulados. Os principais efeitos adversos em longo prazo (potenciais ou comprovados) para o uso frequente de corticosteroides orais es‑ tão descritos a seguir. O uso de corticosteroides inalados é mais seguro, mas doses elevadas também podem levar a efeitos ad‑ versos significativos, como redução de estatura final, redução da densidade mineral óssea e aumento do risco de fraturas ós‑ seas. O monitoramento desses pacientes deve incluir observa‑ ção de melhora clínica e controle periódico dos possíveis efeitos adversos. O critério de escolha de corticosteroide inalatório deve considerar as drogas com menores efeitos colaterais. Além disso, deve-se utilizar a menor dose para controle dos sintomas. A beclometasona e a fluticasona têm sido as mais indicadas atualmente no Brasil. A dose inicialmente prescrita nessa idade pode variar entre 100 e 200 mcg de beclometasona por dia. Caso o controle não seja adequado com a dosagem baixa de corticos‑ teroides inalatórios, é preferível associar o antileucotrieno do que manter doses elevadas de corticosteroides inalados em lon‑ go prazo. É importante lembrar que lactentes com sibilância fre‑ quente ou crises graves devem ser encaminhados para investi‑ gação em serviços especializados em pneumologia pediátrica. Por outro lado, crianças que apresentam episódios eventuais e respondem ao tratamento com broncodilatadores e corticoste‑ roides podem ser acompanhadas sem investigação ou trata‑ mentos invasivos (Tabela 3). Manejo das exacerbações Os objetivos do tratamento em um lactente com crise de sibilân‑ cia são: manter a saturação de O2 acima de 94%; reduzir a difi‑ Tabela 3 Opções de tratamento para prevenção das crises de sibilância Medicamentos indicados no teste terapêutico ou na prevenção em pacientes de alto risco para asma Corticosteroide inalatório (beclometasona, fluticasona)
Teste terapêutico (3 a 4 semanas) Seguro em doses baixas Suspeita de asma (critérios API) Sibilância frequente após hospitalização
A) Passo 1
Corticosteroide (dose baixa, 1ª escolha) ou Antileucotrieno (montelucaste)
B) Passo 2
Corticosteroide (dose moderada) ou Corticosteroide (dose baixa) + antileucotrieno
C) Passo 3
Corticosteroide (dose alta) + antileucotrieno associado
Diagnóstico médico de rinite alérgica Sibilância não associada a resfriado Eosinofilia maior ou igual a 4% Fonte: adaptada de Castro-Rodriguez, 2010.10
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Fonte: adaptada de Global Initiative for Asthma (GINA), 2009.11
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culdade respiratória e a sibilância o mais rápido possível; e redu‑ zir o tempo de internação nas exacerbações agudas. Além disso, é importante fornecer o tratamento mais específico consideran‑ do o diagnóstico etiológico mais provável e fornecer orientação adequada para a prevenção das crises subsequentes. Os espaçadores caseiros também são eficientes, mas podem gerar maior perda de medicação em pacientes pequenos. Se‑ gundo o consenso da Global Initiative for Asthma (GINA),11 as doses e a técnica de inalação indicadas para a faixa etária são: • indicar o uso de broncodilatador beta-2-agonista (salbuta‑ mol), spray e espaçador; a dose inicial pode ser 4 jatos a cada 20 minutos durante a 1ª hora;11 • na faixa etária de lactentes, devem-se utilizar preferencial‑ mente espaçadores com máscara flexível (p.ex., Medicate®, Agachamber® ou Inalair®).12 O uso do corticosteroide sistêmico está bem indicado em um paciente com API positivo e exacerbação moderada ou grave. Entretanto, a via indicada é um erro frequente na prática clíni‑ ca pediátrica e no manejo do lactente sibilante ou asmático. A melhor via para administrar o corticosteroide na crise aguda é via oral (VO). O uso do corticosteroide oral é mais fácil, tem custo mais acessível, é menos invasivo e tão eficaz quanto o medicamento utilizado por via parenteral. Outras medidas terapêuticas As medidas terapêuticas indicadas podem depender, especi‑ ficamente, do diagnóstico etiológico.13 No caso de diagnósti‑ cos mais raros, as medidas são específicas para cada uma das entidades etiológicas descritas (ver Tabela 1). Já para pacien‑ tes que se enquadram no perfil dos fenótipos de sibilância, o tratamento também pode ser diferenciado conforme o fenóti‑ po mais provável.13 Os pacientes com SR pós-viral devem re‑ ceber medidas para reduzir os fatores desencadeantes, espe‑ cialmente tabagismo passivo e exposição a vírus. Dessa forma, os pais tabagistas devem ser encaminhados para ser‑ viços especializados no manejo de tabagismo, e os familiares podem ser orientados a evitar o início muito precoce dos fi‑ lhos na pré-escola. O tratamento dos lactentes sibilantes de alto risco para asma baseia-se na redução da inflamação, na prevenção das exacerbações e na disponibilização dos medicamentos. Para prevenção das crises, as diretrizes nacionais e internacionais recomendam corticosteroides por via inalatória como primei‑ ra escolha para tratamento12 e, como alternativa, os antileuco‑ trienos.11 Medidas preventivas não farmacológicas Algumas medidas não farmacológicas podem ter impacto na prevenção e no controle de crises e complicações. As medidas mais importantes são: • evitar creches ou pré-escola nos primeiros 12 a 24 meses; • evitar exposição ao tabagismo passivo; • promover aleitamento materno; • cuidar do estado nutricional; • vacinar para influenza e pneumococo.
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Novos tratamentos Nebulização com solução salina hipertônica 3% Essa intervenção tem mostrado um aumento no clearance mu‑ cociliar em pacientes com bronquiectasias e fibrose cística, podendo também ser considerada em alguns casos. Em estu‑ dos recentes, o uso da solução hipertônica reduziu o tempo de hospitalização em pacientes com bronquiolite e lactentes com crises recorrentes de sibilância.14 Entretanto, ainda são poucos os estudos, e essa intervenção não foi incluída em consensos e diretrizes recentes. Macrolídeos O uso de macrolídeos como agente anti-inflamatório vem crescendo, principalmente em doenças crônicas com predo‑ mínio de neutrófilos, como fibrose cística. Estudos têm mos‑ trado que os macrolídeos apresentam um efeito anti-inflama‑ tório ao inibir a produção de citocinas, o que diminui o recrutamento de neutrófilos aos bronquíolos e, consequente‑ mente, a hipersecreção de muco.15 Entretanto, não há estudos clínicos adequados para comprovar sua eficácia, devendo-se evitar seu uso rotineiro, considerando-se sobretudo a possibi‑ lidade de indução de resistência bacteriana.15 Prevenção primária com palivizumabe Essa intervenção tem-se mostrado eficaz na prevenção de in‑ fecção por vírus sincicial respiratório (VSR) em lactentes nas‑ cidos prematuros e já está indicada para prevenção da BA. Entretanto, estudos mais recentes demonstram que essa in‑ tervenção pode ter impacto também na prevenção primária de SR em bebês prematuros.16 De qualquer forma, as recomenda‑ ções para receber palivizumabe como uso preventivo, segun‑ do a Sociedade Brasileira de Pediatria (www.sbp.com.br), são restritas a situações de prematuridade, DPC ou cardiopatias congênitas, conforme descrito a seguir: 1. Prematuridade: • pré-termo com idade gestacional < 28 semanas e 6 dias, sem DPC, estando com menos de 12 meses de idade no iní‑ cio do período de sazonalidade do VRS; • pré-termo entre 29 e 31 semanas e 6 dias, sem DPC, estan‑ do com menos de 6 meses de idade no início da sazonali‑ dade; • acima de 32 semanas, o pré-termo é um grupo de maior risco para morbidades respiratórias do que os recém-nas‑ cidos de termo, mas não existe evidência de ensaios clíni‑ cos randomizados fornecendo subsídios consistentes o suficiente para recomendar a profilaxia com palivizumabe. 2. DPC: • < 2 anos com DPC que necessitam de tratamento (oxigênio inalatório, diuréticos, broncodilatador, corticosteroide inalatório) nos 6 meses anteriores ao início do período de sazonalidade. 3. Cardiopatia congênita: • em crianças < 2 anos com cardiopatia crônica que necessi‑ tem de tratamento da IC ou que tenham HP moderada‑ -grave, ou com doença cardíaca cianótica;
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• cardiopatias que não necessitam de CIV e CIA sem reper‑ cussão hemodinâmica, cardiomiopatia moderada e as cor‑ rigidas apenas cirurgicamente, sem insuficiência cardíaca residual. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer que o lactente com sibilância recorrente não deve ser compreendido como sinônimo de asma atópica e, obrigatoriamente, ter consciência de que muitas doenças graves podem provocar sibilância. O diagnóstico etiológico deve ser o mais precoce possível. • Saber que a abordagem do paciente com sibilância é diversa quanto ao seu tratamento, desde a avaliação de risco e gravidade quanto ao seu manejo medicamentoso. • Realizar uma boa avaliação do paciente e instituir o tratamento que gere melhores resultados. Quanto ao uso dos corticosteroides inalatórios, ter o entendimento e saber explicar que os corticosteroides de via inalatória podem ser seguros se utilizados corretamente e podem ser muito eficazes na profilaxia de crises da sibilância, sobretudo em lactentes de alto risco para asma.
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CAPÍTULO 6
PNEUMONIAS COMUNITÁRIAS Edna Lúcia Santos de Souza José Dirceu Ribeiro Sidnei Ferreira Maria de Fátima Bazhuni Pombo March
Introdução A maioria das crianças tem de 4 a 6 infecções respiratórias agu‑ das (IRA) por ano, principalmente nas áreas urbanas. As IRA correspondem a 1/4 de todas as doenças e mortes entre crian‑ ças nos países em desenvolvimento. Cerca de 2 a 3% das IRA evoluem para infecção do parênquima pulmonar, das quais 10 a 20% evoluem para óbito, contabilizando 1,2 milhão de óbitos por ano. No início da década de 2000, o Brasil concentrava grande parte dos casos de pneumonia adquirida na comunida‑ de (PAC) em menores de 5 anos de idade em todo o mundo.1,2 Em países desenvolvidos, a incidência de PAC é de 10 a 15/1.000 crianças/ano, e a taxa de internação é de 1 a 4/1.000 crianças/ano, ocorrendo sobretudo em menores de 5 anos.3 Os principais fatores de risco para PAC são: desnutrição, baixa idade, comorbidades e gravidade da doença, que podem concorrer para o óbito. Outros fatores, como baixo peso ao nascer, permanência em creche, episódios prévios de sibilos e pneumonia, ausência de aleitamento materno, vacinação in‑ completa, variáveis socioeconômicas e variáveis ambientais, também contribuem para a morbidade e a mortalidade.4,5 Etiologia É difícil estabelecer o diagnóstico etiológico das PAC. Seu cur‑ so clínico costuma ser muito semelhante para os diversos agentes, as técnicas diagnósticas são, em geral, de baixa sensi‑ bilidade ou de custo elevado e de difícil acesso à maioria dos serviços. Dependendo do número de testes diagnósticos utili‑ zados, o diagnóstico etiológico das PAC pode ser identificado em cerca de 24 a 85% dos casos. Vários estudos apontam os vírus como os principais agen‑ tes de PAC em crianças até 5 anos em países desenvolvidos. Quanto mais jovem a criança, excluindo-se os primeiros 2 meses de vida, maior a chance de ocorrência de doença de etiologia viral. O vírus sincicial respiratório (VSR) é o mais fre‑ quentemente encontrado, seguido dos vírus influenza, parainfluenza, adenovírus e rinovírus. Menos frequentemente, outros vírus podem causar PAC, como varicela-zóster, corona‑
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vírus, enterovírus, citomegalovírus, vírus Epstein-Barr, herpes simples, vírus da caxumba e do sarampo e hantavírus. Mais recentemente, o metapneumovírus humano (HMPV), o boca‑ vírus e um coronavírus mutante – associado à síndrome respi‑ ratória aguda grave (SARS) – têm sido associados à PAC. Os vírus podem ser responsáveis por até 90% das pneumonias no 1º ano de vida e por 50% dos casos na idade escolar.6,7 Os agentes bacterianos, por outro lado, são os principais responsáveis pela maior gravidade e mortalidade por PAC na infância. O Streptococcus pneumoniae ou pneumococo é o principal agente bacteriano de PAC. Os agentes etiológicos mais comumente isolados em crian‑ ças com PAC nos países em desenvolvimento são as bactérias pneumococo, Haemophilus influenzae e Staphylococcus aureus. A frequência de coinfecção vírus-bactéria em pacientes com PAC tem variado de 23 a 32%.8 Algumas crianças apresentam alto risco para infecção pelo pneumococo: infectadas pelo vírus HIV, com imunodeficiên‑ cias congênitas ou adquiridas, cardiopatas, nefropatas e pneu‑ mopatas crônicas, incluindo a asma grave, com diabete melito, com hemoglobinopatias, principalmente anemia falciforme, asplenia congênita ou adquirida, fístula liquórica, cirrose he‑ pática ou contactantes de doentes crônicos.1,4 A Tabela 1 rela‑ ciona os principais agentes etiológicos e as faixas etárias. Avaliação clínica e diagnóstico O quadro clínico da PAC pode variar com a idade da criança, o estado nutricional, a presença de doença de base e o agente etiológico, podendo ser mais grave nas crianças mais jovens, desnutridas ou que apresentam comorbidades. Os principais sinais e sintomas da PAC são febre, tosse, frequência respira‑ tória elevada (taquipneia) e dispneia, de intensidades variá‑ veis. Sintomas gripais são comuns, bem como otite média. Al‑ gumas crianças apresentam dor abdominal, principalmente quando há envolvimento dos lobos pulmonares inferiores. Nas crianças pequenas, dificilmente se encontram altera‑ ções localizadas à ausculta respiratória. A sibilância ocorre
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Tabela 1 Principais agentes etiológicos de pneumonia comunitária, de acordo com a faixa etária22,28 Até 2 meses
Estreptococo do grupo B, enterobactérias, Listeria monocytogenes, Chlamydia trachomatis, Staphylococcus aureus, vírus
De 2 a 6 meses
Chlamydia trachomatis, vírus, germes da pneumonia afebril, Streptococcus pneumoniae, Staphylococcus aureus, Bordetella pertussis
De 7 meses a 5 anos
Vírus, Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae, Staphylococcus aureus, Mycoplasma pneumoniae, Mycobacterium tuberculosis
> 5 anos
Mycoplasma pneumoniae, Chlamydia pneumoniae, Streptococcus pneumoniae, Mycobacterium tuberculosis
com maior frequência nas crianças com infecções virais ou por M. pneumoniae ou C. pneumoniae. Na criança com IRA, a frequência respiratória (FR) deve sempre ser pesquisada visando ao diagnóstico de PAC. Na au‑ sência de sibilância, as crianças com tosse e FR elevada (ta‑ quipneia) devem ser classificadas como tendo PAC. Os seguin‑ tes pontos de corte para taquipneia são utilizados:1,9 • < 2 meses: FR ≥ 60 irpm; • 2 a 11 meses: FR ≥ 50 irpm; • 1 a 4 anos: FR ≥ 40 irpm. Segundo revisões sistemáticas, os “sinais de perigo” aponta‑ dos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) há cerca de três décadas indicam internação hospitalar imediata do pa‑ ciente. Esses sinais em crianças menores de 2 meses são: FR ≥ 60 irpm, tiragem subcostal, febre alta, recusa do seio materno por mais de 3 mamadas, sibilância, estridor em repouso, sen‑ sório alterado com letargia, sonolência anormal ou irritabilida‑ de excessiva. Entre as maiores de 2 meses de vida, os sinais são: tiragem subcostal, estridor em repouso, recusa de líqui‑ dos, convulsão, alteração do sensório e vômito de tudo que lhe é oferecido. Segundo a OMS, crianças com PAC e tiragem subcostal são classificadas como portadoras de pneumonia grave, e aquelas com outros sinais de gravidade (recusa de líquidos, convul‑ sões, sonolência excessiva, estridor em repouso, desnutrição grave, batimento de asa do nariz e cianose) são classificadas como portadoras de pneumonia muito grave. Em menores de 2 meses, são considerados sinais de doença muito grave: recu‑ sa alimentar, convulsões, sonolência excessiva, estridor em re‑ pouso, febre ou hipotermia, além da tiragem subcostal grave.9 Quadros de pneumonia afebril podem ocorrer em lactentes e em maiores de 5 anos. Em lactentes, podem cursar com an‑ tecedentes de conjuntivite e parto vaginal, e sugerem infecção por C. trachomatis. Em crianças maiores, é comum tosse co‑ queluchoide e história de contato com pacientes com quadro semelhante. Sugere PAC por Mycoplasma pneumoniae. Por outro lado, piodermites e/ou lesões osteoarticulares antece‑ dendo PAC grave, que muitas vezes cursa com empiema pleu‑ ral, podem ocorrer na pneumonia estafilocócica.
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Diagnóstico O diagnóstico de PAC é eminentemente clínico, dispensando a realização de radiografia de tórax, que só é recomendada nos casos graves que demandam internação.4 Em geral, consolida‑ ção alveolar, pneumatoceles, derrames pleurais e abscessos sugerem etiologia bacteriana. O padrão intersticial está mais frequentemente associado a vírus e Mycoplasma pneumoniae ou Chlamydia pneumoniae. Esses são agentes causadores de pneumonias atípicas. Os demais exames complementares são inespecíficos e de emprego questionável. O leucograma, em geral, nas PAC bac‑ terianas mostra leucocitose, neutrofilia e ocorrência de formas jovens. A eosinofilia ≥ 300 células/mm3 pode ocorrer na maioria dos pacientes com infecção por C. trachomatis. A PAC bacteriana poderia ser suspeitada quando a proteína C reativa (PCR) for ≥ 40 a 100 mg ou quando houver níveis ≥ 0,75 a 2 ng/mL de procalcitonina. O diagnóstico microbiológico só é indicado nos casos de PAC grave, em crianças internadas ou quando a evolução do paciente é desfavorável.4 Para isso, um dos métodos é a hemo‑ cultura, embora sua positividade seja baixa (pode alcançar 35% nos casos hospitalizados). Apesar de sua baixa sensibili‑ dade, o exame é importante, especialmente em serviços de referência, pois o conhecimento do padrão de resistência/ sensibilidade aos antimicrobianos, com destaque para o pneu‑ mococo, é crucial. O exame microbiológico é recomendado nos casos de der‑ rame pleural que permita ser puncionado. A positividade do lí‑ quido pleural pode alcançar até 70% antes do início da antibio ticoterapia. A cultura do escarro tem pouca utilidade prática, por não diferenciar infecção de colonização.4 Os métodos sorológicos são úteis no diagnóstico das infec‑ ções por Mycoplasma pneumoniae, Chlamydia trachomatis e Chlamydia pneumoniae, quando houver elevação da IgM ou elevação de 4 vezes nos títulos da IgG, na fase aguda e na con‑ valescência, respectivamente. Alguns vírus, como o VSR, ade‑ novírus, parainfluenza e influenza, também podem ser diag‑ nosticados pelo aumento de 4 vezes ou mais nos níveis de IgG, com intervalo de cerca de 2 semanas. A reação em cadeia da polimerase em tempo real (PCR-RT) pode auxiliar no diagnóstico de M. pneumoniae, C. pneumoniae, C. trachomatis, L. pneumophila, S. aureus, vírus respira‑ tórios, B. pertussis, M. tuberculosis e S. pneumoniae. São méto‑ dos caros, mais utilizados em pesquisas e não recomendados nos casos não complicados.4,10 Os métodos invasivos, como broncoscopia, lavado bron‑ coalveolar e biópsias pulmonares, seriam indicados em situa‑ ções excepcionais, quando a evolução da PAC for desfavorável. Tratamento A incidência e a mortalidade por PAC ainda continuam eleva‑ das em todo o mundo, apesar dos novos e potentes antibióti‑ cos e das vacinas. Embora, em diversos países, haja aumento crescente de pneumococos resistentes à penicilina, não há di‑ ferenças significativas na evolução clínica ou na gravidade das PAC causadas por cepas penicilina-resistentes ou suscetíveis.10
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Pneumonias Comunitárias •
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No Brasil, considerando-se os valores atuais da concentra‑ ção inibitória mínima (CIM) necessária de penicilina para trata‑ mento da PAC por pneumococo, não há cepas com taxas de re‑ sistência absoluta. Doses habituais de penicilina e derivados tratam de forma adequada as infecções pneumocócicas que não envolvem o sistema nervoso central (SNC). Apesar de a maioria das crianças com PAC poder ser tratada ambulatorialmente, deve ser indicada a hospitalização nas seguintes situações:11 • menores de 2 meses; • presença de tiragem subcostal; • convulsões; • sonolência excessiva; • estridor em repouso; • desnutrição grave; • ausência de ingestão de líquidos; • sinais de hipoxemia; • presença de comorbidades (anemia, cardiopatias, pneumo‑ patias); • problemas sociais; • falha na terapêutica ambulatorial; • complicações radiológicas (derrame pleural, pneumatocele, abscesso pulmonar).
Crianças com suspeita de estafilococcia devem receber oxacilina. A conduta em crianças de 2 meses a 5 anos está des‑ crita na Figura 2. Além do uso adequado dos antimicrobianos, algumas reco‑ mendações são importantes: manter a alimentação da criança, particularmente o aleitamento materno, aumentar a oferta hí‑ drica e manter as narinas desobstruídas. Além disso, a criança hospitalizada pode necessitar de uso de broncodilatadores, hi‑ dratação venosa, correção de distúrbios hidreletrolíticos, oxi‑ genoterapia (quando a saturação de O2 < 92%), entre outros cuidados.4 A Tabela 2 traz a posologia dos principais antibióticos utili‑ zados no tratamento das PAC em crianças. As principais complicações das PAC são: • abscesso; • atelectasia; • pneumatocele; • pneumonia necrosante; • derrame pleural; • pneumotórax;
Além disso, pode-se indicar a internação de crianças com PAC nas seguintes situações: paciente com insuficiência respirató‑ ria aguda, suspeita de pneumonia estafilocócica ou por germe Gram-negativo, sarampo, varicela ou coqueluche precedendo a PAC, imunodepressão e pneumonia hospitalar. O tratamen‑ to da PAC é geralmente empírico, pois é raro identificar sua etiologia antes da introdução da antibioticoterapia.11-13 Nos lactentes menores de 2 meses de idade, os agentes mais frequentes são: estreptococo do grupo B, enterobactérias, Listeria monocytogenes, Chlamydia trachomatis, Staphylococcus aureus e vírus, e os pacientes devem sempre ser hospitali‑ zados. O esquema antibiótico recomendado está descrito na Figura 1. Em lactentes a partir de 2 meses até pré-escolares aos 5 anos de idade, os VSR, parainfluenza, influenza, rinovírus e adenovírus são agentes frequentes de PAC. O pneumococo é o agente bacteriano mais frequente, inclusive nas PAC com der‑ rame pleural parapneumônico (DPP). O uso rotineiro da vaci‑ nação anti-H. influenzae reduziu a importância dessa bactéria como causadora de PAC. Nessa faixa de idade (de 2 meses a 5 anos), a maioria dos pa‑ cientes com PAC pode ser tratada no nível ambulatorial. O anti‑ microbiano de escolha é amoxicilina, e recomenda-se reavalia‑ ção do paciente após 48 a 72 horas. Entretanto, recomenda-se que crianças nessa faixa de idade com PAC e tiragem subcostal, com ou sem outros sinais de gravidade, sejam hospitalizadas e recebam penicilina cristalina ou ampicilina (Figura 2). Nas crianças com 6 meses de idade ou menos, com PAC de curso insidioso, tosse irritativa, com estado geral preservado, pode-se considerar o uso de macrolídeos, pensando em C. trachomatis. Do mesmo modo, essa classe de antibióticos pode ser considerada em crianças maiores, se houver suspeita clíni‑ ca de M. pneumoniae ou C. pneumoniae.
Crianças menores de 2 meses
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Há taquipneia ou triagem subcostal ou sinais de gravidade?
Sim
Classifique como possível infecção bacteriana grave Interne
Colete hemograma, VHS, PCR e hemocultura Inicie
Ampicilina ou penicilina com aminoglicosídio ou
Ampicilina ou penicilina com cefalosporinas de 3ª geração (associe oxacilina, caso haja evidência de infecção estafilocócica)
ou
Eritromicina, caso haja suspeita de clamídia
Figura 1 Algoritmo para a abordagem da criança menor de 2 meses com pneumonia. VHS: velocidade de hemossedimentação; PCR: proteína C reativa.
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Crianças maiores de 2 meses
Criança com tosse ou dificuldade para respirar e taquipneia Se apresentar sibilância ou história prévia de sibilância, trate com broncodilatador por até 3 sessões e reavalie Se mantiver taquipneia, realize RX de tórax Pneumonia confirmada: colete hemograma, VHS, PCR e hemocultura e inicie antibioticoterapia Se houver derrame pleural, puncione para avaliação Classifique de acordo com uma das 3 categorias abaixo
Pneumonia (taquipneia) Inicie amoxicilina ou penicilina procaína Tratamento ambulatorial Reavalie em 48 horas
Pneumonia grave (presença de tiragem) Interne Inicie penicilina cristalina ou ampicilina
Doença muito grave (sinais de gravidade) Interne Inicie cloranfenicol ou ceftriaxona associada à oxacilina
Em maiores de 5 anos de idade, se houver quadro clínico insidioso, considerar M. pneumoniae e prescrever macrolídeo Se houver quadro agudo, prescrever amoxicilina para os casos tratados no ambulatório Se necessitar de internação, proceder como acima
Se o paciente apresentar derrame pleural associado, puncione Se o líquido for turvo ou purulento, faça Gram e cultura e coloque em drenagem fechada Se o líquido for citrino, faça os estudos citológicos, bioquímicos (DHL, glicose, pH) e microbiológico para decisão terapêutica
Figura 2 Algoritmo para a abordagem da criança maior de 2 meses com pneumonia. RX: radiografia; VHS: velocidade de hemossedimentação; PCR: proteína C reativa; DHL: desidrogenase lática.
Tabela 2 Posologia dos principais antibióticos utilizados para o tratamento das pneumonias em crianças, fora do período neonatal Antibiótico
Dose diária
Via
Intervalo entre as doses (em horas)
Amoxicilina
50 mg/kg
VO
12
Amoxicilina-clavulanato
45 mg/kg
VO
12
Ampicilina
150 mg/kg
EV
6
Cefuroxima-axetil
30 mg/kg
VO
12
Ceftriaxona
75 mg/kg
IM ou EV
24
Eritromicina
40 a 50 mg/kg
VO
6
Penicilina cristalina
200.000 UI/kg
EV
6
Penicilina procaína*
50.000 UI/kg
IM
12
Oxacilina
200 mg/kg
EV
6
VO: via oral; EV: endovenosa; IM: intramuscular. * O Ministério da Saúde recomenda o uso de 400.000 UI a cada 24 horas para crianças com peso inferior a 20 kg e 400.000 UI a cada 12 horas para crianças com peso superior a 20 kg.
• • • • •
fístula broncopleural; hemoptise; septicemia; bronquiectasia; infecções associadas (otite, sinusite, conjuntivite, meningite, osteomielite).
A pneumonia necrosante é uma complicação das PAC, em ge‑ ral por pneumococo. Caracteriza-se por focos necróticos em
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1738
áreas de consolidação pulmonar. É mais comum em adultos. Mais de 60% dos casos necessitam de cirurgia. Pneumatoceles são lesões císticas de paredes finas, que acometem sobretudo crianças com pneumonia bacteriana, mas também podem decorrer de trauma torácico, ventilação pulmonar mecânica invasiva e aspiração. Essas lesões resol‑ vem-se espontaneamente na maioria dos casos. Em outros, podem demorar de 3 a 15 meses ou cursar com complica‑ ções.9,10
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Pneumonias Comunitárias •
Prevenção Atualmente, o Brasil dispõe das vacinas pneumocócicas 13-va‑ lente (7 sorotipos + 1, 5, 7F, 3, 6A, 19A) e 10-valente (7 soroti‑ pos + 1, 5, 7F), sendo a última disponível na rede pública de saúde. Estudos nacionais identificaram que 1 ano após a intro‑ dução da vacina 10-valente na rede, houve redução das hospi‑ talizações de crianças por pneumonia no Brasil. Em contra‑ partida, as internações por outras causas não diminuíram.14,15 Quanto ao impacto da vacinação anti-Haemophilus influenzae tipo B na comunidade, há evidências de proteção contra a PAC na infância.
4.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender a importância das PAC na morbidade e na mortalidade das crianças, especialmente dos menores de 5 anos. • Reconhecer os grupos de risco e a necessidade do diagnóstico precoce e adequado. • Valorizar o diagnóstico clínico das PAC na infância, conhecendo os métodos complementares mais indicados. • Indicar o tratamento adequado de acordo com a gravidade dos casos e reconhecer as complicações mais frequentes. • Conhecer e valorizar medidas preventivas, como a imunização, recomendada no Brasil.
9.
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CAPÍTULO 7
DERRAME PLEURAL Ana Alice Amaral Ibiapina Parente
Definição Derrame pleural é o acúmulo anormal de líquido no espaço pleural, entre as pleuras parietal e visceral, resultante do ex‑ cesso de produção ou decréscimo de absorção. Os derrames são classicamente divididos em transudatos ou exsudatos. Nos transudatos, os fatores mecânicos que influenciam a fil‑ tração e a reabsorção do líquido pleural estão alterados. Nos exsudatos, ocorre comprometimento inflamatório da superfí‑ cie pleural. Na faixa etária pediátrica, em sua maioria, esses derrames são de origem infecciosa, geralmente associados à pneumonia bacteriana, e recebem a denominação de derrame pleural parapneumônico. Empiema é definido pela presença de bactérias ou pus no espaço pleural. Do ponto de vista tera‑ pêutico, o derrame pode ser considerado como complicado ou não complicado, dependendo, respectivamente, da necessi‑ dade ou não de procedimento cirúrgico complementar.1,2 Epidemiologia O derrame pleural parapneumônico acomete comumente crian‑ ças menores de 5 anos, especialmente lactentes e pré-escolares, sendo mais frequente em meninos do que em meninas.3 Apesar da observação do acúmulo de líquido na cavidade pleural ter ocorrido em período anterior à era cristã, uma for‑ ça-tarefa na época da Primeira Guerra Mundial, denominada Empyema Comission, foi responsável por grande impacto na redução da mortalidade, tendo indicado a drenagem pleural como o método mais efetivo de controle dos casos. A prevalência dos derrames pleurais é muito variável e de‑ pende da incidência e da etiologia da pneumonia às quais es‑ tão associados. Durante o século XX, há relatos na literatura de mudanças importantes dos agentes etiológicos, encontra‑ dos nos derrames parapneumônicos na infância. O Streptococcus pneumoniae, mais prevalente no período pré-sulfonamida (1934-1938), apresentou um declínio importante como agente causador após a introdução da penicilina, havendo aumento significativo do Staphylococcus aureus, além do relato de casos de derrame causado por Haemophilus influenzae. Na década
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de 1960, com o advento da meticilina, o Streptococcus pneumoniae voltou a assumir a posição de maior destaque.2,4 Ape‑ sar do aumento da frequência de pneumococos resistentes à penicilina, não tem sido identificado um aumento de compli‑ cações associadas a infecções causadas por cepas resistentes.5 Após a introdução das vacinas pneumocócicas conjugadas, em alguns locais, houve relatos de mudança na prevalência dos sorotipos do Streptococcus pneumoniae e aumento na inci‑ dência de Staphylococcus aureus, em particular os resistentes à meticilina.6 Outros agentes bacterianos implicados na etiologia do em‑ piema incluem: Streptococcus pyogenes, Mycoplasma pneumoniae, Pseudomonas aeruginosa e outras espécies de Streptococcus. Algumas doenças de base podem sugerir a presença de outros agentes: Streptococcus milleri em pacientes com retar‑ do de desenvolvimento neuropsicomotor e agentes anaeró‑ bios associados a síndromes aspirativas, principalmente em crianças maiores.7 Tem sido ressaltada a importância de outros agentes como causa de derrame pleural, como aconteceu com a recente epi‑ demia por vírus influenza H1N1, com ocorrência de efusão de média intensidade e pouca repercussão clínica.8 Já a tuberculose pleural é uma das mais frequentes causas de efusão em todo o mundo e começa com a ruptura de focos de infecção subpleural, drenagem de material caseoso ou mes‑ mo por disseminação hematogênica, o que desencadeia uma resposta inflamatória mediada por linfócitos T, previamente sensibilizados para o bacilo. O processo é exsudativo e decorre de uma reação de hipersensibilidade retardada do tipo IV, pro‑ duzindo uma reação granulomatosa. O fluido pleural contém altas concentraçães de proteína, com predomínio de linfomo‑ nonucleares, mas os achados de LDH e de glicose são variáveis e inespecíficos.9 Quadro clínico Na persistência da febre 48 a 72 horas após o início do trata‑ mento antimicrobiano para pneumonia, deve-se avaliar a pre‑
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Derrame Pleural •
sença de derrame pleural. Anorexia, prostração, dor torácica ou abdominal e sinais de desconforto respiratório podem estar presentes. Pode haver diminuição do murmúrio vesicular e do frêmito, além de escoliose por posição antálgica causada pela dor pleurítica, mais frequente nos derrames extensos. A sinto‑ matologia depende do estágio da doença. Outros fatores que influenciam a apresentação clínica são o agente etiológico, a faixa etária, o uso prévio de antibióticos e as condições gerais do paciente. Diagnóstico No derrame pleural, o hemograma geralmente apresenta leu‑ cocitose com desvio à esquerda e trombocitose, quando asso‑ ciado à infecção bacteriana. Recomenda-se que seja realizada a hemocultura para todas as crianças com suspeita de pneu‑ monia bacteriana que necessitem de hospitalização. Testes adicionais podem ser realizados, entre eles a detecção de antí‑ genos capsulares de Streptococcus pneumoniae e Haemophilus influenzae tipo b.7 Teste tuberculínico e pesquisa de bacilos álcool-ácido-re‑ sistentes no escarro ou no lavado gástrico e no líquido pleural devem ser realizados em pacientes com fatores de risco para tuberculose ou que apresentem pneumonia de evolução pro‑ longada.9 Além da anamnese e do exame físico, a radiografia de tórax em posição ortostática (Figura 1) ou, na impossibilidade desta, em decúbito dorsal, é um exame de realização obrigatória. Os estudos de perfil ou com o paciente deitado lateralmente com raios horizontais também devem ser avaliados. No início do quadro, o derrame pode consistir apenas de uma obliteração do seio costofrênico, mas pode aumentar rapidamente de volume. A ultrassonografia (Figura 2) é um método não invasivo e pode ser realizada junto ao leito do paciente, sendo de grande utilidade na detecção de derrames muito pequenos, visualiza‑ ção de loculações e para auxiliar na localização mais adequada
Figura 1 Radiografia de tórax evidenciando hipotransparência nos 2/3 inferiores do hemitórax esquerdo, com obliteração do seio costofrênico ipsilateral.
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para a toracocentese. A tomografia computadorizada (TC), so‑ mente indicada em casos muito específicos e realizada prefe‑ rentemente com contraste venoso, fornece poucas vantagens adicionais à ultrassonografia.10 A toracocentese associada à clínica pode permitir o estabe‑ lecimento do diagnóstico em aproximadamente 75% dos ca‑ sos.11 Em condições normais e comparando com o plasma, o líquido pleural, com volume estimado de 0,3 mL de líquido/ kg de peso corporal, contém pequeno número de macrófagos, linfócitos e células mesoteliais, além baixa concentração de proteína. Os níveis de bicarbonato são maiores e os níveis de glicose são similares aos do plasma.7 Líquido amarelo citrino é típico dos transudatos e de al‑ guns exsudatos, como derrames malignos ou parapneumôni‑ cos na fase inicial ou tuberculose. Líquido sanguinolento, na ausência de trauma, sugere malignidade. Esbranquiçado ou leitoso amarelado sugere empiema ou derrame quiliforme. Se é purulento, trata-se de um empiema. O odor pútrido é encon‑ trado em derrame causado por germes anaeróbicos. Para ca‑ racterização do exsudato, é necessário pelo menos um dos três critérios: proteína pleural/proteína plasmática > 0,5; de‑ sidrogenase lática (DHL) pleural/DHL plasmática > 0,6 ou DHL pleural > 2/3 do limite superior de normalidade do plas‑ ma. Geralmente, nessas situações, a proteína do líquido pleu‑ ral é maior que 3 g%.11 Um processo inflamatório próximo à pleura, tanto tecidual quanto vascular, leva as células mesoteliais a produzirem me‑ diadores de inflamação, principalmente interleucinas 1, 6 e 8, TNF-alfa e fator de ativação plaquetária. Estes, por sua vez, le‑ vam a um aumento da permeabilidade vascular e a migração de neutrófilos e linfócitos. Nesse momento, o processo passa a ser exsudativo, com aumento da produção de líquido e inva‑
Figura 2 Exemplo de ultrassonografia do tórax sendo realizada como treinamento.
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1742 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 21 PNEUMOLOGIA
são de bactérias através do epitélio. Com a evolução, o derra‑ me passa a ser fibrinopurulento, com migração de neutrófilos e ativação da cascata da coagulação e diminuição da fibrinóli‑ se, o que favorece a formação de loculações, podendo evoluir, no estágio de organização, para a formação de uma carapaça inelástica, dificultando a troca gasosa e a expansibilidade pul‑ monar. O pH e a glicose do líquido pleural caem e a DHL se ele‑ va.10 A identificação do agente etiológico na efusão pleural pode ser difícil, uma vez que a maioria dos derrames é estéril, talvez pelo uso prévio de antibióticos. Outros fatores podem contri‑ buir para um menor rendimento das técnicas diagnósticas de identificação: dificuldades no processamento do material, ho‑ rário de recebimento impossibilitando a semeadura no meio de cultura e necessidade de técnicas especiais. Mesmo em sé‑ ries em que os exames bacteriológicos não identificam cresci‑ mento bacteriano, esse agente ainda tem sido o mais identifi‑ cado por técnicas de biologia molecular.7 Tratamento A evolução do processo parapneumônico pleural e o conse‑ quente estabelecimento de estágios de evolução podem ser difíceis, mas têm influência no tratamento a ser instituído. Durante a fase exsudativa, o tratamento parece estar exclusi‑ vamente fundamentado no uso de uma antibioticoterapia adequada, enquanto, no estágio fibropurulento, existe a ne‑ cessidade de drenagem fechada. No estágio de organização, são necessários procedimentos cirúrgicos mais invasivos. Por‑ tanto, é fundamental a tentativa de se adotar critérios clínicos que possam facilitar a avaliação desses pacientes. Inúmeros esquemas de classificação têm sido propostos para caracteri‑ zar o espectro das efusões parapneumônicas. Nos processos infecciosos, o CO2 e o ácido lático acumulam-se no espaço pleural, e o pH cai, em geral, a valores abaixo de 7,1. A DHL au‑ menta em decorrência da lise celular, sendo importante, nes‑ ses casos, a drenagem pleural fechada. Essas análises bioquí‑ micas auxiliam na decisão do melhor procedimento a ser realizado. Deve-se considerar, entretanto, que efusões pleu‑ rais com padrão exsudativo podem ocorrer em processos ma‑ lignos, infarto pulmonar, artrite reumatoide, doenças autoi‑ munes, pancreatite, reação a drogas e infecções fúngicas.7 A toracocentese é um método diagnóstico e terapêutico, podendo, nos derrames volumosos, proporcionar alívio dos sintomas. A punção deve ser realizada, idealmente, antes da administração de antibióticos. É um procedimento simples, mas deve ser realizada por equipe experiente. Pode ser realiza‑ da com a criança na posição sentada ou em decúbito dorsal. A agulha é introduzida entre os espaços intercostais, na linha axilar média ou posterior, e no bordo superior da costela infe‑ rior, para não lesar o feixe vasculonervoso. Identifica-se o es‑ paço pleural pela sensação ao transfixar a pleura ou pela aspi‑ ração de líquido. Das complicações das toracocenteses, a mais frequente é o pneumotórax. Outras intercorrências incluem dor local, infecção e sangramento. Nos transudatos associa‑ dos à insuficiência cardíaca, síndrome nefrótica ou ascite, o procedimento é raramente necessário.7,10
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Com o intuito de identificar o agente etiológico no derrame, o exame bacterioscópico e a cultura do líquido pleural devem ser realizados. Existem meios específicos para bactérias aeró‑ bicas e, em casos selecionados, o material deve ser semeado para germes anaeróbicos. A contraimunoeletroforese e a aglu‑ tinação por látex podem ser solicitadas para antígenos capsu‑ lares. A reação em cadeia da polimerase (PCR) em tempo real é dispendiosa e não amplamente utilizada.6,10 O empiema sempre deve ser drenado e, nesse caso, o exa‑ me bioquímico pode ser dispensado, mas deve ser encami‑ nhado para exame bacterioscópico e cultura, independente‑ mente do uso prévio de antibióticos. Efusões fétidas sugerem a presença de anaeróbios.2 A citologia pode ser útil, uma vez que a presença de poli‑ morfonucleares indica processo infeccioso bacteriano. Já a presença de linfócitos pode indicar tuberculose ou malignida‑ de. Alguns outros critérios parecem estar associados com a ocorrência de tuberculose: presença de DHL elevada e ADA positivo. Entretanto, nenhum desses achados é patognomôni‑ co, já que pequena parte dos pacientes com tuberculose pode apresentar neutrofilia e alguns pacientes com quadro viral também. Nos casos de doença maligna, é comum a presença de hemácias.2-10 Na presença de líquidos não purulentos, eles devem ser en‑ caminhados para avaliação bioquímica, com medida dos ní‑ veis de glicose, pH e DHL, auxiliando na decisão do manejo te‑ rapêutico.1 A proteína C reativa é importante fator de fase aguda em muitos tipos de infecção, sendo já reconhecida sua importân‑ cia para definir se a efusão pleural é parapneumônica, princi‑ palmente quando os níveis estão acima de 45 mg/dL. Estudos recentes mostram que os níveis acima de 100 mg/dL indica‑ riam a presença de pneumonia complicada e que exige drena‑ gem.12 Não existem consensos baseados em evidências para orientar a decisão de quando uma criança deva ser submetida à drenagem. Alguns estudos sugerem que o perfil bioquímico do líquido pleural pode ajudar nessa decisão. Os critérios para indicação de drenagem descritos na literatura, em ordem de‑ crescente, são: aspecto macroscópico (aspecto e odor), volu‑ me, bactéria identificada e características bioquímicas que su‑ gerem a presença de empiema (pH < 7,2; glicose < 40 mg/dL). Entretanto, para utilizar-se o pH como parâmetro na decisão terapêutica de drenar ou não, o fluido deve ser processado com os mesmos cuidados utilizados para a análise dos gases arteriais. Os derrames parapneumônicos não complicados, cuja cau‑ sa pulmonar esteja tratada, podem ser absorvidos à medida que a pneumonia regride. Entretanto, derrames volumosos e/ ou que comprometem a função ventilatória provavelmente necessitarão de drenagem. Cerca de 2/3 são exsudatos que podem evoluir para empiema, se não forem prontamente identificados e tratados. Sendo assim, a drenagem deve ser realizada na fase exsudativa, antes da instalação do empiema, pois abrevia a evolução. O objetivo da drenagem pleural é pro‑ porcionar melhora clínica, diminuir a duração do quadro toxê‑
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Derrame Pleural •
mico, reduzir o tempo de hospitalização e prevenir a escoliose e o espessamento pleural, que pode evoluir para doença pul‑ monar restritiva. O atraso no diagnóstico, com o consequente retardo no início da drenagem pleural, pode contribuir para a falência de resposta clínica, levando à necessidade de procedi‑ mentos mais invasivos.7,10 O esquema mostrado na Figura 3 representa uma proposta de conduta diagnóstica e terapêutica. Em pacientes com derrame pleural, não se pode prescindir do tratamento antibioticoterápico, devendo incluir cobertura para Streptococcus pneumoniae, pela maior prevalência desse agente, até que se obtenha o resultado de hemocultura e/ou cultura da efusão pleural. É necessário ampliar a cobertura do espectro antimicrobiano para infecções hospitalares, bem como para aquelas secundárias a cirurgia, trauma e aspiração. Na pediatria, a penicilina cristalina na dose de 100.000 a 200.000 UI é geralmente a droga de escolha, podendo ser acrescentado outro medicamento ou feita a opção por outro antimicrobiano, dependendo da faixa etária, condições clíni‑ cas ou doença de base associada. Em caso de ausência de res‑ posta clínica, deve ser avaliada a possibilidade de trocar a anti‑ bioticoterapia por outro antimicrobiano.1,7,10,11 O objetivo de se instilar fibrinolíticos dentro da cavidade pleural é promover lise das linhas de fibrina, limpar os poros linfáticos e, consequentemente, melhorar a drenagem do der‑ rame. Portanto, a indicação da terapêutica recai sobre pacien‑ tes portadores de efusões nos quais se identifica a presença de
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septos. Vários têm sido utilizados na população pediátrica para se obter tal objetivo, a saber, estreptoquinase, uroquinase e alteplase. O sucesso descrito pelo emprego desse recurso te‑ rapêutico oscila entre 80 e 90% dos casos, e as complicações associadas ao procedimento são baixas.10 Quando utilizado na população pediátrica, a uroquinase deve ser dada 2 vezes/dia durante 3 dias (6 doses no total) usando 40.000 U em 40 mL de soro fisiológico a 0,9% para crianças de 1 ano de idade ou mais, e 10.000 U em 10 mL de soro fisiológico a 0,9% para crianças com menos de 1 ano de idade.7 Se ocorrer uma falha no tratamento clínico e não houver resposta à utilização de drenagem simples, de antibioticotera‑ pia e de fibrinolíticos, ou se o paciente permanecer em sepse por causa de uma coleção mantida, pode ser indicada a reali‑ zação da cirurgia videoassistida por toracoscopia (VATS) para limpeza da cavidade pleural. A VATS consegue debridar o ma‑ terial piogênico-fibroso, abrir as loculações presentes na cavi‑ dade pleural e drenar o pus da cavidade pleural sob visão dire‑ ta. Muitos estudos mostram que a VATS é eficaz e segura, que o tempo de permanência hospitalar é menor e que há menos dor pós-operatória. No entanto, não há estudos controlados e randomizados para mostrar que essa forma relativamente nova de tratamento é mais eficaz e segura do que as técnicas operatórias existentes. As contraindicações para desbrida‑ mento por essa técnica incluem dificuldade para abrir uma ja‑ nela pleural e acessar a cavidade pleural, presença de material grosso piogênico ou espessamento pleural extenso.13
Derrame pleural
Toracocentese (Gram e cultura)
Purulento
Não purulento pH < 7,2 ou glicose < 40 ou Gram e/ou cultura +
Drenagem pH > 7,2 Glicose > 40 Nova toracocentese
Melhora: manter conduta
Observação 24 a 48 h Reavaliação
ou
Piora
Melhora: manter conduta Piora: discutir antibiótico e toracoscopia
Figura 3 Conduta diagnóstica e terapêutica em derrames pleurais parapneumônicos. Fonte: Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT).1
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Na impossibilidade de utilização do pleuroscópio, é possível obter um bom resultado com uma incisão intercostal mínima o suficiente para introduzir dois afastadores e proceder à aspira‑ ção do conteúdo exsudativo pleural. Após a toracoscopia, o em‑ piema resolve-se, em média, em 7 dias. A minitoracotomia é ca‑ paz de facilitar o desbridamento e a evacuação de uma forma mais efetiva, mas é um procedimento aberto, deixando uma pe‑ quena cicatriz linear ao longo da linha de costela. Devem ser re‑ servados para casos de abordagem mais tardia, com empiema e espessamento pleural fibroso, empiema loculado e fibrose pleu‑ ral maciça e empiema crônico. Dois estudos não randomizados compararam pacientes operados durante períodos diferentes usando minitoracotomia ou toracotomia convencional. As con‑ clusões foram limitadas em virtude da natureza dos estudos, mas favoreceu a abordagem minimalista invasiva com redução da duração da permanência hospitalar, da dor no pós-operató‑ rio e da necessidade de drenagem torácica prolongada.14 Já a decorticação envolve uma toracotomia posterolateral aberta e excisão da pleura espessa e fibrosa com evacuação de material piogênico. É um procedimento mais longo e compli‑ cado, dependendo da extensão atingida, e deixa uma cicatriz linear maior ao longo da linha de costela. Pode evoluir com dor intensa e desconforto no pós-operatório, dependendo do grau de manipulação da cavidade torácica.15 Prognóstico Em crianças, os derrames pleurais geralmente são secundá‑ rios à infecção bacteriana aguda, com diagnóstico baseado em métodos clínicos e de imagem. Quando indicada, a toracocen‑ tese deve ser realizada imediatamente, e o líquido, examinado, devendo a drenagem ser feita o mais precoce possível nos ca‑ sos de derrames complicados. Atraso na drenagem aumenta a morbidade. Todos os derrames parapneumônicos devem ser tratados com antibióticos. A evolução e o prognóstico são bons e dependem do tratamento precoce e adequado do espa‑ ço pleural. Em casos mais graves, pode haver necessidade de abordagem cirúrgica. Prevenção Hábitos saudáveis de alimentação e higiene, incluindo o sa‑ neamento adequado, o reconhecimento precoce e o tratamen‑ to adequado das pneumonias na infância, além da manuten‑ ção do calendário vacinal atualizado, são as melhores medidas preventivas. Desafios Em todos os países, sobretudo naqueles em desenvolvimento, o desafio é seguir as medidas de prevenção e manejo adequa‑ do do derrame pleural. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender os achados clínicos associados ao acúmulo de líquido pleural. • Entender as diferenças entre os derrames pleurais, com enfoque em transudatos e exsudatos, e os principais marcadores bioquímicos para essa diferenciação.
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•
Reconhecer a relevância de outros exames complementares para auxílio no diagnóstico e no manejo terapêutico. • Reconhecer a pressão seletiva dos antimicrobianos e o impacto das imunizações contra Streptococcus pneumoniae e Haemophilus influenzae na etiologia dos derrames parapneumônicos ao longo do tempo. • Estabelecer a conduta inicial diante de uma criança com derrame pleural e o plano terapêutico a ser estabelecido de forma individualizada.
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CAPÍTULO 8
FIBROSE CÍSTICA José Dirceu Ribeiro Fernando Augusto de Lima Marson Norberto Ludwig Neto Antonio Fernando Ribeiro Paulo Augusto Moreira Camargos
Introdução A fibrose cística (FC) é uma doença monogênica autossômica recessiva, decorrente da ausência e/ou do defeito qualitativo e/ ou quantitativo da proteína CFTR (cystic fibrosis transmembrane regulator), que funciona na regulação da permeabilidade do íon cloro em células epiteliais. A proteína CFTR é expressa pelo gene com mesmo nome (gene CFTR), presente na região 7q3.11.1 Recentemente, estudos de genética molecular e eletrofisio‑ logia do transporte iônico em superfícies epiteliais culmina‑ ram com a identificação, a clonagem e o sequenciamento do gene CFTR, favorecendo o conhecimento dos mecanismos bioquímicos responsáveis pela fisiopatogenia e abrinddo hori‑ zontes para aconselhamento genético e o tratamento da FC.1,2
gura 1). As mutações no gene CFTR conferem variações nas células epiteliais pulmonares quanto à expressão da proteína CFTR: • mutação de classe I: ausência total de síntese; • mutação de classe II: bloqueio no processamento da CFTR, causando degradação da proteína e não ancoragem no epitélio; • mutação de classe III: bloqueio na regulação da proteína que está presente na superfície celular; • mutação de classe IV: condutância alterada por mutações que modificam a translocação do cloro pelo poro da proteína; • mutação de classe V: síntese da CFTR reduzida; • mutação de classe VI: degradação precoce da proteína por instabilidade na superfície celular.
Epidemiologia A incidência da FC varia de acordo com a etnia e o país estuda‑ do. É aproximadamente de 1/2.000 a 1/5.000 em caucasia‑ nos nascidos vivos na Europa, nos Estados Unidos e no Cana‑ dá. No Brasil, a incidência estimada é de 1/9.000 a 9.500 nascidos vivos.3 A média da sobrevida na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá atualmente é de 35 anos, enquanto, no Brasil, a sobre‑ vida média é de 18,4 anos, o que equivale àquela observada nos Estados Unidos na década de 1980.3,4 Em contrapartida, a média de idade dos pacientes nos Centros de Referência no Brasil tem aumentado, e o diagnóstico de formas menos gra‑ ves da FC tem sido documentado em adultos. Esses resultados são animadores se forem aliados ao fato de que praticamente todos os estados do Brasil realizam a tria‑ gem neonatal (TNN) para FC pelo esquema do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir de 2015, fato associado a redução do tempo do diagnóstico, melhor acompanhamento clínico e la‑ boratorial e melhora na qualidade de vida.5
As classes de mutações I, II e III são associadas às manifesta‑ ções graves da FC (doença clássica), enquanto as classes IV, V e VI resultam em fenótipos de menor gravidade. Nos pulmões, a falta ou o defeito da CFTR causa alterações no líquido da superfície das vias aéreas, com perda de sódio e água para o interstício do epitélio e desidratação das camadas gel e sol das vias aéreas. O resultado está esquematizado na Fi‑ gura 2 e as fases estão apresentadas na Figura 3. A reologia do muco das vias aéreas é alterada por diminuição do batimento ciliar e impactação das secreções que favorecem a inflamação e, posteriormente, a colonização/infecção na seguinte ordem: Haemophilus influenzae e parainfluenzae, Staphylococcus aureus, Pseudomonas aeruginosa não mucoide, P. aeruginosa mucoide, complexo Burkholderia cepacia e Achromobacter xylosoxidans, fungos. Colonização por P. aeruginosa ocorre frequentemente entre os 5 e 6 anos de idade nos países desenvolvidos. No Brasil, a co‑ lonização é mais precoce. A evolução dos pacientes após a colo‑ nização é variável: alguns apresentam pequeno declínio da fun‑ ção pulmonar (FP); em outros, a FP piora rapidamente. Outros fatores que deterioram a FP são desnutrição, infecção por B. cepacia, diabete melito, exacerbações pulmonares (EP), insufi‑ ciência pancreática (IP) e mutações das classes I, II e/ou III.
Fisiopatologia Existem 6 classes de mutações no gene CFTR, que correspon‑ dem a um espectro de aproximadamente 2.000 mutações (Fi‑
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1746 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 21 PNEUMOLOGIA
CFTR selvagem
I
II
III
IV
IV V
VI
Claro Superfície pulmonar
Proteína CFTR Retículo endoplasmático Complexo de Golgi Núcleo
Citoplasma
RNAm
Proteína defeituosa Produção
Regulação Processamento
Transporte
Quantidade de proteína funcional
Instabilidade na superfície da célula
Figura 1 Representação funcional das classes de mutações no gene CFTR. Estão representados os mecanismos que envolvem a expressão da proteína CFTR desde a transcrição até a ancoragem e a função na superfície celular. A proteína CFTR defeituosa ocorre nas mutações de classes I, II, III e IV, enquanto a quantidade de proteína CFTR é reduzida nas classes V e VI. Classe I: ausência de proteína CFTR por causa da não transcrição. Classe II: erro de processamento da proteína CFTR, que é degradada no retículo endoplasmático. Classe III: regulação da proteína CFTR com defeito; mutações no gene CFTR relacionadas à expressão do domínio R. Classe IV: a condução é alterada por mutações relacionadas aos domínios que atravessam a membrana plasmática. Classe V: quantidade reduzida de proteína CFTR na superfície celular; no entanto, atividade normal da proteína está presente. Classe VI: a estabilidade da proteína CFTR está reduzida. CFTR: cystic fibrosis transmembrane regulator; (x) verde: ausência da proteína de CFTR em virtude do stop códon prematuro (classe I), da ausência da proteína CFTR na superfície celular (classe II) ou da ausência de função de CFTR (classe III); setas contínuas pretas: transporte normal de cloreto; setas pretas segmentadas: transporte residual de cloreto. O número de proteína CFTR presente e funcional na superfície celular está relacionado com a expressão do gene CFTR. CFTR selvagem = CFTR normal. Fonte: adaptada de Marson et al., 2015.6
Mutações no gene CFTR
Proteína CFTR defeituosa/ deficiente/ausente
Anormalidade no líquido de superfície das vias aéreas
Obstrução das vias aéreas
Figura 3 Fase sol: onde estão os cílios (inferior). Fase gel: camada superficial (muco e secreções).
Inflamação
Infecção
Bronquiectasia
Figura 2 Mecanismos determinantes da doença pulmonar na fibrose cística.
CFTR: cystic fibrosis transmembrane regulator.
Colonização ou infecção crônica das vias respiratórias por P. aeruginosa está associada a maior número de EP e duração das hospitalizações. Portanto, intervenção precoce e preven‑ ção da doença pulmonar melhoram a qualidade e a expectati‑ va de vida dos pacientes.
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Além dos pulmões, os defeitos na proteína CFTR causam disfunções em numerosos órgãos, de modo primário ou se‑ cundário: intestino, pâncreas, ossos, fígado, órgãos sexuais e glândulas com muitas expressões fenotípicas ao longo da vida. Manifestações clínicas Sinais, sintomas e manifestações clínicas da FC variam com idade, gravidade e genótipo da doença e podem ser vistos na Figura 4. No Brasil, antes da TNN, aproximadamente 80% dos pacientes apresentavam sintomas sugestivos no 1º ano de vida e 50% tinham diagnóstico realizado após 3 anos de idade. É responsabilidade do pediatra geral estar alerta para as mani‑ festações clínicas da FC, para melhor orientar quanto à solici‑ tação de exames complementares, visando o diagnóstico mais precoce possível.7,8
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Fibrose Cística •
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Sinopulmonar
Infecção
ABPA Sinusite Polipose
ABPA Hemoptise, pneumotórax Parada respiratória Sinusite, polipose, anosmia
Gastrointestinal
Intestino ecogênito fetal Íleo meconial Insuficiência pancreática Prolapso retal
SOID Intussuscepção Esteatose hepática, fibrose biliar Prolapso retal
SOID Intussucepção Fibrose biliar, cirrose Câncer do trato digestório (adenocarcinoma)
Renal, endócrino, outros
Desidratação Alcalose metabólica hipotrêmica e hipoclorêmica
Cálculo renal Alacalose metabólica hiponatrêmica e hipoclorêmica
Puberdade atrasada, osteoporose, doenças associadas a FC Cálculo renal ACBVD Osteoartropatia hipertrófica pulmonar Artrite, vasculite Alcalose metabólica hiponatrêmica e hipoclorêmica
Infância
Adolescente/adulto
1ª infância
Figura 4 Sintomas característicos da fibrose cística.
ABPA: aspergilose broncopulmonar alérgica; SOID: síndrome da obstrução do íleo distal; FC: fibrose cística; ACBVD: agenesia congênita bilateral dos vasos deferentes. Fonte: adaptada de O’Sullivam et al., 2009.9
Deve-se suspeitar de FC nas crianças com história pessoal ou antecedente familiar sugestivo (nível de cloro elevado e/ ou óbitos por doença respiratória crônica), íleo meconial, doença pulmonar crônica (uma vez excluídas as mais preva‑ lentes, como asma), diarreia crônica, desnutrição, déficit de crescimento, distúrbios hidreletrolíticos (hiponatremia/alca‑ lose metabólica) e isolamento de P. aeruginosa em secreções respiratórias. Entre as manifestações respiratórias, a mais comum é a tosse persistente, às vezes coqueluchoide, que pode aparecer nas primeiras semanas de vida. Também são frequentes: bronquiolite grave, sibilância sem resposta aos broncodilata‑ dores, pneumonias de repetição e bronquiectasias. Alguns pa‑ cientes são oligossintomáticos por anos, o que não impede a progressão silenciosa da doença pulmonar.10 Nas fases avançadas, os pacientes apresentam expectora‑ ção purulenta, principalmente matinal, frequência respirató‑ ria aumentada, dificuldade expiratória, cianose periungueal, baqueteamento digital acentuado e alterações da caixa toráci‑ ca. Nessa fase, queixam-se de falta de ar durante exercícios e fisioterapia e, posteriormente, em repouso. As complicações incluem hemoptises recorrentes, impac‑ tações mucoides brônquicas, atelectasias, empiema, enfisema progressivo, pneumotórax e fibrose pulmonar, que podem evoluir para cor pulmonale. As vias aéreas superiores são com‑
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prometidas em todos os pacientes, na forma de pan-sinusite crônica, com reagudizações, otite média crônica ou recorrente, anosmia, deficiências auditivas e rouquidão transitória. A po‑ lipose nasal ocorre em aproximadamente 20% dos pacientes e pode ser a primeira manifestação da doença. Como várias manifestações clínicas citadas estão presentes em doenças de elevada prevalência, é indispensável que o pe‑ diatra esteja atento para possibilidade de FC diante do encon‑ tro dos sinais e sintomas crônicos. As manifestações digestivas costumam surgir precocemen‑ te, podendo ocorrer mesmo na vida intrauterina (obstrução ileal, perfuração intestinal e peritonite meconial), na sua maioria decorrentes da IP que acomete cerca de 60% das crianças até 1 mês de vida, 80% aos 6 meses, 90% aos 12 me‑ ses e até 95% na vida adulta. Nos recém-nascidos, o íleo meconial (IM) é a manifestação inicial da IP e pode acometer 15 a 20% dos pacientes, sendo indicativo de gravidade e presença de mutações no gene CFTR de classe I, II e/ou III. Entre os pacientes com IM, aproxima‑ damente, 90% têm FC, portanto, após diagnóstico de IM, de‑ ve-se investigar o diagnóstico de FC. Manifestações raras, po‑ rém precoces e sugestivas de FC, são edema hipoproteinêmico e distúrbios metabólicos. A principal manifestação digestiva na FC é a má digestão intestinal causando má absorção de nutrientes. Entre múlti‑
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plos fatores que contribuem para a má digestão intestinal, está ser avaliada por métodos diretos e indiretos.11 O padrão-ouro é a deficiência de enzimas pancreáticas, inicialmente secundá‑ a estimulação da secreção pancreática com secretina, avalian‑ ria à obstrução dos dutos por secreção espessa (Figura 5A), do-se a resposta com a quantificação das enzimas no suco causada pela ausência ou disfunção da proteína CFTR e, pos‑ duodenal. Além de ser invasivo, é de alto custo. Os métodos teriormente, pela destruição progressiva do parênquima pan‑ indiretos são os mais usados na prática clínica: creático (Figura 5B). Há alterações funcionais da motilidade • balanço de gordura nas fezes, cujos inconvenientes são a co‑ intestinal, consequente a alterações anatômicas decorrentes leta e a conservação de todas as evacuações durante 72 horas de ressecções, por íleo ou equivalente meconial (Figuras 6A e consecutivas e o manuseio de grande volume de fezes em la‑ 6B), estruturais pelo muco entérico espesso e abundante, e boratório; por eventual inflamação crônica da mucosa entérica (Figura • esteatócrito ácido, que implica quantificação da coluna de 6C). Má digestão e má absorção intestinal devem ser conside‑ gordura após diluição e centrifugação de pequena amostra de radas em casos de distensão abdominal, diarreia crônica, com fezes, cujo inconveniente é estar sujeito a variações e falta de perda de gordura nas fezes, baixo ganho ou perda de peso e controles normais para crianças com maior idade, sendo que apetite voraz. valores inferiores a 6% excluem IP; A confirmação da IP é importante para promover a terapêu‑ • dosagem de enzimas nas fezes, entre elas a elastase-1 fecal, tica de reposição enzimática (TRE) e orientar a suplementa‑ que representa o teste mais eficaz para detecção da IP na FC ção de macro e micronutrientes. A função pancreática pode (sensibilidade de 96%; especificidade de 100%); • quimiotripsina fecal, teste de baixa sensibilidade que não pode ser usado no uso de enzimas exógenas;11 • dosagem do tripsinogênio imunorreativo (TIR) no sangue, utilizada na TNN. A obstrução do íleo terminal por mecônio espesso (Figura 6D) é a manifestação clínica mais precoce da FC e está presente em aproximadamente 10 a 20% dos pacientes. Existe a possi‑ bilidade de diagnóstico intrauterino, quando a obstrução da luz intestinal por mecônio espesso pode ser identificada no exame de ecografia no 2º trimestre de gravidez. No exame físi‑ co do neonato, observa-se distensão abdominal progressiva, com vômitos biliosos e ausência de evacuação de mecônio. A radiografia de abdome mostra sinais de obstrução intestinal baixa: alças distendidas sem níveis hidroaéreos, ausência de ar distalmente e aparência mosqueada, como vidro fosco, pela A
B
Figura 5 (A) Anatomopatológico mostrando a obstrução de ductos pancreáticos nos primeiros meses de vida. (B) Anatomopatológico mostrando a evolução da doença no pâncreas com destruição do parênquima, restando fibrose e cistos. Fonte: Hospital de Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
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Figura 6 (A) Íleo meconial em paciente com fibrose cística. (B) Peça cirúrgica de paciente com fibrose cística com equivalente meconial. (C) Peça cirúrgica mostrando a atividade inflamatória crônica na fibrose cística na região ileocecal com efeito de massa no quadrante inferior direito. (D) Mecônio de paciente com fibrose cística. Fonte: Hospital de Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
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mistura do ar com mecônio desidratado (Figura 7). O exame contrastado (enema opaco) mostra microcólon e obstrução em íleo distal. A maioria dos casos de IM necessita de correção cirúrgica. Edema hipoproteinêmico é uma manifestação que surge no período neonatal (prevalência próxima de 5%), sendo secun‑ dário a IP e desnutrição. Instala-se caso não haja pronta TRE e intervenção nutricional. O pediatra deve estar atento ao diag‑ nóstico diferencial de edema generalizado no 1º ano de vida.
Figura 7 Radiografia de recém-nascido com abdome agudo obstrutivo na fibrose cística, mostrando distensão de alças de intestino delgado. Fonte: Hospital de Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
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A síndrome da obstrução intestinal distal após o período neonatal ocorre em 10 a 20% dos pacientes e é acompanhada de distensão e cólicas abdominais e, eventualmente, com constipação ou parada de eliminação de gases e fezes. Geral‑ mente tem boa evolução com o tratamento com solução de polietilenoglicol por via oral ou por sonda nasogástrica em 1 a 3 horas.12 O prolapso retal ocorre em até 20% dos pacientes com ida‑ de entre 6 e 36 meses com IP, principalmente antes da TRE, ou com reposição de baixas doses de enzimas pancreáticas, sendo raro após 5 anos de idade. É recomendada a realização do teste do suor (TS) em todo lactente que apresente prolapso retal. Acredita-se que o prolapso esteja relacionado com diar‑ reia crônica, fezes volumosas, tônus musculares diminuídos, desnutrição e tosse intensa. Manifestações hepatobiliares estão presentes em mais de 50% das necrópsias. Em estudos prospectivos, 25% dos pa‑ cientes apresentam alterações laboratoriais, 5% são sintomá‑ ticos e 2% evoluem para óbito decorrente da doença hepatobi‑ liar.13 A secreção anormal de íons pelo epitélio das vias biliares secundária ao defeito básico leva ao aumento da viscosidade e diminuição do fluxo biliar, predispondo à obstrução dos cana‑ liculares biliares, reação inflamatória, fibrose biliar e cirrose (Figura 8).13 Com a maior sobrevida dos pacientes, várias comorbidades têm sido prevalentes e exigem a atenção de quem cuida de adolescentes e adultos com FC: atraso puberal, azoospermia, osteopatia hipertrófica, depressão, desnutrição, doença pépti‑ ca grave, diabete, cirrose hepática, artrite crônica, vasculite, cálculo renal, osteoporose, pneumotórax, hemoptises de re‑ petição, câncer e falência respiratória. Diagnóstico laboratorial Teste do suor O TS tem elevadas sensibilidade e especificidade (> 95%), bai‑ xo custo e não é invasivo. O procedimento aceitável é o da do‑ sagem quantitativa de cloretos no suor, cuja amostra (pelo
Gene CFTR
Proteína CFTR
Secreção anormal de íons pelo epitélio das vias biliares
Reduz fluxo biliar Aumenta viscosidade
Lesão no epitélio da via biliar
Obstrução biliar fecal
Citocinas
Aumenta sais biliares tóxicos
Recrutamento e ativação das células estelares
Lesão hepática
Peroxidação Lesão hepática de lipídios
Outros efeitos
Fibrose biliar
Figura 8 Patogênese da disfunção hepatobiliar na fibrose cística.
CFTR: cystic fibrosis transmembrane regulator.
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menos 75 mg) deve ser obtida pelo método da iontoforese por pilocarpina em período de coleta que não ultrapasse 30 minu‑ tos. A estimulação da sudorese por bolsas plásticas é destituí‑ da de valor.14 O diagnóstico de FC é confirmado quando a concentração de cloretos é superior a 60 mEq/L. No 1º ano de vida, conside‑ ram-se normais níveis de cloro menores que 30 mEq/L. Após o 1º ano de vida, níveis normais são inferiores a 40 mEq/L e dosagens entre 40 e 60 mEq/L devem ser consideradas duvi‑ dosas; nesses casos, o TS deve ser repetido principalmente na presença de sinais e sintomas sugestivos de FC. O diagnóstico de FC deve ser confirmado com dois testes positivos, realiza‑ dos em momentos diferentes. Extensa revisão sobre o TS foi publicada recentemente.14 Em pacientes com FC, tanto o cloro como o sódio estão elevados, a diferença entre eles não deve ultrapassar 15 a 20 mEq/L e a relação cloro/sódio deve ser > 1. Uma concentração de cloro maior que 160 mEq/L é fisiologi‑ camente impossível e sugere erro na coleta ou dosagem.14 Resultados falso-positivos podem ocorrer em doenças ra‑ ras, como insuficiência suprarrenal não tratada, displasia ec‑ todérmica, hipoparatireoidismo, hipotireoidismo, diabete in‑ sípido nefrogênico, deficiência de glicose-6-fosfatase, síndrome nefrótica, doença de Von Gierke, fucosidose, coles‑ tase familiar, pseudo-hipoaldosteronismo, mucopolissacari‑ dose e pan-hipopituitarismo. Por outro lado, a presença de hi‑ poproteinemia e/ou edema pode ser responsável por exames
falso-negativos.14 Um fluxograma do diagnóstico após TNN e da realização TS pode ser visto na Figura 9.15 Análise de mutações A identificação de duas mutações patogênicas no gene CFTR confirma o diagnóstico de FC, sendo decisivo no paciente com quadro clínico compatível e TS não conclusivo. Trata-se de procedimento de custo ainda elevado. Tem sido proposta a triagem inicial da mutação F508del, que acomete aproxima‑ damente de 50 a 65% dos alelos dos pacientes, e, posterior‑ mente, a triagem diretiva de outras mutações com elevada fre‑ quência. Nos casos em que a investigação molecular para essas mutações for negativa, existe a possibilidade da triagem de todo gene CFTR, o que pode ser feito vinculado a projetos de pesquisas ou em centros diagnósticos com experiência na área.16 Triagem neonatal Acredita-se que o aumento do TIR sérico seja secundário ao refluxo de secreção pancreática, provocado pela obstrução dos ductos no pâncreas. O teste é realizado com amostra de san‑ gue coletado sobre papel de filtro na mesma amostra para TNN. A dosagem do TIR é indicador indireto da doença, pois ava‑ lia a integridade da função pancreática e, se ela estiver normal por ocasião do nascimento, o teste poderá ser negativo. Quan‑
Resultado da triagem neonatal para FC
Idade
TIR/DNA ou TIR/TIR positivo
5 a 14 dias
Notificar os pais e/ou responsáveis Avaliação do diagnóstico em centro de referência
Teste do sódio e cloro no suora
≥ 60 mmol/L Resultados
2 mutações no CFTRb Diagnóstico de FC
Centro de referência em FC, seguimento: • Análise do DNA se TIR/TIR • Avaliação clínica • Início do tratamento para manutenção da saúde • Duplicata do teste de suor
2 semanas
3 a 59 mmol/L 0-1 mutações no CFTR
≤ 29 mmol/L Sem dados de mutações no CFTR
Provável FC Análise do DNA: • Utilizar métodos para triagem de diferentes mutações
FC muito improvávelc 1 a 2 semanas
Exames complementares Repetir o teste do suord
2 a 6 meses
Figura 9 Protocolo do diagnóstico de FC a partir da triagem neonatal.15
a. Se o bebê apresenta pelo menos 2 kg e mais que 36 semanas gestacionais ao nascimento, realizar a coleta/análise bilateral com o método de Gibson e Cooke ou Macroduct®; repetir o mais rápido possível se a quantidade do suor for inferior a 75 mg ou 15 mcL; respectivamente. b. Mutações no gene CFTR referem-se a mutações reconhecidamente associadas à presença de FC. c. A doença é muito improvável; entretanto, se existem duas mutações em trans, a FC talvez seja diagnosticada. d. Depois de repetido o teste do suor, mais avaliações dependerão dos achados. TIR: tripsinogênio imunorreativo; FC: fibrose cística; CFTR: cystic fibrosis transmembrane regulator.
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do o teste for positivo com valores acima do padrão adotado, geralmente 70 ng/mL, deve ser repetido em até 30 dias, e caso persista positivo, o paciente deve ser submetido ao TS para confirmar ou afastar FC.2 A TNN não é unanimidade nos países desenvolvidos. Na Austrália, na Nova Zelândia e na França atinge, virtualmente, 100% dos recém-nascidos. Entre os argumentos contrários à TNN está o envolvimento de questões médicas, sociais, cultu‑ rais, éticas, emocionais e políticas de saúde. A angústia dos pais ocorre quando as dosagens de TIR são anormais, mas o diagnóstico não é confirmado pelo TS (valor normal ou limí‑ trofe) e quando ocorre a detecção de heterozigotos. O diagnós‑ tico precoce de casos de apresentação branda da doença, que teriam boa evolução no decorrer da vida, também gera trans‑ tornos desnecessários para as famílias. Outro ponto que gera polêmica são os custos elevados da TNN. No Canadá e em grande parte dos EUA onde não é realiza‑ da a TNN, a idade média do diagnóstico na rotina dos serviços de saúde se dá aos 6 meses de vida e, entre esses lactentes, 50% têm o diagnóstico realizado nas primeiras semanas ou meses de vida. Entre os argumentos favoráveis à TNN, encontram-se: me‑ lhoria do estado nutricional e correção precoce do déficit de vi‑ taminas. Pacientes diagnosticados pela TNN têm melhor ga‑ nho ponderoestatural que o grupo não triado. O diagnóstico precoce da FC, particularmente em pacientes assintomáticos é associado com melhor FP quando comparados com o grupo‑ -controle. Acompanhamento com radiografia de tórax durante 10 anos mostrou menor proporção de anormalidades no grupo TNN. Pacientes com diretiva de diagnóstico sintomatológica tinham 28% de cultura positiva para P. aeruginosa no 1º ano após o diagnóstico, contra 12% nos pacientes com TNN. A TNN proporciona aconselhamento genético e reproduti‑ vo e encaminhamento dos pacientes para centros de referên‑ cia de FC para cuidados especializados e estratégias de pre‑ venção. Pode também eliminar erros diagnósticos, condutas inadequadas, complicações da doença prevenindo algumas mortes e diminuindo o estresse psicológico pelo diagnóstico tardio. Em 1989, com a identificação do gene CFTR, a biologia mo‑ lecular foi incorporada no diagnóstico da FC e, na TNN, foi possível simplificar os procedimentos com a coleta de apenas uma amostra de sangue para a realização de TIR/DNA e TIR/ TIR, sendo que todos têm sensibilidades similares. O teste ge‑ nético apresenta maior praticidade e tempo, mas tem como desvantagem a detecção de indivíduos heterozigotos compos‑ tos (com duas mutações diferentes), resultando no aumento do número de indivíduos para realização do TS e aconselha‑ mento genético. No Brasil, resultados iniciais mostram dimi‑ nuição da idade média do diagnóstico e melhor condição nu‑ tricional dos pacientes triados pela TNN. Tratamento Deve-se estabelecer um programa de tratamento interdiscipli‑ nar, vigoroso e contínuo, de preferência em centro especializa‑ do de referência no manejo da FC, visando à profilaxia das in‑
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fecções do trato respiratório, nutrição adequada com suplementação de enzimas e vitaminas e minimização das complicações da doença. O tratamento precoce retarda a pro‑ gressão das lesões pulmonares, melhora o prognóstico e au‑ menta a sobrevida. A equipe interdisciplinar para atender crianças e adolescentes deve conter profissionais pediatras, pediatras pneumologistas, pediatras gastroenterologistas, nu‑ tricionistas, fisioterapeutas, assistentes sociais, psicólogos, dentistas, nutricionistas, geneticistas e enfermeiros. Essas equipes devem se preparar para transferir os indivíduos após os 20 anos de idade para a clínica de adultos com FC.17 Muitas associações internacionais têm proposto que a con‑ duta da doença pulmonar na FC seja conduzido por diretrizes baseadas em evidências científicas. Dessa maneira, recentes publicações sobre o tratamento da doença pulmonar obstruti‑ va crônica (DPOC) na FC podem ser encontradas e constituem o “estado da arte” para os centros de referências em FC.17,18 O tratamento é dirigido para infecção endobrônquica crôni‑ ca em razão do caráter multissistêmico da doença. Atualmen‑ te, não existem mais dúvidas de que quanto mais precoce o manejo, melhores serão os desfechos de qualidade de vida e sobrevida.19 Sabe-se que a progressão da FC leva a perda e deterioração progressiva da FP. A taxa de declínio da FP é inversamente proporcional à sobrevida, e a redução na taxa de declínio cau‑ sa impacto positivo na sobrevida. Quanto mais cedo forem tratados os pacientes de alto risco, maiores serão seus benefí‑ cios. Análise com grandes casuísticas mostra que países que adotam tratamentos mais agressivos e precoces têm melhores resultados em desfechos clínicos e laboratoriais e maior sobre‑ vida.19 Uma vez diagnosticada a FC, é necessário o seguimento por toda a vida. A pesquisa de microrganismos na orofaringe, no aspirado traqueal ou no escarro induzido deve ser realizada ro‑ tineiramente, se possível em todas as consultas. Os pacientes devem realizar espirometria 2 vezes/ano, medida da satura‑ ção transcutânea de oxigênio da hemoglobina em cada con‑ sulta e radiografia simples de tórax a cada 2 ou 3 anos, após 5 a 6 anos de idade, ou antes, se as condições clínicas exigirem. A tomografia computadorizada (TC) de tórax é mais sensível e específica em detectar alterações iniciais que a radiografia e a espirometria, mas expõe o paciente a doses maiores de radia‑ ção (Figura 10). Como é obrigatória a parceria entre o pediatra e a equipe do centro de referência, é indispensável que ele reconheça sinais e sintomas associados às EP, pois elas constituem indicação formal de antibioticoterapia. São sinais e sintomas de EP: fe‑ bre, aumento da frequência respiratória, aumento da intensi‑ dade e duração da tosse, aumento ou reaparecimento da ex‑ pectoração, expectoração amarelada ou amarelo-esverdeada, redução do apetite e da tolerância aos exercícios, agravamento ou primeiro episódio de hemoptise, aumento da fadiga e sono‑ lência. A presença de retrações intercostais, uso da muscula‑ tura acessória, aparecimento de ruídos adventícios ou piora da ausculta pulmonar, perda de peso e aumento dos sinais de aprisionamento de ar são fortemente sugestivos de EP. Altera‑
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Figura 10 (A) Forma avançada de fibrose cística com bronquiectasias difusas e graves. (B) Tomografia normal em pacientes com valores normais de espirometria. (C) Tomografia com bronquiectasias: espirometria com resultado normal, com valores de volume expiratório forçado no primeiro segundo da capacidade vital forçada superiores a 100% do previsto. (D) Comprometimento de pequenas vias aéreas: a doença pulmonar progride de baixo para cima e de cima para baixo. Fonte: Hospital de Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
ções laboratoriais: diminuição do VEF1 (10% ou mais), altera‑ ções na radiografia de tórax, hemograma com leucocitoses e diminuição da saturação de oxigênio. A aquisição inicial ou recidiva do achado de P. aeruginosa nas vias aéreas deve ser tratada com antibióticos anti-Pseudomonas e aumento de fisioterapia, independentemente da pre‑ sença ou ausência de sintomas. Portanto, existem três situa‑ ções que exigem manejo medicamentoso: • tratamento para erradicação da P. aeruginosa na primeira do‑ cumentação nas vias aéreas, ou por aumento no título de an‑ ticorpos anti P. aeruginosa, ou pela presença em culturas de‑ correntes da coleta de secreções das vias aéreas por escarro, swab ou lavado broncoalveolar; • manejo da infecção crônica das vias aéreas; • tratamento das EP.19,20 Pacientes infectados cronicamente ou com EP devem ser in‑ ternados para receber antibioticoterapia endovenosa por 14 a 21 dias. Como frequentemente existe associação de S. aureus com P. aeruginosa, é oportuno ministrar oxacilina (200 mg/ kg/dia, 4 vezes/dia), amicacina (30 mg/kg/dia, 1 vez/dia) e ceftazidima (150 mg/kg/dia, 2 a 3 vezes/dia).19,20
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Entre os mucolíticos, o mais estudado é a DNase-humana recombinante, que cliva o DNA do muco, reduzindo a viscosi‑ dade do escarro. Inalações com soluções de NaCl a 7%, admi‑ nistradas 4 vezes/dia, por períodos curtos ou longos, aumen‑ tam o volume do líquido de superfície das vias aéreas e o clearance mucociliar e melhoram a FP e qualidade de vida dos pacientes. Deve ser preconizada a administração de salbuta‑ mol por aerossol dosimetrado pressurizado (spray oral) 30 a 60 minutos antes da inalação com salina hipertônica. A administração de salina hipertônica de NaCl a 7%, prece‑ dida de salbutamol inalado (200 mg) é segura, eficaz e com poucos efeitos colaterais. Entre a baixa frequência de efeitos colaterais (2%), foram encontrados tosse, hemoptise, faringi‑ te e broncoespasmo. Pelo menos 50% dos pacientes evoluem com hiper-respon‑ sividade das vias aéreas. Nesses, a utilização de beta-agonis‑ tas de longa duração associados a esteroides inalados pode ser benéfica. Seguramente, devem-se utilizar broncodilatadores e corticosteroides inalatórios nos pacientes com FC e asma alér‑ gica concomitante. Mais recentemente, a azitromicina tem demonstrado efeitos anti-inflamatórios eficazes. Tem-se demonstrado que os ma‑
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Fibrose Cística •
crolídeos atuam na modulação da inflamação, na diminuição do número de neutrófilos e de IL-8, no lavado broncoalveolar, no escarro e na diminuição da migração de neutrófilos e da pro‑ dução de superóxido. Entre os efeitos antimicrobianos, citam‑ -se a inibição da formação de biofilme e aderência bacteriana. Pacientes com EP frequentes devem ser monitorados para controle de adesão ao manejo, presença de comorbidades e FP. O uso de oxigênio está indicado durante o dia, nos casos de falência respiratória hipoxêmica, ou seja, PaO2 < 55 mmHg ou PaO2 < 59 mmHg em ar ambiente associada a edema e/ou he‑ matócrito > 55 mm e/ou onda p no ecocardiograma. A oxige‑ noterapia noturna é recomendada quando a SaO2 é < 90% por período maior que 10% do tempo de sono e/ou SaO2 < 88% aos exercícios. Terapia de reposição enzimática É utilizada desde a descrição da FC, com enzimas obtidas de pâncreas de porco ou boi inicialmente, em apresentações sem controle de qualidade adequado, até apresentações sofistica‑ das, em microesferas ou microtabletes ácido-resistentes e concentrações enzimáticas mais uniformes e padronizadas.21 Deve ser instituída tão logo seja feito o diagnóstico de FC e IP, independentemente da idade, mesmo em recém-nascidos. Sugere-se que, diante da evidência de IM, a TRE seja instituí‑ da mesmo antes dessa confirmação, uma vez que ela não in‑ terfere no diagnóstico da FC, evitando, assim, a instalação ou o agravamento da desnutrição.21 Não há uma regra absoluta para sua prescrição e muitos fa‑ tores interferem na quantidade necessária de enzimas a cada refeição. Pode variar de paciente para paciente, dependendo da dieta e do grau da IP. Para crianças com alimentação exclu‑ sivamente láctea, oferecer, em média, 500 a 1.000 unidades de lipase/grama de gordura ingerida por refeição. Por exem‑ plo, lactente de 4 meses, recebendo 200 mL de fórmula láctea com 3 g% de gordura a cada 4 horas, deve receber de 3.000 a 6.000 unidades de lipase/refeição. Recomenda-se iniciar com a menor dose e ajustá-la conforme as necessidades.21 Outra maneira de orientar a dose de enzimas é prescrever, em média, 500 a 1.000 unidades de lipase/kg/refeição. Uma criança de 1 ano com 9 kg, que faz 6 refeições ao dia, deve rece‑ ber de 4.500 a 9.000 unidades de lipase/refeição. Deve-se considerar a variabilidade da densidade calórica de cada refei‑ ção, para orientar as doses de enzimas para cada refeição. Quando a dose necessária para um bom controle da IP ultra‑ passar 10.000 unidades de lipase/kg/dia, deve-se atentar para a existência de fatores que interfiram na ação das enzi‑ mas e nos riscos de complicações resultantes do uso de altas doses de enzima por dia.21 Para melhor aproveitamento das enzimas, é recomendado que as refeições sejam feitas em “blocos”, evitando-se “belis‑ car” alimentos, e que sejam oferecidas enzimas no início das refeições, lembrando-se que a ação delas dura aproximada‑ mente de 45 a 60 minutos. Nos recém-nascidos, a cápsula que contém os grânulos de enzimas pode ser aberta, e os grânulos podem ser fracionados de acordo com a dose recomendada e colocados na porção
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posterior da boca, oferecendo amamentação logo em seguida. Deve-se evitar a diluição ou a trituração dos grânulos, pois a retirada da proteção antiacidez favorece a ativação das enzi‑ mas, ainda na boca, pelo pH neutro alcalino, com subsequen‑ te inativação das enzimas no meio ácido do estômago. Suporte nutricional A importância da nutrição no bem-estar e na sobrevida dos pa‑ cientes está bem estabelecida, assim como a associação entre desnutrição e deterioração da FP. Fatores que afetam a nutri‑ ção: herança genética, IP, ressecção intestinal, perda de sais e ácidos biliares, refluxo gastroesofágico, inflamação e infecção, diabete e condições emocionais. É importante monitorar a nu‑ trição de todos os pacientes em cada visita clínica. Os pacien‑ tes devem ser vistos em seguimento de rotina, a cada 3 a 4 me‑ ses. O objetivo da intervenção nutricional é antecipar e tratar os déficits nutricionais e complicações. A intervenção nutricional deve iniciar-se no momento do diagnóstico e inclui educação nutricional, orientação dietética, suplementação de vitaminas e TRE. A orientação deve ser continuada, porque os ajustes na TRE são frequentes, em ra‑ zão das alterações da dieta, dos requerimentos nutricionais com o crescimento e a idade ou com aparecimento de compli‑ cações, como diabete. Também é importante a suplementa‑ ção de sais, principalmente no verão, e das vitaminas A, D, E e K, em apresentação hidrossolúvel, na condição de IP. Fisioterapia A literatura tem sugerido que técnicas de fisioterapia são be‑ néficas em auxiliar a depuração mucociliar. A fisioterapia res‑ piratória deve ser estimulada e realizada rotineiramente desde o diagnóstico, pois os resultados, principalmente em curto prazo, têm sido animadores.22 A realização de trabalhos bem conduzidos para tentar demonstrar a eficácia e a eficiência das técnicas de fisioterapia sobre a drenagem de secreções pulmo‑ nares deve ser estimulada. As técnicas fisioterápicas dependem da faixa etária. Mano‑ bras de aceleração do fluxo expiratório e drenagem postural estão indicadas para todos pacientes. Expiração forçada e uso de flutter ou shaker estão indicados nos pré-escolares, escola‑ res e adolescentes, ao passo que estes dois últimos grupos po‑ dem se beneficiar de outros procedimentos, como ciclo ativo da respiração e drenagem autogênica.2 Atividades físicas, prá‑ tica regular de esportes e mesmo condicionamento físico regu‑ lares devem ser introduzidos precocemente e mantidos de for‑ ma contínua. O sucesso e a adesão do paciente à fisioterapia dependem da capacidade do fisioterapeuta de ajustar as técni‑ cas à necessidade dos pacientes. Higiene e controle de infecção Pacientes costumam ser colonizados principalmente por H. influenzae, S. aureus e P. aeruginosa, e alguns deles são coloni‑ zados por bactérias multirresistentes, como S. aureus oxacili‑ no-resistentes e B. cepacia. A infecção por bactérias multirre‑ sistentes é um desafio em nível ambulatorial, em enfermarias e no contato social entre pacientes e familiares.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer o diagnóstico e as bases do tratamento da fibrose cística. • Reconhecer que as manifestações e o prognóstico estão relacionados com herança genética, presença de insuficiência pancreática, idade de início e gravidade das manifestações clínicas respiratórias. • Saber que a mutação F508del e outras de classes I, II e/ou III, em homozigose ou heterozigose composta, relaciona ‑se com insuficiência pancreática, doença pulmonar mais grave e colonização precoce com P. aeruginosa. • Reconhecer que o atendimento dos pacientes em centros especializados é um fator que contribui para o melhor prognóstico. • Saber que os melhores conhecimentos sobre a doença e avanços terapêuticos implicam maior taxa de sobrevida, embora 15 a 20% dos pacientes com fibrose cística evoluam para o óbito antes dos 10 anos.
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CAPÍTULO 9
ABSCESSO PULMONAR Helena Teresinha Mocelin Gilberto Bueno Fischer
Definição Abscesso pulmonar é uma cavidade no parênquima pulmonar com material purulento em seu interior e paredes espessas, geralmente resultante de uma infecção bacteriana. As cavida‑ des podem ser únicas ou múltiplas. Pode ser primário, quando incide em um pulmão previamente sadio como ocorre associa‑ do à pneumonia, ou secundário, quando ocorre em uma crian‑ ça com condições (locais ou sistêmicas) que predispõem ao desenvolvimento dessa complicação. Os fatores predisponen‑ tes são malformações pulmonares (malformação adenomatoi‑ de cística, cisto broncogênico, sequestro pulmonar), imuno‑ deficiências, fibrose cística ou criança com doença neurológica que apresenta aspiração broncopulmonar. Aspiração de corpo estranho, com diagnóstico e tratamento tardio, pode se apre‑ sentar como abscesso na área de alojamento do elemento que foi aspirado. Epidemiologia Os relatos na literatura de casos de abscesso pulmonar têm sido cada vez mais raros. São mais frequentes em países em desenvolvimento, onde a incidência de pneumonias é maior. Com o recente crescimento da incidência de pneumonias ne‑ crosantes, seria esperado um aumento da frequência de abs‑ cessos pulmonares mesmo em países desenvolvidos, entre‑ tanto, buscando-se na literatura recente, esse aumento não é observado. Patogênese São vários os mecanismos que podem determinar a formação de abscesso: 1. No abscesso secundário à pneumonia, inicialmente há um processo infeccioso no parênquima pulmonar que evolui com necrose, cavitação e formação do abscesso. A literatura apon‑ ta 2 cm de diâmetro mínimo para se considerar um abscesso pulmonar. 2. Nos processos secundários à aspiração, as bactérias da cavi‑ dade oral são aspiradas em eventos como convulsão, coma ou
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outras causas de perda de consciência. Em crianças com dis‑ túrbios de deglutição, esses episódios podem estar associados a aspiração de conteúdo alimentar ou de outros produtos ingeridos (medicamentos, corpo estranho) e favorecer a for‑ mação do abscesso. O desenvolvimento de abscesso está rela‑ cionado a características, frequência e volume do material as‑ pirado e resposta dos mecanismos envolvidos no clearance mucociliar das vias aéreas, e resulta da redução da perfusão local decorrente da resposta inflamatória das defesas do orga‑ nismo. O intervalo de tempo entre o episódio aspirativo e o aparecimento dos sinais clínicos de abscesso é variável. Nas pneumonias aspirativas que levam à formação de abscesso, a sua localização é mais frequente em regiões pendentes dos pulmões, como lobos superiores e segmentos apicais dos lo‑ bos inferiores. 3. O abscesso também pode ser secundário a êmbolo séptico oriundo de endocardite bacteriana ou de foco infeccioso com disseminação hemática, como acesso venoso central. É possí‑ vel ocorrer também abscesso por contiguidade com processos infecciosos intra-abdominais, mediastinais e de orofaringe.
Microbiologia Os agentes infecciosos causadores de abscesso pulmonar são diversos. O Quadro 1 apresenta os agentes etiológicos que cau‑ sam abscesso pulmonar com maior frequência. Quadro clínico Os sinais e sintomas clínicos do abscesso pulmonar são ines‑ pecíficos. Na maioria das vezes, inicia-se como um processo de infecção respiratória, com tosse e febre e, muitas vezes, é diagnosticado como pneumonia. Na presença de abscesso, a evolução é protraída, ao contrário do que ocorre em uma pneumonia com resposta aos antibióticos, e a criança pode apresentar tosse e febre persistente. Algumas vezes, o quadro clínico é insidioso, com a criança apresentando os sintomas por várias semanas. A criança também pode apresentar dor torácica e sinais sistêmicos de infecção, como anorexia, pros‑
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Quadro 1 Agentes etiológicos identificados em abscessos pulmonares Patógeno Aeróbios Cocos Gram-positivos Bacilos Gram-negativos Streptococcus pneumoniae Staphylococcus aureus Strepotococcus pyogenes Streptococcus milleri Streptococcus viridans Pseudomonas aeruginosa Klebsiella pneumoniae Moraxella catarrhalis Acinetobacter species Escherichia coli
tração, náuseas e vômitos. No exame físico, os achados são semelhantes ao encontrado em pneumonia, podendo haver taquipneia e murmúrio vesicular diminuído com macicez à percussão. Hemoptise e vômica são achados infrequentes. Diagnóstico A suspeição diagnóstica é feita a partir da radiografia simples de tórax, que mostra opacidade homogênea que não involui após o tratamento com antibiótico. Pode-se realizar a radiografia com o paciente sentado, em decúbito lateral ou em ortostatismo, com raios horizontais que permitem visualizar uma cavidade com paredes espessas com níveis hidroaéreos na área da consolidação prévia. A tomografia computadorizada (TC) de tórax é mais específica para o diagnóstico, por demonstrar a localização e as características do abscesso com maior precisão. O uso de contraste endovenoso pode auxiliar na melhor definição da
Salmonella species Anaeróbios Bacteroides Prevotella species Actinomyces species Fungos Candida albicans Aspergillus species * Modificado de Patradoon-Ho P.
Figura 1 Menino de 3 anos admitido por tosse, febre e dificuldade ventilatória há 5 dias. Apresentava estado geral comprometido, com má higiene dentária com lesões gengivais supurativas. Na ausculta pulmonar, tinha broncofonia em terço inferior do pulmão esquerdo. Hemoglobina de 7,8 mg/dl%, leucocitose com desvio à esquerda com 20% de bastonados. A radiografia de tórax apresentava consolidação em lobo inferior esquerdo. Foi iniciada antibioticoterapia endovenosa, mas não apresentou melhora do estado geral e manteve febre após 4 dias de tratamento.
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Figura 2 A radiografia de tórax, realizada com o paciente sentado, mostra imagem arredondada na área da consolidação, com nível hidroaéreo e parede espessa. Realizou-se fibrobroncoscopia, que não mostrou comunicação entre o abscesso e a via aérea. Foi indicada punção aspirativa sob TC, obtendo-se material purulento local. Depois de 12 horas, a febre cedeu e em 24 horas o paciente passou para antibiótico oral e foi liberado em alta hospitalar.
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Abscesso Pulmonar •
imagem. Em abscessos secundários a malformações pulmonares, como a malformação adenomatoide cística, podem ser necessárias imagens mais tardias (semanas após o tratamento), pois, na fase aguda, a distinção entre abscesso e malformação pode ser difícil. A ultrassonografia pode demonstrar a presença de líquido em cavidade com paredes densas. Esse procedimento pode definir o local de punção do abscesso, que pode ser realizado concomitantemente. A endoscopia de vias aéreas pode ser diagnóstica quando houver comunicação entre o abscesso e as vias aéreas e pode apoiar o tratamento por meio da aspiração local. Tratamento O tratamento depende das características do abscesso e da presença de condições associadas. Deve-se indicar a internação hospitalar e iniciar com antibioticoterapia endovenosa. Em um abscesso associado à pneumonia, a antibioticoterapia deverá cobrir as bactérias mais comuns encontradas em infecções pulmonares, como pneumococo, estafilococo e anaeróbios. A cobertura antibiótica deve seguir o resultado obtido em cultura do material (se for identificado), podendo ser suficiente penicilina, cefalosporinas, oxacilina ou clindamicina. Penicilina é a primeira opção de escolha, pois trata estreptococos e anaeróbios. Alguns centros também associam, em pacientes graves, clindamicina ou metronidazol para cobertura de estafilococo. A clindamicina tem a vantagem de tratar estafilococo e anaeróbios e, após a melhora clínica do paciente, pode ser administrada via oral. Abscesso pulmonar em paciente com fibrose cística deve ter seu tratamento antimicrobiano baseado nas bactérias já identificadas nesse indivíduo, em geral, Pseudomonas aeruginosa e outras bactérias características dessa entidade. Nos pacientes com imunodeficiência, além do tratamento com cobertura de amplo espectro para bactérias, poderá ser necessário o uso de antifúngico e drogas para germes Gram-negativos. Sempre que o abscesso for secundário à aspiração, deve-se fazer a cobertura para germes anaeróbios. O tempo de uso de antibiótico endovenoso é variável (5 dias a 3 semanas), mas, assim que o processo febril desaparecer, pode-se trocar para administração por via oral. Nos últimos anos, o uso de cateter colocado diretamente na cavidade do abscesso, em geral guiado por exame de imagem, tem sido bastante utilizado, pois permite redução do tempo de antibiótico endovenoso e de internação hospitalar. A aspiração do material necrótico pode determinar melhora rápida da febre e, em alguns casos, definir a identificação do agente etiológico. O cateter pigtail pode ser inserido no local do abscesso e ser retirado em 2 a 3 dias. Em alguns casos, somente a aspiração de material patológico da cavidade já pode ser resolutiva. Como a drenagem local guiada por imagem trata a maioria dos casos, a indicação cirúrgica raramente é necessária, sendo indicada nas situações em que a antibioticoterapia associada à drenagem local não resolve o quadro infeccioso e a criança está clinicamente grave.
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Quando se detecta, durante a realização de fisioterapia respiratória, a presença de secreção provavelmente oriunda do abscesso, técnicas de estímulo da tosse e drenagem postural podem ser indicadas. A aplicação de fisioterapia pode reduzir a necessidade de antibiótico endovenoso prolongado. A frequência de realização de exames de imagem para acompanhamento da lesão não tem indicação clara. Em geral, ao se passar para antibioticoterapia oral, é útil ter uma radiografia simples de tórax, e também no acompanhamento ambulatorial em algumas semanas. Evolução e prognóstico Em condições usuais, o abscesso pulmonar tem bom prognóstico, com evolução para a cura completa. Em torno de 90% dos pacientes, a resolução ocorre com uso de antibiótico. O abscesso primário geralmente apresenta boa resposta ao tratamento e tem boa evolução, enquanto o secundário tem sua evolução associada ao controle da infecção e depende da doença de base. Podem ocorrer complicações locais com surgimento de fístula entre o abscesso e o espaço pleural determinando empiema e, às vezes, fístula broncopleural, de evolução mais protraída. O tempo de internação também depende da etiologia do abscesso e é maior nos abscessos secundários. A morbidade é maior em pacientes submetidos à cirurgia. Estima-se uma mortalidade muito baixa em crianças previamente hígidas (menor do que 2%), relacionada às condições associadas. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar os achados clínicos que sugiram a presença de abscesso pulmonar. • Indicar a investigação de abscesso pulmonar por imagem. • Indicar, juntamente com o pneumopediatra, a abordagem terapêutica mais adequada, incluindo escolha de antibióticos, indicação de fibrobroncoscopia, fisioterapia e tratamento invasivo.
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CAPÍTULO 10
DISPLASIA BRONCOPULMONAR Valentina Coutinho Baldoto Gava Chakr Leandro Meirelles Nunes
Definição Apesar dos amplos estudos na área, a definição de displasia broncopulmonar (DBP) continua problemática. A definição (Tabela 1) baseada na necessidade de uso de oxigênio é mera‑ mente operacional e não contempla a magnitude da doença pulmonar nem o processo de doença subjacente. A DBP não é uma entidade única, nem mesmo um espectro de doenças que resultam de um mesmo processo fisiopatológico. Ela é uma combinação de várias doenças pulmonares crônicas (DPC) ca‑ racterizadas por uma população de risco em comum, que são os prematuros extremos, isto é, aqueles que nascem durante os es‑ tágios sacular precoce ou canalicular tardio de desenvolvimento pulmonar com idade gestacional (IG) entre 22 e 28 semanas.1,2 DBP e doença pulmonar crônica da prematuridade (DPCP) O termo DBP foi descrito, pela primeira vez, por Northway em 1967, para os casos de recém-nascidos prematuros com síndro‑ me do desconforto respiratório grave, submetidos à ventilação mecânica com altas pressões e frações inspiradas de oxigênio, e que evoluíram com lesões radiológicas características e de‑ pendência de suplementação de oxigênio.3 Com o avanço da perinatologia, essa forma grave de doença pulmonar tornou-se menos comum e vem dando lugar a quadros mais brandos de DPC, em recém-nascidos cada vez mais prematuros, que res‑ pondem ao tratamento com surfactante e que sobrevivem após longos períodos de ventilação mecânica não agressiva, geral‑ mente indicada por apneia ou esforço respiratório precário.4 Dessa forma, alguns autores passaram a não utilizar mais o termo DBP, pois os achados histopatológicos dessa “nova” displasia pós-surfactante são acompanhados de comprometi‑ mento de vias respiratórias menores e pulmonares, ao contrá‑ rio das vias respiratórias maiores, principais alvos das altera‑ ções patológicas da displasia considerada “clássica”. Por isso, esses autores preferem o termo DPCP.3,4 Essa mudança de apresentação gerou certa confusão na li‑ teratura entre os termos DBP e DPCP, ora tratados como sinô‑ nimos e, por vezes, como entidades diferentes. Atualmente, é
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consenso manter o termo DBP para a doença, mesmo que a nomenclatura não represente com precisão os achados pato‑ lógicos, permitindo a diferenciação de outras formas de DPC que acometem crianças.5 Epidemiologia A epidemiologia da DBP mudou drasticamente nos últimos 40 anos. Na década de 1960, durante a era pré-surfactante, os prematuros que desenvolviam DBP tinham em torno de 34 se‑ manas e eram tratados com altas concentrações de oxigênio e ventilação mecânica agressiva. Atualmente, a maioria dos lac‑ tentes que apresenta DBP é prematuro extremo. Apesar de a incidência da doença não ter se alterado signifi‑ cativamente, seu curso clínico foi amenizado pelas mudanças na prática clínica (uso de corticosteroide antenatal e de surfac‑ tante exógeno, novas estratégias ventilatórias, tratamento agressivo do canal arterial persistente e melhora da terapia nu‑ tricional).3,6 Estudos epidemiológicos identificaram vários fatores de risco relacionados ao desenvolvimento de DBP. A imaturidade pulmonar é o principal fator de risco (embora bebês a termo ou prematuros tardios possam apresentar a doença em virtu‑ de de dano pulmonar agudo grave). O risco de DBP aumenta de maneira inversamente proporcional ao peso de nascimento e à IG. Outros preditores são: sexo masculino, raça branca, pe‑ queno para IG, síndrome da angústia respiratória, uso precoce de lipídios parenterais, tabagismo materno, restrição do cres‑ cimento intrauterino, corioamnionite, colonização respirató‑ ria por ureaplasma, canal arterial persistente, sepse neonatal, edema pulmonar, excesso de administração de fluidos neona‑ tal, uso de ventilação mecânica agressiva (volumes correntes elevados, alta pressão de pico inspiratória, baixa pressão expi‑ ratória positiva final, alta frequência respiratória) e duração e concentração do tratamento com oxigênio.2,6,7 Patogênese Os pacientes com DBP nascem antes do período alveolar de desenvolvimento pulmonar, que se inicia por volta de 36 se‑
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manas. Nessa fase da morfogênese, ocorrem septação e proli‑ feração dos alvéolos, além de aumento do comprimento e do diâmetro luminal das vias aéreas condutoras. As artérias pul‑ monares também crescem, provocando queda na resistência da vasculatura pulmonar.8 Em consequência, o pulmão com DBP caracteristicamente apresenta alvéolos grandes e em pe‑ queno número (simplificação alveolar) e microvasculatura dismórfica. Pode haver também, em graus variados, hiperpla‑ sia da musculatura lisa das vias aéreas, fibrose intersticial, re‑ modelamento arterial e traqueobroncomalácia. Sabe-se que vários insultos participam na patogênese da DBP, seja inter‑ rompendo o desenvolvimento pulmonar diretamente ou de‑ sencadeando respostas inflamatórias. Entre os insultos, estão: infecções (coriamnionite, sepse), hiperóxia (formação de es‑ pécies reativas de oxigênio), volutrauma, barotrauma, etc. Es‑ tudos recentes investigam como fatores genéticos interagem com o ambiente de forma a explicar a variabilidade quanto ao risco de DBP e de sua gravidade entre os pacientes.3,9,10 Fisiopatologia Na DBP, o dano não uniforme às vias aéreas distais resulta em constantes de tempo variáveis para diferentes áreas do pul‑ mão. O gás inspirado pode ser distribuído a áreas relativamen‑ te mal perfundidas, causando alteração na relação ventilação‑ -perfusão. O estreitamento das vias aéreas de pequeno calibre, a fibrose intersticial, o edema e a atelectasia levam à diminui‑ ção da complacência pulmonar. O aumento da resistência da via aérea pode ser demonstrado precocemente. A presença de traqueomalácia também contribui para a limitação ao fluxo aéreo e piora com a administração de broncodilatadores. É co‑ mum haver alçaponamento aéreo com hiperinsuflação pul‑ monar. Como a superfície alveolar está reduzida, a capacidade de difusão também se encontra prejudicada.2 Mudanças estruturais nos vasos pulmonares contribuem para o aumento da resistência vascular por causa da redução do seu diâmetro e da sua complacência. A vasorreatividade pulmonar é caracterizada por vasoconstrição acentuada em resposta à hipóxia aguda. Dessa maneira, a hipertensão pul‑ monar é uma das causas de morbidade e mortalidade na DBP grave. As artérias pulmonares de pequeno calibre encontram‑ -se reduzidas em número e com padrão de distribuição anor‑ mal no interstício pulmonar distal nas formas graves da doen‑ ça. Essa redução na superfície alveolocapilar prejudica a troca gasosa, levando à necessidade prolongada de oxigenoterapia e ventilação mecânica, além de desencadear hipoxemia impor‑ tante na ocorrência de infecções respiratórias agudas e, mais tardiamente na vida, intolerância ao exercício. Além da doen‑ ça vascular pulmonar e da hipertrofia ventricular direita, ou‑ tras anormalidades cardiovasculares associadas à DBP são: hi‑ pertrofia ventricular esquerda, hipertensão arterial sistêmica e presença de circulação colateral sistêmico-pulmonar.2,11 Quadro clínico Como o quadro clínico é inespecífico, o pediatra deve suspei‑ tar do diagnóstico baseado na evolução de um recém-nascido de risco para desenvolver a doença (prematuros com IG < 30
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semanas, geralmente peso de nascimento < 1.000 g e que ne‑ cessitaram ou não de suporte ventilatório) e que necessite de oxigenoterapia contínua. Os sinais clínicos são os de graus variados de insuficiência respiratória crônica: • taquipneia; • sinais de esforço respiratório, como retração intercostal ou subcostal; • episódios de cianose; • hipoxemia e/ou hipercapnia moderadas; • ganho ponderal insuficiente. Os sinais clínicos de aumento de resistência das vias aéreas, como taquipneia associada a sibilos, hiperexpansão pulmonar, hipertensão pulmonar e insuficiência cardíaca não são fre‑ quentes, mas podem ocorrer. Quanto aos achados radiológicos, normalmente consta‑ tam-se opacidades intersticiais difusas relacionadas à presen‑ ça de líquido pulmonar e/ou de inflamação, atelectasias e áreas de enfisema pulmonar.11 Diagnóstico Os critérios diagnósticos que o pediatra deve utilizar na DBP encontram-se na Tabela 1. Tratamento Nos últimos 20 anos, muitos medicamentos foram testados para o tratamento de DBP, porém poucos se mostram seguros e efetivos. O oxigênio ainda é a principal terapia para crianças com DBP. Estudos apontam que o pediatra, ao prescrever oxigeno‑ terapia, deve visar à manutenção de saturações entre 92 e 95%. Saturações < 92% aumentam a mortalidade e > 95% pio‑ ram a lesão pulmonar, pelo aumento do estresse oxidativo.2,12 Depois do oxigênio, os diuréticos são os medicamentos mais amplamente prescritos para DBP. Contudo, não há evi‑ dências de benefícios em longo prazo. Portanto, seu uso fica Tabela 1 Critérios para diagnóstico da displasia broncopulmonar Idade gestacional
< 32 semanas
≥ 32 semanas
Momento de avaliação
Idade gestacional de 36 semanas ou alta hospitalar (o que ocorrer primeiro)
> 28 dias, porém < 56 dias de idade pós-natal ou da alta hospitalar (o que ocorrer primeiro)
Tratamento com oxigênio > 21% por pelo menos 28 dias DBP leve
Respirando ar ambiente
Respirando ar ambiente
DBP moderada
Necessidade de < 30% de oxigênio
Necessidade de < 30% de oxigênio
DBP grave
Necessidade de ≥ 30% de oxigênio e/ou VPP ou CPAPn
Necessidade de ≥ 30% de oxigênio e/ou VPP ou CPAPn
VPP: ventilação com pressão positiva; CPAPn: pressão positiva contínua nas vias aéreas nasais.
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restrito aos casos de edema pulmonar (hiper-hidratação). De‑ ve-se iniciar o tratamento com furosemida 1 a 2 mg/kg/dia, a cada 12 horas, por via endovenosa ou oral, se for possível, e mantê-la por 2 semanas ou até a estabilização do quadro res‑ piratório. Se for necessário continuar o tratamento por perío‑ do maior, recomenda-se a troca por hidroclorotiazida/espiro‑ nolactona, isoladamente ou em associação. Essa troca visa a evitar possíveis distúrbios hidreletrolíticos.2,3,13 Em casos agudos, geralmente associados com infecções pulmonares, em que os recém-nascidos apresentam sinais evidentes de broncoconstrição reversível, o uso de broncodila‑ tadores inalatórios é benéfico. O uso preventivo ou de rotina não apresenta benefícios e, nos casos de traqueomalácia e/ou broncomalácia associada, podem inclusive piorar o quadro.2,3 A cafeína é rotineiramente utilizada em unidades de tera‑ pia intensiva (UTI) neonatal para prevenir apneias da prema‑ turidade em neonatos entre 28 e 33 semanas de IG, e seu uso associa-se com diminuição de casos de DBP quando iniciada logo após o nascimento. Essa droga diminui a resistência das vias aéreas, aumenta o drive respiratório e a contratilidade dia‑ fragmática e apresenta efeito diurético adicional.2,3,13,14 O uso de corticosteroides em curto prazo comprovadamen‑ te reduz o processo inflamatório de pacientes com DBP, facili‑ tando a extubação e diminuindo o tempo de ventilação mecâ‑ nica. Todavia, em médio e longo prazos, ocasiona importantes efeitos colaterais, como parada do crescimento somático e ce‑ rebral (podendo levar à paralisia cerebral), sangramento gastrointestinal, glicosúria, hipertensão arterial sistêmica, hi‑ pertrofia cardíaca e supressão adrenocortical. Por isso, a tera‑ pêutica com corticosteroides para DBP deixou de ser rotina na maior parte das UTI neonatais, sendo utilizada em casos espe‑ cíficos, como pacientes em ventilação mecânica ainda instá‑ veis e com necessidade de elevadas pressões e concentrações de oxigênio. O uso de corticosteroides inalatórios não se mos‑ trou benéfico em pacientes com DBP.2,3,13 O uso de vasodilatadores, como o óxido nítrico inalatório e o sildenafil, foi testado em alguns ensaios clínicos randomiza‑ dos, com resultados controversos até o presente momento. Encontrou-se algum efeito em bebês com DBP e hipertensão pulmonar concomitantes. Não há evidências para o uso des‑ sas drogas.2,14,15 Por fim, estratégias que utilizam substâncias antioxidantes (como a superóxido dismutase e a N-acetilcisteína) ou subs‑ tâncias anti-inflamatórias (como o inibidor da alfa-1 protease) não mostraram, até o presente momento, evidências para seu uso rotineiro como tratamento da DBP.2,13 Prognóstico Alguns lactentes com DBP podem se tornar dependentes de oxigenoterapia por meses ou anos. Contudo, o mais comum é que isso ocorra nos 2 primeiros anos de vida. A taxa de interna‑ ção hospitalar é alta dentre os pacientes com DBP, principal‑ mente quando lactentes. A infecção por vírus sincicial respira‑ tório (VSR) é a principal causa de reinternação e, por isso, o uso de palivizumabe (anticorpo monoclonal contra o VSR) está in‑ dicado em crianças com menos de 1 ano de idade nascidas com
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28 semanas ou menos de IG. Além disso, quadros de sibilância recorrente e necessidade de uso de medicações inalatórias são frequentes. Até 80% desses lactentes demonstram limitação ao fluxo aéreo durante a infância e a adolescência. Alguns man‑ têm-se sintomáticos até a idade adulta.11,16 As sequelas neuroló‑ gicas em pacientes com DBP são comuns. Elas variam em gra‑ vidade, podendo ocorrer paralisia cerebral, déficit cognitivo, distúrbios na atenção e no comportamento, atraso na lingua‑ gem e nos desenvolvimentos motores grosso e fino.3,17 Prevenção Em virtude do mecanismo multifatorial na patôgenese da DBP, não existe um único medicamento ou estratégia totalmente eficaz na sua prevenção (Tabela 2), exceto a prevenção do tra‑ balho de parto prematuro.2 O uso de corticosteroide antenatal é eficaz em reduzir em 50% a síndrome do desconforto respiratório e as mortes neo‑ natais, mas falha em diminuir a incidência de DBP. O surfac‑ tante exógeno, por sua vez, reduz a morte neonatal por insufi‑ ciência respiratória, mas não previne o aparecimento de DBP, provavelmente por permitir que bebês mais imaturos sobrevi‑ vam e desenvolvam a doença.2 Ventilações mais gentis baseadas na hipercapnia permissi‑ va (PaCO2 = 50 a 55 mmHg) e com a fração inspirada de oxigê‑ nio sendo ajustada pela oximetria e gasometria arterial são fundamentais para evitar hipocarbia, volutrauma e toxicidade pela hiperóxia. Uma medida que se deve utilizar é evitar a en‑ tubação e a ventilação mecânica, preferindo o uso precoce do CPAP nasal. Se necessária administração de surfactante exó‑ geno, o pediatra deve optar pela técnica INSURE, isto é, técni‑ ca minimamente invasiva que consiste em 3 etapas: entuba‑ ção, administração de surfactante e extubação imediata.2,3,12 Embora a restrição hídrica na 1ª semana pós-nascimento não reduza a DBP, é importante evitar hiper-hidratação, infu‑ são de coloides e suplementação de sódio com natremia nor‑ mal. O aporte nutricional adequado e iniciado nas primeiras horas de vida é fundamental para permitir o crescimento pul‑ monar normal, bem como sua adequada maturação e reparo. Contudo, ganho de peso excessivo também pode ser danoso, sobretudo nos pequenos para a IG.2,3 Metanálises de estudos clínicos nos últimos 30 anos confir‑ mam que a colonização respiratória por ureaplasma é um fator de risco independente para DBP. Contudo, ainda não se esta‑ beleceu relação causal, pois a terapêutica com macrolídeos como azitromicina ou eritromicina não modificou a incidência de DBP.2,18,19 A vitamina A (retinol) é importante na manutenção da in‑ tegridade celular, na produção do surfactante e na promoção do reparo tecidual. Sua deficiência traz repercussões diretas na árvore traqueobrônquica. Há evidências de que neonatos de muito baixo peso ao nascer são deficientes em vitamina A e propensos a desenvolver DBP. Uma metanálise demonstrou pequena redução na incidência de DBP quando se suplementa vitamina A (5.000 UI, 3 vezes/semana, via intramuscular, por 4 semanas). Contudo, em razão do custo e da via de adminis‑ tração potencialmente dolorosa, seu uso torna-se difícil.2,14,19
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Tabela 2 Estratégias utilizadas na prevenção e no tratamento da DBP segundo as evidências existentes Benefícios comprovados para prevenção ou tratamento da DBP
Benefícios em curto prazo na função pulmonar, mas não na incidência de DBP
Estratégias sem benefício comprovado
CPAPn + INSURE Corticosteroide sistêmico pós-natal (pesar contra risco de paralisia cerebral) Cafeína Vitamina A Saturação de oxigênio entre 92 e 95% Estratégias ventilatórias protetoras
Diuréticos Broncodilatadores inalatórios
Macrolídeos Superóxido dismutase Inibidor da alfa-1 protease Óxido nítrico inalatório Sildenafil Corticosteroide inalatório
CPAPn: pressão positiva contínua nas vias aéreas nasais; INSURE: técnica minimamente invasiva que consiste em 3 etapas – entubação, administração de surfactante e extubação imediata.
Desafios Apesar dos avanços nos cuidados neonatais e das pesquisas voltadas para o tratamento da DBP, sua incidência continua inalterada. Intervenções genéticas e biológicas, como o uso de células-tronco, devem ser feitas precocemente para que a DBP seja primariamente prevenida. Infelizmente, o completo con‑ trole do principal fator de risco para DBP – o parto prematuro – parece estar longe de ser alcançado.20 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer os fatores associados ao aumento de risco de displasia broncopulmonar. • Conhecer as definições de displasia broncopulmonar e de doença pulmonar crônica. • Conhecer as morbidades associadas à displasia broncopulmonar. • Realizar o diagnóstico de displasia broncopulmonar. • Reconhecer a importância dos cuidados de suporte, como método ventilatório adequado, oxigenoterapia, nutrição, necessidades hidreletrolíticas e controle de infecções. • Conhecer as estratégias de tratamento e prevenção da displasia broncopulmonar que se mostraram eficientes em metanálises.
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SEÇÃO 22
Reumatologia COORDENADORA
Margarida de Fátima Fernandes Carvalho
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COORDENADORA E AUTORES SEÇÃO 22 REUMATOLOGIA
Coordenadora Margarida de Fátima Fernandes Carvalho Doutora em Pediatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Professora Associada do Departamento de Pediatria e Cirurgia Pediátrica da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Chefe do Serviço de Reumatologia Pediátrica do Hospital Universitário da UEL. Presidente do Departamento de Reumatologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Autores Andréa Valentim Goldenzon Reumatologista Pediátrica do Hospital Municipal Jesus. Especialista em Pediatria e Reumatologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Professora‑assistente de Pediatria da Fundação Técnico‑Educacional Souza Marques. Membro do Comitê de Reumatologia da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro (Soperj) e SBP. Presidente do Grupo de Trabalho de Febre Reumática da Soperj. Blanca Elena Rios Gomes Bica Especialista em Pediatria e Reumatologia pela UFRJ. Mestre em Pediatria pela UFRJ. Doutora em Química Biológica pelo Instituto de Bioquímica da UFRJ. Professora Associada da Disciplina Reumatologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFRJ. Chefe do Serviço de Reumatologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF)/UFRJ.
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Christianne Costa Diniz Especialista em Reumatologia Pediátrica pelo Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG)/UFRJ e em Pediatria pela SBP. Mestre em Clínica Médica pelo HUCFF/UFRJ. Membro da SBP e da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR). Presidente do Comitê de Reumatologia Pediátrica da Soperj – Triênio 2013‑2015. Christina Feitosa Pelajo Reumatologista Pediátrica do Hospital Pequeno Príncipe. Especialista em Pediatria pela SBP e em Reumatologia Pediátrica pela SBP/SBR. Mestre em Ciências pela Tufts University, EUA. Claudia Saad Magalhães Especialista em Reumatologia Pediátrica pela SBR/ SBP. Professora Titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” (Unesp). Claudio Arnaldo Len Professor Adjunto Livre‑docente da Disciplina Alergia, Imunologia e Reumatologia do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Membro do Núcleo Gerencial do Departamento de Reumatologia da SBP. Cristina Medeiros Ribeiro de Magalhães Especialista em Pediatria pela SBP e em Reumatologia Pediátrica pela SBR. Mestre e Doutora em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília (UnB). Professora da Faculdade de Medicina do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).
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Professora pesquisadora do Laboratório de Doenças Imunogenéticas Crônico‑degenerativas da UnB. Márcia Bandeira Especialista em Reumatologia Pediátrica pelo Instituto da Criança do Hospital das Clínicas (HC) da FMUSP. Mestre em Pediatria pela FMB ‑Unesp. Professora do Departamento de Pediatria da Universidade Positivo. Chefe do Serviço de Reumatologia Pediátrica do Hospital Pequeno Príncipe e Hospital Waldemar Monastier. Maria Teresa Ramos Ascensão Terreri Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da USP. Chefe do Setor de Reumatologia Pediátrica. Natália Ribeiro de Magalhães Alves Especialista em Dermatologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Sociedade Brasileira de Dermatologia. Professora da Faculdade de Medicina da UniCEUB.
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Sheila Knupp Feitosa de Oliveira Especialista em Pediatria pela AMB/SBP, em Reumatologia pela AMB/SBR e em Reumatologia Pediátrica pela AMB/SBP/SBR. Mestre e Doutora em Pediatria pela UFRJ. Professora Associada de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFRJ. Chefe do Serviço de Reumatologia Pediátrica do IPPMG. Silvana Brasília Sacchetti Especialista em Pediatria e Reumatologia Pediátrica da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (ISCMSP). Doutora em Pediatria pelo HC ‑FMUSP. Professora da Disciplina de Reumatologia Pediátrica do Departamento de Pediatria da ISCMSP. Simone Appenzeller Professora Associada Livre‑docente da Disciplina Reumatologia da FCM‑Unicamp. Doutora em Clínica Médica pela FCM‑Unicamp. Responsável pelo Ambulatório de Transição da Reumatologia Pediátrica do HC‑Unicamp.
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CAPÍTULO 1
FEBRE REUMÁTICA Sheila Knupp Feitosa de Oliveira
Definição A febre reumática (FR) é uma doença inflamatória que ocorre como manifestação tardia de uma faringotonsilite causada pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A (Streptococcus pyogenes), em indivíduos geneticamente predispostos. As manifestações da doença são variadas e acometem principal‑ mente as articulações, o coração e o sistema nervoso central (SNC). A agressão cardíaca pode causar lesões irreversíveis, sendo a cardiopatia reumática crônica (CRC) a principal causa de cardiopatia em menores de 25 anos.1 O modelo etiopatogênico considera dois fatores importan‑ tes: o hospedeiro suscetível e a cepa de estreptococo reumato‑ gênica. No entanto, na prática, não se dispõe de condições para reconhecer o indivíduo suscetível até que ele tenha o pri‑ meiro surto, e a tipagem de estreptococos isolados em diferen‑ tes populações mostram grande diversidade de subtipos. O período assintomático de 2 a 3 semanas, observado entre a faringite e o início dos sintomas da FR, sugere a participação de um processo de autoimunidade, baseado no mimetismo molecular, em que existiria uma homologia estrutural entre epítopos do estreptococo e do hospedeiro, induzindo a respos‑ ta imune humoral e celular.2 Epidemiologia A FR é a doença reumática mais comum no Brasil. Em países desenvolvidos, a incidência anual está em torno de 2 a 4 casos em 100.000 e, em países em desenvolvimento, esse número sobe para 80 casos/100.000. O primeiro surto de FR e suas re‑ cidivas ocorrem principalmente no paciente em idade escolar e no adolescente, sendo raros os casos diagnosticados antes dos 5 anos e depois dos 15 anos ou na vida adulta. Acomete ambos os sexos. Cerca de 15 a 20% de todas infecções de orofaringe são cau‑ sadas pelo estreptococo, embora 30 a 40% sejam assintomáti‑ cas. Admite-se que 1 a 3% dos casos de faringotonsilite estrep‑ tocócica evoluam com FR em indivíduos geneticamente predispostos.3
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Quadro clínico As manifestações clínicas da FR surgem em média após um pe‑ ríodo de latência de 2 a 3 semanas após a infecção estreptocóci‑ ca, geralmente em escolares ou adolescentes, e são bastante va‑ riadas. Para fazer o diagnóstico de FR, nem sempre se detecta a história de tonsilite e, apesar do nome, a FR nem sempre é acompanhada de febre ou de manifestações articulares. Por isso, um conjunto de sinais e sintomas relevantes associados a al‑ guns exames complementares compõem os critérios de Jones que facilitam o diagnóstico de um surto agudo de FR. Critérios maiores Os 5 critérios maiores são clínicos: artrite, cardite, coreia, nó‑ dulos subcutâneos e eritema marginado. A identificação de pelo menos 1 deles é essencial para o diagnóstico de FR. Artrite A artrite é definida pela presença de edema na articulação ou, na falta deste, pela associação de dor com limitação do movimento. A poliartrite é a forma mais frequente de apresentação da FR, ocorrendo em 75% dos casos. Acomete as grandes articulações (joelhos, tornozelos, punhos, cotovelos e ombros) e, ocasional‑ mente, também as pequenas das mãos e pés. A forma clássica é a poliartrite migratória (em média, 6 articulações), com evolu‑ ção assimétrica, permanecendo de 1 a 5 dias em cada articula‑ ção em um surto total que dura em média 1 a 3 semanas. Não é comum um grande aumento do volume ou eritema, mas a dor aos movimentos é intensa e, às vezes, incapacitante. Durante a evolução, enquanto a artrite atinge o máximo de sua sintomato‑ logia em uma articulação, ela está apenas começando em outra ou outras, dando a impressão de que a artrite está migrando. A monoartrite é rara, mas pode ser vista em crianças que recebem anti-inflamatórios não hormonais (AINH) precocemente, cau‑ sando supressão da inflamação, mas também tem sido relatada em pacientes em países com alta prevalência de FR. Uma característica importante é a rápida resposta aos AINH, que em 24 horas fazem cessar a dor, e em 2 a 3 dias, as
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demais reações inflamatórias. Isso explica a razão de não se prescrever AINH nos primeiros dias de artrite em casos duvi‑ dosos, impedindo que se observe o caráter migratório caracte‑ rístico e que facilita o diagnóstico. Cerca de 30% dos pacientes apresentam quadros articulares atípicos, como monoartrite, artrite aditiva, maior duração dos sintomas, presença de rigidez matinal e má resposta aos AINH.4 Alguns autores denominam esses quadros de artrite reativa pós‑ -estreptocócica, mas prefere-se denominar FR atípica, pois há possibilidade de surgir cardite em surto subsequente.
pode dar a falsa impressão de hemiplegia. Os movimentos são mais facilmente observados na face e nas extremidades dis‑ tais dos membros. O paciente não fica quieto quando se pede que olhe ou estenda os braços à frente do corpo ou acima da cabeça. O acometimento da musculatura bucofaríngea pode dar origem a distúrbios da fala (disartria) e da deglutição (dis‑ fagia). Os movimentos são exacerbados por estresse, esforço físico e cansaço e desaparecem com o sono. Às vezes, o pa‑ ciente consegue conter os movimentos durante alguns minu‑ tos, mas logo em seguida volta a fazer caretas, elevar as so‑ brancelhas, virar o rosto e a não controlar os movimentos dos membros. A coreia é uma condição autolimitada cuja evolução varia em média de algumas semanas a 6 meses, com média de 3 meses. Alguns casos evoluem por mais de 6 meses e são deno‑ minados coreia crônica. A coreia pode recorrer geralmente as‑ sociada a infecções intercorrentes, mesmo se o paciente esti‑ ver em uso correto de profilaxia e não for infectado por estreptococo. Classicamente, não deixa sequelas.
Cardite A cardite é o segundo critério maior mais frequente na FR. É a complicação mais grave e pode vir isolada ou associada a ou‑ tros critérios maiores. Costuma ser diagnosticada nas 3 pri‑ meiras semanas da fase aguda. Apesar de poder apresentar-se como uma pancardite, a ca‑ racterística diagnóstica é a endocardite, caracterizada por sopro audível em 40 a 50% dos pacientes com FR. Recentemente, surgiu um novo conceito, o da cardite silenciosa ou subclínica, que é a ausência de sopro e de alterações eletrocardiográficas, Nódulos subcutâneos na presença de alterações ecocardiográficas definidas e que au‑ Ocorrem em apenas 2 a 5% dos casos, geralmente em pacien‑ mentaria para mais 10 a 20% o número de casos diagnosticados tes com cardite grave. São estruturas arredondadas, de consis‑ tência firme, indolores, de distribuição simétrica, em diferen‑ como cardite.5 As válvulas mais acometidas na FR são a mitral e a aórtica. tes tamanhos (0,5 a 2 cm) e em número variável, podendo Durante o surto agudo, a lesão mais frequente é a regurgitação chegar a dezenas. A pele que os recobre é normal. Localizam‑ mitral, mas, diferentemente da regurgitação aórtica, tem maior -se em superfícies extensoras das articulações como cotovelos, tendência de regressão total ou parcial. Na fase crônica, ocor‑ joelhos, metacarpofalângicas, interfalângicas, em proeminên‑ rem as lesões estenóticas. cias ósseas do couro cabeludo, escápula e coluna (Figura 1). A pericardite ocorre em 5 a 10% e nunca vem como mani‑ Muitas vezes, só serão percebidos ao se procurar especifi‑ festação isolada. Apesar das evidências de envolvimento mio‑ camente por eles pela palpação das áreas onde costumam sur‑ cárdico em 20% dos pacientes, a insuficiência cardíaca geral‑ gir. O aparecimento dos nódulos geralmente é tardio em rela‑ mente é causada pela valvulite, e não pelo acometimento ção às outras manifestações, pois costumam aparecer após miocárdico. algumas semanas do início do surto agudo. A evolução é fugaz, A evolução da cardite dura em média 1 a 3 meses. O sopro em geral duram de 1 a 2 semanas, raramente mais de 1 mês, so‑ desaparece em 70% dos casos, mas em 30% surgirão sequelas, bretudo quando se inicia a corticoterapia para a cardite.6 como a cardiopatia reumática crônica. Eritema marginado Coreia O eritema marginado é bastante raro (1 a 3%) e também está as‑ A coreia da FR tem maior período de latência do que outros sociado à cardite. Surge geralmente no início da doença como critérios maiores, variando de 1 a 6 meses; por isso, a evidên‑ máculas circulares, ovaladas, róseas, que se expandem centrifu‑ cia da estreptococcia prévia pode não ser detectada. Cerca de gamente, deixando uma área central clara, com margem exter‑ 40 a 80% dos casos de coreia acompanham-se de cardite; 10 a na serpiginosa bem delimitada e contornos internos mal defini‑ 30% de artrite, mas há casos de coreia pura. dos. Não é pruriginoso, tem duração transitória (minutos ou As manifestações clínicas da coreia instalam-se de maneira horas), podendo aparecer em alguns dias e desaparecer em ou‑ insidiosa, geralmente em um período de 1 a 4 semanas, e ca‑ tros. Lesões isoladas tomam um aspecto anular enquanto a coa‑ racterizam-se pela presença de sintomas comportamentais (hiperatividade, desatenção, labilidade emocional e até tiques e transtorno obsessivo-compulsivo) e movimentos rápidos, incoordenados, arrítmicos e involuntários. A intensidade e a localização dos movimentos coreicos de‑ terminam prejuízos de função que podem se situar inicial‑ mente em um hemicorpo (hemicoreia) e depois generalizar‑ -se. Podem ser acompanhados de hipotonia muscular, que pode ser mais intensa que a hipercinesia e configurar o quadro de “coreia mole”. Se isso ocorrer em apenas um lado do corpo, Figura 1 Nódulos subcutâneos.
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Febre Reumática •
lescência de diversas lesões resulta em formas bizarras, circina‑ das, irregulares, com distribuição pelo tronco, abdome, porção proximal dos membros inferiores e superiores; geralmente não ultrapassam cotovelos e joelhos e não aparecem na face. Dificil‑ mente são percebidos em pacientes com pele escura. Pode per‑ sistir ou recorrer durante meses, mesmo quando outras mani‑ festações clínicas e laboratoriais já cessaram. Critérios menores Existem 4 critérios menores: febre, artralgia, aumento do es‑ paço PR no eletrocardiograma e aumento dos reagentes de fase aguda (velocidade de hemossedimentação – VHS e pro‑ teína C reativa – PCR). Febre A febre geralmente está presente quando há artrite e acompa‑ nha-se de mal-estar, prostração e palidez. Pode ser alta (38 a 39°C), mas diminui com o passar dos dias, podendo durar 2 a 3 semanas e desaparecer mesmo sem tratamento. A resposta aos anti-inflamatórios é muito rápida. Pacientes com cardite podem cursar com febre baixa, enquanto aqueles com coreia pura são afebris. Artralgia É a presença de dor articular sem limitar os movimentos e cos‑ tuma envolver as grandes articulações. Só pode ser contada como critério menor na ausência de artrite (critério maior). Poliartralgia migratória, assimétrica, envolvendo grandes arti‑ culações é sugestiva de FR. Intervalo PR Aumento do espaço PR no eletrocardiograma não é específico de FR; pode estar presente na FR com e sem cardite, mas tam‑ bém pode existir em pessoas saudáveis. O eletrocardiograma deve ser solicitado em todos os pacientes com suspeita de FR e, depois, repetido para registrar o retorno à normalidade. Reagentes de fase aguda As reações de fase aguda, como o aumento da VHS, PCR, alfa-1 glicoproteína ácida e a alfa-2 globulina, refletem apenas uma resposta inflamatória do organismo, que pode surgir em qual‑ quer condição infecciosa ou imunoinflamatória. Na FR, aju‑ dam no diagnóstico e no acompanhamento do processo infla‑ matório. Os critérios de Jones consideram os valores da VHS e da PCR. Evidência de estreptococcia prévia O diagnóstico de FR requer a comprovação de uma infecção estreptocócica recente, seja por história de escarlatina ou por comprovação laboratorial: cultura de orofaringe positiva para Streptococcus pyogenes ou presença de elevados títulos de an‑ ticorpos antiestreptocócicos, como a antiestreptolisina O (ASO) e a anti-DNase. A cultura positiva é o padrão-ouro do diagnóstico de infec‑ ção estreptocócica, mas como existe um período de latência de 7 a 21 dias antes do início dos sintomas e, muitas vezes, o
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paciente já usou antibióticos, a cultura frequentemente é ne‑ gativa. Testes rápidos para detecção de antígeno estreptocócico têm a vantagem da rapidez do diagnóstico e apresentam sen‑ sibilidade de 80% e especificidade de 95%. Na dúvida, se o teste rápido for negativo, recomenda-se a realização de cultu‑ ra de orofaringe.7 Os testes sorológicos que detectam anticorpos que denun‑ ciam a infecção pregressa não têm valor para o diagnóstico do quadro agudo da faringotonsilite. Infelizmente, na maioria dos laboratórios do país, o único anticorpo antiestreptocócico dosado é a ASO. A literatura mostra que apenas 80% dos pa‑ cientes com FR apresentam aumento da ASO, mas se outro anticorpo, como a anti-DNase, for dosado, esse percentual su‑ birá. Uma única verificação de ASO pode ser insuficiente se o pe‑ ríodo de latência for muito curto e os níveis iniciais forem nor‑ mais. Por esse motivo, recomenda-se a repetição do exame após 15 dias do primeiro teste. Na avaliação da ASO, é preciso atentar ao fato de que esses anticorpos cairão lentamente ao longo dos meses, em geral 3 meses, mas, em alguns casos, per‑ sistirão por anos e, assim, nem toda ASO alta indica infecção recente.8 Alguns lembretes sobre evidências de infecção estreptocó‑ cica: • somente 50% dos pacientes referem tonsilite prévia; • a cultura de orofaringe só é positiva em 20% dos casos; • testes rápidos de detecção de estreptococo são menos sensí‑ veis que a cultura; • culturas positivas podem indicar apenas estado de “portador”, e não infecção; • somente 80% dos casos têm elevação da ASO; • ASO começa a se elevar na primeira semana após a infecção estreptocócica, alcança o máximo em 3 a 4 semanas e demora meses para retornar ao normal; • os títulos de ASO não têm relação com a gravidade da FR; • nem toda ASO alta significa infecção recente; • uma curva de níveis ascendentes de ASO é indicativa de in‑ fecção. Diagnóstico O diagnóstico de FR é baseado nos critérios de Jones. A última revisão desses critérios ocorreu em 2015 e valoriza de modo di‑ verso alguns critérios, caso estejam presentes em populações de baixo e de alto risco (Figuras 2 e 3).5 A presença de 2 critérios maiores ou de 1 critério maior e 2 menores, apoiados pela evidência de infecção estreptocócica prévia, é suficiente para o diagnóstico do primeiro surto de FR. As recorrências podem ser diagnosticadas com a presença de 2 critérios maiores ou 1 critério maior e 2 menores ou 3 critérios menores.5 A coreia pura e a cardite indolente são exceções em que os critérios de Jones não precisam ser rigorosamente res‑ peitados. A raridade de outras etiologias para coreia torna a sua presença quase um sinônimo de FR, mesmo na ausência de ou‑ tros critérios ou da comprovação de estreptococcia prévia. Na cardite indolente, as manifestações clínicas iniciais são pouco
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Critérios maiores Poliartrite Cardite clínica/subclínica Coreia Eritema marginado Nódulos subcutâneos
Critérios menores Febre ≥ 38,5°C Poliartralgia ↑ Intervalo PR VHS ≥ 60 mm/1ª hora, PCR ≥ 3 mg/dL
Evidências de estreptococcia Cultura, ASLO, teste rápido e/ou história de escarlatina
Figura 2 Critérios de Jones para populações com baixo risco de FR.5
Critérios maiores Poli ou monoartralgia Cardite clínica/subclínica Coreia Eritema marginado Nódulos subcutâneos
Critérios menores Febre ≥ 38°C Monoartralgia ↑ Intervalo PR VHS ≥ 30 mm/1ª hora, PCR ≥ 3 mg/dL
Evidências de estreptococcia Cultura, ASLO, teste rápido e/ou história de escarlatina
Figura 3 Critérios de Jones para populações com médio/ alto risco de FR.5
expressivas e geralmente, quando o paciente procura o médico, as manifestações cardíacas podem ser a única manifestação clí‑ nica, já com exames de fase aguda e títulos de ASO normais. Diagnóstico diferencial O reconhecimento dos critérios maiores é a parte mais impor‑ tante para o diagnóstico. O diagnóstico diferencial da artrite é extenso. As principais exclusões são as artrites virais e as pós-disentéricas. Nesses casos, a infecção que deu origem deve ser pesquisada na histó‑ ria, no exame físico e em exames complementares. A artrite idiopática juvenil caracteriza-se pela presença de artrite crôni‑ ca (mais de 6 semanas de duração), mas que, nas primeiras semanas, pode ser confundida com FR. O lúpus eritematoso sistêmico juvenil (LESJ) e as vasculites, como a púrpura de Henoch-Schönlein e a vasculite por hipersensibilidade, tam‑ bém devem ser excluídas. As hemoglobinopatias SS e SC e as leucemias podem ser causas de sintomas articulares. Entre as causas infecciosas, a artrite séptica e a endocardite bacteriana podem causar artrite, impotência funcional e febre. A endocardite bacteriana representa um importante diag‑ nóstico diferencial, pois pode manifestar-se por sopro, artrite e febre. O LESJ também mostra manifestações clínicas em co‑ mum com a FR: artrite, febre, qualquer tipo de envolvimento cardíaco e até coreia. A presença de miocardite e/ou pericar‑ dite isoladas não apoia o diagnóstico de FR, devendo-se bus‑ car outros diagnósticos diferenciais. O eritema marginado deve ser diferenciado da reação a dro‑ gas, que costuma ser pruriginosa. Os nódulos subcutâneos
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não são específicos de FR e podem ocorrer em outras doenças, como a artrite idiopática juvenil (AIJ) e o LESJ. A coreia deve ser diferenciada dos tiques, da coreia do LESJ, da síndrome do anticorpo antifosfolípide e de outras condi‑ ções neurológicas. Tratamento O tratamento da FR tem dois objetivos: erradicar o estreptoco‑ co que ainda pode estar presente e tratar as manifestações clí‑ nicas da doença. As informações a seguir estão baseadas nas Diretrizes Brasileiras para o diagnóstico, tratamento e preven‑ ção de FR de 2009.9 Erradicação do estreptococo Todas as formas de apresentação da FR, inclusive a coreia pura, devem ser tratadas com antibióticos. A droga reco‑ mendada é a penicilina G benzatina (PB), mas outros anti‑ bióticos bactericidas podem ser usados, principalmente em pacientes alérgicos à penicilina, desde que sejam respeita‑ dos os intervalos corretos entre as doses e o período de admi‑ nistração compatível com a erradicação da bactéria. As cefa‑ losporinas de 1ª geração são alternativas aceitáveis, mas podem causar reações de hipersensibilidade. Nos pacientes com comprovada alergia à penicilina, a eritromicina é a dro‑ ga de escolha e, nos casos de alergia à penicilina e à eritromi‑ cina, a clindamicina e a azitromicina podem ser alternati‑ vas.9,10 Tratamento da artrite O ácido acetilsalicílico (AAS) é o AINH tradicionalmente usa‑ do, mas outros anti-inflamatórios, como o naproxeno, são efi‑ cazes e têm menos efeitos adversos. A dose do AAS é de 80 a 100 mg/kg/dia (máximo de 3 g/dia) fracionados em 4 toma‑ das diárias. A resposta da febre e da artrite é rápida, em 24 a 48 horas. Após 2 semanas de dose plena, ela deve ser reduzida e retirada em 4 semanas. A dose de naproxeno deve ser entre 10 e 20 mg/kg/dia, fra‑ cionados em 2 tomadas diárias, com duração similar ao AAS. Os corticosteroides não estão indicados na artrite isolada. Tratamento da cardite Todos os casos de cardite devem ser tratados com corticoste‑ roides. Se existir associação com artrite, os AINH são desne‑ cessários. A dose inicial de corticosteroide é 1 a 2 mg/kg/dia (máximo de 60 mg), por via oral ou o equivalente por via en‑ dovenosa. A dose plena deve ser mantida nas 2 a 3 primeiras semanas, podendo ser fracionada em 2 ou 3 vezes/dia. Poste‑ riormente, procede-se à redução das doses em 20% a cada se‑ mana, administradas em dose única pela manhã. De modo ge‑ ral, com esse esquema, a droga será retirada totalmente em cerca de 12 semanas na cardite grave e em 4 a 8 semanas na cardite leve, coincidindo com a normalização das provas de atividade inflamatória. Não há necessidade de introduzir AAS ao final do tratamento, como era recomendado no passado. Em casos graves, pode ocorrer uma resposta anti-inflama‑ tória mais rápida e eficaz com o uso de metilprednisolona por
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Febre Reumática •
via endovenosa, nas doses correspondentes às utilizadas por via oral ou superiores. Tratamento da coreia Os benzodiazepínicos e o fenobarbital podem ser utilizados. Na coreia grave, as drogas mais utilizadas são o haloperidol, o ácido valproico e a carbamazepina, cada uma com seus poten‑ ciais efeitos adversos. O haloperidol é iniciado na dose de 1 mg/dia em duas tomadas, com aumentos progressivos de 0,5 mg a cada 3 dias, até que se consiga remissão dos sintomas (máximo de 5 mg/dia). O ácido valproico tem ação mais lenta nos primeiros dias, mas é igualmente eficaz. É usado na dose de 10 mg/kg/dia, com acréscimos de 10 mg/kg/dia a cada se‑ mana até o máximo de 30 mg/kg/dia. A redução das doses deve ser iniciada após 3 semanas de ausência de sintomas. A dose de carbamazepina varia entre 7 e 20 mg/kg/dia. Os esteroides abreviam o curso da coreia e a resposta tera‑ pêutica; entretanto, essa prática não recebe uma adesão geral.
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dão e coriza são sugestivas de infecção viral e não necessitam de antibiótico. O tratamento dos casos suspeitos seria feito com a PB, uma droga de baixo custo, com a vantagem de ser dada em dose única, eliminando os possíveis problemas de adesão. As recomendações de outros antibióticos utilizados para a profilaxia primária são as mesmas do tratamento para erradicar o estreptococo na FR. Infelizmente, ainda existe um grande temor, injustificado, de alergia à penicilina. Reações do tipo vasovagal durante a ad‑ ministração da penicilina são comuns e devem ser diferencia‑ das da alergia. O Ministério da Saúde, por meio da Portaria n. 156 de 19 de janeiro de 2006, normatizou o uso de PB em toda a rede de saúde, determinando que todo paciente permaneça em observação por 30 minutos após a aplicação da injeção na uni‑ dade de saúde. Essa portaria contém um anexo que orienta a identificação e o tratamento detalhado das reações à penicilina.
Profilaxia secundária Há mais de meio século foi demonstrado que o uso contínuo Repouso de PB, penicilina oral ou sulfadiazina em doses diárias são efi‑ Repouso hospitalar ou domiciliar por um período inicial de 2 cazes na prevenção de novos surtos de FR. Entretanto, a PB semanas pode ser necessário. Na artrite, isso é difícil de ser por via intramuscular é superior em prevenir recorrências e, conseguido, porque o paciente melhora rapidamente com a em países de alto risco, como o Brasil, recomenda-se um inter‑ medicação. Nos casos de cardite moderada ou grave, o repou‑ valo de 3 semanas entre as doses. Pacientes até 20 kg devem so deve ser de 4 semanas e o retorno às atividades habituais receber 600.000 U, e os de peso superior, 1.200.000 U. deve ser gradual, baseado na melhora clínica e laboratorial. Na Se o paciente preferir a penicilina via oral, deve receber 2 coreia de grande intensidade ou com muita hipotonia, o re‑ doses diárias de 250.000 U. pouso é proporcional às manifestações clínicas. Nos casos de alergia comprovada à penicilina, a sulfadiazi‑ na é uma opção, em dose única diária de 500 mg em pacientes Prognóstico até 30 kg e de 1.000 g em pacientes com mais de 30 kg. Esses A FR é uma doença recorrente. Se não existisse a possibilidade pacientes devem fazer controle do hemograma a cada 15 dias de causar lesão cardíaca definitiva, não haveria a preocupação nos primeiros 2 meses de uso e, posteriormente, a cada 6 me‑ com a profilaxia, já que as outras manifestações da doença ses. Nos casos que desenvolvem leucopenia abaixo de 4.000 não deixam sequelas. leucócitos/mm3 e menos de 35% de neutrófilos, recomenda‑ -se a suspensão do medicamento. Prevenção Pacientes com comprovada alergia à penicilina e à sulfa po‑ No momento atual, dispõe-se de dois meios de prevenção: a dem receber eritromicina. profilaxia primária, representada pelo controle e tratamento das tonsilites estreptocócicas de toda a população, já que não Duração da profilaxia se sabe qual indivíduo é predisposto, e a profilaxia secundária, A duração da profilaxia é prolongada e depende da idade do que visa a impedir uma nova estreptococcia no indivíduo que paciente, do intervalo de tempo depois do último surto, da já teve um surto de FR, portanto, já identificado como indiví‑ presença de cardite no surto inicial, do número de recidivas, duo suscetível. Infelizmente, quase 50% das faringotonsilites da condição social e da gravidade da cardiopatia reumática re‑ são assintomáticas e não serão diagnosticadas e tratadas ade‑ sidual (Figura 4). quadamente, colocando os pacientes em risco. Profilaxia primária A melhora das condições de vida, a disponibilidade da penici‑ lina e a intensa propaganda de conscientização dos médicos e da população sobre os riscos da FR contribuíram para a redu‑ ção de novos casos de FR em vários países desenvolvidos. No Brasil, o programa de prevenção de FR recomenda que o diagnóstico de tonsilite estreptocócica seja feito em bases clínicas. Assim, sintomas agudos de febre, dor de garganta e linfonodos cervicais anteriores aumentados e dolorosos se‑ riam suficientes para o diagnóstico, enquanto tosse, rouqui‑
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Pacientes que tiveram cardite Cardite leve sem lesão residual OU insuficiência mitral leve: até 25 anos OU 10 anos após o último surto Lesão valvar residual moderada ou grave: até 40 anos ou por toda a vida
Pacientes que não tiveram cardite Até 21 anos OU 5 anos após último surto Ressalvas: serviço militar, profissionais de saúde, trabalho com escolares
Figura 4 Duração da profilaxia secundária com penicilina benzatina.
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Desafios A maior compreensão dos mecanismos patogênicos permite o progresso das pesquisas que visam à produção de uma vacina antiestreptococo. Atualmente, existem 12 modelos de vacinas, a maioria em fase pré-clínica. Os antígenos candidatos à con‑ fecção dessas vacinas têm como base a proteína M de estrep‑ tococo (regiões N-terminal e C-terminal) e outros antígenos. Deve-se considerar que a prevalência de sorotipos isolados em epidemias varia em diferentes partes do mundo, e uma vacina desenvolvida para uma população pode não ser adequada a outra. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender a epidemiologia e a etiopatogenia da febre reumática. • Saber quais populações têm risco para febre reumática. • Saber aplicar os critérios de Jones para o diagnóstico da febre reumática. • Saber que existem casos de artrite atípica que dificultam o diagnóstico na ausência de outro sinal maior. • Saber usar as medidas preventivas primárias e secundárias contra a febre reumática na população geral e em pacientes com febre reumática. • Saber conduzir o tratamento das manifestações agudas da febre reumática e a profilaxia.
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CAPÍTULO 2
ARTRITE IDIOPÁTICA JUVENIL Sheila Knupp Feitosa de Oliveira Silvana Brasília Sacchetti
Definição A artrite idiopática juvenil (AIJ) engloba as artrites crônicas, isto é, que persistem por mais de 6 semanas, com início até os 16 anos de idade. É um processo inflamatório crônico, autoi‑ mune, com manifestações extra-articulares que variam de acordo com o tipo de início. Etiologia É desconhecida; agentes desencadeantes multifatoriais como infecção, distúrbio psicológico e trauma, em crianças com pre‑ disposição genética, podem dar início ao quadro de artrite. Epidemiologia É a doença reumática crônica mais frequente na faixa etária pediátrica. Sua incidência nos países desenvolvidos varia de 1 a 22 por 100.000 crianças menores de 16 anos, e a prevalência é de 8 a 150 por 100.000. No Brasil, não há incidência e preva‑ lência.
membros, desencadeado ou exacerbado pela febre, banho quente e estresse; adenomegalia generalizada; serosite, pleurite ou pericardite; hepatomegalia e/ou esplenomegalia (Figura 1). A artrite, em geral, é poliarticular e simétrica, mais frequen‑ te em joelho, punho, tornozelo, quadril e coluna cervical. Os exames laboratoriais evidenciam o processo inflamató‑ rio: hemograma com anemia, leucocitose e plaquetose; provas de fase aguda, velocidade de hemossedimentação (VHS) e proteína C reativa (PCR) elevadas; fator reumatoide (FR) ne‑ gativo e anticorpo antinuclear (ANA) geralmente negativo. Para exclusão de outras causas de febre, são realizadas sorolo‑ gias para mononucleose, parvovírus B19 e citomegalovírus e culturas; mielograma e cintilografia óssea podem ser necessá‑ rias para exclusão de neoplasias. Radiografia de tórax e eco‑ cardiograma evidenciam as serosites.
Quadro clínico O critério proposto pela International League of Associations for Rheumatology (ILAR) classifica a AIJ em 7 tipos de início, com características semelhantes. Os tipos de início são definidos pelas manifestações clíni‑ cas e laboratoriais predominantes nos primeiros 6 meses de doença em: sistêmico, oligoarticular, poliarticular fator reu‑ matoide negativo, poliarticular fator reumatoide positivo, ar‑ trite relacionada à entesite, artrite psoriásica e indiferenciada. Início sistêmico É o tipo de início mais grave, representa 5 a 15% das AIJ, ocor‑ re em ambos os sexos e em qualquer faixa etária, sendo mais frequente entre 1 e 5 anos de idade. Caracteriza-se pela presença de febre acima de 39°C, com duração por mais de 2 semanas, sendo diária por pelo menos 3 dias e um ou mais dos seguintes fatores: exantema evanescente, róseo e macular, preferencialmente em tronco, axilas e raiz de
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Figura 1 AIJ de início sistêmico: exantema e adenomegalia (seta).
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O diagnóstico diferencial inclui: leucemia, linfoma, neuro‑ blastoma, infecções, imunodeficiências, febres periódicas, sarcoidose e outras doenças reumáticas. São fatores de pior prognóstico: idade de início abaixo de 6 anos, duração da doença por mais de 5 anos, persistência das manifestações sistêmicas, plaquetose por mais de 6 meses, ar‑ trite de quadril, diminuição do espaço articular e erosão óssea. Síndrome de ativação macrofágica (SAM) é a complicação mais grave, ocorrendo em 5 a 8% das AIJ sistêmicas, podendo ser desencadeada por infecções e medicações. O quadro clíni‑ co caracteriza-se pelo aparecimento de febre alta, de início sú‑ bito, não responsiva a antitérmicos, hepatoesplenomegalia, linfadenomegalia, insuficiência hepática, encefalopatia, coa‑ gulopatia e manifestações hemorrágicas. Na avaliação labora‑ torial, notam-se pancitopenia, aumento de transaminases, desidrogenase lática, triglicérides, ferritina e PCR, queda de albumina e VHS normal. O reconhecimento precoce e o conse‑ quente tratamento da SAM são fundamentais para a sobrevi‑ da (taxa de mortalidade acima de 20%). Início oligoarticular Artrite em até 4 articulações nos primeiros 6 meses de doença. Nesse tipo de início, duas categorias são descritas: oligoarticu‑ lar persistente, que não atinge mais de 4 articulações no curso da doença, e oligoarticular estendida, quando compromete mais de 4 articulações na evolução. É o tipo de início mais frequente, observado em 70 a 80% das AIJ. Predomina no sexo feminino e tem idade de início abaixo de 6 anos, com pico entre 1 e 2 anos. A artrite é assimé‑ trica, principalmente em membros inferiores, sendo joelhos e tornozelos as mais acometidas; monoartrite ocorre em até 50% dos casos (Figura 2). O diagnóstico diferencial, principalmente nos casos de mo‑ noartrite, inclui: tumores, trauma, infecção crônica, como tu‑
Figura 2 AIJ oligoarticular: monoartrite de joelho.
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berculose articular e sinovite vilonodular, e malformações congênitas. Uveíte anterior crônica, não granulomatosa e inflamatória é observada em aproximadamente 30% das crianças, com ANA positivo, em geral nos primeiros 7 anos de doença, mas pode preceder a artrite em 10% dos casos. Pode ser observada na AIJ oligoarticular, AIJ poliarticular FR negativo e na artrite psoriásica. A uveíte é insidiosa e assintomática e, raramente, apresenta dor ocular, lacrimejamento, fotofobia, embaçamen‑ to visual e queda da acuidade (Figura 3). Acompanhamento regular com oftalmologista realizando lâmpada de fenda, a cada 3 a 6 meses, de acordo com o tipo de início e a presença de ANA, possibilita o diagnóstico precoce, prevenindo a evolução para sinéquias posteriores, catarata, glaucoma e perda visual, unilateral ou bilateral. As alterações oculares podem não estar relacionadas à atividade articular. As provas de fase aguda (PCR e VHS) estão normais ou pouco elevadas, mesmo na presença de atividade articular. ANA é positivo em 70 a 80% dos casos, e o FR é negativo. São fatores de pior prognóstico: artrite de quadril, tornoze‑ lo e punho; intenso ou prolongado aumento nas provas de fase aguda e erosão ou diminuição do espaço articular. O quadro articular raramente evolui com deformidade. Nesse tipo de início, a principal sequela está relacionada ao comprometimento ocular. Poliarticular fator reumatoide negativo Artrite em 5 ou mais articulações durante os primeiros 6 me‑ ses de doença com FR negativo (Figura 4). Esse tipo de início corresponde a 20% das AIJ e predomina no sexo feminino em qualquer idade. A artrite afeta sobretudo joelho, punho, quadril e tornozelo, com distribuição assimétrica. Poliarticular fator reumatoide positivo Artrite em 5 ou mais articulações e FR positivo, em 2 dosagens com intervalo de 3 meses, durante os primeiros 6 meses de doença. Essa forma de início tem as características clínicas se‑ melhantes à artrite reumatoide do adulto, com maior risco de evoluir para erosão óssea e incapacidade funcional.
Figura 3 Uveíte crônica: catarata e ceratopatia em faixa.
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As provas de fase aguda podem estar normais ou pouco ele‑ vadas; antígeno HLAB27 é positivo em até 75% dos casos; ANA e FR são negativos. A ressonância magnética (RM) detecta alterações iniciais das articulações sacroilíacas, muitas vezes ainda não visíveis na radiografia simples (Figura 5). Erosão ou diminuição do espaço articular nos exames de imagem são fatores de pior prognóstico. Artrite psoriásica Artrite e psoríase ou artrite ou psoríase e pelo menos 2 dos se‑ guintes fatores: dactilite, edema de um ou mais dedos, onicólise ou unha em dedal ou psoríase em parente de 1º grau (Figura 6). Artrite psoriásica é rara, com predomínio em meninas, com dois picos de idade de início: pré-escolar ou adolescência. A artrite é oligoarticular, em articulações interfalângicas das mãos e pés. Sacroileíte ocorre principalmente nos adoles‑ centes. As provas de fase aguda podem estar normais ou pouco ele‑ vadas, ANA pode ser positivo, principalmente nos casos de uveíte, e FR negativo. Figura 4 Artrite poliarticular.
Esse tipo de início representa 3 a 5% das AIJ e predomina no sexo feminino, com média de idade de 9 a 11 anos. Qualquer articulação pode estar comprometida, exceto co‑ luna torácica e lombossacral. O envolvimento articular é simé‑ trico. Nódulos subcutâneos, vasculite e, raramente, insuficiência aórtica e síndrome de Felty são as principais manifestações extra-articulares. Fatores de pior prognóstico incluem artrite de quadril ou coluna cervical e erosão ou diminuição do espaço articular. Artrite relacionada à entesite Artrite e entesite (dor nos pontos de inserção do tendão no osso) ou artrite ou entesite e 2 dos seguintes fatores: história de dor inflamatória em articulação sacroilíaca e/ou coluna lombossacral; antígeno HLA B27 positivo; início em meninos maiores de 6 anos de idade; uveíte anterior aguda; história de espondilite anquilosante, artrite relacionada à entesite, sa‑ croileíte com doença inflamatória intestinal, síndrome de Rei‑ ter em parente de 1º grau. O grupo é heterogêneo e corresponde a 10 a 20% das AIJ. Predomina no sexo masculino, acima dos 6 anos, com pico de início aos 12 anos. As manifestações extra-articulares observadas são: doença inflamatória intestinal associada à artropatia; entesite; uveíte anterior aguda sintomática com hiperemia, fotofobia e dor re‑ corrente, em geral unilateral. Quando persistente, pode evo‑ luir com perda da visão. A artrite é oligoarticular e assimétrica; compromete inicial‑ mente as articulações periféricas de membros inferiores e, posteriormente, coluna lombossacral e torácica, podendo evo‑ luir para espondilite anquilosante.
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Artrite indiferenciada Artrite que não preenche critério de nenhuma categoria ou de mais de um tipo de início.
Figura 5 Ressonância magnética: sacroileíte, esclerose e irregularidade do ilíaco esquerdo.
Figura 6 Dactilite (artrite psoriásica).
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Diagnóstico (AINH), glicocorticoides e drogas modificadoras de doença É clínico e de exclusão, sendo necessário descartar as outras (DMARD) para controle das manifestações articulares e extra‑ causas de artrite crônica, incluindo infecções, trauma, neopla‑ -articulares. sia e outras doenças reumáticas. Os exames laboratoriais não são definitivos para o diagnóstico, somente evidenciam ativi‑ Anti-inflamatórios não hormonais dade inflamatória ou maior risco de erosão óssea quando FR é Os AINH agem no controle dos sinais inflamatórios e da febre, positivo ou de uveíte crônica nos casos de ANA positivo. mas não alteram o curso da doença, e somente em alguns pou‑ cos casos de oligoartrite podem ser usados como monoterapia. Tratamento A ação dos AINH é lenta, levando até 4 semanas para mostrar O tratamento deve ser individualizado de acordo com o subti‑ a sua eficácia. Somente os AINH aprovados para o uso em po de AIJ. crianças devem ser prescritos. A escolha pode ser orientada O objetivo atual é alcançar rapidamente a remissão da artri‑ pela eficácia, menor possibilidade de efeitos colaterais, forma te e das manifestações extra-articulares, prevenindo o apare‑ de apresentação e número de doses diárias (Tabela 1). Os prin‑ cimento de deformidades secundárias, a atrofia muscular e a cipais efeitos adversos dos AINH afetam o tubo digestivo e os osteoporose. Outros problemas que podem surgir durante a rins, entretanto, a ausência de queixa digestiva não significa doença, como déficit visual, distúrbios psíquicos, retardo de ausência de lesão endoscópica, e o uso de drogas inibidoras da crescimento, problemas ortodônticos e má escolaridade, de‑ bomba de prótons ajuda a reduzir esses efeitos adversos. Os vem ser abordados inicialmente de um modo profilático, pos‑ efeitos adversos renais são pouco frequentes e facilitados por sibilitando o crescimento físico e mental normais. condições que levam à diminuição do fluxo sanguíneo renal. A Nas duas últimas décadas, várias drogas foram introduzi‑ toxicidade pode surgir após muitos meses de tratamento segu‑ das no tratamento. Além da eficácia das drogas, o pediatra ro e eficaz e, por isso, uma monitoração com hemograma, aná‑ deve estar atento à segurança e, portanto, somente reumato‑ lise de urina e transaminases deve ser feita periodicamente. logistas pediatras, acostumados a tratar de doença tão com‑ Glicocorticoides plexa, estão habilitados a exercer essa tarefa. A avaliação de eficácia baseia-se no número de articulações Os corticosteroides podem ser utilizados sob a forma de colí‑ ativas observadas durante o exame físico, na presença e na du‑ rios na uveíte, como injeção intra-articular na artrite, ou siste‑ ração da rigidez matinal, na capacidade funcional avaliada por micamente, por via oral ou em pulsos endovenosos (EV), em meio de questionários específicos, na avaliação global do mé‑ casos de manifestações sistêmicas ou outras manifestações dico e do paciente por escalas visuais analógicas que conferem graves. um valor entre 0 e 10 (em que 0 é a ausência de dor e bom esta‑ Apesar da potente ação anti-inflamatória, geralmente se do geral), e uma medida laboratorial de inflamação que pode faz todo esforço para evitar a terapêutica sistêmica com glico‑ ser a VHS e/ou a PCR. Não existem critérios específicos para corticoides a fim de não tornar o paciente dependente da dro‑ avaliar as manifestações extra-articulares da AIJ sistêmica ga e minimizar a possibilidade de efeitos adversos. (febre, exantema, esplenomegalia, serosite, linfonodomega‑ Ao prescrever corticosteroides por via oral, o médico já pla‑ lia) nem para o acometimento axial e a entesite na artrite rela‑ neja o esquema de retirada. As principais indicações são: AIJ cionada à entesite. sistêmica para controle da febre persistente; serosite; síndro‑ Quando as drogas alcançam o objetivo de controlar todas me de ativação macrofágica; por curtos períodos na doença ar‑ as manifestações articulares e extra-articulares, diz-se que a ticular grave e incapacitante; na uveíte anterior crônica grave doença está inativa. Se permanecer assim por 6 meses, será que não responde à medicação tópica. O uso de altas doses de definida como AIJ em remissão com medicação. A remissão corticosteroides por via oral (1 a 2 mg/kg/dia) ou pulsos EV sem medicação só é considerada quando a doença permanece (até 30 mg/kg/dia – máximo de 1.000 mg) está indicado nos inativa por mais de 12 meses sem drogas. primeiros dias do envolvimento sistêmico grave, como pericar‑ dite ou miocardite, ou na síndrome de ativação macrofágica. Tratamento farmacológico Os principais efeitos adversos são o déficit de crescimento e O tratamento com drogas é somente uma das modalidades te‑ a osteoporose, maior suscetibilidade a infecções, síndrome de rapêuticas. São utilizados anti-inflamatórios não hormonais Cushing, hipertensão arterial, necrose avascular, obesidade, Tabela 1 AINH usados no tratamento da AIJ AINH
Dose/kg de peso
Dose máxima diária
Número de doses
Naproxeno
10 a 20 mg
1,5 g
2
Ibuprofeno
30 a 40 mg
2,4 g
3
Indometacina
1,5 a 3 mg
200 mg
3
Diclofenaco
2 a 3 mg
200 mg
3
Meloxicam
0,25 a 0,375
15 mg
2
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catarata, glaucoma, estrias e acne. Deve-se sempre considerar essas possibilidades e, na medida do possível, empregar medi‑ das profiláticas ou terapêuticas. Os corticosteroides empregados por via intra-articular têm sido uma excelente opção na artrite não responsiva aos AINH ou como uma medida intermediária para manter a função arti‑ cular, enquanto se espera a resposta com DMARD. As drogas de escolha são a triancinolona hexacetonida em grandes arti‑ culações e a metilprednisolona nas pequenas. A aplicação da injeção deve ser feita em condições assépticas, com o mínimo de dor, às vezes guiada por ultrassom, pois o procedimento não é isento de riscos, como: atrofia subcutânea, despigmen‑ tação da pele, infecção articular, calcificações intra ou periarti‑ culares. Drogas modificadoras de doença As DMARD são empregadas quando a inflamação sinovial não é controlada por AINH nem glicocorticoides e pode causar da‑ nos irreversíveis nas estruturas articulares e periarticulares. São drogas que afetam o sistema imunológico e só devem ser prescritas por especialistas em reumatologia pediátrica. Atualmente, há uma tendência à introdução precoce des‑ sas drogas e, com isso, uma melhora do prognóstico. A ação é lenta, podendo levar 2 a 4 meses para produzirem resposta clí‑ nica evidente (Tabela 2). Metotrexato
O metotrexato (MTX) é a DMARD mais usada. É eficaz em 66% dos pacientes, e essa resposta pode ser vista nas 4 primei‑ ras semanas. Costuma-se iniciar com a dose de 10 mg/m2/se‑ mana por via oral ou parenteral, chegando a 15 mg/m2/sema‑ na por via parenteral nos casos que não melhoraram após os 2 primeiros meses. A remissão da artrite com MTX é alcançada
Tabela 2 DMARD usadas na AIJ DMARD
Dose
Número de doses
Metotrexato
10 a 15 mg/m / semana
Sulfassalazina
30 a 50 mg/kg/dia
2 doses diárias
Leflunomida
10 a 20 mg/dia
1 dose diária
Ciclosporina
2 a 5 mg/kg/dia
2 doses diárias
2
1 dose semanal
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em 1 ano em 45 a 56% dos pacientes, mas, infelizmente, 60% recidivam após a suspensão da droga, embora 90% possam responder à reintrodução. Os principais efeitos adversos são náuseas e vômitos nos 3 primeiros dias após o uso da medicação, aumento de transa‑ minases e estomatite. Sulfassalazina
A sulfassalazina é empregada principalmente na artrite rela‑ cionada à entesite, mas está contraindicada em pacientes com deficiência da G6PD e na artrite sistêmica, em que tem sido as‑ sociada ao aparecimento de síndrome de ativação macrofági‑ ca. As principais reações adversas são exantemas, sintomas gastrointestinais e leucopenia. A dose é de 30 a 50 mg/kg/dia (máximo de 3 g) em 2 doses diárias. Leflunomida
A leflunomida parece menos eficaz que o MTX nas doses em que foi testada, mas é uma boa alternativa para os pacientes que se tornam intolerantes ou não são responsivos ao MTX. Não deve ser prescrita em adolescentes com possibilidade de engravidar. Ciclosporina
São poucos os estudos que analisaram a eficácia da ciclospori‑ na. A principal indicação é na artrite sistêmica, para o trata‑ mento da síndrome de ativação macrofágica. É uma droga mais tóxica, com vários efeitos adversos e deve ser monitora‑ da laboratorialmente, incluindo seus níveis no sangue. As doses preconizadas atualmente são de 2 a 5 mg/kg/dia. Terapia biológica Os agentes biológicos são os atuais alvos de pesquisa em tera‑ pêutica das doenças autoimunes. O mecanismo de ação varia, já que alguns inibem a ação de citocinas (TNF-alfa, IL-6, IL-1), e outros, a ação de linfócitos T e B. Anti-TNF-alfa Atualmente, três tipos de drogas anti-TNF-alfa já foram testa‑ das em crianças e estão disponíveis no Brasil: etanercepte (re‑ ceptor solúvel de TNF-alfa), infliximabe (anticorpo monoclo‑ nal quimérico humano-murino anti-TNF-alfa) e adalimumabe (anticorpo monoclonal humanizado anti-TNF-alfa) (Tabela 3).
Tabela 3 Principais tipos de drogas anti-TNF-alfa usados na AIJ Anti-TNF-alfa
Dose
Via
Intervalo
Idade mínima no Brasil
Etanercepte
0,4 mg/kg 0,8 mg/kg
SC
2/semana 1/semana
4 anos
Adalimumabe
< 30 kg = 20 mg > 30 kg = 40 mg
SC
A cada 2 semanas
4 anos
Infliximabe
3 a 6 mg/kg
EV
Semanas 0, 2, 6 e, depois, a cada 2 meses
6 anos
Abatacepte
10 mg/kg
EV
Semanas 0, 2, 4 e, depois, a cada 4 semanas
6 anos
Canaquinumabe
4 mg/kg/mês
SC
A cada 4 semanas
2 anos
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São drogas de ação rápida, muito eficazes mesmo em pa‑ cientes que não responderam ao tratamento com DMARD. Os efeitos adversos geralmente são variáveis (dor no local da apli‑ cação, infecções respiratórias leves ou moderadas), mas tam‑ bém têm sido associados a maior risco de tuberculose e outros efeitos que precisam ser bem conhecidos. Abatacepte O abatacepte é um inibidor da coestimulação da célula T (CTLA-4 Ig) e é eficaz na poliartrite, mesmo em pacientes que falharam com os medicamentos anti-TNF-alfa. Os efeitos adversos são leves, e os casos de infecções graves são raros. Anti-IL-1 Existem três drogas com ação anti-IL-1: anakinra (antagonista do receptor de IL-1), rilonacepte (receptor solúvel de IL-1) e canaquinumabe (anticorpo anti-IL-1). O canaquinumabe é o único anti-IL-1 comercializado no Brasil. A dose de 4 mg/kg/mês por via subcutânea é eficaz no controle das manifestações sistêmicas e articulares da AIJ sis‑ têmica, permitindo a redução e/ou retirada do glicocorticoide. Anti-IL-6 A droga com ação anti-IL-6 é o tocilizumabe. No Brasil, tem o uso liberado na AIJ sistêmica, mas também é eficaz na poliar‑ trite. No Brasil, dispõe-se da droga para infusão venosa e, atual‑ mente, está em estudo a administração por via subcutânea. Na AIJ sistêmica, a infusão venosa é aplicada a cada 2 se‑ manas, em doses que variam de acordo com o peso corporal: 8 mg/kg (> 30 kg) ou 12 mg/kg (< 30 kg). Os efeitos adversos mais comuns são infecção, neutropenia e aumento dos níveis das transaminases. Terapias excepcionais Imunoglobulina endovenosa A imunoglobulina por via EV na dose de 2 g/kg é usada oca‑ sionalmente nas manifestações sistêmicas da AIJ sistêmica, sobretudo para tratar a síndrome de ativação macrofágica. Rituximabe é um biológico anti-CD20 usado na artrite reu‑ matoide de adultos e pode ser benéfico na AIJ poliarticular FR positivo. Imunossupressores e imunomoduladores foram usados excepcionalmente na AIJ antes da era dos biológicos. A talidomida pode ser eficaz em artrite sistêmica grave, mas, além de ser teratogênica, pode causar neuropatia perifé‑ rica em quase 20% dos casos. O transplante de célula-tronco autóloga foi proposto como uma forma de terapia eficaz em doenças autoimunes graves, resistentes à terapia convencional, mas mostrou um alto índi‑ ce de mortalidade na AIJ (14%). Tratamento da uveíte O tratamento da uveíte é feito com a cooperação do oftalmolo‑ gista. O objetivo é eliminar todas as células da câmara anterior.
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O tratamento tópico é iniciado pelo oftalmologista com ci‑ cloplégicos e colírios de esteroides. Os primeiros visam a pre‑ venir o aparecimento de sinéquias, e os últimos, ao controle da inflamação. Glicocorticoides por via sistêmica (oral ou pulsos EV) po‑ dem ser necessários em casos mais graves. Se a inflamação não se resolveu em 12 semanas, deve ser considerado inicial‑ mente o uso de imunossupressores (MTX, ciclosporina) e, a seguir, o uso de biológicos. Terapia física A terapia física deve ser instituída nas fases iniciais da doença, com o objetivo de prevenir deformidades articulares, conser‑ vando a massa e a força musculares. Na fase aguda, um banho quente ajuda a aliviar a dor e a ri‑ gidez, preparando a criança para um programa de exercícios passivos ou ativos, se as condições permitirem. Dependendo da fase da doença, exercícios ativos, passivos e contra a resis‑ tência são empregados. Além dos exercícios programados pelo fisioterapeuta, as brincadeiras, que são fundamentais para o crescimento e o desenvolvimento, devem ser incentiva‑ das. Andar de bicicleta, de velocípede, nadar, tocar um instru‑ mento ou dançar são atividades que devem ser estimuladas, pois são agradáveis e trazem enormes benefícios à criança. As lutas e outras brincadeiras violentas e que requerem um con‑ tato corporal, forçando as articulações e aumentando a dor, devem ser desencorajadas. As órteses para punhos, joelhos e tornozelos ajudam a manter as articulações na melhor posição possível, prevenin‑ do deformidades. Palmilhas podem ser úteis nos casos de dis‑ crepância no comprimento dos membros. O terapeuta ocupacional é útil ao planejar os recursos ne‑ cessários à vida cotidiana dos pacientes gravemente afetados. Imunizações Devem ser feitas revisão e atualização das imunizações recebi‑ das pela criança por ocasião do diagnóstico antes de iniciar medicação imunossupressora. Considerações finais O atraso no diagnóstico e o tratamento tardio ou inadequado são fatores evitáveis associados com deformidades articulares, distúrbios de crescimento geral ou localizado e diminuição da densidade mineral óssea. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que a artrite idiopática juvenil é a principal causa de artrite crônica em pediatria. • Lembrar que as manifestações articulares e extra-articulares variam de acordo com o tipo de início. • Saber que artrite de quadril e diminuição do espaço articular ou erosão óssea são fatores de mau prognóstico. • Considerar que terapias com agentes biológicos parecem ser promissoras no tratamento da doença.
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Artrite Idiopática Juvenil •
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CAPÍTULO 3
LÚPUS ERITEMATOSO SISTÊMICO PEDIÁTRICO Andréa Valentim Goldenzon Claudio Arnaldo Len
Introdução O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é o modelo da doença autoi‑ mune, multissistêmica, crônica e potencialmente grave que pode se manifestar e evoluir de diversas formas. É uma doença carac‑ terizada por inflamação, produção de anticorpos antinucleares (ANA), como o anti-DNA de cadeia dupla (anti-dsDNA),1 além de deposição de complexos imunes fixadores de complemento que podem resultar em lesões a praticamente qualquer órgão ou tecido. Costuma evoluir com fases de ativação e de remissão. O LES corresponde a quase metade (45%) das síndromes lúpicas; o lúpus cutâneo corresponde a 50%; 4% são doenças mistas; e 1% divide-se entre o lúpus neonatal e o lúpus induzi‑ do por drogas.2 Cerca da metade dos casos de LES determina acometimento significativo de algum órgão e, na população pediátrica, a doença costuma ter uma evolução ainda mais grave, com alta mortalidade sem um tratamento adequado. Não são conhecidos aspectos fisiológicos ou genéticos que expliquem a variedade de fenótipos de doença, seja em popu‑ lações pediátricas ou em adultos com LES. As crianças apre‑ sentam doença mais aguda e têm envolvimento do sistema nervoso central (SNC), renal e hematológico mais frequente no momento do diagnóstico, em comparação com adultos. O American College of Rheumatology (ACR) propôs um critério classificatório cuja última atualização ocorreu em 1997, em que é utilizado LES pediátrico (LESp) e que contém 4 mani‑ festações cutâneas, 4 sistêmicas e 3 laboratoriais, demons‑ trando a abrangência do acometimento (Tabela 1).3 A suspeita diagnóstica é alta no caso da presença de 4 dessas 11 manifes‑ tações, mas, apesar de alta especificidade (93,4%), a sensibili‑ dade menor (76,6%) ainda permite falhas diagnósticas impor‑ tantes. Um novo critério classificatório, o Systemic Lupus International Collaborative Clinics (SLICC), que tem 11 critérios clínicos e 6 imunológicos, tem uma maior sensibilidade (98,7%) e uma especificidade ainda elevada (85,3%).4 Nos pa‑ cientes pediátricos, os critérios SLICC mostraram maior sensi‑ bilidade e precisão tanto na primeira visita como no primeiro ano de seguimento.5
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Tabela 1 Critérios para a classificação do lúpus eritematoso sistêmico do American College of Rheumatology Critério
Definição
1
Rash malar
Eritema fixo localizado na região malar, elevado ou plano
2
Rash discoide
Lesão eritematosa e infiltrada, com escamas queratóticas aderidas e tampões foliculares, que pode cursar com cicatriz atrófica e discromia
3
Fotossensibilidade
Eritema cutâneo decorrente de exposição ao sol, por história do paciente ou observação médica
4
Úlceras orais
Ulceração oral ou em região nasofaríngea, geralmente não dolorosa
5
Serosite
Pleurite e/ou pericardite
6
Artrite
Artrite não erosiva envolvendo 2 ou mais articulações periféricas
7
Alterações renais
Proteinúria, hematúria ou cilindrúria
8
Alterações neurológicas
Convulsão e/ou psicose
9
Alterações hematológicas
Anemia hemolítica com reticulocitose, leucopenia < 4.000/mm3 em duas ou mais ocasiões, linfopenia < 1.500/ mm3 em duas ou mais ocasiões, trombocitopenia (< 100.000/mm3)
10
Alterações imunológicas
Presença de anti-DNA nativo, presença de anti-Sm, achados positivos de anticorpos, teste positivo para anticoagulante lúpico
11
Anticorpos antinucleares
Título anormal de FAN por imunofluorescência ou método equivalente
A presença de 4 dos 11 critérios é altamente sugestiva de lúpus. Esses critérios são classificatórios, e não diagnósticos, ou seja, a suspeita ou o diagnóstico de LES deve ser feita mesmo na presença de 3 ou menos critérios, com base no julgamento médico.
Epidemiologia O LESp corresponde a 10 a 20% dos casos de LES e acomete preferencialmente as meninas (4,5 a 5:1), sobretudo na puber‑
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dade, raramente ocorrendo antes dos 5 anos. O aumento do estrogênio parece ser um dos fatores desencadeantes da doen‑ ça, mas essa relação ainda não foi bem estabelecida. Estudos norte-americanos evidenciam maior incidência em afro-ame‑ ricanos, e estudos de outros continentes sugerem predisposi‑ ção de não caucasianos.1 Etiologia e patogênese O LES é uma doença complexa caracterizada por desregulação tanto da imunidade inata quanto da adquirida. A hipótese atual sugere que exista uma deficiência do complemento, uma pro‑ dução exagerada de interferon alfa e uma eliminação defeituosa dos materiais intracelulares resultantes dos processos de apop‑ tose, permitindo sua apresentação como antígenos e causando produção excessiva e persistente de citocinas pró-inflamatórias. Há um forte componente genético que pode ser comprova‑ do pela maior incidência da doença em parentes de 1º grau (10%) e em gêmeos monozigóticos (24%), mas fatores am‑ bientais, como radiação UV, viroses, drogas, hormônios e substâncias químicas, também influenciam.1 Apresentação clínica Em aproximadamente 50% dos casos de LES, não há um com‑ prometimento orgânico significativo, apresentando-se com manifestações predominantemente constitucionais (mal-es‑ tar, fadiga, febre), cutâneas (rash) ou musculoesqueléticas (artralgia, mialgia), o que dificulta o diagnóstico e, apesar de não colocarem o paciente em risco, trazem significativo des‑ conforto e piora da qualidade de vida. Os demais pacientes apresentam lesões em diversos ór‑ gãos, especialmente rins, sistema nervoso e cardiovascular, e estão associadas a alta morbidade e mortalidade relacionadas às complicações da doença e dos tratamentos, como trombo‑ ses, doença cardiovascular, doença renal e infecção.6 O LESp é normalmente mais grave que o do adulto e deve sempre ser considerado em crianças com quadro de febre pro‑ longada (sem foco infeccioso), com serosites, visceromegalias, lesões cutâneas fotossensíveis, quadros neuropsiquiátricos de início recente, alterações da função renal, cardíacas ou mus‑ culoesqueléticas sem origem determinada. Pacientes com doenças inflamatórias crônicas sistêmicas devem ser investigados para doenças infecciosas, como a tu‑ berculose, muito prevalente em nosso meio, doenças linfopro‑ liferativas, endócrinas, renais, cardíacas e do SNC, assim como outras doenças do tecido conjuntivo, como vasculites sistêmicas, doença mista, esclerodermia, dermatomiosite, sarcoidose e doenças autoinflamatórias. As manifestações mais graves da doença se devem ao com‑ prometimento renal e do SNC, principalmente se estiverem associadas à síndrome antifosfolípide. Nefrite lúpica Cerca de 20 a 75% dos pacientes com LESp desenvolvem ne‑ frite, com 18 a 50% progredindo para estágio final de doença renal.7 Em 80 a 90% dos pacientes pediátricos, a nefrite ocorre no 1º ano do diagnóstico.
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Pacientes com nefrite proliferativa frequentemente evo‑ luem com síndrome nefrítica aguda (hematúria, hipertensão e proteinúria). A proteinúria pode variar de moderada a nefróti‑ ca e pode ser determinada pela relação proteína/creatinina em amostra urinária, sem necessidade de coleta de urina de 24 horas, mais difícil em crianças. A proteinúria é definida por ní‑ veis superiores a 0,2 mg/mg nessa relação, enquanto os níveis nefróticos superam 2 a 3 mg/mg.8 A doença membranosa ge‑ ralmente se manifesta por síndrome nefrótica (proteinúria grave, hiperlipidemia, hipoalbuminemia e edema). Dependendo da gravidade e da duração da doença, pode haver evolução para insuficiência renal crônica com suas di‑ versas sequelas, e a abordagem precoce pode resultar em mu‑ dança prognóstica significativa. Uma conduta diagnóstica mais agressiva, com realização de biópsia renal, pode estar justificada com qualquer alteração urinária ou se o tratamento já havia sido iniciado antes dessa avaliação. As biópsias po‑ dem ser repetidas para avaliar a resposta ao tratamento e eventuais modificações na terapêutica.9 Enquanto pacientes com baixos níveis de proteinúria e fun‑ ção renal preservada podem necessitar apenas de inibidores da enzima conversora da angiotensina, independentemente de seu efeito anti-hipertensivo, pacientes com níveis nefróticos de proteinúria ou disfunção renal têm indicação de imunossu‑ pressão baseada em estudos realizados em adultos, utilizando diferentes combinações de corticosteroides, micofenolato mo‑ fetil (MMF), ciclofosfamida, tacrolimo e ciclosporina A. A tera‑ pia de manutenção, também baseada em estudos em adultos, deve ser feita com MMF ou azatioprina. Hidroxicloroquina também pode ser utilizada. Os imunobiológicos (rituximabe, abatacepte) têm resultados ainda em fase de avaliação. A raça negra, o ritmo de filtração glomerular (RFG) menor que 60 mL/min/1,73 m2 e a proteinúria em níveis nefróticos no início da doença são considerados fatores de mau prognós‑ tico, bem como a resistência ao tratamento, as ativações re‑ nais, a hipertensão, o retardo no diagnóstico da nefrite e o pa‑ drão da biópsia com maiores escores de cronicidade ou de doença tubulointersticial. A evolução para falência renal ne‑ cessitando de diálise piora muito o prognóstico. Os pacientes com LESp têm mais que o dobro do risco de morte em diálise que pacientes sem LES.10 Os pacientes com LESp podem evoluir com outros tipos de lesão renal, como nefrite tubulointersticial e vários tipos de le‑ são vascular. Manifestações dermatológicas As lesões cutâneas típicas do LES são úteis no diagnóstico tan‑ to da variedade cutânea quanto da sistêmica da doença, e a maioria dos pacientes (85%) acaba por manifestá-las ao longo da evolução. O rash malar típico, em asa de borboleta, ocorre em cerca de 30% dos casos. É caracterizado por uma lesão maculopa‑ pular que inclui o nariz e a região maxilar, mas preserva as do‑ bras labiais. Outro rash típico, mais comum em adultos, é a le‑ são discoide; alguns pacientes podem apresentar o fenômeno de Raynaud.
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Os pacientes com LESp podem apresentar também mani‑ festações cutâneas de vasculites, livedo reticular e petéquias ou púrpuras secundárias a trombocitopenia; a alopecia é uma manifestação clínica frequente. O envolvimento da mucosa oral é comum, e o eritema de palato duro reforça o diagnóstico de lúpus. Evitar o sol, especialmente nas horas de pico, é o principal tratamento, mas corticosteroides tópicos e orais podem ser necessários. Tacrolimo também pode ser usado topicamente. A hidroxicloroquina auxilia no controle das lesões tópicas e da alopecia, mas dapsona e azatioprina também podem ser usadas. Manifestações musculoesqueléticas Pacientes com LESp frequentemente apresentam artralgia e mialgia, que se resolvem com o tratamento e, raramente, pro‑ vocam sequelas. Artrite não erosiva é comum nas pequenas articulações das mãos e pode envolver outras articulações pe‑ riféricas. A tenossinovite das mãos pode causar deformidade. Alguns pacientes iniciam o quadro com artrite crônica e evo‑ luem para o diagnóstico de LES algum tempo depois. A miosi‑ te está associada à elevação significativa das enzimas muscu‑ lares e geralmente responde bem ao tratamento. Manifestações neuropsiquiátricas A prevalência dessas manifestações no LESp é maior do que a observada na doença em adultos e varia de 20 a 95%. Além disso, os sintomas neurológicos costumam aparecer no início da doença. A cefaleia é a manifestação mais comum; geral‑ mente é de forte intensidade e contínua. Como essa dor pode significar também aumento de pressão intracraniana, altera‑ ções vasculares ou infecção, um exame neurológico cuidadoso e a avaliação por imagem podem ser necessários. O diagnóstico de psicose é feito em 3 a 24% dos pacientes com LES. Em um levantamento pediátrico, 12% apresenta‑ vam manifestações psiquiátricas e 9% apresentavam psicose, com alucinações visuais e auditivas,11 que devem ser tratadas com psicotrópicos e imunossupressão, sendo a ciclofosfamida a droga de melhor resultado. É importante observar que os pa‑ cientes com psicose lúpica respondem aos corticosteroides, enquanto aqueles com psicose pelo uso desses medicamentos desenvolvem os sintomas durante sua utilização. Aproxima‑ damente 20% dos pacientes apresentam sinais de depressão e/ou ansiedade. No entanto, não está claro se isso é um sinto‑ ma da doença ou um efeito adverso do tratamento medica‑ mentoso. Em algumas situações, está indicado suporte psico‑ lógico especializado. De modo geral, não há alteração laboratorial ou de imagem associada às alterações cognitivas, mas, na prática clínica, é necessário incluir essa investigação quando do surgimento de novas disfunções. A vasculite observada na doença cerebrovascular lúpica é tipicamente de pequenos vasos, invisível em angiografias. Por outro lado, as vasculites de vasos médios, em geral manifesta‑ das por cefaleia, convulsão e déficit neurológico, podem ser mais facilmente diagnosticadas por exames angiográficos.
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As convulsões são manifestações neurológicas comuns e podem estar associadas a doença cerebrovascular, hiperten‑ são, síndrome de encefalopatia posterior reversível (doença renal e hipertensão), causas metabólicas ou infecciosas. O acometimento do sistema nervoso periférico é raro. O tratamento do acometimento neurológico, após a exclu‑ são de causas não lúpicas, é de urgência e realizado com altas doses de corticosteroides e ciclofosfamida. A manutenção pode ser feita com azatioprina ou MMF, além de tratamento sintomático e profilaxia para cefaleia. Manifestações cardiovasculares A frequência destas manifestações no LESp é de 32 a 42%.12 A pericardite é a manifestação cardíaca mais comum, e o trata‑ mento em doença leve é realizado com anti-inflamatórios não hormonais (AINH) e/ou corticosteroides. Em casos mais gra‑ ves ou recorrentes, metilprednisolona endovenosa, associada ou não a imunossupressores, pode ser necessária. A miocardi‑ te é observada em 2 a 19% dos casos, e outras causas de dis‑ função miocárdica devem ser consideradas. Reforçam essa suspeita diagnóstica a presença de hipocinesia focal ou global ou redução da fração de ejeção ventricular esquerda no eco‑ cardiograma, na ausência de outras causas de miocardiopatia. O tratamento é realizado com altas doses de corticosteroi‑ des orais e/ou endovenosos. O uso de medicamentos imunos‑ supressores e biológicos associados à plasmaférese tem sido relatado. O tratamento deve ser monitorado com ecocardio‑ gramas periódicos. A endocardite é uma manifestação rara no LESp. O risco de doença arterial coronariana (DAC) é 4 a 8 vezes maior em pacientes com LES. Mulheres jovens com LES são 50 vezes mais propensas a ter um infarto agudo do miocárdio (IAM).13 DAC e IAM têm sido descritos em adolescentes e adultos jovens. O IAM muitas vezes não é reconhecido em pa‑ cientes jovens, mesmo na presença de angina, e os sintomas podem ser confundidos com complicações mais comuns de LES, como pericardite. Mesmo após o controle de outros fato‑ res de risco, como hipertensão, dislipidemia e fumo, os pa‑ cientes ainda têm uma incidência 3 vezes maior de placas co‑ ronarianas. Apesar de seguras em pacientes pediátricos, as estatinas não parecem ter efeito na progressão da doença e, atualmente, não são recomendadas nessa população.14 Manifestações respiratórias O envolvimento pulmonar é comum no LESp. Mesmo na au‑ sência de sintomas e achados radiológicos, 35 a 84% das crianças têm testes de função pulmonar alterados, com predo‑ mínio do padrão restritivo ou com prejuízo da difusão.15 A hemorragia alveolar é um evento relativamente raro, mas potencialmente catastrófico, com mortalidade de 50%. Deve ser abordada rapidamente com altas doses de corticosteroides e imunossupressores por via endovenosa; a plasmaférese também pode ser útil nesses casos.16 Os pacientes com LESp apresentam alto risco para a infec‑ ção, pois são imunodeprimidos em decorrência do tratamento e/ou da atividade da doença. Nos casos em que não há um
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foco definido de infecção ou em pacientes com novos infiltra‑ dos pulmonares e/ou sintomas respiratórios, devem ser utili‑ zados antibióticos de amplo espectro de maneira empírica. Recomenda-se a investigação intensa de um possível foco in‑ feccioso, com a coleta frequente de material (sangue e urina, entre outros) para a identificação de bactérias e fungos.
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Manifestações endocrinológicas As alterações do sistema endócrino são comparáveis em adul‑ tos e crianças com LES.21 A anormalidade endócrina mais co‑ mum no lúpus é o hipotireoidismo. A função tireoidiana deve ser avaliada no início da doença e anualmente, ou nos casos de sinais e sintomas do hipotireoidismo, como adinamia e so‑ nolência. Alguns pacientes podem desenvolver diabete tipo 2 secundário ao uso de corticosteroides ou, no paciente de alto risco, em associação ao ganho de peso. Pode ocorrer insufi‑ ciência suprarrenal por conta do uso prolongado de corticoste‑ roides ou de infarto secundário a síndrome antifosfolípide. Pode haver atraso de crescimento ou retardo de puberdade re‑ lacionados ao uso crônico de corticosteroides, particularmen‑ te em pacientes pré-púberes.22 Há relatos de disfunção ovaria‑ na ou testicular, incluindo esterilidade, secundária a agentes imunossupressores.
Manifestações hematológicas As manifestações hematológicas estão entre as mais frequen‑ tes no LESp, incluindo a anemia da doença crônica. A anemia hemolítica autoimune, com teste de Coombs positivo, ocorre em aproximadamente 10% dos pacientes com LESp e apre‑ senta boa resposta à corticoterapia.17 Outras causas de anemia devem ser consideradas, como a deficiência de ferro, as perdas gastrointestinais ou menstruais e a doença renal crônica. A leucopenia é muito frequente no LESp; a linfopenia é achado comum e geralmente não exige tratamento. Quando a linfopenia é importante (número de linfócitos < 500), deve-se Manifestações oculares investigar infecção subjacente por herpes vírus ou síndrome O achado ocular mais comum associado com LESp é a presen‑ de ativação macrofágica (SAM).18 A SAM é uma condição rara ça de pontos algodonados indicativos de vasculite retiniana, e potencialmente fatal que pode estar associada ao LES ou a frequentemente associada a perda visual. Podem ser observa‑ outras doenças reumáticas. Sua apresentação é muito seme‑ das episclerite e esclerite; ceratoconjuntivite seca é descrita lhante à apresentação do próprio lúpus, o que pode confundir em pacientes com síndrome de Sjögren secundária.23 o diagnóstico. Embora tenha sido descrita em todas as faixas etárias, a Achados laboratoriais e imunológicos SAM pode ser mais comum, ou pelo menos mais reconhecida, As provas de atividade inflamatória estão elevadas em propor‑ no LESp.19 A presença de ferritina alta em combinação com re‑ ção à atividade da doença ou na presença de infecção. A velo‑ ceptores solúveis de IL-2 altos e disfunção de célula NK ajuda cidade de hemossedimentação (VHS) e a proteína C reativa a distinguir as duas doenças. (PCR) elevam-se nos processos inflamatórios, como serosites A trombocitopenia é menos frequente, mas pode ser a apre‑ ou artrite; a PCR apresenta aumento mais significativo nos sentação inicial em até 15% dos casos pediátricos. Púrpura processos infecciosos. A ferritina sérica aumenta, embora não trombocitopênica imune (PTI) pode preceder o desenvolvi‑ tanto como na SAM. mento de LES por até 10 anos; nesses casos, os corticosteroi‑ Os ANA estão presentes em mais de 99% das crianças com des são a primeira linha de tratamento. LES, e anticorpos anti-dsDNA têm uma alta especificidade As anormalidades de coagulação são comuns no LES, e o para LES. A sensibilidade do anti-dsDNA para prever reativa‑ anticoagulante lúpico (ACL) está presente em 20% dos pa‑ ção da doença é de aproximadamente 50%, e esse anticorpo cientes. Apesar do nome, pacientes com o ACL não sangram, parece ser mais comum no LESp.24 A combinação de anti‑ mas, ao contrário, têm predisposição a eventos tromboembó‑ -dsDNA com anticorpos anti-C1q pode melhorar ainda mais a licos, em particular tromboses venosas. Pacientes com ACL capacidade de prever reativações da doença. Anticorpos con‑ positivo têm aproximadamente 25 a 30 vezes mais risco de tra antígenos nucleares extraíveis incluem anti-Sm, anti-Ro/ trombose do que os pacientes ACL negativos. A trombose ar‑ SSA, anti-La/SSB e anti-RNP. O anticorpo anti-Sm é altamen‑ terial tende a ser secundária a uma vasculite, que também é te específico para LES. O complemento é um dos mais impor‑ uma manifestação comum do LES, afetando sobretudo os pe‑ tantes testes laboratoriais no diagnóstico e no controle da ati‑ quenos vasos da pele. vidade do LES. CH50 e níveis de complementos C3 e C4 podem ser acompanhados. Durante o curso da doença, níveis Manifestações gastrointestinais de C3 e C4 normais têm bom valor preditivo negativo quanto à Estas manifestações são pouco frequentes no LESp e incluem atividade da doença. dor abdominal, diarreia e/ou vômitos. As causas da dor abdo‑ minal são variadas e podem estar relacionadas a infecções e Prognóstico efeitos adversos de medicação. Em adultos com LES, as mani‑ Historicamente, crianças e adolescentes têm taxas mais altas festações geralmente podem não estar associadas à doença: de morbidade e de mortalidade. As taxas de sobrevida em 5 hepatite, colecistite, úlceras e diverticulite. Já em crianças, as anos têm melhorado significativamente no LESp, com taxas manifestações mais frequentemente relacionadas ao lúpus de 30 a 40% em 1950 e de mais de 90% em 1980. Mesmo com são vasculite mesentérica, ascite/peritonite e pancreatite.20 A a melhora no diagnóstico e na qualidade do tratamento, a pancreatite aguda é uma manifestação rara (5 a 6%), mas po‑ mortalidade no LES de início na adolescência é quase o dobro tencialmente fatal. da observada nos adultos (19,4%:10,4%, p = 0,37).25
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As principais causas de morte em LESp incluem doença re‑ nal, ativações graves e infecções. Há controvérsia quanto à in‑ fluência da idade de início do LES no prognóstico. Entre os principais fatores de risco para pior prognóstico estão: sexo masculino, raça negra, baixo status socioeconômico, trombo‑ citopenia, danos de doença, problemas de adesão ao trata‑ mento, ser solteiro, baixo nível de escolaridade e presença de outras comorbidades.26 Em um estudo de 1.015 pacientes de LESp de 39 países, 40% das crianças apresentavam algum dano orgânico após 4 anos de doença, aumentando para 58% naqueles com mais de 5 anos de evolução.27 Os danos oculares e musculoesqueléti‑ cos foram estatisticamente mais comuns em crianças. Há uma tendência para taxas mais elevadas de qualquer tipo de dano da doença no grupo de início na adolescência quando comparado aos adultos. O dano renal e as manifestações neu‑ ropsiquiátricas são menos frequentes nos pacientes cujo apa‑ recimento da doença se deu na idade adulta.28 O índice de danos SLICC para LES, utilizado para a avalia‑ ção de danos orgânicos, foi validado em crianças. Um estudo mostrou que a atividade da doença, o uso de corticosteroides, a presença de antifosfolípides e a trombocitopenia foram asso‑ ciados com maiores danos. O uso precoce de imunossupresso‑ res reduziu o risco de dano.29 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer as principais manifestações do LESp. • Conhecer os critérios de classificação do LESp e sua utilização para o diagnóstico da doença. • Interpretar os exames laboratoriais solicitados em pacientes com LESp. • Conhecer as terapias propostas para a doença na infância e na adolescência.
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CAPÍTULO 4
DERMATOMIOSITE JUVENIL Claudia Saad Magalhães Simone Appenzeller
Definição A dermatomiosite juvenil é a principal doença entre as miopa‑ tias inflamatórias idiopáticas da musculatura esquelética (Ta‑ bela 1).1,2 A dermatomiosite juvenil é causada por uma vascu‑ lopatia envolvendo músculos esqueléticos, pele e tecidos subcutâneos, com acometimento sistêmico variável, gastroin‑ testinal, pulmonar e cardíaco. Manifesta-se clinicamente por exantema patognomônico e fraqueza muscular proximal si‑ métrica de cinturas pélvica, escapular e músculos anteriores do pescoço, com níveis séricos elevados de enzimas muscula‑ res, creatina-fosfoquinase (CPK), aldolase, desidrogenase láti‑ ca (DHL) e transaminases (TGO, TGP).
Epidemiologia A dermatomiosite juvenil tem incidência entre 2 e 5/1.000.000, baseando-se em registros norte-americanos e ingleses.3 Há evi‑ dências de que afeta crianças e adultos de forma diversa. Na criança, cursa com ulcerações cutâneas e calcinose. Pode ter envolvimento cutâneo predominante e muscular insidioso, sendo, nesse caso, denominada dermatomiosite amiopática ou dermatomyositis sine myositis. A dermatomiosite é muito mais frequente que a polimiosite (20:1). Há heterogeneidade clínica no acometimento cutâneo, na fraqueza muscular ou nas manifestações sistêmicas, como poliartrite, doença pul‑ monar intersticial ou acometimento gastrointestinal.
Tabela 1 Classificação clínica das miopatias inflamatórias idiopáticas2 Classificação
Características
Dermatomiosite
Lesões cutâneas típicas (pápulas de Gottron) nas superfícies extensoras de articulações, eritema palpebral em heliotropo, eritema periungueal e fotossensibilidade. Sintomas sistêmicos variáveis: disfunção de deglutição, disfonia, pneumopatia intersticial
Miosite associada a outra doença difusa do tecido conjuntivo (sobreposição)
Sinais e sintomas variam conforme a doença associada; a associação com esclerose sistêmica é a mais frequente
Polimiosite
Fraqueza muscular proximal. Ausência de acometimento cutâneo
Dermatomiosite amiopática
Lesões cutâneas típicas de dermatomiosite sem envolvimento muscular por 2 anos. Artrite e calcinose podem ser observadas
Miosite focal
Aumento de volume muscular doloroso na palpação. Raro em crianças. Mais comum em coxa e panturrilha
Miosite orbital
Forma de miosite focal envolvendo musculatura extraocular. Dor ocular que piora com movimento associada a diplopia, proptose e edema periorbital
Miosite associada a neoplasia
Raro em crianças, ocorre até 2 anos do diagnóstico de neoplasia. Associado a neoplasias sólidas, leucemia e linfoma
Miosite granulomatosa
Apresenta fraqueza muscular distal. Granuloma à biópsia
Miofasciíte macrofágica
Miosite do deltoide ou quadríceps, predominantemente macrofágica. Pode acompanhar hipotonia e retardo no desenvolvimento neuropsicomotor. Associação com vacinas contendo alumínio
Miosite eosinofílica
Eosinofilia periférica e infiltrado eosinofílico na biópsia muscular. Diferenciar de distrofias musculares (mutação da calpain-3)
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Diagnóstico Critérios diagnósticos e de classificação O diagnóstico apoia-se em critérios de classificação, inicial‑ mente propostos por Bohan e Peter,4,5 sendo o diagnóstico de‑ finido com 4 critérios (Tabela 2). Diante das dificuldades téc‑ nicas com a eletromiografia e a biópsia muscular, as imagens por ressonância magnética (RM) indicando inflamação mus‑ cular também podem ser utilizadas com finalidade de diag‑ nóstico. Sinais e sintomas principais A dermatomiosite juvenil caracteriza-se pela coexistência de alterações cutâneas, musculares, vasculite, calcinose e contra‑ turas articulares. As manifestações cutâneas são patognomô‑ nicas, incluindo o eritema palpebral violáceo denominado eri‑ tema em heliotropo (Figuras 1 e 2) e as pápulas de Gottron (Figura 3) nas superfícies extensoras das articulações. O erite‑ ma periungueal é indicativo de alterações na microvasculatu‑ ra na região transparente das cutículas (Figura 4). As contra‑ turas articulares e musculotendinosas ocorrem mais frequentemente por sinovite. A doença pulmonar intersticial, descrita em adultos, é rara na faixa etária pediátrica. Pneumo‑ nias aspirativas podem decorrer do acometimento de muscu‑ latura respiratória acessória e de limitações da mobilidade, sendo que 5% dos casos requerem suporte ventilatório. Disfa‑ gia por acometimento da musculatura de hipofaringe resul‑ tando em refluxo nasofaríngeo com risco de broncoaspiração pode ocorrer (Figura 5). A disfonia também é um sintoma co‑ mum. O acometimento gastrointestinal manifesta-se por dor abdominal, hemorragia digestiva, alterações de motilidade e colestase. Ulcerações intestinais mais graves associadas com peritonite, assim como obstrução intestinal subaguda e perfu‑ ração, foram descritas antes do uso sistemático de glicocorti‑ coides. O acometimento de sistema nervoso central (SNC) pode causar convulsões e encefalopatia refletindo uma vascu‑ lopatia disseminada. Complicações tardias, como lipodistrofia, calcinose cutâ‑ nea e cicatrizes de úlceras cutâneas, podem ocorrer. A sobre‑ posição de sinais de outra doença autoimune, como esclero‑ dermia, lúpus eritematoso sistêmico, doença mista do tecido
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conjuntivo e síndrome de Sjögren, pode ocorrer, sendo deno‑ minada dermatomiosite em sobreposição. Mecanismos etiopatogênicos A etiopatogênese é multifatorial, resultante de fatores genéti‑ cos e ambientais e de suas interações. Os autoanticorpos espe‑
Figura 1 Eritema e edema facial com eritema palpebral violáceo em heliotropo.
Figura 2 Eritema em heliotropo e telangiectasias palpebrais.
Tabela 2 Descrição dos critérios diagnósticos de Bohan e Peter4,5 para polimiosite e dermatomiosite Quaisquer dos achados dermatológicos típicos da dermatomiosite (eritema orbitário em heliotropo, pápulas de Gottron em superfícies extensoras) Fraqueza muscular simétrica de músculos da cintura pélvica, escapular e flexores do pescoço ou musculatura faríngea Níveis séricos de enzimas musculares elevados: CPK, aldolase, DHL, transaminases (TGO, TGP) Eletromiografia com unidades motoras polifásicas curtas, fibrilações, ondas positivas agudas, irritabilidade de inserção e descargas bizarras ou repetitivas de alta frequência Biópsia muscular com evidência de necrose de fibras musculares, fagocitose, regeneração com basófilos, grandes vacúolos no sarcolema e nucléolo proeminente, atrofia de distribuição perifascicular, fibras musculares de tamanho variável e exsudato inflamatório perivascular
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Figura 3 Pápulas de Gottron.
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Figura 4 Hiperemia periungueal, hipertrofia de cutículas e alterações capilares periungueais.
pecíficos que podem correlacionar-se com a atividade da doença, com a imunopatologia dos tecidos afetados, com infil‑ trado linfocitário tecidual e a resposta terapêutica aos agentes imunomoduladores. O haplótipo ancestral HLA B8 DRB1 *0301 é um fator de risco imunogenético conhecido. As infecções e a incidência sazonal sugerem o componente ambiental na patogênese. Há ativação de células dendríticas e regulação positiva de genes que induzem o interferon alfa do tipo I nos músculos e no san‑ gue periférico. As alterações histológicas típicas são edema de células en‑ doteliais capilares com obliteração do lúmen, atrofia perifasci‑ cular e inflamação perivascular. As úlceras cutâneas resultam de endarteriopatia de vasos dérmicos, bem como da vasculo‑ patia intestinal que se manifesta por hemorragia, pneumatosis intestinalis ou perfuração. Os estudos musculares em biópsia antes do tratamento evi‑ denciam agregados de células B maduras, principalmente CD19+ na ausência de células plasmáticas ou plasmocitoides. A expres‑ são aumentada da sequência terminal de ativação do comple‑ mento, o MAC (C5-9 membrane attack complex), assim como a diminuição de expressão de seu inibidor CD59, sugerem media‑ ção do complemento no processo de lesão endotelial. A apresen‑ tação histológica da polimiosite difere da dermatomiosite, pois há linfomonocitário muscular sem a vasculopatia típica da der‑ matomiosite. As calcificações distróficas ou calcinose associam‑ -se ao polimorfismo de TNF-alfa 308 e a inflamação persistente. Métodos diagnósticos Exames bioquímicos Os níveis séricos elevados das enzimas musculares CPK, aldo‑ lase, DHL e transaminases (TGO e TGP) são indicativos de ati‑ vidade inflamatória muscular, mas esses testes não são espe‑ cíficos. Outros fatores como trauma, atividade aeróbia e diferenças étnico-raciais podem causar elevações variáveis de enzimas em indivíduos normais, assim como os portadores heterozigotos de miopatias metabólicas ou distrofias muscu‑ lares. Os níveis de enzimas não apresentam correlação com força muscular, atividades da vida diária e histopatologia, po‑ dendo também estar normais na doença em atividade.
Figura 5 Refluxo nasofaríngeo por hipotonia na hipofaringe.
cíficos para miosites identificam grupos homogêneos quanto à apresentação clínica e resposta ao tratamento no adulto. Contudo, a identificação de anticorpos específicos para miosi‑ te é infrequente em crianças e os biomarcadores ainda são desconhecidos. A dermatomiosite resulta da ativação imunológica crônica em indivíduos geneticamente suscetíveis, após exposição am‑ biental específica. A hipótese de etiologia imunológica advém de associações genéticas e da presença de autoanticorpos es‑
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Eletromiografia A eletromiografia (EMG) é uma técnica eletrofisiológica que di‑ ferencia as alterações miopáticas das neuropáticas, por meio da condutividade elétrica muscular captada com a inserção de agu‑ lhas intramusculares. As alterações encontradas na dermato‑ miosite são típicas: atividade aumentada no local de inserção, com fibrilações e ondas agudas; descargas espontâneas bizarras e de alta frequência; potenciais de baixa amplitude e curta dura‑ ção em unidades motoras polifásicas. Essa tríade é característi‑ ca, sendo observada em 40% dos pacientes. Diagnóstico por imagem Na fase aguda, a RM muscular é útil para demonstrar a inten‑ sidade e a extensão da inflamação muscular. A intensidade do sinal nas sequências STIR (short tau inversion recovery) ou T2
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Dermatomiosite Juvenil •
com supressão de gordura refletem o grau de edema muscular, de fáscia e de tecidos subcutâneos. As imagens obtidas nas se‑ quências em T1 são úteis para demonstrar fibrose, atrofia e in‑ filtração gordurosa, sendo úteis na indicação precisa do local de biópsia. A radiografia simples é útil em casos crônicos para a identificação de calcinose. A capilaroscopia ou microscopia direta dos capilares pe‑ riungueais, por meio de uma fonte luminosa e lente de au‑ mento ou microscópio,6 é um método útil para avaliação e se‑ guimento da vasculopatia, sobretudo por ser um exame não invasivo. A microscopia capilar quantitativa correlaciona-se com as alterações histopatológicas. Autoanticorpos A presença de anticorpos antinucleares (ANA) é um achado frequente, mas inespecífico; os anticorpos anti-ENA e fator reumatoide são encontrados ocasionalmente. Os anticorpos específicos para miosite associam-se com síndromes clínicas definidas em adultos e, por isso, foram sugeridos como ele‑ mento de classificação para esse grupo etário. Incluem-se en‑ tre eles os antiaminoacil-RNA-t sintetase, como o anti Jo-1, o anti Mi2 e o anti-SRP (signal recognition particle). Os anticor‑ pos antissintetase associam-se com início agudo, fenômeno de Raynaud e doença pulmonar intersticial. Outros anticorpos chamados não específicos associam-se com síndromes de so‑ breposição e outras doenças do tecido conjuntivo, como anti‑ -PMScl, anti-U1-RNP, anti-Ro/La e anti-anexina XI, mas esses anticorpos específicos são raramente identificados em crian‑ ças, na prática clínica. Recentemente, foram identificados au‑ toanticorpos dirigidos a uma proteína p155/140kDa como alvo principal na dermatomiosite do adulto e juvenil. A especi‑ ficidade desse autoanticorpo é distinta e identifica crianças com manifestações cutâneas mais graves.2 Outros testes laboratoriais Os biomarcadores de inflamação, como a velocidade de he‑ mossedimentação (VHS) e a proteína C reativa (PCR) podem estar elevados, sobretudo nas formas com vasculopatia ulcera‑ tiva, em que se observa reação inflamatória sistêmica mais in‑ tensa. Os antígenos relacionados ao fator VIII (fator de Von Willebrand) podem estar elevados, refletindo a lesão endote‑ lial, mesmo quando as enzimas musculares se normalizam, mas esse teste também não é específico para a dermatomiosite. Biópsia muscular As avaliações possíveis na biópsia da musculatura esquelética são: histologia, histoquímica, imuno-histoquímica, microsco‑ pia eletrônica e testes de atividade enzimática. A combinação de histologia e análise histoquímica diferencia as alterações miopáticas inflamatórias, metabólicas e neuropáticas. As alte‑ rações histológicas mais típicas das miosites são: variação no tamanho e na forma das fibras musculares, com atrofia, rege‑ neração e fibrose ou substituição por gordura e infiltrado infla‑ matório nos vasos capilares do endomísio. Nas fases iniciais da dermatomiosite, há expressão aumentada de antígenos MHC de classe I como um evento precedente às alterações his‑
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tológicas clássicas. Isso ocorre de forma semelhante no mode‑ lo animal, em que camundongos transgênicos para expressão aumentada de antígenos MHC de classe I resultam em fenóti‑ po com fraqueza muscular, mionecrose e produção de autoan‑ ticorpos (ANA, anti-Jo-1), indicando um fenômeno central na etiopatogênese da dermatomiosite. Diagnóstico diferencial São inúmeras as doenças que resultam em sintomas muscu‑ loesqueléticos e fadiga muscular. Entre elas, há também um grupo de doenças raras, as miopatias metabólicas causadas por defeitos na síntese do glicogênio, glicogenólise ou glicólise. São comumente referidas como doenças de depósito de glicogênio e têm como consequência o acúmulo de glicogênio muscular. Os sintomas iniciam-se na infância com fadiga e intolerância aos exercícios, podendo evoluir na adolescência com cãibras, rabdomiólise e mioglobinúria, podendo ter apresentação mais tardia com fraqueza proximal. O diagnóstico diferencial com as miopatias inflamatórias pode ser difícil, pois os níveis de CPK são elevados, há alterações eletromiográficas de padrão miopá‑ tico, sendo necessária a biópsia com técnicas histoquímicas apropriadas para se fazer o diagnóstico correto. Há também nu‑ merosas alterações do metabolismo de ácidos graxos causando miopatia, resultando em doenças de depósito de lipídios e alte‑ rações metabólicas mitocondriais. Nas miopatias mitocon‑ driais, há frequentemente outros sintomas neurológicos, como oftalmoplegia externa progressiva e doença multissistêmica. As infecções podem causar sintomas miopáticos. A influenza pode manifestar-se por fraqueza e mialgia intensa nos mem‑ bros inferiores, elevação de CPK e evolução autolimitada. A fraqueza muscular pode ser o sintoma dominante em pacien‑ tes infectados pelo HIV como resultado de caquexia, neuropa‑ tia ou polimiosite decorrente das alterações imunológicas, to‑ xicidade da zidovudina ou infecções oportunistas, como por citomegalovírus, micobatérias, criptococos, Trichinella ou to‑ xoplasma. As neoplasias também devem ser consideradas na avalia‑ ção de todos os pacientes com sintomas miopáticos, pois as citocinas liberadas por células tumorais e a resposta imune de‑ sencadeada podem causar fadiga, fraqueza muscular e outros sintomas sistêmicos. Algumas drogas também podem causar sintomas miopáti‑ cos por mecanismos diversos. A procainamida e a D-penicila‑ mina causam lesão por mecanismo imunológico, os glicocorti‑ coides causam atrofia das fibras musculares do tipo 2, o álcool causa toxicidade direta, a colchicina e a hidroxicloroquina in‑ duzem miopatia vacuolar, e a cocaína e anfetaminas induzem a rabdomiólise e produzem isquemia. Todos os agentes hipolipe‑ miantes (estatinas) podem causar rabdomiólise, por alteração do metabolismo energético muscular e de qualquer dos agentes que alterem os níveis de potássio, como tiazídicos. Sódio, cálcio, magnésio ou fósforo podem causar fraqueza, mialgia e cãibras. As neuropatias periféricas podem ser diferenciadas pelo aco‑ metimento distal, distribuição assimétrica, reflexos tendinosos anormais e alterações sensoriais. Ainda, a miosite pode ser cir‑ cunscrita a alguns grupos musculares, como a miosite focal, a
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miosite orbitária, a eosinofílica, a granulomatosa e, nesses ca‑ sos, o diagnóstico por imagem e a histologia são essenciais. Avaliação clínica de atividade e dano Em razão do envolvimento sistêmico, com acometimento cutâneo, articular, cardíaco, pulmonar e gastrointestinal pre‑ sentes em 10 a 50% dos casos, é importante contar com ins‑ trumentos de avaliação global capazes de dimensionar a ativi‑ dade inflamatória e o envolvimento de todos os órgãos acometidos.7 Para o entendimento completo dos efeitos da doença e da terapêutica sobre o paciente, são necessárias as medidas de: • atividade, para dimensionar as alterações clínicas reversíveis com o tratamento; • sequelas ou danos ou alterações clínicas irreversíveis. Há diversos instrumentos em desenvolvimento para a avalia‑ ção de todas as dimensões da atividade inflamatória e das se‑ quelas acumuladas em pacientes com miopatias, incluindo os testes de força muscular e capacidade funcional. A medida da força muscular manual baseada na escala do Medical Research Council é o método clínico tradicional, sendo mais adequada com índices de diversos grupos musculares, mas a medida é li‑ mitada pela cooperação em crianças menores de 5 anos de idade. Há também testes funcionais de habilidades em exercí‑ cios apropriados para idade, como o Childhood Myositis Assessment Scale (CMAS), com uma pontuação que varia de 0 a 52, sendo os menores valores compatíveis com maior fraqueza muscular; é de grande utilidade para acompanhar o curso da doença e avaliar a melhora clínica após tratamento. Tratamento Glicocorticoides Os glicocorticoides8 melhoram sobremaneira a atividade infla‑ matória na maioria dos pacientes. Diversos regimes de trata‑ mento podem ser utilizados, a maioria com doses altas de prednisona ou prednisolona 1 a 2 mg/kg/dia. De um modo ge‑ ral, é mais efetiva quando introduzida precocemente no curso da doença, e a melhora da força muscular pode ser observada em 6 a 12 semanas. A infusão de metilprednisolona (15 a 30 mg/kg/dia) du‑ rante 3 dias sob forma de pulsos endovenosos pode ser utiliza‑ da nas fases iniciais do tratamento, nas manifestações sistê‑ micas graves ou quando a absorção estiver comprometida pelo processo inflamatório intestinal. O intervalo é de 2 a 3 se‑ manas entre os pulsos, com a associação de prednisona ou prednisolona oral em doses de 1 a 2 mg/kg/dia e redução len‑ ta e gradual da dose, de acordo com a resposta clínica. Cerca de 90% dos casos respondem ao tratamento, mas apenas 75% atingem a remissão após 3 anos. Os efeitos adver‑ sos principais em longo prazo são osteopenia, fraturas verte‑ brais e necrose óssea avascular. Drogas modificadoras do curso da doença Entre as mais utilizadas estão o metotrexato, a ciclosporina A, o micofenolato mofetil e a ciclofosfamida.7 O metotrexato (10 a 25
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mg/m2/semana) subcutâneo e a ciclosporina A oral (2 a 5 mg/ kg/dia) são preconizados nas fases iniciais do tratamento em associação com os glicocorticoides. Indica-se a ciclofosfamida em pulsos endovenosos mensais de 500 a 750 mg/m2 de super‑ fície corpórea para as formas com vasculopatia sistêmica e ulce‑ rações cutâneas ou com acometimento pulmonar intersticial. A gamaglobulina endovenosa em infusões mensais (1 a 2 g/ kg/dose) por 3 a 6 meses tem sido preconizada em associação com glicocorticoides e metotrexato em casos refratários. Os bloqueadores de anti-TNF (fator de necrose tumoral alfa), o antagonista de células B anti-CD20 (rituximabe) e o transplante de células-tronco autólogas foram considerados para os casos graves, resistentes ou não responsivos, nos quais o envolvimento sistêmico envolve risco de morte, contudo, não há estudos controlados que comprovem a sua eficácia. Tratamento de suporte O tratamento de suporte inclui anti-inflamatórios não hormo‑ nais (AINH) para a artrite, hidroxicloroquina (6 mg/kg/dia) e fotoprotetores para as manifestações cutâneas. As medidas protetoras gástricas, como os antagonistas H2 e os inibidores da bomba de prótons, são indicadas mediante atividade infla‑ matória da doença e complicações do tratamento com predni‑ sona e metotrexato. Há risco de perda de massa óssea e osteo‑ porose decorrente da imobilidade e da exposição prolongada à prednisona. Recomenda-se a administração profilática de vi‑ tamina D (400 a 1.000 U/dia) e cálcio (0,5 a 1 g/dia). O uso de bisfosfonatos deve ser considerado em casos com fratura, de‑ formidade de corpos vertebrais ou quando os resultados da densitometria óssea por DEXA (z escore) forem < 2,5 DP. O tratamento eficaz para a calcinose ainda é desconhecido. Em princípio, a instituição precoce do tratamento anti-infla‑ matório e imunossupressor constitui a melhor estratégia para a prevenção da calcinose. O uso experimental de bloqueado‑ res dos canais de cálcio (diltiazem), probenecida, warfarina, bisfosfonatos como o pamidronato endovenoso e terapêutica anti-TNF tem relatos isolados e séries de casos. A remoção ci‑ rúrgica de nódulos calcinóticos ulcerados ou infectados não é curativa, mas pode trazer alívio para pacientes com calcinose nodular ou tumoral. Fisioterapia e exercícios sob supervisão estão indicados para a prevenção de contraturas articulares e, no caso de fra‑ queza generalizada e envolvimento de musculatura respirató‑ ria, para a prevenção de broncoaspiração. A mobilização e os exercícios podem ser indicados mesmo na fase de inflamação ativa, para prevenir as limitações funcionais, fazendo as adap‑ tações necessárias durante a reabilitação. Desfecho e prognóstico O prognóstico da dermatomiosite juvenil teve mudanças im‑ portantes. Apesar da diminuição da mortalidade e das seque‑ las por calcinose, ainda se observa cerca de 1/3 dos pacientes recebendo medicação por doença em atividade por mais de 3 anos após o diagnóstico. A apresentação da dermatomiosite juvenil é bastante hete‑ rogênea. Alguns pacientes apresentam formas mais graves
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Dermatomiosite Juvenil •
com uma vasculopatia ulcerativa, enquanto outros apresen‑ tam um rash discreto e fraqueza muscular transitoriamente. O curso também é variável; alguns têm a doença autolimi‑ tada, outros requerem tratamento por muitos anos, apresen‑ tando complicações potenciais da doença em si ou dos diver‑ sos tratamentos necessários. O maior desafio enfrentado é a identificação dos pacientes que necessitam de tratamento imunossupressor e imunomodulador, pois um dos fatores determinantes do prognóstico é a instituição do tratamento adequado precocemente. A maioria dos estudos de desfecho definem as seguintes categorias para o curso clínico da derma‑ tomiosite, baseando-se na duração da atividade e das mani‑ festações clínicas: • monocíclico: casos que atingem a remissão clínica nos pri‑ meiros 36 meses depois do diagnóstico e não apresentam re‑ caídas; • policíclico: casos que atingem a remissão em qualquer ponto e, subsequentemente, apresentam sinais de reativação da doença, seja de seus aspectos cutâneos ou musculares; • crônico: casos que não atingem a remissão dentro de 36 meses. A escolha do limite de 36 meses é arbitrária, ainda que basea‑ da no regime de tratamento. Certos aspectos clínicos da der‑ matomiosite, como ulcerações cutâneas, calcinose, vasculo‑ patia com envolvimento sistêmico, disfagia e acometimento respiratório, têm sido propostos como fatores preditivos da gravidade do curso da dermatomiosite. Contudo, não há ne‑ nhum marcador sorológico ou genético capaz de identificar quem apresentará complicações extramusculares. Calcinose As calcificações distróficas ou calcinose desenvolvem-se em 30% dos pacientes, mesmo naqueles que receberam trata‑ mento oportuno. Os locais mais frequentemente acometidos são cotovelos, joelhos, dedos e nádegas. Aparecem de 1 a 3 anos do início dos sintomas e podem perpetuar-se por até 20 anos. Podem se depositar em placas ou nódulos no tecido sub‑ cutâneo ou de forma extensa e disseminada nos planos mus‑ culares, como um exoesqueleto (Figura 6), levando a rigidez e contraturas articulares com grande impacto funcional e cos‑ mético. A dor pode ser intensa, pela inflamação e comprome‑ timento de nervos periféricos, e a drenagem da calcinose li‑ quefeita deve ser diferenciada de celulite. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer e diagnosticar a dermatomiosite juvenil e a polimiosite. • Diferenciar a dermatomiosite entre as miopatias inflamatórias idiopáticas e outras doenças musculares pediátricas. • Interpretar os principais exames diagnósticos, como enzimas musculares, de imagem e de identificação da calcinose. • Reconhecer a indicação precoce do tratamento com glicocorticoide e metotrexato.
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Figura 6 Calcinose subcutânea e nos planos musculares das coxas.
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CAPÍTULO 5
ESCLERODERMIA JUVENIL Blanca Elena Rios Gomes Bica Christianne Costa Diniz
Introdução Esclerodermia significa “pele dura”, e essa é uma característica comum a um grupo de doenças que representa a 3ª doença reumática mais comum da infância, precedida da artrite idio‑ pática juvenil e do lúpus eritematoso sistêmico (LES) juvenil em países nos quais a febre reumática não é comum.1,2 As características fisiopatológicas comuns dessas doenças são a inflamação e a fibrose da pele. As duas formas mais co‑ muns são a esclerodermia localizada juvenil (ELJ) e a esclero‑ dermia sistêmica juvenil (ESJ). Na infância, a forma mais co‑ mum é a localizada, sendo rara a forma sistêmica cujas morbidade e mortalidade são significativas. Na ELJ, a fibrose fica geralmente restrita à pele e, na ESJ, a fibrose envolve ou‑ tros órgãos internos, como pulmões, coração, esôfago, intesti‑ no e rins. Embora algumas características da doença no adulto e na criança sejam diferentes, utiliza-se a mesma forma de classificação para os dois grupos da doença, de modo que a ex‑ tensão do acometimento cutâneo e o padrão de envolvimento dos órgãos internos formam a base para essa classificação (Ta‑ belas 1 e 2).1 Epidemiologia ESJ É uma doença rara e, no Brasil, não há dados epidemiológicos. Apenas 2 a 3% dos casos de ESJ ocorrem em pacientes com menos de 20 anos de idade.4 Ocorre 3 vezes mais em meninas que em meninos com idade igual ou superior a 8 anos. Em crianças menores, não há diferença entre os sexos.2 ELJ Também rara, mas 10 vezes mais frequente que a ESJ. Os pou‑ cos estudos sobre incidência e prevalência mostram uma taxa de 1:1 milhão. A forma linear é a forma predominante, compa‑ rada com a circunscrita, que, por sua vez, é a mais comum em adultos. Seis casos foram descritos em neonatos e foram de‑ nominados ELJ congênita, todos da forma linear, sendo 4 com lesões em “golpe de sabre”. Em um estudo retrospectivo multi‑ cêntrico com 750 crianças, o subtipo linear foi o mais comum (65%), seguido por morfeia em placa (26%), morfeia generali‑
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Tabela 1 Classificação da esclerodermia localizada3 Morfeia circunscrita (placa) Superficial – Uma ou mais “placas” redondas ou ovais circunscritas a epiderme e derme, frequentemente com pigmentação alterada, com halo eritematoso (lesão em anel) Profunda – Endurações profundas redondas ou ovais envolvendo a pele além do tecido subcutâneo, estendendo-se às fáscias e ao músculo subjacente. Muitas vezes, o envolvimento primário é no tecido subcutâneo sem envolvimento da pele Morfeia generalizada Quatro ou mais placas > 3 cm que afetam pelo menos 2 dermátomos dos 7 seguintes: cabeça, pescoço, extremidade superior esquerda, extremidade superior direita, extremidade inferior direita, extremidade inferior esquerda, tronco anterior e tronco posterior. Podem ser confluentes Geralmente ocorre no tronco e nos membros Características clínicas e histológicas similares a morfeia circunscrita Morfeia bolhosa Envolvimento bolhoso Pode ocorrer em outras formas de morfeia Morfeia linear É a forma mais frequente em crianças Tronco e membros – Enduração linear que envolve a derme, o tecido celular subcutâneo, às vezes o músculo e o osso. As lesões são tipicamente assimétricas e orientadas ao longo do membro afetado. Está associada com crescimento anormal do membro afetado Cabeça – As lesões lineares na face e no couro cabeludo recebem o nome de “golpe de sabre”. Algumas vezes envolvem o músculo e o osso subjacente Parry-Romberg ou atrofia progressiva hemifacial – Há perda de tecido de um lado da face, podendo envolver a derme, o tecido celular subcutâneo, o músculo e o osso. A pele é móvel Morfeia panesclerótica Envolvimento circunferencial do(s) membro(s) afetando pele, tecido celular subcutâneo, músculo e osso. Pode envolver outras áreas do corpo sem envolvimento de órgãos internos. É a forma menos comum em crianças e a mais debilitante, podendo ocasionar deformidades por alteração do crescimento do membro afetado Morfeia mista É a combinação de dois ou mais subtipos Condições associadas: líquen escleroatrófico e atrofoderma de Pasini e Pierini podem coexistir com os subtipos, mas não estão incluídos na classificação. Fonte: Consenso de Pádua, 2004 – reproduzido do Curr Opin Rheumatol, 2006.
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Tabela 2 Classificação da esclerodermia sistêmica Esclerodermia sistêmica limitada Fenômeno de Raynaud há vários anos Envolvimento da pele restrito a mãos, face, pés e antebraços (distribuição acral) Capilaroscopia típica de esclerodermia com esvaziamento das alças capilares Incidência de 10 a 15% de hipertensão pulmonar tardia, com ou sem calcinose na pele, doença gastrointestinal, telangiectasias (síndrome CREST) ou doença pulmonar intersticial Doença renal é rara Anticorpo anticentrômero em 50 a 60%, podendo ocorrer outros padrões em 5 a 10% (anti-Scl 70 e anti-PM/Scl) Esclerodermia sistêmica difusa Fenômeno de Raynaud seguido do aparecimento em 1 ano de alterações na pele, como afilamento das falanges distais, com ulcerações Envolvimento cutâneo acral e do tronco; atritos nos tendões Capilaroscopia típica com dilatação no início, dilatação e esvaziamento (fase ativa) e esvaziamento capilar (tardio) Presença precoce de doença renal, intersticial pulmonar, gastrointestinal difusa e miocárdica Anticorpos anti-Scl 70 em 30%, anti-RNA polimerase I, II ou III (12 a 15%) Esclerodermia sem esclerodermia Apresentação com fibrose pulmonar Nenhum envolvimento de pele Fenômeno de Raynaud pode estar presente Anticorpos podem estar presentes (anti-Scl 70, anticentrômero, ou anti-RNA polimerase I, II ou III) Esclerodermia induzida pelo ambiente Geralmente, uma distribuição difusa de esclerodermia da pele e uma história de exposição a um agente suspeito de causar a doença Síndromes de sobreposição (“overlap”) Características de esclerodermia coexistindo em outras doenças autoimunes Como lúpus eritematoso, artrite idiopática juvenil, dermatomiosite, síndrome de Sjögren e vasculites Pré-esclerodermia Fenômeno de Raynaud Alterações na capilaroscopia (iniciais ou ativas típicas) e evidência de isquemia digital Autoanticorpos anti-Scl 70, anticentrômero, ou anti-RNA polimerase I, II ou III
zada (7%) e profunda (2%). No entanto, 15% dos pacientes apresentavam características de sobreposição e foram defini‑ dos como sendo do subtipo misto. A idade média de apresen‑ tação foi de 7,3 anos.1,5-7 Etiologia e patogênese A causa da esclerodermia juvenil ainda é desconhecida, apesar do avanço significativo no entendimento dos possíveis meca‑ nismos envolvidos. A patogênese envolve múltiplas células do sistema imune adaptativo e inato, da vasculatura e do tecido conjuntivo. Os fibroblastos participam da patogenia fibrótica
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da ESJ, mas os fatores que determinam a ativação inapropria‑ da ou os mecanismos de controle dessa ativação ainda são desconhecidos.1 ELJ Assim como na esclerodermia de adultos, vários agentes etio‑ lógicos foram sugeridos como possíveis causadores da doença, inclusive drogas, toxinas ambientais e trauma local. Entretan‑ to, nada foi efetivamente comprovado. As drogas associadas a uma reação na pele do tipo esclerodérmica são bleomicina, er‑ gotamina, bromocriptina, pentazocina, carbidopa e vitamina K. História de trauma já foi reportada em 3 a 13% dos pacien‑ tes com morfeia, mas a patogênese de como o trauma contri‑ buiria para o aparecimento da lesão ainda não está clara.4,5 A natureza autoimune da doença é suportada por algumas observações. Há uma incidência aumentada de doenças au‑ toimunes em pacientes com ELJ, sendo as mais comuns a ti‑ reoidite de Hashimoto, o vitiligo, a doença celíaca e o diabete tipo 1. Em um estudo, 12% dos pacientes tinham história fami‑ liar positiva para doença autoimune.3 A associação com síndrome de Turner abriu novos horizon‑ tes quanto ao possível papel do moisacismo do cromossomo X. Dois mecanismos envolvendo o cromossomo X poderiam des‑ regular a resposta imune. As células T autorreativas falhariam na tolerância aos self antígenos codificados por um dos cro‑ mossomos X e nos tecidos-alvo; essas células autorreativas poderiam estimular as células B, expressando o antígeno X co‑ dificado no alvo, induzindo, portanto, uma resposta imune. Os genes X codificados também podem estar envolvidos na homeostasia do sistema imune, e a desregulação pode afetar as células B e T. Autoanticorpos também são encontrados na ELJ e em pa‑ rentes dos pacientes afetados. No entanto, parece que não há aumento no risco de acometimento em membros da família. Estudos com antígenos leucocitários humanos (HLA) com um grande número de pacientes fornecerá essa informação. ESJ Sem dúvida, alterações vasculares e imunológicas são centrais na patogênese da doença, porém, não está claro qual é o even‑ to inicial e como os mecanismos se desencadeiam para ampli‑ ficar e facilitar o desenvolvimento de fibrose da pele e dos ór‑ gãos internos, sendo a vasculopatia a característica da doença, e o fenômeno de Raynaud e as ulcerações digitais as suas ma‑ nifestações clínicas. Sabe-se que os 3 componentes envolvidos são a ativação imune, o dano endotelial (vascular) e a síntese excessiva de matriz extracelular com deposição de um colágeno estrutural‑ mente normal. As alterações endoteliais parecem preceder as outras carac‑ terísticas da ESJ, sendo a vasoconstrição mediada por endote‑ linas, óxido nítrico (ou fator relaxante derivado do endotélio), fator constritor derivado do endotélio (EDCF), mediadores neurais, humorais e inflamatórios, hipóxia e estresse físico. De 20 a 30% dos pacientes com ESJ possuem anticorpos anticélulas endoteliais, que são capazes de aumentar a regula‑
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ção da expressão das moléculas de adesão induzindo à apop‑ tose dessas células. Os fatores genéticos parecem aumentar a suscetibilidade do desenvolvimento da ESJ, embora mais es‑ tudos ainda sejam necessários para elucidação. Os autoanticorpos específicos produzidos pela ativação lin‑ focitária ainda têm papel indeterminado.2,8 Quadro clínico ELJ A Tabela 1 detalha, dentro da classificação, as características clínicas dos diferentes subtipos. A morfeia em placas (Figu‑ ra 1) é a forma mais benigna e ocorre mais frequentemente no tronco, e menos nos membros. As placas passam pelos se‑ guintes estágios: fase inflamatória eritematosa inicial, fase es‑ clerótica de enduração com inflamação e fase de atrofia da derme com amolecimento associada a hipo ou hiperpigmen‑ tação. Essas lesões costumam se resolver em 3 a 5 anos, embo‑ ra um fragmento possa permanecer. Algumas vezes, anos de‑ pois, outras lesões podem aparecer.
rodermia. A epiderme é fina e atrófica, lembrando líquen es‑ cleroatrófico. Queloide morfeia (Figura 3): também chamada morfeia no‑ dular, é rara e caracteriza-se por placas que lembram cicatrizes pós-traumáticas. Podem ser únicas ou múltiplas e extensas. Morfeia generalizada (Figura 4): quatro ou mais placas maiores que 3 cm são confluentes ou cobrem mais que três áreas anatômicas. Podem ser extensas causando desfiguração, contraturas e ulcerações. Forma linear: é a forma mais frequente em crianças. Endu‑ ração linear que envolve a derme, o tecido celular subcutâneo, às vezes o músculo e o osso. As lesões são tipicamente assimé‑ tricas e orientadas ao longo do membro afetado. Está associa‑ da com crescimento anormal do membro e outras complica‑ ções, como atrofia muscular, lesão no periósteo, osso e, ocasionalmente, na sinóvia (Figura 5). Lesões em golpe de sabre (Figura 6): anormalidades vascu‑ lares cerebrais podem ser encontradas, assim como lesões em
Outras formas Morfeia gutata (Figura 2): menos comum. As lesões são múlti‑ plas, pequenas (2 a 10 mm de diâmetro), hipopigmentadas e há também pápulas pigmentadas, com um mínimo de escle‑
Figura 3 Morfeia queloide.
Figura 1 Morfeia em placas.
Figura 2 Morfeia gutata.
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Figura 4 Morfeia generalizada.
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Figura 5 Forma linear em membro inferior direito.
Figura 7 Síndrome de Parry-Romberg.
Tabela 3 Manifestações extracutâneas da ELJ
Figura 6 Lesão em golpe de sabre.
olho, até mesmo alterações de dentição, refletindo uma exten‑ são do processo ao cérebro e à órbita. As manifestações neuro‑ lógicas nesses pacientes são convulsões, cefaleia e paralisia fa‑ cial. Parry-Romberg (Figura 7) parece ser o espectro mais grave da lesão em golpe de sabre, mas essa nomenclatura ain‑ da é controversa. Manifestações extracutâneas da ELJ Um quarto das crianças com ELJ podem desenvolver uma ou mais manifestações extra-articulares durante o curso da doença. A artrite é a mais frequente das manifestações extracutâ‑ neas (Tabela 3) e é encontrada na forma linear. Muitas vezes, a articulação envolvida não tem relação com o sítio da lesão. Essas crianças costumam apresentar o fator reumatoide posi‑ tivo, a velocidade de hemossedimentação (VHS) elevada e a presença de autoanticorpos. Os achados neurológicos nas lesões de face são epilepsia, cefaleia e poucos casos de alteração no comportamento. Acha‑ dos na ressonância magnética (RM) como calcificações, alte‑ ração da substância branca, malformações vasculares e altera‑ ções consistentes com vasculite foram descritas. Achados oculares encontrados também nas lesões de face foram anormalidades das pálpebras, uveíte, episclerite, altera‑ ções de refração, estrabismo paralítico e pseudopapiledema.
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Artrite
19%
Achados neurológicos
4%
Fenômeno de Raynaud
3%
Alterações oculares
3%
Achados vasculares: exantema ou trombose venosa profunda
2%
Doença gastrointestinal
2%
Doença pulmonar restritiva
1%
Anormalidades motoras do esôfago com refluxo foram des‑ critas em adultos e em crianças. Um estudo com 14 crianças encontrou 8 com alterações esofágicas, 7 delas com pHmetrias anormais e 5 com compro‑ vação endoscópica. Achados pulmonares com alterações restritivas ocorreram em crianças com lesões circunscritas, e não difusa, assim como nenhum outro envolvimento de órgão ou alteração de capilaroscopia. ESJ É a forma mais rara na infância, sendo subdivida em difusa e limitada. A forma difusa é mais comum, correspondendo a 9,2% das síndromes esclerodérmicas juvenis. Seu início é insidioso, e normalmente o intervalo entre o aparecimento da doença e seu diagnóstico é muito prolonga‑ do. Depois do início, o curso da doença pode apresentar perío‑ dos de doença ativa e inativa. A maioria das crianças apresenta alteração na pele das mãos e da face, com espessamento, progressivo endurecimen‑ to e afilamento seguido de atrofia e com a presença fenômeno de Raynaud. Outras queixas incluem artralgia, fraqueza mus‑ cular, calcinose, disfagia e dispneia. A alteração cutânea mani‑
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festa-se por edema das mãos, assintomático, limitando apenas os movimentos dos dedos sem deixar cacifo. Chama-se de fase inicial ou edematosa. Pode persistir por semanas ou meses. Em seguida, vem a fase fibrótica, com perda da elasticidade, endurecimento e aderência ao tecido subcutâneo nos dedos das mãos, pernas, antebraços e face, com alteração de pig‑ mentação. Nas mãos, recebe o nome de esclerodactilia, po‑ dendo haver reabsorção das falanges distais (Figura 8), úlce‑ ras cutâneas isquêmicas ou traumáticas de difícil cicatrização. A face adquire um aspecto característico, sem pregas, nariz afilado, olhos amendoados e dificuldade em abrir e fechar a boca (Figura 9). 1. Telangiectasias (Figura 10): são pequenas dilatações vascula‑ res de vasos da pele e de membranas mucosas, vistas como pequenas máculas. Ocorre na forma limitada. As alterações ungueais podem ser vistas a olho nu ou com oftalmoscópio, com capilares rarefeitos e com alças tortuosas e dilatadas. 2. Calcinose: são depósitos subcutâneos de sais de cálcio, locali‑ zados principalmente nas superfícies extensoras das articula‑ ções. Variam de pequenas a extensas áreas, causando limita‑ ção de movimento articular (Figura 11).
3. Poliartrite simétrica de pequenas articulações: ocorre em me‑
tade dos casos, lembrando a artrite idiopática juvenil (Figu‑ ra 12). Alterações tendinosas são percebidas como ruídos au‑ díveis com um estetoscópio ou palpando-se como se fosse um atrito parecido com o ranger de couro. Dor e fraqueza muscular podem ocorrer em 20 a 40% dos casos, às vezes com miopatia inflamatória. 4. Tubo digestivo: o esôfago é envolvido em seus 2/3 distais, com dilatação e redução da peristalse resultando em queixa de disfagia e dispepsia, pela incontinência do esfíncter (reflu‑ xo gástrico). A anamnese deve ser dirigida, pois raramente as crianças se queixam.
Figura 10 Telangiectasia em pálpebra. Nota-se também o nariz afilado e a falta de pregas na face.
Figura 8 Reabsorção das falanges distais.
Figura 11 Calcinose em cotovelo.
Figura 9 Fácies esclerodérmica.
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Figura 12 Poliartrite das interfalângicas proximais. Note que o fechamento das mãos é incompleto.
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5. Pulmão: o envolvimento pulmonar pode variar de assintomá‑
tico (doença parenquimatosa) até dispneia ou tosse seca. É uma das causas de óbito na doença. Hipertensão arterial pul‑ monar é o quadro mais grave e pode resultar da fibrose pul‑ monar ou ser uma entidade independente, levando a um pior prognóstico. 6. Coração: embora o envolvimento seja raro, é causa de morbi‑ dade nas crianças. A fibrose cardíaca pode levar a defeitos de condução, arritmias e disfunção ventricular. Derrame pericár‑ dico leve pode ocorrer. 7. Rim: a prevalência da crise renal em criança é descrita em 0,7 a 4% dos casos. Em uma série com 153 casos, 10% tiveram cri‑ se renal (proteinúria, hematúria e falência progressiva).2,9,10
Diagnóstico A forma localizada da esclerodermia costuma ser fácil de se re‑ conhecer clinicamente, e uma biópsia pode confirmar o diag‑ nóstico, mas, muitas vezes, é desnecessária. Os achados his‑ tológicos característicos incluem atrofia de apêndices dérmicos, achatamento dos septos fibrosos e espessamento, condensação e homogeneização do colágeno dérmico. Além disso, observa-se infiltrado intersticial e perivascular linfocíti‑ co precocemente detectado na derme e nos septos fibrosos, que se tornam espessados. Esses achados podem ser vistos em outras doenças do tecido conjuntivo. Na forma sistêmica, a microvasculatura dos órgãos internos, inclusive coração, pulmão, trato gastrointestnal e rins, podem apresentar altera‑ ções semelhantes.1 A investigação laboratorial de pacientes com esclerodermia localizada costuma ser totalmente normal, contudo, elevação discreta da VHS e da contagem de leucócitos e eosinófilos pode ser observada. Alguns pacientes apresentam fator reu‑ matoide positivo e/ou presença de anticorpos antinucleares. Não há anticorpos específicos que identifiquem pacientes com morfeia, esclerodermia linear ou esclerodermia associada a implantes de silicone, porém autoanticorpos anti-histonas H1 e H3 foram os principais antígenos em formas localizadas de esclerodermia demonstrados por ELISA e Western-Blot.8 A ELJ tem, em geral, curso benigno com estacionamento da progressão das lesões após alguns anos. As sequelas costu‑ mam limitar-se aos problemas estéticos (atrofias e discro‑ mias) e às dificuldades de cicatrização das áreas acometidas. De acordo com o antigo critério de classificação do Colégio Americano de Reumatologia (ACR) para adultos, o diagnósti‑ co de esclerodermia sistêmica (ES) difusa baseia-se na pre‑ sença de um critério maior (esclerodermia bilateral simétrica proximal às articulações metacarpofalângicas e metatarsofa‑ lângicas) ou dois critérios menores (esclerodactilia, ulcera‑ ções de polpas digitais e fibrose pulmonar intersticial). O fenômeno de Raynaud é o sinal clínico inicial da maioria dos pacientes portadores de ESJ, traduzindo a endarterite da microcirculação. Resulta de um espasmo arterial e pode ocor‑ rer meses ou muitos anos antes do início da esclerodermia. Esse fenômeno é raro na criança pequena, comum em adoles‑ centes e pode ocorrer em 1 a 4% da população. Queixas de pa‑ restesias em extremidades são frequentes nesses casos. O lei‑
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to vascular reduz-se progressivamente em virtude do espessamento da camada íntima, do tipo proliferativo, levan‑ do a um quadro isquêmico crônico. Embora a alteração vascu‑ lar pareça ser o evento patológico inicial, o envolvimento da pele e do tecido celular subcutâneo é o que chama a atenção para o diagnóstico. A capilaroscopia, método que detecta as alterações microvasculares do leito ungueal, os testes soroló‑ gicos autoimunes e a detecção precoce do fenômeno de Ray‑ naud têm auxiliado o clínico em um diagnóstico mais precoce. Em 2007, um comitê internacional desenvolveu um critério de classificação para a ESJ.9 De acordo com esse critério, uma criança com menos de 16 anos de idade é classificada como portadora de ES difusa se tiver o critério maior e pelo menos dois dos 20 critérios menores listados na Tabela 4. Para quantificação do acometimento cutâneo, vários méto‑ dos já foram tentados (ultrassonografia da pele, fotocópia das impressões digitais, medida da hipóxia cutânea), mas foi Rod‑ nan quem introduziu pela primeira vez um método semiquan‑ titativo para a determinação da extensão e da gravidade do en‑ volvimento cutâneo da ES. O escore cutâneo original consistia da avaliação de 26 áreas da superfície do corpo e, posterior‑ mente, foi simplificado com a diminuição do número de áreas para 17,11 com uma escala de graduação de 0 a 3 em relação ao endurecimento cutâneo, sendo o grau 0 a pele normal e grau 3 a pele inelástica. Esses escores vêm sendo utilizados nos dife‑ rentes centros a fim de acompanhar a história natural da doença e a resposta ao tratamento. Os locais de avaliação são:
Tabela 4 Critérios preliminares diagnósticos para a ESJ9 Critério maior Esclerodermia/enduração da pele das interfalângicas proximais Critérios menores Pele
Esclerodactilia
Vascular
Fenômeno de Raynaud Anormalidades capilaroscópicas Úlceras digitais
Gastrointestinal
Disfagia Refluxo gastroesofágico
Renal
Crise renal
Cardíaco
Aparecimento de hipertensão pulmonar Arritmias Insuficiência cardíaca
Respiratório
Fibrose pulmonar (TC/radiografia) Hipertensão pulmonar Alterações nas provas de função pulmonar
Musculoesquelético
Artrite Miosite Atrito em fricção de tendões
Neurológico
Neuropatia Síndrome do túnel do carpo
Sorologia
Anticorpos antinucleares Autoanticorpos seletivos para esclerodermia: anticentrômero, antitopoisomerase I, antifibrilarina, anti-PM-Scl, antifibrilarina ou anti-RNA polimerase I ou III
TC: tomografia computadorizada.
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face, tórax anterior, abdome, braços, antebraços, dorso, dedos das mãos, coxas, pernas e dorso dos pés. A avaliação laboratorial não auxilia o diagnóstico da ES, mas é útil no seguimento clínico e no acompanhamento das complicações. O hemograma revela anemia discreta e, rara‑ mente, leucopenia. As provas de atividade inflamatória (PAI) podem estar alteradas indicando atividade da doença. O fator antinuclear (FAN) pode estar positivo em até 98% dos pacien‑ tes, revelando padrão nucleolar, pontilhado ou homogêneo à imunofluorescência. Com o auxílio de modernas técnicas imunológicas, é possível detectar autoanticorpos em mais de 95% dos pacientes portadores de ES. Por razões desconheci‑ das, o nucléolo parece ter um papel importante na resposta imune da esclerodermia, porque todos os principais autoantí‑ genos da doença, mesmo as proteínas associadas ao centrô‑ mero, estão também associados ao nucléolo. Anticorpo antitopoisomerase 1 (ou anti-Scl 70) está geral‑ mente associado com a esclerodermia sistêmica difusa. Além de apresentarem esclerodermia generalizada, os pacientes apresentam manifestações orgânicas precoces, como crise re‑ nal, doença pulmonar intersticial e envolvimento intestinal. Os anticorpos antitopoisomerase 1 podem surgir em pacientes com fenômeno de Raynaud antes do desenvolvimento da ES, constituindo uma pista para o clínico no diagnóstico precoce. Os títulos tendem a permanecer estáveis. Anticorpos anticentrômero são encontrados quase exclusi‑ vamente no soro de pacientes com a forma limitada da ES, classicamente apresentando um curso mais benigno e protraí‑ do. Uma associação clínica descrita é a presença do anticorpo anticentrômero com artralgias, fenômeno de Raynaud, telan‑ giectasias, envolvimento pulmonar e uma idade mais precoce de início da doença. Foi demonstrada uma associação entre o anticorpo anticentrômero e o HLA DR 1. O anticorpo PM-Scl tem a característica de padrão nucleolar de fluorescência homogênea. Ocorre especialmente nas formas de superposição da esclerodermia com a dermatomiosite, mas também pode surgir na polimiosite ou na esclerodermia isola‑ damente. O antígeno está localizado no componente granular do nucléolo. Calcinose, fenômeno de Raynaud e artrite são fre‑ quentemente observados no grupo de pacientes com anti-PM‑ -Scl. Nenhum componente visceral grave foi observado, confe‑ rindo a esses anticorpos uma significância prognóstica. Quanto ao anticorpo antifibrilarina (U3-sn RNP), a deno‑ minação fibrilarina surgiu da localização do antígeno no com‑ ponente fibrilar denso do nucléolo na microscopia eletrônica. Os anticorpos anti-U3-sn RNP foram detectados somente em pacientes com esclerodermia e são mais frequentes em mu‑ lheres jovens com ES e com baixa frequência de envolvimento articular. Os anticorpos antifibrilarina são raramente vistos em outras doenças. Os anticorpos TH/TO estão presentes em 10 a 19% dos pa‑ cientes com esclerodermia limitada, em 11% dos pacientes com ES difusa e em 3% dos indivíduos com fenômeno de Ray‑ naud primário. A descrição original de TH foi em associação com o anticorpo anti-SS-A/Ro em paciente portador de LES.
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Os anticorpos anti-DNA polimerase (I, II, III) tendem a ocorrer juntos no mesmo paciente, parecem ser bastante es‑ pecíficos para a esclerodermia e geralmente identificam o pa‑ ciente com esclerodermia difusa. Há uma alta prevalência de acometimento de órgãos internos, principalmente coração e rins, e uma baixa taxa de sobrevida (média de 5 anos). Os anticorpos anti-KU (p70/p80) são considerados marca‑ dores da síndrome de superposição PM/ESC em pacientes ja‑ poneses com sensibilidade de 26% e especificidade de 99%.8 Capilaroscopia periungueal A capilaroscopia periungueal é um método valioso que de‑ monstra as alterações da microcirculação por meio da obser‑ vação microscópica dos capilares do leito ungueal, ao longo do seu maior eixo. As alterações da esclerodermia incluem ecta‑ sia e tortuosidade das alças capilares individuais entremeadas por áreas de diminuição ou desaparecimento das alças capila‑ res. A presença de capilares em arbusto ou ramificados é um achado importante dentro do padrão esclerodérmico. Essas formações capilares são descritas como uma tentativa de neo‑ formação, sendo mais frequentemente encontradas próximo às áreas de baixa densidade capilar. A capilaroscopia pode ser utilizada como auxílio diagnóstico de pacientes portadores de esclerodermia. Tratamento Não existe ainda proposta de consenso para o tratamento da esclerodermia, seja em suas formas localizadas, seja nas for‑ mas sistêmicas. Nas formas localizadas, várias medicações podem ser utili‑ zadas, porém nenhuma foi adequadamente avaliada por estu‑ do placebo-controlado. A opção terapêutica mais utilizada atualmente é o metotrexato 0,5 a 1 mg/kg em dose única se‑ manal, associado aos corticosteroides nos casos de atividade de doença mais intensa. A fototerapia com luz ultravioleta, com ou sem associação com psoraleno, mostrou eficácia em alguns estudos na melhora da espessura da pele. A orientação fisioterápica está indicada, sobretudo para prevenir deformidades nos pacientes com comprometimento articular e/ou periarticular. A conduta terapêutica na forma sistêmica da esclerodermia deve incluir medidas gerais como: alimentação proteico-caló‑ rica adequada, orientações quanto aos cuidados com a pele, evitar substâncias irritantes sobre a pele, uso de cremes lubri‑ ficantes várias vezes ao dia, proteção contra o frio e proteção das úlceras cutâneas para evitar infecções secundárias. A hi‑ dratação e a fotoproteção da pele devem ser incentivadas. A terapia medicamentosa será direcionada de acordo com a manifestação clínica que o paciente apresenta. Em geral, as drogas visam a controlar o acometimento vascular com uso de vasodilatadores como a nifedipina, nos pacientes com fenô‑ meno de Raynaud. O uso de imunossupressores pode ocorrer em situações específicas, como no acometimento pulmonar. Os corticosteroides devem ser evitados, pelo aumento do risco de provocar crise renal esclerodérmica.
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Esclerodermia Juvenil •
Curso e prognóstico O prognóstico da doença localizada (mais comum nas crian‑ ças) tem curso benigno, mas pode recidivar e, por vezes, evo‑ luir com lesões muito deformantes e incapacitantes. A expan‑ são das lesões antigas, o aumento da temperatura local, o aparecimento de halo de hiperemia e de novas lesões ajudam a sinalizar a presença de atividade de doença. A ELJ pode coe‑ xistir com outras doenças, como artrite idiopática juvenil, LES e síndrome de Sjögren.3 Quanto à forma sistêmica, acredita-se que o prognóstico seja igual ou pior do que no adulto. As causas de morte mais comuns são as complicações cardiopulmonares. Apesar da alta mortalidade da crise renal esclerodérmica, ela tem se tor‑ nado menos frequente, pela melhoria das medidas terapêuti‑ cas para o controle da hipertensão arterial e pulmonar, a partir da utilização de drogas com atuação alvo-específicas.
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3. 4. 5.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer as formas mais frequentes de esclerodermia na infância. • Reconhecer as formas de esclerodermia localizada juvenil, que são as mais frequentes na criança. • Conhecer as formas de comprometimento sistêmico na esclerodermia sistêmica juvenil. • Solicitar exames subsidiários para distinguir os vários tipos de apresentação da doença na infância.
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Referências bibliográficas
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Tratado de Pediatria 4ed.indb 1799
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CAPÍTULO 6
VASCULITES Margarida de Fatima Fernandes Carvalho
Introdução As vasculites são doenças sistêmicas caracterizadas por infla‑ mação e necrose de vasos de qualquer calibre, levando a espes‑ samento, estenose e dilatação com consequente lesão tecidual. O tamanho dos vasos afetados, a extensão da lesão vascu‑ lar e a patologia subjacente determinam o fenótipo da doença e sua gravidade. Pode ser primária ou secundária, quando as‑ sociada a outras doenças (colagenoses, infecções, neoplasias) e uso de medicamentos. O diagnóstico diferencial das vasculites é feito com várias condições clínicas, principalmente aquelas com envolvimento de múltiplos órgãos e sistemas. A terapia e o prognóstico dependem da extensão e da gravi‑ dade do comprometimento de órgãos vitais e da progressão da doença. Por acometer vasos de diversos tamanhos, esse grupo de doenças apresenta-se com grande diversidade de manifesta‑ ções clínicas, laboratoriais, histológicas e de imagem. Achados clínicos inespecíficos e alterações laboratoriais (Tabelas 1 e 2) podem sugerir o diagnóstico de vasculite, dife‑ renciando-as de outras condições inflamatórias, como infec‑ ções, outras doenças reumáticas e neoplasias.
Neste capítulo, serão abordados os tipos mais frequentes de vasculites na infância, suas manifestações clínicas, seus diagnósticos e as terapêuticas adequadas. Tabela 2 Exames laboratoriais nas vasculites da infância Exame
Comentários
Hemograma
Anemia normocítica ou hipocrômica Leucocitose, eosinofilia Trombocitose: ocorre com aumento das provas de fase aguda (velocidade de hemossedimentação e proteína C reativa)
Provas de fase aguda (velocidade de hemossedimentação e proteína C reativa)
Elevadas na doença de Kawasaki e de Takayasu Normais na púrpura de Henoch ‑Schönlein
Anticorpo antinúcleo (FAN)
Lúpus eritematoso sistêmico (LES), polisserosite, leucopenia, trombocitopenia, glomerulonefrite, sangramento pulmonar Quando negativo, praticamente afasta a hipótese de LES
Fator VIII (von Willebrand)
Elevado
Crioglobulinas
Elevadas
Enzimas hepáticas (ALT e AST)
Níveis elevados na doença hepática, miosite, hemólise ou necrose do miocárdio
ANCA
Presente nas vasculites granulomatosas ou poliangeíte microscópica
Lesões cutâneas: púrpura palpável, urticária fixa, necrose, livedo reticular, úlceras, petéquias, nódulos
Hemoculturas
Em crianças com febre e doenças debilitantes
Sinais neurológicos: cefaleia, lesões focais do SNC, neurite periférica
AAF/TTPA/TVVR
Solicitar em casos inexplicáveis de trombose venosa ou arterial, ou trombocitopenia
Avaliação da função renal
Em todos os pacientes, para avaliar a presença de glomerulonefrite (hematúria, cilindros hemáticos/hialinos em sedimento urinário fresco); hipertensão e elevação das provas de função renal
Sorologia: hepatites BeC
Elevação de transaminases ou fosfatase alcalina hepática
Tabela 1 Achados clínicos das vasculites na infância e na adolescência Febre, emagrecimento, fadiga, adinamia
Artrite, artralgia, mialgia, miosite, serosites Hipertensão arterial, hematúria, insuficiência renal, diminuição/ diferença de pulso Infiltrados e/ou hemorragias pulmonares, lesões de septo nasal Isquemia miocárdica, arritmias Enterorragia
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Vasculites •
Abordagem da criança com suspeita de vasculite O diagnóstico de vasculite é um desafio para o pediatra e de‑ pende da obtenção de história detalhada do paciente e da rea‑ lização de exame físico minucioso, com foco no envolvimento de órgãos e tecidos. Na anamnese, deve-se questionar sobre exposições a infec‑ ções recentes e a drogas, além de se obter detalhada história familiar. No exame físico, é obrigatória a palpação dos pulsos, a ausculta arterial (carótidas, axilares, aorta, renal e vasos ilía‑ cos) e a medida da pressão arterial nos quatro membros. Na pele, observar a presença de livedo reticular, nódulos doloro‑ sos, púrpura e ulcerações. Fundoscopia ocular e capilarosco‑ pia periungueal também são úteis para visualizar anormalida‑ des de pequenos vasos. Exames laboratoriais devem ser solicitados em todas as crianças com suspeita de vasculite: hemograma completo, reagentes de fase aguda (velocidade de hemossedimentação – VHS – e proteína C reativa – PCR), enzimas hepáticas, provas de função renal (ureia e creatinina) e análise quantitativa e qualitativa da urina (fundamentais para o diagnóstico de glo‑ merulonefrite, que pode ser assintomática). Testes para detecção de anticorpos específicos, como anti‑ corpos antinucleares (AAN ou FAN) e anticorpos anticitoplas‑ ma de neutrófilos (ANCA) e dosagem de complementos tam‑ bém podem ser solicitados e são úteis no diagnóstico de envolvimento de vasos de médio e grande calibres. O padrão‑ -ouro para o diagnóstico é a biópsia do tecido comprometido. Epidemiologia e patogênese Os mecanismos fisiopatológicos implicados na etiopatogêne‑ se das vasculites sistêmicas ainda são pouco conhecidos. A in‑ cidência anual de vasculite primária é de 23/100.000 em crianças e adolescentes, segundo estudos internacionais. As vasculites primárias correspondem a 10% de todas as condições avaliadas em reumatologia pediátrica. Destas, a púrpura de Henoch-Schönlein (PHS) e a doença de Kawasaki (DK) são as mais frequentes, respondendo por 49% e 23% de todas as vasculites na infância, respectivamente. A doença de Kawasaki é mais comum em crianças asiáticas do que em outras etnias, indicando que a genética e o meio ambiente podem desempenhar papel importante na susceti‑ bilidade a determinadas doenças. Entre outras teorias de pa‑ togênese estão a disfunção das células T e fatores humorais, como nas vasculites associadas ao ANCA, e formação anôma‑ la de complexos imunes, como na PHS. Infecções prévias, particularmente as estreptocócicas, têm sido implicadas na patogenia de algumas vasculites como PHS, granulomatose com poliangeíte (GPA) e poliarterite nodosa (PAN). Classificação A classificação atualmente utilizada em pediatria baseia-se no calibre dos vasos afetados, no envolvimento de órgãos, na pre‑ sença ou ausência de inflamação granulomatosa e na deposi‑ ção de imunocomplexos (Tabela 3).
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Tabela 3 Classificação das vasculites na infância e na adolescência Vasculite predominantemente de vasos de grande calibre • Arterite de Takayasu Vasculite predominantemente de vasos de médio calibre • Poliarterite nodosa da infância • Poliarterite cutânea • Doença de Kawasaki • Vasculite primária do SNC Vasculites predominantemente de pequenos vasos • Granulomatosa – Granulomatose de Wegener – Síndrome de Churg-Strauss • Não granulomatosa – Poliangeíte microscópica – Púrpura de Henoch-Schönlein • Vasculite leucocitoclástica cutânea isolada • Vasculite urticariforme associada à diminuição do complemento Vasculite primária do SNC Outras vasculites – Doença de Behçet – Vasculite secundária à infecção – Vasculite associada a doenças do tecido conjuntivo • Vasculite isolada do SNC • Síndrome de Cogan • Não classificada
Diagnóstico e tratamento Os sintomas de apresentação variam amplamente, dependen‑ do do tamanho e da localização dos vasos envolvidos. Febre, mal-estar, dor difusa e alteração de exames laboratoriais po‑ dem ser as únicas condições iniciais. Outras manifestações, como púrpura, envolvimento de órgãos ou a detecção de anti‑ corpos, como o ANCA, podem ser indicativos de vasculite. As vasculites são doenças com alto índice de morbimortali‑ dade, necessitam de terapia anti-inflamatória e imunossu‑ pressora e seu diagnóstico deve ser feito com a maior agilidade e certeza possível. A coexistência de outras doenças, como in‑ fecções, pode atrapalhar o raciocínio clínico e confundir, por exemplo, com “recaídas” da doença, agravando ainda mais o prognóstico. O diagnóstico definitivo muitas vezes requer biópsia, às ve‑ zes de múltiplos locais, arteriografia, angiorressonância ou an‑ giotomografia. O tratamento baseia-se na indução da remissão, seguida da manutenção dessa remissão. O início do tratamento pode ser feito com corticosteroides, preferencialmente associados a outro imunossupressor potente, como a ciclofosfamida, para induzir a remissão e poupar o uso de corticosteroide em mé‑ dio e longo prazos.
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Após 3 a 6 meses, o ideal é que a ciclofosfamida seja substi‑ tuída por um agente com perfil de segurança melhor (azatio‑ prina). Nos últimos anos, drogas biológicas como o rituxima‑ be e os inibidores de fator de necrose tumoral têm sido utilizados como alternativa à ciclofosfamida em alguns tipos de vasculite. Vasculites de vasos de pequeno calibre É a vasculite mais frequente da criança e do adolescente, afe‑ tando ambos os sexos. Pode ser idiopática ou secundária a in‑ fecções virais (hepatite B ou C), bacterianas (endocardite bac‑ teriana, blenorragia, riquetsiose), doenças autoimunes (lúpus eritematoso sistêmico – LES, doença de Behçet e artrite idio‑ pática juvenil), malignidade (hematológicas, linfoides e de ór‑ gãos sólidos) e alergias a medicamentos. As lesões purpúricas, palpáveis, em grupos, de distribuição gravitacional (de cintura pélvica até os pés), podem estar ou não associadas a edema significativo (Figuras 1 a 3). Além do quadro cutâneo, pode ocorrer envolvimento visce‑ ral, com hemorragia pulmonar, isquemia ou hemorragia intes‑ tinal e glomerulonefrite.
Subgrupos clínicos Angeíte leucocitoclástica cutânea O edema hemorrágico agudo da infância ou síndrome de Fin‑ kelstein-Seidlmayer acomete crianças até 2 anos de idade e está associada ao uso de medicamentos. O estado geral é bom, a doença limita-se à pele, com lesões purpúricas no mesmo es‑ tágio evolutivo, equimoses e, ocasionalmente, acompanhada de artralgias e edema de membros, orelhas e face. A remissão é espontânea, ocorrendo em até 3 semanas. Quando necessá‑ rio, o tratamento é feito com anti-inflamatórios não hormo‑ nais (AINH). Púrpura de Henoch-Schönlein É a vasculite mais frequente em pediatria, com incidência anual de 20/100.000 e com pico de idade de início entre 4 e 6 anos. Mais comum em caucasianos e em meninos (2:1). É me‑ diada por deposição de imunoglobulina A. Seu diagnóstico é essencialmente clínico, com critérios es‑ tabelecidos e validados para crianças (Tabela 4). Caracteriza-se por 4 manifestações clínicas principais em pacientes menores de 17 anos: • púrpura palpável (critério obrigatório); • artrite ou artralgia (em qualquer articulação); • doença gastrointestinal (dor abdominal, vômitos, sangra‑ mento, intussuscepção); • envolvimento renal (hematúria e/ou proteinúria).
Figura 1 Lesões purpúricas palpáveis em criança com PHS.
Figura 3 Edema subcutâneo e artrite em criança com PHS.
Tabela 4 Critérios diagnósticos da Púrpura de HenochSchönlein Púrpura palpável (critério mandatório) na presença de pelo menos um dos seguintes: 1.
Figura 2 Edema subcutâneo e artrite em criança com PHS.
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Dor abdominal difusa
2.
Qualquer biópsia mostrando predomínio de depósito de IgA
3.
Artrite (aguda, em qualquer articulação) ou artralgia
4.
Envolvimento renal (hematúria e/ou proteinúria)
Fonte: Ozen et al (EULAR/PReS), 2010
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Vasculites •
Pode ser primária ou desencadeada por infecções virais, bac‑ terianas (sobretudo por estreptococo beta-hemolítico do gru‑ po A), alimentos, vacinas, medicamentos e picadas de insetos. As lesões purpúricas são simétricas, têm distribuição gravi‑ tacional, em cintura pélvica e membros inferiores, podendo ocorrer em outras áreas, como face e orelhas. As lesões variam de pequenas petéquias até extensas áreas de equimoses e ul‑ cerações. Em crianças menores de 4 anos de idade, edema subcutâneo do dorso de mãos e pés, cabeça e região escrotal podem ocorrer nas fases iniciais da doença (Figura 4). A artralgia ou a artrite aguda, geralmente incapacitante, aditiva, de grandes articulações como joelhos e tornozelos, são comuns (ver Figuras 2 e 3). Pode preceder o aparecimento do rash em 1 ou 2 dias, durando, no máximo, 1 semana, sem deixar sequelas. Manifestações gastrointestinais são frequentes. Dor em có‑ lica (que pode preceder outras manifestações da doença), náuseas, vômitos, hematêmese, enterorragia e melena estão presentes na maioria das crianças nos primeiros 30 dias após o início das lesões cutâneas. Intussuscepção pode ocorrer, mesmo sem qualquer outro sintoma da doença. A doença renal pode estar presente na fase inicial, com ma‑ nifestações variando de hematúria microscópica e leve protei‑ núria até síndrome nefrótica, síndrome nefrítica, hipertensão arterial e insuficiência renal. Lesões significativas nessa fase são preditivas de maior lesão glomerular posteriormente. Os fatores de risco para a nefrite são: idade de início maior que 7 anos, persistência de lesões cutâneas, dor abdominal e dimi‑ nuição da atividade do fator XIII. O diagnóstico diferencial é feito com outras causas de púr‑ pura na infância, glomerulonefrite aguda pós-estreptocócica, síndrome hemolítico-urêmica, coagulação intravascular dis‑ seminada (CIVD), infecções, vasculite por hipersensibilidade, LES e outras vasculites. Em crianças com dor abdominal, o diagnóstico diferencial com condições cirúrgicas por outras causas também deve ser considerado (Figura 5).
Figura 4 Edema escrotal em criança com PHS.
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1803
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As indicações para biópsia renal em crianças com PHS são: síndrome nefrítica ou nefrótica no início da doença, creatinina elevada, hipertensão ou oligúria, proteinúria importante, mes‑ mo não acompanhada por baixos níveis séricos de albumina, proteinúria persistente por mais de 4 semanas e queda da fun‑ ção renal (taxa de filtração glomerular < 80 mL/min/1,73 m2). Nos exames laboratoriais, o hemograma é útil para diferen‑ ciar PHS da púrpura trombocitopênica imunológica. AAN, ANCA e fator reumatoide são negativos. As provas de função renal avaliam o comprometimento inicial e evolutivo, pois al‑ terações laboratoriais correlacionam-se diretamente com o dano glomerular. Embora possa ser recorrente nos 2 primeiros anos (em até 30% dos pacientes), a PHS é uma doença autolimitada e a maioria das crianças requer tratamento apenas com sintomá‑ ticos. Possíveis fatores desencadeantes, como infecções, de‑ vem ser tratados. A terapia para casos leves de PHS é de su‑ porte, com analgésicos e AINH. No envolvimento cutâneo, o uso de corticosteroides é indicado nos casos de lesões ulcera‑ das ou necrosantes. Na doença articular, utilizam-se AINH, como o naproxeno (15 mg/kg/dia) ou o ibuprofeno (40 mg/kg/dia). Na doença gastrointestinal, corticosteroides como a pred‑ nisona ou a prednisolona (1 a 2 mg/kg/dia) estão indicados. A metilprednisolona (30 mg/kg/dia/3 dias, via endovenosa) é utilizada em crianças com vômitos, assim como a ranitidina (5 mg/kg/dia); nos casos em que há suspeita de intussuscepção, a abordagem cirúrgica pode ser indicada. Os corticosteroides não são necessários nos casos de hema‑ túria (micro ou macroscópica) transitória. Nos pacientes com glomerulonefrite não rapidamente progressiva (menos de 50% de crescentes), indica-se a corticoterapia e, ocasional‑ mente, a associação com ciclofosfamida (2 mg/kg/dia), por 8 a 12 semanas e, a seguir, prednisona em dias alternados e aza‑ tioprina por 12 meses. Na glomerulonefrite rapidamente progressiva (crescentes em mais de 50% dos glomérulos), o tratamento é mais agressi‑ vo, com corticoterapia endovenosa (metilprednisolona), ciclo‑
Figura 5 Extensa vasculite mesentérica e intussuscepção em criança com PHS.
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fosfamida, plasmaférese, warfarina e heparina. Nos pacientes com proteinúria significativa, estão indicados os inibidores da enzima conversora da angiotensina. Na Tabela 5, estão listadas, resumidamente, as principais manifestações clínicas da PHS e suas terapias. O prognóstico costuma ser excelente e a maioria das crian‑ ças tem curso favorável (monocíclico), com duração da doen‑ ça de até 4 semanas. O acompanhamento deve ser rigoroso (pressão arterial, função renal e sedimento urinário) no 1º mês e, depois, espa‑ çando-se as consultas a cada 3 meses nos primeiros 6 meses, depois, a cada 6 meses. O seguimento deve ser até o início da vida adulta, pelo menos, pela possibilidade de progressão da glomerulonefrite para insuficiência renal (1 a 2% dos casos). Vasculites associadas ao ANCA São doenças multissistêmicas, raras, que acometem trato res‑ piratório (vias aéreas superiores e inferiores) e rins, em crian‑ ças de ambos os sexos. O prognóstico é ruim, com mortalidade próxima a 100% e sobrevida média de 5 meses, caso não sejam diagnosticadas e tratadas precocemente. Há 3 formas clássicas de doença: • GPA, anteriormente denominada granulomatose de Wegener; • granulomatose eosinofílica com poliangeíte (GEP), atual de‑ nominação da síndrome de Churg-Strauss; • poliangeíte microscópica (PAM). Granulomatose com poliangeíte É rara e manifesta-se com a formação de granulomas. Com‑ promete o trato respiratório (superior e inferior) e os rins de crianças com idade média de 14 anos. Tabela 5 Terapias em manifestações clínicas da Púrpura de Henoch-Schönlein Comprometimento
Conduta
Observações
Cutâneo
Corticosteroides apenas nos casos de vasculite com úlceras e necrose
Orientação dos pacientes e dos familiares sobre a duração (que pode ser de algumas semanas)
Articular
Anti-inflamatórios não hormonais (naproxeno, ibuprofeno)
Uso limitado ao tempo da sintomatologia
Gastrointestinal
Prednisona ou prednisolona (1 a 2 mg/kg/ dia). Em crianças com vômitos: metilprednisolona EV. Ranitidina 5 mg/kg/dia
Pausa alimentar
Não indicado nos casos de hematúria transitória. Corticosteroides e imunossupressores nos casos de glomerulonefrite progressiva
Encaminhamento para nefropediatra (biópsia)
Renal
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1804
Por ordem de frequência, os sintomas mais comuns são os constitucionais (febre, mal-estar e perda de peso são os mais frequentes), o envolvimento pulmonar, o otorrinolaringológi‑ co e o renal. Úlceras orais, perfuração do septo nasal e subse‑ quente deformidade (nariz em sela), rinorreia persistente, epistaxe, sinusite, otalgia, mastoidite, surdez neurossensorial e estenose subglótica, laríngea ou brônquica são frequentes (80% das crianças). O trato respiratório inferior raramente é atingido no início da doença, e seu acometimento é detectado apenas por méto‑ dos de imagem, como a tomografia computadorizada (TC). O envolvimento renal (hematúria, proteinúria, glomerulo‑ nefrite necrosante e insuficiência renal) é causa comum de morbidade e mortalidade na GPA, sendo observado em 75% das crianças. Entre as manifestações clínicas, encontram-se púrpura palpável, nódulos subcutâneos ou ulcerações, artralgias, artri‑ te migratória ou aditiva, não erosiva, conjuntivite, pseudotu‑ mores orbitais, uveíte, esclerite e hipertensão arterial. A maioria dos pacientes (90%) tem c-ANCA positivo. A biópsia renal mostra glomerulonefrite segmentar e focal, for‑ mação de crescentes e necrose e pouca ou nenhuma deposi‑ ção de imunocomplexos (glomerulonefrite pauci-imune). Recidivas da doença são frequentes na maioria dos p acientes. Os critérios de classificação para o diagnóstico de GPA em crianças estão listados na Tabela 6. O tratamento da GPA requer corticoterapia e um segundo agente para induzir remissão e limitar a recaída. A ciclofosfa‑ mida combinada a doses altas de corticosteroides (rituximabe também pode ser utilizado, em vez de ciclofosfamida) indu‑ zem a remissão. Alcançada a melhora ou a remissão (3 a 6 me‑ ses), a terapia com ciclofosfamida é substituída por metotre‑ xato ou azatioprina ou micofenolato mofetil (em pacientes sem lesão renal grave), por longo tempo, pois as exacerbações são frequentes após a suspensão do tratamento. O rituximabe é menos tóxico e tão efetivo quanto a ciclofos‑ famida na indução da remissão da doença. Os inibidores de fa‑ tor de necrose tumoral como o etanercepte não são indicados, pois além de não induzirem a remissão, aumentam o risco de malignidade (tumores sólidos) em pacientes previamente tra‑ tados com agentes citotóxicos. A plasmaférese associada à ci‑ clofosfamida não diminuiu a mortalidade pela doença. Drogas
Tabela 6 Critérios de classificação para granulomatose com poliangeíte Três dos seguintes critérios: • Sedimento urinário alterado (hematúria ou proteinúria) • Inflamação granulomatosa em biópsia (GN necrosante pauci ‑imune) • Inflamação de seios nasais • Estenose subglótica, traqueal ou endobrônquica • Radiografia de tórax ou TC anormal • ANCA-c positivo (proteinase 3) Fonte: Ozen et al (EULAR/PReS), 2010
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Vasculites •
biológicas, como abatacepte, adalimumabe e belimumabe, ainda não foram estudadas no tratamento da doença. Após a indução da remissão, recomenda-se que a terapia continue por 18 a 24 meses com azatioprina ou leflunomide. O metotrexato pode ser considerado como alternativa à azatio‑ prina em pacientes sem lesão renal. O rituximabe pode ser o principal e promissor agente para o tratamento também na fase de manutenção. Prevenção de osteoporose e realização de densitometria ós‑ sea devem ser consideradas com o uso prolongado de corti‑ costeroides. Higiene nasal, avaliações otorrinolaringoscópicas periódi‑ cas, antibioticoterapia tópica e uso de sulfametoxazol-trime‑ toprim podem diminuir ou espaçar as recidivas. Em alguns pacientes, traqueostomia, dilatação traqueal, colocação de stent e aplicação de glicocorticoide intratraqueal e mitomicina também podem ser utilizadas. Granulomatose eosinofílica com poliangeíte É uma forma rara de vasculite, insidiosa, associada a asma grave, alergia e eosinofilia. Não há critérios específicos de diagnóstico para a faixa etária pediátrica. A doença tem 3 fases: a primeira é atópica, manifestando‑ -se com rinite alérgica e asma; a segunda manifesta-se com eo‑ sinofilia; a terceira manifesta-se com vasculite sistêmica. No entanto, nem sempre as três fases estão presentes. A eosinofi‑ lia é característica e frequentemente acentuada (> 1.000 eosi‑ nófilos/mcL). Púrpura cutânea, urticária, nódulos, cardiopatia grave por infiltração cardíaca ou lesão coronariana, envolvimento neu‑ rológico e gastroenterite eosinofílica podem ocorrer. O exame histopatológico mostra inflamação granulomato‑ sa extravascular com infiltrado eosinofílico proeminente. A glomerulonefrite na GEP não costuma ser tão grave quanto na GPA. A GEP responde à terapia com corticosteroide. A persistên‑ cia da asma após a remissão da doença dificulta a desconti‑ nuação dos corticosteroides. A asma brônquica e a doença si‑ nusal podem requerer terapia contínua, mesmo com a remissão da vasculite. Ciclofosfamida ou azatioprina podem ser utilizadas nos pacientes com envolvimento visceral refra‑ tário ou grave. Poliangeíte microscópica É uma vasculite necrosante, pauci-imune, não granulomatosa, que acomete pulmões, rins e sistema nervoso periférico. Sintomas constitucionais, como febre, mal-estar, artralgias, mialgias e perda de peso, são frequentes. Manifesta-se como glomerulonefrite necrosante e/ou he‑ morragia alveolar e pode vir acompanhada de neuropatia e púrpura cutânea. O diagnóstico é confirmado por biópsia, que mostra vascu‑ lite necrosante sem granulomas. A PAM é associada com altos títulos de c-ANCA ou p-ANCA (perinuclear). O tratamento é semelhante ao da GPA. Pacientes com doença grave inicialmente devem ser tratados com uma com‑
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1805
binação de ciclofosfamida (oral ou endovenosa) e altas doses de corticosteroides. O metotrexato e os corticosteroides são utilizados para indução em casos mais leves. As recidivas e a mortalidade são menores na PAM do que na GPA. A terapia de manutenção é feita com micofenolato mofetil ou azatioprina por 18 a 24 meses. Como opções de tratamento na doença refratária, podem ser utilizados o infliximabe (5 mg/kg, 2 vezes/mês), rituximabe (375 mg/m2/semana, por 4 semanas) e imunoglobulina endovenosa (IGEV) 2 g/kg/mês. Vasculites de vasos de médio calibre Poliartrite nodosa e poliarterite nodosa cutânea É a terceira vasculite mais frequente na infância. Prevalece em meninos entre 7 e 11 anos de idade. A associação com o vírus da hepatite B é rara na infância. As principais manifestações clínicas da PAN em crianças são sintomas inespecíficos, como febre, emagrecimento, dor abdominal, mialgias e artralgia, e os órgãos mais afetados são pele (Figuras 6 e 7), rins, músculos e sistema nervoso central (SNC). Dependendo da distribuição dos vasos envolvidos, as crianças podem ter hipertensão arterial, doença cardíaca isquê‑ mica, dor testicular, dor abdominal, hematúria ou proteinúria. Os critérios diagnósticos estão descritos na Tabela 7. Os marcadores laboratoriais da inflamação sistêmica são elevados e não há associação com os ANCA.
Figura 6 Livedo reticular em criança com poliarterite nodosa.
Figura 7 Isquemia digital na poliarterite nodosa.
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É a segunda vasculite mais frequente na infância e a princi‑ pal causa de cardiopatia adquirida nos Estados Unidos. Aco‑ Doença sistêmica caracterizada por vasculite necrosante das mete principalmente meninos menores de 5 anos. artérias de pequenos e médio calibres na biópsia OU alterações O diagnóstico é clínico e feito a partir de critérios estabele‑ angiográficas específicas (aneurismas ou estenoses) (critério mandatório) e pelo menos dois dos seguintes critérios: cidos (Tabela 8). O tratamento deve ser feito o mais rápido possível para evitar complicações cardíacas imediatas e tar‑ • Envolvimento de pele: livedo reticular, nódulos subcutâneos dolorosos ou úlceras dias, que ocorrem em 25% das crianças não tratadas e somen‑ • Mialgia te em 5% dos pacientes com terapia adequada. Na fase aguda da doença (primeiros 10 dias), são encontrados: • Hipertensão arterial (gráfico pediátrico) • febre alta por, no mínimo, 5 dias, podendo persistir por até 2 • Mononeuropatia ou polineuropatia (sensorial ou motora) semanas, se não houver tratamento específico. A febre reduz • Alterações de sedimento urinário (hematúria, proteinúria) ou queda da função renal (TFG < 50%) rapidamente assim que se inicia a terapia com gamaglobulina endovenosa em altas doses; • Dor testicular • conjuntivite não exsudativa; • Quadro de vasculite em outros órgãos (GI, cardíaco, pulmonar, SNC) • mucosite oral: eritema, ressecamento e rachadura dos lábios, faringite não exsudativa e eritema de língua com papilas proe‑ • Critério excluído: evidência de hepatite B minentes (língua “em morango” ou “em framboesa”); Fonte: Ozen et al (EULAR/PReS), Ann Rheum Dis, 2010 • edema distal dos membros, com eritema e sensibilidade não limitados às articulações; Na PAN, não se observam glomerulonefrite nem doença • adenomegalia, geralmente unilateral, mais evidente em re‑ pulmonar. Infecções (hepatites B e C) e síndrome do anticor‑ gião cervical; po antifosfolípide (SAAF) podem mimetizar a PAN, sendo im‑ • erupção cutânea, difusa e polimórfica. Erupção perineal que portantes diagnósticos diferenciais. descama até o final da 1ª semana é comum, assim como exan‑ Corticosteroides (prednisona 1 a 2 mg/kg/dia, com ou sem tema circundando a vacina BCG (Figura 8). pulsos iniciais de metilprednisolona 30 mg/kg/dia, por 3 dias) e a associação com ciclofosfamida (2 mg/kg/dia, via A ecocardiografia é necessária para o diagnóstico, se não esti‑ oral, 750 mg/m2/mês, endovenosa) podem ser indicados na verem presentes pelo menos 4 critérios adicionais, na denomi‑ fase de indução. Plasmaférese está indicada em situações ex‑ nada DK incompleta. Na fase subaguda (2 a 4 semanas), ocor‑ tremas (risco de morte ou necrose tecidual). Quando a remis‑ re a descamação de mãos e pés. Nessa fase, podem ocorrer os são é alcançada, a azatioprina associada a baixas doses de cor‑ aneurismas (assintomáticos no início), principalmente em ar‑ ticosteroides, por 12 a 18 meses, é usada para a manutenção da térias coronárias, que podem se complicar com trombose e remissão. Metotrexato, IGEV, micofenolato mofetil e agentes obstrução de artérias coronárias. Complicações coronarianas biológicos, como o rituximabe, e drogas antifator de necrose podem ocorrer semanas ou até muitos anos após o início da tumoral são indicados nessa fase. A aspirina pode ser utilizada febre (fase crônica da doença). como antiagregante plaquetário. Os aneurismas podem ser detectados por ecocardiografia, O prognóstico da doença é melhor na infância, com menos que deve ser feita no diagnóstico da doença aguda e repetido recaídas e melhor sobrevida quando comparada à doença do após 2 e 6 semanas. adulto. Nos exames laboratoriais, observam-se elevação das pro‑ A forma cutânea da PAN (PAC) é frequentemente associa‑ vas inflamatórias de fase aguda (VHS e PCR), leucocitose com da com antecedente de infecção estreptocócica. Limita-se à neutrofilia, anemia, elevação de enzimas hepáticas e hipoal‑ pele e ao sistema musculoesquelético, manifestando-se com buminemia. Na fase subaguda, a trombocitose é característica. febre, nódulos subcutâneos dolorosos (principalmente nos membros inferiores), púrpura, livedo reticular, mialgias, ar‑ Tabela 8 Critérios de classificação para doença de tralgias e artrite não erosiva. Responde excepcionalmente a Kawasaki AINH e corticosteroides (tópicos e sistêmicos). Na doença Febre persistente (critério mandatório) por pelo menos 5 dias e persistente ou recidivante, medicações como metotrexato, pelo menos 4 dos seguintes critérios: colchicina e IGEV podem ser indicadas. Antibioticoterapia es‑ 1. Alterações cutâneas de extremidades (eritema ou edema pecífica será feita caso haja evidência de infecção estreptocó‑ palmar e plantar, descamação periungueal na fase subaguda) e área perineal cica como gatilho da doença. Raramente, a PAC evolui para a 2. Exantema polimorfo forma sistêmica. Estima-se que 30% das crianças com diag‑ nóstico de PAN tenham, de fato, PAC. 3. Alterações labiais e orais, hiperemia de mucosa oral e Tabela 7 Critérios de classificação para poliarterite nodosa
faríngea
Doença de Kawasaki É uma vasculite aguda com envolvimento principal das arté‑ rias coronárias, aguda, pode ter evolução subaguda e que, às vezes, cronifica.
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1806
4.
Conjuntivite bilateral, não purulenta
5.
Linfadenomegalia cervical (> 1,5 cm), geralmente unilateral
Observação: doença de Kawasaki incompleta: febre de pelo menos 5 dias e 4 critérios, associada a alterações características no ecocardiograma.
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Vasculites •
O tratamento da DK visa a reduzir a inflamação e evitar a formação de aneurismas coronarianos. IGEV em dose única de 2 g/kg é administrada preferencialmente antes do 10º dia de doença, e aspirina (80 a 100 mg/kg/dia) é administrada em 4 doses diárias, nos primeiros 10 dias de doença, com pos‑ terior redução para 3 a 5 mg/kg/dia, até normalização das plaquetas. Em algumas crianças, há necessidade de mais de uma infusão de gamaglobulina (Figura 9). Corticoterapia deve ser administrada nos casos refratários ao tratamento com a gamaglobulina. O infliximabe (5 mg/kg) mostrou bons resultados na doen‑ ça refratária. O prognóstico da DK é bom, com mortalidade de até 2% na fase aguda. As crianças devem ser acompanhadas no longo prazo e orientadas a evitar fatores de risco para doen‑ ças cardíacas. Aquelas com aneurismas coronarianos gigantes (> 8 mm) ou múltiplos devem receber anticoagulantes por
Figura 8 Exantema circundando a cicatriz de BCG em criança com doença de Kawasaki.
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tempo prolongado, na tentativa de prevenir o infarto do mio‑ cárdio tardiamente. Vasculite de vasos de grande calibre Arterite de Takayasu (AT) É uma panarterite granulomatosa crônica que evolui para es‑ tenose arterial, trombose e aneurismas da aorta e seus ramos primários, levando frequentemente à isquemia dos órgãos en‑ volvidos. É rara em crianças. Os critérios diagnósticos da AT para a idade pediátrica es‑ tão listados na Tabela 9. As manifestações clínicas iniciais assemelham-se à gripe, com sintomas inespecíficos (febre, sudorese noturna, vômi‑ tos, perda ponderal). Os sintomas iniciais geralmente decor‑ rem de hipertensão arterial, insuficiência cardíaca ou altera‑ ções neurológicas, como o acidente vascular encefálico (AVE). A claudicação de membro superior com sopro supraclavi‑ cular ou axilar é comum, assim como dor e sensibilidade na artéria superficial (carodinia). Exames de imagenologia vascular (angiografia convencio‑ nal, ressonância magnética – RM – angiográfica, TC angiográ‑ fica e ecografia com Doppler) são fundamentais para o diag‑ nóstico e o acompanhamento das crianças. Os exames laboratoriais não avaliam adequadamente a atividade da doença, e a angiotomografia e a angiorressonância, que são menos invasivas que a angiografia, podem detectar alterações do diâmetro luminal e espessamento da parede do vaso. A lesão mais frequentemente encontrada é a estenose (Fi‑ gura 10). O tratamento da AT é um desafio. Apenas 20% das crianças têm a doença monocíclica. Os corticosteroides podem induzir a remissão em até 60% dos pacientes, no entanto, a recidiva ocorre em metade desses pacientes ao se reduzir a dose. Al‑ guns relatos isolados mostram a possibilidade de tratamento associado com metotrexato, azatioprina e biológicos, como o infliximabe (5 a 10 mg/kg por 4 a 8 semanas). Ciclofosfamida deve ser considerada em casos extremos, como comprometi‑ mento vascular extenso e risco de morte. O tratamento cirúrgico pode ser indicado quando as este‑ noses vasculares resultarem em hipertensão arterial grave ou isquemia importante. Tabela 9 Critérios de classificação para arterite de Takayasu Mandatório: Anormalidades angiográficas (por angiografia convencional ou angiotomografia computadorizada ou angiorressonância) da aorta ou seus ramos principais Mais um dos seguintes critérios:
Figura 9 Perda de artelhos como complicação na doença de Kawasaki.
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1.
Diminuição do pulso de artérias periféricas ou claudicação (dor muscular induzida por atividade física)
2.
Discrepância da pressão arterial sistólica nos quatro membros maior do que 10 mmHg em qualquer membro
3.
Sopro em aorta ou em artérias de seus principais ramos
4.
Hipertensão arterial (> 95 percentil para a idade)
Fonte: Ozen et al (EULAR/PReS), Ann Rheum Dis, 2010
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• Solicitar exames laboratoriais, de imagem e histopatológicos que facilitarão o diagnóstico pelo pediatra ou pelo especialista. • Fazer diagnóstico diferencial entre os diversos tipos de apresentação da doença na infância. • Reconhecer precocemente e tratar as formas de vasculites mais frequentes na infância: púrpura de Henoch-Schönlein e doença de Kawasaki. • Conhecer as formas de tratamento para doenças mais complexas e raras, visando à remissão e, depois, à manutenção dessa remissão, buscando reduzir a morbimortalidade na doença não adequadamente tratada.
Bibliografia 1.
2. 3. Figura 10 Estenose da aorta na arterite de Takayasu.
4. 5.
Considerações finais As vasculites constituem um grupo de doenças complexas e desafiadoras para o pediatra. As manifestações clínicas, a gravidade e a terapêutica estão relacionadas a diferentes tipos e tamanhos de vasos compro‑ metidos e à extensão da lesão vascular. Na infância, as vasculites mais frequentes são a PHS e a DK. Ao pediatra, cabe considerar o diagnóstico de vasculite em crianças com evidências de inflamação sistêmica e doença multissistêmica não explicada por outras situações.
6. 7.
8. 9.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer as diferentes formas de apresentação das vasculites na infância, sua classificação e seus critérios diagnósticos. • Atentar para sintomas e sinais iniciais de vasculite que podem simular outras doenças inflamatórias, no intuito de evitar morbidade e mortalidade pelo atraso no diagnóstico.
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1808
10.
de Almeida JL, Campos LM, Paim LB, Leone C, Koch VH, Silva CA. Re‑ nal involvement in Henoch-Schönlein purpura: a multivariate analysis of initial prognostic factors. J Pediatr (Rio J) 2007; 83(3):259-66. Eleftheriou D, Brogan PA. Vasculitis in children. Best Pract Res Clin Rheumatol 2009; 23(3):309-23. Morishita K, Brown K, Cabral D. Pediatric vasculitis. Advances in treat‑ ment. Curr Opin Rheumatol 2015; 27:493-9. O’Neil KM. Progress in pediatric vasculitis. Curr Opin Rheumatol 2009; 21:538-46. Ozen S, Ruperto N, Dillon MJ, Bagga A, Barron K, Davin JC et al. EU‑ LAR/PreS endorsed consensus criteria for the classification of chil‑ dhood vasculitides. Ann Rheum Dis 2006; 65:936-41. Ozen S. The spectrum of vasculitis in children. Best Prac Res Clin Rheu‑ matol 2002; 16:411-25. Ruperto N, Ozen S, Pistorio A, Dolezalova P, Brogan PD, Cabral A et al. EULAR/PRINTO/PRES criteria for Henoch-Schönlein purpura, chil‑ dhood polyarteritis nodosa, childhood Wegener granulomatosis and childhood Takayasu arteritis: Ankara 2008. Part II: Final classification criteria. Ann Rheum Dis 2010; 69:798-806. Vasculitis. In: Petty R, Laxer RM, Lindsley CB, Wedderburn L. Textbook of pediatric rheumatology. Toronto: Elsevier, 2016. p.448-98. Villa-Forte A, Mandell BF. Systemic vasculitis syndromes. ACP Medici‑ ne. 2012. Disponível em: www.medicinanet.com.br/m/conteudos/ acp-medicine/6171/sindromesde%20vasculite%20sistemicas.htm. Acessado em: 18/10/2015. Weis PF. Pediatric vasculitis. Pediatr Clin N Am 2012; 59:407-23.
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CAPÍTULO 7
DOENÇAS AUTOINFLAMATÓRIAS Márcia Bandeira
Introdução O termo “autoinflamatória” surgiu em 1999 para descrever uma família emergente de condições clínicas diferentes das síndromes autoimunes.1 Caracterizam-se por alteração do sistema imunológico ina‑ to que é mais primitivo, mediado por macrófagos e neutrófilos. Não são encontrados linfócitos T autorreativos nem altos títu‑ los de autoanticorpos circulantes.2 Distúrbios autoinflamatórios são caracterizados por episó‑ dios de intensa inflamação que resultam em sintomas como febre, erupção cutânea ou edema/dor articular. A recorrência dessas crises tem como complicação o risco de desenvolver amiloidose. Existem vários tipos de doenças autoinflamatórias que se diferenciam pela idade de início, etnia, agentes desencadean‑ tes, duração dos episódios e intervalo entre eles, manifesta‑ ções clínicas e resposta à terapêutica. Esse grupo de doenças é causado por defeitos monogênicos em proteínas da imunidade inata e são consideradas imuno‑ deficiências primárias.3 As funções biológicas exercidas por essas proteínas são transdução de sinais celulares, regulação de citocinas e receptores de citocinas envolvidos na resposta imune inata. A organização da resposta imune inata envolve a ativação de receptores celulares, denominados toll-like, por antígenos exógenos e endógenos (componentes tóxicos, alte‑ rações nos ácidos nucleicos, proteínas intracelulares), que de‑ sencadeiam a ativação de sensores celulares ricos em leucina (NLR), ativação de fatores pró-inflamatórios como NFkb, se‑ creção de citocinas e indução de apoptose. As diversas proteí‑ nas, alvo de mutações envolvidas nas doenças autoinflamató‑ rias, participam na regulação da citocina IL-1-beta. Esse complexo proteico foi denominado inflamossomo e com‑ preende fundamentalmente um sensor celular NLR, duas pro‑ teínas de conexão (ASC e cardinal) e um efetor (ICE).4 Apesar de apresentarem um curso semelhante com episó‑ dios recorrentes de inflamação sistêmica, distinguem-se entre si por variações na clínica, por mutações genéticas específicas
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1809
e pelo modo de transmissão hereditária (Tabela 1). As opções terapêuticas para cada uma dessas síndromes também são di‑ ferentes. O diagnóstico diferencial é feito por meio de um exa‑ me clínico exaustivo, seguido da análise genética específica para a(s) síndrome(s) mais provável(is).5 No diagnóstico dife‑ rencial, é importante excluir outras doenças inflamatórias crô‑ nicas, como neoplasias e infecções. A seguir, serão abordadas algumas dessas síndromes. Síndromes de febre periódica hereditária Febre familiar do Mediterrâneo A febre familiar do Mediterrâneo (FFM) é uma doença de transmissão autossômica recessiva, frequente em populações da bacia mediterrânea, nomeadamente judeus sefarditas, tur‑ cos e descendentes de árabes. O gene envolvido (MEFV) codi‑ fica uma proteína denominada pirina ou marenostrina.2 A FFM é a síndrome autoinflamatória de maior prevalência e acomete mais de 100.000 indivíduos em todo o mundo. O início da doença geralmente é na infância e, em mais de 80% dos pacientes, ocorre antes dos 10 anos de idade.6 O diag‑ nóstico deve ser baseado em dados clínicos, sem demora na instituição da terapêutica.6 A FFM é caracterizada por episódios recorrentes de febre e serosite (peritonite, pleurite ou artrite) de início súbito e curta duração, entre 6 horas e 4 dias. As manifestações mais fre‑ quentes são dor abdominal, geralmente muito intensa e acom‑ panhada de prostração, com ou sem sinais de peritonite fran‑ ca (sendo frequente a dor à descompressão na palpação abdominal), artrite e artralgia acometendo grandes articula‑ ções e dor torácica como manifestação de pleurite. Apresenta também alterações cutâneas características, como o rash erisi‑ peloide nos pés e em região pré-tibial (Figura 1). Orquite é rara, mas pode simular torção de testículo, princi‑ palmente em pacientes mais jovens.4,6 Laboratorialmente, ocorre leucocitose, elevação da proteí‑ na C reativa (PCR), do fibrinogênio e da proteína amiloide A sérica.
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Tabela 1 Síndromes autoinflamatórias6 Síndromes
Transmissão
Genes e fatores de risco
Síndromes de febre periódica hereditária Febre familiar do Mediterrâneo
AR
MEFV
Síndrome periódica associada ao receptor do fator de necrose tumoral
AD
TNFRSF1A
Síndrome hiper-IgD com febre periódica
AR
MVK
Síndrome autoinflamatória familiar induzida pelo frio
AD
CIAS1/NALP3/PAF1
Síndrome de Muckle-Wells
AD
CIAS1/NALP3/PAF1
Síndrome CINCA
AD
CIAS1/NALP3/PAF1
Deficiência do antagonista do receptor de IL-1
AD
IL1RN
Síndromes febris idiopáticas Febre periódica, aftas, faringite e adenite
Não familiar
Artrite idiopática juvenil sistêmica
Complexa
Doença de Still do adulto
Não familiar
Polimorfismo IL-6, MIF, LACC1
Doenças granulomatosas Síndrome de Blau
AD
NOD2/CARD 15
Doença de Crohn
Complexa
NOD2/CARD15/ABCB1 (ala893)
Sarcoidose de início precoce
Esporádica, AD
NOD2/CARD 15
Síndrome de artrite piogênica, pioderma gangrenoso e acne
AD
PSTPIP1
Osteomielite crônica multifocal recorrente
Esporádica, AR
LPIN (associado a síndrome de Majeed); PSTP1P2 (?)
Síndrome de sinovite, acne, pustulose, hiperostose e osteíte
Não familiar
Doenças piogênicas
Doenças com hemofagocitose Linfo-histiocitose hemofagocítica primária
AR
PFR1, RAB27A
Síndrome de ativação macrofágica
Não familiar
Doenças reumatológicas pediátricas
AD
C1NH
Doenças do complemento Angioedema hereditário Síndromes vasculíticas Doença de Behçet
Complexa
HLA-B51
Deficiência de adenosina desaminase 2
AR
CECR1
Vasculopatia associada a STING com início na infância
AD
TMEM173
Autoinflamação, deficiência de anticorpos e alterações imunológicas associadas ao PLCG2
AD
PLCG2
AR: autossômico recessivo; AD: autossômico dominante.
O tratamento com colchicina é eficaz na prevenção das cri‑ ses, diminuindo a sua frequência e reduzindo a probabilidade de aparecimento de amiloidose, a complicação mais grave e temível dessa doença.6 O diagnóstico precoce e a adesão à terapêutica com colchi‑ cina são os aspectos fundamentais para o correto tratamento da FFM e a prevenção da amiloidose secundária.7
Figura 1 Rash erisipeloide em paciente com febre familiar do Mediterrâneo.
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Síndrome periódica associada ao receptor do fator de necrose tumoral A síndrome associada ao receptor do fator de necrose tumoral (tumor necrosis factor receptor associated periodic syndrome – TRAPS) é causada por mutações no gene TNFRSF1A e apre‑ senta transmissão autossômica dominante.5 Os dados clínicos mais úteis para distinguir essa síndrome das outras febres pe‑
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Doenças Autoinflamatórias •
riódicas são o caráter prolongado dos episódios febris, que po‑ dem chegar a ter várias semanas de duração, a conjuntivite e as mialgias localizadas.4 O início da doença geralmente ocorre antes dos 20 anos de idade. O comprometimento cutâneo é caracterizado por exante‑ ma eritematoso em placas que variam de 1 a 30 cm de tama‑ nho, dolorosas e que circundam a área acometida pela mialgia; esse quadro álgico tem característica migratória centrífuga causada por uma fasciíte monocítica, demonstrável por bióp‑ sia e ressonância magnética (RM). O sintoma que mais acompanha a febre é a dor abdominal (77%), caracterizada por início súbito e forte intensidade, le‑ vando 33% dos pacientes à laparotomia branca. Conjuntivite e edema periorbitário doloroso são comuns durante os episódios febris.6 Outras manifestações incluem pleurite, orquite e linfadenopatia.6 A avaliação laboratorial durante a crise revela neutrofilia, aumento da PCR e estimulação policlonal de imunoglobulinas, em especial IgA, mas também IgD. Corticoterapia na dose de 1 mg/kg/dia diminui a gravidade dos sintomas, mas não altera a frequência dos episódios de agudização. O uso de colchicina, agentes citotóxicos, imuno‑ globulina, dapsona, talidomida e metotrexato não trouxe efei‑ tos benéficos, porém o uso de etanercepte mostrou uma redu‑ ção na frequência das crises. Síndrome hiper-IgD com febre periódica O gene implicado na síndrome hiper-IgD (hyper IgD syndrome – HIDS) é o da mevalonatoquinase (MVK), localizado no cro‑ mossomo 12q24, enzima que participa da via da biossíntese do colesterol e compostos isoprenoides e que, nesses pacien‑ tes, apresenta uma atividade de 5 a 15% do normal. A redução da sua atividade provoca o acúmulo do substrato mevalona‑ to.4 A transmissão é autossômica recessiva. Caracteriza-se por episódios febris recorrentes que geral‑ mente têm início no 1º ano de vida, com 4 a 6 dias de duração, seguidos por diminuição gradual da febre. Os episódios febris tendem a recorrer a cada 4 a 6 semanas, podendo ser desenca‑ deados por vacinações, traumatismos mínimos, cirurgias ou estresse.5 A clínica engloba adenomegalias cervicais, dor ab‑ dominal, vômitos, diarreia, artralgias ou artrites de grandes articulações, exantema maculopapular eritematoso ou peté‑ quias, que, quando presentes, desaparecem lentamente após a resolução da crise. A associação do quadro clínico caracterís‑ tico a duas determinações de IgD superiores a 100 U/mL com 1 mês de intervalo permite fazer o diagnóstico presuntivo.6 Menos de 1% dos pacientes apresenta a deficiência comple‑ ta da MVK, ocasionando atraso de desenvolvimento, dismor‑ fismo facial, ataxia, hipotonia, miopatia e catarata. Essa forma é definida como acidúria mevalônica. Não existe tratamento específico para a HIDS. Estão descri‑ tos casos pontuais de melhora com a administração de corti‑ costeroides, imunoglobulina humana endovenosa em doses altas, colchicina e ciclosporina A.7 A administração de blo‑ queador de interleucina 1 mostrou resultados promissores no tratamento da deficiência de MVK.8
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Síndromes de febres periódicas associadas à criopirina São três síndromes – síndrome autoinflamatória familiar in‑ duzida pelo frio (familial cold autoinflammatory syndrome – FCAS), síndrome de Muckle-Wells (SMW) e síndrome CINCA (chronic infantile neurological, cutaneous, and articular) – que compõem o grupo das síndromes periódicas associadas à crio‑ pirina. Essas síndromes resultam de várias mutações diferen‑ tes no gene CIAS1 (síndrome autoinflamatória induzida pelo frio) que dão origem a anomalias na criopirina. A transmissão é autossômica dominante. Clinicamente, representam um espectro contínuo, sendo a FCAS a forma mais leve, e a síndrome CINCA, a mais grave (Figura 2).3 As manifestações clínicas da FCAS iniciam-se no 1º ano de vida, com episódios recorrentes de febre, exantema ur‑ ticariforme não pruriginoso e artralgia, precipitados pela expo‑ sição ao frio. Mialgias, cefaleia, sudorese, sede intensa e náu‑ seas são outros sintomas frequentes. Na SMW, a clínica é semelhante à da FCAS, no entanto, há algumas diferenças: a presença de fatores precipitantes é me‑ nos comum; as manifestações articulares são mais significati‑ vas, podendo haver sinovite recorrente das grandes articula‑ ções; o envolvimento oftalmológico é frequente (conjuntivite, episclerite, iridociclite); há surdez neurossensorial e amiloidose. A síndrome CINCA caracteriza-se pelo aparecimento dos sintomas pouco tempo após o nascimento, com envolvimento cutâneo, articular e neurológico permanentes.3 Em geral, a primeira manifestação da doença é o exantema maculopapu‑ lar ou urticariforme, não pruriginoso, cuja intensidade varia com o tempo e o grau de atividade da doença (Figura 3). Segue-se o envolvimento ósseo e articular, que pode surgir em dois tempos diferentes, com implicações prognósticas im‑ portantes: • durante o 1º ano de vida – poliartrite simétrica afetando prefe‑ rencialmente as grandes articulações, com deterioração rápi‑ da, perda de função e deformidade articular resultante de um hipercrescimento ósseo nas epífises e cartilagens de cresci‑ mento, com ossificação irregular, sendo típica a deformação esferoidal da patela (Figura 4); • após os 2 anos de vida (50%) – artrite não destrutiva leve. A maioria dos doentes sofre uma deterioração neurológica pro‑ gressiva resultante de meningite asséptica crônica (90%). Po‑ dem ainda desenvolver diplegia espástica e epilepsia. Esses doentes apresentam um aspecto fenotípico clássico, com ma‑ crocefalia, bossa frontal, nariz em sela, mãos e pés curtos e grossos, palmas e plantas enrugadas (Figura 5).
FCAS
SMW
CINCA
Gravidade
Figura 2 Síndromes de febres periódicas associadas à criopirina.
FCAS: familial cold autoinflammatory syndrome – síndrome autoinflamatória familiar induzida pelo frio; SMW: síndrome de Muckle-Wells; síndrome CINCA: chronic infantile neurological, cutaneous, and articular.
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que pode levar à cegueira; a surdez neurossensorial também é uma complicação frequente. A utilização de corticosteroides e anti-inflamatórios não hormonais (AINH) proporciona alguma melhoria clínica tem‑ porária. A terapêutica com drogas anti-IL-1 tem se revelado uma opção muito eficaz no tratamento desse grupo de síndro‑ mes.4 Os aspectos mais relevantes para o diagnóstico diferen‑ cial de síndrome CINCA com a artrite idiopática juvenil são: iní‑ cio nas primeiras semanas de vida, uveíte recorrente, cefaleia, surdez neurossensorial, atraso mental e meningite crônica.9
Figura 3 Rash cutâneo urticariforme não pruriginoso – síndrome CINCA.
Figura 4 Hipercrescimento ósseo nas epífises e cartilagens de crescimento com ossificação irregular – síndrome CINCA.
Deficiência do antagonista do receptor de IL-1 Doença muito rara, descrita em 2009, de transmissão autossô‑ mica recessiva, em que há uma alteração do gene IL1RN que codifica o antagonista do receptor da IL-1. Os sintomas come‑ çam geralmente nas primeiras semanas de vida, com dores ós‑ seas e deformação óssea progressiva. Pode ocorrer periostite dos ossos longos e alargamento das extremidades anteriores dos arcos costais. Associam-se, com frequência, alterações cutâneas extensas, como pustulose, ictiose e lesões ungueais semelhantes às da psoríase. É potencialmente fatal e, embora seja resistente à corticoterapia, pode ser eficazmente tratada com bloqueadores de IL-1.8,10 Síndromes febris idiopáticas Febre periódica, aftas, faringite e adenite A síndrome PFAPA (periodic fever, aphthous stomatitis, pharyngitis, cervical adenitis) é uma enfermidade benigna que se caracteriza por episódios recorrentes de febre alta, estoma‑ tite aftosa, faringite e adenite cervical em crianças menores de 5 anos. As crianças apresentam-se saudáveis entre os episó‑ dios febris, cujo intervalo é, classicamente, de 28 dias. Os cri‑ térios para diagnóstico de PFAPA estão na Tabela 2. A prednisona aborta os sinais e sintomas quando adminis‑ trada em fase inicial, porém os sintomas atenuam-se esponta‑ neamente com o avanço da idade. Não são descritas sequelas em longo prazo.11-14 Artrite idiopática juvenil sistêmica Existe uma grande discussão quanto à artrite idiopática juve‑ nil sistêmica (AIJS) ser considerada uma entidade clínica úni‑ ca, diferente mesmo na sua forma clínica típica das outras for‑ mas de artrite idiopática juvenil, o que sugere diferentes mecanismos etiopatogênicos, já sugeridos no artigo original de George Frederic Still. Os anticorpos antinucleares (AAN) e os fatores reumatoides são geralmente negativos, e nunca foi
Figura 5 Macrocefalia e bossa frontal – síndrome CINCA.
A RM de crânio pode ser normal ou mostrar sinais de atrofia cerebral e ventriculomegalia, achados muitas vezes relaciona‑ dos com atraso mental (75%).4 A inflamação ocular também é frequente (panuveíte, papiledema, papilite ou atrofia óptica)
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Tabela 2 Critérios para diagnóstico de PFAPA Inclusão
Exclusão
> 3 febres documentadas Duração < 5 dias Ocorrem em intervalos de 3 a 6 semanas Faringite, úlceras aftosas ou linfonodos cervicais dolorosos Bom estado geral entre os episódios
Neutropenia Inflamação entre os períodos febris História familiar
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demonstrada a presença de outros autoanticorpos ou células T respondem à administração de corticosteroides. Nos casos re‑ autorreativas. A associação genética a polimorfismos dos ge‑ fratários, estão descritas duas alternativas terapêuticas: anti‑ nes das citoquinas inflamatórias IL-6, TNF-alfa e MIF (macro- -TNF-alfa, que também parece ser eficaz no tratamento do pio‑ phage migration inibition factor) evidenciam de forma indireta derma gangrenoso, e antagonistas do receptor da IL-1, a possibilidade de inclusão da AIJS nas síndromes autoinfla‑ administrados de forma intermitente, apenas no tratamento matórias, assim como a boa resposta ao anakinra (inibidor do das crises de artrite.17 receptor de IL-1), à semelhança de outras síndromes autoin‑ flamatórias (p.ex., a síndrome CINCA), pode ser outra evidên‑ Osteomielite crônica multifocal recorrente cia da sua natureza autoinflamatória.15 Descrita em 1972,18 a doença é mais prevalente em meninas Recentemente, na Arábia Saudita, foi identificada uma (4:1).19 Clinicamente, a osteomielite crônica multifocal recor‑ única mutação em LACC1 que foi associada com uma síndro‑ rente (chronic recurrent multifocal osteomyelitis – CRMO) imi‑ me semelhante à AIJS em 13 pacientes de 5 famílias consan‑ ta a osteomielite infecciosa.15,18-21 Os sinais e sintomas são insi‑ guíneas.16 diosos. Os doentes apresentam dor óssea multifocal A AIJS será discutida em capítulo específico. acompanhada ou não de febre baixa. A sintomatologia local é de um processo inflamatório com dor, tumefação, rubor e im‑ Doenças piogênicas potência funcional. As metáfises dos ossos longos, como a tí‑ Síndrome de artrite piogênica, pioderma bia, são frequentemente comprometidas, no entanto, costelas, gangrenoso e acne clavícula e corpos vertebrais também podem ser acometidos. A síndrome PAPA (pyogenic arthritis, pyoderma gangrenosum, Ao contrário da osteomielite bacteriana, não existe repercus‑ and acne) é uma doença de transmissão autossômica domi‑ são sobre o estado geral do doente. A evolução da doença é ha‑ nante causada por mutações no gene PTSTIPA (proline-serine- bitualmente caracterizada pela apresentação periódica das -threonine phosphatase interacting protein 1).9 Caracteriza-se crises dolorosas com posterior remissão. Na maioria dos doen‑ por episódios recorrentes de inflamação nas articulações e na tes, observa-se uma lesão sintomática em cada crise, apesar pele: artrite piogênica estéril, de início na infância; pioderma da presença de várias lesões simultâneas. A associação de gangrenoso (Figura 6); acne cística grave, de início na adoles‑ CRMO a outras patologias, como doença inflamatória do in‑ cência e que persiste na idade adulta. Embora os episódios de testino, psoríase, pustulose palmoplantar e síndrome de inflamação sejam autolimitados, a sua recorrência leva a acú‑ Sweet, foi descrita. A etiologia é desconhecida, no entanto, há evidência de mulo de material piogênico estéril (rico em neutrófilos) e des‑ truição das articulações afetadas. Os episódios recorrentes de uma possível suscetibilidade genética.21 artrite estéril ocorrem geralmente após traumatismos míni‑ A suspeita do diagnóstico é clínica.15,20,22 As alterações labo‑ 9 mos, mas também podem surgir espontaneamente. ratoriais mostram discreta elevação da velocidade de sedi‑ Outras manifestações menos frequentes são o diabete me‑ mentação (menor que na osteomielite infecciosa) e o hemo‑ lito insulino-dependente de início na idade adulta, proteinú‑ grama é habitualmente normal. As alterações radiográficas ria e formação de abscessos no local de injeções. Alguns casos dependem da fase da doença e assemelham-se às encontradas na osteomielite: lesões osteolíticas no início da doença que gradualmente são rodeadas por esclerose marginal com alar‑ gamento do osso afetado. As alterações radiológicas iniciais podem simular sarcoma ósseo. A RM e a tomografia computadorizada (TC) podem for‑ necer informação sobre as articulações e os tecidos moles ad‑ jacentes. A cintilografia óssea é útil para detectar outras áreas afetadas assintomáticas. Os achados histopatológicos não são específicos, no entan‑ to, a biópsia óssea é necessária para excluir processo infeccio‑ so (culturas para bactérias aeróbias e anaeróbias, fungos e mi‑ cobactérias típicas e atípicas), bem como outros diagnósticos, como neoplasias.15,20,22 A terapêutica de escolha é usar AINH. Os corticosteroides também podem ser úteis. Tratamentos mais recentes com o bloqueador do fator de necrose tumoral (TNF-alfa) inflixima‑ be mostraram boa resposta.15,20,22
Figura 6 Pioderma gangrenoso em cicatrização – síndrome PAPA.
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Doenças granulomatosas Síndrome de Blau É uma doença inflamatória sistêmica rara, caracterizada pelo aparecimento precoce de artrite granulomatosa, uveíte e le‑
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sões cutâneas. Está relacionada à mutação no gene NOD2 a patogênese permaneça pouco compreendida, vários estudos (16q12), responsável pelas alterações na resposta imune inata, demonstraram que a predisposição genética é um fator impor‑ inflamação e apoptose. tante para a suscetibilidade à doença.25,26 As manifestações articulares (artrites, tenossinovites e cis‑ O HLA-B51 (subtipo B510101) é o marcador genético mais tos sinoviais, simétricos, em grandes articulações) têm início fortemente associado à doença. antes dos 10 anos de idade. A camptodactilia decorrente de te‑ nossinovite hipertrófica é característica e sinal de progressão Deficiência de adenosina desaminase 2 da doença. O comprometimento cutâneo é descrito como der‑ A deficiência de adenosina desaminase 2 (ADA2) caracteriza‑ matite ictiosiforme, que pode ser confundida com dermatite -se por inflamação anormal de vários tecidos, particularmente atópica na sua fase inicial23 (Figura 7). os vasos sanguíneos (vasculite). Os sinais e sintomas podem As manifestações clínicas incluem febre, hipertensão sistê‑ ter início tanto na criança como no adulto. A gravidade da mica e pulmonar maligna, vasculite dos grandes vasos e infla‑ doença também varia, mesmo entre indivíduos afetados da mação granulomatosa de fígado, rins e pulmão. mesma família. O comprometimento ocular com perda visual significativa Caracteriza-se inicialmente por acidente vascular encefáli‑ ocorre em 20 a 30% dos indivíduos afetados e resulta de iridoci‑ co e livedo reticular (Figura 9). A inflamação descontrolada clite granulomatosa insidiosa e uveíte posterior, que podem que a deficiência de ADA2 pode ocasionar causa comprometi‑ evoluir para um panuveíte destrutiva grave. Também pode ocor‑ mento do trato gastrointestinal, rins e sistema nervoso. Ape‑ rer o envolvimento posterior com vitrite, coroidite multifocal, sar de cursar com febre intermitente e hepatoesplenomegalia, doença vascular da retina e edema do nervo óptico23 (Figura 8). a deficiência de ADA2 não está associada com aumento signi‑ Não há evidências em relação ao tratamento ideal da ficativo do risco de infecções bacterianas e virais, pois as alte‑ síndrome de Blau. Baixas doses diárias de corticosteroides as‑ rações do sistema imunológico são discretas. Dependendo da gravidade e da localização da inflamação, a sociadas ao metotrexato são efetivas na maioria dos casos, ex‑ ceto nas uveítes. Drogas anti-TNF, como infliximabe e adali‑ doença pode causar incapacidade ou ser fatal.27 mumabe, podem contribuir no avanço do tratamento do quadro articular, no entanto, seus efeitos sobre a uveíte são Vasculopatia associada a STING com início menos convincentes. Estudos mostram o potencial efeito do na infância canaquinumabe sobre esses pacientes.24 Descrita há pouco tempo, é definida como uma vasculopatia causada por mutações de aumento da função do TMEM173/ Doenças do complemento STING. Inicia-se nos primeiros meses de vida, com vasculopa‑ Doença de Behçet tia manifestando-se com trombose microangiopática princi‑ É uma doença inflamatória sistêmica, caracterizada por úlce‑ palmente em face, orelhas, nariz, dedos, mãos e pés. Essas le‑ ras orais e genitais recorrentes e envolvimento ocular. Embora sões começam como erupções cutâneas e podem progredir para úlceras, necrose, perfuração de septo nasal e amputações. Tem como característica o fenômeno de Raynaud de início precoce, febre baixa recorrente e linfonodomegalia. Miosite e comprometimento articular são raros. Pode ocorrer doença pulmonar intersticial que, por sua vez, pode levar à fibrose.28
Figura 7 Dermatite ictiosiforme em criança com síndrome de Blau.
Figura 8 Uveíte em criança com síndrome de Blau.
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Autoinflamação, deficiência de anticorpos e alterações imunológicas associadas ao PLCG2 É uma doença sistêmica autossômica dominante caracteriza‑ da por lesões cutâneas bolhosas recorrentes, com infiltrado in‑ flamatório denso e participação variável de outros tecidos, como olhos, articulações e trato gastrointestinal. Os indiví‑ duos afetados têm uma deficiência imunológica humoral leve associada a sinusites e infecções pulmonares recorrentes, sem autoanticorpos circulantes.29
Figura 9 Livedo reticular em paciente com deficiência de ADA2.
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Doenças Autoinflamatórias •
Nos casos relatados, os sintomas foram parcialmente con‑ trolados com corticosteroides em altas doses e drogas anti‑ -IL-1.29 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender a definição das doenças autoinflamatórias e sua diferenciação com doenças autoimunes. • Atentar para os sinais e sintomas que podem sugerir o diagnóstico de doença autoinflamatória. • Fazer diagnóstico diferencial entre os diversos tipos de doenças autoinflamatórias. • Solicitar exames que auxiliem no diagnóstico diferencial com doenças infecciosas e neoplásicas. • Estar atento para uma boa anamnese e exame físico, pois eles podem dar o diagnóstico antes da realização de testes genéticos. • Conhecer as possibilidades de tratamento visando à redução da morbimortalidade deste grupo de doenças.
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CAPÍTULO 8
INFECÇÕES OSTEOARTICULARES Christina Feitosa Pelajo Sheila Knupp Feitosa de Oliveira
Introdução Bactérias, vírus, fungos e parasitas podem causar artrite de na‑ tureza aguda ou crônica, que pode ser classificada em infeccio‑ sa/séptica, reativa ou inflamatória.1 Na artrite séptica ou infec‑ ciosa, é possível identificar o agente etiológico nas articulações, secundário a uma infecção em outra parte do corpo. Na artrite pós-infecciosa e na reativa, o microrganismo não é detectado na articulação. Este capítulo abordará algumas artrites infec‑ ciosas bacterianas, as artrites virais e as artrites reativas.
Tabela 1 Prováveis agentes etiológicos nas diferentes faixas etárias
Artrites infecciosas bacterianas Artrite séptica A artrite séptica é a infecção bacteriana intra-articular. É con‑ siderada uma emergência médica, pois pode resultar em se‑ quelas graves se não reconhecida e tratada a tempo. O meca‑ nismo de infecção mais comum é por disseminação hematogênica a partir de qualquer foco infeccioso, mas pode ocorrer por inoculação direta após traumas abertos ou por complicações de procedimentos médicos, como punções.2
Outras bactérias, como Pseudomonas, Pasteurella e Klebsiella, são mais raras
Epidemiologia A artrite séptica afeta crianças de todas as idades. No período neonatal, geralmente resulta de procedimentos invasivos. É um pouco mais frequente em meninos (55 a 62% dos casos) e não há predileção racial. Etiologia A bactéria mais prevalente em todas as idades é o S. aureus (até 85%), mas em aproximadamente 1/3 dos casos não se consegue isolar o agente etiológico. Nesses casos, a análise da faixa etária e dos fatores predisponentes dirigem as suspeitas para outros agentes (Tabela 1). Quadro clínico A criança com artrite séptica geralmente se apresenta febril, ir‑ ritada, com intensa dor articular, posição antálgica, acompa nhada dos demais sinais inflamatórios: edema, rubor, calor e
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Recém-nascidos: bactérias Gram-negativas e estreptococos do grupo B, encontrados no canal do parto ou material cirúrgico contaminado Lactentes de 6 meses a 2 anos de idade: Haemophilus influenzae tipo B, mais raro após a disponibilidade da vacina anti-hemófilo Salmonella: aproximadamente 1% de todos os casos, particularmente comum na anemia falciforme Neisseria gonorrhoeae: é o principal agente etiológico dos adultos jovens com vida sexual ativa
perda de mobilização. Devem ser investigados fatores predis‑ ponentes, como infecções recentes e traumas. Em geral, a artrite séptica é monoarticular, embora possa envolver múltiplos sítios em pacientes com septicemia e em imunodeprimidos. A articulação do joelho é a mais acometida, seguida por quadril, tornozelo, cotovelo e ombro. O diagnóstico pode ser mais difícil em recém-nascidos por ser menos evidente o envolvimento articular em posição an‑ tálgica. Pode haver irritabilidade, letargia, ausência de febre, recusa alimentar e vômitos, e, portanto, todo neonato com septicemia deve ter as articulações avaliadas. Em crianças maiores, pré-escolares e escolares, deve-se es‑ tar atento à possibilidade de dor referida em um sítio distal à lesão, como a dor referida em joelho no paciente com artrite de quadril. O exame físico cuidadoso revelará a sede anatômi‑ ca da lesão. Na posição antálgica da artrite de quadril, o paciente man‑ tém a coxa em abdução, flexão e rotação externa; na artrite do joelho, o membro fica em flexão parcial; na artrite do ombro, há rotação interna; e na artrite do cotovelo, discreta flexão. Diagnóstico O exame mais importante é a análise do líquido sinovial, que se mostra pouco viscoso, de aspecto turvo e purulento, com
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Infecções Osteoarticulares •
leucocitose intensa (em geral > 50.000) e predomínio de poli‑ morfonucleares (em geral > 75%). A cultura do líquido sinovial é indispensável para identificar o agente infeccioso e testar a sensibilidade ao antimicrobiano. Além de servir à investiga ção diagnóstica, a punção do líquido retira o material infecta‑ do, diminui a pressão intra-articular e alivia a dor. Na suspeita diagnóstica de artrite séptica, hemoculturas também devem ser solicitadas. O hemograma pode ser normal na fase inicial e depois evo‑ luir com leucocitose e neutrofilia. As provas de atividade infla‑ matória, como a proteína C reativa (PCR) e a velocidade de hemossedimentação (VHS), estão elevadas. Em recém-nasci‑ dos, o hemograma e a VHS podem estar normais. Nas fases in iciais da doença, a ultrassonografia evidencia apenas o aumento do líquido sinovial. As radiografias simples só são expressivas após 1 ou mais semanas de doença, quando mostram aumento do espaço articular, edema de tecidos mo‑ les, distensão da cápsula e subluxação (principalmente em quadris de recém-nascidos). A cintilografia óssea e a resso‑ nância magnética (RM) são úteis para o diagnóstico precoce, pois permitem detectar a inflamação em fase inicial principal‑ mente em articulações profundas como as sacroilíacas. Tratamento O tratamento tem como objetivos prevenir a destruição da car‑ tilagem articular e manter o movimento e a função articular. Após solicitar as culturas (sangue e líquido sinovial) para identificar o agente etiológico, inicia-se o antibiótico de acor‑ do com a idade e os fatores predisponentes, substituindo-o, se necessário, quando o antibiograma estiver disponível, ou na falta de resposta à terapia inicial. Tradicionalmente, a duração da terapia é de 6 a 8 semanas, sendo nas 3 p rimeiras semanas por via endovenosa. A mudança para via oral baseia-se na me‑
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lhora clínica e laboratorial (redução das provas de atividade inflamatória). Entretanto, estudos recentes sugerem que cur‑ sos mais curtos (10 a 14 dias) de antibióticos em altas doses podem ser igualmente eficazes, desde que a resposta clínica seja adequada e os níveis de PCR se normalizem. Contudo, essa prática ainda não é corriqueiramente adotada e os cursos mais longos de antibiótico continuam sendo a prática mais co‑ mum. A Tabela 2 demonstra os principais agentes etiológicos e os antibióticos mais comumente empregados nas diversas faixas etárias. Tradicionalmente, a drenagem cirúrgica aberta em casos de artrite do quadril era recomendada para reduzir a morbidade; entretanto, estudos recentes sugerem que talvez essa aborda‑ gem nem sempre seja necessária. Prognóstico O curso da doença é rápido e sequelas graves podem ocorrer, principalmente se houver lesão da cartilagem de crescimento e do núcleo epifisário. É importante que o diagnóstico seja precoce e o tratamento adequado iniciado em tempo hábil. Artrite gonocócica A artrite gonocócica, causada pela Neisseria gonorrhoeae, é uma forma de artrite séptica relatada em todos os grupos etá‑ rios pediátricos e será revista separadamente porque tem cer‑ tas particularidades.3 A transmissão vaginal durante o parto, o relacionamento sexual entre adolescentes e o abuso sexual são as principais fontes de transmissão. Epidemiologia A maioria dos casos ocorre em adolescentes. O sexo feminino é o mais afetado, diferentemente do que se observa em adultos.
Tabela 2 Opções de antibioticoterapia de acordo com a faixa etária e provável agente etiológico Faixa etária
Microrganismo
Recém-nascido (≥ 2 kg, ≥ 7 dias de vida)
Menores de 5 anos
Antibiótico
Dose
S. aureus
Oxacilina
100 a 200 mg/kg/dia
Estreptococo do grupo B
Ampicilina + gentamicina
100 a 200 mg/kg/dia/ 8 mg/kg/dia
Gram-negativos entéricos
Gentamicina
8 mg/kg/dia
S. aureus
Oxacilina
100 a 200 mg/kg/dia
H. influenzae
Ceftriaxona ou cefotaxima
50 a 100 mg/kg/dia 100 a 200 mg/kg/dia
Kingella kingae
Penicilina cristalina ou oxacilina
250.000 UI/kg/dia 100 a 200 mg/kg/dia
Streptococcus pyogenes
Penicilina cristalina
250.000 UI/kg/dia
Streptococcus pneumoniae
Penicilina cristalina
250.000 a 400.000 UI/kg/dia
S. aureus
Oxacilina
100 a 200 mg/kg/dia
Streptococcus pyogenes
Penicilina cristalina
250.000 UI/kg/dia
(anemia falciforme)
Salmonella sp
Cefotaxima ou ceftriaxona
100 a 200 mg/kg/dia 50 a 100 mg/kg/dia
Adolescentes
N. gonorrhoeae
Ceftriaxona
50 mg/kg/dia
Pseudomonas
Ceftazidima
100 mg/kg/dia
Maiores de 5 anos
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Quadro clínico O quadro clínico varia de acordo com a idade do paciente. Em recém-nascidos, as manifestações articulares surgem em 1 a 2 semanas após o parto, com ou sem febre, irritabilidade e ano‑ rexia. Frequentemente, a artrite é poliarticular, cumulativa, com importante edema periarticular. Entre as manifestações extra-articulares, pode ser encontrado o exantema tóxico mi‑ liar; vulvovaginite e secreções retais não são achados comuns. A oftalmia gonocócica é rara em razão do uso rotineiro do ni‑ trato de prata para sua prevenção. A maioria dos adolescentes que desenvolve artrite gonocócica apresenta infecção geniturinária assintomática. A infecção gono‑ cócica disseminada costuma evoluir com uma fase inicial, bacte‑ riêmica, caracterizada por febre, calafrios, poliartralgia/poliartri‑ te migratória ou aditiva, tenossinovite assimétrica em dorso das mãos e tornozelos e lesões cutâneas. Em poucos dias, a artralgia pode regredir ou, mais frequentemente, evoluir para artrite fran‑ camente séptica de uma ou mais articulações, em geral de modo assimétrico e preferencialmente em membros superiores (pu‑ nhos). A presença de pápulas, vesículas ou pústulas com base eritematosa, não dolorosas e não pruriginosas, localizadas prin‑ cipalmente em extremidades, ocorre em 2/3 dos casos. Diagnóstico Os achados no hemograma, aumento da VHS e da PCR são inespecíficos e podem revelar apenas a presença do processo inflamatório, tanto no recém-nascido, como na criança m aior. O líquido sinovial é caracteristicamente inflamatório, com contagem de leucócitos entre 30.000 e 100.000 células/mL, com predomínio de polimorfonucleares. A cultura deve ser feita em meios especiais, entretanto, ainda assim, o resultado é negativo em 50% dos casos. Raramente, a bacterioscopia é positiva. É importante fazer culturas de outros locais, como trato genital, orofaringe, reto e vesículas cutâneas. Os exames de imagem na fase aguda mostram apenas ede‑ ma de partes moles, porém, quando o tratamento é retardado, as alterações evolutivas são idênticas às das outras formas de artrite séptica. Tratamento Em 1989, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças nos EUA recomendou o uso de ceftriaxona como droga de escolha para todas as infecções gonocócicas. Em adultos, a dose utili‑ zada é de 1 g intramuscular ou endovenosa, a cada 24 horas, durante 7 dias. Em crianças, a dose recomendada de ceftriaxo‑ na é de 50 mg/kg/dia a cada 24 horas, por 7 dias. Recomenda‑ -se também o tratamento presuntivo de Chlamydia em todos os pacientes com infecção gonocócica. Artrite meningocócica A infecção meningocócica pode ser assintomática ou apresen‑ tar-se com meningite e septicemia. As complicações articula‑ res variam de 2 a 10% nas séries relatadas. A artrite pode ser séptica, com a demonstração do agente etiológico na articulação, ou pode ser estéril, resultante da res‑ posta imunológica, após o início da terapêutica específica.4,5
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Quadro clínico
Artrite séptica
Sintomas como febre, mal-estar, náuseas, vômitos, mialgias, letargia e exantema precedem o início da artrite séptica, geral‑ mente poliarticular, com derrames pequenos ou ausentes na maioria dos casos. A Neisseria meningitidis é isolada no líquido sinovial purulento em 80 a 90%, no sangue em 40%, e na oro‑ faringe em 30% dos casos de artrite séptica primária. Artrite imunomediada
Ocorre durante a recuperação da infecção meningocócica, também chamada pós-meningocócica. Caracteriza-se pela es‑ terilidade do líquido sinovial, pela insensibilidade aos antibió‑ ticos e pela responsividade aos anti-inflamatórios não hormo‑ nais (AINH). Acomete preferencialmente as grandes articulações e excepcionalmente as pequenas articulações in‑ terfalângicas. Afeta mais de uma articulação em 60% dos ca‑ sos e é frequentemente bilateral. Geralmente surge nos primeiros 15 dias que se seguem à instalação da meningite, de‑ saparecendo sem deixar lesão residual. A artrite resulta da res‑ posta imunológica do hospedeiro à bactéria, com a participa ção de imunocomplexos que podem ser encontrados dentro da articulação e no sangue. Diagnóstico O diagnóstico bacteriológico é estabelecido pelo isolamento de Neisseria meningitidis de culturas de sangue, líquido cefalorra‑ quidiano (LCR) ou líquido sinovial. O LCR e o sangue são as mais proveitosas fontes de cultura positiva, mas nem sempre é possível isolar o agente no líquido sinovial da artrite séptica. O hemograma frequentemente apresenta leucocitose que varia de 12.000 a 40.000 células/mm3, mas na meningococ‑ cemia, número normal de leucócitos ou leucopenia podem ser encontrados. Anemia é incomum, e a VHS e as demais provas de atividade inflamatória estão frequentemente elevadas. Os pacientes com coagulação intravascular disseminada (CIVD) podem apresentar plaquetopenia e diminuição dos níveis séri‑ cos dos fatores de coagulação. O diagnóstico diferencial essencial é entre as duas formas de artrite, baseado na apresentação clínica e confirmado pela resposta terapêutica. Outras doenças que cursam com artrite e exantema devem ser consideradas no diagnóstico diferencial, destacando-se as vasculites, a gonococcemia, a endocardite bacteriana subaguda e as doenças virais exantemáticas. As considerações epidemiológicas, a demonstração do agente etiológico e as manifestações clínicas de cada doença ajudam a distinguir esses processos. Tratamento A antibioticoterapia recomendada na artrite séptica meningo‑ cócica consiste na penicilina cristalina (250.000 a 300.000 UI/kg/dia, máximo 12 milhões UI/dia, a cada 4 a 6 horas) ou ceftriaxona (100 mg/kg/dia). Na artrite de início tardio, pós-meningocócica, os antibióti‑ cos não são indicados, e sim os AINH. O prognóstico é exce‑ lente e, na m aioria dos casos, há cura sem sequelas.
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Artrites virais Os vírus também podem comprometer as articulações, sendo sempre mais comuns os quadros de artralgia do que verdadei ramente artrite. A evolução pode ser aguda ou crônica. A artrite viral deve ser mais frequente do que relatado na li‑ teratura, mas a benignidade do curso e a dificuldade de comprovação do agente etiológico, principalmente nos casos que não se acompanham de exantema típico, muitas vezes le‑ vam à suspeição diagnóstica de artrite viral, que infelizmente não pode ser comprovada. O envolvimento costuma ser poliarticular (pequenas e grandes articulações), migratório, ter curta duração (1 a 2 se‑ manas) e não deixar sequelas.6,7 Epidemiologia As artrites virais ocorrem mais frequentemente em adultos do que em crianças. Quadro clínico Parvovírus humano B19 O parvovírus B19 é o agente etiológico do eritema infeccioso, frequente na idade escolar, e caracteriza-se pelo aparecimento de eritema malar, que confere um aspecto de face esbofeteada, e um exantema maculopapular, com poucos sintomas asso‑ ciados (febre, cefaleia, dor de garganta, tosse, anorexia). Ar‑ tralgia pode ocorrer em 8% das crianças e artrite em 3%, mas em adolescentes e adultos, o exantema é menos característico e as manifestações articulares podem afetar 60% dos pacien‑ tes. Pode ser uma oligo ou poliartrite, frequentemente envol‑ vendo joelhos, mas também pode envolver quadris, metacar‑ pofalângicas e interfalângicas. A resposta aos AINH é boa, e o quadro resolve-se dentro de 3 a 4 semanas, podendo ser mais prolongado em adultos. O diagnóstico é confirmado com a presença de anticorpos específicos IgM que surgem no 10º dia e persistem positivos por cerca de 3 meses. A IgG começa a ser detectada a partir da 2ª semana do aumento da IgM. Chikungunya O vírus Chikungunya é transmitido pelo mosquito Aedes aegypti. Após um período de incubação que pode durar até 10 dias (geralmente 2 a 4 dias), tem início febre, exantema, con‑ juntivite, mialgia e artralgia/artrite envolvendo pequenas arti‑ culações das mãos e dos pés, punhos e tornozelos. A febre pode mostrar um padrão bifásico, inicialmente por um período de 1 a 6 dias, seguido de um intervalo apirético e, em seguida, um se‑ gundo ataque mais curto de febre. A artrite é menos frequente que a artralgia, mas pode durar semanas ou meses. As crianças são menos propensas a experimentarem dores articulares.8 Epstein-Barr A infecção aguda pelo EBV pode causar poliartralgia e, mais raramente, artrite. Em geral, surge no início da doença, de for‑ ma aguda, simétrica, poliarticular (interfalângicas proximais), mas ocasionalmente existe monoartrite.
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Rubéola Atualmente, com a disponibilidade da vacina, os casos de ru‑ béola tornaram-se menos frequentes e, consequentemente, os de artrite/artralgia por rubéola. As vacinas atuais também são menos artritogênicas. As manifestações articulares são mais comuns em adultos, principalmente em mulheres. A artrite da rubéola geralmente tem início agudo e apresen‑ ta-se dentro de 7 dias após o aparecimento do exantema típico. No caso da artralgia pós-vacinal, o início se dá dentro de 10 a 28 dias após a vacinação. Artralgia é mais frequente que artrite, podendo estar associada à rigidez matinal e envolver peque‑ nas e grandes articulações (metacarpofalângicas, interfalângi‑ cas, joelhos, punhos, tornozelos e cotovelos). Os sintomas ar‑ ticulares geralmente se resolvem em 3 a 4 semanas, porém podem persistir por meses ou anos. Hepatite B A artrite da hepatite B surge em quase 1/3 dos pacientes e ini cia-se no período pré-ictérico, caracterizado por febre, mialgia, mal-estar, anorexia, náuseas e vômitos. O envolvimento arti‑ cular geralmente é uma poliartrite simétrica envolvendo inter‑ falângicas proximais, metacarpofalângicas, joelhos e tornoze‑ los. Na maioria dos casos, a artrite cessa com o início da icterícia. O tratamento é de suporte, e a resposta ao anti-infla‑ matório em geral é boa. Hepatite C Os sintomas reumatológicos associados à hepatite C podem ser secundários à crioglobulinemia mista. Artralgia é uma das mais comuns manifestações extra-hepáticas, mas a artrite é muito menos frequente. Pacientes podem apresentar mono ou oligoartrite intermitente, não destrutiva, de grandes e mé‑ dias articulações. Varicela A varicela e a varicela-zóster raramente podem ser acompa nhadas de artrite na 1ª semana da doença. Geralmente, a artri‑ te envolve um joelho e caracteriza-se por evolução benigna e rápida resolução. Artrite séptica bacteriana também pode ocorrer como complicação da varicela. Caxumba Em crianças e adolescentes, a artrite pode preceder ou, mais comumente, suceder (1 a 3 semanas após) as manifestações da caxumba. É rara, em geral de leve intensidade, oligoarticu‑ lar e dura 1 a 2 semanas. HIV Artrite aguda associada ao HIV geralmente é autolimitada, dura cerca de 6 semanas e não deixa sequelas. Entretanto, a infecção por HIV pode estar associada a outras manifestações reumatológicas, sendo as mais comuns: artrite reativa, artrite psoriasiforme e espondiloartrite indiferenciada.
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Outros vírus Outros vírus têm sido associados à presença de artrite: citome‑ galovírus, adenovírus, herpes simples, coxsackievírus B, rota‑ vírus e echovírus.9 Tratamento e prognóstico A artrite viral aguda raramente necessita de tratamento espe‑ cífico. No entanto, se a duração da artrite for maior do que 6 semanas, um reumatologista deve ser consultado. Artrite reativa (pós-infecciosa) A artrite reativa representa uma resposta a uma bactéria que está ou esteve presente em outra parte do corpo, geralmente no trato gastrointestinal ou no trato geniturinário. Por defini‑ ção, agentes infecciosos viáveis não são encontrados no espaço sinovial, e a artrite reativa é vista como uma doença autoimune que resulta da reação cruzada entre estruturas arti‑ culares e antígenos infecciosos.9 Epidemiologia A artrite reativa ocorre em 20 a 25% dos indivíduos portadores de HLA B27, mas em apenas 1 a 4% da população normal. Nas crianças, as bactérias artritogênicas que têm origem entérica podem ser Yersinia, Salmonella, Shigella ou Campylobacter. No adolescente com vida sexual ativa, a possibilidade de in‑ fecção genital por Chlamydia trachomatis, Mycoplasma genitalium e Ureaplasma urealyticum deve ser investigada. Quadro clínico O quadro típico da artrite reativa consiste em uma oligoartrite assimétrica, predominante em membros inferiores, associada a evidência clínica ou laboratorial de infecção prévia genital ou entérica, em geral nas últimas 4 semanas. Outras manifesta‑ ções clínicas que podem ser observadas são: sacroileíte, dor lombar, entesite, exantema e inflamação ocular. Após um pe‑ ríodo de atividade clínica que pode variar de semanas a meses, a artrite melhora e o paciente entra em remissão ou evolui para uma fase de recorrência da atividade de doença, que pode progredir para um quadro de artrite relacionada à entesite ou de espondilite anquilosante. Úlceras orais em mucosa jugal e palato podem ocorrer e são, em geral, indolores. As manifestações cutaneomucosas asso‑ ciadas mais comuns são o eritema nodoso, a balanite circina‑ da e o ceratoderma blenorrágico. Conjuntivite ocorre em 2/3 dos casos no início do quadro. A síndrome de Reiter é uma denominação em desuso que se refere a um tipo de artrite reativa caracterizada pela tríade clássica de artrite, conjuntivite e uretrite (ou cervicite). Na fase inicial, o hemograma pode mostrar anemia, leuco‑ citose com neutrofilia e trombocitose. As imunoglobulinas, a VHS e a PCR podem estar aumentadas e correlacionam-se com atividade de doença. Os exames laboratoriais que devem ser solicitados para in‑ vestigar a infecção precedente incluem coprocultura e sorolo‑ gias (anticorpos contra bactérias artritogênicas). A uretrite e a cervicite podem estar associadas a piúria estéril.
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Tratamento AINH são necessários em quase todos os pacientes e corticos‑ teroides em alguns. Os anti-inflamatórios devem ser mantidos até que a remissão seja alcançada. Quando a artrite reativa se cronifica, medicações como a sulfassalazina e agentes biológi‑ cos anti-TNF-alfa devem ser prescritas e mantidas por longos períodos. Nesses casos, a medicação deve ser continuada por pelo menos 3 a 6 meses após a remissão ser atingida, para evi‑ tar reativação da doença. Prognóstico Os episódios de artrite reativa tendem a ser autolimitados, durando 3 a 6 meses. A maioria dos pacientes tem um único episódio de artrite, embora outros possam evoluir com qua‑ dros de artrite relacionada à entesite ou de espondilite anqui‑ losante. Desafios Mais estudos epidemiológicos são necessários para com‑ preender melhor e categorizar os microrganismos causadores de artrite. Além disso, os médicos devem dispor de exames la‑ boratoriais padronizados e validados, acrescentando novas técnicas que os ajudarão a diagnosticar e iniciar a terapia ade‑ quada. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer a artrite infecciosa como um diagnóstico comum, que deve ser lembrado no diagnóstico diferencial das artrites, principalmente das monoartrites agudas. • Identificar possíveis agentes etiológicos da artrite séptica de acordo com a idade do paciente e a história clínica. • Saber que a artrite séptica é uma emergência médica e que a análise e a cultura do líquido sinovial esclarecem a etiologia e favorecem o início precoce do tratamento adequado. • Reconhecer que a artrite gonocócica pode surgir em qualquer faixa etária e tem características clínicas que devem ser buscadas no diagnóstico diferencial com outras causas de artrite séptica. • Entender que as artrites virais devem ser mais comuns do que tem sido relatado, mas o diagnóstico etiológico nem sempre é fácil. • Compreender que a artrite reativa é uma complicação tardia de infecção urogenital ou entérica.
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CAPÍTULO 9
OSTEOPOROSE NA INFÂNCIA Maria Teresa Ramos Ascensão Terreri
Introdução Osteoporose é uma doença metabólica óssea caracterizada por densidade diminuída do osso normalmente mineralizado e comprometimento da microarquitetura óssea, com conse‑ quente aumento da fragilidade óssea e maior risco de fraturas. Para crianças e adolescentes, considera-se baixa massa óssea para a idade cronológica quando a densidade mineral óssea (DMO) é menor ou igual a 2,0 desvios padrão (DP) do valor normal para indivíduos saudáveis da mesma idade e sexo.1 Os‑ teoporose é definida como a alteração de DMO na presença de fratura.1,2 A aquisição da massa óssea é resultado do balanço entre a formação e a reabsorção ósseas. Na infância, a formação exce‑ de a reabsorção óssea, sendo esse processo mais intenso na adolescência. Nessa etapa, ocorre um acréscimo importante na massa óssea até ser atingido o pico de massa óssea definido como o máximo de massa óssea presente no final da matura‑ ção esquelética e atingido no final da 2ª década de vida. Fatores que determinam a massa óssea Existem vários fatores que determinam o pico de massa óssea, sendo o fator genético o principal. Entretanto, fatores como sexo, estado hormonal, peso corporal, ingestão alimentar, ati‑ vidade física e presença de fatores de risco, como uso de álcool ou fumo, doenças crônicas ou medicamentos osteopenizan‑ tes, podem influir na massa óssea.3 Causas primárias e secundárias de baixa massa óssea As causas primárias de osteoporose compreendem principal‑ mente a osteogênese imperfeita e a osteoporose idiopática ju‑ venil. São causas de osteoporose secundária: doenças endocrino‑ lógicas (hipopituitarismo, hipertireoidismo, hiperparatireoidis‑ mo primário, hipogonadismo, síndrome de Cushing, deficiên‑ cia de hormônio de crescimento), alterações gastrointestinais (intolerância à lactose, alergia à proteína do leite de vaca, má
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absorção intestinal, doença inflamatória intestinal, doença he‑ patobiliar), doenças reumáticas (lúpus eritematoso sistêmico juvenil, dermatomiosite juvenil, artrite idiopática juvenil), doenças renais, drogas (glicocorticoides, metotrexato, anticon‑ vulsivantes, antipsicóticos, diuréticos de alça, antiácidos, anti‑ coagulantes), distúrbios nutricionais (deficiência de cálcio, de vitaminas D, C e K e anorexia nervosa) e imobilização.2,4 Os glicocorticoides são os principais causadores da osteo‑ porose secundária. Doses baixas do medicamento, se usadas por mais de 1 mês, podem determinar perda de massa óssea. O efeito osteopenizante é mais intenso nos primeiros 6 meses de uso e o osso trabecular (coluna vertebral) é o mais afetado. A Tabela 1 mostra as causas de osteoporose na infância. Diagnóstico A osteoporose é uma doença silenciosa, e o paciente é assinto‑ mático. As manifestações clínicas ocorrem tardiamente quan‑ do aparecem as fraturas patológicas. Em razão da boa qualida‑ de do osso na infância, as fraturas são raras. Dor na coluna, cifose dorsal e diminuição de estatura são algumas manifesta‑ ções que podem ocorrer na presença de fraturas. Na osteopo‑ rose secundária, os exames laboratoriais como cálcio e fósforo séricos, fosfatase alcalina e fosfatúria estão normais. Entre‑ tanto, a calciúria pode estar aumentada nos pacientes em uso de glicocorticoides. Outros exames, como função de tireoide, função renal, transaminases e provas de função hepática, au‑ xiliam a determinar a causa da osteoporose secundária. Os marcadores bioquímicos de formação e reabsorção ósseas não estão bem definidos na criança e não são utilizados de rotina. Em casos de suspeita de raquitismo ou em casos de hiper‑ calcemia, deve ser determinada a concentração de 25-hidroxi‑ vitamina D e paratormônio. A radiografia convencional é um exame que mostra altera‑ ções apenas tardiamente, quando a perda de massa óssea é maior de 30%. O exame padrão-ouro para o diagnóstico de osteoporose é a densitometria óssea e deve ser realizada em pacientes de risco
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Osteoporose na Infância •
Tabela 1 Causas de osteoporose na infância Osteoporose primária Osteoporose idiopática juvenil Osteogênese imperfeita Osteoporose secundária Genética
Renal
Síndrome de Ehlers-Danlos
Insuficiência renal
Síndrome de Marfan
Acidose tubular
Homocistinúria
Pós-transplante
Hipercalciúria idiopática
Neuropsiquiátricas ‑ Imobilização
Hipofosfatasia
Anorexia nervosa
Sistema digestório
Paralisia cerebral
Síndromes de má absorção
Paraplegia
Doença inflamatória intestinal
Distrofia muscular
Doença hepatobiliar
Endócrina
Alergia ao leite de vaca
Hipopituitarismo
Intolerância à lactose
Hipertireoidismo
Reumatológica
Hipogonadismo
Artrite idiopática juvenil
Hiperparatireoidismo
Lúpus eritematoso sistêmico
Síndrome de Cushing
Dermatopolimiosite
Outras causas
Medicamentosa
Desnutrição
Corticosteroides
Neoplasias
Metotrexato
Fibrose cística
Anticonvulsivantes Anticoagulantes
(fraturas de repetição, radiografia com osteopenia, portadores de doenças crônicas, uso de drogas que diminuem a massa ós‑ sea e em adolescentes com ingesta reduzida de cálcio). A den‑ sitometria óssea avalia quantitativamente a massa óssea. É um exame não invasivo, rápido de executar e com baixa radia‑ ção. Os locais preferenciais para avaliação na infância são: co‑ luna vertebral de L1 a L4 e corpo total (excluindo-se a região do crânio).1 O exame pode ser realizado em crianças a partir dos 4 anos de idade, e os valores devem ser comparados com os de indivíduos saudáveis da mesma idade e sexo (Z escore) por meio de programas adequados. Apesar de ter boa precisão, seus resultados devem ser interpretados com cuidado, pois a massa óssea depende de idade, sexo, estatura, peso e estádio puberal de Tanner. Indivíduos com baixa estatura ou atraso puberal devem ser controles deles mesmos em exames subse‑ quentes e o Z escore não deve ser considerado. Crianças e ado‑ lescentes com fatores de risco devem realizar o exame de con‑ trole anualmente. Crianças pré-púberes devem aumentar a sua densidade óssea em cerca de 5% ao ano e adolescentes pú‑ beres devem aumentar de 10 a 15% ao ano. Prevenção A aquisição do pico de massa óssea ideal é importante, pois quanto mais otimizado ele for, menor será o risco de desenvol‑
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vimento de osteoporose na menopausa e na velhice. O pedia‑ tra deve estar consciente de que a prevenção deve começar no lactente, mas principalmente na faixa etária dos 10 aos 16 anos de idade, em que se observam a aceleração do crescimen‑ to e o ganho máximo de massa óssea. Durante a infância e principalmente na adolescência, a orientação dietética quanto ao consumo de leite e seus deriva‑ dos (queijo, iogurte, sorvete) é uma medida essencial para a incorporação de cálcio ao organismo.5,6 Dietas hiperproteicas, hipernatrêmicas e com conteúdo aumentado em fibras levam a um mau aproveitamento do cálcio. Principalmente na ado‑ lescência, é importante a conscientização para que bebidas como refrigerantes e café não substituam o leite ou derivados e que fatores de risco como fumo e álcool sejam evitados. A prática de exercícios deve ser estimulada. Os exercícios com carga devem ser realizados durante 30 minutos por dia. Reco‑ mendam-se levantamento de peso (com supervisão profissio‑ nal), caminhadas, bicicleta, corridas e esportes não competiti‑ vos. Exposição ao sol da manhã, quando não contraindicada, promove a síntese cutânea de vitamina D. Na prevenção da osteoporose induzida por glicocorticoides, preconiza-se o uso criterioso dessas drogas na dose mínima efetiva e durante o menor tempo possível. A suplementação com cálcio e vitamina D, logo após o início da corticoterapia, é preconizada para aqueles que irão usar essa medicação por mais de 3 meses. Tratamento A suplementação diária de cálcio é indicada no tratamento da baixa massa óssea, e sua dose depende do aporte dietético do paciente e da necessidade diária de cálcio de acordo com a fai‑ xa etária. De um modo geral, varia de 700 a 1.500 mg/dia (Ta‑ bela 2).7 A administração deve ser feita durante as refeições, não mais de 500 mg por tomada. Seu uso é contraindicado em litíase renal ou hipercalciúria. Seus efeitos adversos incluem náuseas, vômitos, dispepsia e obstipação. A vitamina D (25-hidroxivitamina D) na dose de 400 a 1.000 UI/dia deve ser associada ao cálcio para se obter uma melhor eficácia no tratamento da baixa massa óssea. Efeitos adversos, como a hipercalcemia e a hipercalciúria, devem ser monitorados. Concentrações de vitamina D devem ser medi‑ das em pacientes de risco. Nos casos de deficiência de vitami‑ na D (concentrações < 20 ng/mL),8 independentemente dos sintomas, deve ser administrada uma dose de ataque de vita‑
Tabela 2 Quantidade diária de cálcio recomendada por faixa etária5 Idade (anos)
mg/dia
1a3
700
4a8
1.000
9 a 13
1.300
14 a 18
1.300
Gestantes ou lactantes
1.300 a 1.500
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mina D3 (de 25.000 a 50.000 UI por semana conforme o indi‑ víduo pese menos ou mais de 30 kg, respectivamente) por 6 semanas. Depois, deve-se conservar a suplementação de vita‑ mina D em dose de manutenção de 400 a 1.000 UI/dia.9 Em casos de hipercalciúria prévia ao tratamento (cálcio uri‑ nário de 24 horas ≥ 4 mg/kg/dia ou relação calciúria/creati‑ núria ≥ 0,16), é indicado o uso de diurético tiazídico, o qual di‑ minui a excreção urinária de cálcio e melhora a absorção intestinal do mesmo. Utiliza-se a clortalidona na dose de 25 mg/dia com ou sem suplementação de potássio. Os bisfosfonatos têm despertado interesse no tratamento da osteoporose induzida por glicocorticoide, entretanto, de‑ vem ser indicados por especialistas, e o seu uso em crianças ainda se restringe a condições como: falha terapêutica com doses máximas de cálcio e vitamina D, intolerância ou con‑ traindicação ao uso desses agentes e presença de fratura pato‑ lógica.10 Anticoncepção é indicada em meninas em idade fértil. In‑ suficiência renal é contraindicação para o seu uso. O mais uti‑ lizado é o alendronato na dose de 35 ou 70 mg/semana (para pacientes com peso abaixo ou acima de 30 kg, respectivamen‑ te). O uso endovenoso de pamidronato é indicado na osteogê‑ nese imperfeita ou na falha ou contraindicação ao alendrona‑ to. Os principais efeitos adversos dos bisfosfonatos são: esofagite, febre transitória, leucopenia, linfopenia, uveíte, episclerite, mialgias, artralgias e hipocalcemia. A esofagite pode ser evitada se o alendronato for administrado ao acordar, em jejum, com água. A criança deve permanecer sentada por meia hora. Alterações radiográficas, como linhas escleróticas em me‑ táfises de ossos longos, são descritas em pacientes em uso de bisfosfonatos. Entretanto, são alterações reversíveis com a suspensão da droga e não levam a comprometimento do cres‑ cimento esquelético. Outras medicações para osteoporose usadas em adultos não são indicadas na infância.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que a adolescência é a fase de maior aquisição de massa óssea e como orientar a criança e o adolescente para otimizar o pico de massa óssea. • Saber diferenciar as causas primárias e secundárias de osteoporose. • Saber interpretar a densitometria óssea, o exame padrão-ouro para detecção de baixa massa óssea, e saber suas indicações em pacientes de risco. • Conhecer as formas de tratamento e prevenção da baixa massa óssea. • Saber a indicação de outros agentes como bisfosfonatos excepcionalmente usados.
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CAPÍTULO 10
DOENÇA DE KAWASAKI Cristina Medeiros Ribeiro de Magalhães Natália Ribeiro de Magalhães Alves
Introdução A doença de Kawasaki (DK) é uma vasculite primária sistêmi‑ ca que compromete principalmente os vasos de médio e pe‑ queno calibres, mas também compromete vasos de grande ca‑ libre. É a segunda vasculite primária mais frequente na faixa etária pediátrica. Com o controle da febre reumática, a DK pas‑ sou a ser reconhecida como a causa mais comum de cardiopa‑ tia adquirida na infância nos países desenvolvidos. Sua etiolo‑ gia ainda é desconhecida, e nenhum achado clínico ou laboratorial patognomônico para seu diagnóstico definitivo foi identificado. A DK, inicialmente denominada síndrome mucocutânea lin‑ fonodal, foi descrita pela primeira vez na literatura médica por Tomisaku Kawasaki em 1967.1 Na ocasião, foram relatados 50 casos acompanhados no período de 1961 a 1967. Kawasaki acre‑ ditava tratar-se de doença benigna, autolimitada, que não dei‑ xava sequelas. Em 1970, tornou-se evidente que a DK não era tão benigna, pois uma pequena porcentagem das crianças mor‑ reram de maneira súbita e inesperada.2 A partir de então, foi ob‑ servado que a morte muitas vezes ocorria por volta de 2 a 3 se‑ manas após o início da febre, em um momento em que o quadro clínico da doença parecia estar melhorando ou até resolvido.3 A maioria dos óbitos resultava de oclusão trombótica dos aneuris‑ mas das artérias coronárias, com ruptura de aneurisma(s).4,5 Estudos realizados no Japão e nos Estados Unidos, ava‑ liando coronárias de pacientes anos após a fase aguda da doença, evidenciaram alterações crônicas como a remodela‑ ção contínua da parede das coronárias por vários anos; muitas vezes, essas alterações culminavam com estenose das coroná‑ rias, perda da responsividade aos vasodilatadores coronaria‑ nos e neoformação vascular dentro da parede do vaso. Hoje, a DK já não é considerada por muitos uma doença aguda, e sim uma doença com fase aguda, subaguda e tardia.6-9 A DK pode acometer várias artérias e órgãos, como pulmão, intestino, vesícula biliar, sistema nervoso central (SNC), entre outros, mas o comprometimento cardíaco é o mais significati‑ vo, com a formação de aneurismas coronarianos. O diagnósti‑
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co é essencialmente clínico, e o tratamento medicamentoso, logo que iniciado, determina a melhora clínica e reduz os ris‑ cos de sequelas cardíacas.6,10 Epidemiologia De ocorrência universal, a DK atinge todas as faixas etárias pe‑ diátricas, ainda que 85% dos casos ocorram em crianças me‑ nores de 5 anos. É menos frequente em pacientes com menos de 6 meses ou mais de 8 anos e, nesses casos, há maior risco de formação de aneurismas coronarianos.6,11 A DK já foi descrita em todas as regiões do mundo, mas sua incidência é muito variável de região para região, sendo maior nos países asiáticos, principalmente em descendentes de ja‑ poneses. Surtos epidêmicos têm sido descritos em um grande número de países, o que vem a sugerir uma etiologia infeccio‑ sa. Em 1979, 1982 e 1986, ocorreram três grandes epidemias no Japão. No entanto, a verdadeira incidência mundial, sua morbidade e mortalidade permanecem desconhecidas.6 A 22ª Pesquisa Nacional da DK no Japão avaliou o número de crianças diagnosticadas com DK em 2011 e 2012, e seus re‑ sultados foram: 243,1 por 100.000 crianças de 0 a 4 anos em 2011 e 264,8 em 2012. O número de casos de DK registrados em 2012 foi o maior já registrado no Japão, nos últimos anos. As úl‑ timas pesquisas mostram que o número de doentes e a taxa de incidência da DK no Japão vêm aumentando anualmente,12 porém, a proporção de pacientes com aneurisma coronariano e infarto do miocárdio diminuiu de 6 para 2,8% na pesquisa rea‑ lizada de 2011 a 2012. Além disso, a proporção de doentes com aneurisma gigante da artéria coronária, a sequela mais grave associada com a DK, também foi reduzida substancialmente (0,40 para 0,18%). O diagnóstico e o tratamento precoces e ou‑ tros avanços no manejo do paciente durante a fase aguda da DK provavelmente são responsáveis por essa melhoria.12 Apesar de ser mais frequente em crianças, principalmente na faixa etária de 6 meses a 5 anos, há alguns relatos de casos na literatura de DK em recém-nascidos e várias publicações de fase aguda da DK em adultos. A relação entre meninos e meni‑
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nas varia de 1,5 a 1,7:1.6,13,14 O índice de recorrência no Japão da DK é de 3 a 5%.6,15,16 Estudos têm demonstrado que irmãos de um paciente com DK têm risco 10 a 20 vezes maior de ter DK do que as crianças da população geral, e que história pregressa de DK é observa‑ da 2 vezes mais em pais de crianças que apresentam a DK do que na população em geral.7,17 O risco de ocorrência em gê‑ meos é de 13%.6,18 Esses achados sugerem que a predisposição genética em interação com a possível exposição a agentes in‑ fecciosos e ambientais tem um papel importante na etiopato‑ genia da doença.6,18 A variação sazonal na incidência da DK é bem reconhecida, mas essas variações diferem entre os vários países. No Reino Unido, Austrália e EUA, há uma incidência maior no inverno e na primavera.19 Na China e na Coreia, na primavera e no ve‑ rão.4 Nos EUA e no Reino Unido, a incidência está mais corre‑ lacionada com a variação das chuvas do que com a variação da temperatura.20 No Brasil, um estudo realizado em uma coorte clínica de 70 pacientes com DK demonstrou maior incidência da doença coincidindo com períodos de maior incidência das doenças infecciosas de maio a junho (início da seca) e novem‑ bro e dezembro (início das chuvas).21 No Brasil, poucas são as publicações referentes à DK. Não existem dados epidemiológicos sobre essa doença no nosso meio. Provavelmente, a DK vem sendo subdiagnosticada e confundida com outras doenças inflamatórias da infância, so‑ bretudo por apresentar febre, exantema, adenomegalia e por ser autolimitada, dando a falsa ideia de cura. É provável que muitos casos de morte súbita infantil no nosso meio possam ser explicados pela ocorrência de comprometimento cardíaco da DK não diagnosticada.22 Um estudo recente analisou dados sobre a sazonalidade da ocorrência da DK de 1970 a 2012 de 25 países. O hemisfério norte extratrópicos revelou um ciclo sazonal claro com au‑ mento do número de casos de DK de dezembro a março, com uma tendência semelhante, mas não tão significativa no he‑ misfério sul no outono e início do inverno.23 A taxa de mortalidade antes da imunoglobulina endoveno‑ sa no Japão era de 2% e, após, 0,08%.24 Nos EUA, a taxa de mortalidade após a terapia com imunoglobulina endovenosa é de 0,17% nos pacientes hospitalizados.25 O pico de mortalida‑ de ocorre em torno de 15 a 45 dias, sobretudo por conta da trombocitose e da ruptura de aneurismas de coronárias. O uso recente de z escores baseados em cálculos de área de superfície corpórea para determinar mensurações do diâme‑ tro de artérias coronárias levou à observação de que a dilata‑ ção da artéria coronária é provavelmente mais prevalente e potencialmente mais grave do que vinha sendo observado.26,27 Etiopatogenia A causa da DK permanece desconhecida, apesar de as caracte‑ rísticas clínicas (doença febril com fase aguda autolimitada) e epidemiológicas (sazonalidade e caráter epidêmico) favorece‑ rem a hipótese de um agente infeccioso ser o determinante causal ou desencadeante de uma resposta imunológica aber‑ rante, que, entretanto, ainda não foi comprovado.
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Existem teorias em estudo, ainda com discordâncias no meio científico para a etiopatogenia da DK. A teoria de que a DK seja causada por um agente infeccioso foi a primeira a ser proposta, por ser uma doença com fase aguda autolimitada, por apresentar sinais e sintomas de doen‑ ça infecciosa como febre elevada, exantema, enantema e ade‑ nomegalia e por ocorrer em surtos epidêmicos. Muitos estudos realizados à procura do agente etiológico da DK com base em culturas e testes sorológicos não tiveram sucesso.20 O coronavírus NH-NL63 (HCoV-NL63) tem sido um dos agentes infecciosos mais estudados como sendo um prová‑ vel agente etiológico ou desencadeante da DK. Infiltração de IgA plasmática no trato respiratório de crianças com DK e presença de corpos de inclusões no epitélio ciliado brônqui‑ co na fase aguda da DK sugerem que a porta de entrada do agente ou agentes etiológicos da DK seja o trato respirató‑ rio,28 porém, outros estudos realizados não encontraram o coronavírus em amostras de tecido respiratório ou nasofarín‑ geo de doentes com DK com significância estatística, o que invalidou a possibilidade de esse vírus ser o agente causal da doença. A outra teoria é a da estimulação imunológica por superan‑ tígenos bacterianos como as toxinas estafilocócicas e estrepto‑ cócicas.29 O superantígeno ativa as células natural killer, esti‑ mula a ativação policlonal de linfócitos B e a exacerbação da atividade da endotoxina e do efeito tóxico sobre o endoté‑ lio.30,31 No entanto, um estudo multicêntrico não mostrou dife‑ renças no isolamento de bactérias produtoras de superantíge‑ nos entre pacientes com DK e o grupo-controle febril.32 A teoria imunológica propõe que a DK seja causada por uma resposta imunológica aberrante em indivíduos genetica‑ mente predispostos, desencadeado por um gatilho, mais pro‑ vável um ou mais agentes infecciosos, antígeno este altamen‑ te imunoestimulante.6,33 Os dados que fundamentam essa teoria são: presença de vasculite e artrite na DK; infrequente transmissão pessoa para pessoa; 40 anos de estudo sem que tenha sido estabelecido um agente etiológico; presença de an‑ ticorpos antiendotélio (AECA); ativação policlonal de células B e papel da imunoglobulina A (IgA) plasmática com um pa‑ drão de ativação oligoclonal.33,34 Análise de sequência gênica da cadeia pesada alfa de imu‑ noglobulinas provenientes de infiltrado inflamatório da pare‑ de arterial de pacientes com DK mostrou que um número res‑ trito de anticorpos específicos IgA estava presente (resposta oligoclonal), indicando resposta imune antígeno-dirigida.31 A suscetibilidade genética para a DK é provavelmente poli‑ gênica, com polimorfismo em vários genes. Alguns alelos gê‑ nicos (dos genes CCR3, CCR2, CCR5 que são receptores de ci‑ tocinas) mostram associação significativa com doença de Kawasaki.35 Polimorfismo genético tem sido referido para vá‑ rios componentes da resposta imune, como interleucinas IL-4, IL-6, fator de necrose tumoral alfa (TNF-alfa) e receptor 5 da quimiocina.36,37 O polimorfismo do gene do receptor de inter‑ leucina 1 (IL-1R) também tem sido implicado na patogênese da doença de Kawasaki, e o da metaloproteinase 13 (MMP-13)
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apresenta associação significativa com a formação de aneuris‑ mas coronarianos.7,38-40 Estudos têm mostrado que a DK também está associada a certo polimorfismo genético dos alelos do complexo maior de histocompatibilidade (HLA) nos haplótipos HLA classe I (A, B e C) e alelos DRB1. No entanto, a base genética de suscetibi‑ lidade à doença de Kawasaki é complexa e nenhum HLA de classe II haplótipo é comum à maioria dos indivíduos com DK.7 Embora sua etiologia permaneça desconhecida, pesquisas sugerem que a DK ocorra por uma resposta imunológica aber‑ rante em indivíduos geneticamente predispostos, podendo ser desencadeada por mais de um agente infeccioso. Além dis‑ so, a sazonalidade da DK, que difere por país e por região, sugere a presença de diferentes agentes causais entre esses países/regiões, o que pode explicar vários agentes desenca‑ deantes levando a sua ocorrência em surtos epidêmicos e em períodos de maior incidência de doenças infecciosas.20 Fisiopatologia Estudos histopatológicos post mortem em casos de DK são es‑ cassos. Estudo de necrópsia de 30 crianças afetadas por DK encontraram ganglionite e neurite em nervos cranianos e peri‑ féricos, endarterite, periarterite, coriomeningite e leptome‑ ningite, além de atrofia, degeneração com perda de neurônios, gliose marginal e subpendimal e formação de nódulos gliais ao redor das degenerações de neurônios.41 Takahashi et al. observaram na necrópsia de crianças que tiveram DK, sem anormalidades cardíacas no ecocardiograma e que haviam morrido anos depois por outras causas, que as artérias coronárias eram marcadamente anormais com im‑ pressionantes alterações pró-ateroscleróticas, o que sugere que o dano cardiovascular pós-DK é difuso, persistente mes‑ mo na ausência de lesões arteriais agudas e que, mais tarde, pode manifestar-se como doença cardiovascular no adulto, explicando muitos infartos do miocárdio em adolescentes e adultos jovens sem causa aparente.42 Na revisão de 2010, pesquisadores japoneses descreveram a vasculite da DK com característica histológica de vasculite proliferativa, que inicia e rapidamente atinge um pico de infla‑ mação, e depois, lentamente, remete a “cura” ou a uma remo‑ delação contínua da parede do vaso, mostrando um curso mo‑ nofásico e sincronizado.41,42 Nas primeiras biópsias das necrópsias de crianças com DK, já foi observada a complexidade da vasculite, que tipicamente variava de vaso para vaso no mesmo paciente, entre as seções do mesmo vaso e até mesmo em torno da circunferência de uma única seção.8,9,41-46 Em estudo obtido de 32 amostras de coronárias de necróp‑ sias de pacientes com DK, de 8 corações transplantados e de 1 ressecção incidental de criança com DK, por microscopia ele‑ trônica de transmissão, identificaram-se 3 tipos de vasculopa‑ tias nesses pacientes: arterite necrosante, arterite subaguda/ crônica e vasculite por proliferação miofibroblástica luminal. Os três processos podem começar nas primeiras 2 semanas após o início da febre, mas apenas a arterite necrosante parece
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ser autolimitada. Os outros dois processos (arterite crônica su‑ baguda e proliferação miofibroblástica luminal) estão intima‑ mente associados uns aos outros e evoluem por períodos lon‑ gos na fase tardia da DK.9 A arterite necrosante ocorre no início da DK e o processo patológico completa-se nas primeiras 2 semanas após o início da febre, sobretudo nas artérias coronárias, o que pode deter‑ minar formação de grandes aneurismas (aneurismas gigan‑ tes), que podem sofrer trombose e roturas. O segundo processo (vasculite subaguda crônica) começa 2 semanas após o início da febre e pode afetar todos os vasos sanguíneos (incluindo veias), mas afeta sobretudo o segmen‑ to médio das artérias musculares de médio porte, como as ar‑ térias coronárias. O terceiro processo (mioproliferação fibroblástica luminal) ocorre em estreita associação com a vasculite subaguda crôni‑ ca, envolvendo células musculares da camada média que mi‑ gram para a íntima e seus produtos de matriz extracelular (metaloproteinases), formando uma massa concêntrica, com proliferação de fibroblastos que podem persistir por meses ou anos após o início da DK.9,44 Estudos mostram que níveis elevados de TNF-alfa são sig‑ nificativos em vasos coronarianos de pacientes com lesão cardíaca, o que pode implicar terapêutica mais específica (an‑ ti-TNF-alfa) em casos de comprometimento cardíaco ou refra‑ tariedade ao tratamento.37 A lesão da artéria coronária na DK pode continuar sofrendo remodelação anos depois da fase aguda da doença, com alte‑ ração de todas as camadas da parede vascular e diminuição progressiva da luz do vaso. Anos após a fase aguda da DK, a elasticidade vascular pode estar diminuída em decorrência da disfunção endotelial, do espessamento da íntima e do aumen‑ to da matriz extracelular na parede vascular.8,9,44
Tabela 1 Alterações histopatológicas e imuno-histoquímicas da parede vascular na fase aguda e na fase tardia da DK (meses ou anos após a fase aguda)8 Fase aguda da DK
Fase tardia da DK
Média e adventícia normais
A média muito fina e degenerada, e a adventícia muito espessada com numerosas vasa vasorum
Espessamento da íntima por acúmulo de matriz extracelular gelatinosa, proliferação e por células musculares lisas e vários tipos de células inflamatórias, como macrófagos e linfócitos
Espessamento da íntima por proliferação das células musculares lisas na íntima e migração da média para íntima, onde tomam formato de estrelas (TGF-beta-1); proliferação da matriz extracelular (PDGF e bFGF); espessamento intimal fibroso anormal sem infiltrado de células inflamatórias
Lâmina interna e externa íntegra
Lâmina interna rota em muitos pontos; angiogênese (bFGF e VEGF)
Ausência de depósito de gordura
Ausência de depósito de gordura ou macrófagos
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Manifestações clínicas e critérios diagnósticos O diagnóstico da DK em muitos casos é um desafio para o mé‑ dico, pela similaridade das manifestações clínicas com outras doenças comuns na infância e por não existir um exame com‑ plementar específico que determine o diagnóstico. Muitas ve‑ zes, essa dificuldade em se estabelecer o diagnóstico leva ao atraso no tratamento e, consequentemente, a um pior prog‑ nóstico em relação às complicações da doença.6 O diagnóstico da DK é essencialmente clínico, baseado no preenchimento dos critérios clínicos estabelecidos em 2004 pelo American Heart Association (AHA)6 e nos critérios do Centro de Controle de Doenças de 1985. Formas clínicas Formas típicas O diagnóstico da DK é confirmado na presença de febre com duração de 5 dias ou mais, e mais 4 ou 5 critérios diagnósticos (Tabela 2). A febre é tipicamente alta em picos e remitente, podendo chegar a 40°C na ausência de terapia apropriada; pode persis‑ tir por uma média de 11 dias, mas pode durar por 3 a 4 sema‑ nas. Com a terapia com gamaglobulina, a febre desaparece em 36 horas.6,43 A adenomegalia com mais de 1,5 cm é o critério menos fre‑ quente na infância (50 a 75%) e um dos mais frequentes no adulto. Em geral, é unilateral, não supurativa, está presente na cadeia cervical anterior e pode ou não ser dolorosa (Figura 1). O exantema geralmente aparece do 3º ao 5º dia, sendo o mais frequente (92% dos pacientes) o rash maculopapular ou micropapular difuso. É mais proeminente no tronco e nas ex‑ tremidades e pode ser ainda macular, purpúrico, escarlatini‑ forme, urticariforme ou eritema multiforme (Figuras 2 a 4),
Figura 1 Adenomegalia cervical com mais de 1,5 cm. Tabela 2 Critérios diagnósticos da DK6 Febre por, no mínimo, 5 dias Exantema polimorfo Alterações de extremidades: eritema e/ou edema em mãos e/ ou pés na fase aguda e/ou descamação em dedo de luva na convalescença (qualquer um desses achados preenche esse critério) Conjuntivite bilateral não exsudativa Adenomegalia cervical não supurativa com 1,5 cm ou mais de diâmetro
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Figura 2 Exantema polimorfo na DK.
Figura 3 Lesões purpúricas e edema dos pés na DK.
Figura 4 Exantema urticariforme na DK.
sem vesículas ou bolhas e acompanhado de prurido na maio‑ ria dos pacientes.6,43 O edema que aparece nas mãos e nos pés é muito doloroso e está associado ao eritema palmoplantar com vasculite nas pon‑ tas dos dedos, que acabam por descamar iniciando pela região periungueal em dedo de luva na fase subaguda (Figuras 5 a 7).6 Os lábios e a cavidade oral são acometidos em 90% dos ca‑ sos na fase aguda, com hiperemia de orofaringe e mucosa oral, hipertrofia de papilas linguais (língua “em framboesa”) e ede‑
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Figura 8 Edema e fissuras nos lábios.
Figura 5 Edema e hiperemia em mão na DK.
Figura 9 Edema e hiperemia bipalpebral, edema e hiperemia nos lábios.
Figura 6 Vasculite de ponta dos dedos na DK.
Figura 10 Edema em toda a face, lábios edemaciados e fissurados, exantema morbiliforme na DK.
Figura 7 Descamação periungueal em dedo de luva na fase subaguda da DK.
ma com hiperemia dos lábios que acabam por fissurar e san‑ grar (Figuras 8 a 10). Ulcerações orais e exsudato em orofarin‑ ge podem ser observados.6 A hiperemia conjuntival bilateral geralmente começa no início da febre e não está associada a exsudato. Pode vir acom‑ panhada de edema ou hiperemia bipalpebral e está presente na maioria dos casos de DK (Figura 11).
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Figura 11 Hiperemia conjuntival na DK.
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Outras manifestações clínicas As manifestações cardiovasculares incluem: insuficiência car‑ díaca, insuficiência mitral, pericardite, miocardite, alterações do ritmo cardíaco, aneurismas de coronárias, aneurismas de artérias periféricas, angina do peito e infarto do miocárdio.6,47 A dilatação das coronárias ocorre com grande frequência na fase aguda e subaguda da DK e, em muitos casos, a morte súbita acontece durante a 3ª e 4ª semanas de doença. Os aneu‑ rismas de coronárias na DK são geralmente proximais e visí‑ veis à avaliação no ecocardiograma com Doppler. Os aneuris‑ mas costumam ser múltiplos (Figura 12) e acometem a coronária esquerda com mais frequência. No SNC, a doença pode manifestar-se com extrema irrita‑ bilidade na fase aguda, além de meningite asséptica, ataxia, paralisia facial e perda auditiva neurossensorial.6,47. Artrite e artralgia, incluindo as interfalângicas e as grandes articulações, ocorrem na 1ª semana de doença e estão presen‑ tes em 20 a 40% dos pacientes.6 As manifestações gastrointestinais incluem vômitos, diar‑ reia, dor abdominal e íleo paralítico. Vômitos e diarreia são manifestações frequentes no início da febre, enquanto icterí‑ cia, hepatomegalia dolorosa, pancreatite e vesícula hidrópica são menos comuns. Na fase aguda, a elevação das transami‑ nases é um achado frequente.6,47 No aparelho respiratório, as manifestações mais frequentes são tosse, pneumonite e alterações radiológicas. Rinorreia ocorre raramente. Eritema perineal é frequentemente observado na fase agu‑ da, descamando na fase subaguda. Aproximadamente 1 a 2 meses após o início da febre, uma estria transversal pode apa‑ recer nas unhas; são linhas de Beau, que podem surgir na con‑ valescença associadas à descamação de mãos e pés em “dedo de luva” (Figura 13).6 Um achado interessante é o desenvolvimento de eritema na cicatriz da vacina BCG, que geralmente ocorre quando a DK se manifesta na faixa etária entre 6 meses e 1 ano (Figura 14). A causa dessa reação ainda não foi bem esclarecida.6,47 Outras manifestações da DK são uretrite com piúria estéril, esplenomegalia e orquite na fase aguda e alopecia na fase subaguda. Uveíte anterior, iridociclite aguda e hemorragia conjuntival são observadas na DK bilateralmente e é raro esta‑ rem associadas a fotofobia e dor ocular.6,43,47 Nos adultos, as manifestações que mais chamam a atenção para a DK são as alterações hepáticas (80%), a adenomegalia cervical anterior e a estenose de artérias coronárias.48 A DK tem um curso dividido em 3 fases clínicas: • a fase aguda pode durar de 1 a 4 semanas na ausência de trata‑ mento (em média, 10 a 15 dias), caracterizada pela presença da febre e pelos sinais clínicos de inflamação. Nessa fase, a ar‑ terite das coronárias está presente e pode ocorrer aneurisma nesses vasos;19,22 • a fase subaguda é caracterizada pelo desaparecimento da fe‑ bre e de outros sinais inflamatórios. Dura de 1 a 2 semanas. Nessa fase, ocorre a descamação em dedo de luvas nas mãos e pés e há maior risco de aneurisma coronariano e morte súbita por trombose de coronárias e infarto do miocárdio;6,47
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Figura 12 Aneurismas de ilíacas em criança de 3 meses de idade na fase aguda da DK, na angiotomografia.
Figura 13 Linhas de Beau.
Figura 14 Eritema na cicatriz da vacina BCG em lactente de 3 meses.
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Doença de Kawasaki •
• a fase de convalescença dura em média de 6 a 8 semanas, e é durante essa fase que as plaquetas e o lipidograma retornam aos valores normais.6,47 A recorrência da DK é pouco frequente e somente cerca de 3 a 5% dos pacientes apresentam 2 ou mais episódios de fase aguda, podendo essa recorrência ocorrer até 8 anos após o primeiro epi‑ sódio, aumentando os riscos de complicações cardíacas. A re‑ corrência é mais frequente no sexo masculino, abaixo dos 2 anos de idade e nos 2 primeiros anos após a primeira fase aguda.6,19 Formas atípicas São formas da DK que inicialmente apresentam sinais e sinto‑ mas de outras doenças e que, no curso da doença, passam a preencher os critérios para DK.
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Formas incompletas Algumas crianças, principalmente as menores de 1 ano de ida‑ de, apresentam a forma incompleta da DK, assim denomina‑ da porque apresentam febre por 5 dias ou mais e somente 2 ou 3 dos demais critérios para o diagnóstico da DK, o que torna o diagnóstico mais difícil. Essas crianças apresentam risco maior de complicação coronariana, por isso devem ser trata‑ das com gamaglobulina endovenosa o mais precocemente possível dentro dos 10 primeiros dias de evolução da doença, e acompanhadas com ecocardiogramas seriados. A última diretriz da AHA, publicada em 2004,6 chama a atenção para essas formas incompletas.6 Nessa diretriz, foi proposto um fluxograma para auxiliar os pediatras na avalia‑ ção dessas formas incompletas (Figura 15).
DOENÇA DE KAWASAKI INCOMPLETA
Critérios laboratoriais Albumina < 3 g/dL Anemia Hb < 10 g/dL Transaminases elevadas Plaquetas > 450.000 Leucócitos > 15.000 Piúria
Febre ≥ 5 dias e 2 ou 3 critérios clínicos
Analisar características do paciente
Consistente com DK
Exames laboratoriais
Inconsistente com DK
Febre persistente
VHS < 40 mm/h e PCR < 3 mg/dL DK improvável Seguimento diário VHS ≥ 40 mm/h e PCR ≥ 3 mg/dL Febre contínua por 2 dias
Resolução da febre
Se descamação típica
< 3 critérios laboratoriais
Ecocardiograma
Ecocardiograma
Eco -
Se a febre persistir
Repetir Eco e consultar um especialista
≥ 3 critérios laboratoriais
Ecocardiograma + tratamento
Eco+
Melhora da febre
Tratamento
DK improvável
Figura 15 Fluxograma para a avaliação da DK incompleta.6
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Diagnóstico diferencial O diagnóstico diferencial da DK é grande, mas dados clínicos e laboratoriais ajudam a excluir outras doenças. O sarampo é caracterizado pelas manchas de Koplick. A es‑ carlatina é diferenciada pela presença da faringite estreptocó‑ cica e pela rápida resposta à penicilina e seus derivados, e não apresenta edema de lábios, mãos e pés. A síndrome do choque tóxico e a síndrome da pele escaldada por estafilococos estão associadas a hipotensão e comprometimento renal e respon‑ dem ao tratamento com antibióticos. O eritema multiforme e a síndrome de Stevens-Johnson têm envolvimento mucoso, ocorrem por reação a drogas e, se não forem clinicamente dis‑ tinguíveis, a velocidade de hemossedimentação (VHS) das he‑ mácias é baixa nessa síndrome, enquanto na DK é muito ele‑ vada. O vírus coxsackie manifesta-se com lesões bolhosas em boca, mãos e pés. Na mononucleose, a adenomegalia é gene‑ ralizada, não se concentrando principalmente na cadeia cervi‑ cal.6 Reações alérgicas às drogas e envenenamento por mercú‑ rio também devem ser considerados no diagnóstico diferencial da DK. A história clínica e os dados laboratoriais ajudam a ex‑ cluir as doenças infecciosas, alérgicas e autoinflamatórias.
mero e a localização dos aneurismas, o tipo (se sacular ou fusi‑ forme) e a presença ou ausência de trombo intraluminal e de estenoses.6 O ecocardiograma com Doppler com programa para avaliação do diâmetro das coronárias pelo z escore deve ser realizado na fase aguda, na subaguda depois de 3 meses e continuamente, nos primeiros anos a cada 6 meses e, após, pelo menos 1 vez por ano. Angiotomografia ou angiorressonância são geralmente re‑ servadas para os pacientes com anormalidades eletrocardio‑ gráficas, ecocardiográficas ou sintomas de isquemia do mio‑ cárdio. Crianças com aneurismas gigantes (diâmetro > 8 mm) ou z escore > 2,5 podem requerer teste de esforço na avaliação da função miocárdica.6 Nos casos que evoluem com dor abdominal, é importante avaliar as artérias abdominais (aorta, renais, mesentéricas, ilíacas e outras) por ultrassonografia abdominal com Doppler. Crianças que evoluem com manifestações neurológicas (con‑ vulsão, cefaleia, coreia e outras) devem ser avaliadas com an‑ giotomografia ou angiorressonância cerebral. Como a perda auditiva neurossensorial é frequente na DK, a audição de todos os pacientes deve ser avaliada, por audio‑ metria em crianças acima de 5 anos ou por potenciais evoca‑ dos auditivos BERA (brainstem evoked response audiometry) nas menores de 5 anos.49
Exames complementares Os achados laboratoriais não são específicos na DK. No início da fase aguda, todas as provas de atividade inflamatórias es‑ tão aumentadas, como a VHS, a proteína C reativa (PCR) e a Complicações da doença de Kawasaki alfaglicoproteína ácida. O hemograma mostra leucocitose com Apesar de a mortalidade e a maior morbidade estarem relacio‑ neutrofilia, com aumento de bastões ou eosinofilia. A conta‑ nadas com as complicações cardíacas, outras complicações gem de plaquetas na fase aguda costuma ser normal, porém, podem deixar sequelas, como perda auditiva neurossensorial, às vezes, pode estar baixa, e a plaquetopenia tem sido associa‑ alterações comportamentais como déficit de atenção, dificul‑ da ao desenvolvimento de doença coronariana grave e ao in‑ dade de relacionamento e dificuldade no aprendizado, e a vas‑ farto do miocárdio. A análise da urina pode mostrar leucocitú‑ culite necrosante que pode levar a gangrena periférica.6,47 ria, hematúria e piúria estéril com uroculturas negativas. O A complicação mais grave da doença é a vasculite corona‑ exame do líquido cefalorraquidiano (LCR) pode mostrar au‑ riana, levando a alterações nas artérias coronárias (aneuris‑ mento da celularidade e aumento das proteínas como expres‑ mas, ectasias e estenoses) que afetam 15 a 20% dos pacientes são da meningite asséptica. Nos pacientes com comprometi‑ não tratados.6 Contudo, as anormalidades das coronárias per‑ mento hepático, é possível encontrar elevação de bilirrubinas sistem em 23% dos pacientes depois da 3ª semana e em 8% e de transaminases decorrente de vasculite hepática. A desi‑ após 2 anos.7 O aparecimento de aneurismas e estenose de co‑ drogenase lática (DHL) elevada é muito frequente na fase agu‑ ronária pode ocorrer anos após a fase aguda, e é necessário o da. As enzimas pancreáticas devem ser verificadas pela possi‑ acompanhamento dos pacientes com ecocardiogramas seria‑ bilidade de pancreatite na fase aguda. dos por vários anos.22 Na radiografia de tórax, pode-se observar pneumonite, ci‑ Aneurismas têm sido descritos em outras artérias, como surites e cardiomegalia. O eletrocardiograma pode revelar, em aorta (principalmente na aorta abdominal), axilar, braquioce‑ alguns casos, arritmias, disfunção miocárdica e isquemia. fálica, ilíacas, femorais e renais.6,47 A cintilografia com gálio pode auxiliar na avaliação da ativi‑ Complicações gastrointestinais apresentam-se com mani‑ dade inflamatória do miocárdio para o diagnóstico de miocar‑ festações semelhantes às observadas na púrpura de Henoch‑ dite6 em crianças que apresentem troponina e fração MB da -Schönlein, como obstrução intestinal, edema, isquemia intes‑ creatinoquinase (CK-MB) elevadas na fase aguda da DK. tinal, pseudo-obstrução intestinal e abdome agudo.6,47 Na fase subaguda e de convalescença, as plaquetas estão Alterações oftalmológicas, como uveíte, iridociclite, he‑ elevadas (> 500.000/mm3), aumentando o risco de trombose. morragia conjuntival, neurite óptica, amaurose e obstrução da A elevação dos triglicérides e do colesterol e frações em mais artéria ocular, associadas à DK são descritas desde a década de de 70% dos casos também ocorre nessa fase.47,49 1980.6,47 O ecocardiograma com Doppler é um exame fundamental Vasculites necrosantes evoluindo para gangrena periférica na avaliação das coronárias, do miocárdio e na verificação da também são complicações descritas na DK.6,47 presença de pericardite. A avaliação das coronárias deve in‑ Complicações neurológicas por lesão do SNC, publicadas cluir: análise quantitativa do diâmetro interno do vaso, o nú‑ como relato de caso e série de casos, aparecem na literatura
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Doença de Kawasaki •
em número cada vez maior. A incidência de acometimento do SNC na DK varia de 1,1 a 3,7%.50 As complicações neurológicas encontradas são: meningoencefalite, coleção subdural, hipo‑ perfusão cerebral, isquemia e infarto cerebral e infarto cerebe‑ lar, manifestando-se com convulsão, coreia, hemiplegia, con‑ fusão mental, letargia e coma ou infarto cerebral sem manifestações neurológicas. Outras complicações neurológi‑ cas são relatadas, como ataxia e paralisia facial.3,8,30,31,47 A para‑ lisia facial costuma ser unilateral mais frequente do lado es‑ querdo, transitória, com duração de 2 dias a 3 meses e frequentemente aparece associada ao comprometimento co‑ ronariano, desaparece espontaneamente e sem qualquer se‑ quela. É importante suspeitar de DK em crianças com febre prolongada e paralisia facial.6,47 A DK leva a perda auditiva neurossensorial frequente, com déficit auditivo leve a mode‑ rado, porém, na maioria dos casos, bilateral.49 Alterações de comportamento, deficiência de atenção, defi‑ ciência no aprendizado, alterações emocionais (labilidade emocional, medo e terror noturno), problemas de internaliza‑ ção (comportamento ansioso, depressivo e agressivo) são muito frequentes, principalmente no 1º ano após a doença. Essas complicações devem ser consideradas no seguimento dos pacientes com DK. A alteração mais frequente e que ocor‑ re comumente na fase aguda é a irritabilidade.47 Em estudo brasileiro de Alves et al., as complicações mais prevalentes da DK foram: perda auditiva neurossensorial (24,3%), aneurismas de coronárias (21,7%) e distúrbios de comportamento e cognitivo (20%).47 Anemia, trombocitose, maior período em atividade inflamatória e tratamento com imunoglobulina endovenosa (IGEV) somente após o 10º dia do início da febre foram correlacionados com a maior ocorrên‑ cia das complicações na DK.47 Evolução e prognóstico A maior parte dos casos de DK tem boa evolução e bom prog‑ nóstico, porém estudos têm demonstrado que mesmo os pa‑ cientes que não apresentam alterações coronarianas na fase aguda da doença podem evoluir com aneurismas ou estenoses das coronárias anos depois. Por isso, é necessário o acompa‑ nhamento do paciente com ecocardiograma.6,8,9,40 O curso evolutivo das lesões coronarianas na DK é modifi‑ cado temporalmente. Os aneurismas regridem na maior parte dos casos, mas as estenoses, que representam a proliferação da camada íntima, são progressivas. Os aneurismas gigantes e persistentes evoluem mais frequentemente com estenose. Fa‑ tores de risco para lesões cardíacas na DK são: idade acima de 8 anos e abaixo de 1 ano, sexo masculino, contagem de leucó‑ citos superior a 15.000, níveis de PCR muito elevados, conta‑ gem de plaquetas muito baixa e níveis baixos de albumina.6 Tratamento A IGEV é o principal medicamento na DK, sendo utilizada na fase aguda, de preferência nos primeiros 7 a 10 dias da doença, a fim de diminuir a prevalência de anormalidades das artérias coronárias e abreviar a duração dos sintomas clínicos. Os me‑ canismos de ação da IGEV permanecem desconhecidos.6,7
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A dose da IGEV para o tratamento da DK é de 2 g/kg em in‑ fusão única durante período variável de 10 a 12 horas junto com ácido acetilsalicílico (AAS) na dose de 80 a 100 mg/kg.6,7 A administração da IGEV nos 10 primeiros dias da doença re‑ duz o comprometimento da artéria coronária para 3 a 8% e a mortalidade para 0,2%.34,43 A infusão da IGEV antes do 5º dia de doença não previne as sequelas cardíacas. A IGEV pode acarretar alguns efeitos colaterais menores, como sintomas vasomotores (cefaleia, febre, calafrios, hipo‑ tensão), além de outras alterações transitórias, como leucope‑ nia, neutropenia ou proteinúria.14,19 Raramente ocorrem com‑ plicações graves como meningite asséptica, trombose, choque anafilático e insuficiência renal aguda. Também são incomuns os efeitos adversos dermatológicos, como prurido, dermatite eczematosa e eritema multiforme.6 As vacinações com vírus vivo atenuado devem ser prorro‑ gadas por, pelo menos, 6 meses após a administração da IGEV, em virtude da redução da imunogenicidade pelos anticorpos passivos do medicamento.6 O AAS em altas doses apresenta efeito anti-inflamatório e, em baixas doses, atua como inibidor da agregação plaquetária, de modo que o tempo de uso do AAS em altas doses deve per‑ manecer até que a criança esteja afebril. Em seguida, é feita a diminuição da dose para 3 a 5 mg/kg/dia e mantida nessa dose enquanto a criança apresentar plaquetose e/ou altera‑ ções coronarianas. O ibuprofeno não deve ser administrado em concomitância ao AAS, por ter ação antagonista sobre seu efeito inibidor pla‑ quetário.7 Outro cuidado importante em relação à criança em uso de AAS em altas doses diz respeito à possibilidade de sín‑ drome de Reye, caso ocorra infecção por varicela ou influenza. Cerca de 10 a 20% dos pacientes com DK não respondem à infusão da primeira dose de IGEV, com persistência da febre ou com a sua recrudescência 36 horas após a primeira infusão da IGEV. Esses pacientes são considerados refratários ao trata‑ mento e apresentam maior risco de alterações coronarianas. Nesses casos, é recomendada a administração da segunda dose de IGEV de 2 g/kg em dose única. Caso a febre persista por 36 horas, recomenda-se o uso de pulsoterapia com metil‑ prednisolona na dose de 30 mg/kg/dia (dose máxima 1 g/ dia), infundida em 1 hora, 1 vez/dia, durante 3 dias.6,7 Não há protocolos direcionados para o tratamento de DK refratária. Outros medicamentos têm sido utilizados nos casos que também não respondem ao corticosteroide, com resulta‑ dos favoráveis, mas todos com base em relatos de casos ou es‑ tudos não randomizados e não controlados. Os agentes bioló‑ gicos têm sido utilizados no tratamento dos casos refratários, como o infliximabe (5 mg/kg, EV), o etanercepte (0,8 mg/kg, subcutâneo) e anticorpos monoclonais contra o TNF-alfa, com resultados parciais nos poucos casos tratados, com me‑ lhora da febre e dos aneurismas.6,7,51 São utilizados também imunossupressores como ciclosporina (3 a 5 mg/kg/dia) as‑ sociada a prednisona ou metilprednisolona, com melhora da febre, porém sem alterar as anormalidades cardíacas. Os agen‑ tes citotóxicos apresentam efeitos adversos importantes e de‑ ve-se avaliar a relação custo/benefício.
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Há relato de uso de metotrexato (10 mg/m2, 1 vez/semana) com efetividade clínica – cessação da febre e sem progressão da dilatação das artérias coronarianas.6,7,52 O abciximabe, inibidor do receptor de glicoproteína IIb/ IIIa plaquetário, tem sido utilizado nas fases aguda/subaguda de doentes com aneurismas grandes, com boa regressão no diâmetro do aneurisma, sugerindo que o medicamento pro‑ mova remodelamento vascular.6,53 O AAS em doses baixas (3 a 5 mg/kg/dia) é a principal te‑ rapêutica para crianças com pequenos e médios aneuris‑ mas.6,14 Outros agentes antiplaquetários também são utiliza‑ dos (clopidogrel, ticlopidina, dipiridamol) e, associados ao AAS, têm se mostrado mais efetivos em bloquear a agregação plaquetária.6,7 Estudos randomizados são necessários para estabelecer o papel de agentes como a heparina de baixo peso molecular no manejo das crianças com aneurismas gigantes. O regime anti‑ trombótico mais comum para pacientes com aneurisma gigan‑ te é o AAS em baixas doses associado à warfarina, com objetivo de manter o INR (international normalized ratio) entre 2 e 2,5.6 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que a DK é a segunda causa de cardiopatia adquirida na infância em nosso país. • Saber que a doença geralmente acomete vasos de médio calibre, como as artérias coronárias, mas pode afetar vasos de qualquer tipo e tamanho, com manifestações em órgãos e vísceras, como pulmões, intestino e vesícula biliar, por exemplo. • Lembrar que o diagnóstico é essencialmente clínico e baseado em critérios diagnósticos. • Saber que o diagnóstico e o tratamento precoce com gamaglobulina endovenosa diminuem a chance de complicação, como o aparecimento de aneurismas e suas consequências. • Lembrar que a doença pode ser típica ou atípica, o que pode atrasar o diagnóstico e o tratamento adequados. • Considerar que as crianças com formas incompletas e atípicas também devem receber tratamento com gamaglobulina endovenosa.
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41. Amano S, Hazama F. Neural involvement in Kawasaki disease. Acta Pa‑ thol JPN 1980; 30:365-73. 42. Takahashi K, Oharaseki T, Nave S. Pathological study of post coronary arterites in adolescents and young adults with reference to the relation‑ ship between sequelae of Kawasaki disease and atherosclerosis. Pediatr Cardiol 2001; 22:138-42. 43. Burns JC, Glodé MP. Kawasaki syndrome. Lancet 2004; 364:533-44. 44. Naoe S, Takahashi K, Masuda H, Tanaka N. Coronary findings post Ka‑ wasaki disease in children who died of other causes. In: Shulman ST (ed.). Kawasaki disease. Philadelphia: Alan R Liss, 1987. p.341-6. 45. Mitani Y, Okuda Y, Inoue M, Aoki K, Sakurai M. Impaired endothelium‑ -dependent relaxation of angiographically normal coronary arteries in patients after Kawasaki disease in the long-term follow up period. Ka‑ wasaki disease. Amsterdam: Elsevier, 1995. p.587-91. 46. Dhillon R, Clarkson P, Donald AE, Powe AJ, Nash M, Novelli V et al. En‑ dothelial dysfunction late after Kawasaki disease. Circulation 1996; 94:2103-6. 47. Alves NRM, Magalhães CMR, Almeida RFR, Santos RCR, Gandolfi L, Pratesi R. Prospective study of Kawasaki disease complications: review of 115 cases. Rev Assoc Med Bras 2011; 57(3):295-300. 48. Mennesson EG, Landron C, Dauphin C, Epaulard O, Petit C, Green L et al. Kawasaki disease in adults report of 10 cases. Medicine 2010; 89(3):149-58. 49. Magalhães CMR, Alves NRM, Oliveira KMA, Silva IMC, Gandolfi L, Pra‑ tesi R. Sensorial hearing loss: an underdiagnosed complication of Kawa‑ saki disease. J Clin Rheumatol 2010; 16(7):322-5. 50. Terasawa K, Ichinose E, Matsuishi T, Kato H. Neurological complica‑ tions in Kawasaki disease. Brain Dev 1983; 5:371-4. 51. Oishi T, Fujieda M, Shiraishi T, Ono M, Inoue K, Takahashi A et al. Infli‑ ximab treatment for refractory Kawasaki disease with coronary artery aneurysm. Circ J 2008; 72:850-2. 52. Lee MS, Anh SY, Jang GC, Kim DS. A case of intravenous immunoglobu‑ lin-resistant Kawasaki disease treated with methotrexate. Yonsei Med J 2002; 43:527-32. 53. Williams RV, Wilke VM, Tani LY, Minich LL. Does abciximab enhance regression of coronary aneurysms resulting from Kawasaki disease? Pe‑ diatrics 2002; 109:109-14.
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SEÇÃO 23
Terapia Intensiva COORDENADOR
Paulo Davi Ramos João
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Tratado de Pediatria 4ed.indb 1838
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COORDENADOR E AUTORES SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
Coordenador Paulo Davi Ramos João Chefe das UTIs Cirúrgica e Pediátrica do Hospital Pequeno Príncipe. Presidente do Departamento Científico de Terapia Intensiva da SBP (2013‑2015). Vice‑presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib). Professor‑assistente de Pediatria da Universidade Positivo. Autores Aline Botta Especialista em Terapia Intensiva Pediátrica. Mestre em Cardiologia pela Universidade Federal do Rio de Grande Sul (UFRGS). Médica Intensivista Pediátrica da UTI Pediátrica do Hospital da Criança Santo Antônio – Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre. Arnaldo Prata Barbosa Especialista em Pediatria pela SBP e Medicina Intensiva pela Amib e SBP. Mestre em Pediatria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Clínica Médica (Saúde da Criança e do Adolescente) pela UFRJ. Professor Colaborador Voluntário (Professor Adjunto Aposentado) do Departamento de Pediatria da FM‑UFRJ. Chefe dos Serviços de Pediatria da Rede D’Or São Luiz, Rio de Janeiro. Pesquisador do Departamento de Pediatria do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR). Claudia Pires Ricachinevsky Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Chefe da UTI Pediátrica do Hospital da Criança Santo Antônio – Complexo Hospitalar Santa
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1839
Casa de Porto Alegre. Médica Intensivista Pediátrica da Unidade de Tratamento Intensivo Pediátrico (UTIP) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA/UFRGS). Eduardo Mekitarian Filho Médico Pediatra. Pós‑doutor, Doutor e Mestre em Pediatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Professor Colaborador da Disciplina Discussão Integrada de Casos – UCD 21 da FMUSP. Médico Intensivista do Centro de Terapia Intensiva Pediátrica do Instituto da Criança do HCFMUSP e do Hospital Santa Catarina. Jefferson Pedro Piva Especialista em Pediatria com Áreas de Atuação em Medicina Intensiva Pediátrica e Medicina Paliativa. Mestre em Farmacologia pela UFCSPA. Doutor em Pediatria pela UFRGS. Professor Titular de Pediatria da UFRGS. Chefe do Serviço de Emergência e Medicina Intensiva Pediátrica do HCPA. José Carlos Pereira Currais Especialista em Pediatria pela SBP e em Medicina Intensiva pela Amib/SBP. Médico Intensivista Pediátrico do Hospital Universitário Pedro Ernesto. José Roberto Fioretto Especialista em Pediatria pela SBP, em Medicina Intensiva Pediátrica pela Amib e em Cardiologia pela SBC. Mestre e Doutor em Cardiologia pela FMB‑Unesp. Professor Titular da Disciplina Medicina Intensiva Pediátrica da FMB‑Unesp. Vice‑presidente eleito da Amib (Biênio 2018‑2019). Coordenador Nacional do Curso Pediatric Fundamental Critical
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Care Support/Amib. Membro do Departamento de Terapia Intensiva da SBP. Karina Nascimento Costa Doutora em Ciências Médicas pela Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB). Professora Adjunta da Área de Medicina da Criança e do Adolescente da UnB. Intensivista Pediátrica da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica do Hospital de Base do Distrito Federal. Lisiane Dalle Mulle Especialista em Terapia Intensiva Pediátrica e em Neonatologia pela Amib. Mestre em Cardiologia pela UFRGS. Médica Rotineira da UTI Pediátrica do Hospital da Criança Santo Antônio – Complexo Hospitalar da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Médica da UTI Neonatal do HCPA‑UFRGS. Marcelo Luiz Abramczyk Doutor em Pediatria pela EPM‑Unifesp. Médico da Disciplina Infectologia Pediátrica da EPM‑Unifesp. Mario Roberto Hirschheimer Pediatra com Habilitação nas Áreas de Atuação de Endocrinologia Pediátrica pela SBEM e SBP e de Terapia Intensiva Pediátrica pela Amib/SBP. Membro da Câmara Técnica de Pediatria do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP), Triênio 2013‑2016. Paulo R. Antonacci Carvalho Doutor em Pediatria pela UFRGS. Professor Titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFRGS. Coordenador do Programa de Reanimação Pediátrica da SBP. Pedro Celiny Ramos Garcia Especialista em Pediatria com Habilitação em Terapia Intensiva Pediátrica pela Amib e SBP. Professor Titular do Departamento de Pediatria e do Curso de Pós‑graduação em Pediatria da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC‑RS). Chefe da UTI Pediátrica do Hospital São Lucas da PUC‑RS. Membro do Departamento de Terapia Intensiva da SBP.
‑presidente do Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios de Ribeirão Preto e Região (SINDHORP). Diretor‑secretário da Federação dos Hospitais do Estado de São Paulo (FEHOSP). Gestor da UTI Pediátrica do Hospital Assunção. Gestor da UTI Pediátrica da Santa Casa de Ribeirão Preto. Sérgio Diniz Guerra Especialista em Terapia Intensiva Pediátrica pela SBP/Amib. Doutor em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Médico da UTI Pediátrica do Hospital João XXIII. Sérgio Luís Amantéa Mestre em Pediatria e Doutor em Pneumologia pela UFRGS. Professor Adjunto do Departamento de Pediatria da UFSCPA. Chefe da Emergência Pediátrica do Hospital da Criança Santo Antônio (ISCMPA). Vice‑coordenador do Programa de Pós ‑graduação em Ciências da Saúde da UFCSPA. Taís Sica da Rocha Doutora em Ciências Médicas – Saúde da Criança e do Adolescente – pela UFRGS. Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFRGS. Chefe da UTI Pediátrica do HCPA. Médica Intensivista Pediátrica da UTI Pediátrica do Hospital da Criança Santo Antônio – Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre. Toshio Matsumoto Especialista em Pediatria pela SBP e em Terapia Intensiva Pediátrica pela Amib. Médico Preceptor da UTI do Hospital Municipal Infantil Menino Jesus. Werther Brunow de Carvalho Professor Titular do Departamento de Pediatria – Área de Neonatologia e Cuidados Intensivos – do ICr‑HCFMUSP. Chefe da UTI Pediátrica do Hospital Santa Catarina. Woady Jorge Kalil Filho Doutor em Pediatria pela FMUSP. Professor da FMUSP. Médico Supervisor da Unidade de Terapia Intensiva do ICr‑HCFMUSP. Diretor Médico da Inter Partner Assistance do Brasil – Grupo AXA.
Rodrigo de Freitas Nóbrega Pediatra e Intensivista Pediátrico, com Título de Especialista pela SBP/Amib. Sócio Diretor da Gesti (Gestão e Soluções em Terapia Intensiva). Vice
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CAPÍTULO 1
SISTEMAS DE ESCORES PARA AVALIAÇÃO DE GRAVIDADE Paulo Davi Ramos João
Introdução Pacientes criticamente doentes são caracterizados por distúr‑ bios da homeostase corpórea. Tanto em adultos como em crianças, esses distúrbios podem ser estimados pela medida de quanto uma ou mais variáveis fisiológicas diferem do nor‑ mal. Os escores de gravidade podem ser construídos com es‑ sas variáveis. Muitos tipos de escore têm sido desenvolvidos com a finalidade de melhor avaliar a gravidade das doenças em um grupo de pacientes clinicamente instáveis. Atualmen‑ te, os escores foram desenvolvidos para predizer com máxima certeza o risco de mortalidade de pacientes criticamente doentes e para melhor descrever a gravidade das doenças du‑ rante a permanência na unidade de terapia intensiva (UTI).1-3 Os principais índices utilizados em pediatria são: • escore preditivo na chegada na UTI: risco de mortalidade pe‑ diátrica (pediatric risk of mortality – PRISM) e índice de mor‑ talidade pediátrica (pediatric index of mortality – PIM); • escore descritivo que estima a severidade de casos de disfun‑ ção de múltiplos órgãos e sistemas (DMOS) em crianças gra‑ vemente doentes: escores de logística de disfunção orgânica pediátrica (pediatric logistic organ dysfunction – PELOD). Portanto, os dois primeiros estimam o risco de óbitos, e o PELOD avalia o curso clínico do paciente. Risco de mortalidade pediátrica (PRISM)1,3,4 O PRISM pode ser usado em neonatos, lactentes, crianças e adolescentes, mas não em prematuros e adultos. Três versões foram publicadas. A primeiro, em 1986, foi de‑ nominada índice de instabilidade fisiológica (physiologic stability index – PSI) e continha 24 variáveis. Em 1988, Murray Polack et al. publicaram uma nova versão que chamaram de PRISM e alguns intensivistas chamaram de PRISM II. Ela continha 14 variáveis. Em 1996, foi descrito o PRISM III, com 17 variáveis de aná‑ lise tanto clínica como laboratorial, sendo o mais atualizado, embora o PRISM II seja o mais utilizado.2
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1841
A Tabela 1 contém o escore PRISM II detalhado e como é calculado. A soma das variáveis do PRISM II representa a gravidade da doença. Essa soma é convertida em risco de óbito, utilizan‑ do-se a seguinte equação: Risco de mortalidade na UTI = exp(R)/1 + exp(R) Em que R = 0,207 × PRISM - 0,05 × idade (meses) × (condi‑ ção) – 4,782; condição = 1 (cirúrgico) ou 0 (clínico). Existe uma maneira mais fácil de calcular o PRISM no site da Sociedade Francesa de Anestesiologia e Terapia Intensiva (www.sfar.org/scores2/prism2.htlm). A Tabela 2 descreve o PRISM III. O PRISM III tem sua capacidade de predizer o risco de mortalidade pela sua área sob as curvas de características de operação do receptor (curvas ROC – receiver operating characteristic). O escore PRISM tem vantagem na graduação da gravidade da doença pela valorização de diferentes aspectos de órgãos e sistemas individuais, que têm se mostrado importantes. Tam‑ bém permite quantificar o estado fisiológico da população ex‑ perimental e do controle. A predição do óbito pode ser feita usando os dados fisiológicos, demográficos e diagnósticos das primeiras 12 horas de internação ou das primeiras 24 horas. Índice de mortalidade pediátrica (PIM)1,3,5 Também é um escore preditivo. O PIM 1 foi publicado em 1997 e aperfeiçoado em 2003. Foi avaliado em 20.787 crianças em 14 UTI da Austrália, Nova Zelândia e Reino Unido. O PIM baseia-se apenas em 8 variáveis, todas coletadas no momento da internação, no intuito de evitar que intervenções terapêuticas interfiram no efeito do resultado. A Tabela 3 con‑ tém o escore detalhado e como é calculado. O risco de mortalidade do PIM 2 pode ser obtido por meio da seguinte equação:
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1842 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
Tabela 1 Escore de risco de mortalidade pediátrica – PRISM II Variáveis*
Idades e variações Lactentes
Crianças
Pressão arterial sistólica (mmHg)
< 40
< 50
7
40 a 54
50 a 64
6
55 a 65
65 a 75
2
130 a 160
150 a 200
2
> 200
6
> 160 Pressão arterial diastólica (mmHg)
> 110
Frequência cardíaca (bpm)
< 90
Frequência respiratória (movimentos respiratórios por minuto) PaO2/FiO2 (mmHg)**
Pontos
6
< 80
4
> 160
> 150
4
Apneia
Apneia
5
61 a 90
51 a 70
1
> 90
> 70
5
< 200
3
200 a 300
2
51 a 65
1
> 65
5
<8
5
Desigual e dilatada
4
Fixa e dilatada
10
Tempo de protrombina/ tempo de tromboplastina parcial
> 1,5 × controle
2
Bilirrubina total (mg/dL) em > 1 mês
> 3,5
6
<3
5
PaCO2 (mmHg) Escore de coma de Glasgow*** Reação pupilar***
Potássio (mEq/L)
Cálcio (mg/dL)
Glicose (mg/dL)
Bicarbonato (mEq/L)
3 a 3,5
1
6,5 a 7,5
1
> 7,5
5
<7
6
7a8
2
12 a 15
2
> 15
6
< 40
8
40 a 60
4
250 a 400
4
> 400
8
< 16
3
> 32
3
* Variáveis não medidas são consideradas zero. ** Em pacientes com shunts intracardíacos ou em insuficiência respiratória crônica, considerar zero. *** Só medir em caso de suspeita ou evidência de disfunção no sistema nervoso central (SNC). Em caso de sedação ou paralisia, considerar zero.
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1842
Exp = (-4,881) = (valores × beta) + {0,01395 × [absoluto (SBP – 120)]} + [0,1040 × (absoluto BE)] + [0,2888 × (100 × FiO2/PaO2)]. Há também o cálculo facilitado pelo site da Sociedade France‑ sa de Anestesiologia e Terapia Intensiva (www.sfar.org/sco‑ res2/pim22.htlm). Em contraste com as diferentes versões do PRISM, que re‑ gistram anormalidades nas primeiras 12 a 24 horas, o PIM co‑ leta os dados do paciente na chegada na UTI. Escores de logística de disfunção orgânica pediátrica (PELOD)1,3 Alguns intensivistas pediátricos achavam que uma boa ferra‑ menta para estimar a gravidade dos casos de DMOS em UTI era necessária para descrever corretamente o curso clínico de crianças criticamente doentes. Assim foi criado o PELOD em 1999. A primeira lista incluía 45 variáveis. Com a evolução, fo‑ ram mantidas 12 variáveis. A finalidade é a avaliação diária da gravidade do paciente. A Tabela 4 contém, em detalhes, as va‑ riáveis utilizadas no PELOD e como é calculado. O risco de mortalidade do PELOD pode ser calculado pela seguinte equação: Exp = 7,64 = 0,30 × (PELOD). Também pode ser calculado de maneira automática pelo site da Sociedade Francesa de Anestesiologia e Terapia Inten‑ siva (www.sfar.org/scores2/pelod2.htlm). Não se observaram óbitos em pacientes com PELOD zero, enquanto mortalidade de 100% foi observada em PELOD > 26. Observou-se ainda que o componente hepático não foi signifi‑ cativamente estatístico em sua capacidade preditiva. Todos os escores descritos necessitam de frequente revali‑ dação porque os casos e o risco de mortalidade mudam com o tempo nas UTI. Escore de alerta do paciente na enfermaria6 Em 4 hospitais canadenses, foi realizado um estudo com 2.076 crianças internadas na enfermaria para avaliar os pa‑ cientes com risco de evoluírem para parada cardiorrespirató‑ ria. O escore foi chamado de BedsidePews (bedside paediatric early warning system score) e ainda não foi traduzido para o português. Após internação na enfermaria, os pacientes foram avalia‑ dos por critérios exclusivamente clínicos e, a cada hora, uma ficha era preenchida por médico ou enfermeira com os dados pesquisados, o que sugeriu alguma discrepância nos resulta‑ dos. Como não existe tradução do método, a tabela com as va‑ riáveis analisadas ainda está em inglês (Tabela 5). Os dados são coletados até 1 hora antes de acontecer a pa‑ rada ou algum evento crítico. O escore médio de 8 foi o que previu que os pacientes teriam evolução pior. Ainda não é um método amplamente utilizado e testado, mas é uma boa pro‑ posta para avaliar os pacientes internados em enfermarias para definir a conduta e o momento de chamar o sistema de urgência e/ou encaminhar o paciente para a UTI.
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Sistemas de Escores para Avaliação de Gravidade •
1843
Tabela 2 PRISM III – Variáveis fisiológicas analisadas Sinais vitais, cardiovasculares e neurológicos PA sistólica (mmHg)
Escore = 3
Escore = 7
Neonatal
40 a 55
< 40
Lactente
45 a 65
< 45
Criança
55 a 75
< 55
Adolescente
65 a 85
< 65
Temperatura
Escore = 3
Testes bioquímicos Glicose
Escore = 2 > 200 mg/dL ou > 11 mmol/L
Potássio (mmol/L)
Escore = 3
< 33° ou > 40°C Status neurológico
> 6,9
Escore = 5
Ureia (mg/dL)
Escore = 3
Estupor/coma ou Glasgow < 8
Neonatal
> 11,9
Outras idades
> 14,9
Frequência cardíaca (bpm)
Escore = 3
Escore = 4
Creatinina (mg/dL)
Escore = 2
Neonatal
215 a 225
> 225
Neonatal
> 0,85 > 0,90
Lactente
215 a 225
> 225
Lactente
Criança
185 a 205
> 205
Criança
> 0,90
Adolescente
145 a 155
> 155
Adolescente
> 1,30
Escore = 7
Escore = 11
Fixa unilateral
Fixa bilateral
Reflexo pupilar
Acidobásico, gasometria
Testes hematológicos
Acidose (pH ou CO2 total)
Escore = 2
Escore = 6
pH
7 a 7,28
<7
CO2
5 a 16,9
<5
pH
Escore = 2
Escore = 3
7,48 a 7,55
> 7,55
Escore = 1
Escore = 3
50 a 75
> 75
PCO2 (mmHg)
CO2 total
Leucócitos (céls./mm3)
Escore =4 < 3.000
Plaquetas (× 103 céls./mm3)
Escore = 2 Escore = 4 Escore = 5 100 a 200
50 a 99
TP ou TTPA
Escore = 3
Neonatal
TP > 22 ou TTPa > 85
Outras idades
TP > 22 ou TTPa > 57
< 50
Escore = 4 > 34
PaO2 (mmHg)
Escore = 3
Escore = 6
42 a 49
< 42
PRISM III (pediatric index of mortality). Fatores adicionais incluem doença cardiovascular não cirúrgica, anomalia cromossômica, câncer, admissão em UTI pediátrica prévia, reanimação cardiopulmonar pré-UTI pediátrica, diabete agudo e admissão hospitalar interna. TP: tempo de protrombina; TTPa: tempo de tromboplastina parcial ativada.
Tabela 3 Índice de mortalidade pediátrica Variável
Achado
Pontos
01
Admissão eletiva
Sim – 1 Não – 0
02
Recuperação de procedimentos/cirurgia
Sim – 1 Não – 0
03
Cirurgia cardíaca bypass
Sim – 1 Não – 0
04
Diagnósticos de alto risco: • parada cardíaca anterior à admissão na UTI pediátrica • imunodeficiência grave, leucemia ou linfoma após a primeira indução • hemorragia cerebral espontânea • cardiomiopatia ou miocardite • síndrome de coração esquerdo hipoplásico • HIV • insuficiência hepática como motivo da internação • disfunção neurodegenerativa
Sim – 1 Não – 0
05
Diagnósticos de baixo risco (razão principal de internação em UTI pediátrica): • asma • bronquiolite • apneia obstrutiva do sono • cetoacidose diabética
Sim – 1 Não – 0
(continua)
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1843
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1844 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
Tabela 3 (Continuação) Índice de mortalidade pediátrica Variável
Achado
Pontos
06
Ventilação mecânica (qualquer período na 1ª hora de internação)
Sim – 1 Não – 0
07
Ausência de reação pupilar à luz (> 3 mm e ambas fixas) Se sim = 1 / Outro ou desconhecido = 0
08
Pressão arterial sistólica (mmHg) Se desconhecida = 120
VALOR
09
Excesso de base (mmol/L) – sangue arterial ou capilar Se desconhecido = 0
VALOR
10
100* FiO2/PaO2 (mmHg)* Se desconhecido = 0
VALOR
Tabela 4 Escores de logística de disfunção orgânica pediátrica Parâmetro
Achado
Pontos*
Neurológico
GCS 12 a 15 e pupilas reativas
0
GCS 7 a 11
1
GCS 4 a 6 ou pupilas fixas
10
GCS 3
20
Idade < 1 mês e FC ≤ 195 bpm e PAS > 65 mmHg
0
Idade ≥ 1 mês e FC ≤ 195 bpm e PAS > 75 mmHg
0
Idade ≥ 1 ano e FC ≤ 195 bpm e PAS > 85 mmHg
0
Cardiovascular
Renal
Pulmonar
Hematológico
Hepático
Idade ≥ 12 anos e FC ≤ 150 bpm e PAS > 95 mmHg
0
Idade < 1 mês e FC > 195 bpm ou PAS ≥ 35 mmHg e ≤ 65 mmHg
10
Idade ≥ 1 mês e < 1 ano e FC > 195 bpm e PAS ≥ 35 mmHg e ≤ 75 mmHg
10
Idade ≥ 1 mês e < 12 anos e FC > 195 bpm ou PAS ≥ 45 mmHg e ≤ 85 mmHg
10
Idade ≥ 12 anos e FC > 150 bpm ou PAS ≥ 55 mmHg e ≤ 95 mmHg
10
Idade < 1 mês e PAS < 35 mmHg
20
Idade ≥ 1 mês e < 1 ano e PAS < 35 mmHg
20
Idade ≥ 1 ano e < 12 anos e PAS < 45 mmHg
20
Idade ≥ 12 anos e PAS < 55 mmHg
20
Idade < 7 dias e creatinina < 1,59 mg/dL
0
Idade ≥ 7 dias < 1 ano e creatinina < 0,62 mg/dL
0
Idade ≥ 1 ano e < 12 anos e creatinina < 1,13 mg/dL
0
Idade ≥ 12 anos e creatinina < 1,59 mg/dL
0
Idade < 7 dias e creatinina ≥ 1,59 mg/dL
10
Idade ≥ 7 dias e < 1 ano e creatinina ≥ 0,62 mg/dL
10
Idade ≥ 1 ano e < 12 anos e creatinina ≥ 1,13 mg/dL
10
Idade ≥ 12 anos e creatinina ≥ 1,59 mg/dL
10
PaO2/FiO2 > 70 mmHg e PCO2 ≤ 90 mmHg e sem VM
0
VM
1
PaO2/FiO2 ≤ 70 mmHg e PCO2 > 90 mmHg
10
Leucócitos ≥ 4.500/mL e plaquetas ≥ 35.000/mL
0
Leucócitos ≥ 1.500/mL e < 4.400/mL ou plaquetas < 35.000/mL
1
Leucócitos < 1.500/mL
10
TGO < 950 UI/L e TP > 60% ou INR < 1,40
0
TGO ≥ 950 UI/L e TP ≤ 60% ou INR ≥ 1,40
1
* Variáveis não medidas são consideradas zero. GCS: escala de coma de Glasgow; FC: frequência cardíaca (bpm); PAS: pressão arterial sistólica; PaO2/FiO2: relação da pressão parcial de oxigênio arterial dividida pela fração inspirada de oxigênio; PCO2: pressão parcial de dióxido de carbono; VM: ventilação mecânica; TGO: transaminase glutâmica oxalacética; TP: tempo de protrombina; INR: international normalized ratio.
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Sistemas de Escores para Avaliação de Gravidade •
1845
Tabela 5 The Bedside Paediatric Early Warning System score items Item subscore Item
Age group
0
1
2
4
Heart rate (bpm)
0 to < 3 months
> 110 and < 150
≥ 150 or ≤ 110
≥ 180 or ≤ 90
≥ 190 or ≤ 80
3 to < 12 months
> 100 and < 150
≥ 150 or ≤ 100
≥ 170 or ≤ 80
≥ 180 or ≤ 70
1 to 4 years
> 90 and < 120
≥ 120 or ≤ 90
≥ 150 or ≤ 70
≥ 170 or ≤ 60
> 4 to 12 years
> 70 and < 110
≥ 110 or ≤ 70
≥ 130 or ≤ 60
≥ 150 or ≤ 50
> 12 years
> 60 and < 100
≥ 100 or ≤ 60
≥ 120 or ≤ 50
≥ 140 or ≤ 40
0 to < 3 months
> 60 and < 80
≥ 80 or ≤ 60
≥ 100 or ≤ 50
≥ 130 or ≤ 45
3 to < 12 months
> 80 and < 100
≥ 100 or ≤ 80
≥ 120 or ≤ 70
≥ 150 or ≤ 60
1 to 4 years
> 90 and < 110
≥ 110 or ≤ 90
≥ 125 or ≤ 75
≥ 160 or ≤ 65
> 4 to 12 years
> 90 and < 120
≥ 120 or ≤ 90
≥ 140 or ≤ 80
≥ 170 or ≤ 70
≥ 12 years
> 100 and < 130
≥ 130 or ≤ 100
≥ 150 or ≤ 85
Systolic blood pressure (mmHg)
Capillary refill time Respiratory rate (breaths/minute)
< 3 seconds
≥ 190 or ≤ 75 ≥ 3 seconds
0 to < 3 months
> 29 or < 61
≥ 61 or ≤ 29
≥ 81 or ≤ 19
≥ 91 or ≤ 15
3 to < 12 months
> 24 or < 51
≥ 51 or ≤ 24
≥ 71 or ≤ 19
≥ 81 or ≤ 15
1 to 4 years
> 19 or < 41
≥ 41 or ≤ 19
≥ 61 or ≤ 15
≥ 71 or ≤ 12
> 4 to 12 years
> 19 or < 31
≥ 31 or ≤ 19
≥ 41 or ≤ 14
≥ 51 or ≤ 10
> 12 years
> 11 or < 17
≥ 17 or ≤ 11
≥ 23 or ≤ 10
≥ 30 or ≤ 9
Respiratory effort
Normal
Mild increase
Moderate increase
Severe increase/any apnoea
Oxygen saturation (%)
> 94
91 to 94
≤ 90
Oxygen therapy
Room air
Any to < 4 L/min or < 50%
≥ 4 L/min or ≥ 50%
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Análise dos estudos da literatura Um estudo realizado em 10 UTI da Austrália e Nova Zelândia, que incluiu 26.996 pacientes com menos de 16 anos, comparou o PIM, o PIM 2 e o PRISM para avaliar a qualidade das unida‑ des. O estudo foi realizado entre 1997 e 2001, e 1.147 pacientes morreram. Concluiu-se que o PIM foi mais acurado e teve o me‑ lhor ajuste em diferentes diagnósticos e grupos de risco. Tam‑ bém foi o modelo mais adequado para predizer a mortalidade e monitorar a qualidade das UTI na Austrália e Nova Zelândia.7 Um estudo realizado em Nova Délhi, na Índia, fez uma aná‑ lise do desempenho do PRISM, do PIM e do PIM 2 em uma UTI pediátrica entre julho de 2002 e julho de 2003. Foram incluídos 215 pacientes e 139 sobreviveram no final do estudo. O estudo concluiu que os 3 métodos subestimaram a mortalidade na UTI. As prováveis razões para essa conclusão seriam diferenças no perfil de pacientes e o grande peso da gravidade das doenças ser manuseado com recursos escassos, tanto físicos como hu‑ manos, além de diferenças na qualidade dos cuidados.8 O PIM 2 foi avaliado como preditor de mortalidade em pós‑ -operatório de cirurgia cardíaca realizadas em 44 UTI norte‑ -americanas. Nesse estudo, foram avaliados 9.208 pacientes entre 0 e 18 anos (média de 3,3 anos) entre janeiro de 2005 e setembro de 2007. A conclusão foi que o PIM 2 demonstrou pobre desempenho, pobre calibração e pobre habilidade em avaliar a gravidade em pós-operatório de cirurgia cardíaca e não deve ser recomendado nesse grupo de pacientes.9
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1845
Em um hospital de Lille, na França, foi realizada uma com‑ paração entre o PIM 2 e o PRISM em crianças com choque sép‑ tico por meningococcemia. O PRISM demonstrou ser melhor para avaliar a mortalidade. O estudo concluiu que pode ser usa‑ do, lembrando da limitação da avaliação em poucas horas.10 Outro estudo realizado em 2 hospitais de Londres avaliou a eficácia do PIM 2 e do PRISM em crianças com meningococ‑ cemia. Foram incluídas 165 crianças entre 1 mês e 17 anos de idade. Ambos os métodos demonstraram discriminar bem a mortalidade nesses casos, mas com baixa calibração, sendo o PIM 2 mais vantajoso, por mais fácil de utilizar.11 O PRISM foi avaliado em um estudo com 233 crianças porta‑ doras de malária. A conclusão foi que, apesar de demonstrar ser um bom escore de mortalidade, o número de crianças que mor‑ reram foi maior do que na avaliação inicial do PRISM prévia.12 Na UTI do Hospital São Lucas de Porto Alegre, foi realizado um estudo comparando o PIM e o PRISM para investigar a re‑ lação entre mortalidade e sobrevivência das crianças interna‑ das entre junho e maio de 1999. Concluíram que, apesar de o PIM demonstrar pior calibração no conjunto dos resultados, tanto o PIM como o PRISM apresentam boa capacidade de discriminar entre sobreviventes e não sobreviventes.13 Pode-se concluir que não há um escore de mortalidade ideal para a pediatria. Os mais utilizados (PIM e PRISM) mostram bom desempenho para estimar a mortalidade, mas têm suas li‑ mitações, como demonstram os trabalhos da literatura.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer a gravidade dos pacientes que chegam às emergências e UTI. • Avaliar o risco de óbito de acordo com as suas alterações clínicas e laboratoriais. • Avaliar diariamente se estão evoluindo bem ou mal.
7.
8.
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Tratado de Pediatria 4ed.indb 1846
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CAPÍTULO 2
MEDIDAS DE SUPORTE AVANÇADO DE VIDA E TRANSPORTE DOS PACIENTES GRAVES Paulo R. Antonacci Carvalho
Introdução A identificação precoce e o primeiro atendimento da criança e do adolescente com risco de morte são fatores determinantes para a sua sobrevida e a qualidade de vida futura. A insuficiência cardiorrespiratória que resulta em parada cardiorrespiratória (PCR) frequentemente é um evento previsível e que pode ser an‑ tecipado e/ou evitado. Na maioria das situações, é decorrente de trauma grave ou de evolução rápida e desfavorável de doença aguda, seja por retardo no acesso ao serviço de saúde, seja por avaliação inadequada ou por mau julgamento clínico de profis‑ sional, seja por negligência ou conduta inapropriada em pacien‑ te com deterioração das funções cardiorrespiratórias, ou, ainda, por transporte inadequado de paciente clinicamente instável.1 A PCR na criança menor de 8 anos, em quase 90% dos eventos, é caracterizada por evento respiratório, com hipoxe‑ mia e hipercarbia, ou por um evento circulatório, com má per‑ fusão e má oxigenação de órgãos e sistemas vitais. A PCR pri‑ mariamente cardíaca, caracterizada como um evento súbito e inesperado, tal como ocorre nos adultos, é mais rara nessa fai‑ xa etária. As causas mais frequentes de PCR na criança são doenças respiratórias, síndrome da morte súbita do lactente, sepse, doenças neurológicas e, especialmente, trauma.1-3 O reconhecimento da PCR é feito por apneia ou respiração agônica (gasping) e não resposta a estímulos, com ausência de pulso em grandes artérias (braquial, femoral ou carotídeo). Outros sinais que podem apontar para a necessidade de medi‑ das de ressuscitação cardiorrespiratória (RCR) incluem: respi‑ ração irregular e insuficiente, frequência cardíaca muito baixa (< 60 bpm) com cianose central e palidez cutaneomucosa. O diagnóstico da PCR não necessita ser preciso ou definiti‑ vo para que se inicie algum tipo de intervenção, porque a de‑ mora no início da ressuscitação tem consequências catastrófi‑ cas às vítimas. Uma rápida abordagem clínica pode demonstrar a presença dos sinais apontados anteriormente. Esse quadro, por si só, indica a necessidade de aplicar imedia‑ tamente o suporte básico de vida (SBV), que deve ser pronta‑ mente iniciado pelas compressões torácicas (Tabela 1).2-4
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1847
A nova sequência da ressuscitação cardiorrespiratória, C (circulação/compressões torácicas) – A (abertura de via aé‑ rea) – B (boas respirações [breathing]), preconizada a partir das Diretrizes da Ressuscitação Cardiopulmonar de 20101 e re‑ forçada na edição de 2015,2 é muito coerente com a proposta de promover e/ou manter a circulação do sangue para os ór‑ gãos vitais (coração e encéfalo). Os demais passos do SBV, his‑ toricamente preconizados pelo ABC da ressuscitação (ou seja, abrir a via aérea e promover boa respiração), ainda que muito importantes e até prioritários na criança, podem retardar as manobras para promover a circulação. No caso da criança, a demora no início da ressuscitação pode ser reduzida se houver dois socorristas presentes: o primeiro inicia as compressões torácicas e o segundo abre a via aérea e inicia as respirações tão logo o primeiro socorrista complete a série inicial de 15 compressões torácicas (Tabela 1). Suporte avançado de vida O suporte avançado de vida (SAV) consiste na continuidade das medidas e manobras de suporte básico de vida, adiciona‑ do a outras intervenções de eficácia também duradoura (ven‑ tilação com bolsa-valva-máscara, obtenção de via aérea avan‑ çada, obtenção de acesso vascular, administração de fármacos e desfibrilação elétrica), que, em geral, são restritas ao am‑ biente hospitalar (Tabela 2). O SAV tem como objetivo a res‑ tauração e a manutenção da vida por meio de ventilação e cir‑ culação efetivas, além de correção e manutenção das alterações metabólicas e funcionais decorrentes da PCR. O SAV requer ambiente ou cenário hospitalar, equipamentos es‑ pecíficos e equipe rigorosamente treinada em ressuscitação cardiorrespiratória e/ou cuidados intensivos.5,6 Equipe de ressuscitação e equipamentos avançados O adequado atendimento de paciente em PCR pressupõe ca‑ pacitação de profissionais, bem como as melhores condições de ambiente e de equipamentos. Trata-se de uma situação
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1848 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
que não admite a falta de entrosamento da equipe ou a impro‑ visação com materiais e equipamentos. Na RCR, cada ação inadequada ou fração de tempo desperdiçada pode ter impor‑ tante significado na sobrevida e/ou na morbidade do paciente. Portanto, liderança, capacitação e organização são requisitos de extrema importância nas equipes de RCR.4 Para a capacitação dos profissionais, são recomendados cursos e treinamentos específicos de RCR (PALS®, BLS®, reani‑ mação neonatal), em que a tônica principal é a sistematização do atendimento de ressuscitação em equipe.4,5 Os cursos BLS (Basic Life Support) e PALS (Pediatric Advanced Life Support),
que seguem o modelo da American Heart Association, tam‑ bém têm sido difundidos no Brasil pela Sociedade Brasileira de Pediatria desde o ano de 1999.7 Em inúmeros países, esses cursos são exigidos como pré-requisitos para profissionais que atuam em equipes de resgate, de transporte de pacientes gra‑ ves e de unidades de emergência e de tratamento intensivo. Da mesma forma, é importante difundir a cultura da previ‑ sibilidade de eventos graves (p.ex., PCR) nos locais de pronto‑ -atendimento extra-hospitalar, como unidades de emergência, pronto-socorro e pronto atendimento, tal como já ocorre nas UTIs. Além de planejar e prover a disponibilidade de materiais
Tabela 1 Sequência do suporte básico de vida de acordo com a faixa etária do paciente C→A→B
Faixas etárias
Sequência (observações)
Segurança do local
Verificar se o local do evento é seguro para a vítima e os socorristas
Habilidades
< 1 ano
1 ano até a puberdade
Adolescente
C – Circulação Verificar pulsos
1. Avaliar responsividade aos estímulos Braquial ou femoral
Carotídeo ou femoral
Carotídeo
(apenas pessoal treinado)
2. Ativar sistema médico de emergência
Ponto de referência para compressão
Porção mais inferior do esterno, logo abaixo da linha mamilar (evitar apêndice xifoide)
3. Iniciar compressões torácicas
Frequência de compressões
100 a 120 compressões/min
As compressões devem ser fortes e rápidas, permitindo o retorno do tórax à posição inicial, com mínimas interrupções
Método de compressão
Com os 2 polegares e as mãos envolvendo o tórax (2 socorristas) ou com 2 dedos (1 socorrista)
Com região hipotenar de uma das mãos
Com região hipotenar de uma das mãos e a outra mão sobre a primeira
Tentar limitar as interrupções necessárias a menos de 10 s
Profundidade da compressão
1/3 do diâmetro AP do tórax (4 cm)
1/3 do diâmetro AP do tórax (5 cm)
Mínimo 5 cm
Alternar os profissionais que fazem as compressões a cada 2 minutos para evitar redução de eficácia
Sem VA avançada1
30:2 (1 socorrista) 15:2 (2 socorristas)
Com VA avançada
100 a 120 compressões/min, sem pausas
Desfibrilação externa automática (DEA)
Utilizar o DEA assim que estiver disponível, qualquer que seja a idade; indica se o ritmo é chocável ou não (funciona como monitor cardíaco). Reiniciar as compressões torácicas após verificação e/ou choque
A – Via aérea
Inclinar a cabeça – elevar o queixo (posição de cheirar); no trauma, apenas elevar a mandíbula
30:2 (1 ou 2 socorristas) 10 ventilações/min, sem interrupções: uma ventilação a cada 6 s
4. Abrir vias aéreas 5. Fazer/intercalar respirações
B – Respiração2
(se vítima respira: colocá-la em posição de recuperação) Inicial
Duas respirações efetivas3 de 1 s cada uma
(se vítima não respira: fazer 2 respirações efetivas) (evitar a hiperventilação!)
Subsequente (com VA avançada)
10 respirações/min
(respirações a cada 6 s, intercaladas com as compressões torácicas)
C-A-B: Circulação – via Aérea – respiração (Breathing); AP: anteroposterior; VA: via aérea; DEA: desfibrilador externo automático. 1 Via aérea avançada significa via aérea assegurada por tubo traqueal ou máscara laríngea. 2 No suporte básico de vida, a respiração pode ser realizada boca-a-boca, boca-a-boca-nariz (com ou sem dispositivo de barreira) ou com bolsa-valvamáscara. 3 Respirações efetivas significam respirações capazes de produzir elevação torácica. Fonte: adaptada de Atkins et al., 2015.2
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1848
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Medidas de Suporte Avançado de Vida e Transporte dos Pacientes Graves •
Tabela 2 Intervenções do suporte avançado de vida Atendimento em área de emergência ou de UTI por equipe treinada e com utilização de protocolos facilitadores (algoritmos de ressuscitação) Manutenção das manobras de SBV Obtenção de via aérea segura para ventilação mais efetiva (entubação intratraqueal, máscara laríngea ou máscara facial apropriada, bem posicionada e com boa vedação) Fornecimento de oxigenação máxima (FiO2 1) Ventilação com bolsa-valva (com reservatório) Esvaziamento gástrico por SNG Obtenção de acesso vascular (veia femoral ou punção intraóssea) Monitoramento do ritmo cardíaco
1849
Tabela 3 Equipamento pediátrico mínimo para suporte avançado de vida em locais de atendimento de emergências Monitor de ECG/desfibrilador Equipamento universal de proteção (luvas, máscara facial, protetor de olhos) Oxímetro de pulso Esfigmomanômetro e manguitos de PA Tábua de ressuscitação Dispositivos de imobilização cervical Fonte de oxigênio com fluxômetro Dispositivos para aspiração de secreções Aspirador de ponta rígida
Emprego de fármacos específicos da ressuscitação
Sondas nasogástricas (6F a 16F)
Desfibrilação elétrica, quando indicado
Cânulas faríngeas: bebês, crianças e adolescentes
UTI: unidade de tratamento intensivo; SBV: suporte básico de vida; FiO2: fração inspirada de oxigênio; SNG: sonda nasogástrica.
Dispositivos para oferta de oxigênio (máscaras comuns, máscaras não reinalantes, máscaras com Venturi): para bebês, crianças e adolescentes
e equipamentos adequados (Tabela 3) para o atendimento da vítima nesses eventos, é muito importante a sua manutenção, por meio da verificação e reposição diária deles, com o empre‑ go de checklists ou protocolos operacionais padronizados. No que se refere aos protocolos facilitadores, para que uma RCR transcorra de modo objetivo, organizado e eficiente, é muito importante que estejam disponíveis, nos locais de aten‑ dimento de emergências, algoritmos ou protocolos assisten‑ ciais para as situações de PCR, bem como tabelas ou quadros dos fármacos empregados na RCR, com as doses pré-calcula‑ das de acordo com faixas de peso (estatura) e/ou faixas etá‑ rias (Figura 1). Ventilação Mais do que assegurar uma via aérea com entubação traqueal, uma prioridade na ressuscitação de crianças é a ventilação adequada (por meio de tubo traqueal, máscara laríngea ou máscara facial apropriada, bem posicionada e com boa veda‑ ção), uma vez que as causas respiratórias de PCR são as mais frequentes nesse grupo etário. A entubação traqueal não é me‑ nos importante, mas ela somente deve ser realizada por pro‑ fissional experiente. Caso não seja possível fazê-la, procurar ventilar e oxigenar o paciente com bolsa-valva-máscara antes de cada nova tentativa de entubação. Respiração bolsa-valva-máscara A máscara de tamanho adequado para cada paciente deve en‑ volver apenas sua boca e seu nariz, sem cobrir-lhe os olhos e o queixo. A máscara ideal deve ser feita de material flexível e transparente, acolchoada na superfície de contato com o rosto, e ter formato anatômico. Deve ser pressionada contra a face da criança, de forma a não permitir escapes de oxigênio. A venti‑ lação é realizada por meio do dispositivo bolsa-valva, adapta‑ do à máscara. O dispositivo autoinflável (AMBU®), mais fácil de manejar, deve ter reservatório para proporcionar uma fra‑ ção inspirada de oxigênio próxima de 100%. A fonte de oxigê‑
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1849
Ressuscitadores tipo bolsa-valva-máscara autoinflável com reservatório (AMBU®) de 450 a 500 mL e 750 a 1.000 mL Cateteres de aspiração com pontas arredondadas (de 6F a 14F) Tubos traqueais sem cuff (de 2 a 8) e com cuff (3 a 8) Laringoscópios com lâminas retas (nº 0, 1, 2 e 3) e curvas (nº 2, 3 e 4) Pinças de Magill: tamanhos pediátrico e adulto Fios-guia para tubos traqueais: tamanhos criança e adulto Agulha de cricotireotomia Detector de CO2 exalado Drenos torácicos Agulhas intraósseas (calibres 15 a 18) Dispositivos endovenosos: escalpos, cateteres sobre agulha (calibres 14 a 24) Kit para acesso de veia central com cateteres (3F a 5F) Cateter de veia umbilical Fluidos endovenosos compatíveis com padrão local utilizado (SF, RL, SG5%, SG10%) Dispositivos de microgotas Drogas de ressuscitação (adenosina, adrenalina, atropina, amiodarona, bicarbonato de sódio, cloreto de cálcio, lidocaína, sulfato de magnésio) Tabelas de fármacos com diferentes doses de acordo com pesos (estaturas) e/ou faixas etárias ou fita de Braselow® Protocolos facilitadores para a condução de atendimentos de emergência (algoritmos de ressuscitação cardiorrespiratória) ECG: eletrocardiograma; PA: pressão arterial; F: French; SF: solução fisiológica; RL: Ringer lactato; SG: solução glicosada.
nio deve liberar um fluxo de 10 a 15 L/minuto. O tamanho da bolsa deve ser adequado ao volume corrente do paciente; bol‑ sa de 450 a 500 mL é adequada para recém-nascido a termo, lactente e criança pequena; bolsa de 750 a 1.000 mL, para criança maior e adulto.5 A ventilação com bolsa-valva deve ser suave, evitando as ventilações muito rápidas. Esses cuidados minimizam a distensão gástrica que ocorre durante a respira‑ ção artificial, bem como a hiperventilação, comprovadamente
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1850 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
Nome: __________________________________________________ Peso (kg): _______ Altura (cm): ______ SC (m2): ________ Idade: ____ anos ____ meses Equipamentos Bolsa-valva-máscara (Ambu®): ( ) grande ( ) média Lâmina do laringoscópio: ( ) reta ( ) curva Nº __________________________________ Tubo traqueal: ( ) com cuff ( ) sem cuff Nº _____________________________________ Fármaco/Diluição/Concentração/Dose recomendada/Dose final Adrenalina: 1 mL + 9 mL de água destilada (0,1 mg/mL) - dose 0,1 mL/kg ___________ Atropina: não diluída (0,25 mg/mL) - dose 0,1 a 0,2 mL/kg _______________________ Desfibrilação elétrica Pás: ( ) para adultos ( ) pediátricas Cargas: 1ª (2 J/kg) ____ J 2ª (4 J/kg) ____ J 3ª → (até 10 J/kg) ____ J
Figura 1 Folha de parada cardiorrespiratória.
deletéria ao paciente.1,2,4 A frequência respiratória durante a ventilação artificial não deve ultrapassar mais do que 10 incur‑ sões por minuto, observando-se a elevação torácica e auscul‑ tando o murmúrio vesicular. Entubação traqueal As cânulas/tubos para entubação traqueal de crianças meno‑ res de 8 anos devem ser desprovidas de balonete (cuff), exceto para situações nas quais se deseje evitar qualquer escape de ar. O diâmetro interno varia com as diferentes idades, mas, em ge‑ ral, é equiparado ao diâmetro do quinto dedo da mão (Tabela 4).5 Cânulas de numeração imediatamente inferior e superior à selecionada devem estar disponíveis antes de se proceder à en‑ tubação. As cânulas com cuff, quando selecionadas, devem ter numeração inferior à preconizada para tubos sem cuff. A entubação traqueal não é prioritária na ressuscitação, mas é desejável para obter uma via aérea segura. A ressuscita‑ ção não é o evento mais adequado para o treinamento da en‑ tubação traqueal. Esse procedimento deve ser realizado por profissional experiente que não demore mais do que 20 a 30 segundos para fazê-lo. De preferência, deve ser realizada pela via orotraqueal. Uma vez que a entubação seja realizada, a verificação da posição adequada do tubo deve ser confirmada pela observa‑ ção de movimentos torácicos simétricos e de ausculta de mur‑ múrio vesicular na região de ambos os ápices pulmonares (re‑ gião axilar, bilateralmente), resultante de pressão positiva. A Tabela 4 Escolha do tubo traqueal de acordo com faixa etária Faixa etária
Diâmetro interno (tubo sem cuff)
Diâmetro interno (tubo com cuff)*
Prematuro
2,5 a 3,5
-
RN a termo
3 a 3,5
-
Primeiro ano de vida
3,5 a 4
3 a 3,5
Maior de 1 ano
Idade em anos + 4 4
Idade em anos + 3,5 4
* Os tubos com cuff podem ser indicados quando o paciente tem baixa complacência pulmonar ou alta resistência de vias aéreas ou alto escape de ar na glote; quando utilizados, a pressão do cuff deve ser < 20 cmH2O. Fonte: adaptada de Kleinman et al., 2010.5
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1850
posição do tubo também pode ser confirmada pelo monitora‑ mento do CO2 exalado por meio de dispositivo colorimétrico ou capnógrafo,7 quando disponível. Acesso vascular Ainda que seja de difícil obtenção na RCR, o acesso venoso pe‑ riférico é tão adequado para administração dos fármacos quanto o acesso central, sendo necessária a administração de um bolo de água destilada após a administração de cada medi‑ camento por aquela via. Uma das localizações preferenciais para a obtenção de acesso central é a veia femoral, quando for possível fazê-lo por membro da equipe, por ter melhor acessi‑ bilidade durante as manobras de ressuscitação. Se em três tentativas ou em 90 segundos não se obtém um acesso vascular, deve-se buscar a via intraóssea (IO), que é uma alternativa salvadora por não ser colapsável na PCR ou no choque grave.4 Pela via IO, é possível infundir qualquer tipo de solução ou de medicamento de uso endovenoso (EV). Em cir‑ cunstâncias excepcionais, quando também não se consegue a via IO, a via intratraqueal (IT) é uma alternativa para a admi‑ nistração dos fármacos lipossolúveis da RCR (adrenalina, atro‑ pina e lidocaína), diretamente no tubo traqueal, seguida de bolo com 3 a 5 mL de SF ou através de uma sonda de aspiração introduzida no tubo, com diluição prévia da medicação com 3 a 5 mL de soro fisiológico (SF). Em ambas as situações, deve seguir-se a ventilação com pressão positiva com bolsa-valva.4,5 Monitoramento do ritmo cardíaco O evento PCR na criança ocorre mais frequentemente com o ritmo de assistolia (55 a 70%), depois como atividade elétrica sem pulso (10 a 25%), e depois como fibrilação ventricular (FV) ou taquicardia ventricular sem pulso (até 20%).1,8 Nos dois primeiros ritmos, após identificação, está indicada a ad‑ ministração de adrenalina ou epinefrina, conforme descrição a seguir, além das manobras de SBV. Nesses ritmos mais fre‑ quentes, não é incomum que a PCR seja precedida de bradi‑ cardia com pulso central e má perfusão,8 estando também in‑ dicada a administração de adrenalina nessa fase pré-PCR. No caso da PCR súbita e inesperada, o ritmo mais provável é o de FV, que ocorre em portadores de doença cardíaca ou em jovens vítimas de overdose por drogas ilícitas. Na confir‑ mação da FV, está indicada a imediata desfibrilação elétrica,
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Medidas de Suporte Avançado de Vida e Transporte dos Pacientes Graves •
conforme descrição a seguir, com resultados de sobrevida de 17 a 20%.1,8 Assim, tão logo seja possível, deve ser realizado o monito‑ ramento eletrocardiográfico do paciente para que a próxima intervenção de suporte avançado seja a mais específica e efi‑ ciente possível. Fármacos Além do oxigênio, a expansão volumétrica com SF ou Ringer lactato é obrigatória nas situações de PCR, uma vez que ocorre uma condição de colapso circulatório. Os fármacos mais em‑ pregados no suporte avançado de vida são descritos a seguir. Adrenalina ou epinefrina Dentre todos os fármacos, a adrenalina (epinefrina) é a que tem indicação universal em PCR, mesmo que não se possa monitorar imediatamente o traçado do eletrocardiograma (ECG). Vasoconstrição (efeito alfa) é a sua mais importante ação farmacológica na RCR, porque eleva a pressão de perfu‑ são durante a compressão torácica, aumentando, assim, a li‑ beração de O2 para o coração. Aumenta também o estado con‑ trátil do coração, estimula as contrações espontâneas e aumenta o vigor e a intensidade da fibrilação ventricular, tor‑ nando-a mais suscetível à desfibrilação elétrica.1 Nas bradiar‑ ritmias e na assistolia, pode gerar um ritmo de perfusão. Dose inicial (dose padrão): 0,01 mg/kg (0,1 mL/kg da solu‑ ção 1:10.000) EV ou IO ou 0,1 mg/kg (0,1 mL/kg da solução 1:1.000) IT. A 2ª dose e as demais (que podem ser repetidas a cada 3 a 5 minutos)1,5,6 devem ser exatamente iguais à primeira dose. Dose alternativa, 10 vezes a dose padrão, pode ser conside‑ rada a partir da 2ª dose, em situações excepcionais (p.ex., PCR causada por dose excessiva de betabloqueadores).4-6
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pulso comprovadas por meio de monitoração cardíaca. As pás de adultos (diâmetro de 8 a 10 cm) são recomendadas somen‑ te para crianças com mais de 10 kg de peso, e a carga, de acor‑ do com o peso – carga inicial de 2 J/kg. Não havendo resposta, a segunda carga deve ser de 4 J/kg, e os choques subsequen‑ tes podem chegar a 10 J/kg ou a dose de adulto.4-6 Se ainda não houver resposta após o segundo choque, a adrenalina deve ser utilizada antes que um novo choque seja aplicado, mantendo as compressões torácicas de forma conti‑ nuada. Na refratariedade à desfibrilação elétrica, deve ser conside‑ rada a possibilidade de distúrbio metabólico, hipotermia, hi‑ poxemia ou hipovolemia, além de tamponamento cardíaco, pneumotórax hipertensivo, tóxicos ou tromboembolismo, procurando corrigi-los ou tratá-los. O uso de amiodarona (5 mg/kg, EV ou IO) ou de lidocaína (1 mg/kg, EV ou IO) deve ser considerado na fibrilação refratária.4,5 Estabilização pós-ressuscitação Quando se obtém a recuperação do ritmo cardíaco sinusal do paciente, inicia-se a fase de estabilização pós-ressuscitação, cujos objetivos principais são a preservação da função cere‑ bral, a prevenção de lesões orgânicas secundárias e a preocu‑ pação em conseguir uma transferência segura do paciente para uma UTI. Na fase pós-RCR, alguns cuidados são considerados essen‑ ciais para melhorar a sobrevida dos pacientes: monitorar e tra‑ tar a agitação e as convulsões, monitorar e tratar a hipoglice‑ mia, monitorar os gases sanguíneos, os eletrólitos e o cálcio e proporcionar oferta de oxigênio suficiente para manter a satO2 > 94% e ≤ 99%.6 A temperatura corpórea deve ser monitorada continuamente, e a hipertermia, tratada agressivamente em crianças comatosas pós-RCR.6
Desfechos desfavoráveis Atropina Utilizada somente para tratar bradicardia sintomática com Muito frequentemente, o desfecho de crianças e adolescentes bloqueio atrioventricular. Não há evidências de que a sua ad‑ vítimas de trauma e de doenças graves é desfavorável, seja por ministração seja útil antes das tentativas de entubação.6 Na não haver resposta aos esforços de ressuscitação, seja por nem sequer terem recebido o atendimento adequado. bradicardia acompanhada por baixa perfusão ou hipotensão, a Mesmo naqueles que recebem a RCR, de acordo com a pre‑ adrenalina ainda é o fármaco mais indicado. Dose recomendada: 0,02 mg/kg EV ou IO (dose mínima de cocidade e a adequação do tratamento, ainda assim a sobrevi‑ 0,1 mg e máxima de 0,5 mg na criança e 1 mg no adolescente); da a uma parada cardíaca pode não ultrapassar a taxa de 20%.1,5 Nessa situação, além de anunciar à família de forma no uso IT, 0,04 a 0,06 mg/kg.4,5 A dose pode ser repetida em 5 minutos até uma dose total gradual sobre a evolução para o óbito, cabe também à equipe de ressuscitação dar atenção e oferecer conforto à família.4 máxima de 1 mg na criança e 2 mg no adolescente. São frequentes as dúvidas sobre iniciar ou não a ressuscita‑ O bicarbonato tem sido recomendado somente na hiperpo‑ tassemia e para a correção da acidose metabólica documentada ção ou sobre o momento de interrompê-la, e tendem a aumen‑ (ou presumida) da PCR. Pode ser utilizado em pacientes com tar ainda mais o nível de ansiedade da equipe de ressuscitação. Não existe uma resposta universal para todas as situações de PCR cujos esforços de reanimação estejam se prolongando. Outros fármacos, como cálcio e glicose, não devem ser utili‑ PCR. Entretanto, algumas considerações podem ser feitas: zados empiricamente, mas somente em situações de níveis • a decisão de ressuscitar ou deixar de fazê-lo, na maioria das situações, não compete à equipe de plantão da UTI ou da séricos comprovadamente baixos. emergência. Discussões bioéticas que consideram a reversibi‑ Desfibrilação elétrica lidade ou não da doença de base, a adoção ou não de medidas de suporte de vida ou decisões de não reanimar (DNR) devem A desfibrilação elétrica deve ser utilizada somente nas situa‑ ser feitas previamente (quando se trata de paciente já conhe‑ ções de fibrilação ventricular ou taquicardia ventricular sem
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cido) e compartilhadas com a família.9 Na situação de urgên‑ cia, a equipe de plantão deve agir e fazer o que deve ser feito, ou seja, iniciar a ressuscitação, sem perder um tempo precio‑ so em outras discussões; • o momento de interromper o processo de RCR depende de inúmeros fatores, entre os quais a doença de base do paciente, a causa presumida da PCR, a não resposta às manobras e me‑ dicações até então utilizadas, entre outros. Deve resultar de um consenso da equipe que está atendendo o paciente. Por outro lado, uma PCR testemunhada e ocorrida dentro do hos‑ pital, de acordo com a causa provável, poderá demandar um tempo maior de esforços de ressuscitação.1,9
Transporte dos pacientes graves O transporte de pacientes envolve diversas situações com di‑ ferentes graus de complexidade: transferência de vítimas de trauma do local do evento para centros terciários, transporte de pacientes críticos entre hospitais e transporte intra-hospi‑ talar para procedimentos diagnósticos ou terapêuticos em pa‑ cientes hospitalizados. No transporte de pacientes críticos, a previsibilidade de eventos adversos e de complicações sempre deve estar pre‑ sente, razão pela qual inúmeros cuidados devem ser tomados tanto no planejamento desse transporte quanto na sua reali‑ zação.10-13 Cabe uma distinção entre o que seja evento adverso relacionado ao equipamento, e, portanto, prevenível, e dete‑ rioração clínica decorrente do estado crítico do paciente, iden‑ tificável e tratável precocemente por meio de monitoramento e suporte adequados. No transporte de paciente crítico, deve-se planejar o con‑ trole de todas as potenciais intercorrências, esperando sempre pelo pior cenário. Entre os cuidados que obrigatoriamente de‑ vem ser considerados, estão incluídos os descritos a seguir. Acessibilidade ao transporte A avaliação da real necessidade de transferir o paciente deve ser cotejada com a sua acessibilidade ao transporte mais apro‑ priado (relação risco-benefício), de acordo com o sistema de saúde local e/ou a cobertura assistencial que o paciente pos‑ sui. Na atualidade, grande número de cidades brasileiras de médio a grande porte já tem implantado o Sistema de Atendi‑ mento Médico de Urgência (SAMU), que, na maioria das ve‑ zes, também proporciona o transporte de pacientes críticos para centros terciários. Equipe e recursos de transporte Ainda que existam poucos dados nacionais, a maioria dos re‑ latos sobre transporte de pacientes pediátricos críticos realiza‑ do por equipes não especializadas ou de pouca experiência, mesmo em países desenvolvidos, refere uma incidência ina‑ ceitavelmente elevada de eventos adversos associados com alta mortalidade. Dessa forma, esses autores recomendam a realização do transporte de crianças criticamente doentes por equipes pediátricas especializadas em transporte.10-13 Na sua impossibilidade, seria altamente recomendável o treinamento
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específico das equipes de transporte em suporte avançado de vida pediátrico e neonatal, consideradas as especificidades da criança e do recém-nascido. Além de equipe especificamente treinada, deve ser consi‑ derada a escolha de um serviço de transporte que disponibili‑ ze todos os recursos de monitoramento e de tratamento indi‑ cados para cada situação. O equipamento pediátrico mínimo para suporte avançado de vida (Tabela 3) também se aplica ao transporte da criança criticamente doente. Especial atenção deve ser dada aos equipamentos de monitoramento, como monitor cardíaco, oxímetro de pulso, monitor de pressão arte‑ rial e monitor de temperatura, uma vez que a identificação precoce da instabilidade fisiológica dos pacientes transporta‑ dos pode prevenir os eventos adversos ameaçadores à vida.12 Sistema de comunicação Pode parecer óbvio que a comunicação entre o hospital de ori‑ gem e aquele de destino do paciente crítico tenha sido feita adequadamente antes da realização do transporte. Infeliz‑ mente, a prática tem mostrado que essa comunicação não é suficientemente adequada para garantir uma recepção apro‑ priada desse paciente, seja na especificação e confirmação de um leito na UTI, seja na qualidade das informações que pos‑ sam assegurar a melhor recepção pela instituição de destino. É importante que essa comunicação identifique nomes e tele‑ fones de pessoas e de instituições, que a troca de informações seja realizada entre profissionais da mesma categoria e que possa fornecer o maior número possível de dados relevantes em relação ao paciente a ser transferido e recebido. Da mes‑ ma forma, é imperativo que a instituição de origem envie to‑ dos os documentos clínicos possíveis (cópias de exames, prescrições e sumário clínico) que possam beneficiar e objeti‑ var a recepção e o tratamento do paciente na instituição de destino, sem esquecer o consentimento para o transporte dado pela família, bem como do acompanhamento de res‑ ponsável legal pela criança. Meio de transporte A escolha do meio de transporte para a transferência de pa‑ cientes críticos depende também de inúmeras variáveis que devem ser consideradas no planejamento do transporte. Con‑ dições de acessibilidade, condições climáticas, distâncias a serem percorridas, trafegabilidade, realização de procedi‑ mentos durante o transporte, possibilidade de interrupção do transporte para atendimento por eventual deterioração clínica do paciente são apenas alguns desses questionamen‑ tos. Assim, transporte aéreo pode ser adequado somente para longas distâncias (superiores a 150 km); o transporte em helicóptero estaria indicado apenas para resgate de vítimas em locais de difícil acesso (p.ex., em montanhas), ambos li‑ mitados por condições climáticas adversas e por falta de es‑ paço para eventual realização de procedimentos (p.ex., entu‑ bação traqueal). O transporte terrestre pode favorecer o estacionamento para atendimento do paciente, mas depende da trafegabilidade das vias de acesso ao centro de referência.
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Medidas de Suporte Avançado de Vida e Transporte dos Pacientes Graves •
Condições do paciente A solicitação da transferência de um paciente crítico, em geral, é o resultado de uma decisão baseada na limitação ou no esgo‑ tamento dos recursos locais e no crescente nível de ansiedade dos profissionais que o estão atendendo. Ainda que a intenção seja a de beneficiar ou dar alguma chance de sobrevida ao pa‑ ciente, ele deve ser enviado ao centro terciário na melhor con‑ dição de estabilidade possível, sob o risco de não chegar ao seu destino com vida. Dessa forma, é de fundamental importância especificar al‑ guns cuidados a serem considerados antes de iniciar um pro‑ cedimento de transporte: • nível de consciência atual e potencial para deterioração, de acordo com a doença de base (necessidade de sedação, risco de convulsões, necessidade de via aérea segura); • via aérea pérvia e potencial para a necessidade de torná-la segura durante o transporte (risco de obstrução, risco de as‑ piração; se já entubado, risco de obstrução ou deslocamento do tubo); • acesso vascular seguro e potencial para a perda de acesso du‑ rante o trajeto (necessidade de mais de um acesso vascular); • em caso de trauma, necessidade de estabilização de coluna cervical ou de algum outro segmento comprometido (utiliza‑ ção de prancha, colar cervical ou contenção eficaz); • em caso de resgate no local do acidente, identificação de lo‑ cais com perda ativa de sangue (necessidade de uso de torni‑ quetes); • em casos de recém-nascidos, lactentes jovens ou grandes queimados, perda de calor e redução drástica da temperatu‑ ra corpórea (necessidade de cobertores ou aquecimento ex‑ terno). Da mesma forma, durante o transporte, a observação do pa‑ ciente pelos profissionais que o acompanham deve ser conti‑ nuada, de acordo com a sua gravidade e instabilidade. Alguns autores11,12 já propuseram roteiros para o planejamento e o acompanhamento do transporte de pacientes críticos com o objetivo de minimizar a possibilidade de eventos adversos e de identificar precocemente a deterioração fisiológica desses pacientes, reduzindo, assim, o potencial de morbimortalidade do transporte de risco. A Tabela 5 lista algumas perguntas que devem ser lembradas no planejamento do transporte de pa‑ ciente crítico.
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Tabela 5 Perguntas para o transporte de paciente crítico Via aérea Via aérea segura é necessária? Há material para via aérea segura? O tubo traqueal está fixado? A posição do tubo está adequada? A aspiração de vias aéreas está disponível? Respiração Há necessidade de oferta de oxigênio? Há dispositivos para oferta de oxigênio? Há oxigênio suficiente para o tempo de transporte? Há necessidade de suporte ventilatório? Circulação A perfusão está adequada? Estão ocorrendo perdas mensuráveis? Há necessidade de acesso vascular? Há dispositivos para acesso vascular? Há soluções expansoras suficientes? Temperatura Há berço/incubadora pré-aquecidos? Há aquecimento no veículo? Há como monitorar a temperatura corpórea? Há dispositivos para aquecimento externo? Procedimentos Há condições de obtenção de via aérea? Há condições de obtenção de acesso vascular? Há condições de colocação de sonda gástrica? Há condições de aliviar pneumotórax hipertensivo? Monitoramento Quem faz o monitoramento clínico? Os monitores (ECG, SatO2, temperatura) estão conectados ao paciente? Quem monitora a glicemia? Equipamento Os monitores (ECG, SatO2, temperatura) foram testados? Há bateria carregada para monitores/respirador? Há pilhas/baterias nos laringoscópios? Há equipamento necessário para situações de emergência? Fluidos/fármacos Há soluções EV suficientes para o trajeto? Há mistura/alimento/NPT suficiente para o trajeto? Há fármacos para ressuscitação? Há fármacos para sedação/analgesia? Há fármacos especiais (de acordo com doença de base)? Comunicação Qual é o hospital/UTI (endereço) de destino? Qual o local de entrada do paciente?
Considerações finais A sobrevida e a morbidade de crianças e adolescentes vítimas de trauma ou de doenças graves é diretamente influenciada pela acessibilidade aos serviços de saúde e pela qualidade da assistência recebida. Todos os passos do processo de atendi‑ mento à criança e ao adolescente muito doente são importan‑ tes na sua essência: a identificação precoce das situações de risco de morte, os cuidados pré-hospitalares, os cuidados hos‑ pitalares, a transferência para centros terciários e, eventual‑ mente, a sua inserção nos programas de reabilitação. O pre‑ sente capítulo buscou orientar o pediatra ou o médico
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Há leito assegurado para o paciente? Quem é o profissional de referência (nome e telefone)? Todas as informações do paciente estão registradas e presentes? Há termo de consentimento assinado pelo responsável? Há acompanhante do paciente? Fonte: adaptada de Barry e Ralston, 1994.12
socorrista sobre o primeiro atendimento da criança e do ado‑ lescente com risco de morte, bem como sobre os cuidados a serem tomados por ocasião de sua transferência segura para centros terciários.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Planejar a avaliação inicial de vítima de acidente comum. • Conhecer o método correto para a reanimação cardiopulmonar em crianças de todas as idades. • Conhecer a sequência CAB (circulação, via aérea e respiração) para a ressuscitação cardiorrespiratória. • Saber que o suporte avançado de vida carece de cenário hospitalar, equipamentos específicos e equipe rigorosamente treinada em ressuscitação cardiorrespiratória. • Escolher o tamanho do tubo ventilatório adequado para crianças de várias idades. • Conhecer os cuidados pós-ressuscitação, incluindo a preservação da função cerebral, a prevenção de lesões secundárias e a transferência segura do paciente para a UTI. • Conhecer as bases do transporte de paciente crítico, incluindo planejar o controle de todas as potenciais intercorrências e esperar sempre pelo pior cenário.
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CAPÍTULO 3
VENTILAÇÃO MECÂNICA NO TRANSPORTE DA CRIANÇA E DO RECÉM-NASCIDO Karina Nascimento Costa Woady Jorge Kalil Filho
Introdução Organização do sistema integrado No início da década de 1970, foi descrita uma taxa de compli‑ de transporte cações de até 20% durante o transporte e um aumento da Existem 3 condições mais frequentes para a realização do mortalidade dele derivada. As crianças que precisavam de transporte do paciente gravemente doente: transporte tinham quase o dobro de chance de morrer do que • criança ou recém-nascido (RN) que precisa ser transferido de aqueles que eram admitidos na unidade de terapia intensiva forma definitiva para um serviço especializado em urgências (UTI) do mesmo hospital. Desde então, várias diretrizes têm – UTI (“via única”), acompanhado do médico do serviço de sido publicadas, mas todas coincidem em que a qualidade do origem ou de serviço médico terceirizado; transporte pediátrico inter-hospitalar vem condicionada a • criança grave que necessita ser transferida para outro hospital dois fatores: o nível de preparação e especialização das equi‑ para a realização de procedimentos de urgência (diagnósticos pes e a estabilização dos pacientes antes do transporte. e/ou terapêuticos/intervencionistas) ou procedimentos ele‑ Em 1973, instituiu-se o termo “hora de ouro”, que enfocou a tivos com posterior retorno para a unidade de origem (UTI ou importância de prover um cuidado avançado ao paciente gra‑ pronto-atendimento); vemente enfermo ou traumatizado na 1ª hora de atendimento. • criança grave que necessita ser transportada dentro do mes‑ mo hospital para a realização de exames e/ou procedimentos Habilidades necessárias para a equipe de de urgência ou eletivos, considerados de suma importância transporte diagnóstica e/ou terapêutica. A condição clínica que mais frequentemente leva à necessida‑ de de transporte é a insuficiência respiratória, seguida do trau‑ O sistema também deve possuir treinamento específico para o matismo cranioencefálico (TCE). A equipe do transporte deve, transporte pediátrico de cuidados intensivos, central de aten‑ portanto, ter habilidade em estabelecer e manter a via aérea dimento 24 horas, protocolos próprios, banco de dados, equi‑ na criança. As habilidades básicas incluem o adequado posi‑ pamentos e insumos apropriados para o cuidado de crianças. cionamento da região cervical, ventilação com bolsa-válvula‑ A composição da equipe pode ser variável de acordo com o -máscara e entubação endotraqueal. tipo de remoção que o serviço realiza. Sua composição pode A necessidade de estabelecer acesso venoso é comum e per‑ variar, conforme as exigências clínicas da criança a ser trans‑ manece um desafio no lactente e na criança pequena. Acesso portada, no entanto, a maior parte consta de: venoso periférico é preferível, entretanto, em situações de • pediatra, com formação em atendimento de urgência ou tra‑ emergência, a via intraóssea pode salvar vidas. Outros procedi‑ tamento intensivo e treinamento específico para transporte mentos que podem ser necessários para a estabilização do pa‑ de urgência pediátrico e neonatal no caso de RN; ciente incluem a colocação de dreno torácico e, ocasionalmen‑ • enfermeiro, com formação em pediatria de urgência ou tera‑ pia intensiva pediátrica ou neonatal, quando se trate de RN, e te, a cateterização arterial para monitoração hemodinâmica. treinamento específico para transporte, com conhecimento Os membros da equipe de transporte devem ter experiên‑ das características dos veículos, equipamentos e medicações cia com medicamentos utilizados no tratamento da criança utilizadas; criticamente enferma. A sequência rápida de entubação é bas‑ tante utilizada. A farmacologia desses agentes, que incluem • condutores dos veículos, que devem ter um rígido treinamen‑ to para as peculiaridades do transporte da criança gravemente opioides, sedativos/hipnóticos e bloqueadores neuromuscu‑ doente. O conceito do veículo bem equipado torna absoluta‑ lares, deve ser conhecida.
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mente desnecessários velocidade excessiva, desrespeito às leis de trânsito e manobras bruscas, que, na verdade, dificul‑ tam o tratamento do paciente a bordo e também geram com‑ plicações (entubações orotraqueais sob movimentação brusca e constante da ambulância estão associadas à maior incidên‑ cia de extubações acidentais e de posterior edema de glote); • fisioterapeuta respiratório, para o transporte de crianças com doenças respiratórias graves e que exigem assistência respira‑ tória complexa, especialmente nos percursos longos e na re‑ moção aérea.
Fases do transporte intra e inter-hospitalar 1. Fase preparatória. 2. Fase de transferência. 3. Fase de estabilização pós-transferência. Fase preparatória – Cuidados gerais 1. Avaliar a gravidade do paciente e do nível de estabilidade (avaliar monitoração e terapias necessárias no momento, pre‑ vendo necessidades futuras). Pode ser usado o escore Transport Risk Assessment in Pediatrics (TRAP) (Tabela 1), e medi‑ das para a estabilização devem ser tomadas (Tabela 2). 2. Sempre que possível, conversar e explicar o procedimento do transporte às crianças maiores. 3. Adequar acessos venosos, sedação, analgesia, entubação tra‑ queal e, caso seja necessária, a imobilização da criança. 4. Confirmar novamente a estabilidade do paciente antes da partida. 5. Atentar aos procedimentos que devem ser executados antes do transporte sempre que houver instabilidade clínica de um sistema orgânico: entubação traqueal, cateterização umbili‑ cal, acesso venoso central, drenagens de cavidades, sonda‑ gens gástricas e vesicais, imobilização de membros instáveis e/ou fraturados. 6. Registrar sinais vitais e exame neurológico antes da saída. 7. Anotar números de fixação da cânula traqueal, medir e mar‑ car cateter venoso central (CVC), sondas e drenos na folha de transporte.
8. Adequar temperatura corpórea antes do transporte (RN, lac‑
tentes jovens, grandes queimados, quase-afogados, etc.); a hipotermia é associada com aumento da mortalidade, e a hi‑ pertermia, com crises convulsivas no lactente.1-3 9. Verificar jejum ou esvaziamento gástrico para o transporte, preferencialmente de 6 horas (passar sonda nasogástrica – SNG – para prevenção de vômitos com broncoaspiração) e/ ou SNG aberta, ou balonamento nos sangramentos digestivos com prontidão para reposição de hemoderivados (solicitar hemoderivados para o transporte quando indicado). 10. Esvaziar saco coletor de diurese da sonda vesical. 11. Administrar sedação e analgesia para os pacientes graves que ofereçam riscos de agitação durante o transporte; evitar ao máximo os bloqueadores neuromusculares e, de preferência, não os utilizar no RN. 12. Movimentar a criança ou o RN e a maca ou a incubadora de transporte sempre em bloco com todos os aparelhos (ventila‑ dor, bombas de infusão, etc.) e profissionais, tomando-se os devidos cuidados para não ocorrer extubação acidental, perda de acessos venosos, queda de torpedos, etc. 13. Checar os medicamentos considerados de urgência para o pa‑ ciente transportado, que precisam estar devidamente prepa‑ rados em doses certas, para infusão de urgência. Uma suges‑ tão para montagem de kits pode ser vista na Tabela 3. 14. Levar folha de medicações e kits de urgência devidamente preparados e com doses já calculadas. 15. Levar prontuário com todos os exames do paciente e orienta‑ ções básicas da unidade de origem. 16. Ter conhecimento de exames subsidiários prévios, conside‑ rados de risco no curto prazo, necessários para intervenções terapêuticas de urgência durante o transporte (gasometria, Ca++, Na+, K+, glicemia, coagulograma e plaquetas, radiogra‑ fia de tórax com posicionamento da cânula e condições pul‑ monares, etc.). 17. Estabilizar coluna cervical e eventuais fraturas, quando pre‑ sentes. 18. Ligar o ventilador pulmonar mecânico de transporte pelo me‑ nos 15 a 30 minutos antes de mobilizar a criança e testar aco‑
Tabela 1 Transport Risk Assessment in Pediatrics (TRAP)4 2
1
0
2
1
0
< 90 ou > 180
90 a 109 ou 151 a 180
110 a 150
< 60 ou > 110
60 a 69 ou 90 a 110
70 a 89
< 65 ou > 140
65 a 79 ou 116 a 140
80 a 115
< 75 ou > 130
75 a 89 ou 116 a 130
90 a 115
< 50 ou > 120
50 a 59 ou 101 a 120
60 a 100
< 85 ou > 150
85 a 101 ou 131 a 150
100 a 130
FR
Apneia Gasping Entubado
FR ≥ 50, Sat < 90
FR < 50, Sat ≥ 90
FiO2
≥ 50% ou ≥4L
< 50% ou <4L
Ar ambiente
Enchimento capilar
>3s
2a3s
<2s
Pulsos
Ausentes
Baixa amplitude
Normal
ECG
<7
7 a 11
12 a 15
Temp
< 35 ou > 40
35 a 35,9 ou 38,1 a 40
36 a 38
< 12 meses 1 a 12 anos
FC
> 12 anos
PAS
FC: frequência cardíaca; PAS: pressão arterial sistólica; ECG: escala de coma de Glasgow; FiO2: fração inspirada de oxigênio; Temp: temperatura em graus Celsius; FR: frequência respiratória; Sat: saturação de oxigênio; s: segundos.
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Ventilação Mecânica no Transporte da Criança e do Recém-nascido •
Tabela 2 Medidas para estabilização5
1857
Tabela 3 Medicamentos gerais
Via aérea
Ressuscitação cardiopulmonar
Pulmonar
Proteção de vias aéreas em caso de Glasgow < 10, agitação, danos estruturais da face e pescoço, estridor ou necessidade de sedação e analgesia
Adrenalina/noradrenalina
Salbutamol inalatório
Bicarbonato de sódio
Epinefrina racêmica
Oxigenação
Atropina
Terbutalina EV
Administração sistemática de oxigênio para manter saturação entre 98 e 100%
Glicose
Metilprednisolona/ dexametasona
Ventilação
Naloxona/flumazenil
Sedação e analgesia
Ventilação mecânica se: necessidade de FiO2 > 40% para manter uma saturação de oxigênio > 95%, se PCO2 > 45 mmHg, presença de grande trabalho respiratório com pouca resposta a broncodilatadores
Lidocaína
Morfina
Cardiovascular
Midazolam/propofol
Digoxina
Fentanil/cetamina
Programação do uso da menor pressão média de vias aéreas possível para otimizar a oxigenação/ventilação
Dopamina/dobutamina
Relaxantes musculares
Ventilação não invasiva em casos de dificuldade moderada, com boa gasometria e tolerância. Em caso de dúvida, mesmo que pequena, deve ser iniciada a ventilação invasiva
Furosemida
Rocurônio/atracúrio
Nitroprussiato de sódio
Succinilcolina
Sistema nervoso central
Antibióticos (menos importantes para o transporte)
Fenobarbital
Ampicilina/oxacilina
Realizar drenagem torácica de todos os casos de pneumotórax, independentemente da extensão Circulação Ao menos dois acessos centrais, contenção de hemorragias externas, estabilização cirúrgica prévia às hemorragias internas cirúrgicas, máxima estabilização com volume e drogas vasoativas, otimização do nível de hemoglobina (> 10 mg/dL), correção de coagulopatia, entubação de todos os pacientes hemodinamicamente instáveis Neurológico Em caso de traumatismo intracraniano, manter pCO2 entre 35 e 40 mmHg e Sat 100%; contraindicada a hiperventilação ou os soros hipertônicos de forma preventiva; manter a pressão arterial em níveis normais; tratar com anticonvulsivante no paciente que apresentou convulsão; evitar uso de bloqueador neuromuscular
plamento com os mesmos parâmetros e modalidade aos quais a criança foi estabilizada. 19. Sempre conversar com o motorista da ambulância para evitar manobras bruscas com a viatura, que podem trazer grandes prejuízos à criança. Respeitar os sinais de trânsito sempre que possível.
Fase preparatória – Sistema respiratório – Cuidados especiais Com relação aos cuidados respiratórios do paciente transpor‑ tado, alguns itens são importantes. 1. Realizar fisioterapia respiratória até 2 horas antes da saída, quando possível (higiene brônquica). 2. Garantir permeabilidade de vias aéreas (Guedel, cânula oro ou nasotraqueal). 3. Entubar antes de remover os pacientes instáveis e com risco de desenvolver insuficiência cardiorrespiratória durante o transporte. 4. Fazer avaliação gasométrica pré-transporte, se houver insufi‑ ciência respiratória e/ou cardiovascular. No RN, manter SO2 entre 88 e 92% no oxímetro de pulso. No caso de RN com car‑ diopatia dependente de canal arterial, a SO2 deve estar entre 75 e 85%. 5. Fazer avaliação radiológica (parênquima, coração, posiciona‑ mento de cânula, CVC, sondas enterais e drenos). Sanches‑
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Fenitoína
Cefotaxima/ceftriaxona
Diazepam/midazolam
Aminoglicosídeos/meropenem
Tiopental
Vancomicina/clindamicina Miscelânea Cloreto de potássio, gluconato de cálcio Carvão ativado Heparina, insulina
-Pinto et al.,6 em um estudo prospectivo que avaliou 77 crian‑ ças entubadas para o transporte, observaram que a radiografia de tórax foi obtida em 85,7% dos pacientes e que 47% desses pacientes apresentavam cânula endotraqueal mal posiciona‑ da. Os autores concluem que radiografia de tórax pós-entuba‑ ção para o transporte permanece informativa e deve ser obti‑ da sempre que possível. 6. Certificar-se da boa fixação da cânula traqueal (preferência para entubação nasotraqueal) e/ou da permeabilidade de vias aéreas (sempre anotar número da fixação e conferir com frequência). 7. Verificar funcionamento das válvulas dos balões autoinfláveis (Ambu): atenção aos colabamentos. 8. Determinar o fluxo e o método da administração de O2 para determinar necessidade durante o transporte (prever mar‑ gem de segurança de pelo menos 25% a mais). 9. Providenciar e testar aspiração. Atenção às obstruções da câ‑ nula traqueal (incidência de 8 a 42%).3,7 10. Ajustar ventilação mecânica como na unidade de origem. 11. Determinar o melhor segmento corpóreo para fixação do oxí‑ metro (certificar-se do bom funcionamento e da captação do aparelho). Preferência para sensor nasal em pacientes choca‑ dos, ictéricos e hipotérmicos. 12. Atentar e estar pronto para drenagem de tórax de urgência frente ao pneumotórax barotraumático (oscilações de fluxo são frequentes durante o transporte de pacientes entubados, seja intra ou inter-hospitalar).
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13. O melhor suporte respiratório para o transporte inter-hospita‑
lar da criança gravemente enferma ainda é um desafio. A câ‑ nula nasal de alto fluxo (CNAF) tem surgido como um suporte promissor na UTI pediátrica. Em um estudo retrospectivo que envolveu 793 crianças menores de 2 anos de idade, foi obser‑ vado que o número de crianças transportadas com segurança com CNAF aumentou no decorrer do estudo (2005-2012) e, concomitantemente, foi observada uma diminuição no nú‑ mero de crianças transportadas em ventilação invasiva.8
Fase de transferência Objetivos: • prevenir ou evitar iatrogenias; • manter a estabilidade do paciente por meio de monitoração e terapêutica contínua; • manter as condições orgânicas pré-transporte; • minimizar o tempo gasto por meio de comunicação com o hospital receptor (quanto maior o tempo gasto no transporte, maior a incidência de efeitos adversos) e determinação ante‑ cipada e estudada do caminho mais rápido e menos turbulen‑ to para a viatura. Cuidados durante o transporte 1. Solicitar que o elevador esteja esperando e pronto para rece‑ ber a equipe com a criança. 2. É função do médico que está transportando o paciente segu‑ rar (conter) a cânula traqueal sempre que houver risco de tra‑ ção, além de manter visualização sobre cateteres, sondas e drenos. 3. O médico deve ditar a velocidade e a movimentação da maca ou da incubadora de transporte até chegar à ambulância e, posteriormente, da ambulância para a unidade de destino. Deve-se evitar correr com esses equipamentos. 4. Na viatura, o médico deve manter posição frontal com o pacien‑ te para visualizá-lo totalmente e efetuar toda a monitoração. 5. Intervir sempre que houver agitação da criança (sedação e/ ou analgesia, se necessário). 6. Para a criança agitada que será transportada, a sedação sem entubação representa uma conduta, mas os agentes sedati‑ vos mais comumente utilizados podem levar a depressão res‑ piratória, que, muitas vezes, é imprevisível. Dexmedetomidi‑ na é um agonista alfa-adrenérgico que promove a sedação e a ansiólise sem deprimir o drive respiratório e pode ser usada para sedação em certas circunstâncias no transporte pediátri‑ co, pois não ocasiona depressão respiratória e a necessidade de entubação e ventilação mecânica.9 7. Se houver queda da SatO2, auscultar pulmões e verificar posi‑ cionamento da cânula e se a fixação permanece com o mesmo número de antes da partida; aspirar cânula caso haja secre‑ ção; em último caso, manipular parâmetros, se necessário. 8. Caso ocorram alterações cardiovasculares, principalmente da PA, verificar obstrução venosa se houver disparo do alarme das bombas de infusão; verificar se a infusão das drogas va‑ soativas permanece estável; pensar em melhorar a sedação se houver aumento da PA; e regular as drogas caso ocorra queda da PA.
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1858
9. Verificar coletor de diurese. 10. Anotar todas as alterações dos sinais vitais caso ocorram – é
uma das melhores formas de demonstrar as intercorrências durante o transporte para a unidade de destino. 11. Verificar novamente o posicionamento de cânula, cateteres e sondas antes de sair da ambulância. 12. Verificar sinais vitais (SatO2, PA, FC) antes de retirar a criança da ambulância. 13. Lembrar que, entre a ambulância e o hospital (seja na saída ou na chegada), podem ocorrer múltiplas mobilizações de câ‑ nula traqueal, CVC, sondas e drenos, mobilização de secre‑ ções, agitação psicomotora, etc.
Fase de estabilização pós-transferência 1. Fazer um relato completo para a unidade receptora sobre as condições apresentadas durante as duas fases anteriores, por meio do preenchimento responsável da folha de trans‑ porte. 2. Identificar a folha de transporte com os nomes de toda a equi‑ pe, inclusive do motorista, e assinar. 3. Anotar novamente os sinais vitais e as condições clínicas da criança na chegada ao destino, durante a passagem do caso para o médico receptor. 4. Verificar fixação de cânula traqueal, CVC, sondas e drenos, pois podem ter sofrido deslocamento após a chegada, no tra‑ jeto entre a ambulância e a unidade de destino. 5. Cobrar assinatura do médico receptor dando seu acordo com as condições clínicas à recepção do paciente – essa via da fo‑ lha de transporte (carbonada) deve permanecer com a equipe do transporte. 6. Alguns estudos demonstraram uma média de 30 a 60 minu‑ tos para estabilização do paciente após um transporte intra‑ -hospitalar, e de 75 a 156 minutos para estabilização do pa‑ ciente após um transporte inter-hospitalar. Material A checagem completa do material utilizado deve ser tarefa dos membros diretamente envolvidos com cada função. Os apare‑ lhos fixos do meio de transporte (ambulância, helicóptero, etc.), como fonte interna de energia, baterias, torpedos, etc., devem ser inspecionados pelo motorista devidamente treina‑ do. O material medicamentoso normalmente deve ser checa‑ do pelo profissional de enfermagem que realizou o último transporte, assim como pelo enfermeiro responsável pelo ser‑ viço de transporte. Uma maneira facilitadora de organização e conferência do material utilizado é a distribuição dos medicamentos e mate‑ rial de procedimento em kits lacrados. Cada vez que um kit es‑ pecífico é aberto (kit de entubação, kit de intracath, kit de para‑ da cardiorrespiratória, de drenagem torácica, etc.), sua inspeção e reposição encontram-se facilitadas. Além da inspe‑ ção dos kits, deve ocorrer uma checagem paralela do material geral de transporte, como mostrado nas Tabelas 4, 5 e 6. As drogas utilizadas em ressuscitação devem fazer parte de todos os transportes, assim como sedativos e analgésicos.
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Ventilação Mecânica no Transporte da Criança e do Recém-nascido •
Tabela 4 Composição dos kits de parada cardiorrespiratória e de entubação traqueal Kit de parada cardiorrespiratória
Kit de entubação traqueal
• Adrenalina, atropina
• Laringoscópio e pilhas
• Xilocaína 2% (sem vasoconstritor)
• Cânulas para RN e crianças
• Bicarbonato de sódio 3% e 10%
• Bigodes de esparadrapo
• Gluconato de cálcio 10%
• Tintura de Benjoin • Sondas de aspiração traqueal 6, 8,10,... • Balões autoinfláveis (Ambus)
Tabela 5 Verificação da ambulância • Fonte de ar e O2
• Fios de sutura
• Energia elétrica
• Luvas estéreis
• Vácuo (Venturi)/aspirador
• Drenos de tórax e frascos de drenagem
• Circuito do ventilador
• SF e glicosado, água destilada
• Bombas de infusão
• Bureta pediátrica
• Sensores (neonatal e pediátrico)
• Equipo de soro gotas/ microgotas
• Jogo de manguitos para PA
• Seringas e escalpes, agulhas
sparadrapo, Micropore®, • Monitor integrado (PA, FC, O2) • E Tensoplast® • Laringoscópio (lâminas 0 a 3)
• Algodão
• Cânulas de entubação
• Sonda gástrica e de aspiração
• Baraca
• Máscara e gorro cirúrgicos
• Cateter venoso
Tabela 6 Checagem do material geral de transporte Maca de transporte Suporte receptor do cilindro de O2 Suporte receptor para o ventilador portátil/Baraca/Ambu Suporte receptor para o monitor multiparâmetros Estetoscópio Umidificador e borracha de O2 Suporte receptor para a bomba de infusão
Transporte neonatal Como se sabe, o melhor método de transporte do RN é o útero materno. Durante o transporte, o RN está sujeito a uma série de fatores que podem levar à descompensação, levando, as‑ sim, à necessidade de que a equipe de transporte tenha habili‑ dades para lidar com essa situação. A composição da equipe de transporte neonatal varia con‑ forme os países e pode incluir: enfermeiro neonatal, paramé‑ dicos, fisioterapeuta respiratório, pediatra com formação em neonatologia, neonatologista e médicos de transporte com es‑ pecialização em transporte neonatal. Durante o transporte, podem ser necessários os seguintes procedimentos: • atenção ao parto/reanimação neonatal; • exame físico;
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• • • • • •
1859
manejo de via aérea e entubação traqueal; acesso venoso e arterial (central e periférico); monitoração neonatal padrão e invasiva; drenagem torácica e abdominal; manejo ventilatório e hemodinâmico; preparação e administração de fármacos para pacientes neo‑ natais.
Situações especiais no transporte neonatal Apesar de todas as vantagens já comprovadas do surfactante, a sua administração pode levar à obstrução de vias aéreas e do brônquio fonte direito, e esses fatores devem ser sempre lem‑ brados quando se transporta um RN que recebeu surfactante pouco antes de o transporte ser realizado. Após a administra‑ ção, deve ser feita monitoração da complacência pulmonar e ajustes dos parâmetros de ventilação mecânica durante o transporte, com o objetivo de prevenir complicações clínicas como o pneumotórax ou a oclusão do tubo traqueal. Os parâmetros do ventilador dependem da doença do RN, porém, deve-se sempre tentar oferecer uma ventilação pulmo‑ nar mecânica que não provoque lesão dos pulmões, ou seja, oferecer o mínimo necessário para manter a ventilação mais adequada para aquele paciente. Os parâmetros ventilatórios devem ser apropriados para obter níveis sanguíneos de PaO2 entre 50 e 70 mmHg, PaCO2 entre 35 e 45 mmHg, aceitando‑ -se níveis mais elevados, de até 60 mmHg, desde que o pH se mantenha > 7,20. Geralmente é possível alcançar esse objetivo oferecendo, no ventilador mecânico, uma fração de oxigênio inspirado (FiO2) entre 40 e 60%, níveis de pressão inspiratória (Pinsp) entre 18 e 20 cmH2O, frequência respiratória (FR) de 40 por minuto, tempo inspiratório (Ti) de 0,4 a 0,5 segundos, relação I/E de 1:2, pressão expiratória final positiva (PEEP) de 4 a 5 cmH2O. Considerações finais A equipe de transporte pediátrico e neonatal tem papel vital no cuidado da criança gravemente enferma ou traumatizada, pois o transporte desse paciente faz parte da continuidade de seu tratamento. Essa remoção não é apenas um momento transitório do tratamento, pois podem ocorrer repercussões gravíssimas se o procedimento não for realizado por uma equi‑ pe especializada e bem equipada. É vital que a equipe tenha habilidades em lidar com as pe‑ culiaridades do paciente pediátrico e do neonato e que esteja em constante treinamento. Habilidades como acesso à via aé‑ rea e vascular, além do conhecimento da farmacocinética e farmacodinâmica das principais drogas utilizadas na criança gravemente enferma, são essenciais na equipe de transporte. Também é fundamental que os médicos envolvidos tenham consciência de todos os problemas que poderão enfrentar caso não sejam adotadas todas as medidas de precaução de compli‑ cações e manutenção da estabilidade do paciente. Uma estrutura organizada de transporte tem impacto no prognóstico dos pacientes criticamente enfermos. É preciso que as autoridades administrativas e políticas forneçam con‑ dições técnicas aos hospitais por meio de cursos de formação
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dos médicos de urgência pediátrica e neonatal, e que também invistam na compra de materiais apropriados para o transpor‑ te desses pacientes. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Avaliar as condições de um paciente grave para iniciar o transporte e estabilizá-lo previamente. • Reconhecer o risco de óbito do paciente caso seja transportado. • Avaliar se o meio de transporte está equipado com material e medicamentos adequados para que o paciente não corra risco durante o trajeto. • Reconhecer as alterações que o paciente pode desenvolver durante o trajeto. • Entregar o paciente nas mesmas ou em melhores condições do que antes do transporte.
Referências bibliográficas 1.
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CAPÍTULO 4
POLITRAUMATIZADO Arnaldo Prata Barbosa José Carlos Pereira Currais
Introdução Considera-se politraumatizado o paciente que apresenta um conjunto de lesões que podem ser produzidas por agentes di‑ versos (mecânico, térmico, elétrico, químico, irradiação) de forma acidental, comprometendo um ou mais órgãos de for‑ ma grave, com grande possibilidade de falência respiratória e/ ou hemodinâmica. Sua incidência tem aumentado continua‑ mente, diante do crescimento da população e da exposição ao risco, que se intensificou com a evolução tecnológica (aumen‑ to no número e na potência dos veículos, armas de fogo de grande poder de impacto, etc.). As lesões por causas externas, categoria na qual se insere o politraumatizado, é hoje a princi‑ pal causa de morte na faixa de 1 a 37 anos de idade. O manejo de pacientes politraumatizados é um grande desafio por se tratar de um conjunto de atitudes complexas que requer co‑ nhecimento, bom senso, rapidez, habilidade e liderança. São os fatos e ações correlatas no início do atendimento que fre‑ quentemente determinam o seu prognóstico. Atendimento pré-hospitalar O atendimento pré-hospitalar idealmente deve ser realizado por uma equipe multidisciplinar adequadamente preparada para esse tipo de ocorrência. Ao se avaliar o acontecido na cena do acidente, podem-se identificar de imediato possíveis lesões e tomar condutas de acordo. Os principais mecanismos de trauma são ferimentos e contusões causados por veículos motorizados (tanto colisão como atropelamento), quedas, agressão física, arma de fogo, arma branca, ataque de animais, soterramento e explosões (Tabela 1). A presença de qualquer dos seguintes fatos na história clínica deve levar a suspeita de lesão traumática significativa (mecanismos de alta energia): • queda de mais de 1 metro de altura; • acidente com fatalidades; • acidente com veículo a motor: > 60 km/h (colisão com cinto), > 40 km/h (colisão sem cinto), > 30 km/h (moto) e > 10 km/h (atropelamento); • fraturas em mais de uma extremidade; • lesão em mais de um sistema.
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1861
A equipe que providencia atendimento pré-hospitalar deve re‑ conhecer lesões que poderiam causar risco de vida imediato e ser treinada para promover rápido restabelecimento cardior‑ respiratório (pronta imobilização de coluna cervical, restabe‑ lecimento das vias aéreas, oxigenação, perfusão, estabilização do quadro) e translado para centro terciário de atendimento médico. Com isso, melhora-se (e muito) a chance de sobrevi‑ vência do paciente. Por ser o tempo essencial nesses casos, a primeira hora após o trauma é a “hora de ouro”, em que todos os esforços devem ser concentrados para que o paciente alcan‑ ce os cuidados definitivos. Todavia, nenhum estudo objetivo foi realizado a fim de comparar atitudes como “retirar-se rapi‑ damente” (load and go) ou “permanecer no local e estabilizar o paciente” (stay and play). Alguns profissionais poderiam até argumentar que, pela proximidade com o hospital, o tempo dedicado em cuidados com o paciente seria maior que o gasto com o transporte. A assistência sempre começa no local do acidente, sendo válido ressaltar o bom senso. O tempo des‑ pendido no local deve ser dedicado à manutenção da permea‑ bilidade das vias aéreas, e não às várias tentativas de estabele‑ cer acesso venoso. O manuseio deve ser padronizado e sistemático, no intuito de rapidez na avaliação e resolução. Vários padrões de avaliação foram elaborados a fim de auxiliar na triagem pré-hospitalar e comparar os resultados entre insti‑ tuições (Tabelas 2 e 3). Apesar de ainda não ter sido evidencia‑ da qualquer superioridade de um modelo sobre o outro, a utili‑ zação de um método de assistência sistematizada contribui para o reconhecimento da gravidade do trauma, diminuindo a imprecisão e a subjetividade da avaliação clínica. Na Figura 1 é apresentado um algoritmo de triagem no local do acidente que utiliza esses conceitos. No uso para triagem no local do trauma, o paciente com pontuação 12 pode aguardar atendimento, 11 é urgente, e 3 a 10, atendimento imediato. Pacientes com RTS < 3 são declara‑ dos mortos ou com muito pouca chance de sobrevivência. No uso intra-hospitalar, pode ser usada a equação RTS = (0,9368 × ECG) + (0,7326 × PAS) + (0,2908 × FR), que pode variar de 0 a 7,8408.
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Tabela 1 Mecanismos do trauma e possíveis lesões Mecanismo
Lesões associadas
Colisão de automóvel Parabrisa quebrado
Lesão fechada do crânio, fraturas de face, crânio e coluna cervical
Volante quebrado
Lesões do tórax por desaceleração, inclusive contusão miocárdica, ruptura de aorta, contusão pulmonar, fratura de esterno, tórax instável, hemopneumotórax Lesão do andar superior do abdome, lesão hepática, esplênica, ruptura diafragmática, lesão pancreático-duodenal
Joelhos contra o painel
Deslocamento de bacia, fratura de bacia ou fêmur, fratura de acetábulo
Cinto de segurança impróprio
Fratura de coluna lombar, perfuração de vísceras
Restrição por cinto de 3 pontos
Fratura de costelas, clavícula, esterno; contusão pulmonar
“Capotagem” com parte do corpo presa sob o veículo Colisão na traseira do veículo
Lesão por esmagamento, fraturas severas em pelve e extremidades inferiores, síndrome por compartimento Lesão por hiperextensão da coluna cervical, inclusive fraturas e síndrome do cordão central
Quedas Posição supina
Geralmente, grande potencial para lesões axiais e apendiculares do esqueleto Trombose da artéria renal por lesão da íntima (potencialmente bilateral)
Posição prona
Lesão por desaceleração do tórax e lesões abdominais
Contusão craniana
Lesão fechada de crânio e coluna cervical
Posição de pé
Fraturas de calcâneos, coluna toracolombar, processo espinhoso, pelve; fratura cominutiva severa de tíbia e fêmur
Atropelamento Baixa velocidade (adultos)
Fratura de platô tibial, lesão dos ligamentos do joelho
Baixa velocidade (criança)
Lesão torácica e/ou abdominal, trauma fechado de crânio
Alta velocidade
Lesão multissistêmica de alta gravidade
Lesões perfurantes seletivas Periorbital
Penetração intracraniana, fístula de seio carotídeo-cavernoso
Face anterior do pescoço
Hematoma retrofaríngeo com potencial de obstrução de via aérea superior, lesão esofágica
Região anterior do tórax
Lesão cardíaca ou de grandes vasos da base
Nádegas
Lesão retal, penetração em cavidade peritoneal
Lesão por arma de fogo
Lesão distante do orifício de entrada
Outros tipos Estrangulamento
Esmagamento de laringe, fratura do hioide, lesão da íntima da carotídea
Trauma localizado em epigástrio ou quadrante superior de abdome
Hematoma intramural duodenal, trauma de víscera maciça
Paciente queimado
Asfixia traumática
Tabela 2 Revised Trauma Score (RTS) Pressão sistólica (mmHg)
Frequência respiratória (irpm)
Escala de coma de Glasgow
Pontuação
> 89
10 a 29
13 a 15
4
76 a 89
> 29
9 a 12
3
50 a 75
6a9
6a8
2
1 a 49
1a5
4a5
1
0
0
3
0
No uso para triagem no local do trauma, o paciente com pontuação 12 pode aguardar atendimento, 11 é urgente, e 3 a 10, atendimento imediato. Pacientes com RTS < 3 são declarados mortos ou com muito pouca chance de sobrevivência. No uso intra-hospitalar, pode ser usada a equação RTS = (0,9368 x ECG) + (0,7326 x PAS) + (0,2908 x FR), que pode variar de 0 a 7,8408.
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Politraumatizado •
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Tabela 3 Pediatric Trauma Score (PTS) Peso (kg)
Pressão sistólica (mmHg)
Vias aéreas
Sistema nervoso central
Ferimento aberto
Aparelho esquelético
Pontuação
> 10 5 a 10
> 90
Pérvias
Acordado
Nenhum
Nenhum
+2
50 a 90
Sustentável
Obnubilado
Pequena proporção
Fratura fechada
+1
<5
< 50
Não sustentável
Coma
Grande proporção
Fratura exposta ou múltipla
-1
A pontuação mínima é de -6 e a pontuação máxima é de +12. Existe uma relação linear entre a diminuição do PTS e o risco de mortalidade.
Atendimento inicial mente orotraqueal sob sedação (indução rápida), com com‑ A – Manter vias aéreas pérvias, com pressão da cartilagem cricoide (manobra de Sellick) por outro estabilização da coluna cervical reanimador, a fim de evitar refluxo do conteúdo gástrico du‑ Deve-se manter o paciente em decúbito dorsal horizontal so‑ rante o procedimento. A via nasotraqueal, apesar da vanta‑ bre uma superfície rígida com a cabeça fixa e neutra com auxí‑ gem de não se manipular cabeça ou pescoço, é associada a au‑ lio de um segundo reanimador. O colar cervical deve ser colo‑ mentos abruptos da pressão intracraniana. Além disso, cado logo após estabelecimento da permeabilidade das vias exige-se que o paciente não se encontre em apneia ou agitado, aéreas e permanecer até se caracterizar radiológica e clinica‑ sendo formalmente contraindicada em suspeita de fratura de mente o não comprometimento da coluna cervical. O colar, base de crânio e/ou terço médio de face. Atualmente, após por si só, não imobiliza totalmente o pescoço, sendo necessá‑ avaliação, preparo e posicionamento, aspiração e pré-oxigena‑ rio colocar calços lateralmente e fixar a cabeça com bandagem ção (oferecer O2 a 100% por balão/valva/máscara), utilizam‑ ou velcro. Observar o grau de lucidez, agitação, torpor, corna‑ -se, na sequência rápida para entubação, potente analgésico gem, esforço e dificuldade para respirar. Visualizar a orofarin‑ (p.ex., fentanil), sedativo (hipnóticos como midazolam, pro‑ ge para remover corpos estranhos, restos alimentares, frag‑ pofol, etomidato ou cetamina – indicado no paciente hipoten‑ mentos de dentes ou prótese dentária. Em seguida, aspirar so sem traumatismo craniano) e relaxante muscular não des‑ secreções e sangue com tubo rígido, examinando feridas em polarizante (rocurônio, vecurônio ou cisatracúrio). Apesar de língua, palato, gengivas e demais partes da boca. Prestar aten‑ facilitar a entubação, algumas drogas podem aumentar a pres‑ ção quanto a ruídos como roncos, estridor ou disfonia. Identi‑ são intracraniana ou causar hipotensão, tornando sua escolha ficar queda de língua (realizar elevação cuidadosa do mento extremamente cautelosa. O uso da succinilcolina deve ser evi‑ ou tração de mandíbula) e se há fraturas de mandíbula, maxi‑ tado na presença de fraturas múltiplas de ossos longos, trau‑ lar superior ou terço médio de face (fraturas de Le Fort). Se o mas com lesão por esmagamento e na presença de TCE, pois paciente estiver lúcido, sem sinais de desconforto respiratório, eleva a pressão intracraniana. A sequência rápida para entubação pode ser contraindica‑ sem lesões visíveis de boca ou seu conteúdo, pode-se fornecer oxigênio suplementar por máscara com reservatório (máscara da quando se esperam dificuldades no procedimento, como em pacientes com trauma de face ou laringe e fratura maxilar de reinalação parcial ou não reinalante). Em pacientes inconscientes, o uso de cânula de orofaringe ou mandibular. O uso de máscara laríngea vem sendo encora‑ (de Guedell) está indicado quando eles se apresentam com dri- jado em situações em que não se consegue sucesso nas tenta‑ ve respiratório sustentável, sem o reflexo do vômito (mede-se tivas de entubação traqueal e, no atendimento pré-hospitalar, a distância entre o canto do lábio inferior até o ângulo da man‑ aos paramédicos não habituados a esse procedimento. Raramente, outra opção de via aérea em casos de insucesso díbula, resultando em alinhamento com a abertura glótica). Na criança maior de 8 anos, deve-se inserir a cânula orofarín‑ é a realização de cricotireoidotomia percutânea através de pun‑ gea (Guedell) com a ponta voltada para o palato mole e, à me‑ ção da membrana cricoide com cateter sobre agulha de grosso dida que for introduzida, realiza-se rotação de 180o para se calibre (14G). A maneira mais adequada de se prover ventilação ajustar à base da língua. Na criança menor, sua inserção deve com esse sistema é conectando-se o cateter tipo Jelco® a uma ser realizada na posição final para não lesar o palato e/ou cau‑ seringa de 3 mL sem o êmbolo e esta a uma peça conectora de sar fratura dos dentes de leite. Quando o reflexo de vômito en‑ um tubo traqueal n.7,0. Procede-se então à ventilação com bol‑ contra-se intacto, a melhor opção para manutenção da per‑ sa conectada à fonte de oxigênio a 100%. Esse sistema é capaz meabilidade da via aérea é a cânula nasofaríngea (a cânula que de fornecer oxigenação adequada em circunstâncias extremas, melhor se ajusta ao diâmetro da fossa nasal ou 5o quirodáctilo), porém acarretando retenção de CO2, devendo ser providencia‑ desde que não haja suspeita de fratura de face e/ou de base de da uma solução definitiva (traqueostomia) o quanto antes. crânio (presença de otorreia ou rinorreia liquórica e equimo‑ ses ao redor dos olhos e orelhas – sinal de Batter). Mede-se a B – Respiração (oxigenação e ventilação) profundidade de inserção da cânula nasofaríngea tomando-se O objetivo é restaurar ou manter ventilação normal e boa oxi‑ como base a distância entre a aleta nasal e o trágus ispsilateral. genação através de balão/valva/máscara, tubo intratraqueal Nos pacientes obnubilados, a entubação precoce mostrou‑ ou cânula de traqueostomia, ou prótese respiratória. Deve-se -se mais vantajosa (menos exposição à hipóxia), preferencial‑ ficar atento a complicações potenciais, como obstrução da via
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aérea artificial, pneumotórax, hemotórax, ferimento torácico aberto ou tórax instável, tomando as medidas de acordo. Todo paciente com via aérea artificial que piora subitamente deve levantar a suspeita de DOPE: D = deslocamento do tubo (extu‑ bação ou entubação seletiva); O = obstrução do tubo; P = pneumotórax hipertensivo ou E = falha do equipamento. Sinais como batimento de asa do nariz, tiragem intercos‑ tal/fúrcula/subdiafragmática, desvio de traqueia, enfisema subcutâneo, engurgitamento das veias cervicais, hipotensão arterial ou deterioração da oxigenação devem ser valorizados e exigem condutas emergenciais (desobstrução da via aérea, to‑ racocentese por agulha ou até drenagem torácica em selo d’água). O tórax da criança é mais elástico que o do adulto, sendo um sinal de extrema gravidade a evidência de fratura de costelas, tornando-se imperativa investigação de comprome‑ timento em outros sistemas. O tratamento do pneumotórax aberto consiste em restituir a integridade da parede torácica com gaze estéril embebida em vaselina no local da lesão para prevenir possível pneumotórax hipertensivo. Uma vez obtida a via aérea, não se deve hiperventilar o pa‑ ciente, pois pode acarretar aumento da pressão intratorácica, diminuição do retorno venoso, comprometimento do débito cardíaco, além de modificar a perfusão cerebral, levando a is‑ quemia local ou global do cérebro. A hiperventilação é reserva‑ da para situações críticas como herniação transtentorial por expressivo aumento da pressão intracraniana. C – Circulação com controle da hemorragia O próximo passo é avaliação hemodinâmica, controle de he‑ morragias e instalação de um acesso vascular. Os sinais clíni‑ cos de choque hipovolêmico são: taquicardia, alterações na perfusão tecidual (pulsos periféricos de amplitude diminuída ou ausentes), enchimento capilar lentificado (> 2 s), extremi‑ dades frias ou pouco aquecidas, pele mosqueada, palidez ou cianose, alterações do nível de consciência (estado mental) e redução da diurese (oligúria ou anúria). Clinicamente, o choque é classificado como compensado ou descompensado, de acordo com os níveis da pressão arte‑ rial (PA). Se a PA sistólica estiver abaixo do percentil 5% para a idade, considera-se o choque como descompensado. No cho‑ que, a hipotensão arterial é um sinal tardio, sendo detectada somente após uma perda de 25 a 30% do volume circulante. Na prática, para se avaliar o percentil 5% em crianças (exceto recém-nascidos), adota-se a seguinte fórmula: (idade × 2) + 70. A insuficiência circulatória deve ser tratada com controle das perdas sanguíneas (identificação dos locais de sangramento – externos por meio de compressão direta, de preferência com compressas estéreis finas para não dissipar a pressão exercida; internos por meio de acesso cirúrgico), elevação dos membros inferiores, reposição rápida de volume através de 2 acessos vas‑ culares de grosso calibre em extremidades não lesadas. Caso a obtenção do acesso venoso periférico for difícil (não permane‑ cer tentando por mais de 90 segundos ou três tentativas de acesso), recomenda-se a punção intraóssea, de preferência com agulha própria ou de punção de medula óssea (mielograma), na superfície do platô anteromedial da tíbia, aproximadamente 2
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cm abaixo da tuberosidade tibial. Esse procedimento é conside‑ rado mandatório em caso de parada cardiorrespiratória. O aces‑ so intraósseo é bastante seguro, podendo-se infundir cristaloi‑ des, coloides, hemoderivados e drogas. Raras são as complicações como osteomielite, embolia gordurosa, lesão na cartilagem de crescimento e síndrome compartimental. As con‑ traindicações ao acesso intraósseo são a presença de fraturas no osso a ser puncionado e o nível de consciência preservado. Ape‑ sar de o procedimento poder ser feito com anestesia local, deve ser evitado no paciente consciente. Nesses casos, devem-se buscar outras opções de acesso, que podem ser punção da veia jugular externa, dissecção venosa (veia safena pré-maleolar) e punção de acesso venoso profundo (veias femoral, subclávia ou jugular interna), pela técnica de Seldinger, lembrando-se sem‑ pre que, em caso de dificuldades no acesso venoso periférico, o acesso mais rápido e fácil será provavelmente a veia femoral, utilizando-se um cateter curto e calibroso. A reposição volêmica deve ser feita com cristaloides (pela praticidade), em alíquotas de 20 mL/kg, de forma rápida (5 a 20 min), sendo monitorada por perfusão, frequência cardíaca, débito urinário, nível de consciência e pressão arterial. No caso de o choque não responder após a infusão de 60 mL/kg de cris‑ taloides em 1 hora, deve-se administrar concentrado de hemá‑ cias 10 a 15 mL/kg, a fim de repor possível perda sanguínea (suspeitar de hemorragia interna). Deve-se ficar atento ao pa‑ ciente que necessita de hemotransfusão maciça, pois pode evoluir com complicações como coagulopatia por diluição de hemocomponentes (plaquetas e fatores de coagulação) e hipo‑ termia. Há correntes que defendem que não se deve corrigir agressivamente o estado hemodinâmico, utilizando-se volume apenas suficiente para manter as funções vitais até a chegada ao hospital. O racional por trás dessa conduta é não pressionar e deslocar possíveis coágulos sanguíneos que estejam tampo‑ nando uma lesão vascular. Segundo esses autores, uma pres‑ são arterial que permita a palpação de pulsos periféricos já é suficiente para deslocar um coágulo. O aforisma em inglês que descreve esse tipo de abordagem recomenda: don’t pop the clot. D – Disfunção neurológica Como prioridade deve ser realizado um exame sumário da função neurológica, com atenção especial para o nível de consciência (escala de coma de Glasgow – Tabela 4), as pupi‑ las (tamanho, simetria e resposta à luz) e sinais de hiperten‑ são intracraniana (hipoventilação, bradicardia, hipertensão arterial), além da inspeção da cabeça e da face. A avaliação da consciência pode ser obtida de forma simples, por meio da es‑ cala AVDN: A (alerta), V (responde à voz), D (responde à dor) e N (não responde). Pacientes com real ou potencial lesão em coluna cervical devem ser protegidos durante o manuseio. No caso de trauma penetrante na região cervical, um exame neurológico deve ser efetuado a fim de ser detectado algum déficit (se este não se evidencia de pronto, provavelmente não se desenvolverá). Contudo, em trauma fechado, a lesão espinhal é sempre pre‑ sumida até ser excluída radiológica e clinicamente (paciente apresenta-se alerta, sem queixa de dor na região cervical, sem
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Politraumatizado •
sinais ou sintomas neurológicos). Sessenta por cento das crianças politraumatizadas têm o crânio como parte mais gra‑ vemente atingida, com mortalidade em torno de 16% contra 6% quando não há traumatismo cranioencefálico. Tabela 4 Escala de coma de Glasgow convencional e adaptada para menores de 2 anos Abertura ocular (1 a 4)
Melhor resposta verbal [> 2 anos] (1 a 5)
4 – Espontânea
5 – Orientada
3 – Em resposta à voz
4 – Confusa
2 – Em resposta à dor
3 – Inapropriada
1 – Nenhuma
2 – Incompreensível 1 – Nenhuma
Melhor resposta motora (1 a 6)
Melhor resposta verbal [< 2 anos] (1 a 5)
6 – Obedece comandos
5 – Palavras apropriadas, sorriso, fixa e acompanha
5 – Localiza a dor
4 – Choro consolável
4 – Retirada à dor
3 – Persistentemente irritado
3 – Em flexão (decorticação)
2 – Agitado
2 – Em extensão (descerebração)
1 - Nenhuma
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E – Exposição do paciente Com a intenção de definir todos os possíveis traumas, deve-se expor completamente o paciente, retirando suas roupas. Mo‑ nitoração da temperatura é mandatória, ainda mais quando se trata de lactente (maior superfície corpórea), visto que a hipo‑ termia aumenta o consumo de oxigênio e causa vasoconstri‑ ção periférica, aumentando a resistência vascular sistêmica, além de comprometer a função do sistema nervoso central (SNC). F – Instalação de um cateter de Foley Deve-se instalar imediatamente um cateter vesical para moni‑ toração do débito urinário, a menos que haja fratura pélvica ou sangue no meato uretral, quando um especialista deverá ser consultado previamente. G – Instalação de um cateter gástrico Deve-se instalar imediatamente um cateter naso (se não hou‑ ver lesão nasal, de base de crânio ou maxilar) ou orogástrico, para evitar distensão gástrica e diminuir as chances de bron‑ coaspiração de conteúdo estomacal. Abordagem sequencial Uma vez estabilizado o paciente, deve-se proceder à realiza‑ ção de exames complementares, indicados de acordo com a natureza das lesões encontradas, mas que invariavelmente in‑
1 – Nenhuma
Tabela 5 Principais ocorrências no traumatismo de tórax e abordagem recomendada Ocorrência
Abordagem
Pneumotórax hipertensivo
A descompressão rápida, com a inserção de uma agulha calibrosa (geralmente um cateter sobre agulha) no 4o ou 5o espaço intercostal, na linha axilar média, e posterior drenagem pleural fechada, é essencial
Pneumotórax aberto
Deve ser tratado como uma emergência, cobrindo-se a lesão com curativo oclusivo, para prevenir a entrada de ar do meio externo para a cavidade pleural. Muitas vezes, é necessária entubação traqueal e ventilação com pressão positiva. Após a estabilização clínica, é realizado o reparo da lesão e drenagem do espaço pleural
Hemotórax
Drenagem pleural fechada. Nos casos de coágulos intrapleurais de difícil resolução pela simples drenagem, pode ser indicada toracotomia mínima para esvaziamento do coágulo ou sua retirada por toracoscopia
Asfixia traumática (por compressão direta da parede torácica)
Pode ser necessária entubação traqueal e ventilação com pressão positiva
Enfisema subcutâneo (lesão dos arcos costais, pleura, músculos intercostais, brônquios, traqueia ou parênquima pulmonar)
O tratamento deve ser direcionado à lesão primária, uma vez que o ar no subcutâneo não tem efeito fisiológico e é absorvido espontaneamente
Fraturas de arcos costais
Analgésicos geralmente são suficientes para controle da dor. Em alguns casos, pode ser necessário o bloqueio de nervos intercostais com anestésico local
Contusão pulmonar (hemorragia intraparenquimatosa e edema pulmonar)
Nos casos de contusão pulmonar grave, pode estar indicada a entubação traqueal para manter adequada saturação de O2. A antibioticoterapia é controversa
Lesões da traqueia e brônquios
A broncoscopia é essencial ao diagnóstico. As lesões proximais da traqueia podem ser tratadas por reparo direto da lesão e traqueostomia, enquanto as lesões mais distais podem necessitar de toracotomia
Lesões de grandes vasos (95% dos pacientes com lesão de aorta torácica morrem antes de chegar ao hospital)
As lesões aórticas ou os pseudoaneurismas traumáticos têm indicação de correção cirúrgica pelo alto risco de ruptura, com mortalidade elevada
Lesões cardíacas (de contusões miocárdicas assintomáticas até ruptura cardíaca)
Lesões cardíacas penetrantes ou rupturas do miocárdio devem ser tratadas cirurgicamente. No tamponamento cardíaco com comprometimento circulatório, deve ‑se optar pela pericardiocentese por agulha com punção subxifoide, que alivia a tensão intrapericárdica e restabelece a função cardíaca. Posteriormente pode ser necessária drenagem pericárdica com tubo
Lesões do diafragma
Tratamento cirúrgico: laparotomia para correção da lesão diafragmática e avaliação de outras lesões abdominais associadas
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cluem alguma avaliação radiológica (desde radiografia sim‑ ples e/ou ultrassonografia até tomografia computadorizada), além de exames de sangue (hematologia, bioquímica, classifi‑ cação sanguínea) e pelo menos um exame de urina (EAS), de‑ pendendo da região acometida. Além dos exames comple‑ mentares, frequentemente há necessidade de avaliação por especialistas cirurgiões (cirurgia geral, ortopedia, neurocirur‑ gia, crânio-maxilo-facial, etc.) e outros especialistas. A abor‑ dagem específica de cada região acometida fugiria ao escopo deste capítulo, no entanto, as Tabelas 5 a 7 apresentam um pe‑ queno resumo das principais ocorrências e intervenções, res‑ saltando que o traumatismo cranioencefálico é abordado em capítulo à parte. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reunir informações acuradas e essenciais sobre o paciente. • Realizar exame físico completo, acurado e apropriado.
• Avaliar o estado mental. • Desenvolver diagnóstico diferencial e tomar decisões diagnósticas informadas. • Reconhecer a necessidade de encaminhamento a outro especialista e fazê-lo quando necessário. • Interpretar exames de imagem de rotina e estar familiarizado com o uso e interpretação de ultrassonografia, exames radiológicos com contraste, ecocardiografia e imagens de tomografia computadorizada e ressonância magnética. • Reconhecer falência múltipla de órgãos iminente. • Reconhecer o choque. • Reconhecer traumas múltiplos. • Reconhecer trauma de crânio e coma. • Abordar os traumas: abdominal, musculoesquelético, de ombro, de cotovelo, lombar, pélvico e de quadril, de joelho, de tornozelo, craniano/concussão, cervical e térmico.
Tabela 6 Principais ocorrências no traumatismo abdominal e abordagem recomendada Ocorrência
Abordagem
Lesões hepáticas
A maioria das lesões hepáticas pode ser manuseada clinicamente com admissão em UTI, restrição ao leito (mínimo de 7 dias), monitoração hemodinâmica e exames físico, radiológicos (TC ou US) e laboratoriais (hematócrito) seriados. As indicações para laparotomia incluem instabilidade hemodinâmica, outras lesões associadas que necessitem tratamento cirúrgico ou necessidade de transfusões maior ou igual à metade do volume sanguíneo estimado da criança
Lesões esplênicas
A maioria das crianças é manuseada por tratamento clínico e as indicações cirúrgicas são as mesmas do trauma hepático. A esplenectomia deve ser evitada sempre que possível por causa dos riscos de sepse pós-operatória. Em casos selecionados, pode-se tentar preservar parte do baço realizando esplenectomia parcial
Lesões duodenais e pancreáticas
A maioria das lacerações duodenais é tratada por sutura simples. Em mais de 75% dos casos, o sistema ductal está preservado e o manuseio é clínico. Lesões mais graves (transecção pancreática) necessitam de tratamento cirúrgico
Lesão de víscera oca (exceto duodeno): estômago, íleo, cólon, rim
A presença de pneumoperitônio é sugestiva de ruptura de víscera oca. O tratamento é cirúrgico
Tabela 7 Principais ocorrências no traumatismo geniturinário e abordagem recomendada Ocorrência
Abordagem
Contusão renal
Inicialmente conservadora, com o objetivo de preservar a maior quantidade de parênquima. Os resultados são excelentes
Lesões penetrantes do rim
Pacientes com estabilidade hemodinâmica e sem evidências de lesões intra-abdominais devem inicialmente ter conduta expectante. Nos pacientes com instabilidade hemodinâmica refratária e forte suspeita de lesão intra-abdominal associada, a laparotomia exploradora deve ser realizada
Traumatismo ureteral
Normalmente cirúrgica, sendo desejável a reparação primária da lesão. Pode variar de simples derivação temporária até operações mais complexas
Traumatismo de bexiga
Na rotura intraperitoneal da bexiga, frequentemente associada a outras lesões, a melhor conduta é a cirurgia imediata. Na rotura extraperitoneal, o cateterismo vesical de demora é a conduta indicada; cerca de 85% desses casos têm boa evolução em torno de 2 semanas
Traumatismo uretral
O objetivo principal é promover derivação urinária com o mínimo de sequelas (estenose, incontinência e disfunção erétil). O tratamento é baseado na localização e na extensão da lesão
Traumatismo da genitália externa masculina
O objetivo principal do tratamento é manter a função erétil e a preservação das gônadas. Sempre que possível, essas lesões devem ser reparadas primariamente (limpeza, debridamento e sutura com fio absorvível)
Traumatismo testicular
O objetivo é a preservação do parênquima testicular. Nas lesões menores dos testículos (hematomas escrotais, hematoceles e hidroceles), o tratamento inicial é conservador. Ocasionalmente podem necessitar de tratamento cirúrgico (drenagem). Nas lesões mais graves (rotura testicular), imediata exploração cirúrgica com reconstituição da túnica albugínea e das fáscias plano a plano
Traumatismo da genitália externa feminina
Pequenas lacerações da mucosa vulvar sem sangramento importante devem ser tratadas de forma conservadora: limpeza da lesão e pomadas tópicas. Lesões mais complexas necessitam de reparo cirúrgico
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Politraumatizado •
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CAPÍTULO 5
ASMA AGUDA GRAVE Jefferson Pedro Piva Pedro Celiny Ramos Garcia Sérgio Luís Amantéa
Introdução “Asma é uma doença inflamatória crônica das vias aéreas, na qual muitas células e elementos celulares têm participação. A inflamação crônica está associada à hiper-responsividade das vias aéreas, que leva a episódios recorrentes de sibilos, dispneia, opressão torácica e tosse, particularmente à noite ou no início da manhã. Esses episódios são uma consequência da obstrução ao fluxo aéreo intrapulmonar, de maneira generalizada e variá‑ vel, reversível espontaneamente ou com tratamento.”1,2 A definição precisa da gravidade de uma exacerbação de asma é uma questão que apresenta algumas controvérsias. O termo status asmático (estado de mal asmático) vincula a gra‑ vidade das manifestações ao desfecho clínico decorrente da terapêutica e tem sido utilizado para definir uma exacerbação asmática grave que não respondeu ao tratamento e/ou que teve a administração de suas drogas retardadas. Uma série de limitações existe sobre essa definição, principalmente sobre a quantificação da medicação necessária a fim de caracterizar ausência de uma resposta clínica satisfatória, bem como tem‑ po a ser considerado para caracterização do desfecho clínico.3 Sendo assim, asma aguda grave é o termo que tem sido mais amplamente utilizado e que vincula a gravidade da exa‑ cerbação a uma combinação de sinais e sintomas presentes que procuram caracterizar a intensidade das anormalidades cardiorrespiratórias observadas, mesmo que não possa predi‑ zer o desfecho clínico futuro.3 Nessa concepção, toda exacerbação (crise aguda de asma) caracteriza um episódio de piora progressiva da sintomatolo‑ gia clínica associada à doença, com encurtamento das incur‑ sões e aumento da frequência respiratória, tosse, sibilância ou opressão torácica, de maneira isolada ou conjunta.2 A gravidade dessas exacerbações determina o tratamento a ser administrado e pode discriminar quadros leves e modera‑ dos de situações associadas a maior gravidade: asma aguda grave e falência respiratória iminente (Tabela 1). Uma vez que a exacerbação tenha evoluído para quadro de falência respiratória, também é possível encontrar a caracteri‑
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zação clínica da situação com a denominação de asma quase fatal (near fatal asthma).4 Mais recentemente, em função dessa grande heterogenei‑ dade de apresentação e de uma clara identificação de fenóti‑ pos associados à maior gravidade, a denominação de síndro‑ me da asma crítica (critical syndrome asthma) tem sido proposta para caracterizar os pacientes que vieram a necessi‑ tar de uma abordagem terapêutica mais agressiva (asma críti‑ ca, estado de mal asmático e asma quase fatal), incluindo tan‑ to suporte farmacológico quanto ventilatório.5 Sendo assim, o detalhamento das manifestações clínicas atreladas a antecedentes da doença ou da crise atual, a identi‑ ficação de sinais de gravidade associados à crise e a pronta ad‑ ministração da terapêutica broncodilatadora, são rotinas fun‑ damentais para uma evolução clínica favorável, independentemente do nível de complexidade assistencial em que será administrada a terapêutica. Epidemiologia A asma é a doença crônica mais prevalente na população in‑ fantil. Estima-se que, no Brasil, a prevalência de asma entre escolares e adolescentes situe-se em 19% e 24%, respecti vamente, com algumas variações regionais.6 Dados comparativos entre países da América Latina de‑ monstram uma variabilidade maior na prevalência da doença, mas, mesmo assim, se mantém elevada (mais da metade dos centros participantes com prevalência superior a 15%), evi‑ denciando dados similares aos reportados em países desen‑ volvidos.7 Asma é a 3ª causa de hospitalização em menores de 18 anos de idade nos Estados Unidos8 e a 4ª no Brasil, considerando todos os grupos etários.9 Dados referentes a exacerbações agudas são pobres nas es‑ tatísticas brasileiras, entretanto, nos Estados Unidos, a preva‑ lência de ataques de asma na população (considerando pelo menos 1 episódio/ano) é superior a 4%, isto é, aproximada‑ mente 12,8 milhões de pessoas (8,7 milhões de adultos e 4 mi‑
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Asma Aguda Grave •
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Tabela 1 Classificação da intensidade das crises de asma* Leve
Moderada
Grave
Dispneia
Ausente; deambula; pode deitar
Ao falar; lactente: choro curto, dificuldade alimentar; prefere sentar
Ao repouso; para de se alimentar; posição semissentada
Fala
Sentenças completas
Frases incompletas
Palavras/monossílabos
Consciência
Pode estar agitado
Geralmente agitado
Geralmente agitado
Frequência respiratória**
Aumentada
Aumentada
Frequentemente > 30 mrpm
Falência respiratória iminente
Sonolento ou confuso
Frequência cardíaca***
< 100 bpm
100 a 120 bpm
> 120 bpm
Bradicardia
Uso de musculatura acessória
Leve ou nenhuma retração
Retrações presentes
Retrações presentes
Respiração toracoabdominal paradoxal
Sibilância
Moderada – geralmente fim da expiração
Ruidosa
Mais ruidosa
Ausência de sibilância
Pulso paradoxal
Ausente (< 10 mmHg)
Pode estar presente: 10 a 25 mmHg
Frequentemente presente: 20 a 40 mmHg
Ausência sugere fadiga da musculatura acessória
PEF pós-broncodilatador inicial (% do previsto ou % da melhor marca pessoal)
Acima de 80%
Aproximadamente 60 a 80%
Inferior a 60% do previsto ou da melhor marca pessoal
Saturação de O2 em ar ambiente
> 95%
91 a 95%
< 90%
PaO2 (ar ambiente)
Normal (geralmente teste não indicado)
> 60 mmHg
< 60 mmHg – possível cianose
PaCO2
< 45 mmHg
< 45 mmHg
> 45 mmHg
* A presença de vários parâmetros, mas não necessariamente todos, indica a classificação geral da crise aguda. ** Frequência respiratória em crianças normais: < 2 m (< 60 mrpm); 2 a 12 m (< 50 mrpm); 1 a 5 anos (< 40 mrpm); 6 a 8 anos (< 30 mrpm). *** Frequência cardíaca em crianças normais: 2 a 12 m (< 160 bpm); 1 a 2 anos (< 120 bpm); 2 a 8 anos (< 110 bpm).
lhões de crianças até 17 anos de idade). De outra maneira, po‑ de-se dizer que mais da metade da população de asmáticos nesse país esteve sujeita a visitas em salas de emergência ou admissões hospitalares.10 Em 2011, manifestações agudas as‑ sociadas à doença foram mais significativas em crianças e adolescentes (menores de 18 anos de idade) do que em adul‑ tos (54,6/1.000 versus 39,4/1.000, respectivamente).5 Sob o ponto de vista hospitalar, as crises agudas podem ser responsáveis por até 10% das admissões em salas de emergên‑ cia e de 2 a 7% das internações em UTI pediátrica. Estima-se que cerca de 1 a cada 600 asmáticos experimentará um episó‑ dio de asma aguda grave no curso de 1 ano.11-13 A taxa média de mortalidade global atribuída à asma no Brasil, entre 1998 e 2007, foi de 1,52/100.000 habitantes (va‑ riação: 0,85 a 1,72/100.000 habitantes), com estabilidade na tendência temporal desse período.1 Nos países desenvolvidos, as taxas de mortalidade aumentaram gradativamente desde 1975, estabilizaram-se entre as décadas de 1980 e 1990 e, a partir daí, começaram a diminuir. Estudo ecológico, de série temporal, delineado para avaliar a tendência da mortalidade por asma na faixa etária no Brasil, período de janeiro de 1980 a dezembro de 2007, evidenciou uma redução média anual nos coeficientes de mortalidade para todas as faixas etárias, sendo mais marcada nos pacientes de 1 a 4 anos, também aqueles
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que foram os responsáveis pela maior frequência absoluta de óbitos.14 Identificação do risco de exacerbação O principal mecanismo implicado como causa das mortes de‑ correntes de asma tem sido atribuído à asfixia na quase totali‑ dade dos casos. Tratamento excessivo como causa de óbito é raro. Portanto, é importante identificar aspectos que indi‑ quem um maior risco para os pacientes portadores de asma no desenvolvimento de exacerbações agudas:1,2,15-18 • 3 ou mais visitas à emergência ou 2 ou mais hospitalizações por asma nos últimos 12 meses; • uso frequente de corticosteroide sistêmico; • uso corrente ou recente suspensão de corticoterapia; • crise grave anterior (necessitando de entubação); • uso de 2 ou mais tubos de aerossol dosimetrado de broncodi‑ latador/mês; • problemas psicossociais (p.ex., depressão, baixo nível socioe‑ conômico, dificuldade de acesso à assistência, falta de adesão a tratamentos prévios); • comorbidades associadas (doença pulmonar, cardiovascular ou psiquiátrica); • asma lábil, com marcadas variações de função pulmonar (> 30% do PFE ou do VEF1 previstos);
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• má percepção do grau de obstrução; • baixa idade (< 2 anos). Recentemente, Rodriguez‑Martinez et al. avaliaram uma po‑ pulação de asmáticos latino‑americanos admitidos em hospi‑ tal de ensino na Colômbia por crise aguda de asma. Cento e uma crianças, com mediana de idade de 5,5 anos, foram acompanhadas prospectivamente por 1 ano. Cerca de 1/3 da população selecionada apresentou, pelo menos, uma exacer‑ bação que veio a evoluir para admissão hospitalar no ano se‑ guinte. Nessa coorte, após ajuste para potenciais fatores de confusão, fumo materno foi o único fator preditor indepen‑ dente para as internações hospitalares decorrentes das exa‑ cerbações agudas da doença.19 Fisiopatologia Os mecanismos fisiopatológicos implicados no comprometi‑ mento da mecânica pulmonar são secundários a uma série de eventos que se encontram interligados como um mecanismo de cascata. Broncoespasmo, edema de mucosa e hipersecre‑ ção que se desenvolvem na crise aguda de asma promovem um aumento exagerado na resistência ao fluxo aéreo e que é potencializado, especialmente nas crianças menores de 5 anos, pelo diminuto calibre de suas vias aéreas inferiores. Uma vez que, na expiração, as vias aéreas reduzem ainda mais seu calibre, há um progressivo alçaponamento de ar nas unidades alveolares. Consequentemente, o volume corrente torna‑se progressivamente menor. No sentido de manter o volume minuto, desenvolvem‑se os seguintes mecanismos compensatórios (Figura 1): • aumento na frequência respiratória, porém, altas frequências causam um fluxo aéreo turbulento e dificultam ainda mais as trocas gasosas; • utilização da musculatura acessória; visando a aumentar a pressão negativa intratorácica para aumentar o volume cor‑ rente, ocorre um aumento progressivo no esforço respiratório que é proporcional à intensidade da obstrução aérea.20‑22
Muitas vezes, apesar de todo o esforço para gerar grandes pressões inspiratórias negativas e compensar a insuficiência respiratória, esse mecanismo falha em razão da maior compla‑ cência torácica, da fadiga muscular ou do exagerado fluxo tur‑ bulento nas vias aéreas. À medida que o quadro evolui, há uma progressiva diminuição do volume corrente, com aumen‑ to da hipoxemia e, nos estágios finais, hipercapnia.20,21 O comprometimento pulmonar de crianças com crise de asma grave não ocorre de forma homogênea. Existem áreas par‑ cialmente obstruídas e, portanto, parcialmente ventiladas. Ocorrem ainda áreas com obstrução completa (atelectásicas) que não são ventiladas e apresentam efeito shunt (hipoxemia). Por outro lado, existem áreas não comprometidas que são hiper‑ ventiladas no sentido de compensar a hipoxemia e tentar man‑ ter o volume minuto. O produto final desse desarranjo na rela‑ ção da ventilação/perfusão manifesta‑se por meio de hipoxemia acompanhada de níveis variáveis de pCO2, dependendo da pre‑ dominância de áreas hipoventiladas ou de atelectasias.20,21,23 O aumento progressivo do trabalho muscular e a hipoxe‑ mia decorrentes da manutenção da obstrução nas vias aéreas inferiores manifestam‑se como acidose metabólica (hipóxia tecidual). Por outro lado, no caso de haver retenção de CO2 concomitante, ocorre acidose mista, que tem um prognóstico pior e exige medidas mais agressivas.20‑22 A hipóxia (associada ou não à hipercapnia) pode levar a al‑ terações da consciência (agitação/prostração), resposta car‑ diovascular com taquicardia inicial e posterior bradicardia e hipotensão, com consequente choque e parada cardiorrespira‑ tória.22,24 Princípios do manejo terapêutico Nos últimos anos, não surgiram novas drogas que se mostras‑ sem efetivas no tratamento da asma aguda. Progressos tera‑ pêuticos têm sido obtidos com a otimização do uso de velhos fármacos, mais do que a utilização de novas medicações. As crises de asma devem ser classificadas segundo sua gra‑ vidade (Tabela 1), e o tratamento, instituído da maneira mais
Pulmões normais
CRF aumentada (hiperexpansão)
Volume
Volume pulmonar
Doença pulmonar obstrutiva
Volume alçaponado
CRF A
0 B
Pressão
Figura 1 A. Demonstração esquemática de como a obstrução das vias aéreas induz ao retardo no esvaziamento alveolar incompleto e ao consequente alçaponamento de ar, promovendo: aumento na capacidade residual funcional (CRF) e redução progressiva no volume corrente mesmo que à custa de um enorme esforço inspiratório (B).
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precoce possível. Toda crise de asma deve ser considerada como uma situação de risco potencial em que tanto uma falha no seu reconhecimento quanto um atraso na adoção de medi‑ das terapêuticas efetivas pode vir a colocar em risco a vida do paciente pediátrico. O tratamento deve ser sistematizado e agressivo, exploran‑ do de maneira escalonada os potenciais benefícios da terapêu‑ tica disponível. O profissional envolvido no manejo deve estar ciente de que as crises agudas de asma requerem um trata‑ mento dinâmico, que os desfechos advindos da terapêutica devem ser constantemente avaliados e que cada serviço pos‑ sui seu próprio protocolo assistencial validado, alinhado a re‑ cursos disponíveis e à luz da evidência científica. Nessa concepção, o Hospital da Criança Santo Antônio (HCSA) tem sua rotina assistencial estruturada em estratégias terapêuticas sequenciais, determinadas pelas manifestações clínicas presentes, frente aos recursos disponibilizados. Trata‑ -se de um legítimo passo a passo que incorpora avaliação clínica, recursos laboratoriais e administração combinada de drogas nos mais diferentes cenários, considerando a abordagem tera‑ pêutica inicial no setor de pronto-atendimento até a transferên‑ cia final para uma unidade de cuidados intensivos (Figura 2): • respostas parciais: manter passo terapêutico inalterado, aguardando modificação em função da evolução clínica apre‑ sentada nas horas subsequentes; • respostas favoráveis sustentadas: implicam realinhamento do plano terapêutico, considerando redução das doses admi‑ nistradas de drogas beta-2-agonistas, modificação na via de administração de algumas medicações e até mesmo suspen‑ são de outras; • níveis de evidência:2 A (ensaios clínicos randomizados com dados robustos e consistentes); B (ensaios clínicos randomi‑ zados com número mais limitado de pacientes, dados menos consistentes); C (ensaios não randomizados, estudos obser‑ vacionais); D (consensos e opiniões de experts). Passo 1 – Avaliação clínica inicial A avaliação continuada e a quantificação da gravidade são fun‑ damentais para acompanhar a evolução, a resposta terapêuti‑ ca (reversibilidade) e, inclusive, a instituição de medidas tera‑ pêuticas mais agressivas. Não existem critérios únicos ou escores seguros e aplicáveis em todos os pacientes. Assim, é aconselhável que se utilize um conjunto de dados (ver Tabela 1) e, em função dos achados, se classifique a crise conforme a gravidade.1,2,21,23,25 Alguns achados de exame físico apresentam uma boa cor‑ relação com a gravidade do quadro. Por exemplo, o uso da musculatura acessória correlaciona-se com o grau de obstru‑ ção da via aérea (PFE e VEF1 ao redor de 50% do previsto para a idade).26,27 O estado de consciência está diretamente relacio‑ nado ao grau de fadiga e hipoxemia, em que confusão mental e obnubilação são dados de evolução tardia e associados a quadros de extrema gravidade.26 A saturação da hemoglobina obtida por oximetria de pulso é uma medida objetiva, não invasiva e de fácil acesso para a maioria dos serviços envolvidos na assistência a pacientes as‑
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máticos. Pode ser utilizada como fator preditivo de gravidade e critério a ser considerado para indicação de internação sem‑ pre que estiver abaixo de 93% em ar ambiente.26-28 Da mesma maneira, baixos níveis de saturação de oxigênio (Sat < 92%) após terapêutica com droga broncodilatadora identificam um grupo de pacientes com maior gravidade de apresentação da doença.3 Recente estudo retrospectivo apresenta dados simi‑ lares, mas reforça seus resultados com outra semântica: pa‑ cientes com saturação de O2 inicial > 93% em ar ambiente mui‑ to dificilmente virão a necessitar de internação hospitalar.29 Sensação subjetiva de dispneia, sibilância, aumento de tempo expiratório e roncos na ausculta pulmonar não têm va‑ lor prognóstico para diferenciar quadros severos daqueles com menor repercussão clínica.26 A realização de exames complementares não é necessária na maioria dos pacientes inicialmente assistidos em serviços de urgência, entretanto, podem ser considerados em situa‑ ções individualizadas.1,2 Sendo assim, dentro desses preceitos, é sempre importante considerar aspectos relativos à utilidade desses recursos complementares. Testes funcionais Devem ser realizados sempre que possível. Entretanto, essas medidas objetivas (espirometria ou manobras de aferição se‑ riadas de PFE) podem ter limitações intrínsecas associadas à idade dos pacientes (menores de 5 anos). Além disso, nas exa‑ cerbações, as medidas seriadas de PFE têm pouca confiabili‑ dade em crianças e adolescentes, pois a dispneia impede veri‑ ficações confiáveis dessa manobra esforço-dependente.1,2,28 Para que possam ser consideradas, é importante que o pacien‑ te já tenha familiaridade com o método. A melhor de três ma‑ nobras do PFE, idealmente expressa como uma porcentagem da melhor marca pessoal, pode ser útil na avaliação da respos‑ ta terapêutica.2,3,28 Embora o National Asthma Education and Prevention Program (NAEPP) recomende que a espirometria seja obtida em pacientes com asma aguda hospitalizados (du‑ rante o processo de admissão, após a ocorrência de broncodi‑ latação e antes da alta hospitalar), recente estudo retrospecti‑ vo, com uma grande série de pacientes pediátricos, não demonstrou adesão à recomendação. Por outro lado, foi capaz de identificar potencial capacidade de predizer a necessidade de reinternação, o que justificaria uma avaliação mais detalha‑ da da rotina, de maneira prospectiva. Nessa série, aqueles pa‑ cientes que realizaram o exame (cerca de 10% da população amostrada) possuíam maior faixa etária (11,2 ± 3,5 anos versus 9,5 ± 4,1 anos).30 Avaliação radiológica A radiografia de tórax tem pouco valor na crise aguda, poden‑ do ser realizada para excluir outros diagnósticos (corpo estra‑ nho, edema pulmonar, insuficiência cardíaca), avaliar a pre‑ sença de pneumotórax, pneumomediastino (menos comuns em crianças) ou detectar complicações bacterianas associadas, como pneumonia (achado infrequente em associação com exacerbações agudas de asma). Áreas mal ventiladas com for‑ mação de pequenas atelectasias são achados frequentes e, al‑
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Hora 1
Ausência de resposta
Evidência B
Hora 2
Evidência A
Reavaliar pacote clínico
B2-agonista: a cada 20 min (spray ou nebulização) + ipratrópio
CTC oral: prednisolona 1 a 2 mg/kg
Considerar internação em sala de observação (SO)
Passo 4
Passo 3
Figura 2 11 passos no manejo da asma aguda.
Hora zero
Evidência A
Reavaliar pacote clínico
B2-agonista a cada 20 min (spray ou nebulização + ipratrópio
Avaliação clínica inicial (pacote clínico)
FR, FC, uso da musculatura acessória, cianose, nível de consciência, Sat O2, pulso paradoxal
Passo 2
Passo 1
Admissão em SO
Passo 5
Hora 3
Evidência C
Reavaliar pacote clínico
B2-agonista a cada 20 min ou B2 contínuo
Passo 6 Sulfato Mg + Passo 6
Passo 7
Hora 4
Evidência A
Reavaliar pacote clínico
11 passos no manejo da asma aguda
Ausência de resposta
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Passo 8
Hora 5
Evidência C
Considerar internação em UTI
Reavaliar pacote clínico
Amino EV CTC EV + Passo 6
Passo 9
Hora 6
Evidência C
Reavaliar pacote clínico
Considerar B2 EV + Passo 8
Admissão em UTI
Passo 10
Ausência de resposta
Ausência de resposta
Ausência de resposta
Ausência de resposta
Ausência de resposta
VM
Passo 11
Asma Aguda Grave •
gumas vezes, difíceis de diferenciar de processos infeccio‑ sos.1,2,31-33 Quadros de asma aguda grave, não responsivos ao tratamento corretamente administrado, também podem vir a sugerir a necessidade de avaliação radiológica complementar. Avaliação gasométrica É útil nos casos de sofrimento respiratório mais intenso, pois permite inferir de maneira objetiva estágios evolutivos asso‑ ciados à insuficiência respiratória e a resposta terapêutica. Além da avaliação clínica inicial, esse exame pode ter utilida‑ de no acompanhamento e na monitoração da resposta tera‑ pêutica administrada. Além disso, para pacientes sob supor‑ te ventilatório, fornece elementos para ajuste de parâmetros da ventilação e acompanhamento da evolução para situações de desmame.1,2 Avaliação não invasiva da resposta inflamatória Testes não invasivos, como aferição do óxido nítrico exalado ou aferição de mediadores inflamatórios no condensado exa‑ lado, abrem perspectivas no diagnóstico e no acompanha‑ mento de pacientes portadores de exacerbações agudas de asma, incluindo aqueles mais graves assistidos em UTI.34,35 Entretanto, esse recurso não costuma fazer parte da aborda‑ gem clínica inicial da maioria dos serviços envolvidos no ma‑ nejo de situações agudas de asma. Outros exames Avaliação eletrolítica seriada (especialmente potássio nos pa‑ cientes recebendo doses elevadas de beta-2-adrenérgico) deve sempre ser realizada, sobretudo nos quadros mais graves ou de maior duração da terapêutica domiciliar e ao longo da ad‑ missão em sala de observação ou qualquer outro regime de ad‑ missão hospitalar, principalmente quando a via oral (VO) não estiver presente e doses elevadas de medicação forem admi‑ nistradas. As taxas de hemoglobina não devem fazer parte da abordagem inicial desses pacientes, salvo se história de per‑ das sanguíneas ou suspeita de anemia. Elas devem ser moni‑ toradas nos pacientes com insuficiência respiratória grave que evoluem para suporte ventilatório. O leucograma tem menor valor discriminatório na identificação de doença bac‑ teriana em razão do estresse, do uso de drogas adrenérgicas e corticosteroides, sendo a leucocitose um achado comum.1,20 A troponina sérica tem sido preconizada por alguns autores como marcador de toxicidade cardíaca, principalmente em pacientes submetidos a tratamento com drogas beta-adre‑ nérgicas por via endovenosa (EV), mas seus resultados têm apresentado conclusões controversas.36,37 Passo 2 – Beta-2-agonista inalatório (intermitente frequente) associado a brometo de ipratrópio As drogas beta-2-agonistas constituem-se no primeiro recur‑ so a ser administrado em crises agudas de asma. Uma falha de resposta terapêutica a sua administração, de maneira in‑ termitente frequente (ao longo de 1 ou 2 horas, em intervalos de 20 a 30 minutos), tem caracterizado necessidade de per‑
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manência na emergência (sala de observação) e/ou admissão hospitalar.1,2,21-25 Drogas beta-2-agonistas inalatórias devem ser administra‑ das com sistema gerador de aerossol, como nebulímetros a jato (com droga veiculada em 3 a 4 mL de solução salina, com fluxos de 6 a 8 L de oxigênio) ou inaladores pressurizados do‑ simetrados (sprays) com espaçadores. Ambos são alternati‑ vas efetivas para alívio do broncoespasmo na população pe‑ diátrica, de modo que a opção por um dos sistemas (nebulímetro ou spray acoplado a espaçador) pode ser deter‑ minada por particularidades locais do serviço e/ou indivi‑ duais do paciente.38-40 Em quadros leves a moderados, a opção inicial, na maioria dos serviços, frequentemente tem recaído pelo uso de spray acoplado a espaçador.1-3,40 Inaladores de pó seco são inadequados para tratamento de crises agudas de asma na infância. Dependendo da gravidade da crise, o paciente pediátrico não é capaz de gerar manobra inspiratória efetiva para uma adequada deposição do fármaco (fluxo inspiratório mínimo de 500 mL/s).41-43 A administração de drogas beta-agonistas por via inalatória utilizando nebulímetros apresenta outra questão controversa no que tange a doses administradas.44 Muitos serviços não fa‑ zem ajuste das doses a ser administradas considerando o peso do paciente, isto é, doses ajustadas individualmente pelo peso (mcg ou mg/kg). Nessa situação, 2 ou 3 doses de droga beta‑ -agonista são consideradas: 1,25 mg (até 10 kg), 2,5 mg (10 a 20 kg) ou 5 mg (acima de 20 kg). Para alguns, até mesmo o ponto de corte em até 10 kg não é considerado, utilizando-se apenas 2,5 ou 5 mg (discriminados pelo peso de 20 kg). Os que se utili‑ zam desse esquema posológico justificam seu emprego pela menor disponibilidade da droga beta-agonista administrada por nebulização para o trato gastrointestinal e pela disponibi‑ lização de droga para a via respiratória ser dependente do vo‑ lume corrente (VC), que, em condições fisiológicas, virá a es‑ tabelecer um ajuste indireto da medicação ofertada pelo peso corpóreo (VC fisiológico = 5 a 7 mL/kg).44-46 O brometo de ipratrópio é um derivado quaternário da atro‑ pina administrado por via inalatória. Em geral, é utilizado em associação aos beta-2-agonistas para o manejo de crises agu‑ das de asma mais graves, visto que, de maneira isolada, possui menor atividade broncodilatadora.47-51 Na abordagem inicial de uma crise asmática, o brometo de ipratrópio, quando associado às nebulizações intermitentes frequentes com drogas beta-2-agonistas, parece diminuir a necessidade de admissão em sala de observação e/ou unida‑ de hospitalar.52-56 Mais recentemente, Wyatt et al.57 questiona‑ ram seu uso de maneira universal. Ao delinearem ensaio clíni‑ co randomizado, não foram capazes de observar diferenças entre os grupos (salbutamol + prednisolona versus salbutamol + prednisolona + ipratrópio). Por outro lado, o grupo que rece‑ beu ipratrópio apresentou mais efeitos colaterais. A partir de seus achados, esses autores têm sugerido a associação da me‑ dicação apenas nos casos mais graves. Não existem evidências de que a utilização do ipratrópio modifique o curso da doença em pacientes já hospitalizados. Uma vez que não existe uma resposta clínica favorável às ne‑
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bulizações intermitentes frequentes com drogas beta-2-ago‑ nistas em pacientes que já estejam em uso de corticosteroides, o brometo de ipratrópio pode ser uma alternativa terapêutica a ser instituída antes de outras drogas. Sua utilização parece es‑ tar associada a uma melhora na função pulmonar, sem modifi‑ car significativamente outros desfechos clínicos.54,56,57 As doses recomendadas do brometo de ipratrópio são: 0,125 mg (0,5 mL) até 10 kg e 0,250 mg (1 mL) acima de 10 kg, em intervalos de 4 a 6 horas. Pode ser utilizado de forma inter‑ mitente frequente (a cada 20 minutos) em associação às dro‑ gas beta-2-agonistas, por 1 a 2 horas (3 a 6 nebulizações), na tentativa de diminuir a necessidade de admissão hospitalar como já referido (pré-hospitalização).1,2,54-56 No algoritmo as‑ sistencial adotado por nosso serviço, o brometo de ipratrópio tem sido usado por 1 hora (3 nebulizações) e associado ao be‑ ta-2-agonista inalatório apenas na 2ª hora de tratamento rela‑ tivo a abordagem inicial inalatória, isto é, considerando que a resposta clínica não foi favorável com a administração inicial da droga beta-2-agonista, de maneira isolada (na 1ª hora de tratamento – 3 nebulizações). Passo 3 – Corticosteroides Reduzem a inflamação por vários mecanismos, exercem papel de interação importante com os receptores beta-adrenérgicos, aceleram a recuperação da crise e diminuem o risco de crise fa‑ tal. Os pacientes atendidos no pronto-socorro devem usar cor‑ ticosteroides sistêmicos precocemente, em geral até a 2ª hora de tratamento.1,2,58-60 Não existem evidências suficientes que suportem a utiliza‑ ção dos corticosteroides inalatórios em substituição aos corti‑ costeroides orais e/ou parenterais no tratamento de crises agudas de asma na população pediátrica. Os inalatórios apre‑ sentam menor eficácia clínica quando comparados às rotas orais e/ou parenterais. Entretanto, quando comparados a pla‑ cebo, demonstram superioridade clínica.38,61,62 Recente revisão sistemática (incluindo 13 estudos com população pediátrica e 7 com adultos) evidenciou menor probabilidade de internação hospitalar com essa terapêutica e a possibilidade de efeitos fa‑ voráveis com terapia aditiva à corticoterapia parenteral. Beckhaus et al. fizeram outra revisão sistemática que incluiu 8 estudos delineados de maneira exclusiva para população pe‑ diátrica. Todos eram portadores de crises agudas de asma e fo‑ ram assistidos em serviços de emergência. Na análise dos des‑ fechos, os autores não encontraram diferenças entre as duas estratégias terapêuticas (corticoterapia inalatória versus corti‑ coterapia sistêmica). Entretanto, embora promissores, esses achados ainda carecem de maior evidência.63 O uso de corticosteroide por VO ou EV tem efeito clínico equivalente. Os pacientes com alta clínica do serviço de emergência devem ser dispensados com prescrição de corti‑ coterapia oral por 5 a 10 dias (prednisona/prednisolona: 1 a 2 mg/kg/dia, máximo de 60 mg/dia);1,2 uma única dose de de‑ xametasona oral (0,3 mg/kg, máximo de 12 mg) tem sido alvo de estudos.64 Na asma aguda grave e para pacientes com impossibilida‑ de de ingesta por VO (vômitos, diminuição de trânsito intesti‑
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nal), a via EV deve ser a rota preferencial (hidrocortisona 5 mg/kg a cada 6 horas ou metilprednisolona 1 mg/kg a cada 6 horas).23,24,65 Passo 4 – Definição da permanência em sala de observação Até esse momento, o médico envolvido na assistência terá que determinar seu juízo específico com relação à necessidade de permanência do paciente na sala de observação. Caso tenha evoluído favoravelmente às nebulizações intermitentes fre‑ quentes, com drogas beta-2-agonistas associadas a anticolinér‑ gico (brometo de ipratrópio), o paciente preenche os critérios para ser dispensado do serviço de emergência e ter acompa‑ nhada a evolução do seu quadro em nível ambulatorial. Aque‑ les que, pela avaliação do pacote clínico, mantiverem anormali‑ dades do seu status respiratório permanecerão com tratamento em regime de observação no serviço de emergência. Passo 5 – Admissão em sala de observação O processo de admissão no serviço de emergência para obser‑ vação contempla a valorização do pacote clínico (FR, FC, uso da musculatura acessória, cianose, nível de consciência, SatO2, pulso paradoxal) e um checklist de toda a terapêutica adminis‑ trada. A necessidade de avaliação diagnóstica complementar é sempre considerada nessa etapa da assistência. Passo 6 – Revisão da estratégia de tratamento Nesta etapa da terapêutica, a equipe deve se familiarizar com o caso, já preparando abordagens terapêuticas futuras, no caso de uma resposta clínica pouco efetiva com a manutenção da terapia inalatória com droga beta-2-agonista. Respostas parciais podem levar a espaçar a terapia inalatória para inter‑ valos maiores (geralmente a cada 1 ou 2 horas). Ausência de resposta na 1ª hora de observação obrigatoriamente sinaliza a necessidade de uma nova etapa de tratamento. Passo 7 – Sulfato de magnésio Droga com efeito broncodilatador reconhecido há várias déca‑ das e mecanismo de ação associado a um relaxamento da musculatura lisa, secundário a um bloqueio nos canais de cál‑ cio da célula. Nem todos os pacientes se beneficiam dessa te‑ rapêutica. Crises mais graves, com avaliação funcional < 50% do previsto e que venham a exibir uma resposta broncodilata‑ dora mais pobre à terapêutica inicial com drogas beta-2-ago‑ nistas são os melhores candidatos.1,2,12,23,24,66 Mais recentemente, outras estratégias têm apontado que a administração precoce da terapêutica (1ª hora de tratamento) pode diminuir a evolução para insuficiência respiratória e a necessidade de suporte ventilatório.67 Outro potencial benefício farmacológico de emprego do sulfato de magnésio está atrelado a um efeito estabilizador na musculatura cardíaca, o qual poderia atenuar a taquicardia re‑ sultante do emprego de drogas beta-2-agonistas (inalatórias ou EV).68 Um estudo multicêntrico, randomizado e controlado por placebo denominado MAGNETIC trial (MAGNEsium Trial in
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Children) selecionou crianças com idades entre 2 e 15 anos, portadoras de asma aguda grave, para receber por nebulização magnésio (n = 252) ou solução salina (n = 256). Após 3 doses de solução de magnésio administrada por via inalatória, em intervalos de 20 minutos, o grupo de tratamento tinha escores de gravidade favoráveis (estatisticamente significativos) em comparação à solução salina. No mesmo estudo, uma análise de subgrupo demonstrou resposta significativa nos pacientes mais graves (Sat O2 < 92% e duração da crise < 6 horas), corro‑ borando achados já relatados.69 O sulfato de magnésio pode ser utilizado de maneira con‑ junta a outras drogas, sem aumento de efeitos colaterais. As doses recomendadas são 25 a 100 mg/kg, EV, em 20 minutos (dose máxima de 2 g). O efeito clínico é observado dentro de 1 a 2 horas pós-infusão.2,68,70 A administração por via inalatória também tem se mostra‑ do efetiva, como terapia adjuvante nos quadros mais gra‑ ves.71,72 Pode ser considerada uma terapêutica segura, exceto nos pacientes portadores de insuficiência renal. Seus principais efeitos adversos são rubor cutâneo e náuseas, geralmente du‑ rante a infusão. Fraqueza, arreflexia e depressão respiratória podem potencialmente ocorrer, mas com níveis séricos muito elevados (> 12 mg/dL).73-75 Apesar disso, não é terapêutica universalmente empregada nos protocolos terapêuticos de asma aguda. Na Inglaterra, mais de 90% dos serviços de emergência utilizam a medica‑ ção, enquanto no Canadá, as taxas de prescrição são muito mais baixas (menos de 15% das crianças hospitalizadas).74,76 Entretanto, mesmo na Inglaterra, considerando-se recente es‑ tudo de grupo colaborativo (Paediatric Emergency Research in the UK and Ireland – PERUKI – network) direcionado para avaliar a utilização global da rota EV no manejo de asma aguda em serviços de emergência pediátricos, observa-se que conta‑ biliza cerca de 3% dos casos assistidos. Nessa situação, consi‑ derando um esquema de administração sequencial, o magné‑ sio tem sido a primeira droga a ser escolhida.76
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latadora, possui potenciais benefícios teóricos para utilização em quadros de asma grave (efeito inotrópico sobre a muscula‑ tura respiratória bem como atividade anti-inflamatória). Em‑ bora tenha sido muito utilizada em antigos protocolos tera‑ pêuticos de asma aguda, hoje a utilização da aminofilina tem sido restrita como terapêutica broncodilatadora adjuvante a quadros graves e selecionados, ainda assim com resultados controversos. Não deve ser administrada em quadros leves e moderados.77-80 Sua janela entre efeito terapêutico e toxicidade é muito próxima. Uma vez prescrita, a monitoração dos seus níveis plasmáticos é mandatória. Uma ação broncodilatadora tem sido observada dentro do intervalo de níveis séricos de 5 a 15 mcg/mL, embora seu efeito broncodilatador máximo situe-se entre 10 e 15 mcg/mL.81 As doses recomendadas de aminofilina EV são:23,24 • ataque: 6 mg/kg; • manutenção (menos de 10 kg): 0,65 mg/kg/hora; • manutenção (mais de 10 kg): 0,9/mg/kg/hora. Quanto à superioridade clínica frente aos beta-2-agonistas ad‑ ministrados por via EV, a literatura não consegue fornecer evi‑ dências capazes de estabelecer tal juízo crítico. Algumas pe‑ quenas diferenças são apontadas no quesito custo (favorável à aminofilina) e em uma menor ocorrência de náuseas e vômi‑ tos (favorável aos beta-adrenérgicos).82-84
Passo 9 – Beta-2-agonista endovenoso É a alternativa farmacológica final na tentativa de evitar evolu‑ ção para insuficiência respiratória e necessidade de suporte ventilatório. Tem sido um recurso farmacológico mais empre‑ gado na terapêutica de pacientes pediátricos, portadores de quadros graves, do que em populações adultas.20,23,85 As doses recomendadas de salbutamol são: • ataque: 10 a 15 mcg/kg (em 10 a 15 minutos); • infusão inicial 0,5 mcg/kg/min, com aumentos nas taxas de infusão a cada 20 minutos; • dose máxima: controversa (5 a 15 mcg/kg/min). Parece ser Passo 8 – Aminofilina mais dependente da resposta clínica obtida e/ou do apareci‑ Nesta etapa do tratamento, a via parenteral passa a ser mais mento de efeitos colaterais indesejáveis do que de taxas fixas importante. O pacote clínico de avaliação é continuamente va‑ de infusão. lorizado, a fim de indicar estratégias futuras. Pela gravidade da situação, a utilização de hidrocortisona ou metilprednisolona Propostas alternativas têm preconizado uma administração em substituição a prednisona ou prednisolona deve ser reali‑ mais precoce da droga, ainda no serviço de emergência. Nessa zada. As drogas beta-2-agonistas devem ser mantidas, via ne‑ situação, uma infusão em bolo (15 mcg/kg durante 10 a 15 mi‑ bulímetros, de maneira intermitente frequente (no máximo a nutos) deve ser administrada de maneira conjunta à terapêu‑ cada hora, para aqueles pacientes com resposta pouco favorá‑ tica convencional inalatória, uma vez que seja detectada falha vel, indicada pela avaliação clínica). A transferência para UTI, na resposta clínica desejável com as nebulizações intermiten‑ para que se possam estabelecer uma monitoração clínica mais tes frequentes ou contínuas inicialmente administradas.86-88 rigorosa e um aporte farmacológico mais agressivo, pode ser Efeitos colaterais incluem tremores, taquicardia e hipopo‑ considerada. tassemia (mais marcada que na terapia inalatória em altas do‑ Apesar de controversa, neste cenário de evolução, a amino‑ ses). Seu uso indica a necessidade de aporte suplementar de K+ filina EV é opção terapêutica a ser considerada. Seu mecanis‑ por via EV e monitoração de seus níveis séricos 2 vezes/dia.89 mo de ação na asma aguda permanece incerto, com pouco be‑ Apesar do uso, principalmente na população pediátrica, nefício no manejo inicial de crises agudas em pronto-socorro não há, na literatura, evidências robustas que fundamentem na população pediátrica. Em adição à sua atividade broncodi‑ sua utilização de maneira rotineira na terapêutica da asma.89
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Passo 10 – Admissão em UTI A necessidade de internação em UTI, seja diretamente do pronto-socorro ou da unidade de internação hospitalar, carac‑ teriza um insucesso terapêutico em reverter o processo obstru‑ tivo e impedir a evolução para uma falência respiratória imi‑ nente. Indica a necessidade de um manejo terapêutico ainda mais agressivo. Nesse contexto, situam-se os pacientes porta‑ dores de estado de mal asmático ou crise asmática quase fatal. Não existem critérios absolutos para admissão em UTI, en‑ tretanto, devem-se valorizar:1,2,19,22,23 • história prévia de crise asmática quase fatal ou necessidade de suporte ventilatório; • incapacidade de falar frases; • sonolência; • murmúrio pulmonar inaudível; • necessidade de oxigênio para manter SatO2 > 95%; • PaCO2 > 40 mmHg ou acidose; • níveis elevados de lactato sérico. Assim como na emergência ou unidades de internação, as me‑ didas gerais de tratamento devem ser seguidas ainda com mais rigor. O aporte hídrico e de eletrólitos deve ser ajustado às neces‑ sidades basais, podendo merecer ajustes nos casos de desidra‑ tação ou SIHAD (mais frequente nos casos de maior gravida‑ de). Controles laboratoriais (gasometria arterial e eletrólitos) são obrigatórios e podem ser de auxílio na avaliação do trata‑ mento e/ou na progressão da insuficiência respiratória e na identificação precoce de distúrbios hidreletrolíticos associa‑ dos à terapêutica (principalmente hipopotassemia). Distensão abdominal com prejuízo da mecânica pulmonar e/ou vômitos frequentes podem ser melhorados com a utilização de sonda‑ gem nasogástrica. A monitoração eletrônica contínua e não in‑ vasiva de sinais vitais (FC, FR, SatO2 e TA) é obrigatória.1,2,19,22,23 É importante considerar que, dentro do tratamento da asma aguda, não devem existir limites físicos atrelados à terapêutica. Medidas de monitoração clínica e/ou de exames complemen‑ tares, bem como a administração de medicações e até mesmo de suporte ventilatório, devem sempre ser determinadas pela necessidade do paciente. Todo serviço de emergência deve ser estruturado para que seja capaz de fornecer um tratamento continuado à crise, contabilizando a possibilidade de vários passos assistenciais, até mesmo a necessidade de suporte ven‑ tilatório, ainda que de maneira transitória. Atrasos na instala‑ ção de novas medidas terapêuticas, ajustadas às necessidades dos pacientes, prejudicam o tratamento. Sendo assim, essas diferenças assistenciais (emergência versus UTI) devem ser minimizadas pela consciência de fornecimento de um cuidado intensivo, independentemente de onde ele venha a ocorrer. Passo 11 – Suporte ventilatório Ventilação mecânica não invasiva (VMNI) A VMNI é um método de suporte ventilatório que dispensa a obtenção de via aérea artificial no manejo da insuficiência res‑ piratória. Entre suas vantagens, destacam-se instalação rápi‑ da, menor sedação, evitar lesão da via aérea, redução do traba‑
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lho respiratório e prevenção do uso de ventilação mecânica. Por outro lado, não é bem tolerada por alguns pacientes, exi‑ gindo profissionais com experiência no seu uso e maior aten‑ ção por parte da equipe. A exemplo dos respiradores invasivos, os aparelhos de VMNI liberam, durante a inspiração, uma mistura gasosa com concentração de oxigênio, pressão inspiratória e frequência pré-definida pelo operador. Eles permitem também ventila‑ ções assisto-controladas disparadas por um gatilho acionado pelo próprio paciente, funcionando de modo semelhante aos modos ventilatórios de pressão de suporte (PSV) e a ventila‑ ção mandatória intermitente sincronizada (SIMV). Durante a fase expiratória, é mantida uma pressão residual positiva (EPAP) com a finalidade de evitar o colapso dos alvéolos e de pequenas vias aéreas.90-92 A base para o bom funcionamento da VMNI relaciona-se à interface entre o respirador e o paciente. Na grande maioria das vezes, a interface é uma máscara nasal ou oral-nasal, que deve ser muito bem ajustada à face (evitando escapes de ar). Inicialmente, devem-se programar parâmetros mais fisiológi‑ cos (pressões expiratórias de 4 a 5 cmH2O e inspiratórias de 8 a 10 cmH2O), devendo ser ajustados de acordo com a tolerân‑ cia do paciente e sua resposta clínica (FR e saturação de oxigê‑ nio transcutânea). De uma forma geral, é ofertado também oxigênio suplementar, para se alcançar uma saturação perifé‑ rica de O2 próxima a 95%. A boa resposta a VMNI é observada em 40 a 60 minutos pela redução das frequências cardíaca e respiratória e da dispneia. Vários estudos pediátricos têm demonstrado que os pa‑ cientes mais propensos a apresentar boa resposta com VMNI em asma aguda grave são aqueles que utilizam uma fração de oxigênio inspirada < 60%, pressões inspiratórias < 15 cmH2O e pressões expiratórias < 8 cmH2O.93,94 O uso de VMNI na asma não parece impactar a terapia far‑ macológica convencional, mas a utilização combinada de am‑ bos parece reduzir o risco de entubação, assim como o tempo de internação na UTI pediátrica. São contraindicações para o uso de VMNI: instabilidade hemodinâmica, alterações do sensório (coma ou hiperexcita‑ ção), apneias e malformações craniofaciais. A VMNI age sinergicamente com as medicações broncodi‑ latadoras. Assim, é frequente que alguns pacientes apresen‑ tem melhora rápida (6 a 12 horas) permitindo o desmame rá‑ pido da VMNI (redução das pressões inspiratórias e expiratórias, da frequência e FiO2). Entretanto, em pacientes com histórico prévio de múltiplas internações por asma grave ou com patologias associadas (doença neuromuscular, mal‑ formações, entre outras), a retirada da VMNI pode ser feita de forma mais gradual ou manter a VMNI intermitente (períodos de 2 a 3 horas) em cada turno, até a estabilização completa do quadro.90,91,94-96 Ventilação mecânica invasiva (VMI) A piora progressiva do quadro respiratório, associada ou não a sinais de fadiga, alterações do sensório ou, ainda, comprome‑ timento hemodinâmico associado, é mais importante para a
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indicação de ventilação mecânica do que valores gasométricos ção dinâmica em função da intensidade da obstrução da via arbitrários baseados na acidose respiratória. Frequentemente, aérea, do volume corrente e do tempo expiratório. Portanto, a a hipercarbia pode ser manejada com medidas terapêuticas instituição de um regime ventilatório visando a manter um mais conservadoras. volume minuto normal (ou elevado), baseado em FR alta e/ Nos pacientes com asma aguda admitidos em UTI, a taxa ou tempo expiratório curto, pode levar à hiperinsuflação di‑ de entubação tem oscilado entre 7 e 33%, com uma mortali‑ fusa, hipotensão e barotrauma.100-102 dade de 0 a 8%. As complicações referidas podem ser minimizadas utili‑ Recente estudo retrospectivo, que incluiu pacientes pediá‑ zando longos tempos inspiratórios e expiratórios, altos fluxos tricos (< 21 anos) admitidos com diagnóstico de status asmati- inspiratórios, volumes correntes adequados e FR baixa. Esse cus em hospitais de todo território norte-americano ao longo regime tem sido definido como hipoventilação controlada (hi‑ de 2 anos (2009-2010), identificou mais de 250.000 interna‑ percapnia permissiva) e apresenta as seguintes vantagens: ções atreladas ao evento. Destas, cerca de 0,55% evoluíram • tempo expiratório longo: permite o adequado esvaziamento para suporte ventilatório mecânico invasivo (0,37% < 96 ho‑ alveolar; ras e 0,18% ≥ 96 horas de duração). Dos pacientes que evoluí‑ • frequência respiratória baixa: permite o esvaziamento alveo‑ ram para óbito (n = 65), 55 estavam em ventilação mecânica. lar, diminui o alçaponamento de ar e o auto-PEEP; Essa taxa de óbito intra-hospitalar (4%) para pacientes sob su‑ • limite nas pressões inspiratórias ou no volume corrente: a porte ventilatório em status asmaticus é superior à taxa de óbi‑ oferta de volume corrente excessivo definido diretamente ou to intra-hospitalar global (0,03%) encontrado no período.97 pela PIP alta aumenta demais o volume alveolar, reduzindo o O acesso à via aérea deve ser uma manobra rápida, visando retorno venoso e prejudicando a relação ventilação perfusão. a evitar episódios de hipoxemia. A opção tem sido induzir a sedação com benzodiazepínico (diazepam ou midazolam 0,5 Por outro lado, uma pressão inspiratória insuficiente (ou volu‑ mg/kg) ao se iniciar a ventilação com máscara (oxigênio a me corrente muito pequeno) pode ocasionar o “desrecruta‑ 100% em bolsa autoinflável). Em seguida, é feita a indução da mento alveolar” (colapsos progressivos) e reduzir, ainda mais, anestesia com quetamina (2 a 4 mg/kg) ou tiopental (2 a 5 as áreas de trocas gasosas. A aplicação de PEEP não consegue mg/kg) ou fentanil (5 a 10 mcg/kg). Imediatamente, infunde‑ impedir esses colapsos progressivos.100-102 -se um relaxante muscular de ação rápida [vecurônio (0,1 mg/ Via de regra, nessa etapa inicial, é importante que o paciente kg) ou succinilcolina (1 a 2 mg/kg), que pode ser antecedida encontre-se plenamente sedado. Entre as inúmeras propostas de pancurônio na dose defasciculante (0,01 mg/kg)]. Após a existentes para sedação do paciente asmático em ventilação, a entubação traqueal, ainda durante a ventilação com bolsa au‑ opção tem sido iniciar com benzodiazepínicos (em bolo a cada toinflável, pode ser necessário o uso de agentes curarizantes 4 horas ou infusão contínua com midazolam 0,2 a 0,4 mg/kg/ com efeito mais prolongado (pancurônio 0,1 mg/kg) para ven‑ hora), associado ao fentanil (2 a 5 mcg/kg/min) e, em alguns cer a alta resistência e a baixa complacência, de modo a obter pacientes, a hidrato de cloral (por sonda gástrica, 40 mg/kg/ uma boa expansão torácica. dose a cada 4 horas), com boa resposta em prevenir o assincro‑ A ventilação mecânica na asma tem por objetivo: nismo respiratório. Algumas vezes, para que se obtenha seda‑ • tratar a hipoxemia e evitar a hipóxia; ção plena, podem-se utilizar agentes curarizantes, conforme • reverter a fadiga respiratória; necessidades individuais.1,7,85 O uso de anestésicos como a que‑ • oferecer um regime ventilatório seguro enquanto se aguarda tamina é uma excelente opção para os casos graves, por promo‑ pela broncodilatação (ação das drogas broncodilatadoras e ver broncodilatação associada (doses de 20 a 40 mcg/kg/min). anti-inflamatórias). Quando for utilizada, é importante que se mantenha uma asso‑ ciação com benzodiazepínicos, visando a diminuir o apareci‑ Portanto, é uma terapêutica paliativa e transitória, tendo seu mento dos efeitos colaterais relacionados à sua utilização.103-105 tempo relacionado à reversão do quadro (broncoespasmo e/ Como referido anteriormente, o principal objetivo da venti‑ ou fadiga).96-100 lação mecânica é manter uma adequada oxigenação, e não Basicamente, na asma aguda grave, há aumento da resistên‑ normalizar a pCO2 arterial. Portanto, mesmo tendo uma cia nas vias aéreas inferiores, prolongada constante de tempo PaCO2 elevada, não se devem utilizar pressões excessivamen‑ alveolar (inspiratória e expiratória), alçaponamento de ar con‑ te elevadas, pelos riscos de barotrauma e volutrauma, ou au‑ sequente ao esvaziamento alveolar insuficiente (auto-PEEP) e mentar a FR, que pode levar ao alçaponamento de ar. Devem‑ reduzido volume corrente (inspiratório e expiratório).98-100 -se tolerar níveis elevados de PaCO2, mesmo que o pH arterial A definição dos parâmetros ventilatórios deve respeitar li‑ se mantenha ao redor de 7,0, em pacientes com oxigenação mitações fisiopatológicas, evitando, assim, os efeitos cardio‑ adequada e estabilidade hemodinâmica. A diminuição nos ní‑ vasculares adversos (redução do retorno venoso e do débito veis de PaCO2 para níveis fisiológicos ocorre gradualmente, à cardíaco) e o barotrauma. medida que se promove a broncodilatação.100-102 A gravidade do processo obstrutivo promove esvaziamen‑ Na asma aguda grave, a ventilação mecânica funciona to incompleto das unidades alveolares durante a expiração, como terapêutica de suporte, devendo os pacientes ser manti‑ denominado também de hiperinsuflação dinâmica (auto‑ dos sob infusão contínua de beta-adrenérgicos durante todo o -PEEP). A ventilação mecânica pode agravar a hiperinsufla‑ período, os quais somente serão suspensos após a extubação,
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passando por um período de transição, atrelado a melhora sustentada com a reinstituição da terapia inalatória. Outras terapêuticas Várias outras modalidades terapêuticas têm sido descritas como alternativas a ser testadas nos pacientes portadores de asma aguda grave. Algumas com referida atividade broncodi‑ latadora (óxido nítrico),106 outras com atividade anti-inflama‑ tória identificada (moduladores de leucotrienos por via EV, re‑ posição de surfactante exógeno)107 e outras como facilitadores da mecânica pulmonar (misturas gasosas de hélio-oxigê‑ nio).108-111 Entretanto, nenhuma dessas drogas encontra, até o momento, fundamentação científica que consolide sua evi‑ dência para uso como rotina no tratamento de pacientes por‑ tadores desses quadros de síndrome da asma crítica. Plano de alta Não existem parâmetros claros que indiquem a necessidade de suspensão de um cuidado intensivo. A alta da emergência ou da unidade de internação hospitalar depende do intervalo em que as drogas broncodilatadoras são administradas (idealmente a cada 3 ou 4 horas), de testes funcionais, quan‑ do possível (> 75% do predito), e da saturação de oxigênio > 94% em ar ambiente.38 A alta da UTI obrigatoriamente pressupõe estágio na unida‑ de de internação hospitalar. Constitui-se, na maioria das vezes, em um estágio preparatório para a alta hospitalar definitiva, dentro dos critérios já referidos. Nessa situação, a equipe tra‑ balha para que, com a estabilização do processo obstrutivo, seja possível reduzir e suspender a oxigenoterapia, aumentar o intervalo e, portanto, diminuir a quantidade de drogas bronco‑ dilatadoras utilizadas, restabelecer uma dieta plena e suspen‑ der acessos e infusões EV. Caracteriza-se por ser uma etapa de transição, em que a equipe, ao manter uma monitoração em ambiente hospitalar, pode conduzir com segurança a redução e os ajustes nas medicações utilizadas. Essa monitoração (seja clínica, laboratorial ou funcional) é tão importante no pronto‑ -socorro quanto na UTI, pois, além de avaliar a melhora, pode indicar insucesso terapêutico e necessidade de reintervenções. Independentemente de onde ocorra a alta hospitalar, é pre‑ ciso deixar claro para os pais que o intercurso de uma crise pode traduzir a necessidade ou a falha de medidas preventivas adotadas. Sendo assim, é importante reforçar, no momento da alta hospitalar:1,2,38 • revisão da técnica inalatória; • necessidade de tratamento preventivo; • fornecimento de um plano escrito de crise (pelo menos até re‑ visão ambulatorial em que as medicações prescritas possam ser reajustadas); • garantia de revisão ambulatorial (pediatra ou pneumologista, dependendo da gravidade da crise). Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer um paciente em crise de asma e avaliar a gravidade. • Reconhecer a patogênese dessa entidade clínica.
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Iniciar o tratamento adequado verificando as doses das medicações conforme o peso e a idade da criança. • Avaliar se o paciente melhorou com a conduta inicial e se deve ter alta, ser internado na enfermaria ou na UTI. • Fazer a prescrição adequada para cada situação conforme a decisão.
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Asma Aguda Grave •
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CAPÍTULO 6
SÍNDROME DO DESCONFORTO RESPIRATÓRIO AGUDO Werther Brunow de Carvalho
Introdução Nos últimos anos, avanços importantes têm ocorrido na oti‑ mização de suporte ventilatório, entretanto, o desenvolvi‑ mento de um tratamento farmacológico específico para a sín‑ drome do desconforto respiratório agudo (SDRA) continua sendo um grande desafio.1,2 A possibilidade de sobrevida é de‑ terminada pela gravidade da lesão pulmonar, pela extensão da disfunção de órgãos não pulmonares, pelas condições médi‑ cas preexistentes e pela qualidade do suporte multiorgânico. Nova definição de Berlim Recentemente, em 2012, a definição da SDRA foi revista pela European Society of Intensive Care Medicine, American Thoracic Society e Society of Critical Care Medicine, objetivando uma nova ferramenta que pudesse excluir as limitações da defini‑ ção de 1994, da American-European Consensus Conference.
Essa nova definição criou um critério de agudização do iní‑ cio da doença, reclassificou os critérios de oxigenação, incluiu valores de pressão expiratória final positiva (PEEP) mínima, redefiniu critérios de exclusão baseados na presença de edema hidrostático e reformulou os critérios radiológicos (Tabela 1). Ressalta-se que, para a definição de hipoxemia, indica-se adotar o índice de oxigenação (IO = pressão média de vias aé‑ reas (PMVA) × fração inspirada de oxigênio (FiO2)/PaO2) pre‑ ferencialmente a utilização da relação PaO2/FiO2. Quando não houver possibilidade de se obter a PaO2, pode-se utilizar o ín‑ dice de saturação da oxigenação (ISO = PMVA × FiO2/SatO2), de acordo com a Tabela 2. O Consenso de Berlim, utilizando os novos limiares da rela‑ ção PaO2/FiO2, categorizou diferentes níveis de gravidade da SDRA e utilizou essa divisão para o manejo terapêutico rela‑ cionado à gravidade da lesão (Figura 1).
Tabela 1 Definição de Berlim de SDRA3-5 Tempo
Dentro de 1 semana de uma agressão clínica conhecida ou piora dos sintomas respiratórios
Imagem de radiografia ou tomografia de tórax
Opacidades bilaterais: não completamente explicadas por derrames, colapso lobar/pulmonar ou nódulos
Origem do edema
Não resultante de causas cardíacas ou sobrecarga de volume. Avaliação objetiva (p.ex., ecocardiografia) é necessária na ausência de fatores de risco para SDRA
Oxigenação
Leve
Moderada
Grave
PaO2/FiO2 PEEP ≥ 5 cmH2O
300 a 201 com PEEP/CPAP/ VNI
200 a 101 com PEEP
< 100 com PEEP
Mortalidade estimada Mortalidade São Paulo – Brasil
~ 25% 0%
~ 35% 14 a 15%
~ 45% 41%
Tabela 2 Quantificação da hipoxemia por IO e ISO para classificar o grau de gravidade da SDRA pediátrica em pacientes submetidos a ventilação pulmonar mecânica Leve
Moderada
Grave
IO
4 a ~8
8 a ~16
> 16
ISO
5 a 7,5
7,5 a 12,3
> 12,3
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Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo •
É de conhecimento na literatura a natureza heterogênea da SDRA decorrente de uma variedade de doenças associadas e também de alterações patológicas subjacentes, existindo ca‑ sos em que a apresentação clínica é idêntica, embora não haja um fator de risco identificado, sendo chamados de “pseudo‑ -SDRA”.7,8 A pesquisa recente de Gibelin et al.8 indica que a sín‑ drome de “pseudo-SDRA” sem um fator identificado está asso‑ ciada com uma taxa de mortalidade maior do que a SDRA “pura”. Os autores enfatizam a necessidade de sempre pesqui‑ sar a causa da falência respiratória, utilizando tomografia computadorizada (TC), lavado broncoalveolar e biópsia pul‑ monar em alguns casos. Incidência Estudos que utilizaram a definição da Conferência de Consen‑ so Americana e Europeia demonstraram uma prevalência de 0,86 a 7,8% das admissões em unidade de terapia intensiva (UTI) pediátrica9-15 e 5 a 20% dos pacientes submetidos à ven‑ tilação pulmonar mecânica (VPM).11,13,14,16-18 Recentemente, Schouten et al.19 publicaram uma revisão sistemática e meta‑ nálise sobre a incidência e a mortalidade na SDRA em crian‑ ças e concluíram que ela tem uma baixa incidência, mas uma mortalidade elevada. A pesquisa também indica que a inci‑ dência e a mortalidade não se alteraram nas últimas décadas e que a mortalidade depende da região geográfica (países desen‑ volvidos ou em desenvolvimento) em que a pesquisa foi reali‑ zada. A mortalidade elevada descrita na década de 1980 redu‑ ziu-se significativamente nas duas últimas décadas, modificação decorrente da provável mudança nas estratégias
1883
ventilatórias e da melhora dos cuidados intensivos nos pa‑ cientes graves. Duas pesquisas realizadas recentemente na ci‑ dade de São Paulo5,20 confirmaram que a mortalidade man‑ tém-se alta, mas a incidência é baixa. Panico et al.20 encontraram que as crianças com SDRA representam aproxi‑ madamente 5% de todas as crianças que necessitam de VPM e 3% das que necessitam de admissão na UTI pediátrica. Confir‑ mou-se que o número de disfunções orgânicas está associado com a mortalidade maior. Essa pesquisa analisa a pressão de condução e conclui que ela influencia na mortalidade em crianças com SDRA. Etiologia e fatores de risco A etiologia da SDRA é bastante diversa e pode ser grosseira‑ mente dividida em causas que ocasionam uma lesão pulmo‑ nar direta (p.ex., broncopneumonia) ou uma lesão pulmonar indireta (p.ex., trauma grave) (Tabela 3). Várias condições podem predispor o desenvolvimento da SDRA, e a presença de comorbidade pode ser preditiva em re‑ lação à evolução. A presença da disfunção de múltiplos órgãos é um preditor importante de óbito na SDRA, com relevância maior do que a hipoxemia refratária, pois esta é uma causa menos comum de óbito comparativamente à falência multior‑ gânica, que é a principal causa de óbito na SDRA. Patogênese De acordo com os achados e as colocações de Katzenstein et al.,21 o dano alveolar difuso (DAD) é uma reação inespecífica do pulmão frente a vários agentes agressores. O denominador
OMEC Aumento da intensidade da intervenção
REC-CO2 VOAF Posição prona Ventilação não invasiva
Bloqueador neuromuscular PEEP maior
PEEP baixa - moderada Ventilação com volume corrente baixo Aumento da gravidade da lesão SDRA LEVE
300
250
SDRA GRAVE
SDRA MODERADA
200
150
100
50
PaO2/FiO2
Figura 1 Opções terapêuticas potenciais de acordo com a gravidade da SDRA. O manejo evidenciado nos quadros verde-escuros representa uma opinião do Consenso de Berlim, mas que necessita de confirmação em pesquisas clínicas prospectivas. Este é um modelo de figura com as informações disponíveis atualmente. Fonte: adaptada de Fergunson et al., 2012.23
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1884 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
Tabela 3 Etiologia da SDRA Lesão pulmonar direta
Lesão pulmonar indireta
Broncopneumonia
Sepse (causa mais frequente em pediatria)
Aspiração de conteúdo gástrico
Politraumatismo com choque
Contusão pulmonar
Pancreatite
Embolia gordurosa
Lesão aguda pulmonar associada com transfusão sanguínea
Lesão por inalação tóxica
Circulação extracorpórea
Acidentes de submersão Lesão de reperfusão
comum é a lesão endotelial e alveolar, que determina um ex‑ travasamento de fluidos e células, progredindo para uma fi‑ brose intersticial pulmonar. O dado patológico mais caracte‑ rístico da fase aguda do DAD é a presença de membrana hialina sobre a superfície interna dos alvéolos. Este é um as‑ pecto bastante discutido em relação à necessidade da presen‑ ça de membrana hialina para o diagnóstico de DAD. A última definição de SDRA de Berlim não incluiu o dado patológico re‑ lacionado ao DAD em razão da escassa correlação entre SDRA com os achados de DAD pós-óbito.6 Entretanto, muitos auto‑ res consideram o DAD como o achado histológico mais carac‑ terístico da SDRA.3,21-26 A relevância do DAD na SDRA se deve
a publicações recentes que demonstram as diferenças clínicas e evolutivas entre pacientes com SDRA e DAD em relação aos outros pacientes, incluindo a SDRA com pneumonia.27 Resumidamente, a patogênese da SDRA envolve três fases: exsudativa/inflamatória, proliferativa e fibrótica (Figura 2). A SDRA pode ser exacerbada pela utilização da VPM (Figu‑ ra 3) e infecção intra-hospitalar, ocasionando lesão pulmonar induzida pela VPM (LPIVPM) e pneumonia associada à VPM. Os tratamentos atuais para SDRA são de suporte e aplica‑ dos após a lesão pulmonar estar bem estabelecida.30,31 Existem vários mecanismos que podem ter efeito protetor em relação à patogênese da SDRA (Figura 4). Na SDRA secundária, o trauma, o choque hemorrágico ou a sepse podem desencadear uma síndrome de resposta inflama‑ tória sistêmica (SRIS) e ocasionar um aumento da permeabili‑ dade capilar que resulta em desativação do surfactante e, jun‑ to com o preenchimento alveolar, altera a mecânica alveolar, podendo ocasionar o colapso e a expansão repetitivos do al‑ véolo (RACE). A lesão tecidual pulmonar ocasionada pelo RACE pode ser exacerbada pelo desenvolvimento de concen‑ trações que geram estresse entre os alvéolos preenchidos de ar e alvéolos que são colapsados32 ou preenchidos de edema.33 Desse modo, a ventilação heterogênea pode criar concentra‑ dores de estresse que também podem causar tensão excessiva nas paredes alveolares e, em combinação com o RACE, deter‑ minar uma lesão pulmonar progressiva.34,35
Figura 2 Patogênese da SDRA. Fonte: adaptada de Howell et al., 2009.28
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SÍNDROME DO DESCONFORTO RESPIRATóRIO AGUDO •
1885
Figura 3 Sequência de eventos para o desenvolvimento da SDRA a partir da lesão inicial. Fonte: adaptada de Nieman et al., 2015.29
Inspiração Aumento da permeabilidade
Desativação do surfactante
Edema alveolar
Expiração
Colapso e expansão repetitivos do alvéolo
Figura 4 Tétrade patológica da lesão pulmonar aguda tendo como ápice a SDRA. Fonte: adaptada de Nieman et al., 2015.29
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1886 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
Ocorrem como fenômenos centrais na SDRA a desregula‑ ção da inflamação, a atividade e o acúmulo inadequados de leucócitos e plaquetas, a ativação descontrolada das vias de coagulação e a alteração da permeabilidade das barreiras epi‑ teliais e endoteliais do alvéolo. Os estados patológicos na SDRA consistem em três está‑ gios que apresentam uma superposição temporária e/ou es‑ pacial (Figura 5). Princípios da mecânica do sistema respiratório A pressão elástica (Pelast) do sistema respiratório possui dois componentes: a pressão necessária para distender o pulmão e a requerida para distender a parede torácica. A elastância (1/ complacência) = pressão aplicada (Pelast dividida pelo VC for‑ necido) da parede torácica (EPT) e do pulmão (EP) funcionam mecanicamente em série, e a sua somatória é igual à elastân‑ cia do sistema respiratório (ESR) como um todo. Na prática, a pressão gerada pelo aparelho de VPM (PVPM) é medida no cir‑ cuito do aparelho e é considerada a “pressão de condução”, e a PVPM é habitualmente utilizada para avaliar a possibilidade de LPIVPM. A PVPM tem como referência a pressão ambiente e, portanto, reflete o gradiente de pressão por meio do sistema respiratório como um todo (pelo pulmão e pela parede toráci‑ ca). A pressão transpulmonar (PTP) é a pressão pelo pulmão e
a variável que define o grau de distensão pulmonar e a possibi‑ lidade de LPIVPM. A elastância (dureza) relativa do pulmão e da parede torá‑ cica define em que proporção a pressão de via aérea é utiliza‑ da para distender a parede torácica e qual é a proporção utili‑ zada para distender os pulmões (Figura 6). Exemplificando, se a EPT é 2 vezes maior do que a pulmonar, então 2/3 da pressão da via aérea são utilizados para disten‑ der a parede torácica, e 1/3, para distender os pulmões. A circulação pulmonar está envolvida em diferentes está‑ gios da SDRA, de acordo com a progressão da síndrome clí‑ nica. A lesão da microvasculatura pulmonar ocasiona um au‑ mento da permeabilidade vascular, determinando o edema pulmonar. Podem se desenvolver microtrombos intravasculares em virtude do desbalanço entre as atividades pró-coagulante e fi‑ brinolítica. A diminuição acentuada na capacidade residual funcional (CRF) pode aumentar a resistência vascular pulmonar (RVP). A utilização de ventilação com pressão positiva pode indu‑ zir volumes pulmonares elevados em algumas regiões, deter‑ minando a compressão dos vasos alveolares e, consequente‑ mente, aumentando a RVP, resultando em uma CRF regional maior, a qual também aumenta a RVP.
Fase exsudativa
1,0
Fase proliferativa Membrana hialina
Edema
Inflamação intersticial
Fração do máximo
Fibrose intersticial
0,5
1
2
3
4
5
6
7
10
12
14
16
Tempo após a lesão (dias)
Figura 5 Evolução temporal da lesão pulmonar aguda. Na fase precoce, o alvéolo está preenchido com um fluido rico em proteína. Ao redor do 5º ao 7º dia, existe a proliferação das células epiteliais do tipo II, determinando reepitelização e restauração da estrutura alveolar ou fibrose progressiva e falência respiratória hipóxica irreversível Fonte: adaptada de Katzenstein et al., 1976.21
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SÍNDROME DO DESCONFORTO RESPIRATóRIO AGUDO •
A vasoconstrição pulmonar hipóxica pode aumentar a RVP. Todos esses mecanismos podem contribuir com a alteração da RVP que pode ocorrer dentro de 48 horas após o início da SDRA, como demonstrado recentemente.37,38 Todos esses me‑ canismos estão resumidos na Figura 7. Uma elevação na RVP tem sido relacionada como um pre‑ ditor prognóstico ruim na SDRA. Na presença de um aumento agudo da pós‑carga de VD, em razão do aumento da RVP, exis‑ te a tentativa de compensação ventricular por aumento no vo‑ lume sistólico e diastólico final. Caso o aumento da pós‑carga
seja substancial, altera‑se a função sistólica de VD com altera‑ ção da cinética do septo interventricular resultando em dimi‑ nuição do débito cardíaco e em cor pulmonale agudo com fa‑ lência de VD e choque. Tratamento O tratamento da SDRA inclui: tratamento da condição de risco subjacente, tratamento da lesão pulmonar e tratamento de su‑ porte da criança grave. O tratamento da maioria das doenças subjacentes é de suporte. Uma exceção é a sepse, cujo trata‑
Parede torácica “mole”
Parede torácica “dura”
Pulmão “mole”
Pulmão “duro” EPT
EP
EP
15
5
A
1887
EPT
cmH2O /mL
15
B
ESR
15
ESR
Figura 6 Elastância do sistema respiratório é igual à soma de seus componentes.
ESR: elastância dos pulmões (EP) + elastância da parece torácica (EPT). A mesma ESR pode aumentar por um aumento da EP e diminuição da EPT (A) ou por uma EP e EPT idênticas (B). Fonte: adaptada de Gattinoni et al., 2004.36
Cor pulmonale agudo
Pulmão com SDRA 1
AP
2 Alvéolo VE
3
AD VD
6
VE
1
4
5
6
CRF VE
4
5
Resistência vascular pulmonar elevada 1 2
Microtombo Hipoxemia
Hipercapnia 4 Edema 3
CRF
Hipertensão pulmonar
5 Hiperdistensão (aumento da CRF regional) 6 Perda de volume pulmonar (diminuição da CRF regional)
Figura 7 Vários mecanismos que contribuem para um aumento na resistência vascular pulmonar e na hipertensão pulmonar que pode ocorrer na presença de SDRA moderada para grave. Fonte: adaptada de Guérin et al., 2016.39
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mento com antibióticos e do foco primário da infecção, incluin‑ do a possibilidade de drenagem de abscessos, é fundamental. O tratamento inicia-se a partir do momento do diagnóstico ou preventivamente, quando existem fatores de risco. Ventilação protetora pulmonar A utilização de ventilação mecânica não invasiva (VNI) tem demonstrado ser efetiva em relação à melhora da sobrevida em certas formas de falência respiratória aguda, como nas agudizações da doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). Entretanto, não está bem estabelecido seu benefício nos pa‑ cientes com falência respiratória aguda hipoxêmica. Portanto, as evidências atuais não suportam a aplicação de rotina da VNI para as crianças com SDRA. Pode-se realizar uma tentati‑ va de utilização transitória da VNI como tratamento de pri‑ meira linha, mas esse suporte só deve ser utilizado em centros com uma experiência comprovada e que possuam protocolos de suporte ventilatório não invasivo. A ventilação protetora pulmonar é o elemento mais importante no manejo dos pa‑ cientes com SDRA, após o controle da causa subjacente. A maioria das pesquisas clínicas multicêntricas utiliza a es‑ tratégia de VPM com volume controlado (VVC), mas uma grande maioria dos centros de terapia intensiva utiliza a venti‑ lação com pressão controlada (VPC), assim como ventilação com relação inversa ou ventilação com volume controlado e pressão regulada.40,41 Sabe-se hoje que pressões de conduções menores (DP) estão associadas com melhor evolução na SDRA em adultos42 e em pediatria.20 É pouco provável que existam diferenças relacionadas à evolução nos pacientes quando ventilados em VVC ou VPC, sendo essencial que o in‑ tensivista pediátrico entenda que a estratégia de VPM com menor distensão envolve limitações de volume e pressão. Os modos limitados a volume têm um risco de pressão de platô em excesso; os modos limitados a pressão têm o risco de volu‑ me corrente em excesso. A preocupação deve ser maior com
os parâmetros selecionados, visto que a não utilização de vo‑ lumes correntes padrões ainda é muito elevada. Vários estudos clínicos têm demonstrado benefício da utili‑ zação de volumes correntes baixos, e a ARDS Network de‑ monstrou uma redução absoluta no risco de óbito de aproxi‑ madamente 9% nos pacientes que receberam volume corrente baixo (6 mL/kg para o peso corpóreo predito) e uma pressão de platô ≤ 30 cmH2O. Pacientes com SDRA recebendo volumes correntes tão bai‑ xos como 7 mL/kg de peso corpóreo demonstram evidência de hiperdistensão na curva pressão-volume. Quando os pul‑ mões estão próximos da parte de insuflação máxima da curva, ela se torna achatada, sugerindo o fim do recrutamento pul‑ monar; e, a partir daí, surge a hiperdistensão alveolar (2º pon‑ to de inflexão – superior) (Figura 8). A uma determinada pressão de insuflação, o pulmão apre‑ senta maior volume na deflação do que durante a insuflação. Essa diferença de volume é denominada “histerese” e é, em grande parte, dependente da atividade do surfactante, do grau de lesão pulmonar e do nível de recrutabilidade. Dois objetivos são almejados na estratégia de VPM: • evitar hiperdistensão das unidades pulmonares por limitação no volume de insuflação e limitação na pressão aplicada nas vias aéreas; • evitar a abertura e o colapso respectivos pela aplicação de PEEP adequada (Figura 9). Os níveis da fração inspirada de oxigênio e da PEEP podem ser ajustados utilizando-se a escala PEEP/FiO2 com base nos va‑ lores da PaO2 ou da saturação de pulso de O2 (Figura 10). Portanto, vários outros modos de ventilação necessitam ser estudados, como utilização de PEEP mais elevada, manobras de recrutamento alveolar, utilização da posição prona e venti‑ lação com oscilação de alta frequência, pois nenhum tem de‑ monstrado uma redução da mortalidade.
Parâmetros derivados da curva pressão-volume
Volume
Ponto de inflexão inferior
Complacência na desinsuflação
Ponto de inflexão superior
Zona de segurança Complacência na insuflação Início da curva
Volume não recuperado Pressão
Figura 8 Parâmetros derivados da curva pressão-volume do sistema respiratório total.
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SÍNDROME DO DESCONFORTO RESPIRATóRIO AGUDO •
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Pressão superimposta (cmH2O)
Efeitos da PEEP PEEP = 0 cmH20
PEEP = 10 cmH20
PEEP = 20 cmH20
0
10
20
Hiperinsuflação
Insuflação normal
Colapsado
Figura 9 Efeitos da PEEP. Ela atua como uma contraforça à pressão superimposta sobre um nível pulmonar determinado (indicado pelas setas); com uma PEEP de zero, a pressão superimposta é zero nas regiões ventrais e 20 cmH2O nas regiões dorsais. Para contrabalançar os 20 cmH2O de pressão superimposta (regiões pulmonares dependentes), é necessária uma PEEP de 20 cmH2O. Contudo, enquanto se mantêm abertas as regiões pulmonares dependentes, as regiões não dependentes tornam‑se hiperinsufladas.
Fio2
.3
.4
.4
.5
.5
.6
.7
.7
.7
.8
.9
.9
.9
1.0
PEEP
5
5
8
8
10
10
10
12
14
14
14
16
18
18–24
Alvo da oxigenação arterial: Spo2 = 88 a 95% Pao2 = 55 a 80 mmHg
Figura 10 ARDS Network – Escala PEEP/FiO2. Se a oxigenação cai abaixo dos objetivos, então a combinação PEEP/FiO2 tem que ser desviada para a direita, e caso a oxigenação esteja acima dos objetivos, a combinação é selecionada para a esquerda.
Posicionamento prono Uma terapêutica adjuvante é a utilização com o paciente em posição prona, pois essa estratégia é segura para melhorar a oxigenação em muitos pacientes com SDRA. Ela também di‑ minui a lesão pulmonar secundária à utilização da VPM. Apre‑ senta como efeitos fisiológicos: gradiente gravitacional na pressão pleural; efeito na motilidade do diafragma; efeito da compressão do coração; efeito nas propriedades mecânicas da parede torácica; efeito na perfusão pulmonar; e um efeito na drenagem das secreções respiratórias. O posicionamento do paciente adicionalmente a uma VPM criteriosa e cuidadosa determina uma melhor evolução nos pacientes com SDRA grave. A posição prona possui um atrati‑ vo clínico, pois não necessita de nenhum equipamento espe‑ cial, apenas uma equipe bem coordenada da UTI pediátrica. A utilização da posição prona deve ser considerada como um cuidado padrão em pacientes com SDRA grave (relação PaO2/ FiO2 < 150 mmHg). Não existem dados atuais que suportem a possibilidade da utilização da posição prona em pacientes com hipoxemia leve a moderada. A utilização da posição prona pode induzir uma melhora transitória ou sustentada na oxigenação ao redor de 20 a 30%. Essas alterações determinadas pela posição prona podem di‑ minuir o valor da pressão de platô, assim como da pressão de
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condução, com consequente diminuição da resistência vascu‑ lar pulmonar. Não existem contraindicações absolutas para o uso da posi‑ ção prona, mas sugere‑se que elas variam de acordo com a ex‑ periência individual de cada UTI, conforme a Tabela 4. As complicações mais comuns quando se realiza a posição prona são as úlceras de pressão, por conta da compressão da pele, e o edema facial.
Tabela 4 Contraindicações para a utilização da posição prona Contraindicações absolutas
Contraindicações relativas
Grande queimado
Pacientes com aumento da pressão intracraniana
Feridas abertas na superfície ventral do corpo
Pacientes com traqueostomia
Instabilidade da coluna espinal
Diálise contínua
Fraturas na região pélvica
Choque com necessidade de uso de dosagens elevadas de medicações vasoativas
Gravidez em adolescente Arritmias cardíacas ameaçadoras da vida
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Utilização de vasodilatadores A utilização de vasodilatadores por via inalatória tem uma ra‑ cionalização fisiológica no manejo das crianças graves com SDRA. As interações cardiopulmonares fazem parte da pato‑ logia da SDRA, com a hipóxia induzindo vasoconstrição e de‑ terminando hipertensão pulmonar.43,44 Existe uma desregula‑ ção dos mediadores constritores e dilatadores, os quais contribuem para um aumento na RVP.45 Nos casos graves de SDRA, esses efeitos podem determinar uma falência do VD, um preditor independente para o óbito.46 O cor pulmonale agu‑ do pode se estabelecer pela impossibilidade de o VD ejetar sangue para a circulação arterial pulmonar. Teoricamente, a vasodilatação seletiva dos vasos pulmona‑ res aerados e perfundidos pode redistribuir o sangue das re‑ giões com pouca ventilação, diminuindo a fração do shunt e, ao mesmo tempo, corrigindo a hipertensão pulmonar (Figura 11). As pesquisas clínicas atuais não suportam a indicação clíni‑ ca de óxido nítrico inalatório no manejo de rotina de pacientes com SDRA. Suporte extracorpóreo A utilização de suporte por meio de OMEC VV é uma opção de manejo potencial para pacientes com falência respiratória aguda grave, na qual a VPM e terapêuticas adjuntas, como a utilização de óxido nítrico inalatório, não conseguiram bom resultado para uma adequada troca gasosa (Tabela 5). A OMEC mantém um “repouso dos pulmões” pela redução das demandas de ventilação, permitindo que estratégias de proteção pulmonar sejam empregadas e minimizando tam‑ bém a lesão pulmonar induzida pela VPM. Essa é uma indica‑ Melhora da relação V/Q
ção apropriada para doença pulmonar aguda reversível, mas não para aqueles pacientes com condições crônicas progressi‑ vas. Atualmente, a OMEC VV é a modalidade preferida para doenças respiratórias isoladas, pois fornece um fluxo sanguí‑ Tabela 5 Indicações e usos para a oxigenação de membrana extracorpórea Respiratório
Cardíaco
Pneumonia
Suporte após cirurgia cardíaca
Síndrome do desconforto respiratório agudo
Suporte após transplante cardíaco
Lesão pulmonar por trauma
Suporte de longo prazo como ponte para transplante cardíaco ou inserção de um sistema de assistência ventricular
Acidente por submersão
Choque cardiogênico não isquêmico (miocardite fulminante e miocardiopatia)
Suporte após transplante pulmonar
Ressuscitação extracorpórea cardiopulmonar (parada cardíaca intra-hospitalar refratária a outras medidas)
Síndrome de aspiração de mecônio
Infarto do miocárdio
Hérnia diafragmática congênita
Embolia pulmonar maciça
Hipertensão pulmonar persistente do recém-nascido
Dose excessiva de medicamentos (p.ex., cardiodepressores) Miocardite Cardiomiopatia Doença cardíaca congênita
Constrição dos vasos pulmonares
VCI VCS
Alvéolo não ventilado AD VD
AP PCA
AE
Dilatação dos vasos pulmonares
NO inalado
VE Aorta Alvéolo ventilado Sem vasodilatação sistêmica NO inativado pela hemoglobina
Figura 11 Óxido nítrico inalatório: ações seletiva e microsseletiva.
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neo pulmonar oxigenado, mantém o fluxo pulsátil sistêmico e Esse processo é conhecido como a teoria dos múltiplos gol‑ evita os riscos da cateterização arterial (p.ex., embolia arterial pes da SDRA. Os pacientes inicialmente sem lesão pulmonar sistêmica). podem ter um risco de desenvolver SDRA, podendo, portanto, A ventilação com relação inversa, a ventilação com libera‑ se beneficiar da estratégia com a utilização de baixos VC quan‑ ção de pressão de vias aéreas e a ventilação com oscilação de do se inicia a VPM. alta frequência podem ser consideradas modos de resgate da‑ A estratégia de VPM moderna é focada na prevenção da quelas crianças com hipoxemia refratária ameaçadora da vida. LPIVPM, que resumidamente envolve: Entretanto, faltam pesquisas controladas e randomizadas de‑ • proteção pulmonar: ventilação com baixos volumes correntes monstrando a sua eficácia e, portanto, esses modos não po‑ e pressão de platô de via aérea, utilizando hipercapnia per‑ dem ser recomendados no manejo de primeira linha nos pa‑ missiva quando necessário; cientes com SDRA. • recrutamento pulmonar: a utilização adequada de PEEP para recrutar unidades alveolares colapsadas e evitar lesão adicio‑ Lesão pulmonar induzida pela VPM nal aos pulmões associada com um volume alveolar elevado A LPIVPM é um fator contribuidor importante para a mortali‑ (volutrauma) e lesão de cisalhamento associada com abertura dade nos pacientes que apresentam SDRA. Os pulmões com e fechamento recorrentes das unidades alveolares (atelec‑ alguma agressão são mais suscetíveis do que os pulmões sa‑ trauma). Esse conceito geral é conhecido como open lung apdios para o desenvolvimento da LPIVPM. O início da LPIVPM proach para VPM. A aplicação de valores elevados de PEEP desencadeia uma cascata que culmina na falência de múlti‑ por curtos períodos tem sido proposta como um método para plos órgãos e sistemas (FMOS) (Figura 12). se obter um recrutamento adicional (manobras de recruta‑ A utilização de ventilação protetora com VC baixos e limi‑ mento). A utilização rotineira das manobras de recrutamento tando a PVPM não é apenas protetora para o pulmão, mas não tem suporte de acordo com as evidências clínicas. com um potencial de diminuir a incidência de FMOS. O es‑ tresse mecânico excessivo pode ocasionar uma lesão da inte‑ Outras terapêuticas farmacológicas na SDRA gridade celular e do tecido pulmonar por meio de dois fatores Vários fármacos têm sido utilizados em adultos – inibidor da primários: hiperdistensão do pulmão (volutrauma) e recruta‑ via do fator tecidual, beta-2-agonistas (salbutamol), fator esti‑ mento e desrecrutamento repetitivos (atelectrauma). mulador de colônia granulócito-macrófago, cetoconazol e al‑ A partir do momento em que os pulmões sofrem uma mitrina –, podendo ter um potencial interesse na SDRA neo‑ agressão inicial por pneumonia, sepse, choque não cardiogê‑ natal e pediátrica, mas não existem dados disponíveis com a nico, trauma ou utilização de circulação extracorpórea, a VPM sua utilização até o momento. com a utilização de VC elevados ocasiona uma pressão alveo‑ A ventilação espontânea na fase aguda precoce da SDRA lar e transpulmonar elevadas, podendo amplificar a resposta pode melhorar a oxigenação, mas ocasiona maior pressão pulmonar e inflamatória sistêmica, ocasionando LPIVPM e a transpulmonar e potencialidade para volumes pulmonares maiores no final da inspiração, independentemente de níveis “SDRA iatrogênica” (Figura 13).
VPM
Lesão biofísica Cisalhamento Hiperdistensão Aumento da pressão intratorácica Estiramento cíclico
Lesão bioquímica Citocinas, complemento, prostanoides, leucotrienos, espécies reativas de oxigênio, proteases
Monócitos
Neutrófilos
Aumento da permeabilidade alveolocapilar Diminuição do débito cardíaco Diminuição da perfusão de órgãos
Bactéria
Órgãos distais Lesão tecidual secundária a mediadores/células inflamatórias Alteração do fornecimento do oxigênio Bacteriemia
FMOS
Figura 12 Mecanismos envolvidos que contribuem para a falência de múltiplos órgãos e sistemas (FMOS) na aplicação de VPM.
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Agressão pulmonar direta
Agressão pulmonar indireta
Sepse extrapulmonar Síndrome da resposta inflamatória sistêmica Trauma Pancreatite Transfusões múltiplas Grande queimado Circulação extracorpórea
Pneumonia Aspiração Inalação tóxica Contusão pulmonar Vasculite pulmonar
Agressão secundária à ventilação pulmonar mecânica "Lesão pulmonar induzida pela VPM"
Figura 13 Teoria dos múltiplos golpes para a SDRA adquirida. Adicionalmente, ao estresse fisiológico e/ou bioquímico a que os pulmões dos pacientes graves estão expostos, a VPM isoladamente representa uma agressão adicional, caso não se utilize a ventilação protetora. Fonte: adaptada de Lellouche et al., 2013.
aparentemente seguros da pressão de platô. A sedação pro‑ funda e o bloqueio neuromuscular na SDRA precoce assegu‑ ram um controle rigoroso do VC e da pressão da via aérea. Um grande estudo clínico em adultos48 demonstrou que a utiliza‑ ção de bloqueadores neuromusculares precocemente nas pri‑ meiras 48 horas da SDRA determina uma melhor sobrevida e um menor tempo de permanência na VPM, comparativamen‑ te à utilização de placebo. Os possíveis mecanismos envolvi‑ dos na melhora da evolução estão delineados na Figura 14. Entretanto, permanece a controvérsia se o bloqueador neu‑ romuscular e a paralisia devam ser uniformemente aplicados em todos os pacientes com SDRA. Resumindo, os cuidados nas crianças com SDRA permane‑ cem sendo apenas um suporte, mas a estratégia ventilatória utilizando VC baixo (6 mL/kg de peso corpóreo predito – cui‑ dado com crianças obesas –, pressão de platô < 30 cmH2O), DP < 15 cmH2O, atenção cuidadosa em relação à condição vo‑ lêmica, aplicação de protocolo padrão para prevenir a pneu‑ monia associada à VPM (p.ex., elevação da cabeceira da cama a 30°) e intervenção com reabilitação física precoce (iniciar te‑ rapêutica física e ocupacional após admissão) associada ao su‑ porte nutricional (alimentação trófica precoce com progressão do volume e necessidades conforme tolerância) e metabólico podem melhorar a evolução do paciente.
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Antes da indução do bloqueio neuromuscular (A), a condu‑ ção respiratória aumenta por conta de vários fatores, os quais podem determinar um VC aumentado e assincronia do pa‑ ciente-aparelho de VPM, a qual pode piorar várias formas de LPIVPM, que, com a alteração do desempenho cardíaco e a consequente diminuição do transporte de O2 para os órgãos, podem determinar um aumento da disfunção orgânica. Após o bloqueio neuromuscular (B), com VC menor e melhora da sincronia do paciente-aparelho de VPM, permitindo uma me‑ lhor ventilação protetora, há menos LPIVPM e menor altera‑ ção do desempenho cardíaco. Os bloqueadores neuromuscu‑ lares podem ter efeitos anti-inflamatórios diretos. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer a nova definição relacionada à SDRA. • Quantificar a hipoxemia para classificar a gravidade da síndrome. • Conhecer a diversidade da etiologia da SDRA. • Compreender a patogênese da doença e seus vários mecanismos. • Rever princípios básicos relacionados à mecânica respiratória na síndrome. • Conhecer os princípios e o tratamento atual em relação ao suporte ventilatório e a estratégias farmacológicas utilizadas na SDRA.
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Figura 14 Possíveis mecanismos pelos quais os bloqueadores neuromusculares podem determinar uma melhora na sobrevida em pacientes com SDRA. Fonte: adaptada de Slutsky, 2010.
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CAPÍTULO 7
INSUFICIÊNCIA RESPIRATÓRIA Toshio Matsumoto
Introdução Insuficiência respiratória é uma das principais causas de ad‑ missão de crianças em unidades de terapia intensiva (UTI) e é a causa mais comum de parada cardiorrespiratória em pedia‑ tria.1 Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a pneumonia mata mais crianças em todo o mundo do que qual‑ quer outra doença, sendo responsável por 19% das mortes em crianças menores de 5 anos.2 É relatado que aproximadamen‑ te 2/3 dos casos de insuficiência respiratória ocorrem no 1º ano de vida, e destes, metade no período neonatal.3 A incidência relativamente alta no período neonatal pode ser atribuída à imaturidade estrutural e funcional do sistema respiratório associada a predisposições anatômicas1,4 que ge‑ ralmente melhoram com a idade. O segmento cefálico do recém-nascido (RN) é relativamen‑ te grande, representando 1/4 de todo o seu corpo e ainda apre‑ senta um occipício mais proeminente, o que favorece um es‑ treitamento das vias aéreas superiores quando o RN estiver em posição supina. A região mandibular é pequena, e a língua, por ocupar um espaço menor, se torna volumosa, o que favore‑ ce a obstrução da região faríngea por essa relativa micrognatia e macroglossia. Isso justifica a incapacidade de a via oral ser utilizada efetivamente para respirar até os 4 a 6 meses de ida‑ de, o que implica respiração nasal mandatória. A obstrução das narinas (p.ex., atresia de coanas) nessa faixa etária impli‑ ca grave ameaça à vida e merece atenção imediata. A epiglote é mais longa e rígida, inserindo em 45° com a base da língua, e é mais alta, o que resulta em estreitamento da retrofaringe. As vias aéreas são de menor calibre e resultam em maior resistência ao fluxo aéreo. A caixa torácica é mais complacente, e o seu formato cilín‑ drico não favorece o aumento de volume anteroposterior. As costelas fixam-se em um esterno menos rígido, que oferece uma base mais instável. Assim, durante um esforço inspirató‑ rio mais acentuado, a pressão intratorácica negativa criada pode mais deformar a caixa torácica (retração) do que resultar em aumento do volume pulmonar. O diafragma posiciona-se
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mais horizontalmente, e sua contração pode reduzir ainda mais o diâmetro anteroposterior da caixa torácica. A muscula‑ tura diafragmática tem uma distribuição de fibras que muda com o crescimento e são mais sujeitas à fadiga na fase inicial da vida. O diafragma do RN tem cerca de 25% de fibras estria‑ das tipo I (vermelhas, contração e relaxamento lentos, alta‑ mente oxidativas, não fatigáveis) e predomínio de fibras es‑ triadas tipo II (brancas, contração rápida, fatigáveis). No RN prematuro, a proporção de fibras tipo I é ainda menor, apenas 10%. A proporção de fibras tipo I aumenta com a idade e atin‑ ge 55% na fase adulta. As costelas são mais complacentes e fi‑ xam-se em um esterno mais mole (base instável para as coste‑ las), podendo sofrer deformidades durante a respiração (retrações). A ventilação colateral é inexistente ao nascimento e surge com o crescimento pulmonar, auxilia na distribuição dos ga‑ ses e reduz a resistência de vias aéreas.5 Definições Existem várias definições de insuficiência respiratória na lite‑ ratura. Winter e Lowenstein (1969) definem a insuficiência respiratória como uma condição em que a dificuldade de tro‑ cas gasosas nos pulmões constitui imediata ameaça à vida.6 Levin (1976) a define como uma incapacidade do sistema res‑ piratório em manter uma adequada oxigenação e eliminação de dióxido de carbono. Newth a define como uma incapacida‑ de do sistema respiratório em satisfazer as demandas metabó‑ licas do organismo.3 A insuficiência respiratória é uma condição clínica que deve ser prontamente reconhecida e tratada, pois representa grande ameaça à vida do paciente.6 A função do sistema respiratório depende da integridade de um eixo desde o centro respiratório até a unidade alveolocapi‑ lar. Esse eixo pode ser dividido como 7 elos de uma cadeia (Fi‑ gura 1) para cada principal componente.4 Inúmeras são as causas de insuficiência respiratória e estão relacionadas a qualquer distúrbio em um ou mais elos do sis‑
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Insuficiência Respiratória •
SNC
Coluna vertebral
Sistema neuromuscular
Tórax e pleura
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hipóxia pode ser decorrente de vários tipos de situações pato‑ lógicas: • hipóxia hipoxêmica: decorrente de redução da pressão parcial de oxigênio no sangue arterial. Por exemplo: pneumonia, sín‑ drome do desconforto respiratório agudo (SDRA); • hipóxia anêmica: a taxa de hemoglobina está reduzida a um nível crítico tal que compromete o transporte de oxigênio para os tecidos. Por exemplo: anemia grave; • hipóxia circulatória: a perfusão tissular não satisfaz a deman‑ da metabólica em suprir o oxigênio necessário para o metabo‑ lismo celular. Por exemplo: choque; • hipóxia histotóxica: a célula não consegue metabolizar o oxi‑ gênio disponibilizado. Por exemplo: intoxicação por cianeto.
As trocas gasosas (eliminação de gás carbônico e captação de oxigênio) são realizadas na unidade alveolocapilar pulmonar e dependem da relação entre ventilação alveolar e perfusão ca‑ pilar pulmonar.7,8 A troca realiza-se por meio do gradiente Sistema cardiovascular pressórico dos gases;9 o ar inspirado renova parte do gás alveo‑ lar, do qual resulta maior concentração de O2 e menor de CO2. O sangue capilar venoso, em contato com o alvéolo, tem os Vias aéreas inferiores seus gases em equilíbrio com o gás alveolar, promovendo um aumento da PO2 e redução da PCO2. Portanto, a composição do gás alveolar é fundamental para manter a homeostasia res‑ Figura 1 A função do sistema respiratório depende da integridade dos seus elos componentes. piratória. A composição do gás alveolar durante a respiração SNC: sistema nervoso central. depende de vários fatores: • FiO2; • pressão barométrica; tema respiratório. Assim, a insuficiência respiratória não é de‑ • pressão do vapor d’água; corrente de uma condição restrita ao pulmão propriamente • ventilação total/R (quociente respiratório); dito, mas também a qualquer doença que afete um ou mais • fluxo sanguíneo pulmonar; desses elos. O paciente com insuficiência respiratória pode ter • pressão parcial de oxigênio e gás carbônico no sangue venoso misto. o pulmão totalmente normal com a função de trocas gasosas preservada, como na presença de depressão respiratória por O cálculo teórico da concentração de oxigênio no gás alveolar traumatismo craniano. Para melhor compreensão da insuficiência respiratória, é pode ser obtido pela seguinte equação:3,7,10 necessário conhecer algumas particularidades do sistema res‑ PAO2 = (PB – PH2O) × FiO2 – PaCO2/R piratório. Vias aéreas superiores
Respiração Respiração é um processo biológico de troca de oxigênio e gás carbônico através de membranas permeáveis. Ela depende de uma complexa interação dos sistemas car‑ diovascular e pulmonar, que mantêm a estabilidade interna por meio de sistemas fisiológicos e coordenados por respostas de retroalimentação.7 É a hemostasia respiratória. Na insuficiência respiratória, essa hemostasia está compro‑ metida e pode ser por:7 • alteração dos gases sanguíneos arteriais; • aumento do trabalho dos sistemas cardiovascular e pulmonar para manter o balanço homeostático; • várias combinações entre os dois itens anteriores.
Em que: • PAO2: pressão parcial de O2 alveolar; • PB (pressão barométrica): a pressão atmosférica implica a real pressão exercida para o gradiente alveolocapilar. Isso jus‑ tifica o desconforto respiratório sofrido em altas altitudes; • PH2O (pressão de vapor d’água): o ar, quando passa pelas vias aéreas, sofre o acréscimo de vapor d’água, o que reduz a pres‑ são barométrica alveolar. A pressão de vapor d’água com 100% de saturação a 37°C é de 47 mmHg; • FiO2 (fração inspirada de O2): quanto maior a fração inspirada, maior será o gradiente pressórico de O2 entre o alvéolo e o capilar; • PaCO2 (pressão parcial de CO2): a pressão parcial de CO2 de‑ pende do equilíbrio entre o quanto de CO2 do metabolismo corpóreo é acrescido no alvéolo pela perfusão do capilar pul‑ Hipóxia tissular monar e o quanto é eliminado pela ventilação; Hipóxia pode ser definida como uma tensão de oxigênio abai‑ • R (quociente respiratório): razão de troca entre a produção de gás carbônico e o consumo de oxigênio. xo do nível necessário para suprir as demandas metabólicas. A
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Essa equação fornece apenas o cálculo teórico da concentra‑ ção de O2 e CO2 do alvéolo. A eficácia da troca entre o alvéolo e o capilar pulmonar depende do número de alvéolos ventilados e da perfusão sofrida por esses alvéolos.9 Disso dependerá a concentração dos gases no sangue arte‑ rial. A distribuição da ventilação e da perfusão em um pulmão normal pode ser explicada no modelo de três zonas descrita por West.7-11 Os fluxos sanguíneos arterial e venoso dependem da força gravitacional e aumentam progressivamente em dire‑ ção à base. A pressão alveolar, por outro lado, permanece rela‑ tivamente constante. Cria-se um diferencial pressórico distin‑ to ao longo do eixo pulmonar. No ápice (a região mais alta, independentemente da posi‑ ção, ereta, prona, supina ou lateral) ou zona I, acima do nível cardíaco, a pressão alveolar tende a sobrepujar a pressão arte‑ rial pulmonar. No nível do coração (zona II), a pressão é mais bem favorecida e melhora a perfusão pulmonar. Na região ba‑ sal ou zona III, a pressão venosa é maior que a pressão alveolar e a perfusão depende do gradiente pressórico arteriovenoso. Entrega de oxigênio (DO2) O oxigênio oferecido aos tecidos depende de o oxigênio captado no alvéolo ser entregue até a célula. A entrega envolve a quanti‑ dade de oxigênio no sangue arterial e do débito cardíaco (DC): DO2 = conteúdo arterial de oxigênio × débito cardíaco sendo: • conteúdo arterial de oxigênio (CaO2) = oxi-hemoglobina (Hb × saturação × 1,34) + O2 dissolvido (PaO2 × 0,0031); • DC: volume sistólico × frequência cardíaca. O conteúdo de oxigênio é dado em volume% e depende do oxigênio ligado à hemoglobina e do oxigênio dissolvido. O oxi‑ gênio ligado à hemoglobina, por sua vez, depende da taxa de hemoglobina, da saturação da hemoglobina e da quantidade de oxigênio que cada grama de hemoglobina pode conter. O oxigênio dissolvido equivale em volume% a PaO2 multiplicado pelo fator de dissolubilidade 0,0031. A maior quantidade de oxigênio no sangue está ligada à hemoglobina.
sagem dos gases, em geral por processos pulmonares que le‑ vam ao aumento na distância alveolocapilar (espessamento). No entanto, esses espessamentos também comprometem a complacência pulmonar, podendo resultar em insuficiência respiratória antes mesmo do comprometimento da difusão. Os distúrbios de difusão são pouco citados atualmente como mecanismo primário de insuficiência respiratória. Hipoventilação A hipoventilação resulta de um volume minuto (volume cor‑ rente × frequência respiratória) insuficiente para suprir a de‑ manda metabólica, resultando em hipoxemia e hipercapnia. A troca gasosa nessa situação não está prejudicada, mas, sim, a renovação do gás alveolar pela ventilação minuto. Essa condi‑ ção é provocada por mecanismos extrapulmonares, como nos casos de depressão respiratória por drogas e traumatismos. Nos casos em que não é possível recuperar o esforço respirató‑ rio do paciente, é necessário o auxílio da ventilação pulmonar mecânica, mesmo com a função de troca gasosa preservada. Como não existe primariamente um prejuízo na troca gasosa alveoloarterial, a diferença alveoloarterial de oxigênio (D(A-a) O2) nessa condição é normal.10 Espaço morto A respiração é realizada por um sistema em fundo cego, isto é, o ar deve entrar e sair pela mesma via. Quando se inspira, par‑ te do volume de ar que entra nos pulmões não participa das trocas gasosas. É o chamado espaço morto. Habitualmente, 20 a 30% do volume corrente inspirado é espaço morto.8 Exis‑ te o espaço morto anatômico, que se refere a toda a via respira‑ tória que não participa das trocas gasosas, e o espaço morto fi‑ siológico, que constitui toda a via aérea que está recebendo a ventilação, mas não realiza troca gasosa. Em condições nor‑ mais, os dois espaços são equivalentes. Em condições patoló‑ gicas, a ventilação alveolar pode não ser acompanhada de per‑ fusão, o que resulta em uma ventilação desperdiçada e maior trabalho respiratório. A ventilação desperdiçada pode ser esti‑ mada pela relação de volume de espaço morto (VD – dead volume) sobre o volume corrente (VT – tidal volume) ou relação VD/VT. O valor da relação é calculado com base na equação de Bohr:3
Mecanismos de prejuízo das trocas gasosas PaCO2 – PACO2* Em toda insuficiência respiratória, existe um ou mais meca‑ VD/VT = nismos de prejuízo das trocas gasosas envolvidos. PaCO2 Esses mecanismos, utilizando a unidade alveolocapilar como local da troca gasosa, podem ser divididos didaticamen‑ * a PACO2 pode ser substituída pela PECO2 (PCO2 expirada), te em: presumindo-se que ambas são iguais. • distúrbio de difusão; Shunt • hipoventilação; • espaço morto; É a situação oposta ao espaço morto: existe perfusão, mas não • shunt; existe ventilação. A relação ventilação/perfusão é zero. O san‑ • desajuste ventilação/perfusão. gue passa por essa área sem sofrer nenhuma troca gasosa e volta para o coração como se não tivesse passado pelo pulmão Distúrbio de difusão (shunt). O valor da porcentagem de shunt em um pulmão nor‑ O distúrbio na difusão dos gases entre o alvéolo e o capilar mal é < 5%.8 Uma área atelectasiada que recebe perfusão é um pode ocorrer quando essa interface oferece dificuldade na pas‑ exemplo de shunt, cuja presença não necessariamente signifi‑
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Insuficiência Respiratória •
ca hipoxemia, uma vez que existe uma vasoconstrição reflexa que desvia o fluxo dessas unidades colabadas para áreas mais bem ventiladas.8 Contudo, caso haja prejuízo nesse mecanis‑ mo compensatório, a troca gasosa é comprometida e pode re‑ sultar em hipoxemia. A D(A-a)O2 é uma medida de avaliação do prejuízo das tro‑ cas gasosas. O cálculo é resultante da diferença entre o valor da PAO2 (equação do ar alveolar) e da PaO2. Se o paciente for submeti‑ do a uma FiO2 de 100% por 20 minutos,8 todas as unidades al‑ veolares ventiladas estarão sob a mesma PO2. Nessa condição, o valor da D(A-a)O2 reflete o shunt fisiológico do pulmão. A di‑ ferença normal em uma FiO2 de 100% é < 50 mmHg e, em ar ambiente, < 30 mmHg.8 Uma diferença maior indica a presen‑ ça de algum prejuízo no mecanismo de troca gasosa. Outra medida de avaliação das trocas gasosas é a relação PaO2/FiO2, que indiretamente indica a eficiência da troca ga‑ sosa pulmonar. É utilizada na diferenciação entre a lesão pul‑ monar aguda (LPA) e a SDRA:12,13 • LPA: PaO2/FiO2 < 300 mmHg; • SDRA: PaO2/FiO2 < 200 mmHg. Em 2012, foram definidos outros valores de PaO2/FiO2 para classificar três categorias de SDRA: • leve: PaO2/FiO2 ≤ 300 mmHg; • moderada: PaO2/FiO2 ≤ 200 mmHg; • grave: PaO2/FiO2 ≤ 100 mmHg.14
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mente, pois pode implicar interpretações errôneas do quadro clínico. Um paciente com intoxicação aguda por psicotrópico pode estar extremamente agitado e dispneico sem significar que está com insuficiência respiratória. Por outro lado, um pa‑ ciente pode estar com uma respiração superficial, sem disp‑ neia e estar hipoventilando. Assim como a dispneia, a taquip‑ neia é sempre um sinal de alerta na criança. No exame clínico da criança, além dos sinais respiratórios óbvios (tiragens, re‑ trações, batimento de asa de nariz, uso de musculatura aces‑ sória), deve ser observada a presença de outros sinais clínicos, principalmente relacionados a hipoxemia, como taquicardia, palidez cutânea, sudorese fria, agitação, confusão mental e não reconhecimento dos pais. A hipercapnia pode ser suspeitada quando o paciente se torna torporoso. A cianose é um sinal muitas vezes tardio, nem sempre presente, e depende da quantidade de hemoglo‑ bina dessaturada (crianças anêmicas podem não apresentar cianose). A cianose pode estar presente em outras condições além da insuficiência respiratória, como ocorre quando existe uma extração exagerada de oxigênio da hemoglobina nas si‑ tuações de má perfusão (choque) ou no frio. Cardiopatia con‑ gênita, metemoglobinemia, hematócrito elevado e frio são ou‑ tros diagnósticos diferenciais. A respiração normalmente é silenciosa. O ruído presente no desconforto está relacionado à dificuldade da passagem do ar pelas vias aéreas. O fluxo do gás existe apenas se houver um gradiente pressórico nas vias aéreas, e o fluxo resultante pode ser calculado pela aplicação da lei de Poiseuille:
Desajuste ventilação/perfusão ∆P πr4 É o mecanismo mais comum presente nas insuficiências res‑ Fluxo = piratórias. A relação entre a ventilação alveolar e a perfusão é 8 ln insuficiente para manter uma troca gasosa adequada. Existe um predomínio da perfusão em relação à ventilação. Nos pro‑ Sendo: cessos pulmonares, como na pneumonia e na SDRA, existe • ∆P: diferença de pressão; uma distribuição heterogênea de lesões, com áreas mal venti‑ • l: comprimento; ladas, mal perfundidas, hiperinsufladas e atelectasiadas, re‑ • n: viscosidade. sultando em uma grande variação da relação ventilação/per‑ fusão. Se a perfusão pulmonar for razoavelmente mantida, A lei de Poiseuille estabelece que, em um sistema tubular, o haverá o predomínio de áreas com desequilíbrio ventilação/ fluxo depende diretamente do gradiente pressórico e do diâ‑ perfusão. metro (quarta potência do raio), e inversamente do compri‑ mento e da viscosidade. Dessa equação, pode-se deduzir o Quadro clínico valor da resistência: resistência = pressão/fluxo, então: resis‑ A insuficiência respiratória apresenta uma grande variedade tência = 8 ln/πr4. de manifestações clínicas, o que pode dificultar ou retardar o Nos processos obstrutivos baixos (p.ex., crise asmática, seu diagnóstico. Pode se apresentar de forma abrupta, evo‑ bronquiolite), existe redução do calibre das vias aéreas, o que luindo rapidamente para falência respiratória, ou insidiosa‑ implica aumento significativo da resistência (inversamente mente, com deterioração gradativa da função respiratória.3 O proporcional à quarta potência do raio). A pressão necessária pulmão possui uma reserva considerável para manter sua fun‑ para deslocar o volume dentro do pulmão é aumentada, e o ção de troca gasosa. Isso significa que a disfunção respiratória fluxo resultante nas vias aéreas inferiores pode se tornar tur‑ surge quando existe importante comprometimento na troca bulento, gerando ruídos característicos (sibilância). Nos pro‑ gasosa ou na mecânica pulmonar.8 Normalmente, menos que cessos obstrutivos altos, como laringite e laringomalácia, a 5% do consumo total de oxigênio é utilizado para o trabalho passagem de um fluxo mais rápido nas vias aéreas estreitadas respiratório,8 mas pode chegar a 50% em uma insuficiência gera uma zona de baixa pressão (efeito Venturi) e pode colabar respiratória grave. estruturas mais complacentes1 (efeito Bernouli), gerando ruí‑ No exame físico, a dispneia é um marcador da insuficiência dos caracterizados por retrações, estridores e cornagem, difi‑ respiratória. No entanto, nunca deve ser valorizada isolada‑ cultando ainda mais o trabalho respiratório.
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A análise gasométrica do sangue arterial é de auxílio na piração, o volume (ou pressão) recebido pelo pulmão deve abordagem da insuficiência respiratória, mas merece algumas vencer a resistência das vias aéreas e a complacência pulmo‑ considerações. A gasometria mostra apenas um momento, e nar. O tempo decorrido para que ocorra esse equilíbrio (trans‑ não uma tendência. Os valores de pH, PaO2 e PaCO2 estão su‑ mitir todo volume ou toda a pressão) fica, portanto, na direta jeitos a mudanças bruscas dependentes da ventilação alveolar, relação com a CT. Na expiração, o volume (ou pressão) recebi‑ do metabolismo basal, da perfusão tissular e do débito cardía‑ do pelo pulmão também deve vencer a resistência das vias aé‑ co, entre outros fatores. A PaO2 e a PaCO2 podem ser mantidas reas movido pelo esvaziamento alveolar. A rapidez com que dentro dos valores normais à custa de maior trabalho respira‑ esse esvaziamento ocorre depende da CT. Quando o tempo ex‑ tório. Assim, a interpretação dos dados gasométricos nunca piratório não é suficiente para esvaziar o volume corrente ins‑ deve ser realizada isoladamente, sem os dados clínicos do pa‑ piratório, o ar é gradualmente represado no pulmão (hiperin‑ ciente. A insuficiência respiratória pode ser classificada em ti‑ suflação dinâmica). No início, esse represamento pode ser até benéfico, pois favorece o esvaziamento pulmonar. pos I, II e III,15 de acordo com a análise dos gases sanguíneos Isso ocorre se a insuflação reduzir a complacência e, conse‑ arteriais.16,17 A tipo I é caracterizada por hipoxemia com PCO2 normal ou baixa e resulta de trocas gasosas inadequadas por quentemente, aumentar a elastância (elastância = 1/compla‑ comprometimento da relação ventilação/perfusão (insuficiên‑ cência). O aumento da elastância promoveria um esvaziamento cia pulmonar-insuficiência respiratória hipoxêmica ou aguda) como ocorre, por exemplo, na pneumonia e na SDRA. Por ou‑ mais rápido. No entanto, esse mecanismo é limitado e é inefi‑ tro lado, a tipo II apresenta hipoxemia associada à hipercapnia. caz com o aumento gradual do volume pulmonar. O acúmulo Traduz uma situação de ventilação alveolar inadequada (insu‑ gradual de volumes não expirados cria uma pressão positiva ficiência ventilatória-insuficiência respiratória hipercápnica ou mantida no final da expiração, também conhecida como auto‑ crônica) para as demandas metabólicas do organismo e ocorre -Peep ou Peep inadvertida. Essa pressão positiva aumenta principalmente quando é imposta uma carga ao sistema respi‑ substancialmente o trabalho respiratório, uma vez que a mus‑ ratório que não pode ser vencida pelo trabalho da bomba respi‑ culatura respiratória é obrigada a gerar uma pressão inspirató‑ ratória (p.ex., doença neuromuscular, intoxicação barbitúrica). ria negativa maior que esse valor para criar um gradiente pres‑ No entanto, esses dois padrões podem estar presentes no mes‑ sórico suficiente para a inspiração. A frequência respiratória depende do ciclo inspiração-expi‑ mo paciente durante a progressão da doença, ou tipo III. ração e, nessa condição, tanto o tempo inspiratório como o ex‑ Pulso paradoxal piratório ficam comprometidos. Então, para que o tempo ins‑ O aumento da resistência das vias aéreas dificulta e retarda a piratório seja rápido o suficiente para deslocar um determinado inspiração e principalmente a expiração. A melhor expressão volume para o pulmão, a pressão intratorácica deve se tornar para o fato é dada pelo conceito de constante de tempo (CT), negativa de modo muito acentuado, o que pode ser clinica‑ que correlaciona a carga resistiva (resistência) com a carga mente observado pela presença de pulso paradoxal. O pulso elástica (complacência) do sistema respiratório.11 A respiração paradoxal é uma exacerbação de um fenômeno fisiológico que se dá em fundo cego, ou seja, o ar entra e sai pela mesma via. é a queda da pressão arterial sistólica durante a inspiração. O maior retorno venoso promove um rápido enchimento Desse modo, o ar deve obrigatoriamente entrar e sair em tem‑ pos diferentes (inspiração/expiração). O tempo necessário das câmaras cardíacas direitas. O ventrículo direito com esse para que o volume ou a pressão seja transmitido do início da maior volume tem o septo interventricular deslocado para a via aérea até o alvéolo (inspiração), ou vice-versa, (expiração) esquerda, comprometendo o enchimento ventricular esquer‑ tem dependência direta da constante de tempo. O cálculo da do. O menor enchimento, por sua vez, promove um menor dé‑ bito cardíaco. CT resulta da multiplicação da complacência pela resistência: Além disso, a grande pressão intratorácica negativa tende a comprimir a saída dos vasos extratorácicos. O resultado é uma volume pressão × redução acentuada da pressão arterial na fase inspiratória. O pressão volume/tempo pulso paradoxal pode ser suspeitado pela palpação de um pul‑ O conceito foi baseado na analogia do sistema respiratório so radial irregular ou pela linha de base da oximetria de pulso com um circuito elétrico constituído por um capacitor e uma que fica oscilando com a respiração.18 A medida do pulso para‑ resistência. Nesse circuito, o capacitor recebe uma carga elé‑ doxal é realizada pela ausculta do pulso com o uso de um es‑ trica e deve descarregar essa carga pela resistência. Por meio figmomanômetro. de cálculos matemáticos, uma constante de tempo é definida Os valores normais são abaixo de 5 mmHg, e um valor aci‑ como o tempo decorrido para que 63% da carga seja descarre‑ ma de 10 mmHg19 é considerado como pulso paradoxal, o que gada por esse circuito. Com duas constantes de tempo, mais implica grave processo obstrutivo. 63% da carga restante (37%) é descarregada (totalizando cerca de 86%). Com três, somam-se outros 63% da carga restante Tratamento (14%), e assim por diante. Uma analogia pode ser realizada O tratamento da insuficiência respiratória visa a garantir ini‑ com o sistema respiratório. A carga elétrica pode ser substituí‑ cialmente a oxigenação e a ventilação mínimas necessárias da pelo volume ou pela pressão recebida pelo pulmão. Na ins‑ para a manutenção da homeostase do paciente.
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Insuficiência Respiratória •
O tratamento envolve os itens apresentados a seguir. ABC – Garantir vias aéreas e avaliar perfusão de órgãos vitais Na abordagem inicial de qualquer paciente com insuficiência respiratória, é necessário avaliar o conhecido ABC (vias aé‑ reas/respiração/circulação) do suporte básico de vida (SBV). Deve ser garantida a permeabilidade de vias aéreas, promover a melhor respiração do paciente e garantir a perfusão de ór‑ gãos vitais. Lembrar que a criança em insuficiência respiratória pode apresentar-se desidratada por aumento das perdas (perspira‑ ção, febre) e menor aceitação ou pouca oferta hídrica. A repo‑ sição volêmica é essencial para o restabelecimento da perfu‑ são adequada aos órgãos. Oxigenoterapia (cateter nasal/máscara/ entubação traqueal) O oxigênio é considerado vital no tratamento da insuficiência respiratória20 e sempre deve ser fornecida uma suplementação de oxigênio para o paciente. Existem diversos dispositivos para o fornecimento de oxigênio. Inicialmente, ele pode ser fornecido por meio de nebuliza‑ ção, máscara ou cateter nasal.20 Em pacientes colaborativos, o uso de ventilação não invasiva tem tido sua aplicação e pode evitar a necessidade de entubação e ventilação mecânica. Nas condições em que o paciente não consegue manter uma ade‑ quada ventilação e/ou oxigenação, pode ser necessária a utili‑ zação de ventilação pulmonar mecânica. A ventilação mecâni‑ ca tem sido um recurso valioso nos pacientes com insuficiência respiratória, e a estratégia ventilatória utilizada21 tem sido ob‑ jeto de muitos estudos. Como a ventilação mecânica não está isenta de riscos e complicações, muitos desses estudos visam à melhor estratégia para proteger o pulmão (estratégia prote‑ tora), principalmente na SDRA.22-24 Infelizmente, os dados em pediatria ainda são escassos. Monitoração cardiorrespiratória O paciente com insuficiência respiratória deve ser monitorado continuamente, pois o seu estado pode deteriorar a qualquer momento. A monitoração pode antecipar os procedimentos necessários ao paciente. Uma monitoração mínima é realizada com auxílio da oxi‑ metria de pulso e da monitoração da frequência cardíaca. Ou‑ tros dados complementares podem ser úteis, como a utiliza‑ ção de capnografia8 e ecocardiografia com Doppler. Avaliação clínica e laboratorial da gravidade da insuficiência respiratória A avaliação clínica é fundamental no tratamento, pois aponta para a gravidade da insuficiência respiratória. Devem ser avaliados o grau de desconforto e o trabalho res‑ piratório, a cor e a perfusão sanguínea periférica, o estado de consciência e a frequência cardíaca. A gasometria arterial e o exame radiográfico são sempre auxiliares, mas sempre inter‑ pretados à luz dos dados clínicos.
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Conforto térmico Deve-se manter o paciente em ambiente que ofereça conforto térmico. Nos casos menos graves, se possível, manter o pa‑ ciente com algum familiar. Investigar e tratar a causa básica Embora, muitas vezes, seja a primeira preocupação do atendi‑ mento, este nunca deve ser realizado negligenciando-se os itens anteriores. A investigação diagnóstica inicial envolve anamnese e exame físico minuciosos, exames radiográficos e laboratoriais. Sinais de alerta No primeiro atendimento de uma criança, alguns dos sinais de alerta são apresentados na Tabela 1. Como pode ser visto, a insuficiência respiratória está direta ou indiretamente envolvida em muitos desses sinais. A insuficiência respiratória continua sendo um desafio para o pediatra. Identificar a insuficiência respiratória envolve co‑ nhecimento e perspicácia. O reconhecimento precoce dessa condição clínica pode ser a diferença entre a sobrevida ou a morte do paciente.
Tabela 1 Sinais de alerta no atendimento de uma criança Frequência respiratória > 60 respirações/min Frequência cardíaca < 5 anos: < 80 ou > 180 bpm > 5 anos: < 60 ou > 160 bpm Aumento do trabalho respiratório Cianose ou queda da saturação de oxigênio Alteração do nível de consciência Convulsões Febre com petéquias Traumatismos Queimaduras > 10% da superfície corpórea
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer os sinais clínicos de um paciente em insuficiência respiratória aguda e titular sua gravidade. • Iniciar a conduta adequada para estabilizar o paciente. • Identificar, após estabilizar, a causa da insuficiência respiratória, se possível. • Iniciar a conduta específica de acordo com a suspeita clínica. • Avaliar qual o destino a ser dado ao paciente após as intervenções.
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CAPÍTULO 8
PÓS-OPERATÓRIO DE CIRURGIA CARDÍACA PEDIÁTRICA Claudia Pires Ricachinevsky Aline Botta Lisiane Dalle Mulle Taís Sica da Rocha
Introdução Os últimos 20 anos marcaram muitos avanços no manejo dos pacientes com cardiopatia congênita. Atualmente, são raras as doenças sem possibilidade de correção cirúrgica. Os cuidados intensivos pediátricos e neonatais mudaram o cenário de cirur‑ gias cardíacas para correções precoces e definitivas, na maioria dos casos, com baixa mortalidade (2% entre os grandes cen‑ tros) e aumento da sobrevida até a idade adulta (mais de 75% dos casos).1 Contudo, a morbidade desses pacientes em curto e médio prazos ainda é elevada, secundária a múltiplas disfun‑ ções orgânicas que ocorrem no período pós-operatório. O manejo dos pacientes com alterações secundárias a mo‑ dificações hemodinâmicas, resposta inflamatória, diminuição do débito cardíaco e outras disfunções orgânicas envolve am‑ plo conhecimento das alterações anatômicas e funcionais, de‑ correntes das malformações cardíacas. Além disso, é necessá‑ rio o entendimento das alterações secundárias ao contato do sangue com a superfície sintética dos equipamentos da circu‑ lação extracorpórea (CEC), com consequentes cascata infla‑ matória, alterações endoteliais e vasoespasmo, com estados de baixo fluxo em microcirculação cerebral, cardíaca, renal e de outros órgãos. Fisiopatologia A cirurgia cardíaca com CEC causa impacto importante e ne‑ gativo sobre todo o organismo, desencadeando síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS) e síndrome de extrava‑ samento capilar. O grau de hipotermia, o tempo de CEC e o tempo de clampeamento aórtico causam efeitos maléficos di‑ retamente proporcionais ao organismo. A resposta ao estresse é mediada por catecolaminas, corti‑ sol, hormônio do crescimento, prostaglandinas, leucotrienos, citocinas, insulina, glicose, endorfinas e outros, podendo causar dano miocárdico, hipertensão pulmonar (HP) e sistêmica, lesão endotelial e hiper-reatividade vascular-pulmonar. A reação in‑ flamatória sistêmica e a lesão endotelial levam à vasoconstrição, isto é, impedem a liberação de tromboxano e endotelina, e di‑
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minuem a liberação de substâncias vasodilatadoras (óxido ní‑ trico e prostaciclinas). A perfusão não pulsátil causa edema e di‑ ficuldade de circulação sanguínea nos capilares.2 Frequentemente, os pacientes chegam à unidade de tera‑ pia intensiva (UTI) em hipotermia e cursam com hipertermia nas primeiras 24 a 48 horas. Concomitantemente à SIRS ocor‑ rem instabilidade hemodinâmica e disfunção miocárdica, com pico de efeito em 8 a 12 horas de pós-operatório, compro‑ vado por pico de elevação de lactato sérico, proteína C-reativa e troponina. Em pacientes com reação exacerbada, podem-se observar, também, sangramento excessivo, disfunção renal e síndrome de extravasamento líquido capilar.3 Monitoração A monitoração contínua em pós-operatório de cirurgia cardía‑ ca envolve medida contínua da pressão arterial, por meio de cateter em artéria radial, tibial posterior ou, eventualmente, femoral ou axilar; da pressão venosa central (PVC), por meio de cateter em jugular, subclávia ou femoral; da pressão atrial esquerda (PAE), por cateter em átrio esquerdo, via transtorá‑ cica; e da pressão de artéria pulmonar (PAP), também por ca‑ teter via transtorácica, todos inseridos durante o transopera‑ tório.4 Eventualmente, utiliza-se cateter de Swan-Ganz para monitoração do débito cardíaco, embora os estudos não mos‑ trem diferenças significativas no tempo de internação, nas complicações e na mortalidade hospitalar5 (Tabela 1).
Tabela 1 Variáveis hemodinâmicas em pós-operatório imediato Pressão arterial média
60 a 90 mmHg
Pressão de átrio direito
5 a 15 mmHg
Pressão de átrio esquerdo
1 a 2 mmHg > PAD
Pressão arterial pulmonar média
10 a 25 mmHg
Saturação venosa central
65 a 75% saturação arterial
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Recentemente, têm sido utilizados monitores de satura‑ ção venosa central contínua para manejo instantâneo do débito cardíaco e da resposta às terapias instituídas.6 Essas monitorações são realizadas nas primeiras 24 a 48 horas e enquanto o paciente permanecer instável. Os cateteres ar‑ teriais são mantidos com infusão contínua de heparina na proporção de 1 U/mL e devem ser sempre retirados antes da remoção do dreno de mediastino. Em neonatos, podem ser utilizadas soluções menos concentradas em heparina (0,5 U/mL).7 O eletrocardiogarama (ECG) é registrado de rotina no pós‑ -operatório imediato, no 1o dia pós-operatório e sempre que fo‑ rem observadas alterações no monitor cardíaco de ECG contí‑ nuo. Drenos torácicos são mantidos por, no mínimo, 24 horas, e enquanto a drenagem for significativa. Deve-se dar atenção ao aspecto da drenagem e ao possível aparecimento de turbi‑ dez, que pode sugerir presença de quilotórax, quiloperitônio ou quilopericárdio. O débito urinário é monitorado continuamente, bem como a saturação de oxigênio por oximetria de pulso, respeitando a saturação esperada para a fisiologia de cada caso. Acesso aos gases arteriais, hemoglobina, contagem de plaquetas, coagu‑ lação, lactato, perfil eletrolítico e creatinina são realizados dia‑ riamente e a cada 4 a 6 horas, nas primeiras 24 horas, depen‑ dendo da cirurgia e da instabilidade hemodinâmica do paciente. Nos pacientes em que não se tem acesso a cateter com monitoração de saturação venosa central contínua, reali‑ za-se dosagem da saturação venosa central periodicamente para manejo de débito cardíaco.8,9 A radiografia de tórax é realizada na rotina de pós-operató‑ rio imediato, no 1o pós-operatório e após a retirada dos drenos de tórax e/ou mediastino. A ecocardiografia é usada sempre que o paciente permanecer instável por mais de 24 horas e, eventualmente, o estudo hemodinâmico pode ser necessário para elucidar possíveis lesões residuais que justifiquem a evo‑ lução desfavorável do paciente. Recomenda-se realizar radio‑ grafia de tórax ou ecocardiografia após a retirada dos fios de marca-passo, ao redor do 5o dia pós-operatório ou mais tarde, nos pacientes instáveis hemodinamicamente ou que apresen‑ taram alguma arritmia cardíaca com necessidade de uso de marca-passo transitório. Eventual derrame pericárdico consequente à retirada dos fios pode ser precocemente diagnosticado com essa medida. A ecocardiografia deve sempre ser realizada antes da alta hospi‑ talar, para adequados diagnóstico e avaliação do resultado ci‑ rúrgico e de eventuais lesões residuais. Alterações na pressão atrial direita (PAD) e pressão venosa central • Elevação: diminuição da complacência de ventrículo direito (VD) (sobrecarga de volume, hipertrofia, disfunção sistólica ou diastólica ventricular), doença da válvula tricúspide, shunt ventrículo esquerdo – átrio direito (VE-AD), HP, sobrecarga de volume intravascular, taquiarritmia, tamponamento car‑ díaco, artefato; • redução: hipovolemia, pré-carga inadequada, artefato.
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Alterações na pressão atrial esquerda • Elevação: disfunção ventricular esquerda, hipertrofia de VE, sobrecarga de volume sistêmico, doença de válvula mitral, shunt esquerdo-direito (E-D) significativo, hipoplasia de VE, taquiarritmia, tamponamento cardíaco, artefato; • redução: hipovolemia, pré-carga inadequada, artefato. Alterações na pressão da artéria pulmonar • Elevação: obstrução anatômica da circulação da artéria pul‑ monar (AP) (estenose ou embolia pulmonar), HP primária ou secundária, HP persistente do recém-nascido, obstrução me‑ cânica da via aérea (atelectasia, pneumotórax, derrame pleu‑ ral, hiper-reatividade brônquica), artefato; • redução: volume intravascular baixo, baixo débito cardíaco, artefato. Manejo clínico Líquidos e fluidos O balanço dos líquidos no pós-operatório de cirurgia cardíaca está associado a numerosas considerações que envolvem o tipo de solução isotônica, a ultrafiltração na sala de cirurgia, a manutenção de um hematócrito adequado e o uso de diuréti‑ cos. Possivelmente, o uso de novas drogas, como o fenoldo‑ pam e a nestritida, influencie ainda mais o manejo dos flui‑ dos.10,11 Os líquidos, por si só, podem ser deletérios se o excesso de água extravascular resultar em edema intersticial e disfun‑ ção de órgãos-alvo, como coração, pulmão e cérebro.10,11 A avaliação da criança em pós-operatório de cirurgia car‑ díaca começa com a revisão dos achados operatórios, incluin‑ do detalhes do reparo e CEC, particularmente os tempos de CEC e de clampeamento (isquemia miocárdica), considera‑ ções sobre proteção miocárdica, recuperação da contratilida‑ de miocárdica e valores das pressões arterial e venosa sistêmi‑ ca, achados ao ecocardiograma transesofágico transoperatório e necessidade de drogas vasoativas. Essas informações guiam as terapias e os exames subsequentes, que devem focalizar o exame clínico do débito cardíaco, além do exame cardiovascu‑ lar completo, que compreende uma série de exames de rotina já citados, com ênfase especial no valor de hematócrito, sódio sérico, bicarbonato e lactato, que guiam a respeito do estado intravascular do paciente.10,12 A monitoração da PVC também traz informações impor‑ tantes. A mais usada é a pressão da veia cava inferior ou supe‑ rior, sendo uma estimativa da PAD que, frequentemente, está em torno de 6 a 8 mmHg. A PAE também pode variar segundo a volemia do paciente, sendo que seus valores baixos podem indicar hipovolemia. Os valores pressóricos do átrio esquerdo geralmente são 1 a 2 mmHg acima do direito.10 Os fatores que influenciam o débito cardíaco, como pré‑ -carga, pós-carga, contratilidade, frequência cardíaca e ritmo, devem ser acessados e manejados. A terapia com expansão volumétrica (aumento de pré-carga) é comumente necessária, seguida de uso apropriado de inotrópicos e diminuição da pós-carga.10 A resposta ventricular às mudanças da pressão atrial deve ser avaliada, sendo verificada observando-se a pressão arterial
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Pós-operatório de Cirurgia Cardíaca Pediátrica •
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sistêmica, a frequência cardíaca, a cor da pele, a temperatura modificada e otimização do circuito do prime, do hematócrito das extremidades, o pulso periférico, o débito urinário, o equi‑ e da pressão oncótica.15 No pós-operatório, restrição hídrica e líbrio acidobásico, o lactato sérico e a saturação venosa cen‑ reposição volêmica guiada estão indicadas para manutenção tral.10 Alguns pacientes podem necessitar de pressões de en‑ das pressões de enchimento atriais e de sua resposta hemodi‑ chimento elevadas, sendo 12 a 15 mmHg pós-operatório de nâmica. A manutenção hídrica padrão em pacientes após CEC tetralogia de Fallot com ventriculotomia, pós-operatório de no pós-operatório imediato, no primeiro pós-operatório e pos‑ Rastelli com colocação de conduto VD-AP, anastomose cavo‑ terior corresponde a 50% da manutenção para o peso, consi‑ -pulmonar (Glenn, Fontan e variantes), shunt sistêmico-pul‑ derando toda a infusão contínua do paciente. Já a manuten‑ monar e cirurgias complicadas por HP.10 ção hídrica padrão em pacientes sem CEC no pós-operatório O tipo de solução que deve ser utilizada causa extenso de‑ imediato, no primeiro pós-operatório e posterior corresponde bate na literatura, sendo que as evidências existentes privile‑ a 80% da manutenção para o peso, se o paciente estiver em giam o uso de cristaloides.12,13 O cloreto de sódio a 0,9% é a so‑ ventilação mecânica (VM), e 100% da manutenção, se não es‑ lução mais usada, seguida da solução de Ringer lactato e de tiver. coloides artificiais, deixando a albumina humana a 5% para si‑ Quando houver sobrecarga volumétrica, deve-se indicar tuações de exceção e após o uso das soluções cristaloides, em método dialítico (hemodiálise ou diálise peritoneal). Em nos‑ razão do elevado custo, do risco de reações relacionadas a so meio, a diálise peritoneal tem sido usada com mais fre‑ transfusão, da pouca disponibilidade e de outras morbidades quência em razão de sua maior facilidade técnica, sua boa to‑ associadas. lerância em pacientes instáveis hemodinamicamente e seu Estudo recente demonstrou que uma solução coloide hi‑ menor custo. Frequentemente, naqueles pacientes em que o pertônica de starch 6% NaCl 7,5% demonstrou ser superior em tempo de CEC foi prolongado, quando a ventriculotomia foi melhorar o débito cardíaco de crianças em pós-operatório de extensa e se percebe grave disfunção ventricular direita, inse‑ comunicação interatrial e interventricular, de modo mais efe‑ re-se profilaticamente o cateter abdominal ainda na sala cirúr‑ tivo e mais prolongado que a solução isotônica.13 As soluções gica, ao final do reparo cardíaco. Esse cateter serve para des‑ comumente usadas em pós-operatório são: compressão abdominal no pós-operatório imediato, • cloreto de sódio a 0,9%; evitando-se síndrome compartimental.16 • Ringer lactato; Drogas vasoativas • gelatinas; • albumina humana; O uso de agentes inotrópicos e a redução da pós-carga no pós‑ • hemoderivados: -operatório podem prevenir ou tratar o baixo débito cardíaco –– plasma: 10 a 20 mL/kg; após CEC. –– concentrado de hemácias: 10 a 20 mL/kg; Catecolaminas –– crioprecipitado: 1 UI/4 a 5 kg; –– concentrado de plaquetas: 1 UI/4 a 5 kg. As aminas simpaticomiméticas endógenas mais utilizadas são: adrenalina, noradrenalina e dopamina. As aminas sintéti‑ A presença de sangramento aumentado no pós-operatório cas são dobutamina e isoproterenol. imediato e as alterações nos testes de coagulação definem a necessidade do uso dos hemoderivados. Deve-se lembrar que Adrenalina o uso de sangue total é desaconselhado, pois, além de não Liberada na medula suprarrenal, tem potente ação direta alfa apresentar vantagens, correlaciona-se a maior tempo de UTI e e beta-agonista. Em doses baixas, estimula predominante‑ aumento dos líquidos no pós-operatório.14 mente os receptores beta, com aumento da frequência cardía‑ Em função da resposta inflamatória à CEC e do aumento ca, contratibilidade e redução da resistência vascular sistêmi‑ total da água corporal, o manejo de líquidos no pós-operatório ca, causada pela vasodilatação do leito vascular do músculo imediato é essencial. O aumento da permeabilidade capilar e o esquelético e esplâncnico. Em doses altas, estimula os alfa-re‑ acúmulo de líquido intersticial podem continuar por 24 a 48 ceptores, causando aumento da resistência vascular sistêmica horas após a cirurgia.17 É possível identificar, ainda no período e pressão arterial com elevação concomitante do consumo de pré-operatório, os pacientes com risco potencial de desenvol‑ oxigênio pelo miocárdio. É indicada no tratamento de disfun‑ ver edema pela análise do nível de citocinas circulantes e mo‑ ção ventricular, síndrome do baixo débito cardíaco e hipoten‑ léculas de adesão.15 são sistêmica, particularmente quando a dopamina é insufi‑ Queda no débito cardíaco durante o período imediato pós‑ ciente. Deve ser evitada em pacientes com alto risco de -operatório e aumento na secreção do hormônio antidiurético arritmia.17 podem contribuir para diminuição do clearance de água e po‑ tencial disfunção pré-renal, que pode evoluir para insuficiên‑ Noradrenalina cia renal se o baixo débito persistir. É um precursor da adrenalina que age primariamente nos re‑ Algumas estratégias durante a CEC podem contribuir para ceptores alfa-adrenérgicos. Determina aumento significativo limitar o acúmulo de líquido intersticial, como diminuição da da resistência vascular sistêmica e pulmonar, aumento da resposta inflamatória com uso de esteroides e ultrafiltração pressão arterial sanguínea, consumo de oxigênio pelo miocár‑
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dio e pequena alteração na contratibilidade ou no débito car‑ díaco. Raramente é utilizada como agente inotrópico nos ca‑ sos de baixo débito cardíaco no pós-operatório cardíaco. Dopamina É um precursor da noradrenalina e tem ação alfa e beta-adre‑ nérgica, bem como nos receptores dopaminérgicos. Doses bai‑ xas (1 a 3 mcg/kg/min) estimulam somente os receptores do‑ paminérgicos, o que resulta em aumento do fluxo sanguíneo renal, mesentérico e coronariano, sem aumentar o consumo de oxigênio pelo miocárdio ou no débito cardíaco. Doses in‑ termediárias (5 a 8 mcg/kg/min) estimulam a ativação dos receptores beta-adrenérgicos, aumentando a contratibilidade, a frequência cardíaca e a liberação de noradrenalina. Em doses altas (> 20 mcg/kg/min), predominam os efeitos alfa-adre‑ nérgicos, como vasoconstrição, aumento da resistência vascu‑ lar pulmonar e sistêmica, frequência cardíaca e pressão san‑ guínea. Em virtude das variações na taxa de maturação dos receptores adrenérgicos, os efeitos alfa da dopamina podem ser precedidos pelos efeitos beta no neonato, somado ao cora‑ ção imaturo com reduzido estoque cardíaco de noradrenalina. A dopamina é a catecolamina mais usada para tratar hipo‑ tensão sistêmica e baixo débito cardíaco em neonatos.18 Dobutamina O efeito primário da dobutamina é aumentar a contratibilida‑ de miocárdica por estimulação beta-1 com adicional vasodila‑ tação mediada por beta-2 e efeito alfa-agonista. Trata-se de um agente seletivo beta-adrenérgico para aumentar a contra‑ tibilidade miocárdica, o débito cardíaco e a pressão sanguínea na presença de falência miocárdica. Após CEC em crianças, tem efeito cronotrópico mais pro‑ nunciado com um aumento significativo na frequência cardía‑ ca.19 É particularmente indicada em pacientes com depressão da função miocárdica e altas pressões de enchimento ventri‑ cular esquerdo sem hipotensão (p.ex., miocardiopatias dilata‑ das). Isoproterenol É um beta-1 e beta-2-agonista sem efeito alfa. Tem efeito ino‑ trópico e cronotrópico positivo, causando vasodilatação pul‑ monar e periférica e broncodilatação. Pode ser usado nos pa‑ cientes com bradicardia sinusal e bloqueio atrioventricular. Nos pacientes após transplante cardíaco, pode ser usado para manter a frequência cardíaca e reduzir a pós-carga.20 Inibidores da fosfodiesterase A fosfodiesterase é uma enzima responsável pela quebra do AMPc. Os inibidores da fosfodiesterase elevam o AMPc intra‑ celular, aumentando a disponibilidade do cálcio intracelular para a contração miocárdica e o relaxamento da musculatura lisa vascular. Sua vantagem sobre as catecolaminas reside na ação independente dos receptores beta. A inibição da fosfo‑ diesterase leva a aumento da pressão sistólica ventricular es‑ querda, aumento do relaxamento diastólico miocárdico e re‑ dução da pressão diastólica final, além de induzir a
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vasodilatação venosa e arterial periférica e reduzir o consumo de oxigênio miocárdico. A milrinona tem sido muito usada no pós-operatório de ci‑ rurgia cardíaca. Seu efeito positivo na contratilidade miocárdi‑ ca parece ter sido bem complementado por suas propriedades vasodilatadoras, determinando aumento no débito cardíaco sem elevação no consumo de oxigênio pelo miocárdio. Em neonatos com débito cardíaco baixo e HP após cirurgia cardía‑ ca, reduz as pressões de enchimento, arterial sistêmica e pul‑ monar, além de melhorar o débito cardíaco. Em um estudo multicêntrico duplo-cego, controlado por placebo em lacten‑ tes e crianças após cirurgia cardíaca, a milrinona foi capaz de reduzir significativamente a síndrome de baixo débito cardía‑ co quando comparada ao placebo.21 Levosimendam É um inodilatador que combina efeitos inotrópico e vasodila‑ tador pulmonar, com recente utilização em adultos e crianças no tratamento da síndrome de baixo débito cardíaco após ci‑ rurgia cardíaca ou isquemia miocárdica.22 Parece exercer seus efeitos tanto em descompensação cardíaca aguda (pós-cirur‑ gia) quanto em pacientes com insuficiência cardíaca crônica. Sua utilização em pediatria ainda carece de maiores estudos multicêntricos.23 Vasodilatadores Os vasodilatadores sistêmicos podem ser utilizados sozinhos ou em combinação com outros agentes cardiovasculares, a fim de melhorar o débito cardíaco. Em geral, são úteis como terapêutica para disfunção miocárdica secundária à cardio‑ miopatia dilatada, insuficiência coronariana ou cirurgia car‑ díaca, hipertensão pulmonar ou sistêmica e regurgitação val‑ var levando à sobrecarga de volume. Nitroglicerina É um efetivo vasodilatador sistêmico e pulmonar. No endoté‑ lio vascular, é convertido em óxido nítrico. A nitroglicerina en‑ dovenosa reduz o consumo de oxigênio miocárdico por dimi‑ nuir a pré e a pós-carga e causar dilatação da vasculatura coronariana. É usada de rotina no pós-operatório de cirurgias com manipulação de coronárias (TGV).24 Nitroprussiato de sódio É um estimulante da liberação do GMPc, cujo aumento age como um doador de óxido nítrico. Causa redução da pré e da pós-carga por dilatação de ambos os leitos vasculares arteriais e venosos. É mais potente que a nitroglicerina e, em geral, usa‑ do em combinação com outros agentes inotrópicos. Na sín‑ drome do baixo débito cardíaco após cirurgia cardíaca, sua uti‑ lização está indicada acompanhada de inotrópicos.25 Inibidores da enzima conversora da angiotensina O captopril e o enalapril reduzem a resistência vascular sistê‑ mica e a pressão arterial sistêmica sem interferir na frequên‑ cia cardíaca. Efetivos redutores da pós-carga melhoram o dé‑
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bito cardíaco por reduzirem a resistência vascular sistêmica e aumentarem o volume de ejeção ventricular esquerdo. Os efeitos adversos relativamente comuns são hipotensão e in‑ suficiência renal. Nesiritida É a forma recombinante humana do peptídio natriurético B, hormônio liberado pelos miócitos ventriculares submetidos à distensão volumétrica. Não possui efeito inotrópico ou crono‑ trópico, mas causa uma série de efeitos na vasculatura muscu‑ lar lisa (vasodilatação) e no rim (natriurese e diurese). É indi‑ cado para o tratamento de insuficiência cardíaca congestiva descompensada em pacientes com ortopneia26. Digoxina Aumenta o cálcio intracelular, melhorando a contração miocár‑ dica. Sua utilização no pós-operatório restringe-se à retirada de inotrópicos endovenosos ou ao tratamento de arritmias.17 Hormônio tireoidiano Não existe consenso na literatura sobre o benefício da suple‑ mentação de hormônio tireoidiano na prevenção de morbi‑ mortalidade de pacientes submetidos à cirurgia cardíaca.27 Um estudo recente em neonatos, entretanto, sugere efeitos fa‑ voráveis em termos de balanço hídrico no pós-operatório, mas sem benefício sobre o débito cardíaco.28 Na Tabela 2, estão listadas as doses das drogas utilizadas. Em pacientes que permanecem em síndrome de baixo dé‑ bito cardíaco grave, a despeito da adequada infusão de líqui‑ dos e drogas inotrópicas, deve-se considerar a abertura do es‑ terno de urgência, à beira do leito, como medida salvadora.
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Complicação cirúrgica mecânica A instabilidade hemodinâmica deve ser prontamente avaliada, podendo ser decorrente da disfunção miocárdica, hipovole‑ mia ou perda do tônus vascular. Quando a disfunção miocárdi‑ ca parece ser a causa principal, deve-se descartar alguma com‑ plicação mecânica cirúrgica, como espasmo ou oclusão da artéria coronariana, tamponamento cardíaco, disfunção val‑ var (regurgitação ou estenose) nos casos de plastia/próteses valvulares, pneumotórax, hemotórax, mau posicionamento do tubo endotraqueal e suporte inotrópico inadequado.29 Arritmias O trauma cardíaco produzido durante a cirurgia predispõe a ar‑ ritmias atriais e ventriculares, de modo que, durante a cirurgia, são instalados fios de marca-passo intracardíaco que servem para realizar o diagnóstico e o tratamento da arritmia. Na fibri‑ lação atrial, na taquicardia supraventricular e ventricular e na taquicardia ectópica juncional ocorre perda da sincronia atrio‑ ventricular, com redução de 15 a 25% do débito cardíaco. Esse quadro pode ser restabelecido com cardioversão elétrica/quí‑ mica ou com instalação de aparelho de marca-passo externo.30 As bradicardias e os bloqueios ocorrem pela lesão direta do feixe nervoso e pela manipulação cirúrgica, podendo ser tran‑ sitórias ou definitivas. O uso de marca-passo externo conecta‑ do aos fios de marca-passo instalados durante a cirurgia asse‑ gura um ritmo cardíaco regular e adequado.29
Sangramento O sangramento aumentado no pós-operatório está associado ao aumento de morbimortalidade no pós-operatório. Os pa‑ cientes com maior risco de sangramento aumentado no pós‑ -operatório são os recém-nascidos e os portadores de cardio‑ Complicações do pós-operatório patia congênita cianótica. Cuidados na prevenção no Há diversas complicações no pós-operatório de cirurgia car‑ pré-operatório e pronto tratamento do sangramento são cru‑ díaca, com as mais variáveis formas de apresentação e intensi‑ ciais para o sucesso da cirurgia cardíaca. Não há consenso do dade, devendo ser lembradas e listadas para uma intervenção ponto de vista de prevenção pré-operatória, mas o uso profilá‑ precoce. tico de aprotinina pré-cirurgia parece atenuar a ativação he‑ mostática e reduzir o sangramento.31 O sangramento excessivo produz instabilidade hemodinâ‑ Tabela 2 Dose de administração das drogas mica e inadequada oferta de oxigênio. Transfusões de concen‑ Droga Dose trado de hemácias, concentrado de plaquetas, plasma fresco e Adrenalina 0,01 a 1 mcg/kg/min crioprecipitado devem ser usadas para corrigir esses distúr‑ bios. O uso de terapias fibrinolíticas, como ácido tranexâmico Noradrenalina 0,01 a 1 mcg/kg/min e ácido épsilon-aminocaproico, podem melhorar a hemosta‑ Dopamina 5 a 15 mcg/kg/min sia, sendo que o ácido tranexâmico parece ser superior no pós‑ Dobutamina 5 a 15 mcg/kg/min -operatório.32,33 Isoproterenol 0,05 a 0,5 mcg/kg/min Conforme postulado por Kirklin, o sangramento até 5 mL/ Milrinona Ataque: 50 mcg/kg kg/h nas primeiras 6 horas de pós-operatório é considerado Manutenção: 0,35 a 0,75 mcg/ normal. Entre 5 e 10 mL/kg/h de sangramento nesse período, kg/min devem-se corrigir os distúrbios de coagulação. Acima de 10 Nitroglicerina 0,5 a 10 mcg/kg/min mL/kg/h deve-se suspeitar fortemente de sangramento de Nitroprussiato 0,5 a 5 mcg/kg/min causa cirúrgica, com indicação de reintervenção.34 Nesiritida
Ataque: 2 mcg/kg/min
Manutenção: 0,005 a 0,01 mcg/kg/min Levosimendam
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0,1 a 0,2 mcg/kg/min
Hipertensão pulmonar A HP é uma complicação bastante frequente no pós-operatório cardíaco. Ocorre mais frequentemente em cirurgias no período
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neonatal e naqueles que apresentam hiperfluxo pulmonar no ratório tardio (menos frequente na correção no período neo‑ pré-operatório. Na prática clínica, considera-se tratamento natal) pode ser tratada com inibidores da enzima conversora para HP quando a PAP se eleva a 2/3 da pressão sistólica sistê‑ da angiotensina (captopril ou enalapril).39 mica. Níveis acima de 50% já são considerados elevados, mas, normalmente, não trazem maiores repercussões (saturação Alterações respiratórias (ventilação/perfusão) arterial de oxigênio e débito cardíaco mantidos).35 O sistema respiratório tem íntima relação com as alterações No manejo da HP, a ventilação deve ser otimizada, man‑ cardiovasculares. O paciente deve ser manejado no pós-opera‑ tendo o pH no limite superior (usar pressões médias de via aé‑ tório imediato, visando à extubação precoce (primeiras 6 ho‑ rea baixas), com PaCO2 baixo (30 a 35) e boa oxigenação. Se ras pós-operatórias), sempre que estiver hemodinamicamen‑ necessário, alcalinizam-se os pacientes com infusão contínua te estável e sem sangramento significativo, acordando com de bicarbonato de sódio. Os pacientes devem ser mantidos nível adequado de analgesia e sem alterações significativas em bem sedados, de preferência por fentanil, como analgésico, parênquima pulmonar.2 por causa do seu efeito adicional simpaticolítico,35 e midazo‑ A cianose pode ser uma complicação importante no pós‑ lam em infusão contínua. Frequentemente, esses pacientes -operatório, devendo ser investigada e tratada. Deve-se realizar necessitam ser paralisados.35,36 diagnóstico diferencial de cianose, por dessaturação de causa O uso de inodilatadores, como a milrinona, parece estar pulmonar (pneumotórax, derrame pleural, edema pulmonar, associado à melhor suplência de oxigênio ao miocárdio e à va‑ pneumonia e infecção), dessaturação de causa sistêmica (ane‑ sodilatação pulmonar.35,36 Quando existe necessidade de tera‑ mia, estados de consumo de oxigênio, débito cardíaco sistêmi‑ pia adicional, o óxido nítrico é a próxima droga, sendo admi‑ co reduzido) ou redução do fluxo sanguíneo-pulmonar (trom‑ nistrado por via inalatória, na menor dose eficaz (5 a 10 ppm). bose, elevada resistência vascular pulmonar, hipertensão Recomenda-se observar a resposta ao óxido nítrico, iniciando venosa pulmonar, distorção das artérias pulmonares, anasto‑ com 20 a 30 ppm, e o aumento de 10 a 20% na saturação de mose sistêmico-pulmonar pequena ou restritiva). oxigênio e/ou a queda de 10 a 20% no valor da PAP. Nos ca‑ sos em que não se observa resposta ao gás em até 2 horas, in‑ Quilotórax/quiloperitônio/quilopericárdio dica-se sua suspensão por causa do elevado custo e da deple‑ O quilotórax é uma complicação frequente no pós-operatório ção das reservas endógenas, com risco de rebote após sua cardíaco, podendo ocorrer por lesão direta do duto torácico ou suspensão.37 por aumento de pressão torácica dificultando o retorno veno‑ Nos pacientes em que todas essas medidas foram tomadas so adequado. A manifestação clínica é de derrame pleural ou e ainda ocorrem crises de HP ou quando a PAP permanece sis‑ peritoneal aumentado, dificultando o equilíbrio desses pa‑ têmica ou suprassistêmica, pode-se utilizar sildenafil (0,5 a 1 cientes. Geralmente, surge no 5o dia pós-operatório, quando a mg/kg/dose, via sonda, até a cada 4 horas).38 Trata-se de um alimentação já foi instituída (exceto nos casos de lesão direta inibidor da fosfodiesterase V, cujo uso inicial em HP foi no tra‑ do duto). A conduta inicial pode ser realizada com dietas po‑ tamento do rebote na retirada de óxido nítrico.38 bres em triglicerídeos de cadeia longa (TCL), seguida de nutri‑ ção parental total acompanhada de nada por via oral (NPO) e Lesão inadvertida de estruturas subjacentes cirurgia para ligadura do duto torácico, nos casos em que não A lesão no nervo laríngeo, com paralisia de corda vocal, ocorre houve resposta ao tratamento conservador.40 Alguns pacien‑ em até 4% dos pacientes no pós-operatório de ligadura do ca‑ tes podem se beneficiar do uso de octreotide, embora não haja nal arterial (PCA), principalmente nos neonatos menores. Li‑ consenso no seu uso. Deve-se sempre descartar a coexistência gadura inadvertida de aorta, AP esquerda e brônquio esquer‑ de trombose venosa de cava.41 do podem ocorrer, devendo-se sempre realizar pesquisa de pulsos distais e radiografia de tórax no pós-operatório de liga‑ Insuficiência renal dura de PCA. A paralisia diafragmática pode ocorrer por lesão A insuficiência renal aguda ocorre em cerca de 30% dos pa‑ direta, estiramento ou hipotermia, geralmente tendo reversão cientes submetidos a cirurgia cardíaca, podendo estar associa‑ completa. A ecografia elucida qualquer dúvida diagnóstica.2 da à maior mortalidade nos pós-operatório. A melhor forma de prevenção é otimizar a perfusão tecidual e evitar agentes Hipertensão arterial sistêmica nefrotóxicos, como aminoglicosídeos, inibidores de enzima A hipertensão arterial sistêmica (HAS) no pós-operatório de conversora da angiotensina e contrastes radiológicos. O trata‑ coarctação de aorta pode ocorrer por dor, liberação de cateco‑ mento com método dialítico pode ser necessário para o con‑ laminas locais, ruptura na resposta de barorreceptores e de‑ trole das anormalidades eletrolíticas, dos sintomas de uremia sarranjo no eixo renina-angiotensina. O risco da HAS não ade‑ e do excesso de fluido. As técnicas dialíticas variam conforme quadamente tratada é o sangramento no pós-operatório, tanto a experiência local, desde a diálise peritoneal (técnica mais da anastomose quanto das artérias intercostais. O tratamento simples) até as formas de hemofiltração contínua com diálise. é feito com nitroprussiato de sódio (0,5 a 4 mcg/kg/min) ou Complicações endocrinológicas hidralazina (menos usada). Os pacientes que apresentam muita taquicardia podem se Várias complicações endocrinológicas acompanham o pacien‑ beneficiar de betabloqueadores. A HAS mantida no pós-ope‑ te nos períodos pré, trans e pós-operatório. A regulação hor‑
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Pós-operatório de Cirurgia Cardíaca Pediátrica •
monal e seu desequilíbrio podem complicar o manejo do pa‑ ciente com cardiopatia grave e indicar pontos de intervenção que podem melhorar potencialmente o desfecho do pós-ope‑ ratório. Ocorrem alterações na cascata adrenal (eixo hipotalâ‑ mico-pituitário-adrenal), na função tireoidiana, na função pancreática (alteração na hemostasia da glicose), na glândula paratireoide e no metabolismo do cálcio, bem como no siste‑ ma renina-angiotensina-aldosteron.42 Estudos comparando estratégias diferentes, com suas complicações e seus resulta‑ dos, devem ser realizados para indicar novos protocolos. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer informações relativas ao avanço da cirurgia de malformação cardíaca mediante o uso do sistema de circulação extracorpórea, o impacto instrumental sobre os mecanismos de adaptação sistêmica do recém-nascido e a fisiopatologia adaptativa às novas condições pós-operatórias. • Inteirar-se dos recursos atualmente disponíveis para as diversas medidas destinadas à monitoração dos indicadores pós-operatórios, como saturação venosa contínua, eletrocardiografia, débito urinário, drenos torácicos, gasometria arterial, além de radiografia de tórax e ecografia torácica. • Compreender a base dos manejos clínicos do pós-operatório voltados para o controle de líquidos e fluidos necessários ao equilíbrio hemodinâmico do paciente, uso de drogas vasoativas como as catecolaminas, os inibidores da fosfodiesterase e os inibidores da enzima conversora da angiotensina. • Conhecer as razões e mecanismos das complicações pós-operatórias da cirurgia cardíaca pediátrica como: arritmias, sangramento, hipertensão pulmonar, lesão inadvertida de estruturas subjacentes, hipertensão arterial sistêmica, alterações respiratórias, quilotórax/ quiloperitônio/quilopericárdio, insuficiência renal e complicações endocrinológicas.
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CAPÍTULO 9
INFECÇÃO HOSPITALAR EM UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA PEDIÁTRICA Marcelo Luiz Abramczyk
Introdução Infecção hospitalar é definida como infecção adquirida duran‑ te a internação ou após a alta, quando relacionada com inter‑ nação anterior; geralmente ocorre 48 a 72 horas após a admis‑ são. Exclui complicação ou extensão da doença já presente no momento da internação ou em período de incubação.1 Atualmente, o termo utilizado é infecção associada à assis‑ tência em saúde. Representa uma das principais causas de mortalidade em pacientes internados, com elevado custo. Es‑ tudo demonstrou que cada infecção de corrente sanguínea em unidades de terapia intensiva (UTI) pediátrica apresentou custo atribuído de 40.000 dólares.2 Em 1958, em virtude das investigações epidemiológicas de‑ correntes de surtos de Staphylococcus aureus resistentes à pe‑ nicilina em UTI e berçários dos Estados Unidos, foi recomen‑ dado pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) que todos os hospitais norte-americanos desenvolvessem pro‑ gramas de controle de infecção hospitalar. Em 1974, o CDC desenvolveu um estudo para avaliar a efi‑ cácia dos programas de controle de vigilância de infecções hospitalares, denominado projeto SENIC (Study on the Efficacy of Nosocomial Infection Control), sendo observado que 1/3 das infecções hospitalares era passível de prevenção.3 No Brasil, em 1983, foi normatizado o controle de infecções hospitalares, com a publicação pelo Ministério da Saúde da Portaria n. 196, obrigando todos os hospitais a instituírem co‑ missões de controle de infecções hospitalares (CCIH); a maio‑ ria das comissões realizava busca passiva das infecções.4 Em 1998, portaria do Ministério da Saúde determinou diretrizes e normas para prevenção e controle das infecções hospitalares.5 Vigilância epidemiológica das infecções hospitalares nas unidades de cuidados intensivos pediátricas Vigilância epidemiológica é o conjunto de ações decorrentes da observação ativa, sistemática e contínua da ocorrência e da distribuição das infecções hospitalares, analisando os elemen‑
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tos e eventos relacionados com a ocorrência delas, com objeti‑ vo final de implementar ações de controle. Em 1986, o CDC in‑ troduziu a vigilância por componentes para melhor avaliar fatores de risco para aquisição de infecção hospitalar e compa‑ rar dados de diferentes instituições. Em UTI, a vigilância epidemiológica preconizada é a meto‑ dologia NNISS, que consiste em visita diária à unidade, regis‑ trando-se, desde o 1º dia do mês, o número de pacientes inter‑ nados e o número de pacientes com procedimentos invasivos de risco para aquisição de infecção hospitalar (cateteres veno‑ sos centrais – CVC, cateteres vesicais e ventilação mecânica). A soma do total de pacientes internados durante o mês na uni‑ dade é denominada paciente-dia, o mesmo se aplicando aos procedimentos de risco.1 Assim são calculadas a taxa global de infecção na unidade (número de infecções/paciente-dia × 1.000) e as taxas de in‑ fecção associadas aos procedimentos de risco.1 Infecção hospitalar em unidade de terapia intensiva pediátrica Pacientes internados em UTI apresentam maior risco de ad‑ quirir infecção hospitalar por causa da gravidade da doença de base, dos procedimentos invasivos, com quebra das barreiras naturais de defesa, do tempo de internação prolongado e do uso de antibioticoterapia de amplo espectro. Diferentemente do que ocorre em UTI de adultos, onde in‑ fecção do trato urinário é o principal sítio de infecção observa‑ do, em UTI pediátrica os principais sítios de infecção são as in‑ fecções de corrente sanguínea e as pneumonias.6,7 A incidência de infecção hospitalar em UTI pediátrica varia de 3 a 27%. Em estudo realizado com 11.709 pacientes e 6.290 casos de infecção hospitalar em UTI pediátricas dos Estados Unidos, entre 1992 e 1997, a taxa média de infecção por pa‑ ciente foi de 6,1 infecções por 100 pacientes e 14,1 infecções por 1.000 pacientes-dia.6 A comparação de taxas entre diferentes serviços sempre deve considerar a população atendida, pois, até o momento, a
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estratificação para gravidade da doença de base, em pediatria, ainda não é padronizada. Outros fatores que podem interferir nas taxas reportadas são método de coleta de dados e atuação efetiva ou não da CCIH. Assim, é mais importante e interes‑ sante a comparação das taxas no mesmo serviço do que a comparação com hospitais com características totalmente di‑ ferentes. A maioria das infecções é de origem bacteriana. Infecções virais são menos relevantes que em internados em enferma‑ rias, pela maior restrição de visitantes e fluxo local, presença de equipamentos individuais e ausência de contato criança‑ -criança. Infecções por leveduras apresentam importância cres‑ cente, correspondendo a 14 a 24% dos agentes identificados. Observa-se prevalência de determinados agentes etiológi‑ cos para determinado sítio de infecção. Staphylococcus aureus em infecções de sítio operatório, infecções de corrente sanguí‑ nea relacionada a cateteres, prótese, pele e trato respiratório; Staphylococcus coagulase-negativo em infecções de corrente sanguínea relacionadas a cateteres e de prótese; Enterococcus sp em infecções urinárias, respiratórias e de corrente sanguí‑ nea; E. coli, Klebsiella sp, Enterobacter sp e Proteus sp associa‑ dos a pneumonias e infecções de corrente sanguínea; Pseudomonas aeruginosa acometendo pacientes crônicos, em ventilação mecânica prolongada ou traqueostomizados; Acinetobacter baumannii em pneumonias, infecções de corrente sanguínea e de sítio operatório.8 Estudo avaliando as taxas de infecção hospitalar em 36 paí‑ ses apresentou os seguintes números: 10,7 infecções de cor‑ rente sanguínea por 1.000 CVC-dia; 6,5 pneumonias por 1.000 ventilações mecânicas-dia; e 4,7 infecções do trato urinário por 1.000 sondagens vesicais-dia.7 Dados do Estado de São Paulo de 2013 avaliando 155 UTI pediátricas mostraram incidências médias de infecção de cor‑ rente sanguínea associada a CVC, pneumonia associada a ven‑ tilação mecânica e infecção do trato urinário associado a son‑ dagem vesical por 1.000 procedimentos de 4,4, 3,5 e 2,3, respectivamente.9 Dados de 71 UTI pediátricas norte-americanas demonstra‑ ram média de 2,1 infecção de corrente sanguínea por 1.000 CVC-dia, média de 2,1 pneumonias por 1.000 ventilações me‑ cânicas-dia e média de 5 infecções do trato urinário por 1.000 sondas vesicais-dia.6 Medidas preventivas Infecção de corrente sanguínea Programas educacionais Estudos mostram diminuição de 40 a 69% nas taxas de infec‑ ção.10-15 Antissepsia da pele Colonização externa dos cateteres por microrganismos prove‑ nientes da pele do paciente ao redor do sítio de inserção é im‑ portante na patogênese das infecções. A antissepsia com glu‑ conato de clorexidina apresenta maior eficácia na prevenção de infecções associadas a CVC e menor taxa de colonização da pele.16,17
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A superioridade do gluconato de clorexidina em relação ao povidine pode ser explicada pelo efeito residual superior e maior eficácia na redução de colônias de Staphylococcus coa‑ gulase-negativos. Sangue, plasma ou outros biomateriais ri‑ cos em proteínas podem neutralizar o efeito do povidine, mas não do gluconato de clorexidina. Inserção do cateter Cada dia adicional aumenta o risco potencial de infecção. O risco-benefício deve ser sempre cuidadosamente ponderado. Realizar higienização adequada das mãos antes da inser‑ ção. A inserção deve ser realizada com técnica asséptica, utili‑ zando luvas, avental, gorro, máscaras e campos largos (barrei‑ ra máxima de proteção). Trata-se de medida preventiva com importante impacto na prevenção das infecções associadas a CVC.16,18 Se a técnica asséptica não tiver sido garantida, inserir novo acesso. Inserção guiada por ultrassonografia deve ser realizada por profissionais treinados e habilitados. Profilaxia antimicrobiana
Não há indicação antes da inserção ou durante uso do cate‑ ter.16 Anticoagulante
Não utilizar rotineiramente. Sítio de inserção do cateter venoso central
Avaliar e individualizar a decisão. Em pacientes pediátricos, não há relação direta entre sítio de inserção e risco de infec‑ ção.19 Experiência clínica
A maior experiência profissional na inserção de CVC diminui o risco de infecção. Curativos
Utilizar gaze simples recoberta com esparadrapo fino ou cura‑ tivos transparentes porosos e permeáveis à umidade, que per‑ mitam a respiração da pele, evitando a formação de umidade local. Manter o curativo limpo e seco. Curativos impregnados com clorexidina estão indicados em situações em que as taxas de infecção persistirem acima do valor máximo aceitável, a despeito da adesão às medidas de prevenção.16 Utilização de pomadas antimicrobianas no sítio de inser‑ ção não está indicada.16 O cateter não deve ser submerso em água. Tempo de permanência dos cateteres
Não há tempo predefinido para permanência do CVC, porém ele deve permanecer o menor tempo possível e ser retirado caso não haja mais indicação clínica de sua presença. Há rela‑ ção direta entre tempo de permanência do cateter e risco de infecção.20
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Troca rotineira do cateter venoso central e utilização de fio-guia
Não há indicação.16 A troca do CVC, quando indicada, utilizan‑ do fio-guia ou a inserção em novo sítio, permanece como uma decisão clínica, e o risco-benefício de cada procedimento deve ser analisado individualmente. Na presença de infecção no sí‑ tio de inserção do CVC, é recomendada venopunção em novo sítio. Troca do equipo e sistemas de infusão
A prática de troca rotineira de equipos e dos sistemas de infu‑ são não tem suporte na literatura. As recomendações orien‑ tam no sentido da troca de equipos a cada 72 horas ou mais, devendo-se utilizar equipo próprio para nutrição parenteral, hemoderivados e lipídios.16,21 Não perfurar bolsa, frasco semirrígido ou rígido com o obje‑ tivo de permitir a entrada de ar. A troca do frasco deve respeitar o tempo de infusão e a esta‑ bilidade da solução ou do fármaco reconstituído. Os conectores devem ser autosseláveis e transparentes, permitindo a visualização de seu interior e evitando o acúmu‑ lo de sangue; os componentes devem ser isentos de látex. De‑ vem apresentar resistência ao álcool e permitir alto fluxo de in‑ fusão. Devem ainda ser compatíveis com os acessórios e sistemas de infusão e extensores multivias e não dificultar a coleta de sangue para exames de laboratório. Realizar desinfecção das conexões com solução alcoólica sempre antes de acessar o dispositivo. A troca dos conectores deve ser realizada a cada 72 a 96 ho‑ ras ou de acordo com a recomendação do fabricante. Filtros de linha não devem ser utilizados com o propósito de prevenir infecção. Cuidados com manipulação e preparo de medicação
Não utilizar frasco de fluido parenteral se a solução estiver vi‑ sivelmente turva, apresentar precipitação ou corpo estranho. Usar frascos de dose individual para soluções e medicações, quando possível. Não misturar sobras de frascos de uso indivi‑ dual para uso posterior. Se o frasco multidose for utilizado, refrigerá-lo após aberto conforme recomendação do fabricante. Limpar diafragma do frasco multidose com álcool 70% antes de perfurá-lo. Usar dis‑ positivo estéril para acessar o frasco multidose e descartar o frasco se a sua esterilidade estiver comprometida. O conjunto de agulha e seringa deve ser utilizado uma única vez e descar‑ tado após o uso. Material dos cateteres
A aderência do microrganismo à superfície do cateter depende da interação entre fatores do hospedeiro, fatores do microrga‑ nismo e material do cateter. Em relação ao microrganismo, o principal fator relacionado a sua aderência é a capacidade de produção de slime, um tipo de limo constituído por substância glicoproteica importante na formação do biofilme.
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O objetivo dos fabricantes é desenvolver cateteres não trombogênicos, que não provoquem respostas do hospedeiro, não irritem o vaso sanguíneo e tenham pouca irregularidade em sua superfície, dificultando a possibilidade de os microrga‑ nismos se alojarem em sua parede. É flexível para permitir a li‑ vre passagem pela vasculatura, mas não a ponto de tender à torção ou à quebra. Cateteres de Teflon® e de poliuretano, por terem superfície mais lisa, serem mais maleáveis e relativamente inertes ao hospedeiro, possibilitam menor aderência de microrganismos do que os cateteres de PVC. Cateteres impregnados com antissépticos e/ou antimicrobianos
Em virtude do maior custo desses cateteres, a eficácia e o cus‑ to-benefício de sua utilização devem ser avaliados antes de sua ampla indicação, bem como o risco de indução de resis‑ tência bacteriana. Sua utilização está indicada quando as ta‑ xas de infecção associada ao cateter se mantiverem elevadas a despeito da realização e da monitoração das medidas preven‑ tivas.15 Banho com gluconato de clorexidina
O banho diário com gluconato de clorexidina 2 ou 4% pode ser utilizado em situações em que as taxas de infecção persistem acima do valor máximo aceitável, a despeito da implantação de todas as outras medidas de prevenção citadas, quando houver histórico de múltiplas infecções de corrente sanguínea no passado e a disponibilidade de acessos vasculares for limi‑ tada ou quando a consequência de eventual bacteriemia rela‑ cionada a cateter for muito grave (p.ex., em pacientes com próteses endovasculares ou em pré-operatórios de cirurgias cardíacas). Conector recoberto com prata reduziria a colonização do canhão (hub) em razão da atividade antimicrobiana da prata. Seu uso rotineiro não é indicado até o momento, pois não há evidência de redução de infecção associada ao CVC. Pacote de medidas (bundle)
Estudos avaliando a eficácia da implementação de pacotes de medidas têm demonstrado diminuição das taxas de infecção de cerca de 40%.13-15 Cateteres centrais de inserção periférica (PICC)
O procedimento de inserção deve ser iniciado em região da fossa anticubital, podendo ser consideradas as veias basílica, a cubital média, a cefálica e a braquial. A assepsia da pele deve ser realizada com antisséptico, e o de escolha é o gluconato de clorexidina. Na presença de suji‑ dade, realizar previamente a degermação da pele. A inserção deve ser realizada por enfermeiro adequada‑ mente treinado e com técnica asséptica e precauções de bar‑ reira máxima que incluam o uso de máscara, gorro, luvas esté‑ reis, avental estéril e campo ampliado estéril. Utilizar curativo com gaze estéril nas primeiras 24 horas. Após esse período, substituir por curativo semiporoso.
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O tempo de permanência máxima do PICC não é conheci‑ do, podendo ser utilizado por períodos prolongados, não ha‑ vendo indicação de troca rotineira.
senta visivelmente sujo. Estudos foram realizados enfocando os umidificadores utilizados na ventilação mecânica, entre‑ tanto, os resultados são inconclusivos.
Flebotomia
Educação permanente Está associada à diminuição das taxas de infecção. Estudo de intervenção educacional mostrou diminuição de 46% pós-in‑ tervenção.
Não há recomendação para uso dessa via de forma rotineira.
15
Pneumonia22-28 Entubação traqueal O procedimento deve ser asséptico e seguido de medidas para prevenção de aspiração. É recomendada utilização de sequên‑ cia rápida de entubação com medicamentos que facilitem a execução do procedimento e diminuam riscos e complicações da entubação traqueal. Como o tubo endotraqueal é o principal fator de risco asso‑ ciado à pneumonia, ele deve ser avaliado diariamente, seguin‑ do protocolos para diminuição do tempo de ventilação e su‑ cesso na extubação. Minimizar o uso de narcóticos e adequar a sedação do paciente pode ajudar a diminuir o risco de aspira‑ ção de conteúdo gástrico, além de diminuir o tempo de venti‑ lação mecânica. Cuidados de enfermagem e fisioterapia Posicionamento dos pacientes
Para evitar o refluxo gastroesofágico e a aspiração, os pacien‑ tes devem ser mantidos em decúbito semielevado; a posição supina está associada com aumento de PAV em adultos. A simples elevação para decúbito de 30° pode diminuir a inci‑ dência de PAV em até 34%. Mudança de decúbito dos pacientes a cada 2 horas pode melhorar a drenagem pulmonar.
Descontaminação seletiva O uso de antibióticos tópicos em traqueostomias, como pasta de polimixina e tobramicina, mostrou redução no desenvolvi‑ mento da colonização exógena e de infecção no trato respira‑ tório inferior, porém o risco de colonização endógena perma‑ nece alto. Estudos realizados em pediatria utilizando descontamina‑ ção seletiva têm resultados conflitantes. Medicamento para prevenção de sangramento gástrico A profilaxia da úlcera de estresse não tem um papel importan‑ te na prevenção de PAV, mas é recomendada por prevenir complicações hemorrágicas do trato gastrointestinal. Ventilação mecânica não invasiva Sempre que possível, deve ser utilizada.
Pacote de medidas (bundle approach) A melhor estratégia é o desenvolvimento e a implementação de pacote de medidas, com envolvimento de equipe multidis‑ ciplinar visando a:29,30 • evitar/diminuir entubação endotraqueal e duração de venti‑ Higiene das mãos lação mecânica; É comprovada a associação da lavagem de mãos com a dimi‑ • evitar sedação profunda e bloqueio neuromuscular com de‑ nuição de infecção hospitalar. pressão de reflexo de tosse; • manter o balonete do tubo traqueal com pressão adequada; Higiene oral • evitar que a condensação no circuito retorne às vias aéreas in‑ A descontaminação oral, para reduzir a quantidade de bacté‑ feriores; rias dentro da cavidade oral, pode ser mecânica ou medica‑ • manter a cabeceira elevada 30 a 45°; mentosa. A intervenção mecânica consiste na escovação de • fazer higiene oral e das mãos. dentes e lavagem da cavidade oral para remover a placa dental, enquanto a intervenção farmacológica envolve uso de antibió‑ Trabalho realizado em 5 países em desenvolvimento avalian‑ ticos locais e clorexidina. Estudos mostraram efeito protetor do a eficácia da implementação de pacotes de medidas obser‑ da higiene oral com clorexidina. vou redução de 31% das taxas de pneumonia após a imple‑ mentação dos pacotes de medida (11,7 pneumonias/1.000 Aspiração das vias aéreas ventilações mecânica-dia para 8,1). O muco parado em vias aéreas pode ser substrato para cresci‑ mento bacteriano, e a manutenção de técnicas assépticas para Infecção do trato urinário31 aspiração é essencial para prevenir a contaminação das vias Mais de 90% das infecções urinárias hospitalares são associa‑ aéreas. das à sonda vesical; assim, sua indicação deve ser precisa. Não há recomendação do CDC considerando o uso prefe‑ A inserção deve ser considerada um procedimento poten‑ rencial de circuito aberto ou fechado de aspiração. cialmente infectante para o paciente, de maneira que deve ser realizada com cuidados assépticos. A higiene genital deve ser Troca do circuito do aparelho realizada previamente à passagem da sonda, seguida de des‑ A troca diária ou mesmo semanal de circuito não diminui a in‑ contaminação tópica com uso de clorexidina. A manipulação cidência de PAV, sendo indicada troca apenas quando se apre‑ das sondas deve ser feita por pessoal experimentado para pre‑
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Infecção Hospitalar em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica •
venir lesões traumáticas de passagem. As sondas devem ser estéreis e manipuladas com cuidados assépticos, com uso de luvas estéreis e máscaras pelo operador da sondagem. Durante o uso de uma sonda vesical, ocorre sua coloniza‑ ção retrógrada. Assim, a infecção do trato urinário (ITU) é pro‑ porcionalmente mais frequente quanto maior for o tempo de permanência e manipulação dessa sonda. Como regra de se‑ gurança, a sondagem vesical deve durar o tempo estritamente necessário para resolução da indicação do seu uso e este deve ser o menor tempo possível. Sondagens vesicais demoradas devem ser desencorajadas e evitadas. Uma vez que não haja mais indicação de uso, a sonda vesical deve ser imediatamen‑ te retirada. Não se deve manipular o sistema de drenagem ve‑ sical ao qual a sonda está conectada. Sistemas fechados de drenagem são nitidamente superio‑ res aos sistemas abertos no que diz respeito à prevenção de ITU. A coleta de amostras urinárias de um sistema fechado de drenagem deve ser realizada com técnica asséptica e nos lo‑ cais específicos para coleta existentes nos sistemas. Uma vez que ocorra abertura ou contaminação de um siste‑ ma de drenagem fechado, ele deve ser imediatamente substi‑ tuído por um novo. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer as principais infecções hospitalares que ocorrem dentro da UTI: pneumonia associada à ventilação mecânica, infecção da corrente sanguínea relacionada ao cateter e infecção do trato urinário. • Estabelecer estratégias para prevenir essas infecções que causam alta taxa de permanência, morbidade e mortalidade nas UTI. • Saber quais estratégias são eficazes. • Iniciar o tratamento adequado dessas infecções, com base na epidemiologia local.
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CAPÍTULO 10
SEDAÇÃO E ANALGESIA José Roberto Fioretto Paulo Ramos David João
Introdução dano tecidual real ou potencial. Do ponto de vista prático, Existe a crença de que as crianças não respondem nem se re‑ pode ser definida como “o que o paciente diz que dói” e existe cordam das experiências dolorosas da mesma forma que os “quando o paciente diz isso”.1,2 A avaliação da dor é direta para adultos. Todavia, todas as conexões nervosas essenciais para pacientes que estão suficientemente alertas para relatar, por a transmissão e a percepção da dor já estão presentes e funcio‑ meio de fala, movimentação da cabeça ou apontando, a res‑ nantes ao redor da 24ª semana de gestação. Assim, a densida‑ peito da intensidade da dor. de das terminações nervosas cutâneas no recém-nascido é Atualmente, existem instrumentos para medir a dor em igual ou superior à dos adultos. A velocidade de condução crianças de todas as idades, embora poucos tenham sido vali‑ mais lenta dos estímulos dolorosos é compensada por distân‑ dados para crianças em ambiente de terapia intensiva. Em cias interneuronais mais curtas, e os feixes nervosos medula‑ menores de 2 anos de idade, a avaliação é dificultada. Crianças res e do tronco cerebral estão completamente mielinizados a entre 3 e 7 anos de idade são capazes de fornecer informações partir da 30ª semana de gestação. apropriadas a respeito da dor. Para esse grupo, os métodos Neste capítulo, será feita uma revisão dos principais anal‑ mais comuns para avaliação da dor são os de autorrelato, que gésicos e sedativos utilizados em pediatria e suas indicações utilizam instrumentos como escala analógica visual de 10 cm nas diversas situações enfrentadas pelos pediatras, principal‑ ou escala com medidas extremas ancoradas por números (de mente nas emergências. 0 a 10), descrição (“sem dor” a “pior dor”) ou diagrama (face sorrindo à face chorando), por meio dos quais o paciente indi‑ Definições ca seu nível de dor. Para maiores de 8 anos de idade, pode-se 1. Analgesia: alívio da percepção da dor sem a produção inten‑ utilizar uma escala visual análoga (Figura 1).3,4 cional do estado de sedação. A alteração do nível de consciên‑ Em lactentes e recém-nascidos, a dor tem sido avaliada por cia pode ser efeito secundário das medicações administradas. meio de medidas de respostas fisiológicas a estímulos noci‑ 2. Alívio da ansiedade: situação na qual não há alteração do ní‑ ceptivos, como variações da frequência cardíaca e pressão ar‑ vel de consciência, existindo apenas diminuição do estado de terial, na escala observacional da dor (observational pain scale apreensão. – OPS). Esse tipo de escala apresenta problemas, pois os parâ‑ 3. Sedação: redução controlada do nível de consciência e/ou metros avaliados não são específicos e podem não estar rela‑ percepção da dor mantendo os sinais vitais estáveis, a via aé‑ cionados ao nível de sedação. Como alternativa, métodos rea independente e a respiração espontânea adequada. comportamentais têm utilizado expressão facial, movimentos 4. Sedação profunda: depressão profunda do nível de consciên‑ corpóreos e intensidade e qualidade do choro como índices de cia a qualquer estímulo. Este estado é frequentemente acom‑ resposta aos estímulos dolorosos.3,5,6 panhado por perda dos reflexos de proteção e necessita de conduta adequada de vias aéreas, ventilatória e controle da Avaliação do nível de sedação3 pressão arterial.1 A avaliação do nível de sedação é ainda mais difícil que a ava‑ liação da dor. Além disso, uma pesquisa identificou que me‑ Avaliação da dor e do nível de sedação nos da metade dos intensivistas utilizam escalas para monito‑ Avaliação da dor rar o nível de sedação. A Associação Internacional para o Estudo da Dor define dor A escala de Comfort é comumente utilizada em unidade de como uma experiência emocional não prazerosa associada a terapia intensiva (UTI) pediátrica para avaliação da dor e da
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sedação e usa parâmetros comportamentais e fisiológicos.2 É composta por 5 variáveis comportamentais (consciência, ten‑ são facial, tônus muscular, agitação, movimento) e 3 fisiológi‑ cas (frequência cardíaca, respiração, pressão arterial), às quais é atribuída uma nota de 1 a 5 para resultar em um escore total que varia de 8 (sedação profunda) a 40 (alerta e agitado), sen‑ do que: • escores < 17: sedação excessiva; • escores entre 17 e 26: sedação adequada; • escores > 26: sedação insuficiente (Tabela 1). Princípios gerais de sedação e analgesia A terapia farmacológica para sedação e analgesia é necessária à maioria dos pacientes em pediatria. No entanto, medidas não farmacológicas devem sempre ser consideradas, como: • controle do ambiente: diminuição das fontes de estímulos vi‑ suais e sonoros; • utilização de objetos para acalmar as crianças, principalmen‑ te aqueles já conhecidos por elas; • explicações a respeito dos procedimentos; • reforço positivo; • fisioterapia com terapia ocupacional; • presença dos pais; • intervenções psicológicas. Quando a terapia medicamentosa é utilizada, deve-se consi‑ derar a presença de comorbidades, possível interação medica‑ mentosa, procedimento a ser realizado, estado neurológico e hemodinâmico. As medicações são frequentemente adminis‑ tradas por via endovenosa (EV) contínua, porém, a infusão contínua tem sido associada a prolongamento do tempo de in‑ ternação na UTI, de modo que a terapia intermitente ou a in‑
terrupção programada diária da sedação vem sendo emprega‑ da para evitar efeitos excessivos e prolongados indesejáveis. Apesar de prevalecer o emprego de associação de drogas para propiciar tanto sedação quanto analgesia e obter sinergis‑ mo das drogas, diversos estudos sugerem que é mais efetivo promover inicialmente a analgesia. Analgesia em pediatria Analgésicos não opioides com atividade antipirética – analgésicos “fracos” Neste grupo, estão incluídos o paracetamol, os salicilatos (as‑ pirina), o ibuprofeno, o diclofenaco sódico e o naproxeno (Ta‑ bela 2). Promovem alívio da dor por bloqueio central e periféri‑ co da prostaglandina pela inibição da cicloxigenase tipos 1, 2 e 3. Além desses, cabe mencionar a dipirona, utilizada para tra‑ tamento da dor pós-operatória. Entre os anti-inflamatórios não hormonais (AINH), o ceto‑ rolaco tem sido utilizado em pós-operatório, incluindo cirur‑ gia cardíaca, com a finalidade de reduzir o uso de opioides. É o único utilizado nos Estados Unidos.2 Não causa depressão res‑ piratória e seu efeito colateral mais importante é nefrotoxici‑ dade. Em um estudo com 284 crianças com idades entre 3 e 18 anos e em pós-operatório de cirurgia cardíaca, a elevação da creatinina foi similar no grupo que usou o cetorolaco e no gru‑ po controle, havendo redução de uso de opoide no grupo ceto‑ rolaco. A limitação do estudo foi o uso do cetorolaco por um tempo máximo de 5 dias. A dose recomendada é de 0,5 mg/ kg/dose (máximo de 15 mg), a cada 6 horas. Analgésicos opioides1-3,8,9 Os opioides mais comumente utilizados para o tratamento da dor são os agonistas de receptores M, incluindo meperidina,
Escala numérica 0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Escala de faces
Sem dor
Pior dor possível
Escala de copos
0
1
2
3
4
5
Figura 1 Escalas para avaliação da dor em diferentes idades.
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Sedação e Analgesia •
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Tabela 1 Escala de Comfort Alerta Sono profundo
1
Sono leve
2
Cochilando
3
Totalmente acordado e alerta
4
Hiperalerta
5
Calma/agitação Calmo
1
Levemente
2
Ansioso
3
Muito ansioso
4
Pânico
5
Resposta respiratória Sem tosse e respiração espontânea
1
Respiração espontânea com pouca ou nenhuma resposta à ventilação
2
Tosse ocasional ou resistência ao respirador
3
Respiração ativa contra o respirador ou tosse regular
4
Briga com o respirador, tosse ou sufocação
5
Movimento físico Sem movimento
1
Movimento leve ocasional
2
Movimento leve frequente
3
Movimentos vigorosos limitados às extremidades
4
Movimento vigoroso incluindo tronco e cabeça
5
Linha de base da pressão arterial (pressão arterial média) Pressão abaixo da linha de base
1
Pressão arterial consistentemente na linha de base
2
Elevações infrequentes de 15% ou mais (1 a 3 durante o período de observação)
3
Elevações frequentes de 15% ou mais (mais de 3) acima da linha de base
4
Elevação sustentada > 15%
5
Linha de base da frequência cardíaca (FC) FC abaixo da linha de base
1
FC consistemente na linha de base
2
Elevações infrequentes (1 a 3) de 15% ou mais acima da linha de base, durante o período de observação
3
Elevações frequentes (> 3) de 15% ou acima da linha de base
4
Sustentada > 15%
5
Tônus muscular Músculos totalmente relaxados sem tônus
1
Tônus reduzido
2
Tônus normal
3
Tônus aumentado e flexão de extremidades
4
Rigidez muscular extrema e flexão de extremidades
5
Tensão facial Músculos faciais totalmente relaxados
1
Músculos faciais com tônus normal, sem tensão facial evidente
2
Tensão evidente em alguns músculos da face
3
Tensão evidente em todos os músculos da face
4
Músculos faciais contorcidos
5
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1920 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
Tabela 2 Doses dos analgésicos não opioides mais comumente utilizados7 Droga
Dose (mg/kg) < 60 kg
Dose (mg/kg) > 60 kg
Intervalo (horas)
Dose máxima diária (mg/kg) < 60 kg
Dose máxima diária (mg/kg) > 60 kg
Efeitos colaterais
Acetaminofeno
10 a 15a
650 a 1000
4
100a
4000
Doses tóxicas: hepatotoxicidade; não tem atividade anti-inflamatória
Ibuprofeno
5 a 10
400 a 600c
6
40b,c
2400c
Irritação gastrointestinal, broncoespasmo; hematúria
Naproxeno
5 a 6c
250 a 375c
12
24b,c
1000c
Ver ibuprofeno
Aspirinad
10 a 15c,d
650 a 1000c
4
80b,c,d
3600c
Síndrome de Reyed; ver ibuprofeno
Dipirona
15
1000
6
60
2000
Reação alérgica, agranulocitose
a Dose máxima diária para paracetamol deve ser reduzida para 80 mg/kg em recém-nascidos a termo e lactentes, e para 60 mg/kg em prematuro; supositórios são disponíveis (dose: 25 a 40 mg/kg a cada 6 horas). b Doses ainda não estabelecidas. c Doses mais altas podem ser utilizadas em casos selecionados de problemas reumatológicos. d Aspirina pode provocar síndrome de Reye em crianças. Se outros analgésicos estiverem disponíveis, o uso da aspirina deve ser restrito aos casos em que efeitos antiplaquetários ou anti-inflamatórios são necessários. e Evitar na agranulocitose.
morfina e fentanil, sendo os dois últimos os mais utilizados em UTI pediátrica. Morfina É a droga padrão desse grupo e pode ser utilizada por via EV, oral, intramuscular (IM), epidural ou retal para analgesia e se‑ dação. Trata-se de um opioide moderadamente potente, mui‑ to utilizado por via EV nas seguintes doses: • pacientes com menos de 50 kg: 0,1 mg/kg a cada 0,5 a 2 ho‑ ras, ou em infusão contínua de 0,025 mg/kg/hora; • pacientes com mais de 50 kg: de 5 a 10 mg a cada 0,5 a 2 horas, ou em infusão contínua de 2 mg/hora. Comparada ao fentanil, tem início de ação mais demorado e maior duração de efeitos. Tem como vantagem a redução da taquipneia e, como desvantagem, a redução da pressão arte‑ rial, além de depressão respiratória, broncoespasmo, retenção urinária, diminuição do esvaziamento gástrico e acúmulo em casos de falência hepática e renal. Fentanil É um dos narcóticos mais potentes, indicado para reduzir ou prevenir a dor (potência 100 vezes superior à da morfina), com início de ação em menos de 1 minuto, pico de ação em 5 minu‑ tos e duração de ação 30 a 60 minutos após injeção EV. Apre‑ senta eliminação hepática. Utilizado nas seguintes doses: • pacientes com menos de 50 kg: de 1 a 4 mcg/kg EV ou IM (máximo de 100 mcg/dose) em bolo, ou em infusão contínua na dose de 0,02 a 0,05 mcg/kg/min (1 a 5 mcg/kg/hora), (máximo de 500 mcg/hora); • pacientes com mais de 50 kg: de 25 a 50 mcg a cada 1 a 2 horas, ou infusão de 25 a 100 mcg/hora. Tem como efeitos colaterais depressão respiratória, hipoten‑ são, bexigoma, constipação e vômitos. Infusões rápidas po‑ dem causar rigidez de caixa torácica, dificultando a ventilação.
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Metadona Inicialmente empregada para tratamento de pacientes que de‑ senvolveram tolerância ao uso prolongado de outros narcóti‑ cos, vem sendo utilizada para o alívio da dor pós-operatória e da dor intratável. Apresenta potência similar à da morfina, com eliminação lenta e duração de analgesia bastante prolon‑ gada. A meia-vida de eliminação é de 19 horas, podendo pro‑ mover de 12 a 36 horas de analgesia após uma única dose EV ou oral. As indicações de dose são: • pacientes com menos de 50 kg: 0,1 mg/kg a cada 4 a 8 horas; • pacientes com mais de 50 kg: de 5 a 10 mg a cada 4 a 8 horas. Os efeitos colaterais são liberação histamínica, hipotensão, bradicardia, depressão respiratória e sedação excessiva. Remifentanil Analgésico opioide com rápido início de ação (1 a 3 minutos) e curta duração (10 a 20 minutos), podendo ser infundido sem risco de acúmulo. Rapidamente, pode levar ao desenvolvi‑ mento de tolerância, além de apresentar custo elevado. Causa bradicardia, hipotensão e aumento da pressão intracraniana. A dose de ataque é de 0,5 a 1 mcg/kg, e a dose de infusão con‑ tínua é de 0,1 a 0,5 mcg/kg/min. Alfentanil Opioide analgésico que também apresenta começo de ação rá‑ pido (1 minuto) e duração de ação de 30 a 60 minutos, depen‑ dendo da dose. Tem como desvantagens indução de bradicar‑ dia, hipotensão e aumento de pressão intracraniana, mais pronunciadas que fentanil e sufentanil. Sufentanil Analgésico 5 a 10 vezes mais potente que o fentanil, com efei‑ tos cardiovasculares semelhantes. Apresenta eliminação he‑ pática e tem como vantagem a apresentação nasal, que atinge concentrações plasmáticas semelhantes à EV.
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Tramadol Anestésicos locais são drogas que, reversivelmente, blo‑ Utilizado no tratamento da dor moderada (1/10 da potência queiam a condução dos impulsos neuronais ao longo das vias da morfina), tem início de ação em 20 a 30 minutos, por via nervosas centrais e periféricas. As principais indicações de oral (VO), e duração de ação de 3 a 7 horas. Sua biodisponibili‑ uso são: limpeza de feridas, punção lombar e medular, blo‑ dade é de 90% após a administração oral; t (1/2) 6 horas, com queio de nervos digital, peniano, femoral e intercostal, punção pico de concentração sérica de 2 horas, metabolismo hepático de veias e artérias e lesões traumáticas.2,9 e eliminação renal. Pode ser utilizado por via EV, oral, subcu‑ tânea (SC) e muscular. A dose é de 1 a 2 mg/kg/dose a cada 6 Bupivacaína horas (máximo de 500 mg/dia). Entre as drogas empregadas com esse propósito, a bupivacaí‑ Os efeitos colaterais são: convulsões (contraindicado em na é ainda muito utilizada. A dose recomendada é de 2 mg/kg convulsivos), diaforese e taquicardia transitória (sobretudo sem adrenalina e 3 mg/kg com adrenalina. Quando adminis‑ após injeção EV rápida), náuseas, vômitos e constipação. Re‑ trada em infusão contínua por via epidural, a dose é de 0,2 a comenda-se associação com tranquilizantes e evita-se admi‑ 0,4 mg/kg/hora. As doses devem ser reduzidas em 50% em nistrá-lo em pacientes tratados com inibidores da monoami‑ recém-nascidos. A duração de ação é de 3 a 6 horas.2,9 noxidase, antidepressivos tricíclicos, inibidores seletivos da recaptação da serotonina, neurolépticos, drogas que baixam o Ropivacaína limiar para convulsões (carbamazepina) e intoxicação por A ropivacaína é uma nova droga que apresenta melhor risco‑ drogas de ação central, como etanol ou barbitúricos. -benefício, pois tem menor cardiotoxicidade que a bupivacaína. As doses e a duração de ação da ropivacaína são as mesmas da Óxido nitroso10 bupivacaína.2,8 Trata-se de um agente anestésico inalatório, geralmente utili‑ zado com oxigênio para procedimentos dolorosos curtos, Lidocaína como remoção de drenos. Fornece ansiólise, amnésia e analge‑ A lidocaína pode ser utilizada em infiltrações locais para al‑ sia leve a moderada. Para se obter analgesia mais adequada, guns procedimentos dolorosos, em crianças de mais idade que deve ser associado a um opioide. Tem início de ação em 30 a necessitem de sedação leve com midazolam. A dose máxima 60 segundos, com efeito máximo de 5 minutos. Tem como de lidocaína é de 5 mg/kg; se associada à adrenalina, a dose é vantagens, pouco efeito sobre os sistemas cardiovascular e res‑ de 7 mg/kg. piratório e reflexos de vias aéreas. Como efeitos adversos mais A adição de adrenalina aos anestésicos locais diminui sua comuns, destacam-se sonolência, náuseas, vômitos e tonturas. absorção no local administrado, aumentando o tempo que o anestésico fica em contato com as fibras nervosas. Com a lido‑ Analgesia controlada pelo paciente (PCA)6,9 caína, por exemplo, a adição de adrenalina aumenta a duração Apesar de a administração contínua de opioides ser efetiva do bloqueio sensorial em quase 50% e diminui seu pico plas‑ para a maioria das condições que se apresentam em UTI pe‑ mático para 1/3. A bupivacaína e a ropivacaína são menos afe‑ diátrica, existem certas situações que exigem uma abordagem tadas pela adição de adrenalina, por serem mais lipossolúveis. diferenciada no que se refere à titulação da dose do opioide. A concentração de adrenalina nos anestésicos deve ser de 5 a Assim, sistemas de liberação de PCA têm sido desenvolvidos 10 mcg/mL (1:200.000 a 100.000). para proporcionar aos pacientes e, em alguns casos, aos pais e Uma boa opção para alívio da dor antes de punções vascu‑ enfermeiros, alguma forma de controlar seu tratamento, o que lares, coleta de sangue e punção lombar, utilizada apenas sob exige que a criança tenha desenvolvimento intelectual e ma‑ pele íntegra, é o EMLA. O EMLA é uma combinação de anes‑ nual suficientes para operar a bomba de infusão, sendo limita‑ tésicos locais (lidocaína a 2,5% e prilocaína a 2,5%) em uma emulsão de óleo em água que penetra a pele a uma profundi‑ da a crianças de mais idade e adolescentes. A bomba de infusão para PCA permite que o paciente ad‑ dade de 5 mm. A medicação deve ser colocada sob a pele 1 ministre pequenas quantidades de um analgésico, de acordo hora antes do procedimento e coberta com curativo oclusivo. com sua necessidade, para aliviar a dor mais rapidamente. A O pico de ação ocorre 2 horas após a aplicação e a analgesia dose do opioide, o número de bolos por hora e o intervalo en‑ prolonga-se por 1 hora após a remoção.2,9,17 Sua absorção sistê‑ tre os bolos são programados pelo assistente no equipamento. mica pode levar a metemoglobinemia em crianças com menos O computador da bomba de PCA estoca em sua memória o de 3 meses de idade. número de bolos que o paciente recebeu e o número de tenta‑ tivas que o paciente fez para receber uma dose. Essas informa‑ Sedação em pediatria ções permitem que o médico assistente analise como o pa‑ Benzodiazepínicos1-3,7-9 ciente está interagindo com o aparelho e avalie o melhor Diazepam esquema de tratamento. É o benzodiazepínico mais antigo e vem sendo amplamente substituído pelo midazolam. É pobremente solúvel em água e Analgesia local e regional o veículo solvente para administração parenteral contém vá‑ A utilização deste tipo de analgesia diminui a necessidade dos rios solventes orgânicos tóxicos para neonatos. Essa pobre so‑ opioides sistêmicos, principalmente em lactentes e neonatos. lubilidade em água torna a absorção pela via IM errática e in‑
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completa, preferindo-se a administração oral, retal ou EV (dolorosa e pode causar flebite). Quando administrado pela via EV, a dose é de 0,05 a 0,1 mg/kg, que rapidamente alivia a ansiedade e a apreensão. Adicionalmente, essa mesma dose pode ser utilizada como anticonvulsivante. A dose oral é de 2 a 3 vezes a dose EV e leva cerca de 30 a 90 minutos para produ‑ zir efeito hipnótico semelhante.
disso, quando o paciente tem quadro doloroso associado, seu uso em baixas doses pode aumentar a percepção da dor. Essas drogas têm pronunciado efeito sobre o sistema cardiovascular (depressão miocárdica e hipotensão), devendo ser utilizadas com cautela em pacientes hemodinamicamente instáveis.
Pentobarbital O pentobarbital não tem propriedades analgésicas e produz Midazolam sedação profunda, hipnose e amnésia, sendo útil em exames O midazolam é solúvel em água e é 4 vezes mais potente que o de diagnóstico por imagem não invasivos. O tempo para o pico diazepam, sendo utilizado tanto em infusão EV contínua de sedação é de 3 a 5 minutos (EV), e a duração da ação é de como para procedimentos rápidos. É bem absorvido pelas vias 30 a 40 minutos. As doses são: oral, IM, retal e transmucosal. Como outras drogas de sua clas‑ • EV: 1 a 6 mg/kg, titulada em incrementos de 1 a 2 mg/kg a se, tem propriedade hipnótica, ansiolítica, amnésica e anti‑ cada 3 a 5 minutos para obter o efeito desejado; convulsivante. Seus principais efeitos colaterais são depres‑ • IM: 2 a 6 mg/kg (máximo de 100 mg); são respiratória e hipotensão. • VO e retal: para menores de 4 anos de idade, 3 a 6 mg/kg (má‑ Quando utilizado para sedação antes de procedimentos ou ximo de 100 mg); para maiores de 4 anos, 1,5 a 3 mg/kg (má‑ como pré-medicação, pode ser administrado por diversas vias ximo de 100 mg). e em diferentes doses: Tiopental • via EV: 0,05 a 0,1 mg/kg; • via IM: 0,1 mg/kg; O tiopental exibe praticamente as mesmas características do • via retal: 0,3 a 1 mg/kg; pentobarbital, com tempo para o pico de sedação de menos de • via oral (VO): 0,5 a 1 mg/kg – dose máxima: 20 mg; 1 minuto e duração da ação de 10 a 45 minutos. A dose de ata‑ • via nasal: 0,2 mg/kg. que é de 3 a 5 mg/kg por via EV, seguida de infusão contínua de 1 a 5 mg/kg/hora. Pela via retal, pode ser utilizado na dose A via EV é a que apresenta começo de ação mais rápido e me‑ de 2 a 30 mg/kg.1-3,9 nor duração de ação. Quando administrado pela via retal, leva cerca de 10 minutos para produzir seus efeitos, enquanto pela Hidrato de cloral VO o tempo para início de ação pode chegar a 20 a 30 minutos. Produz sedação e ansiólise sem analgesia, sendo útil para exa‑ Em ambiente de UTI pediátrica, o midazolam é utilizado mes diagnósticos por imagem não invasivos e eletroencefalo‑ em infusão EV contínua de 3 a 10 mcg/kg/min após dose de grama (EEG) em crianças de até 3 anos de idade. A adminis‑ ataque de 0,2 mg/kg. Tolerância e dependência desenvolvem‑ tração pode causar sedação excessiva e vômitos. O tempo para -se após infusão prolongada (após 5 dias) e se a droga for inter‑ o pico de sedação é de 30 minutos, e a duração da ação é de 60 rompida abruptamente. Os sintomas de abstinência de mida‑ a 120 minutos, com tempo de recuperação de 2 a 7 horas. O zolam são os mesmos da abstinência de álcool e ocorrem uso prolongado não é recomendado, em virtude do acúmulo quando a dose cumulativa excede 60 mg/kg, podendo ser ali‑ da droga e por relatos de potencial efeito carcinogênico. viados pela administração de clonidina, na dose de 3 a 5 mcg/ A dose recomendada por VO é de 25 a 100 mg/kg, podendo kg VO. Como opção, a retirada da droga deve ser lenta, com re‑ ser administrados mais 25 a 50 mg/kg após 30 minutos. A dução gradual da dose. dose máxima total é de 2 g ou 100 mg/kg, a que for menor. Em menores de 12 meses, a dose máxima é de 50 mg/kg. Pela via Lorazepam retal, utiliza-se a dose de 50 mg/kg.2,3 Benzodiazepínico solúvel em água 5 a 10 vezes mais potente que o diazepam. Tem ação prolongada (2 a 4 horas) com início Etomidato de ação rápido, sendo boa opção de droga ansiolítica e hipnóti‑ Produz sedação, ansiólise e amnésia semelhantes aos barbitú‑ ca. É menos afetado por doença hepática e não tem metabóli‑ ricos. A profundidade da sedação não é bem documentada, tos ativos.7,9,17 com alterações hemodinâmicas discretas. É útil em procedi‑ É efetivo quando administrado por VO ou EV. No Brasil, mentos como entubação traqueal com instabilidade hemodi‑ apenas a apresentação oral dessa droga está disponível. A nâmica. O tempo para o pico de sedação é de menos de 1 mi‑ dose EV é de 0,05 a 0,1 mg/kg (dose máxima de 2 mg), sendo nuto (EV), e a duração da ação é de 5 a 10 minutos (EV). Pode a dose oral 2 vezes maior que a EV. causar depressão respiratória, mioclonia, vômitos e falência suprarrenal (uso restrito em choque séptico). A dose EV é de Barbitúricos 0,1 mg/kg, sendo repetida, se necessário.2,3,9 São utilizados em ambiente de terapia intensiva em casos de hipertensão intracraniana e no estado de mal epiléptico. Embo‑ Propofol ra sejam eficazes como sedativos, a longa meia-vida e a dispo‑ O propofol apresenta rápido começo de sedação com perfil de nibilidade de drogas mais seguras têm limitado seu uso. Além recuperação rápido e suave e efeito hipnótico relacionado à
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Sedação e Analgesia •
dose. Útil para procedimentos breves e repetitivos (diagnósti‑ co por imagem e irradiação para câncer). O tempo para o pico de sedação é de 0,5 a 2 minutos (EV), e a duração da ação é de 5 a 20 minutos (EV). A dose EV é de 1 a 2,5 mg/kg, seguida de 0,5 mg/kg, quan‑ do necessário. A dose em infusão contínua é de 5 a 10 mg/kg/ hora. Apresenta como efeitos colaterais: dor local, mioclonia, hipotensão e depressão respiratória (8 a 30%). Há relato da chamada “síndrome de infusão de propofol”, que cursa com acidose e falência cardíaca e renal. Apesar de bastante utiliza‑ do em UTI de adultos, sua utilização em pediatria requer mais estudos.1-3,9 Sedativo dissociativo A cetamina é um agente dissociativo que induz um estado de catalepsia que promove sedação, analgesia e amnésia. Tem como vantagens o fato de manter as funções cardiovascular e respiratória estáveis, da mesma forma que mantém o tônus muscular e os reflexos protetores de vias aéreas. Pode ser utili‑ zada por via nasal, oral, EV e IM. Quando administrada pela via EV, o início de ação (1 a 2 minutos) e a recuperação (30 a 60 minutos) são rápidos. É contraindicada em menores de 3 me‑ ses, pacientes com via aérea instável, cirurgia traqueal recente, estenose traqueal, hipertensão intracraniana, glaucoma, psi‑ cose, doença da tireoide e doença cardiovascular. A dose EV é de 1 a 1,5 mg/kg lentamente, em 1 a 2 minutos, podendo ser repetida a cada 10 minutos. Em geral, a dose de 4 mg/kg é suficiente para induzir anestesia. Pela via IM, a dose é de 4 a 5 mg/kg, podendo ser repetida a cada 10 minutos, juntamente com atropina (0,01 mg/kg) e midazolam (0,1 mg/ kg). Pela VO, a dose é de 5 mg/kg, juntamente com atropina (0,02 mg/kg) e midazolam (0,5 a 1 mg/kg). Há, também, o uso em infusão EV contínua, na dose de 1 a 4 mg/kg/hora. Os principais efeitos colaterais são aumento de secreções, saliva‑ ção e alucinações (raras em crianças).1-3,9 Dexmedetomedine • Farmacocinética: alfa-2-agonista seletivo (ações analgésica e sedativa potentes); t (1/2) 6 minutos; • dose: 1 mcg/kg em 10 minutos, EV; • infusão contínua: 0,2 a 0,7 mcg/kg/hora; • efeitos colaterais: hipotensão e bradicardia; • observações: uso restrito a pacientes hemodinamicamente estáveis e monitorados. Em um estudo, com 121 crianças mecanicamente ventiladas e com causas diversas de internação, com idade entre 2 meses e 21 anos, realizado na Universidade de Washington, necessida‑ de de intervenção clínica por bradicardia e hipotensão ocorreu em 33 pacientes (33%). Descontinuação da medicação foi ne‑ cessária em 12 (10%), principalmente por bradicardia.3,10
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Clonidina Tem efeito por ativação de receptores alfa-2 periféricos e cen‑ trais, levando à redução de liberação de norepinefrina e ativi‑ dade nervosa simpática com analgesia, sedação, supressão do delirium e diminuição da pressão arterial e frequência cardíaca. Preserva o drive respiratório, a função renal e as atividades cardíaca e vasomotora barorreflexas. Em modelos animais, combate a depressão respiratória causada pelo midazolam. Em razão desses efeitos, a clonidina é indicada em analgesia e sedação pediátricas para pré-medicação, para tratamento de sintomas de abstinência causada por opioides e outros sedati‑ vos, para tratar síndrome de abstinência neonatal, para anes‑ tesia caudal, peridural e intradural, para redução de uso de se‑ dativos e analgésicos e para anestesia pós-operatória. As doses são 2 a 4 mcg/kg EV ou VO, a cada 8 horas, ou 1 a 2 mcg/ kg/hora em infusão contínua.3,11 Tolerância, dependência e abstinência2,9 Tolerância é o desenvolvimento da necessidade de aumentar a dose de um opioide ou benzodiazepínico para obter o mesmo efeito analgésico ou sedativo alcançado previamente com uma dose menor. A tolerância ao efeito analgésico da morfina desenvolve-se após 10 a 21 dias de administração e raramente ocorre constipação. Abstinência é o aparecimento de sinais e sintomas físicos (taquicardia, hipertensão, vômitos, sudorese, febre, agitação, tremores, convulsões) em resposta à retirada ou à suspensão abrupta da droga. Está relacionada ao uso pro‑ longado e a altas doses. Dependência física é a necessidade do organismo de conti‑ nuar a receber a droga para evitar sintomas de abstinência. Ge‑ ralmente, ocorre 2 a 3 semanas após a administração de morfi‑ na, mas pode ocorrer em poucos dias. Escore de abstinência O escore de abstinência segundo Finnigan está exposto na Ta‑ bela 3. A Figura 2 mostra um algoritmo com as medicações utiliza‑ das na sequência rápida de entubação, sendo interessante a todos os profissionais de emergências e UTI. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer as principais escalas de avaliação de dor e de analgesia utilizadas em Pediatria. • Estar atualizado com farmacocinética, farmacodinâmica, doses e efeitos colaterais dos principais fármacos utilizados para sedação e analgesia em crianças. Também ter conhecimento de estratégias não farmacológicas para alívio de dor. • Estabelecer um protocolo de retirada de drogas para evitar abstinência e saber reconhecer suas alterações clínicas.
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Tabela 3 Escore de Finnigan Componentes do sistema (sinal/sintomas)
Escores
Choro Excessivo
2
Contínuo
3
Sono após a alimentação < 1 hora
3
< 2 horas
2
< 3 horas
1
Reflexo de Moro Hiperativo
2
Moderadamente hiperativo
3
Tremores Leve, interrompido
1
Moderado/grave, interrompido
2
Moderado/grave, não cessa
3
Aumento de tônus muscular
2
Bocejos frequentes
2
Escoriações
1
Convulsões
5
Sudorese
1
Febre 37,8 a 38,3°C
1
> 38,3°C
2
Pele marmórea
1
Congestão nasal
1
Espirros
1
Batimento de asa nasal
2
Tabela 4 Sugestão de analgésicos e sedativos para diferentes situações clínicas18,22 Pronto-socorro
Sugestão
Alternativas
Flebotomia, acesso arterial e EV
EMLA
Lidocaína
Cateterização uretral, sonda nasogástrica
Lidocaína viscosa
Punção lombar e medular
EMLA + midazolam
TC
Midazolam ou propofol ou tiopental
Ecocardiograma, EEG
Hidrato de cloral
RM
Midazolam
Endoscopia
Propofol ou midazolam
Sutura, laceração, queimadura
Fentanil + midazolam
Cetamina + atropina ou midazolam
Incisão e drenagem de abscessos e tórax
Midazolam + fentanil
Cetamina + atropina ou midazolam ou óxido nitroso
Redução de luxações
Midazolam + fentanil
Óxido nitroso/ cetorolaco
Redução de fraturas
Midazolam + fentanil
Cetamina + atropina Óxido nitroso
Debridamento de queimaduras
Quetamina + atropina + midazolam
Fentanil Óxido nitroso
1
> 60 resp/min, com tiragens
2
Sucção excessiva
1
Aceitação alimentar ruim
2
Regurgitação
2
Vômito em jato
3
Fezes Amolecidas
2
Aquosas
3
Propofol
Na UTI
Sugestão
Alternativas
Dor pós-operatória Benzodiazepínico
Morfina ou fentanil contínuo Após: paracetamol e codeína
Cetorolaco
TCE com aumentos da PIC
Tiopental em bolo Midazolam + fentanil
Evitar cetamina
Asma
Entubação: benzodiazepínico + cetamina Manutenção: cetamina/fentanil + midazolam
Frequência respiratória > 60 resp/min
Midazolam e cetamina Morfina ou fentanil
TC: tomografia computadorizada; EEG: eletroencefalograma; RM: ressonância magnética; TCE: traumatismo cranioencefálico; PIC: pressão intracraniana.
Escore: 0 a 7: sintomas leves; 8 a 11: abstinência moderada; 12 a 15: abstinência grave; > 8: necessidade de tratamento.
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Sedação e Analgesia •
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Pré-medicação Atropina* Lidocaína (para TCE ou HIC) Sedação
Normotenso
Midazolam
Hipovolêmico
Midazolam ou cetamina
TCE ou HIC
Normotenso Tiopental
Hipotenso Midazolam
Hipotenso
Mal asmático
Cetamina
Cetamina
Bloqueio neuromuscular
Succinilcolina
TCE ou HIC Rocurônio/atracúrio
Figura 2 Sequência rápida de entubação.3,12
* Dose da atropina: 0,02 mg/kg/dose EV (mínimo 0,1 mg; máximo 1 mg). Dose da succinilcolina: lactentes: 2 mg/kg/dose EV; crianças: 1 a 1,5 mg/kg/dose EV (dobrar a dose para uso IM). Dose do rocurônio: 0,6 a 1,2 mg/kg/dose EV. Dose do atracúrio: 0,5 mg/kg/dose EV. TCE: traumatismo cranioencefálico; HIC: hipertensão intracraniana.
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CAPÍTULO 11
DISTÚRBIOS DO METABOLISMO DO SÓDIO E POTÁSSIO E DO EQUILÍBRIO ACIDOBÁSICO Mario Roberto Hirschheimer
Distúrbios do metabolismo do sódio A hiponatremia ocorre em 15 a 42% dos pacientes hospitaliza‑ dos e, em até 2/3 dos casos, é adquirida durante a hospitali‑ zação.1‑6 A hipernatremia, embora rara à admissão hospitalar, acomete cerca de 8% dos pacientes durante a hospitalização.7 Os distúrbios do sódio (Na+) associam‑se à elevada morbi‑ mortalidade e ao aumento dos custos da internação hospita‑ lar.3,5,8 A taxa de mortalidade, a duração da hospitalização e a necessidade de admissão na UTI são maiores em pacientes que adquiriram hiponatremia ou hipernatremia no hospi‑ tal,9‑14 entretanto, os distúrbios do Na+ adquiridos no hospital são passíveis de prevenção por intervenções terapêuticas apropriadas e monitoração frequente da natremia.3,15,16
celular). A hipernatremia reflete aumento da quantidade de Na+ em relação à água e se associa‑se à redução do volume IC (desidratação celular).16,17 Grandes aumentos de ureia e de glicose no CEC podem al‑ terar a osmolalidade plasmática, como ocorre em portadores de diabete melito. O Na+ e os ânions que o acompanham são os principais de‑ terminantes da osmolalidade plasmática, que pode ser calcu‑ lada pela fórmula:
Fisiologia do sódio e da água A água é o componente mais abundante do corpo, cujo peso corresponde ao teor de água, que varia com as proporções rela‑ tivas de músculo e gordura. Metade da água corpórea total lo‑ caliza‑se na musculatura esquelética. Em adolescentes e adul‑ tos, a água representa cerca de 60% da massa corpórea, enquanto recém‑nascidos e lactentes jovens têm de 70 a 80% (Figura 1). Dois terços da água corpórea situam‑se no compar‑ timento intracelular (CIC) e 1/3, no compartimento extracelu‑ lar (CEC). Setenta por cento do fluido filtrado pelos rins são reabsorvidos no túbulo proximal, e o restante da concentração urinária ocorre sob a influência do hormônio antidiurético (HAD) no túbulo distal e no duto coletor.16,17 O Na+ é o principal cátion do CEC. O conteúdo de Na+ deter‑ mina o volume do CEC, porque o Na+ e os ânions que o acom‑ panham, como o cloro (Cl‑) e bicarbonato (HCO3‑), são prima‑ riamente restritos ao CEC. Déficit de Na+ implica contração do volume CEC, enquanto excesso de Na+ no organismo indica expansão do CEC. A quantidade de Na+ em relação à água re‑ flete o volume do IC, pois a água se move livremente através das membranas celulares em direção ao equilíbrio osmótico. Assim, a hiponatremia indica diminuição do conteúdo de Na+ em relação à água e sinaliza expansão do volume IC (edema
sendo: [Na+] em mEq/L e [glicose] em mg/dL. A ureia não influencia o movimento de água através das membranas.16,17
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Osmolalidade plasmática = 2 × [Na+] + [glicose] (mOsm/kg de H2O) 18
% do peso em água 100 90 80 70
ACT
60
VEC
50
VIC
40 30 20 10 0 RNPT
RNT
< 1 ano 1 a 12 anos > 12 anos
Figura 1 Mudanças na proporção da água corpórea em relação ao peso corpóreo com o crescimento.18
ACT: água corpórea total; VEC: volume extracelular; VIC: volume intracelular.
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Distúrbios do Metabolismo do Sódio e Potássio e do equilíbrio acidobásico •
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Balanço da água19 duto coletor são impermeáveis à água, formando urina maxi‑ O balanço de água depende da ingestão e da excreção de água mamente diluída, com débito urinário elevado e osmolalidade livre, reguladas por discretas alterações na osmolalidade efeti‑ urinária mínima de 50 mOsm/kg de água. Redução importan‑ va e no volume do CEC. Células osmorreceptoras, localizadas te da função renal, baixa oferta de Na+ ao túbulo contornado no hipotálamo, estimulam ou inibem os centros da sede e de proximal, uso de diurético de alça (como a furosemida) e pre‑ liberação de HAD. Quando há aumento da osmolalidade plas‑ sença de HAD alteram a capacidade de diluição urinária. mática, os osmorreceptores perdem volume, estimulando a O aumento da tonicidade ou a queda do volume efetivo cir‑ sede e a liberação de HAD; quando cai a osmolalidade plasmá‑ culante (contração do CEC, hipoalbuminemia, insuficiência tica, os osmorreceptores edemaciam, inibindo a sede e dimi‑ cardíaca) estimula a liberação de HAD, com diminuição da ex‑ nuindo a liberação de HAD. creção renal de água livre. A queda de pressão arterial ou da contração do CEC (queda A resposta renal apropriada à contração do volume EC é a do volume circulante maior que 7 a 10%) atua em barorrecep‑ excreção de urina com baixo conteúdo de Na+ e Cl-. Normal‑ tores estimulando a liberação de HAD e a sede. De modo con‑ mente, 99,5% da carga filtrada de Na+ são reabsorvidos, po‑ trário, o aumento da volemia ou da pressão arterial inibe a li‑ dendo atingir 100% na presença de contração do volume EC. A beração do HAD e a sede. Embora os osmorreceptores sejam taxa de filtração glomerular diminui quando o volume do EC é mais sensíveis, o estímulo da hipovolemia sobre barorrecepto‑ reduzido. A falha em conservar Na+ e Cl- em situações de con‑ res prevalece, sendo capaz de aumentar a sede e a liberação de tração do volume EC indica perda renal de sal. Havendo ex‑ HAD mesmo em situações de osmolalidade plasmática efetiva pansão do volume EC, ocorre aumento da taxa de filtração glo‑ aumentada, protegendo o organismo contra o choque. merular e diminuição da reabsorção de Na+, resultando em Apesar de a ingestão diária de solutos e água ser bastante aumento da natriurese.16,17 variável, a osmolalidade plasmática mantém-se entre 285 e 295 mOsm/kg de água. Aumento de 1 a 2% na osmolalidade Hormônio antidiurético plasmática é um estímulo potente para desencadear a sede. A O HAD ou arginina-vasopressina, sintetizado nos núcleos su‑ contração do CEC em 7 a 10% também estimula a sede, possi‑ praóptico e paraventricular do hipotálamo, é armazenado e se‑ velmente pelo aumento das taxas de angiotensina II. A hipos‑ cretado pela neuro-hipófise em resposta ao aumento da osmo‑ molalidade e a hipervolemia exercem efeito inibitório sobre a lalidade sérica e à diminuição do volume arterial efetivo. sede. Existem dois receptores para a HAD: vasopressina-1 (V1) e va‑ Portadores de certas doenças neurológicas que impedem a sopressina-2 (V2). Quando o HAD liga-se ao V1 (receptor vascu‑ sensação de sede (hipodipsia ou adipsia) e pacientes incapa‑ lar), ocorre aumento da pressão arterial. No túbulo distal e no zes de obter água, como lactentes, pacientes entubados ou se‑ duto coletor, o HAD liga-se a receptores V2, levando à formação dados e portadores de deficiência física ou neurológica, apre‑ de AMP cíclico e ativação da proteinaquinase A. Dessa forma, o HAD favorece a inserção dos canais de água (aquaporinas 2) sentam riscos maiores de desenvolver distúrbios hiperosmolares e desidratação. Por outro lado, hábitos cultu‑ na membrana luminal dos túbulos coletores, tornando-os per‑ rais ou pessoas com doenças psiquiátricas ou neurológicas po‑ meáveis à água, possibilitando sua reabsorção do meio menos dem ingerir grandes quantidades de água mesmo sem estímu‑ concentrado (luminal) para o mais concentrado (interstício medular). Assim, há diminuição do débito urinário e formação lo fisiológico para tal. A perda de água ocorre via pulmões, pele, trato gastrointes‑ de urina com osmolalidade elevada, conservando água livre. tinal e, sobretudo, rins. As perdas insensíveis variam com a re‑ Sob a ação do HAD, a osmolalidade urinária pode atingir de lação superfície corpórea/peso, a frequência respiratória, a 700 (em recém-nascidos) até 1.200 mOsm/kg de água. Além atividade física, a temperatura ambiente e o estresse. As per‑ do aumento da osmolalidade sérica e da redução do volume ar‑ das pelo trato gastrointestinal normalmente são pequenas, terial efetivo, outros estímulos fisiológicos aumentam a libera‑ mas devem ser consideradas na presença de doenças intesti‑ ção de HAD, como dor, náuseas, ansiedade e estresse.16,17 nais. A excreção renal é fundamental para a manutenção da composição e do volume do CEC e depende primordialmente Aldosterona A aldosterona20 é a molécula efetora final do sistema renina‑ da ação renal do HAD. A excreção de água livre depende do ritmo de filtração glo‑ -angiotensina e atua nas células epiteliais do néfron distal e merular (RFG) e da oferta adequada de água, Na+ e Cl- ao túbu‑ do cólon, promovendo reabsorção de Na+ e excreção de potás‑ lo contornado proximal. Caminhando pelo néfron, na porção sio (K+). A água segue o movimento do Na+ via osmose, esta‑ descendente da alça de Henle, o interstício medular hipertôni‑ bilizando o volume plasmático e, consequentemente, a pres‑ co reabsorve água, aumentando a tonicidade do fluido lumi‑ são arterial. nal. Na alça de Henle ascendente, ocorre reabsorção de Na+ e A elevação da pressão arterial é induzida pela aldosterona de Cl- por meio do cotransportador Na+/K+/Cl- na membrana por meio da ativação dos receptores de mineralocorticoide luminal (sítio de ação da furosemida), igualando a tonicidade (MR) em regiões circunventriculares no sistema nervoso cen‑ intersticial à luminal, diminuindo a osmolalidade do líquido tral (SNC). A aldosterona age também modulando o tônus luminal e favorecendo a excreção de água livre nos segmentos vascular, aumentando a resposta pressórica induzida por cate‑ distais. Na ausência de HAD, o túbulo contornado distal e colaminas e por ação nos receptores de angiotensina II. Ela
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também promove a deposição de colágeno em vasos sanguí‑ neos e músculo cardíaco, favorecendo a fibrose e a hipertrofia cardíaca. O efeito principal da aldosterona nos tecidos epiteliais é promover a reabsorção de Na+ e a secreção de K+ e hidrogênio (H+). Liga-se aos receptores de membrana, aumentando o nú‑ mero e a atividade da bomba Na+/K+-ATPase na membrana basolateral e facilitando a abertura dos canais de Na+ na mem‑ brana luminal. O transporte de Na+ pela membrana apical de tecidos epiteliais é mediado pelo canal de Na+ epitelial (ENaC) sensível à amilorida e representa o passo limitante no trans‑ porte iônico regulado pela aldosterona. O ENaC é encontrado nas células epiteliais que reabsorvem sais e revestem o néfron distal, cólon distal, dutos salivares, glândulas sudoríparas e pulmão. Desempenha um papel crítico na homeostasia do Na+, volume sanguíneo e pressão arterial. O transporte ativo pela membrana basolateral é catalisado pela bomba de Na+ e K+ ATP dependente (Na/K ATPase). Peptídios natriuréticos
Os peptídios natriuréticos (PN)21,22 apresentam importantes ações cardiovasculares, renais, endócrinas e parácrinas, sendo descritos quatro tipos: peptídio natriurético atrial (PNA), pep‑ tídio natriurético do tipo B (PNB), peptídio natriurético do tipo C (PNC) e peptídio natriurético do tipo D (PND). Em conjunto, contrabalançam os efeitos do sistema reni‑ na-angiotensina-aldosterona (SRAA). O PNA e o PNB são produzidos nos átrios e ventrículos do coração e secretados por distensão dessas câmaras cardíacas e pela elevação da pressão arterial. Seus efeitos agudos são o au‑ mento do RFG e da excreção renal de Na+ e água, por meio da inibição da bomba de Na+/K+-ATPase e dos ENaC sensíveis à amilorida, bem como supressão da secreção de renina e de al‑ dosterona. Eles produzem vasodilatação sistêmica e renal, au‑ mento da permeabilidade vascular, efeitos anti-inflamatórios, antiproliferativos e antifibróticos. Suas concentrações plas‑ máticas aumentam em resposta à distensão do tecido atrial antagonizando os efeitos da angiotensina II no tônus vascular, na secreção de aldosterona, na reabsorção de Na+ e no cresci‑ mento celular vascular. O PNC é encontrado predominantemente no cérebro e em células endoteliais. Suas concentrações no plasma são muito baixas. Ele é produzido em pequenas quantidades pelo cora‑ ção e seus efeitos renais ainda são pouco compreendidos. Atua na placa de crescimento endocondral, promovendo re‑ modelamento vascular, proliferação de fibroblastos e cresci‑ mento linear dos ossos longos. As ações do PND ainda são desconhecidas. A maioria dos efeitos dos PN é mediada por receptores es‑ pecíficos de membrana, que ativam a guanilato-ciclase e pro‑ duzem monofosfato de guanosina cíclico (GMPc). O PNA e o PNB ligam-se ao receptor do tipo A (NPR-A), enquanto o PNC liga-se preferencialmente ao receptor do tipo B (NPR-B). Am‑ bos são abundantes na vasculatura, no coração, nos rins, nas glândulas suprarrenais e nos pulmões, mas o NPR-B apresen‑ ta maior expressão no cérebro.
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Os efeitos tubulares do PNA e do PNB incluem inibição da reabsorção proximal de Na+, bloqueio da reabsorção de Na+ nos dutos coletores medulares, inibição das ações da angio‑ tensina II nos túbulos proximais e antagonismo da vasopressi‑ na nos dutos coletores corticais. Em pacientes saudáveis, a administração de PNA produz aumento da fração de filtração, por causa do relaxamento das células mesangiais, e mantém ou eleva a taxa de filtração glomerular, por meio de vasodilata‑ ção das arteríolas aferentes e, possivelmente, vasoconstrição das arteríolas eferentes. Balanço do sódio A natremia19 varia de 135 a 145 mEq/L. Já a concentração de Na+ intracelular varia entre 10 e 20 mEq/L, de acordo com o tipo de célula. O balanço de Na+ depende de sua ingestão e de sua excre‑ ção renal. A ingestão de Na+ está pouco relacionada a estímu‑ los fisiológicos, variando principalmente com hábitos cultu‑ rais. A perda de Na+ pelo suor é irrelevante, estando aumentada na fibrose cística, na doença de Addison e na for‑ ma sistêmica do pseudo-hipoaldosteronismo tipo 1, e dimi‑ nuída no hiperaldosteronismo. A absorção de Na+ intestinal é limitada, e sua excreção em situações normais é pequena. Portanto, o conteúdo de Na+ depende basicamente da excre‑ ção ou retenção de Na+ no nível renal. Variações no conteúdo de Na+ repercutem sobre o volume do CEC, mais significativamente sobre o volume circulante efetivo (volemia). Quando há sobrecarga de Na+, o CEC expan‑ de e ocorre hipervolemia; quando o conteúdo de Na+ diminui, o CEC contrai e ocorre hipovolemia. Barorreceptores localiza‑ dos em artérias e veias centrais são sensíveis a alterações no volume circulante e estimulam ou inibem a reabsorção de Na+. Os principais mediadores desse mecanismo são os hormônios angiotensina II (AT II) e aldosterona e os PN. Alterações físi‑ cas renais e atividade simpática também influenciam a excre‑ ção renal de Na+ (Tabela 1). Excreção renal de sódio
O balanço de Na+ depende de fatores que regulam a excreção e a reabsorção de Na+ nos segmentos do néfron.19 Em situações normais, mais de 90% do Na+ filtrado tem que ser reabsorvido para manter o balanço de Na+ do organismo. No túbulo proxi‑ mal, ocorre aproximadamente 2/3 da reabsorção de Na+. Como esse segmento é permeável à água, a osmolalidade luminal é igual à do CEC. No entanto, as células tubulares são dotadas de bombas localizadas na membrana basolateral (contraluminal) Tabela 1 Efeito da volemia sobre a natriurese23 Alteração volêmica Regulação
Mediador
Efeito
Hipervolemia
↑ PVC ↑ RFG
↑ PN ↓ Renina/AT II/ Aldosterona
↑ Natriurese
Hipovolemia
↑ Atividade simpática ↓ RFG
↑ Catecolaminas ↑ Renina/AT II/ Aldosterona
↓ Reabsorção de sódio
PVC: pressão venosa central; RFG: ritmo de filtração glomerular; PN: peptídio natriurético; AT II: angiotensina II.
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DISTÚRBIOS DO METABOLISMO DO SóDIO E POTÁSSIO E DO EqUILÍBRIO ACIDOBÁSICO •
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que, à custa de ATP, joga três íons de Na+ para fora transportan‑ Hiponatremia do dois íons de K+ para dentro da célula, mantendo a concen‑ É definida pela concentração plasmática de Na+ abaixo de 135 tração de Na+ intracelular baixa e tornando a célula carregada mEq/L. A hiponatremia indica diminuição da relação Na+/ negativamente em relação ao lúmen, criando um gradiente ele‑ H2O, que pode ocorrer em virtude de perda de Na+ ou ganho de troquímico para reabsorção de Na+. O transporte de Na+ para o água, e implica expansão do volume IC. Portanto, a hiponatre‑ CIC ocorre principalmente acoplado a outras moléculas ou nu‑ mia causa edema celular, exceto em situações de hiperglice‑ trientes (cotransportadores), como glicose, aminoácidos, fos‑ mia ou uso de manitol, que levam à hiponatremia por translo‑ fato e ânions orgânicos. A eletroneutralidade é mantida pela cação, decorrente do desvio de água do IC para o EC.16,17 Essa reabsorção de Cl‑ ou, em menor parte, pela troca do íon H+ se‑ hiponatremia é dilucional e não ajuíza a perda de Na+. cretado para a luz tubular, regenerando bicarbonato. Na presença de hiponatremia, deve‑se descartar a pseudo‑ Na alça ascendente de Henle, a reabsorção de Na+ ocorre ‑hiponatremia, que ocorre quando há aumento da fase não ativamente por meio do cotransportador eletroneutro Na+/ aquosa do plasma, como em situações de hiperlipidemia ou hi‑ K+/Cl‑ (inibido por furosemida) e a favor do gradiente criado perproteinemia, e o método laboratorial utilizado. Quando o pela bomba Na+/K+‑ATPase na membrana basolateral. A método laboratorial usado for a fotometria de chama, por reabsorção de Na+ depende da concentração luminal de Na+ e exemplo, é medida a concentração de Na+ no volume plasmáti‑ é estimulada pela ação de HAD na porção grossa da alça as‑ co total, e não na água plasmática, levando a uma interpretação cendente e inibida por diuréticos de alça (furosemida). No tú‑ equivocada de hiponatremia. Outros métodos, como eletrodo bulo contornado distal, a reabsorção de Na+ está acoplada ao Na+ seletivo ou método da condutância, medem a concentra‑ cotransporte ativo de Cl‑, gerando elevado gradiente transepi‑ ção de Na+ na água plasmática, evitando o problema.16 telial de Na+. Como esse segmento é praticamente impermeá‑ vel à água, o uso de diurético tiazídico, capaz de inibir o co‑ Respostas fisiológicas à hiponatremia transportador Na+/Cl‑, compromete a excreção de água livre e A resposta renal apropriada ao déficit de Na+ (contração do vo‑ a capacidade de diluição urinária. lume EC) é evitar a excreção adicional de Na+, Cl‑ e água na uri‑ O duto coletor é o segmento onde acontece a reabsorção de na. A urina deve ter baixa concentração de Na+ e Cl‑ e alta os‑ + Na e Cl‑ em troca da secreção tubular de K+ e H+. A aldostero‑ molalidade. Altas concentrações de Na+ e Cl‑ na urina de na favorece a abertura de canais de Na+ e, em situações de hi‑ pacientes com hiponatremia e contração do volume EC suge‑ povolemia, praticamente todo Na+ é reabsorvido nesse seg‑ rem perda renal de Na+. A resposta renal apropriada ao exces‑ mento. Já em situações de hipervolemia, ocorre liberação de so de água é excretar volume máximo de urina diluída (osmo‑ PNA, que inibe a reabsorção de Na+ (Figura 2). lalidade urinária < 100 mOsm/kg de água). Se esta resposta não for observada, o HAD pode estar agindo.16,17 Etiologias
As principais causas de hiponatremia estão listadas na Tabela 2. Hiponatremias hipovolêmicas Insuficiência suprarrenal
Túbulo proximal
Túbulo distal
Na+ H Na+ Glicose Fosfato Aminoácidos Citrato
+
Na+ Cl-
Túbulo coletor
Na+ K+ 2Cl-
Na+ K
+
+
-
Alça de Henle
Figura 2 Excreção renal de sódio.24
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K+
Doença de Addison, hiperplasia congênita de suprarrenal, sín‑ drome de Waterhouse‑Friderichsen, choque séptico, adreno‑ leucodistrofia, tuberculose de suprarrenal e tumores de hipófi‑ se são doenças que cursam com insuficiência suprarrenal e deficiência de cortisol. As deficiências de cortisol e aldosterona causam, respectivamente, queda da volemia efetiva, por conta da redução do débito cardíaco e da contração do CEC pela per‑ da de Na+. Isso estimula a liberação de HAD, piorando a hipo‑ natremia. O uso prolongado de corticosteroides (por mais de 2 semanas) pode levar à supressão do hormônio adrenocortico‑ trópico (ACTH), causando insuficiência suprarrenal secundá‑ ria após a suspensão abrupta do tratamento. Medicações como etomidato, cetoconazol, dopamina, betabloqueadores, espiro‑ nolactona e inibidores da prostaglandina inibem a ação da al‑ dosterona e podem produzir sintomas mais leves. A crise addi‑ soniana é desencadeada por situações de estresse (trauma, cirurgia, infecção) e pode se apresentar com choque hipovolê‑ mico não responsivo à ressuscitação fluídica. A associação com hiperpotassemia e acidose metabólica é frequente. O tratamen‑ to com reposição hormonal deve ser iniciado imediatamente.
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Tabela 2 Diagnóstico diferencial das hiponatremias • Hiponatremia com osmolalidade aumentada (dilucional ou falsa), plasma e urina hipertônicas, natriúria < 15 mEq/L • Hiponatremia com osmolalidade normal (factícia, artefatual ou pseudo-hiponatremia), plasma e urina isotônicos, natriúria variável • Hiponatremia com osmolalidade diminuída (verdadeira), plasma e urina hipotônicos Volemia Diminuída
Natriurese
Causas
Perdas renais > 20 mEq/L (urina iso ou hipostenúrica)
Diurese osmótica por:
Manitol Ureia Glicose (diabete melito)
Uso de natriuréticos: efeito imediato Insuficiência suprarrenal Síndrome perdedora de sal cerebral (cerebral salt wasting syndrome) Fase poliúrica da insuficiência renal Diurese pós-obstrutiva Acidose tubular renal Alcalose metabólica Perdas extrarrenais < 15 mEq/L (urina hipertônica)
Perdas hipertônicas
Doenças diarreicas agudas* Drenagem de líquidos cavitários# Perdas para o 3º espaço por: • queimaduras extensas • traumas musculares • pancreatite • peritonites • derrame pleural Diabete melito Fibrose cística Resinas de troca iônica Natriuréticos: efeito tardio
Desnutrição Dieta hipossódica Hipopotassemia* Aumentada ou normal
> 20 mEq/L (urina iso ou hipostenúrica)
Intoxicação hídrica (potomania) Insuficiência renal avançada SIHAD*
< 15 mEq/L (urina hipertônica)
Insuficiência cardíaca congestiva Hipoalbuminemia por:
Insuficiência hepática Síndrome nefrótica Desnutrição grave
> 20 mEq/L (urina mais hipertônica que a esperada: > 50 mOsm/kg de água) < 15 mEq/L (urina hipertônica)
SIHAD Hipotireoidismo Polidipsia primária Dieta hipossódica Clísteres hipotônicos Distúrbios de osmorreceptores
* Se ocorrer com alcalose metabólica, então: sódio urinário > 20 mEq/L e Cl urinário < 15 mEq/L. SIHAD: síndrome da secreção inapropriada de hormônio antidiurético. # Derrame pleural e ascite.
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Distúrbios do Metabolismo do Sódio e Potássio e do equilíbrio acidobásico •
Síndrome perdedora de sal cerebral (SPS)
A SPS é definida pela excreção excessiva de Na+ e Cl-, na pre‑ sença de contração do volume arterial efetivo, em pacientes com lesão cerebral e sem evidência de outras causas para o au‑ mento da excreção de Na+ e Cl-. Caracteriza-se por osmolalida‑ de urinária maior que a osmolalidade plasmática e concentra‑ ção urinária de Na+ elevada (> 80 mEq/L) na presença de balanço cumulativo negativo de Na+ ou Cl-. Provavelmente, a incidência de SPS seja muito menos comum do que a literatu‑ ra sugere.25-27 A SPS pode ser resultado do aumento da secreção de peptí‑ dio natriurético cerebral (BNP) com supressão subsequente de síntese aldosterona, descrito em pacientes com trauma cra‑ niano e hemorragia subaracnoide. Níveis de HAD podem estar aumentados em resposta à hipovolemia. A terapia de reposi‑ ção de mineralocorticoides (acetato de fludrocortisona) tem sido eficaz em alguns pacientes.28-30 Os critérios de exclusão do diagnóstico de SPS são a pre‑ sença de uma razão fisiológica para a excreção de Na+ e Cl-, como a expansão do volume EC, ou uma causa não cerebral para a natriurese, como a administração exógena de diurético, estados diurético-símiles (como síndrome de Bartter, síndro‑ me de Gitelman, hipoaldosteronismo) e insuficiência renal poliúrica. O diagnóstico de SPS é de exclusão e só pode ser feito na ausência de um estímulo fisiológico para o aumento da natriu‑ rese. Por exemplo: pacientes com trauma cranioencefálico fre‑ quentemente recebem grandes volumes de ressuscitação hí‑ drica durante o atendimento inicial na sala de trauma e mesmo antes de chegar ao hospital, na cena do trauma ou du‑ rante o transporte para a unidade de saúde. Pacientes com he‑ morragia subaracnóidea em geral recebem infusões agressivas de solução salina, a “terapia dos três H” (hipervolemia/hemo‑ diluição/hipertensão) para prevenir o vasoespasmo, melhorar o fluxo sanguíneo cerebral e evitar a isquemia tardia. Assim, a expansão prévia do volume EC pode ser responsável pela na‑ triurese excessiva nesses pacientes.27 A presença de déficit total de Na+ e Cl- deve ser confirmada para determinar contração do volume do EC. Para estabelecer se há déficit de Na+, é necessário calcular o balanço de Na+ e água, e não se basear apenas na concentração urinária de Na+ ou em sua taxa de excreção.31 Ao se fazer o balanço de Na+, inclui-se o K+ nos cálculos por‑ que o Na+ pode entrar nas células junto com a saída do K+. Fre‑ quentemente, o diagnóstico de SPS é feito com base no balan‑ ço negativo de Na+ em apenas 1 dia. Entretanto, é importante que se analise o balanço cumulativo, considerando todas as infusões e eliminações, desde o início do atendimento (in‑ cluindo aquelas na ambulância, sala de trauma, centro cirúrgi‑ co, etc.). Para que se estabeleça o diagnóstico de SPS, um balanço cumulativo negativo de Na++, K+ e Cl- deve estar presente. O ba‑ lanço cumulativo negativo de Na+ deve exceder 2 mEq/kg, que é a excreção esperada de Na+ em pessoas saudáveis que diminuem agudamente sua ingestão de sal. Na maioria dos casos, as medidas dos eletrólitos urinários não estão disponí‑
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veis durante toda a internação, porque as urinas iniciais costu‑ mam ser desprezadas. Contudo, é possível calcular estimati‑ vas bastante razoáveis de balanços de Na++, K+ e Cl- com os dados obtidos dos prontuários dos pacientes, desde que se co‑ nheçam o volume total de fluido administrado, o volume total de urina e de outros fluidos eliminados e as concentrações plasmáticas iniciais e finais de Na+, K+ e Cl-.32 Assim: Balanço de (Na+ + K+) = [([Na+]f + [K+]f) × ACTf] – [([Na+]i + [K+]i) × ACTi] Balanço de Cl = ([Cl-]f × ACTf) – ([Cl-]i × ACTi) ACT: água corpórea total (70% do peso corpóreo em lactentes jovens, 65% em crianças e 60% em adolescentes e adultos); i: inicial; f: final; ACTf = ACTi + balanço hídrico. Quando o paciente recebe grandes volumes de salina isotôni‑ ca durante vários dias, a sobrecarga de sal pode causar aumen‑ to da pressão arterial e induzir natriurese fisiológica. Além dis‑ so, o volume arterial efetivo expandido por período prolongado leva à infrarregulação (down-regulation) da reabsorção renal de Na+, por internalização dos componentes de reabsorção de Na+ no túbulo proximal. Havendo redução da taxa de infusão de salina nessa situação, o paciente continuará a excretar Na+ até que seus transportadores sejam reinseridos nas membra‑ nas celulares do néfron proximal. Assim, uma forma de perda renal de sal secundária se desenvolve, mas isso não é SPS, pois há uma razão fisiológica para a natriurese elevada, ou seja, o balanço cumulativo positivo de Na+ e Cl-.16,27 Hiponatremia adquirida durante a hospitalização
A hiponatremia adquirida durante a hospitalização relaciona‑ -se à administração de fluidos hipotônicos em situações em que há aumento da secreção de HAD.3,33-35 Na maioria dos ser‑ viços pediátricos, as necessidades hídricas de manutenção de crianças hospitalizadas são calculadas utilizando o método de Holliday e Segar, que relaciona as necessidades hídricas do in‑ divíduo ao gasto energético diário determinado pelo peso:36 • até 10 kg: 100 kcal/kg; • de 10 a 20 kg: 1.000 kcal + 50 kcal/kg para cada kg acima de 10 kg; • > 20 kg: 1.500 kcal + 20 kcal/kg para cada kg acima de 20 kg. A quantidade recomendada de água com base no método de Holliday e Segar é de 100 mL/100 kcal/dia: 50 mL/100 kcal/ dia para reposição das perdas insensíveis de água e 66,7 mL/100 kcal/dia para reposição das perdas renais conside‑ rando a eliminação de urina iso-osmótica em relação ao plas‑ ma (~300 mOsm/L) e descontando 16,7 mL/100 kcal/dia da produção de água endógena pelo metabolismo. As necessida‑ des eletrolíticas de manutenção recomendadas são de 3 mEq de Na+/100 kcal/dia e 2 mEq de K+/100 kcal/dia. Dessa for‑ ma, o soro de manutenção irá conter 30 mEq/L de Na+ e, por‑ tanto, será hipotônico em relação ao plasma.36 A partir de vá‑ rias publicações que relatam a ocorrência de óbito e de
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sequelas neurológicas graves resultantes de hiponatremia aguda em crianças hospitalizadas associada à administração de fluidos hipotônicos, o método de Holliday e Segar para o cálculo das necessidades hídricas de manutenção tem sido bastante criticado.3,33,37-40 Embora essas recomendações possam ser apropriadas para crianças saudáveis, elas não são apropriadas para crianças com enfermidades agudas ou no período pós-operatório, que frequentemente têm diminuição da capacidade de excretar água livre resultante do aumento da liberação de HAD. Em crianças hospitalizadas, vários estímulos não osmóticos para a secreção de HAD podem estar presentes, como depleção de volume, dor, náusea, ansiedade, estresse e uso de drogas. Além disso, esses pacientes têm menos perdas insensíveis de água, em decorrência do jejum prolongado e da inatividade fí‑ sica, que diminuem o gasto energético e, consequentemente, a quantidade de água necessária para compensar as perdas por evaporação para dissipação do calor. Em crianças sob ventila‑ ção mecânica, não há perdas insensíveis de água pelos pul‑ mões em virtude da umidificação e do aquecimento dos gases inspirados.41-44 Portanto, em crianças gravemente enfermas, a administração de 100% do volume de manutenção calculado segundo o método de Holliday e Segar, sob a forma de solução hipotônica, pode resultar em hiponatremia. Estudos randomizados demonstraram maior risco de hipo‑ natremia associado à administração de fluido hipotônico de manutenção comparado com fluido isotônico em crianças no pós-operatório45,46 e durante internação na UTI.47,48 O uso de fluido isotônico (140 mEq de Na+/L) de manutenção para crianças hospitalizadas associou-se a menor risco de hipona‑ tremia comparado a fluido hipotônico (77 mEq de Na+/L).49 A administração de grandes volumes de salina isotônica tam‑ bém pode causar hiponatremia associada ao fenômeno de dessalinização50 (Figura 3). Após a restauração do volume arterial efetivo com bolo de fluido isotônico, deve-se administrar 50% das necessidades de manutenção calculadas pelo método de Holliday e Segar sob a forma de salina isotônica. Ajustes diários no volume e na composição da solução devem ser feitos de acordo com o ba‑ lanço hídrico e com a concentração plasmática de Na+. Hiponatremias hipervolêmicas26 Ocorrem em situações nas quais há diminuição da capacidade de excreção renal de água associada ou não a condições de má perfusão tecidual, levando ao aumento da reabsorção de Na+ e de água para melhorar o volume efetivo circulante. Tanto o Na+ quanto a ACT estão aumentados (estados edematosos). Insuficiência renal avançada
A disfunção tubular leva à diminuição da capacidade de dilui‑ ção urinária, mesmo na ausência de HAD, e a queda no RFG reduz a excreção renal de solutos. Na insuficiência renal oligú‑ rica ou anúrica, ocorre hiponatremia e hipervolemia graves, muitas vezes dependentes de tratamento com métodos dialí‑ ticos.
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Insuficiência cardíaca congestiva (ICC) e hipoalbuminemia
O baixo volume circulante efetivo gera estímulo para reabsor‑ ção de Na+ (via AT II e aldosterona) e liberação de HAD. Além do estímulo para reabsorção de água, o paciente aumenta a in‑ gestão de água em razão da sede, tornando o aumento da ACT maior que o aumento de Na+. O Na+ urinário é menor que 20 mEq/L e a osmolalidade urinária é elevada. Como o desenvol‑ vimento da hiponatremia é gradativo, os sintomas são raros, apesar de a natremia chegar a 115 mEq/L. O tratamento deve ser direcionado para a causa de base, associado à restrição cautelosa de Na+ e água e ao uso de diuréticos não tiazídicos. A administração de Na+ geralmente está contraindicada, salvo casos sintomáticos. O tratamento da hiponatremia em pacien‑ tes com ICC consiste em restrição hídrica e em medidas que visam a melhorar a função cardíaca. Os inibidores de enzima conversora de angiotensina (ECA) aumentam o débito cardía‑ co e a volemia efetiva circulante, diminuindo os níveis de HAD, AT II e norepinefrina, além de antagonizar a ação do HAD nos dutos coletores por meio da liberação local de prosta‑ glandinas. Os diuréticos de alça inibem a reabsorção de Na+ e, junto à diminuição do HAD, reduzem a reabsorção de água li‑ vre nos segmentos distais do néfron. A melhora do débito car‑ díaco e a redução dos níveis de AT II reduzem a sensação de sede, deixando o paciente mais confortável. Apesar disso, os inibidores de ECA podem ser mal tolerados em fases avança‑ das de ICC, levando a hipotensão ou piorando a azotemia ou a hiperpotassemia. Quando isso ocorre, a utilização de drogas que aumentem a contratilidade cardíaca deve ser considerada. Na síndrome nefrótica, o uso de albumina aumenta a pressão oncótica e melhora a volemia efetiva. Na insuficiência hepáti‑ ca, a hiponatremia desenvolve-se lentamente de modo assin‑ tomático em virtude da diminuição da síntese proteica e vaso‑ dilatação, mas pode precipitar a encefalopatia hepática. Nesse caso, deve-se manter a restrição hídrica rigorosa e, se necessá‑ rio, aumentar a oferta de Na+ e administrar albumina. Hiponatremias com volemia clinicamente normal26 Ocorre quando há distúrbios do balanço de água, com excesso de água livre em relação ao Na+. O Na+ corpóreo encontra-se normal, mas há aumento da ACT. Polidipsia primária
O aumento da ingestão de água, compulsiva ou habitual, é a causa mais comum de polidipsia primária na infância. Doen‑ ças psiquiátricas ou lesões hipotalâmicas são mais raras. Como os mecanismos de excreção de água estão intactos, o ex‑ cesso de água ingerida suprime a liberação de HAD e causa po‑ liúria, impedindo a queda acentuada da osmolalidade plasmá‑ tica e da natremia. Ocorre osmolalidade urinária menor que 100 mOsm/kg e natriúria menor que 20 mEq/L. Em alguns pacientes, o estímulo da sede ocorre em níveis menores de os‑ molalidade (novo nível de estímulo do osmotato) com libera‑ ção de HAD inalterada. Em outros, além da polidipsia, existe
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Distúrbios do Metabolismo do Sódio e Potássio e do equilíbrio acidobásico •
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aumento da liberação e da resposta ao HAD, como acontece • liberação de HAD não relacionada à osmolalidade plasmática, em surtos psiquiátricos. Esses pacientes apresentam risco de desencadeada por sinais aferentes não osmóticos (como as desenvolver hiponatremia sintomática. O tratamento em lon‑ doenças pulmonares ou as do SNC); go prazo consiste na restrição hídrica e no controle de peso, • reset do osmostato: a regulação da liberação do HAD é normal, além da investigação de distúrbio psiquiátrico concomitante. mas ocorre ao redor de um limiar hipotônico, ou seja, o HAD é liberado mesmo na presença de concentração plasmática de Baixa ingestão de soluto Na+ abaixo do normal; A administração de fórmulas lácteas preparadas inadequada‑ • liberação autônoma de HAD por células neoplásicas, como as mente pode resultar em soluções com baixo conteúdo de solu‑ do carcinoma de pulmão; to, expondo lactentes jovens a formas graves de hiponatremia, • estimulação central da liberação de vasopressina por drogas, mesmo com ingestão hídrica normal. Dietas à base de chá e incluindo opioides, ecstasy, antidepressivos tricíclicos e agen‑ torradas e bebedores contumazes de cerveja também podem tes antineoplásicos (como a ciclofosfamida e a vincristina). apresentar hiponatremia. A baixa oferta de Na+ aos segmentos proximais do néfron compromete a capacidade de diluição A geração de água livre em pacientes com aumento da secre‑ urinária. A osmolalidade urinária e a natriúria são baixas, po‑ ção de HAD ocorre por dessalinização da salina infundida. A rém a ausência de poliúria, mas com ingestão normal ou um infusão de salina isotônica causa expansão do volume EC e as pouco aumentada de água, distingue esses pacientes daqueles ações do HAD levam à excreção de salina como uma solução com polidipsia. hipertônica e retenção de água livre no corpo (Figura 3).16,17 Recentemente, o termo “síndrome de antidiurese inapro‑ Síndrome de secreção inapropriada do hormônio priada” foi proposto, pois, em alguns pacientes com hipona‑ antidiurético tremia e baixo débito urinário, as concentrações plasmáticas A síndrome de secreção inapropriada do hormônio antidiuré‑ de arginina-vasopressina podem ser baixas ou indetectáveis, tico (SIHAD) caracteriza-se pela liberação excessiva de HAD como naqueles com mutações do receptor de vasopressina no na ausência de um estímulo fisiológico apropriado. O diagnós‑ canal regulador de água, resultando em urina concentrada na tico de SIHAD baseia-se na hiponatremia com urina inapro‑ ausência de HAD.25 Além disso, os pacientes que têm baixa priadamente concentrada, sem evidência de doença renal, su‑ carga distal de filtrado associada com dieta pobre em Na+ po‑ prarrenal ou tireoidiana. Em pacientes com SIHAD, a dem ter baixos níveis plasmáticos de vasopressina, com su‑ osmolalidade urinária excede a osmolalidade plasmática e a prarregulação (up-regulation) dos receptores V2 no néfron dis‑ concentração urinária de Na+ é elevada (> 50 mEq/L). Os me‑ tal, o que pode causar a excreção de urina concentrada e canismos envolvidos na SIHAD incluem: hiponatremia.16
1 L de H2O urinária
300 mEq de Na+ 1 L de SF
1 L de SF
Natriúria aumentada por ação do ADH 150 mEq de Na+
150 mEq de Na+
Urina concentrada
1 L de H2O urinária
0 mEq de Na+
Plasma diluído
Figura 3 Produção de água livre por dessalinização. Os retângulos à esquerda representam a infusão de 2 L de solução salina isotônica (SF). A concentração de Na+ (mEq/L) é mostrada no círculo dentro dos retângulos. O retângulo acima à direita representa a eliminação de urina hipertônica e o retângulo abaixo à direita representa a água livre produzida e retida no corpo. A água livre é produzida porque a expansão do volume extracelular efetivo estimula a excreção de Na+ e as ações do hormônio antidiurético impedem a excreção de água livre.17
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Hipotireoidismo
A redução do débito cardíaco e do volume sistólico leva à libe‑ ração de HAD e à diminuição da excreção de água livre. A que‑ da do ritmo de filtração glomerular resultante diminui direta‑ mente a excreção de água livre por reduzir a oferta de água aos segmentos de diluição do néfron. Isso é particularmente im‑ portante nos pacientes com mixedema, nos quais a hiponatre‑ mia se desenvolve mesmo com a supressão apropriada do HAD. Manifestações clínicas A hiponatremia que se desenvolve em menos de 48 horas asso‑ cia-se a edema celular. Os sintomas são geralmente neuropsi‑ quiátricos (náuseas, vômitos, cefaleia, ataxia, psicose, crises convulsivas, coma e alteração do ritmo respiratório) e podem ser explicados pelo desenvolvimento de edema cerebral e au‑ mento da pressão intracraniana.16,17 Crianças com hiponatremia aguda manifestam sinais de encefalopatia com concentrações plasmáticas de Na+ mais elevadas em comparação com adultos, que têm maior tamanho do cérebro em relação ao crânio.30 Na hiponatremia com mais de 48 horas de duração, o cére‑ bro desenvolve mecanismos adaptativos para retornar o volu‑ me das células cerebrais a seu tamanho normal, pela perda de partículas ou osmoles IC. Frequentemente é assintomática ou apresenta-se com sintomas sutis, como quedas e déficit de atenção.16,17 Diagnóstico A abordagem diagnóstica da hiponatremia é apresentada na Figura 4. Nos casos suspeitos de hiperplasia congênita de suprarre‑ nal na sua forma perdedora de sal, quando possível, para defi‑ nir o defeito metabólico, devem-se coletar concentrações séri‑
cas de cortisol, desoxicorticosterona, 11-desoxicortisol, 17-hidroxipregnenolona, deidroepiandroesterona e androste‑ nediona. Entretanto, esses exames não devem ser realizados nas primeiras 24 horas de vida da criança, quando a incidência de resultados falso-positivos e falso-negativos é aumentada. Esses pacientes apresentam também baixas concentrações de aldosterona e 11-desoxicorticosterona e aumento da renina plasmática. Vale lembrar que, idealmente, o exame de triagem neonatal deve ser coletado no 5º dia de vida. Tratamento A hiponatremia causada por excesso de água deve ser tratada com restrição hídrica, enquanto a hiponatremia secundária à perda de Na+ deve ser tratada com reposição de Na+. A hipona‑ tremia aguda (duração < 48 horas) deve ser tratada agressiva‑ mente, com o objetivo de reduzir o edema cerebral, utilizando solução salina hipertônica (NaCl 3% 5 mL/kg via endovenosa [EV], em 30 minutos), para elevar a concentração plasmática de Na+ acima de 135 mEq/L. Em serviços em que não se dis‑ põe de NaCl 3%, deve-se diluir a solução de NaCl 20% na pro‑ porção de 1:7, adicionando uma parte de NaCl 20% a 6 partes de água destilada, transformando-a em solução a aproximada‑ mente 3% (1 mL de NaCl 3% contém 0,5 mEq de Na+). Manitol também pode ser eficaz no tratamento de emergência da hipo‑ natremia aguda sintomática. A quantidade de Na+ necessária para elevar suas concentrações plasmáticas pode ser calcula‑ da pela seguinte fórmula: Quantidade de Na+ (mEq) = ([Na+] desejada – [Na+] atual) × ACT Se houver risco de expansão rápida do volume EC, recomen‑ da-se a administração de diurético de alça, como a furosemida.
Hiponatremia
Volume EC: diminuído Perda de Na+
[Na+] urina < 10 mEq/L
Perda extrarrenal de Na+ Uso crônico de diurético
Volume EC: não diminuído Ganho de água
[Na+] urina > 20 mEq/L
Volume arterial efetivo: diminuído
[K+] urina: alta
[K+] urina: baixa
Perda renal de Na+
Hipoaldosteronismo
Hipocortisolismo Insuficiência cardíaca Hipoalbuminemia Hipotireoidismo
Volume arterial efetivo: não diminuído
SIHAD
Figura 4 Abordagem diagnóstica das hiponatremias.17
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Distúrbios do Metabolismo do Sódio e Potássio e do equilíbrio acidobásico •
A hiponatremia crônica (duração > 48 horas) deve ser corri‑ gida lentamente, para prevenir a desmielinização osmótica. Na ausência de sintomas, deve-se elevar a concentração plas‑ mática de Na+ no máximo a 8 mEq/L/dia. Em casos sintomá‑ ticos (convulsões, coma), recomenda-se a correção rápida ini‑ cial com salina hipertônica 3%, elevando a concentração plasmática de Na+ 5 mEq/L em 2 a 3 horas, até a melhora dos sintomas, mas não excedendo 8 mEq/L/dia.16,17 Efeito potássio
Sendo o Na+ o principal osmol efetivo do EC e o K+ o principal osmol efetivo do IC, a osmolalidade plasmática efetiva pode ser calculada pela seguinte fórmula: Osmóis efetivos EC + osmóis efetivos IC Osmolalidade = plasmática Água corpórea total efetiva EC: extracelular; IC: intracelular. A associação com hipopotassemia piora a hiponatremia, pois Na+ entra na célula em troca de K+ para manter a eletroneutra‑ lidade, com queda da natremia. Além disso, íons de H+ entram na célula em troca do K+. O H+ do IC perde sua força osmótica, pois se liga rapidamente a outros ânions, reduzindo a osmola‑ lidade relativa do IC. A saída de Cl- acoplada ao K+ também di‑ minui a osmolalidade do CIC, causa saída de água da célula e agrava a hiponatremia. Quando se administra K+ para corrigir a hipopotassemia, ocorre o inverso: aumentam a natremia e a osmolalidade plasmática. Para ilustrar, a administração de 20 mEq de K+ via solução KCl a 19,1% (40 mEq de moléculas os‑ moticamente ativas) em uma criança de 10 kg (volume de dis‑ tribuição de 6 L) pode aumentar a osmolalidade plasmática em aproximadamente 7 mOsm/kg e aumentar o Na+ sérico em 3,5 mEq/L, 1/3 da reposição de Na+ total estimada. Assim, a administração de K+ deve ser levada em conta quando calcu‑ lado o déficit de Na+. Tratamento da insuficiência suprarrenal26 Glicocorticoides
Na vigência de insuficiência suprarrenal aguda (ISRA) em neonatos, o hemissuccinato sódico de hidrocortisona é utili‑ zado na dose de 10 mg/kg ou 125 mg/m2 (dose mínima 100 mg), a cada 6 a 8 horas, por via EV ou intramuscular (IM), por 5 a 7 dias ou até 48 horas após a suspensão da infusão de glico‑ se EV. Em lactentes e crianças maiores, utiliza-se a dose de 10 mg/kg/dose, por via EV, a cada 4 ou 6 horas. Ao se obter a estabilização do quadro clínico e laboratorial e já tendo suprimido o uso de glicose por via parenteral por pelo menos 48 horas, deve-se tentar diminuir 20% da dose inicial a cada semana, até atingir a dose mínima com a qual o paciente permaneça metabolicamente compensado, geralmente em torno de 30 mg/m2/dia. Na doença de Addison, quando o quadro clínico e laborato‑ rial estiver estável, deve-se substituir a terapêutica parenteral por acetato de hidrocortisona, na dose de 15 a 25 mg/m2/dia,
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ou acetato de cortisona, na dose de 35 a 48 mg/m2/dia, por via oral (VO). A dose diária é dividida em 50% pela manhã e 25% 8 e 16 horas após a dose matinal, procurando mimetizar o ciclo circadiano normal. Nos casos de hiperplasia suprarrenal congênita, a cortico‑ terapia oral de manutenção deve ser suficiente para inibir a se‑ creção de ACTH, o que geralmente é conseguido administran‑ do-se 1/3 da dose diária pela manhã e 2/3 da dose diária 12 horas após a dose matinal. As doses são ajustadas de acordo com a evolução clínica e laboratorial. Nas situações de estresse, as necessidades diárias de glico‑ corticoides aumentam 2 a 3 vezes nos agravos menores e até 10 vezes nos agravos maiores. Mineralocorticoides
Na ISRA, é utilizado o acetato de desoxicorticosterona, na dose de 1 a 5 mg (independentemente do peso), por via IM, 1 vez/dia, ou o piruvato de desoxicorticosterona, na dose de 0,5 a 2 mg, 1 vez/semana, por via IM. A dose adequada deve ser ti‑ tulada de acordo com a evolução do estado de hidratação, do ionograma e da natriúria, objetivando-se natremia maior que 130 mEq/L, potassemia entre 5 e 6 mEq/L e natriúria menor que 50 mEq/L. Nos serviços de emergência em que esses medicamentos não estiverem disponíveis de imediato, lembrar que 20 mg de hidrocortisona têm ação mineralocorticoide equivalente a 1 mg de desoxicorticosterona, mas seu uso prolongado leva à síndrome de Cushing. Quando o quadro clínico e laboratorial estiver estável, substituir a terapêutica parenteral por acetato de 9-alfaflu‑ drocortisona, na dose de 0,15 a 0,2 mcg/dia para neonatos e 0,05 a 0,3 mcg/dia para crianças maiores, por VO, 1 ou 2 ve‑ zes/dia, ou enantato de desoxicorticosterona, na dose de 50 a 75 mg/m2, 1 vez a cada 15 a 30 dias, por via IM. Em lactentes que fazem uso de dieta pobre em Na+, é fre‑ quente haver a necessidade de complementá-lo para manter sua natremia normal, com aproximadamente 0,1 g de NaCl/ kg/dia, adicionando-o à água ou ao chá oferecidos nos inter‑ valos das mamadas. Tratamento da SIHAD
A hiponatremia causada por excesso de água deve ser tratada com restrição hídrica, enquanto a hiponatremia secundária à perda de Na+ deve ser tratada com reposição de Na+. A hiponatre‑ mia aguda (duração < 48 horas) deve ser tratada agressivamente, como já descrito, com o objetivo de reduzir o edema cerebral. A hiponatremia crônica (duração > 48 horas) deve ser corri‑ gida lentamente, como já descrito, para prevenir a desmielini‑ zação osmótica. A SIHAD é excepcionalmente idiopática. O tratamento da causa é, portanto, prioritário no tratamento da própria SIHAD. Obtém-se correção do distúrbio hidreletrolítico, na maioria dos casos, restringindo-se inicialmente a oferta hídrica a me‑ tade ou 2/3 das necessidades basais do paciente, contendo 40 mEq de Na+/L, e ajustando essa restrição até obter diminui‑ ção da natriúria para valores inferiores a 30 mEq de Na+/L.
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A reposição de Na+ só se faz necessária quando já houver comprometimento neurológico. Nessas circunstâncias, usa‑ -se NaCl a 3% (1 mL = 0,5 mEq de Na+), na velocidade de 10 mL/kg/hora e na quantidade suficiente para corrigir a natre‑ mia para 125 mEq/L, associado à furosemida, na dose de 1 mg/kg/dose, com o cuidado de repor o K+ perdido em razão do uso do diurético. Nos raros casos em que essas medidas não forem eficazes, a diálise peritoneal com soluções hipertônicas alternadas com soluções isotônicas (na proporção de 1 banho hipertônico para cada 4 banhos isotônicos) se faz necessária. Observa-se que uma dieta rica em proteínas (20%) eleva os níveis natrêmicos com diminuição da natriurese, apesar do aumento da taxa de filtração glomerular e da não alteração da depuração negativa de água livre. Esse fato sugere que a gera‑ ção de ureia a partir do catabolismo da proteína de origem die‑ tética, agindo como diurético osmótico, é responsável pela di‑ minuição da excreção urinária de Na+. Correções excessivas ou muito rápidas de hiponatremias podem causar síndrome de desmielinização osmótica (SDO), motivo pelo qual se recomenda cautela na conduta de pacien‑ tes com esses distúrbios (ver adiante). A retirada das drogas que têm efeito sinérgico ou HAD-símile ajuda a corrigir o dis‑ túrbio. Medidas visando ao aumento da pressão no átrio esquerdo por meio da promoção do aumento do retorno venoso (dimi‑ nuindo, assim, o estímulo sobre os receptores de volume), como colocar o paciente em posição de Trendelemburg, po‑ dem colaborar na melhora do distúrbio hidreletrolítico. As medidas descritas têm-se mostrado suficientemente eficazes para a grande maioria dos pacientes acompanhados pelos autores. Drogas como lítio, fenitoínas e demeclocilina, que inibem ou bloqueiam a ação do HAD, ou diuréticos de alça ou ureia, que antagonizam seu efeito, têm sido usados em adultos com SIHAD de evolução crônica, com os melhores resultados des‑ critos para a associação de diuréticos de alça com demeclocili‑ na. O uso de lítio apresenta efeitos colaterais indesejáveis, como neuro, cárdio e tireotoxicidade, distúrbios digestivos e de comportamento. O uso de fenitoínas só se mostra eficaz nos casos secundários a anomalias do eixo hipotálamo-hipofi‑ sário. Em crianças, a demeclocilina tem as mesmas contrain‑ dicações que as tetraciclinas, podendo depositar-se em ossos e dentes. A recente introdução dos análogos antagonistas do efeito renal do HAD no arsenal terapêutico, como a desGlyd(CH2)5D-Tyr(Et)VAVP, traz um amplo campo de pes‑ quisa para o tratamento dessa doença, mas seu uso rotineiro ainda não está estabelecido na SIHAD em humanos.42
cia hepática, hipocortisolismo e hipopotassemia. A elevação da natremia superior a 10 mEq/L/dia está relacionada ao desen‑ volvimento de um distúrbio neurológico por mielinólise, a SDO. Já a correção da hiponatremia no ritmo de 0,5 mEq/L/hora e inferior a 10 mEq/L/dia raramente está associada à SDO. Os mecanismos responsáveis pela desmielinização não são com‑ pletamente compreendidos até agora. Acredita-se que a eleva‑ ção rápida da natremia leve à saída de água do cérebro, reduza seu volume abaixo do normal, e o encolhimento dos axônios pode lesar suas conexões com as bainhas de mielina. Além dis‑ so, sabe-se que a normalização do conteúdo de solutos intrace‑ lulares, especialmente orgânicos, é bastante lenta (de 5 a 7 dias). A correção rápida da natremia leva à recaptação dos solutos perdidos durante a fase de adaptação cerebral, observando-se uma hiperionização do meio IC, pouco tolerada pelas células. Quando a hiperionização é prolongada, ocorrem disfunções enzimáticas que podem contribuir para a SDO. O quadro surge poucos dias após a correção rápida do Na+. Após melhora ini‑ cial do quadro neurológico da hiponatremia, o paciente evolui com deterioração clínica progressiva. As manifestações da SDO podem ser irreversíveis e incluem desde alterações do ní‑ vel de consciência, disartria, disfagia, paraparesia, quadripare‑ sia (flácida ou espástica) até coma. Convulsões são raras, mais comuns com gradiente de correção de Na+ maior que 20 mEq/L nas primeiras 24 horas ou na supercorreção acima de 140 mEq/L. O diagnóstico pode ser feito por tomografia com‑ putadorizada (TC) ou ressonância magnética (RM) de crânio por meio da visualização das lesões desmielinizantes, que po‑ dem surgir até 4 semanas após os primeiros sintomas. Portan‑ to, dentro desse período, TC ou RM de crânio normais não per‑ mitem excluir SDO em pacientes que receberam tratamento para hiponatremia e apresentam sintomas neurológicos su‑ gestivos. Não há tratamento específico, mas foram relatados benefícios após o uso de hormônio liberador de tireotropina, gamaglobulinas, corticosteroides e plasmaférese, sugerindo componente imunológico na fisiopatologia da SDO. Em casos de supercorreção do Na+ (erros de cálculo da dose, correção concomitante de hipopotassemia, aumento da excreção de água livre não prevista), recomenda-se diminuir a natremia com a administração de desmopressina (1-deamino-8-D-argi‑ nina vasopressina – DDAVP®) e água livre para manter o gra‑ diente de Na+ sérico menor que 10 mEq/L/dia. Essa medida é capaz de prevenir a piora neurológica de pacientes com SDO assintomática ou oligossintomática após a supercorreção. De‑ ve-se monitorar cuidadosamente a natremia para evitar a re‑ corrência dos sintomas da hiponatremia.26,43,44
Complicações do tratamento
Hipernatremia É definida pela concentração plasmática de Na+ acima de 145 mEq/L.
A hiponatremia aguda pode causar sequelas neurológicas po‑ tencialmente irreversíveis e até morte, se não tratada rapida‑ mente. Por outro lado, o tratamento da hiponatremia crônica pode estar relacionado com aumento da morbidade, especial‑ mente em pacientes com desnutrição, queimaduras, insuficiên‑
Respostas fisiológicas à hipernatremia O aumento da concentração plasmática de Na+ é sentido por um grupo de células no hipotálamo (chamado “osmostato”), causando estimulação do centro da sede e produção e libera‑ ção de vasopressina. É improvável ter hipernatremia grave se
Síndrome de desmielinização osmótica
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Distúrbios do Metabolismo do Sódio e Potássio e do equilíbrio acidobásico •
o paciente tiver acesso à água e o centro da sede estiver intacto. Além disso, a liberação de vasopressina torna o néfron distal permeável à água. Assim, a resposta renal apropriada à hiper‑ natremia é a excreção de volume mínimo de urina com máxi‑ ma osmolalidade urinária.16,17 Etiologias
As principais causas de hipernatremia estão delineadas na Tabela 3. Hipernatremia euvolêmica Nesta condição, o peso corpóreo não se modifica. Hipernatremia essencial
Ocorre por disfunção de osmorreceptores hipotalâmicos, com resposta inadequada à osmolalidade. O estímulo para sede e para liberação do HAD, que normalmente ocorre com aumen‑ to de 1 a 2% na osmolalidade plasmática, acontece com osmo‑ lalidade mais elevada que a habitual ou quando há queda da volemia. A natremia é cronicamente elevada (de 143 a 147 mEq/L) e, em geral, os pacientes são assintomáticos. Quando
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há somente hipodipsia, a ingestão forçada de água é o sufi‑ ciente para corrigir e prevenir o distúrbio. No entanto, quando associada à diminuição da liberação de HAD, a água livre ad‑ ministrada é excretada na urina sem alterar a natremia. Há al‑ guma evidência de que a clorpropamida possa ser útil nesses casos, por aumentar o efeito renal do HAD. Devem-se investi‑ gar lesões neurológicas centrais tratáveis (como tumores be‑ nignos) que restabeleçam a função dos osmorreceptores. Hipernatremia transitória
Exercícios físicos extenuantes, rabdomiólise e convulsões po‑ dem causar acidose láctica. A quebra do glicogênio em partí‑ culas menores osmoticamente ativas (como o lactato) eleva a osmolalidade do CIC, causando o deslocamento de água para o interior da célula, aumentando a natremia em 10 a 15 mEq/L. A natremia volta ao normal 5 a 15 minutos após o estresse. Hipernatremia hipervolêmica O excesso de Na+ apresenta-se com expansão do CEC apresen‑ tando sinais de hipervolemia, como edema, taquicardia e hi‑ pertensão arterial.
Tabela 3 Causas de hipernatremia Volemia
Natriúria
Normal
< 20 mEq/L
Causas Essencialmente neurogênica Quase afogamento em água salgada
> 20 mEq/L
Transitória por exercício, rabdomiólise ou convulsão Intoxicação salina Exsanguinotransfusão em RNBP (pelo anticoagulante) Neurogênica
Aumentada
< 20 mEq/L
Hiperaldosteronismo primário Síndrome de Cushing ou corticoterapia Hiperidratação hipertônica em: hiponatremias prévias, ICC, insuficiência hepática, nefroses
> 20 mEq/L
Intoxicação salina por: preparo alimentar (TRO, NPP), medicamentos (NaHCO3, carbenicilina, etc.), soluções de diálise, enemas salinos Insuficiência renal crônica avançada
Diminuída
< 20 mEq/L
Dispepsias agudas Alimentação hipertônica Falta de oferta/ingestão de H2O Hipodipsia ou adipsia (neuropatias) Perdas hipotônicas por perdas cutâneas: queimaduras, fototerapia, fibrose cística Perdas hipotônicas por hiperventilação: tireotoxicose, salicilismo, VPM
< 20 mEq/L (por perda de H2O livre)
Diabete insípido central: familiar, encefalopatia anóxica pós-infecciosa, tumores no SNC, TCE, síndrome de Guillain-Barré, sarcoidose Diabete insípido nefrogênico: familiar, hipopotassemia, hipercalcemia, nefrocalcinose, IRC, hemoglobinopatia S, tubulopatias, fase poliúrica da IRA, drogas antagonistas do HAD
> 20 mEq/L
Diurese osmótica por: diabete melito hipertônico (hiperglicemia mascara hipernatremia), manitol, glicose hipertônica, etc. Diálise com soluções hipertônicas Enemas hipertônicos Desidratação em paciente com hiperaldosteronismo prévio ou síndrome de Cushing
RNBP:recém-nascido de baixo peso; ICC: insuficiência cardíaca congestiva; TRO: terapia de reidratação oral; NPP: nutrição parenteral prolongada; VPM: ventilação pulmonar mecânica; SNC: sistema nervoso central; TCE: traumatismo cranioencefálico; IRC: insuficiência renal crônica; IRA: insuficiência renal aguda; HAD: hormônio antidiurético.
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1938 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
Sobrecarga de sódio
Geralmente está associado a fator iatrogênico, uso de fórmulas lácteas concentradas, uso abusivo de enemas salinos, solução de diálise hipertônica e administração inadvertida de bicarbo‑ nato de Na+ durante reanimação ou correção de acidose meta‑ bólica. O débito urinário, a osmolalidade urinária e o Na+ uri‑ nário estão elevados. Quando a função renal é preservada, a correção da hipernatremia pode ocorrer espontaneamente, já que o excesso de Na+ é rapidamente eliminado pela urina. Esse processo pode ser facilitado com a indução da excreção de Na+ e água pelo uso de diuréticos de alça (furosemida) e re‑ posição da diurese com água livre. Em casos de insuficiência renal, empregam-se métodos dialíticos. Hiperaldosteronismo primário e síndrome de Cushing
O excesso de corticosteroides causa hipernatremia leve a mode‑ rada, geralmente associada a hipopotassemia e hiperglicemia. A expansão crônica do CEC suprime a liberação de HAD e, em longo prazo, pode alterar a função de osmorreceptores, levando essa liberação a ocorrer com osmolalidades mais elevadas. Hipernatremia hipovolêmica Decorre do balanço hídrico negativo por diminuição da inges‑ tão de água ou perdas (líquidos hipotônicos ou água livre). O CIC e o CEC encontram-se contraídos, proporcionalmente à perda de peso. Diminuição da ingestão de água
Ocorre por hipodipsia, adipsia ou restrição ao acesso à água. Hipodipsia ou adipsia
Pacientes com lesões hipotalâmicas podem apresentar distúr‑ bio na sensação de sede por acometimento do centro da sede ou dos osmorreceptores. A hipernatremia ocorre por redução da ingestão de água, mas pode ser prevenida com sua oferta regular. Redução de oferta de água
O aleitamento materno pode estar relacionado à hipernatre‑ mia em lactentes jovens por oferta inadequada quando com‑ parada às perdas obrigatórias, ou por aumento da concentra‑ ção de Na+ no leite materno. Outra causa importante é a privação de água por negligência, afetando principalmente lactentes e crianças pequenas ou pacientes debilitados. Perda hipotônica Perdas renais
Pode ser causada por uso de diuréticos de alça e por diurese os‑ mótica. Glicose, ureia e manitol são solutos que, em excesso na luz tubular, provocam diurese osmótica, pois não são reabsor‑ vidos. O débito urinário e a osmolalidade urinária estão eleva‑ dos, mas a natriúria e a potassiúria estão diminuídas, indican‑ do a presença de outra substância osmoticamente ativa na urina. O aumento da uremia ocorre quando há aumento da oferta proteica, trauma, sangramento digestivo, aumento do
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catabolismo e insuficiência renal. A glicosúria pode ser causada por diabete melito, aumento da oferta de glicose acima da capa‑ cidade metabólica ou por doença renal (doença de Fanconi). Perda de água livre – Diabete insípido
O diabete insípido é caracterizado por alterações no mecanis‑ mo de ação do HAD, caracterizado por poliúria (≤ 2 L/m2/dia) e urina diluída, com osmolalidade urinária e natriúria baixos. Como a perda inicial de água estimula a sede e, consequente‑ mente, o aumento da ingestão de água, crianças maiores apre‑ sentam-se com poliúria, polidipsia, noctúria e enurese notur‑ na. No entanto, pessoas negligenciadas, como lactentes jovens e pacientes incapazes de cuidar de si próprios, têm maior risco de desenvolver desidratação e hipernatremia gra‑ ves. O mesmo ocorre com pacientes com lesão central afetan‑ do tanto a liberação de HAD quanto a sede. Existem dois tipos de diabete insípido: central e nefrogênico. O diabete insípido central é complicação de cirurgias em re‑ gião hipotalâmica e hipofisária, após TCE, infecções do SNC ou evento hipóxico-isquêmico. Ocorre quando a secreção de HAD pela neuro-hipófise é parcial ou completamente inter‑ rompida, resultando em comprometimento da capacidade de concentração urinária. Caracteriza-se por poliúria (diurese > 5 mL/kg/h ou > 80 mL/m2/h), polidipsia e baixa osmolalidade urinária (< 150 mOsm/kg de água). A concentração plasmáti‑ ca de Na+ em geral é normal ou levemente elevada, pois um aumento de 2% na tonicidade plasmática constitui estímulo poderoso à sede. Hipernatremia grave só ocorre quando há de‑ feito da sede ou acesso limitado à água.16 O diabete insípido central é responsivo ao HAD, isto é, a administração de argini‑ na-vasopressina a pacientes com diabete insípido central re‑ sulta em aumento da osmolalidade urinária e diminuição da diurese.16,17 A hipernatremia em pacientes com diabete insípi‑ do é geralmente causada por perda de água livre. Pode tam‑ bém ser secundária ao ganho de Na+, quando as perdas hipo‑ tônicas de Na+ são repostas com infusão de salina isotônica.31 O diabete insípido nefrogênico apresenta resistência par‑ cial ou total dos segmentos distais dos néfrons à ação do HAD. O eixo hipotálamo-hipofisário está preservado, com liberação normal de HAD; no entanto, as células tubulares são insensí‑ veis à sua ação. Ocorre na forma hereditária (herança recessiva ligada ao X – anormalidade no receptor V2 do HAD ou autos‑ sômica recessiva – defeito genético no gene de aquaporina-2) ou na forma adquirida por distúrbio metabólico (hipercalce‑ mia, hipopotassemia), uso de drogas (lítio, anfotericina B), doença renal crônica e diurese osmótica (diabete melito). O diabete insípido nefrogênico hereditário é raro e é a forma mais grave, com poliúria marcante, desidratação, vômito, constipação, febre, irritabilidade e déficit de crescimento. O diagnóstico diferencial entre o diabete insípido central e o nefrogênico pode ser feito pela elevação da osmolalidade plasmática (restrição hídrica ou administração de solução sa‑ lina hipertônica) seguida da administração de desmopressi‑ na (DDAVP®). A restrição hídrica dura aproximadamente 8 horas, monitorando-se peso, natremia, osmolalidade plas‑ mática, débito urinário e osmolalidade urinária a cada 2 ho‑
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Distúrbios do Metabolismo do Sódio e Potássio e do equilíbrio acidobásico •
ras. Osmolalidade urinária maior que 600 mOsm/kg indica que a liberação de HAD e seu efeito estão intactos, possibili‑ tando a exclusão do diagnóstico de diabete insípido. O teste deve ser interrompido se a perda de peso for maior que 5% do inicial ou houver sede intolerável. Nos casos de diabete insípido, ocorre estabilização da os‑ molalidade urinária em 2 a 3 medidas sucessivas, apesar do aumento na osmolalidade plasmática acima de 295 mOsm/kg. Administra-se então HAD exógeno (0,4 a 1 mcg de vasopressi‑ na subcutânea) ou DDAVP® (10 a 15 mcg, por via intranasal), cuja ação, nos casos de diabete insípido central, se observa em minutos, com rápida diminuição da diurese e aumento da os‑ molalidade urinária entre 15 e 50%. Em casos de deficiência parcial de HAD que apresentam aumento da osmolalidade urinária abaixo do esperado, o HAD exógeno melhora a res‑ posta, com diminuição da diurese e aumento da osmolalidade urinária. O diabete insípido nefrogênico também pode apre‑ sentar aumento inadequado da osmolalidade urinária, mas a administração de HAD exógeno não altera o débito urinário nem a osmolalidade urinária. Perdas extrarrenais
A desidratação por diarreia é causa importante de hipernatre‑ mia, mas a disponibilidade de fórmulas lácteas hipotônicas e de soluções de reidratação oral tornou esse distúrbio menos frequente. Vômitos, drenagem gástrica, diarreia osmótica (lactulose, sorbitol, carvão ativado), fístula enterocutânea, queimaduras e aumento de perdas insensíveis (sudorese ex‑ cessiva ou traque e hiperpneia) são outras causas de desidra‑ tação hipernatrêmica. Como a hiperosmolalidade e a deple‑ ção volêmica estimulam a liberação de HAD e provocam sede, a hipernatremia persistente é rara, acometendo sobretudo pessoas negligenciadas incapazes de cuidar de si mesmas. O uso de soluções hipertônicas em relação às perdas, ou seja, com conteúdo de Na+ relativamente alto, piora a hipernatre‑ mia. O quadro clínico de hipovolemia pode ser subestimado, pois a depleção intravascular é compensada parcialmente por água do CIC. A osmolalidade urinária está elevada e o débito urinário e a natriúria estão baixos por conta do aumento do HAD e da aldosterona. Manifestações clínicas A hipernatremia com menos de 48 horas de duração associa‑ -se à desidratação celular, e suas manifestações clínicas in‑ cluem sede, irritabilidade, febre, confusão mental, convulsões, hiper-reflexia, espasticidade e coma. A hipernatremia aguda grave pode causar hemorragia intracraniana e relaciona-se com alta morbimortalidade.16,17 A hipernatremia com mais de 48 horas de duração é, usual‑ mente, geral, assintomática, pois o cérebro desenvolve meca‑ nismos adaptativos para a preservação do volume celular, pelo ganho de partículas IC.16,17 Diagnóstico Poliúria é comumente associada à hipernatremia. É definida como volume urinário inapropriadamente elevado para o con‑
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texto clínico. Portanto, a interpretação de poliúria deve consi‑ derar cada componente da excreção de osmoles, como descri‑ to a seguir.16,17 O volume urinário é determinado pelo número de osmoles que o paciente deve excretar e a osmolalidade urinária que o paciente consegue atingir. Assim: Volume urinário =
número de osmoles osmolalidade urinária
Os principais osmoles urinários são a ureia, o Na+, o K+, os ânions que os acompanham e a glicose (no caso de glicosúria positiva). Na avaliação do paciente com poliúria, a osmolali‑ dade urinária ajuda a esclarecer sua causa (urina hipo-osmo‑ lar, iso-osmolar ou hiperosmolar). No diabete insípido, ocorre a eliminação de grandes volumes de urina hipo-osmolar (os‑ molalidade urinária < 150 mOsm/kg de água); se, após a ad‑ ministração de HAD, houver eliminação de urina hiperosmo‑ lar, o diagnóstico é de diabete insípido central. Caso não ocorra aumento importante da osmolalidade urinária após o HAD, o diagnóstico é de diabete insípido nefrogênico. A eliminação de grandes volumes de urina hiperosmolar (osmolalidade uri‑ nária > 300 mOsm/kg de água) ocorre na diurese osmótica se‑ cundária ao uso de manitol, glicosúria, aumento da excreção de ureia em pacientes com hipercatabolismo ou em decorrên‑ cia de natriurese induzida pela expansão do volume EC rela‑ cionada à administração de grandes volumes de solução sali‑ na. Nas situações de perda não renal de água, há eliminação de mínimo volume de urina com máxima osmolalidade.17 A abordagem diagnóstica da hipernatremia é mostrada na Figura 5. Tratamento A hipernatremia causada por perda de água deve ser tratada com reposição de água livre. Inicialmente, deve-se interrom‑ per a perda de água livre, administrando-se DDAVP a pacien‑ tes com diabete insípido central. Subsequentemente, deve-se administrar uma solução hipotônica em relação ao paciente e à urina eliminada. Ressalta-se que, em situações em que se administra salina hipotônica com solução glicosada por via EV, há o risco de induzir hiperglicemia e diurese osmótica caso grandes volumes sejam infundidos rapidamente, o que pode agravar a hipernatremia. Se o paciente estiver consciente e alerta, a melhor maneira de repor água livre é por VO. Se a cau‑ sa da hipernatremia for ganho de Na+, recomenda-se a admi‑ nistração de diurético de alça para induzir a perda de salina isotônica na urina, e esse volume deve ser reposto sob a forma de solução salina a 0,45%.16,17 Os pacientes com choque hipovolêmico devem ser trata‑ dos, inicialmente, com solução salina a 0,9% em bolo por via EV (10 a 20 mL/kg). Na hipernatremia aguda sintomática, a concentração plasmática de Na+ deve ser reduzida em 2 mEq/L/hora nas primeiras 3 a 4 horas, seguida por taxa de declínio não superior a 1 mEq/L/hora. Na hipernatremia crô‑ nica, há risco de edema cerebral e aumento da pressão intra‑
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Hipernatremia
Volume EC: expandido Ganho de Na+
Volume EC: não expandido Perda de água
Volume urinário: mínimo Osmolalidade urinária: máxima
Perda extrarrenal de água
Volume urinário: não mínimo Osmolalidade urinária: não máxima
Osmolalidade urinária: baixa
Diabete insípido
Osmolalidade urinária: não baixa
Diurese osmótica
Figura 5 Abordagem diagnóstica da hipernatremia.17
craniana, em decorrência da queda rápida da concentração plasmática de Na+. Assim, o máximo de 8 mEq/L/dia é reco‑ mendado para a redução na concentração plasmática de Na+. A quantidade de água necessária para corrigir a hipernatremia pode ser calculada pela seguinte equação:16,17 Déficit de H2O livre (L) =
[Na+] atual – [Na+] desejada [Na+] atual
× ACT
O tratamento das hipernatremias está resumido nas Tabelas 4 e 5. Diabete insípido
O tratamento visa a diminuição do débito urinário atuando na causa do distúrbio e na ingestão regular de água para evitar a hipovolemia.26 Diabete insípido central
Como o defeito principal é deficiência de HAD, o controle da poliúria pode ser alcançado pela sua substituição pelo análogo sintético desmopressina (DDAVP®), que, além de longa dura‑ ção de ação, não possui efeito vasopressor. Existem prepara‑ ções para administração intranasal, oral ou parenteral. Inicial‑ mente, utiliza-se dose baixa (0,5 mcg intranasal, 5 mcg oral ou 0,1 mcg EV), titulando-se doses posteriores de acordo com a resposta individual. Em casos de diabete insípido central com deficiência parcial de HAD, outras drogas podem ser associa‑ das ao tratamento. A clorpropamida (agente hipoglicemiante
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oral) na dose diária de 125 a 250 mg e a carbamazepina na dose de 200 mg aumentam a sensibilidade dos túbulos renais à ação do HAD pelo aumento da reabsorção de Na+ na alça as‑ cendente e da permeabilidade do túbulo coletor à água, poten‑ cializando os efeitos da desmopressina. Pacientes em uso de clorpropamida devem controlar a glicemia. O uso de desmo‑ pressina em recém-nascidos e lactentes jovens portadores de diabete insípido deve ser cuidadoso, pois mesmo doses pe‑ quenas podem causar hipervolemia e hiponatremia. Diabete insípido nefrogênico
A correção dos distúrbios metabólicos e a suspensão da droga implicada podem ser eficazes no tratamento da poliúria. No entanto, o controle do diabete insípido nefrogênico hereditá‑ rio é extremamente difícil. A restrição de sal associada a diuré‑ ticos tiazídicos (hidroclorotiazida 3 mg/kg/dia) pode reduzir até 40% do débito urinário em crianças. Os tiazídicos aumen‑ tam a excreção de Na+ associado à excreção da água e reduzem o RFG pela leve depleção da volemia. A associação com diuré‑ tico poupador de K+, como a amilorida (na dose de 0,3 mg/kg/ dia), pode ser necessária, pois diminui a espoliação de K+ as‑ sociada ao uso do tiazídico. A natriurese inicial e a resposta antipoliúrica podem ser incrementadas com terapia em com‑ binação com inibidores da síntese de prostaglandinas (PG), como a indometacina (na dose de 1,5 a 3 mg/kg). A indometa‑ cina aumenta a capacidade de concentração urinária pela di‑ minuição dos níveis de PG que antagonizam os efeitos do HAD. O resultado pode ser uma queda adicional de 25 a 50% da diurese. Em casos de diabete insípido nefrogênico com re‑
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sistência parcial ao HAD, o uso de doses maiores que as fisio‑ lógicas de HAD pode ser eficaz, aumentando significativa‑ mente a resposta renal ao hormônio. Complicações do tratamento No tratamento da hipernatremia, pode haver edema cerebral, pois, durante a hipernatremia, ocorrem saída de água do cére‑ bro e contração cerebral, o que causam a maior parte dos sin‑ tomas.26 Em 1 a 3 dias, no entanto, o volume cerebral está qua‑ se normal em virtude do deslocamento de água do compartimento liquórico e por captação de eletrólitos e gera‑ ção de solutos orgânicos pelas células, restaurando o volume do CIC. Embora as células cerebrais percam rapidamente Na+ e K+ em resposta à correção da natremia, a perda dos osmóli‑ tos acumulados ocorre mais lentamente. A demora na depura‑ ção dos osmólitos mantém a osmolalidade IC temporariamen‑ te mais elevada, e a diminuição rápida do Na+ sérico e da osmolalidade do CEC para níveis normais pode causar edema cerebral, com sequelas irreversíveis, convulsão e morte. O edema cerebral foi descrito em crianças nas quais a hiperna‑ tremia foi corrigida em uma taxa superior a 0,7 mEq/L/hora. Comparativamente, nenhuma sequela foi observada quando a queda de Na+ sérico respeitou o limite de 0,5 mEq/L/hora. Por isso, recomenda-se que o gradiente de correção de Na+ obedeça a esse limite até o máximo de 10 mEq/L/dia. Caso ocorram complicações durante o tratamento, indicam-se me‑ didas habituais contra o edema cerebral, como uso de solução hipertônica e hiperventilação, suspendendo-se temporaria‑ mente a correção da hipernatremia. Tabela 4 Tratamento das hipernatremias hipovolêmicas Corrigir volemia: SF 10 mL/kg EV rápido Albumina 5% Se natremia < 170 mEq/L, com a correção da volemia, deve haver correção da natremia em 48 a 96 horas Se natremia > 170 mEq/L ou aguda, repor água livre em 48 horas Se há diabete insípido central, administrar DDAVP (tem efeito vasopressor); dose inicial: 0,5 mcg por via intranasal ou 5 mcg VO ou 0,1 mcg EV; titular doses posteriores Se há diabete insípido nefrogênico:
corrigir distúrbios metabólicos; suspender drogas antagônicas ao hormônio antidiurético; fazer restrição de sódio e administrar hidroclorotiazida 3 mg/kg/dia (diminui 40% da diurese) e indometacina 1,5 a 3 mg/kg (diminui mais 25 a 50% da diurese); observar se há espoliação de potássio (associar amilorida 0,3 mg/kg/dia)
Introduzir hidratação parenteral de manutenção e reposição (repor potássio, de 40 a 50 mEq/L) Corrigir outros distúrbios hidreletrolíticos e acidobásicos Cuidado: a natremia do paciente deve diminuir menos que 0,5 mEq/L/hora
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Tabela 5 Tratamento das hipernatremias hipervolêmicas Furosemida 1 mg/kg/dose (repor perdas urinárias de potássio) Se natremia > 170 mEq/L ou aguda, diluir oferta de sódio da manutenção em 48 horas Se há insuficiência renal ou cardíaca, fazer diálise peritoneal com solução hipertônica a cada 3 ou 4 banhos Cuidado: a natremia do paciente deve diminuir menos que 0,5 mEq/L/hora Importante: monitorar glicemia
Distúrbios do metabolismo do potássio Fisiologia do potássio O potássio (K+) é o principal cátion IC (98%, sendo 80% des‑ tes no tecido muscular estriado). Em recém-nascidos, o con‑ teúdo de K+ estimado é de 40 mEq/kg e aumenta rapidamen‑ te com o ganho de massa muscular até 50 mEq/kg, semelhante ao adulto.26 O K+ desempenha papel fundamental na geração do poten‑ cial de repouso de membrana e na geração e condução do po‑ tencial de ação cardíaco. A principal via de excreção do K+ é a urina (90%). A excreção urinária de K+ é, em sua maior parte, regulada no néfron distal sensível à aldosterona.51,52 O princi‑ pal mecanismo de secreção de K+ nesse segmento do néfron é via geração de voltagem negativa luminal pela reabsorção de Na+ via canal epitelial de Na+ apical (ENaC), combinada com a atividade da Na+/K+-ATPase localizada na membrana basola‑ teral, que faz a extrusão do Na+ intracelular, mantendo o gra‑ diente eletroquímico para a entrada apical de Na+, e transpor‑ ta K+ para dentro das células epiteliais tubulares contra um gradiente de concentração.51,52 Isso resulta em secreção de K+ através dos canais apicais de K+, especialmente os canais me‑ dulares externos renais de K+ (ROMK). Fatores que aumentam a reabsorção de Na+ na luz tubular estimulam a secreção de K+, e os que diminuem inibem a se‑ creção de K+. Além disso, a reabsorção de Na+ nos segmentos proximais do néfron torna a luz tubular negativa, favorecen‑ do a secreção de K+ por difusão. Em situações de hipopotasse‑ mia, a secreção de K+ cai e aumenta sua reabsorção nas célu‑ las intercalares localizadas no néfron distal, onde a bomba H+/K+-ATPase, situada na membrana luminal, secreta H+ em troca de K+. A concentração de K+ IC varia de 120 (em recém-nascidos) a 150 mEq/L, enquanto a concentração de K+ plasmática gira em torno de 3,5 a 5 mEq/L e varia com a idade. Esse gradiente de concentração é mantido pela bomba Na+/K+o-ATPase que coloca Na+ para fora e K+ para dentro da maioria das células. A diferença de concentração de K+ no IC e no EC é o que de‑ termina o potencial de repouso da membrana celular. Peque‑ nas alterações do K+ plasmático podem alterar a excitabilida‑ de de membrana, interferindo na contração muscular e na condução de impulsos nervosos. A ingestão de K+ é de 1 a 2 mEq/kg ao longo do dia; cerca de 90% é excretado pelos rins e o restante pelo trato gastrointestinal (TGI) e pele. A secreção de K+ pelo TGI pode aumentar em situações de hiperpotasse‑
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mia, por influência da aldosterona. A perda de K+ via pele é desprezível. Quando há sobrecarga aguda de K+, aproximada‑ mente 50% são eliminados pela via renal em 4 a 6 horas. O res‑ tante é eliminado pelo TGI ou redistribuído rapidamente entre os compartimentos celulares para prevenir a hiperpotassemia e a toxicidade relacionada ao K+. Translocação celular de potássio A insulina e as catecolaminas promovem o deslocamento do K+ para o IC: a insulina, pelo estímulo da bomba de Na+ e H+ e os beta-2-adrenérgicos, pela ativação da Na+/K+adenosina tri‑ fosfatase (ATPase). Ambos colocam o K+ para dentro da célula em troca de Na+, diminuindo o K+ plasmático. O estímulo de receptores alfa-adrenérgicos inibe esse mecanismo. A insulina também tem ação semelhante à aldosterona, au‑ mentando a excreção urinária de K+ quando administrada por via EV em doses elevadas durante tempo prolongado.53 A distribuição de K+ entre os compartimentos celulares também é afetada pelo pH plasmático. Mudanças no pH são tamponadas pela perda ou absorção de H+ pelas células, com alterações recíprocas do K+; ou seja, na acidose, o K+ sai da cé‑ lula em troca de H+, ocorrendo o inverso na alcalose. Para cada 0,1 unidade de variação no pH do plasma, o K+ plasmático va‑ ria de 0,3 a 1,3 mEq/L no sentido inverso. Esse efeito é mar‑ cante na acidose metabólica por ácidos não orgânicos (com hiato aniônico aumentado). Fatores que estimulam a secreção tubular de potássio
Aldosterona
A aldosterona é o principal hormônio regulador da excreção de K+. Ela aumenta a atividade e a densidade de canal epite‑ lial de Na+ na membrana apical (ENaC), a expressão da Na+/ K+-ATPase basolateral e a expressão de canais apicais de K+, estimulando, assim, a secreção de K+.51-56 Ela se liga aos receptores de membrana, aumentando o nú‑ mero e a atividade da bomba Na+/K+-ATPase na membrana basolateral e facilitando a abertura dos canais de Na+ na mem‑ brana luminal. O aumento do K+ IC resultante da atividade da bomba Na+/K+-ATPase favorece a secreção de K+ pela reabsor‑ ção de Na+. O aumento da concentração de Na+ na luz tubular favorece o gradiente para entrada de Na+ e também estimula a secreção de K+. A alcalose aumenta a secreção de K+ pelo estí‑ mulo da aldosterona. A secreção de K+ também pode ocorrer passivamente por diminuição da concentração de K+ luminal causada por aumento do fluxo do fluido tubular (aumento do RFG, expansão do CEC, diuréticos). Fatores que inibem a secreção tubular de potássio A secreção de K+ está diminuída no hipoaldosteronismo e por influência de outros fatores. A espironolactona, diurético pou‑ pador de K+, inibe a ação da aldosterona competindo pelos mesmos receptores. A acidose também diminui a secreção de K+ ao inibir a ação da aldosterona. Já o peptídio atrial natriuré‑ tico (PAN), a amilorida, o triantereno e a calciúria diminuem a
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secreção de K+ pelo fechamento dos canais de Na+ na membra‑ na luminal, diminuindo a reabsorção de Na+. Hipopotassemia É definida pela concentração plasmática de K+ abaixo de 3,5 mEq/L. Etiologias26 As principais causas de hipopotassemia estão listadas na Ta‑ bela 6. Tabela 6 Causas de hipopotassemia Diminuição da ingestão Aumento da translocação de K+ para o CIC Alcalinemia Aumento da insulina Aumento da atividade beta-2-adrenérgica Paralisia periódica hipopotassêmica desencadeada por: hipertireoidismo, exercícios físicos, estresse Hipotermia Anabolismo e doenças linfoproliferativas Aumento de perdas Perdas renais Nefropatias: acidose tubular renal tipo I e II, nefrite intersticial, pós-insuficiência renal aguda, síndromes de Fanconi, Bartter, Gitelman, Liddle Cetoacidose diabética Diuréticos inibidores de anidrase carbônica, de alça e tiazídicos Síndrome de Cushing, hiperaldosteronismo primário e excesso de mineralocorticoides Hipomagnesemia Diabete insípido e outras doenças poliúricas Outras drogas: anfotericina B, derivados de penicilina, carbenicilina Perdas extrarrenais Perdas gastrointestinais: vômitos, drenagem excessiva de suco gástrico, síndromes de má absorção, fístula biliar ou intestinal, laxativos ou enemas Perdas cutâneas: fibrose cística, grandes queimados
Diminuição da ingestão
Em situações de hipopotassemia, o organismo pode aumentar ao máximo a reabsorção de K+ e a excreção pode atingir níveis tão baixos quanto 5 a 25 mEq/dia, sendo que o K+ urinário en‑ contra-se menor que 10 mEq/L. A baixa oferta de K+ via ali‑ mentação ou soluções parenterais pode levar a hipopotasse‑ mia sintomática, principalmente quando associada a outros fatores, como uso de diuréticos e acidose metabólica. Aumento da translocação de potássio para o CIC
A distribuição normal de K+ entre os compartimentos é bas‑ tante estável e depende principalmente da ação da bomba Na+/K+-ATPase. Alterações nesse mecanismo ou outros fato‑ res podem aumentar a translocação de K+ do extra para o in‑
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Distúrbios do Metabolismo do Sódio e Potássio e do equilíbrio acidobásico •
tracelular, causando hipopotassemia transitória com reper‑ cussão variável. Alcalinemia (elevação do pH extracelular)
O aumento de bicarbonato no CEC que ocorre na alcalose me‑ tabólica ou respiratória, ou após administração de bicarbonato, faz o H+ sair da célula em troca de K+ e Na+, mantendo a eletro‑ neutralidade. Para o aumento de cada 0,1 unidade no pH plas‑ mático ocorre queda aproximada de 0,4 mEq/L de K+ sérico. Aumento da insulina
A insulina aumenta a atividade da bomba Na+/K+-ATPase, promovendo entrada de K+ principalmente nos hepatócitos e no músculo esquelético. Isso ocorre no tratamento da cetoaci‑ dose diabética ou da hiperglicemia não cetótica. A sobrecarga de carboidratos em indivíduos normais estimula a liberação de insulina e pode provocar hipopotassemia transitória. Desse modo, deve-se evitar a administração de K+ com soluções gli‑ cosadas na correção da hipopotassemia, pois há risco de agra‑ var o distúrbio. Aumento da atividade beta-2-adrenérgica
Uso de beta-2-agonistas causa hipopotassemia, pois eles esti‑ mulam a atividade da bomba Na+/K+-ATPase. Catecolaminas, como epinefrina, estão menos relacionadas, pois também es‑ timulam alfarreceptores que têm efeito contrário ao estímulo beta-2-adrenérgico. Paralisia periódica hipopotassêmica
Essa doença rara pode ser hereditária ou adquirida, especial‑ mente em pacientes com hipertireoidismo, em razão do au‑ mento na atividade da bomba Na+/K+-ATPase relacionado à liberação de epinefrina e insulina. As crises ocorrem após exercícios físicos, estresse e consumo excessivo de carboidra‑ tos, com queda brusca do K+ plasmático para 1,5 a 2,5 mEq/L. O uso de betabloqueadores (propranolol) diminui o número e a gravidade dos episódios. O controle do hipertireoidismo também é necessário. A administração de K+ deve ser cuida‑ dosa, pois pode causar hiperpotassemia. Hipotermia
A hipotermia acidental ou induzida está relacionada com hi‑ popotassemia, por estimular a entrada de K+ nas células. Metabolismo celular
O crescimento rápido ou a proliferação celular consome K e é uma causa rara de hipopotassemia. O aumento do metabolis‑ mo celular em doenças linfoproliferativas pode causar pseu‑ do-hipopotassemia pelo consumo de K+ no plasma em virtude da demora na análise laboratorial. +
Aumento de perdas Perdas renais
A excreção renal de K+ depende da ação da aldosterona e da oferta de Na+ e de água nos segmentos distais do néfron. O K+ urinário está aumentado (maior que 15 mEq/L).
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Nefropatias
Ocorre por excesso de oferta de Na+ aos segmentos de troca do néfron ou se deve à presença de ânions não reabsorvíveis na luz tubular, levando ao aumento da excreção renal de K+. Po‑ dem estar associadas à acidose (síndrome de Fanconi, acidose tubular renal tipo I ou distal, nefrite intersticial, pós-insufi‑ ciência renal aguda) ou alcalose metabólica (síndromes de Bartter, Gitelman e Liddle). Na leptospirose com insuficiência renal, há hipopotassemia com quadro similar à acidose tubu‑ lar tipo II ou proximal. Diuréticos
Inibidores de anidrase carbônica, diuréticos de alça e tiazídi‑ cos aumentam a oferta de K+ aos segmentos tubulares e, por meio da depleção volêmica, ativam o SRAA, aumentando a excreção renal de K+, podendo causar hipopotassemia. Excesso de mineralocorticoides
Hiperaldosteronismo primário ou secundário e uso prolonga‑ do de glicocorticoides são situações em que a secreção de K+ está aumentada. Em geral, encontra-se acidose metabólica hi‑ poclorêmica associada. Cetoacidose diabética
A excreção renal de K+ está aumentada na descompensação diabética decorrente da diurese osmótica, do hiperaldoste‑ ronismo secundário à depleção de volume e do aumento de ânions não reabsorvíveis (como o beta-hidroxibutirato). Por causa da translocação de K+ para o extracelular pela acidose, inicialmente a hipopotassemia é menos pronunciada, mas após insulinoterapia e melhora da acidose metabólica, o distúrbio fica mais evidente, devendo-se repor K+ precoce‑ mente para evitar sintomas graves relacionados à hipopo‑ tassemia. Hipomagnesemia
A depleção de magnésio pode ser somente um fator associa‑ do à hipopotassemia ou a causadora do distúrbio, como no hipoparatireoidismo, por alterar a função de canais de K+ de‑ pendentes de ATP nas células tubulares. A potassemia só consegue ser corrigida após reposição dos estoques de mag‑ nésio. Poliúria
A perda de K+ está relacionada a débito urinário elevado que acompanha a polidipsia, como no diabete insípido. Drogas
A anfotericina B interage com esteróis de membrana e aumen‑ ta sua permeabilidade, permitindo que K+ passe do intracelu‑ lar para a luz tubular. Derivados de penicilina e a carbenicilina também podem aumentar a excreção de K+. Perdas extrarrenais
Em geral, o K+ urinário é baixo (menor que 10 a 15 mEq/L), in‑ dicando conservação renal de K+.
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1944 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
Perdas gastrointestinais
Vômitos, drenagem excessiva de suco gástrico, síndromes de má absorção, diarreia prolongada, fístula biliar ou intestinal e uso de laxativos ou enemas podem provocar hipopotassemia. A excreção renal de K+ pode estar aumentada, principalmente na alcalose metabólica causada por vômitos, pois o excesso de bicarbonato impede a reabsorção de Na+ associada a ânions e a hipovolemia estimula a liberação de aldosterona, aumentan‑ do a secreção de K+ em troca de Na+.
R
Onda T achatada Onda U P
Perdas cutâneas
As perdas por meio da pele em condições normais são despre‑ zíveis. No entanto, exercício físico intenso e temperaturas ele‑ vadas podem causar sudorese excessiva e hipopotassemia, principalmente em pacientes com fibrose cística e em lacten‑ tes jovens (grande superfície corpórea exposta). Grandes quei‑ mados também apresentam perda considerável de K+ por per‑ da da barreira de proteção contra evaporação. Manifestações clínicas A hipopotassemia associa‑se a alterações cardíacas, neuro‑ musculares e renais. A gravidade das manifestações da hipo‑ potassemia é proporcional ao grau e à duração da redução do K+ sérico. Fraqueza muscular costuma ocorrer com reduções agudas das concentrações de K+ abaixo de 2,5 mEq/L, geral‑ mente começa nas extremidades inferiores e progride para o tronco e as extremidades superiores, podendo evoluir para paralisia. Além disso, a hipopotassemia grave (< 2,5 mEq/L) pode causar cãibras, rabdomiólise e mioglobinúria. A redu‑ ção da motilidade gastrointestinal varia desde a constipação até o íleo paralítico. As arritmias cardíacas incluem batimen‑ tos atriais e ventriculares prematuros, bradicardia sinusal, taquicardia juncional ou atrial paroxística, bloqueio atrioven‑ tricular e taquicardia ou fibrilação ventricular. As alterações eletrocardiográficas características de hipopotassemia são depressão do segmento ST, aparecimento de onda U (ao final da onda T, frequentemente vista nas derivações V4 a V6), achatamento da onda T e aumento da amplitude da onda U (Figura 6). A depleção crônica de K+ se associa a alterações re‑ nais, incluindo diminuição da capacidade de concentração urinária e redução da excreção de citrato e bicarbonato, com aumento da geração de amônia, resultando em alcalose me‑ tabólica.16 Diagnóstico Os exames laboratoriais úteis ao diagnóstico da causa da hipo‑ potassemia incluem: • [K+]u/[creatinina]u (mmol/mmol*):51 – < 1 na hipopotassemia por perda extrarrenal; – > 2,5 na hipopotassemia por perda renal. * para converter creatinina em mg/dL para mmol/L, multipli‑ que por 0,088. • excreção fracionada de K+: ([K+]u/[K+]P/([creatinina]u/ [creatinina]P) × 100 (%):56 – < 6,5% na hipopotassemia por perda extrarrenal; – > 10% na hipopotassemia por perda renal.
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S
Depressão do segmento ST
Figura 6 Alterações eletrocardiográficas por hipopotassemia variam de leve achatamento da onda T ao aparecimento de onda U proeminente, às vezes com depressão de ST ou inversão de onda T. Esses padrões não estão diretamente relacionados à [K+]. Na hipopotassemia, há retardo na velocidade de repolarização miocárdica, com bradicardia e hipotensão, ocorrendo contração ventricular prematura que diminui a força de contração ventricular.
sendo: [K+]u = concentração urinária de K+; [K+]P = concentra‑ ção plasmática de K+; [creatinina]u = concentração urinária de creatinina; [creatinina] P = concentração plasmática de creatinina. Tratamento A reposição de K+ deve ser feita, sempre que possível, pela via oral, gástrica ou enteral. As preparações orais de K+ incluem o cloreto de potássio (KCl) 6% (0,8 mEq/mL) ou KCl 20% (~2,5 mEq/mL). Reposição EV deve ser administrada em situações de emergência (como arritmias cardíacas e fraqueza muscular grave) ou quando a VO ou enteral não estiver disponível. A in‑ fusão máxima de K+ recomendada é de 0,3 a 0,5 mEq/kg/ hora ou 40 a 60 mEq/hora. A preparação de K+ para uso EV é o KCl 19,1% (2,5 mEq/mL). A concentração máxima da solu‑ ção de K+ deve ser de 60 mEq/L em acesso venoso periférico e 80 a 100 mEq/L em acesso venoso central.16 O tratamento da hipopotassemia consiste principalmente da reposição das reservas de K+. No entanto, deve‑se conside‑ rar a causa da hipopotassemia para que a correção do distúr‑ bio não seja somente transitória, e sempre ter em mente o tra‑ tamento etiológico do distúrbio. A monitoração do K+ sérico deve ser cuidadosa quando forem utilizadas drogas como ter‑ butalina, insulina, salbutamol e anfotericina B, visto que fre‑ quentemente causam hipopotassemia, e a reposição de K+ por via enteral pode prevenir quadros graves. É necessário tam‑ bém abordar fatores complicadores associados (como os dis‑ túrbios acidobásicos e as doenças renais) que podem interferir com a distribuição e a excreção do K+.26 Hiperpotassemia É definida pela concentração plasmática de K+ acima de 5 mEq/L. Na presença de hiperpotassemia, deve‑se descartar
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Distúrbios do Metabolismo do Sódio e Potássio e do equilíbrio acidobásico •
pseudo-hiperpotassemia, que representa erro decorrente de técnica inadequada de retirada de sangue que leva à hemólise e à liberação de K+ das células. Deve-se coletar imediatamente nova amostra de sangue de vaso que proporcione bom fluxo sanguíneo, para verificar se a concentração verdadeira de K+ é normal.16,51
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Hiperpotassemia factícia (pseudo ‑hiperpotassemia)
O K+ sérico encontra-se elevado, por conta da liberação de K+ intracelular, mas o K+ total do organismo está quantitativa‑ mente adequado. Ocorre por erros comuns durante a coleta de sangue, como garroteamento prolongado do membro e con‑ tração muscular durante a coleta, levando à despolarização ce‑ lular e à liberação de K+ das células. Outra causa é a lise de he‑ mácias durante a coleta ou o armazenamento em frasco de vidro, ou a ruptura de plaquetas e leucócitos, causada pela contração do coágulo em situações de plaquetose e leucocito‑ se, respectivamente. Deve-se desconfiar de pseudo-hiperpo‑ tassemia quando não há causas para distúrbio real, com ele‑ trocardiograma (ECG) normal, coletando-se nova amostra de sangue arterial ou venoso de fluxo livre em tubo siliconizado ou heparinizado.
Etiologias As principais causas de hiperpotassemia estão listadas na Tabela 7. A hiperpotassemia pode ser factícia (pseudo-hiperpotasse‑ mia) ou real. As principais causas são por alteração na distri‑ buição de K+ entre os compartimentos celulares, por aumento da oferta de K+ e, mais frequentemente, por redução da excre‑ ção renal de K+.
Tabela 7 Causas de hiperpotassemia Hiperpotassemia factícia ou pseudo-hiperpotassemia (translocação de K+ do CIC para o CEC) Coleta inadequada da amostra de sangue Acidose metabólica Cetoacidose diabética Drogas: betabloqueadores, succinilcolina, superdosagem de digitálico Paralisia familiar periódica hiperpotassêmica Aumento da oferta de K+
Exógeno
Suplementos dietéticos com potássio Soluções parenterais Penicilina G potássica Politransfusão com sangue estocado ou hemoderivados irradiados Soluções cardioplégicas
Endógeno
Necrose tecidual Quimioterapia e lise tumoral Trauma Rabdomiólise Grandes cirurgias e queimaduras extensas Hemólise maciça e sangramentos digestivos Reperfusão rápida após desclampeamento da aorta
Diminuição da excreção renal de K+ Insuficiência renal aguda ou crônica Hipoaldosteronismo Insuficiência suprarrenal primária Diuréticos poupadores de potássio: espironolactona, amilorida, triantereno Hipoaldosteronismo hiporreninêmico: idiopático; secundário a nefrites intersticiais Drogas: heparina, anti-inflamatórios não hormonais, ciclosporina Baixa oferta de Na+ aos segmentos distais do néfron Hipoperfusão tecidual: hipovolemia grave, insuficiência cardíaca, insuficiência hepática Inibição da secreção tubular de K+ Rejeição aguda pós-transplante renal Nefrite lúpica
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1946 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
Translocação de potássio do CIC para o CEC
É causa de hiperpotassemia mais importante quando associa‑ da a alterações na excreção renal de K+ ou sobrecarga de K+. Acidose metabólica
A presença de acidose promove a saída de K+ das células em troca dos íons H+ para manter a eletroneutralidade. Como as membranas celulares são mais permeáveis a ácidos orgânicos, a acidose por aumento de cetoácidos e ácido láctico está me‑ nos relacionada à hiperpotassemia que a acidose por aumento de ácidos inorgânicos (NH4, Cl, HCl). Cetoacidose diabética
Fatores como deficiência de insulina, hiperosmolalidade, hi‑ perglicemia e acidose metabólica contribuem para a hiperpo‑ tassemia na fase inicial da cetoacidose diabética, mesmo com redução do K+ corpóreo total. Alteração no pH não parece ser o principal fator, visto que, após administração de insulina, há queda de K+ antes da normalização do pH. Portanto, a defi‑ ciência de insulina é a principal responsável pelo aumento do K+ plasmático por meio da redução do transporte acoplado à glicose. Além disso, a hiperglicemia e a diurese osmótica asso‑ ciada aumentam a osmolalidade plasmática, que, por sua vez, causa a entrada de Na+ na célula, com saída de K+ para manter a eletroneutralidade. A hiperosmolalidade causa ainda saída de água do CIC, aumentando a concentração relativa de K+ no intracelular, fazendo o K+ sair da célula em decorrência do ar‑ raste junto à água e pelo gradiente de concentração. Drogas
Em geral, causam hiperpotassemia leve, principalmente quan‑ do associada a outros fatores como excreção renal de K+ dimi‑ nuída ou ingestão de K+ muito aumentada. O uso de betablo‑ queadores diminui a captação de K+ pelas células em virtude do bloqueio dos receptores beta-2-adrenérgicos e reduz a excreção de K+ pelo bloqueio de receptores beta-1-adrenérgicos, que ini‑ bem a liberação de renina e aldosterona. O uso de succinilcoli‑ na em queimados, traumas extensos, doença neuromuscular e superdosagem de digitálico (inibição da bomba Na+/K+-ATPa‑ se dose-dependente) também podem causar hiperpotassemia. Paralisia familiar periódica hiperpotassêmica
Decorre de um provável defeito nos canais de Na+ dos múscu‑ los esqueléticos, que causa saída rápida de K+ para o CEC, le‑ vando a crises de fraqueza muscular e paralisia, com duração aproximada de 2 horas. Situações de risco podem ser preveni‑ das evitando-se frio e exercício físico ou usando medicações (acetazolamida). Aumento da oferta de potássio
Raramente é causa isolada do distúrbio, pois os mecanismos de homeostasia do K+ são capazes de aumentar sua excreção diante da sobrecarga. O rim normal é capaz de excretar até 6 mEq de K+/L de filtrado. Quando há um aumento na ingestão de K+, a excreção renal é elevada à custa do aumento inicial na liberação de aldostero‑
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1946
na e mantida por meio do aumento da atividade da bomba Na+/K+-ATPase, igualando a oferta excessiva de K+. O aumen‑ to brusco da oferta de K+ (intoxicação, iatrogenia, trauma), principalmente associado a alterações na regulação do K+, pode levar à hiperpotassemia sintomática. Exógeno
O aumento da ingestão de K+ por meio de alimentos pode levar à hiperpotassemia em pacientes com insuficiência renal. O uso excessivo de suplementos com K+ (como o xarope de KCl) também, mas as causas iatrogênicas mais frequentes são o erro de prescrição de soluções parenterais, o uso de penicilina G potássica em bolo (cada 1 milhão de unidades contém 1,7 mEq de K+), as politransfusões com sangue estocado, o uso de hemoderivados irradiados, de soluções cardioplégicas com ex‑ cesso de K+ nas cirurgias cardiovasculares, de soluções de pre‑ servação rica em K+ no transplante renal, etc. Endógeno
Como K+ é abundante no CIC, a destruição celular em massa por necrose tecidual, quimioterapia, lise tumoral, trauma, rab‑ domiólise, grandes cirurgias, queimaduras extensas, hemólise maciça e sangramento do trato gastrointestinal podem levar à liberação de K+ e causar hiperpotassemia por aumento de ofer‑ ta endógena de K+. A reperfusão rápida após desclampeamen‑ to da aorta em cirurgias também apresenta o risco de sobrecar‑ ga de K+ proveniente das regiões isquêmicas. Diminuição da excreção renal de potássio
É a causa mais comum de hiperpotassemia. Insuficiência renal aguda ou crônica
Em casos leves ou moderados, a hiperpotassemia grave é rara em razão do aumento da atividade da bomba Na+/K+-ATPase e da liberação de aldosterona, que também aumenta a excre‑ ção intestinal de K+. A hiperpotassemia ocorre quando o RFG cai a 20% do normal, limitando a excreção de K+. Na insufi‑ ciência renal oligúrica e na fase avançada da doença, o aumen‑ to da atividade catabólica, a menor atividade da bomba Na+/ K+-ATPase e a pouca resposta ao estímulo beta-2-adrenérgico contribuem para a hiperpotassemia. Hipoaldosteronismo
A aldosterona é o principal hormônio responsável pela excre‑ ção renal de K+, sendo que alterações na síntese suprarrenal ou na resposta renal podem causar hiperpotassemia. Na insuficiência suprarrenal primária, na doença de Addi‑ son e na hiperplasia suprarrenal congênita perdedora de sal, a hiperpotassemia é um achado comum. Em geral, o aumento do K+ plasmático é leve ou moderado e mantém-se estável, pois a hiperpotassemia em si estimula a excreção de K+, com‑ pensando a deficiência de aldosterona. No entanto, alterações da função renal, hipovolemia, aumento da ingestão de K+ ou translocação celular podem agravar a hiperpotassemia. A as‑ sociação com hiponatremia é frequente. O tratamento consis‑ te na reposição volêmica com solução salina e administração
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Distúrbios do Metabolismo do Sódio e Potássio e do equilíbrio acidobásico •
de glicocorticoide e mineralocorticoide. Pacientes com doen‑ ças graves apresentam hipoaldosteronismo resultante do au‑ mento da liberação de ACTH que estimula a síntese de cortisol à custa de aldosterona. O uso de heparina também pode cau‑ sar deficiência de aldosterona em virtude do efeito tóxico nas células da camada glomerulosa da suprarrenal. Inibidores da ECA diminuem a conversão de angiotensina I em angiotensi‑ na II interferindo diretamente na liberação de aldosterona. Alguns diuréticos poupadores de K+ antagonizam o efeito da aldosterona nos dutos coletores. A espironolactona age competindo pelos mesmos receptores, enquanto a amilorida e o triantereno fecham os canais de Na+ na membrana luminal. A síntese de renina nesses casos encontra-se elevada. No pseudo-hipoaldosteronismo, a atividade de aldosterona tam‑ bém está diminuída por causa da diminuição de receptores da aldosterona ou por alterações no mecanismo de reabsorção de Na+ que ocorre acoplado ao Cl- e não associado à excreção de K+, levando a hiperpotassemia, hipertensão hipervolêmica e supressão de renina. O hipoaldosteronismo hiporreninêmico pode ser idiopáti‑ co (diminuição primária na liberação de renina), secundário a nefrites intersticiais (glomerulonefrite aguda, nefropatia dia‑ bética) ou causado por drogas. Nas glomerulonefrites, a expansão volêmica resultante su‑ prime a liberação de renina e aumenta a secreção do peptídio atrial natriurético (PAN), diminuindo a liberação de aldostero‑ na. A reposição de mineralocorticoides pode corrigir a hiper‑ potassemia em alguns pacientes. O uso de drogas também causa diminuição de renina e, consequentemente, de aldoste‑ rona. É o caso de anti-inflamatórios não hormonais (AINH) e da ciclosporina. Baixa oferta de sódio aos segmentos distais do néfron
Em situações de baixa perfusão tecidual, como hipovolemia grave, insuficiência cardíaca e insuficiência hepática, ocorre diminuição do RFG estimulando a liberação de HAD. Assim, o aumento da reabsorção de Na+ nos segmentos proximais do néfron leva à baixa concentração luminal de Na+ nas suas por‑ ções distais, diminuindo a reabsorção de Na+ e, consequente‑ mente, a secreção de K+. Inibição da secreção tubular de potássio
Ocorre na rejeição aguda pós-transplante renal e na nefrite lú‑ pica. A liberação de aldosterona e a homeostasia do Na+ estão preservadas. Sintomas A solicitação rotineira de eletrólitos é o que leva ao diagnóstico da hiperpotassemia, visto que, em geral, ela é totalmente as‑ sintomática. Os primeiros sintomas e mesmo alterações ele‑ trocardiográficas aparecem com K+ sérico acima de 6,5 mEq/L. As manifestações clínicas mais frequentes são contrações musculares, parestesias, arreflexia, fraqueza (principalmente de membros inferiores), paralisia flácida, podendo apresentar ainda disritmias cardíacas e morte súbita. Alterações eletro‑
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1947
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cardiográficas podem aparecer com níveis de K+ menores quando a elevação do K+ plasmático é rápida ou quando há as‑ sociação com acidose, hiponatremia, hipocalcemia ou hipo‑ magnesemia. Alterações eletrocardiográficas
A hiperpotassemia apresenta as seguintes alterações ao ECG: aumento da amplitude da onda T, apiculada e simétrica (T em tenda, correspondendo à repolarização mais curta); diminui‑ ção da amplitude da onda R; depressão do segmento ST; dimi‑ nuição da amplitude da onda P; prolongamento do intervalo P-R ([K+]p de 6 e 7 mEq/L), QRS e Q-T; bloqueio atrioventri‑ cular de segundo grau ([K+]p de 8 e 9 mEq/L); desapareci‑ mento da onda P; alargamento do complexo QRS; bradicardia; e fusão do complexo QRS alargado com onda T (onda sinusoi‑ dal) ([K+]p de 9 e 10 mEq/L). As arritmias cardíacas incluem bloqueio atrioventricular completo, taquicardia ventricular, fi‑ brilação ventricular e assistolia16,17 (Figura 7). Tratamento A hiperpotassemia é uma emergência médica. O tratamento é recomendado na presença de alterações eletrocardiográficas ou quando as concentrações plasmáticas de K+ são maiores que 6,5 mEq/L, independentemente do ECG. Inicialmente, todas as fontes exógenas de K+ devem ser imediatamente des‑ continuadas, incluindo suplementação oral e EV de K+, nutri‑ ção parenteral total, transfusão de sangue e drogas contendo K+. Em pacientes com hiperpotassemia grave, o tratamento deve ser focado na estabilização imediata da membrana celu‑ lar do miocárdio, deslocamento rápido do K+ para o IC e remo‑ ção de K+ do corpo.16,57 1. Restauração da excitabilidade da membrana celular, antago‑ nizando os efeitos eletrofisiológicos do K+: • gluconato de cálcio 10%, EV, na dose de 1 a 2 mL/kg em 5 a 10 minutos. Observa-se melhora imediata em 5 a 10 minutos, mas ela é transitória com duração da ação entre 30 minutos e 4 horas. Pode-se repetir a infusão em 5 a 10 minutos após, caso as alterações eletrocardiográficas persistam. 2. Aumento da captação intracelular de K+ por translocação do K+ do EC para o IC: • glicose a 5 ou 10%, na dose de 1 a 2 g/kg, com insulina sim‑ ples, EV, na dose de 0,2 a 0,3 UI para cada g de glicose, EV, com infusão superior a 2 horas. O início da ação é imediato, com duração entre 30 minutos e 4 horas. O efeito é transitório, com diminuição de 1 a 3 mEq/L de K+, em 30 minutos; • beta-2-agonistas: o início de ação é rápido e os efeitos duram até 2 horas, com diminuição do K+ plasmático de 0,7 a 1,8, após 1 a 2 horas. O principal efeito colateral é a taquicardia: –– terbutalina: 10 mcg/kg, EV, em bolo, em 10 minutos; –– salbutamol nebulizado: 2,5 mg se peso < 25 kg ou 5 mg se peso > 25 kg, em 10 minutos; –– salbutamol EV: 4 mcg/kg em bolo, em 10 a 20 minutos; • a infusão de bicarbonato de sódio (NaHCO3 8,4% – 1 mL = 1 mEq) pode ser útil em pacientes com acidose metabólica. A dose usual é de 1 mEq/kg, EV, em bolo, em 10 a 15 minutos. O início de ação ocorre em 20 a 30 minutos e a duração de ação
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1948 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
ECG normal
T apiculada
T apiculada P achatada
T apiculada P achatada QRS alargado
Alterações anteriores extremas
Ritmo sinusoldal (pré-PCR)
Aumento progressivo do K+ sérico
Figura 7 Alterações eletrocardiográficas por hiperpotassemia. A alteração mais precoce é a onda T em “tenda”. Com o aumento progressivo da [K+]p, os complexos qRS se alargam, diminui a amplitude das ondas P que podem desaparecer e, por fim, ocorrem complexos qRS com formas bizarras, como o padrão sinusoide mostrado, que leva a assistolia se não houver tratamento adequado. Na hiperpotassemia, há diminuição do potencial de equilíbrio da célula miocárdica, ocorrendo dilatação e flacidez do coração, diminuição da frequência cardíaca, podendo ocorrer bloqueio de condução dos impulsos cardíacos dos átrios para os ventrículos através do feixe A‑V (parada em diástole).
é de 2 a 4 horas. A ventilação deve ser adequada para garantir eliminação apropriada de dióxido de carbono. 3. Aumento da excreção urinária de K+: • diurético de alça: furosemida 2 a 4 mg/kg/dia, EV, a cada 6 horas ou em infusão contínua. O início de ação ocorre em 15 a 30 minutos e dura de 4 a 6 horas. 4. Remoção do K+ do corpo: • resina de troca iônica tem início de ação lento (1 a 2 horas) e pode levar 6 horas até obter o efeito máximo. A dose de ata‑ que é de 1 g/kg, por via retal, diluído em soro glicosado, em 30 a 60 minutos, que pode ser repetida 2 vezes. A dose de manu‑ tenção é de 1 g/kg/dia, VO, em 2 a 3 doses/dia. Dissolver cada g de resina em 2 a 3 mL de glicose a 10% ou sorbitol, pois pode ocorrer obstipação e obstrução intestinal se a diluição for inadequada. A eficácia é baixa no RN e pode levar a altera‑ ções como hipercalcemia, calcificação do trato digestivo e obstrução intestinal no uso do poliestireno sulfonato de cál‑ cio, e à retenção de Na+, sobrecarga de volume e efeito hipe‑ rosmolar, no uso do poliestireno sulfonato de sódio: – poliestireno sulfonato de cálcio: cada g de resina contém 3,3 mEq de cálcio (Ca++) e remove 1 mEq de K+; – poliestireno sulfonato de sódio: cada g de resina contém 4,1 mEq de Na+ e remove 1 mEq de K+; • mineralocorticoides devem ser dados a pacientes com hipoal‑ dosteronismo; • terapia de substituição renal é indicada quando há falha do tratamento conservador. A hemodiálise é mais efetiva que a diálise peritoneal para remover K+.16,57
Distúrbios do equilíbrio acidobásico A manutenção do equilíbrio acidobásico é vital para o metabo‑ lismo celular. O pH sanguíneo normal varia de 7,36 a 7,44, sen‑ do mantido estreitamente dentro de um valor graças a meca‑ nismos químicos e fisiológicos. Os distúrbios do metabolismo acidobásico acometem frequentemente os pacientes admiti‑
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1948
dos na unidade de terapia intensiva pediátrica. Esses distúr‑ bios podem representar a principal indicação de internação, assim como resultado do processo fisiopatológico e complica‑ ções da doença, no decorrer da internação. Os procedimentos terapêuticos também colaboram na gênese e muitas vezes agravam esses quadros. A criança, desde o nascimento até a fase adulta, é mais sen‑ sível a esses distúrbios e apresenta restrições na sua resolução. O recém‑nascido tem a excreção ácida limitada, decorrente da imaturidade renal e também associada à oferta insuficiente de fosfatos. A superfície alveolar da criança chega a ser 20 vezes menor que a do adulto. A ventilação através da eliminação de CO2 é primordial no mecanismo de compensação acidobásica. A hemoglobina fetal, pela maior afinidade ao oxigênio, é redu‑ zida com maior dificuldade, prejudicando o transporte de CO2. O metabolismo normal é acidogênico como resultado do me‑ tabolismo de sulfoproteínas e fosfoproteínas e da oxidação in‑ completa de gorduras e carboidratos. O adulto produz aproxi‑ madamente 1 a 1,5 mEq/kg/dia de íon hidrogênio, ao passo que na criança essa produção pode atingir 2 a 3 mEq/kg/dia, significando, em termos de peso corpóreo, que a criança tem de duplicar ou triplicar a excreção desses ácidos para manter a homeostase. Afecções próprias da infância, como diarreia, de‑ sidratação e distúrbios respiratórios potencializam a ruptura do equilíbrio acidobásico.58‑61 Aspectos químicos e fisiológicos58‑62 A abordagem tradicional do distúrbio acidobásico está voltada principalmente para a análise dos valores gasométricos, ou seja, os dados de pH, bicarbonato e CO2. Outros dados como excesso de base (base excess, conhecido como BE) e hiato iô‑ nico (ânion gap – AG) foram introduzidos para complementar a análise do distúrbio em questão. Esses conceitos tiveram início há praticamente 100 anos. Segundo Brönsted e Lowry (1923), ácido é uma substância que em uma solução doa pró‑
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Distúrbios do Metabolismo do Sódio e Potássio e do equilíbrio acidobásico •
1949
Tabela 8 Cálculo das respostas compensatórias dos distúrbios acidobásicos primários Distúrbio
Alteração primária
pH*
Resposta compensatória esperada
Acidose respiratória aguda
↑ PaCO2
↓
↑ HCO3- de 1 mEq/L para 10 mmHg de aumento da PaCO2
Alcalose respiratória aguda
↓ PaCO2
↑
↓ HCO3- de 1 a 3 mEq/L para 10 mmHg de diminuição da PaCO2
Acidose respiratória crônica
↑ PaCO2
↓
↑ HCO3- de 4 mEq/L para 10 mmHg de aumento da PaCO2
Alcalose respiratória crônica
↓ PaCO2
↑
↓ HCO3- de 2 a 5 mEq/L para 10 mmHg de diminuição da PaCO2
Acidose metabólica
↓ HCO3-
↓
↓ PaCO2 de 1 a 1,5 vezes a queda do HCO3- (em mEq/L)
Alcalose metabólica
↑ HCO3
↑
↑ PaCO2 de 0,25 a 1 vez a elevação do HCO3- (em mEq/L)
-
* Acidose (ou alcalose) respiratória pura: 10 mmHg de aumento (ou diminuição) da PaCO2 resulta, em média, em diminuição (ou aumento) de 0,08 no pH. * Acidose (ou alcalose) metabólica pura: 10 mEq/L de diminuição (ou aumento) de HCO3- resulta, em média, em diminuição (ou aumento) de 0,15 no pH. Fonte: Schrier RW. Renal and electrolte disorders. 3.ed. Boston: Little, Brown, 1986.
tons (H+), e base, aceita H+. Ácido forte é aquela que, em solu‑ ção, está toda ou quase toda dissociada, assim a concentração de H+ é igual à do ácido (HA) adicionado. O ácido fraco disso‑ cia-se parcialmente e o grau de dissociação depende da con‑ centração do ácido e do pH. Nessa condição, somente [HA] × [A-] é constante. O termo pH foi introduzido em 1909 pelo bioquímico dina‑ marquês Søren Peter Lauritz Sørensen (1868-1939) com o ob‑ jetivo de facilitar seus trabalhos no controle de qualidade de cervejas (à época trabalhava no Laboratório Carlsberg, da cer‑ vejaria homônima). O “p” vem do alemão potenz, que signifi‑ ca poder de concentração, e o “H” se refere ao íon de hidrogê‑ nio (H+). Às vezes é referido como sendo do latim pondus hydrogenii. Matematicamente, o “p” equivale ao cologaritmo (simétri‑ co do logaritmo) de base 10 da atividade dos íons a que se refe‑ re. Para íons H+: pH = -log10 [aH+], sendo que [aH+] represen‑ ta a atividade em mol.dm-3. Em soluções diluídas (abaixo de 0,1 mol.dm-3), os valores da atividade aproximam-se dos valo‑ res da concentração, permitindo que a equação anterior seja escrita como: pH = -log10 [H+]. O pH é um parâmetro que indica se uma solução líquida é ácida (pH < 7), neutra (pH = 7) ou básica (pH > 7). Uma solu‑ ção neutra só tem o valor de pH = 7 a 25°C, o que implica varia‑ ções do valor medido conforme a temperatura. Como a concentração de H+ é muito diluída nos fluidos cor‑ póreos, essa atividade pode ser considerada como equivalente à sua concentração. A concentração de H+ é medida em nmol (mol.10-9 ou mmol.10-6), ou seja, é no mínimo 1 milhão de ve‑ zes menor que qualquer outro eletrólito medido no plasma. O pH tem relação inversa com a concentração de H+: tanto maior a concentração de H+, menor o pH e vice-versa. A base da definição do pH está centrada na lei de ação das massas que explica o comportamento de soluções em equilí‑ brio dinâmico e estabelece que a velocidade de uma reação é proporcional ao produto da concentração dos reagentes e pode ser quimicamente representada por HA↔H+ + A-. Quan‑ do essa solução está em equilíbrio, ele é representado por uma constante K que representa a seguinte equação: K (constante) =
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1949
[H+] [A–] [HA]
Handerson, em 1909, aplicou esta lei para o ácido carbônico: K=
[H+] [HCO3–] [H2CO3]
Hasselbalch, em 1916, rearranjou a equação de Handerson com a aplicação de uma escala logarítmica: log K =
log [H+] + log [HCO3–] [H2CO3]
Alterando a apresentação da fórmula, obtém-se: – log [H+] =
– log K + log [HCO3–] [H2CO3]
Como – log [H+] = pH e – log K = pK (constante de dissocia‑ ção), essa equação pode ser representada por: pH =
pK + log [HCO3–] [H2CO3]
Utilizando a lei de Henry, podemos substituir o H2CO3 por (PCO2 × 0,03) e, assim, formular o que se conhece por equação de Hendersen e Hasselbalch, que é a base da abordagem tradi‑ cional do equilíbrio acidobásico: pH =
pK + log [HCO3–] PCO2 × 0,03
Assim, um pH de 7,40 equivale a uma concentração de 40 nmol/L de H+. Na faixa de pH de 6,80 a 7,70, a concentração de H+ varia de 160 a 20 nmol/L. A acidemia ocorre quando a [H+] ultrapassa a faixa normal de 40 ± 4 nmol/L ou pH menor que 7,36, e a alcalemia, quan‑ do a [H+] for inferior a 40 ± 4 nmol/L ou pH superior a 7,44. Em patologia, o sufixo “ose” representa uma enfermidade de origem metabólica. Assim, acidose é uma condição fisiopa‑
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1950 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
tológica associada à acidemia que pode causar acidemia quan‑ do não compensada. Do mesmo modo, alcalose é a condição fisiopatológica associada à alcalemia e que pode provocar alca‑ lemia quando não compensada. Acidose e alcalose, portanto, não implicam obrigatoriedade de acidemia e alcalemia, res‑ pectivamente. A análise dos dados clínicos e laboratoriais é que poderá definir o distúrbio em questão. Hiato aniônico (ânion gap) O princípio da eletroneutralidade estabelece que, em uma so‑ lução, o total das cargas positivas dos cátions deve ser igual ao das cargas negativas dos ânions. A medida dos principais cátions e ânions do líquido extracelular (LEC) permite a ava‑ liação do estado de eletroneutralidade. O sódio representa mais de 90% dos cátions, enquanto o cloro e o bicarbonato respondem por aproximadamente 85% dos ânions. A dife‑ rença entre a concentração de sódio e a soma da concentra‑ ção de cloro e bicarbonato expressa os ânions não mensurá‑ veis ou hiato iônico, mais conhecida pela expressão em inglês anion gap (AG). AG = Na+ – (Cl– + HCO3–) A variação normal de AG é de 12 a 14 mEq/L. Valores maiores de AG podem indicar que está havendo um acúmulo de ácidos fixos. É incomum os achados de valores baixos, que podem ocorrer na presença de hipoproteinemia. No entanto, o AG pode ser corrigido (AGc) para o valor de albuminemia por um fator de correção: AGc = AG + [0,25 × (44 – albumina em g/L)]
Tampão químico Um tampão químico é constituído por um par conjugado, ge‑ ralmente constituído por um ácido fraco e o seu sal conjugado (HA/A–). A capacidade tamponante desse par pode ser carac‑ terizada pela curva de titulação (Figura 8) de um ácido forte com uma base fraca. Neste exemplo, tem-se 10 mL de uma solução de HCl 0,1 N no qual será adicionado NaHCO3 0,1 N. O HCl é um ácido forte, portanto encontra-se praticamente todo dissociado (H+ e Cl–) e tem pH bastante ácido. A adição gradual em mL de uma base fraca (NaHCO3 0,1 N) altera o pH até ele se tornar alcalino. O HCO3 reage com H+ da solução formando o H2CO3 que por ser umácido fraco, fica apenas parcialmente dissociado (H2CO3↔ H+ + HCO3–). Havendo moléculas que doam prótons e outras que recebem prótons na mesma solução, a curva de titulação obtida tem um comportamento característico. No início da adição, o pH eleva-se rapidamente. Na sequência, é observada pouca variação do pH mesmo com adição contínua da base, e depois nova elevação acentuada do pH. O efeito tampão é evi‑ dente em uma determinada faixa de pH que é justamente onde se situa o pK. A efetividade desses tampões depende principalmente da sua quantidade presente na solução e do seu pK. O pK indica o melhor pH de tamponamento, ou seja, o pH que sofre a me‑ nor variação com a adição de ácidos ou bases (substâncias al‑ calinas). A relação entre pH e pK pode ser observada pela equação de Henderson-Hasselbalch, na qual pK equivale ao pH quan‑ do log [A-]/[HA] = zero, ou seja, 100 = 1, portanto a concen‑ tração de A- é igual a de HA:
[A–] pH = pK + log = Excesso de bases (base excess) [HA] Mede a diferença da capacidade tamponante de uma amostra de sangue com o normal. Mais conhecido pelo termo em in‑ glês base excess (BE), mede a quantidade de ácido forte ou Os principais tampões do organismo são os seguintes: base forte necessária para titular 1 L de sangue para o pH de • bicarbonato: HCO3– + H+ ↔ H2CO3 ↔ H2O + CO2; 7,40 com a PCO2 mantido constante em 40 mmHg. • fosfato: HPO4– + H+ ↔ H2PO4; Excesso de base padrão (BEP) Conceitua-se como excesso de base padrão (BEP) o BE corri‑ gido para o valor de hemoglobina, uma vez que esta é o tam‑ pão intracelular mais importante da hemácia. Desde que os tampões não voláteis permaneçam constantes, o BEP mede o componente metabólico do distúrbio acidobásico, indepen‑ dentemente do componente respiratório. Sistemas tampões58-63 O organismo defende o seu equilíbrio acidobásico com meca‑ nismos tamponantes, impedindo variações importantes no pH por meio da combinação ou liberação reversível de H+. Os sistemas tampões podem ser classificados em três grupos: • tampão químico; • tampão biológico; • tampão fisiológico.
10 9 8
pK
7 pH
6 5 4 3 2
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9 10
Adição de NaHCO3
Figura 8 Curva de titulação.
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Distúrbios do Metabolismo do Sódio e Potássio e do equilíbrio acidobásico •
• proteína: Pr– + H+ ↔ HPr; • hemoglobina: Hb– + H+ ↔ HHb. No meio intracelular, o tamponamento é realizado principal‑ mente pelas proteínas. O sistema tampão bicarbonato é o mais abundante no meio extracelular, representando pouco mais de 50%, (seguido pela hemoglobina, que representa 35%). O pK do tampão bicarbo‑ nato é 6,1, distante do pH fisiológico de 7,4. Nesse valor, esse sistema seria inviável para o organismo, mas como o bicarbo‑ nato se dissocia em H2O e CO2 e esse último é eliminado conti‑ nuamente pelos pulmões, o sistema funciona de modo aberto. A equação de Henderson-Hasselbalch permite compreen‑ der como a eliminação (ou não) de CO2 torna esse sistema aberto eficiente, demonstrando a interdependência entre pH, bicarbonato e H2CO3: pH = pK + log =
[HCO3-] [H2CO3]
Como o pK do bicarbonato é 6,1 e o HCO3– mantém uma rela‑ ção direta com o CO2, segundo a equação H2CO3 = 0,03 × PaCO2, pode-se expressar a equação anterior do seguinte modo: pH = 6,1 + log
[HCO3-] 0,03 × PaCO2
Outro modo de correlacionar [H+] com PaCO2 e HCO3– é por meio da equação modificada por Kassirer-Bleich, que utiliza a [H+] no lugar do pH: [H+] =
24 × PaCO2
1951
CO2 dentro da normalidade. A PaCO2 pode ser alterada pelo desequilíbrio entre sua produção e sua eliminação pela venti‑ lação pulmonar, ou como mecanismo compensatório de um distúrbio metabólico. Os rins participam da homeostase acidobásica, regulando a concentração de bicarbonato através da reabsorção tubular de bases e excreção de ácidos fixos. O túbulo renal proximal de um adulto reabsorve 4.000 a 6.000 mEq/dia de bicarbonato e é um dos maiores mecanismos de manutenção do equilíbrio acidobásico. A excreção de H+ pode ser realizada por meio da formação de amônio (NH4+) ou na formação de acidez titulá‑ vel (Figura 9). As trocas iônicas e de solutos no túbulo renal dependem de mecanismos de transporte ativos (ATPases), passivos (mediadas pelos canais), difusão facilitada (mediada por trans portadores, cotransportadores (simporters) e trocadores (antiporters). Simporters são transportadores que operam translocando dois ou mais íons no mesmo sentido, e antiporters translocam em sentidos opostos. Quando a translocação iônica não resulta em alteração no balanço de cargas, ela é denominada eletroneutra. Por outro lado, quando o resultado promove uma alteração no balanço de carga, ela é denominada eletrogênica. O H+ é trocado pelo Na+ do filtrado glomerular (antiporter Na+/H+). Para cada mEq de H+ excretado, 1 mEq de bicarbonato é reabsorvido (A). O H+ pode ser excretado também na forma de acidez titulável (B) e amônio (C). A excreção ácida líquida é definida como a diferença entre a soma da acidez titulável e amônio menos o bicarbonato excretado. Esse valor deve ser equivalente à produção ácida do organismo para manter a homeostase adequada. Abordagem dos distúrbios do equilíbrio acidobásico58-63 Os distúrbios do metabolismo acidobásico podem ser dividi‑ dos em metabólicos, respiratórios ou mistos.
HCO3-
Membrana basolateral Membrana apical
Essas duas equações demonstram que o pH depende intima‑ mente da relação CO2/bicarbonato, ou seja, do componente respiratório/componente metabólico. Tampão biológico Não se trata de tampão químico. Consiste na troca de íons (H+, Na+, K+, Ca++) no intuito de proteger o pH extracelular. O H+ não tamponado difunde até o meio intracelular, onde é trocado por um cátion (Na+ e K+ ou, em nível ósseo, por Ca++), justificando a presença de hiperpotassemia nas condições que causam aci‑ dose e o inverso nas que causam alcalose. Tampão fisiológico É o sistema responsável pela excreção ácida produzida pelo metabolismo celular. Destaca-se o papel realizado pelos pul‑ mões e rins. Os pulmões, no adulto, são responsáveis pela eliminação diária de 13.000 a 15.000 mmol de CO2, mantendo os níveis de
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1951
ATP Na+
ATP
HCO–3
Na+
Na+ HCO–3
H+
A
H2CO3
a.c.
H2O
CO 2 Glutamina
NH3
Na+
HCO3–
H+
K+
Na+ CO 2
H+
H2CO3
HPO4–
NaH2 PO4
H2O CO2
B
NH3
NH4+
Glutamato C Capilar peritubular
Célula tubular
Luz tubular
Figura 9 Representação esquemática da participação renal na homeostase acidobásica.
A: reabsorção do bicarbonato; B: acidez titulável; C: produção de amônio; a.c.: anidrase carbônica.
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1952 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
Quando o distúrbio primário envolve o tampão bicarbo‑ nato, ele é dito metabólico. Assim, aumentos na concentra‑ ção de bicarbonato produzem alcalose metabólica, e dimi‑ nuições da concentração de bicarbonato, acidose metabólica. As alterações que ocorrem na PaCO2 para compensar proces‑ sos metabólicos primários são chamadas de compensação respiratória.Assim, na alcalose metabólica, a PCO2 tende a aumentar e, na acidose metabólica, a diminuir. No entanto, o aumento da PCO2 na alcalose metabólica é limitado pela hipoxemia que poderia ocorrer com o aumento da PCO2 por hipoventilação. Quando a alteração primária é na eliminação ou retenção de CO2, com diminuição ou aumento da PaCO2, ela é dita alca‑ lose ou acidose respiratória. As alterações do bicarbonato nes‑ ta compensação é chamada decompensação metabólica. As‑ sim, na alcalose respiratória, o bicarbonato tende a diminuir e na acidose respiratória, o bicarbonato tende a aumentar. Nos distúrbios mistos coexistem duas ou mais alterações, sejam elas metabólicas ou respiratórias. A compensação res‑ piratória nos distúrbios metabólicos habitualmente é rápida. A compensação metabólica nos distúrbios respiratórios, no entanto, requer ajustes renais, necessitando de várias horas a alguns dias para completá-la. Essas compensações atenuam a mudança do pH decorrente dos distúrbios primários, mas não a corrigem totalmente. Na abordagem inicial de qualquer dis‑ túrbio acidobásico é fundamental o conhecimento da história clínica minuciosa do paciente. O reconhecimento das altera‑ ções fisiopatológicas, aliado aos exames laboratoriais, assegu‑ ra a abordagem terapêutica mais adequada. Acidose metabólica58-65 A acidose metabólica pode ocorrer por três mecanismos: • perda de substâncias alcalinas (bases); • aumento da produção ou ingestão de substâncias ácidas; • redução da excreção renal de ácidos. Nos casos de aumento da produção ou ingestão de substân‑ cias ácidas ocorre consumo de bicarbonato plasmático acom‑ panhado pela elevação compensatória de outro ânion. A natu‑ reza do ácido determina qual será o ânion substituto. Com adição de ácido forte como o ácido clorídrico (HCl), o ânion re‑ tido é o cloro (acidose metabólica hiperclorêmica). Nesse caso, o AG permanece em níveis normais. Entretanto, quando a adi‑ ção é decorrente de ácidos endógenos, como o ácido lático ou o ácido aceto acético, o ânion retido é o sal sódico desses áci‑ dos, como o lactato ou acetoacetato e a concentração de cloro não é alterada (acidose metabólica normoclorêmica). O cálculo do AG diferencia, portanto, dois grupos de acido‑ se: hiperclorêmica, com AG normal e normonatrêmica, com AG elevado. Causas de acidose metabólica Uma das manifestações clínicas características das acidoses metabólicas é a hiperventilação, cuja resposta compensatória tem valores razoavelmente precisos. Assim, o cálculo da PaCO2 esperada pode ser realizado pela seguinte fórmula:
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PaCO2 = [(1,5 × HCO3–) + 8] ± 2 O aumento acentuado de H+ tem ação cronotrópica e inotrópi‑ ca negativas, podendo comprometer o quadro hemodinâmico da criança, e a eficiência da hiperventilação compensatória é prejudicada com a gravidade da acidose. Assim, quanto mais baixo o pH por acidose metabólica, menos a hiperventilação poderá ajudar a compensá-la. Tratamento58,64,66 O tratamento visa à correção do mecanismo responsável pela acidose e, quando necessário, a correção da acidemia por meio da utilização de bicarbonato. A indicação está relacionada aos efeitos deletérios da acidemia. Habitualmente, é indicada quando o pH é inferior a 7,10 ou a concentração de bicarbona‑ to é inferior a 10 mEq/L. A indicação de correção da acidemia metabólica com bicarbonato quando existe perda de bicarbo‑ nato, como nos casos de diarreia ou acidose tubular renal, é bem estabelecida e aceita. No entanto, existe ainda bastante controvérsia na indicação de reposição de bicarbonato nas aci‑ doses de origem lática, como nos casos de choque ou má per‑ fusão tissular. Forsythe e Schmidt descrevem que, apesar de o bicarbonato elevar o pH arterial, não existem dados favoráveis para suportar o seu uso na acidose lática, independentemente do grau de acidemia. Quando considerado o uso de bicarbonato é difícil estabe‑ lecer com exatidão a quantidade necessária a ser oferecida. O cálculo geralmente é dado pela seguinte fórmula: HCO3- necessário (mEq) = (15 – HCO3- encontrado) × 0,3 × peso (kg) Esse bicarbonato é oferecido em solução isosmolar (bicarbo‑ nato de sódio a 1,4%), sendo infundido em 2 a 4 horas. Na Tabela 9 Causas de acidose metabólica AG normal (hiperclorêmica)
Perda de bicarbonato pelo trato gastrointestinal diarreia ureterossigmostomia hiperalimentação parenteral fístula pancreática Acidose dilucional Perda por via renal acidose tubular renal fase precoce da insuficiência renal aguda uso de inibidores da anidrase carbônica uso de inibidores da aldosterona resistência à ação dos mineralocorticoides (pseudo ‑hipoaldosteronismo tipo 1) hiporreninemia derivação uroentérica acidose metabólica tardia do RN recuperação durante tratamento da cetoacidose diabética Ingestão de compostos contendo cloro
AG elevado (normoclorêmica)
Cetoacidose diabética ou alcoólica Insuficiência renal Acidose lática Rabdomiólise Intoxicações (metanol, etilenoglicol, paraldeído, salicilato) Erros inatos de metabolismo
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Distúrbios do Metabolismo do Sódio e Potássio e do equilíbrio acidobásico •
1953
criança em parada cardiorrespiratória, o uso de bicarbonato Considerações a respeito da cetoacidose não é mais recomendado de modo rotineiro. Nos casos nos diabética (CAD) quais se julgar seu uso indispensável, considerar a dose inicial O edema cerebral que ocorre na cetoacidose diabética, que de 1 mEq/kg. pode já estar presente antes do início do seu tratamento, é pre‑ Algumas considerações são necessárias a respeito da utili‑ dominantemente vasogênico e se deve à lesão endotelial, que zação de bicarbonato: causa vasoplegia e alterações da barreira hematoencefálica. • embora o bicarbonato eleve o pH sanguíneo, ele não trata a Contribuem para sua origem: causa da acidose; • a hiperventilação compensatória da cetoacidose diabética • para ser eficaz, o sistema tampão bicarbonato exige uma boa causa queda da PaCO2 e consequente vasoconstrição com is‑ função ventilatória; quemia cerebral, o que aumenta a permeabilidade capilar (a • o pH depende da relação bicarbonato/ácido carbônico. Valo‑ perfusão e o coeficiente de difusão encefálica só melhoram 36 res baixos de bicarbonato não implicam pH muito ácido e a 72 horas após início do uso de insulina); consequente correção; • a hiperglicemia e o aumento da taxa de ureia que aumentam a • o uso de bicarbonato pode ocasionar hiperosmolalidade, hi‑ viscosidade plasmática e a hipercoagubilidade, responsável pernatremia e hipocalcemia; por 20% dos casos evoluem com acidente vascular cerebral is‑ • na acidose metabólica, o pH é o primeiro que se corrige, segui‑ quêmico ou hemorragia do SNC; do depois pelo bicarbonato e pela PaCO2; • o aumento da PCO2 liquórica pelo uso de bicarbonato promo‑ • quando o pH diminui para valores entre 7,2 e 7,1, ocorre uma ve vasodilatação cerebral, o que também contribui para maior estimulação máxima do centro respiratório e incremento risco de edema cerebral. máximo do volume minuto ventilatório, favorecendo a com‑ pensação respiratória da acidose metabólica. Quando o pH Com a correção da volemia e o uso de insulina, haverá inter‑ atinge valores inferiores a 7,1, existe queda progressiva do rupção da produção ácida (ácido acetoacético e beta-hidroxi‑ volume minuto; butírico) e metabolização dos cetoácidos com produção de • a contratilidade do ventrículo esquerdo diminui significativa‑ H2O e CO2, fontes de geração de bicarbonato. Em razão dessa mente quando o pH cai para valores inferiores a 7,1; fonte endógena de bicarbonato, existe pouca necessidade de • pacientes com acidose metabólica acompanhada de poten‑ bicarbonato exógeno no tratamento da CAD. ciais geradores de bicarbonato, como na cetoacidose diabéti‑ Portanto, na CAD, o uso de bicarbonato deve ser restrito ca, não devem receber o bicarbonato corrigido pela fórmula aos casos de acidemia grave, com riscos de agravamento car‑ clássica por causa do risco de hipercompensação (alcalose díaco e respiratório, e só deve ser considerada se a função pul‑ metabólica); monar estiver adequada (PaCO2 satisfatória para compensa‑ • o nível de consciência está mais relacionado ao pH liquórico ção respiratória da acidose metabólica). Não visa a elevar o pH que ao pH sanguíneo. A manutenção do pH do SNC é mais para um valor normal, mas para um pH tolerável para o pa‑ eficiente que a dos tecidos extracranianos em razão da per‑ ciente (pH ~ 7,1). meabilidade reduzida da barreira hematoencefálica ao bicar‑ O valor do bicarbonato desejado deve ser calculado de bonato. O CO2 produzido pelo SNC sai livremente para a cir‑ modo a manter a relação bicarbonato:ácido carbônico de 20:1 culação sistêmica, sendo um importante mecanismo de (ver equação de Handerson-Hasselbalch). Nesses casos, se bi‑ defesa da função cerebral. Durante a correção da acidose me‑ carbonato/acido carbônico = 20; e ácido carbônico = PaCO2 × tabólica com bicarbonato de sódio, o CO2 gerado periferica‑ 0,03, então esta fórmula pode ser expressa como: mente atravessa a barreira hematoencefálica, ocasionando diminuição do pH do SNC, enquanto o aumento do bicarbo‑ Bicarbonato/PaCO2 × 0,03 = 20. nato sistêmico eleva o pH plasmático sem alterar significati‑ vamente sua concentração no LCR. Dessa forma, o pH sistê‑ Portanto, o HCO3– desejado (mEq) = PaCO2 × 0,03 × 20 = mico se eleva e o do SNC diminui com rebaixamento do nível PaCO2 × 0,6. de consciência; Os corpos cetônicos causam acidose metabólica com au‑ • o uso de bicarbonato de sódio causa desvio da curva da dis‑ mento do AG proporcional à diminuição do bicarbonato plas‑ sociação da hemoglobina para a esquerda e, consequente‑ mático (HCO3–), ou seja, (AG – 12) ~ (20 – HCO3–), como na mente, diminui a oferta de oxigênio aos tecidos, agravando a acidose lática. Um aumento do AG maior que a diminuição do acidose no SNC. HCOO3 indica associação com agravo que causa acidose meta‑ bólica com AG aumentado (p.ex., insuficiência renal). Se for Existem drogas alternativas para o tratamento da acidose me‑ menor, com agravos que causam alcalose metabólica (p.ex., tabólica como Carbicarb® (mistura de Na2CO3 e NaHCO3, que vômitos incoercíveis ou correção intempestiva da acidose com age como tampão sem gerar CO2), dicloroacetato e Tham® bicarbonato). O componente não cetótico da acidose em um (trometamina). Até o momento, não há estudos com seu uso paciente diabético pode ser estimado e o cálculo do bicarbona‑ em pacientes pediátricos. to desejado calculado:
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HCO3– desejado (mEq) = (AG – 12) – (20 – HCO3) = (Na+ – Cl– – HCO3– – 12) – (20 – HCOO3–) = Na+ – Cl– – 32 A correção da acidose metabólica não acetoacidótica e não lá‑ tica pode ser, então, realizada usando-se a fórmula: HCO3– necessário (mEq/L) = (HCO3– desejado – HCO3) × 0,3 × peso = (Na+ – Cl– – HCO3– medido – 32) × 0,3 × peso (kg)
glomerular (TGF), de hipocloremia e de hipopotassemia. A formação renal de bicarbonato é estimulada pela presença de atividade mineralocorticoide no néfron distal. O quadro clínico pode resultar dos distúrbios eletrolíticos presentes como hipopotassemia e hipocalcemia (redução da fração ionizada). A curva de dissociação desloca-se para a es‑ querda, favorecendo a hipoxemia. A hipoventilação compen‑ satória é errática, não tendo valores muito confiáveis.
Tratamento Alcalose metabólica59-61 No tratamento da alcalose metabólica é importante reconhe‑ É um distúrbio também frequente, sendo muitas vezes pouco cer não somente a causa, mas também o mecanismo de ma‑ valorizado, principalmente pela inespecificidade do quadro nutenção. O tratamento pode ser dividido em dois grupos: clo‑ clínico e desconhecimento de sua fisiopatologia. reto responsivo e cloreto resistente. A diferenciação básica A alcalose metabólica pode ser dividida em duas fases: gê‑ entre esses grupos está na resposta à oferta salina e na concen‑ nese e manutenção. tração urinária de cloreto: A gênese depende basicamente de três fatores: administra‑ • cloreto responsivo: Cl– urinário < 10 mEq/L; ção de substâncias alcalinas ou precursores, perda de íons H+ e • cloreto resistente: Cl– urinário > 10 mEq/L (exceto na presen‑ perda desproporcional de cloretos (Tabela 10). ça de diurético ou hipercapnia aguda). A causa (aumento de bicarbonato) nem sempre significa que o estado de alcalose será mantido, porque esse excesso, Cloreto responsivo sendo detectado como ânion não necessário,acaba sendo ex‑ A maioria das alcaloses metabólicas encontra-se neste grupo. cretado. A manutenção da alcalose metabólica decorre da in‑ O tratamento consiste na reposição hídrica e salina na forma capacidade renal em eliminar o bicarbonato excedente, man‑ de solução de cloreto de sódio. O cloreto de potássio pode ser tendo seus níveis elevados. Os principais mecanismos de associado nos casos de hipopotassemia grave. A avaliação clí‑ manutenção estão relacionados à maior reabsorção e produ‑ nica e laboratorial orienta a reposição desses eletrólitos. A me‑ ção renal de bicarbonato. lhora costuma ocorrer em poucos dias, havendo normalização do pH arterial, aumento de cloreto e pH urinários (bicarbona‑ Causas de alcalose metabólica túria), assim como cloro e potássio. Perda desproporcional de cloretos Diuréticos Cloreto resistente A maior reabsorção de bicarbonato ocorre nos estados de con‑ Caracteriza-se pela incapacidade renal em reter o cloreto ofer‑ tração do volume extracelular, de redução na taxa de filtração tado. As causas e o mecanismo de manutenção decorrem do aumento da atividade mineralocorticoide. Esse aumento pode ser primário (p.ex., síndrome de Cushing), no qual a atividade Tabela 10 Causas de alcalose metabólica renina está inibida pelo aumento do volume extracelular, ou Administração de Bicarbonato secundário (p.ex., estenose da arteria renal), no qual a ativida‑ substâncias alcalinas Acetato ou precursores Citrato de mineralocorticoide está elevada justamente pelo aumento Causas gastrointestinais Perda de íons H+ da renina. Geralmente, esses quadros estão associados à ex‑ Vômitos pansão do volume extracelular. O tratamento consiste em reti‑ Sucção gástrica contínua Estenose hipertrófica de piloro rar a causa do excesso mineralocorticoide (quando possível), Cloridrorreia congênita correção dos distúrbios eletrolíticos (K+, Mg++) e bloqueio da Causas renais atividade mineralocorticoide (p.ex., uso de espironolactona). Aumento do fluxo tubular (uso de diuréticos) Existem outras alternativas terapêuticas nos casos de alca‑ Aumento de renina lose metabólica grave, mas apenas de utilização eventual contração do volume extracelular deficiência de magnésio como o HCl, NH4Cl e hemodiálise. síndrome de Bartter Aumento da atividade mineralocorticoide hiperaldosteronismo primário síndrome de Cushing síndrome adrenogenital Aumento da negatividade intraluminal presença de ânions não absorvíveis Aumento da PaCO2 pós-hipercapnia Redução do hormônio da paratireoide Hipoparatireoidismo
Perda desproporcional de cloretos
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Uso de diuréticos
Acidose respiratória A acidose respiratória é um distúrbio primário do sistema res‑ piratório que acarreta retenção de CO2 e consequente hiper‑ capnia e acidemia. Os efeitos dessa retenção no equilíbrio aci‑ dobásico dependem de sua velocidade de instalação. O CO2 na presença de anidrase carbônica gera ácido carbônico. Os tam‑ pões químicos têm capacidade limitada para combater esse ganho ácido. A maior parte do tamponamento extracelular é realizada pela hemoglobina, fosfatos e proteínas. A retenção
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de CO2 estimula os mecanismos renais para a reabsorção de bicarbonato. Esse mecanismo é lento, necessitando de alguns dias para ser completado. Se a retenção de CO2 for muito rápi‑ da, os mecanismos também serão insuficientes em atenuar a redução do pH. Nas retenções crônicas, a reabsorção renal de bicarbonato impede que o pH tenha valores extremamente ácidos. Na fase aguda, espera-se um aumento de 1 mEq/L de bicarbonato para cada 10 mmHg acima do normal de PaCO2, enquanto na fase de compensação renal, esse aumento chega a 3 mEq/L para cada 10 mmHg de PaCO2. As causas de acidose respiratória podem estar relacionadas diretamente a afecções pulmonares, ou a processos extrínse‑ cos que afetam a função ventilatória do paciente (p.ex., coma, intoxicação, traumatismos e doenças neuromusculares). O manuseio inadequado da ventilação pulmonar mecânica tam‑ bém pode resultar ou agravar a hipercapnia. O quadro clínico da acidose respiratória é inespecífico. Na hipercapnia, pode haver alteração de sensório (confusão mental, tremores, coma), vasodilatação periférica e hipoxe‑ mia (hipoventilação). Tratamento O tratamento é direcionado para reduzir a PaCO2 até que o pH esteja em valor mais aceitável. Nos processos pulmonares crô‑ nicos, essa redução deve ser extremamente cautelosa, e não deve ser inferior aos valores de PaCO2 habituais do paciente. Além disso, nos processos pulmonares crônicos, a retenção de bicarbonato pode ser maior que a esperada como compensa‑ ção de uma acidose respiratória, e a redução mais acentuada da PaCO2 promoverá um aumento de pH expondo uma alcalo‑ se metabólica associada, que até agora estava sendo mascara‑ da pela hipercapnia. A utilização de ventilação mecânica é comum nesses pa‑ cientes, principalmente nos casos agudos. Em muitos casos, as tentativas não invasivas (fisioterapia, drogas) são insufi‑ cientes para promover a melhor ventilação e mesmo a oxige‑ nação desse paciente.
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Tratamento O tratamento é dirigido para a correção do distúrbio de base. Entre os procedimentos, citam-se a analgesia, a sedação e o aumento da FiO2. Nos pacientes em ventilação mecânica, de‑ ve-se tentar reduzir o volume minuto, seja por redução da pressão inspiratória, do volume corrente ou da frequência res‑ piratória. Distúrbios mistos São distúrbios muito comuns e resultam de mecanismos de compensação inadequados e/ou da presença de outro distúr‑ bio primário. A abordagem é realizada pela análise gasométri‑ ca e do AG. A gasometria como dado isolado é sujeita a inter‑ pretação errônea e não informa sobre a tendência do distúrbio. O distúrbio primário é orientado pelo pH e pelos valores de PaCO2 e bicarbonato. O pH ácido associado a aumento da PaCO2 indica que a acidose respiratória é o distúrbio primário (ou ambos). O pH alcalino associado à redução da PaCO2 indi‑ ca a alcalose respiratória como distúrbio primário, se o bicar‑ bonato for alto, existe alcalose metabólica como processo pri‑ mário (ou ambos). A análise do AG permite verificar se os mecanismos com‑ pensatórios são apropriados, ou se existe outros distúrbios en‑ volvidos. Partindo do princípio fisiológico de que o organismo não é capaz de gerar AG tão elevado para compensar um dis‑ túrbio primário, e de outro que determina que, para cada mmol de ácido que for tamponado pelo sistema tampão bicar‑ bonato, 1 mmol de bicarbonato é perdido, convertendo-se em CO2 e H2O e 1 mmol de sal sódico do ácido é formado, pode-se precisar o distúrbio presente. Assim, a presença de AG ≥ 20mEq/L indica a presença de acidose metabólica, indepen‑ dentemente do pH ou do bicarbonato. A diferença de AG (AG calculado – AG normal), conside‑ rando AG normal = 12, somando ao bicarbonato encontrado, fornece outro dado importante. Se o bicarbonato consumido for substituído pelo sal sódico (AG), então a soma da diferença do AG deve ter o valor da concentração normal de bicarbonato (23 a 30mEq/L). Essa soma, tendo valores acima de 30 mEq/L, indica a presença de alcalose metabólica, indepen‑ dentemente do pH ou do bicarbonato. E, se o valor for inferior ao normal, indica a existência de acidose hiperclorêmica. Essa abordagem facilita a interpretação da gasometria diante do paciente, determinando os possíveis distúrbios aci‑ dobásicos presentes.
Alcalose respiratória A alcalose respiratória resulta da ventilação alveolar excessiva em relação à produção de CO2, sendo expressa pela redução da PaCO2 e elevação do pH. Os mecanismos de compensação são realizados inicialmente pelos tampões não bicarbonato, e pos‑ teriormente pela maior excreção renal de bicarbonato, com re‑ tenção de radicais ácidos e cloretos. São vários os fatores que colaboram na gênese da hiperven‑ Abordagem físico-química – modelo tilação: estímulo do sistema nervoso central (febre, drogas e de Stewart67,68,69 traumas), estímulo do sistema nervoso periférico (embolia A abordagem tradicional baseada na equação de Handerson‑ pulmonar, anemia e hipoxemia) e ventilação mecânica. -Hasselbalch é bem-sucedida na prática clínica, mas pode ha‑ As manifestações clínicas dependem principalmente do fa‑ ver situações em que essa abordagem não explica plenamente tor causal. A hipocapnia leva à diminuição do fluxo sanguíneo o distúrbio acidobásico presente, como a acidose metabólica cerebral, podendo provocar alterações do sensório, agravada resultante de grandes infusões de soro fisiológico (NaCl 0,9%). pela menor disponibilidade de oxigênio (curva de dissociação Stewart propôs uma nova descrição de equilíbrio acidobásico da hemoglobina desviada para a esquerda). no início dos anos de 1980, baseada em princípios químicos das soluções aquosas (leis de ação das massas, de conserva‑
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Tabela 11 Orientação para reconhecimento do distúrbio acidobásico primário pH > 7,4
Bicarbonato alto
Alcalose metabólica
PaCO2 baixa
Alcalose respiratória
Ambos
Distúrbio misto
Bicarbonato baixo
Acidose metabólica
PaCO2 alta
Acidose respiratória
Ambos
Distúrbio misto
Ânion gap (AG)
AG ≥ 20 mEq/L
Acidose metabólica (independentemente do pH ou bicarbonato)
Diferença de AG (Δ AG) AG calculado – AG normal
Δ AG + bicarbonato encontrado > 30 mEq/L
Alcalose metabólica (independentemente do pH ou do bicarbonato)
AG + bicarbonato encontrado < 23 mEq/L
Acidose metabólica hiperclorêmica
pH < 7,4
ção de massas e da eletroneutralidade). Enquanto a aborda‑ gem tradicional põe em foco a análise de pH, HCO3–, AG e BE, Stewart considera pH e HCO3 variáveis dependentes da condi‑ ção físico-química criada por variáveis independentes e consi‑ dera muito importante as constantes de dissociação de ácidos fracos e da água. Para ele, a principal fonte de H+ é a água. Uma solução tem um pH neutro quando a concentração de H+ é igual à de OH–. Assim, ácido é uma substância que aumenta a [H+] de uma solução e base, a que reduz a [H+] em relação a [OH-]. Assim, pH, HCO3–, H+, OH–, CO3–, HA e A- são conside‑ radas variáveis dependentes e podem ser deduzidas a partir de equações matemáticas. De acordo com Stewart, o estado acidobásico está funda‑ mentado em três variáveis independentes e a alteração de uma ou mais dessas variáveis pode ser responsável pelo dis‑ túrbio acidobásico: • diferença de íons fortes (DIF); • PCO2; • concentração total de ácidos fracos (Atot). DIF (diferença de íons fortes) ou SID (strong ion difference) É a diferença entre cátions e ânions fortes (aqueles que estão totalmente ou quase totalmente dissociados e quimicamente sem reação). O valor real acaba sendo desconhecido uma vez que nem todos os íons fortes podem ser mensurados, sendo calculada então uma DIF aparente (Figura 10). PCO2 É uma variável independente na equação acidobásica. Seu va‑ lor está relacionado diretamente à produção de CO2 e inversa‑ mente com a ventilação alveolar. A redução na PCO2 promove redução também na concentração de H+ e vice-versa. Concentração total de ácidos fracos (Atot) Considera que ácidos fracos, diferentemente de ácidos fortes, não estão dissociados por completo. No pH fisiológico estão
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Ânions não mensurados
Gap de íons fortes
Ácidos fracos
DIF efetivo (DIFe)
DIF aparente (DIFa)
Na+ K+ Ca++ Mg++ ClLactato
Obs.: os valores não estão em escala de proporção. Em que: DIFa (DIF aparente) – DIF calculada a partir de íons mensuráveis medidos no plasma. {[Na+] + [K+] + [Mg++] + [Ca++]} – {[Cl–] + [Lactato]} DIFe – DIF efetivo (pode ser considerado como buffer base ou base tampão). DIF calculado a partir de CO2 e ácidos fracos (albumina e fosfato). Se não houvesse ânions não mensuráveis: DIFe = DIFa = SID (como essa situação nunca ocorre, temos DIFa – DIFe = GIF). GIF – gap de íons fortes. DIFa – DIFe, ou seja, a medida de ânions não mensuráveis (fortes ou fracos) expressa em mEq/L da diferença de duas estimativas independentes de DIF. O valor considerado normal de GIF é zero, o que significa que existem muito poucos íons fortes além dos considerados para cálculo de DIFa. GIF positivo indica a presença de ânions não identificados como sulfato, piruvato, citrato, cetoácidos, acetato, etc. São os mesmos que também elevam o ânion gap. GIF negativo indica a presença de cátions não identificados.
Figura 10 Representação esquemática da diferença de íons fortes.
dissociados (A-) ou associados com um próton (HA). O par químico constituído pelo ácido fraco e o sal conjugado (como o ácido carbônico e o bicarbonato) são considerados como tampões. Atot inclui além do bicarbonato, proteínas e o fosfato plasmático. Dessas três variáveis, duas são controladas na homeostasia acidobásica: a DIF pelos rins e a PCO2 pelos pulmões. Atot, por sua vez, é controlada por outros fatores não relacionados à ho‑ meostasia acidobásica. Alterações na DIF e Atot respondem pelos distúrbios não respiratórios. A abordagem de Stewart explica a acidose metabólica de‑ corrente de grandes infusões de soro fisiológico (também co‑ nhecida como acidose dilucional), na qual a redução de bicar‑ bonato não ocorre por diluição ou perda. A reposição fluídica com solução contendo iguais concentrações de Na+ e Cl- leva a um aumento desproporcional de cloreto. Assim, a diferença de íons fortes se reduz e existe a tendência de aumento de H+. Por outro lado, existe a dificuldade de interpretar a hipo ou hiper‑ proteinemia como responsável por um distúrbio acidobásico. Um problema real para utilizar o modelo de Stewart é a pouca praticidade das complexas equações matemáticas. Além disso, sempre existe a possibilidade de imprecisão no cálculo, pois deve-se considerar que cada variável incluída no cálculo tem uma margem de erro esperada e, por menor que seja, o resultado da soma ou mesmo da multiplicação desses erros pode ser considerável. Estudos posteriores elaboraram modelos para aplicação clí‑ nica mais prática. Figge et al. demonstraram que, entre as pro‑
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Distúrbios do Metabolismo do Sódio e Potássio e do equilíbrio acidobásico •
teínas séricas, a albumina respondia completamente pelo efei‑ to de ácido fraco no pH fisiológico. Isto permite o uso apenas da albumina no cálculo. Alguns anos depois, Watson também demonstrou uma estreita correlação entre o pH calculado e o pH medido utilizando algoritmos mais simples através de um modelo derivado das propriedades conhecidas da albumina. Apesar de haver estudos comprovando a validade da abor‑ dagem baseada nessas variáveis descritas por Stewart, ela ain‑ da encontra resistência e críticas de autores renomados. Siggaard-Anderson considera essa abordagem absurda e ana‑ crônica e que a DIF nada mais é do que a base tampão (bufferbase) do plasma definido por Singer e Hastings como a soma de bicarbonato mais os ânions tampões não voláteis (A-) e ex‑ presso em mEq/L, pode ser utilizado para medir a capacidade tamponante do sangue através de um complexo nomograma. Enquanto esses conceitos não forem mais difundidos e aceitos, a abordagem tradicional deve continuar a ser aplicada, relevando a abordagem de Stewart no nível do interesse aca‑ dêmico. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer o metabolismo da água e sua fisiologia. • Conhecer fisiopatologia, causas, alterações clínicas e manuseio com complicações do metabolismo do sódio. • Conhecer fisiopatologia, causas, alterações clínicas e manuseio com complicações do metabolismo do potássio. • Entender todo o metabolismo acidobásico, diferenciar os seus distúrbios, saber quando e como manuseá-los.
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CAPÍTULO 12
CHOQUE EM PEDIATRIA Rodrigo de Freitas Nóbrega
Introdução O choque é uma condição clínica grave, que pode atingir pa‑ cientes de diversas faixas etárias. Pode ser definido como um desequilíbrio, de origem car‑ diocirculatória, entre a oferta e a necessidade de oxigênio para os tecidos. É dividido em diversos tipos, conforme sua fisiopatologia. Os tipos de choque atualmente descritos são: • hipovolêmico; • distributivo; • cardiogênico; • obstrutivo. Fisiopatologia Sabendo-se que o choque é um desequilíbrio entre transporte e necessidades de oxigênio tecidual, originado por disfunções cardiocirculatórias, é importante entender a fisiopatologia do transporte, consumo e extração tecidual de oxigênio para compreender a fisiopatologia do choque. Transporte de oxigênio A oferta de oxigênio aos tecidos (transporte de oxigênio) de‑ pende da concentração arterial de oxigênio e do desempenho cardiocirculatório (débito cardíaco/índice cardíaco) do pa‑ ciente, conforme a seguinte equação: DO2 = CAO2 × IC em que DO2 = transporte de oxigênio; CAO2 = concentração ar‑ terial de oxigênio e IC = índice cardíaco. A concentração arterial de oxigênio depende da quantidade de hemoglobina, da saturação arterial de oxigênio dessa he‑ moglobina e da pressão de oxigênio no sangue arterial, confor‑ me a seguinte equação: CAO2 = (1,34 × Hb × SatAO2) + (PAO2 × 0,031)
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em que CAO2 = concentração arterial de oxigênio; Hb = hemo‑ globina; SatAO2 = saturação arterial de oxigênio e PAO2 = pres‑ são arterial de oxigênio. O índice cardíaco representa o débito cardíaco dividido pela superfície corpórea do paciente. DC IC =SC em que IC = índice cardíaco; DC = débito cardíaco e SC = su‑ perfície corpórea. O débito cardíaco, por sua vez, é determinado pela frequên‑ cia cardíaca e pelo volume sistólico (volume ejetado pelo cora‑ ção a cada sístole), segundo a seguinte equação: DC = FC × VS em que DC = débito cardíaco; FC = frequência cardíaca e VS = volume sistólico. O volume sistólico depende de três fatores: pré-carga, con‑ tratilidade cardíaca e pós-carga. A pré-carga é a quantidade de sangue que chega ao cora‑ ção (em especial, ao ventrículo esquerdo), para ser por ele ejetada. A contratilidade é a força que o músculo cardíaco exerce para desempenhar essa função. A pós-carga é a resistência que o coração precisa enfrentar para bombear o sangue e depende do tônus vascular e da pres‑ são intratorácica. Consumo de oxigênio (necessidade de oxigênio) A necessidade de oxigênio do organismo pode aumentar em situações como febre, agitação, hipermetabolismo e taqui‑ dispneia. Ressalta-se que, em situações de taquidispneia importante, os músculos respiratórios, que frequentemente consomem
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em torno de 3% do oxigênio do paciente, chegam a consumir até 50%. Extração de oxigênio Quando, por qualquer motivo, há queda no transporte de oxi‑ gênio, as células dos diversos órgãos procuram manter suas necessidades atendidas por meio de um aumento na extração do oxigênio que circula de forma livre ou ligado à hemoglobina. Dessa forma, apesar de haver queda no transporte de oxigê‑ nio por certo período, o consumo se mantém, graças à eleva‑ ção da extração. No entanto, quando o transporte cai abaixo de um ponto crítico no qual a extração já não mais consegue compensar, di‑ minui também o consumo de oxigênio celular, que não mais atende às necessidades, gerando, assim, sofrimentos teci‑ duais, que podem resultar em falência de órgãos. A Figura 1 ilustra a queda no transporte de oxigênio, com manutenção do consumo (graças ao aumento da extração), até um ponto crítico, no qual o consumo também começa a di‑ minuir. Como dito, o choque é um desequilíbrio entre a oferta e o consumo de oxigênio, de origem cardiocirculatória. A causa desse desequilíbrio pode ser hipovolemia (com consequente queda na pré-carga); alteração na contratilidade miocárdica; vasodilatação levando à hipovolemia relativa (e queda na pré-carga); ou aumento da pós-carga (decorrente de pneumotórax hipertensivo ou tamponamento cardíaco). Diagnóstico O diagnóstico precoce é de fundamental importância para se reduzir a morbimortalidade do paciente em choque, pois per‑ mite a pronta instituição do tratamento adequado (que é o principal pilar de melhora do prognóstico). O diagnóstico pre‑ coce do choque baseia-se na atenção a potenciais pacientes de risco e no conhecimento de suas manifestações clínicas. As principais causas de choque em crianças são: • choque hipovolêmico por vômitos/diarreia ou por perdas sanguíneas em pacientes politraumatizados; • choque séptico em crianças com infecção grave e sepse; • choque cardiogênico em cardiopatias congênitas ou adquiridas. Dessa forma, deve-se estar atento a lactentes com vômitos e/ou diarreia com perdas importantes, pacientes politrau‑
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matizados, crianças desnutridas ou com imunodeficiências (congênitas ou adquiridas), pacientes oncológicos em uso de quimioterapia, crianças com doenças crônicas hospitaliza‑ das, crianças com infecções graves (como meningite) e car‑ diopatas. As principais manifestações clínicas do choque são: taqui‑ cardia, alteração dos pulsos, alteração da perfusão periférica, alteração de cor e temperatura das extremidades, alterações no nível de consciência, queda da pressão arterial e oligúria. A seguir, descreve-se em detalhes cada um desses sinais: 1. Taquicardia: uma das manifestações mais precoces do cho‑ que, pois, perante a queda do volume sistólico por qualquer motivo (p.ex., hipovolemia), a frequência cardíaca sobe, como forma de compensação para evitar queda no débito car‑ díaco (conforme demonstrado na fórmula a seguir). DC = FC↑× VS↓ em que DC = débito cardíaco; FC = frequência cardíaca e VS = volume sistólico. 2. Alteração dos pulsos: no choque, os pulsos encontram-se fi‑ nos, com os pulsos periféricos (radial, pedioso, tibial poste‑ rior) mais finos que os centrais (carotídeo, braquial, femoral). 3. Alteração da perfusão periférica: na grande maioria dos qua‑ dros de choque em crianças, a perfusão periférica encontra-se lentificada por mais de 3 segundos. Quando o choque séptico se apresenta em sua fase quente, a perfusão pode estar muito rápida, menos de 1 segundo. A perfusão periférica deve ser avaliada na palma da mão ou na planta do pé, com o membro elevado acima do nível do coração. 4. Cor e temperatura das extremidades: as extremidades encon‑ tram-se frias e pálidas na grande maioria dos quadros de cho‑ que, exceto no choque séptico com fase quente, em que há ca‑ lor e rubor das extremidades. A palidez e a frialdade das extremidades no choque indica vasoconstrição, que surge como forma de compensar a queda do débito cardíaco, para tentar manter a pressão arterial. 5. Pressão arterial: queda da pressão arterial pode ser uma ma‑ nifestação tardia do choque, pois, como visto, o organismo lança mão de mecanismos compensatórios (como aumento da frequência cardíaca e vasoconstrição) para tentar manter a pressão arterial. A queda da pressão arterial indica que esses mecanismos compensatórios não foram suficientes para mantê-la, caracterizando o choque descompensado e indi‑ cando maior gravidade do quadro.
Ponto crítico
PA = RVS↑ × DC↓ DC = FC↑ × VS↓ DO2
Figura 1 Extração de oxigênio.
VO2: consumo de oxigênio; DO2: transporte de oxigênio.
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em que PA = pressão arterial; RVS = resistência vascular sistê‑ mica; DC = débito cardíaco; FC = frequência cardíaca e VS = volume sistólico. Os seguintes parâmetros de pressão arterial sistólica repre‑ sentam o percentil 5 para a idade e servem como referência para definir hipotensão em crianças:
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Choque em Pediatria •
• RN: < 60 mmHg; • lactentes: < 70 mmHg; • > 2 anos: < 70 + (2 × idade). 6. Alterações no nível de consciência: a criança chocada pode se apresentar agitada ou torporosa. Por vezes, agitação e torpor se alternam. Essas manifestações são secundárias à deficiên‑ cia na oferta de oxigênio em nível cerebral. 7. Oligúria: considera-se oligúria quando a diurese é menor que 1 mL/kg/h em crianças pequenas ou menor que 15 mL por m2 de superfície corporal em crianças maiores. A queda da diure‑ se ocorre decorrente de má perfusão renal do paciente em choque, sendo, portanto, de origem pré-renal. Pela baixa per‑ fusão mantida, pode ocorrer lesão renal (necrose tubular agu‑ da), com a oligúria se mantendo mesmo após a reversão do choque. As manifestações laboratoriais do choque são: • acidose metabólica (na gasometria); • aumento dos níveis de lactato. Devem-se também monitorar glicemia, eletrólitos, hemogra‑ ma, proteína C reativa (PCR) e culturas, pois pode haver alte‑ rações, dependendo da causa do choque. Diagnóstico diferencial Os principais tipos de choque na criança são: hipovolêmico, distributivo, cardiogênico e obstrutivo. O diagnóstico diferencial da causa do choque é determina‑ do principalmente por meio de dados da história clínica. Dados de exame físico, laboratorial e exames de imagem podem auxiliar no diagnóstico. Por vezes, o diagnóstico causal não é evidente, devendo-se iniciar o tratamento mesmo assim, pois na maioria dos casos de choque, o paciente se beneficia com medidas como oferta de oxigênio e adequação da volemia. Entretanto, outras medi‑ das são específicas para cada tipo de choque. A seguir, são descritas as características dos diversos tipos de choque, visando à sua diferenciação. Choque hipovolêmico O choque hipovolêmico decorre de perdas líquidas do organis‑ mo por causa de vômitos e/ou diarreia, ou de sangramento em crianças politraumatizadas. O choque hipovolêmico por vômitos e/ou diarreia ocorre quando as perdas são abundantes e não conseguem ser repos‑ tas. Frequentemente, na história clínica, encontram-se vários episódios de diarreia, com fezes líquidas e em grande quanti‑ dade, e vômitos associados, que dificultam a hidratação da criança. Ocorre predominantemente em lactentes, principalmente os não amamentados ao seio materno e desnutridos. O cho‑ que é sempre frio, com extremidades frias e pálidas, e perfu‑ são periférica lentificada. Os sinais clássicos de choque, como taquicardia, pulsos finos, queda da diurese e alteração no nível de consciência, estão presentes. A pressão arterial pode estar baixa, indicando maior gravidade do quadro, mas, na maioria
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das vezes, ainda encontra-se normal graças aos mecanismos de compensação. O paciente apresenta também sinais de desidratação, como turgor pastoso, olhos encovados, saliva escassa e fontanela deprimida. A causa mais frequente de choque hipovolêmico por perda sanguínea é o trauma. Geralmente tem-se a história de um trauma grave, como acidente automobilístico, queda de bicicleta ou atropelamen‑ to. Entretanto, deve-se estar atento a casos de maus-tratos, que são cada vez mais frequentes em nosso meio. Taquicardia, pulsos finos e alteração de nível de consciên‑ cia estão presentes. Frequentemente, a pressão arterial está baixa, indicando choque descompensado. Problemas respiratórios concomitantes podem estar pre‑ sentes. Hematomas, fraturas e outras lesões são frequentes. Deve-se atentar a lesões de tórax, abdome, pelve/ossos longos e couro cabeludo, pois são estas as lesões que podem provocar sangramento importante, levando a criança politrau‑ matizada ao choque. Choque distributivo É o choque no qual, por vasodilatação, aumento da permeabi‑ lidade capilar e/ou redistribuição do fluxo sanguíneo, ocorre uma hipovolemia relativa, com choque. A principal causa de choque distributivo em pediatria é o choque séptico. O choque neurogênico e o anafilático são cau‑ sas raras de choque distributivo em crianças. O choque séptico é causa frequente de choque em crianças, e a morbimortalidade dessa grave situação pode ser reduzida significativamente com diagnóstico precoce e tratamento adequado. São pacientes de risco para sepse: lactentes jovens não amamentados, desnutridos, portadores de imunodeficiência, crianças em uso de quimioterapia, portadores de doenças crô‑ nicas ou pacientes hospitalizados. Algumas crianças em choque séptico (principalmente as maiores) podem se apresentar clinicamente em choque quen‑ te, com perfusão periférica muito rápida (menos que 1 segun‑ do), extremidades e face ruborizadas e aquecidas, junto com os outros sinais de choque como taquicardia, oligúria, altera‑ ção do nível de consciência, etc. Esse choque quente ocorre quando o organismo tenta compensar a vasodilatação (do choque distributivo) com aumento do débito cardíaco. Choque cardiogênico Tem como causa a falência da bomba cardíaca. A baixa con‑ tratilidade miocárdica leva à queda do volume sistólico e do débito cardíaco, sendo compensado com vasoconstrição e ta‑ quicardia. Ocorre em crianças portadoras de cardiopatia con‑ gênita ou adquirida. Frequentemente, pacientes com cardiopatia congênita já possuem o diagnóstico, que pode ser relatado na história clínica. Deve-se dar especial atenção a cardiopatias adquiridas, pois essas crianças (p.ex., com miocardite viral) podem se
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apresentar em choque, sem o prévio conhecimento da cardio‑ patia. Características peculiares do choque cardiogênico incluem estertores pulmonares e hepatomegalia. Diferentemente dos outros tipos de choque, ocorre piora clínica quando se passa volume rápido ao paciente. A radiografia simples de tórax com área cardíaca aumentada pode auxiliar no diagnóstico, que deve ser confirmado com ecocardiograma. Choque obstrutivo Ocorre quando existe aumento da resistência contra a qual o coração trabalha. A condição mais frequente em que pode ocorrer o choque obstrutivo é no pneumotórax hipertensivo. Deve-se suspeitar dessa condição em pacientes politrau‑ matizados ou em ventilação mecânica. Além dos sinais de choque, estão presentes diminuição dos murmúrios à auscul‑ ta pulmonar e timpanismo à percussão, geralmente no lado di‑ reito. Sinais de piora da função respiratória podem estar pre‑ sentes. O tamponamento cardíaco é uma causa pouco usual de cho‑ que obstrutivo, mas deve-se estar atento a ele quando o pacien‑ te não responde ao tratamento da maneira esperada. O abafa‑ mento das bulhas cardíacas e o achatamento do complexo QRS (no eletrocardiograma – ECG) podem fazer suspeitar desse diagnóstico, que pode ser confirmado pelo ecocardiograma. Tratamento O tratamento do choque consiste em restabelecer o balanço entre oferta e consumo de oxigênio. Dentro desse princípio, deve-se, então, inicialmente, para qualquer tipo de choque, garantir uma adequada oxigenação, por meio do posicionamento adequado do paciente, para manter as vias aéreas pérvias e da suplementação de oxigênio, com a máxima concentração possível. Se a respiração não é ruidosa e o ritmo é regular, pode-se iniciar a abordagem do sistema cardiocirculatório. No entanto, se apesar do posicionamento adequado e da oferta de oxigê‑ nio, persistirem sinais de falência respiratória, o paciente deve ser ventilado com bolsa-valva-máscara e entubado. Uma vez garantida oxigenação e ventilação adequadas, o acesso vascular deve ser imediatamente providenciado. A via periférica é a mais indicada, devendo-se utilizar dis‑ positivo curto e calibroso para se permitir um fluxo de líquidos adequado. Se não for possível assegurar um acesso periférico após algumas tentativas, deve-se realizar a punção intraóssea, cujo local preferencial é a extremidade proximal da tíbia (1 a 2 cm abaixo da tuberosidade) no seu platô medial. Alternativamente, pode-se optar por um acesso central: fe‑ moral, jugular interna ou subclávia, dependendo da experiên‑ cia pessoal de quem realiza o procedimento. Sendo as principais causas de choque em pediatria o cho‑ que hipovolêmico (por diarreia/vômitos e por sangramento no trauma) e o choque séptico (distributivo), e considerando‑ -se que em ambos existe diminuição da pré-carga (no primeiro, por causa de perda de líquido e, no segundo, pela vasodilata‑
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ção que leva à hipovolemia relativa), conclui-se que a maioria dos choques, nessa faixa etária, responde a volume. Assim, uma vez assegurada a ventilação e o acesso venoso, deve-se infundir volume de forma agressiva. A solução a ser utilizada inicialmente deve ser cristaloide (soro fisiológico – SF – 0,9% ou Ringer lactato). Devem-se infundir 20 mL/kg em 5 a 10 minutos. Esse procedimento poderá ser repetido, caso necessário, após reavaliação das variáveis respiratórias e cardiocirculatórias do paciente. A partir desse ponto, indivi‑ dualiza-se o tratamento para cada um dos diversos tipos de choque descritos anteriormente. Para que se possam infundir 20 mL/kg em 5 a 10 minutos, sugere-se a utilização de seringa, pois via de regra equipos de soro ou bombas de infusão não são capazes de infundir líqui‑ dos nessa velocidade. Choque hipovolêmico Choque hipovolêmico por vômitos/diarreia Nesta situação, após oferta de oxigênio e expansão com 20 mL/kg de SF 0,9%, o paciente costuma ter ao menos melhora parcial dos sinais de choque. Após a reavaliação, se ainda há manifestações clínicas de choque, nova expansão deverá ser feita, com 20 mL/kg de SF 0,9% em 5 a 10 minutos. Após a segunda expansão, a maioria desses pacientes não mais apresenta sinais de choque, po‑ rém, se eles persistirem, uma terceira expansão deverá ser feita, da mesma maneira. Após resolução do choque, parte-se para a correção da desidratação, que provavelmente ainda es‑ tará presente. Fundamental obter acessos venosos calibrosos e, quando não for possível, fazer infusão intraóssea. Choque hipovolêmico por perdas sanguíneas (trauma) No paciente politraumatizado, após permeabilizar a via aérea (com proteção da coluna cervical) e garantir uma adequada oxigenação/ventilação, é estabelecido acesso vascular. O tra‑ tamento do choque é iniciado com infusão rápida (5 a 10 mi‑ nutos) de 20 mL/kg de SF 0,9%. Após a primeira expansão, se na reavaliação persistem sinais de choque, nova expansão deve ser realizada. Deve-se também providenciar concentrado de hemácias, pois se não houver resolução do choque com a segunda expansão, esta será necessária (20 mL/ kg, em infu‑ são rápida). Enquanto isso, a causa do sangramento deve ser investigada e corrigida, para resolver o choque. Os possíveis lo‑ cais de sangramento responsáveis pelo choque hipovolêmico no trauma são: tórax, abdome, bacia/fêmur e couro cabeludo. Nesse momento, a presença do cirurgião é de suma impor‑ tância. Outros tipos de choque distributivo que não séptico Choque cardiogênico
Após garantir oxigenação e ventilação adequada, sem que se tenha o diagnóstico de que o choque é cardiogênico, caso se proceda a uma expansão, o paciente pode evoluir com esterto‑ ração pulmonar, hepatomegalia e piora da taquicardia.
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Deve-se então, a partir daí, restringir o volume ofertado, utilizar diuréticos e iniciar dobutamina (que tem efeito inotró‑ pico e vasodilatador leve), ajustando sua dose entre 5 e 20 mcg/kg/min, em infusão contínua. Caso o choque persista, pode-se utilizar inibidor de fosfo‑ diesterase (milrinona), que tem efeito inotrópico e vasodilata‑ dor potente, na dose de 0,375 a 0,75 mcg/kg/min. Em casos de choque cardiogênico refratário a inibidores de fosfodiesterase, pode-se utilizar o levosimendan, uma potente droga inotrópica e vasodilatadora, que age por meio da sensi‑ bilização dos canais de cálcio das miofibrilas, aumentando a contratilidade miocárdica e reduzindo a resistência vascular sistêmica. Essa droga melhora o índice cardíaco e promove queda da pressão capilar pulmonar, e a dose preconizada é de 0,1 a 0,4 mg/kg/min. Choque obstrutivo
Como em todos os outros tipos de choque, deve-se iniciar com permeabilização da via aérea e oferta de oxigênio. A expansão com SF 0,9% produz melhora fugaz. Ao suspei‑ tar de pneumotórax hipertensivo, a punção de alívio deve ser realizada imediatamente. A seguir, procede-se à drenagem do tórax (geralmente realizada por cirurgião). No tamponamento cardíaco, após as medidas iniciais, de‑ vem-se fazer punção de alívio e drenagem (feitas por cirur‑ gião). Em todos os tipos de choque, a correção de distúrbios me‑ tabólicos presentes é de fundamental importância, e os níveis de hemoglobina devem ser adequados. Após as medidas iniciais, a criança deve ser encaminhada à unidade de terapia intensiva. Se o transporte for necessário, ele deve ser feito por equipe habilitada e com o paciente pre‑ viamente estabilizado. Drogas vasoativas e inotrópicas Catecolaminas atuam em receptores adrenérgicos. A seguir, será descrita a ação da estimulação de cada receptor sobre o sistema cardiocirculatório: • receptor alfa: vasoconstrição; • receptor beta-1: inotropismo; • receptor beta-2: vasodilatação; • receptor dopaminérgico: vasodilatação esplâncnica e renal.
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A Tabela 1 mostra em que receptor cada catecolamina atua. Os inibidores de fosfodiesterase milrinona e anrinona não atuam em receptores adrenérgicos, mas por meio de aumento do AMP-cíclico intracelular (por inibição das fosfodiesterases), produzindo inotropismo e vasodilatação. O efeito inotrópico parece também estar associado ao prolongamento da libera‑ ção ou retardo na captação de cálcio pelo retículo sarcoplas‑ mático, com consequente aumento do cálcio intracelular. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Entender que o choque pode ser definido como um desequilíbrio, de origem cardiocirculatória, entre a oferta e a necessidade de oxigênio para os tecidos, que se apresenta em três tipos, conforme sua fisiopatologia: hipovolêmico, distributivo e cardiogênico. • Conhecer as bases fisiopatológicas do choque, que envolvem transporte de oxigênio aos tecidos, consumo de oxigênio e extração do oxigênio por células de tecidos e órgãos. • Saber que as três variedades de choque na criança são o hipovolêmico, o séptico e o cardiogênico, sendo as principais manifestações clínicas: taquicardia, alteração dos pulsos, alteração da perfusão periférica, alteração de cor e temperatura das extremidades, alterações no nível de consciência, queda da pressão arterial e oligúria. • Formular o diagnóstico diferencial entre os tipos diferentes de choque por meio de dados da história clínica, do exame físico, de exames sanguíneos e de imagens que podem auxiliar o esclarecimento diagnóstico. • Conhecer as bases e mecanismos fisiopatológicos dos diversos tipos de choque: choque hipovolêmico, decorrente de perdas líquidas do organismo decorrentes de vômitos e/ou diarreia, ou de sangramento em crianças politraumatizadas; choque distributivo, no qual, por vasodilatação, aumento da permeabilidade capilar e/ou redistribuição do fluxo sanguíneo, ocorre uma hipovolemia relativa; choque cardiogênico, causado por falência da bomba cardíaca; e choque obstrutivo, causado por aumento da resistência contra a função cardíaca.
Tabela 1 Receptor em que cada catecolamina atua Droga
Dose infundida (mcg/kg/min)
Alfa
Beta-1
Beta-2
Dopa
Dopamina
Até 3
–
+
–
++
5 a 10
+
++
–
++
> 10 Noradrenalina Adrenalina
0,1 a 2 0,1 a 0,3 > 0,3
Dobutamina
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1963
2 a 20
Receptores farmacológicos
++
++
–
++
++++
+
+
–
+
++
++
–
+++
++
++
–
-
++
+
–
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1964 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
• Considerar os recursos de tratamento dos distintos tipos de choque, a manutenção do equilíbrio hidreletrolítico e acidobásico, as diferentes drogas vasoativas e inotrópicas utilizadas, e as medidas procedimentais que devem ser utilizadas, principalmente no caso de choque obstrutivo.
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Tratado de Pediatria 4ed.indb 1964
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CAPÍTULO 13
TRAUMATISMO CRANIOENCEFÁLICO Sérgio Diniz Guerra
Introdução O traumatismo cranioencefálico (TCE) é a principal causa de morte por trauma na população pediátrica, o que é evidencia‑ do pelos dados dos primeiros 40 mil pacientes no National Pediatric Trauma Registry norte-americano. Cerca de 89% das crianças tinham lesão do sistema nervoso central (SNC) como contribuinte primário ou secundário para a morte.1 O TCE, por ano, resulta em mais de 400 mil visitas de crianças aos departamentos de emergência dos Estados Unidos. A incidência do TCE em menores de 5 anos de ida‑ de naquela população é de mais de 1.115/100.000 habitan‑ tes2. A prevalência de pacientes de 0 a 14 anos de idade em unidades de terapia intensiva (UTI) com TCE no Reino Unido é de 5,4/100.000 habitantes por ano. Essas crianças vêm de lares com menores condições econômicas e são, em sua maioria, atropeladas.3 Os mecanismos de TCE mais frequentes na infância são colisões automobilísticas, atropelamentos, acidentes de bi‑ cicleta e quedas de altura. As lesões que envolvem veículos automotores têm mortalidade mais alta que as demais, sendo 23% para ocupantes de veículos, 12% para pedestres, 8% para ciclistas e 3% para as quedas.4 As quedas, no en‑ tanto, são a maior causa de morbidade e de admissões hos‑ pitalares por TCE, a maioria de gravidade leve a moderada. O TCE intencional, por abuso ou maus-tratos, também é muito frequente na infância, podendo ocorrer pela chamada “síndrome do bebê sacudido”, por lesões causadas por impac‑ to direto e compressão ou por lesões penetrantes.5,6 A pri‑ meira é a mais comum das lesões intencionais na cabeça em menores de 1 ano de idade.7 A incidência anual de TCE inten‑ cional na Escócia é de 24,6 para cada 100.000 crianças no primeiro ano de vida.5 Na Carolina do Norte (EUA) é de 17 para cada 100.000 crianças menores de 2 anos de idade.8 No TCE são descritas lesões primária e secundária e dano secundário. As primeiras são decorrentes diretamen‑ te do mecanismo do trauma, podendo ocorrer por contato ou forças inerciais. Vetores lineares de força, que ocorrem
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1965
quando a cabeça é atingida por um objeto em movimento, são responsáveis pela geração de uma força de contato. A aceleração seguida de desaceleração ou de movimentos de rotação angular da cabeça no espaço responde pelas forças inerciais envolvidas no TCE.9 Grande parte dos pacientes pediátricos tem uma combi‑ nação de forças de contato e inerciais, responsáveis pelas complexas alterações anatomopatológicas da lesão encefá‑ lica, principalmente naquelas decorrentes do trânsito. As forças angulares, que causam aceleração e desaceleração, são amplificadas na criança em razão da grande despropor‑ ção entre a cabeça e o tronco, quando comparada ao adulto. Como consequência, as crianças apresentam lesões encefá‑ licas difusas com mais frequência, ao passo que, em adul‑ tos, há predomínio de lesões focais, como contusões intra‑ parenquimatosas e hematomas subdurais. O maior conteúdo de água e a incompleta mielinização do encéfalo imaturo contribuem para essa diferença.10 Acredita-se que o risco aumentado de dano secundário nos lactentes e nas crianças contribua também para a natureza difusa das lesões nessas faixas etárias. Os estudos pediátri‑ cos post-mortem frequentemente mostram congestão ve‑ nosa, edema e lesão axonal difusa.11,12 A lesão secundária é a cascata de reações fisiológicas e bioquímicas que ocorre após o trauma primário, podendo le‑ var à perda da autorregulação encefálica e ao surgimento ou agravamento do inchaço cerebral difuso. Pode ser exacerba‑ da pela liberação de neurotransmissores excitatórios e envol‑ ve a elevação da concentração intracelular de cálcio e potás‑ sio e a formação de radicais livres.13 A abordagem atual do TCE não está voltada diretamente para a redução da lesão se‑ cundária, mas existem estudos de intervenções para contro‑ le de citotoxicidade, inflamação e outros fatores correlatos. O chamado dano secundário é causado por eventos que ocor‑ rem após a lesão primária e podem exacerbar a gravidade da le‑ são secundária, sendo os fatores mais fortemente associados a maus resultados após TCE.14-18 As causas mais frequentes são:
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1966 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
• • • • • • •
hipoxemia; hipercapnia ou hipocapnia; hipotensão arterial; hipertensão intracraniana (HIC); crises convulsivas; hipertermia; distúrbios hidroeletrolíticos e metabólicos (principalmente de sódio e glicose).
Atendimento inicial O atendimento inicial independe do diagnóstico específico da lesão intracraniana e baseia-se em uma abordagem sistemati‑ zada com princípios aceitos internacionalmente.19 A aborda‑ gem está voltada para evitar e corrigir causas de dano secundá‑ rio, tendo como objetivo garantir adequada oferta de oxigênio e glicose ao encéfalo. A literatura recomenda que pacientes pediátricos em áreas metropolitanas sejam transferidos assim que possível para centro de trauma pediátrico ou centro de adultos com qualificação pediátrica, o que aumenta as chances de so‑ brevivência ao trauma.20 Avaliação e abordagem primárias Vias aéreas com controle da coluna cervical A hipoxemia (apneia, cianose ou oximetria abaixo de 90%) deve ser evitada e prontamente corrigida, visto que causa dano neuro‑ nal, agrava o edema e a HIC por vasodilatação e aumenta a morta‑ lidade de vítimas de TCE. O médico deve manter as vias aéreas pérvias, inicialmente com técnicas manuais e, em seguida, com entubação traqueal. Pacientes em coma perdem o tônus da mus‑ culatura faríngea e os reflexos de proteção das vias aéreas, au‑ mentando o risco de obstrução e asfixia por queda da língua e as‑ piração de sangue, secreções e conteúdo gástrico. Após a abertura das vias aéreas, deve-se oferecer oxigênio suplementar para ma‑ nutenção de oximetria de pelo menos 95%. A entubação traqueal está indicada para crianças em coma, mas não há evidência de sua superioridade no pré-hospitalar sobre a ventilação bolsa-máscara quando o tempo previsto para o transporte é curto.21 Pacientes em coma mantidos com ventilação bolsa-máscara devem receber compressão da car‑ tilagem cricoide para minimizar a distensão gástrica e a regur‑ gitação até serem entubados. Caso ocorram vômitos mesmo com essa medida, a ventilação deve ser interrompida, o pa‑ ciente lateralizado em bloco e os restos alimentares imediata‑ mente removidos. Em seguida, reinicia-se a ventilação. Recomenda-se que médicos que atendam crianças te‑ nham treinamento específico no manejo de vias aéreas pe‑ diátricas e que utilizem detector de CO2 exalado para con‑ firmação da entubação sempre que disponível.21 Ventilação A hipoventilação secundária à depressão do SNC causa hi‑ percapnia e vasodilatação cerebral. Isso pode gerar ou agra‑ var a HIC, o que compromete o fluxo sanguíneo encefálico, podendo causar dano neuronal permanente, herniações e morte. Em contrapartida, a hiperventilação inadvertida cau‑
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1966
sa hipocapnia e vasoconstrição cerebral. Pacientes submeti‑ dos à hiperventilação profilática e indiscriminada têm pior resultado neurológico final atribuído a isquemia.19 O médico deve manter níveis de pressão arterial de CO2 nos limites in‑ feriores da normalidade, em torno de 35 mmHg. Quando não há capnografia disponível, isso pode ser atingido com fre‑ quência respiratória de 10 para adultos, 20 para adolescentes e para crianças, e 25 para lactentes (menores de um ano).22 A hiperventilação só está indicada nos casos de HIC evidente ou sinais de herniação cerebral iminente. Circulação com controle da hemorragia A hipotensão arterial sistêmica é o fator isolado que mais pre‑ judica o resultado final de vítimas de TCE. O encéfalo pode perder sua capacidade de autorregulação e não ser capaz de manter fluxo sanguíneo em episódios mesmo moderados de hipotensão, que deve ser tratada agressivamente buscando valores de pressão sistólica entre os percentis 5 e 50 para a ida‑ de, calculados multiplicando-se a idade do paciente por dois e somando-se 70 para o primeiro e 90 para o último. P5 = (idade × 2) + 70 e P50 = (idade × 2) + 90 A procura de fontes extracranianas de sangramento deve ser imediatamente instituída na vigência de hipotensão.22 Os princípios de hipotensão permissiva descritos no capítulo de trauma não se aplicam a pacientes com TCE grave.23 Déficit neurológico O exame neurológico dessa fase consiste na determinação do estado de consciência, preferencialmente por meio da escala de coma de Glasgow (ECG), da avaliação pupilar e da resposta motora dos quatro membros. O objetivo é detectar sinais de HIC, herniações encefálicas e convulsões. Todos requerem in‑ tervenções terapêuticas imediatas, tomografia e presença de neurocirurgião ou encaminhamento para centro onde os dois últimos estejam disponíveis. A ECG, descrita na década de 1970, é universalmente em‑ pregada para classificação do TCE, servindo, ainda, como índice prognóstico e parâmetro evolutivo (Tabela 1).24,25 Me‑ diante a soma da pontuação de três critérios (abertura ocu‑ lar, resposta verbal e melhor resposta motora), classifica-se o trauma em leve (pontuação entre 13 e 15), moderado (9 a 12) e grave (3 a 8).23 Mais de 85% de 1,5 milhão de traumatis‑ mos cranioencefálicos ocorridos nos Estados Unidos anual‑ mente (de todas as idades) são classificados como leves.2 Pode haver variações na avaliação da ECG feita por pessoas diferentes, mas este ainda é o método mais simples e eficaz de mensuração objetiva do estado de consciência no trauma, ten‑ do valor até para eventos não traumáticos, como afogamento. A definição de coma inclui ausência de abertura ocular, de verbalização e da capacidade de atender a comando verbal simples. Cerca de 98% dos pacientes com escore 8 na ECG preenchem esses critérios e 100% daqueles abaixo desse valor. Determinou-se, então, que todos os pacientes com pontua‑ ção menor ou igual a 8 na ECG são considerados em coma.19
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Traumatismo Cranioencefálico •
Em crianças menores de 4 anos, a ECG não pode ser apli‑ cada com precisão porque não atendem ao comando de for‑ ma confiável e têm resposta verbal variável com seu desen‑ volvimento. Assim, nessa faixa etária, a movimentação espontânea é considerada a melhor resposta motora. Quan‑ to à resposta verbal, a utilizada pelo Colégio Americano de Cirurgiões parece ser a mais simples19 (Tabela 2). Outros fatores são motivo de erro durante a determina‑ ção do escore de Glasgow: hipóxia, hipotensão arterial, se‑ dativos, bloqueadores neuromusculares, uso de álcool e de outras drogas que podem alterar o estado de consciência, levando a conclusões precipitadas em termos de evolução e prognóstico. Nessas situações, a ECG pode ser feita, mas esses dados devem constar no prontuário. Somente a ECG feita após a correção de hipóxia e hipotensão e o término do efeito de drogas deve ser considerada para classificação do trauma. Também são causa de dúvida a entubação tra‑ queal, que impede a emissão de sons, e a presença de ede‑ ma ou hematoma periorbitário que impeça a abertura ocu‑ lar. No atendimento inicial, recomenda-se atribuir um ponto para cada um desses itens e valorizar ainda mais a resposta motora.19 Um paciente que não pode verbalizar ou abrir os olhos por essas condições, mas que atende a um comando verbal simples, certamente não tem lesão encefálica grave. Em contrapartida, um paciente pode ter uma lesão craniana com exposição de massa e risco de sangramento de seios venosos e manter-se com elevada pontuação na ECG. Caso o profissional valorize apenas esse dado para determinar o encaminhamento do pacien‑ te, pode presenciar sangramento fatal em segundos sem que haja recursos para abordá-lo. Tabela 1 Escala de coma e de alterações da consciência de Glasgow Abertura ocular
Pontuação
Espontânea
4
À voz
3
À dor
2
Nenhuma
1
Resposta verbal
Pontuação
Orientada
5
Confusa
4
Palavras inapropriadas
3
Sons incompreensíveis
2
Nenhuma
1
Melhor resposta motora
Pontuação
Obedece ao comando
6
Localiza estímulo doloroso
5
Flexão inespecífica (retirada) Flexão anormal (decorticação)
A maioria das crianças em coma não apresenta sinais evi‑ dentes de HIC, mas esta pode estar presente e se manifestar somente em fases avançadas, após sofrimento encefálico in‑ tenso ou no momento da herniação. Por isso, esses pacientes devem receber reanimação agressiva, incluindo entubação traqueal, sempre com medidas que minimizem o aumento da pressão intracraniana (PIC) causado por procedimentos como analgesia, sedação e bloqueio neuromuscular. Em casos de HIC evidente, no entanto, herniação trans‑ tentorial (Figura 1) ou deterioração neurológica não atribuída a fatores extracranianos, medidas específicas para controle imediato da PIC devem ser instituídas.19 Os sinais característi‑ cos desses eventos são: • tríade de Cushing (hipertensão arterial, bradicardia e altera‑ ções respiratórias); • dilatação pupilar unilateral com plegia ou paresia contralateral; • pupilas ovais ou com reação lenta; • postura de decorticação ou descerebração, principalmente unilaterais; • aprofundamento de três ou mais pontos na ECG, qualquer que seja a pontuação inicial. Nesse momento, deve-se realizar, em sequência:19,22 • infusão venosa de manitol (20%), em bolo: 1 g/kg (exceto se hipotensão arterial); • entubação traqueal, sob proteção farmacológica (caso ainda não tenha sido realizada). A entubação em sequência rápida é recomendada. Sugere-se o uso de fentanil, midazolam (ou etomidato, acima de 10 anos de idade), bloqueador neuro‑ muscular (preferencialmente, rocurônio), com opção da asso‑ ciação da lidocaína imediatamente antes do procedimento; • hiperventilação para PaCO2 ≅ 30 mmHg. Na ausência de cap‑ nografia, a frequência respiratória deve ser mantida em 35 ipm para lactentes, 30 para crianças e 20 para adolescentes e adultos;22 • tomografia computadorizada (TC) da cabeça para que o neu‑ rocirurgião decida sobre conduta operatória ou não. Pacien‑ tes submetidos a intervenção cirúrgica em geral requerem monitoração da PIC no pós-operatório. A exceção são aque‑ les com hematomas extradurais (HED) que recuperam a consciência poucas horas após o procedimento. Exposição com controle da temperatura A retirada das roupas e a procura por lesões que possam agra‑ var o quadro do paciente complementam a avaliação e a abor‑ Tabela 2 Resposta verbal para crianças menores de 4 anos de idade Estímulos
Pontuação
4
Palavras apropriadas ou sorriso social Fixa e segue objetos
5
3
Chora, mas é consolável
4
Extensão anormal (descerebração)
2
Persistentemente irritada
3
Nenhuma
1
Inquieta, agitada
2
TOTAL:
Nenhuma
1
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1968 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 23 TERAPIA INTENSIVA
Hérnia Cérebro Hérnia
Cerebelo
Hérnia Tronco
Figura 1 Hematoma extradural e hérnias encefálicas.
dagem primária. O paciente deve, então, ser coberto para a prevenção de hipotermia descontrolada. Na maioria das vezes, o ABCDE é realizado simultaneamente por membros diferen‑ tes da equipe, mas um líder deve supervisionar as ações para garantir que todas as medidas essenciais sejam tomadas. Avaliação e abordagem secundárias Após a abordagem primária, que tem por objetivo identifi‑ car e tratar situações que ameaçam imediatamente a vida, passa-se à avaliação secundária. Essa fase consiste em exa‑ me físico detalhado, coleta de história objetiva e realização de exames complementares, tendo como objetivo a procu‑ ra de alterações menos graves, mas que possam contribuir para mortalidade ou morbidade dos pacientes vítimas de trauma. É importante ressaltar que ocorre após a estabiliza‑ ção do paciente, o que, muitas vezes, só é possível com in‑ tervenção cirúrgica. Isso vale principalmente para pacien‑ tes admitidos com sangramentos descontrolados ou com sinais de herniação encefálica. A história objetiva deve incluir ambiente e mecanismo do trauma, medicamentos em uso, passado de doenças, lí‑ quidos e alimentos ingeridos recentemente e alergias (a mnemônica Ampla). O exame físico da cabeça aos pés ini‑ cia-se com inspeção e palpação cuidadosa do couro cabelu‑ do, do pescoço e da face. Deve incluir, também, otoscopia, rinoscopia, avaliação dos movimentos e reflexos oculares e do fundo de olho. As respostas pupilares e o reflexo corneano têm boa cor‑ relação com a gravidade do coma. O tamanho das pupilas em repouso e sua reação à luz – direta e consensual – são pesquisados no exame primário, mas devem ser repetidos.
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1968
Alguns achados são característicos, como presença de pupilas médias e fixas com preservação do reflexo cilioespinhal e de acomodação, pois sugerem lesões do teto do mesencéfalo. Pupilas puntiformes estão associadas a lesões de ponte ou a altas doses de opioides.4 As pupilas devem ser avaliadas antes e após o uso dessas medicações, o que precisa estar bem do‑ cumentado. Em seguida, realiza-se o exame de fundo de olho, e o uso de midriáticos de ação rápida deve ser considerado e rigorosamente documentado a fim de não levar a conclusões equivocadas e a condutas desastrosas para os pacientes.4 A constatação de hemorragia de retina leva à suspeição de outras hemorragias intracranianas e de TCE intencional, mas não é patognomônica deste. A presença de pulsação venosa na retina sugere que não há HIC significativa no momento do exame. Papiledema, que é o sinal mais confiá‑ vel da presença de HIC, raramente é visto nas primeiras 24 a 48 horas do trauma. No entanto, seu achado pode ser uma importante pista de maus-tratos se houver discrepân‑ cia com a história do trauma.4 Posturas anormais resultam de lesões estruturais e estão frequentemente associadas à HIC refratária.26 Além disso, a flexão anormal, chamada de decorticação, geralmente está associada à disfunção cortical ou hemisférica, enquanto a extensão anormal, chamada de descerebração, está asso‑ ciada à lesão de tronco. O paciente deve ser observado para detecção e tratamento precoce de convulsões, que, em ge‑ ral, são tônico-clônicas ou mioclônicas e facilmente nota‑ das. Todavia, há fenômenos sutis em lactentes, como cia‑ nose ou movimentos de mastigação, de difícil diagnóstico. Exames complementares TC e radiografias A TC é considerada um dos maiores avanços da Medicina após a década de 1970, sendo o exame de escolha para paciente com suspeita de lesão intracraniana. O diagnóstico específico da lesão permite melhor estimativa de prognóstico e progra‑ mação de intervenções terapêuticas e monitoração. O uso indiscriminado de tomografias com consequentes casos fatais de câncer é preocupação crescente. Infelizmente, altas radiações melhoram a qualidade da imagem e crianças pequenas necessitam de doses proporcionalmente maiores que os demais pacientes. Além disso, o grupo pediátrico tem um período pós-exposição mais longo para desenvolver a doença e sabe-se que o risco de câncer é cumulativo. No en‑ tanto, as tomografias de cabeça são uma exceção. Como o SNC é formado por tecido já muito diferenciado, o risco de câncer aumenta em apenas 0,35% após o exame. Autorida‑ des recomendam que, ao invés de deixar de fazer a tomogra‑ fia, os aparelhos sejam cuidadosamente ajustados para a me‑ nor dose possível, melhorando a relação risco-benefício.2 A radiografia de crânio traz pouco benefício. Se negati‑ va, não exclui lesão intracraniana e, quando detecta fratu‑ ra, leva à realização de TC. Não há indicação clara para sua realização, mas é aceita quando se quer exclusivamente descartar fratura, quando não há TC disponível e nos ca‑ sos de lesões penetrantes de cabeça e pescoço, principal‑
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Traumatismo Cranioencefálico •
mente com objetos encravados. As incidências habituais são anteroposterior (AP), perfil e Towne, e, além da pro‑ fundidade e da inclinação de objetos penetrantes, procu‑ ram-se por fraturas, pneumoencéfalo e desvio da glândula pineal (se calcificada).19 Alguns defendem o uso de radiografia de crânio para crianças menores de 2 anos de idade, argumentando que ela poderia ser utilizada como triagem para a realização de to‑ mografia, considerando que a presença de fratura nessa faixa etária é um dos mais fortes indicativos de lesão intracrania‑ na, além de a radiografia estar mais amplamente disponível e não requerer sedação para realização. No entanto, o valor desse exame depende da qualidade da interpretação. Resul‑ tados falso-positivos podem surgir decorrentes de suturas abertas ou sulcos de vasos que têm aparência similar a fratu‑ ras e vice-versa.27 Já os autores contrários ao uso da radiogra‑ fia argumentam que crianças podem ser erroneamente clas‑ sificadas como de baixo risco para lesão intracraniana em razão da não identificação de fratura e podem ser desneces‑ sariamente submetidas à tomografia nos casos em que as fraturas forem incorretamente identificadas. Muitos concordam que o uso liberal da TC é mais seguro e econômico que internação hospitalar para observação dos casos de trauma leve. A tomografia de cabeça vem sen‑ do tradicionalmente indicada para pacientes com pontua‑ ção abaixo de 15 na ECG, déficit neurológico focal, fratura de crânio ou de face, lesões penetrantes na cabeça, cefaleia ou vômitos persistentes, convulsões, história mal caracte‑ rizada do trauma e suspeita de maus-tratos. Deve ser consi‑ derada, ainda, para toda criança que apresentou mais que uma perda momentânea de consciência, mesmo que cons‑ ciente e orientada no momento do exame. Dunning et al., em metanálise com mais de 22 mil pa‑ cientes publicada em 2004, não encontraram correlação entre a presença de vômitos, cefaleia e convulsões e a exis‑ tência de lesão intracraniana.28 Contudo, no que se refere aos dois primeiros, o resultado pode ser atribuído a uma li‑ mitação metodológica do estudo. Nos casos descritos, es‑ ses critérios foram avaliados apenas como se presentes ou ausentes, sem graduação. Todo TCE, por mais leve que seja, é acompanhado de al‑ guma dor de cabeça, e crianças, em especial as pequenas, vomitam com muita facilidade. Assim, ainda vale a reco‑ mendação de que a tomografia seja considerada em pacien‑ tes com cefaleia que não melhora com analgésicos comuns e em crianças que continuam vomitando após 2 horas do trauma (em geral, mais que três vômitos). Os resultados da metanálise em relação ao valor prediti‑ vo de convulsão para lesão intracraniana foram conflitan‑ tes, mas a maioria dos especialistas recomenda que tomo‑ grafia seja feita nesses pacientes até que outras evidências estejam disponíveis. Crianças menores de 2 anos de idade formam um grupo de particular risco e, considerando-se sua vulnerabilidade e a menor confiabilidade do exame clí‑ nico, especialistas publicaram recomendações especiais para essa faixa etária29 (Tabela 3).
Tratado de Pediatria 4ed.indb 1969
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Tabela 3 Abordagem de crianças menores de 2 anos de idade com TCE leve baseada no risco de lesão intracraniana Alto risco de lesão intracraniana: recomenda-se tomografia Depressão do nível de consciência Sinais neurológicos focais Sinais de fratura de base ou com afundamento Fratura de crânio diagnosticada clinicamente ou por radiografia Irritabilidade (não facilmente consolável) Abaulamento de fontanela Convulsão (consenso de especialistas, mas com baixo nível de evidência) Mais de cinco ou seis vômitos por hora (consenso de especialistas, mas com baixo nível de evidência) Perda de consciência por mais de 1 minuto (consenso de especialistas, mas com baixo nível de evidência) Risco intermediário: recomenda-se tomografia ou observação Três ou quatro episódios de vômitos Perda de consciência transitória (1 minuto ou menos) História de letargia ou irritabilidade, já resolvida Alteração de comportamento relatada pelo cuidador Fratura de crânio com mais de 24 horas de evolução Risco intermediário com mecanismo de trauma preocupante ou desconhecido ou exame clínico que indica fratura de crânio: recomenda-se um exame de imagem (tomografia, radiografia como triagem ou ambos) ou observação Mecanismo de alta energia (colisão automobilística em alta velocidade, ejeção de veículo, queda acima de 1 m) Queda em superfícies rígidas Hematomas de couro cabeludo (especialmente se grande ou localizado em área temporoparietal) Trauma não presenciado História de trauma ausente ou vaga na presença de sinais e sintomas de TCE (deve levantar a suspeita de agressão ou negligência) Baixo risco de lesão intracraniana Mecanismo de baixa energia (queda de menos de 1 m) Ausência de sinais ou sintomas em mais de 2 horas após o trauma Idade de 12 meses ou mais (essas crianças têm o exame clínico mais confiável) Fonte: adaptada de Schutzman et al.29
Quanto mais grave o paciente, mais rapidamente deve-se realizar a TC, de preferência dentro dos primeiros 30 minu‑ tos após o trauma.19 No entanto, a TC nunca deve preceder a reanimação adequada; do contrário, um grande número de pacientes irá, “inexplicavelmente”, morrer no tomógrafo. As lesões percebidas ao exame clínico devem ser procu‑ radas na TC, e seus achados, sempre que possível, devem ser confirmados por novo exame clínico. O exame deve ser solicitado inicialmente sem contraste e, de preferência, com janela para parênquima e ossos. O contraste é rara‑ mente necessário na primeira tomografia, visto que pode atrasar o exame e dificultar o diagnóstico de hematomas agudos, que é um dos maiores objetivos da TC no trauma.
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Biomarcadores O uso de biomarcadores para detecção de lesão intracraniana e estimativa de prognóstico é uma área de crescente interesse. Eles têm sido investigados no sangue, no líquido cefalorraqui‑ diano (LCR) e na urina. A maioria das proteínas estudadas é decorrente da resposta ao trauma ou de dano ou morte celular. Marcadores séricos têm a vantagem de ser mais facilmente co‑ letados que os liquóricos em pacientes com TCE leve e mode‑ rado. A desvantagem é a possibilidade de origem sistêmica das mesmas proteínas, o que reduziria sua especificidade para lesão neuronal.30 Estudos recentes de LCR pós-TCE em crianças demons‑ traram aumento de vários marcadores de apoptose (morte celular programada), como Fas, caspase-1 e interleucina 1-b. Além disso, foi constatada uma elevação mais signifi‑ cativa de citocromo C após o TCE intencional quando com‑ parado ao acidental.30 O rápido clearance dos biomarcadores séricos também tem limitado seu uso no trauma, mas estudos recentes de‑ monstraram a presença de s100B na urina por longo tempo após lesão cerebral traumática ou hipóxica em crianças. Os níveis elevados eram prontamente distinguíveis dos contro‑ les não traumatizados. Além disso, níveis não detectáveis na urina e valores séricos normais dessa proteína foram associa‑ dos invariavelmente a bom resultado final pós-TCE.30 Lesões traumáticas da cabeça Lesões extracranianas Partes moles Lacerações de couro cabeludo podem ser fonte de sangra‑ mento principalmente em vítimas que permaneceram mui‑ to tempo no local do acidente. Em crianças, deve-se estar atento, visto que o couro cabeludo é mais espesso e rica‑ mente vascularizado. As lesões podem, ainda, desenvolver infecções e ser porta de entrada para tétano. Hematomas subgaleais são muito comuns, indicando, em geral, o local do impacto, e, apesar de não trazerem maiores complica‑ ções, são indicativos da magnitude do trauma em lactentes. Fraturas de crânio Estão presentes em um grande número de pacientes com TCE, podendo ser lineares, cominutivas, com afundamento, diastá‑ ticas, compostas ou basais.2 A maioria absoluta é de fraturas lineares, que indicam qual força significativa esteve envolvida no trauma. Quando localizadas no trajeto de estruturas vascu‑ lares importantes, como a artéria meníngea média ou os seios durais, aumentam muito o risco de sangramentos intracrania‑ nos. O osso parietal é o mais frequentemente fraturado; entre 60 e 70% dos casos, seguem-se, em ordem decrescente, o occipital, o frontal e o temporal.31 Fraturas lineares em lactentes requerem mais cautela em razão da maior fragilidade da tábua óssea, o que torna o encéfalo mais vulnerável ao impacto. Além disso, podem desenvolver as chamadas fraturas de crescimento. Após al‑ gumas semanas da lesão, pode surgir uma diástase no local com intrusão da dura-máter e formação de cisto leptome‑
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níngeo. Por esse motivo, além da avaliação radiológica ini‑ cial, crianças nessa faixa etária devem ser reexaminadas periodicamente a partir de 2 semanas do trauma com pal‑ pação cuidadosa do crânio. Fraturas de crescimento são de tratamento cirúrgico.32 As fraturas com afundamento estão frequentemente asso‑ ciadas à lesão de dura-máter, parênquima cerebral e convul‑ sões. Em geral, sua correção cirúrgica está indicada se houver escape de LCR, possibilidade de lesão dural, déficits focais, comprometimento estético importante ou depressão maior ou igual à espessura da tábua óssea local.32 Fraturas em “pin‑ gue-pongue” são uma variante das fraturas com afundamento, nas quais as camadas externas e internas do crânio podem ser comprimidas como uma bola de pingue-pongue. São vistas mais comumente em recém-nascidos, nos quais o crânio é menos mineralizado e mais propenso a deformações.2,32 Fraturas complexas são fraturas expostas por laceração com‑ pleta do couro cabeludo. As fraturas mais comumente associa‑ das a TCE intencional são as múltiplas, as lineares e as comple‑ xas, que também podem ser cominutivas ou estreladas.2 Fraturas na base do crânio envolvem o osso temporal ou parie‑ tal. Os sinais clínicos são a chave para o diagnóstico e incluem equimose periorbitária (“olhos de guaxinim” ou de “urso pan‑ da”) e retroauricular (“sinal da batalha”), escape de LCR pelo na‑ riz, sangramento pelo ouvido ou pelo nariz, coleção de sangue retrotimpânica, paralisia facial e perda auditiva. A avaliação ra‑ diológica complementa a pesquisa. Deve-se procurar por linhas de fratura e pneumoencéfalo. Fraturas de face e níveis hidroaé‑ reos nos seios paranasais também levam à suspeição.2,19,32 As complicações mais frequentes das fraturas basais são fístula liquórica, meningite e alterações de pares cranianos (anosmia e surdez, principalmente). As fístulas liquóricas, em geral, resolvem-se espontaneamente em torno de 7 dias. Algumas precisam de correção cirúrgica.2,19,32 Apesar do risco de meningite, antibióticos profiláticos não estão indicados. Seu uso rotineiro não reduz a ocorrên‑ cia de infecções e favorece o surgimento de germes multir‑ resistentes. A incidência de meningite em fraturas de base varia de 0,7 a 5% e é de 1% em pacientes com pontuação entre 13 e 15 na ECG e que não tenham hemorragia intracra‑ niana associada.2,19,32 Apesar de o pneumococo ser o germe mais frequente na meningite pós-trauma, os quadros são, em geral, menos graves que os de meningites comunitárias por ele causadas. O antibiótico de primeira escolha depende do grau de resis‑ tência desse germe na comunidade, mas penicilina ainda pode ser a melhor opção em vários centros brasileiros. Caso a infecção ocorra após 48 a 72 horas do trauma, principal‑ mente na presença de monitoração da PIC ou de outro pro‑ cedimento neurocirúrgico, a cobertura antimicrobiana deve incluir estafilococos e pseudomonas. O esquema su‑ gerido é vancomicina associada a ceftazidima ou cefepima. A suspeita de fratura de base é contraindicação à passa‑ gem de sonda traqueal ou gástrica pelo nariz. Há risco de perfuração da placa cribriforme com alojamento intracra‑ niano da sonda. Mesmo que ela tenha sido passada inadver‑
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tidamente, mas com sucesso, não deve ser mantida, pois sua permanência pode contribuir para infecções.19 Lesões intracranianas As lesões intracranianas podem ser divididas em focais e difu‑ sas, mas, frequentemente, mais de um tipo está presente em traumas graves. As lesões focais incluem as contusões corti‑ cais e os hematomas extradural, subdural e intraparenquima‑ toso. Geralmente, podem ser vistas a olho nu e causam déficit neurológico por dano local ou por efeito de massa.32 Em contrapartida, as lesões difusas estão associadas a uma perda disseminada ou global das funções neurológi‑ cas, associada, em parte, a dano axonal de gravidade varia‑ da. Muitas vezes, os achados macroscópicos não existem e, quando presentes, limitam-se a pontos hemorrágicos que não explicam a gravidade do quadro.32 O inchaço ou edema encefálico será discutido separa‑ damente, por estar relacionado à lesão secundária e não à primária. Lesões difusas As lesões difusas podem ser classificadas em três categorias: concussão leve, concussão clássica e lesão axonal difusa. Es‑ sas lesões têm fisiopatologia semelhante, sendo a concussão a manifestação de uma disfunção fisiológica sem alteração es‑ trutural ou anatômica do SNC.32,33 Concussão O termo concussão é utilizado quase como sinônimo de TCE leve. São muito comuns e nem sempre os pacientes são leva‑ dos para atendimento médico. Nos casos mais simples, a dis‑ função neurológica é temporária e não há perda da consciên‑ cia. Cerca de 90% das concussões não envolve perda de consciência.33 O que caracteriza o quadro é a presença de con‑ fusão mental com ou sem amnésia. A confusão dura menos de 1 hora e o paciente recupera-se completamente. O déficit de memória pode persistir por mais tempo. Na chamada amnésia retrógrada, o paciente não se lembra de fatos anteriores ao trauma e, na anterógrada, esquece-se de fatos ocorridos após o evento. A concussão pode não ser reconhecida em crianças com trauma ortopédico. Assim, os médicos devem considerar a investigação em pacientes com lesões em: • atividades de alta velocidade (veículo automotor, bicicleta, skate); • atividades recreacionais ou esportivas; • quedas (principalmente de altura significativa e em superfí‑ cies rígidas); • suspeita de maus-tratos; • partes externas da cabeça e do couro cabeludo.
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A síncope vasovagal é um diagnóstico diferencial da con‑ cussão. Nesse caso, um impacto ou a estimulação intensa dos olhos, do abdome ou da face estimula o nervo vago. A hiperatividade vagal leva a bradicardia e a hipotensão. Nos casos mais graves, há comprometimento do fluxo san‑ guíneo encefálico e perda da consciência. A diferenciação é feita com a história de perda de consciência no momento do impacto, típica da concussão. Além disso, na síncope vasovagal, o pulso arterial é lento e fraco e não há amnésia ao despertar.32 Crianças com concussão e tomografia normal podem ser liberadas para observação domiciliar após 6 horas de obser‑ vação hospitalar. É importante que sejam descartadas le‑ sões associadas e que haja acompanhante confiável para observá-las por 24 a 48 horas – período de maior risco de surgimento de hematomas.2,19 A observação domiciliar só é possível se houver condições sociais de retorno imediato em caso de piora neurológica. Os responsáveis devem ser orientados a procurar imediatamen‑ te atendimento hospitalar em caso de aparecimento de um dos seguintes sinais ou sintomas:19 • piora da cefaleia; • convulsão; • sinais neurológicos focais; • sonolência excessiva ou incapacidade de ser despertado; • vômitos persistentes; • fala arrastada; • incapacidade de reconhecimento de pessoas ou lugares; • piora da confusão ou da irritabilidade; • fraqueza ou dormência em braços ou pernas; • alterações de comportamento; • irritabilidade significativa; • qualquer perda de consciência.
Síndrome pós-concussional Após a fase aguda do evento, a família deve ser orientada quanto à síndrome pós-concussional, que pode durar sema‑ nas ou meses e ocorre em 23 a 90% dos casos.32 Além dos lapsos de memória, o paciente pode apresentar náuseas, cefaleia, tonteira, zumbidos, irritabilidade, depressão e algum grau de regressão. O esclarecimento de que é um even‑ to benigno e passageiro na maioria das vezes, a prescrição de sintomáticos e o suporte psicológico são de grande importân‑ cia para minimizar o desconforto do paciente e a ansiedade dos familiares. É importante o acompanhamento de um especialis‑ ta que poderá associar analgésicos, anti-inflamatórios, antide‑ pressivos, relaxantes musculares ou carbamazepina.32,33 A detecção da síndrome pós-concussional em crianças pequenas pode ser mais difícil. Os seguintes sinais e sinto‑ mas devem despertar a suspeita:33 • choro excessivo; A concussão clássica caracteriza-se por perda imediata de • cefaleia persistente; consciência. Em geral, o paciente acorda em minutos (nunca • falta de atenção; ultrapassa 6 horas). Após o período de inconsciência, o exame • alteração no padrão do sono; neurológico é normal, assim como a TC. A duração da amné‑ • alteração nos hábitos alimentares; sia é um bom indicador da gravidade da concussão.19 • irritabilidade excessiva;
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• tristeza ou letargia; • perda de interesse em seus brinquedos preferidos. O paciente não deve retornar a atividades de risco (esportes, educação física, ciclismo) enquanto persistir qualquer sintoma pós-concussional ou enquanto houver déficit nos testes cogniti‑ vos utilizados em alguns serviços. Quando os sintomas não exis‑ tirem mais, ele pode retornar lenta, gradual e cuidadosamente às suas atividades físicas e cognitivas. As crianças e os adoles‑ centes necessitarão da ajuda dos pais, professores e treinadores para monitorar e avaliar sua recuperação. O planejamento deve incluir todos os aspectos da vida do paciente, ou seja, casa, esco‑ la, atividades sociais, recreativas e, quando houver, trabalho.33 O descanso programado e a limitação de esforço são im‑ portantes para facilitar a recuperação. Deve-se cuidar para que o paciente tenha sono adequado à noite e tire cochilos ou pausas para repouso durante o dia sempre que se sentir cansado. A recorrência de qualquer dos sintomas deve servir de guia para a escolha do nível seguro de atividade.33 Os professores, na escola, devem monitorar: • problemas de atenção ou de concentração; • problemas de memória ou de aprendizado; • necessidade de tempo prolongado para conclusão de tarefas; • intensificação de sintomas durante as atividades (p.ex., cefa‑ leia, fadiga); • maior irritabilidade e menor tolerância a fatores estressantes. O estudante necessita do seguinte suporte até a completa re‑ cuperação: • tempo livre da escola; • turnos mais curtos; • aulas mais curtas (com breves intervalos); • permissão para mais tempo para completar tarefas e avaliações; • redução da carga de tarefas na sala e para casa (com percen‑ tual definido, p.ex., 50%); • ausência de avaliações significativas nesse período. Médicos, familiares e professores devem monitorar o estudan‑ te para determinar a necessidade de suporte e o período em que ele deve ser aplicado.
Lesão axonal difusa O mecanismo de aceleração e desaceleração leva tecidos ence‑ fálicos, de densidade e rigidez diferentes, a deslizarem entre si, causando as chamadas lesões por cisalhamento. Os locais pre‑ ferenciais são a substância branca subcortical (lesão axonal di‑ fusa grau I), o corpo caloso (grau II) e a porção dorsolateral do mesencéfalo (III). As lesões, em geral, são microscópicas, mas podem aparecer como pontos hemorrágicos nesses locais de, no máximo, 10 mm.32 O diagnóstico é feito a partir do relato de mecanismo de desaceleração, de inconsciência por mais de 6 horas e da tomografia, que pode ser normal ou apresentar os peque‑ nos pontos descritos. Quanto à apresentação clínica, a le‑ são axonal difusa (LAD) pode ser dividida em leve, mode‑ rada e grave, de acordo com a duração do coma e os sinais de acometimento do tronco encefálico32 (Tabela 4). A LAD pode levar a graus variáveis de disfunção auto‑ nômica com episódios de febre, taquicardia, hipertonia, taquipneia e hipertensão arterial.19,32 As manifestações podem vir em grupo ou isoladas, o que dificulta o reconhe‑ cimento. Nesse caso, há necessidade de descartar proces‑ sos infecciosos. O uso de medicação para controle das crises é frequente. Dependendo do predomínio dos sinais e sintomas, o médi‑ co faz uso de antitérmicos, clonidina, benzodiazepínicos, clorpromazina, morfina e, mais tardiamente, baclofeno, se houver espasticidade associada. Quando não tratada, a hiperatividade simpática leva a grande gasto energético e desnutrição, o que facilita processos infecciosos e úlceras de decúbito e retarda a cicatrização de ferimentos. Além disso, fraqueza muscular associada a irregularidade res‑ piratória e hipertonia dificulta a retirada da ventilação mecânica. Lesões focais Hematoma extradural Os HED são causados por mecanismos diversos, mas predo‑ minantemente por acidentes automobilísticos e quedas (Ta‑ bela 5). Não são lesões frequentes, representando entre 0,2 e 6% de todos os TCE e 9% dos graves.19,32
Tabela 4 Características clínicas e prognóstico das lesões difusas do encéfalo Concussão leve
Concussão clássica
LAD leve
LAD moderada
LAD grave
Perda de consciência
Nenhuma
< 6 horas
6 a 24 horas
> 24 horas
> 24 horas
Posturas (flexão ou extensão)
Nenhuma
Nenhuma
Raras
Ocasionalmente
Presentes
Déficit motor
Nenhuma
Nenhuma
Nenhum
Leve
Grave
Amnésia pós-traumática
Minutos
Minutos a horas
Horas
Dias
Semanas
Déficit de memória
Nenhum
Leve
Leve a moderado
Moderado
Grave
Resultado (3 meses) 65%
40%
15%
Déficit moderado
Bom
–
100%
–
100%
15%
20%
15%
Déficit grave ou EVP
–
–
5%
15%
20%
Morte
–
–
15%
25%
60%
Fonte: Cooper e Golfinos.32
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Tabela 5 Hematoma extradural (HED) Impacto Intervalo lúcido – fala e morre Sangramento arterial Menos comum Não associado a lesões subjacentes Ótimo prognóstico, se operado rapidamente
O pico de incidência ocorre em adolescentes e adultos jovens, sendo menos comum em crianças, principalmente menores de 2 anos de idade, pois, nessa idade, a dura-máter é firme‑ mente aderida à tábua óssea, dificultando sua formação.19,32 Os HED são resultado de impacto direto sobre o crânio e os vasos subjacentes. A força aplicada causa intrusão óssea, com ou sem fratura, e descolamento da dura-máter, que é condição essencial para o surgimento do hematoma. Como resultado do movimento ósseo e da tração da dura-máter, ocorre ruptura de vasos meníngeos.19,32 A formação do hematoma depende da pressão do vaso lesado e da área de separação da dura-máter. Por esse moti‑ vo, a grande maioria dos HED é de origem arterial. Veias, em geral, não podem exercer pressão suficiente para pros‑ seguir o deslocamento da dura-máter.32 O local de maior ocorrência de HED é a região temporal, como resultado de ruptura da artéria meníngea média. Em crianças, também são comuns na fossa posterior, 25% do total.19,32 A apresentação clássica do HED é de inconsciência tran‑ sitória na cena (secundária a concussão). Em seguida, o pa‑ ciente permanece alerta até que a expansão do hematoma determine novo período de inconsciência. Todavia, a se‑ quência exibida depende da gravidade do impacto inicial e da rapidez com que o sangramento se desenvolve.19,32 Após o chamado intervalo lúcido, pode haver rápida evolução para o coma, com sinais de herniação transtento‑ rial – paciente que fala e morre (ver Figura 1). Nesses casos, a operação imediata é fundamental para um bom resultado. O paciente deve receber apenas medidas iniciais para con‑ trole da PIC, enquanto há confirmação da localização.19,32 Alguns pacientes com coleções muito pequenas e míni‑ mos sinais clínicos podem ser conduzidos sem cirurgia. En‑ tretanto, o tratamento não operatório não é adequado para a grande maioria dos casos. Essa conduta leva a tomografias repetidas, prolongamento do tempo de internação e riscos para os pacientes que, frequentemente, são operados em piores condições. É ainda mais questionável quando se leva em conta que a mortalidade de pacientes não comatosos operados é próxima de zero.32 A imagem tomográfica característica do HED é biconvexa. Tem maior diâmetro que o hematoma subdural, mas tende a ser mais localizado (está contido pela dura-máter). Como em todo sangramento intracraniano agudo, a imagem da TC é hiperdensa (branca, típica de sangue coagulado). Na presen‑ ça de sangramento ativo, imagem hipodensa também é vista. Nesses casos, são chamados de hiperagudos.19,32
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Hematoma subdural agudo Apesar de alguma controvérsia, são considerados hematomas subdurais agudos (HSDA) aqueles que surgem até 72 horas após o trauma. Entre 3 e 20 dias são subagudos, e após esse pe‑ ríodo, crônicos. Os subagudos são raros em crianças e os crôni‑ cos, raríssimos.19,32 Os HSDA são causados, com mais frequência, por quedas, agressões e acidentes automobilísticos (Tabela 6). Hemato‑ mas espontâneos, ou sem sinais aparentes de trauma crania‑ no, podem ocorrer em pacientes em uso de anticoagulantes ou portadores de discrasias sanguíneas, como hemofílicos.19,32 Os HSDA são muito mais frequentes que os hematomas extradurais, mas sua ocorrência exata não está bem definida. Os relatos variam entre 1 e 5%, considerando todas as lesões cranianas, e entre 5 e 30% para as graves.19,32 São decorrentes da ruptura das pontes venosas que drenam da superfície he‑ misférica para os seios durais, o que pode ocorrer por acelera‑ ção ou impacto, levando a acúmulo de sangue no espaço subdural. Sua formação é mais lenta que a do HEDA.19,32 Em geral, estão associados à lesão de parênquima subja‑ cente, o que explica o pior prognóstico. As lesões associa‑ das podem ser lacerações, hematomas ou contusões por contragolpe e lesão axonal difusa.19,32 A apresentação clíni‑ ca também é determinada pela gravidade do impacto e pela rapidez com que o hematoma cresce. Além da inconsciên‑ cia, anisocoria e déficit motor são sinais clínicos comumen‑ te encontrados no HSDA. Usualmente, a lesão é do mesmo lado da dilatação pupilar e contralateral ao déficit motor. No entanto, esses achados são menos confiáveis que nos casos de HED. No HSDA, podem não indicar a localização da massa em mais de 30% dos casos porque as lesões asso‑ ciadas falseiam o exame.19,32 Ainda assim, a dilatação pupi‑ lar é o sinal mais confiável da localização da lesão, princi‑ palmente quando surge após o evento inicial. Em lactentes jovens, a presença de sinais focais secundá‑ rios ao HSDA é menos frequente e ainda menos confiável. A manifestação mais comum é o acometimento neurológico difuso, com fontanela abaulada e palidez cutânea. As inter‑ venções cirúrgicas estão indicadas para hematomas com mais de 10 mm de espessura ou que levam a mais de 5 mm de desvio da linha mediana. Pacientes com pequenos hema‑ tomas e em coma, mas sem sinais de efeito de massa e sem elevações da PIC, provavelmente têm lesão axonal difusa como causa do coma e não se beneficiarão de intervenção ci‑ rúrgica. Quando há indicação, a mortalidade e a morbidade podem ser reduzidas com intervenção precoce.19,32 Tabela 6 Hematoma subdural agudo (HSDA) Impacto e desaceleração Mais comum Sangramento venoso Associado a lesões subjacentes Pior prognóstico Melhor se operado rapidamente
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Na TC, o HSDA aparece usualmente como uma imagem hiperdensa que recobre difusamente toda a convexidade cerebral. Eventualmente, também pode exibir sangramen‑ to ativo, com imagem hipodensa associada (hiperagudo). Nesses casos, têm pior prognóstico. Contusões intraparenquimatosas Contusões são áreas no encéfalo de associação de necrose, destruição de tecido, infarto e edema. Envolvem principal‑ mente a região cortical, podendo acometer a substância bran‑ ca de forma menos intensa. São as lesões intracranianas mais comuns no trauma19,32 (Tabela 7). As lesões podem ocorrer no local do impacto, por “golpe”, ou em pontos distantes, por “contragolpe”. As primeiras são cau‑ sadas por intrusão ou deformação óssea no ponto do impacto. O cérebro é momentaneamente comprimido e a gravidade da contusão depende da quantidade de energia transmitida pelo osso ao tecido cerebral subjacente. Quanto menor a área de contato, maior a gravidade da contusão e maior a probabilida‑ de de ela se estender até áreas profundas da substância bran‑ ca.19,32 Apesar disso, na maioria das vezes, as lesões mais graves ocorrem por contragolpe. Surgem quando a cabeça é colocada subitamente em movimento ou tem seu movimento interrom‑ pido bruscamente. Nesses casos, o encéfalo sofre um segundo impacto ao colidir contra a superfície interna do crânio. As re‑ giões atingidas com mais frequência são as porções inferiores dos lobos frontal e temporal, que vão de encontro à superfície rugosa do assoalho do crânio. O lobo parietal é acometido oca‑ sionalmente e o occipital com ainda menor frequência.19,32 Mais da metade dos pacientes apresenta mais de uma contusão ou associação a outras lesões intracranianas (HSD, hemorragias cerebrais). Fraturas estão presentes em 60 a 80% dos casos, e sua presença, ou a de hematoma subgaleal, indica o local do impacto na maioria das vezes.32 A apresentação clínica depende da localização, da gravi‑ dade e da presença de lesões associadas. Pacientes com le‑ sões isoladas na área motora ou da fala podem apresentar apenas déficits relacionados a essas funções. A perda de consciência no momento do impacto é, em geral, associada à concussão ou à lesão axonal difusa, e não à contusão. Na maioria das vezes, contusões pequenas resolvem-se espon‑ taneamente, mas podem deixar déficits em algumas pessoas. Grandes lesões, principalmente temporais ou em múltiplas áreas, podem ter efeito de massa e causar HIC e herniação. Contusões podem, em horas, expandir-se e formar um hematoma intracerebral. Nos dias que se seguem à lesão, as contusões tendem a se tornar necróticas e mais hetero‑ geneamente hemorrágicas. No fim da primeira semana, a Tabela 7 Contusões intraparenquimatosas Muito comuns Golpe ou contragolpe Acompanham o HSDA Lobos frontal e temporal Podem expandir-se em horas
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hemorragia já se resolveu, mas o efeito de massa pode au‑ mentar por surgimento de edema. Isso pode ser detectado por aumentos da PIC, surgimento de déficits focais ou aprofundamento do estado de consciência. As contusões de localização temporal são as de maior risco, por causa da proximidade do mesencéfalo e da incisura da tenda do cerebelo. A piora pode ocorrer rapidamente, quase sem sinais de aumento do efeito de massa. Nesses casos, a to‑ mografia exibe mínimo desvio das estruturas da linha media‑ na, e a PIC mantém-se baixa até herniação súbita. Nos pa‑ cientes inconscientes, o primeiro achado é a dilatação pupilar. Quando se procura por lesões focais à TC, deve-se estar atento aos sinais de compressão dos ventrículos e ao desvio da linha mediana, que revelam efeito de massa e HIC. É con‑ siderado significativo um desvio do septo pelúcido maior ou igual a 5 mm em relação à linha traçada anteroposteriormen‑ te. Utiliza-se a escala impressa ao lado da imagem. Hematomas intraparenquimatosos Hematomas intraparenquimatosos são compostos de áreas he‑ morrágicas, que podem ser de poucos milímetros ou grandes o suficiente para envolver vários lobos cerebrais. Apesar de sua diferenciação de contusões nem sempre ser fácil, os hemato‑ mas são coleções de sangue homogêneas e bem definidas, en‑ quanto as contusões são mistura de sangue e parênquima con‑ tundido e edemaciado, o que dá uma aparência heterogênea (às vezes, o típico aspecto de “sal e pimenta”).19,32 Os mecanismos que produzem contusões ou hemato‑ mas intraparenquimatosos são similares (impacto, arma de fogo, arma branca, aceleração e desaceleração). Cerca de 80 a 90% dos hematomas intraparenquimatosos são locali‑ zados na substância branca dos lobos temporal e frontal. O edema adjacente ao hematoma pode causar significativo efeito de massa.32 Os sinais clínicos, o risco de crescimento, a HIC e as her‑ niações são semelhantes aos das contusões. Hemorragia intraventricular Quase 1/3 de pacientes com trauma de crânio grave tem san‑ gue nos ventrículos. No entanto, a maioria não apresenta ima‑ gem hiperdensa à tomografia. Assim, a literatura considera que entre 1 e 7% dos pacientes tenham hemorragia intra‑ ventricular (HIV).32 Pode aparecer como lesão isolada e raramente persiste por mais de 2 semanas, em virtude da diluição do sangue no LCR e da difusão através do espaço subaracnóideo. Pode ser causa de febre e levar à hidrocefalia obstrutiva. Hemorragia subaracnóidea traumática (HSAT) A hemorragia subaracnóidea acompanha com frequência o trauma craniano e sua correlação com pior prognóstico não está confirmada em Pediatria. Pode levar a sinais e sintomas de irri‑ tação meníngea e, tardiamente, a hidrocefalia, por impedir ab‑ sorção de LCR pelas granulações aracnóideas.19,32 A ocorrência de vasoespasmo em crianças não foi documentada, o que con‑ traindica o uso de medidas profiláticas para esse evento.
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Traumatismo Cranioencefálico •
A aparência típica à TC da HSAT é de área linear ou tor‑ tuosa, hiperdensa (branca), acompanhando a anatomia de fissuras, sulcos aracnóideos e cisternas de base. É menos volumosa que a hemorragia subaracnóidea causada por aneurisma, que deve ser suspeitada quando a magnitude do trauma for duvidosa e houver grande coleção de sangue. Mais da metade dos pacientes com hemorragia subara‑ quinóidea apresenta temperaturas elevadas nos primeiros dias (acima de 39oC). Em pacientes com fratura de base ou com estado geral comprometido, o quadro de febre, rigidez de nuca, cefaleia e fotofobia da HSA precisa ser diferencia‑ do de meningite. Nesses casos, a punção lombar deve ser realizada após TC de controle.
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• decorrente de lesão isquêmica que altera a bomba de Na+K+, intracelular ou citotóxico; • por aumento da pressão hidrostática por hidrocefalia e extra‑ vasamento, intersticial.4
Abordagem do TCE após o atendimento inicial TCE leve (ECG entre 13 e 15) Uma vez descartadas as lesões sistêmicas associadas e defini‑ da a indicação de TC, serão internados para observação do quadro neurológico se:19 • não houver disponibilidade de TC (se indicada); • TC alterada; • TCE penetrante; Higromas • história de perda de consciência por mais de 5 minutos; Higromas são coleções líquidas que surgem no espaço subdural • cefaleia moderada a grave; após alguns dias do trauma. São compostos de LCR, quantida‑ • intoxicação significativa por álcool ou drogas; des variadas de sangue e efusão de capilares lesados do tecido • fratura de crânio; cerebral subjacente. Sua ocorrência não está relacionada à gra‑ • rinorreia ou otorreia; vidade do trauma nem à idade do paciente. Podem ocorrer com • amnésia prolongada. menos de 24 horas do trauma e até 3 semanas depois. A apre‑ sentação varia de pacientes assintomáticos, com achado oca‑ TCE moderado (ECG entre 9 e 12) sional à TC, a pacientes que iniciam cefaleia e vômitos e evo‑ Após a avaliação inicial, todos serão submetidos à tomografia luem com aprofundamento da consciência e surgimento de e internados. Alguns autores relatam que a chance de lesão in‑ sinais focais.32 Pacientes assintomáticos não necessitam de tracraniana pode chegar a 40%, e a necessidade de interven‑ tratamento. A operação deve ser considerada para aqueles com ção cirúrgica, a 10%.19 A observação nas primeiras 48 horas piora clínica e nos quais a melhora neurológica é interrompida. deve ser rigorosa, preferencialmente em UTI, sobretudo para É importante lembrar que, mesmo na ausência de desvio da li‑ aqueles com pontuações mais baixas ou lesões de risco. Em nha mediana, a coleção geralmente está sob pressão crescente. caso de deterioração neurológica, devem ser manuseado À TC, os higromas são vistos como imagens hipodensas como TCE grave. (escuras). Podem ser confundidos com aumento do con‑ teúdo de LCR no espaço subaracnóideo decorrente de atro‑ Tratamento do TCE grave fia cerebral. Apesar de esta ser mais tardia e, com frequên‑ Os autores das diretrizes para o tratamento do TCE grave em cia, estar acompanhada de acentuação de sulcos, giros e lactentes, crianças e adolescentes publicadas em 2003 classi‑ aumento dos ventrículos, nem sempre o diagnóstico dife‑ ficam as intervenções em três níveis:34 rencial é possível com a primeira TC. 1. Padrão: aceito como princípio para o tratamento com alto grau de certeza clínica. Baseado em evidência classe I, estu‑ Inchaço dos aleatorizados, controlados, com bom desenho. Inicialmente, consideravam-se duas entidades distintas: swel- 2. Recomendação: estratégia aceita com grau moderado de cer‑ ling (ingurgitamento) e edema cerebral propriamente dito. teza. Baseada em evidência classe II, estudos clínicos com co‑ Atualmente, porém, é reconhecido que os dois componentes leta prospectiva ou retrospectiva, desde que de dados alta‑ estão presentes, preferindo-se inchaço que engloba edema e mente confiáveis. ingurgitamento. Ocorre em quase metade das crianças com 3. Opção: estratégia cuja certeza clínica não está clara. Baseada TCE grave e tem mortalidade descrita de até 50%, atribuída à em evidência classe III, estudos com coletas retrospectivas, HIC. A imagem tomográfica típica é de apagamento de sulcos séries clínicas, bases de dados, relatos de casos e opinião de e giros, redução de ventrículos e cisternas e perda da distinção especialistas. entre substância cinzenta e branca. O parênquima pode estar mais denso (claro), se houver predomínio de ingurgitamento, Indicações para monitoração da e menos denso (escuro), se predominar o edema. O inchaço pressão intracraniana pode ser bilateral, hemisférico, difuso ou perilesional.19,32 Há dois motivos para monitoração da PIC no TCE grave: fortes Normalmente, as crianças possuem ventrículos pequenos evidências afirmam que a associação de HIC com maus resulta‑ e sulcos e giros pouco proeminentes. Por isso, nos casos du‑ dos neurológicos e monitoração da PIC associada ao tratamento vidosos, deve-se valorizar o apagamento das cisternas de agressivo da HIC estão associados aos melhores resultados rela‑ base como indicativo de inchaço cerebral. O tipo de edema tados no TCE pediátrico.35 Salim et al. não evidenciaram dife‑ predominante varia com a evolução do quadro, podendo ser: rença na mortalidade ao comparar grupo pediátrico monitorado • por alteração da barreira hematoencefálica, vasogênico; a outro não monitorado após TCE. No entanto, o grupo monito‑
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rado era composto de pacientes mais graves, o que torna ques‑ tionável a conclusão dos autores de que o tratamento conduzi‑ do com a monitoração não influenciou o resultado final.36 Segundo as Diretrizes Pediátricas de 2003, a monitoração é uma opção para crianças com pontuação menor ou igual a 8 na ECG, independentemente do achado tomográfico. A presença de suturas e fontanelas abertas não impede o de‑ senvolvimento de HIC ou dispensa o uso da monitoração.35 Coorte realizado com 132 pacientes pediátricos com TCE grave na UTI Pediátrica do Hospital João XXIII (HJXXXIII) de Belo Horizonte, MG, entre 1998 e 2003, evidenciou que mais de 70% apresentaram HIC que necessitava de algum tratamento, e mais de 40%, hipertensão refratária, sendo necessário coma barbitúrico ou craniectomia descompres‑ siva. Além disso, após análise multivariada, constatou-se que a presença de posturas anormais à admissão foi fator de risco independente para ocorrência de HIC refratária.26 A monitoração, em geral, não está indicada para pacientes com TCE leve ou moderado, mas pode ser considerada na‑ queles com efeito de massa ou em que o exame neurológico seriado será prejudicado por analgesia, sedação ou anestesia, como na associação do TCE a traumatismo torácico grave.35 Tipo de monitoração preferencial para a PIC Recomenda-se cateter intraventricular ou com transdutor na ponta (opção).37 A ventriculostomia tem a vantagem de permitir mensuração e tratamento da PIC por meio de drenagem de LCR. No entanto, seu uso está associado a maior incidência de infec‑ ções, principalmente quando há sangue nos ventrículos.26,37 Os cateteres com sensor na ponta ou fibras óticas podem ser instalados nos ventrículos e têm mecanismo para moni‑ toração e drenagem simultânea, o que é uma vantagem so‑ bre o cateter intraventricular em coluna de líquido. Sua desvantagem é o preço, dezenas de vezes mais alto. Os sistemas epidurais ou cateteres/parafusos subdurais ou subaracnóideos acoplados à coluna líquida são menos confiáveis que os anteriores, mas podem ser uma opção para locais com menos recursos.26,37,38
latação reflexa pode elevar a PIC por aumento do conteúdo sanguíneo intracraniano e prejudicar ainda mais o fluxo sanguíneo encefálico. Por esse motivo, a primeira medida para o tratamento da PIC deve ser a correção da oxigenação, da ventilação e da pressão arterial, possíveis causadoras de HIC (Figura 2). A pressão de perfusão encefálica – calculada com base na pressão arterial média menos a PIC – deve ser mantida acima de 40 mmHg em crianças com TCE (nível II de evidência). Valores entre 45 e 65 mmHg representam uma boa referência em um crescente relacionado à idade. Mesmo adultos não devem ter a pressão de perfusão mantida acima de 70 mmHg à custa de volume ou vasopressores em excesso. Essa medida não se mostrou benéfica e levou à maior ocorrência de sín‑ drome do desconforto respiratório agudo nesse grupo.39,40 Uso de sedativos, analgésicos e bloqueadores neuromusculares para controle da PIC A recomendação é de que a escolha das medicações fique a car‑ go do médico-assistente, uma vez que não há estudos que de‑ monstrem melhores resultados finais com nenhum deles.41 No entanto, deve-se ter em mente que os efeitos das medicações na PIC podem ser variáveis ou imprevisíveis. A associação de fentanil e midazolam, por exemplo, pode reduzir a PIC por cau‑ sar analgesia, sedação, relaxamento e facilitar a adaptação à ventilação mecânica. Por outro lado, pode causar aumento da PIC por depressão respiratória em pacientes não adequada‑ mente ventilados ou por hipotensão arterial sistêmica com va‑ sodilatação reflexa. Assim, o uso das medicações deve ser se‑ guido de observação cuidadosa e conduta individualizada. O propofol está contraindicado para uso prolongado em Pediatria. Sua segurança não foi demonstrada e há relatos de acidose metabólica fatal associada a ele.4 Bloqueadores neuromusculares devem ser reservados para episódios de HIC que não responderam às medidas anteriores para transporte ou adaptação temporária à ven‑ tilação mecânica. A preferência é para pancurônio ou vecu‑ rônio, mas seu uso prolongado em adultos com TCE está associado a maior incidência de pneumonias, sepse e au‑ mento do tempo de permanência na terapia intensiva.42
Limites para o tratamento da hipertensão intracraniana e da pressão de perfusão encefálica Drenagem de LCR para controle da PIC O tratamento da PIC deve ser iniciado com valores a partir de A drenagem de LCR ventricular é uma opção terapêutica para 20 mmHg, mas essa recomendação tem baixo nível de evidên‑ crianças com HIC e ventriculostomia.43 cia (grau III). Assim, recomenda-se que a interpretação dos A associação de drenagem lombar à drenagem ventricu‑ valores da PIC e a indicação de intervenção sejam feitas em lar pode ser considerada terapêutica de segunda linha so‑ conjunto com o exame clínico, com outras variáveis, como mente em casos de hipertensão refratária com ventriculos‑ oxigenação, PaCO2, pressão arterial sistêmica e pressão de tomia funcionante, cisternas basais abertas e nenhuma perfusão encefálica, e com a evolução tomográfica.39 evidência de lesão significativa com efeito de massa ou de Vale lembrar que o encéfalo tem mecanismos de autorre‑ desvio na tomografia. Do contrário, a drenagem pode levar gulação que visam à preservação da oferta adequada de oxi‑ o paciente à morte por herniação.43 gênio e glicose. Isto é, diante de hipoxemia, hipercapnia e hipotensão arterial, as arteríolas cerebrais dilatam-se para Uso de terapia hiperosmolar para controle da PIC aumentar ou pelo menos manter o fluxo sanguíneo encefáli‑ A solução salina a 3% (SS3%) é efetiva no controle da HIC pós‑ co. No entanto, no TCE grave com aumento do conteúdo por -TCE (nível III de evidência). A dose recomendada é entre 0,1 e 1 inchaço e redução da complacência intracraniana, a vasodi‑ mL/kg/h, que deve ser iniciada e ajustada em escala crescente
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ECG ≤ 8 Tratamento cirúrgico, se indicado Monitorar PIC
Manter PPE adequada à idade. Manter PaCO2 ≥ 35 mmHg
PIC > 20 mmHg
Sempre considerar a realização de nova tomografia
Verificar oximetria, PaCO2, PAM. Analgesia e sedação Posicionamento: cabeça na linha média, cabeceira a 30°
PIC > 20 mmHg
Drenagem de LCR, se ventriculostomia
PIC > 20 mmHg
A retirada do tratamento instituído deve ser gradual e após o controle da PIC
Bloqueador neuromuscular
Manitol (20%) em bolo de 0,25 a 1 g/kg Pode ser repetido se osmolaridade sérica < 320
PIC > 20 mmHg
Solução salina (NaCl 3%, 0,1 a 1 m/kg/h) Manter se osmolaridade sérica < 360
Se PIC ainda elevada, considerar hiperventilação leve: PaCO2, 30 a 35 mmHg
PIC > 25 mmHg
Hipertensão intracraniana refratária = terapias de segunda linha: craniectomia descompressiva, coma barbitúrico, hipotermia moderada (32° a 34°C), hiperventilação agressiva (PaCO2 < 30), drenagem lombar de LCR
Figura 2 Fluxograma de tratamento de hipertensão intracraniana. ECG: eletroencefalograma; PIC: pressão intracraniana; LCR: líquido cefalorraquidiano. Fonte: adaptada de Adelson et al.60
(ou decrescente). Níveis de sódio até 160 mEq/L e de osmolari‑ dade de até 360 mmOsm/L são bem tolerados porque a SS3% favorece a manutenção da volemia, mas recomenda-se a me‑ nor dose capaz de manter a PIC abaixo de 20 mmHg.44 O manitol também é eficaz para controle da PIC, mas com menos evidências disponíveis, apesar do seu amplo uso. Deve ser aplicado em bolo na dose de 0,25 a 1 g/kg, com atenção especial para manutenção da volemia. Reco‑ menda-se, ainda, a instalação de sonda vesical de demora para evitar ruptura de bexiga.44 O manitol reduz a PIC por dois mecanismos distintos. Age rapidamente por reduzir a viscosidade sanguínea, o que leva à vasoconstrição reflexa com redução do conteúdo
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de sangue intracraniano e da PIC. Esse efeito depende da preservação dos mecanismos de autorregulação cerebral e dura cerca de 75 minutos.44 Caso os mecanismos de autor‑ regulação estejam comprometidos, o manitol pode não causar a vasoconstrição reflexa e aumentar a PIC. Isso tam‑ bém explica porque ele age melhor em pacientes com le‑ sões focais, isto é, naqueles que têm mais parênquima e mecanismo de autorregulação preservados. O manitol também reduz a PIC pelo efeito osmótico que promove gradual deslocamento de água do parênquima en‑ cefálico para a circulação sanguínea, o que se inicia em 15 a 30 minutos após sua aplicação, dura aproximadamente 6 ho‑ ras e requer barreira hematoencefálica intacta. Do contrário,
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o manitol pode deixar o vaso sanguíneo e promover movi‑ mento de água em sentido contrário, agravando o edema.44 O uso do manitol também deve ser seguido de avaliação da resposta e de conduta individualizada. A osmolalidade deve ser mantida em 320 mOsm/L, no máximo. O uso de soluções hiperosmolares pode levar a hemorragias intra‑ cranianas e insuficiência renal aguda por hipertonicidade exagerada, além de edema cerebral quando de sua redução excessivamente rápida. Na prática, o manitol tem sido reservado para o atendi‑ mento inicial ou para aumentos isolados da PIC. Diante de episódios repetidos ou HIC sustentada, a SS3% tem sido preferida, com bons resultados. Uso de hiperventilação no controle da PIC Hiperventilação profilática leve (PaCO2 abaixo de 35 mmHg) não deve ser feita. Estudo prospectivo aleatorizado em adultos demonstrou que a hiperventilação profilática e prolongada pio‑ ra o resultado final.45 A manutenção de PaCO2 entre 35 e 30 mmHg deve ser considerada para casos de hipertensão intracra‑ niana não responsiva a analgesia, sedação, bloqueio neuromus‑ cular, drenagem de LCR ventricular e terapia hiperosmolar (ní‑ vel III).46 Hiperventilação agressiva, com PaCO2 abaixo de 30 mmHg, pode ser considerada terapia de segunda linha em casos de HIC refratária, especialmente se houver evidência de hipe‑ remia encefálica. A monitoração da saturação de oxigênio jugular, do fluxo sanguíneo ou da oxigenação tecidual ence‑ fálica deve ser considerada para auxílio na identificação de potencial isquemia. A hiperventilação deve ser mantida pelo menor tempo possível.46 Uso de barbitúricos Altas doses de barbitúricos podem ser consideradas em pa‑ cientes com lesões intracranianas viáveis, HIC refratária e he‑ modinamicamente estáveis. O uso da medicação requer moni‑ toração hemodinâmica e suporte cardiovascular adequados (nível III de evidência).47 Os barbitúricos podem reduzir a PIC por dois mecanis‑ mos: supressão do metabolismo e alteração do tônus vas‑ cular. Podem reduzir o consumo basal de oxigênio do encé‑ falo em até 50% e, quando o fluxo e o conteúdo sanguíneo mantêm seu acoplamento ao metabolismo, causam vaso‑ constrição com queda de ambos e da PIC.47 Os barbitúricos também podem conferir efeito neuropro‑ tetor independentemente de sua ação na PIC, como por ini‑ bição da peroxidação lipídica mediada por radicais livres e estabilização de membranas.47 Apesar dos efeitos descritos de redução da PIC e neuroproteção, os efeitos adversos dos barbitúricos de depressão cardiovascular e imunológica res‑ tringem seu uso. Além disso, eles têm sido associados à ocor‑ rência de isquemia encefálica e à piora de resultados.26,47 Controle da temperatura A hipertermia, considerada quando a temperatura interna após o trauma ultrapassa 38,5°C, deve ser evitada em crianças com
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TCE grave (nível III de evidência).48 Vale lembrar que a medida axilar, ainda muito utilizada, pode subestimá-la em 0,8 a 1°C. A hipertermia acentua a resposta fisiopatológica que se segue ao trauma agravando o dano encefálico. Em contra‑ partida, a hipotermia atenua a lesão secundária por redu‑ ção do metabolismo, da inflamação, da peroxidação lipídi‑ ca, da excitoxicidade, da ocorrência de convulsões e da morte neuronal.48 As Diretrizes Pediátricas de 2003 consideram que hipo‑ termia (temperatura entre 32 e 35oC) pode ser considerada em casos de HIC refratária, especialmente quando há evi‑ dência de isquemia (nível III de evidência).48 Estudos con‑ trolados, multicêntricos em adultos pós-parada cardíaca reforçam essa recomendação, visto que evidenciaram me‑ lhora nos resultados neurológicos dos pacientes submeti‑ dos a resfriamento quando comparados a controles manti‑ dos normotérmicos.49,50 Hutchison et al., no entanto, em estudo pediátrico, contro‑ lado e multicêntrico de 2008, concluíram que, em crianças com TCE grave, a hipotermia (temperatura 33,1±1,2°C) inicia‑ da até 8 horas após o trauma e mantida por 24 horas não me‑ lhora o resultado final e pode aumentar a mortalidade.51 Os autores observaram que o grupo submetido à hipoter‑ mia apresentou mais episódios de hipotensão e necessidade de drogas vasoativas, especialmente durante o processo de reaquecimento. Outros efeitos adversos, como arritmias e distúrbios de coagulação, não foram observados.51 Craniectomia descompressiva A craniectomia descompressiva deve ser considerada para o tratamento de pacientes pediátricos com inchaço difuso e HIC refratária ao tratamento clínico. Também deve ser considera‑ da para lactentes e crianças pequenas vítimas de maus-tratos nessa situação (nível III).52 Os resultados mais favoráveis da craniectomia descom‑ pressiva possivelmente ocorrem em pacientes que evoluem com piora nas primeiras 48 horas do trauma. A cirurgia deve ser considerada em HIC refratária, mas considerando as se‑ guintes situações:52 • inchaço difuso; • primeiras 48 horas do trauma; • ausência de episódios de HIC sustentadamente acima de 40 mmHg antes da cirurgia; • pontuação acima de 3 na ECG em algum momento após o trauma; • piora neurológica; • sinais de herniação encefálica em evolução. Eventualmente, o neurocirurgião pode indicar a craniectomia na chegada, principalmente em pacientes graves com hema‑ toma subdural e inchaço hemisférico. A retirada de parte dos ossos do crânio com alargamento da dura-máter leva a uma redução na PIC de até 85%. O fragmento ósseo pode ser armazenado na gordura da pare‑ de abdominal para posterior reimplante ou ser conservado externamente para ser usado como molde para cranioplas‑
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tia com prótese de acrílico. Ainda não há consenso quanto à melhor técnica para a craniectomia e nem para a recoloca‑ ção do fragmento ósseo, mas Taylor, em estudo controlado e aleatorizado, evidenciou que pacientes submetidos à cra‑ niectomia apresentaram melhor resultado que aqueles submetidos somente ao tratamento clínico padrão.53 Estudo piloto brasileiro também demonstrou melhor so‑ brevida de pacientes pediátricos submetidos à craniectomia quando comparados àqueles que receberam barbitúricos.54 Uso de corticosteroides O uso de corticosteroides reduz a produção endógena de corti‑ sol e pode estar associado a um aumento de complicações infec‑ ciosas em crianças (nível II de evidência).55 Essas medicações não estão indicadas para melhora de resultados ou controle da HIC em pacientes pediátricos com TCE grave (nível III).55 Roberts et al. realizaram estudo controlado, multicêntri‑ co, comparando adultos com TCE e pontuação abaixo de 14 que receberam metilprednisolona ou placebo. O grupo que recebeu corticosteroides apresentou maior mortalidade avaliada 14 dias após o trauma – 21,1% contra 17,9% no gru‑ po controle; RR: 1,18, intervalo de confiança 95%: 1,09 a 1,27, p = 0,0001. O trabalho foi interrompido com esse resultado porque o monitoramento do Comitê de Ética demonstrou que o grupo tratamento apresentava efeitos deletérios graves pelo uso da medicação.56 O uso de corticosteroides está contraindicado em adul‑ tos com TCE moderado ou grave, com elevado grau de evi‑ dência (nível I).40 Crianças também não devem recebê-los. Anticonvulsivantes profiláticos Convulsões pós-traumáticas são relativamente comuns em crianças. Ocorrem em 3 a 6% dos TCE leves e, em geral, não necessitam de tratamento. No entanto, a maioria das crianças com convulsões recebe atendimento hospitalar. As convul‑ sões são definidas como: • de impacto: no momento do evento; • imediatas: nas primeiras 24 horas; • precoces: entre 24 horas e 7 dias após o evento; • tardias: após 7 dias.2,19 As Diretrizes Pediátricas consideram o uso de anticonvulsi‑ vantes profiláticos uma opção terapêutica nos primeiros 7 dias após o trauma (nível III).57 No entanto, estudo controlado comparou fenitoína com placebo na prevenção de convulsões precoces em pacientes pediátricos com TCE e pontuação de 9 ou 10 na ECG. Os autores não encontraram diferença significa‑ tiva na ocorrência de convulsões entre os dois grupos.4 Os autores das Diretrizes não recomendam o uso de an‑ ticonvulsivantes profiláticos após o 7o dia de trauma, com nível de evidência mais elevado, grau II.57 A manutenção dos anticonvulsivantes para crianças que apresentaram convulsão nos primeiros dias do trauma é ain‑ da mais controversa. Na ausência de estudos, alguns centros adotam a seguinte conduta: nenhum tratamento é mantido se há uma convulsão isolada, particularmente se ela ocorre
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nas primeiras 24 horas do trauma. Quando ocorrem convul‑ sões repetidas ou sustentadas, porém, a fenitoína é mantida por 6 meses. Após esse período, é suspensa e reiniciada se houver convulsão clínica ou documentada por eletroencefa‑ lograma. A retirada é tentada novamente após 1 ano.4 Suporte nutricional, hidratação e prevenção de úlceras gastroduodenais de estresse O estado nutricional de pacientes pediátricos com TCE grave pode influenciar muito o processo de recuperação. No entanto, apesar do conhecimento de que a desnutrição pode levar a de‑ pressão imunológica, retardo na cicatrização de feridas, prolonga‑ mento do tempo de ventilação mecânica, entre outras complica‑ ções, não há estudos consistentes que avaliem o impacto da nutrição na morbidade e na mortalidade de crianças com TCE. Os autores das Diretrizes Pediátricas recomendam que a dieta enteral para essas crianças seja iniciada dentro de 72 horas após o trauma e que o objetivo calórico seja atingido até o 7o dia, devendo ser de 130 a 160% do aporte basal para a idade (nível III de evidência).58 No entanto, pacientes sem contraindicações sistêmicas (principalmente abdomi‑ nais) podem receber dieta enteral a partir de 12 horas do trauma. A hidratação venosa mantida até que se atinja aporte calórico e hídrico desejado não deve ser feita com soluções hipotônicas, como no tradicional esquema glicofi‑ siológico (4:1) de hidratação pediátrica. Essa conduta favo‑ rece a hiponatremia e agrava o edema e a hipertensão intra‑ craniana. A opção é por solução salina a 0,9% pura e controle rigoroso da glicemia. Quando esta se aproxima do normal, acrescenta-se solução glicosada a 50% para manu‑ tenção de valores glicêmicos seguros. Hipoglicemia e hiper‑ glicemia devem ser evitadas e insulina só deve ser conside‑ rada para valores acima de 180 mg/dL. O uso de ranitidina para proteção gástrica tem sido ini‑ ciado rotineiramente após o trauma. No entanto, sua ma‑ nutenção por tempo prolongado está associada ao aumen‑ to da colonização gástrica por germes hospitalares e da ocorrência de pneumonia associada à ventilação mecânica. Estudo prospectivo na UTI pediátrica do HJXXIII ava‑ liou a segurança da suspensão da ranitidina quando da to‑ lerância à dieta gástrica de, pelo menos, 50% do objetivo calórico programado. Não houve sangramento nos pacien‑ tes acompanhados, exceto em um, que apresentou hemor‑ ragia digestiva mesmo em uso de ranitidina. Ele tinha dis‑ túrbio de coagulação, insuficiência renal aguda, uso de corticosteroides e síndrome do desconforto respiratório agudo, conhecidos fatores de risco para o evento. Os autores concluíram que a suspensão da ranitidina foi segura quando da tolerância à dieta gástrica, exceto na pre‑ sença de outros fatores de risco para hemorragia digestiva.59 Evolução, prognóstico e resultado final Macedo acompanhou a evolução de 932 pacientes pediátricos brasileiros com TCE leve e observou que 3% apresentaram le‑ sões intracranianas, e 0,4%, necessidade de cirurgia. Nenhum apresentou déficit residual importante.61
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Carvalho estudou fatores relacionados à mortalidade de crianças e adolescentes com traumatismo cranioencefálico internados na UTI Pediátrica HJXXIII, no período de 1998 a 2003. Após análise multivariada de 315 pacientes, o autor correlacionou o maior risco de óbito: idade inferior a 1 ano, presença de edema cerebral difuso na TC, ocorrência de instabilidade hemodinâmica na UTI, HIC refratária, sín‑ drome do desconforto respiratório agudo e distúrbios do sódio. Ou seja, exceto a idade, fatores relacionados à ocor‑ rência de dano secundário ao encéfalo.62 Distúrbios de coagulação também são causa de dano se‑ cundário e ocorrem com frequência após TCE grave. Po‑ dem levar a sangramentos intracranianos catastróficos e, por isso, recomenda-se que sejam pesquisados e corrigidos antes da realização de procedimentos.63 A maneira de lidar com pacientes admitidos com pontuação 3 na ECG é variá‑ vel. Sabe-se que aqueles que se mantêm assim e com pupi‑ las fixas e dilatadas após a reanimação não sobrevivem, desde que isso não seja secundário a drogas. Alguns servi‑ ços optam por admitir na UTI todos aqueles que dão entra‑ da na sala de emergência, acreditando que o ambiente da terapia intensiva é mais adequado e a equipe mais habitua‑ da a lidar com questões relacionadas à morte4 – nem sem‑ pre isso é verdadeiro. Em contrapartida, qualquer criança que tenha pelo menos uma pupila reativa à luz, indepen‑ dentemente da pontuação na ECG, deve ser tratada com to‑ dos os recursos disponíveis. É impossível e inadequado uti‑ lizar sinais clínicos e características do momento do trauma para predizer sobrevida. Caso a criança tenha realmente so‑ frido uma lesão fatal, isso ficará claro com a evolução e será constatado com critérios adequados. Além disso, o acom‑ panhamento do quadro pelos familiares permite melhor compreensão e aceitação do evento. Crianças maiores de 4 anos de idade têm melhor resulta‑ do final que adultos com lesões semelhantes, mas o prog‑ nóstico é pior em menores dessa idade. As maiores séries de casos têm demonstrado mortalidade acima de 45% para o TCE grave em adultos e 25% para crianças em geral. Al‑ guns autores consideram que o estado neurológico à ad‑ missão e a evolução da PIC são os fatores preditivos mais confiáveis do resultado funcional em crianças.4 A sobrevida de crianças vítimas de TCE por maus-tratos é semelhante à daquelas vítimas de lesões não intencionais. No entanto, a morbidade é muito maior, com resultados ruins descritos em 59 a 100% dos pacientes.4 Conclusões O trauma de crânio é um evento complexo. O sucesso de seu tratamento depende de atitudes rápidas e ordenadas por parte do médico da emergência, qualquer que seja sua especialida‑ de. Inclui reanimação agressiva, tomografia e encaminhamen‑ to imediato dos casos graves para centro de referência. Nos casos leves, a prioridade é detectar ou descartar le‑ sões intracranianas de tratamento cirúrgico e o diagnóstico e o tratamento da síndrome pós-concussional. Crianças menores de 2 anos de idade devem ser abordadas de forma
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diferente das maiores por apresentarem maior risco de le‑ são intracraniana após TCE leve. As medidas que podem ter maior impacto no resultado final do paciente com TCE são a prevenção e a correção de causas de dano secundário. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer os mecanismos de TCE conforme a faixa etária. • Classificar a gravidade do TCE e tomar a conduta adequada de acordo com o grau. • Utilizar as condutas que tenham grau de evidência estabelecido. • Prognosticar o paciente em relação a sequelas e óbito.
Referências bibliográficas 1.
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CAPÍTULO 14
ACIDENTE VASCULAR ENCEFÁLICO EM CRIANÇAS Eduardo Mekitarian Filho Werther Brunow de Carvalho
Introdução Os acidentes vasculares encefálicos (AVE) em crianças são condições raras, porém reconhecidas com frequência cada vez maior em razão da importância de suas complicações e varie‑ dade de diagnósticos diferenciais. O diagnóstico requer alto índice de suspeição clínica, uma vez que os sinais e sintomas manifestados pela criança, em um primeiro momento, podem carecer de especificidade, de maneira a mimetizar outras apre‑ sentações clínicas de doenças neurológicas ou além do siste‑ ma nervoso central (SNC). Estudos demonstram que o tempo entre o início das manifestações clínicas e o diagnóstico pode variar entre 24 e 72 horas; recente estudo retrospectivo de‑ monstrou menor tempo diagnóstico em crianças com AVE he‑ morrágico, provavelmente por causa da maior gravidade dos sintomas. Os fatores de risco, manifestações clínicas e desfe‑ chos são diferentes da população adulta. A detecção precoce do AVE é fundamental para os profis‑ sionais de saúde, e tem potencial translacional para a aplica‑ ção de intervenções trombolíticas, neuroprotetoras e anti‑ trombóticas, bem como de reabilitação, melhorando a qualidade de vida dos pacientes e seus familiares. O propósito deste capítulo é avaliar os principais mecanis‑ mos fisiopatológicos que levam a criança a apresentar um AVE e revisar as mais recentes recomendações acerca do manejo dos quadros agudos. Definições Um AVE é caracterizado por manifestações clínicas e neuroló‑ gicas consistentes com essa doença juntamente de evidências radiológicas de isquemia ou infarto em determinado território arterial (AVE isquêmico) ou de hemorragia (AVE hemorrági‑ co). Sintomas de AVE que duram menos de 24 horas são cha‑ mados de ataques isquêmicos transitórios. Os AVE ainda são divididos em neonatais, que compreendem agravos pré-na‑ tais, perinatais (entre 28 semanas de gestação e 7 dias de vida) ou pós-natais, até 1 mês de vida; após essa faixa etária, há os AVE não neonatais ou da infância. A diferenciação entre agra‑
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vos pré-natais e perinatais clinicamente pode ser difícil, o que leva alguns autores a considerá-los em uma mesma categoria. Aspectos epidemiológicos A incidência de AVE em crianças é de aproximadamente 2 a 8 para 100 mil crianças até 14 anos de idade por ano, com distri‑ buição igualmente proporcional entre eventos hemorrágicos e isquêmicos. Excetuando-se o primeiro ano de vida, essa inci‑ dência pode cair pela metade. Dados americanos mostram o acometimento de 3.000 crianças por ano. Considerando-se os eventos perinatais e neonatais, a incidência aproximada é de 10 a 18 eventos para cada 100 mil nascidos vivos, com relatos recentes mostrando até 63/100 mil. Em razão das manifesta‑ ções clínicas distintas, das diversas causas possíveis e do bai‑ xo índice de suspeição habitual para AVE em pediatria, esses dados podem subestimar a real incidência de AVE nessa faixa etária. A recorrência do AVE em crianças pode chegar a 20% e, na presença de múltiplos fatores de risco, pode atingir 42%. Nos últimos anos, observou-se aumento na incidência dos AVE provavelmente por causa do aumento na acurácia diag‑ nóstica por meio de métodos de imagem. Além disso, o au‑ mento da sobrevida de crianças com doenças crônicas, como neoplasias, meningites, anemias e cardiopatias congênitas, também contribui para esse fato. Um levantamento demográfico americano realizado entre 1979 e 1998 mostrou queda importante na mortalidade por AVE em crianças, da ordem de 58%, tanto em eventos hemor‑ rágicos quanto isquêmicos. Esse estudo também demonstrou maior risco de mortalidade em crianças de raça negra (inclusi‑ ve quando excluídas aquelas com anemia falciforme), com ris‑ co relativo de aproximadamente 1,75 e nível de significância p < 0,001 e em crianças do sexo masculino (risco relativo de 1,21 com p < 0,001, excetuando-se eventos isquêmicos). Os AVE neonatais custam menos do que os da infância. AVE associados com doença cardíaca congênita ou vasculo‑ patias são mais custosos; custos mais elevados estão correla‑ cionados a piores desfechos e qualidade de vida. A etiologia
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do AVE influencia diretamente no custo do manejo do pa‑ ciente com AVE. Etiologia e fatores de risco Os fatores de risco para a ocorrência de AVE em pediatria são múltilplos e diferentes daqueles listados em adultos (p.ex., hi‑ pertensão, aterosclerose, tabagismo, obesidade). Entretanto, a maioria dos casos isquêmicos tem como denominador comum a presença de doenças de base, como anemia falciforme e car‑ diopatias congênitas ou adquiridas; entre os acidentes hemor‑ rágicos, as malformações vasculares e os traumas respondem pela maior parte dos casos. Podem-se citar, desse modo, os fa‑ tores de risco mais importantes para o AVE em pediatria: • doença cardíaca: congênita (estenose aórtica, defeitos de sep‑ to atrial ou ventricular, coarctação de aorta, persistência do canal arterial) ou adquirida (arritmias, endocardites, miocar‑ dites, doença reumática, mixoma atrial); • doenças hematológicas: anemia falciforme, leucemias ou lin‑ fomas, policitemia, trombocitose; • coagulopatias: deficiências de proteína S ou C, vitamina K, antitrombina III, fatores V de Leiden, VII ou XIII; anticoagu‑ lante lúpico, contraceptivos orais, gestação; • vasculites: pós-infecciosas (meningite, varicela, HIV, Mycoplasma), imunomediadas (púrpura de Henoch-Schönlein, lú‑ pus eritematoso sistêmico); pós-radiação ou quimioterapia; reações adversas a medicamentos; • anomalias vasculares: aneurismas, malformações arteriove‑ nosas, doença de moyamoya, dissecção arterial; • infartos venosos: trombose de seios venosos cerebrais, cho‑ que; • doenças metabólicas: encefalomiopatia mitocondrial, acido‑ se lática e episódios stroke-like (síndrome MELAS); homocis‑ tinúria e mutação no gene metileno-tetraidrofolato redutase (MTHFR); doenças mitocondriais; anomalias lipídicas; • vasoespasmo: migrânea, uso de drogas (cocaína, cola); • traumas e outras causas: hematomas subdural e epidural, he‑ morragia subaracnóidea, dissecção espontânea ou traumáti‑ ca, desidratação, tumor cerebral. Ganesan et al. publicaram em 2006 estudo demonstrando os principais fatores de risco para recorrência de eventos isquê‑ micos em crianças. Encontraram, na população de 212 crian‑ ças estudadas, 37% de recorrência clínica entre 1 e 11,5 anos após o primeiro evento. Em todas as crianças, a doença de mo‑ yamoya e o baixo peso ao nascer foram variáveis independen‑ tes de risco para recorrência. Estados pró-trombóticos tam‑ bém foram variáveis de risco inclusive em crianças sem o padrão angiográfico da doença de moyamoya. Associados também com recorrência radiológica foram descritos ataque isquêmico transitório prévio, infarto cerebral bilateral, doen‑ ças de base (principalmente imunodeficiência) e leucocitose. Acidente vascular encefálico no período perinatal Compreende o período entre 28 semanas de gestação e 28 dias de vida. Nessa faixa etária, as manifestações clínicas prescin‑
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dem ainda mais de especificidade, sendo as mais comuns con‑ vulsões, episódios de apneia e rebaixamento do nível de cons‑ ciência, as quais podem estar presentes em diversas condições graves nos recém-nascidos. Os eventos ocorridos nessa faixa etária correspondem a 25% dos acidentes isquêmicos e a 43% dos casos de trombose de seio venoso em pediatria. Fatores de risco independentes listados para AVE nesse período incluem a presença de lipoproteína A, mutação do fator V de Leiden, homocisteinemia, deficiência de proteína C, pré-eclâmpsia, restrição de crescimento intrauterino, ruptura prematura de membranas e corioamnionite. A gestação por si só aumenta os riscos de eventos trombóticos, principalmente pelas baixas concentrações encontradas de proteína S e proteína C ativada. Malformações arteriovenosas cerebrais também podem causar eventos hemorrágicos ainda no período intraútero e so‑ mente se manifestarem após com achados como aumento do perímetro cefálico ou hidrocefalia em um recém-nascido clíni‑ ca e neurologicamente normal. Os AVE respondem por aproximadamente 10% das crises convulsivas no período neonatal, manifestando-se preferen‑ cialmente como crises motoras focais envolvendo uma extre‑ midade. São eventos que têm relação estreita com sequelas cognitivas e/ou motoras durante a infância, sendo algum grau de alteração nessas esferas observado em 28 a 58% dos casos de AVE. Análise retrospectiva de Golomb et al. avaliou segui‑ mento de crianças com diagnóstico prévio de AVE perinatal e mostrou o preocupante dado de que, aos 6 meses de idade, aproximadamente 60% tinham o diagnóstico de epilepsia, com 1/3 delas, entretanto, com resolução das crises e sem ne‑ cessidade do uso de anticonvulsivantes. Acidente vascular encefálico e doença cardíaca Estudos mostram que algum tipo de anomalia anatômica car‑ díaca pode ser encontrado em proporção 2 a 3 vezes maior do que na população geral. Considerando doenças cardíacas em geral, elas podem ser responsáveis por até 1/3 dos eventos is‑ quêmicos em crianças. Entre as cardiopatias congênitas, as cianogênicas com shunt direita-esquerda têm maior chance de complicações como hipóxia, policitemia ou cianose e podem cursar com eventos isquêmicos cerebrais em até 4% dos casos. A maioria das crianças com AVE e doença cardíaca não está in‑ ternada no momento do AVE, e aproximadamente metade dos casos que foram submetidos à cirurgia cardíaca teve AVE mais de 5 anos após o procedimento cirúrgico mais recente; em estudo caso-controle realizado por Fox et al., cerca de 7% dos AVE isquêmicos e 2% dos AVE hemorrágicos foram atri‑ buídos à doença cardíaca congênita. No período pré-operatório, crianças com doenças congêni‑ tas graves com ou sem instabilidade hemodinâmica são de grande risco para comprometimento de pressão arterial e hi‑ poperfusão cerebral, ocasionada pela redução na pressão de perfusão cerebral por baixo débito cardíaco, arritmias ou per‑ sistência do canal arterial. Entretanto, o risco maior encontra-se no período periope‑ ratório das cirurgias cardíacas corretivas, principalmente com o uso de sistemas de circulação extracorpórea (CEC). Algum
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grau de disfunção neurológica pode ser encontrado em 25 a 45% das crianças após CEC em razão de três principais fatores: síndrome da resposta inflamatória sistêmica, micro e ma‑ croêmbolos e fluxo sanguíneo cerebral inadequado para a de‑ manda metabólica do órgão, como em períodos de hipotensão ou parada cardiorrespiratória. Considerando-se o diagnóstico estabelecido de AVE, essa incidência pode variar de acordo com os relatos entre 1 e 15%. A formação de trombina mediante ativação da cascata de coagulação pela inflamação sistêmica facilita sua ligação com receptores ativadores de proteases em monócitos e granulóci‑ tos, ocasionando a síntese de mediadores pró-inflamatórios, como fator de necrose tumoral, bradicininas e interleucinas 1 e 6, levando à posterior ativação do sistema de complemento e calicreínas, microvasculopatia e consequente redução no flu‑ xo sanguíneo cerebral. Além desses mecanismos, a geração de radicais livres de oxigênio pela ativação da enzima endotelial xantina-oxidase e por leucócitos também determina lesão do tecido cerebral. Adicionalmente, as membranas ativadas dos neutrófilos são grande fonte de prostanoides como prostaglandinas e tromboxane A2, que precipitam de maneira importante a agregação plaquetária. Chow et al. avaliaram fatores de risco associados à ocorrên‑ cia de AVE pós-CEC e encontraram correlações positivas esta‑ tisticamente significativas: idade da criança no momento ci‑ rúrgico, tempo total de CEC e menor tempo de tromboplastina parcial ativada no pré-operatório. Outros fatores importantes a serem citados incluem a hipo‑ termia acentuada durante a CEC que, apesar de seu efeito neu‑ roprotetor e da diminuição da taxa metabólica cerebral, tem uma série de efeitos deletérios; a pouca capacidade de autorre‑ gulação do fluxo sanguíneo cerebral durante o procedimento cirúrgico, por conta do débito cardíaco fixo e, por fim, as cons‑ tantes alterações no pH sanguíneo durante a hipotermia, que tende à alcalemia com consequente menor disponibilidade de oxigênio para os tecidos e maior suscetibilidade à hipóxia. De acordo com Miller et al., as consequências neurológicas que podem advir dos mecanismos citados no período pós‑ -operatório, desde leves atrasos de desenvolvimento neuropsi‑ comotor a grave lesão cerebral, e podem ser observados em 23 a 60% das crianças. Outro fator de risco relacionado ao AVE nesse item são as endocardites bacterianas, com a formação de êmbolos sépti‑ cos e complicações isquêmicas cerebrais. A incidência não é conhecida em crianças, porém em adultos é relatada incidên‑ cia de até 40% de eventos neurológicos associados. Estudos evidenciam bom prognóstico nesse grupo de risco, com menor chance de sequelas motoras com o tratamento da endocardite.
para 1% dos casos entre 2 e 5 anos, e é de 0,79% dos 6 aos 9 anos de idade. Estudo retrospectivo mostrou que os AVE em crianças falcêmicas podem ser até 280 vezes mais frequentes do que na população pediátrica comum. Considerando-se apenas o achado aleatório de imagens sugestivas de isquemia cerebral obtidas em estudos de ressonância nuclear magnéti‑ ca (RNM), podem-se encontrar lesões em até 22% das crian‑ ças doentes. O AVE associado à doença falciforme é uma entidade única, que reflete as anormais interações entre o endotélio arterial cerebral e as hemácias falcizadas. Lesão endotelial, ativação da coagulação e resposta inflamatória são implicadas na gêne‑ se da vasculopatia cerebral. São relatados como possíveis fatores de risco, ocorrência prévia de ataques isquêmicos transitórios, altas velocidades de fluxo sanguíneo ao Doppler transcraniano, hipertensão ar‑ terial, histórico prévio de síndrome torácica aguda, níveis bai‑ xos basais de hemoglobina e alta contagem de leucócitos, sen‑ do esta última relevante inclusive para os raros, porém existentes, eventos hemorrágicos nas crianças falcêmicas. Apesar de a vaso-oclusão da microcirculação ser importan‑ te causa de morbidade na anemia falciforme, a doença vascu‑ lar cerebral manifesta-se como uma vasculopatia de grandes vasos, com localizações preferenciais distais à artéria carótida interna e nas porções proximais das artérias cerebrais média e anterior. Gerald et al. estudaram, no início da década de 1980, angiografias cerebrais de crianças falcêmicas que demostra‑ ram que as lesões descritas atingiam, em graus variáveis, até 80% dos pacientes. Esses achados são corroborados por ima‑ gens de angiorressonância que, na mesma proporção, mos‑ tram porcentagens elevadas de oclusões distais de grandes va‑ sos. Achados histológicos característicos incluem proliferação fibroblástica das camadas íntimas arteriais com descontinui‑ dade da lâmina elástica interna com vasodilatação. A combi‑ nação de dilatação arterial com fragilidade no suporte elástico é que confere também propensão para eventos hemorrágicos, aspecto semelhante ao encontrado na doença de moyamoya. Infartos de grandes proporções no território da artéria cere‑ bral média, secundário à lesão carotídea, são achados comuns. Pequenas lesões, entretanto, também são encontradas envol‑ vendo os gânglios da base e a substância branca. No período de 4 anos, dois estudos encontraram altas taxas de recorrências para AVE em crianças falcêmicas próximas dos 30%. Não há tratamento específico preventivo para o AVE nessa população. O uso de hidroxiureia, mais comum em crianças com crises álgicas recorrentes ou síndrome torácica aguda, apesar de praticado em centros ao redor do mundo, não pode ser encorajado de forma rotineira.
Acidente vascular encefálico e anemia falciforme A anemia falciforme é um dos principais fatores de risco para a instalação de um quadro encefálico isquêmico, sendo as inci‑ dências variáveis conforme a faixa etária da criança. Em crian‑ ças abaixo de 2 anos, a incidência é de 0,13%, aumentando
Acidente vascular encefálico e doença de moyamoya A doença de moyamoya (termo japonês para “nuvem de fumaça”, referente ao aspecto observado em estudos angiográficos dos ra‑ mos colaterais arteriais) é caracterizada por estenose crônica e progressiva da porção distal intracraniana da artéria carótida in‑
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terna e, com menor frequência, estenose das porções proximais das artérias cerebrais anterior e média, basilar ou posterior. É responsável por até 6% dos casos de AVE nos países ocidentais; entretanto, é nas crianças orientais que ela tem maior incidência, chegando a 3 casos para 100 mil crianças/ano, sendo o dobro dos casos em meninas. Estima-se que na população ocidental a incidência seja aproximadamente 10 vezes menor. São necessários, para o diagnóstico, a presença de estenose envolvendo a região distal da bifurcação da artéria carótida in‑ terna e porções proximais das artérias cerebrais média e ante‑ rior, o achado de ramos colaterais arteriais e a característica de alterações bilaterais. Essa definição é motivo de controvérsia, tendo Sebire et al., em 2002, proposto que o achado de este‑ nose unilateral, associado ao achado de ramos colaterais com aspecto típico, também define a doença. Denomina-se doença de moyamoya o achado desses aspectos radiológicos sem a presença de fatores de risco, e síndrome de moyamoya a asso‑ ciação do padrão descrito com fatores como anemia falcifor‑ me, neurofibromatose ou infecções. Nesta última condição, Dobson et al. analisaram retrospectivamente 44 crianças com doença falciforme e, naquelas com síndrome de moyamoya, a chance de recorrência de eventos isquêmicos cerebrais em longo prazo foi quase duas vezes maior do que no grupo sem o padrão radiológico. Do ponto de vista histológico, a prolifera‑ ção da camada íntima das artérias, fibrose e perda de elastici‑ dade determinam a progressiva obstrução luminal arterial. A patogênese da doença é pouco conhecida, mas existem evidências, pelo acometimento de parentes em primeiro grau orientais variando entre 7 e 12%, que fatores genéticos desem‑ penham papel importante. Pacientes com moyamoya tendem a ter eventos isquêmicos recorrentes; os ataques isquêmicos transitórios são usualmente relacionados a períodos de hiper‑ ventilação, sugerindo que a hipoperfusão, e não os eventos va‑ so-oclusivos, são mecanismos desencadeantes principais. Aproximadamente 2/3 dos pacientes com a doença, quan‑ do não tratados, apresentam eventos neurológicos isquêmi‑ cos recorrentes. O prognóstico nessa doença está relacionado a rapidez e extensão da oclusão vascular, grau de circulação colateral, idade de aparecimento dos sintomas, grau de déficit neurológico e extensão da área isquêmica cerebral em estu‑ dos de imagem. Dissecção arterial cervicocefálica Esta condição é encontrada em cerca de 7% das crianças com AVE isquêmico, mas pode ser subdiagnosticada. Fatores pre‑ disponentes para dissecção incluem doença do tecido con‑ juntivo (síndrome de Marfan, Ehlers-Danlos, displasia fibro‑ muscular), bem como trauma, mas parte dos casos não tem etiologia definida. Evidências de autópsia sugerem que algu‑ mas arteriopatias intracranianas podem ser secundárias à dissecção intracraniana. Acidente vascular encefálico e condições pró-trombóticas Em eventos isquêmicos, o achado de doença pró-trombótica pode ocorrer em até 50% dos casos. As principais condições
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associadas são as deficiências de proteína C e S, antitrombina III e plasminogênio, além de mutações no fator V de Leiden, polimorfismos da enzima metileno-tetraidrofolato desidroge‑ nase (causa importante de homocistinúria), homocisteinemia e altos níveis de lipoproteína A. A mutação do fator V de Leiden consiste na substituição de um aminoácido que promove resistência à sua inativação pela proteína C ativada, favorecendo a sequência de eventos que culmina na coagulação e na formação de fibrina. Crianças he‑ terozigotas para essa mutação têm risco 7 vezes maior para de‑ senvolverem eventos isquêmicos. Revisão sistemática publicada em 2002 mostra que as alte‑ rações laboratoriais citadas estão presentes em maior número em crianças com AVE quando comparadas às crianças sem a doença, o que justifica a pesquisa de trombofilias em crianças vítimas de primeiro evento isquêmico. Acidente vascular encefálico hemorrágico Este termo inclui hemorragia intraparenquimatosa espontâ‑ nea e hemorragia subaracnóidea não traumática. São citadas como causas principais em análises retrospectivas a presença de malformações arteriovenosas, doenças hematológicas (cursando com plaquetopenia; hemofilia e outras coagulopa‑ tias), neoplasias do sistema nervoso, hemangiomas caverno‑ sos, vasculopatias e infecções cerebrais e sistêmicas. Conside‑ rando-se as hemorragias intraparenquimatosas, as malformações arteriovenosas podem responder por até meta‑ de dos casos observados. Nos casos de desordens hematológi‑ cas, pacientes com púrpura trombocitopênica imunológica têm risco de 0,1 a 1% para desenvolvimento de um evento he‑ morrágico, sendo esse risco diretamente proporcional à conta‑ gem plaquetária, conforme demonstrado por Butros et al. em 2003. Cerca de 71% das crianças descritas nessa análise retros‑ pectiva tinham contagens plaquetárias < 10.000/mm3. Em 2003, Meyer-Heim et al. listaram como fatores associa‑ dos à recorrência de eventos hemorrágicos, em análise retros‑ pectiva de 34 crianças com eventos hemorrágicos espontâ‑ neos, a idade da criança (menor de 3 anos), escala de coma de Glasgow menor ou igual a sete, hemorragia de localização in‑ fratentorial e doença hemorrágica de base. O avanço das técnicas neurocirúrgicas e o diagnóstico pre‑ coce por imagem têm diminuído de maneira importante a morbimortalidade associada ao AVE hemorrágico em crian‑ ças. Estudos mostram que as taxas de mortalidade são altas e variáveis, podendo atingir até 54%, sendo observadas seque‑ las neurológicas importantes em aproximadamente 42% das crianças sobreviventes. Outras causas de acidente vascular encefálico em pediatria Vasculites, sendo a maioria em crianças, proveniente de even‑ tos infecciosos, são de difícil diagnóstico pela baixa especifici‑ dade dos métodos diagnósticos. O diagnóstico deve ser sus‑ peitado em eventos recorrentes ou associados com febre, eventos multifocais, lesões de pele associadas, glomerulopa‑ tias ou provas inflamatórias elevadas. Infecções como menin‑
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gite tuberculosa, encefalopatia pós-varicela, aspergilose, in‑ convulsões no período neonatal e convulsões em criança no fecções fúngicas ou por vírus outros, como HIV e Coxsackie, período pós-operatório de cirurgia cardíaca. podem estar envolvidos nessa situação. Vasculites de origem No período neonatal, a ocorrência de convulsões é o acha‑ autoimune, como em crianças com lúpus eritematoso sistê do clínico mais frequente, como já descrito, embora possa es‑ mico, podem provocar lesões isquêmicas por diversos meca‑ tar ausente, segundo estudos realizados em necrópsias, em nismos, como a liberação de êmbolos por endocardite supera‑ até 60% dos casos de AVE documentados. As crises costu‑ juntada, presença de anticorpos antifosfolípide e pela mam ocorrer sem relação com outros achados neurológicos re‑ vasculopatia comumente associada a esses quadros. lacionados à encefalopatia. Outros sinais e sintomas gerais Em crianças com varicela, o primeiro ano após a infecção é de costumam estar presentes, como hipotonia, letargia ou ap‑ maior risco para a ocorrência de AVE. Vasculopatia inflamatória, neia. A presença de convulsões nos primeiros momentos do provavelmente associada pela migração do vírus pelo nervo tri‑ diagnóstico parece predispor a criança à epilepsia na vida fu‑ gêmeo e pela vasculatura cervical, é o mecanismo associado. O tura, o que ocorre em 8 a 12% dos casos. De fato, alterações clí‑ mesmo mecanismo de vasculite foi recentemente implicado em nicas como hemiparesias estão presentes em menos de 25% relato de caso de paciente em idade escolar com dengue diag‑ dos recém-nascidos com AVE. nosticada e AVE isquêmico, levantando a hipótese de considerar Nessa mesma população, o achado de abaulamento de fon‑ dengue como etiologia diferencial em locais epidêmicos. tanela, associado ou não à sua pulsatilidade, com dilatação ve‑ As tromboses dos seios venosos da dura-máter apresen‑ nosa de cabeça ou cervical, deve atentar para a possibilidade tam-se como manifestações frequentes de AVE no período de trombose de seios venosos. É um indicador comum da neonatal, usualmente com crises convulsivas e letargia. Dis‑ ocorrência de AVE no período neonatal o aparecimento tardio junções e acavalgamento das suturas cranianas durante o nas‑ de hemiparesia, em geral entre 4 e 8 meses de vida. cimento podem acometer as estruturas dos seios cerebrais, À medida que progride a faixa etária, a sintomatologia cos‑ aumentando o fator de risco para AVE. A maior parte das tuma ser semelhante à dos adultos, sendo os sinais e sintomas tromboses está localizada no seio sagital superior com ou sem mais descritos, a hemiparesia, alteração do nível de consciên‑ trombose sinusal bilateral associada. O achado de asfixia peri‑ cia e alterações clínicas referentes à lesão de nervos cranianos. natal é comum concomitantemente ao de trombose de seio Há relatos de séries de casos, em crianças maiores de um mês, venoso, podendo inclusive ser fator de risco para ela. Altera‑ da ocorrência de hemiparesia variando entre 85 e 100%. De‑ ções de coagulação são encontradas em até 20% dos recém‑ mais sintomas incluem hemiplegia, monoparesia, disfasia, ce‑ -nascidos com essa condição. Recente estudo colaborativo faleia, tontura e distúrbios visuais. Zimmer et al. encontraram, em revisão de 2007, propor‑ multicêntrico internacional (International Paediatric Stroke Study) demonstrou em 170 crianças os principais fatores de ções semelhantes de crianças com convulsões ou déficits fo‑ risco para AVE secundário à trombose venosa – doença crôni‑ cais (45% em cada grupo) na faixa etária abaixo de 1 ano. Nas ca em 50% dos casos, doença aguda sistêmica de cabeça ou demais crianças, déficits focais foram quase 7 vezes mais fre‑ quentes que convulsões. pescoço em 41%, doenças pró-trombóticas em 20% e outras anormalidades hematológicas em 19% dos casos; 43% das Doenças metabólicas, como a síndrome MELAS, caracteri‑ crianças tinham alterações neurológicas após a alta. zam-se pela ocorrência de AVE com completa resolução do Pacientes com diagnóstico de enxaqueca com aura podem quadro neurológico entre os eventos, persistindo, após os ter maior risco de desenvolver eventos isquêmicos, principal‑ anos, a ocorrência de sequelas, principalmente visuais. mente no início da adolescência e em meninas em uso de con‑ traceptivos orais; entretanto, essa associação é incerta. Estu‑ Diagnóstico diferencial dos de RMN em crianças com enxaqueca mostram que lesões Todas as síndromes que mimetizam quadros clínicos de AVE de substância branca em pacientes pediátricos com enxaque‑ devem ser potencialmente tratadas como emergências clíni‑ cas e discutidas prontamente com neurologista e neurocirur‑ ca e aura não são mais comuns do que em pacientes controle. Outras situações clínicas como hipertensão, dislipidemia e gião. Devem ser consideradas as seguintes hipóteses no ma‑ diabete melito em crianças não guardam relação estatistica‑ nejo do diagnóstico diferencial: mente comprovada com o aumento da incidência de AVE, ne‑ • lesões não acidentais: hematoma subdural; • leucoencefalopatia posterior: hiper ou hipotensão e após uso cessitando de mais estudos para essa comprovação. de imunossupressores; Manifestações clínicas • edema cerebral unilateral, que pode ser secundário a diabete melito ou hiperamonemia (insuficiência hepática aguda, defi‑ As manifestações clínicas dos AVE em pediatria são variadas e ciência de ornitina carbamil-transferase); muitas vezes pouco específicas, o que pode levar à dificuldade e ao atraso diagnóstico que contribuem para o insucesso do • migrânea: sempre diagnóstico de exclusão, uma vez que os sintomas são semelhantes aos apresentados na fase aguda tratamento. Crianças que apresentem uma das seguintes ca‑ do AVE; racterísticas clínicas devem obrigatoriamente ser avaliadas quanto à possibilidade de AVE: início agudo de déficit neuro‑ • paresia de Todd (pós-ictal): costuma ter curta duração e sua evolução deve ser acompanhada por exames de imagem se‑ lógico focal de qualquer duração; alteração inexplicada no ní‑ riados; vel de consciência, principalmente na vigência de cefaleia;
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• encefalomielite disseminada; • meningoencefalites (herpes vírus); • neoplasias de SNC. Métodos diagnósticos por imagem O diagnóstico do AVE em crianças pode se revestir de dificul‑ dades técnicas relacionadas ao grau da lesão cerebral e à sua localização. A tomografia de crânio (TC) é considerada pela maioria dos autores o método de imagem inicial mais adequa‑ do pela sua rapidez, praticidade e disponibilidade, visualizan‑ do com distinção eventos hemorrágicos e diferenciando-os dos isquêmicos. Além disso, depende menos da estabilidade clínica da criança para realização, condição que muitas vezes contraindica o exame de RNM em fase inicial da doença. A ultrassonografia de crânio no período neonatal é útil para avaliar hemorragia intraventricular e da matriz germinativa, porém não tem boa sensibilidade para eventos isquêmicos, principalmente em córtex posterior, bem como para AVE cere‑ belares. Em crianças com suspeita de dissecção arterial extra‑ craniana, também pode detectar anormalidades no fluxo san‑ guíneo cerebral. Em crianças com anemia falciforme, o uso do Doppler transcraniano fornece informações úteis sobre a velocidade de pico de fluxo sanguíneo nas porções terminais da artéria caró‑ tida interna ou proximais da artéria cerebral média, demons‑ trando maior risco de AVE quando a velocidade ultrapassa 200 cm/s. Entretanto, estudos mostram que velocidades me‑ nores, por volta de 128 cm/s, já indicam maior risco e reque‑ rem estudos de imagem detalhados. O Doppler pode contri‑ buir para reduzir de maneira significativa a morbidade e mortalidade em crianças com anemia falciforme. Steen et al. encontraram, em estudo retrospectivo, incidên‑ cias altas de alterações radiológicas em crianças com anemia falciforme. Em 35% das crianças estudadas, as quais não ti‑ nham diagnóstico prévio de AVE, foram encontradas evidên‑ cias radiológicas de infarto cerebral. Além disso, a ocorrência de lesões vasculares em crianças com padrão de hemoglobina SC foi muito menor do que naquelas com hemoglobina SS (15% versus 50%, respectivamente, com nível de significância p < 0,001). Recomendações brasileiras publicadas em 2011 sugerem o uso do Doppler para prevenção primária do AVE em crianças falciformes, independentemente do genótipo da doença, mas com prioridade para pacientes SS ou HbS/talassemia beta, para pacientes entre 2 e 16 anos de idade. A angiorressonância magnética é considerada o exame pa‑ drão-ouro para o diagnóstico não apenas da lesão cerebral, como da possível obstrução e/ou lesão vascular que desenca‑ deou o evento isquêmico. Quando realizada precocemente, permite detecção de infartos cerebrais em início de evolução bem antes do estudo tomográfico e deve sempre ser indicada se houver confirmação de lesão isquêmica por qualquer méto‑ do prévio de imagem. A angiografia digital cerebral deve ser considerada sempre que achados negativos ou conflitantes fo‑ rem obtidos pela RNM ou quando não é encontrada evidência radiológica ou laboratorial da causa do AVE na criança. Tam‑
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bém é recomendada sua indicação em crianças com doença de moyamoya que se encontram em programação cirúrgica de re‑ vascularização. O padrão de infarto cerebral pode ser sugestivo da etiologia do AVE quando observada em exame de imagem. O achado de múltiplos infartos em áreas de distribuição arterial diferentes sugerem evento tromboembólico; infartos occipitais e parie‑ tais com áreas de intersecção entre territórios venosos são co‑ muns na síndrome MELAS; a distribuição isquêmica entre territórios de irrigação de diferentes artérias cerebrais (zonas de “fronteira”) é comum em eventos hipotensivos, e o padrão de pequenas lesões multifocais, principalmente na transição entre substância branca e cinzenta, sugere vasculite. A angiografia convencional é superior às outras modalida‑ des de imagem vascular, como angiotomografia ou angiorres‑ sonância, para doenças como vasculites, dissecções arteriais intracerebrais e aneurismas. Vale ressaltar que os principais riscos inerentes à angiografia são a utilização de contraste io‑ dado e seus riscos de nefrotoxicidade e hipersensibilidade, além da necessidade de punção arterial, normalmente femo‑ ral, com riscos de lesão vascular, sangramento e tromboembo‑ lia. Demais exames subsidiários Exames hematológicos, reumatológicos, hematológicos e car‑ díacos devem ser realizados com o objetivo de encontrar pos‑ síveis fatores etiológicos para o quadro de AVE. A Tabela 1 sin‑ tetiza os principais exames a serem realizados na admissão da criança e suas respectivas utilidades. A utilização do ecocardiograma com infusão endovenosa de soro fisiológico durante a realização do exame pode detec‑ tar, entre outras anormalidades cardíacas, a presença da pa‑ tência do forame oval que, ao permitir shunt unidirecional, au‑ menta a chance de eventos embólicos. Estudos demonstram que a incidência dessa anomalia pode ser até 4 vezes maior em crianças com AVE sem etiologia deteminada do que na po‑ pulação geral. Incluídos no diagnóstico diferencial de AVE estão outras causas de déficit neurológico agudo, como convulsões, trau‑ ma, migrânea, obstrução ventricular em casos de hidrocefalia, abscesso cerebral, doenças metabólicas, reações à drogas, me‑ ningites, síncope e intoxicação medicamentosa. Tratamento Não existe até o momento qualquer abordagem uniforme ou que reúna evidências baseadas em estudos duplo-cegos e randomizados que indiquem recomendações específicas para o tratamento dos casos de AVE em pediatria. Diversos grupos de pesquisadores publicaram, em 2004, dois artigos de revisão com recomendações para o tratamento e conduta do AVE. A maioria dos itens, nas duas revisões, é concordan‑ te justamente no fato de a falta de estudos randomizados e controlados não permitir recomendações inequívocas. Em setembro de 2008, equipe de especialistas publicou artigo de revisão na revista Stroke agrupando as principais evidências baseadas até o momento.
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Tabela 1 Exames auxiliares no diagnóstico do AVE em crianças Exame
Comentários
Avaliação de doença cardíaca: ECG, ecocardiograma e RX de tórax
Avaliar fontes de êmbolos, arritmias e anormalidades estruturais Carece de especificidade se não houver achados clínicos de doença cardíaca
Hemograma completo
Achados inespecíficos para doença falciforme, anemia, plaquetopenia e doenças infecciosas
Coagulograma
Avaliação de desordens de coagulação congênitas ou adquiridas (doença hepática, monitoração de anticoagulação)
Fator antinúcleo
Triagem inicial para diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico; muito sensível e pouco específico
Eletroforese de hemoglobina
Em razão de anemia falciforme ser etiologia de risco para eventos isquêmicos cerebrais
Punção lombar
Detecção de meningites e/ou encefalites em crianças sem sinais clínicos e radiológicos de hipertensão intracraniana
Lipidograma
Avaliação de fatores de risco adicionais
Screening para estados de hipercoagulabilidade
Dosagem de proteína C, S, antitrombina III, anticoagulante lúpico, anticardiolipina, homocisteína urinária
Lactato e piruvato arteriais
Comumente aumentados na doença mitocondrial MELAS (miopatia mitocondrial, encefalopatia, acidose láctica e episódios stroke-like)
Sorologia para HIV
Causa conhecida de AVE
Screening toxicológico
Em crianças de risco
Eletrólitos, função renal, gasometria arterial e demais análises bioquímicas
Análise completa do paciente e monitoração clínica
RX: radiografia; ECG: eletrocardiograma; HIV: vírus da imunodeficiência humana.
As principais medidas iniciais baseiam-se na estabilização morrágico é comum e deve ser manejada com métodos de dre‑ da criança desde o momento da admissão à emergência até o nagem ventricular quando persistente ou de grande volume. tratamento em terapia intensiva. Diferentemente dos adultos, Nessa mesma faixa etária, não há recomendações em eventos os quadros de AVE em crianças dificilmente manifestam-se isquêmicos comprovados em virtude da falta de estudos con‑ como quadros sistêmicos graves que requeiram medidas ime‑ trolados que atestem a segurança e eficácia, nem em recém‑ diatas de ressuscitação; entretanto, assegurar a permeabilida‑ -nascidos com diagnóstico de trombose de seios venosos. de das vias aéreas, fornecer uma oxigenação com ventilação e A utilização de anticoagulantes e de heparina em recém‑ circulação adequados são fundamentais nos passos iniciais. -nascidos com AVE perinatal é rara. Entretanto, pode haver be‑ O controle metabólico, hídrico e da temperatura corpórea nefício naqueles com desordens pró-trombóticas confirmadas revestem-se de extrema importância. Não há em pediatria es‑ graves e com múltiplos êmbolos sistêmicos. Os primeiros es‑ tudos que atestem segurança e eficácia da utilização da hipo‑ tudos não mostram complicações do uso de heparina de baixo termia como medida clínica auxiliar no sentido da redução da peso molecular em recém-nascidos com trombose de seios ve‑ taxa metabólica cerebral; sendo assim, seu uso não pode ser nosos. É importante salientar que não há evidências do bene‑ indicado rotineiramente. O controle da glicemia em crianças fício do uso de anticoagulantes nessa categoria de pacientes, gravemente doentes também carece de protocolos específicos exceto em casos de múltiplas tromboses evidenciadas por e de estudos controlados; entretanto, inúmeras evidências re‑ exames de imagem e de evidências de progressão do quadro centes apontam para o fato de que a hiperglicemia em crian‑ trombótico a despeito da instituição de terapia de suporte. ças graves piora de maneira significativa a morbimortalidade. Em crianças com anemia falciforme, as medidas iniciais Dessa forma, esforços no sentido de manter a glicemia dentro são semelhantes, com atenção especial à correção da hidrata‑ dos limites da normalidade devem ser sempre mantidos. Não ção, hipoxemia e hipotensão. A maioria dos autores indica a há indicação rotineira para o uso de anticonvulsivantes em transfusão sanguínea em casos agudos de AVE, no sentido de crianças com AVE isquêmico sem a presença de crises convul‑ reduzir os níveis circulantes de HbS abaixo de 30% e manter sivas na apresentação. Desidratação e anemia são fatores de os níveis de hemoglobina entre 10 e 12,5 g/dL. Entretanto, o risco isolados para a ocorrência de eventos isquêmicos, princi‑ uso da hidratação e transfusão não tem eficácia comprovada palmente aqueles trombóticos no período neonatal, e devem por estudos controlados, por ser prática consagrada na litera‑ ser manejados separadamente em todos os casos. tura. A transfusão evita o risco teórico de aumento da viscosi‑ Em recém-nascidos com eventos hemorrágicos, deve-se dade que pode acompanhar rápidos aumentos no hematócrito. observar a manutenção dos níveis de plaquetas próximos da Hipoxemia e hipotensão devem ser tratados e a normoglice‑ normalidade e repor, em casos específicos, fatores de coagula‑ mia deve ser objetivada. Além disso, a criança deve ser sub‑ ção e vitamina K, quando necessário. Não há evidências de metida a um programa regular de transfusões como medida que a drenagem precoce de hematomas contribua para redu‑ preventiva na redução de eventos isquêmicos secundários à ções significativas da pressão intracraniana nem melhore o anemia falciforme, tomados os devidos cuidados com a conse‑ prognóstico em longo prazo. A hidrocefalia após evento he‑ quente sobrecarga de ferro. Descrita também como outra me‑
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dida preventiva importante, a realização periódica anual de Doppler transcraniano em crianças de 2 a 16 anos (em casos de exame normais) é recomendada, sendo útil menor periodici‑ dade em caso de exames alterados, com velocidade de fluxo arterial > 200 cm/s (apesar de evidências recentes recomen‑ darem cortes em fluxos menores). É descrita a prevenção de 90% da ocorrência de AVE em crianças assintomáticas com al‑ tas velocidades de fluxo ao exame de Doppler e submetidas a programas regulares de transfusão sanguínea. Medidas sem evidência significativa, mas que podem ser utilizadas em ca‑ sos refratários e/ou recorrentes, incluem uso de hidroxiureia (principalmente em crianças inelegíveis para múltiplas trans‑ fusões), transplante de medula óssea e até cirurgias de revas‑ cularização, especialmente em pacientes com múltiplas le‑ sões arteriais e eventos de difícil controle a despeito do correto manejo clínico. Crianças com doença de moyamoya beneficiam-se de re‑ vascularização cirúrgica, principalmente aquelas com sinto‑ mas neurológicos progressivos ou evidência de fluxo sanguí‑ neo inadequado e/ou circulação colateral quando não há contraindicação cirúrgica. O uso de anticoagulantes não é re‑ comendado de rotina pelo risco de evento hemorrágico e pela dificuldade na manutenção de níveis terapêuticos em crian‑ ças. Em casos de AVE hemorrágico, a consulta ao neurocirur‑ gião associada à investigação por imagem com angiorresso‑ nância magnética ou angiografia convencional são indipensá‑ veis na tentativa de se obter a possibilidade de manejo cirúrgico. Distúrbios de coagulação e plaquetas devem ser prontamente corrigidos. Nesse grupo de pacientes, nenhuma ação terapêutica é eficaz de maneira isolada. Uso de anticoagulantes O uso de heparina de baixo peso molecular (HBPM) ou hepa‑ rina não fracionada não tem ainda eficácia e segurança com‑ provadas na faixa etária pediátrica, exceto por alguns relatos de casos que demonstraram segurança na prevenção de even‑ tos trombóticos pós-AVE isquêmico. Em crianças com alto ris‑ co de recorrência de embolia de origem cardíaca, trombose de seios venosos ou estados de hipercoagulabilidade, recomen‑ da-se o uso de heparina de baixo peso molecular e, em crian‑ ças após evento isquêmico sem origem determinada, pode-se considerar seu uso de maneira individual. Inicia-se a adminis‑ tração por via subcutânea na dose de 2 mg/kg/dia, monito‑ rando-se a resposta terapêutica com a dosagem do antifator X ativado em amostra colhida de 4 a 6 horas após a administra‑ ção de heparina, uma vez que o tempo de tromboplastina par‑ cial ativada não reflete a atividade da heparina. Nesse grupo de crianças, o uso de warfarina deve continuar o processo de anticoagulação no longo prazo. A maior parte das informações sobre terapia antitrombóti‑ ca foi extrapolada de estudos na população adulta. A compa‑ ração entre HBPM e ácido acetilsalicílico (AAS) para preven‑ ção secundária do AVE foi realizada em pequeno estudo prospectivo não randomizado, sem diferenças na recorrência do AVE ou no risco de sangramento. As recomendações atuais
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sugerem que o uso do AAS é seguro em crianças com AVE não secundário à anemia falciforme e sem risco de eventos embó‑ licos recorrentes ou hipercoagulabilidade grave. Em 2004, recomendações da American College of Chest Physicians incluíram a administração de HBPM ou heparina não fracionada, excetuando-se as crianças com anemia falci‑ forme, por 5 a 7 dias, até a exclusão de eventos tromboembóli‑ cos ou dissecção arterial como causa do AVE. Nesses dois últi‑ mos grupos de pacientes, a anticoagulação deve ser mantida por 3 a 6 meses e, após o término, o uso de AAS deve ser insti‑ tuído como prevenção secundária. Essa recomendação con‑ trasta com a do Royal College of Physicians, de 2004, que indi‑ ca a utilização do AAS como tratamento inicial a despeito da terapêutica anticoagulante. Coorte prospectivo publicado em 2001 por Sträater et al. mostrou não haver diferença na recor‑ rência de eventos isquêmicos entre crianças no longo prazo que utilizaram como profilaxia secundária HBPM ou AAS. A American Heart Association recomenda, para crianças com risco de embolismo de origem cardíaca, o uso de HBPM ou warfarina por pelo menos 1 ano ou até a correção da causa de base. As recomendações mais recentes de 2008 indicam, exceto em crianças com anemia falciforme, a administração de AAS como medida de prevenção secundária para eventos isquêmi‑ cos, na dose diária de 3 a 5 mg/kg. Em adultos, essa medida mostrou-se igualmente eficaz quando comparada à adminis‑ tração de warfarina; entretanto, esse dado não está disponível em crianças com estudos randomizados e controlados. Trombólise O verdadeiro número de crianças elegíveis para trombólise no AVE pediátrico é ainda desconhecido e talvez baixo, por causa do atraso na procura ao serviço de emergência e no diagnósti‑ co, além de possíveis comorbidades existentes que podem im‑ pedir o método. Entretanto, no que se refere ao AVE na popu‑ lação adulta, apenas duas intervenções são claramente benéficas na redução da morbimortalidade decorrente da doença – a alteplase e o acompanhamento em unidades espe‑ cializadas no tratamento do AVE. Relatos de casos isolados são os trabalhos disponíveis para avaliar segurança e eficácia da trombólise com alteplase em casos de AVE isquêmico em crianças. Além disso, há relatos de hemorragia maciça em crianças por uso de alteplase para trombólise extracerebral de até 11%. Desse modo, a trombólise química, pela ausência de estudos controlados e pouca expe‑ riência em crianças, não é recomendada como prática na abor‑ dagem de eventos isquêmicos agudos. Estudos recentes suge‑ rem maior risco de eventos hemorrágicos e mortalidade com trombólise em crianças, comparada a adultos. Conclusões Verifica-se que a ocorrência de AVE em pediatria é condiciona‑ da à etiologia multifatorial, na maioria dos casos associada a doenças de base, e pode se revestir de dificuldade diagnóstica por causa da baixa especificidade de sintomas principalmente em faixas etárias pediátricas mais jovens. Também dependen‑
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tes da doença de base e da extensão da lesão cerebral, seque‑ las neurológicas em longo prazo e acometimento do desenvol‑ vimento neuropsicomotor são frequentes, bem como as taxas de recorrência, o que justifica o diagnóstico precoce e a insta‑ lação de medidas preventivas, de maneira primária ou secun‑ dária, para reduzir essas complicações. Não há esquemas uni‑ formes de tratamento propostos para a abordagem do AVE em crianças até o momento, sendo a maioria dos dados consenso de especialistas e extrapolados da literatura de pacientes adul‑ tos. O maior treinamento dos pediatras para o reconhecimen‑ to precoce de sinais e sintomas pode contribuir para o diag‑ nóstico rápido e redução nas sequelas. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Definir adequadamente o AVE. • Saber quais os fatores de risco e etiologia. • Identificar as manifestações clínicas para o diagnóstico diferencial. • Identificar quais exames de imagem devem ser solicitados adequadamente. • Estabelecer tratamento adequado, principalmente em relação ao uso de anticoagulantes.
Bibliografia 1.
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Ortopedia COORDENADOR
Miguel Akkari
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COORDENADOR E AUTORES SEÇÃO 24 ORTOPEDIA
Coordenador Miguel Akkari Especialista e Mestre em Ortopedia e Traumatologia e Doutor em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (FCMSCSP). Professor Doutor e Chefe do Grupo de Ortopedia e Traumatologia Pediátrica da FCMSCSP. Médico Responsável pela Ortopedia e Traumatologia Pediátrica do Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM). Membro da Diretoria da Sociedade Brasileira de Ortopedia Pediátrica (SBOP). Membro da Sociedade Brasileira de Artroscopia (SBA). Autores Alexandre Francisco de Lourenço Doutor em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Assistente da Disciplina Ortopedia Pediátrica da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Unifesp. Cláudio Santili Professor Adjunto da FCMSCSP. Professor Sênior do Grupo de Ortopedia e Traumatologia Pediátrica da FCMSCSP. Membro Fundador da SBOP.
José Antonio Pinto Professor Adjunto Chefe da Disciplina Ortopedia Pediátrica da EPM-Unifesp. Rui Maciel de Godoy Junior Mestre e Doutor em Ortopedia e Traumatologia USP. Coordenador da Preceptoria do HC-FMUSP. Simone Battibugli Médica-assistente da Disciplina Ortopedia Pediátrica da EPM-Unifesp. Ortopedista Pediátrica no Children’s Medical Centre, Emirados Árabes Unidos. Susana dos Reis Braga Mestre em Ortopedia pela FCMSCSP. Assistente do Grupo de Ortopedia e Traumatologia Pediátrica da FCMSCSP. Preceptora da Ortopedia Pediátrica no Hospital Beneficente Nossa Senhora do Pari. Vanessa Ribeiro de Resende Especialista em Ortopedia e Traumatologia do Esporte pelo Centro de Traumato-Ortopedia do Esporte (Cete) da Unifesp. Mestranda em Ortopedia da FCMSCSP. Membro do Grupo de Traumatologia do Esporte e do Grupo de Ortopedia Pediátrica (Doenças Osteometabólicas) da FCMSCSP.
Gilberto Waisberg Assistente do Grupo de Ortopedia e Traumatologia Pediátrica da FCMSCSP. Chefe do Grupo de Ortopedia Pediátrica da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC).
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CAPÍTULO 1
DISPLASIA DO DESENVOLVIMENTO DO QUADRIL Susana dos Reis Braga Miguel Akkari Cláudio Santili
Introdução A displasia do desenvolvimento do quadril (DDQ) – uma con‑ dição na qual existe uma relação anormal entre a cabeça femo‑ ral e a cavidade acetabular1 – inclui um amplo espectro de si‑ tuações clínicas que vão desde a instabilidade clínica da articulação coxofemoral, passando pela persistente inclinação do teto acetabular, até a perda parcial do contato (subluxação), que progride até a perda total, conhecida como luxação articu‑ lar completa. A denominação “displasia do desenvolvimento do quadril” é preferível, porque destaca o caráter dinâmico dessa doença que tanto pode regredir e resgatar a normalidade como piorar conforme o desenvolvimento da criança. Isso depende, princi‑ palmente, do diagnóstico estabelecido e da adoção do trata‑ mento adequado.2
minuindo progressivamente até os 6 meses. Quando o mem‑ bro assume uma atitude em extensão, deve-se suspeitar de uma luxação do quadril. Além disso, a assimetria das pregas glúteas, denominada sinal de Peter Bade, é outro sinal indire‑ to da mesma afecção; entretanto, 30% das crianças normais podem apresentar essa assimetria4 (Figura 1). Na palpação, observa-se a altura do trocanter maior, que deve ter sua extremidade proximal na mesma linha do tubér‑ culo púbico e estar orientado lateralmente. Quando ele se en‑ contra ascendido, pode-se suspeitar de DDQ ou coxa vara.
Incidência e etiologia A incidência da DDQ varia com relação à raça, à área geográfi‑ ca e aos métodos de estudo, sendo rara em negros. A etiologia é desconhecida. São considerados fatores de risco o sexo femi‑ nino, a história familiar de DDQ ou osteoartrose precoce, a apresentação pélvica e o oligoidrâmnio. Também são fatores importantes a frouxidão (hiperelasticidade capsular e liga‑ mentar), que cria um terreno facilitador, e a posição fetal, que pode predispor a articulação ao estresse mecânico pelas con‑ trações do músculo uterino. Entre os fatores pós-natais, está a forma de posicionamen‑ to, já que, em algumas culturas, os bebês são envoltos em mantas, com os membros inferiores estendidos e aduzidos, predispondo, assim, à displasia.3 A presença do torcicolo congênito e as deformidades do pé calcâneo valgo ou metatarso aduto ou varo também estão as‑ sociadas à DDQ. Exame físico Nos recém-nascidos e lactentes, a atitude em flexão dos qua‑ dris é fisiológica. A flexão ao nascimento é de cerca de 28°, di‑
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Figura 1 Assimetria de pregas ou sinal de Peter Bade: com o paciente em decúbito ventral, observam-se pregas glúteas; quando assimétricas, podem indicar a presença de DDQ.
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Portanto, é muito importante que se realizem, ainda no A manobra de Trendelenburg, positiva quando presente, indi‑ berçário, as amplamente conhecidas manobras que testam a ca insuficiência do músculo glúteo médio. Pode ser causada instabilidade, devendo ser rotineiramente pesquisadas em to‑ por alteração neurológica ou mecânica do músculo e, no caso dos os recém-nascidos. Na manobra de Ortolani, os membros da luxação, por alteração do braço de alavanca. O paciente, em inferiores são segurados com as palmas das mãos, posicionan‑ pé, apoiando-se apenas no membro a ser examinado, não con‑ do-se o polegar na face medial das coxas e o indicador e o dedo segue manter a linha horizontal da pelve; verifica-se, então, a médio no trocanter maior. A coxa examinada é abduzida e “queda” da nádega contralateral (inclinação da pelve). Ao an‑ sente-se uma pequena resistência do encontro da cabeça fe‑ dar, o paciente desvia o tronco em direção ao músculo debili‑ moral contra o limbus; nesse momento, o terceiro dedo ou o tado, em cada fase de apoio. indicador empurra o trocanter maior, reduzindo a cabeça fe‑ moral no acetábulo e produzindo o sinal do “clique”. A coxa é, Exames complementares então, aduzida e uma força na direção lateral é realizada com o A ultrassonografia é indicada para crianças com sinais clínicos polegar; a cabeça é novamente luxada e percebe-se o sinal do de DDQ e também utilizada como triagem em crianças com fa‑ “clique”.5 tores de risco para a doença, como apresentação pélvica, his‑ A manobra de Barlow é classicamente descrita em dois tória familiar ou deformidades ortopédicas associadas.7 tempos, no entanto, em geral utiliza-se a segunda fase para Após os 4 meses, com a ossificação do núcleo da cabeça fe‑ perceber se a cabeça femoral é ou não luxável. Sendo assim, a moral, a radiografia simples da bacia é mais facilmente inter‑ criança é posicionada na mesa de exame em decúbito dorsal pretada, sendo possível avaliar a simetria dos núcleos de ossi‑ com os membros inferiores em direção ao examinador, os qua‑ ficação das cabeças femorais e sua localização com relação ao dris curvados a 90° e os joelhos totalmente flexionados. Apli‑ acetábulo (Figura 4). ca-se, então, uma força em direção posterior e lateral com o polegar, sendo possível, desse modo, deslocar ou não a cabeça do fêmur.6 Com o passar do tempo, a instabilidade não é mais obser‑ vada ao exame e outros sinais estarão presentes, a saber: • sinal de Hart: o paciente é posicionado em decúbito dorsal horizontal (DDH), com os joelhos em flexão máxima e o qua‑ dril dobrado a 90°, e realiza-se a sua adução, para que seja avaliada a contratura em adução dos quadris. Na presença de tensão dos adutores, haverá limitação da adução (Figura 2); • sinal de Nelaton-Galeazzi: é um sinal indireto de discrepância de membros inferiores à custa do segmento entre o quadril e o joelho. Obtido com o paciente em DDH, com quadris curva‑ Figura 3 Sinal de Nelaton-Galeazzi: avalia a discrepância dos membros inferiores. dos a 90°, joelhos totalmente flexionados e os calcanhares quase tocando as nádegas. Observa-se o alinhamento e se há ou não equalização do ápice dos fêmures; se houver, descre‑ ve-se Galeazzi positivo (Figura 3).
Figura 2 Sinal de Hart: observa-se assimetria na adução dos quadris.
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Figura 4 Radiografia simples da bacia de uma menina de 1 ano de idade com DDQ direita. Observa-se que em um núcleo de ossificação da cabeça femoral é menor à direita, e este não está contido no acetábulo. As linhas retas mostram como é feita a medida do índice acetabular, que varia entre 25 e 30 graus nos recém-nascidos. As linhas curvas indicam a quebra do arco de Shenton.
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Displasia do Desenvolvimento do Quadril •
Tratamento O suspensório de Pavlik (Figura 5) é utilizado em quadris ins‑ táveis ou displásicos, podendo ser usado em crianças até os 6 meses de idade. O ideal é que, nas crianças com quadris instá‑ veis, ou seja, luxáveis, ele seja empregado logo nas primeiras semanas de vida, pois, nesses casos, a manutenção da redu‑ ção tende a promover uma rápida estabilização. O método consiste em manter a flexão do quadril em 90° com a ajuda das tiras anteriores e, por meio das tiras posteriores, evitar a adução. O ajuste deve ser periódico, acompanhando o crescimento da criança; posições errôneas podem provocar dano à articula‑ ção ou lesões cutâneas. O médico deve avaliar a melhora do desenvolvimento articular para liberação do aparelho. Em crianças com quadris luxados e irredutíveis e naquelas com mais de 6 meses de vida, o tratamento torna-se mais complexo, e uma redução sob anestesia torna-se necessária, podendo ser associada à cirurgia para liberar ou facilitar o pro‑ cedimento. Nesses casos, é necessária a imobilização com aparelho gessado que englobe abdome/pelve e os membros inferiores e que deve ser usado por vários meses (Figura 6). Quando o diagnóstico é tardio, após o início da marcha, ge‑ ralmente é necessária uma cirurgia mais complexa para repo‑ sicionamento da cabeça femoral. Considerações finais A DDQ é uma doença de grande espectro de apresentação, o que pode dificultar seu diagnóstico. Portanto, além dos testes especiais no berçário, a criança deve ser examinada seriada‑ mente durante seu acompanhamento pediátrico de rotina, ob‑ servando-se os sinais que podem estar presentes durante cada fase do desenvolvimento. Em algumas situações, sobretudo
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A
B
Figura 6 (A) Gesso inicial após redução. (B) Aspecto do gesso após a liberação dos joelhos.
em crianças com apresentação pélvica, com torcicolo congêni‑ to, deformidades nos pés e antecedente familiar, deve-se apli‑ car o exame seletivo ultrassonográfico. Quanto mais precoces forem o diagnóstico e a instituição do tratamento, maiores são as chances de bons resultados.
Figura 5 Suspensório de Pavlik.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que a displasia do desenvolvimento do quadril pode regredir e resgatar a normalidade ou piorar com o desenvolvimento da criança. • Reconhecer que a apresentação pélvica e o oligoidrâmnio são fatores de risco importantes. • Saber que a assimetria das pregas glúteas, denominada sinal de Peter Bade, é um sinal indireto de displasia do desenvolvimento do quadril. • Realizar em todos os recém-nascidos, ainda no berçário, as manobras que testam a instabilidade do quadril. • Indicar a ultrassonografia para crianças com sinais clínicos de displasia do desenvolvimento do quadril e como triagem em crianças com fatores de risco para a doença. Após os 4 meses, a radiografia simples da bacia é mais facilmente interpretada.
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CAPÍTULO 2
DISTÚRBIOS DA COLUNA VERTEBRAL Alexandre Francisco de Lourenço Simone Battibugli
Introdução As queixas relacionadas à coluna vertebral geralmente apare‑ cem mais no final da infância e início da adolescência. Dor é menos comum que no adulto, e as principais razões da consul‑ ta ortopédica estão relacionadas má postura ou algum desvio de eixo do tronco. Geralmente, a primeira avaliação é realizada pelo pediatra em consultas de rotina ou os próprios pais no‑ tam alguma alteração. A coluna vertebral possui curvaturas fisiológicas que são fundamentais para o ortostatismo e a marcha. Assim, existem a lordose cervical, a cifose dorsal e a lordose lombar, que são curvas normais da coluna vertebral. As curvaturas patológicas com maior importância clínica são a escoliose no plano frontal e a hipercifose no plano sagital. O entendimento básico da anatomia e da biomecânica da coluna vertebral é imprescindí‑ vel para a adequada avaliação desse complexo segmento cor‑ póreo e para a detecção de alterações mesmo na ausência de queixas. O objetivo principal é o diagnóstico precoce das de‑ formidades e outras condições que necessitarão da interven‑ ção do especialista. Escoliose A escoliose é definida como uma curvatura lateral maior que 10° da coluna vertebral no plano frontal, mas, na realidade, trata-se de uma deformidade complexa e sua avaliação deve ser tridimensional. A escoliose pode ser causada por diversas alterações, porém, a que mais comumente é vista pelo ortope‑ dista é a idiopática do adolescente (Tabela 1).1-3 A escoliose idiopática do adolescente é bastante frequente, com uma prevalência de 2 a 4%, e predomina no sexo femini‑ no, em uma relação que pode chegar a 10:1. Nas meninas, o risco de progressão da escoliose também é maior que nos me‑ ninos. Entre as escolioses estruturais, podem-se, ainda, citar as de origem congênita, as associadas às doenças neuromus‑ culares e as secundárias a diversas doenças ou síndromes.1,2 O diagnóstico da escoliose é fundamentalmente clínico, e as radiografias devem ser solicitadas para a complementação
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da avaliação inicial. No exame físico, o paciente deve ser ob‑ servado estática e dinamicamente, de preferência em roupas íntimas. Observa-se a pele, que pode ter manchas “café com leite” associadas à neurofibromatose, que causa escoliose. A presença de alterações na região mediana lombar e sacral, com pelos ou aumento da gordura, pode estar associada a dis‑ rafismos espinais, que cursam com desvios da coluna. É im‑ portante avaliar o comprimento dos membros inferiores para descartar uma eventual desigualdade, que pode simular um desvio da coluna quando a criança ou adolescente estiver na postura ereta. Na posição ortostática, observa-se a simetria da altura dos ombros e das escápulas, a obliquidade pélvica e o triângulo do talhe, que é o espaço abaixo da axila, formado pelo membro superior e a linha lateral do tronco (Figura 1). Ainda no exame físico, é realizado o teste de Adams, que deve sempre fazer parte das avaliações clínicas de rotina até a pu‑ berdade. Para a realização dessa manobra, o examinador posi‑ ciona-se atrás do paciente enquanto este inclina o tronco para frente com os joelhos estendidos. O teste de Adams evidencia a deformidade conhecida por gibosidade, característica da es‑ coliose estruturada, na qual está presente a rotação dos corpos vertebrais (Figura 2).
Tabela 1 Causas da escoliose Secundária
Espasmo muscular Desigualdade de comprimento dos membros inferiores
Congênita
Falha de segmentação (barras ósseas) Hemivértebras
Neuromuscular
Paralisia cerebral Distrofia muscular
Idiopática
Infantil: < 3 anos Juvenil: 3 a 10 anos Adolescente: > 10 anos
Miscelânea
Trauma Neoplasia Alterações metabólicas Iatrogenia (radiação, toracotomia)
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Figura 1 Observam-se os seguintes sinais clínicos de escoliose: assimetria das escápulas e da altura dos ombros e aumento do triângulo do talhe.
Figura 3 Radiografia mostrando curva escoliótica.
Figura 2 Teste de Adams: inclinação anterior do tronco mostra gibosidade torácica.
A avaliação radiográfica baseia-se na obtenção de imagens pa‑ norâmicas em posição ortostática, nas incidências de frente e de perfil, que possibilita a visualização global da coluna verte‑ bral e a medida da deformidade. No plano frontal, observam‑ -se os tipos das curvas e sua angulação (Figura 3). Por definição, a escoliose idiopática não tem causa atribuí‑ da e pode manter-se estável ou ser progressiva, ou seja, agra‑ var-se com o crescimento e até o seu final. A escoliose idiopá‑ tica pode surgir em várias faixas etárias: • infantil, até 3 anos de idade; • juvenil, de 3 a 10 anos; • adolescência, após 10 anos de idade. É importante frisar que, para ser definido como escoliose, o desvio do eixo deve ser acima de 10°, e existe uma técnica,
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método de Cobb, para se fazer essa medida (Figura 4). Infeliz‑ mente, são comuns laudos radiográficos que rotulam peque‑ nos desvios de eixo como sendo escoliose, algo que, muitas vezes, estigmatiza a pessoa durante vários anos. A escoliose idiopática do adolescente é a mais comum e, em geral, começa a aparecer imediatamente antes da puberdade. Sabe-se que há uma predisposição familiar para a ocorrência da escoliose; entretanto, a herança parece ser multifatorial. Há uma extensa classificação das curvas escolióticas, que não será discutida neste capítulo por fugir do escopo da pediatria. Nas escolioses idiopáticas, geralmente não há dor, o que explica a detecção ocasional pela família ou pelo pediatra em um exame radiográfico de tórax para estudo de patologia res‑ piratória. Nas escolioses idiopáticas do adolescente, as curvas dorsais são habitualmente de convexidade direita. Perante uma escoliose dolorosa ou de localização atípica, como o caso de uma curva dorsal de convexidade esquerda, é fundamental descartar patologia intra ou extramedular do tipo seringomie‑ lia ou tumoral, nomeadamente com ressonância magnética (RM). O tratamento da escoliose idiopática depende de alguns fa‑ tores, como o grau da curva, a idade e o ambiente do adoles‑ cente. De maneira simplificada, o tratamento conservador é mais eficiente quanto maior for o potencial de crescimento res‑ tante da criança. A Tabela 2 mostra o grau de escoliose e o tra‑
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Distúrbios da Coluna Vertebral •
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Cifose O aumento da cifose torácica pode estar presente nas altera‑ ções posturais ou na enfermidade de Schuermann, uma alte‑ ração mais complexa que afeta as vértebras de forma acentua‑ da, com um encunhamento anterior. Mais frequentemente, o aumento da cifose dorsal está associado a postura e encurta‑ mento muscular (Figura 6). Assim, nos casos de hipercifose, a recomendação habitual são exercícios posturais de alongamento da musculatura pos‑ terior e fortalecimento abdominal, algo que ioga e Pilates pre‑ conizam e que podem ser bastante úteis para os adolescentes com essa alteração.
45°
AP
Figura 4 Método de Cobb para medir escoliose: usam-se a superfície superior da vértebra mais alta da curva (linha convergente) e a superfície inferior da vértebra mais baixa (linha convergente).
Tabela 2 Grau da escoliose e indicação de tratamento Grau de escoliose
Tratamento
Até 20°
Fisioterapia; observação
De 20 a 40°
Órteses (coletes)
> 40°
Cirurgia
tamento indicado. Vale ressaltar que mesmo curvas entre 20° e 40° podem se beneficiar de fisioterapia e exercícios posturais. O tratamento conservador é, muitas vezes, controverso, seja pelo uso de coletes ou por fisioterapia. O uso de colete (Fi‑ gura 5) durante 24 horas/dia, como preconizado antigamente, encontra pouca adesão entre os adolescentes. Alguns estudos mais recentes mostram que o uso parcial (12 horas/dia) é tão efetivo como o uso por período integral.4 Desde a Grécia antiga, o uso de exercícios para corrigir a postura tem sido preconizado. Fisioterapia e exercícios postu‑ rais dependem muito da colaboração da criança, que, além da imaturidade motora, muitas vezes é dispersa e pouco interes‑ sada. Nas curvas flexíveis, não estruturadas e que estejam abaixo de 40°, exercícios que tenham por objetivo manter o arco de movimento e melhorar o alinhamento parecem ser úteis em alguns casos.5 Outras formas de tratamento conservador, como acupun‑ tura, Pilates, ioga e eletroestimulação lateral do tronco, têm defensores na literatura médica com algumas evidências de resultados positivos.6-8 O tratamento cirúrgico é reservado para pacientes que já te‑ nham pouco potencial de crescimento e que apresentam cur‑ vas mais acentuadas, geralmente acima de 40°.
Tratado de Pediatria 4ed.indb 2005
Figura 5 Colete de Milwaukee, uma das órteses mais usadas no tratamento conservador da escoliose.
Figura 6 A cifose acentuada geralmente está associada a um encurtamento dos isquiotibiais.
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Em alguns casos, o uso de colete corretivo pode ajudar e ra‑ ramente existe indicação de tratamento cirúrgico.
mitação das atividades diárias, dor irradiada, perda de peso, dor noturna e febre.
Lordose Assim como a cifose, a lordose é uma curva normal da coluna vertebral, presente tanto na região cervical como na região lombar, embora esta última localização seja a que mais se rela‑ ciona ao nome. Apenas existe uma hiperlordose quando o ân‑ gulo lombar sacral está acima de 60°. Esse ângulo é medido apenas em uma radiografia na incidência de perfil da coluna, exame que raramente deve ser pedido. Em geral, nas meninas pré-puberais, há um aumento da lordose associado a um au‑ mento da gordura abdominal (Figura 7). Essa lordose geral‑ mente é retificada com a inclinação anterior do tronco. Caso não ocorra a retificação da lordose, há uma deformidade fixa e que deve ser bem avaliada. Muitas vezes, isso decorre de uma contratura em flexão dos quadris e a lordose aumentada é uma reação compensatória. Em alguns casos, o aumento da lordose está associado a um escorregamento vertebral, quadro chamado de espondilo‑ listese, que raramente pode cursar com dor, pode ser progres‑ sivo e exige um acompanhamento mais rigoroso, embora a criança e o adolescente possam ter uma vida praticamente normal, o que inclui até a prática de atividades esportivas.
Uso de mochilas Uma das maiores preocupações dos pais em relação à coluna vertebral está associada ao peso das mochilas escolares usa‑ das pelas crianças.9,10 O peso da mochila e o modo como ela é carregada, com uma ou com as duas tiras nos ombros, tem, sem dúvida, um impacto na postura e na marcha da criança. Alguns estudos sugerem que o peso máximo a ser carregado em uma mochila não deve exceder 10% do peso corpóreo. Contudo, além de não haver evidências científicas de que o peso da mochila influencie o aparecimento de deformidades na coluna vertebral, vários outros fatores podem estar envolvi‑ dos para o surgimento de dor nas costas. Um estudo realizado em Los Angeles com 1.540 crianças encontrou 37% de prevalência de dor nas costas (Figura 8). Como 97% das crianças usam mochila, ela não pode ser usada como uma variável independente. Entretanto, o peso mais baixo da mochila e a disponibilidade de armários foram fato‑ res importantes para minimizar a queixa de dor nas costas.10 É interessante notar que a legislação de vários países tem leis específicas para evitar que trabalhadores carreguem peso exces‑ sivo, porém, não há leis para proteger as crianças. Além disso, é comum que se encontrem situações nas quais elas levam de 30 a 40% de seu peso corpóreo em suas mochilas escolares.
Dor É um erro pensar que dor nas costas aflige apenas adultos, porque cada vez mais se observa esse quadro em crianças e adolescentes. Má postura, desequilíbrio muscular associado ao crescimento rápido, sedentarismo ou esporte de alto nível praticado por pessoas dessa faixa etária podem ser fatores que influenciam o surgimento de quadros dolorosos. Ao contrário do que ocorre na população adulta, na qual radiografias rara‑ mente mostram alterações, quando há dor nas crianças, é mais provável encontrar algum sinal de alteração anatômica, infecção ou neoplasias. São sinais de alerta: trauma agudo, li‑
Figura 7 O aumento da lordose ocorre comumente nas meninas pré-puberdade, quando há frequentemente um aumento da gordura abdominal.
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Figura 8 O peso excessivo das mochilas escolares pode estar relacionado a dor nas costas, segundo alguns estudos.
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Distúrbios da Coluna Vertebral •
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que coluna vertebral possui curvaturas fisiológicas que são fundamentais para o ortostatismo e a marcha. • Diagnosticar a escoliose por meio de avaliação fundamentalmente clínica, complementada por exames radiográficos. • Identificar corretamente os sintomas e sinais clínicos de escoliose idiopática do adolescente e reformular os recursos adequados ao tratamento da doença. • Saber que o aumento da cifose dorsal está mais frequentemente associado à postura e ao encurtamento muscular. • Ser capaz de diagnosticar a espondilolistese como causa de aumento da lordose lombar, que exige um acompanhamento mais rigoroso. • Formular diagnóstico diferencial de dor nas costas incluindo problemas posturais, alterações anatômicas, doenças infecciosas e neoplásicas. • Orientar adequadamente a criança e seus familiares quanto ao uso de mochilas e as consequências prejudiciais que pode provocar.
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CAPÍTULO 3
INFECÇÕES OSTEOARTICULARES NA CRIANÇA Rui Maciel de Godoy Junior
Introdução As infecções osteoarticulares na criança são potencialmente graves, pois podem acarretar sequelas ao osso em crescimento. Apesar de terem uma incidência menor após a era dos antibió‑ ticos e com a melhora das condições de higiene, essas infec‑ ções ainda são relativamente frequentes e devem ser lembra‑ das para o adequado diagnóstico e tratamento.1 Didaticamente, podem ser divididas em infecções ósseas, conhecidas como osteomielite, e infecções articulares, cha‑ madas de artrite piogênica, artrite séptica ou simplesmente pioartrite. A infecção óssea mais comum na criança é a osteomielite hematogênica aguda. Esse tipo de infecção ocorre por via san‑ guínea e tem início na metáfise óssea. A partir dela, pode ha‑ ver uma disseminação para outros locais do osso ou mesmo para uma articulação adjacente. A infecção também pode ocorrer após uma fratura exposta ou após uma cirurgia óssea. A artrite séptica ocorre geralmente por via hematogênica, com a infecção instalando-se inicialmente na membrana sino‑ vial, podendo também se iniciar como osteomielite e subse‑ quente disseminação para a articulação.2 Isso acontece por‑ que, nas crianças, algumas metáfises são intra-articulares, por exemplo, fêmur proximal, fíbula distal, rádio proximal e úme‑ ro proximal. Nesses locais, a infecção pode se disseminar para a articu‑ lação adjacente. Esse fato é relevante, pois a abordagem de tratamento deve levar em consideração que a infecção teve origem no osso. Mais rara, porém possível, é a inoculação direta do germe na articulação. Ocorre, por exemplo, na criança que está enga‑ tinhando e fere o joelho com uma agulha inadvertidamente esquecida no solo.
A osteomielite hematogênica aguda (OHA) tem início súbi‑ to e sintomas exuberantes (febre alta, dor intensa e queda do estado geral).3 A osteomielite subaguda é mais rara e os sintomas não são exuberantes, podendo estar presentes até por 2 semanas an‑ tes de a família procurar atendimento médico. A osteomielite crônica decorre, em geral, da falta de cura ou de tratamento adequado da OHA, da osteomielite subaguda ou, ainda, de fraturas expostas ou procedimentos operatórios nos ossos. A tuberculose óssea deve ser considerada no diagnóstico diferencial. Em alguns casos, a imagem radiográfica é seme‑ lhante à da osteomielite crônica, com formação de abscesso ósseo (Figura 1). A osteomielite crônica recorrente multifocal é muito rara e acomete vários locais. A etiologia ainda é pouco conhecida e o tratamento é muito controverso.
Osteomielites As osteomielites nas crianças podem ser divididas em quatro tipos: aguda, subaguda, crônica e crônica recorrente multifo‑ cal.
Figura 1 Tuberculose osteoarticular. Criança de 3 anos com dores no quadril esquerdo. As hipóteses diagnósticas iniciais foram de cisto ósseo, fibroma não osteogênico e osteomielite. Após a biópsia foi comprovado o diagnóstico de tuberculose.
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INFECÇõES OSTEOARTICULARES NA CRIANÇA •
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Neste capítulo, serão abordadas com mais detalhes a OHA e a artrite séptica.
apenas desconforto da criança ao lhe dar banho e/ou trocar‑ ‑lhe a roupa. O diagnóstico da OHA por vezes pode ser difícil, pois os pa‑ Osteomielite hematogênica aguda râmetros analisados nem sempre estão muito alterados. Scott A OHA é uma condição grave que pode afetar o esqueleto ima‑ et al., em uma revisão de 116 casos de OHA, relatam que 36% turo. Antes da época dos antibióticos, tinha um curso muitas dos casos admitidos apresentavam temperatura menor que vezes fatal ou com evolução para osteomielite crônica.4 Atual‑ 37,5°C. Além disso, 41% deles tinham o hemograma com me‑ mente, a incidência diminuiu muito com a melhora das condi‑ nos de 10.550 leucócitos/mm3.6 ções de higiene e com o advento dos antibióticos. Antes de 1944, a mortalidade por OHA era de 45%. Após 1944, com a Exames complementares descoberta e a introdução da penicilina no arsenal terapêutico, 1. Hemograma: é caracteristicamente infeccioso, em geral com a mortalidade caiu para 1% ou menos. Acredita‑se que a inci‑ mais de 12.000 leucócitos. dência atual seja de 1:5.000 por ano. Crianças menores de 5 2. Hemocultura: deve ser realizada, embora sua positividade anos de idade são mais afetadas pela OHA. seja pequena. Quando positiva, auxilia o diagnóstico, a iden‑ O tratamento precoce e adequado é muito importante, pois, tificação do agente etiológico e a escolha do antibiótico. muitas vezes, a infecção pode acometer a cartilagem de cresci‑ 3. Proteína C reativa (PCR): a PCR está com valores aumenta‑ mento do osso da criança, provocando sequelas graves, como dos, característica de um processo infeccioso. É mais sensível deformidades e encurtamentos. e específica que a velocidade de hemossedimentação (VHS) para acompanhar o processo de cura da OHA. Como os valo‑ Fisiopatologia res da PCR normalizam‑se mais rapidamente, ela é melhor A OHA inicia‑se na metáfise óssea. Várias teorias tentam ex‑ parâmetro de cura da infecção do que a VHS (Figura 2). plicar esse fato, sendo mais aceita a de que a circulação carac‑ 4. VHS: a VHS também está com seus valores aumentados. terística dessa região (metáfise) favorece a instalação do êm‑ 5. Radiografia: não é um bom meio de se fazer o diagnóstico pre‑ bolo séptico. De acordo com essa teoria, a criança apresenta coce. As primeiras alterações radiográficas na OHA só apare‑ uma bacteremia consequente a uma infecção, como otite ou cem por volta do 5º dia. Aguardar essas alterações para se ini‑ faringite, e a bactéria instala‑se na metáfise, desencadeando o ciar o tratamento pode impedir a boa condução do caso e quadro de OHA. provocar graves sequelas. Os membros inferiores são mais afetados que os superiores. 6. Ultrassonografia: não é um bom método para o diagnóstico De maneira geral, o fêmur é acometido em 27% dos casos, e a precoce da OHA. As alterações encontradas só se tornam evi‑ tíbia, em 22%. No membro superior, o úmero é acometido em dentes quando já há formação de abscesso subperiostal. Por 12% dos casos, o rádio em 4% e a ulna em 3%. outro lado, permite identificar se há comprometimento arti‑ cular (derrame), sendo um exame essencial nos casos de ar‑ quadro clínico trite séptica. Sintomas gerais como febre alta, falta de apetite, irritabilidade 7. Cintilografia: é pouco utilizada para diagnóstico e tratamento e queda do estado geral estão presentes. Entretanto, as crian‑ da OHA. Eventualmente, pode ser feita para localização de ças podem não apresentar febre. Em uma revisão, foi encon‑ trado que 40% dos casos estavam afebris no primeiro exame clínico.5 A OHA tem um quadro clínico característico de dor locali‑ zada na metáfise óssea comprometida. Em geral, a criança pode apontar com o dedo o local da dor. Nas crianças peque‑ nas, percebe‑se a reação de dor ao se palpar a metáfise acome‑ tida. Pode haver aumento de temperatura, edema e eritema no local dependendo do tempo de evolução. A criança recusa‑se a apoiar o membro inferior acometido. No caso de o membro superior ser comprometido, observa‑se uma impotência funcional. Na OHA do úmero proximal, o braço pode estar parado ao lado do corpo em uma postura se‑ melhante à da paralisia obstétrica. O diagnóstico diferencial deve ser feito com leucemia e tu‑ mores ósseos, em especial com o sarcoma de Ewing. Na OHA neonatal, é muito importante salientar que, nessa faixa etária, os sinais e sintomas são menos evidentes. Muitas vezes, o recém‑nascido não apresenta febre, e os pais referem Figura 2 Curvas dos valores da VHS e da PCR em caso de apenas aumento de volume no local e parada ou diminuição OHA. Notar que os valores da PCR se normalizam mais de movimentos do segmento acometido. É comum referirem rapidamente. PCR mg/L
VHS mm/H
100
80
60
40
20
VHS PCR
0
5
10
15
20
25
30
Dias
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lação à OHA, a infecção no osso e na articulação da criança pode provocar graves sequelas para o resto da vida. No caso da artrite séptica, além das complicações citadas na OHA, pode‑ -se deparar com a perda parcial ou total dos movimentos da ar‑ ticulação acometida. A artrite séptica pode estar relacionada a outras doenças, como hemofilia, osteoartrose, artrite reumatoide, câncer, dia‑ bete, alcoolismo e cirrose. A artrite séptica compromete predominantemente as arti‑ culações de carga dos membros inferiores. O quadril e o joelho correspondem a aproximadamente 60% dos casos. A artrite séptica pode ocorrer concomitantemente com a OHA em crianças menores de 18 meses de vida. Isso acontece Tratamento porque, nessa faixa etária, o suprimento sanguíneo da condro‑ O tratamento da OHA é eminentemente operatório. A drena‑ epífise é único. Quando o agente patogênico se instala na me‑ gem cirúrgica deve ser realizada o mais precocemente possível táfise óssea, ocorre a propagação para a epífise, pois a circula‑ após o diagnóstico, para se evitar ou minimizar as possíveis ção é compartilhada. Após os 18 meses de idade, a cartilagem sequelas. de crescimento torna-se uma barreira a essa propagação. En‑ Alguns autores acreditam que o tratamento da OHA, se ins‑ tretanto, nos casos em que a metáfise é intra-articular, a dre‑ tituído nos primeiros dias, pode ser feito apenas com a anti‑ nagem do abscesso se faz diretamente para a articulação, le‑ bioticoterapia, mas a falta da drenagem cirúrgica adequada vando a uma artrite séptica concomitante à OHA. está associada a um aumento nas complicações da OHA. A antibioticoterapia deve ser instituída precocemente e ajustada, se necessário, após a identificação do agente etioló‑ gico. O antibiótico deve ser bactericida, com boa penetração óssea, usado em doses apropriadas e por via parenteral. Após 2 semanas, se houver melhora clínica, o antibiótico pode ser mudado para a via oral, mantendo-se, no total, por um perío‑ do mínimo de 6 semanas. O Staphylococcus aureus é o agente etiológico mais comum em todas as faixas etárias. Portanto, antes da identificação do agente etiológico, a antibioticoterapia deve ser eficaz contra essa bactéria. um quadro infeccioso. Por exemplo, em infecções da coluna, nas discites, na bacia e nas suspeitas de infecção multifocal. 8. Tomografia computadorizada (TC): deve ser evitada em crian‑ ças por conta da grande dose de radiação ionizante necessária para a sua realização. Sempre que possível, preferir a resso‑ nância magnética (RM) que, além de não ter radiação ioni‑ zante, mostra o acometimento ósseo com maior precisão. 9. RM: é o exame de escolha para localização e diagnóstico em casos mais difíceis, como coluna, bacia e ossos do pé. As ima‑ gens mostram precocemente as alterações causadas por in‑ fecção óssea, tendo grande vantagem sobre as radiografias, nas quais as primeiras alterações só são visíveis após o 5º dia.
Complicações Conforme já discutido, a OHA é uma doença grave que deve ser adequadamente conduzida para se evitar as sequelas. Entre as complicações, podem-se citar: osteomielite crôni‑ ca, nos casos em que não se conseguiu a cura da OHA; necrose avascular do osso ou de porções do osso acometido; distúrbios do crescimento pelo comprometimento da fise, ocasionando deformidades e/ou encurtamentos; e, mais raramente, trom‑ bose venosa profunda, embolia pulmonar e disseminação da infecção. Artrite séptica A artrite séptica, infecção de uma articulação, também é co‑ nhecida por artrite piogênica ou pioartrite. A invasão do espaço articular pelo agente infeccioso pode ocorrer por disseminação hematogênica, inoculação direta por trauma ou cirurgia, ou disseminação a partir de um local adja‑ cente acometido por osteomielite ou celulite (Figuras 3 e 4). Pode ocorrer em qualquer idade, sendo mais frequente, po‑ rém, em crianças pequenas e idosos. Os adultos são mais acometidos, porém, as consequências em crianças são muito piores. Conforme já comentado com re‑
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Figura 3 OHA que evoluiu para artrite séptica do quadril direito. Notar as lesões no colo femoral que indicam que o início da infecção foi na metáfise (seta).
Figura 4 Evolução do caso da Figura 3. Após drenagem cirúrgica e antibioticoterapia, evoluiu para cura da infecção e boa função articular. Radiografia com 7 anos de pós-operatório.
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As metáfises intra-articulares são o úmero proximal, o fê‑ • ombro: 30 a 65° de abdução com flexão e rotação neutras. mur proximal, a fíbula distal e o rádio proximal. Portanto, esse processo (OHA + artrite séptica) pode ocorrer no ombro, no Exames complementares quadril, no tornozelo e no cotovelo. Devem ser realizados os mesmos exames já citados na aborda‑ gem à OHA. O hemograma apresenta um aumento dos poli‑ Fisiopatologia morfonucleares com desvio à esquerda. A VHS e a PCR estão A via de contaminação da articulação é hematogênica, em ge‑ aumentadas. A hemocultura tem uma positividade ao redor ral por um foco infeccioso a distância, podendo ocorrer tam‑ de 30%. bém por contiguidade, nos casos de inoculação direta e de As radiografias devem ser realizadas com técnica para par‑ traumas. tes moles e podem mostrar: edema de partes moles, alteração A infecção inicia-se com a invasão bacteriana na junção si‑ da cápsula articular, subluxação da articulação e aumento do novial-cartilagem articular. Ocorre uma hiperemia sinovial e espaço articular. Da mesma maneira que na OHA, na artrite infiltração de polimorfonucleares, e as enzimas de resposta in‑ séptica, as radiografias não são o melhor método de diagnósti‑ flamatória são ativadas. As bactérias produzem enzimas e to‑ co. As alterações descritas podem se apresentar de modo tar‑ xinas que provocam a destruição da cartilagem articular. dio, não sendo o ideal para um tratamento adequado. A ultrassonografia, por outro lado, é um exame essencial A artrite séptica ocorre com maior frequência no joelho (41% dos casos). Outras articulações acometidas são: para o diagnóstico. Ela pode identificar a presença de nível lí‑ • quadril: 23% (local onde o tratamento inadequado pode oca‑ quido e subluxação ou luxação da articulação. Pode, ainda, ser utilizada como método auxiliar para a realização da punção sionar as mais graves sequelas); articular. • tornozelo: 14%; A cintilografia é pouco utilizada e pode mostrar um aumen‑ • cotovelo: 12%; to da captação periarticular. • ombro: 4%. A punção articular deve ser realizada e o material coletado Quadro clínico deve ser submetido a bacterioscopia, cultura e antibiograma. A identificação do agente etiológico é importante para a O quadro clínico é semelhante ao da OHA. A dor na articula‑ ção acometida é importante e existe uma limitação da mobili‑ realização da antibioticoterapia correta. O Staphylococcus audade articular. Essa limitação, em geral, é maior na artrite sép‑ reus é o agente etiológico mais frequente. Outros agentes de‑ vem ser considerados, como o Haemophilus influenzae e a tica do que na OHA. Ocorre também um aumento do volume articular, que é Neisseria gonorrhoeae, esta principalmente nos adultos e ado‑ mais fácil de identificar nas articulações superficiais. No qua‑ lescentes com vida sexual ativa. dril, que é uma articulação profunda, esse aumento muitas ve‑ zes não é identificado. O mesmo ocorre com o aumento de Diagnóstico diferencial temperatura local e o eritema, que geralmente são mais difí‑ O diagnóstico diferencial da artrite séptica deve ser realizado com: infecção de tecidos moles periarticulares, artrite induzi‑ ceis de identificar no quadril. A criança apresenta febre alta e queda do estado geral. Mu‑ da por cristais (gota), trauma, hemartrose (hemofilia, anemia dança de humor, irritabilidade e perda de apetite em geral es‑ falciforme), osteomielite, síndrome periarticular (bursite, ten‑ tão presentes. Lembrar que, no recém-nascido, esses sinto‑ dinite), trombose venosa profunda e corpo estranho. mas são pouco evidentes. Para o diagnóstico diferencial da pioartrite com a OHA, de‑ A criança adota uma posição antálgica e evita movimentar vem-se considerar: dor mais intensa à mobilização da articulação o membro acometido. No quadril, essa posição é de flexão, ab‑ na pioartrite e dor pontual à palpação da metáfise óssea na OHA. dução e rotação externa. Os valores aproximados da posição Tratamento antálgica no quadril são: • flexão: 45°; Após o diagnóstico, a drenagem cirúrgica deve ser realizada • abdução: 15°; com urgência para evitar ao máximo as potenciais complica‑ • rotação externa: 15°. ções. Inicia-se uma antibioticoterapia empírica sistêmica até a identificação correta do agente etiológico com cultura e anti‑ Nessa posição característica, a cápsula articular está mais rela‑ biograma e, a partir daí, com monoterapia específica para a xada e pode conter maior volume; por isso, o paciente com ar‑ bactéria encontrada.
A imobilização com tração ou aparelho trite séptica adota essa posição. Ao se tentar movimentar o gessado no membro acometido ajuda a diminuir a dor no pós‑ quadril, a criança apresenta dor intensa e, após o exame, retor‑ -operatório. Fisioterapias passiva e ativa devem ser instituídas na à posição antálgica. assim que possível. Nas outras articulações, têm-se as seguintes posições an‑ Cada serviço realiza o seu próprio esquema de antibiotico‑ tálgicas características: terapia empírica. Um exemplo eficaz é a associação de oxacili‑ • joelho e cotovelo: 30 a 60° de flexão; na (1 g via endovenosa, a cada 6 horas) com gentamicina (3 a • tornozelo: 10 a 20° de flexão plantar; 5 mg/kg, a cada 8 horas). A antibioticoterapia é mantida por 2 • punho: posição neutra; semanas com via parenteral e mais 4 semanas por via oral.
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Complicações A artrite séptica é uma doença grave que, se não for adequada‑ mente tratada, pode evoluir com complicações sérias, como: pioartrite crônica, subluxação da articulação, necrose óssea, luxação patológica da articulação, osteoartrose, limitação par‑ cial ou total dos movimentos articulares (Figura 5), dismetria de membros (Figura 6), osteomielite, abscesso pélvico, infec‑ ção persistente.
A
B
Figura 5 Sequela de artrite séptica do quadril direito em adolescente de 13 anos. (A) Aspecto clínico: notar deformidade e encurtamento do membro inferior direito. (B) Aspecto radiográfico: notar destruição da articulação do quadril.
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Considerações finais A artrite séptica é uma doença grave que pode acarretar com‑ plicações sérias. Deve-se melhorar o atendimento primário e realizar um diagnóstico precoce e preciso. O tratamento, com drenagem cirúrgica e antibioticoterapia, deve ser instituído o quanto antes, pois o tratamento tardio pode acarretar sequelas graves na criança.
A
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Figura 6 Sequela de artrite séptica do quadril direito com encurtamento do fêmur. (A) Aspecto clínico: notar a diferença na altura dos joelhos (setas). (B) Aspecto radiográfico: notar o encurtamento do colo femoral direito (seta).
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer as características conceituais dos diferentes tipos de osteomielite na criança. • Saber que a osteomielite geralmente tem início com episódio de bacteremia. • Suspeitar de quadro de osteomielite hematogênica aguda pela história clínica e exame físico, e realizar os exames complementares capazes de confirmar o diagnóstico. • Saber que, no período neonatal, os sinais e sintomas da osteomielite hematogênica aguda e da artrite séptica são pouco evidentes. • Relacionar os agentes microbianos mais comuns na etiologia da artrite séptica. • Saber que a causa mais frequente da artrite séptica é a propagação de osteomielite adjacente. • Definir um procedimento terapêutico adequado para a artrite séptica. • Compartilhar o manuseio diagnóstico e terapêutico da osteomielite hematogênica aguda e da artrite séptica com o ortopedista pediátrico.
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Referências bibliográficas 1. 2.
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CAPÍTULO 4
DESVIOS ANGULARES E ROTACIONAIS DOS MEMBROS INFERIORES Rui Maciel de Godoy Junior
Desvios angulares No plano frontal, a angulação entre o fêmur e a tíbia pode ser considerada normal quando tem um valor entre 5 e 7° de val‑ gismo. Como se sabe, o valor normal não é absoluto, sendo correto afirmar que existe uma faixa normal de angulação nos joelhos. Existem variações individuais, raciais e de acordo com o sexo. Sabe-se que os orientais têm, predominantemen‑ te, os joelhos com uma angulação em varo. O sexo feminino apresenta uma angulação em valgo, nos joelhos, maior que o masculino. Essa diferença anatômica se deve ao fato de que a bacia é mais larga nas mulheres.
Portanto, na posição de pé, quando se observa que os tor‑ nozelos ficam afastados ao se juntarem os joelhos, tem-se uma angulação em valgo ou também chamada de valgismo dos joelhos. De acordo com a definição, o segmento distal, ou seja, a perna, está afastada da linha média do corpo. Um ter‑ mo coloquial muito utilizado pelas mães nessa situação de valgismo é o de “joelhos em X”.
Angulação normal dos joelhos Não existe uma angulação precisa que possa ser considerada normal, mas sim uma faixa de angulações dentro de um pa‑ drão normal. Valores entre 5 e 10° varo e entre 10 e 12° valgo podem ser incluídos dentro do padrão de normalidade. Essas variações devem ser entendidas como normais desde que o eixo mecânico dos membros inferiores esteja normal. Quando necessário, esse eixo deve ser avaliado pelo ortopedista em ra‑ diografias. Suas alterações podem acarretar artrite degenerati‑ va em longo prazo. A grande maioria dos adultos geralmente apresenta uma angulação em valgo de 7°. Eixo mecânico nos membros inferiores Na posição ortostática, em uma radiografia panorâmica dos membros inferiores, uma linha traçada entre a cabeça femoral e o centro da articulação do tornozelo deve passar pelo centro da articulação do joelho. É o eixo mecânico dos membros infe‑ riores, que deve ser avaliado nos casos em que haja dúvida se os joelhos examinados se encontram na faixa de normalidade. Definição de valgo e varo Esses termos ortopédicos podem ser difíceis de memorizar e provocam algumas confusões. “Valgo” é quando o segmento dis‑ tal se afasta da linha média do corpo (Figura 1). “Varo” é quando o segmento distal se aproxima dessa linha média (Figuras 2 e 3).
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Figura 1 Joelhos valgos. Notar que as pernas se afastam da linha média do corpo. Deformidade conhecida popularmente como "joelhos em X".
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Esses termos também são utilizados em outros segmentos corpóreos. Como exemplo, é possível citar o cotovelo que nor‑ malmente tem uma angulação em valgo.
Figura 2 Joelhos varos fisiológicos em uma criança com um ano de idade. Notar que as pernas se aproximam da linha média do corpo.
Angulação normal para os joelhos da criança Desde o nascimento até a idade adulta, o ser humano passa por variações na angulação dos joelhos que são consideradas nor‑ mais, fazendo parte do desenvolvimento natural da criança. O recém‑nascido, em geral, tem os joelhos varos, que ficam retificados (angulação zero entre o fêmur e a tíbia), até por vol‑ ta dos 2 anos de vida. A partir dessa idade, os joelhos das crianças evoluem para uma angulação em valgo, muitas vezes acima do limite considerado normal. Com o desenvolvimento natural, ocorre uma diminuição desse valgismo acentuado até chegar ao valgismo fisiológico de mais ou menos 5° por volta dos 7 anos de idade. Essa evolução natural das angulações fisiológicas dos membros inferiores está bem documentada pelo trabalho clássico de Salenius/Vankka (Figura 4). O desenvolvimento natural das angulações dos joelhos das crianças deve ser bem conhecido, sendo de fundamental im‑ portância para se evitar tratamentos desnecessários. Da mes‑ ma maneira, o esclarecimento aos pais sobre essas alterações fisiológicas minimiza sua ansiedade ao constatar as deformi‑ dades na criança. Portanto, o eixo longitudinal entre o fêmur e a tíbia, ou en‑ tre a coxa e a perna, pode sofrer variações angulares no decor‑ rer do desenvolvimento. Dessa maneira, uma criança pode apresentar joelhos varos quando recém‑nascido e, por volta da idade do início da marcha, os joelhos se retificam e, posterior‑ mente, tornam‑se valgos em outra fase de seu crescimento.
+20°
Varo
+15°
A
+10° +5° B
Valgo
0°
Figura 3 Deformidade grave. Joelhos varos em decorrência de raquitismo.
Quando o paciente, em pé, não consegue juntar os joelhos, pois os tornozelos se encostam antes, tem‑se uma angulação em varo ou um varismo dos joelhos. Existe uma famosa regra mnemônica que diz que “o valgo não cavalga”. Essa afirmação refere‑se à imagem da dificulda‑ de que tem uma pessoa com os joelhos valgos em se posicio‑ nar adequadamente no dorso do cavalo.
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-5°
D
-10° -15°
C 1
2 3
4 5
6 7
8 9 10 11 12 13
Idade (anos)
Figura 4 Gráfico que mostra a evolução normal da angulação dos joelhos do nascimento aos 13 anos. (A) Nota‑se que ao nascimento tem‑se um varismo de 15 graus. (B) Por volta de 2 anos, os joelhos estão retificados. (C) O valgismo atinge o pico máximo ao redor dos 3 para 4 anos. (D) A partir dessa idade, ocorre uma correção espontânea atingindo 5 graus de valgismo por volta dos 7 anos de idade. Fonte: adaptada de Salenius e Vankka, 1975.1
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Essas variações angulares representam uma evolução fisioló‑ gica da morfologia dos membros inferiores e, na grande maio‑ ria das vezes, tendem ao alinhamento espontâneo. Exames complementares Na criança com aproximadamente 1 ano de idade, é comum o aspecto arqueado (varo) dos membros inferiores, muitas ve‑ zes associado a certo grau de torção medial das tíbias. Mesmo nas formas mais acentuadas, há tendência à correção espon‑ tânea, sem necessidade de nenhum tratamento. Nas varieda‑ des persistentes ou com eventual piora da deformidade, deve‑ -se avaliar a possibilidade de tendência hereditária familiar e racial e investigar doenças metabólicas, como raquitismo, al‑ gumas formas de displasias epifisárias, osteogênese imperfei‑ ta e doença de Blount. A doença de Blount é uma deformidade adquirida da região proximal da tíbia. Ocorre uma alteração na porção medial da epífise e da metáfise que provoca a deformi‑ dade (Figura 5A). Há uma diminuição do crescimento nessa região medial, enquanto, na região lateral, a tíbia cresce nor‑
malmente. Isso acarreta uma deformidade em varo que pode ser progressiva e que necessita de tratamento ortopédico. Em casos com deformidade pequena, pode ser necessária a utili‑ zação de uma órtese, enquanto nas deformidades maiores, o tratamento é, em geral, operatório. Como se observa na Figura 4, por volta dos 2 anos de idade, os joelhos passam a ter um valgismo que aumenta até os 4 anos. A partir dessa idade, a tendência é de correção espontâ‑ nea até os 7 anos. Aproximadamente 75% das crianças com 3 anos de idade apresentam um valgismo fisiológico dos joelhos. Em casos de obesidade, a associação desse valgismo com os pés planos pode provocar queixas de cansaço e dificuldade para correr e praticar esportes. Quando a criança estiver fora desses padrões considerados normais, devem-se solicitar radiografias e uma avaliação feita pelo ortopedista pediátrico. Da mesma forma, quando há uma clara alteração da mar‑ cha, deformações ou irregularidades no desgaste dos calçados, deve-se realizar uma avaliação mais cuidadosa. Outras situações em que um exame detalhado deve ser rea‑ lizado incluem: deformidades unilaterais ou assimétricas; criança com baixa estatura; distúrbios genéticos ou endócri‑ nos; história de trauma ou infecção pregressa e antecedente familiar de deformidades que necessitaram de tratamento or‑ topédico. Radiografias As radiografias são essenciais ao diagnóstico e ao planejamen‑ to de eventual tratamento ortopédico. Devem ser realizadas com o paciente em pé (ortostáticas) e com as patelas voltadas para a frente. Os raios são direciona‑ dos perpendicularmente e devem ser centrados nos joelhos.
A
Tomografia computadorizada A tomografia computadorizada (TC) é um exame a ser evitado, especialmente em crianças. A quantidade de radiação ioni‑ zante à qual os pacientes são submetidos nesse exame é mui‑ to grande. De modo geral, a TC não traz maiores esclarecimen‑ tos do que as radiografias, tanto do ponto de vista diagnóstico quanto para o planejamento do tratamento. Ressonância magnética A ressonância magnética (RM) geralmente não é necessária. Além de ser dispendiosa e nem sempre disponível, pode requerer sedação para que o paciente seja adequadamente avaliado. Do mesmo modo que a TC, não traz maiores esclare‑ cimentos para o diagnóstico e para o planejamento do trata‑ mento.
B
Figura 5 (A) Moléstia de Bount: notar a deformidade nas porções mediais da epífese e da metáfise (seta). Joelho direito comprometido e joelho esquerdo normal. (B) Deformidade em varo associada à osteogênese imperfeita: notar o encurvamento do fêmur, a diminuição da espessura das corticais e a osteoporose.
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Tratamento das deformidades angulares Como na grande maioria dos casos, as deformidades angulares evoluem para correção espontânea. Nenhum tratamento é ne‑ cessário se seu padrão é considerado normal. É importante o esclarecimento dos pais sobre as deformidades, o acompanha‑ mento do crescimento da criança e as avaliações periódicas para se ter certeza de que a evolução está dentro do previsto.
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Quando houver alterações da marcha ou deformação dos calçados, é necessária a avaliação quanto à necessidade ou não de utilização de órteses. O tratamento operatório está indicado nos casos de defor‑ midades graves como na doença de Blount, na osteogênese imperfeita ou no raquitismo (ver Figura 5B). Desvios rotacionais Os desvios rotacionais dos membros inferiores representam queixa frequente em consultórios de pediatras e ortopedistas. A criança que tem os pés “virados para dentro” ao andar, al‑ teração também chamada de “marcha de periquito”, pode apresentar um problema ortopédico grave ou apenas uma va‑ riação normal própria da idade. Os familiares ficam preocupa‑ dos com esse tipo de andar e geralmente dizem que a criança cai muito porque, ao correr, os pés batem um contra o outro, desequilibrando‑a e provocando a queda. Pode ocorrer também uma marcha com os pés “virados para fora”. Esse tipo de andar, imortalizado por Chaplin no seu personagem “Carlitos”, é mais raro, porém associado com maior frequência a problemas ortopédicos mais graves, como será comentado a seguir. Representa, às vezes, uma alteração fisiológica própria daquele indivíduo. Características Desvio rotacional é uma deformidade na qual ocorre uma rota‑ ção anormal ao longo do eixo do membro, provocando uma al‑ teração no ângulo de progressão da marcha. O paciente anda com os pés virados para dentro ou para fora, com a possibili‑ dade de apresentar deformidade nos quadris, nas pernas ou nos pés. Definição de ângulo de progressão da marcha O ângulo de progressão da marcha é formado pelo eixo dos pés, com uma linha reta imaginária traçada ao longo do cami‑ nho percorrido pelo paciente durante a marcha (Figura 6). Valores do ângulo de progressão da marcha Da mesma maneira referida para os desvios angulares do joe‑ lho, não existe um valor normal absoluto para o ângulo de pro‑ gressão da marcha, e sim uma “faixa” de ângulos considerada normal. O paciente normal pode andar com um ângulo “zero”, ou seja, com os pés voltados diretamente para frente, ou com os pés virados para dentro com um ângulo de progressão da marcha de até 10° negativos. São considerados normais os ân‑ gulos de progressão da marcha de até 15° positivos (pés vira‑ dos para fora) (Figura 7). Marcha em rotação medial ou em rotação lateral O responsável traz o paciente ao consultório referindo que ele anda com os pés “virados para dentro” ou “virados para fora”. Na ortopedia, isso é denomidado, respectivamente, de mar‑ cha em rotação medial e em rotação lateral, de acordo com a alteração apresentada no ângulo de progressão da marcha.
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Figura 6 ângulo de progressão da marcha. ângulo observado na marcha entre o eixo longitudinal do pé e a linha de deslocamento do paciente.
Graus 45 30 15
Faixa de normalidade
0
Ideal
-15
Faixa de normalidade
-30 -45 0
5
10
15 Idade (anos)
Ângulo de progressão do pé
Figura 7 Gráfico mostrando a variação dos valores do ângulo de progressão da marcha de acordo com a idade. Notar que a faixa de normalidade inclui valores de +15o a ‑10o. Os valores positivos são convencionados para a rotação lateral e os negativos para a rotação medial. Fonte: adaptada de Mercer, 1993.2
A criança que anda com os pés virados para dentro ou para fora pode apresentar uma deformidade no quadril, nas pernas ou nos pés. É importante fazer o diagnóstico correto para saber se há ou não necessidade de tratamento e qual modalidade é reco‑ mendável. Na grande maioria dos casos, é uma deformidade que se corrigirá espontaneamente com o crescimento da criança. Entretanto, esse tipo de andar na infância e na adoles‑ cência tem o risco de ser provocado por doenças que necessi‑ tam de tratamento ortopédico. Alterações rotacionais originárias do quadril No quadril, deve‑se avaliar o grau de anteversão do colo do fê‑ mur, que é a sua angulação com o plano frontal. Na criança, essa angulação geralmente é maior e vai diminuindo no decor‑ rer do seu crescimento até a idade adulta. Ao nascimento, o ângulo é de 40° e, aos 8 anos de vida, de 15°, que é correspon‑
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dente ao valor do adulto. Quando existe um aumento do ângu‑ lo de anteversão, há tendência de se colocar o membro em ro‑ tação medial para melhor centralização da cabeça femoral na cavidade acetabular. Isso gera uma rotação medial do membro inferior e leva a criança a andar com os pés “virados para den‑ tro”. Esse posicionamento dos quadris está associado também a certos hábitos posturais, como sentar ajoelhado sobre os pés ou com as pernas voltadas para fora e, ainda, deitar de bruços com os pés virados para dentro. Ao se examinar essas crianças, observa‑se predomínio da rotação medial sobre a lateral nos quadris, e sua intensidade avalia‑se em decúbito ventral e os joelhos fletidos em 90°. Nessa posição, faz‑se a rotação me‑ dial dos quadris, e, quanto mais as pernas se aproximam do plano horizontal, maior o grau de anteversão (Figura 8). As crianças que andam com os pés virados para fora podem ter uma doença grave nos quadris, que é o escorregamento da epífise proximal do fêmur. Essa condição ocorre na pré‑ado‑ lescência, provoca uma deformidade no colo femoral e o trata‑ mento ortopédico deve ser realizado de modo operatório e de maneira urgente, para evitar a progressão da deformidade (Fi‑ gura 9). Doenças neurológicas, como a paralisia cerebral e a mielo‑ meningocele, também são capazes de provocar alterações ro‑ tacionais nos membros inferiores.
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Figura 8 (A) Mensuração da amplitude de rotação medial dos quadris. (B) Mensuração da amplitude de rotação lateral dos quadris.
Alterações rotacionais originárias da perna Os desvios rotacionais dos membros inferiores podem ter sua origem nas pernas. A torção medial das tíbias pode estar pre‑ sente e deve ser adequadamente identificada. Com o paciente sentado na borda da mesa, colocam‑se os membros com os joelhos fletidos e as patelas voltadas para a frente, observan‑ do‑se a torção tibial. Com a criança em decúbito ventral, avalia‑se o ângulo coxa‑pé. A análise desse ângulo dá uma informação precisa sobre a pre‑ sença ou não do problema rotacional na perna (Figura 10). A torção tibial costuma ser fisiológica em crianças, mas pode ser consequência de doenças neuromusculares. Alterações rotacionais originárias dos pés A criança pode andar com os pés virados para dentro ou para fora em decorrência de alterações nos próprios pés. A adução dos pés, resultante de metatarsos varos, o pé torto congênito (equino‑varo‑aduto) e outras deformidades dos pés também podem ser responsáveis por esse tipo de marcha (Figura 11). A avaliação dos pés é importante e deve ser realizada de maneira cuidadosa para se evitar erros de diagnóstico. Na paralisia cerebral, a marcha pode ser feita com os pés vi‑ rados para fora em uma tentativa de ampliar a base de susten‑ tação e obter um equilíbrio corpóreo melhor. Deformidades graves dos pés podem levar à abdução do an‑ tepé, provocando a marcha em rotação lateral. Tratamento e orientações nos desvios rotacionais Após a identificação do problema e de sua origem no quadril, na perna ou nos pés, é preciso saber orientar os familiares nos
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A
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Figura 9 (A) Escorregamento de epífise proximal do fêmur em adolescente com 13 anos. Notar a posição em rotação lateral do membro inferior esquerdo. (B) Escorregamento da epífise femoral proximal em adolescente de 13 anos. Radiografias mostam a deformidade na região do colo femoral esquerdo (seta). Notar a diferença com o quadril direito que não foi acometido.
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DESVIOS ANGULARES E ROTACIONAIS DOS MEMBROS INFERIORES •
casos em que uma correção espontânea é esperada, e solicitar exames complementares ou avaliação do ortopedista pediátri‑ co quando necessário um tratamento especializado. As crianças que têm anteversão de colo femoral, com res‑ pectivo aumento da rotação medial do quadril, requerem orientações no sentido de corrigir a postura de sentar e deitar. A utilização de órteses pode ou não ser necessária para pro‑ porcionar uma correção funcional desse tipo de problema. A recomendação de atividades físicas adequadas também é útil. Os exercícios de postura e a própria conscientização da criança auxiliam a correção. Há tendência à correção espontâ‑ nea desse tipo de marcha ao redor dos 5 ou 6 anos de idade, quando o único problema é a anteversão do colo femoral. Vale lembrar que os pacientes que andam com os pés vira‑ dos para fora podem ter uma doença grave nos quadris, que é
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o escorregamento da epífise proximal do fêmur. Devem ser avaliados por especialista, e o tratamento é urgente. Doenças neurológicas, como a paralisia cerebral e a mielo‑ meningocele, requerem avaliações cuidadosas, pois geralmen‑ te necessitam de tratamento ortopédico operatório (Figura 12). As deformidades rotacionais nas doenças neuromuscula‑ res se devem à presença de um desequilíbrio muscular e, por‑ tanto, não tendem a melhorar, e sim a se agravar com o passar do tempo. As deformidades mais graves dos pés são passíveis de trata‑ mento operatório, como nos casos de sequelas de pés tortos congênitos e de doenças neuromusculares. O pé metatarso varo geralmente tem uma evolução benig‑ na, com correção espontânea (Figura 13).
Figura 12 Pés em paciente com paralisia cerebral. A deformidade em geral é progressiva em razão do desequilíbrio muscular.
Figura 10 ângulo coxa‑pé. Formado por linhas traçadas no eixo longitudinal da coxa e na planta do pé. Deve ser medido com o paciente em decúbito ventral, flexão de 90o do joelho e quadril em rotação neutra.
Figura 11 Pé torto equino varo aduto bilateral.
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Figura 13 Pé metatarso varo.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer os critérios objetivos dos conceitos de valgo e varo aplicáveis à conformação dos membros inferiores. • Saber que joelho valgo e joelho varo podem ser de origem fisiológica. • Conhecer o desenvolvimento normal das angulações dos joelhos das crianças para evitar tratamentos desnecessários. • Saber identificar a tendência hereditária familiar de valgismo e varismo. • Formular diagnóstico diferencial de valgismo e varismo, incluindo raquitismo, displasias epifisárias, osteogênese imperfeita e doença de Blount. • Diagnosticar, por exame físico, os desvios rotacionais dos membros inferiores e o perfil de marcha decorrente. • Saber indicar exames de imagem para diagnóstico de desvios angulares e rotacionais de membros inferiores. • Orientar apropriadamente os pais da criança e encaminhá-la, quando necessário, à avaliação do ortopedista pediátrico.
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Referências bibliográficas 1. 2.
Salenius P, Vankka E. The development of the tibiofemoral angle in chil‑ dren. J Bone Jt Surg 1975; 57 A. Mercer R. Toeing in and toeing out: gait disorders. In: Wenger D, Mercer R. The art and practice of children’s orthopaedics. New York: Raven Press, 1993.
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CAPÍTULO 5
DEFORMIDADES CONGÊNITAS DOS PÉS Alexandre Francisco de Lourenço José Antonio Pinto
Introdução Há diversas alterações congênitas dos pés que podem ser en‑ contradas no recém-nascido; uma das mais comuns é o pé tor‑ to congênito (PTC). Com o uso de ultrassonografia morfológi‑ ca, muitos diagnósticos são feitos ainda no período pré-natal. O termo “pé torto congênito” é usado para se referir ao pé equino-cavo-varo. O PTC pode ser uma deformidade isolada (idiopática) ou associada com outras alterações (Figura 1). Outras formas de alterações congênitas incluem o metatar‑ so aduto, o pé calcâneo valgo e o pé talo vertical. O metatarso aduto é uma alteração apenas da parte anterior do pé, que se encontra aduzido. Geralmente tem uma boa evolução, mesmo nos casos mais acentuados, podendo ser tratado com gessos ou órteses. O pé calcâneo valgo é apenas uma alteração postu‑ ral causada pela posição dos pés dentro do útero e regride fa‑ cilmente em poucos dias, espontaneamente ou com exercí‑ cios e manipulações feitos pelos pais. O pé talo vertical é a forma mais grave de PTC e geralmente está associada a outras alterações, como artrogripose ou mielomeningocele. Essa al‑ teração geralmente requer tratamento cirúrgico (Figura 2). Pé torto congênito (equino-cavo-varo) A etiologia do PTC é desconhecida e a sua incidência é muito variável. Em São Paulo, foi observada uma incidência de 2,17/1.000 nascidos. Há acometimento bilateral em torno de 50% dos casos. O sexo masculino é mais acometido, em uma proporção aproximada de 2:1.
Figura 1 Aspecto clínico do pé torto congênito bilateral com a deformidade característica em equino-cavo-varo.
Figura 2 Pé talo vertical, também chamado de "pé em mata-borrão" ou pé plano valgo convexo, uma das mais graves formas de deformidade congênita.
Diagnóstico É possível ter o diagnóstico pré-natal por meio da ultrassono‑ -cavo-varo. O principal componente da deformidade no PTC é grafia (Figura 3).1 Contudo, apenas ao nascimento pode-se fa‑ a luxação medial do complexo formado pelo navicular, calcâ‑ zer efetivamente o diagnóstico pelo exame físico. Não há neces‑ neo e cuboide em relação ao talo. sidade de radiografias ou qualquer outro exame complementar. Tratamento Patologia Atualmente, tem-se observado uma mudança importante no A deformidade é bastante característica e envolve a perna, que modo de tratamento do PTC em virtude da imensa repercus‑ apresenta atrofia da panturrilha, e o pé, que está em equino‑ são mundial obtida pelo método conservador de Ponseti, que
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tem representado uma revolução no manejo do PTC.2,3 É ex‑ O método Ponseti envolve manipulações suaves e trocas tremamente simples, indolor e, quando aplicado corretamen‑ gessadas realizadas semanalmente, sendo necessárias geral‑ te, com o auxílio da amamentação materna, muitas vezes a mente 5 semanas em média para obter a correção de quase to‑ criança até dorme durante a confecção do gesso corretivo (Fi‑ dos os componentes da deformidade, exceto o equinismo, que gura 4). Esse tratamento permite a correção de 90% dos casos exige um pequeno procedimento cirúrgico, a tenotomia do de pé torto idiopático, independentemente de sua gravidade. tendão calcâneo (Figura 5). É importante o pediatra saber alguns passos desse trata‑ São pontos fundamentais para o sucesso do tratamento: mento para poder lidar com as dúvidas dos pais, reforçar as re‑ • a criança deve estar calma; a amamentação deve ser estimula‑ comendações dadas pelo ortopedista pediátrico e colaborar da durante a confecção do gesso em um ambiente adequado; com o sucesso dos resultados. • duas pessoas devem fazer o gesso inguinopodálico (não pode ser feito gesso curto tipo “botinha”); • nunca se deve forçar o pé (apenas moldá-lo bem); • tenotomia do tendão calcâneo deve ser realizada quando res‑ ta apenas o equino como deformidade.
Figura 3 Ultrassonografia mostrando diagnóstico pré-natal de pé torto congênito.
Figura 4 A confecção do gesso deve ser bem feita, moldando o pé em correção progressiva a cada semana.
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Após a retirada do último gesso, a manutenção da correção é realizada por uma barra de abdução (aparelho de Denis-Brow‑ ne), em uso contínuo por 3 meses, seguido por uso noturno em um período de 3 a 4 anos (Figura 6). Quando a deformida‑ de é unilateral, o membro normal deve ficar em rotação exter‑ na de 40°. Há algumas dificuldades com o método, sendo a principal a adesão ao uso da órtese. A falha de se usar a órtese é a maior causa de recidiva da deformidade. A importância do uso ade‑ quado para manter a correção deve ser bem enfatizada para os pais. Aqueles que seguem corretamente o uso da órtese são os que obtêm o melhor resultado (Figura 7).
Figura 5 A tenotomia do tendão calcâneo é a última etapa antes do gesso final. Apenas um ponto é necessário e não fica cicatriz.
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Deformidades Congênitas dos Pés •
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fazer qualquer procedimento cirúrgico e, algumas vezes, po‑ dem ser totalmente corrigidos.4 Assim, provavelmente no fu‑ turo serão cada vez mais raras as indicações de liberações ci‑ rúrgicas mais amplas. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que o pé torto congênito é uma das mais comuns alterações congênitas dos pés. • Lembrar que é possível ter o diagnóstico pré-natal de pé torto congênito por meio do uso da ultrassonografia. • Entender que o tratamento conservador corrige a maioria dos casos de pé torto congênito. Figura 6 A órtese de abdução deve ser usada por tempo integral durante 3 meses após o final da fase de gessos, ou seja, pode ser retirada apenas para banho. Após esse período, deve ser mantida por mais 3 anos para uso durante o sono (12 h/dia).
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Figura 7 Aspecto clínico antes e depois do tratamento pelo método Ponseti.
Tratamento cirúrgico Com o emprego adequado da técnica de Ponseti, as indicações de cirurgias extensas diminuíram. Mesmo pacientes com pés inveterados têm benefício de manipulação gessada antes de se
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Referências bibliográficas 1.
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CAPÍTULO 6
DORES NOS MEMBROS INFERIORES DA CRIANÇA Cláudio Santili Gilberto Waisberg Miguel Akkari
Introdução Casos de crianças com dores de origem traumática pratica‑ mente dispensam maior investigação clínica, enquanto as causas não traumáticas exigem uma avaliação pormenorizada. Exames subsidiários costumam ser puramente auxiliares para confirmar ou negar a hipótese formulada. O histórico de trauma facilita muito a localização da dor e a elaboração diagnóstica, mas a investigação das causas não traumáticas é mais difícil, podendo ser afecções sistêmicas ou irradiação da coluna vertebral. Por outro lado, o fácil diagnóstico de lesão traumática exige, em situações especiais, como na criança de baixa idade, uma investigação circunstancial quanto ao agente, pois pode se tra‑ tar de negligência ou mesmo abuso físico. A idade é essencial na avaliação de dores nas pernas. Em casos de bebês que ainda não caminham e não falam, a histó‑ ria clínica é fornecida pelos cuidadores e deve ser consistente, detalhada e complementada por exame físico acurado. Crian‑ ças maiores podem fornecer informações, que são comple‑ mentadas pelas dos adultos. O foco deste capítulo são as dores nos membros inferiores de causa não traumática, apresentadas segundo as causas mais frequentes na prática clínica, em uma ordem de acordo com a idade e o segmento da perna afetado: articulações do quadril, joelho, tornozelo, pés ou diáfises. Isso não significa que determinada afecção não possa ocorrer em outra idade. Lactentes têm uma vulnerabilidade muito grande do orga‑ nismo, principalmente às infecções; cada bacteremia prove‑ niente de um foco a distância, como as vias aéreas superiores, expõe as articulações a um risco de formação de êmbolos sép‑ ticos. Articulações que têm a metáfise óssea incluída no am‑ biente capsular, como as regiões proximais do fêmur e do úmero, podem disseminar um foco infeccioso inicialmente in‑ traósseo, caracterizando a osteoartrite. O abscesso pode estar mascarado por um hematoma, mais viscoso ou serossangui‑ nolento, com grumos; se houver pus, é preciso drená-lo, além de administrar antibioticoterapia apropriada. Sempre que
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possível, evitar as retrações de partes moles e manter a estabi‑ lidade esquelética ou articular. Crianças maiores apontam a localização dos processos in‑ fecciosos articulares ou ósseos e passam a claudicar e a “defen‑ der” a região da dor. O diagnóstico diferencial da dor no quadril pode ser difícil quando não houver febre ou manifestação de comprometi‑ mento sistêmico; principalmente nas crianças acima da idade pré-escolar, deve-se incluir a sinovite transitória e a doença de Legg-Calvé-Perthes. Sinovite transitória do quadril A sinovite transitória do quadril é uma condição inflamatória autolimitada e não específica. É a causa mais frequente de dor no quadril nas crianças com menos de 10 anos, acometendo mais os meninos que as meninas (3:1) e afetando mais o lado direito. É frequentemente precedida por infecção das vias aé‑ reas superiores nos últimos 30 dias, mas não há comprovação de infecção nos dados laboratoriais ou mesmo no líquido sino‑ vial eventualmente aspirado. A dor costuma aparecer subitamente, após atividade física mais intensa. O aumento do volume articular e a distensão capsular desencadeiam a dor, que pode irradiar-se para a face medial da coxa e do joelho, fazendo a criança claudicar. Pode haver um quadro pré-febril, mas a criança não fica prostrada e apenas a dor limita a sua atividade. A rotação interna do qua‑ dril e a adução causam aumento súbito da dor e, portanto, es‑ ses movimentos ficam limitados. A atitude antálgica mantém o quadril em um grau variável de flexão (Figura 1). Na investigação complementar, o hemograma e a velocida‑ de de hemossedimentação (VHS) são normais ou discreta‑ mente alterados. A radiografia pode exibir distensão da cápsu‑ la articular, mas o exame mais apropriado é a ultrassonografia, não havendo necessidade de exames mais sofisticados e one‑ rosos (Figura 2). O tratamento consiste de medidas gerais analgésicas e re‑ pouso.
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Figura 1 Posições de conforto do membro inferior: flexão, abdução e rotação lateral moderadas, apoiando o segmento corpóreo no leito.
Figura 2 Rarefação metafisária no colo femoral: sinal tardio de osteoartrite do quadril.
A reavaliação na fase ativa do processo é obrigatória, mes‑ mo desaparecendo os sintomas, e também 8 a 10 semanas após o quadro agudo, para descartar afecção reumática e ne‑ crose avascular.
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Doença de Legg-Calvé-Perthes A doença de Legg-Calvé-Perthes é definida como uma necrose avascular do núcleo secundário de ossificação da epífise proxi‑ mal do fêmur durante o desenvolvimento da criança. Pode ocorrer dos 2 aos 16 anos, mas é mais comum entre 4 e 9 anos. Trata-se de uma doença autolimitada de causa desconheci‑ da, na qual automaticamente se instala o processo de repara‑ ção, com vasos e tecidos neoformados, que gradativamente substituem o osso morto por osso imaturo e não mineralizado. Durante esse processo, o que se observa na evolução radiográ‑ fica é a substituição gradativa da massa óssea densa (fase de necrose), que vai sendo interpenetrada por um tecido de ra‑ diotransparência aumentada, acinzentada e mais escura, como que tornando a cabeça femoral “pulverizada”, “floculada” e, muitas vezes, com aparência de haver espaços “vazios e sem osso”, que caracterizam o tecido cartilaginoso na fase de reossificação (Figura 3). A incidência da doença de Legg-Calvé-Perthes é variável, havendo relatos desde 1:12.500 até 1:1.200, sendo mais co‑ mum nos meninos (4:1) e na raça branca. O início dos sinto‑ mas ocorre em mais de 80% das vezes entre 4 e 9 anos, com pico de acometimento em torno dos 6 anos de idade. O lado esquerdo é mais acometido; a bilateralidade ocorre em 10 a 20% dos casos. O quadro clínico inicial pode ser de dor e claudicação rela‑ cionadas com atividade física, às vezes confundidas com algu‑ ma espécie de trauma. São localizadas na região inguinal ou irradiadas no território sensitivo do nervo obturatório para a face medial da coxa e do joelho. Ao exame clínico articular, há maior ou menor restrição dos movimentos de rotação interna, abdução e flexão. A contratu‑ ra intensa dos adutores ao movimento de abdução do quadril indica pior prognóstico, assim como a restrição global da mo‑ bilidade articular. Também influem no prognóstico da doença a idade de início – quanto menor a idade, maior a possibilida‑ de de remodelação e adaptação –, o sexo e a obesidade. O principal diagnóstico diferencial é a artrite infecciosa, cujo sintoma é a dor intensa, acompanhada de febre e grande incapacidade funcional, em razão da posição antálgica. É co‑ mum haver sinais de comprometimento geral e alterações la‑ boratoriais, como aumento da VHS, da proteína C reativa (PCR) e leucocitose com desvio à esquerda. A certeza do diag‑ nóstico diferencial obtém-se mediante a punção articular e a aspiração de material infeccioso ou francamente purulento. Artrites de origem reumatológica, principalmente as pauciar‑ ticulares, podem ter seu início confundido com a doença de Legg-Calvé-Perthes. O diagnóstico diferencial é feito com exa‑ mes de laboratório e de imagem. O comprometimento é mais localizado na interface articular, e não no núcleo ósseo da cabeça femoral. As artrites reumáticas são caracterizadas por osteopenia regional e irregularidades nos contornos das su‑ perfícies articulares. Tumores ósseos também podem ser con‑ fundidos com a doença de Legg-Calvé-Perthes, principalmen‑ te os que acometem a epífise ou os justaepifisários, como granulomas eosinófilos, osteoblastomas, condroblastomas, linfomas e osteoma osteoide. Outra doença inflamatória que
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Figura 3 Fases radiográficas da doença de Legg-Calvé-Perthes: (A) predomínio de necrose; (B) fragmentação do núcleo; (C) reossificação. (D) Radiografia demonstrando a cabeça femoral reossificada. Observar as diferentes densidades radiográficas do osso, fundidas com alguma espécie de trauma. São localizadas na região inguinal ou irradiadas no território sensitivo do nervo obturatório para a face medial da coxa e do joelho.
também deve ser excluída no diagnóstico da doença de Legg‑ -Calvé-Perthes é a artrite tuberculosa, na qual há provas tuber‑ culínicas positivas e maior envolvimento da cartilagem articu‑ lar com pinçamento do espaço do que comprometimento do núcleo ósseo epifisário. Em caso de comprometimento bilate‑ ral dos quadris, devem ser afastadas as hipóteses de displasias epifisárias ou espondiloepifisárias, cujos portadores têm bióti‑ po característico e história familiar de hipotireoidismo, que acomete crianças de menor idade, nas quais se devem investi‑ gar os hormônios tireoidianos, e de anemias hemolíticas, como a falciforme, que pode ser evidenciada com provas posi‑ tivas de falcização. O objetivo principal do tratamento na doença de Legg-Cal‑ vé-Perthes é obter e manter a centralização do quadril durante o período ativo da doença, por meio de procedimentos cirúrgi‑ cos ou conservadores, estes representados por todo o apare‑ lho que “deixe a criança andar” (aparelhos de descarga), imo‑ bilização em aparelhos gessados ou plásticos, ou ainda repouso no leito, com deslocamento em cadeiras de rodas ou com o uso de muletas. Epifisiólise A partir do período pré-púbere, a queixa de dor na região in‑ guinal ou na face medial da coxa e do joelho, acompanhada de claudicação mal relacionada com trauma, indica o risco de es‑
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corregamento epifisário proximal do fêmur, também conheci‑ do por epifisiólise ou epifisiolistese, caracterizado pelo deslo‑ camento posterior da epífise em relação ao colo do fêmur (Figura 4). A doença incide entre 10 e 16 anos nos meninos e entre 8 e 15 anos nas meninas, em uma proporção de 2 meni‑ nos para cada menina, sendo que o dobro de casos acomete o lado esquerdo, em comparação com o direito. O início da dor pode ser agudo ou insidioso, e ela pode ser localizada no quadril, na região inguinal ou irradiar-se para a face interna da coxa e do joelho. O paciente pode deambular claudicando com ou sem dor ou estar incapacitado para o apoio e a marcha. Pode haver ainda atitude em flexão e rota‑ ção externa do quadril e diminuição da rotação interna. No exame radiográfico, pode-se constatar a presença e/ou a gravidade da doença de acordo com o grau de escorregamen‑ to da epífise. Na incidência radiográfica de frente da bacia, no pré-deslizamento, observa-se um alargamento da altura da fise e porose, com o borramento da metáfise do colo; no desli‑ zamento leve, nota-se uma diminuição da altura no dômus central da fise, quando comparada com a altura do lado nor‑ mal (Figura 5). Na incidência de perfil do quadril, observa-se o escorregamento posterior da cabeça femoral que, no desliza‑ mento leve, é menor que 1/3 do diâmetro do colo; no desliza‑ mento moderado, é menor que a metade do colo; e no desliza‑ mento grave, ultrapassa a metade da largura do colo.
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O tratamento da epifisiólise caracteriza uma emergência or‑ casos, pode ser feita a fixação in situ, com um parafuso canula‑ topédica, em razão do risco de progressão da doença, sendo ne‑ do percutaneamente que promove a epifisiodese da cabeça cessária a intervenção precoce. O tratamento de eleição é cirúr‑ com o colo do fêmur (Figura 6). Para os casos graves, reservam‑ gico e varia conforme o grau do deslizamento. Na maioria dos -se as osteotomias, que são procedimentos mais complexos. As complicações mais temidas são a necrose da cabeça fe‑ moral e a condrólise, que podem ser espontâneas ou decorren‑ tes do tratamento. Dor anterior no joelho do adolescente A prática esportiva sem avaliação médica e orientação técnica especializada pode ser prejudicial, pois muitas vezes ultrapas‑ sa o limite biológico do sistema musculoesquelético, com ris‑ co de lesões por esforços repetitivos. É preciso que o médico, ao orientar um jovem e seus pais, reforce conceitos fisiológi‑ cos sobre saúde e atividade física, considerando o crescimento rápido que ocorre nesse período e a necessidade de autoafir‑ mação por parte do jovem. Na sociedade moderna, a mídia acaba por estimular o cuidado excessivo com o corpo, e muitas academias despreparadas têm gerado condicionamentos físi‑ cos inadequados e adversos que podem desencadear proble‑ mas na vida adulta do adolescente. É aconselhável que o jo‑ vem seja bem avaliado individualmente e orientado para uma atividade física pertinente, a fim de não se submeter a profis‑ sionais ou equipamentos inadequados aos objetivos de saúde física e mental. Não são recomendáveis, por exemplo, exercí‑
Figura 4 Epifisiolistese do quadril, mostrando o desvio agudo da epífise para a região posterior do colo.
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Figura 5 Sinais radiográficos para o diagnóstico do escorregamento epifisário. (A) Aumento da altura da placa de crescimento. (B) Diminuição da altura do núcleo epifisário. (C) Sinal de Trethowan, quando a linha de Klein não atravessa parte da epífise. (D) Sinal de Steel: pontos de radiolucência no colo, indicando que a epífise deslocou para a região posterior, sobrepondo-se à imagem do colo (sinal crescente).
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Figura 6 Fixação in situ de escorregamento epifisário femoral proximal leve.
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cios de musculação às meninas antes dos 14 anos e aos meni‑ nos antes dos 16 anos. A dor ou desconforto na região anterior do joelho do adoles‑ cente é uma sintomatologia quase sempre inespecífica e deve fazer parte do diagnóstico de algumas afecções que se locali‑ zam no quadril, pois pode ser uma dor referida. Os pacientes devem ser submetidos a uma anamnese completa e examina‑ dos deitados, devendo-se avaliar coluna, quadris e todo o membro inferior. Além do inventário sobre atividades, vícios posturais, ante‑ cedentes pessoais e familiares, devem-se considerar predispo‑ nentes anatômicos locais, como instabilidade capsuloliga‑ mentar, instabilidade patelar, plica sinovial, osteocondrite dissecante, nevralgia traumática do nervo safeno, doença de Osgood-Schlatter e tendinite do polo inferior da patela (doen‑ ça de Sinding-Larsen-Johanson). Muitos adolescentes não conseguem apontar o local de dor, indicando toda a região anterior do joelho. Essa dor ou o des‑ conforto mal localizado, relacionados ou não com a atividade física, obrigam a investigação da musculatura e, frequente‑ mente, o que se encontra é uma enorme retração dos múscu‑ los isquiotibiais. A comprovação clínica é feita pelo teste de flexão do quadril com o joelho mantido em extensão, o que provoca a retificação da lordose lombar acompanhada de dor moderada, mas aguda (tipo estiramento), que se localiza pos‑ teriormente na coxa ou no cavo poplíteo. A causa dessa inade‑ quação não é clara, mas provavelmente é reflexo do desequilí‑ brio entre a atividade física (que é voltada apenas para o ganho de massa muscular), a ausência de exercícios para alonga‑ mento muscular e o ritmo de crescimento ósseo acelerado. As‑ socia-se a isso o fato de que, em grande parte do seu tempo, o adolescente é sedentário, permanecendo sentado – e mal sen‑ tado – na escola, no carro ou diante do computador, manten‑ do uma atitude de flexão dos joelhos. Quando excluída uma causa orgânica estrutural mediante o exame físico – eventualmente, complementado por uma ra‑ diografia simples –, tem-se uma disfunção, cuja reabilitação se baseia em exercícios fisioterápicos para o reequilíbrio e a readaptação musculoesquelética. Entre as causas orgânicas mais comuns de dor na região anterior do joelho está aquela localizada na tuberosidade an‑ terior da tíbia, onde se insere o ligamento patelar. Conhecida como doença de Osgood-Schlatter, o processo era mais co‑ mum nos meninos, mas, com o incremento das atividades fí‑ sicas de jovens de ambos os sexos, tem se tornado frequente também nas meninas. Definida originalmente como trauma‑ tismo com avulsão parcial do tubérculo tibial, é tida hoje como epifisite (inflamação da epífise de tração), resultado de um processo contínuo de microtraumas por tração ou esforços constantes. Além da queixa de dor localizada que piora à digi‑ topressão, à flexão máxima, à extensão abrupta e ao subir e descer rampas, ocorre o aumento de volume local com tume‑ fação do tubérculo tibial anterior, muitas vezes bilateral. A in‑ vestigação da mobilidade articular e da elasticidade dos mús‑ culos denuncia o encurtamento concomitante e significativo dos flexores dos joelhos (retração dos músculos isquiotibiais).
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As radiografias simples nas projeções frontal e de perfil de‑ vem ser realizadas para descartar outras causas de dor, como tumor ósseo. A projeção de perfil exibirá uma irregularidade ou até mesmo a presença de um ossículo na inserção do liga‑ mento patelar junto à tuberosidade anterior da tíbia (Figura 7). Habitualmente, os pacientes respondem bem ao tratamen‑ to conservador com aplicação de gelo (crioterapia) no local, uso de anti-inflamatórios não hormonais (AINH) e fisiotera‑ pia, que se inicia com medidas anti-inflamatórias locais segui‑ das de cinesioterapia com alongamento dos músculos isquio‑ tibiais e quadríceps e, depois, fortalecimento equilibrado de ambos os grupos musculares.
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Figura 7 Doença de Osgood-Schlatter: (A) aspecto clínico e (B) radiográfico.
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Dores nos Membros Inferiores da Criança •
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Períodos curtos de imobilização podem ser adotados quan‑ do a dor é muito intensa e o jovem não consegue deslocar-se durante as atividades da vida diária. São muito raras as eventualidades de tratamento cirúrgico com enucleação do ossículo heterotópico na tuberosidade ti‑ bial. Esse tratamento é reservado para casos de dor incontro‑ lável, posto que, quase sempre, a dor cede com a chegada da maturidade. Esses ossículos podem ser ressecados quando a dor persiste na vida adulta. Dores nas pernas A chamada “dor do crescimento” é um tema de discussão obri‑ gatória para desmistificar situações que se consagraram e se perpetuaram sem uma consubstanciada investigação etiopa‑ togênica. Um exemplo típico é a história de uma criança com idade entre 3 e 6 anos que acorda no início da noite (mais raramente, mais tarde) com um choro agudo e se queixa de dores nas per‑ nas. Não há localização exata, podendo ser apontada toda a perna, a coxa ou o cavo poplíteo. A mãe refere ainda que, após breve massagem, a criança logo adormece e acorda no dia se‑ guinte sem qualquer manifestação da dor noturna. Raramente é necessário administrar analgésico. A anamnese dirigida con‑ firma que não há regularidade para o aparecimento das dores, mas que frequentemente acontecem após um dia de atividade física recreativa mais intensa. É comum que a criança não seja muito disposta a caminhadas e menos interessada por espor‑ tes que utilizam a corrida. A mãe frequentemente informa que a criança pede colo quando caminha, acha que a criança tem “marcha pesada” e que já procurou vários médicos, que teriam dito que era “normal, pois era dor de crescimento”. Se todas as crianças crescem, por que só algumas sentem as tais “dores do crescimento”? Se todo o organismo está cres‑ cendo, por que a “dor do crescimento” só afeta os membros in‑ feriores? Não deveria também haver dor na coluna e nos mem‑ bros superiores, que também estão crescendo? Se o crescimento vai desde o nascimento até o final da adolescên‑ cia, por que essas dores ocorrem quase que exclusivamente no período pré-escolar? É tudo muito obscuro, mas não pode ser aceito com tamanha simplicidade, justificando-se uma inves‑ tigação séria dos casos. A investigação clínica inclui a história detalhada, seguida de um rigoroso exame clínico postural e de todo o sistema musculoesquelético quanto a inspeção, palpação e testes de amplitude articular. Frequentemente pouco substrato anato‑ mofuncional é encontrado, restando duas situações bem iden‑ tificáveis. Na primeira delas, a criança tem uma espécie de pé plano postural (perda do arco longitudinal do pé ao estar ereta, quando exerce as pressões de carga sobre o pé) e, ao exame do retropé, existe um valgo do calcâneo (Figura 8) com uma an‑ gulação “negativa” do eixo do tendão calcâneo, mas que se tor‑ na “positiva” quando se solicita que a criança fique na “ponta dos pés”, refazendo-se o arco longitudinal e exibindo o varis‑ mo normal do calcâneo. O valgismo do calcâneo leva a uma di‑ ficuldade flagrante para a propulsão à marcha e a criança exer‑ ce a atividade em um limiar elevado de solicitação muscular.
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Figura 8 Valgo do retropé caracterizado pelo desvio lateral do tendão calcâneo.
Em repouso, os músculos podem sofrer contrações e retrações adaptativas, que podem causar dor similar à das cãibras. Um teste clínico terapêutico simples constitui-se na adição de uma palmilha no interior do calçado com elevação da borda interna dos retropés (para neutralizar o valgo dos calcâneos) e apoio para o arco longitudinal. Ao usá-la, a criança passa a sentir maior conforto e tem melhor desempenho nas ativida‑ des físicas habituais. Pode-se dizer que passa a “gostar de usar a palmilha”, cansando-se menos e tornando-se mais competi‑ tiva. As dores noturnas praticamente desaparecem ou tor‑ nam-se muito mais espaçadas e raras. O acompanhamento clínico mostra que a criança, por si só, atingirá a superação dessa “dificuldade mecânica”, neutrali‑ zando o valgo com o próprio desenvolvimento e dispensando o uso da palmilha, uma vez que ela não é um artefato corretivo, mas um acessório coadjuvante temporário. Mais questionáveis são as dores nos membros inferiores das crianças geradas por adaptações do tronco ou das próprias pernas às alterações posturais torcionais. O exemplo mais co‑ mum desse tipo de acometimento é a persistência da torção externa da tíbia (mais comum à direita) da postura fetal, que, no crescimento, é compensada pela rotação interna de todo o membro inferior. Por vezes, as crianças são afligidas nos qua‑ dris, nos joelhos e até no tronco, mimetizando uma escoliose lombar por rodarem o tronco compensatoriamente sobre o membro inferior, o que poderia ser qualificado como síndrome torcional. As queixas muitas vezes são vagas, mas a criança é tida como desengonçada e portadora de má postura. Eventualmente, crises de dores são deflagradas nos qua‑ dris, o que leva a diagnósticos como a sinovite transitória do quadril. Diante desse quadro, é obrigatória a pesquisa do ân‑ gulo coxa-pé, que revela quase sempre uma torção interna ou externa da perna em relação ao fêmur (Figura 9). Não é neces‑ sária a correção, mas exige a compreensão dos pais e a cons‑ ciência de que a dor ou o desconforto podem surgir nos exces‑ sos de solicitação mecânica da atividade da criança. O
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Figura 9 Ângulo coxa-pé indicando a torção externa da perna.
desenvolvimento e a prática diária vão promovendo fenôme‑ nos adaptativos compensatórios de rotação dos membros in‑ feriores e do tronco, tornando a deformidade muito pouco per‑ ceptível esteticamente. Coalizão tarsal Coalizão tarsal é definida como a união entre dois ou mais os‑ sos do tarso, consequente a uma falha congênita. Essa união pode ser óssea, cartilaginosa ou fibrosa, dependendo do teci‑ do encontrado no local da coalizão. Não raramente, as coali‑ zões são isoladas, mas podem coexistir com outras malforma‑ ções, como a hemimelia fibular, a síndrome de Apert e a síndrome de Nievergelt-Pearlman. As coalizões tarsais mais comuns são a calcaneonavicular e a talocalcânea, que juntas somam 90% dos casos, mas apenas cerca de metade são sintomáticos. A idade de início da dor na coalizão calcaneonavicular osci‑ la entre 8 e 12 anos, e na talocalcânea é de 12 a 16 anos, o que coincide com a metaplasia da cartilagem para osso, ou seja, a ossificação do tecido que era cartilaginoso. Em geral, a dor é insidiosa e pode ter localização no seio do tarso ou ser difusa, piorando com a atividade física e melhorando com o repouso. Pode-se observar ainda o valgo progressivo do retropé, um aplanamento gradativo do arco longitudinal medial e a dimi‑ nuição da mobilidade subtalar, com dificuldade adaptativa em solos irregulares e para a velocidade na corrida. O paciente deve ser inteiramente examinado, com o objeti‑ vo de se avaliarem malformações associadas. No exame espe‑ cífico, direcionado pela queixa de dor e mau posicionamento do pé, deve-se atentar para a inspeção do arco longitudinal medial, que pode estar ausente ou diminuído, acarretando um pé plano com retropé em valgo. Dois testes permitem verificar a mobilidade da subtalar: o teste de Jack, no qual se eleva pas‑ sivamente o hálux do paciente, devendo-se observar o resta‑ belecimento da forma do arco longitudinal (medial) do pé (Fi‑ gura 10), que indica mobilidade da subtalar; no outro teste, pede-se que o paciente fique nas pontas dos pés e, se houver mobilidade normal da subtalar, ocorrerá um varo do calcâneo. Em um pé plano flexível, a mobilidade da subtalar é normal; se
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o pé plano for causado por uma coalizão, a mobilidade da sub‑ talar está comprometida. A diminuição da mobilidade da subtalar gera uma sobrecar‑ ga das articulações adjacentes, e os estudos radiográficos po‑ dem mostrar osteófitos marginais às articulações, como espo‑ rões de tração sob a forma de “bico” ou o alargamento do processo lateral do tálus. O estudo radiográfico dos pés na po‑ sição ortostática de frente e em perfil, incidências oblíquas e axiais, geralmente elucida a suspeita de uma barra óssea que pode ser mais bem visualizada na tomografia computadoriza‑ da (TC) axial (Figura 11). No caso de coalizões cartilaginosas sintomáticas, a cintilografia ou a ressonância magnética (RM) são mais indicadas no auxílio ao diagnóstico, uma vez que es‑ sas coalizões ainda cartilaginosas podem não ser detectáveis no estudo radiográfico simples. O tratamento das coalizões tarsais é feito apenas se houver sintomas e deve ser iniciado de forma conservadora, com o uso de palmilhas ou de imobilizações gessadas. Se não ocorrer a remissão do quadro com o tratamento conservador, está in‑ dicada a intervenção cirúrgica, podendo-se promover ressec‑ ção da coalizão e interposição de material inerte como gordura ou cera de osso, correções com o emprego associado de osteo‑ tomias ou até a artrodese com o objetivo de tratar a dor. Outras causas de dor nos pés da criança A doença de Köhler é uma osteocondrose desencadeada pela necrose do navicular do tarso. Trata-se de uma afecção benig‑ na que ocorre geralmente entre 4 e 5 anos de idade, sendo mais comum nos meninos (3:1), e que pode ser bilateral em 30% dos casos. A causa não é esclarecida, mas supõe-se que o dano vascular asséptico seja decorrente de esforços repetiti‑ vos no local, que ocluem os plexos vasculares do tecido espon‑ joso. O quadro clínico é de claudicação, muitas vezes sem dor, com edema e fenômenos inflamatórios na inserção do múscu‑
Figura 10 Teste de Jack: a elevação passiva do hálux restitui o arco longitudinal.
Figura 11 Coalizão tarsal: barra óssea entre o calcâneo e o osso navicular.
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lo tibial posterior. Ao exame radiográfico, há esclerose e irre‑ gularidade na ossificação do navicular (Figura 12). O tratamen‑ to é sintomático e, se a dor for intensa, recomenda-se imobilização por 6 semanas, mantendo o pé em equino e varo discretos. Após o episódio agudo, o uso de palmilha para o su‑ porte do arco longitudinal diminui o estresse e a dor no local. O prognóstico é bom. A apofisite de Sever é caracterizada por dor moderada ou intensa na tuberosidade posterior do calcâneo. A faixa etária em que ocorre com frequência é entre 9 e 11 anos nos meninos e entre 8 e 10 anos nas meninas. História de hipersensibilida‑ de, frequentemente ligada às atividades esportivas, e dor de‑ flagrada pela palpação da face posteromedial do calcâneo le‑ vam à suspeita clínica da apofisite, que deve ser diferenciada de outras afecções no local, como a tendinite do tendão calcâ‑ neo. É comum haver limitação da dorsiflexão do pé. O exame radiográfico é de pouca valia, uma vez que as irre‑ gularidades observadas na apófise posterior do calcâneo sin‑ tomático também podem ser evidenciadas no lado normal (Fi‑ gura 13). O tratamento é sintomático, com aplicação local de gelo e uso de AINH. Mecanicamente, a adoção de calçados com pe‑
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quenos saltos (2 a 2,5 cm) e repouso relativo quanto à ativida‑ de física aliviam a dor. Fisioterapia para alongamento do trí‑ ceps sural é uma boa medida para evitar prolongamento da crise ou mesmo recidiva da dor aguda. A osteocondrose de Freiberg, caracterizada pela necrose da cabeça do segundo metatarso (Figura 14) ou mais raramente do terceiro, pode ocorrer entre 10 e 18 anos de idade em indiví‑ duos previamente normais, com atividade física intensa. É mais comum nas meninas e pode ser bilateral. A causa é des‑ conhecida, mas os quadros clínico e laboratorial são típicos de um processo inflamatório. Clinicamente, há dor insidiosa que se exacerba com a ativi‑ dade física, o que força a propulsão dos pés. Pode também ha‑ ver edema e limitação da mobilidade da articulação metatar‑ sofalângica. O tratamento é a abstenção da atividade física, o controle da sintomatologia e medidas locais para diminuir a pressão na cabeça do metatarso. Outra causa de dor no pé no início da adolescência é o intu‑ mescimento clínico de uma saliência medial no pé, o navicular
Figura 13 Aspecto radiográfico irregular e aumento da densidade da apófise posterior do calcâneo (apofisite de Sever).
Figura 12 Aspecto radiográfico da necrose do osso navicular (doença de Köhler).
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Figura 14 Aspecto radiográfico da necrose da cabeça do metatarso (doença de Freiberg).
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acessório. Crianças portadoras dessa anormalidade têm apa‑ rente perda do arco longitudinal, mas que se corrige quando fi‑ cam na ponta dos pés, por solicitação máxima da ação do músculo tibial posterior. Costuma ser assintomática, mas pode tornar-se dolorosa no estirão do crescimento. A dor à palpação pode ser intensa quando há fenômenos inflamató‑ rios locais. Na radiografia, pode ser observado um ossículo acessório, do tipo sesamoide, no trajeto do tendão do tibial posterior (Fi‑ gura 15), ou um alongamento do navicular (“cornuto”), como se houvesse uma fusão com o acessório ou a presença de uma borra fibrocartilaginosa. É questionável a associação do navicular acessório com a perda do arco longitudinal nos pés planos flexíveis. Assim, quando estiver indicado o tratamento cirúrgico por dor incoer‑
cível, não é necessário o avanço do tibial posterior, reimplan‑ tando-o mais distalmente. Na maior parte desses casos, a dor resolve-se depois de cer‑ to período, mediante o uso de anti-inflamatórios e suporte do arco longitudinal com calçados que evitam o atrito local, além do afastamento das atividades físicas. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer o quadro clínico e planejar o tratamento inicial da sinovite transitória do quadril. • Conhecer o quadro clínico e planejar o tratamento inicial da necrose avascular (doença de Legg‑Calvé ‑Perthes). • Conhecer o quadro clínico e planejar o tratamento inicial da doença de Osgood-Schlatter. • Conhecer e orientar as famílias acerca das dores do crescimento. • Conhecer o quadro clínico e planejar o tratamento inicial da epifisiólise da cabeça femoral. • Conhecer os principais diagnósticos diferenciais das dores nos pés em crianças.
Bibliografia 1.
Figura 15 Presença de ossículo acessório no trajeto entre o tendão do músculo tibial posterior e o osso navicular.
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Hebert SK. Ortopedia para pediatras: queixas comuns na prática diária. Porto Alegre: Artmed, 2004. 2. Morrissey RT, Weinstein SL (eds.). Lovell and Winter’s pediatric ortho‑ paedics. 6.ed. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2006. 3. Richards BS. Atualização em conhecimentos ortopédicos Pediatria. Pe‑ diatric Orthopaedic Society of North America. São Paulo: Atheneu, 2002. 4. Santili C. Epifisiólise. Rev Bras Ortop 2001; (36):49-55. 5. Tachdjian MO (ed.). Ortopedia pediátrica. 2.ed. São Paulo: Manole, 1995.
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CAPÍTULO 7
A CRIANÇA E O ESPORTE Miguel Akkari Vanessa Ribeiro de Resende Cláudio Santili
Introdução O exercício tem um importante papel no desenvolvimento fí‑ sico e psicológico da criança. Como benefícios da atividade fí‑ sica na infância, têm-se a promoção de saúde e bem-estar, a redução de gordura corporal, o aumento da autoestima, auto‑ confiança, senso de responsabilidade e de grupo, a diminuição de estresse e ansiedade, a diminuição da delinquência e do uso de álcool e drogas. Além disso, a atividade física melhora as habilidades motoras, a expressão pessoal e de liberdade, leva a criança a um maior desenvolvimento espaço-temporal e ocasiona melhora na adaptação social.1 A criança apresenta particularidades que a diferenciam do adulto. Um erro comum é transportar o conhecimento adqui‑ rido com adultos para a população pediátrica. A controvérsia permanece em relação à quantidade de exercício que determi‑ na resultados benéficos. Essa resposta resulta da combinação, em cada indivíduo, de fatores genéticos, nutricionais e sociais. Infelizmente, a determinação de uma sobrecarga de exercícios mostra-se evidente após a ocorrência de lesões teciduais. Com a prática, aprende-se que o excesso só é reconhecido depois que ele já aconteceu, não podendo, na maioria das vezes, ser previsto.2 Este capítulo visa a elucidar algumas peculiaridades da prá‑ tica de atividades desportivas nas crianças e adolescentes, da avaliação à sua orientação. Aptidão e prescrição da atividade física A aptidão física é definida como o desempenho atingido em testes de potência aeróbica, composição corpórea, flexibilida‑ de, força e resistência dos músculos esqueléticos, ou seja, é a capacidade de um indivíduo desempenhar suas funções coti‑ dianas sem prejuízos ao equilíbrio biopsicossocial e que é de‑ terminada sobretudo pela prática de atividade física.3,4 O objetivo primordial da aptidão física para criança e ado‑ lescente, segundo o Colégio Americano de Medicina Esportiva (ACSM), é incentivar a adoção de um estilo de vida apropriado, com prática de exercícios por toda a vida, com o intuito de
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desenvolver e manter o condicionamento físico suficiente para a melhoria da capacidade funcional e da saúde. A quanti‑ dade de exercício necessária para uma capacidade funcional adequada e promoção da saúde nas várias idades não é preci‑ samente definida. As atuais recomendações preconizam que crianças e adolescentes realizem entre 20 e 30 minutos de ati‑ vidade física por dia.3 Nas escolas, os programas de educação física são uma parte importante do processo geral de educação e devem ser incen‑ tivados para desenvolver e manter hábitos de prática de exer‑ cício ao longo da vida e prover instruções sobre como adquirir e manter uma aptidão física adequada. Além dos programas escolares, é preciso também incentivar o engajamento em ati‑ vidades extracurriculares, com objetivo recreacional.3 De forma individualizada, deve-se estimular a atividade fí‑ sica nas crianças. O objetivo principal da prescrição de ativida‑ de física é criar o hábito e o interesse pela atividade física de forma lúdica, não visando ao desempenho competitivo, mas com integração e sem discriminação. A atividade física agra‑ dável e prazerosa deve ser incluída no cotidiano, para toda a vida (Figuras 1 e 2). Igualmente importante é oferecer alterna‑ tivas para a prática desportiva, contemplando interesses indi‑ viduais e o desenvolvimento de diferentes habilidades moto‑ ras, contribuindo para o despertar de talentos.5 A participação infantil em jogos esportivos envolve uma in‑ teração complexa de muitos fatores físicos, psicológicos e so‑ ciais. Algumas crianças convivem bem com a tensão que surge em um esporte competitivo; porém, crianças com dificuldade em encarar essas tensões têm um risco maior para traumatis‑ mos físicos. Nessas situações, a intervenção psicoterápica é vista como um dos componentes fundamentais no planeja‑ mento de tratamento global para pacientes que manifestam retardo em sua recuperação ou tendência a novas lesões.6 O pediatra pode ter um grande impacto na promoção e no suporte de programas de aptidão física para crianças e adoles‑ centes, por meio da orientação das famílias. Foi observado que filhos de pais sedentários têm mais chances de se torna‑
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Figura 1 Crianças participando de jogos esportivos em grupo, de forma organizada.
Figura 2 Criança realizando atividade lúdica com medidas de proteção adequadas.
rem adultos sedentários. Ressalta-se, porém, que a atividade física na infância nem sempre prediz a atividade física na ida‑ de adulta.7 O foco da avaliação médica geral deve ser relacionado à saúde, em vez de ter como objetivo a forma estética. Caracte‑ rísticas como velocidade, potência muscular e agilidade são importantes para o sucesso atlético e são primariamente de‑ terminadas pela genética. Potência aeróbica, composição cor‑ pórea, flexibilidade, força e resistência dos músculos esquelé‑ ticos são parcialmente influenciadas pela hereditariedade, mas podem ser significativamente alteradas por padrões apro‑ priados de exercício.3 A dificuldade encontrada na prescrição de atividade física para crianças depara-se com a inabilidade para medir a força dos tecidos estruturais e mudanças como resposta ao treina‑ mento físico, sendo esta individual e multifatorial. Um programa de atividade física deve ter, pelo menos, 3 componentes: força muscular, flexibilidade e atividade aeróbi‑ ca, variando a ênfase em cada um, de acordo com a condição
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clínica e os objetivos de cada criança. Quando o objetivo é o condicionamento aeróbico, a prescrição deve contemplar va‑ riáveis, como tipo, duração, intensidade e frequência.7 A participação regular em um programa de treinamento de força para jovens tem o potencial para aumentar a densidade mineral óssea e melhorar habilidades de desempenho motor, aumentando o desempenho no esporte. Pais, professores, treinadores e provedores de cuidado médico deveriam perce‑ ber que treinamento de força em jovens é um método especia‑ lizado de condicionamento que pode oferecer enormes benefí‑ cios, mas, ao mesmo tempo, pode resultar em danos sérios se não forem seguidas diretrizes estabelecidas. Com instrução qualificada, supervisão competente e uma apropriada pro‑ gressão do volume e intensidade de treinamento, crianças e adolescentes podem não somente aprender exercícios avança‑ dos, mas também divertirem-se e sentirem-se bem com seu desempenho.8 Idade, rendimento e talento esportivo Os pais frequentemente questionam sobre quando colocar o filho para praticar certa atividade desportiva ou qual modali‑ dade escolher. Nessa difícil decisão, é preciso estar atento para dois pontos principais: primeiro, a idade e o desenvolvimento da criança; segundo, a criança como indivíduo, suas caracte‑ rísticas, anseios e opiniões. Dos 2 aos 5 anos de idade, é a fase de movimentos funda‑ mentais da criança, na qual ela aprende capacidades físicas importantes como coordenação, orientação espaço-temporal, equilíbrio, contato social, ritmo e diferenciação. As atividades devem ser ligadas à maior descontração e liberdade possível, sem competição. Ela pratica esporte adaptado como brinca‑ deira e não deve ser tratada como um atleta. Crianças devem se exercitar correndo, escalando, chutando, caindo, dançando, brincando com bolas de peso leve, pedalando um triciclo ou uma bicicleta com rodas ou participando de jogos aquáticos supervisionados ou em classes de ginástica conduzidas por profissionais. Dos 6 aos 12 anos, a coordenação e a atenção melhoram e, portanto, crianças nessa fase são mais capazes de seguir dire‑ ções e entender o conceito de trabalho em equipe. Devem-se considerar atividades organizadas em que a criança se identi‑ fique. Não há preocupação com competições ou resultados. Ainda não são atletas, mas essa é a fase do maior desenvolvi‑ mento de habilidades das crianças, pois elas aprendem todos os componentes de rendimento esportivo e todas as capacida‑ des físicas em geral, a saber: • capacidades físicas motoras (força, resistência e velocidade); • capacidades físicas coordenativas (diferenciação espaço-tem‑ poral, acoplamento, reação, orientação, equilíbrio, variação e ritmo); • capacidades físicas mistas (velocidade e flexibilidade, dando suporte para que a criança aprenda técnicas esportivas e re‑ gras básicas de jogos). Devem-se considerar atividades como natação, beisebol, gi‑ nástica, futebol, tênis, bicicleta, golfe e artes marciais. Vale
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A Criança e o Esporte •
lembrar que exercícios organizados não são a única opção para atividade. Se a criança não se interessa por jogos esporti‑ vos, existem outras formas de atividades físicas, como pas‑ seios de bicicleta com familiares, escalada em paredes em re‑ cinto fechado e trilhas. Os pais também devem encorajar a criança a gastar tempo ativo com amigos, como pular corda ou até mesmo jogar videogames que incitem a dança, jogos espor‑ tivos virtuais ou outros tipos de movimento. Dos 12 aos 14 anos é o período de maior interesse por espor‑ tes coletivos e competitividade, pois o adolescente adora viver em grupos. Há o desenvolvimento de capacidades táticas de esportes (sensorial e cognitiva) e capacidades técnicas (do desporto). As atividades incluem levantamentos de peso su‑ pervisionados, jogos organizados, eventos de corridas e tri‑ lhas, softball, entre outros. Dos 14 aos 16 anos é a fase em que se têm as primeiras no‑ ções do que é esporte especializado. Há contato com treina‑ mento aeróbico e treinamento de força com sobrecarga, em ra‑ zão da capacidade de ganho de força muscular. Dos 16 aos 18 anos predomina o volume de treinamento e os princípios do treinamento esportivo (pedagógicos, metodo‑ lógicos, biológicos, organização e gerenciamento). O adoles‑ cente está pronto para o treinamento esportivo propriamente dito. Realiza-se trabalho de força, velocidade e resistência de maneira específica para o esporte. Dos 18 aos 20 anos, o treinamento inclui características de sobrecarga, dando condições para o atleta entrar no alto nível do esporte. Na busca do talento esportivo, é fundamental distinguir quais seriam os melhores indicadores, presentes e futuros, de desempenho. Dentre as variáveis antropométricas, as mais utilizadas como preditoras são: peso corpóreo, estatura, en‑ vergadura, perímetros musculares, diâmetros ósseos, quanti‑ dade de massa magra e de massa de gordura, comprimento de pernas, braços, pés e mãos e índices de relação entre essas variáveis. Os fatores metabólicos utilizados são a capacidade física de trabalho, o consumo máximo de oxigênio, a potência anaeróbica, lática e alática e, mais recentemente, o limiar anaeróbico. As variáveis neuromotoras mais usadas como de desempenho são: força muscular de membros superiores, in‑ feriores e tronco, velocidade, tempo de reação, agilidade, flexi‑ bilidade e equilíbrio. A medida da maturação biológica é fun‑ damental, pois em crianças ou peripubertários, os resultados de aptidão física são mais dependentes da idade biológica que da cronológica. Embora a idade óssea seja a melhor estimativa da maturação biológica, por razões de segurança, custo e pra‑ ticidade, a medida da maturação sexual tem sido mais usada.5 Para se descobrir o atleta “fora de série”, o avaliador precisa estar muito bem treinado em reconhecer o que é normal. Por essa razão, o Centro de Estudos do Laboratório de Aptidão Fí‑ sica de São Caetano do Sul (Celafiscs) desenvolveu o Modelo Biológico de Detecção, Prescrição e Prognóstico, que trata de valores normativos de diferentes variáveis de aptidão física, assim como sua variabilidade. Esse modelo, muito prático, é constituído de 7 etapas: 1. Realização de testes de aptidão física.
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2. Comparação desses resultados com os valores normativos ou
critério padrão de referência. 3. Transformação da distância entre resultado obtido e valores
normativos em unidades de desvio-padrão, ou seja, a deter‑ minação do escore z. 4. Ajuste para o nível de maturação funcional de cada variável. 5. Ajuste para o nível de maturação biológica. 6. Ajuste para os níveis nutricionais. 7. Ajuste de experiência esportiva do potencial talento.5
Lesões esportivas O aumento da participação esportiva de crianças em uma ida‑ de jovem é acompanhado pelo crescente aumento na frequên‑ cia de lesões em atletas jovens. Dano físico é um risco inerente à participação esportiva em qualquer idade. Muitos autores têm identificado os fatores envolvidos na patogênese da lesão. Em geral, podem-se agrupar os fatores que causam lesões no esporte em dois grandes grupos: fatores intrínsecos e extrínse‑ cos. Os fatores intrínsecos são características pessoais, como encurtamentos e desequilíbrios musculares, frouxidão liga‑ mentar, mau alinhamento anatômico, fatores nutricionais e traços psicológicos. Entre os fatores extrínsecos, há o tipo de esporte, os erros de treinamento, equipamentos e superfícies inadequadas, além de outras condições ambientais.9 Em crianças, lesões esportivas que afetam ossos e tecidos moles em crescimento podem resultar em danos definitivos em suas vidas. O sistema esquelético de uma criança mostra pronunciadas mudanças adaptativas a treinamentos esporti‑ vos intensos. Adolescentes são particularmente vulneráveis a lesões, o que se deve, pelo menos parcialmente, a um dese‑ quilíbrio entre força e flexibilidade. Durante o crescimento, há mudanças significativas nas propriedades biomecânicas do osso, visto que as crianças apresentam menor resistência óssea.9 O sistema musculoesquelético (ossos, ligamentos, unida‑ des musculotendíneas e cartilagem articular) é afetado pela maior parte das lesões em crianças durante a atividade física. Em atletas jovens, como a dureza do osso aumenta e a resis‑ tência ao impacto diminui, a sobrecarga súbita pode causar deformidades plásticas ou fraturas do tipo tórus. Além disso, os ligamentos apresentam menor elasticidade e seus múscu‑ los apresentam incapacidade para a hipertrofia, o que aconte‑ cerá apenas após a adolescência.10 Esses danos são o resultado de dois mecanismos: macro‑ trauma agudo por impacto único ou microtrauma repetitivo. As lesões que resultam de microtrauma repetitivo (lesões por sobrecarga) parecem acontecer com mais frequência nesse grupo de idade, podem ser menos dramáticas que lesões agu‑ das, no entanto, podem resultar em desarranjo progressivo da integridade estrutural do tecido.2 Durante as últimas décadas, as crianças têm sido crescen‑ temente envolvidas em ambas as atividades esportivas: a or‑ ganizada e a não supervisionada. Como resultado da partici‑ pação crescente e da competitividade no grupo de idade pediátrico e adolescente, o número de crianças que se apre‑ sentam com lesões é alto (Figura 3).
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músculos flexopronadores do antebraço no epicôndilo medial do úmero e osteocondrose da cabeça do rádio.11
As lesões traumáticas da linha epifisária (placas de crescimen‑ to) de esqueletos imaturos são passíveis de ocorrer na prática esportiva, podendo, em alguns casos, acarretar sequelas gra‑ ves com o seu fechamento precoce. Lesões da coluna As dores lombares em atividades atléticas normalmente são mecânicas por hiperlordose, fraturas de estresse da articula‑ ção do pedículo do arco vertebral (espondilólise) ou protrusão discal. Movimentos repetitivos e vigorosos de hiperextensão da coluna lombar exigidos por algumas modalidades esporti‑ vas frequentemente ocasionam dor lombar. Nas dores toráci‑ cas altas, é importante a investigação da doença de Scheuer‑ mann, que, em casos leves e moderados, não é incapacitante para a prática esportiva.11 A maioria dos quadros descritos me‑ lhora com o tratamento conservador, com técnicas fisioterápi‑ cas com melhoria de postura, força, alongamento e equilíbrio muscular.10
Figura 3 Criança vítima de acidente de bicicleta com lesão traumática da coxa direita.
Lesões nas cartilagens de crescimento Decorrem de forças torcionais e de avulsão, embora a com‑ pressão também tenha um papel significativo. As cartilagens de crescimento são subdivididas em: de compressão, que são realizadas nas extremidades de ossos longos e responsáveis pelo crescimento, e as de tração, conhecidas como apófises. Estas, submetidas ao treinamento intenso e repetitivo, podem desenvolver as apofisites, que apresentam dor local e dificul‑ dade para mobilidade articular; cronicamente, pode ocorrer fragmentação, queda de desempenho e até mesmo incapaci‑ dade para a prática esportiva. As apofisites mais comuns são: • síndrome de Osgood-Schlatter, que acomete a tuberosidade anterior da tíbia em atletas adolescentes com atividades prin‑ cipalmente de chutes, corridas e saltos, sobretudo em altura; • osteocondrite de Sever, que ocorre na tuberosidade posterior do calcâneo, caracterizada pela presença de dor no calcanhar de atletas infantis e que piora com a atividade física; • síndrome de Sinding-Larsen-Johansson, que ocorre no polo inferior da patela; • little league elbow ou cotovelo do arremessador, comum em esportes de arremessos repetitivos, com fragmentação da apófise do epicôndilo medial, por aumento de tensão dos
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Lesões do quadril e da pelve São relativamente raras no atleta jovem. As contusões e os es‑ tiramentos musculotendinosos são os danos nas partes moles mais comuns sobre o quadril e a pelve. Menos frequentemen‑ te, podem ocorrer fraturas por estresse e fraturas-avulsão apo‑ fisárias nas cristas, nas espinhas ilíacas e nos trocanteres, que são os danos mais encontrados no esqueleto. Cada um desses problemas pode ser tratado com sucesso com terapia física, re‑ pouso, medicamentos anti-inflamatórios e massagem de gelo até os pacientes estarem livres de dor.12 Como diagnósticos di‑ ferenciais importantes, há as epifisiólises, a doença de Perthes e as instabilidades pélvicas. Fraturas epifisiodiafisárias ou pa‑ tológicas são raras e secundárias a trauma violento.12 Lesões no ombro e no cotovelo O atleta com esqueleto imaturo apresenta lesões de extremi‑ dades superiores unicamente na placa epifisária, cartilagem articular, unidades musculotendinosas e lesões específicas ao próprio esporte (little league shoulder). Condições específicas do ombro e do cotovelo podem ser preditas com base na bio‑ mecânica do esporte e na idade do paciente. No atleta jovem, o reconhecimento desses padrões de lesão únicos, a modifica‑ ção precoce de atividade e o tratamento podem prevenir de‑ formidades permanentes e incapacidades funcionais.13 Lesões no joelho A articulação do joelho é comumente acometida por lesões agudas ou crônicas. Além das apofisites já descritas, podem ocorrer dores retropatelares, que pioram ao flexionar os joe‑ lhos e ao descer escadas, e que podem indicar desalinhamen‑ tos do aparelho extensor ou condromalacia patelar. Recentes avanços na compreensão e no tratamento de problemas no atleta jovem refletiram mudanças vistas em toda a ortopedia esportiva. Entre essas mudanças, tem sido notável o advento
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A Criança e o Esporte •
das artroscopias que melhoraram as habilidades diagnósticas do cirurgião e levaram à melhor avaliação quanto à presença de lesões meniscais e ligamentares, após traumas inclusive em atletas mais jovens. A reconstrução ligamentar e suas dife‑ rentes técnicas ainda é um tema controverso. Lesões do tornozelo e do pé Na criança, são lesões bastante diferentes dos adultos, porque a placa epifisária da tíbia e da fíbula distal são significativa‑ mente mais fracas que os ligamentos circunvizinhos. A falên‑ cia tecidual à tensão acontece pela placa de crescimento em lugar dos tecidos moles. Desigualdade de comprimento da perna e deformidade angular são potenciais sequelas de lesões significativas do tornozelo no esqueleto imaturo, mas, feliz‑ mente, são raras. Desequilíbrio entre o crescimento ósseo e muscular pode ocorrer, gerando dores musculotendíneas na região do calcâneo, associadas ou não à doença de Sever.14 Problemas comuns do pé pediátrico nos esportes são associa‑ dos com microtraumas relacionados à biomecânica do pé e ex‑ tremidade inferior, e a maioria dos tratamentos é dirigida para reabilitar o problema de imediato e, em um tempo futuro, me‑ lhorar a biomecânica associada com o problema. Os macrotrau‑ mas também são relacionados com os parâmetros biomecânicos, como o tipo de pé e a diminuição de função da perna, contribuin‑ do direta ou indiretamente para o mecanismo de lesão.15 Lesões por sobrecarga São bem conhecidas dos entusiastas dos esportes em qualquer idade ou nível de competição. A explosão de aparecimento de fraturas por estresse, que ocorrem por sobrecarga dos ossos das extremidades inferiores em jogadores profissionais de alto nível de basquete, despertou a atenção da mídia, difundindo um melhor entendimento do fenômeno da síndrome da so‑ brecarga. Contudo, o espectro de lesões por sobrecarga na criança e nos adolescentes atletas só foi reconhecido recente‑ mente. Esses danos podem variar desde inaptidão permanen‑ te por osteocondrite dissecante de um cotovelo a “dores do crescimento” não específicas de crianças ativas.16 Prevenção O propósito primário do exame médico antes de se iniciar a atividade desportiva é identificar fatores de risco que podem predispor o atleta a lesões físicas e/ou psicológicas. A utilidade da avaliação médica pré-participação esportiva tem sido questionada nos últimos anos. Uma revisão sistemá‑ tica concluiu que a avaliação médica tem pouca influência na prevenção de morbimortalidade e é ineficaz na identificação de atletas em risco de morte súbita, traumatismos físicos ou broncoespasmo induzido por exercício.17 Contudo, o consenso de várias entidades médicas é recomendá-la pelos benefícios de trazer o escolar ou adolescente à consulta médica e estimu‑ lar hábitos de vida saudáveis, além das demais orientações de saúde.17 A inclusão de uma avaliação fisiológica complementa o exame de saúde pré-participação mais tradicional, contribuin‑ do com valiosas informações para as forças físicas específicas
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e fraquezas do atleta jovem. Essa informação, quando combi‑ nada com os componentes ortopédicos e clínicos de um exa‑ me pré-participação, aumenta a segurança na efetiva partici‑ pação em um esporte e na prevenção de lesões em atletas infantis.7 Com o objetivo de reduzir o número e a gravidade das le‑ sões esportivas, é preciso dimensionar o problema, conhecen‑ do a incidência e a gravidade das lesões, seus fatores de risco, etiologias e mecanismos de lesão, para que se realizem progra‑ mas e medidas preventivas e, posteriormente, que se determi‑ ne a eficiência dessas medidas na prevenção dessas lesões. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Entender os benefícios do exercício regular para a saúde. • Entender como a saúde impacta a habilidade da criança para o exercício. • Dar orientação sobre vida saudável e exercício a pais e crianças, tanto as hígidas como aquelas com doenças crônicas. • Conhecer as relações entre idade, rendimento e talento esportivo. • Conhecer os princípios de valorização normativa de variáveis de aptidão física. • Fazer, rotineiramente, a avaliação do nível de atividade física de uma criança a partir dos dados da história clínica. • Fornecer orientação dietética para os problemas relativos ao exercício, incluindo dieta e hidratação adequadas. • Orientar sobre traumas comuns no esporte, associados com diferentes modalidades. • Detectar sinais de trauma resultante do esporte. • Detectar evidência de atividade física excessiva e inadequada.
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2038 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 24 ORTOPEDIA
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Cirurgia Pediátrica COORDENADOR
José Roberto de Souza Baratella
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COORDENADOR E AUTORES SEÇÃO 25 CIRURGIA PEDIÁTRICA
Coordenador José Roberto de Souza Baratella Especialista em Cirurgia Pediátrica pela Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica (CIPE). Mestre e Doutor em Clínica Cirúrgica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Professor Titular da Disciplina Cirurgia Pediátrica da Faculdade de Medicina da Universidade de Santo Amaro (Unisa). Autores Alcides Augusto Salzedas Netto Especialista em Cirurgia Pediátrica pela CIPE. Mestre e Doutor em Ciências pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM‑Unifesp). Professor Adjunto e Chefe da Disciplina Cirurgia Pediátrica da Unifesp. Ana Cristina Aoun Tannuri Médica‑assistente Doutora do Serviço de Cirurgia Pediátrica do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas (ICr‑HC‑FMUSP) e do Laboratório de Investigação em Cirurgia Pediátrica da FMUSP. Professora Associada da Disciplina Técnica Cirúrgica e Cirurgia Experimental do Departamento de Cirurgia da FMUSP. Antônio Aldo Melo Filho Especialista em Cirurgia Pediátrica pela CIPE. Doutor em Cirurgia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor de Cirurgia Pediátrica da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade de Fortaleza (Unifor). Chefe do Serviço de Cirurgia Pediátrica do Hospital Infantil Albert Sabin.
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Antonio Paulo Durante Especialista em Cirurgia Geral e Pediátrica pelo Hospital do Servidor Público Estadual “Francisco Morato de Oliveira” (HSPE‑FMO), em Cirurgia Pediátrica pela CIPE e em Videocirurgia pela Sociedade Brasileira de Videocirurgia (Sobracil). Mestre em Gastroenterologia Cirúrgica pelo HSPE ‑FMO. Doutor em Cirurgia Pediátrica pela EPM ‑Unifesp. Professor Médico‑assistente do HSPE‑FMO. César Cavali Sabbaga Especialista em Cirurgia Pediátrica pela Associação Médica Brasileira (AMB). Mestre em Clínica Cirúrgica pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor Adjunto do Departamento de Cirurgia da Universidade Positivo. Chefe do Serviço de Cirurgia Pediátrica do Hospital Pequeno Príncipe. Membro Titular da CIPE. Elaine Maria de Oliveira Alves Especialização em Cirurgia Pediátrica pela UnB e Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica/ Associação Médica Brasileira. Doutora em Técnicas Operatórias e Cirurgia Experimental pela Unifesp. Fernando Costa Especialista em Cirurgia Pediátrica pela CIPE. Doutor em Medicina pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor Associado de Cirurgia Pediátrica da UEL. João Carlos Ketzer de Souza Especialista em Cirurgia Pediátrica pela CIPE/AMB. Mestre e Doutor em Cirurgia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Cirurgião Pediátrico do Hospital da Criança Conceição (HCC).
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João Vicente Bassols Especialista em Cirurgia Pediátrica pela CIPE, AMB e pela Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre (FFFCMPA). Mestre em Medicina pela UFRGS. Preceptor da Residência de Cirurgia Geral e do Trauma do Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre. Preceptor da Residência de Cirurgia Pediátrica e Chefe do Serviço de Cirurgia do HCC. José Carlos S. de Fraga Mestre e Doutor em Medicina pela UFRGS. Pós ‑doutor em Cirurgia Pediátrica pela Universidade de Londres, Reino Unido, e pela Universidade de Harvard, EUA. Livre‑docente em Cirurgia Pediátrica pela FMUSP. Professor Associado de Cirurgia Pediátrica do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFRGS. Cirurgião do Setor de Cirurgia Torácica Infantil e do Serviço de Cirurgia Pediátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Membro Titular da CIPE e da Seção de Cirurgia Pediátrica da Academia Americana de Pediatria. José Luiz Martins Professor Adjunto Livre‑docente em Cirurgia Pediátrica do Departamento de Cirurgia da EPM ‑Unifesp. José Raimundo Bahia Sapucaia Especialista em Cirurgia Pediátrica pela CIPE, em Oncologia Pediátrica pela Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica (Sobope), em Cirurgia Geral pelo Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) e em Cirurgia Neonatal pela Universitat Autònoma de Barcelona. Professor Adjunto do Departamento de Cirurgia Pediátrica da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). Chefe do Serviço de Cirurgia Pediátrica e Diretor Técnico e Executivo do Hospital Martagão Gesteira. Membro Titular do CBC. Ex‑presidente da CIPE. Vice‑presidente da Liga Álvaro Bahia. Kleber Moreira Anderson Especialista em Cirurgia Pediátrica pela CIPE e em Cirurgia Geral pelo CBC. Mestre em Urologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor de Cirurgia Pediátrica da UERJ. Lisieux Eyer de Jesus Especialista em Cirurgia Pediátrica pela CIPE. Mestre em Cirurgia Abdominal e Doutora em Ciências Cirúrgicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Research Fellow do Departamento de Urologia no The Hospital for Sick Children, Canadá. Cirurgiã Pediátrica do Hospital
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Universitário Antônio Pedro (HUAP) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Hospital dos Servidores do Estado (HSE) do Rio de Janeiro. Membro Titular do CBC e da CIPE. Marcelo Iasi Especialista em Cirurgia Geral e Cirurgia Pediátrica pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP). Médico‑assistente do Serviço de Cirurgia Pediátrica da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Membro Efetivo da AMB. Membro Titular da CIPE e da Associação Paulista de Cirurgia Pediátrica (Cipesp). Maria do Socorro Mendonça de Campos Cirurgiã Pediátrica Titular pela CIPE/AMB. Mestre em Medicina e Saúde – Área de Concentração em Epidemiologia Clínica – pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Cirurgiã Pediátrica do Hospital Geral do Estado (SESAB‑BA). Orientadora da Liga Acadêmica de Cirurgia Pediátrica da Bahia (Lacipe). Médica Reguladora do SAMU 192 Metropolitano de Salvador. Max Carsalad Schlobach Especialista em Videocirurgia pela Universidade de Tours, França. Professor de Cirurgia Pediátrica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Instrutor Estrangeiro de Videocirurgia da Universidade de Strasbourg (Ircad), França. Cirurgião Pediátrico do Hospital Felício Rocho. Membro Titular da Sobracil, da CIPE e da International Pediatric Endosurgery Group. Membro do Corpo Clínico do Hospital Israelita Albert Einstein. Vice‑presidente da CIPE. Mércia Maria Braga Rocha Especialista em Cirurgia Pediátrica e Mestre em Imunologia e Genética Clínicas pela Universidade de Brasília (UnB). Doutora em Cirurgia Pediátrica pela EPM‑Unifesp. Professora Adjunta das Disciplinas Pediatria Clínica e Cirurgia e Preceptoria em Residência Médica da Área de Medicina da Criança e do Adolescente da UnB. Chefe do Serviço de Cirurgia Pediátrica da UnB. Membro Efetivo da CIPE. Membro Titular do CBC. Paulo Carvalho Vilela Mestre e Doutor em Cirurgia Pediátrica pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor Adjunto da Disciplina Cirurgia Pediátrica da UFPE. Tutor da Escola Pernambucana de Medicina da Faculdade Boa Viagem/Instituto Materno‑infantil de Pernambuco (Imip). Coordenador do Serviço de Cirurgia Pediátrica do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira/Imip. Membro Titular da CIPE.
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Paulo Juvêncio Gomes Tubino Professor Emérito de Cirurgia Pediátrica da UnB. Doutor e Livre‑docente pela FMUSP. Membro Emérito do CBC. Membro Titular da CIPE e da ANCIPE. Fellow do American College of Surgeons.
Sylvio Gilberto Andrade Avilla Especialista em Cirurgia Pediátrica pelo Hospital Infantil César Pernetta e pela CIPE. Professor de Cirurgia Pediátrica da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Membro da CIPE.
Paulo Roberto Mafra Boechat Especialista em Cirurgia Pediátrica pela CIPE e em Residência Médica em Cirurgia Pediátrica pelo Instituto Fernandes Figueira (IFF)/Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Chefe do Departamento de Cirurgia Pediátrica do IFF‑Fiocruz. Chefe‑residente de Cirurgia Pediátrica do Jackson Memorial Hospital, University of Miami, EUA. Research Fellow em Pediatric Surgery, Children’s Hospital, University of Pittsburgh, EUA. Membro Titular da CIPE e do CBC. Fellow do American College of Surgeons.
Uenis Tannuri Professor Titular da Disciplina Cirurgia Pediátrica da FMUSP. Chefe do Serviço de Cirurgia Pediátrica do ICr‑HC e do Laboratório de Investigação em Cirurgia Pediátrica (LIM‑30) da FMUSP.
Pedro Muñoz Fernandez Mestre e Doutor em Técnica Operatória e Cirurgia Experimental pela FMUSP. Professor Titular da Disciplina de Clínica Cirúrgica Pediátrica da Faculdade de Medicina do ABC. Roberto Antonio Mastroti Especialista em Cirurgia Pediátrica pela University of London, Reino Unido. Doutor em Medicina pela FMUSP. Professor Adjunto de Cirurgia Pediátrica da FCMSCSP. Membro Remido da CIPE. Membro Emérito do CBC.
Wallace Acioli Freire de Gois Especialista em Cirurgia Pediátrica pela UnB e em Cirurgia Geral pelo Hospital do Andaraí. Professor Colaborador da Disciplina de Cirurgia Pediátrica do Departamento de Medicina da Criança e do Adolescente da UnB. Coordenador do Curso de Videocirurgia Pediátrica do Cetrex/Faculdade do Meio Ambiente e de Tecnologia de Negócios (FAMATEC). Wilberto Trigueiro Título de Especialista em Cirurgia Pediátrica pela CIPE/AMB. Mestre em Terapia Intensiva pela Sociedade Brasileira de Terapia Intensiva. Professor Adjunto de Cirurgia Pediátrica da Universidade Federal da Paraíba e Faculdade de Medicina Nova Esperança.
Rosane Kleine Passos Especialista em Radiologia Geral pelo Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem e em Pediatria pela Sobape/ABM. Radiologista do Instituto de Perinatologia da Bahia pela Secretaria do Estado da Bahia. Coordenadora do Serviço de Ultrassonografia da APAE Salvador. Coordenadora da Bioimagem do Hospital Martagão Gesteira/Liga Álvaro Bahia Contra a Mortalidade Infantil. Preceptora da Residência de Radiologia do Hospital Santo Antônio (Irmã Dulce) e de Pediatria do Hospital Martagão Gesteira.
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CAPÍTULO 1
AFECÇÕES PULMONARES CONGÊNITAS Paulo Roberto Mafra Boechat
Introdução Existe uma grande variedade de anomalias do trato respirató‑ rio, algumas de interesse clínico, como anormalidades do sur‑ factante, displasia alveolocapilar e hipoplasia pulmonar, ou‑ tras de significado cirúrgico, como cisto broncogênico (CB), malformação adenomatoide cística (MAC), enfisema lobar congênito (ELC), sequestro broncopulmonar (SBP) e comuni‑ cação broncodigestiva (CBD). O desenvolvimento da avaliação fetal pela ultrassonografia proporcionou maior precocidade no diagnóstico das diversas malformações pulmonares e contribuiu para a melhor com‑ preensão da evolução que algumas delas apresentam (p.ex., regressão espontânea de MAC). Em especial, tornou viáveis intervenções terapêuticas in utero, como a toracocentese fetal e a colocação de shunts em grandes cistos na MAC, reduzindo o efeito de massa sobre o pulmão adjacente, o coração e os va‑ sos, tentando prevenir ou corrigir a hidropsia e evitar a morte fetal. A classificação das diversas anomalias congênitas do pul‑ mão continua sendo matéria de discussão na literatura. Embriologia Para entender as diversas anomalias de desenvolvimento pul‑ monar, é necessária uma noção mais clara sobre a evolução embrionária do órgão. O trato respiratório inferior começa a se desenvolver a par‑ tir da 4a semana da gestação, e o endoderma do intestino pri‑ mitivo diferencia-se em sua porção ventral formando uma protuberância, ou broto, conhecida como área ou campo pul‑ monar, com epitélio de três ou quatro camadas de células. Uma sequência ordenada de ações ocorre entre o epitélio, que origina a árvore traqueobrônquica, e o mesênquima peribrôn‑ quico. A partir da 5a semana, já está formado o brônquio fonte, que logo se divide nos bronquíolos secundários e terciários. Por volta da 24a semana, cerca de 27 ramificações brônquicas já estão formadas.
O epitélio de revestimento respiratório tem origem no en‑ doderma, enquanto o tecido conjuntivo, a cartilagem, os mús‑ culos e os vasos têm origem no mesênquima que envolve o tubo laringotraqueal.1 Em seguida, formam-se os septos longi‑ tudinais na luz do intestino primitivo, que separam a área ou o campo pulmonar da área esofágica dorsal, originando o septo epitelial traquesofágico. O tecido mesenquimal expande-se entre a traqueia e o esôfago, separando o trato respiratório do digestivo por volta da 6a ou 7a semana.1,2 Anormalidades na interação entre o epitélio brônquico e o mesênquima originam anomalia pulmonar dos tipos CB, MAC e ELC. O SBP, por sua vez, tem origem em uma falha de matu‑ ração do mesênquima normal, com formação de brotos pul‑ monares supranumerários associados à persistência de uma vascularização arterial sistêmica. Existem divergências sobre essa explicação clássica, já que alguns autores não foram ca‑ pazes de identificar, por exemplo, o septo traquesofágico1. Al‑ guns grupos têm sugerido que uma obstrução intrauterina da via aérea pode ser a causa das anomalias, com sua participa‑ ção variando conforme o tempo em que ocorre ou se é parcial ou completa.3 As alterações no desenvolvimento podem, ain‑ da, resultar em malformação híbrida, com a histologia da le‑ são mostrando tecido correspondente a mais de uma anoma‑ lia (p.ex., coexistência de MAC e SBP). A separação incompleta entre os tratos respiratório e diges‑ tivo pode gerar um tipo raro de malformação, a CBD, na qual o brônquio de um lobo pulmonar está em conexão com o esôfa‑ go ou o estômago. O diagnóstico pré-natal das anomalias congênitas do pul‑ mão permite saber de sua existência e acompanhar sua evolu‑ ção intraútero. Algumas lesões podem involuir ou mesmo de‑ saparecer antes do nascimento – fato verificado em casos de MAC e SBP. Cerca de 15% das MAC e 68% dos SBP podem so‑ frer redução de tamanho ou regredir completamente antes do parto. Contudo, o mecanismo dessa regressão não está muito claro.4
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A evolução, por outro lado, pode mostrar MAC com cresci‑ mento importante da lesão, levando à compressão do pulmão adjacente, do coração e dos vasos, com repercussões desastro‑ sas para o feto. MAC tipo I pode desenvolver grandes cistos e, assim como a forma sólida no tipo III, concorrer para a hipo‑ plasia de lobos pulmonares adjacentes, além de causar poli‑ dramnia ou compressão cardiovascular com hidropsia e morte fetal.4,5 O mesmo pode ocorrer com o SBP6. Diante de grandes lesões como essas, pode ser necessária uma atitude mais agressiva, com intervenção intraútero para aspiração e esva‑ ziamento de grandes cistos, a fim de evitar seu efeito de massa. Assim, a ultrassonografia (US) e a ressonância magnética (RM) fetal ultrarrápida são os métodos de avaliação utilizados para o estudo dessas lesões (Figuras 1 e 2).7 Classificação Malformação adenomatoide cística Consiste em uma rara malformação pulmonar, com incidência de 1:8.000 a 1:35.000, que parece resultar de uma anormalida‑ de da ramificação traqueobrônquica e representa um defei‑ to de maturação pulmonar. Entre as classificações existentes dessa anomalia, a mais divulgada é a de Stocker, baseada em dados histopatológicos e que apresenta 3 tipos: • tipo 1: grandes cistos (> 2 a 10 cm) resultantes da proliferação de bronquíolos terminais associada à supressão do desenvol‑ vimento alveolar. Não constituem cistos verdadeiros, sempre se comunicam com a via aérea proximal e são revestidos por epitélio cuboide ou colunar. Suas paredes podem conter teci‑ do muscular liso e tecido elástico. É o tipo mais comum de MAC e ocorre em 65% dos casos. Em razão de seu grande vo‑ lume, os cistos podem exercer efeito de massa, comprimindo estruturas vizinhas, como o pulmão normal e os órgãos do mediastino; • tipo 2: cistos pequenos (0,5 a 2 cm), multiloculares e múlti‑ plos. Não são cistos verdadeiros e são revestidos por epitélio colunar ou cuboide. Não apresentam muco ou cartilagem, produzem pequeno ou nenhum efeito de massa e, em até 60% dos casos, podem estar associados a outras anomalias, como atresia do esôfago, agenesia renal, agenesia intestinal, etc.; • tipo 3: lesão sólida. Não há cistos.8,9 Corresponde a menos de
Figura 1 Ultrassonografia pré-natal mostrando lesões císticas pulmonares que correspondem a MAC tipo 1.
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Figura 2 Ressonância magnética pré-natal demonstrando presença de MAC (imagem clara no tórax fetal).
10% dos casos de MAC e pode ser uma lesão volumosa, que cresce a partir de células ductais alveolares, podendo afetar mais de um lobo. Pode conter elementos císticos e sólidos ou apenas sólidos e não apresenta células secretoras de muco e cartilagem.
A esses tipos da classificação de Stocker, outros dois foram acrescentados, o tipo 0 e o tipo 4. O primeiro corresponde a cistos mínimos (< 0,5 cm), revestidos por epitélio ciliado pseudoestratificado, que podem ter muco e cartilagem, mas não músculo esquelético, sendo o tipo menos comum de MAC, ocorrendo em 3% dos casos e com origem a partir da traqueia. O segundo, por sua vez, apresenta cistos com diâmetro acima de 7 cm, revestidos internamente por epitélio achatado não ci‑ liar de células do tipo alveolar, sem músculo esquelético e muco, e ocorre em 2 a 4% dos casos, com origem alveolar ou acinar distal. Sequestro broncopulmonar Massa cística de tecido parenquimatoso pulmonar não funcio‑ nante, sem comunicação com a árvore traqueobrônquica e ir‑ rigada por artéria sistêmica anômala, geralmente única e ramo direto da aorta descendente. A drenagem venosa ocorre para veias sistêmicas, brônquicas ou para a veia ázigos. Em geral, o SBP não tem conexão brônquica, mas, quando ela existe, pode comunicar a lesão com o trato digestivo.10 Em virtude de sua vascularização sistêmica, o SBP é considerado por muitos autores uma anomalia vascular pulmonar.11 A US pré-natal mostra massa ecogênica e homogênea. Es‑ tudo com Doppler pode confirmar a presença do vaso anôma‑ lo, ramo da aorta, em direção à lesão. Quando ele não é detec‑ tado, porém, o diagnóstico diferencial entre MAC e SBP é mais difícil. A RM ultrarrápida pode ser útil nessa diferenciação e mostra um sinal de borda altamente homogêneo no SBP. Em
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algumas ocasiões, há uma lesão híbrida que apresenta aspecto de MAC e SBP. O SBP pode ser intra e extralobar. O intralobar (75% dos ca‑ sos) tem pleura revestindo pulmão normal e situa-se mais fre‑ quentemente no lobo inferior esquerdo. O extralobar (25% dos casos), por sua vez, não é revestido por pleura e pode estar si‑ tuado no hemitórax inferior, nas partes altas do tórax ou abaixo do diafragma (15%), no mediastino ou no pericárdio, ocorren‑ do mais no sexo masculino (1:3).11 Sua localização intra-abdo‑ minal pode ter aspecto cístico e ser confundida com tumor da suprarrenal. Em 50 a 65% dos casos, o SBP pode estar associa‑ do a outras anomalias, como hérnia diafragmática, eventração, duplicação de esôfago, fístula traqueoesofágica, etc. Muitos autores consideram que anomalias como o SBP e as formas híbridas do tipo MAC e SBP constituem lesões pulmo‑ nares de origem vascular. Outras mais raras seriam as malfor‑ mações arteriovenosas (MAVP), as artérias pulmonares aber‑ rantes e as anomalias com drenagem venosa pulmonar anômala, como a síndrome da cimitarra (veia pulmonar direi‑ ta drenando para a veia cava inferior). As classificações pro‑ postas para essas anomalias sobrepõem-se a outras classifica‑ ções de anomalias pulmonares, de modo que sua compreensão é um pouco confusa. O importante, porém, é que a maioria dessas anomalias não requer correção imediata e os pacientes devem ser acompanhados com avaliações clínica e cardiológi‑ ca atentas para se estabelecer o momento em que deverão ser corrigidas.11 Enfisema lobar congênito É resultado de obstrução parcial intrínseca ou extrínseca de um brônquio lobar, causando um mecanismo valvular com in‑ suflação progressiva do lobo correspondente. Em 30 a 40% dos casos, a obstrução brônquica não chega a ser identificada. As causas intrínsecas mais prováveis são broncomalacia loca‑ lizada, dobras ou membranas epiteliais ou estenose brônqui‑ ca. As extrínsecas, por sua vez, correspondem à compressão brônquica por cisto broncogênico ou vaso anômalo.2,12 O ELC é uma lesão relativamente rara, ocorrendo em 1:20.000 a 1:30.000. Afeta mais frequentemente os lobos su‑ periores, principalmente o esquerdo (40 a 50%). O lobo supe‑ rior direito é afetado em 20%, e o lobo médio, em 20 a 30%. A ocorrência de ELC nos lobos inferiores é extremamente rara (2 a 5%),4,13 sendo o sexo masculino o mais afetado (3:1). Cisto broncogênico É uma massa cística que cresce a partir da via aérea e corres‑ ponde a 50 a 60% dos cistos mediastinais.13,14 O que caracteri‑ za o CB é o fato de ser revestido internamente por epitélio co‑ lunar, ciliado, pseudoestratificado. Sua parede tem elementos da árvore traqueobrônquica, como glândulas brônquicas e fi‑ bras musculares lisas, além de placas de cartilagem hialina. Apresenta-se como um cisto solitário, cheio de muco, junto à traqueia ou ao brônquio. Sua localização mais frequente é pró‑ ximo à carina, podendo ser encontrado, também, nas regiões cervical e supraesternal, na base da língua ou junto à pleura. Ocasionalmente, pode se apresentar abaixo do diafragma, na
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região da suprarrenal. Seu volume pode atingir 10 cm ou mais de diâmetro nas crianças maiores e, no recém-nascido, pode ser causa de enfisema lobar.4,14 Em uma de suas formas de apresentação mais rara, o CB pode estar localizado no interior do parênquima pulmonar, confundindo-se com outras lesões císticas do pulmão. Comunicação broncodigestiva Uma forma rara de anomalia congênita do pulmão na qual se observa a presença de lobo pulmonar com brônquio em cone‑ xão com o trato digestivo (esôfago ou estômago) e com histo‑ logia mostrando sinais de processo inflamatório crônico pelas repetidas pneumonias, além da zona de transição entre o epi‑ télio respiratório e o digestivo. A porção pulmonar da anoma‑ lia pode corresponder a um sequestro, com vaso anômalo ramo da aorta torácica ou abdominal. Quadro clínico Nos melhores centros, o diagnóstico pré-natal das anomalias congênitas do pulmão é estabelecido corretamente em cerca de 70% dos casos. Em determinadas ocasiões, o diagnóstico diferencial entre MAC e hérnia diafragmática é mais difícil, de modo que a RM pode ser efetiva para melhor definição.2 Ainda no período pré-natal, o acompanhamento clínico e de imagem pode informar sobre alterações que a própria lesão apresenta, além das repercussões sobre o feto. As afecções congênitas do pulmão podem ter evolução be‑ nigna intraútero ou, de forma extrema, podem determinar a morte fetal, daí a importância de um acompanhamento rigo‑ roso do feto desde que se define o diagnóstico pré-natal dessas lesões. A US seriada realizada por profissional especializado pode dar informações importantes e indicar a realização de manobras terapêuticas intraútero ou determinar a aceleração do parto. Ocorrências de MAC associada à hidropsia (40% dos casos) podem ser beneficiadas pela administração materna de beta‑ metasona, com o objetivo de bloquear o crescimento da lesão.5 O conhecimento pré-natal da existência da anomalia torna re‑ comendável que o parto seja realizado em local tecnicamente preparado para receber esse tipo de paciente. Logo após o nascimento, essa anomalia pode ter comporta‑ mento discreto, com o paciente assintomático, ou apresentar sinais evidentes de distúrbio respiratório grave. Assim, os por‑ tadores de MAC podem apresentar quadro clínico que varia desde uma discreta taquipneia até a forma grave com dispneia, cianose, retração intercostal e infraesternal. Cerca de 1/3 das MAC não diagnosticadas no período pré-natal são descobertas na criança menor (lactente ou pré-escolar) após um quadro clí‑ nico de pneumonia. Muitos autores defendem a cirurgia para a retirada precoce da lesão, com o objetivo de evitar infecção tar‑ dia ou, ainda, por consequência dos relatos de casos esporádi‑ cos que desenvolveram degeneração maligna na vida adulta.15 Em certo número de casos, o diagnóstico de MAC é um achado radiológico. Em crianças maiores, uma lesão do tipo I com grande cisto pode ter o diagnóstico de pneumotórax, e não é raro o relato de drenagem do tórax sem obter sucesso. As
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formas graves de MAC associadas à hidropsia fetal podem ter evolução rápida após o nascimento, com piora do quadro clí‑ nico e óbito. A mortalidade nos casos graves de hidropsia é próxima de 100%.13 Pacientes portadores de SBP são, na maioria dos casos, as‑ sintomáticos no período neonatal. Nessa ocasião, a maioria dos casos é detectada por radiografia de tórax ou ultrassono‑ grafia de rotina. Grandes lesões podem causar desvio do me‑ diastino e hidropsia fetal. O SBP intralobar, embora mais comum (75%), raramente é diagnosticado precocemente. Ge‑ ralmente, manifesta-se como pneumonia recorrente na crian‑ ça maior, com imagem radiológica repetida. Já o extralobar (25%) pode ser causa de distúrbio respiratório ou dificuldade na alimentação no recém-nascido. Crianças maiores podem apresentar quadro de insuficiência cardíaca congestiva quan‑ do o SBP recebe um fluxo sanguíneo excessivo pela artéria aberrante. Casos não tratados podem apresentar hemoptise de maior ou menor intensidade.16 Em 50% dos casos de ELC, os sintomas ocorrem nos pri‑ meiros dias de vida. A grande maioria, entretanto, torna-se sintomática ao longo dos seis primeiros meses de vida. Os sin‑ tomas variam de taquipneia leve até dispneia mais acentuada e mais evidente durante a alimentação. Tardiamente, pode ocorrer cianose, que também é mais acentuada durante a ali‑ mentação e o choro. O exame físico pode detectar abaulamen‑ to do hemitórax correspondente. Tosse, chiado e apneia são sintomas menos frequentes. No CB, a sintomatologia pode variar de acordo com a locali‑ zação, o tamanho da lesão e o grau de compressão da via aérea. Grande número é assintomático, e o diagnóstico constitui um achado radiológico. Outros, pelo grau de compressão, podem mostrar sintomas como taquipneia que se acentua com choro ou alimentação, chiado, tosse ou, nos casos mais graves, cia‑ nose. Em alguns casos, a lesão pode passar despercebida por meses ou anos e ser um achado radiológico na criança maior, quando apresenta sintomas de infecção local.17 O CB intrapulmonar pode ser detectado por exame radioló‑ gico de rotina ou apresentar sintomas que correspondem aos
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de grandes massas císticas pulmonares, como a MAC. O diag‑ nóstico diferencial deve ser feito com cisto de duplicação do esôfago e anomalias vasculares do pulmão; os intrapulmona‑ res devem ser feitos com MAC. Diagnóstico por imagem Quando o diagnóstico da malformação pulmonar é feito no pré-natal, sua confirmação no recém-nascido se faz, inicial‑ mente, por uma radiografia de tórax. Na avaliação da radiogra‑ fia de tórax, deve-se levar em conta que a imagem da lesão pulmonar no primeiro dia de vida pode ser mascarada pela presença de líquido dentro dos pulmões. Após 48 horas, com o desaparecimento do líquido, a imagem passa a ter melhor definição. A tomografia computadorizada (TC) é recomendada para a confirmação do diagnóstico. US e exame contrastado do esô‑ fago podem ser úteis no diagnóstico diferencial entre lesões pulmonares como SBP e cisto de duplicação de esôfago. Mais raramente, a RM e a broncoscopia podem ser necessárias.2 A avaliação com Doppler pode ser mais eficiente nos casos de SBP que a própria TC para demonstrar a presença do vaso anômalo. Radiografia de tórax é muito sugestiva de MAC quando mostra a lesão com diversos cistos e a presença de finos septos entre eles. O diagnóstico diferencial deve ser feito com a hér‑ nia diafragmática. TC confirma o diagnóstico (Figura 3). Nas formas híbridas de MAC e SBP, a RM pode ser muito útil. O ELC apresenta uma imagem muito característica na ra‑ diografia de tórax, com hiperinsuflação, principalmente do lobo superior esquerdo, e atelectasia do lobo inferior (Figu‑ ra 4). Nos localizados no lobo médio direito, a imagem do lobo hiperaerado é muito sugestiva (Figura 5). Em diversas oca‑ siões, o ELC pode ser confundido clínica e radiologicamente com o pneumotórax. No CB intrapulmonar, a radiografia de tórax mostra ima‑ gem de cavidade cística no interior do pulmão, com ou sem ní‑ vel hidroaéreo. TC é o exame de escolha para o diagnóstico e a localização das lesões de mediastino e abdome (Figura 6).
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Figura 3 (A) Radiografia de tórax mostrando imagem de hiperaeração no hemitórax esquerdo. (B) Tomografia computadorizada confirmando o diagnóstico de MAC no lobo inferior esquerdo.
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Figura 4 ELC. (A) Radiografia de tórax mostrando hiperinsuflação do LSE e atelectasia do LIE. (B) Tomografia computadorizada confirmando a imagem de LSE hiperinsuflado.
Figura 5 Radiografia de tórax em AP e perfil mostrando ELC de lobo médio direito.
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Figura 6 CB. (A) Radiografia de tórax mostrando lesão cística no hemitórax esquerdo. (B) Tomografia computadorizada confirmando a presença de cisto broncogênico.
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Tratamento As intervenções intrauterinas têm poucas indicações. Casos de MAC com hidropsia fetal grave antes da 32a semana de vida intrauterina, em que a possibilidade de morte fetal se aproxi‑ ma dos 100%, seria uma delas. Múltiplas toracocenteses para esvaziar grandes cistos ou colocação de shunt para sua drena‑ gem têm indicação restrita aos casos em que se acredita que a lesão tem efeito de massa sobre o pulmão adjacente, o coração e a veia cava inferior.18 No recém-nascido, os casos de MAC devem ser tratados por lobectomia ou, muito raramente, segmentectomia, o que pode ser feito por toracotomia ou toracoscopia. Os pulmões podem ser polilobulados (> 3 lobos) e ter mais de um lobo afetado. A toracotomia pode ser realizada com urgência, como casos em que o recém-nascido apresenta sinais e sintomas de sofrimen‑ to respiratório agudo pela presença de grande massa cística ou cístico-sólida, com desvio importante do mediastino. Na maioria dos casos, entretanto, a cirurgia pode ser realizada eletivamente entre o primeiro e o sexto meses de vida. Na ci‑ rurgia, o aspecto do lobo afetado apresenta variações de acor‑ do com o tipo e a extensão (Figura 7). As lesões de pequeno volume devem ser acompanhadas por US e RM e podem re‑ gredir ou mesmo desaparecer após o nascimento.19
O tratamento do SBP extralobar é, também, a ressecção ci‑ rúrgica da lesão. Nesses casos, o cirurgião deve estar atento à localização do vaso anômalo que irriga a lesão e que, na maio‑ ria dos casos, é ramo da aorta descendente. Esse procedimen‑ to também pode ser feito por toracotomia ou toracoscopia, de acordo com a experiência da equipe cirúrgica. A lesão tem co‑ loração mais pálida que o parênquima pulmonar normal (Fi‑ gura 8). O SBP intralobar é tratado por lobectomia convencio‑ nal, enquanto o de localização infradiafragmática pode ser abordado por laparotomia ou laparoscopia. O tratamento do ELC é a ressecção cirúrgica do lobo afeta‑ do por meio de toracotomia. A participação do anestesista no ato cirúrgico é fundamental, a fim de realizar uma ventilação controlada que permita ao cirurgião ter acesso mais fácil ao hilo pulmonar para realizar a ligadura e a secção dos vasos. O aspecto do lobo afetado é característico, com hiperinsuflação de grau variável e atelectasia do pulmão adjacente (Figura 9). Quando houver lesão do tipo cisto broncogênico associada, ela deve ser ressecada simultaneamente. O CB é tratado por ressecção cirúrgica por toracotomia ou toracoscopia. A única dificuldade técnica que pode existir é a ocorrência de parede comum entre o cisto e a árvore traqueo‑ brônquica. A dissecção do cisto deve ser cuidadosa, a fim de
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Figura 7 (A) Cirurgia mostrando lobo com lesões císticas ocupando parte do lobo, compatível com MAC. (B) Lobectomia: peça do lobo pulmonar com grandes cistos no interior. MAC tipo I.
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Figura 8 (A) TC demonstrando vaso anômalo ramo da aorta para SBP extralobar. (B) SBP extralobar.
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Anatomopatologia O aspecto macroscópico característico da MAC tipo I (mais co‑ mum) mostra a presença de cistos que variam de 2 a 10 cm de diâmetro e outros menores em torno deles. A lesão pode ocu‑ par uma área mais ou menos extensa do lobo afetado. Micros‑ copicamente, os cistos têm revestimento interno formado por epitélio colunar pseudoestratificado e, por vezes, aspecto papi‑ lar. A parede pode ter fina camada fibromuscular (Figura 10).20
O tipo II apresenta pequenos brotos de cartilagem normal, estruturas tipo bronquiolares revestidas por epitélio cuboide ou colunar, e a parede pode conter fibras musculares lisas. Esse tipo pode constituir uma forma de lesão híbrida com o SBP extralobar, apresentando histologia de MAC e de tecido pulmonar normal retraído concomitantemente. O tipo III envolve todo o lobo afetado e está frequentemen‑ te associado à hidropsia. É constituído por raros cistos de diâ‑ metro inferior a 0,5 a 1,5 cm. Não se observa presença de carti‑ lagem ou células mucogênicas. Nos casos clássicos situados no tórax, o SBP é constituído por tecido pulmonar maduro, sólido e homogêneo, com al‑ véolos por vezes colapsados e que, dependendo do tempo de existência, podem mostrar sinais de processo inflamatório resultante de diversas pneumonias. O SBP infradiafragmáti‑ co tem aspecto mais cístico e frequentemente está localizado na área da adrenal. As chamadas lesões híbridas envolvendo MAC e SBP mostram, histologicamente, tecido pulmonar normal ou colapsado e, simultaneamente, cisto revestido por epitélio pseudoestratificado colunar típico da MAC (Fi‑ gura 11). O CB é uma estrutura macroscópica, arredondada ou alon‑ gada, de parede fina e transparente, com conteúdo mucoide. Microscopicamente, a parede apresenta placas de cartilagem hialina e o cisto é revestido internamente por epitélio colunar pseudoestratificado ciliar com células em cálice (Figura 12). Na CBD, o parênquima pulmonar frequentemente apresen‑ ta sinais de processo inflamatório crônico, e é possível obser‑ var a nítida transição entre epitélio respiratório e digestivo (Fi‑ gura 13).
Figura 10 MAC tipo 1. Microscopia mostrando epitélio de revestimento dos cistos do tipo pseudoestratificado colunar.
Figura 11 Lesão híbrida. Histologia com aspecto de pulmão colapsado (SBP) e lesão com cistos revestidos internamente por epitélio pseudoestratificado colunar (MAC).
Figura 9 Toracotomia com visualização de ELC de lobo médio direito.
evitar lesão da via aérea. Geralmente, o CB é uma lesão bem definida, com parede fina e conteúdo mucoso.
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Figura 12 (A) Toracotomia demonstrando lesão cística no mediastino (CB). (B) Microscopia demonstrando parede do cisto broncogênico com presença de placa de cartilagem hialina.
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Figura 13 CBD. (A) Macroscopia: lobo pulmonar retraído e segmento de comunicação com o esôfago distal. (B) Microscopia demonstrando a zona de transição do epitélio respiratório para o digestivo.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber qual o tipo mais frequente de malformação adenomatosa cística, suas causas e os diagnósticos diferenciais mais importantes (hérnia diafragmática e pneumotórax). • Saber qual o lobo mais frequentemente afetado no enfisema lobar congênito, reconhecer o quadro clínico de dispneia aos esforços moderados (por exemplo, mamar) e fazer o diagnóstico diferencial com pneumotórax. • Lembrar que o cisto broncogênico é frequentemente assintomático, constituindo-se em achado radiológico. • Saber que a radiografia de tórax, no cisto broncogênico, é mais fiel após 48 horas do nascimento.
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CAPÍTULO 2
HÉRNIA DIAFRAGMÁTICA CONGÊNITA Alcides Augusto Salzedas Netto
Introdução A hérnia diafragmática congênita (HDC) é caracterizada pela formação incompleta do diafragma resultante da ausência do músculo ou de sua eventração. Eventração ocorre quando há elevação de uma porção do diafragma que está mais fina por consequência de sua formação muscular incompleta. As HDC podem ser posterolaterais (Bochdaleck), hérnias anteriores (Morgani e outras) ou hérnias centrais. Podem ocorrer tanto do lado esquerdo quanto do direito, mas são mais comuns à esquerda. O conteúdo do abdome, incluindo estômago, intestino, fígado e baço, pode migrar para o tórax por meio do defeito no diafragma. As HDC são acompanhadas de outras malformações, defei‑ to de um gene ou de um cromossomo em até 40 a 50% dos ca‑ sos. Constituem malformações isoladas no restante dos casos. Recém-nascidos com HDC frequentemente se apresentam com desconforto respiratório, e a hipoplasia pulmonar é comum.1 Os pulmões são frequentemente pequenos porque houve falta de espaço durante a sua maturação. Incidência A HDC ocorre em cerca de 1 a cada 2.500 nascidos vivos e cor‑ responde a 8% das malformações maiores do recém-nasci‑ do.4,5 A hérnia de Bochdalek é o diagnóstico em até 90% dos casos. A HDC pode ocorrer isoladamente ou acompanhada de outras anomalias. A presença de anomalias associadas au‑ menta 2 vezes o risco de óbito.6 Anomalias associadas in‑ cluem defeitos cardíacos, anomalias cromossômicas (p.ex., trissomias do 21, 18 e 13), anomalias renais, genitais e defei‑ tos do tubo neural. A maioria dos estudos relata que a HDC ocorre igualmente em ambos os sexos. A HDC é habitualmente uma doença do período neonatal, mas até 10% dos pacientes podem apresen‑ tar sintomas após esse período e até a vida adulta. O prognós‑ tico nos pacientes com apresentação tardia é bom, com baixa ou nenhuma mortalidade.4
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Definição Congênito refere-se a estar presente ao nascimento, e a her‑ niação é a condição na qual algo transita por uma abertura anormal pela qual não deveria passar. No recém-nascido com HDC, a abertura anormal está no diafragma, com a herniação do conteúdo abdominal para o tórax. O diafragma é o músculo mais importante da inspiração e se‑ para as cavidades torácica e abdominal.l Normalmente, está for‑ mado até o final do primeiro trimestre da gestação.2,3 Em pacien‑ tes com HDC, um dos componentes do diafragma não se forma adequadamente, criando o defeito. O intestino migra para o tórax, e isso leva ao desenvolvimento inadequado dos pulmões. Etiologia e fisiopatologia Durante o crescimento do feto, o diafragma forma-se durante a 7a e 10a semana de gestação. Esôfago, estômago e intestino também estão se desenvolvendo durante esse período.7,8 A HDC afeta o desenvolvimento dos pulmões.1 O diafragma é derivado de quatro estruturas embrionárias: septo transverso, membranas pleuroperitoneais, mesoderma da parede do corpo e do mesênquima esofágico. Diversas teorias relacionadas ao desenvolvimento do dia‑ fragma têm sido propostas como causa da HDC.9,10 Uma delas sugere que a migração prematura do intestino primitivo do saco vitelino para o interior da cavidade abdominal interfere no desenvolvimento normal do diafragma, resultando na teo‑ ria clássica da compressão que interfere no desenvolvimento pulmonar. Também tem sido sugerido que o desenvolvimento anormal do pulmão (ou hipoplasia pulmonar) leva ao desen‑ volvimento anormal do diafragma, permitindo a HDC. Babiuk relatou que ratos (Fdf-10) não formam os pulmões, ainda as‑ sim desenvolvem o diafragma. Isso sugere que o defeito do diafragma na HDC é independente da hipoplasia pulmonar.11 Outra teoria aponta o desenvolvimento anormal do nervo frênico como causa do desenvolvimento anormal do diafrag‑ ma. Fechamento anormal do canal pleuroperitoneal também tem sido sugerido.1
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Recentemente, estudos em ratos relatam que a formação grafia (US) pode mostrar polidrâmnio, ausência de bolha gás‑ anormal do diafragma primordial dentro da membrana pleu‑ trica abdominal, desvio de mediastino e hidropsia fetal. US roperitoneal é responsável pelo desenvolvimento da HDC.12 mostra também a alteração dinâmica da herniação visceral Desenvolvimento anormal da membrana pleuroperitoneal le‑ para dentro do tórax na HDC, com as vísceras movendo-se varia a um defeito na porção dorsolateral do diafragma, e essa para dentro e para fora do tórax.25 é a localização da maioria dos defeitos na HDC.13 Os diagnósticos diferenciais incluem: malformação adeno‑ Fatores genéticos têm sido implicados, mas o fator inicial matoide cística, sequestro pulmonar, cistos mediastinais (te‑ responsável pelo desenvolvimento da HDC permanece sob ratoma cístico, cisto tímico, cisto de duplicação intestinal) e discussão. Ampla variação tem sido relatada quanto à preva‑ tumores neurogênicos. lência de anomalias cromossômicas (7 a 31%) em pacientes Os achados clínicos pós-natais dependem da presença de com HDC. A prevalência é mais alta em casos de HDC associa‑ anomalias associadas e do grau de hipoplasia pulmonar. dos a outros defeitos.14 A ocorrência familiar tem sido referida Manifestações clínicas em menos de 2% dos casos. A fisiopatologia da HDC envolve hipoplasia pulmonar, hi‑ Em recém-nascidos que se apresentam sem diagnóstico pré‑ pertensão pulmonar, imaturidade pulmonar e potenciais defi‑ -natal, são notados graus variáveis de desconforto respiratório, ciências de surfactante e no sistema de enzimas antioxidantes. cianose, intolerância alimentar e taquicardia. O exame físico Em razão da herniação do intestino para o tórax durante os es‑ mostra o abdome escavado se houver herniação visceral signi‑ tágios cruciais do desenvolvimento pulmonar, as divisões da ficativa. À ausculta, o murmúrio vesicular está diminuído, e via aérea são limitadas à 12a ou 14a geração do lado afetado e ruídos hidroaéreos podem ser ouvidos no tórax. Os sons car‑ até a 18a geração do lado contralateral. A via aérea normal re‑ díacos podem estar abafados e deslocados. sulta em 23 a 25 divisões. O espaço aéreo segue o desenvolvi‑ Em apresentações mais tardias, podem ocorrer obstrução intestinal, isquemia mesentérica e necrose pós-volvo. mento da via aérea, por isso a alveolarização fica reduzida.15 O desenvolvimento do sistema arterial pulmonar é paralelo Vários estudos têm demonstrado redução significativa ao da árvore brônquica, então, um número menor de ramos da sobrevida em pacientes com HDC e defeitos cardía‑ arteriais é formado na HDC. A hipertrofia anormal da camada cos.26-28 O estabelecimento do grupo de estudo da HDC aju‑ média muscular é observada tão distalmente quanto nas arte‑ dou a criar um banco de dados multicêntrico e a analisar as ríolas acinares, e os vasos pulmonares são mais sensíveis aos malformações associadas a HDC em um grande número de estímulos de vasoconstrição.16 A hipertensão pulmonar resul‑ pacientes. Incidência de 14,6% de cardiopatia foi relatada tante dessas anomalias arteriais leva o shunt direito-esquerdo em 2.636 pacientes estudados com HDC.29 Duzentos e oi‑ ao nível do canal arterial. A persistência da circulação fetal tenta desses pacientes (10,6%) foram diagnosticados com leva à hipertrofia ventricular direita, à insuficiência cardíaca e problemas cardíacos significativos e incluídos na análise ao ciclo de hipoxemia progressiva, hipercapnia, acidose e hi‑ do estudo. pertensão pulmonar.1 As cardiopatias encontradas mais comuns foram: defeitos Estudos em modelos animais têm relatado dados conflitan‑ do septo ventricular (DSV) em 42,2%, obstrução do arco aórti‑ tes sobre a deficiência de surfactante na HDC. Relatou-se defi‑ co em 15% (9,3% com coartação isolada e 4,6% com coartação ciência significativa em um modelo em ovelhas, mas sem alte‑ e DSV), ventrículo único em 13,9% e tetralogia de Fallot em rações na expressão do mRNA das proteínas A, B e C do 11,1%. Pacientes com HDC sem cardiopatia tiveram sobrevida surfactante em ratos.17-19 Modelos experimentais em ratos com hospitalar de 70,2%, enquanto pacientes com cardiopatia so‑ HDC mostraram diminuição da expressão da óxido nítrico sin‑ breviveram em 41,1% dos casos.29 tase (ONS) e atividade da ONS, e isso pode ser responsável pe‑ las alterações funcionais da circulação pulmonar.20 Os estudos Avaliação em humanos conseguiram demonstrar deficiência em surfac‑ Exames de laboratório tante em crianças de alto risco e que foram submetidas à oxi‑ Gasometria arterial genação por membrana extracorpórea (ECMO) e somente du‑ Devem ser obtidas medidas frequentes para avaliar para o pH, rante esta.21 No entanto, os estudos não demonstraram de o PaCO2 e o PaO2. É preciso anotar o local da amostragem, pois maneira consistente a deficiência primária de surfactante em a hipertensão pulmonar persistente do recém-nascido com recém-nascidos a termo com HDC.22,23 O uso do surfactante ro‑ desvio ductal da direita para a esquerda complica frequente‑ tineiro para esses pacientes não é desejável.18,24 mente a HDC. O PaO2 é frequentemente mais elevado em uma Os recém-nascidos com HDC apresentam deficiência no amostra pré-ductal (mão direita). sistema de enzimas antioxidantes pulmonares e estão mais Cariótipo suscetíveis a lesão decorrente da hiperoxia1. Devem ser obtidos estudos dos cromossomos, em razão da as‑ Diagnóstico sociação frequente com anomalias cromossômicas. Se carac‑ O diagnóstico da HDC é frequentemente pré-natal (46 a 97% terísticas dismórficas são observadas, a consulta com um ge‑ dos casos) e antes da 25a semana de gestação.25 A ultrassono‑ neticista é frequentemente útil para avaliar o paciente.
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Eletrólitos do soro Como com os recém-nascidos e todo paciente grave, os níveis de eletrólitos do soro devem ser avaliados, assim como a glicose. Estudos de imagem Radiografia do tórax Se HDC é suspeitada, a colocação de uma sonda orogástrica ajuda a descomprimir o estômago e a determinar se o tubo está posicionado acima ou abaixo do diafragma (Figura 1). Os resultados típicos em uma HDC posterolateral esquerda in‑ cluem a presença de alças intestinais no tórax e o deslocamen‑ to do mediastino para a direita. Pode ocorrer pneumotórax. Ecocardiograma A incidência de anomalias cardíacas associadas é elevada (até 20%) e, consequentemente, o ecocardiograma é necessário imediatamente depois do nascimento. US renal As anomalias geniturinárias ocorrem em 6 a 8% dos recém‑ -nascidos com HDC; a US renal deve ser considerada. US transcraniana Os defeitos do SNC (defeitos de tubo neural, hidrocefalia) po‑ dem ser associados à HDC. A US transcraniana pode também ser utilizada com o objetivo de avaliar sangramento intraven‑ tricular e mudanças hipóxico-isquêmicas. Outros testes Oximetria de pulso A oximetria contínua é valiosa no diagnóstico e no tratamento da hipertensão pulmonar persistente do recém-nascido. O oxímetro pré (mão direita) e pós-ductal (pés) pode avaliar o shunt direito-esquerdo no nível do canal arterial.
A
Mortalidade O grupo de estudo da HDC relatou uma taxa de sobrevida de 63% entre 1995 e 1996, baseado nos dados de 62 centros ame‑ ricanos, europeus e australianos.30 O relato do mesmo grupo de 2005 referiu sobrevida de 67,1% dos pacientes com HDC, e de 41,1% dos pacientes com anomalias cardíacas associadas.29 O risco de morbimortalidade para recém-nascidos com HDC varia muito entre os pacientes. O fator subjacente para essa variação é a gravidade da doença e, principalmente, do grau de hipoplasia pulmonar. A análise dos efeitos das novas terapêuticas é prejudicada pela ausência de métodos que classifiquem a gravidade do paciente com HDC. O grupo de estudo da HDC relatou os fatores com interferência significa‑ tiva na sobrevida, que foram peso ao nascimento, Apgar do quinto minuto, diagnóstico pré-natal e desconforto respirató‑ rio imediato.31 A mortalidade da HDC não foi alterada pelas novas terapias (ECMO, ventilação de alta frequência e óxido nítrico – ON). A taxa de sobrevida pode ser determinada pelas anomalias asso‑ ciadas. Relatos de aumento da sobrevida devem ser interpre‑ tados com cuidado, assim como variações na evolução podem ser justificadas pela seleção dos casos.32 Tratamento O diagnóstico pré-natal permitiu o cuidado programado dos recém-nascidos acometidos pela HDC. Os pais devem ser orientados sobre diagnóstico, prognóstico e tratamentos dis‑ poníveis. O parto em um centro de cuidado terciário com ser‑ viços de neonatologia e cirurgia pediátrica é indicado. O quadro clínico varia no período neonatal, e pacientes com HDC podem ter graus variados de desconforto respirató‑ rio. Na sala de parto, os pacientes com HDC devem ser entuba‑ dos imediatamente.33 Ventilação por máscara com pressão po‑ sitiva com oxigênio causa distensão gástrica e compressão dos
B
Figura 1 Radiografia de tórax de recém-nascido com hérnia diafragmática esquerda. A. Antes. B. Após a passagem da sonda de descompressão gástrica.
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Hérnia Diafragmática Congênita •
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pulmões, que deve ser evitada. Qualquer demora em obter o O ON é um vasodilatador pulmonar altamente seletivo e acesso à via aérea pode intensificar a acidose e a hipóxia, que tem sido utilizado em pacientes com hipertensão pulmonar. O podem aumentar o risco de hipertensão pulmonar.34 ON produz vasodilatação pulmonar, diminui os distúrbios de A monitoração adequada inclui monitor cardíaco contínuo, ventilação-perfusão e reverte o shunt ductal observado na hi‑ gasometria arterial e pressão sistêmica, sonda vesical para ve‑ pertensão pulmonar. O resultado com o ON tem sido limitado rificar o débito urinário, e oximetria pré e pós-ductal.35 nos pacientes com HDC, mas a eficácia do ON melhora o re‑ Recém-nascidos com HDC são predispostos à hipertensão sultado da terapia com surfactante aplicada posteriormente.43 pulmonar. Quando o intestino é preenchido com o ar degluti‑ É importante realizar ecocardiograma e US transcraniana do, os pulmões são ainda mais comprimidos, e isso pode cau‑ para avaliar hemorragia intracraniana antes de indicar a sar atelectasia em pulmões previamente hipoplásicos.5,34 Des‑ ECMO e para identificar a presença de cardiopatia associada, compressão gástrica por sonda promoverá espaço no tórax gravidade da hipertensão pulmonar e do shunt. para a expansão do tecido pulmonar disponível. A sonda oro‑ Para tratar a insuficiência respiratória grave, a ECMO tem gástrica poderá localizar-se no hemitórax esquerdo no caso da sido utilizada com sucesso.5,32,40 A ECMO permite a troca de HDC à esquerda. oxigênio e gás carbônico e evita a lesão adicional ao pulmão O objetivo da ventilação mecânica na HDC é manter pres‑ pelo barotrauma.5,34,40 Estudos têm mostrado aumento da so‑ são expiratória adequada, evitar altos picos de pressão inspi‑ brevida com o uso da ECMO,40 porém os resultados dependem ratória e lesão pulmonar decorrente da ventilação.5,36 Pode ser dos critérios de seleção. É difícil identificar os pacientes com aceitável manter saturação pré-ductal (mão direita) entre 75 e risco aumentado de óbito, e não há fator preditivo absoluto de 90%, pelo menos nas primeiras 6 horas de vida, evitando pres‑ letalidade da hipoplasia pulmonar na HDC. O óbito pode ser sões excessivas de ventilação.5,32,37 O tratamento deve prosse‑ inevitável se a hipoplasia pulmonar se instala com quadro per‑ guir com o objetivo de manter a pressão parcial de oxigênio sistente de hipertensão pulmonar. Apesar de não haver con‑ pré-ductal (PaO2) pouco acima de 60 mmHg,5,34,36 sem exceder clusão de que a ECMO melhore a sobrevida, ainda permanece as pressões de ventilação. Devem ser evitadas as altas pres‑ uma opção de tratamento na HDC.5,35 Os critérios para indica‑ sões de ventilação, pois isso aumentaria a hipertensão pulmo‑ ção de ECMO são: pressão pré-ductal < 75 a 80% ou PaO2 pós‑ nar, o risco de pneumotórax e a lesão pulmonar por barotrau‑ -ductal < 30 mmHg, pico de pressão inspiratória > 30 cmH2O, ma.38 Protocolos com hipercapnia permissiva, sedação pressão média de via aérea > 15 mmHg, hipotensão apesar de mínima e respiração espontânea têm sido relatados.38 hidratação e drogas vasoativas e acidose persistente. O pico inspiratório de pressão (PIP) deve ser menor que 30 A manipulação de recém-nascido deve ser mínima, redu‑ cmH2O. A hipercapnia é permitida até o ponto em que o pH zindo procedimentos invasivos, como aspiração da cânula de possa ser tamponado.39 entubação. O recém-nascido deve ter cateter umbilical arterial Formas alternativas de ventilação e suporte devem ser con‑ e venoso para monitoração, coleta de exames e administração sideradas para pacientes que não permanecem estáveis na de medicação. Isso deve diminuir o risco de crises de hiperten‑ ventilação convencional. Nesses casos, pode ser tentada a são pulmonar. A restrição hídrica é necessária, pois o edema ventilação de alta frequência, ECMO e o uso do ON. pulmonar pode piorar as trocas gasosas. A ventilação de alta frequência pode evitar a necessidade de ECMO, e alguns centros têm relatado a diminuição da ne‑ Tratamento cirúrgico cessidade de ECMO quando a ventilação de alta frequência é Inicialmente, a HDC era considerada uma emergência cirúrgi‑ associada ao ON.5,36,40 Ventilação de alta frequência é reco‑ ca. Com a descoberta de que os pulmões eram hipoplásicos e mendada para pacientes com hipercapnia e hipoxemia resis‑ não atelectasiados, surgiu o procedimento cirúrgico eletivo tente à ventilação convencional ou que necessitam de PIP > após estabilização do paciente como é feito atualmente.44-46 O 30 cmH2O.41 Essa ventilação permite trocas gasosas com uso tratamento da HDC evoluiu de uma ventilação agressiva e ci‑ de baixas pressões e diminui o risco de barotrauma. O pneu‑ rurgia de urgência para, atualmente, com hipercapnia permis‑ motórax é uma preocupação nos pacientes com HDC, e a equi‑ siva, estabilização fisiológica e cirurgia eletiva. Vários estudos pe deve estar ciente desse risco porque a intervenção deve ser sugeriram a melhora da sobrevida com a cirurgia eletiva após imediata. O pneumotórax hipertensivo pode estar presente estabilização do recém-nascido.44-46 em razão da ruptura de alvéolos secundária ao barotrauma em Intervenção pré-natal para corrigir a hipoplasia pulmonar um pulmão hipoplásico.4,5,35 intraútero também é uma opção. Reconstrução diafragmática Pacientes com HDC têm desenvolvimento pulmonar ima‑ e oclusão traqueal são factíveis.5,47,48 A oclusão traqueal fetal é turo e podem ser deficientes em surfactante.4,5,35 A adminis‑ uma opção para promover distensão do tecido pulmonar pelo tração de surfactante pode tratar sua deficiência, aumentar a líquido produzido pelos pulmões e crescimento dos pulmões. complacência pulmonar, reduzir a resistência vascular pulmo‑ Experiências iniciais parecem promissoras, mas o parênqui‑ nar e melhorar o fluxo sanguíneo pulmonar.5,24,32 O tratamento ma resultante desse crescimento ainda necessita de avaliação. com surfactante pode ser realizado em pacientes com HDC, Um estudo randomizado não mostrou benefício de melhora porém seu uso é controverso, e não parece haver benefício no de sobrevida em fetos submetidos à oclusão traqueal por fe‑ tratamento dos pacientes com HDC.5,24,35,42 toscopia.49
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Prognóstico A sobrevida relatada varia de 40 a 90%, provavelmente por consequência das diferenças entre os pacientes tratados em cada instituição. Os pacientes sobreviventes têm risco de morbidade em longo prazo, incluindo doença pulmonar crônica, déficit de crescimento, doença do refluxo gastroesofágico, alterações auditivas e do desenvolvimento neuropsicomotor. O risco pa‑ rece maior nos pacientes com doença pulmonar crônica de‑ pendentes de oxigênio, naqueles com material protético para reconstrução do diafragma e naqueles com gastrostomia para alimentação.50 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer que, atualmente, a maioria dos casos de hérnia diafragmática congênita de Bochdalek (HDC) apresenta diagnóstico pré-natal, o que permite o parto em hospital com condição de suporte neonatal e de avaliação adequada por cirurgião pediátrico. • Procurar anomalias associadas, principalmente cardíacas, por serem, com frequência, potencialmente graves. • Reconhecer o quadro clínico imediatamente pós-natal de dispneia grave, batimentos cardíacos à direita e ruídos hidroaéreos no tórax, além de abdome escavado. • Fazer o diagnóstico diferencial com malformação adenomatosa cística e sequestro pulmonar, os mais frequentes. • Lembrar o que fazer: sonda orogástrica e entubação traqueal; e o que não fazer: ventilação sob alta pressão. • Lembrar que a HDC não é afecção cirúrgica de urgência.
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CAPÍTULO 3
ATRESIA DO ESÔFAGO Max Carsalad Schlobach
Introdução e histórico A atresia do esôfago (AE) é a malformação congênita mais co‑ mum do esôfago, tendo sido descrita inicialmente por Durston (1670)1 e Gibson (1696)2 em sua forma de apresentação mais comum, associada à fístula traqueoesofágica (FTE) distal. Persistia incompatível com a vida até 1939, quando, em dois trabalhos independentes, Leven3 e Ladd4 publicaram o pri‑ meiro caso de sobrevida, mas ainda sem a anastomose esofá‑ gica. Esta foi descrita pela primeira vez por Cameron Haight em 1941, com a ligadura da fístula entre o esôfago distal e a tra‑ queia e a anastomose esofágica em tempo único.5 No Brasil, a primeira sobrevida após a reconstrução esofágica foi obtida em 1953, pelo Prof. Virgílio Carvalho Pinto.6 Em razão do gran‑ de desenvolvimento das técnicas de cirurgia, anestesiologia e terapia intensiva neonatal, são descritos atualmente índices de sobrevida próximo a 100% em recém-nascidos (RN) sem anomalias associadas. Essa sobrevida pode servir de parâme‑ tro para o nível de excelência dos serviços de cirurgia pediátri‑ ca. A AE pode ser considerada um dos marcos na formação do cirurgião pediátrico, que pode ser considerado um especialista quando começa a obter bons resultados durante o tratamento. Conceito Anormalidade congênita na qual a porção média do esôfago é ausente. Estima-se uma incidência de 1 caso a cada 3.000 a 4.500 nascidos vivos. A relação entre os sexos é de 1:1. A maio‑ ria dos pacientes tem, ainda, uma comunicação anormal entre a traqueia e o esôfago inferior, que é a FTE. Outros pacientes não têm a comunicação fistulosa ou a têm com o esôfago pro‑ ximal. É comum a história de gestação com polidrâmnio ou parto prematuro. Mais de 50% dos casos apresentam outras anomalias congênitas associadas, sendo mais comuns as car‑ díacas, as urinárias e as do trato gastrointestinal. A AE com FTE é corrigível cirurgicamente, e os resultados são bons. O diagnóstico pode ser suspeitado em um RN que tenha excessi‑ va secreção de muco ou saliva ao nascimento, com ou sem dis‑ túrbio respiratório.
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Embriologia No início da gestação, por volta do 20o dia de vida intrauteri‑ na, um tubo endodérmico comum ao intestino primitivo e ao esboço respiratório divide-se em esôfago e traqueia. Por vol‑ ta do 21o ao 23o dia de vida intrauterina, surge no assoalho do intestino anterior primitivo um sulco laringotraqueal que cresce no sentido cranial, ao mesmo tempo em que ocorre uma septação lateral separando a porção traqueobrônquica (ventral) da esofágica (dorsal). Por volta do 26o dia de gesta‑ ção, essas estruturas estão completamente separadas até o nível da laringe. A explicação morfogenética da AE não está perfeitamente esclarecida, mas Smith postulou que ela ocor‑ ra entre a 4a e a 5a semanas de vida intrauterina. Várias teo‑ rias que tentam explicar a anomalia podem ser agrupadas nos seguintes itens: 1. Pressão intraembriônica: • pressão do alargamento do coração embriônico; • pressão dos vasos anormais; • pressão do recesso pneumatoentérico; hiper-reflexão em‑ briônica. 2. Oclusão epitelial. 3. Acidente vascular. 4. Anormalidades da relação de crescimento diferencial: • falha no desenvolvimento do septo traqueoesofágico; • supercrescimento de cristas laterais ao esôfago; • deslocamento ventral da prega dorsal do intestino cefálico; • distúrbio do controle mesenquimal de diferenciação. Na pesquisa de Pinus (1972) sobre a vascularização arterial do esôfago normal do RN e do esôfago atrésico, foi observada a ausência da artéria brônquica direita em 18 casos estudados, determinando uma zona de insuficiência vascular e podendo estar envolvida na atresia do esôfago.7 Anatomia e classificação A AE e a FTE podem ocorrer isoladamente, mas a combinação das duas é mais frequente. A classificação baseia-se na pre‑
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Atresia do Esôfago •
sença de uma ou ambas e, nesse caso, na relação da fístula com o segmento do esôfago. Os tipos de defeitos são clinica‑ mente significativos. A AE com FTE (87%) é a mais comum das anomalias. O esôfago proximal termina em fundo cego ao nível da terceira vértebra torácica. Ele pode ser desde curto, terminando no ní‑ vel da sétima vértebra cervical, até longo, no nível da quinta vértebra torácica. A musculatura do segmento proximal é hi‑ pertrofiada, e o diâmetro é muito maior que o segmento distal, que tem sua origem na traqueia. A fístula raramente pode se conectar ao brônquio. Sempre existe um espaço entre o coto proximal e a fístula. O tamanho do coto proximal, a altura da fístula e a distância entre os cotos são fatores que determinam o grau de dificuldade da correção cirúrgica. A irrigação do coto proximal é feita pelo tronco tireocervical e tem rica rede trans‑ mural. Isso possibilita grande mobilização, sem comprometi‑ mento do suprimento vascular. O segmento distal, entretanto, tem irrigação segmentar (terminal) vindo das artérias inter‑ costais, podendo ficar comprometido mesmo com mobiliza‑ ções mínimas. O segmento proximal permite, ainda, técnicas de alongamento pela secção da camada muscular (das quais a incisão circular, descrita por Livaditis em 1973, é a mais fre‑ quente8), no sentido de possibilitar a anastomose entre cotos distantes (Figura 1). A AE isolada (8%) é comumente associada à grande dis‑ tância entre os cotos. O coto proximal é semelhante – dilatado e de parede espessada – ao das outras formas de AE. O coto distal, nessa anomalia, é muito pequeno (geralmente de 1 a 2 cm), em razão da ausência de fístula e da consequente fixação à traqueia. A ausência de trânsito do líquido amniótico faz o estômago ser pouco desenvolvido (Figura 2). A FTE isolada (fístula em H) (3%) tem usualmente de 2 a 4 mm de diâmetro, e seu trajeto é orientado no sentido diagonal, inserindo-se no ponto mais alto na parte membranosa da tra‑ queia. Ela ocorre geralmente acima da carina, mas frequente‑ mente pode estar em local mais alto (região cervical) ou mais baixo (região intracavinal). O esôfago geralmente é normal (Figura 3). A AE com FTE proximal e a AE com FTE proximal e distal (dupla fístula) são condições raras, ocorrendo em menos de 1% dos casos cada uma.
Figura 1 Esofagograma contrastado mostrando esôfago superior dilatado e ar no abdome.
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Figura 2 Atresia de esôfago sem fístula: radiografia simples sem ar no tubo digestivo.
Figura 3 Fístula traqueoesofágica em H: observa-se a origem na região mais alta, na parede traqueal.
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Malformações associadas As anomalias mais comumente associadas à AE são: • cardíacas (ducto arterioso patente, comunicações interatrial e interventricular, defeitos complexos): as mais frequentes e responsáveis, em parte, pela mortalidade desses RN; • gastrointestinais: anomalia anorretal e obstruções duodenais, incluindo más rotações intestinais, são as mais comuns; • geniturinária: malformações renais e ureterais; • neurológicas: neurocristopatias cefálicas – anomalia de dife‑ renciação da crista neural; têm relação com a AE isolada e anomalias cardiovasculares; • esquelética: vertebrais. Existe uma associação de malformações particularmente co‑ mum, conhecida pela sigla VACTERL: V – anomalia vertebral; A – anomalia anorretal; C – malformação cardíaca; TE – fístula traqueoesofágica; R – malformações renais e do osso rádio; L – extremidades (Limb). Síndromes conhecidas, como a de Down, ou as trissomias dos cromossomos 8 ou 13 podem estar associadas em aproxima‑ damente 20% dos casos. Algumas dessas malformações exi‑ gem correção já no período neonatal, simultaneamente à cor‑ reção da AE, muitas vezes exigindo uma gastrostomia como primeiro procedimento. Outras malformações necessitam ser corrigidas nos primeiros meses de vida, como as cardíacas e urinárias. Quadro clínico O quadro clínico é típico, caracterizado por secreção salivar es‑ pumosa e arejada, saindo pela boca e pelas narinas, o que cor‑ responde à eliminação da secreção salivar acumulada no fun‑ do cego esofágico. Há, concomitantemente, aspiração para as vias aéreas com tosse, cianose, dispneia e sufocação. O abdo‑ me pode estar distendido (pela fístula) ou escavado (sem fís‑ tula). Predomina o quadro respiratório, com aparecimento de pneumonias aspirativas e atelectasias. Além disso, a AE no seu tipo mais comum, ou seja, com fístula do segmento distal para a traqueia, favorece o refluxo do conteúdo ácido do estô‑ mago para o esôfago e a árvore traqueobrônquica, resultando em pneumonite química com lesão parenquimatosa pulmo‑ nar, que é muito mais grave do que aquela determinada pela aspiração de saliva. À ausculta pulmonar, observam-se roncos disseminados e estertores subcrepitantes, principalmente em lobo superior direito. Nos casos de atresia sem fístula, o quadro respiratório é menos intenso e de início mais tardio. A rigor, o sinal mais precoce da AE é pré-natal, representado pelo polidrâmnio, que ocorre em 80% dos casos sem fístula e em 30 a 35% dos casos com fístula. A prematuridade é mais comum nessas crianças, podendo representar até 35% dos casos.
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Diagnóstico A suspeita deve ser feita já no período pré-natal, diante de po‑ lidrâmnio, que pode ser diagnosticado pelo exame físico da gestante ou pela ultrassonografia. A ultrassonografia pode, ainda, identificar o coto esofágico superior dilatado e com lí‑ quido em seu interior, assim como um estômago diminuído, no caso de uma AE sem fístula. Logo após o nascimento, deve ser rotina a passagem de sonda nasogástrica de calibre de 8 a 10 Fr, com o objetivo de testar a permeabilidade das coanas e do esôfago e, pela aspiração do conteúdo gástrico, de pressu‑ por a obstrução do trato digestivo (se existe no estômago um volume > 25 mL). A interrupção da progressão da sonda de 8 a 12 cm da narina é diagnóstico de AE. Apesar de a sondagem nasogástrica ser rotina na maioria dos berçários, ainda é possí‑ vel encontrar RN cujo diagnóstico só é sugerido após o início da amamentação, pela regurgitação, tosse, cianose e insufi‑ ciência respiratória aguda. O exame radiológico simples, tora‑ coabdominal, permite a visualização do coto esofágico proxi‑ mal contrastado pelo ar (“uma bolha de ar supraesternal”), assim como a presença de ar no intestino delgado, demons‑ trando a existência de fístula no esôfago distal na traqueia. A ausência de imagens gasosas no abdome revela AE sem fístula. Pode-se usar contraste baritado no coto proximal para confir‑ mar o diagnóstico, quando se deve introduzir no máximo 0,5 mL do líquido e, imediatamente depois, aspirar o contraste in‑ jetado. Volumes maiores podem provocar aspiração e compro‑ metimento pulmonar. Além do diagnóstico de AE, devem-se procurar identificar afecções associadas que são comuns. Os exames mais utilizados são radiografia toracoabdominal, ul‑ trassonografia (US), ecocardiografia e, eventualmente, uro‑ grafia excretora. É importante determinar a posição da aorta e procurar anomalias cardiovasculares com radiografia simples, US ou ecocardiograma. Em caso de dextroposição da aorta, deve-se considerar a via de acesso por toracotomia esquerda. Tratamento pré-operatório Na suspeita de AE, os procedimentos indicados são: • confirmação do diagnóstico; • reconhecimento do tipo de anomalia; • avaliação do estado pulmonar; • identificação de anomalias associadas. A primeira classificação para RN portadores de AE foi propos‑ ta por Waterston em 1962 e levava em consideração o peso ao nascimento e a ocorrência de pneumonia e anomalias congê‑ nitas associadas. À época, o peso de 2.500 g era considerado como base para maior sobrevida. Após a década de 1980, com a melhora nos cuidados pré, peri e pós-operatórios, passou a ser considerado o peso acima de 1.500 g para melhor prognós‑ tico, como proposto por Spitz em 1994 (Tabela 1). Dos fatores determinantes do prognóstico, aquele que pode efetivamente ser abordado com êxito é o tratamento das com‑ plicações pulmonares. A prevenção e o tratamento dessas complicações incluem:
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Atresia do Esôfago •
Tabela 1 Classificação da AE em RN Classificação de Waterston – 19699 Grupo A
Peso > 2.500 g, sem outras anomalias nem pneumonia
Grupo B
Peso de 2.000 a 2.500 g, ou maior com pneumonia ou anomalias associadas
Grupo C
Peso < 2.000 g, ou acima, porém com graves anomalias associadas
Classificação de Spitz – 199410 Grupo I
Peso > 1.500 g sem cardiopatias associadas
Grupo II
Peso < 1.500 g, sem doença cardíaca, ou > 1.500 g, com cardiopatias associadas
Grupo III
Peso < 1.500 g, com cardiopatias associadas
1. RN mantido em incubadora, aquecido com hidratação e ofer‑
ta calórica adequadas. 2. Sonda nasoesofágica de duplo lume (Replogle), submetida a
aspiração constante, para evitar a aspiração de saliva. 3. RN em posição elevada (pelo menos 30°), em decúbito dorsal
ou lateral direito, para diminuir o refluxo gástrico nos casos com fístula. Se não houver fístula, a criança pode ficar em po‑ sição de Trendelemburg. 4. Ventilação com ar do ambiente ou oxigênio com umidificação, a fim de mobilizar a secreção pulmonar e facilitar a sua elimi‑ nação. Fisioterapia postural. O choro contribui com a mesma finalidade.
Se houver grave desconforto respiratório, a ventilação mecâni‑ ca pode ser necessária, e a entubação poderá ser indicada nos casos de (Figura 4): • insuficiência respiratória por pneumonia ou membrana hialina; • traqueomalácia grave ou malformação laríngea; • pneumonias extensas; • cardiopatia congênita que necessite de ventilação mecânica.
Figura 4 Posição do RN com AE e FTE distal: decúbito elevado para dificultar o refluxo de ácido do estômago para a traqueia e sonda nasoesofágica para drenagem da secreção salivar, evitando aspiração pelos pulmões.
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A antibioticoterapia deve ser introduzida precocemente, dan‑ do-se preferência à penicilina (ou ampicilina) e amicacina (ou gentamicina). Deve-se administrar vitamina K, na dose de 1 mg por via intramuscular, no pré-operatório. O acesso venoso pode ser periférico e deve permitir a administração de soro glicosado a 10%, transfusão de sangue e nutrição parenteral. O tratamen‑ to cirúrgico da AE não é indicação de emergência, mas a cirur‑ gia corretiva deve ser realizada assim que a investigação labora‑ torial e por exames de imagem tenha sido concluída. Tratamento cirúrgico da atresia de esôfago com fístula distal A gastrostomia deve ser evitada, apesar de ter feito parte da ro‑ tina do tratamento cirúrgico até o início da década de 1980. Ela é indicada, hoje, apenas para RN admitidos com pneumo‑ nia aspirativa ou em prematuros de peso muito baixo. Atual‑ mente é realizada toracotomia posterior extrapleural direita no espaço interescapulovertebral, no nível do triângulo aus‑ cultatório, com ligadura da fístula esfagotraqueal e anastomo‑ se término-terminal entre os cotos esofágicos em um só plano. Na última década, com os avanços da videocirurgia, pode ser tratada também por videotoracoscopia. É deixada uma sonda transesofágica para descompressão gástrica e alimentação precoce. O acesso extrapleural é preferido, pois evita empiema em casos de vazamento da anastomose. A colocação de dreno de tórax depende da conduta do cirurgião, podendo ser reali‑ zada ou não. Complicações pós-operatórias 1. Deiscência de anastomose: complicação mais precoce e grave. Ocorre em cerca de 5 a 20% dos casos e, geralmente, entre o segundo e o quarto dias de pós-operatório. Quando o vaza‑ mento é pequeno, deve ser tratado de modo conservador. A reoperação é indicada nos casos de deiscências mais graves. 2. Estenose da anastomose: complicação tardia mais frequente. Pode ser decorrente de maior tensão no nível da anastomose, por isquemia, por pequenas deiscências bloqueadas ou, ain‑ da, por causa do pequeno calibre do segmento inferior. O tra‑ tamento recomendado são as dilatações com sondas ou ba‑ lões. A reoperação fica reservada para os casos de insucesso. 3. Recidiva da fístula esofagotraqueal: complicação rara nos dias de hoje, talvez em função do fato de a ligadura da fístula ser cada vez mais cuidadosa. O diagnóstico não é fácil, sendo fre‑ quentemente confundido com traqueomalácia. Broncopneumonia de repetição é a ocorrência mais comum. Recomenda‑ -se a abordagem da fístula de 5 a 8 semanas após o diagnóstico. 4. Refluxo gastroesofágico: é mais frequente do que na popula‑ ção normal, com repercussões variáveis. Os fatores contri‑ buintes podem ser a dissecção e a tração do coto distal, a alte‑ ração no sistema neurovascular, a gastrostomia, etc. As consequências são as esofagites, a manutenção da estenose e os episódios de infecções pulmonares. O tratamento é a corre‑ ção cirúrgica com válvula antirrefluxo, sendo a técnica de Nis‑ sen a mais utilizada. 5. Traqueomalácia: alteração estrutural e funcional da traqueia que leva à obstrução e a dificuldades respiratórias. Quase
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sempre ocorre em algum grau, mas melhora com a idade. Nos casos mais graves, é indicada a aortopexia, cujos resultados são bons. 6. Alterações do peristaltismo esofágico: ocorrem em maior ou menor grau em todos os pacientes operados de AE. Habitual‑ mente, não existem repercussões clínicas importantes. Há uma discreta disfagia para alimentos sólidos, que pode ser tratada com orientação alimentar. Melhora com a idade.11
Referências bibliográficas 1. 2. 3.
4. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Lembrar da ocorrência de síndromes (Down) e malformações associadas (VACTERL). • Lembrar o tipo mais frequente: atresia proximal com fístula traqueoesofágica distal (acima de 80% dos casos). • Saber que o diagnóstico pré-natal é infrequente; daí muitas crianças nascerem sem o diagnóstico da AE. • Fazer o diagnóstico já na sala de parto, pela passagem de sonda orogástrica ou, em momento posterior, antes da alimentação, pela eliminação de saliva espumosa pela boca. • Encaminhar ao cirurgião pediátrico à menor suspeita de AE, já que o diagnóstico precoce é determinante da sobrevida.
5.
6. 7.
8. 9. 10. 11.
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CAPÍTULO 4
OBSTRUÇÕES DUODENAIS CONGÊNITAS Pedro Muñoz Fernandez
Introdução As obstruções duodenais congênitas podem ser totais, parciais ou, ainda, causadas por fatores intrínsecos ou extrínsecos.1 Nesse grupo de doenças estão as atresias duodenais, as obstru‑ ções decorrentes de pâncreas anular ou erro da rotação intesti‑ nal, com formação de bandas que levam à compressão da por‑ ção terminal do duodeno ou das primeiras porções do jejuno, determinando dificuldade do trânsito do conteúdo intestinal. Neste capítulo, uma dessas doenças será discutida sepa‑ radamente. Atresia duodenal À falta de luz de um segmento do duodeno dá-se o nome de atresia duodenal. O segmento atrésico, na maior parte das ve‑ zes, corresponde à terceira porção do duodeno. O advento da medicina fetal e o aperfeiçoamento dos equi‑ pamentos e das técnicas de exame do feto têm permitido o diagnóstico dos casos de atresia duodenal no período pré-na‑ tal. O diagnóstico antenatal é extremamente importante, pois permite o adequado encaminhamento da gestante a um cen‑ tro de atenção terciária à saúde,2,3 visto que o recém-nascido deverá passar por um procedimento cirúrgico. A visão classicamente descrita é a de duas imagens anecoi‑ cas no andar superior do feto, uma à direita e outra à esquerda da coluna, correspondendo, respectivamente, ao estômago e ao duodeno, preenchidos por um líquido que não consegue progredir no tubo digestivo em razão da obstrução à montante (Figura 1).4 A impossibilidade da progressão do líquido amniótico de‑ glutido por meio do sistema digestivo, com a consequente rea‑ lização de seu ciclo entérico, leva ao polidrâmnio, que é en‑ contrado em aproximadamente 65% dos casos, embora essa associação seja menos descrita nos trabalhos mais recentes.3 Por consequência da prevalência da atresia de duodeno as‑ sociada a anomalias cromossômicas, torna-se mandatória a realização do cariótipo fetal. Quanto ao diagnóstico pós-natal, na obstrução duodenal congênita decorrente da atresia de
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duodeno foi encontrado um recém-nascido com distensão epigástrica e o restante do abdome escavado. Ainda na sala de parto, deve-se suspeitar de obstrução duo‑ denal, pela presença de grande volume de líquido gástrico na passagem da sonda orogástrica (volume > 20 mL). Diante des‑ ses achados, o recém-nascido deve ser encaminhado à unida‑ de de tratamento intensivo (UTI), para a realização de exames complementares, e preparado para a correção cirúrgica da atresia. Se nenhum desses fatores for descrito, porém, o re‑ cém-nascido apresentará quadro de vômitos biliosos, o que impossibilitará a alimentação por via oral. A radiografia simples de abdome é o exame radiológico que confirma o diagnóstico da atresia duodenal. Nesse exame, en‑ contra-se o sinal da dupla bolha de ar correspondendo ao estô‑ mago e ao duodeno obstruído e dilatado (Figura 2). Não há ne‑ cessidade da realização de exames radiológicos contrastados.
Figura 1 Ultrassonografia fetal mostrando a dupla bolha correspondente a um caso de atresia de duodeno.
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A correção cirúrgica é feita sob anestesia geral por duode‑ no-duodeno anastomose, reservando-se aos casos de atresia em razão da presença de uma membrana duodenal, da duode‑ notomia e da ressecção da membrana. A exploração de outras atresias intestinais, bem como de outras anormalidades da ca‑ vidade abdominal, é obrigatória. O recém-nascido deve ser mantido em nutrição parenteral até apresentar trânsito intestinal. Em geral, o pós-operatório tardio dessas crianças não mostra complicações,5,6 porém, en‑ tre as sequelas descritas, estão o megaduodeno, a gastrite al‑ calina, o trânsito retardado e as obstruções intestinais pós‑ -operatórias.7 Pâncreas anular Um erro de desenvolvimento do broto pancreático é o respon‑ sável pelo envolvimento do duodeno por parte do tecido pan‑ creático, levando a uma obstrução maior ou menor e a qua‑ dros obstrutivos de maior ou menor intensidade, de modo que essa doença pode ser confundida com atresia de duo‑ deno ou mesmo associada a ela.8,9 No período antenatal, o quadro pode se assemelhar ao da atresia de duodeno com o aparecimento de dupla bolha e poli‑ drâmnio, nos casos em que a obstrução é mais intensa, ou pas‑ sar despercebido, nos casos em que o tecido pancreático que envolve o duodeno permite a presença de razoável luz duode‑ nal. O quadro clínico pós-natal também depende do grau de estenose provocado pelo anel pancreático que abraça o duode‑ no, indo desde quadro semelhante ao da atresia duodenal até
Figura 2 Radiografia de abdome mostrando a dupla bolha, típica de atresia de duodeno.
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impossibilidade de progredir a dieta por consequência dos vô‑ mitos alimentares biliosos. Nos casos de obstrução duodenal total, o achado antenatal, que é semelhante ao dos casos de atresia duodenal e, no re‑ cém-nascido, a presença de um aspirado de mais de 20 mL de líquido gástrico na sala de parto associado à radiografia sim‑ ples de abdome, mostrando a dupla bolha de ar, são indicati‑ vos da necessidade de correção cirúrgica. O diagnóstico diferencial com atresia de duodeno é feito no ato operatório. Nos casos de obstrução parcial grave, o quadro antenatal e os achados da sala de parto são semelhantes aos descritos na atresia de duodeno; porém, na radiografia sim‑ ples de abdome, além da dupla bolha, encontra-se um pouco de ar em alças intestinais. A duodeno-duodeno anastomose laterolateral (diamond shaped) é a técnica operatória mais fre‑ quentemente utilizada, provocando um bypass que exclui a zona duodenal abraçada pelo tecido pancreático. A evolução pós-operatória em longo prazo é satisfatória, sendo rara a descrição de complicações causadas pela doença.10 Erro da rotação intestinal As crianças que apresentam erro da rotação intestinal (má ro‑ tação intestinal ou vício da rotação intestinal), levando à for‑ mação de bandas que obstruem o duodeno ou a primeira por‑ ção do jejuno, raramente apresentam sinais da doença no período antenatal. A manifestação clínica mais frequente no recém-nascido são os vômitos biliosos e a impossibilidade de aumentar o volume de dieta ofertado. No lactente, a doença entra no diagnóstico diferencial das causas de refluxo gastroe‑ sofágico secundário. Nessa doença, existe um erro na embriogênese, e o duode‑ no não completa sua rotação, terminando à direita da artéria mesentérica superior. O ceco e o cólon ascendente também po‑ dem ocupar posições anatômicas anormais, e essas anormali‑ dades de desenvolvimento podem determinar a formação de bandas congênitas que provocam quadros suboclusivos altos. Quanto ao diagnóstico radiológico, embora a literatura aponte o enema opaco como o exame a ser realizado, que mos‑ trará a anormalidade de posição do ceco, pode-se dizer que o exame contrastado de estômago, duodeno e primeiras alças de jejuno é mais útil, pois mostra a dilatação gástrica e duode‑ nal, bem como a transição duodeno jejunal sendo feita à direi‑ ta da coluna vertebral. Se o trânsito intestinal for realizado como complemento desse exame, é possível, ainda, detectar a posição anormal do ceco e do cólon. Pelo fato de as crianças frequentemente apresentarem qua‑ dros clínicos mais arrastados até que se chegue ao diagnóstico final e à indicação cirúrgica, é importante o adequado preparo pré-operatório, com correção de eventuais distúrbios hidrele‑ trolíticos e metabólicos. A cirurgia consiste na ampla e ade‑ quada mobilização do duodeno e na secção das bandas que o obstruem ou a outras porções do jejuno, além da correção do erro de rotação intestinal. O paciente deve ser mantido em nu‑ trição parenteral até apresentar trânsito intestinal, com dimi‑ nuição da drenagem gástrica e presença de ruídos hidroaéreos abdominais, demonstrando peristaltismo propulsivo.
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Obstruções Duodenais Congênitas •
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que a ultrassonografia pré-natal permite, com frequência, o diagnóstico intra-útero de obstrução duodenal no feto. • Encaminhar a gestante para consulta e orientação pré ‑natal com cirurgião pediátrico. • Realizar o parto em instituição que permita bom atendimento cirúrgico ao bebê. • Investigar volvo do intestino médio à menor suspeita, já que esta é uma das situações mais dramáticas da cirurgia neonatal, pois pode levar à síndrome do intestino curto. A ultrassonografia de abdome tem se mostrado bastante útil na avaliação inicial.
Referências bibliográficas 1. 2. 3. 4.
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CAPÍTULO 5
ATRESIA INTESTINAL Antonio Paulo Durante
Introdução Atresia intestinal é definida como ausência congênita da luz intestinal, resultando em obstrução. É a causa mais comum de obstrução intestinal congênita e corresponde a um 1/3 de todas as causas de obstrução intestinal no recém-nascido.1 A incidência da atresia intestinal depende da região geográfica, variando de 1:1.000 até 1:5.000 nascidos vivos.2 A distribuição por sexo na atresia intestinal é semelhante. A atresia ileal foi descrita pela primeira vez em 1684 por Go‑ eller, e a primeira sobrevida foi relatada em 1911 por Fockens,3 em Roterdã. Em 1950, as taxas de sobrevida eram menores que 10%,4 porém, nas décadas seguintes, com os progressos obtidos no tratamento pré, trans e pós-operatório, como su‑ porte nutricional, técnicas cirúrgicas mais adequadas e cuida‑ dos intensivos neonatais, melhoraram significativamente, al‑ cançando índices próximos de 95%.
Embriologia Existem várias teorias para explicar o desenvolvimento da atre‑ sia intestinal, podendo ser simplificadas em duas categorias. A teoria de Tandler13 considera a atresia decorrente de falta de recanalização do intestino por falha no processo de vacuoli‑ zação das células intestinais na fase embrionária, quando o in‑ testino primitivo é constituído por um cilindro sólido. Essa te‑
Classificação A classificação de atresia intestinal inicialmente proposta por Louw e Barnard5 foi modificada por Hays,6 Martin e Zerella7 e Grosfeld et al.,8 sendo esta última a mais bem aceita para des‑ crever as atresias intestinais nos últimos anos. Os tipos de I a IV são apresentados na Figura 1. No tipo I, a obstrução se deve à presença de um diafragma intraluminal, com continuidade da parede e do mesentério adjacente, e corresponde a cerca de 20% de todos os casos. No tipo II, os segmentos intestinais atrésicos são unidos por um cordão fibroso, com um mesentério intacto, representando cerca de 35% dos casos. No tipo III-a, ocorre uma separação completa entre os cotos e há um defeito do mesentério sob a forma de V, também representando cerca de 35% dos casos. O tipo III-b é constituído por atresia jejunal alta, próxima ao ân‑ gulo de Treitz, com extenso defeito mesentérico. Geralmente, o íleo terminal está encurtado e assume uma forma espiral ao redor de sua irrigação, que é realizada de modo retrógrado através de uma simples artéria colateral originária de uma ar‑ téria ileocólica residual, artéria cólica direita, média ou es‑
Figura 1 Classificação da atresia intestinal: tipo I, tipo II, tipo III-a, tipo III-b, tipo IV.
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querda.9-11 Essa variedade é classicamente conhecida como atresia em apple peel (casca de maçã) ou deformidade em Christmas-tree (árvore de natal). O tipo IV, por sua vez, é repre‑ sentado por atresias múltiplas do intestino delgado e corres‑ ponde a aproximadamente 6% dos casos.1 A atresia de colo tem muitas similaridades com a atresia je‑ junoileal, mas é muito menos comum, correspondendo a cer‑ ca de 5% de todos os casos de atresia intestinal.12
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Atresia Intestinal •
oria é mais aceita para a atresia duodenal em razão da fixação da primeira e da segunda porção duodenal e seu suprimento sanguíneo duplo, do tronco celíaco e da artéria mesentérica superior, sendo menos suscetível a um acidente vascular. A segunda teoria, de Louw e Barnard,5 considera que a atre‑ sia intestinal seja causada por um evento isquêmico mesente‑ rial no período pré-natal, evoluindo para necrose e reabsorção do intestino envolvido, resultando na atresia intestinal. É mais aceita para a atresia jejunoileal, em razão da grande mo‑ bilidade do segmento intestinal jejunoileal, com potencial para compressão ou volvo, e da anatomia da arcada mesenté‑ rica, mais suscetível a isquemias vasculares. A presença de um defeito mesentérico na atresia intestinal tipo III confirma essa teoria. Diagnóstico A ultrassonografia materna é um procedimento não invasivo, utilizado rotineiramente em exames pré-natais a partir da 20a se‑ mana de gestação e útil na avaliação do trato gastrointestinal.14 A associação entre história materna de polidrâmnio e obs‑ trução intestinal em recém-nascidos é bem conhecida, ocor‑ rendo em cerca de metade dos recém-nascidos com obstrução intestinal alta, mas em menos de 20% nos neonatos com obs‑ trução baixa.15 O achado de polidrâmnio, bem como de alças intestinais dilatadas, leva à observação, ao nascimento, do volume de lí‑ quido aspirado da câmara gástrica. Volume superior a 20 mL é sugestivo de obstrução, independentemente de o líquido aspi‑ rado ser gástrico ou bilioso.16 Os sinais clínicos clássicos da obstrução intestinal em neo‑ natos são: vômitos biliosos, distensão abdominal, falha na eli‑ minação de mecônio ou eliminação de mecônio anormal (acinzentado) e icterícia.17 A presença de vômito bilioso, com ou sem distensão abdominal, é o primeiro sinal de obstrução do intestino delgado.18 Quanto mais precoce o vômito, mais alta a obstrução intestinal. O recém-nascido com atresia ileal distal pode não vomitar por diversas horas ou vomitar em 1 a 2 dias após o nascimento. Frequentemente, o exame abdominal revela alças intestinais
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distendidas, podendo ser palpáveis ou mesmo visíveis. Quan‑ to menor o número de alças dilatadas, mais proximal a obstru‑ ção intestinal; contudo, a interpretação deve ser cuidadosa, sempre em associação com o quadro clínico.18 A inspeção anal, acompanhada de toque retal, é essencial para excluir a presen‑ ça de anomalia anorretal.19 Distensão abdominal global está presente em 80% dos neonatos com obstrução distal ao jejuno. Nas obstruções in‑ testinais altas, proximais ao jejuno, a distensão é exclusiva‑ mente epigástrica. Podem-se observar movimentos peristálti‑ cos da alça proximal à obstrução.20 Falha na passagem de mecônio é indicativa de obstrução intestinal, mas aproximadamente 20% daqueles com atresia jejunoileal têm eliminação de pequena quantidade de mecô‑ nio com características anormais após o nascimento.20 A icte‑ rícia ocorre em 40% dos recém-nascidos com atresia jejunal e 20% daqueles com atresia ileal.21 Nos casos de obstrução do in‑ testino delgado, está caracteristicamente associada com a ele‑ vação dos níveis de bilirrubina indireta.22 A icterícia decorre da deficiência de conjugação da bilirrubi‑ na indireta por consequência da falta da enzima glucorinil‑ transferase, decorrente de imaturidade hepática e jejum. Ou‑ tra explicação é a presença de betaglicuronidase na mucosa intestinal do recém-nascido, a qual tem a capacidade de des‑ conjugar a bilirrubina direta, aumentando o ciclo êntero-he‑ pático da bilirrubina e os níveis plasmáticos de bilirrubina in‑ direta.2 Quanto ao diagnóstico radiológico, utilizando-se radiogra‑ fias simples de abdome em pé e deitado, o padrão gasoso in‑ testinal normal em neonatos é aquele no qual se observa pre‑ sença de gás no estômago, no intestino delgado e no intestino grosso. Tipicamente, o gás nas alças intestinais (delgado e grosso) apresenta-se como múltiplas áreas radiotransparen‑ tes, lembrando aspecto de “favo de mel” e ocupando pratica‑ mente todo o abdome.23 Na obstrução mecânica, há dilatação das alças proximais à obstrução, com formação de níveis hi‑ droaéreos e ausência de ar nos segmentos distais. Quanto mais baixa a obstrução intestinal, maior é a quantidade de ní‑ veis hidroaéreos (Figura 2).
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Figura 2 Diagnóstico radiológico das atresias jejunoileais. (A) Atresia de jejuno proximal. (B) Atresia de jejuno distal. (C) Atresia de íleo proximal. (D) Atresia de íleo distal.
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Calcificação peritoneal é vista em 12% dos casos na radio‑ grafia simples de abdome e significa presença de peritonite meconial, um sinal de perfuração intestinal intraútero.24 No estudo do trato gastrointestinal superior, o ar é o melhor meio de contraste no diagnóstico das obstruções intestinais nos recém-nascidos.25 A injeção de cerca de 50 mL de ar por meio da sonda nasogástrica pode confirmar o diagnóstico da obstrução. A utilização de outros contrastes por via oral, bari‑ tados ou hidrossolúveis, deve ser evitada, reservando-se para estudo das obstruções parciais.26 O enema opaco pode auxiliar o diagnóstico de atresia ileal distal, demonstrando a presença de microcolo sem passagem de contraste para o íleo, e evidenciar microcolo na atresia ileal distal, zona de transição na doença de Hirschsprung, geral‑ mente ao nível do retossigmoide, ou posição anormal do colo no vício de rotação27 (Figura 3). Diagnóstico diferencial Recém-nascidos com obstrução intestinal por outras causas podem apresentar quadro clínico muito semelhante àqueles com atresia jejunoileal. Essas causas incluem má rotação com ou sem volvo, íleo meconial, duplicação intestinal, hérnia in‑ terna, atresia de colo, íleo adinâmico relacionado à sepse e aganglionose colônica total. O enema opaco habitualmente fornece informações valio‑ sas que costumam caracterizar certas causas de obstrução,
Figura 3 Enema opaco demonstrando microcolo em paciente portador de atresia ileal.
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particularmente a atresia de colo e a aganglionose segmentar. A atresia jejunoileal pode coexistir com má rotação (10 a 18%), peritonite meconial (12%), íleo meconial (9 a 12%) e, menos frequentemente, com aganglionose colônica total.28 Recém-nascidos com íleo meconial não complicado costu‑ mam ter significativa dilatação de alças intestinais, mas com pouco ou nenhum nível hidroaéreo. Essa observação está rela‑ cionada ao fato de o mecônio, nessas crianças, ser extrema‑ mente viscoso, não permitindo a formação de interfaces com ar. Cuidadosa avaliação desses pacientes pode evitar uma ope‑ ração desnecessária, já que mais da metade dos casos de íleo meconial não complicado responde bem ao tratamento clínico. Tratamento Pré-operatório Desde a avaliação inicial do recém-nascido portador de atresia intestinal, alguns princípios devem ser seguidos, como manu‑ tenção da temperatura corpórea, evitando-se a hipotermia; descompressão gástrica por meio de uma sonda nasogástrica de calibre adequado para prevenir aspiração (10 fr); e coloca‑ ção de cateter endovenoso para hidratação e reposição de per‑ das hidroeletrolíticas pela sonda nasogástrica e do fluido se‑ questrado no terceiro espaço da alça intestinal obstruída. Inicialmente, a hidratação e a reposição de perdas devem ser realizadas por veia periférica. Essas precauções são funda‑ mentais quando é necessário o transporte do recém-nascido para avaliação radiológica ou no transporte para outro hospi‑ tal com unidade de terapia intensiva pediátrica. A duração do preparo pré-operatório depende do retardo no diagnóstico, do balanço hidroeletrolítico, da associação de outras malformações congênitas ou da presença de peritonite. Se o preparo tiver previsão de ser mais prolongado, inicia-se nutrição parenteral. Antibióticos pré-operatórios são utiliza‑ dos somente nos casos de infecção associada ou peritonite. Cirurgia Uma incisão transversa supraumbilical direita permite exce‑ lente exposição de todo o trato gastrointestinal no recém-nas‑ cido. Após a abertura do peritônio, o cirurgião deve, primeira‑ mente, localizar o ceco e o ângulo de Treitz, a fim de descartar má rotação intestinal. Posteriormente, todo o intestino deve ser eviscerado para a identificação exata do local de obstrução e à procura de outros possíveis pontos atrésicos. A permeabili‑ dade do intestino distal é testada por meio da injeção de solu‑ ção salina aquecida no segmento distal, acompanhando sua progressão até o colo. Múltiplas atresias podem estar presen‑ tes tanto no intestino delgado quanto no grosso, em até 10% dos casos.29 A decisão de qual procedimento é o mais apropriado de‑ pende do tipo de atresia (tipo I, II, III-a, III-b ou IV), da pre‑ sença de má rotação, volvo, íleo meconial e peritonite meco‑ nial e das condições gerais do recém-nascido. Um problema particular adicional ocorre quando a atresia intestinal está as‑ sociada com gastrósquise ou onfalocele, de modo que o fecha‑ mento primário da parede abdominal pode se tornar um pro‑ blema.30
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A anastomose preferencial é a término-terminal em plano com plicatura intestinal32 (Figura 5). A vascularização do seg‑ único, com pontos separados, utilizando um fio 5-0 ou 6-0 de mento distal deve ser cuidadosamente preservada, evitando‑ poliglicol ou PDS. O defeito mesentérico é fechado cuidadosa‑ -se qualquer torção no momento da anastomose. mente, evitando-se qualquer lesão vascular adicional. Embora a anastomose primária seja o método de escolha, Quando há discrepância de calibre entre os segmentos atré‑ sua realização pode não ser possível, como nos casos de atre‑ sicos proximal e distal, principalmente nas atresias jejunais sia ileal associada a volvo do intestino médio, quando a inte‑ proximais, algumas manobras devem ser realizadas para uma gridade vascular do intestino é duvidosa, em casos de perito‑ adequada anastomose. O segmento proximal mais dilatado nite meconial ou em alguns casos de íleo meconial complicado. (10 a 15 cm) é ressecado em um ângulo de 90° e um pequeno Nessas circunstâncias, deve-se realizar a ressecção do seg‑ segmento distal em um ângulo de 45°, realizado na borda an‑ mento atrésico e sua exteriorização. A reconstrução do trânsi‑ timesentérica, aproximando o calibre das alças para uma to intestinal deve ser realizada o mais brevemente possível, anastomose mais adequada28 (Figura 4). evitando-se, assim, atrofia da mucosa intestinal e perdas nu‑ A atresia tipo III-b requer um tratamento operatório dife‑ tricionais. renciado por se apresentar com um jejuno muito dilatado as‑ O problema da obstrução funcional prolongada pode ser sociado a um intestino distal distante, encurtado e de calibre evitado ressecando-se a porção distal mais dilatada do seg‑ diminuído. A porção proximal geralmente não pode ser resse‑ mento atrésico proximal. Esse segmento apresenta alterações cada pela proximidade do ângulo de Treitz, tornando os diâ‑ estruturais que podem levar a alterações da motilidade, estase metros dos segmentos a ser anastomosados muito despropor‑ do conteúdo intestinal, translocação bacteriana e sepse.33 O cionais. Pode-se obter a redução da circunferência do segmento atrésico distal, ao contrário, deve ser preservado o segmento proximal com a aplicação de grampeador linear31 ou máximo possível, pois o íleo terminal tem importante função na absorção de vitaminas e na circulação êntero-hepática de sais biliares. Na atresia de colo, os princípios cirúrgicos são semelhantes aos da atresia jejunoileal. A anastomose primária é realizada após ressecção do segmento atrésico mais proximal. Uma op‑ ção terapêutica para os casos em que há grande diferença de calibre entre os segmentos atrésicos é a realização da colosto‑ mia. A reconstrução do trânsito intestinal é realizada após o colo proximal retornar ao seu calibre normal.34
Figura 4 Atresia intestinal tipo III-a: ressecção do segmento proximal dilatado a 90° e ressecção de pequeno segmento distal a 45°.
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Pós-operatório Os cuidados pós-operatórios incluem a adequada descom‑ pressão intestinal por meio de uma sonda nasogástrica cali‑ brosa e nutrição parenteral. A nutrição parenteral periférica é rotineiramente adminis‑ trada a todos os recém-nascidos nos primeiros dias de pós‑ -operatório, porém existe uma relação direta entre a necessi‑ dade de nutrição parenteral total com o tipo de atresia jejunoileal, o comprimento do intestino residual e o grau de má absorção.35
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Figura 5 (A) Atresia intestinal tipo III-b. (B) Aplicação de grampeador linear. (C) Plicatura intestinal com grampeador. (D) Aspecto final da anastomose após redução da circunferência do segmento proximal.
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Quando o recém-nascido tem movimentos intestinais es‑ pontâneos e a drenagem pela sonda nasogástrica estiver clara e com mínimo volume, a sonda é removida e inicia-se a ali‑ mentação com líquidos claros em pequeno volume, com fór‑ mula de baixa osmolaridade. Essa dieta é aumentada gradati‑ vamente, conforme a aceitação do recém-nascido. Em alguns casos, o íleo intestinal pode ser mais prolongado em virtude de uma obstrução intestinal funcional, o que ocor‑ re sobretudo nas atresias intestinais altas com grande despro‑ porção de calibre entre as alças. A estenose da anastomose é uma ocorrência rara, de modo que a indicação da reoperação deve ser muito criteriosa. Evolução A sobrevida dos recém-nascidos com atresia jejunoileal, que era menor que 10% em 1950,4 e que 69% em 1969,20 tem se aproximado de 95% nos dias atuais. Esse sucesso se deve à grande evolução, nos últimos 40 anos, do diagnóstico pré-na‑ tal, das técnicas cirúrgicas mais adequadas, nutrição parente‑ ral total e cuidados intensivos neonatais. As complicações precoces estão relacionadas à disfunção da anastomose com infecção, como pneumonia, peritonite e sepse.21 Complicações potenciais em longo prazo incluem a síndrome do intestino curto, obstrução intestinal por bridas, cálculo renal e biliar, sepse pelo cateter venoso central e defi‑ ciência de vitamina D.28 O aumento da mortalidade é observado nos casos de atre‑ sias múltiplas e atresia tipo III-b, quando a atresia está asso‑ ciada a íleo meconial, peritonite meconial, gastrósquise e nos casos de prematuridade,36 em que a necessidade de ressec‑ ções extensas do intestino delgado pode ocasionar a síndrome do intestino curto.37 Essa condição especial requer nutrição parenteral prolongada para posterior transplante do intestino delgado. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Supeitar de alguma forma de obstrução intestinal em recém-nascido que vomita bile, até que se prove o contrário. • Lembrar da tríade sintomática clássica das obstruções intestinais do RN. • Saber que a aspiração de 20 mL ou mais de líquido gástrico pela sonda nasogástrica é sugestiva de obstrução. • Saber que a radiografia simples de abdome em posição ortostática é o melhor exame diagnóstico.
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CAPÍTULO 6
ÍLEO MECONIAL Mércia Maria Braga Rocha Wallace Acioli Freire de Góis
Definição O íleo meconial é uma forma de obstrução intestinal intralu‑ minal que ocorre em aproximadamente 20% dos recém-nasci‑ dos com síndrome neonatal obstrutiva. O mecônio espesso, localizado no íleo terminal, é responsável pela obstrução. A fi‑ brose cística (FC) está presente em 99% dos pacientes com diagnóstico de íleo meconial.1 Íleo meconial associado à fibrose cística Epidemiologia A associação de íleo meconial com FC foi demonstrada, ini‑ cialmente, há quase 100 anos. Cerca de 6 a 20% dos neonatos portadores de FC têm obstrução intestinal decorrente de íleo meconial.2-4 Em estudos brasileiros, a obstrução intestinal ocorre em cerca de 7% dos pacientes com FC.1,5 Etiopatogenia A FC é uma doença autossômica recessiva, multissistêmica, que afeta o sistema digestório, as glândulas sudoríparas, os sistemas reprodutor e respiratório. É a causa mais comum de doença pulmonar (broncopneumonia infecciosa), insuficiên‑ cia pancreática e má absorção intestinal.6,7 A doença pulmo‑ nar progressiva, que está associada à broncopneumonia, é a maior causa de morbimortalidade na FC.8,9 O gene da FC loca‑ liza-se no braço longo do cromossomo 7, no lócus q31, e é for‑ mado por 250 quilobases de DNA, com 27 éxons. O referido gene codifica um RNAm que transcreve uma proteína regula‑ dora de transporte iônico denominada CFTR (cystic fibrosis transmembrane conductance regulator), ou canal de cloro, expressa na membrana apical das células exócrinas epite‑ liais. A CFTR é essencial para o transporte de íons através da membrana celular, estando envolvida na regulação do fluxo de Cl–, Na+ e água, além de outros canais iônicos. Mu‑ tações no gene da FC levam à ausência total ou parcial da atividade da CFTR.7,8 Cinco classes de mutação do CFTR são descritas, e cada uma traduz-se em forma clínica e em prognósticos diferentes.9,10
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A atividade da CFTR alterada reduz a excreção do Cl– e aumenta a eletronegatividade intracelular. Com isso, ocorre maior fluxo de Na+ e água para dentro das células, provo‑ cando desidratação das secreções mucosas e aumento da viscosidade. No íleo meconial, o mecônio tem alta concen‑ tração de proteína e pouca concentração de carboidratos e de líquido quando comparado ao de pacientes normais. O acréscimo de albumina ao mecônio torna-o viscoso, e o acréscimo de secreção pancreática liquefaz o mecônio es‑ pesso. Com isso, é provável que a insuficiência pancreática, encontrada nos pacientes com FC, seja fator adjuvante para o desenvolvimento do íleo meconial. No entanto, em estudos experimentais, foi possível provocar íleo meconial na ausência de insuficiência pancreática.11,12 A insuficiência pancreática está presente em 75% dos fibrocísticos, e o íleo meconial é considerado sua primeira manifestação. Além dos distúrbios hidroeletrolíticos e proteicos, sabe-se que al‑ guns pacientes com FC têm trânsito intestinal lento, o que pode contribuir para o aumento de reabsorção de água, fa‑ vorecendo o espessamento do mecônio.12,13 O aumento da viscosidade das secreções pela disfunção do CFTR provoca várias complicações gastrointestinais. As secreções biliares e pancreáticas anormais levam à má di‑ gestão e à má absorção, além de doenças hepáticas e pan‑ creáticas crônicas que resultam em diabete melito. A secreção intestinal espessa, a má digestão e a má absorção propiciam a obstrução intestinal, que se manifesta na for‑ ma de íleo meconial, invaginação intestinal ou prolapso retal.3,4,6,14 Outras manifestações gastrointestinais da FC são: íleo meconial equivalente, constipação intestinal, megacólon adquirido, prolapso retal e doença do refluxo gastroesofágico.3,8,12,15 Diagnóstico da fibrose cística Na maioria das vezes, o diagnóstico pode ser feito pelo teste do suor (98%), obtido pelo método da iontoforese por pilocar‑ pina, padronizado por Gibson e Cooke.10,13,16 O resultado é posi‑
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tivo quando a concentração de cloro é maior que 60 mEq/L Quadro clínico (Tabela 1). O diagnóstico de FC somente pode ser confirmado Íleo meconial associado à fibrose cística com a apresentação de dois testes positivos, que devem ser realizados em momentos distintos. Não existe correlação en‑ Não complicado tre a concentração de íons no suor e a gravidade da doença. No íleo meconial não complicado, o quadro clínico inclui dis‑ Nos casos atípicos, em que o comprometimento é moderado, tensão abdominal generalizada, vômitos biliosos e ausência podem-se requerer testes mais sofisticados para que o diag‑ de eliminação de mecônio em até 48 horas. A distensão abdo‑ nóstico de fibrose cística seja estabelecido.10,13 A Tabela 1 apre‑ minal e os vômitos biliosos surgem entre 24 e 48 horas pós‑ senta a interpretação do teste do suor.10 -natal. Ao exame físico, podem-se palpar as alças intestinais A pesquisa pré-natal de FC não é rotineira. Pais de paci‑ repletas de mecônio no quadrante abdominal inferior di‑ entes com FC podem optar pela análise da amostra de vilo reito.3,5,22,23 coriônico entre a 10a e a 12a semana de gestação,13 além da amniocentese por volta da 17a semana.10 A análise do DNA Complicado por reação em cadeia de polimerase (PCR) permite identifi‑ O polidrâmnio materno está associado ao íleo meconial com‑ car se o feto tem ou não FC.7 plicado, em que pode haver atresia, vólvulo ou peritonite meconial. No íleo meconial complicado, quando ocorre perfu‑ Íleo meconial na ausência de fibrose cística ração intestinal pré-natal, com ou sem encistamento do me‑ O íleo meconial raramente acomete pacientes sem FC.17 Nesse cônio, o neonato pode apresentar quadro abdominal obstruti‑ caso, é muito importante que o diagnóstico diferencial seja es‑ vo associado a abdome agudo inflamatório. Grande distensão tabelecido para que o tratamento em curto ou longo prazo seja com alças intestinais visíveis, hiperemia, vasos sanguíneos vi‑ efetivo. Neste capítulo, o quadro clínico, os achados radiográ‑ síveis pela atenuação da parede abdominal e dor podem estar ficos, o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico das apresen‑ presentes. Nesses pacientes, há dificuldade respiratória em tações do íleo meconial, associado ou não à FC, são descritos razão da compressão diafragmática pela grande distensão ab‑ separadamente. Na ausência da FC, os grupos acometidos dominal, da hipovolemia e da deterioração rápida do quadro são: clínico3,23-25 (Figura 1). 1. Prematuro com peso muito baixo e extremamente baixo: as denominações para o íleo meconial, nesse grupo, incluem Íleo meconial na ausência de fibrose cística síndrome do mecônio retido, síndrome do mecônio bloquea‑ Prematuridade do, síndrome do mecônio espesso, doença meconial ou, ain‑ No prematuro de peso muito baixo, o quadro obstrutivo pode da, obstrução meconial da prematuridade.17 Os fatores de ris‑ surgir entre 2 e 17 dias de vida. Normalmente, não há relato de co associados a esse grupo, que resultam em hipo ou eliminação de mecônio ou há eliminação de pouca quantidade dismotilidade intestinal, são retardo de crescimento intraute‑ de mecônio ou mesmo de rolhas de mecônio. A dilatação ab‑ rino, hipertensão materna, administração prolongada de dominal difusa é progressiva, e a demora no tratamento do agentes tocolíticos, doença das membranas hialina, hemorra‑ quadro obstrutivo leva rapidamente à perfuração intestinal. A gia intraventricular e ducto arterioso patente.17-19 prematuridade, a hipoperfusão e a isquemia intestinais levam 2. Aganglionose extensa, que inclui o intestino delgado: o meca‑ à dismotilidade intestinal. Os achados histológicos semelhan‑ nismo do íleo meconial nesses pacientes está relacionado à tes aos da mucoviscidose podem ser resultado da dificuldade dismotitidade intestinal que leva à maior absorção de água e ao espessamento do mecônio.17,20,21
Tabela 1 Taxas de concentração de sódio no suor para confirmação ou suspeita do diagnóstico de fibrose cística10 Pacientes < 6 meses de vida ≤ 29 mEq/L: normal 30 a 59 mEq/L: suspeito ≥ 60 mEq/L: confirma o diagnóstico de fibrose cística Pacientes > 6 meses de vida, incluindo adultos ≤ 39 mEq/L: normal 40 a 59 mEq/L: suspeito ≥ 60 mEq/L: confirma o diagnóstico de fibrose cística
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Figura 1 Recém-nascido com íleo meconial complicado: peritonite meconial livre e encistada. Observam-se distensão e hiperemia abdominais importantes, além de vasos sanguíneos visíveis pela atenuação da parede abdominal.
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de progressão das secreções hepatopancreáticas, associada ao supercrescimento bacteriano.17-19 Aganglionose extensa com comprometimento do intestino delgado O quadro clínico é semelhante ao íleo meconial clássico. Geral‑ mente, o mecônio não tem consistência tão espessada como a dos pacientes com FC associada. Caso o paciente seja subme‑ tido à cirurgia para tratamento de íleo meconial, haverá recor‑ rência da obstrução no pós-operatório. Quando é feito o diag‑ nóstico de íleo meconial sem que a investigação para FC tenha sido feita, ou se ela for inconclusiva, deve-se fazer biópsia in‑ testinal para o diagnóstico diferencial:17,20,21 Diagnóstico por imagem Diagnóstico pré-natal A ultrassonografia pré-natal pode sugerir o diagnóstico de FC a partir de alterações do trato digestivo. Os achados ultrassono‑ gráficos incluem:3,13,26,27 1. Intestino hiperecogênico, em que 6% são trissomias; 4%, íleo meconial; mais raramente, são casos de retardo de cresci‑ mento intrauterino, atresia intestinal, infecção por citomega‑ lovírus; mas, na grande maioria dos casos não há significado clínico. A hiperecogenicidade deve ser melhor avaliada se houver histórico familiar de FC. 2. Dilatação de alças intestinais decorrente de obstrução intesti‑ nal. A dilatação intestinal também pode ser encontrada nos ca‑ sos de atresia e duplicação intestinais, vólvulo de intestino mé‑ dio, hérnia interna, síndrome da rolha meconial, Hirschsprung, entre outras causas de obstrução intestinal. 3. Não visualização da vesícula biliar, que também pode signifi‑ car atresia biliar, onfalocele ou hérnia diafragmática; sinais compatíveis com perfuração intestinal. A presença de pseu‑ docisto meconial é sugerida na ultrassonografia quando há di‑ latação intestinal associada à área de hiperecogenicidade in‑ tra-abdominal ou calcificações. A chance de haver perfuração é ainda maior se for observada ascite. A presença de hipereco‑ genicidade intestinal pode ser observada entre 16 e 18 sema‑ nas de gestação em até 75% dos fetos com FC. Radiografia simples de abdome e clister opaco Íleo meconial associado à fibrose cística Não complicado
Distensão abdominal com dilatação do intestino delgado, au‑ sência de níveis hidraéreos e aspecto de bolhas de sabão (sinal de Neuhauser), principalmente no quadrante abdominal infe‑ rior direito. O sinal de Neuhauser fica evidente pela presença de gás no mecônio espesso. Gás no reto geralmente está au‑ sente ou existe em pouca quantidade. A ausência de níveis hi‑ draéreos pode ser explicada pela natureza viscosa do mecônio espesso. No clister opaco, evidencia-se microcólon na maioria das vezes.4,28 Complicado
Nos casos de íleo meconial complicado são encontradas, nos exames de imagem, calcificações intestinais intramurais, áreas
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de calcificações livres na cavidade abdominal ou áreas encista‑ das calcificadas que se apresentam como massa abdominal (peritonite meconial cística). A calcificação intraperitoneal ocorre cerca de 4 dias após o extravasamento do mecônio. A li‑ pase e os sais biliares extravasados causam depósito de cálcio na cavidade peritoneal e na parede das alças intestinais. Esse processo pode levar à formação de pseudocisto com peritonite meconial disseminada. Microcólon pode estar associado.4,13,24 Íleo meconial na ausência de fibrose cística Prematuridade Os principais achados radiológicos são distensão difusa de al‑ ças intestinais e microcólon.11,19,29 Aganglionose intestinal extensa com comprometimento do intestino delgado Além da distensão de alças intestinais, podem ser observadas calcificações intraluminais e não intramurais, como no íleo meconial clássico, no quadrante inferior direito e microcólon. As calcificações intraluminais, relacionadas ao grande período de estase intestinal, também podem ser encontradas nas atre‑ sias intestinais múltiplas e nas anomalias anorretais. Microcó‑ lon está associado.20,21,30 Tratamento Íleo meconial associado à fibrose cística Clínico O enema contrastado evidencia a presença de microcólon e, quando reflui para o íleo terminal, solubiliza o mecônio espesso. Dessa forma, o enema contrastado, além de diagnosticar micro‑ cólon, tem ação terapêutica em 30 a 75% dos casos. Agentes isosmolares ou hiperosmolares devem ser administrados sob fluoroscopia para avaliar se o clister contrastado refluiu para o íleo. Apesar de alguns autores preconizarem a utilização de agentes hiperosmolares, o desequilíbrio hidroeletrolítico pode ser evitado pelo uso de agentes hidrossolúveis diluídos à isoto‑ nicidade. Não se deve utilizar alta pressão, em razão do risco de ruptura do intestino. O processo pode ser tentado mais de uma vez caso não haja deterioração do quadro clínico. As complica‑ ções mais frequentes do tratamento clínico são desequilíbrio hi‑ droeletrolítico, perfuração intestinal e enterocolite.3,23,31,32 Cirúrgico Quando houver indicação operatória para o tratamento do íleo meconial, devem-se observar o balanço hidroeletrolítico e a temperatura corporal, além da administração de antibioticote‑ rapia de amplo espectro. À cirurgia, é necessário que as alças intestinais sejam manipuladas com delicadeza e que haja con‑ taminação mínima. Várias técnicas operatórias são sugeridas para o tratamento do íleo meconial, incluindo: enterotomias, irrigação por tubo T ileal, ressecção intestinal e anastomose primária, além da(s) estomia(s). São realizadas uma ou mais enterotomias para a irrigação do íleo dilatado, com n-acetilcis‑ teína ou contraste hidrossolúvel, e a ordenha do mecônio é feita. Quando a irrigação e a ordenha não resolvem o pro‑ blema, a ressecção da alça comprometida, seguida de anas‑
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tomose primária, deve ser realizada. As estomias, com téc‑ nicas diversas, para irrigação do local com mecônio espesso no trans e pós-operatório, evitam grandes ressecções e ma‑ nipulação intestinais. Na maioria das técnicas utilizadas para a confecção das estomias, há grande perda de líquido, com consequente desequilíbrio hidroeletrolítico e com es‑ coriações na pele, as quais devem ser fechadas assim que possível.3,11,22,31 Íleo meconial na ausência de fibrose cística Prematuridade Os tratamentos clínico e cirúrgico preconizados no íleo meco‑ nial associado à prematuridade são semelhantes ao dos trata‑ mentos do íleo meconial clássico. Algumas ressalvas devem ser feitas: o risco de desequilíbrio hidroeletrolítico, de infecção e de perfuração intestinal é maior nesse grupo. A manipulação operatória do intestino pode ser difícil, levando a lesões gra‑ ves. Nem sempre o prematuro tem condições de suportar uma cirurgia de grande porte. Por esses motivos, quando o trata‑ mento clínico não for um sucesso, a confecção de estomias com o mínimo de manipulação de alças parece ser o tratamen‑ to cirúrgico de menor risco.19,29 Aganglionose extensa com comprometimento do intestino delgado Quando houver sinais de recorrência após o tratamento clíni‑ co ou cirúrgico do íleo meconial, ou quando houver disfunção de um estoma, deve-se suspeitar de aganglionose intestinal extensa, e a biópsia intestinal deve ser realizada. A rigor, a biópsia intestinal deve ser feita sempre que não houver diag‑ nóstico conclusivo de fibrose cística.20,30 Prognóstico Íleo meconial associado à fibrose cística Atualmente, pacientes com diagnóstico de FC associada ao íleo meconial têm sobrevida estimada em até 92% nos casos não complicados, e em 89% nos complicados.22 Com o avanço na compreensão da fisiopatologia do íleo meconial e dos cui‑ dados intensivos, houve aumento da sobrevida em 5 anos: de 30% na década de 1960, passou a 90% na atualidade.22,23 Os casos de melhor prognóstico são aqueles em que é necessário apenas tratamento clínico à base de enemas e proteolíticos. Os pacientes que tiverem íleo meconial e forem tratados adequa‑ damente não têm pior prognóstico na evolução da FC que os demais pacientes.33 A presença de insuficiência pancreática exócrina (IPE) e a necessidade de ressecção intestinal, no tra‑ tamento inicial, são fatores de pior prognóstico. A enterotomia com lavagem de alça tem menor índice de complicações quan‑ do comparada às enterectomias, que têm incidência de com‑ plicações com necessidade de reintervenção em até 33% dos casos por obstrução intestinal.34 O íleo meconial equivalente (IME), apesar de não ser con‑ sequência do íleo meconial, e sim da fibrose cística, pode ocorrer em crianças acima de 5 anos de idade. A prevalência principal do IME ocorre em pacientes entre a segunda e a ter‑ ceira décadas de vida. As manifestações clínicas apresen‑
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tam-se em 2,1 a 41,3% dos pacientes com FC e IPE. Classica‑ mente, os pacientes evoluem com sinais de obstrução abdominal, dor e massa palpável no quadrante abdominal inferior direito. As imagens de radiografia simples de ab‑ dome sugerem, além do quadro de obstrução intestinal, im‑ pactação fecal em fossa ilíaca à direita. Geralmente, o IME é tratado com enemas hiperosmolares ou mucolíticos, sendo a cirurgia preconizada apenas nos casos com complicação e nos casos de falha no tratamento clínico.15 Íleo meconial na ausência de fibrose cística Pacientes com obstrução meconial que não têm FC apresen‑ tam excelente prognóstico de longo termo.33,34 Dos casos associados à prematuridade com peso muito baixo (< 1.250 g), cerca de 29% cursam com perfuração in‑ testinal e aproximadamente 33% necessitam de inter‑ venção cirúrgica, o que eleva a taxa de mortalidade. Tanto o retardo do diagnóstico quanto do tratamento aumentam o índice de perfuração intestinal, piorando a taxa de mor‑ bimortalidade. Garza-Cox et al. relatam, em uma série de 21 pacientes, que 70% deles foram submetidos a tratamento clínico com enema de gastrografina, considerada a terapia mais efetiva.18 Nos casos associados à aganglianose extensa, há eleva‑ da mortalidade em razão do retardo no diagnóstico. Na ten‑ tativa de diagnosticar precocemente, alguns autores suge‑ rem o estudo histológico do intestino grosso em todos os pacientes com microcólon que forem submetidos à opera‑ ção e nos casos sem diagnóstico de FC.30 Diagnóstico diferencial Os principais diagnósticos diferenciais do íleo meconial in‑ cluem a enterocolite necrosante (ECN), a aganglianose total do cólon, as atresias intestinais e a rolha meconial.13,35 Na ECN, destacam-se os fatores de risco materno-fetais, o quadro clínico agudo com sinais de comprometimento sistêmico em razão de necrose e de sepse. Vômitos biliosos e distensão abdominal estão presentes em boa parte dos casos. À radiografia simples de abdome, observam-se, com incidência variável, pneumatose intestinal, pneumoporta e pneumoperitônio.3,4,8,23 O quadro clínico e os achados radiográficos iniciais dos pa‑ cientes com aganglionose total do cólon são semelhantes aos dos pacientes com íleo meconial e, muitas vezes, o diagnóstico só pode ser realizado por meio de biópsia do apêndice ou seria‑ da do cólon, ambas durante ato cirúrgico, ou, ainda, de biópsia retal por sucção. A presença de células ganglionares intestinais exclui o diagnóstico de Hirschsprung.23 O diagnóstico diferencial do íleo meconial com as atre‑ sias intestinais ileais múltiplas pode ser difícil e, algumas vezes, é elucidado apenas à laparotomia.9,23 A síndrome da rolha meconial (SRM) foi descrita inicial‑ mente por Clatwarthy em 195636 como um quadro obstruti‑ vo por rolha de mecônio no nível do cólon. O quadro clínico é semelhante ao do íleo meconial e surge tipicamente nas primeiras 24 horas de vida. Distensão abdominal, vômitos
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biliosos e não eliminação de mecônio, encontrados nesses casos, melhoram rapidamente com a administração de clis‑ teres contrastados ou proteolíticos.36 O microcólon não é um sinal radiológico típico encontrado na SRM. Há asso‑ ciação com o diabete materno, a prematuridade e com ou‑ tros fatores, que podem levar à hipomotilidade intestinal. A SRM também pode ser encontrada em pacientes com FC, em 14 a 43% dos casos, e com megacólon congênito, em 13 a 38%.37 Por causa da associação frequente entre as referi‑ das afecções, alguns autores preconizam a pesquisa da FC e do megacólon congênito sempre que o diagnóstico da SRM for suspeitado.35-37 A síndrome do cólon esquerdo cursa com quadro clínico de obstrução do cólon esquerdo sem doença de Hirschsprung ou rolha meconial associadas.38 Ao enema contrastado, tem como característica principal cólon trans‑ verso dilatado com zona de transição na flexura esplênica, além do cólon esquerdo de calibre reduzido e com poucas haustrações.39,40 A diminuição da motilidade do cólon de‑ ve-se à imaturidade do plexo mioentérico. É mais comum em recém-nascidos de mães diabéticas, o que corresponde a 50% dos casos. Geralmente, há boa evolução com trata‑ mento conservador, melhorando após realização de exame contrastado, pois a dismotilidade é transitória. Nos casos com resolução mais demorada, podem-se administrar ene‑ mas. O tratamento cirúrgico é reservado para a perfuração intestinal, quadro raro nessa síndrome.41 Nos casos de per‑ sistência da obstrução intestinal, a colostomia é indicada até a normalização do trânsito intestinal. O quadro clínico obstrutivo transitório, e o enema opaco, na maioria das ve‑ zes, diferencia-o do íleo meconial.39,41 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que o íleo meconial é uma forma de obstrução intestinal que ocorre em aproximadamente 20% dos recém-nascidos com síndrome neonatal obstrutiva. • Fazer o diagnóstico diferencial com enterocolite necrosante, aganglionose total do cólon, atresias intestinais e rolha meconial. • Reconhecer que 6 a 20% dos neonatos com fibrose cística têm obstrução intestinal decorrente de íleo meconial.
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CAPÍTULO 7
ENTEROCOLITE NECROSANTE NEONATAL João Carlos Ketzer de Souza
Introdução e epidemiologia A enterocolite necrosante neonatal (ECN) é uma doença infla‑ matória do trato gastrointestinal do recém-nascido (RN) pre‑ maturo que provoca desde isquemia leve até necrose com‑ pleta da parede intestinal.1 Apresenta quadro clínico inespecífico, quadro radiológico sugestivo e alterações his‑ tológicas características.2-5 A doença inicia na mucosa intestinal, a camada mais suscetível à hipóxia, podendo atingir a submucosa e pro‑ gredir para a necrose completa da parede. Os casos com ne‑ crose parcial geralmente se recuperam com tratamento clí‑ nico, já os com necrose completa progridem para a perfuração livre ou bloqueada e requerem tratamento cirúr‑ gico. A porcentagem de pacientes que necessitam de inter‑ venção cirúrgica varia entre os diversos serviços e institui‑ ções, oscilando entre 20 e 63%.6-9 A ECN é a emergência gastrointestinal adquirida mais comum que afeta os RN, além de ser uma das emergências cirúrgicas mais frequentes nas unidades de tratamento in‑ tensivo neonatal (UTIN).10-13 Uma combinação de fatores tem melhorado a sobrevida dos bebês prematuros, incluindo o melhor conhecimento da fisiopatologia das doenças nesse período de vida, a me‑ lhora nos cuidados intensivos neonatais, o advento da tera‑ pia com surfactante, os recentes métodos de ventilação me‑ cânica e a construção de modernas UTIN.1,13-16 Esses fatores, somados aos avanços nos cuidados obstétricos, ocasionam, também, um aumento da população de risco para ECN. A doença ocorre no período pós-natal, não é observada no natimorto e é rara nas crianças que nunca se alimenta‑ ram,13 Sua incidência varia entre países, regiões e hospi‑ tais,11 afetando 0,5% de todos os bebês nascidos vivos, 2 a 5% de todos os RN de baixo peso ao nascer17 e cerca de 10% de todos os RN de muito baixo peso ao nascer (peso < 1.500 g).11 Séries selecionadas mostram uma taxa que varia entre 1 e 7% de todas as admissões de uma UTIN17 e entre 0,5 e 5 casos a cada 1.000 bebês nascidos vivos.17
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Aproximadamente 90% dos casos de ECN ocorrem em bebês prematuros, com incidência inversamente relaciona‑ da ao peso e à idade gestacional.18 Na maioria das séries, ocorrem igualmente em ambos os sexos.17 Embora seja uma doença do prematuro, 7 a 13% dos bebês com ECN podem ser RN a termo.10 Nesses casos, a ECN parece ser uma doen‑ ça diferente, cuja patogênese está tipicamente associada às condições predisponentes ou às doenças associadas.19 Casos de ECN são geralmente esporádicos e raramente relacionados a epidemias, que podem ocorrer em berçários superlotados.17 Fisiopatologia A patogênese continua incerta, com causas ainda desconheci‑ das.9 Estudos epidemiológicos apontam para a prematuridade como o único fator comprovado.9,16 Outros estudos acrescen‑ tam a alimentação por fórmula também como fator epidemio‑ lógico importante,20 visto que 90 a 95% dos casos ocorrem em crianças que já receberam alimentação enteral ou tiveram rá‑ pidos aumentos no volume de suas mamadeiras. Essas evi‑ dências justificam o conceito de que ECN é o resultado da in‑ teração de um ou mais fatores de diferentes graus, agindo sobre um hospedeiro vulnerável (prematuro – barreira intesti‑ nal imatura) e a subsequente resposta desse hospedeiro.1,20 Es‑ ses fatores incluem a alimentação por fórmulas, a colonização e a invasão bacteriana e suas toxinas, os eventos hipóxico-is‑ quêmicos sustentados ou intermitentes e os episódios de re‑ perfusão-oxigenação. A contribuição relativa de cada um, a forma como interagem e por que não se desenvolve ECN em pacientes com a presença dos três fatores sugerem que a etio‑ logia seja extremamente complexa.9 Em resposta a essa injúria intestinal, ocorre quebra da barreira mucosa, seguida de translocação de bactérias e ati‑ vação de uma resposta inflamatória em cascata exagerada ou inapropriada do intestino imaturo do hospedeiro, com liberação de mediadores inflamatórios que podem levar a necrose intestinal, disfunção de múltiplos órgãos e óbito.21
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Essa ativação pró-inflamatória deve se manter em per‑ feito equilíbrio com uma contrarresposta anti-inflamatória, permitindo a homeostase intestinal normal. O equilíbrio das respostas pró e anti-inflamatória providencia um me‑ canismo protetor altamente necessário e regulado. Qual‑ quer desvio em uma dessas rotas pode desencadear uma série de sinais indesejados com consequente piora da lesão da barreira.21 Diagnóstico clínico A apresentação clínica da ECN pode ter início súbito ou insi‑ dioso.22 A ECN pode ocorrer na UTI, na unidade de cuidados intermediários, na unidade em que se encontram os bebês convalescentes e nos berçários, onde se encontram os RN a termo.22 Quanto menores o peso e a idade gestacionais, mais tar‑ dio será o início da doença. Os bebês com ECN podem apre‑ sentar grande variedade de sintomas e sinais, que podem ser sistêmicos e/ou gastrointestinais.22 Geralmente, ini‑ ciam com sintomas e sinais sistêmicos não específicos,22 como letargia, crises de apneia/bradicardia, disfunção res‑ piratória e instabilidade térmica; além disso, o bebê que não está evoluindo bem tem aspecto séptico, acidose e per‑ fusão periférica diminuída. Os sintomas e sinais gastroin‑ testinais são: distensão abdominal, sensibilidade abdomi‑ nal, intolerância alimentar, resíduo gástrico aumentado, vômitos, sangue nas fezes, diarreia, massa abdominal, as‑ cite e eritema de parede abdominal.22 Intolerância alimen‑ tar, distensão abdominal, vômitos biliosos e diarreia são os achados clínicos mais comuns.8 A presença de massa abdo‑ minal fixa e eritema da parede abdominal são os sinais clí‑ nicos mais preditivos de ECN, com especificidade aproxi‑ mada de 100%.23 Infelizmente, esses sinais são observados apenas na doença mais avançada.23 O RN pode ter doença benigna, com sintomas gastroin‑ testinais predominantes, ou doença catastrófica, caracteri‑ zada por início fulminante com comprometimento circula‑ tório e respiratório, acidose metabólica, coagulopatia intravascular disseminada e falência de múltiplos órgãos.13 Achados radiológicos No estágio precoce da ECN, há falta de especificidade nos achados radiográficos.24 Os sinais radiológicos precoces não específicos, mas suspeitos, são distensão generalizada de al‑ ças, espessamento da parede das alças e assimetria do padrão aéreo das alças intestinais.24 Os sinais definitivos de ECN incluem a presença de pneumatose intestinal (gás intramural) e gás na veia por‑ ta.24 A pneumatose pode ter padrão linear, delineando o contorno da alça ao cursar paralelamente à luz intestinal (gás intramural subseroso), ou ter forma de bolhas (gás in‑ tramural submucoso) (Figura 1).13 A incidência de pneuma‑ tose tem variado muito nos relatos médicos, com frequên‑ cia que alterna entre 40 e 90%.24 A presença de pneumatose indica a realização de contro‑ les seriados com radiografias na projeção anteroposterior
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Figura 1 Pneumatose cística e linear.
(A-P) e em decúbito lateral esquerdo. O tempo de observa‑ ção com chapas seriadas depende do estado clínico da crian‑ ça.25 Se estável, pode-se descontinuar o período de observa‑ ção após 2 a 3 dias, pois a maioria das perfurações (70%) ocorre nos dois primeiros dias do diagnóstico.25 Sugere-se a realização de radiografias com o bebê em decúbito lateral es‑ querdo a cada 6 a 8 horas, para detectar ar livre, acrescida de uma radiografia diária na posição supina por 2 a 3 dias.24,25 Investigação diagnóstica Achados laboratoriais Os exames laboratoriais costumam mostrar leucocitose ou leucopenia, neutropenia, trombocitopenia, acidose metabóli‑ ca, hipoglicemia ou hiperglicemia e hiponatremia. Gás no espaço porta é outro sinal radiológico encontrado na ECN.24 Costuma ser encontrado em 10 a 20% das radio‑ grafias de abdome realizadas para diagnóstico ou controle de crianças com ECN (Figura 2).24 Bebês com presença de gás na veia porta (PVG) são mais doentes e necessitam de cirurgia com maior frequência, pois esse sinal indica apare‑ cimento tardio.23,26 O achado radiológico de PVG geralmen‑ te é transitório, durando no máximo 1 dia, frequentemente desaparecendo em poucas horas. Outro sinal que certamente é marcador de doença mais avançada é o da alça persistente, isto é, uma alça dilatada de intestino que permanece relativamente sem mudança
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do intraperitoneal, particularmente se complexo (com par‑ tículas) ou ecogênico, é sugestiva de perfuração.27 Em estudos mais atuais,27,29 nos casos mais graves que necessitaram de cirurgia e foram analisados pela US, obser‑ vou-se que alguns achados poderiam sugerir, com acurácia, a existência de gangrena/perfuração intestinal: gás perito‑ neal livre, ausência de perfusão do intestino no Doppler, adelgaçamento da parede intestinal (menos de 1 mm), es‑ pessamento da parede intestinal (≥ 2,7 mm) e líquido livre com ecos.
Figura 2 Pneumatose linear e gás no espaço porta.
em sua aparência ou sua posição em radiografias obtidas em 24 a 36 horas de intervalo.24 Pneumoperitônio não é patognomônico de ECN, porém a ECN é a causa mais comum de pneumoperitônio no RN. Pneumoperitônio massivo não é difícil de ser detectado, pois o ar livre dá uma transparência global ao abdome, po‑ dendo delinear/esboçar estruturas intraperitoneais, como o ligamento falciforme, a artéria umbilical e o úraco,24 sinal denominado “bola de futebol”. Achados ultrassonográficos A ultrassonografia (US) pode detectar a presença de gás na veia porta/parênquima hepático, pneumatose intestinal e as‑ cite, além de identificar alças intestinais com gangrena. A pre‑ sença de ar na parede intestinal é identificada por imagens li‑ neares, pontilhadas ou granulares de alta ecogenicidade.27 O portograma aéreo caracteriza-se pelo aparecimento de microbolhas hiperecogênicas na veia porta (menos de 1 mm de diâmetro) e de imagens ramificadas que se esten‑ dem do porta hepatis em direção à periferia do fígado, con‑ trastando com sua opacidade.27-29 A presença de sombra acústica não costuma ser um achado constante dessas bo‑ lhas.28 A US é claramente mais sensível que a radiografia convencional em detectar gás venoso portal. Também tem sido utilizada para avaliar a presença e o caráter da ascite e ajudar a definir o local da paracentese. A presença de líqui‑
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Estadiamento Para selecionar o tratamento adequado, clínico ou cirúrgico, medir a sua efetividade e determinar a influência da terapêuti‑ ca na sobrevida, Bell et al.,30 em 1978, desenvolveram uma classificação que combina dados de história e de exame físico e radiológico. Esse sistema mostra a progressão dos sinais e o avanço da doença, mas sua utilidade em determinar o mo‑ mento da cirurgia não é adequada nem validada. Os três estádios originalmente descritos pelos autores e resumidamente mencionados aqui são: • estádio I: crianças com achados leves sugestivos de ECN (dis‑ tensão abdominal, vômitos, intolerância alimentar) e íleo adi‑ nâmico na radiografia de abdome; • estádio II: crianças com achados definitivos de ECN (preen‑ chem o diagnóstico, todos os sinais do estádio I + sangramen‑ to gastrointestinal + pneumatose e/ou portograma), mas sem indicação de intervenção cirúrgica; • estádio III: crianças com necrose intestinal, sinais de piora clínica e perfuração intestinal (pneumoperitônio). Tratamento clínico O tratamento inicia-se pelo diagnóstico preciso e precoce. A maioria dos casos de ECN pode ser tratada sem cirurgia. Um componente crítico do tratamento é a observação rigorosa, com exame físico do abdome e estudos radiológicos seriados nas primeiras 72 horas da doença ou até que o paciente esteja estável clinicamente. Os principais cuidados são:
Figura 3 Pneumoperitônio: posição de decúbito lateral esquerdo.
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• nada por via oral: a fim de prevenir lesão adicional da mucosa e reduzir as necessidades metabólicas do intestino. Reduz a distensão, remove substrato fermentável e diminui as neces‑ sidades de oxigênio nos intestinos; • estressados: segundo alguns autores, o reinício da alimenta‑ ção31 está indicado 72 horas após a resolução das anormalida‑ des radiográficas e entre 7 e 14 dias, aproximadamente, após a cirurgia. O reinício da via oral deve ser lento e cauteloso, por meio de fórmulas hiposmolares diluídas para permitir boa ab‑ sorção de todos os nutrientes e evitar adicional dano da mu‑ cosa intestinal,32 com progressão gradual até atingir a fórmula indicada e tolerada; • sonda gástrica: indicada para manter o trato gastrointestinal descomprimido;33 • nutrição parenteral: deve ser iniciada para facilitar a cicatriza‑ ção dos tecidos doentes e repor as necessidades nutricionais e metabólicas;33 • reposição hídrica: deve ser realizada com 125 a 300 mL/kg/ dia, sempre acompanhada da monitoração do débito uriná‑ rio; • concentrado de hemácias (10 a 15 mL/kg): apropriado na pre‑ sença de anemia e para manter o hematócrito acima de 40%. Se há evidências de coagulopatia, é preciso administrar pla‑ quetas, plasma fresco congelado ou crioprecipitado. O uso de coloides é necessário após o aparecimento da síndrome de ex‑ travasamento capilar e subsequente hipoalbuminemia com acúmulo de líquido no terceiro espaço e edema generaliza‑ do;34 • culturas: sangue, urina, cicatriz umbilical e fezes; • antibióticos devem ser instituídos visando à presença de en‑ terococos, enterobactérias e anaeróbios. Em razão da preva‑ lência aumentada do Staphylococcus aureus e do epidermidis meticilina-resistente, a vancomicina deve ser acrescentada ao esquema pensado. Também exerce ação sobre os entero‑ cocos e estreptococos. A cefalosporina de terceira geração cefotaxima cobre a maioria dos outros organismos relevan‑ tes. O tempo de tratamento sugerido varia de 14 a 21 dias10, e o tratamento preferencialmente utilizado consta de van‑ comicina, cefotaxima ou amicacina e metronidazol. O tra‑ tamento antifúngico pode ser considerado em prematuros com terapia antibiótica prolongada e que continuam graves e piorando; • hipotensão, acidose metabólica, perfusão tecidual periférica diminuída e oligúria que não respondem à ressuscitação volu‑ métrica podem indicar necessidade de suporte inotrópico. A dopamina tem efeito mais específico na artéria renal e é a pri‑ meira escolha na presença de oligúria; • suporte ventilatório (oxigênio, ventilação): é de vital impor‑ tância para manter boa oxigenação dos tecidos com hipoper‑ fusão.34 A distensão abdominal costuma reduzir o volume torácico, comprimindo os pulmões e diminuindo a compla‑ cência pulmonar. Indicações cirúrgicas A única indicação absoluta universalmente aceita é a evi‑ dência de perfuração intestinal, diagnosticada pela presen‑
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ça de pneumoperitônio ou por paracentese abdominal.3,6,23 Infelizmente, o pneumoperitônio nem sempre pode ser de‑ monstrado em RN com perfuração intestinal, visto que 30 a 50% das perfurações são ocultas. A paracentese abdomi‑ nal é considerada positiva quando se aspira mais de 0,5 mL de líquido marrom, meconial ou com bactérias visíveis na coloração de Gram.3,6,23 É um método seguro que prediz, quando positiva, a existência de gangrena intestinal. Uma paracentese negativa não garante viabilidade intestinal. Seus resultados devem ser interpretados e relacionados aos parâmetros clínicos e laboratoriais. As outras indicações cirúrgicas são relativas e controver‑ sas. Para caracterizar a presença de gangrena intestinal ou perfuração oculta, as diversas instituições utilizam diver‑ sos indicadores e critérios. Para detectar gangrena intesti‑ nal ou perfuração oculta, adota-se um algoritmo baseado nos seguintes indicadores relativos de cirurgia: massa ab‑ dominal dolorosa e fixa, piora clínica, celulite de parede ab‑ dominal, alça fixa persistente em radiografias seriadas de abdome, pneumatose intestinal difusa (quatro quadrantes) e portograma aéreo.35 A laparotomia exploradora deve ser realizada na presen‑ ça de pneumoperitônio, de duas indicações relativas com paracentese positiva ou de três ou mais indicações relativas de cirurgia. Tratamento cirúrgico Aproximadamente, 1/3 dos casos de ECN apresenta doença mais avançada e necessita de tratamento cirúrgico.13 Não há consenso em relação ao tratamento cirúrgico ideal.12 Embora o tratamento clínico da ECN tenha permaneci‑ do o mesmo por muitas décadas, há um acirrado debate sobre a melhor estratégia cirúrgica nos pacientes que exi‑ gem intervenção cirúrgica.36 A necessidade de tratamento cirúrgico reduz a sobrevida, independentemente do peso ao nascimento, da idade gestacional e da idade de apresen‑ tação. As opções de tratamento são altamente variáveis entre os cirurgiões e influenciadas pelo sítio e pela extensão da doença, pelo estado clínico e pelo peso do bebê.12,36 A lapa‑ rotomia com ressecção cirúrgica do intestino afetado, for‑ mação de estomas e reanastomose estadiada subsequente tem sido considerada, tradicionalmente, a técnica mais se‑ gura. Os principais objetivos são o controle da sepse, a re‑ moção do intestino gangrenoso, de ar e de líquidos intesti‑ nais infectados e a preservação da maior extensão possível de intestino.12 A confecção de enterostomia permite a resolução da pe‑ ritonite e da doença antes do restabelecimento da continui‑ dade intestinal.16 Em adição, o estoma permite cicatrização adequada e repouso do intestino distal, além de possibilitar a avaliação da viabilidade e do aspecto externo do estoma proximal, que pode refletir a progressão da doença. As des‑ vantagens desse método decorrem da presença do estoma, das complicações inerentes à técnica, da hiponatremia as‑ sociada, da estenose mais frequente em alças desfunciona‑
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lizadas e da necessidade de cirurgia adicional, para provi‑ denciar o fechamento da enterostomia.12,16 A ressecção intestinal com anastomose primária tem sido citada como alternativa aceitável em algumas situa‑ ções bem definidas, como na doença localizada sem doen‑ ça distal ao sítio da anastomose, em perfuração recente ou cicatrizada, para evitar jejunostomia alta.37 A drenagem peritoneal tornou-se muito popular em al‑ guns países, visando ao tratamento da ECN perfurada no RN de muito baixo peso. Metanálise e ensaio clínico rando‑ mizado recentes não mostraram diferenças significativas na sobrevida desses pacientes quando comparados à lapa‑ rotomia, com ressecção intestinal e confecção de esto‑ mas.38,39 Acredita-se que seja uma técnica útil na ressusci‑ tação de crianças de muito baixo peso criticamente doentes. Quando há doença extensa, diversas opções cirúrgicas são propostas, tentando evitar múltiplas enterostomias ou a realização de anastomose primária em tecido de viabili‑ dade questionável. Essas técnicas devem ser pesquisadas em textos de cirurgia pediátrica. A morbidade pós-cirurgia varia entre 10 e 30% e inclui, principalmente, deficiências no neurodesenvolvimento, fa‑ lha de crescimento, dificuldades de alimentação, diarreia, obstrução intestinal, síndrome do intestino curto, hospita‑ lização neonatal prolongada e múltiplas re-hospitaliza‑ ções32. Estudos têm mostrado que os RN com ECN tratados cli‑ nicamente desenvolvem-se similarmente aos RN prematu‑ ros sem ECN. Todavia, aqueles com doença mais grave, que necessitam de cirurgia, têm risco aumentado de desenvol‑ vimento neuromotor deficiente quando comparados aos controles. Histologia As alterações histopatológicas que comprovam o diagnóstico de ECN costumam ser uma combinação dos seguintes acha‑ dos:4,5 necrose isquêmica ou de coagulação da mucosa, even‑ tualmente progredindo para sua necrose completa, até a ne‑ crose total da parede intestinal. A necrose de coagulação da mucosa costuma ser a lesão microscópica mais comum e pre‑ coce; ulceração da mucosa ou da mucosa e da submucosa; edema e hemorragia da submucosa que costumam seguir à necrose completa da mucosa; alterações inflamatórias agudas e/ou crônicas, geralmente limitadas à mucosa e à submucosa; alterações reparativas observadas sob a forma de regeneração epitelial, tecidos de granulação, atrofia das vilosidades e fibro‑ se; colônias de bactérias que podem ser visualizadas no lúmen intestinal, na base de uma úlcera, dentro da parede intestinal e, mais raramente, dentro de bolhas da pneumatose; gás na parede intestinal (pneumatose); formação de pseudomem‑ branas (em áreas desnudadas de mucosa) e constituídas por células inflamatórias, muco, fibrina e debris de células epite‑ liais. Algumas vezes, podem ser vistas em continuidade com abscessos de criptas e trombos que costumam ser identifica‑ dos em capilares ou em vasos muito pequenos da parede in‑ testinal em áreas de necrose e coagulação.
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Necrose de coagulação e inflamação estão usualmente presentes alternadamente em campos microscópicos adja‑ centes e/ou até no mesmo campo microscópico. Geral‑ mente, a necrose de coagulação é mais intensa que a infla‑ mação. Essas áreas de isquemia, inflamação e tecidos francamente necróticos, além de poderem não se encontrar no mesmo estágio evolutivo, podem se alternar com áreas intestinais de aspecto normal ou em cicatrização. Prognóstico Embora a mortalidade global da ECN tenha declinado nos últi‑ mos anos, ainda permanece alta nos bebês que requerem ci‑ rurgia (entre 20 e 50%).13,35,37 Os fatores prognósticos mais identificados na literatura são a necessidade de tratamento cirúrgico, a extensão difusa da doença,35 o RN prematuro com restrição do crescimento intrauterino35 e a presença de comorbidades associadas.40 Considerações sobre a prevenção da ECN Nos últimos anos, têm sido desenvolvidas diferentes estraté‑ gias na prevenção de ECN.20 Verdadeiramente, poucas prova‑ ram ser eficazes em diminuir a incidência de ECN. As medidas que parecem mais razoáveis são a diminuição de nascimentos prematuros, o uso de esteroides antenatais, a alimentação com leite materno e o uso de alimentos tróficos.20 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer que a doença tem início insidioso, daí a necessidade de alto grau de suspeição para o diagnóstico precoce. • Reconhecer os sintomas iniciais inespecíficos: recusa alimentar, distensão abdominal, letargia, e que devem levar a investigação radiológica e observação mais de perto. Caso o quadro prossiga com vômitos e enterorragia, o tratamento específico deve ser iniciado sem demora. • Consultar o cirurgião pediatra desde o início dos sintomas.
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CAPÍTULO 8
SÍNDROME DO INTESTINO CURTO Ana Cristina Aoun Tannuri Uenis Tannuri
Introdução Síndrome do intestino curto (SIC) é uma condição caracteriza‑ da pelo comprometimento da capacidade absortiva intestinal decorrente de uma redução significativa da superfície mucosa, resultando em diarreia, desbalanço de fluidos e eletrólitos, má absorção de nutrientes e desnutrição.1 Em geral, é consequên‑ cia de ressecção maciça do intestino, remanescendo um com‑ primento de intestino abaixo de um limite crítico para o suprimento nutricional adequado. Os neonatos a termo têm um comprimento de intestino delgado de 250 cm, que se alon‑ ga substancialmente durante o 1º ano de vida. Os prematuros têm ainda um maior potencial de crescimento intestinal, por‑ tanto, quando as ressecções intestinais são realizadas em uma fase precoce da vida, a capacidade adaptativa é maior. O comprimento intestinal mínimo que levaria à SIC está re‑ lacionado a uma série de fatores, mas, em geral, ressecções que deixam menos de 40 cm de intestino delgado remanes‑ cente viável levam à SIC. No entanto, intestinos residuais de 15 a 40 cm têm se associado à adaptação completa quando a ressecção ocorre no período neonatal. Outros fatores impor‑ tantes são a doença de base, o tipo de segmento intestinal res‑ secado (o íleo adapta-se melhor do que o jejuno), a manuten‑ ção de uma estomia em longo prazo versus uma anastomose primária, a manutenção da válvula ileocecal e a idade em que a ressecção intestinal foi feita.2 As causas mais frequentes na infância são enterite necroti‑ zante, volvo de intestino médio e outras malformações congê‑ nitas, como atresias intestinais e gastrósquise.1 Logo após a ressecção intestinal, o intestino remanescente tenta aumentar a absorção de fluidos e nutrientes por meio de mecanismos adaptativos, como dilatação e alongamento das alças, espessamento de sua parede, hiperplasia das vilosidades da mucosa, aumento da profundidade das criptas, aceleração dos índices de proliferação dos enterócitos e hiperplasia das fi‑ bras da camada muscular. Essa fase de adaptação pode durar de 1 a 2 anos, período em que a absorção intestinal é inadequa‑ da, sendo necessária, portanto, a nutrição parenteral (NP).3
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Manejo O manejo da SIC envolve medidas que têm por objetivo: • promoção da adaptação intestinal e hiperplasia vilositária por meio de alimentação enteral; • manutenção do crescimento corpóreo normal por meio de nutrição parenteral; • otimização da superfície absortiva intestinal por meio de téc‑ nicas cirúrgicas; • realização do transplante intestinal, nos casos refratários e não passíveis de adaptação. Alimentação enteral Quando possível, o trato gastrointestinal deve ser utilizado para alimentação porque é o meio mais fisiológico e seguro de prover a nutrição; além disso, a alimentação enteral é o princi‑ pal fator promotor da adaptação intestinal. As estratégias ideais de alimentação enteral, ou seja, oral versus por sonda gástrica, contínua versus em bolo, são ainda motivo de discussão. As vantagens da dieta oral são a manu‑ tenção da sucção e da deglutição e a estimulação de hormô‑ nios liberados pelo trato gastrointestinal que promovem a adaptação intestinal. Em neonatos e lactentes, o leite materno deve ser iniciado assim que possível. Quando este é indisponível ou em crian‑ ças maiores, existe a possibilidade da utilização de fórmulas extensamente hidrolisadas. No entanto, a prática clínica mostra que as dietas elemen‑ tares previamente digeridas não apresentam vantagens em re‑ lação às dietas naturais modularizadas, pelo fato de que, na criança com SIC, a função de digestão dos alimentos em geral encontra-se preservada, enquanto a função absortiva está de‑ ficiente. Esse fato biológico explica a má resposta que a maio‑ ria dos pacientes apresenta quando se administram dietas ele‑ mentares, digeridas parcial ou integralmente, mesmo que com osmolaridade próxima à do plasma. Na 1ª semana, administra-se mistura de creme de arroz a 3%, glicose a 5% e pequena porção de sal de cozinha. Se hou‑
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ver boa aceitação, representada pela ausência de diarreia, na Algumas medicações podem complementar o tratamento semana subsequente acrescenta-se caldo de frango a 10%, em clínico. Assim, a hipercloridria gástrica na fase inicial pode ser seguida a 20%, e, ao fim dessa semana, adiciona-se triglicéri‑ revertida com administração de antagonistas de receptor H2 de de cadeia média a 1%. Na 3ª semana, introduz-se a fibra de ou de inibidores de bomba de próton. A diarreia aquosa e o carne de frango a 10% com algumas gotas de limão, com o ob‑ trânsito intestinal rápido podem ser combatidos pela adminis‑ jetivo de fornecer vitaminas, principalmente vitamina C. Na 4ª tração de opioides ou de loperamida. Outras drogas comenta‑ semana, aumenta-se a concentração da fibra para 20% e do das em investigações científicas são: triglicéride de cadeia média para 2 e 3%, progressivamente. • acetato de octreotida, um análogo da somatostatina, cujo Nessa fase, inicia-se o fornecimento de sais minerais sob for‑ efeito é inibir as secreções gastrointestinais, tem seu uso cor‑ ma de uma mistura de cloreto de sódio, cloreto de potássio, rente inibido pelo alto custo; gluconato de cálcio, fosfato de potássio e sulfato de magnésio • colestiramina, que, por se ligar aos sais biliares, pode ter efei‑ ou pela adição de caldo de folhas de hortaliça. Na 5ª semana, tos benéficos em casos de diarreia induzida pelo alto conteú‑ pode-se adicionar macarrão ou batata cozidos às sopas, ini‑ do de sais biliares no colo; ciando-se com 50 g/dia até o limite de 200 g. Os triglicérides • ácido ursodesoxicólico, que inibe a absorção dos metabólitos de cadeia média poderão ser substituídos por óleo de milho dos ácidos biliares, cujos efeitos danosos se fazem sobre o pa‑ em igual porcentagem. Finalmente, introduz-se gema de ovo rênquima hepático. cozida, no início metade e depois a unidade inteira. Essa dieta é mantida por 2 a 3 meses e, se não houver diarreia, poderá ser Em crianças com ressecção do íleo, devem-se monitorar os ní‑ feita a transição para o leite de soja. veis de oxalúria e, se elevados, a restrição de oxalato na dieta É importante observar que, durante a administração de um deve ser recomendada, com suplementação de cálcio. A doen‑ dos tipos de dieta enteral, muitas vezes não se observa ganho ça óssea metabólica pode ser prevenida com administração de ponderal, o que obrigará a administração de nutrição parente‑ cálcio, vitamina D e outras vitaminas lipossolúveis e vitamina ral de apoio concomitante. B12. A dieta pode ser administrada continuamente ou em bolos pequenos e frequentes, inicialmente provendo um aporte mí‑ Nutrição parenteral nimo e sendo gradualmente aumentado de acordo com a tole‑ Os detalhes referentes às diretrizes da NP em crianças vão rância por meio de bolos mais volumosos durante o dia e con‑ além do escopo deste capítulo. O desenvolvimento da NP e tinuamente à noite. A dieta contínua parece melhorar o sua padronização e possibilidade de utilização em neonatos e crescimento e a adaptação, por otimizar a absorção intestinal. crianças revolucionou a evolução da SIC nesses pacientes. Ao A tolerância é avaliada por meio da mensuração do débito fe‑ longo do tempo, houve melhorias nas soluções de NP e melhor cal e observação de vômitos, irritabilidade e distensão abdo‑ entendimento das necessidades de vitaminas e oligoelemen‑ minal. tos, tornando o uso das soluções mais seguro. Ademais, de‑ senvolvimentos de melhores cateteres e técnicas de inserção Conforme já destacado, as introduções das dietas enterais ou por via oral são morosas e eventualmente sujeitas a regres‑ reduziram as complicações infecciosas. No entanto, a disfunção hepatobiliar permanece uma com‑ sões e/ou suspensões, na dependência da resposta da criança. Somente quando se consegue evidente estabilização do volu‑ plicação séria da NP, sendo uma importante indicação de me e da consistência fecal, procura-se introduzir outros ali‑ transplante combinado de fígado e intestino. mentos menos digeridos, mais naturais. Nas fases de manu‑ A disfunção hepática secundária à NP é diferente em crian‑ ças e adultos. Existem essencialmente 3 síndromes clínicas: tenção e estabilização, a introdução paulatina das dietas constitui também excelente teste de avaliação clínica da capa‑ colestase, mais comum em crianças; esteatose, mais comum cidade de adaptação do intestino. As avaliações laboratoriais em adultos; e colelitíase, que pode ocorrer em ambos. A colestase manifesta-se com icterícia e aumento de enzi‑ com testes complicados de absorção intestinal têm pouco va‑ lor e significado do ponto de vista terapêutico. Do mesmo mas hepáticas, predominantemente canaliculares, mas tam‑ modo, a interpretação de um determinado teste tem pouca bém hepatocelulares. Essas alterações podem iniciar precoce‑ aplicabilidade prática. Por vezes, a tentativa de introdução de mente após a introdução da NP e exacerbam-se nos episódios determinada dieta seguida de adequada e sensata avaliação de sepse. Histologicamente, são encontradas proliferação ductular, expansão fibrosa do espaço porta e, com o passar do da resposta clínica da criança têm valor muito maior. Após a introdução da dieta enteral, algumas complicações tempo, aparecimento de cirrose. Sua etiologia não é completamente elucidada e parece ser podem persistir ou mesmo surgir, como a superproliferação bacteriana, que ocorre mais comumente em crianças sem vál‑ multifatorial, parecendo relacionar-se à imaturidade do fígado vula ileocecal e que têm alguma alteração da motilidade intes‑ neonatal e à diminuição do ciclo êntero-hepático de sais biliares. Em prematuros, deficiência de taurina e cisteína podem ter tinal. Um achado comum nesses pacientes é a existência de al‑ ças dilatadas contendo nutrientes residuais não absorvidos. A um papel, e, em adultos e crianças, a deficiência de colina superproliferação bacteriana pode levar à inflamação da mu‑ pode exacerbar a lesão hepática da NP. Emulsões lipídicas, cosa intestinal e a aumento da permeabilidade, levando a particularmente as emulsões de óleo de soja, têm sido relacio‑ nadas à colestase. translocação, sepse e colestase.4
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Estratégias de prevenção da doença hepática associada à NP incluem a introdução de dieta enteral e técnicas para evitar os episódios de sepse. Recentemente, o uso de emulsões lipídicas baseadas em óleo de peixe (Omegaven) tem se mostrado muito efetivo na prevenção e na reversão da colestase relacionada à NP. No en‑ tanto, o óleo de peixe provê menos ácidos graxos essenciais ômega 6 do que se recomenda para lactentes e crianças peque‑ nas. Além disso, o Omegaven só pode ser dado em ritmos len‑ tos de infusão, o que pode levar à diminuição do aporte calóri‑ co. Dessa forma, o SMOF (soy bean/medium chain triglyceride/ olive oil/fish oil, ou seja, uma mistura de óleo de soja, triglicé‑ rides de cadeia média, óleo de oliva e óleo de peixe) tem sido muito promissor no intuito de suprir as necessidades das crianças e manter o efeito hepatoprotetor.5 Acessos venosos A obtenção e os cuidados com os acessos venosos centrais nas crianças com intestino curto são assuntos essenciais, visto que o tempo de sobrevida desses pacientes depende da dura‑ bilidade dos cateteres centrais. O procedimento deve ser realizado sempre em centro cirúr‑ gico, sob anestesia geral. Os cateteres podem ser colocados por meio de punção ou dissecção venosa. Nas crianças com mais de 3 kg, sem alterações de coagulação ou plaquetopenia, po‑ de-se escolher a punção de veias profundas como primeira op‑ ção, uma vez que não há impedimento para que essa mesma veia seja utilizada outras vezes, diferentemente da dissecção. Dessa forma, preferencialmente, devem ser puncionadas as veias do território da veia cava superior, quais sejam, jugulares internas e subclávias. A escolha entre estas ou aquelas depen‑ de da experiência do cirurgião, devendo-se lembrar que a pun‑ ção de veia subclávia associa-se a maior risco de pneumo ou hemotórax. As veias femorais, embora associadas a baixos ín‑ dices de acidentes de punção, são deixadas para segunda es‑ colha em razão das maiores dificuldades de manipulação dos curativos. Após a punção da veia, o cateter é passado pela téc‑ nica de Seldinger modificada. Atualmente, a utilização de exame ultrassonográfico para guiar a punção de veias profundas tem facilitado sobremanei‑ ra a aquisição de acessos profundos mesmo em crianças pe‑ quenas. Em neonatos muito pequenos ou na presença de discrasias sanguíneas, deve-se optar pela dissecção venosa. A primeira escolha para o acesso às veias centrais baseia-se em tributá‑ rias do sistema cava superior: na axila, as veias basílica ou axi‑ lar, e no pescoço, as veias jugulares externa, interna ou a veia facial. Em crianças maiores ou adolescentes, a veia cefálica no sulco deltopeitoral pode se apresentar de bom calibre e consti‑ tuir outra opção de acesso venoso. Podem ser utilizadas tribu‑ tárias do sistema cava inferior, quando não houver disponibili‑ dade das veias anteriormente referidas, por dissecções prévias ou por trombose da veia cava superior. Nesses casos, a croça da veia safena ou as veias epigástricas profundas inferiores são as mais utilizadas. A opção pelo sistema da veia cava infe‑ rior é válida e justificada pelo baixo índice de complicações e
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também pelo fato de que as tromboses das veias ilíacas ou cava inferior são frequentemente assintomáticas, ao contrário das tromboses de cava superior. Qualquer que seja a veia utilizada, é imprescindível o con‑ trole radiográfico da correta posição do cateter por meio de ra‑ diografia contrastada ou radioscopia, feitas na sala de cirurgia, antes do fechamento da incisão da flebotomia. A ponta do ca‑ teter deve se localizar na entrada do átrio direito ou aproxima‑ damente 1 cm para dentro dele. Posições inadequadas devem ser prontamente corrigidas, por poderem levar a trombose ve‑ nosa. O cateter deve ser exteriorizado por contra-abertura, em lo‑ cal distante do ponto de entrada da veia após percorrer um tú‑ nel subcutâneo. Os curativos devem ser meticulosamente tro‑ cados a cada 2 ou 3 dias ou em qualquer tempo, se houver extravasamento da solução, utilizando-se soluções antissépti‑ cas. Atualmente, uma boa opção é a utilização de materiais de curativo pré-fabricados com esponjas embebidas por soluções antissépticas. Habitualmente, utilizam-se cateteres de silicone do tipo Broviac ou Hickman, que são semi-implantáveis, ou até os to‑ talmente implantáveis (port-o-cath). Deve-se dar preferência aos cateteres feitos de silicone em relação aos de poliuretano ou polivinil, por serem menos trombogênicos. Os cateteres de Groshong são cateteres para acesso venoso prolongado que apresentam uma ponta fechada. Sua ponta distal apresenta uma válvula que permanece fechada enquan‑ to o cateter não é utilizado, permitindo, no entanto, a coleta de sangue. Sua utilização tem sido associada à diminuição nos índices de infecção.6 Outro procedimento que tem sido utilizado no sentido de diminuir a ocorrência de infecções relacionadas ao cateter é a instilação de etanol a 70% como uma solução de “lock”, ou seja, mantida no trajeto do cateter durante o período em que não está sendo utilizado para infusão de NP. Estudos in vivo mos‑ tram que o etanol mantido por 2 ou mais horas consegue pe‑ netrar e destruir o biofilme que pode envolver o cateter.7 A ocorrência de infecções repetidas e tromboses de veia cava superior e inferior pode levar ao esgotamento de todas as vias de acesso convencionais, sendo necessários, então, méto‑ dos alternativos de obtenção de veia central. Assim, foi relata‑ da e padronizada em nosso serviço a dissecção da veia ázigos ou de seus ramos (veias intercostais) por meio de toracotomia direita, com colocação de port-o-cath e fixação da câmara na face anterior do tórax. Outra opção é a confecção de sutura em bolsa na aurícula e inserção do cateter diretamente no átrio di‑ reito. Ainda, são descritas punções trans-hepáticas para aces‑ so às veias supra-hepáticas que drenam diretamente para a veia cava inferior.8 Técnicas cirúrgicas para otimização da superfície absortiva intestinal Em geral, o tratamento clínico deve ser mantido por pelo me‑ nos 6 meses. Se nesse prazo não se conseguir manter a criança exclusivamente por nutrição enteral, o caso passa a ser rotula‑ do como síndrome do intestino encurtado refratário ao trata‑
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mento clínico, tornando-se a criança candidata ao tratamento rica superior e na drenagem venosa pela veia mesentérica su‑ cirúrgico. Classicamente, a maioria das crianças com mais de perior no enxerto intestinal isolado ou pelas veias hepáticas 20 cm de intestino delgado com válvula ileocecal ou mais de nos enxertos compostos. As indicações para os diferentes ti‑ 40 cm sem válvula tem grande chance de sobreviver sem NP e pos de enxerto são: sem necessidade de tratamento cirúrgico. • intestino isolado: utilizado em pacientes com falência intesti‑ O tratamento cirúrgico é indicado para aquelas crianças nal sem evidência de doença hepática terminal; que não conseguem adaptação funcional do intestino residual • fígado/intestino: indicado em pacientes com falência intesti‑ ou para aquelas que mostram qualquer obstrução intestinal nal e doença hepática terminal induzida pela NP prolongada; ou grandes dilatações na evolução do tratamento. • multivisceral (fígado, estômago, duodeno, pâncreas, intesti‑ Foram descritas várias técnicas de válvulas, enteroplastias no delgado): utilizado em pacientes com falência intestinal e alongamentos intestinais, com resultados muito discutíveis. cuja etiologia afeta o trato gastrointestinal inteiro (pseudo‑ Recentemente, a enteroplastia transversa seriada (serial -obstrução intestinal, eventos vasculares tromboembólicos e transverse enteroplasty – STEP) foi introduzida como uma tumores). Pode-se realizar uma modificação com exclusão do nova opção para alongamento cirúrgico do intestino na SIC.9 fígado, se a função do fígado do receptor estiver preservada. O STEP envolve o grampeamento linear sequencial do intesti‑ no delgado dilatado em direções alternadas perpendicular‑ Os resultados dos transplantes intestinais e multiviscerais mente ao eixo longitudinal do intestino (Figura 1). Dessa for‑ ainda são bem aquém dos obtidos em transplantes de órgãos ma, todas as aplicações do grampeador são realizadas sólidos, com sobrevida em 5 anos do enxerto e do paciente gi‑ paralelamente à direção do fluxo mesentérico, de forma que o rando em torno de 50%. suprimento sanguíneo intestinal não é colocado em risco. Dessa forma, a tendência mundial é concentrar esforços e As últimas evidências sugerem que o principal benefício do investimento em programas multidisciplinares de reabilitação STEP é a prevenção das consequências da dilatação intestinal, intestinal, que, por meio de otimização da NP com utilização como a estase e a superproliferação bacteriana.1 de fórmulas que previnam a lesão hepática, aperfeiçoamento nas técnicas de aquisição e manutenção dos cateteres venosos Transplante de intestino e realização de enteroplastias, quando indicadas, consegui‑ O transplante de intestino é a última opção cirúrgica para o ram expressiva melhora na sobrevida das crianças com SIC tratamento da SIC. Está indicado na presença de complica‑ nas últimas décadas. ções graves que ameaçam a vida, como episódios sépticos gra‑ ves, distúrbios hidreletrolíticos de difícil controle, perda dos Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: acessos para NP e doença hepática avançada. • Lembrar as causas mais frequentes da síndrome do Tipos de enxertos intestinais
Dependendo das necessidades do paciente com falência intes‑ tinal, os enxertos podem ser transplantados como intestino delgado isolado ou um enxerto composto que pode incluir fí‑ gado, duodeno, pâncreas e/ou estômago. Os enxertos com‑ postos são designados fígado/intestino ou multiviscerais.10 A obtenção das várias formas de enxertos baseia-se na preserva‑ ção do fluxo arterial pelo tronco celíaco e pela artéria mesenté‑
intestino curto (SIC): enterocolite necrosante e volvo do intestino médio. • Realizar diagnóstico precoce dessas afecções para evitar SIC.
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Figura 1 Enteroplastia transversa seriada.
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CAPÍTULO 9
ANOMALIAS ANORRETAIS José Luiz Martins
Introdução As anomalias anorretais (AAR), também chamadas de imper‑ furações anais, representam um espectro de malformações, com resultados cirúrgicos que dependem do tipo de defeito e dos defeitos congênitos associados.1-3
cloaca externa. Quando o septo urorretal alcança a mem‑ brana cloacal (16 mm), ela sofre atrofia por apoptose, abrin‑ do o trato urogenital e o reto.7 A localização primária dessa membrana na criança normal, observada na mucosa do ca‑ nal anal, é chamada de linha pectínea e representa o encon‑ tro dos componentes endodérmicos e ectodérmicos nesse local.1,7 Em AAR provocadas experimentalmente em ratos com etilenotioureia, foi demonstrado que seu intestino apre‑ senta diminuição importante de células ganglionares, bem como da população de células de Cajal, o que pode causar defeitos de motilidade intestinal.8-10
Incidência As AAR ocorrem em 1 a cada 5 mil recém-nascidos vivos, sen‑ do mais frequentes no sexo masculino que no feminino. A he‑ rança ligada ao sexo tem sido sugerida para explicar a maior incidência nesse sexo. No sexo masculino, o tipo mais comum é aquele com fís‑ tula retouretral, enquanto no sexo feminino é aquele com fístula retovestibular. As AAR sem fístula e as cloacas são Classificação das AAR observadas na mesma frequência (10% dos casos). Diversas classificações foram propostas tentando agrupar os O risco de um casal ter um segundo filho com AAR é de diferentes tipos de defeitos. A primeira, proposta por Ladd e aproximadamente 1%.4,5 As AAR estão frequentemente as‑ Gross,11 é muito utilizada até os dias de hoje, dividindo as AAR sociadas a síndromes, sendo a regressão caudal, sirenome‑ em 4 tipos: lia ou síndrome da sereia uma das mais graves.6 • estenose anal: existe um estreitamento acentuado da abertu‑ ra anal, embora a parte distal esteja bem posicionada dentro Embriologia do complexo esfincteriano, podendo ocorrer nos dois sexos; Na quarta semana de vida embrionária, tendo o embrião cerca • membrana anal persistente: não ocorre o desaparecimento da de 4 mm, estão presentes a cloaca e a membrana cloacal. Da membrana cloacal embriologicamente, observando-se o de‑ quarta à sexta semana, quando o embrião tem entre 4 e 16 mm, feito de modo similar nos dois sexos; a cloaca interna é dividida no plano coronal craniocaudal pelo • agenesia: septo urorretal ou septo de Tourneaux. –– anal: o fundo cego retal ultrapassa a parte superior do O septo urorretal cresce de cima para baixo, ao mesmo complexo muscular esfincteriano, localizando-se a uma tempo em que pregas laterais (pregas de Rathke) se desen‑ distância menor que 2 cm da pele, podendo existir ou não volvem em sua direção, resultando na formação de duas câ‑ uma fístula com o trato urinário; maras, uma recebendo a alantoide e os ductos de Wolff e ou‑ –– retal: o fundo cego retal não ultrapassa a parte superior do tra recebendo o reto. Uma falha no desenvolvimento do septo complexo muscular esfincteriano, distando mais de 2 cm urorretal resulta em fístula retourinária, no sexo masculino, e da pele na qual o ânus deveria estar localizado, apresen‑ em fístula retocloacal ou retovaginal, no sexo feminino. tando, na maioria dos casos, uma fístula com o trato uri‑ Nessa mesma época, o mesoderma cresce na superfície nário; do períneo para dar origem ao tubérculo genital no aspecto • atresia retal: o ânus se apresenta de forma normal, mas existe ventral, às pregas genitais de cada lado e aos tubérculos uma interrupção da luz do reto, em uma distância variável em anais posteriormente, produzindo, assim, a depressão da cada caso.
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Em 1993, Peña12 propôs a seguinte classificação: • sexo masculino: –– fístula cutânea; –– estenose anal; –– membrana anal; –– fístula retouretral; –– bulbar; –– prostática; –– fístula retovesical; –– agenesia anorretal sem fístula; –– atresia retal; –– malformações complexas; • sexo feminino: –– fístula cutânea (perineal); –– fístula vestibular; –– fístula vaginal; –– agenesia anorretal sem fístula; –– atresia renal; –– cloaca; –– malformações complexas. Avaliação das AAR A avaliação das AAR é feita especialmente pelo exame físico e pelo invertograma ao nascimento. Wangeenstein e Rice13 in‑ troduziram o uso da radiografia em perfil com a criança em po‑ sição invertida, 24 horas após o nascimento, para o diagnósti‑ co diferencial entre as AAR baixas e altas, colocando um anteparo metálico na região em que deveria estar a abertura anal. Quando a distância do fundo cego retal-pele é menor que 2 cm, a AAR é considerada baixa, sendo o paciente operado já ao nascimento; quando a distância é maior que 2 cm, porém, a anomalia é considerada alta, sendo o paciente submetido à co‑ lostomia em duas bocas, na transição do cólon descendente‑ -sigmoide, e a cirurgia definitiva é postergada por período va‑ riável. Outros exames também são utilizados, como ultrasso‑ nografia e punção do fundo cego retal seguida de injeção de contraste para sua localização. Quando existe colostomia aberta, o colostograma (em perfil) feito pela injeção de con‑ traste radiopaco pela boca distal da colostomia, isolada‑ mente ou concomitantemente à uretrocistografia para ava‑ liação da existência de fístula com o trato urinário, é o exame mais utilizado no pré-operatório da correção cirúrgi‑ ca definitiva.10 A ressonância magnética da região pode ajudar muito na avaliação das AAR associadas a defeitos e malformações sacrais. Anomalias associadas As AAR apresentam outras anomalias associadas que podem comprometer o prognóstico do paciente em 40 a 60% dos ca‑ sos, sendo as anomalias cardiovasculares, gastrointestinais, vertebrais e geniturinárias as mais encontradas. As anomalias cardiovasculares ocorrem em cerca de 20% dos casos, especialmente associadas a AAR altas, sendo a te‑ tralogia de Fallot e a comunicação interventricular as mais
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comuns. Grande variedade de malformações gastrointesti‑ nais ocorrem em associação às AAR, como atresia de esôfago (10%), obstrução duodenal (2%) e doença de Hirschsprung (2,8%). As anomalias vertebrais lombossacras predominam, po‑ dendo estar associadas a disrafismos espinhais, e são mais frequentes nas anomalias altas (25% dos casos) que nas bai‑ xas (10% dos casos). O disrafismo espinhal ocorre em 46% das cloacas, 34% das AAR altas e 17% das AAR baixas. O tipo mais comum de disrafismo é o ancoramento da medula ou tethered cord, seguido por lipomas e siringomielia.14,15 As anomalias vertebrais sacrais também estão relaciona‑ das ao comprometimento da inervação sacral, do comple‑ xo muscular esfincteriano anorretal e da bexiga. Vários ti‑ pos de defeitos podem ser observados, como agenesia total ou subtotal do sacro, presença de hemissacro total ou sub‑ total, escoliose, soldadura dos corpos vertebrais, vértebras em cimitarra, etc. A não visualização do cóccix nos dois primeiros anos de vida não significa que haja agenesia dele, já que o cóccix co‑ meça seu processo de ossificação a partir do segundo ano de vida e completa-o por volta dos 5 anos de idade. Os nú‑ cleos de ossificação sacrais já são visíveis radiologicamente ao nascimento.16 O defeito sacral associado a AAR e massa pré-sacral é chamado de tríade de Currarino. Existe uma associação de malformações conhecida como síndrome de VACTERL (V: anomalia vertebral; A: anomalia anorretal; C: malformação cardíaca; TE: fístula traqueoesofágica; R: malformações re‑ nais; L: dos membros). As anomalias urogenitais são as mais frequentemente associadas, ocorrendo em 60% das AAR altas e 20% das baixas. São observados refluxo vesicuretral (60%), agene‑ sias e displasias renais, hidronefroses, duplicidades, crip‑ torquidias, hipospadias, genitálias ambíguas, úteros bicor‑ nos, vaginas septadas, etc.14,15 Conduta nos diferentes tipos de AAR nos dois sexos Sexo masculino Fístula cutânea perineal Na fístula cutânea, quase todo o reto está posicionado dentro do mecanismo esfincteriano, estando sua parte mais baixa deslocada anteriormente. É um defeito baixo, sendo que a fístula pode se abrir no rafe perineal, na linha média escrotal ou na base do pênis. O diagnóstico é feito à inspeção. Estenose anal Trata-se de um estreitamento da abertura anal, frequentemente acompanhado de deslocamento anterior dessa abertura. Persistência de membrana anal A persistência de membrana anal ou cloacal é um defeito raro, podendo o mecônio ser visualizado por meio dela mesma, de‑ pendendo do caso.
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Anomalias Anorretais •
Agenesia anorretal sem fístula É um tipo menos comum de AAR, distando o fundo cego retal menos de 2 cm da pele perineal, com complexo muscular es‑ fincteriano e sacro bem desenvolvidos. É importante a inspe‑ ção externa da AAR ao nascimento da criança, para a orienta‑ ção do tratamento. AAR tipo fístula perineal, em “alça de balde” ou no rafe mediano, estenose anal ou membrana anal persistente, são AAR baixas corrigidas ao nascimento, sem necessidade de colostomia, realizando-se proctoplastia clássica ou minia‑ norretoplastia sagital posterior, seguidas de dilatações anais, dependendo do caso5,17 (Figura 1). AAR com fístula retouretral Representa o defeito mais comum no sexo masculino, podendo estar localizada na uretra bulbar, apresentando complexo mus‑ cular esfincteriano, sacro, sulco interglúteo e depressão anais bem desenvolvidos, ou na uretra prostática, acompanhada de complexo muscular esfincteriano pouco desenvolvido, defeitos na região sacral, períneo achatado, sulco interglúteo mal desen‑ volvido e impressão anal não visível. Os pacientes podem elimi‑ nar mecônio pela uretra pelo trajeto fistular. Imediatamente acima da fístula, o reto e a uretra têm pa‑ rede comum e de pouca espessura, estando o reto rodeado posterior e lateralmente pela parte superior do complexo muscular esfincteriano, representada pelo feixe puborretal do músculo levantador do ânus. Abaixo da fístula, entre o reto e a pele perineal, está a parte inferior do complexo muscular esfincteriano (esfíncter externo do ânus), sendo que, abaixo da pele, na linha mediana, estão localizadas as fibras parassagitais do esfíncter externo do ânus. Fístula retovesical Nesse tipo de AAR, o reto abre-se no cólon vesical. São defei‑ tos graves, nos quais o complexo muscular esfincteriano não está bem desenvolvido, e geralmente, existem malformações sacrais importantes, com pelve e sulco interglúteo com desen‑ volvimento comprometido.
Figura 1 AAR baixa no sexo masculino tipo agenesia anal.
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Atresia retal É um defeito raro no sexo masculino, existindo uma interrup‑ ção da luz do reto, com a parte inferior com pequena abertura do canal anal, separada do fundo cego retal por uma extensão variável de tecido fibroso. Apresenta complexo muscular es‑ fincteriano e sacro bem formados. AAR acompanhadas de perda do sulco interglúteo e da impressão anal, com mecônio eliminado na urina ou ar vi‑ sível na bexiga à radiografia simples em perfil, são indicati‑ vas de AAR altas, estando indicada a colostomia em duas bocas na transição do cólon descendente (sigmoide), para desfuncionalização total, seguida de avaliação das malfor‑ mações associadas e do posicionamento da fístula com o trato urinário, indicando-se, posteriormente, anorretoplas‑ tia sagital posterior (ARPSP) para a correção definitiva da AAR e o fechamento da colostomia após alguns meses.17 Sexo feminino Fístula cutânea perineal Representa um defeito semelhante ao do sexo masculino, com o reto bem localizado no interior do complexo muscular es‑ fincteriano, com exceção de sua parte mais inferior, localizada anteriormente, mas bem separada da vagina (Figura 2). Agenesia anorretal sem fístula Nesse tipo incomum de AAR, o reto termina a menos de 2 cm da pele perineal, existindo um complexo muscular esfincteria‑ no bem formado. Esse tipo de anomalia é mais comum no sexo feminino que no masculino. Fístula retovestibular Representa o tipo de AAR mais comum no sexo feminino, es‑ tando a abertura do intestino localizada logo após o hímen, na região do vestíbulo da vagina, sendo que, logo acima da aber‑ tura da fístula, reto e vagina apresentam uma parede comum. Nesse tipo de AAR, o complexo muscular esfincteriano e a região sacral geralmente são bem desenvolvidos.
Figura 2 AAR mostrando orifício da fístula retal fora do complexo muscular esfincteriano, próximo do vestíbulo vaginal.
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Fístula retovaginal Nesse tipo raro de AAR, o intestino abre-se logo após o hímen, sendo visível à inspeção. A paciente elimina mecônio do inte‑ rior do hímen. Cloaca As cloacas são o grupo de AAR mais complexo, representando a união do reto, da vagina e do trato urinário, em um único ca‑ nal comum. Já na inspeção da genitália, pode-se fazer o diagnóstico ao se visualizar uma única abertura perineal, sendo que o canal comum pode apresentar extensão variá‑ vel, de 1 a 7 cm. Quanto maior a extensão, pior a complexi‑ dade para a correção do defeito. Em alguns casos, o reto pode se abrir no alto da cúpula vaginal, e a vagina pode estar distendida por secreção mu‑ cosa vaginal (hidrocolpos). As cloacas podem estar asso‑ ciadas a graus variáveis de septação ou duplicidade vaginal ou uterina e apresentam anatomia variável, conforme o caso (Figura 3). Existem, nos dois sexos, casos de malformações com‑ plexas não enquadradas nos tipos descritos, sendo extre‑ mamente individualizadas quanto à sua anatomia e ao seu prognóstico. No sexo feminino, a inspeção ajuda muito no diagnósti‑ co, pois a presença de um único orifício, geralmente acom‑ panhado de ausência de sulco interglúteo e perda da im‑ pressão anal, sugere que a paciente seja portadora de uma cloaca. A presença de uretra, abertura himenal e abertura intestinal na fúrcula vaginal representam a forma mais co‑ mum de AAR nesse sexo, isto é, a fístula retovestibular. A presença de uretra e abertura himenal, com a visuali‑ zação da abertura intestinal por meio da uretra, mostra a presença de uma fístula retovaginal, de ocorrência inco‑ mum. A presença de uretra, a abertura himenal e a abertu‑ ra intestinal no períneo, com ou sem estenose, indica fístu‑ la cutânea perineal. As fístulas cutâneas perineais são tratadas com procto‑ plastias anais ou mini-ARPSP, seguidas de dilatação anal.
Figura 3 AAR tipo cloaca no sexo feminino.
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As retovestibulares são tratadas com colostomia na transi‑ ção do cólon descendente com o cólon sigmoide, seguida de ARPSP após 1 mês e dilatações pós-operatórias, segui‑ das de fechamento da colostomia.17 Alguns autores reali‑ zam a ARPSP ou a transposição do ânus nesses casos, sem colostomia, o que ainda representa um ponto controverso na literatura. As cloacas são tratadas com colostomia na transição do descendente-sigmoide acompanhada, se necessário, de va‑ ginostomia e/ou vesicostomia. Após colostograma, uro‑ grafia excretora, ressonância magnética e outros exames que se fizerem necessários, é indicada a anorretovaginou‑ retroplastia sagital posterior (ARVUPSP) ou o abaixamen‑ to do seio urogenital. É preferível realizar essa cirurgia após o sexto mês de vida, em razão das melhores condições ana‑ tômicas. As fístulas retovaginais, mais raras, são tratadas pela co‑ lostomia no descendente, seguida de ARPSP, dilatações anais e fechamento da colostomia após alguns meses.17 Resultados Os resultados dependem do tipo de AAR, da presença de ano‑ malias sacrais associadas, da técnica empregada pelo cirur‑ gião e do esmero com que o procedimento foi realizado. As AAR baixas têm prognóstico muito melhor que as AAR altas e as cloacas.17,18 As AAR baixas nos dois sexos e com fístulas retovestibulares no sexo feminino apresentam índice maior de continência fecal no pós-operatório, mas podem apresentar graus variados de constipação intestinal em sua evolução.17 Já as altas, nos dois sexos, e as cloacas, no sexo feminino, especialmente quando associadas a mal‑ formações sacrais, apresentam a incontinência fecal parcial ou total como principal complicação em seu tratamento. A presença de anomalias vertebrais, especialmente sa‑ crais, compromete o prognóstico aumentando o índice de incontinência pós-operatória.17-20 Experiência médica con‑ firma que metade dos casos apresenta continência fecal plena, sendo que 25% dos pacientes evoluem com conti‑ nência parcial com episódios de perda fecal e 25% evoluem com incontinência fecal, geralmente associada a malfor‑ mações sacrais.16,21,22 Após os 4 anos de idade, programas ativos de exercícios da musculatura do complexo muscular esfincteriano por longo período podem melhorar a continência fecal de crian‑ ças classificadas como parcialmente continentes.23 A ARPSP também pode ser usada na reoperação de cor‑ reções de AAR com outras técnicas ou maus resultados, sempre precedidas de colostomia protetora em duas bo‑ cas.24,25 Esses casos devem ser avaliados por defecograma em perfil, manometria anorretal computadorizada e resso‑ nância magnética pré-operatória.19-22 A ARPSP não deve ser realizada por cirurgião não afeito à região, visto que é um procedimento técnico difícil, sendo necessário um conhecimento da anatomia e da fisiologia da região muito maior que o necessário para outros proce‑ dimentos cirúrgicos de outras regiões anatômicas, sob
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Anomalias Anorretais •
pena da obtenção de resultado catastrófico para o paciente. A qualidade de vida desses pacientes depende do tipo ana‑ tômico do defeito, das anomalias associadas e do esmero da correção cirúrgica realizada.26-28 Assim, as AAR, longe de ser um problema resolvido, ainda representam um desafio para o cirurgião pediátrico. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Realizar exame perineal na sala de parto. • Aguardar 24 horas para classificar como alta um caso de AAR (tempo necessário para o mecônio ser eliminado no caso de fístula perineal). • Lembrar da frequente associação de malformações congênitas (Vacterl e outras).
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CAPÍTULO 10
AFECÇÕES CERVICAIS Antônio Aldo Melo Filho
Introdução Lesões em região cervical representam uma situação clínica co‑ mum em pediatria. De 80 a 90% delas são benignas, notada‑ mente secundárias à infecção, com evolução autolimitada ou que respondem a tratamento breve com antibiótico oral. As afecções cervicais podem ter etiologia primária inflamatória, congênita ou neoplásica. As lesões inflamatórias, em particular as linfadenopatias reacionais, são as mais frequentes, seguidas das congênitas, em especial os cistos do ducto tireoglosso e as anomalias branquiais. Embora mais raras, as lesões neoplásicas também devem ser descartadas, particularmente pela prepon‑ derância dos linfomas nesse grupo, na faixa etária pediátrica. A obtenção de uma história clínica e a realização de um exame físico detalhados proveem dados subjetivos e objetivos que auxiliam sobremaneira no diagnóstico. A história deve in‑ formar a idade da criança e dados relativos ao aparecimento e à evolução da lesão cervical em questão. As afecções congêni‑ tas podem se apresentar desde o nascimento, mas, em outras situações, podem passar despercebidas até que um evento in‑ feccioso possa causar sintomas locais e revelá-la. Malforma‑ ções vasculares geralmente se apresentam ao nascimento e crescem com a criança, enquanto hemangiomas podem se de‑ senvolver rapidamente logo após o nascimento. Sinais e sintomas de infecção de via aérea superior recente e indicativos de acometimento sistêmico (febre, adinamia, perda de peso e suores noturnos) devem ser procurados. Tam‑ bém é importante estabelecer a situação do calendário vacinal da criança, bem como o histórico de contato com indivíduos ou familiares doentes (p.ex., tuberculose) e animais.1,2 O exame físico deve ser completo e minucioso, sem se res‑ tringir à região cervical, pois as lesões podem ser de natureza secundária. A tireoide deve ser palpada, no intuito de identifi‑ car seu aumento simétrico ou não, além da presença de nodu‑ lações. Também as diferentes cadeias linfonodais devem ser avaliadas quanto a tamanho, consistência, presença ou não de sinais flogísticos, mobilidade, relação com estruturas circun‑ vizinhas e planos profundos e aspecto da pele sobrejacente.
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A definição diagnóstica de uma lesão é facilitada por sua lo‑ calização anatômica. Nesse sentido, em geral, as lesões congê‑ nitas não se relacionam às cadeias linfonodais e dividem-se entre as situadas em linha média (p.ex., cisto do ducto tireo‑ glosso) e lateralmente no pescoço (p.ex., anomalias bran‑ quiais). Por outro lado, a maioria das lesões inflamatórias e neoplásicas envolvem os linfonodos, em geral na região lateral cervical, sejam em trígonos anterior e/ou posterior. O aspecto geral da lesão – sólida ou cística – também contribui para a conclusão diagnóstica (Tabela 1). Algumas lesões cervicais dispensam a solicitação de exa‑ mes complementares diagnósticos e a conduta já é passível de ser definida. Em algumas situações, exames e inclusive a bióp‑ sia da lesão podem auxiliar ou mesmo ser indispensáveis na condução do paciente. A ultrassonografia (US) é o exame mais empregado, provendo as informações necessárias na maioria dos casos. A tomografia computadorizada (TC) com contraste e a ressonância magnética (RM) são indicadas quando há sus‑ peita de abscessos profundos, suspeita de malignidade ou malformações vasculares, exigindo sedação em crianças.1 Tabela 1 Característica das principais afecções cervicais em pediatria Etiologia
Localização em região cervical
Aspecto geral
Linfadenopatia
Inflamatória ou neoplásica
Região lateral ou linha média
Sólida
Cisto do ducto tireoglosso
Congênita
Linha média
Cística
Cisto dermoide/ teratoma
Congênita
Linha média
Sólida
Anomalias branquiais
Congênita
Região lateral
Cística
Torcicolo congênito
Congênita
Região lateral
Sólida
Anomalias vasculares
Congênita
Região lateral ou linha média
Sólida ou cística
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Lesões inflamatórias As adenopatias inflamatórias não infecciosas representam As lesões inflamatórias representam o grupo mais comum de componente inflamatório de doença sistêmica, em geral de afecções cervicais em pediatria, afetando, em sua maioria, as etiologia ignorada. Compõem esse grupo: doença de Kikuchi‑ cadeias linfonodais.3 No entanto, lesões cervicais císticas con‑ -Fujimoto (linfadenite necrotizante histiocítica), doença de gênitas também podem secundariamente inflamar ou infectar. Kawasaki (vasculite febril aguda), doença de Rosai-Dorfman É possível palpar linfonodos, notadamente em trígono an‑ (histiocitose sinusal com adenopatia maciça), doença de Cas‑ terior cervical, sem qualquer significado patológico, em 28 a tleman (hiperplasia angiofolicular linfoide, linforreticuloma 55% das crianças. Contudo, adenopatias acima de 1 cm de diâ‑ folicular), sarcoidose, entre outros. Algumas dessas lesões metro e os de qualquer tamanho em posição supraclavicular também podem evoluir com quadros supurativos.1,4 são considerados anormais. As linfadenopatias inflamatórias podem ter caráter infeccioso ou não. Como relatado previa‑ Lesões congênitas mente, história clínica e exame físico detalhados, são indis‑ As lesões congênitas cervicais representam o segundo grupo pensáveis para a conduta nesses casos. mais frequente em crianças.5,6 Para facilitar o diagnóstico, po‑ As lesões inflamatórias mais frequentes correspondem aos dem ser divididas de acordo com sua localização anatômica. chamados linfonodos reacionais, ou seja, secundários a pro‑ Entre as situadas em linha média, as mais comuns são os cis‑ cessos infecciosos virais ou bacterianos. Entre eles, infecção tos do ducto tireoglosso (DTG) e os cistos dermoides. Mais ra‑ de via aérea superior, tonsilites, otites e infecções dentárias ramente, podem surgir cistos epidermoides, teratomas, rânu‑ são comuns. Essas adenopatias são, em geral, menores que 2 a las e fendas cervicais medianas. Já na região lateral, são 3 cm de diâmetro, uni ou bilaterais, e costumam desaparecer encontradas, em geral, as anomalias branquiais e, de forma após 2 a 4 semanas, de acordo com a evolução clínica do qua‑ mais rara, o torcicolo congênito e a laringocele. Por fim, cistos dro primário e, se for o caso, à antibioticoterapia. tímicos e anomalias vasculares (hemangiomas e linfangio‑ Por sua vez, as adenopatias agudas unilaterais são comu‑ mas) podem se apresentar em qualquer localização cervical. mente causadas por infecções no próprio linfonodo por Staphylococcus aureus ou Streptococcus do grupo A. Costumam Cistos do ducto tireoglosso responder a curso de 7 a 10 dias de cefalexina, amoxicilina/ Os cistos do DTG correspondem às lesões congênitas cervicais clavulanato ou clindamicina. A qualquer tempo, podem evo‑ mais comuns. Afetam 7% da população. Em crianças, corres‑ luir com flutuação, atestando a formação de abscesso. Nessa pondem à segunda lesão cervical mais comum, com incidên‑ situação, a drenagem da lesão é necessária para o adequado cia apenas inferior às linfadenopatias. Ocorrência familiar de controle da infecção. Adenopatias cervicais agudas infeccio‑ cistos do DTG são extremamente raras, sendo o padrão de he‑ sas, reacionais ou não, nem sempre necessitam de exames de rança dominante o mais comum.5,7-9 imagem, prescindem de biópsias e possuem evolução satisfa‑ Embriologia tória.1,4 Por outro lado, há quadros infecciosos subagudos e crôni‑ A justificativa para a presença de cistos do DTG encontra-se cos em que as adenopatias persistem ou aumentam de tama‑ no desenvolvimento embriológico da glândula tireoide. Ele nho a despeito de observação clínica cuidadosa e antibiotico‑ inicia-se a partir de um divertículo, no assoalho da faringe pri‑ terapia. Entre as infecções, figuram as por micobactérias mitiva, localizado entre os complexos musculares anterior e (tuberculosas ou não), a doença da arranhadura do gato (p.ex., posterior da língua. Com abertura no forame cego (no vértice infecção por Bartonella henselae), as oportunísticas por fun‑ do “V” lingual), esse divertículo migra caudalmente, anterior à gos (p.ex., Histoplasmose, blastomicose) e parasitas (p.ex., to‑ traqueia. Nessa descida, funde-se com a 4ª e a 5ª bolsas bran‑ xoplasmose), entre outros. Nestas, é possível haver linfono‑ quiais e segue através ou adjacente ao osso hioide, até posição dos únicos ou em grande número e de diversos tamanhos, cervical inferior, na qual o esboço de tireoide se diferencia no exigindo uma investigação complementar mais criteriosa. istmo e lóbulos da glândula definitiva. Além do leucograma, sorologias diversas (p.ex., toxoplasmose, O trajeto de descida do divertículo faríngeo corresponde ao citomegalovírus, vírus Epstein-Barr e Bartonella) são solicita‑ DTG. Normalmente, ele oblitera-se entre a 5ª e a 8ª semanas de das, bem como teste cutâneo de PPD e radiografia de tórax. A gestação. Em caso de falência de seu fechamento do ducto, ele US também pode ser bastante útil. Além de ser exame inócuo, permanece após o nascimento, podendo cursar com expansão pode distinguir as adenopatias de lesões císticas inflamatórias, cística, por motivo ignorado, em alguma parte de seu trajeto. A informar sobre relações anatômicas com estruturas circunvi‑ maioria dos cistos do DTG localiza-se em região infra-hióidea, zinhas e, nas adenopatias, detalhar a arquitetura linfonodal. podendo também surgir entre o osso hioide e a base da língua e, Dependendo da evolução clínica da lesão e do resultado dos mais raramente, subesternal ou intralingual. Em alguns casos, exames complementares, pode ser necessária uma biópsia ex‑ há tecido tireoidiano ectópico dentro do cisto.5,8,9 cisional de uma das adenopatias (preferencialmente a maior delas), em especial, para descartar neoplasia.1,3,4 A Figura 1 Diagnóstico traz uma proposta de fluxograma de conduta geral na presen‑ Dois terços dos cistos de DTG são diagnosticados nas primei‑ ça de linfadenopatia com acometimento exclusivo cervical, ras 3 décadas de vida, particularmente nos primeiros 5 anos. A considerando as principais etiologias. apresentação clínica mais comum em crianças é uma lesão
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Linfadenopatia com acometimento isolado cervical
Observação
Sim Tamanho < 2 cm?
Não
Provável etiologia inflamatória ou infecciosa aguda?
Sim
Não
Avaliar necessidade de uso de antibiótico para cobrir S. aureus ou Streptococcus do grupo A
Suspeita de etiologia maligna ou congênita? Sim
Se lesão persistir ou aumentar, considerar ultrassonografia para descartar abscesso ou outra etiologia e avaliação cirúrgica
Não
Avaliação cirúrgica
Investigar outras etiologias subagudas ou crônicas
Solicitar sorologias (toxo, CMV, EDV), PPD, radiografia de tórax e ultrassonografia cervical
Consoante anamnese e exames complementares, pode haver necessidade de biópsia cirúrgica da lesão
Figura 1 Fluxograma de conduta em linfadenopatia de acometimento cervical isolado.
cística, indolor, próxima ao osso hioide, em linha média cervi‑ cal, assintomática. Um terço dos pacientes apresenta história atual ou pregressa de infecção no cisto. Essas infecções podem evoluir com drenagem externa espontânea, com ou sem for‑ mação de abscesso. Mais raramente, há queixa de mau hálito, fruto da drenagem espontânea do cisto para a cavidade oral, via forame cego lingual. Outras apresentações incomuns, como insuficiência respiratória grave ou síndrome de morte súbita, decorrem de lesões de grande tamanho ou na base da língua.5,7-9 Ao exame físico, os cistos do DTG localizam-se na linha mé‑ dia (75%) ou discretamente lateral a ela (25%). Face à relação anatômica com o osso hioide e o forame cego lingual, o cisto de DTG move-se cranialmente com a deglutição ou protrusão da língua. No entanto, essa movimentação não é patognomô‑ nica e, em crianças de tenra idade, é de observação limitada. A
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principal complicação dos cistos de DTG é infecção, decorren‑ te da comunicação com a cavidade oral. A infecção é suspeita‑ da diante do aparecimento de flutuação da lesão ou sinais flo‑ gísticos locais. O exame complementar mais empregado para diagnóstico é a US, sendo que, em crianças, apenas uma minoria apresen‑ ta imagem verdadeiramente anecoica. A maioria revela apa‑ rência de pseudopólipo, provavelmente por conteúdo líquido proteináceo, cristais de colesterol e queratina. Em caso de his‑ tórico infeccioso ou sangramento interno, cistos complexos heterogêneos, com ecos internos, podem ser vistos. Seus principais diagnósticos diferenciais são linfadenite submentoniana, cisto dermoide e tecido tireoidiano ectópico. A estreita relação dos cistos de DTG com o osso hioide à US fa‑ vorece seu diagnóstico. Por outro lado, a presença de compo‑ nente hiperecoico (por presença de gordura) e focos ecogêni‑
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cos (por presença de estruturas calcificadas) é encontrada no cisto dermoide. A US também é útil para definir ou não, a glândula tireoide tópica. A sua ausência alerta para a presença de tecido tireoi‑ diano ectópico dentro do cisto ou ao longo do trajeto do DTG. No entanto, a despeito da identificação de tireoide normal pela US, a literatura é controversa sobre a necessidade de ou‑ tros exames complementares, no intuito de diagnosticar ti‑ reoide ectópica mediana (presente em 1 a 2% dos cistos de DTG). Nesse sentido, há quem defenda a realização de cintilo‑ grafia de tireoide em todos. No entanto, a aferição dos níveis de hormônio estimulador da tireoide (TSH) associada à US é conduta mais ponderada, com a cintilografia restrita a pacien‑ tes com níveis de TSH elevados e US revelando lesão sólida. Mesmo a dosagem rotineira de TSH no pré-operatório seria desnecessária, exceto em caso de evidência clínica de hipoti‑ reoidismo. Essa aferição poderia ser feita no pós-operatório, naqueles em que o anatomopatológico do cisto revelasse teci‑ do tireoidiano associado. Ademais, mesmo a presença de teci‑ do tireoidiano no cisto não significa que seja essa a principal fonte de produção de hormônios tireoidianos.7-9 TC e RM não acrescentam informações significativas à US. Já em doença recorrente, a RM pode auxiliar no planejamento operatório, identificando trajeto fistuloso remanescente. Tratamento O tratamento cirúrgico dos cistos de DTG é recomendado para prevenir infecções, empregando o procedimento clássico de Sistrunk, que consiste na excisão completa do cisto e seu tra‑ jeto até a base da língua, englobando a porção central do osso hioide na mesma peça cirúrgica. Por risco de recorrência, deve-se evitar ressecção da lesão em vigência de processo inflamatório ou infeccioso. Nessas si‑ tuações, os cistos devem ser tratados com calor local, anti-in‑ flamatórios e/ou antibióticos e, se necessário, drenagem de abscesso (preferencialmente por punção). Em geral, recomen‑ da-se aguardar entre 4 e 6 semanas após a terapêutica clínica para se proceder à ressecção cirúrgica. As complicações operatórias mais comuns são: infecção e sangramento com formação de hematoma com potencial de causar obstrução de via aérea alta. A recorrência dos cistos de DTG é baixa (2 a 5%), quando os princípios descritos anterior‑ mente são seguidos. Menos de 1% dos cistos de DTG apresen‑ ta tecido maligno; em geral, são carcinomas papilares bem di‑ ferenciados. A maioria deles corresponde a achado incidental de pequenos focos de malignidade dentro do cisto, por ocasião de intervenção em adultos com diagnóstico de cisto de DTG.5,7 Cistos dermoides Cistos dermoides são lesões císticas com apêndices cutâneos (cabelo, folículos pilosos e glândulas sebáceas) e elementos mesodérmicos, mas sem endoderma. Sete por cento locali‑ zam-se em cabeça e pescoço, como região periorbitária (em ângulo externo do supercílio) e nasal; 20% das lesões dermoi‑ des de cabeça e pescoço são cervicais, particularmente sub‑ mentonianas. Em geral, apresentam-se como massa subcutâ‑
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nea, superficial, indolor, na região cervical mediana, móvel com a pele, em crianças menores de 3 anos de idade. São pro‑ gressivamente preenchidas com material sebáceo, o que pro‑ move crescimento gradual da lesão, podendo confundir com cistos do DTG. O tratamento é a excisão cirúrgica completa para fins diagnósticos, prevenção de infecção e motivos cos‑ méticos.7,8 Teratoma O teratoma (ou cistos teratoides) é produto de células-tronco embrionárias pluripotentes, portanto, apresentando as três camadas germinativas. A região cervical é um de seus sítios, podendo ser diagnosticado ainda no período antenatal por US, seja assintomático, seja eventualmente cursando com poli‑ drâmnio ou hidropsia fetal. A avaliação pré-natal de fetos com grandes teratomas cervicais, por US e RM fetal, permite pre‑ ver situações de risco especial que podem exigir abordagem da via aérea, por ocasião do parto, ainda antes de clampear o cor‑ dão umbilical: o chamado procedimento EXIT (ex-utero intrapartum treatment ou tratamento intraparto extraútero). No período pós-natal, a ressecção deve ser realizada, embora não haja descrição de malignidade nos teratomas cervicais pediá‑ tricos.7,8 Anomalias branquiais As anomalias branquiais representam o segundo grupo de le‑ sões congênitas cervicais mais comuns em crianças, sendo di‑ vididas segundo sua origem embriológica específica. Até 95% são anomalias do segundo aparato, até 8%, do primeiro e, mais raramente, do terceiro e quarto aparatos faríngeos.6-8 Embriologia O aparato branquial (faríngeo) consiste de 6 pares de arcos que se desenvolvem, entre a 4ª e 6ª semanas de gestação, nas paredes ventrolaterais da faringe. Desses, os quatro primeiros são bem definidos, e os últimos dois, rudimentares. Na sua co‑ bertura externa, há ectoderma e, internamente, endoderma, com mesoderma entre eles. Os arcos são separados por fendas (paredes laterais das bolsas) do lado externo e por bolsas do lado interno do embrião. Dessa forma, há 6 pares de arcos e 5 pares de fendas e de bolsas faríngeas. No desenvolvimento embriológico normal, o mesênquima gradualmente oblitera as fendas e bolsas, formando estruturas da cabeça e do pescoço, nos humanos. De modo distinto, em peixes e anfíbios, não há essa obliteração. Formam-se, então, as guelras verdadeiras, justificando o termo branquial. Por esse motivo, ao se referir a humanos, alguns autores preferem usar o termo aparato farín‑ geo em vez de branquial. Essas afecções podem se apresentar como cistos (maioria), seios ou fístulas. Os cistos podem se originar de remanescente de fenda, arco ou bolsa faríngea, e os seios, de fenda e arco, em geral comunicando-se externamente. As fístulas resultam de persistência de fendas e bolsas e comunicam-se externa e in‑ ternamente. No desenvolvimento normal, apenas o primeiro complexo fenda e bolsa permanece, formando o canal auditi‑ vo externo.6-8
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Patologia As anomalias branquiais podem apresentar epitélio escamoso e/ou respiratório. As lesões císticas, em geral, possuem epité‑ lio escamoso, podendo conter líquido mucoide com cristais de colesterol. Os seios e as fístulas apresentam epitélio colunar, ciliado. Embora bastante raro, há descrição de carcinoma de células escamosas em anomalias branquiais, na idade adulta. Diagnóstico e conduta Cada anomalia branquial apresenta particularidades quanto à sua apresentação clínica e exame físico. Em linhas gerais, o tratamento definitivo de todas elas é a ressecção completa ci‑ rúrgica. Se não realizada, há elevado risco de infecção. Apesar disso, diante de detalhes técnicos, alguns defendem que a exérese seja protelada até os 2 ou 3 anos de idade. Em caso de infecção, ela deve ser tratada inicialmente, antes da aborda‑ gem operatória definitiva. Anomalias do segundo aparato branquial As anomalias do segundo aparato faríngeo representam o sub‑ grupo mais comum.6-8 Afetam igualmente crianças de ambos os sexos, e 3 a 10% são bilaterais. Podem estar associadas com outras afecções congênitas, como a síndrome branquio-otor‑ renal ou síndrome de Melnick-Fraser.5 A maioria dessas lesões são cistos associados ou não a seios e fístulas. São classificadas em quatro tipos. As do tipo I são anteriores ao esternocleidomastóideo (ECM), sem contato com a carótida, enquanto as do tipo II (as mais comuns) posi‑ cionam-se profundamente ao ECM e adjacentes à bainha ca‑ rotídea. Por sua vez, as do tipo III passam entre as carótidas externa e interna, podendo se estender para a parede lateral da faringe, enquanto as do tipo IV são mediais à bainha carotí‑ dea e diretamente adjacente à faringe e à fossa tonsilar. A apresentação típica é de uma massa cervical indolor, em região lateral cervical, ao longo da borda anterior do ECM ou próximo do ângulo da mandíbula. Em caso de infecção sobre‑ jacente, é possível haver sinais flogísticos locais, febre, adeno‑ patia, torcicolo, disfagia, quadro de tonsilite recorrente e até comprometimento respiratório. Na infância, outra apresenta‑ ção é como fístula com drenagem crônica, cujo orifício externo também se localiza na borda anterior do ECM, em parte infe‑ rior do pescoço. O exame físico associado à US costuma ser suficiente para indicar a terapêutica cirúrgica que deve incluir a retirada com‑ pleta da lesão, evitando recorrência. Em caso de fístulas, a sua cateterização inicial e o emprego de incisões cervicais escalo‑ nadas são necessários para a sua exérese completa. Outras anomalias de aparato branquial As anomalias do primeiro aparato branquial são raras, sendo mais comuns em meninas, e de difícil diagnóstico. Em geral, cursam como cistos próximos ao canal auditivo externo e/ou glândula parótida, em estreita proximidade com os ramos do nervo facial.6-8 Quando há sintomas, crianças podem apresen‑ tar otorreia, drenagem de conteúdo purulento próximo à orelha ou ao nível do ângulo da mandíbula e rápido aumento da região
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parotídea. Otoscopia cuidadosa é parte importante na avalia‑ ção. US, TC e RM podem ser empregadas para definir a anato‑ mia das lesões. Entre as anomalias branquiais, as de primeiro aparato são as de ressecção cirúrgica tecnicamente mais difícil, por vezes necessitando realizar parotidectomia superficial. As anomalias do terceiro e quarto aparato branquial são muito raras e usualmente cursam com orifício externo, ante‑ rior ao ECM, próximo do polo superior da tireoide, sendo que, nas do quarto, o seu trajeto corre inferior ao nervo laríngeo su‑ perior. Uma apresentação comum é quadro de tireoidite supu‑ rativa aguda por fístula interna, quase sempre do lado esquer‑ do do pescoço. Exames como esofagograma com bário, TC e laringoscopia direta podem auxiliar na identificação do trajeto fistuloso. Em alguns casos, é necessário hemi-tireoidectomia ipsilateral ou exérese parcial da cartilagem tireóidea para obter ressecção completa da lesão.6 Torcicolo congênito O termo torcicolo deriva do latim “torus” (rodado) e “collum” (pescoço). Essa entidade pode ser congênita (fibromatosis coli) ou adquirida. O torcicolo muscular congênito ou “tumor do ECM da infância” apresenta-se no período neonatal (2 a 4 semanas de vida), com incidência estimada abaixo de 1%. Sua etiologia é ignorada, com eventos perinatais sendo propostos para explicar a fibrose do ECM. Em geral, o ECM afetado pro‑ duz tração da cabeça para o lado ipsilateral e sua rotação para o lado contralateral à lesão. O exame físico pode revelar uma lesão sólida, bem circunscrita e firme no terço inferior do ECM, que pode ser corroborada pela US. Fisioterapia e medidas pos‑ turais são os pilares do tratamento, com resolução completa na maioria dos casos em até 6 a 8 meses. Mesmo assimetria craniana (plagiocefalia) que eventualmente surge nos primei‑ ros meses pode desaparecer com a terapêutica. Por outro lado, em caso de não resposta após 1 ano ou em situações de assi‑ metria facial progressiva, a intervenção cirúrgica é indicada.10 Cistos tímicos Lesões císticas tímicas podem se desenvolver por não involu‑ ção do ducto timofaríngeo que, no período embriológico, mi‑ gra caudalmente para o mediastino. A maioria é assintomática e apresenta-se na 1ª década de vida. Se evoluir com hemorra‑ gia ou infecção, podem cursar com disfagia, rouquidão, dor cervical e mesmo desconforto respiratório. Em geral, locali‑ zam-se anterior ou profundo ao ECM, notadamente em região cervical lateral esquerda, com íntima associação com a bainha carotídea, mas podendo se estender para região mediana em direção ao mediastino. Ao exame físico, eles podem aumentar de tamanho, durante manobras de Valsalva. A histologia da parede desses cistos revela tecido tímico, com presença de corpúsculos de Hassal (que caracterizam o timo) em 50% de‑ les. O diagnóstico pré-operatório por imagem, notadamente por US, é difícil, sendo mais útil para a definição da extensão da lesão. O tratamento é a ressecção cirúrgica completa, desde que seja documentado um timo normal no mediastino. Se o cisto se estende até o timo normal, ele deve ser preservado, evitando o risco de uma timectomia total.6-8
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Afecções Cervicais •
Anomalias vasculares Segundo a Sociedade Internacional de Estudos de Anomalias Vasculares (ISSVA), as anomalias vasculares são divididas em tumores e malformações vasculares e ambas podem afetar a região cervical. A etiologia dos tumores vasculares (p.ex., he‑ mangiomas) é a proliferação de células endoteliais, enquanto nas malformações há erros na morfogênese de canais vascula‑ res ou linfáticos. As malformações vasculares, por sua vez, são subdivididas de acordo com o tipo de canal anômalo predomi‑ nante (capilar, venoso, linfático, arterial ou combinado) e suas características de fluxo.11,12 Hemangiomas Os hemangiomas são os tumores vasculares mais comuns na infância, sendo que 30% são visíveis ao nascimento e 70% o são após as primeiras semanas de vida; 60% dos hemangio‑ mas acometem a região da cabeça ou do pescoço. Como a maioria dos hemagiomas involui com pouco ou nenhum dano, a conduta é basicamente expectante. A decisão de intervir de‑ pende de fatores como: tamanho e localização da lesão, pre‑ sença de complicações que possam ocasionar dano a órgão importante ou risco de morte, idade da criança e fase de cres‑ cimento em que se encontra a lesão. Hemangiomas cervicais com acometimento de via aérea, por exemplo, devem ser tra‑ tados. A abordagem preferencial tem sido medicamentosa, evitando o risco das ressecções cirúrgicas. O propranolol tem se tornado droga de primeira linha terapêutica, reservando corticosteroide e vincristina para situações refratárias não passíveis de exérese.12,13 Linfangiomas Antigamente chamado de “higroma cístico”, o linfangioma re‑ presenta malformação vascular linfática cística que acomete, em cerca de 50% dos casos, a região de cabeça e pescoço. Con‑ soante a morfologia dos cistos, é classificado em microcístico, macrocístico ou misto. Ao contrário dos hemangiomas, os linfangiomas estão pre‑ sentes ao nascimento, como lesões indolores, embora possam ser evidentes apenas após alguns meses ou anos. Apresentam crescimento lento mantido, sem involução espontânea. Em sua maioria, afetam a região lateral do pescoço, podendo se estender anteriormente, bem como para o mediastino. Alguns podem ser diagnosticados ainda no período intrauterino. Em caso dos situados em região cervical posterior, podem coexis‑ tir outras anomalias, incluindo associação com síndrome de Turner, quando não é rara a evolução para hidropisia e óbito fetal. Assim como os teratomas, a avaliação pré-natal é capaz de identificar linfangiomas cervicais com potencial de obstru‑ ção grave de via aérea no pós-natal, podendo igualmente exi‑ gir o procedimento EXIT. No período pós-natal, US, TC e RM podem ser utilizadas para definir a extensão e a morfologia da lesão. Os linfangio‑ mas são passíveis de infecção, a qual deve ser conduzida clini‑ camente. A ressecção cirúrgica é o tratamento padrão, contu‑ do, nem sempre é fácil e, às vezes, é mesmo impossível, face à tendência da lesão em violar planos teciduais e circundar es‑
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truturas neurovasculares. Nos casos de lesões macrocísticas, opta-se preferencialmente por escleroterapia, no intuito de evitar ou minimizar a extensão da ressecção. Bleomicina e, principalmente, OK-432 (picibanil) são as drogas mais utiliza‑ das para esse fim. A resposta inflamatória desencadeada pro‑ duz esclerose e fibrose, com resposta completa em mais de 90% das lesões macrocísticas. Por outro lado, independente‑ mente da terapia utilizada, os resultados nas malformações microcísticas e mistas são muito menos alentadores.12 Lesões neoplásicas As lesões neoplásicas cervicais, sejam benignas ou malignas, correspondem ao grupo com menor incidência em crian‑ ças.1,2,4 Entre as benignas, destacam-se: lipoma, fibroma, neurofi‑ broma (presentes nas neurofibromatoses) e nódulos tireoidia‑ nos. Os lipomas possuem origem mesenquimal, são raros em crianças e localizam-se geralmente em trígono posterior cervi‑ cal. A remoção cirúrgica é indicada por fatores estéticos ou desconforto local. Nódulos tireoidianos são incomuns em crianças. No entan‑ to, possuem risco 2 vezes superior que em adultos de serem malignos. Há controvérsia sobre o uso de biópsia de agulha fina como primeiro passo na investigação desses nódulos, em crianças. Uma vez empregada tal biópsia, a ressecção cirúrgica é recomendada se houver comprovação de malignidade, cito‑ logia incerta ou progressão do tamanho do nódulo.14 Há várias lesões malignas que podem se associar a adeno‑ patia cervical, em crianças. Nos primeiros 6 anos de vida, neu‑ roblastoma e leucemia são as mais comuns, seguidas por rab‑ domiossarcoma e linfoma não Hodgkin. Após os 6 anos de idade, a doença de Hodgkin é a mais frequente, seguida do rabdomiossarcoma e do linfoma não Hodgkin.4 Entre os linfomas, 10% dos linfomas não Hodgkin afetam região de cabeça e pescoço, sendo o subtipo histológico mais encontrado o de células pequenas não clivadas (tipicamente originado de células B). Em geral, acometem crianças entre 7 e 11 anos de idade como uma massa em tecidos extranodais. Por outro lado, a doença de Hodgkin é quase exclusiva de ori‑ gem nodal e com predileção para desenvolver adenopatia cer‑ vical ou supraclavicular indolor. É raro em crianças menores de 10 anos, sendo responsável por 5% de todos os cânceres pediátricos.2 Nos linfomas, as adenopatias cervicais podem estar asso‑ ciadas a massas mediastinais. Esses pacientes devem ser cui‑ dadosamente avaliados antes da realização da biópsia cirúrgi‑ ca, pelo risco de compressão de via aérea durante a anestesia. Em situações de maior risco, opta-se por procedimento sob anestesia local. Ao contrário dos adultos, o emprego de bióp‑ sia por agulha fina para adenopatias suspeitas em crianças é controverso. O rabdomiossarcoma é o mais comum sarcoma de partes moles em pediatria, sendo o tipo embrionário o mais comum; 35 a 40% deles acometem região de cabeça e pescoço, notada‑ mente órbita, nasofaringe, ouvido médio, cavidade nasal e seios paranasais.2,4
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Suspeitar de malignidade em adenopatias com 2 ou mais centímetros, que persistem acima de 8 semanas, com ou sem aumento, e naquelas da fossa supra clavicular. • Ter conhecimento de que o cisto tireoglosso (CT) é afecção de linha média, móvel com a deglutição; já as lesões traqueais e os higromas císticos são afecções da região lateral cervical. • Indicar a US cervical, no pós-operatório de CT, para avaliar a presença da glândula tireoide tópica. • Saber que o torcicolo congênito não tratado pode levar a defeitos musculoesqueléticos definitivos. • Encaminhar à cirurgia os casos de torcicolo congênito não curados com medidas fisioterápicas até 1 ano de idade ou que, apesar delas, apresentam assimetria facial progressiva.
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CAPÍTULO 11
DEFORMIDADES TORÁCICAS José Carlos S. de Fraga
Introdução As deformidades congênitas da parede torácica são comumen‑ te divididas em 5 categorias: pectus excavatum, pectus carinatum, síndrome de Poland, defeitos esternais e distúrbios difu‑ sos do esqueleto acompanhados por deformidades do tórax. Pectus excavatum Deformidade mais comum da parede torácica anterior, decor‑ rente de depressão do esterno e das cartilagens costais inferio‑ res. É mais frequente em meninos do que em meninas (3:1), ocorrendo em aproximadamente 1 em cada 1.000 crianças. É a malformação mais comum da parede torácica, compreenden‑ do 88% de todas as patologias. Em 90% dos casos, é notado no 1º ano de vida. A etiologia ainda permanece incerta, mas a associação com escoliose (incidência de 15%) e síndrome de Marfan sugere que algum defeito do tecido conjuntivo possa estar envolvido. As crianças mostram-se com um espectro variado de apre‑ sentações, desde casos com depressão leve até aqueles em que o esterno localiza-se próximo aos corpos vertebrais (Figu‑ ra 1A). As consequências da depressão do esterno na função cardiopulmonar ainda são discutíveis, embora alguns pacien‑
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tes refiram melhora da tolerância ao exercício após a correção cirúrgica. Na avaliação inicial, todos os pacientes realizam anamnese e exame físico completos, de preferência com documentação fotográfica. Aqueles com defeitos leves ou moderados são tra‑ tados com exercícios e atividades posturais. Aqueles com de‑ feitos severos são submetidos a alguns exames (função pul‑ monar, tomografia computadorizada [TC] ou ressonância magnética [RM] de tórax, avaliação cardíaca por eletrocardio‑ grama [ECG] e ecocardiografia) para avaliar a necessidade de cirurgia. A TC é extremamente útil, pois ela demonstra o grau de compressão e deslocamento cardíaco, a extensão da com‑ pressão pulmonar e a presença de atelectasia, assimetria do tórax, torção do esterno e ossificação das cartilagens em pa‑ cientes com reparo cirúrgico prévio. Ela também é útil para de‑ terminar o índice de gravidade do defeito, que é a medida obti‑ da dividindo-se o diâmetro transverso pelo diâmetro anteroposterior do tórax (Figura 2). A maioria dos pacientes não necessita de correção cirúrgica. A cirurgia é indicada nas crianças que apresentem manifesta‑ ções clínicas decorrentes do defeito esternal, quando a com‑ pressão estiver ocasionando doença obstrutiva ou restritiva
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Figura 1 (A) Criança com pectus excavatum simétrico. (B) Resultado precoce após correção do pectus excavatum por técnica cirúrgica aberta (Ravitch). (C) Resultado tardio após correção do pectus excavatum por técnica cirúrgica minimamente invasiva (Nuss).
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das vias aéreas, ou alterações cardíacas (sopros, prolapso mi‑ tral ou anormalidades de condução ou de ritmo cardíaco), quando o defeito estiver ocasionando problemas psicológicos, ou naquelas que apresentem índice de gravidade do defeito maior que 3,2. Embora a cirurgia possa ser realizada com bons resultados em crianças muito jovens, o momento ideal para realizar a correção cirúrgica é de 11 a 14 anos. Nessa idade, o paciente apresenta cavidade torácica amolecida e maleável, possibilitando excelentes resultados cirúrgicos, com rápido retorno às atividades habituais. A correção cirúrgica pode ser realizada por cirurgia aberta ou convencional (cirurgia de Ra‑ vitch), com ressecção de cartilagens costais deformadas (Figu‑ ra 1B) ou por reparo minimamente invasivo (Figura 1C), por meio da colocação de barras metálicas retroesternais (cirurgia de Nuss). Procura-se evitar a realização da técnica aberta ou convencional em crianças menores, pois a perda de cresci‑ mento das costelas após a remoção das cartilagens costais pode resultar em restrição da cavidade torácica e do desenvol‑ vimento pulmonar (distrofia torácica asfixiante adquirida ou síndrome de Jeune adquirida).
Figura 2 Índice, na tomografia computadorizada, calculado pela divisão do diâmetro transverso pelo diâmetro anteroposterior do tórax.
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Pectus carinatum Menos comum que a deformidade anterior, o pectus carinatum, ou protrusão torácica, é responsável por somente 5% das de‑ formidades torácicas congênitas. Afeta mais meninos do que meninas (4:1) e, em quase metade dos pacientes, a deformida‑ de não é notada ao nascimento, mas, sim, somente após o iní‑ cio da puberdade. A apresentação mais frequente é a protrusão simétrica ou assimétrica da porção inferior do esterno, bem como das carti‑ lagens costais. Quando a deformidade ocorre no manúbrio e na porção superior do esterno, ela é denominada condroma‑ nubrial (deformidade de Currarino-Silverman); quando ocorre na porção inferior ou no denominado corpo do esterno, ela é chamada de condrogladiolar (Figura 3A). Podem ocorrer disp‑ neia ou taquipneia durante exercício. São relatadas como doenças associadas: alterações da válvula mitral, síndrome de Marfan e escoliose. Pela apresentação clínica mais tardia, a maioria dos pacientes procura atendimento já na adolescência. A avaliação inicial desses pacientes é semelhante àqueles com pectus excavatum, realizando-se anamnese e exame físi‑ co completos, associados à documentação fotográfica. A maioria dos pacientes não requer cirurgia. Entretanto, aquelas crianças que apresentam defeitos severos, algum sintoma re‑ lacionado ou com problemas psicológicos decorrentes da alte‑ ração torácica têm indicação de correção cirúrgica. Tentativa de tratamento de pectus carinatum com colete ortopédico tem sido relatada com sucesso no tratamento de crianças de pe‑ quena idade. Nas crianças maiores, o sucesso não é o mesmo em razão da dificuldade e do desconforto no uso desses equi‑ pamentos. A correção do pectus carinatum pode ser realizada pela téc‑ nica aberta/convencional (Figura 3B) ou por cirurgia minima‑ mente invasiva. A técnica aberta preconiza a remoção das car‑ tilagens mal posicionadas de ambos os lados, fratura do esterno, que é deslocado inferiormente, e manutenção do pe‑ ricôndrio para orientação do crescimento das novas cartila‑ gens. Importante enfatizar que a ressecção das cartilagens deve ser sempre bilateral, mesmo nas crianças com defeito unilateral (Figura 3). Recentemente, tem sido descrita a corre‑ ção desse defeito pela colocação de uma barra metálica ante‑
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Figura 3 (A) Pectus carinatum condrogladiolar. (B) Pós-operatório de pectus carinatum condrogladiolar.
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Deformidades Torácicas •
rior ao esterno, que é passada abaixo da musculatura e do sub‑ cutâneo da parede torácica. A barra é fixada nas costelas após compressão e depressão do esterno. Embora essa técnica ain‑ da esteja sob avaliação, ela parece ser promissora na correção do pectus carinatum. Síndrome de Poland É uma síndrome de ocorrência esporádica, estimada em 1 a cada 30.000 nascidos vivos. Várias causas têm sido sugeridas, incluindo migração anormal de tecidos embrionários envolvi‑ dos na formação da musculatura peitoral, hipoplasia da arté‑ ria subclávia ou trauma intraútero, mas nenhuma dessas teo‑ rias tem sido uniformemente aceita. A síndrome de Poland não parece ser genética, embora possa ocorrer dentro de de‑ terminadas famílias. A síndrome tem apresentação clínica muito variável, com um ou mais dos seguintes achados: ausência dos músculos peitoral maior ou menor, serrátil anterior, reto abdominal e grande dorsal; atelia ou amastia ou deformidades do mamilo; deformidades de membros (sindactilia ou braquidactilia); au‑ sência de pelos e tecido subcutâneo anormal na axila (Figu‑ ra 4). É mais comum em meninos (70% das vezes), sendo que o lado direito do tórax é mais comumente envolvido. O tratamento cirúrgico é raramente necessário, estando in‑ dicado naqueles pacientes que apresentam ausência de algu‑
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ma costela ou que apresentem severa depressão do tórax afe‑ tado. Na reconstrução da parede torácica, podem ser usados enxertos de cartilagens autólogas ou alguma variedade de pró‑ tese biológica, com ou sem rotação do músculo grande dorsal. Nas meninas com hipoplasia da mama ou amastia, a recons‑ trução da parede torácica deve ser realizada antes da recons‑ trução mamária. Defeitos esternais Os defeitos esternais são bastante raros quando comparados aos defeitos anteriores. São defeitos na linha média, podendo variar desde pequenos defeitos do esterno até sua ausência, com ou sem exposição da área cardíaca. A fenda ou fissura esternal é rara (cerca de 0,15% de todas as malformações em alguma séries), e decorre da fusão incom‑ pleta do esterno durante a formação embriológica. Esses de‑ feitos são classificados como completo ou incompleto, bem como superior ou inferior. Os defeitos superiores são em for‑ ma de “U” ou “V”, e são frequentemente malformações isola‑ das (Figura 5). O coração está em posição normal e raramente há alguma malformação intracardíaca. A maioria das crianças com esterno bífido incompleto é assintomática, e a correção cirúrgica deve ser realizada para permitir proteção ao coração e grandes vasos. A cirurgia é eletiva, e deve ser realizada de preferência no período neonatal, já que as porções do esterno
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Figura 4 Criança de 4 anos com síndrome de Polland apresentando (A) ausência de músculo peitoral maior e (B) ausência e diminuição do tamanho (braquidactilia) dos dedos das mãos.
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Figura 5 (A) Recém-nascido com fissura esternal parcial superior. (B) Na cirurgia, defeito em forma de “V”, que é aproximado primariamente. (C) Resultado final da correção cirúrgica.
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podem ser aproximadas com mais facilidade, dada a flexibili‑ dade e a mínima compressão das estruturas mediastinais (Fi‑ gura 5). O reparo cirúrgico é mais difícil após 1 ano de idade, podendo haver necessidade do uso de enxerto autólogo ou uso de material sintético. As malformações do esterno com ectopia cardíaca são le‑ sões em que não há estrutura somática cobrindo o coração. Elas são malformações muito raras e, em geral, ocorrem asso‑ ciadas a algumas formas de defeito da parede abdominal. Alte‑ rações intracardíacas são comuns, especialmente tetralogia de Fallot, estenose da artéria pulmonar, transposição de grandes vasos e defeitos do septo ventricular. A cirurgia está indicada com o objetivo principal de cobrir o coração, preservar o débito cardíaco prevenindo torções dos grandes vasos no momento da redução do coração para dentro do tórax, reparo concomi‑ tante de defeitos da parede abdominal e estabilização da pare‑ de torácica a fim de possibilitar respiração espontânea. Infeliz‑ mente, a sobrevida cirúrgica é rara, especialmente porque o retorno do coração para a cavidade torácica é mal tolerada. As malformações do esterno com ectopia cardíaca tora‑ coabdominal (pentalogia de Cantrell) envolvem lesões na qual o coração é coberto por uma membrana semelhante àquela da onfalocele. As malformações intracardíacas são comuns, es‑ pecialmente a tetralogia de Fallot e os defeitos septais ventri‑ culares. A pentalogia de Cantrell consiste na ocorrência de fenda ou ausência do terço inferior do esterno, ectopia do co‑ ração, defeitos de linha média da parede abdominal ou onfalo‑ cele, defeitos pericárdicos e malformação cardíaca. Reparo ci‑ rúrgico nesses pacientes é muito mais factível do que na ectopia cardíaca e envolve a cobertura do defeito de linha mé‑ dia, separação do compartimento pericárdico do abdome e re‑ paro do defeito diafragmático. O defeito cardíaco intrínseco é reparado mais tarde. Síndromes de insuficiência torácica associadas a distúrbios esqueléticos difusos A síndrome de insuficiência torácica pode ser definida como qualquer distúrbio que impeça o tórax de suportar respiração espontânea e crescimento pulmonar. Ela envolve um grande espectro de doenças que incluem distrofia torácica asfixiante (síndrome de Jeune), distrofia torácica asfixiante adquirida (após correção de pectus excavatum pela técnica aberta), dis‑ plasia espondilotorácica (síndrome de Jarcho-Levin), escolio‑ se congênita com múltiplas anormalidades vertebrais, com ausência ou fusão de costelas, e cifoescolioses severas. Esses distúrbios têm sido avaliados como entidades separadas, mas devem ser tratados preferencialmente por um grupo de espe‑ cialistas pediátricos, com participação de cirurgião pediátrico, ortopedista e pneumologista.
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A cirurgia para corrigir essas alterações torácicas tem usado várias técnicas cirúrgicas com o objetivo de aumentar o volume da caixa torácica. Isso pode ser feito por esternotomia longitu‑ dinal e afastamento do esterno, que é posteriormente fixado com metilmetacrilato, enxertos ósseos ou de cartilagem ou uti‑ lização de barras de metal. Essas técnicas têm resultados mui‑ to pobres e acabam resultando em hospitalização prolongada e falência respiratória. Uma técnica promissora e com bons re‑ sultados iniciais tem sido o uso de prótese de titânio expansí‑ vel colocada verticalmente nas costelas, que permite a expan‑ são progressiva da cavidade torácica e da coluna vertebral. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer as cinco categorias de malformações torácicas observadas na criança. • Ratificar que o pectus excavatum é a malformação mais frequente na idade pediátrica, comumente observada ao nascimento, com defeito apresentando amplo espectro de gravidade e com necessidade de cirurgia na minoria dos pacientes que apresentam manifestações clínicas decorrentes de compressão de órgãos intratorácicos, defeito severo ou por razões psicológicas. • Embora bem menos frequente, e observado especialmente na puberdade, o pectus carinatum pode necessitar de correção se for sintomático, defeito severo ou por razões psicológicas. • Diagnosticar e orientar crianças portadoras de síndrome de Poland, defeitos esternais congênitos e com dificuldade respiratória decorrente de síndromes com distúrbios esqueléticos difusos.
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CAPÍTULO 12
HÉRNIA INGUINAL, HIDROCELE E CISTO DE CORDÃO ESPERMÁTICO Paulo Juvêncio Gomes Tubino Elaine Maria de Oliveira Alves
Hérnia inguinal • hérnia inguinal estrangulada: conteúdo irredutível, sem tran‑ Definição siluminação, acompanhada de dor, vômitos e parada do trân‑ Entrada de alguma parte do conteúdo abdominal em um pro‑ sito intestinal. cesso vaginal persistente. Tratamento Incidência • Indicação operatória: logo após o diagnóstico; Cerca de 1 a 3% das crianças têm hérnia inguinal. Em prema‑ • pré-operatório: rotina pré-operatória mínima (ausculta car‑ turos, a incidência varia de 3 a 5%. Até 80% dos casos ocorrem diopulmonar, exame da pele, hemograma e coagulograma em crianças com menos de 6 meses de idade. completos); • operação: herniorrafia inguinal (ligadura alta do processo va‑ Sexo ginal); A relação sexo masculino:sexo feminino é de cerca de 9:1. • pós-operatório: alta hospitalar e realimentação quando a criança estiver bem acordada; não há retirada de pontos cirúr‑ Lateralidade gicos, visto que a sutura é intradérmica, com fio absorvível. O Em 60% dos casos, ocorre à direita; em 25%, à esquerda; e em curativo é feito com colódio elástico não sendo necessário tro‑ 15%, bilateralmente. cá-lo. Diagnóstico Abaulamento intermitente na região inguinal, no escroto ou nos grandes lábios, notado nas ocasiões de aumento da pres‑ são intra-abdominal. A palpação do cordão espermático con‑ tra o púbis mostra seu espessamento em virtude do processo vaginal persistente. Na menina, principalmente na lactente, pode haver hérnia por deslizamento, contendo a trompa e, principalmente, o ovário. Em geral, não é redutível, mas raramente há comprome‑ timento vascular nesses casos. Diagnóstico diferencial • Hidrocele: transiluminação e irredutibilidade; • hidrocele comunicante: conteúdo transiluminável e variações lentas de volume; • orquite: sinais e sintomas de infecção; • testículo retrátil: bolsa testicular vazia intermitentemente; • anomalias de posição do testículo (criptorquia, ectopia): au‑ sência permanente do testículo no escroto;
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Diversos trabalhos mostraram que, nas hérnias inguinais uni‑ laterais, algum tempo após a operação, houve o aparecimento de hérnia contralateral, gerando a dúvida se seria melhor ex‑ plorar o outro lado no primeiro ato cirúrgico, a fim de evitar nova anestesia.1 Nesses casos, a conduta recomendada atualmente é: com a criança anestesiada, examina-se deti‑ damente (sempre dois cirurgiões) o lado oposto ao da hér‑ nia a ser operada; se houver qualquer suspeita de persistên‑ cia do processo vaginal contralateral, é indicada a exploração cirúrgica do outro lado após o término da her‑ niorrafia unilateral proposta inicialmente.2,3 Com essa con‑ duta cuidadosa, que é informada aos pais da criança e auto‑ rizada por eles previamente, são obtidos excelentes resultados. Essa conduta é ditada pela história natural da evolução do processo vaginal: a persistência do processo vaginal diminui com a idade. Em crianças operadas com 2 meses ou menos de idade, a taxa de permeabilidade foi de 63% em alguns trabalhos e, aos 2 anos, caiu para 41%. Em estudos anatômicos e de necropsias em adultos que falece‑
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ram sem nunca ter tido hérnia clínica, a taxa é de aproxi‑ madamente 15%.4
Incidência Hidroceles são comuns em meninos pequenos. Como as hér‑ nias, são mais frequentes à direita que à esquerda, mas podem ser bilaterais.
Hérnia inguinal encarcerada e/ou estrangulada Definição Diagnóstico Em geral, a hérnia inguinal tende a se reduzir espontaneamen‑ Transiluminação positiva, consistência cística e variações de te, embora possa permanecer exteriorizada durante minutos volume na hidrocele comunicante. ou horas. Quando a redução espontânea não ocorre, trata-se Diagnóstico diferencial de hérnia encarcerada. Mais da metade dos casos ocorre no primeiro ano de • Hérnia inguinal: conteúdo não transiluminável; vida, sobretudo nos primeiros 6 meses. Se o encarceramen‑ • hérnia inguinal estrangulada: dor, vômitos, parada do trânsi‑ to estiver presente por várias horas, pode haver vômitos, to intestinal; dor em cólica, distensão abdominal e parada na eliminação • tumor do testículo: testículo de consistência firme, não tran‑ de fezes e gases. Se a hérnia não for reduzida, há compro‑ siluminável, com volume aumentado; em 40% dos casos de metimento da vascularização, caracterizando hérnia es‑ tumores testiculares há hidrocele associada. trangulada, que é rara, embora o encarceramento seja ra‑ Tratamento zoavelmente frequente em lactentes. 1. Indicação operatória: nas hidroceles da vagina e do cordão, Diagnóstico diferencial após os 6 meses de idade, se não houver regressão espontâ‑ Hidrocele, torção do testículo, orquite e tumor do testículo nea, e nas hidroceles comunicantes, após o diagnóstico (não (principalmente pela história clínica). há risco de encarceramento, mas não há cura espontânea). 2. Pré-operatório: rotina pré-operatória mínima (ausculta car‑ Tratamento diopulmonar, exame da pele, hemograma e coagulograma 1. Indicação operatória: verificar o tempo de encarceramento e, completos). em até 12 horas, tentar a redução manual. A redução deve ser 3. Operação: ressecção parcial da túnica vaginal em todos os ca‑ tentada com sedação, posição de Trendelemburg, bolsa de sos e ligadura alta do processo vaginal nas hidroceles comuni‑ gelo sobre a hérnia e manobras delicadas após cerca de 30 mi‑ cantes. nutos de espera. Se a hérnia for reduzida, a operação deve ser 4. Pós-operatório: alta hospitalar e realimentação quando a feita após 24 horas. Se essa tentativa não for bem-sucedida, a criança estiver bem acordada. Não há retirada de pontos ci‑ exploração cirúrgica imediata está indicada. rúrgicos, visto que a sutura é intradérmica, com fio absorvível. 2. Pós-operatório: O curativo é feito com colódio elástico, não sendo necessário • com ressecção intestinal: dieta oral zero, sondagem gástrica, trocá-lo. hidratação venosa e realimentação quando houver peristal‑ tismo franco (ruídos peristálticos audíveis e eliminação de Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: gases); • Indicar a operação, o mais precocemente possível após • sem ressecção intestinal: alimentação oral quando houver o diagnóstico, das hérnias inguinais, principalmente até peristaltismo franco; alta hospitalar após definição do qua‑ os 6 meses de idade em vista da probabilidade maior dro clínico. de encarceramentos nesta faixa etária. Muitas vezes, a Como a sutura é intradérmica com fio absorvível e o curativo é feito com colódio elástico, não há necessidade de retirar pon‑ tos ou trocar curativos. Hidrocele Definição • Hidrocele vaginal: coleção de líquido circunscrita à túnica va‑ ginal própria do testículo, com obliteração da porção proximal do processo vaginal; é a mais comum; • hidrocele do cordão: coleção de líquido no processo vaginal com obliteração nas porções proximal e distal; é rara; • hidrocele comunicante: obliteração parcial do processo vagi‑ nal, permitindo a passagem lenta de líquido da cavidade peri‑ toneal.
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família quer adiar por algum motivo (festas, aniversários, viagens) e o pediatra não deve concordar. • Orientar que as hidroceles, bastante comuns em recém ‑nascidos e lactentes, não oferecem risco algum e que a conduta é observar sua involução espontânea, o que acontece quase sempre, sem necessidade de indicação cirúrgica. • Fazer o diagnóstico diferencial das hidroceles por meio da transiluminação com uma pequena lanterna comum. • Orientar que nas operações para correção de hérnias e hidroceles não há necessidade de antibioticoterapia preventiva ou profilática. São operações, se feitas por cirurgiões pediatras, que não entram na cavidade peritoneal, são rápidas, atraumáticas e com isso a contaminação praticamente não existe.
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Hérnia Inguinal, Hidrocele e Cisto de Cordão Espermático •
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CAPÍTULO 13
LESÕES DAS VIAS BILIARES INTRA E EXTRA-HEPÁTICAS Paulo Carvalho Vilela
Litíase biliar na infância cientes pediátricos. Colecistite e pancreatite biliar são ocor‑ Características do grupo pediátrico rências raras, mesmo em adolescentes. A formação de cálculos na via biliar é uma ocorrência frequen‑ O emprego de técnicas minimamente invasivas, como a te em adultos, respondendo pela maior parte das cirurgias ab‑ videolaparoscopia, tem sido utilizado com frequência na dominais realizadas. No grupo pediátrico, englobando crian‑ faixa etária pediátrica, tornando a resolução dos casos de ças e adolescentes, a doença litiásica tem características colelitíase menos traumática também nas crianças. Pode‑ peculiares de apresentação, está associada a outras patologias -se dizer que a colecistectomia videolaparoscópica já é con‑ e tem implicações terapêuticas diferentes da colelitíase do siderada padrão de referência no tratamento da colelitíase adulto. para os pacientes pediátricos. A principal característica da colelitíase pediátrica é sua associação com as anemias hemolíticas (esferocitose, Fisiopatologia doença falciforme e talassemias), em cerca de 20% dos ca‑ A bile tem três elementos principais: colesterol, pigmentos bi‑ sos,1 estando a prevalência dessa complicação relacionada liares e sais biliares. É produzida de forma constante pelo fíga‑ ao nível de hemólise induzida pela doença. A saturação da do e armazenada na vesícula biliar, na qual ocorre absorção de bile pela bilirrubina decorrente dessa destruição acelerada água pela mucosa, aumentando sua concentração. A colecis‑ das hemácias favorece a formação de cálculos de pigmento. tocinina produzida no duodeno em resposta à ingestão de gor‑ Outro aspecto peculiar da colelitíase infantil é a resolu‑ dura produz um movimento coordenado entre a contração da ção espontânea dos cálculos presentes em neonatos e vesícula e o relaxamento do esfíncter de Oddi, esvaziando seu crianças com menos de 2 anos de idade.2 O diagnóstico des‑ conteúdo no duodeno. sa condição tem se tornado cada vez mais frequente, em A estase da bile na vesícula e o aumento da concentra‑ virtude do aumento da utilização da ultrassonografia em ção de pigmentos biliares ou colesterol são os fatores que recém-nascidos. Pode-se esperar resolução espontânea da predispõem a formação de cálculos biliares. Essa estase colelitíase em todos os neonatos que não apresentam con‑ também pode ser provocada por malformações congênitas dições clínicas que favoreçam a formação de cálculos. A ul‑ que interferem no fluxo biliar. A presença de cálculos no in‑ trassonografia é um método seguro e eficaz de acompanha‑ terior da vesícula biliar pode obstruir o canal cístico, produ‑ mento desses pacientes. zindo dificuldade no esvaziamento e ocasionando sensa‑ Os avanços da terapia intensiva neonatal também con‑ ção de dor conhecida como cólica biliar. Essa obstrução tribuíram para um aumento dos casos de litíase biliar. Dro‑ pode evoluir para inflamação e infecção da vesícula biliar, gas como a furosemida e a ceftriaxona são litogênicas e de dando origem à colecistite aguda. uso corrente na terapia intensiva neonatal. A utilização de nutrição parenteral prolongada também está associada ao Quadro clínico desenvolvimento de cálculos biliares. O sintoma mais comum da litíase biliar é a dor no epigástrio e O aumento da obesidade no grupo etário pediátrico tam‑ no quadrante superior direito, irradiando para as costas. Essa bém contribui para o aumento dos casos de colelitíase em dor pode ter ou não relação com a ingestão de alimentos gor‑ crianças. Algumas séries relatam percentuais de até 40% durosos, e frequentemente desaparece com o uso de anties‑ de pacientes obesos com litíase biliar. É infrequente, po‑ pasmódicos ou analgésicos. Vômitos alimentares também po‑ rém, a ocorrência das complicações da colelitíase em pa‑ dem fazer parte do quadro. A migração dos cálculos para a via
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Lesões das Vias Biliares Intra e Extra-Hepáticas •
biliar principal pode produzir icterícia à custa de elevação da bilirrubina direta, com dilatação do colédoco e da árvore biliar intra-hepática. A associação de dor persistente no quadrante superior direito com a elevação da temperatura e palpação de massa no local sugere a evolução para colecistite aguda. Diagnóstico A litíase biliar deve ser suspeitada em pacientes com queixa de dor abdominal recorrente, especialmente se apresentarem condições predisponentes, como doença hemolítica ou obesi‑ dade. Também deve ser suspeitada em pacientes que se sub‑ meteram a cirurgias com ressecção do íleo terminal, tratamen‑ to prolongado com furosemida ou ceftriaxone ou que fizeram uso prolongado de nutrição parenteral total. Geralmente, a ultrassonografia é suficiente, mostrando a presença de cálculos no interior da vesícula ou na via bi‑ liar principal. Esses cálculos aparecem como pontos hipe‑ recogênicos, produzindo sombra acústica posterior (Figu‑ ra 1). Podem, também, evidenciar sinais sugestivos de inflamação, como edema da parede ou líquido perivesicu‑ lar. Alguns pacientes podem ser portadores de discinesia biliar, condição na qual ocorre uma disfunção da vesícula sem a formação de cálculos biliares. Essa condição pode ser demonstrada por meio da cintilografia de excreção biliar com ácido di-isopropil iminodiacético marcado com 99Tcm (DISIDA) em resposta à injeção de colecistoquinina. As frações de ejeção biliar na discinesia ficam abaixo de 35%.3 Tratamento Em crianças com menos de 3 anos de idade, a litíase biliar pode desaparecer espontaneamente, o que se observa por meio de acompanhamento ultrassonográfico.2 A detecção de cálculos em pacientes assintomáticos pode ser acompanhada sem qualquer intervenção específica ou prejuízo para o pa‑ ciente.4 Nos casos sintomáticos, a colecistectomia videolapa‑ roscópica é a opção terapêutica mais indicada. A terapêutica
Figura 1 Ecografia mostrando cálculos no interior da vesícula biliar produzindo sombra acústica posterior.
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com ácido ursodesoxicólico não tem se mostrado eficaz na re‑ solução em longo prazo da litíase.5 Atresia das vias biliares É a causa mais frequente de insuficiência hepática, levando à necessidade de transplante na infância. É, também, a causa ci‑ rúrgica de icterícia mais frequente no primeiro ano de vida, com possibilidade de cura em mais de 40% dos casos, quando diagnosticada e tratada antes da oitava semana de vida. A difi‑ culdade de reconhecimento da doença e a dificuldade de aces‑ so a serviços terciários dificultam o diagnóstico em tempo hábil. Etiologia A etiologia da atresia de vias biliares não está completamente esclarecida. Teorias de que seja decorrente de alterações con‑ gênitas na formação da árvore biliar6 são divididas com hipóte‑ ses de etiologia perinatal infecciosa ou inflamatória.7 Alguns autores sugerem que existiriam duas formas de produzir a le‑ são da árvore biliar. A forma perinatal é a responsável pelo maior número de casos e está associada a fenômenos inflama‑ tórios dos ductos biliares intra e extra-hepáticos. Esses são as‑ sociados a uma infecção, principalmente pelo reovírus III, que tem início no período perinatal. A atresia de vias biliares con‑ sequente a alterações congênitas ocorre com menor frequên‑ cia, tem pior prognóstico e associa-se a cardiopatias, situs inversus e malformações do sistema porta, como veia porta pré-duodenal e poliesplenia. Fisiopatologia A lesão anatômica consiste em uma obliteração progressiva das vias biliares intra e extra-hepáticas, provocando colestase intra-hepática. Essa estase, por sua vez, produz trombos bilia‑ res nos colangiolos, iniciando um processo inflamatório com proliferação ductal. O infiltrado inflamatório pericolangiolar, posteriormente, produz fibrose periportal. As alterações pro‑ movidas pelo tecido fibroso prejudicam o fluxo sanguíneo in‑ tra-hepático, causando obstrução do fluxo portal e conse‑ quente hipertensão portal, além de necrose dos hepatócitos, cuja regeneração dá início ao processo de cirrose biliar. É importante frisar que, quando o fluxo de bile para o in‑ testino é restabelecido por meio da cirurgia, as lesões do parênquima hepático tendem a se estabilizar. Existem rela‑ tos, entretanto, de que a progressão para a cirrose é mais lenta. Quadro clínico A icterícia é o principal sinal da atresia de vias biliares, sendo frequentemente confundida com icterícia fisiológica, porque o paciente parece bem, sem qualquer outro sinal ou sintoma. É importante notar que essa icterícia persiste além do 15o dia de vida, prazo em que a icterícia fisiológica desaparece. A urina é escurecida pela colúria, e as fezes, que eram normais ao nasci‑ mento, tornam-se mais claras, chegando a ficar completamen‑ te acólicas. O fígado aumenta lentamente de tamanho, sendo palpável ao final do primeiro mês de vida, com a borda romba característica e a consistência endurecida.
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A esplenomegalia começa logo após a hepatomegalia. Os pacientes mantêm, apesar dessas alterações, o crescimento e o desenvolvimento por alguns meses, quando, então, co‑ meçam a apresentar anemia, desnutrição e ascite, com apa‑ recimento de hérnias umbilicais e inguinais. Se não tratada, a cirrose decorrente produz insuficiência hepática, sangra‑ mento por varizes de esôfago e/ou infecção. A média de so‑ brevivência dos pacientes sem tratamento é de 19 meses.8 Diagnóstico Quando um recém-nascido apresenta icterícia persistindo além do 15o dia de vida, associada a acolia fecal, colúria e au‑ mento do fígado, o principal diagnóstico é atresia de vias bi‑ liares. Trata-se do momento ideal para realizar a suspeita diagnóstica e o início do protocolo de investigação (Figu‑ ra 2). O diagnóstico fica mais consistente se o recém-nasci‑ do não apresentar outro sinal e estiver se desenvolvendo normalmente. Deve-se suspeitar, também, em pacientes ictéricos com situs inversus. A icterícia é do tipo colestática, com predomínio da fra‑ ção direta da bilirrubina. Em casos avançados, ocorre au‑ mento das transaminases. Os testes de função hepática têm valor limitado na diferenciação da atresia de vias bilia‑ res da hepatite neonatal ou de outras afecções genéticas, como a deficiência de alfa-1 antitripsina. A confirmação do diagnóstico consiste em determinar a impossibilidade de a bile chegar ao duodeno. A cintilografia hepatobiliar de ex‑ creção com ácido di-isopropil iminodiacético marcado com 99Tcm (DISIDA) é largamente utilizada e, quando se de‑ monstra a presença do marcador no intestino, afasta-se o diagnóstico de atresia das vias biliares.9 Infelizmente, isso pode não ser feito em pacientes com níveis elevados de co‑ lestase sem a obstrução mecânica das vias biliares, o que prejudica a sensibilidade do método. A ecografia abdominal é o exame mais usado como pri‑ meiro método de investigação. Pode fornecer um dado po‑ sitivo com a demonstração da corda triangular, com cerca
de 95% de valor preditivo positivo.10 No Brasil, apresentou acurácia de 90,3%, sendo considerada uma indicação para laparotomia exploradora.11 A não visualização da vesícula biliar já foi considerada por muitos autores um achado su‑ gestivo de atresia de vias biliares. Contudo, em razão dos achados intraoperatórios de vesículas biliares preenchidas com líquido branco e atresia do restante da árvore biliar ex‑ tra-hepática, essa hipótese foi afastada. A histopatologia do fígado, obtida por meio de punção percutânea, tem sido utilizada para diferenciar a atresia de vias biliares da hepatite neonatal, sendo a proliferação de ductos e a fibrose portal os achados patognomônicos da atresia de vias biliares. O único exame que demonstra a pa‑ tência da árvore biliar é colangiografia, realizada por meio de punção e injeção de contraste na vesícula biliar por lapa‑ rotomia ou laparoscopia. Tratamento O tratamento da atresia de vias biliares consiste na tentativa de desobstruir a via biliar por meio de uma anastomose do in‑ testino delgado com a porta hepatis. Essa técnica foi criada por Kasai, na década de 1950, e continua sendo a melhor op‑ ção para restabelecer o fluxo de bile para o tubo digestivo.12 Essa operação é tanto melhor sucedida quanto mais precoce‑ mente realizada, devendo ser realizada idealmente antes dos 60 dias de vida do paciente. Após esse período, as taxas de su‑ cesso em promover uma drenagem biliar satisfatória com de‑ saparecimento da icterícia são menores. Pacientes com diag‑ nóstico tardio, além dos 6 meses de idade, ou que não obtiveram desaparecimento da icterícia com a portoenteros‑ tomia (cirurgia de Kasai) devem ser encaminhados a um pro‑ grama de transplante de fígado. Prognóstico pós-operatório O resultado do tratamento cirúrgico da atresia de vias biliares está relacionado a três fatores que interagem na produção e na excreção de bile pelo fígado. São eles:
Recém-nascido ictérico + 15 dias de vida Bilirrubina direta > 2 mg Acolia fecal
Normal
Ecografia abdominal
Cisto de colédoco
Investigação de: hepatite neonatal TORCH Déficit de alfa-1 antitripsina
Sinal da corda triangular
Cirurgia
Figura 2 Fluxograma do manejo do recém-nascido com icterícia colestática.
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• a idade no momento da cirurgia, que deve ser a mais precoce possível, de preferência antes dos 40 dias de vida, período em que a obstrução persistente do fluxo biliar começa a produzir danos ao parênquima hepático (infelizmente, no Brasil, o en‑ caminhamento para cirurgia permanece com uma média de 80 dias);13 • o diâmetro dos canalículos remanescentes na porta hepatis que, quando permitem drenagem satisfatória da bile, ao pon‑ to de o paciente tornar-se anictérico, estabilizam a lesão he‑ pática, não comprometendo a reserva funcional do fígado; • a ocorrência de colangites, fenômeno dependente da capaci‑ dade de drenagem de bile do fígado, impedindo a ascensão de bactérias intestinais para os colangiolos após a portoenteros‑ tomia (mais frequente no primeiro ano de pós-operatório).14 Com base nesses parâmetros, os pacientes tratados com a por‑ toenterostomia são divididos em 3 grupos: • grupo 1: pacientes nos quais se obtém drenagem biliar satisfa‑ tória. Normalizando-se os níveis de bilirrubina, estabiliza-se a lesão hepática e os episódios de colangite são esporádicos; • grupo 2: pacientes com drenagem biliar após a cirurgia, mas sem normalização dos níveis séricos de bilirrubina. Esse gru‑ po frequentemente apresenta colangites, as quais estão rela‑ cionadas a uma drenagem insuficiente da bile. Os eventos in‑ flamatórios associados à colestase agravam a lesão hepática, levando a um quadro de insuficiência do órgão e, consequen‑ temente, necessitando de transplante; • grupo 3: pacientes nos quais não se obtém drenagem biliar. Para esse grupo, o transplante hepático é a única alternativa terapêutica. Os grupos 2 e 3 devem ser encaminhados para programas de transplante hepático para a continuação do tratamento. Os pacientes do grupo 1 devem ser acompanhados, especialmen‑ te durante os primeiros 2 anos de vida, para diagnóstico e tra‑ tamento precoce dos surtos de colangite. O quadro clínico é de hipertermia, icterícia colestática e fezes acólicas.
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O tratamento consiste em antibioticoterapia venosa di‑ rigida para germes Gram-negativos por um período não in‑ ferior a 12 dias. Frequentemente, esses pacientes desenvol‑ vem hipertensão portal com varizes esofágicas, que devem ser pesquisadas por endoscopia após o primeiro ano de vida. Cisto de colédoco A dilatação congênita da árvore biliar acomete, em 90% dos casos, o segmento extra-hepático (ducto hepático e colédoco), podendo comprometer de formas variadas o segmento intra‑ -hepático (doença de Caroli). Tem forte componente hereditá‑ rio, atingindo preferencialmente populações na Ásia, com pre‑ domínio nos japoneses, e acometendo irmãos e gêmeos. Inicialmente descrita por Douglas, em 1852, foi classifi‑ cada, por Alonso-Lej et al.,15 em 1959, de acordo com os achados anatômicos. Essa classificação foi modificada por Todani et al., que a dividiram em cinco tipos (Figura 3). Etiologia Inúmeras teorias procuram explicar o aparecimento dos cistos de colédoco. Spitz conseguiu produzir dilatação da via biliar em fetos de carneiro por meio da ligadura distal do colédoco; Babbit propôs a teoria da junção biliopancreática longa, pro‑ duzindo refluxo de secreções pancreáticas para a árvore biliar, o que levaria ao seu enfraquecimento e à sua dilatação16; e Wong e Lister demonstraram que a junção biliopancreática en‑ contra-se fora da parede duodenal em fetos humanos antes da oitava semana de vida intrauterina e que a obstrução seria provocada por um defeito nessa migração para o interior da parede duodenal.17 Quadro clínico As manifestações clínicas do cisto de colédoco diferem de acordo com a faixa etária do paciente no momento de sua ma‑ nifestação. Em lactentes, costuma-se apresentar como icterí‑ cia obstrutiva entre 1 e 3 meses de idade, associada a colúria,
Figura 3 Classificação de Todani et al. IA, IB, IC: dilatação do colédoco sem dilatação via biliar intra-hepática; II: coledococele; III: dilatação ampular; IVA, IVB: dilatação do colédoco com dilatação da via biliar intra-hepática; V: doença de Caroli, dilatação da via biliar intra-hepática.
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acolia fecal e hepatomegalia, sendo clinicamente indistinguí‑ vel da atresia de vias biliares. Ainda em lactentes, o cisto de colédoco pode se manifestar como uma massa no quadrante superior direito, sem icterícia. Além disso, nos casos avança‑ dos da doença, encontram-se pacientes com quadro de cirrose biliar e hipertensão portal. Em pré-escolares e escolares, as manifestações costu‑ mam surgir após os 2 anos de idade, caracterizadas pela tríade dor abdominal, icterícia flutuante e massa palpável no quadrante superior direito do abdome. A dor abdominal é incaracterística e varia de dor do tipo desconforto a forte dor em barra, similar aos quadros de pancreatite. A massa abdominal geralmente ocupa o quadrante su‑ perior direito, é fixa, com dimensões variáveis, podendo ou não ser dolorosa à palpação. A icterícia, geralmente flu‑ tuante, pode se manifestar desde o início de forma persis‑ tente, quando o quadro obstrutivo é mais grave.
Figura 5 Tomografia computadorizada mostrando cisto de colédoco.
Diagnóstico O diagnóstico deve ser suspeitado em crianças com quadro de icterícia flutuante ou não e elevação da bilirrubina direta. Mui‑ tas crianças apresentam tratamentos de surtos de “hepatites” em sua história clínica. A ecografia abdominal é um excelente método para vi‑ sualizar a dilatação da árvore biliar (Figura 4), mas não consegue estudar a parte retroduodenal do ducto biliar com a precisão necessária. A tomografia computadorizada define com mais precisão a anatomia e as relações anatô‑ micas do cisto (Figura 5). A colangiografia endoscópica re‑ trógrada, por sua vez, permite a visualização precisa da jun‑ ção biliopancreática, mas tem como desvantagem o fato de ser um método invasivo, requerendo anestesia geral em crianças. Mais recentemente, a colangiorressonância (Fi‑ gura 6) amplificou as vantagens da ecografia e da colangio‑ pancreatografia endoscópica retrógrada, permitindo a vi‑ sualização acurada da árvore biliar e pancreática, além de ser um método não invasivo. Seu custo, no entanto, ainda é um fator limitante.18
Figura 6 Colangiorressonância mostrando cisto de colédoco.
Resultados As complicações esperadas após o tratamento do cisto de colé‑ doco relacionam-se diretamente à manutenção de uma drena‑ gem biliar satisfatória e à eliminação do tecido biliar displásico com potencial de malignização. A ressecção do cisto com re‑ construção em Y de Roux produz os melhores resultados em relação ao aparecimento de estenose e colangite pós-operató‑ ria. Alguns pacientes podem desenvolver cirrose biliar, com hipertensão portal e sangramento gastrointestinal.
Figura 4 Ecografia abdominal mostrando dilatação da via biliar extra-hepática.
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Tratamento O tratamento ideal para o cisto de colédoco é sua completa ex‑ cisão, com reconstrução biliodigestiva (hepatojejunostomia em Y de Roux).19 A drenagem interna do cisto sem a ressecção apresenta morbidade excessiva, com desenvolvimento de es‑ tenoses e colangite. A permanência da mucosa do cisto tem
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alto potencial de malignização, com o aparecimento de carci‑ noma das vias biliares, motivo pelo qual não é mais realizada. Em algumas situações, nas quais a ressecção do segmento dis‑ tal do cisto pode favorecer uma lesão da junção biliopancreáti‑ ca, realiza-se apenas a mucossectomia desse segmento. O tra‑ tamento em estágios pode estar indicado nos casos em que houve perfuração do cisto com coleperitônio e nos casos de estado geral comprometido ou colangite grave. Nessa situa‑ ção, realiza-se drenagem externa do cisto com ressecção após 2 a 3 meses. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar as causas mais comuns de icterícia obstrutiva na infância. • Utilizar os métodos laboratoriais e de imagem para o diagnóstico dessas patologias. • Encaminhar pacientes portadores para o devido tratamento cirúrgico.
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CAPÍTULO 14
HIPERTENSÃO PORTAL NA CRIANÇA Sylvio Gilberto Andrade Avilla
Definição Hipertensão portal é definida como um aumento da pressão intravascular na veia porta de mais de 11 mmHg ou como uma pressão superior a 16 mmHg medidos diretamente na polpa esplênica. Um aumento na pressão portal leva a esplenomega‑ lia e ao desenvolvimento de recursos naturais de defesa do or‑ ganismo, os shunts portossistêmicos, que se localizam nas se‑ guintes topografias: 1. Extremidade inferior do esôfago e cárdia, através da veia gas‑ troesofágica. 2. Canal anal, através das veias hemorroidárias. 3. Ligamento falciforme, através da veia umbilical. 4. Parede abdominal e do retroperitônio. O diagnóstico de hipertensão portal deve ser suspeitado em todas as crianças, após a ocorrência de qualquer sangramento gastrointestinal. Nesse grupo etário, as varizes esofágicas são a causa mais provável para esse tipo de evento. O sangramento das varizes é associado a uma taxa de mor‑ talidade de 5 a 9% em crianças com obstrução da veia porta, mas há maior risco de morte quando acompanhado de cirrose. Esplenomegalia assintomática sem causa definida também deve ser alerta para pesquisa de hipertensão portal. Classificação Uma forma prática de classificar a hipertensão portal em crianças é: 1. Cirrótica (p.ex., atresia biliar, fibrose cística, hepatite autoi‑ mune, etc.) 2. Não cirrótica: • extra-hepática (p.ex., trombose da veia porta); • intra-hepática: –– pré-sinusoidal (p.ex., fibrose hepática congênita); –– parassinusoidal (p.ex., esteatose hepática, hiperpla‑ sia nodular); –– pós-sinusoidal (p.ex., doença veno-oclusiva do fígado); • supra-hepática (p.ex., síndrome de Budd-Chiari).
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Figura 1 Anatomia normal do sistema portal e diagrama ilustrativo do sistema portal.
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Hipertensão Portal na Criança •
A causa mais frequente de cirrose na infância é atresia biliar (AVB). Além dessa causa, alfa-1-antitripsina, alterações meta‑ bólicas e doenças hepáticas são as condições médicas comuns que provocam a cirrose do fígado. Esses pacientes apresentam os estigmas de sua doença subjacente, e o diagnóstico de hi‑ pertensão portal não é difícil de ser realizado. A síndrome de Allagille é uma delas, com seus caracte‑ rísticos estigmas (Figura 2). Causada por uma ductopenia, apresenta síndrome de fácies típica e xantomas de coleste‑ rol por todo o corpo, causando prurido de difícil tratamento, a ponto de o prurido ser indicação de transplante hepático. Em crianças com hipertensão portal não cirrótica, o diagnóstico pode não ser tão evidente. A trombose da veia porta (hipertensão portal extra-hepática), por exemplo, pode apresentar, nos primeiros 5 anos de vida, como prin‑ cipal sinal e sintoma, apenas esplenomegalia e plaquetope‑ nia persistente como pistas para o diagnóstico. Muitos pacientes afetados pela trombose de veia porta não sabem a causa de sua hipertensão portal. No entanto, às vezes, história de cateterismo da veia umbilical, infecção ab‑ dominal, trauma ou pancreatite podem ser responsáveis pela trombose portal. Os testes de função hepática nesses doentes são essencialmente normais. A confirmação de oclusão da veia porta pode ser obtida pela ultrassonografia (US), com a demonstração de lagos e canais venosos no porta hepatis, substituindo a veia porta. Aproximadamente apenas 40% desses pacientes têm história de cateterismo da veia umbilical ou sepse abdomi‑ nal no período neonatal, mas a oclusão venosa, em sua maioria, parece ser de origem congênita. A fibrose hepática congênita também pode apresentar-se com quadro agudo de hematêmese e testes de função hepáti‑ cas normais, mas as características clínicas incluem hepato‑ megalia. A biópsia hepática mostra faixas de tecido fibroso unindo os espaços porta, e essa condição pode estar associa‑ da à doença policística renal e a outros distúrbios. Há vários relatos de hipertensão portal em crianças apresentando hematêmese e esplenomegalia em que a his‑ tologia hepática é normal, e a veia porta, patente.
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Outros estudos têm demonstrado espessamento suben‑ dotelial dos ramos da veia porta pré-sinusoidal causando obstrução ao fluxo sanguíneo portal no fígado e levando à formação de canais colaterais venosos no porta hepatis. Essa doença é conhecida sob uma variedade de nomes, como hipertensão porta não cirrótica, mas a melhor deno‑ minação talvez seja esclerose hepatoportal. A etiologia é desconhecida. Obstrução supra-hepática causada por qualquer mem‑ brana, na veia cava inferior acima da entrada das veias he‑ páticas ou oclusão trombótica das veias hepáticas (síndro‑ me de Budd-Chiari), é extremamente rara na infância. As características clínicas podem ser confundidas com peri‑ cardite constritiva, mas ecocardiografia e venografia devem fazer o diagnóstico diferencial. Características clínicas Na doença hepática crônica, a apresentação de hipertensão portal é, principalmente, uma massa abdominal, em razão da esplenomegalia. Isso é normalmente encontrado nas crianças mais velhas (cerca de 8 anos de idade). Encefalopatia e disten‑ são abdominal decorrentes de ascite também são encontradas no exame físico, e aparecimento de hematêmese pode aconte‑ cer e ser um complicador grave em pacientes com cirrose. Re‑ tardo do crescimento é um situação frequente e bem reconhe‑ cida como uma das complicações da cirrose e hipertensão portal, e é um fator que contribui para que, graças ao edema da mucosa e congestão dos linfáticos intestinais, ocorra má absor‑ ção intestinal e perda de proteína pela enteropatia associada. No entanto, a oclusão portal venosa geralmente ocorre em crianças mais novas (5 anos), com episódio agudo de sangramento gastrointestinal superior ou inferior. Isso pode ou não ser acompanhado por esplenomegalia, fator justifi‑ cado pela perda sanguínea que ocorre pela melena ou he‑ matêmese. Varizes anorretais e hemorroidas são identifica‑ das em quase 2/3 dos pacientes com oclusão venosa portal. Nos pacientes com síndrome de Budd-Chiari, ascite in‑ tratável com hepatomegalia é a habitual apresentação ini‑ cial. Icterícia é variável.
Figura 2 Síndrome de Alagille. Fácies típica e xantomas de colesterol em mãos e pés.
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Exames Exames laboratoriais Hiperesplenismo pode resultar em anemia, diminuição WBC e plaquetas. As concentrações plasmáticas de procoagulantes e proteínas anticoagulantes podem ser reduzidas na trombose venosa portal ou na síndrome de Budd-Chiari. Bioquimica‑ mente, a função hepática na cirrose é anormal, mas é rara‑ mente alterada na oclusão venosa portal. Níveis séricos de al‑ bumina são mais ou menos alterados para menos em sangramento agudo das varizes. Ecografia do abdome Grandes veias colaterais, no porta hepatis, esplenomegalia e cavernoma, que são as características de hipertensão portal, podem ser identificadas em US de abdome. Estudos de Doppler fornecem a informação sobre direção, velocidade e características da onda de fluxo sanguíneo portal. Na cirrose do fígado, a velocidade máxima do fluxo sanguíneo no princi‑ pal tronco portal é inversamente correlacionada à gravidade da doença hepática. Na síndrome de Budd-Chiari, US com Doppler das veias hepáticas e da veia cava inferior pode ser conclusiva (Figura 3). Ascite, uma importante característica da síndrome de Budd-Chiari e de cirrose hepática, pode ser definitivamente identificada e quantificada em US. Endoscopia gastrointestinal superior e inferior Essa modalidade é útil no diagnóstico e no tratamento das va‑ rizes do esôfago, estômago e duodeno proximal e da área anor‑ retal. Por atualmente serem realizados com anestesia geral, esses procedimentos têm se tornado fáceis e seguros, necessi‑ tando apenas de material apropriado e profissionais habilita‑ dos. Diversos sistemas de classificação são usados na avalia‑ ção das varizes esofágicas. Varizes menores têm uma cor azulada e são recobertas por mucosa íntegra, enquanto as va‑ rizes maiores podem ter sinais de sangramento recente ou iminente, como mancha vermelho-cereja. Gastropatia con‑
gestiva portal é caracterizada por hiperemia da mucosa com veias submucosas dilatadas. CT – angiografia e ressonância magnética Essas modalidades são cada vez mais utilizadas no diagnósti‑ co da síndrome de Budd-Chiari para identificar lesões hepáti‑ cas associadas à hipertensão portal focal, como hiperplasia nodular regenerativa. Angiorressonância magnética vem sen‑ do utilizada atualmente como uma alternativa não invasiva à angiografia convencional, para delinear a anatomia venosa portomesentérica, sendo hoje o exame de eleição. Angiografia Medidas da pressão da veia cava inferior representam um es‑ tudo valioso em pacientes com síndrome de Budd-Chiari, pois a venografia hepática pode ser utilizada para avaliar a patência venosa hepática. Dilatação com balão pode ser realizada na veia cava inferior na presença de membrana ou de um curto segmento estreitado das veias hepáticas, o que, por si só, já pode ser terapêutico. Tratamento A sobrevivência das crianças com hipertensão portal depende quase inteiramente da etiologia. Relatórios recentes mostram que as varizes esofágicas na infância são bem controladas com injeções (escleroterapia) ou shunt portossistêmico, e ambos os métodos têm seus defensores. Espera-se que pacientes com obstrução da veia porta e normal histologia possam viver normalmente, desde que as varizes esofágicas estejam sob controle (Rex shunt). Tratamento do sangramento agudo Varizes e hemorragia aguda, especialmente em lactentes jo‑ vens, podem causar complicações graves. Um atraso no aten‑ dimento imediato pode se revelar fatal para uma criança. As medidas de tratamento para essas hemorragias incluem a re‑
Figura 3 Ultrassonografia com Doppler no estudo das veias hepáticas. Observa-se a precisão da avaliação do sistema portal no presente caso normal. Fonte: foto gentilmente cedida pela dra. Dolores Bustello.
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posição de sangue e a infusão endovenosa de vasopressina (0,2 a 0,4 un/1,73 m2/min), que podem deter a hemorragia. Vasopressina ou seu precursor, Glypressin®, pode ser utilizada isoladamente ou em combinação com nitratos para reduzir a pressão venosa portal. Infelizmente, esses agentes têm efeitos colaterais relacionados à vasoconstrição sistêmica, como cefa‑ leia, náuseas e cólicas abdominais. Somatostatina reduz o flu‑ xo sanguíneo esplâncnico e de pressão portal com o mínimo de efeitos colaterais, mas tem uma meia-vida curta – menos de 3 minutos. Octreotide, um análogo da somatostatina, tem ação mais longa, tendo uma meia-vida plasmática de mais de 1 hora. Embora a eficácia do octreotide tenha sido estudada apenas em um pequeno número de crianças, sua segurança e o perfil de poucos efeitos colaterais têm enco‑ rajado seu uso em casos de sangramento agudo das varizes. A continuação do sangramento pode ser controlada com injeção de escleroterapia, mas o pequeno tamanho do lú‑ men do endoscópico pediátrico pode limitar seu uso em crianças pequenas. Além dessa dificuldade, existe risco au‑ mentado da necessidade de anestesia geral em criança com consciência comprometida. A compressão do balão – Sangstaken-Blackmore (SB tubo) – pode salvar vidas quando há falha de visualização das varizes por causa da violenta hemorragia. No entanto, os perigos desse instru‑ mento não podem ser desprezados. A correta colocação do balão gástrico deve ser verificada com radiografia de con‑ trole, a fim de evitar a inflação dentro do lúmen do esôfago. Essa inflação acidental no esôfago pode resultar em ruptura esofágica ou sufocamento por obstrução das vias aéreas. A inflação moderada do balão gástrico, acompanhada de tra‑ ção prolongada, alcançada pela fixação do SB tubo para o lado do rosto com uma fita adesiva, em geral é suficiente para parar o sangramento. A deflação do balão é realizada de 18 a 24 horas mais tarde, e isso é seguido imediatamente com inje‑ ção endoscópica esclerosante das varizes. Injeção escleroterapia de longo prazo do tratamento Injeção escleroterapia foi sugerida para o tratamento de vari‑ zes esofágicas em crianças em virtude das falhas e das compli‑ cações da cirurgia primária. A trombose frequente dos shunts portossistêmicos e res‑ sangramento, os perigos da esplenectomia em crianças em longo prazo e todos os riscos de encefalopatia têm incentivado essa alternativa terapêutica. Ensaio controlado em doentes adultos confirmou que as primeiras escleroterapias endoscó‑ picas após o início do sangramento reduziram significativa‑ mente o risco de ressangramento e podem prolongar a sobre‑ vida em cirróticos. Injeções são realizadas através de um endoscópio flexível, no trato gastrointestinal superior, sob anestesia geral com entubação endotraqueal. Sedação endo‑ venosa é utilizada ocasionalmente em crianças mais velhas. Há uma variedade de esclerosantes disponível, incluindo eta‑ nolamina, tetradecil, sulfato de sódio, fenol em óleo de amên‑ doa e polidocanol. As injeções são realizadas intra ou parava‑ rizes, e são dadas, em sua maioria, no cárdia e nos 3 cm
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inferiores do esôfago. Um máximo de 3 mL é injetado em to‑ das as varizes a um máximo de 5 a 20 mL por sessão, depen‑ dendo da idade e do tamanho do paciente. Uma sonda naso‑ gástrica deve ser inserida em lactentes pequenos, a fim de controlar o grau de distensão gástrica. As primeiras três inje‑ ções são dadas em intervalos semanais, passando, depois, a ser mensais, até o desaparecimento das varizes. Leve desconforto retroesternal e sintomas de uma febre transitória são comuns após a escleroterapia endoscópica. As hemorragias das varizes podem reaparecer especialmente en‑ tre os primeiros dois ou três tratamentos, e ulceração esofági‑ ca pode ser seguida pela formação de estenose e disfagia. Ra‑ ras complicações graves têm sido relatadas, incluindo fístula broncoesofágica, quilotórax e pericardite. Um caso de paraple‑ gia foi relatado pela injeção de esclerose intraespinhal. Em uma análise de sete relatórios publicados desde 1984, os resultados da escleroterapia em 248 crianças mostram ta‑ xas de 3% de mortalidade e 12% de ressangramento. A taxa de ressangramento em uma série de sete relatórios de cirurgia de hipertensão portal (1980-86) foi de 14%. Bandeamento das varizes Esta técnica, que envolve a aplicação de uma banda elástica para varizes, é feita através de endoscópio gastrointestinal flexível. As varizes são estranguladas por uma bandagem elástica, e posteriormente trombosam e desaparecem. Nor‑ malmente, até três bandas são aplicadas em cada sessão. Dispositivos multibandas permitem a aplicação de várias bandas, sem necessidade de recarga. O tratamento é reali‑ zado inicialmente em um a dois intervalos semanais, que se estendem a intervalos mensais, uma vez que as maiores varizes são tratadas nas primeiras sessões. A incidência de estenose esofágica e efeitos colaterais sistêmicos é menor com essa modalidade terapêutica. Atualmente, a limitação pelo tamanho dos equipamentos torna difícil a utilização dessa técnica em crianças com menos de 2 anos de idade. Transjugular intra shunt portossistêmico (TIPS) As indicações de TIPS em crianças incluem varizes com san‑ gramento descontrolado, especialmente nos pacientes à espe‑ ra do transplante hepático. Alguns pacientes com síndrome de Budd-Chiari ou intratáveis de ascite também podem ser be‑ neficiados. Trombose da veia porta, sepse bacteriana e coagu‑ lopatia são contraindicações do TIPS. Essa intervenção envolve inserção de um stent metálico expansível da veia hepática até a veia porta por meio de punção via percutânea transjugular interna, sob orientação radiológica. Sob controle fluoroscópico, um fio-guia é pas‑ sado para uma veia hepática. Uma agulha é então avançada ao longo de um guia para a veia hepática, e daí até a veia porta. Um cateter balão é posteriormente utilizado para di‑ latar as vias intra-hepáticas e um stent é implantado. Cirurgia – shunts portossistêmicos Escleroterapia endoscópica e/ou bandeamento é uma moda‑ lidade efetiva de tratamento primário de sangramento de vari‑
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zes esofágicas na maioria das crianças com razoável função hepática. No entanto, a intervenção cirúrgica é indicada e ne‑ cessária nos seguintes casos: • sangramento incontrolável de varizes esofágicas e que não respondem a pelo menos duas sessões de bandeamento ou escleroterapia; • hemorragia de varizes esofágicas e ectópicas gástricas que não respondem ao tratamento endoscópico; • hiperesplenismo maciço ou esplenomegalia sintomática; • falta de acesso a tratamento endoscópico; • obstrução biliar sintomática em razão de varizes do colédoco; • pacientes selecionados com síndrome de Budd-Chiari.
As cirurgias de shunt portossistêmico devem ser con sideradas uma terapia complementar ao tratamento en‑ doscópico, com exceção da obstrução portal com função hepática normal. Infelizmente, a anatomia portovenosa mesentérica não permite que o procedimento de Rex shunt seja uma cirurgia bem-sucedida em todos os pacientes, e trombose dos shunts acontece com todos os tipos de shunts, especialmente nas crianças menores. O transplante de fígado é o tratamento de escolha para crianças com varizes sangrantes, complicando a fase final de doença hepática crônica. Atualmente, a sobrevida de 90% dos transplantados he‑ páticos, de doadores vivos ou não, tem ampliado a indica‑ ção desse procedimento em pacientes portadores de hiper‑ tensão portal.
A grande variedade de procedimentos cirúrgicos preconizada para o tratamento de hipertensão portal foi refletida em um estudo francês multicêntrico de crianças atendidas tanto em países europeus quanto no norte da África. Trinta diferentes Conclusão operações, incluindo uma série de shunts portossistêmicos O manejo de crianças com hipertensão portal é uma tarefa ex‑ e várias técnicas de desvascularização, foram notificadas a tremamente desafiadora e exige uma variedade de técnicas partir do tratamento de 109 crianças. A variedade de técni‑ complementares, cada uma das quais pode ser limitada pela cas cirúrgicas pode ser explicada tanto pela variada patolo‑ sua aplicabilidade, eficácia e suas complicações. Esclerotera‑ gia do sistema venoso portal quanto pelas preferências in‑ pia endoscópica e bandamento são altamente eficazes e pare‑ dividuais e experiência dos cirurgiões. A oclusão do sistema cem ser o tratamento de escolha para o manejo inicial de vari‑ portal na hipertensão portal extra-hepática, por exemplo, zes esofágicas em crianças. pode afetar a veia porta sozinha ou pode envolver tanto a No entanto, shunt cirurgia deve ser reservada para trata‑ esplênica ou a veia mesentérica superior. Pelo menos 20% mento de varizes gástricas ectópicas ou não acessíveis à es‑ desses doentes não são adequados para qualquer tipo de ci‑ cleroterapia. rurgia de shunt e podem necessitar de algum tipo de cirur‑ • incontrolável hemorragia secundária a uma complicação da gia de desvascularização, com ou sem transecção esofágica. escleroterapia; Infelizmente, procedimentos de desvascularização têm • tratamento de hiperesplenismo grave ou esplenomegalia sin‑ alta incidência de ressangramento (até 23%). tomática; A construção de um shunt entre a veia mesentérica supe‑ • tratamento de crianças que vivem em comunidades distantes rior e a veia cava inferior através de um segmento da veia de assistência médica adequada e transfusão de sangue. jugular interna parece oferecer a melhor combinação de bom resultado em longo prazo e menor incidência de res‑ O transplante de fígado é o procedimento de escolha para pa‑ sangramento. A taxa de ressangramento foi de apenas 6% cientes com complicações da hipertensão portal associada à em quatro séries de casos publicadas desde 1981. fase final de doença hepática. O papel das novas modalida‑ A recente introdução do shunt mesentérico-portal es‑ des, como o TIPS e Rex shunt, ainda deve ser conclusiva‑ querdo (Rex shunt) pode aumentar as indicações, de shunt mente provado. cirúrgico como o principal tratamento para crianças com oclusão venosa portal. Esse shunt utiliza um enxerto de in‑ Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: terposição entre a veia mesentérica superior e a porção in‑ • Suspeitar de hipertensão portal em todas as crianças tra-hepática da veia porta esquerda, que é identificada no após qualquer sangramento gastrointestinal. recesso de Rex adjacente ao ligamento falciforme. Ao resta‑ • Indicar exames laboratoriais e de imagem na suspeita belecer o fluxo sanguíneo hepático portal e corrigir hiper‑ de hipertensão portal. tensão portal, essa técnica é mais fisiológica, evitando os • Encaminhar para transplante hepático pacientes com eventuais inconvenientes dos shunts portossistêmicos. complicação da hipertensão portal associada à fase final de doença hepática. As complicações do shunt portossistêmico não preocu‑ pam apenas pelo ressangramento. Deterioração da função hepática e encefalopatia hepática são riscos importantes, Bibliografia particularmente em crianças com cirrose. Em uma recente 1. Bismuth H, Franco D, Alagille D. Portal diversion for portal hyper‑ tension in children. Ann Surg 1980;192:18-24. série de 37 crianças, 1 morreu no período pós-operatório imediato com encefalopatia, e 9 dos 31 com um patente 2. Fonkalsrud EW, Myers NA, Robinson MJ. Management of extrahepat ic shunt apresentaram deterioração da função mental durante portal hypertension in children. Ann Surg 1974;180(4):487-93. 3. Fonkalsrud EW. Surgical management of portal hypertension in chil‑ um período médio de acompanhamento de 5 anos. dhood. Arch Surg 1980;115:1042-5.
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4.
Howard ER, Stringer MD, Colombani PM. Surgery of the liver, bile ducts and pancreas in children. 2.ed. London: Arnold Publishers, 2002. p.285‑340. 5. Howard ER, Stringer MD, Mowat AP. Assessment of injection sclerothe‑ rapy in the management of 152 children with oesophageal varices. Brit J Surg 1988;75:404-8.
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2121
6. Stringer MD, Howard ER, Mowat AP. Endoscopic sclerotherapy in the management of oesophageal varices in 61 children with biliary atresia. J Pediatr Surg 1989;24:438-42.
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CAPÍTULO 15
DISTÚRBIOS PIELOURETERAIS Lisieux Eyer de Jesus
Introdução Hidronefroses (HN) fetais são comuns, afetando até 3% das gestações. Podem ter várias etiologias, sendo a mais frequente um fenômeno de dismaturação que se resolve espontanea‑ mente e não necessita de tratamento. A segunda possibilidade mais frequente é a estenose de junção ureteropiélica (EJUP), que exige cirurgia. O diagnóstico diferencial entre essas duas condições é um dilema contemporâneo. Antes do uso siste‑ mático de ultrassonografia (US) pré-natal, praticamente todas as HN pediátricas eram diagnosticadas em casos sintomáticos, e a decisão pelo tratamento era simples. Hoje, a maioria das HN é assintomática. Distinguir fenômenos autolimitados de doenças que precisam de tratamento pode ser difícil. Apenas em 1% dos fetos a HN persistirá após o nascimento, e só 1/5 deles necessitará de cirurgia. Investigar extensamente todas as crianças portadoras de HN assintomática implicaria alto custo financeiro e humano. Por outro lado, desprezar to‑ das as HN fetais implicaria risco de lesão renal irreversível e/ ou insuficiência renal ou sepse urinária em alguns casos. Apesar de a grande maioria dos casos de EJUP na infância ser de obstrução intrínseca, há um subgrupo de EJUP extrín‑ seca, especialmente compressão da JUP por vasos anômalos. Esses pacientes apresentam sintomas diferentes daqueles com doenças intrínsecas da JUP, caracteristicamente são mais velhos (escolares e adolescentes) e serão detalhados na última parte deste capítulo.
manas de gestação e está bem definido na US a partir de 20 se‑ manas. Por isso, o diagnóstico das HN fetais é feito a partir do 2º trimestre da gestação. A bexiga é visível a partir de 10 sema‑ nas e a urina fetal torna-se o principal elemento do líquido am‑ niótico a partir de 16 semanas de vida intrauterina. As conse‑ quências da agressão renal por uma doença obstrutiva ocorrem ainda no 1º trimestre de gestação e já estão definidas, ao menos parcialmente, antes do diagnóstico. Oligoidrâmnio secundário a doenças renais obstrutivas e hipoplasia pulmo‑ nar secundária só acontecem a partir do 2º trimestre. A literatura é problemática com relação à conduta nas HN fetais. São comuns coortes com vieses de seleção (em especial, predominância de casos referenciados a especialistas), ausên‑ cia de padronização das descrições dos casos, tempos curtos de seguimento e critérios de intervenção não uniformes. Classificar as HN fetais quanto à gravidade é fundamental para estratificar risco e conduta. Inicialmente, os ultrassono‑ grafistas usavam critérios subjetivos, dividindo as HN fetais em leves (graus 1 e 2 da Sociedade Americana de Urologia Fe‑ tal – SFU), moderadas (grau 3 da SFU) e graves (grau 4 da SFU), ou de acordo com a medida do diâmetro anteroposterior (AP) da pelve renal fetal. Em uma primeira tentativa de padro‑ nização, em 1994, os critérios da SFU foram sugeridos com base na dimensão AP da pelve renal e na presença de dilata‑ ção dos cálices e/ou atrofia cortical, classificando as HN fetais em tipos 1, 2, 3 e 4 (Tabela 1). Apesar dos méritos com relação à objetividade e à padronização, os critérios SFU apresentam Hidronefrose fetal algumas limitações: Após o estabelecimento da US obstétrica rotineira, detecta-se • a medida piélica pode variar com a repleção vesical e a hidra‑ um número enorme de casos de HN fetal. Inicialmente, o fe‑ tação; nômeno foi considerado uma oportunidade de tratamento • pelves extrarrenais com o mesmo grau de distensão têm im‑ plicações diferentes das intrarrenais; precoce de crianças ainda assintomáticas, mas logo se perce‑ beu que a maioria evoluía para a cura sem sequelas em casos • a classificação SFU não incorpora critérios de risco e prognós‑ tico; não operados, o que criou um dilema com relação à conduta • a espessura cortical diminuída pode não representar atrofia, ideal e à indicação cirúrgica. mas, sim, compressão do parênquima renal, em especial nas O desenvolvimento renal começa no final do 1º trimestre da crianças mais jovens. vida fetal. O órgão torna-se visível na US a partir de 12 a 13 se‑
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Distúrbios Pieloureterais •
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Tabela 1 Classificação das HN fetais pela Sociedade de Urologia Fetal (SFU) SFU
Pelve
Cálices
Parênquima
0
Normal
Normal
Normal
1
Visível
Normal
Normal
2
Dilatação intrarrenal
(ou) extrarrenal + cálices maiores
Normal
3
Pielocaliectasia
Dilatados
Normal
4
Pielocaliectasia
Dilatados
Atrofia
Gráfico -
US -
Foi proposto um novo consenso multidisciplinar em 2014, que Devem-se evitar US antes da 1ª semana de vida, porque a incorpora o grau de dilatação da pelve, o momento da avalia‑ oligúria fetal fisiológica pode determinar até 15% de falso-ne‑ ção (pré/pós-natal) e alguns fatores para determinação do ris‑ gativos para HN. Nas crianças em que o exame é solicitado an‑ co (alterações parenquimatosas, caliciais, ureterais e vesicais) tes da 1ª semana de vida, o exame deve ser repetido se não for (Tabela 2). O grupo de baixo risco será seguido apenas com US encontrada HN. periódica pós-natal. Os demais terão critérios mais agressivos HN por si só provê um quadro incompleto do problema. A para investigação e seguimento (Figuras 1 e 2). incorporação de outras informações permite melhorar o diag‑ O critério de normalidade para o diâmetro AP da pelve re‑ nóstico. Todas as US para avaliação de HN devem ter os se‑ nal fetal também é controverso e varia conforme a idade gesta‑ guintes dados: cional (a maioria sugere como normais ≤ 5 mm no 2º trimestre • estado de repleção vesical no momento da avaliação da pelve e ≤ 7 mm no 3º trimestre da gestação). renal, sempre que possível comparando as medidas com a be‑ xiga cheia e vazia. Pelves que se esvaziam com o esvaziamen‑ to vesical não costumam apresentar obstrução mecânica da Tabela 2 Critérios para classificação da HN fetal, JUP, embora a ausência de esvaziamento não implique obri‑ consenso de 2014 gatoriamente um mecanismo obstrutivo anatômico; Parâmetro Descrição Detalhes • detalhes da bexiga (sinais de esforço, ureteroceles, compres‑ us sões extrínsecas); Pelve AP mm Diâmetro intrarrenal máximo, medida transversa, coluna como • estado dos ureteres; referência, VR: < 4 mm (16 a 27 • sinais de displasia renal (hiperecogenicidade, presença de semanas), < 7 mm (≥ 28 semanas), > 10 mm (RN > 48 horas) cistos renais não intercomunicantes, perda da diferenciação Cálices Maiores Sim/não corticomedular); (centrais) • ascite urinária ou urinomas; Menores Sim/não • sinais de dilatação da uretra posterior (em meninos); (periféricos) • problemas ginecológicos (em meninas); Espessura Normal/ Subjetivo • malformações associadas; cortical anormal • volume do líquido amniótico. Aspecto Normal/ Ecogenicidade, diferenciação, cortical
anormal
displasia
Ureter
Normal/ anormal
Se transitória pós-natal, é normal
Bexiga
Normal/ anormal
Espessura parede, ureterocele, dilatação uretra posterior
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Exames seriados podem determinar condutas mais agressivas se a distensão piélica ou a hipotrofia cortical aumentam pro‑ gressivamente.
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A maioria das HN fetais resolve-se antes do nascimento ou nos 2 primeiros anos de vida. Os casos de doenças congênitas que necessitam de intervenção específica também costumam se definir nesse prazo. HN leves (SFU 1 e 2) evoluem muito ra‑ ramente para cirurgia. Em torno de metade das formas mode‑ radas (SFU 3) e a maioria das SFU 4 o fazem. HN fetais podem ter várias causas. A principal é a EJUP, mas refluxo vesicoureteral, válvulas de uretra posterior (VUP), megaureteres (obstrutivos e funcionais) e outras podem ocor‑ rer, embora sejam mais raras.
Pré-natal
16 a 27 semanas + pelve 4-6 mm OU ≥ 28 semanas + pelve 7 a 9 mm
16 a 27 semanas + pelve ≥ 7 mm OU ≥ 28 semanas + pelve ≥ 10 mm
Dilatação central ou ausente
Dilatação de cálice
Córtex normal
Cortical anormal
Ureteres normais
Ureteres anormais
Bexiga normal
Bexiga anormal
Sem oligoidramnia
Oligoidramnia sem outra explicação
Risco baixo: DTU A1 Risco aumentado: DTU A2-3
Figura 1 Algoritmo de decisão para HN, fase intrauterina, consenso de 2014.
O grau de HN não define a doença de base, embora HN gra‑ ves sejam muito mais frequentes em casos de EJUP e VUP (neste último caso, sempre no sexo masculino, bilaterais, as‑ sociadas a dilatação ureteral e alterações anatomofuncionais da bexiga). O grande dilema para os pediatras é detectar quais pacien‑ tes precisam de condutas emergenciais ou investigações mais sofisticadas. Para tanto, é proposto o algoritmo mostrado na Figura 3. O uso de quimioprofilaxia antibiótica é controverso e não deve ser indiscriminado. Atualmente, a tendência é usar sele‑ tivamente, evitando em EJUP e HN leves. Alguns meninos podem se beneficiar de circuncisões, que diminuem em dez vezes a ocorrência de infecção do trato urinário (ITU) no 1º ano de vida. A exclusão de VUP em meninos com HN fetal bilateral é imperativa desde o nascimento. A doença, exclusiva do sexo masculino, exige atendimento urológico emergencial, catete‑ rismo vesical de demora e tem alto risco de sepse urinária pre‑ coce, insuficiência renal e doença pulmonar associada. As crianças afetadas apresentam megabexiga fetal e/ou espessa‑ mento de parede vesical com hidroureteronefrose bilateral. Muitos têm história de oligoidrâmnio e suspeita de dilatação da uretra posterior na US fetal. Também são frequentes (e de mau prognóstico) sinais de displasia renal. Retenção urinária e observação de fluxo urinário inadequados são incomuns, porque, em geral, esses bebês são capazes de urinar, embora sob alta pressão. A creatinina sérica nos primeiros dias de vida não reflete a função renal fetal, mas, sim, os níveis séricos ma‑ ternos. No caso de suspeita bem fundamentada de VUP, os neonatos precisam de medidas seriadas da creatinina sérica e uretrocistografia miccional de urgência para confirmação diagnóstica.
PÓS-NATAL > 48 horas
Pelve AP 10 a 14 mm
Pelve ≥ 15 mm
Pelve ≥ 15 mm
Dilatação de cálices ausente ou centrais
Cálice periférico dilatado
Cálice periférico dilatado
Córtex normal
Cortical normal
Córtex anormal
Ureter normal
Ureter anormal
Ureter anormal
Bexiga normal
Bexiga normal
Bexiga anormal
Risco baixo: DTU P1
Risco intermediário: DTU P2
Risco alto: DTU P3
Figura 2 Algoritmo de decisão para HN, pós-natal, consenso de 2014.
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Distúrbios Pieloureterais •
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Neonato com HN fetal
Rim único, doença bilateral moderada/ grave, critérios de gravidade (oligoidramnia, possível VUP)
Criança assintomática, afecção unilateral com rim contralateral normal, afecção bilateral leve
US urgência, iniciar quimioprofilaxia, parecer urológico urgência, cateter vesical de demora se há suspeita fundamentada de VUP
US eletivo, ≥ 1 semana de vida, encaminhamento eletivo para cirurgião/ urologista pediátrico
US normal
HN persistente
Repetir com 1 e 6 meses
Normal
Alta
HN
Normaliza
Leve
Seguir com US e clínica, sem quimioprofilaxia
Piora ou quadro clínico associado
Moderada/grave
Investigação plena e cirurgia conforme necessário, quimioprofilaxia caso a caso, circuncisão caso a caso
Figura 3 Algoritmo sugerido para a investigação de casos de HN fetal.
O tratamento fetal de obstruções urinárias só é recomenda‑ tos de maturação) ou defeitos de constituição muscular da do em circunstâncias muito específicas, quando o risco não JUP. Em escolares e adolescentes, são mais comuns EJUP por supera o benefício (fetal e materno). A indicação está restrita compressão extrínseca por vasos renais anômalos. Raramente, ao 2º trimestre de gestação, buscando maturação renal e pul‑ as EJUP são causadas por obstruções anatômicas intrínsecas monar mais adequada e evitando oligoidrâmnio em fetos ge‑ (pólipos, tumores, cálculos) ou fibrose secundária a traumas neticamente normais e considerados viáveis, quando a bio‑ locais (principalmente manipulação instrumental e passagem química urinária fetal indicar a possibilidade de recuperação de cálculos). de algum grau de função renal (Na < 100 mg/dL, Ca < 8 mg/ dL, osm > 200 mOsm/L, beta-2-microglobulina < 4 mg/dL, Investigação proteína < 20 mg/dL). Não há indicação de parto prematuro Tem 3 objetivos: induzido para tratamento de VUP, embora amnioinfusão pos‑ • detecção/confirmação da doença; sa ser necessária em casos de oligoidrâmnio grave. A cirurgia • diagnóstico diferencial entre EJUP e HN transitória no caso fetal, até o momento, não melhora o prognóstico renal, prova‑ das formas congênitas; velmente porque a detecção da doença acontece no 2º trimes‑ • determinação da indicação cirúrgica. tre de gestação, após o período de formação do rim, mas pode melhorar a função pulmonar e a função vesical. Quando há um pré-natal eficiente e estruturado, a maioria das EJUP será detectada como HN fetal persistente após o nasci‑ Estenose da junção ureteropiélica mento. Nesses casos, é fundamental documentar com US as Etiologia dimensões renais, o diâmetro piélico AP (com medidas exatas A etiologia mais comum nas crianças é obstrução intrínseca em mm em pontos topográficos de referência), a capacidade funcional; frequentemente, não há obstrução anatômica per‑ de esvaziamento da pelve renal (medindo com bexiga cheia e ceptível. Várias teorias tentam explicar o fenômeno, propondo vazia), se a pelve é intra ou extrarrenal e se há afecção de cáli‑ falhas de condução de estímulo contrátil (inclusive por defei‑ ces e corticais (que devem ter a espessura mensurada em
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mm). Medidas exatas são cruciais para comparação com exa‑ mes futuros. Medidas descritivas/subjetivas não são suficien‑ tes. Descrições do tipo HN “moderada” ou “grave” não se pres‑ tam a comparações objetivas e dependem do examinador. Também é essencial descartar outras doenças e formas bilate‑ rais por meio do exame do rim contralateral, ureteres, espes‑ sura de parede vesical (quando aumentada, sugere bexiga de esforço), capacidade vesical e resíduo pós-miccional (quando aumentado, pode estar relacionado a defeitos de esvaziamen‑ to). Nos meninos, a uretra posterior deve ser observada e, nas meninas, a genitália também deve ser descrita, para afastar compressões extrínsecas de vias urinárias por hidrocolpos. A normalidade da coluna vertebral deve ser verificada, para ex‑ cluir bexiga neurogênica. Quando a doença é de manifestação tardia ou adquirida, em geral é detectada: • incidentalmente (exame de imagem com outra finalidade); • por palpação de massa abdominal (lombar/quadrantes infe‑ riores/mesogástrio, indolor, regular, de pouca mobilidade); • na investigação de ITU (até 20% das EJUP podem apresentar ITU); • mais raramente, ocorrem dor abdominal/lombalgia, hematú‑ ria, cálculos (secundários à estase urinária piélica) ou ruptura da pelve renal obstruída após trauma. As manifestações clínicas das EJUP por vaso anômalo podem ser típicas: alguns pacientes apresentam obstrução intermi‑ tente ligada à ingesta hídrica aumentada. Esses doentes apre‑ sentam um quadro semelhante à cólica nefrética (crises de Dietl), recorrente e que pode ter relação com episódios de in‑ gesta hídrica maior (p.ex., grande consumo de refrigerantes ou sucos). O diagnóstico por imagem pode ser difícil, porque muitos pacientes não têm HN fora das crises. O uso de Doppler pode ajudar a detectar vasos anômalos, mas angiotomografia e ressonância magnética (RM) têm maior sensibilidade. Exa‑ mes durante as crises álgicas são mais sensíveis. A US é excelente para detecção e seguimento comparativo das EJUP, mas não se presta à avaliação funcional do parên‑ quima renal ou da mecânica de eliminação. Para tanto, outros exames estão indicados, conforme descrito a seguir. Cintilografia renal estática Para mostrar a capacidade funcional do parênquima, cicatrizes e anomalias anatômicas do rim. Indiretamente confirma HN mostrando áreas hipocaptantes na topografia da pelve renal. Cintilografia renal dinâmica Serve principalmente para estudar a dinâmica de eliminação urinária. Sua acurácia depende do estado de hidratação: em pacientes desidratados, podem ocorrer exames falso-negati‑ vos para EJUP. O exame tem duas fases iniciais (vascular e de captação parenquimatosa), que têm relação indireta com o fe‑ nômeno obstrutivo (rins hipoperfundidos tendem a ser hipo‑ funcionais, e rins afetados seriamente por uma EJUP podem ter captação tardia do radioisótopo). Após essas duas fases, ocorre a eliminação do radioisótopo por meio das vias uroex‑
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cretoras. Tipicamente nas EJUP, a urina contendo radioisóto‑ po acumula-se na pelve obstruída e não é eliminada ou é elimi‑ nada muito lentamente. Classicamente, sistemas obstruídos necessitam de mais de 20 minutos para a eliminação da urina, sem melhora após uma dose de diurético (furosemida, 1 mg/ kg), mesmo em posição ortostática e após o esvaziamento da bexiga. Sistemas normais esvaziam-se em menos de 10 minu‑ tos sem estímulo diurético. Um grupo intermediário elimina o radioisótopo entre 10 e 20 minutos, mostra resposta parcial ao estímulo diurético ou uma curva de eliminação lenta e é de de‑ finição difícil do diagnóstico (Figuras 4 e 5). Nesses pacientes, o esvaziamento piélico em ortostatismo e após o esvaziamen‑ to vesical (espontâneo ou por cateterismo) sugere que não há obstrução, o que leva a lembrar que o encerramento do exame com a bexiga cheia pode levar a resultados falso-positivos. Cintilografia well tempered é a cintilografia dinâmica sob hidra‑ tação venosa (para impedir hipo-hidratação) e com cateter ve‑ sical aberto (para garantir que não haja contrapressão ao esva‑ ziamento da pelve renal), que pode ajudar a resolver casos duvidosos. Técnicas de injeção precoce de radioisótopo (T0 e T-15) também podem ser úteis para diferenciar obstrução me‑ cânica de clearance lento não obstrutivo. Em obstruções inter‑ mitentes, são possíveis exames normais, quando os pacientes estão assintomáticos. Testes sob hidratação forçada ou com diurético precoce podem ser úteis, provocando a crise álgica e a detecção da obstrução.
Figura 4 Cintilografia dinâmica: curvas obstrutiva e normal.
Figura 5 Cintilografia dinâmica: curvas obstrutiva e descendente lenta, com resposta diurética normal.
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Distúrbios Pieloureterais •
Pielografia venosa Tem os mesmos objetivos e características da cintilografia di‑ nâmica, com a vantagem de conjugar elementos anatômicos e funcionais e a desvantagem de exigir exposição do paciente ao uso de contraste iodado endovenoso e radiação ionizante (maior do que nas cintilografias) e exibir tomadas mais espaça‑ das. Pode mostrar falhas de enchimento correspondentes a tu‑ mores e cálculos ou, nas obstruções extrínsecas, pode mostrar indiretamente a zona de compressão pelos vasos anômalos. Tomografia computadorizada Tem as vantagens da pielografia venosa com mais detalhes anatômicos, apesar de um nível maior de radiação. É vantajo‑ sa na suspeita de EJUP secundária, pacientes com doenças associadas ou suspeita de vasos anômalos (angiotomografia). Uro-RM Reúne aspectos funcionais/dinâmicos e anatômicos, sem ex‑ posição à radiação ionizante. As desvantagens são o tempo longo do exame com o paciente imobilizado (que exige seda‑ ção em crianças mais jovens), o alto custo e a necessidade de software e expertise específicos para as provas dinâmicas. Teste de Whitaker É um exame urodinâmico que se baseia na demonstração de altas pressões de infusão em uma pelve renal obstruída. As desvantagens são a necessidade de uma nefrostomia para a infusão direta da pelve renal e o uso de software apropriado para exame urodinâmico. Pielografia anterógrada Exige anestesia geral, cistoscopia e um cateter ureteral para permitir a injeção direta de contraste. Tem alta sensibilidade e especificidade e pode ser complementado com ureteroscopia em casos escolhidos (suspeita de obstrução por tumores e cál‑ culos), mas é de uso restrito a poucos doentes ou imediata‑ mente antes da cirurgia, para prover detalhes anatômicos. Em muitos pacientes com HN assintomática, os exames iniciais (ultrassonografia e cintilografia dinâmica) não permi‑ tem diferenciar doença obstrutiva com necessidade de cirur‑
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gia. As indicações para cirurgia são casos sintomáticos, obs‑ trução indiscutível nos exames de imagem e piora do grau de HN ou da função renal durante o período de observação. A maioria dos autores também advoga cirurgias em casos de obstrução/curva excretora anormal bilateral e rins com fun‑ ção inicial < 40%, embora isso seja controverso. Nas crianças assintomáticas com curva cintilográfica de eliminação lenta, a cirurgia será definida em exames seriados: se houver piora da HN (medida do diâmetro piélico) ou da função, o paciente será operado. Em geral, são utilizadas US a cada quadrimestre no 1º ano de vida e a cada semestre a partir daí. Cintilografias são repetidas quando há alterações relevantes na US ou no quadro clínico. Há controvérsias quanto ao momento da alta. A maioria libera do seguimento pacientes com resolução com‑ pleta da HN em 2 US em um intervalo de 6 meses e mantém os demais em seguimento programado. A resolução do processo, quando ocorre, acontece nos dois primeiros anos de vida na maioria dos pacientes. Pacientes com obstrução extrínseca intermitente serão operados a partir da confirmação do diagnóstico, assim como aqueles que sofrem de obstrução secundária. Tratamento cirúrgico A cirurgia padrão para EJUP intrínseca é a pieloplastia des‑ membrada de Anderson-Hynes, que consiste na ressecção da porção doente da JUP e reconstrução de uma nova junção com uma anastomose pieloureteral (Figura 6). A via de acesso pode ser lombar, no flanco ou subcostal, e a cirurgia pode ser aberta (em geral, retroperitoneal) ou minimamente invasiva (laparoscópica, robótica ou LESS, em geral reservadas a crian‑ ças mais velhas – há controvérsias quanto às vantagens da in‑ dicação em lactentes). O cirurgião pode optar por proteger a anastomose com um cateter e, em geral, é colocado um dreno perianastomótico. Os riscos imediatos são de fístula urinária, ITU e obstrução da anastomose. Muitas obstruções vasculares da JUP estão associadas a uma obstrução intrínseca, e a pieloplastia desmembrada é usada na maioria dos casos. Quando o cirurgião afasta com se‑ gurança defeitos intrínsecos da JUP, pode ser feita apenas a pexia dos vasos anômalos (cirurgia de Hellstron).
C A
B
Figura 6 Pieloplastia do tipo Anderson-Hynes. (A) Estado pré-operatório. (B) Conduta cirúrgica. (C) Estado pós ‑operatório.
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Raramente há indicação de nefrostomia ou pielostomia pré-operatória em portadores de EJUP. Essa conduta pode ser útil: • em casos com infecção da pelve renal obstruída (pionefrose) que não respondem à antibioticoterapia; • em pacientes de EJUP bilateral com insuficiência renal, para resolver a insuficiência renal e preservar o parênquima renal até o tratamento definitivo; • muito raramente, para decidir entre a possibilidade de recu‑ peração do parênquima renal ou nefrectomia. Seguimento Os pacientes operados por EJUP têm risco de piora funcional do rim operado e re-estenose da JUP. O seguimento, tradicio‑ nalmente por 5 anos, baseia-se em US associadas a cintilogra‑ fias quando necessário. Cintilografias dinâmicas não devem ser solicitadas antes de 4 meses pós-operatório, sob pena de detectar HN por edema e alterações agudas da anastomose, que se resolverão espontaneamente.
Bibliografia 1. 2.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer a alta incidência de hidronefrose fetal e a grande probabilidade de resolução espontânea. • Conhecer os princípios embriológicos da formação do aparelho urinário e como influenciam a detecção de uropatias fetais. • Conhecer a classificação SFU das hidronefroses fetais e suas limitações. • Reconhecer que exames ultrassonográficos detalhados são fundamentais para determinar o algoritmo de conduta nas hidronefroses fetais. • Reconhecer as características ultrassonográficas em casos suspeitos do diagnóstico de válvula de uretra posterior. • Conhecer os dados específicos que autorizam o aconselhamento de cirurgia fetal em casos de suspeita intrauterina de válvula de uretra posterior. • Conhecer as indicações, limitações e utilidades das cintilografias renais (estática e dinâmica).
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CAPÍTULO 16
SANGRAMENTO DIGESTIVO Roberto Antonio Mastroti
Introdução A ocorrência de sangramento é o motivo de 10 a 15% das con‑ sultas de gastroenterologia pediátrica. O sangramento digesti‑ vo, mesmo de pequeno porte, causa profunda preocupação nos pais, razão pela qual o pediatra deve estar preparado para infor‑ mar o grau de gravidade do quadro, a fim de tranquilizá-los. A grande maioria dos sangramentos na infância é pouco im‑ portante, sendo decorrente de causas tratáveis clinicamente e não necessitando de cirurgia. Os poucos casos que constituem uma emergência devem ser tratados no pronto atendimento, e, em seguida, orientados para o tratamento da causa de forma eletiva. Somente um número muito restrito de crianças neces‑ sita de cirurgia ou de procedimento endoscópico de urgência para coibir o sangramento. Grande número de crianças apre‑ senta sangramento digestivo que cessa espontaneamente antes que se descubra sua etiologia, permanecendo sem diagnóstico.
Diagnóstico A hipótese diagnóstica é feita com história e exame físico, parti‑ cularmente da região anal, toque retal e avaliação da quantida‑ de de sangue perdido, sendo a taquicardia sinal importante nessa análise. Os exames laboratoriais, hematócrito e hemo‑ globina, confirmam o grau de anemia. A endoscopia digestiva alta (EDA) e a colonoscopia são auxiliares importantes para de‑ finir o diagnóstico e, muitas vezes, tratar o foco da hemorragia. Existem ainda falsas hemorragias, quando a criança ingeriu alimentos como beterraba, com corantes, como gelatina, e al‑ guns medicamentos, como o sulfato ferroso. O teste com água oxigenada pode esclarecer a falsa hemorragia. A história pode revelar dados como a quantidade de sangue no vômito ou nas fezes, seu aspecto, se o sangue está por fora das fezes ou misturado a ela, se os vômitos coincidem com as refeições, etc. O conhecimento de doenças da criança pode su‑ gerir algumas afecções que podem cursar com sangramento, Classificação como coagulopatias, doenças renais, uso de quimioterapia, Os sangramentos digestivos são classificados em hemorragias síndrome de Münchhausen, etc. As afecções que podem causar sangramentos digestivos de‑ digestivas altas e hemorragias digestivas baixas, de acordo com o local de sangramento. Outra classificação é quanto à intensidade vem ser conhecidas, de modo que a distribuição por faixa etá‑ da perda sanguínea, estando acima ou abaixo de 10% da volemia. ria facilita a identificação da etiologia. Portanto, quanto à ida‑ Finalmente, há a classificação etiológica, de acordo com a de, os pacientes são classificados em três grupos: • recém-nascidos: até 1 mês; causa da hemorragia. • lactentes: de 1 mês a 2 anos; Sangramento alto • crianças maiores: acima de 2 anos. O sangramento alto apresenta-se por hematêmese, secreção gástrica sanguinolenta e/ou melena. A primeira medida é a Para facilitar o raciocínio diagnóstico, serão abordadas neste passagem de sonda nasogástrica para verificar a presença de capítulo as doenças que provocam hemorragias altas e baixas sangue, e, se na aspiração da sonda não houver sangue, ocor‑ nos três grupos etários. rendo apenas melena, deve-se pensar em sangramento baixo. Sangramento alto Sangramento baixo Recém-nascidos Apresenta fezes com sangue, sangramento retal, hematoque‑ As causas mais comuns nessa faixa etária são: sangue mater‑ sia ou melena. Deve-se passar sonda nasogástrica e lavar o es‑ no ingerido, doença hemorrágica do recém-nascido e gastrite tômago para verificar se o sangramento não é alto. Em seguida, de estresse. Outras causas podem decorrer de coagulopatias, deve-se realizar exame da região anal e toque retal. septicemia e malformações vasculares.
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Sangue materno ingerido O recém-nascido deglute sangue, seja durante o parto, seja ao mamar quando os mamilos apresentam fissuras. Deve-se fa‑ zer o teste de Apt, que revela se o sangue é do recém-nascido ou da mãe, mas não há necessidade de tratamento. Doença hemorrágica do recém-nascido Os neonatologistas devem sempre administrar vitamina K ao recém-nascido, pois os fatores de coagulação ligados a essa vi‑ tamina caem nos primeiros 3 dias de vida. Essa medida faz esse problema praticamente desaparecer. Alguns fatores, en‑ tretanto, permitem que a doença se manifeste, como alteração da flora por antibioticoterapia, má absorção de lipídios por mucoviscidose, sepse e amamentação materna. Se o problema prosseguir, deve-se pesquisar coagulopatia e, se negativa, pensar em gastrite e solicitar endoscopia. Gastrite de estresse As gastrites de estresse ocorrem quando as condições de nas‑ cimento são difíceis, o recém-nascido está com algum proble‑ ma grave, geralmente respiratório, ou, ainda, quando necessi‑ ta de cuidados intensivos. O tratamento consiste em confirmar por endoscopia e ins‑ talar tratamento clínico com lavagem de sonda orogástrica e bloqueadores de H2. Lactentes Gastrite, doença ulcerosa péptica e esofagite. Outras situações são trauma por sonda de gastrostomia e ingestão de corpo es‑ tranho. Gastrite e doença ulcerosa péptica Em geral, são primárias e associadas à presença de Helicobacter pylori. Podem ocorrer quadros secundários a trauma, gra‑ ves infecções, queimaduras, doença de Crohn, uso de drogas anti-inflamatórias, etc. A gastrite deve ser confirmada por endoscopia com biópsia e tratada com uso de inibidores da bomba de prótons, blo‑ queadores de H2 ou antiácidos. Raramente é preciso intervir com cirurgia, somente em quadros de hemorragia não contro‑ lável, estenose ou perfuração. Esofagite Frequentemente decorre da doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), com sintomas de regurgitação, não ganho de peso, anemia e infecções pulmonares. A hipótese diagnóstica deve ser confirmada endoscopicamente com exames como estudo radiológico de esôfago, estômago e duodeno (EED), pHmetria de 24 horas, manometria, cintilografia e, mais recentemente, impedanciometria. Também deve ser diferenciada do refluxo gastroesofágico fisiológico (RGE), o que é feito por meio da história. O tratamento é clínico, postural, com dieta espessada, volume menor das refeições e aumento da frequência, medi‑ camentos, etc., por 6 semanas; não cessando as regurgitações, deve-se recorrer aos exames para afastar a DRGE. A DRGE deve ser tratada cirurgicamente com a construção de válvulas
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antirrefluxo. Não se deve esquecer a hérnia hiatal, que, uma vez diagnosticada, por EED e endoscopia, tem tratamento ci‑ rúrgico. Ocorrem também esofagites virais, por citomegaloví‑ rus, herpes vírus simples ou herpes zóster, cujo tratamento in‑ clui antivirais. Essas esofagites são mais comuns nas crianças imunodeprimidas. Crianças maiores Esofagite, gastrite, doença ulcerosa péptica e varizes esofági‑ cas e gástricas, além do sangramento por Mallory-Weiss (le‑ são do esôfago por esforço ao vomitar), trauma por sonda de gastrostomia, síndrome de Münchhausen, corpo estranho e quimioterapia. Neste grupo, o fluxograma é semelhante: se com baixa ida‑ de, 15 a 30 dias de vida e vômitos em jato, pedir ultrassonogra‑ fia (US) para verificar presença de oliva pilórica; nos demais casos, pedir EDA. Caso a endoscopia não faça o diagnóstico e o sangramento cesse, observar e usar inibidores da bomba de prótons e bloqueadores de H2. Quando a EDA for diagnóstica (biópsia, escleroterapia, li‑ gadura) e o sangramento prosseguir, está indicada a angiogra‑ fia e a laparotomia. Varizes esofágicas e gástricas São decorrentes da hipertensão portal, que pode ser pré, intra ou pós-hepática. Nos casos de hipertensão portal pré-hepáti‑ ca, o sangramento costuma cessar espontaneamente, deven‑ do-se tratar a causa da hipertensão portal. Já nos casos de in‑ tra ou pós-hepática, quando a cirrose já se instalou, o transplante deve ser pensado após medidas que controlem o sangramento. Deve-se lembrar que a cateterização da veia um‑ bilical muitas vezes é responsável pela trombose da veia porta. O vômito de sangue é repentino e de grande volume, devendo-se ter o cuidado de não criar um paciente politrans‑ fundido, situação em que o sangramento se mantém. Com o paciente estabilizado, realiza-se EDA, que confirma o diagnós‑ tico, e realiza-se a esclerose ou a ligadura das varizes. O balão intraesofágico serve para bloquear temporariamen‑ te a hemorragia até a estabilização do paciente. Confirmado o diagnóstico, podem ser usados vasoconstritores, como octreo‑ tida, vasopressina e somatostatina. Na falha do tratamento endoscópico, a construção de um shunt portossistêmico intra‑ -hepático (TIP) deve ser considerada, com realização via jugu‑ lar. Finalmente, resta fazer um shunt cirúrgico. Sangramento baixo Recém-nascidos Fissura anal, enterocolite necrosante, má rotação intestinal com volvo e doença de Hirschsprung com enterocolite. Fissura anal Deve-se examinar a região anal e, se houver fissura, indicar amolecimento das fezes e banhos de assento, além de poma‑ das para diminuir a dor. Raramente há necessidade de cirurgia. Quando houver lesões da mucosa anal, pensar em doença in‑ flamatória do intestino.
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Sangramento Digestivo •
Enterocolite necrosante Os prematuros são os mais sujeitos a esse tipo de sangramen‑ to, com estrias de sangue vivo nas fezes. A mortalidade é alta (40%), assim como a incidência em UTI neonatal (1 a 7,7%). Os sinais são característicos: vômitos biliosos, íleo paralítico infeccioso, distensão, eritema da parede abdominal, palpação de massa abdominal e, às vezes, saída de muco com sangue pelo ânus. O quadro predominante é infeccioso, o sangramen‑ to não é importante e o tratamento é o mesmo da enterocolite. Má rotação com volvo É a situação de emergência cirúrgica mais importante do pe‑ ríodo neonatal. O quadro tem início abrupto, com melena e vômitos biliosos. O exame radiológico mostra ângulo de Treitz em localização normal e, às vezes, imagem de “bico de pássaro” se a obstrução é completa. Podem ainda ser percebidas alças volvuladas com imagem de “rodamoinho”. A cirurgia deve ser realizada o mais rapidamente possível e consiste em desfazer o volvo, verificar se as alças são viáveis e seccionar a banda pe‑ ritoneal de Ladd, liberando o duodeno, e, ainda, realizar apen‑ dicectomia. Doença de Hirschsprung com enterocolite O megacólon congênito, uma vez que as fezes permanecem por longo período no tubo digestivo, leva a grandes alterações da flora bacteriana, com o risco de instalação de enterocolite grave. Frequentemente esse quadro evolui para sepse e óbito. Deve-se fazer a profilaxia da enterocolite, mantendo o cólon limpo até o tratamento cirúrgico do megacólon. Lactentes Deve-se pensar em fissura anal, alergia à proteína do leite, in‑ vaginação e duplicação intestinal. Hiperplasia nodular linfoi‑ de do reto, diarreia infecciosa, gangrena do intestino, gas‑ troenteropatia eosinofílica, introdução de corpo estranho no reto e trombocitopenia adquirida também podem provocar sangramentos. Invaginação É a causa mais comum de sangramento baixo nessa faixa etá‑ ria. Ocorre com mais frequência entre 6 meses e 1 ano de idade, sendo 90% ileocecocólicas. O quadro clínico é de dor abdomi‑ nal em cólica, vômitos, distensão abdominal, parada de elimi‑ nações e saída de muco e sangue pelo ânus, com aspecto de “geleia de morango”, o que pode ser percebido também pelo to‑ que retal. A confirmação diagnóstica é feita por meio de US, mas a tentativa de desinvaginação é feita por enema opaco com bá‑ rio ou soro fisiológico sob radioscopia ou US. Caso não se obte‑ nha sucesso, o tratamento é cirúrgico. Alergia à proteína do leite Pode provocar sangramentos intestinais, raramente notados nas fezes, percebidos, em geral, pela anemia resultante e con‑ firmada por hemograma, pesquisa de sangue nas fezes e testes
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de alergia ao leite. O tratamento é clínico, com exclusão de lei‑ te e derivados. Duplicação intestinal As duplicações intestinais que têm comunicação com o intes‑ tino normal comportam-se como verdadeiros divertículos e podem provocar sangramentos pelo mesmo mecanismo que os divertículos de Meckel. O diagnóstico é feito pela US nas duplicações e mapeamento para o divertículo de Meckel, e o tratamento é a cirurgia. Criança maior Deve-se pensar em pólipos, divertículo de Meckel, colite infec‑ ciosa, doença inflamatória do intestino e lesões vasculares. Fissura anal, hiperplasia linfoide do reto, síndrome hemolíti‑ co-urêmica, púrpura de Henoch-Schönlein e gastroenteropa‑ tia eosinofílica também são causas de sangramento nesse gru‑ po etário. Pólipos Os mais comuns são os pólipos retais, hamartomatosos e, em geral, são únicos e alcançáveis, em 80% dos casos, pelo toque retal. O exame das fezes mostra estrias de sangue, e o tratamento é a polipectomia. Quando não tocáveis, deve-se realizar a colo‑ noscopia para diagnóstico e tratamento. Existem várias poli‑ poses, algumas familiares, que são lesões pré-malignas. Divertículo de Meckel O divertículo de Meckel é a causa mais frequente de sangra‑ mento retal importante em crianças. A presença de mucosa gástrica no divertículo provoca ulceração na parede intestinal junto ao divertículo, causando sangramentos baixos. O diag‑ nóstico pode ser confirmado por mapeamento com tecnécio radioativo Tc99. O tratamento é cirúrgico, com diverticulecto‑ mia. Alguns autores sugerem embolização, ainda que esse método pareça menos adequado. Colite infecciosa Quando ocorre diarreia associada a sangramento, é possível que se trate de uma colite infecciosa, que será confirmada pe‑ las culturas. O Clostridium difficile deve ser lembrado se a criança estava recebendo antibióticos anteriormente. Outras bactérias podem provocar sangramento, como Escherichia coli, Salmonella, Shiguella e Campylobacter. Doença inflamatória do intestino Cerca de 15 a 20% dos casos são diagnosticados na infância. Tanto a colite ulcerativa como a doença de Crohn podem pro‑ vocar diarreia com sangue. O diagnóstico de certeza é obtido pela colonoscopia com biópsia. Lesões vasculares Hemangiomas, malformações venosas e arteriovenosas e vas‑ culites, embora raras na criança, podem causar hemorragias
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importantes. O diagnóstico inclui colonoscopia e arteriografia digital, e o tratamento costuma ser cirúrgico. Hemorragias de grande porte As hemorragias de grande porte, acima de 10% da volemia, merecem cuidados intensivos. Deve-se corrigir, inicialmente, com 20 mL/kg de Ringer lactato em bolo e, em seguida, verifi‑ car a necessidade de reposição de sangue ou concentrados. A taquicardia é o melhor indicador de perda sanguínea im‑ portante. Algumas afecções podem provocar hemorragias gra‑ ves, como varizes esofágicas da hipertensão portal, úlcera do divertículo de Meckel, malformações vasculares e úlcera pép‑ tica.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Estar preparado para tranquilizar os pais da criança com sangramento digestivo, pois esta é a causa de 10 a 15% das consultas ao gastroenterologista pediátrico. • Saber classificar os sangramentos digestivos em hemorragias digestivas altas e hemorragias digestivas baixas, de acordo com o local do sangramento. • Diagnosticar o sangramento com base na história e no exame físico.
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CAPÍTULO 17
COMPLICAÇÕES CIRÚRGICAS DO DIVERTÍCULO DE MECKEL E DE OUTROS REMANESCENTES VITELÍNICOS Wilberto Trigueiro
Definição O divertículo de Meckel (DM) e remanescentes vitelínicos re‑ presentam um espectro de anomalias derivadas do conduto onfalomesentérico ou ducto vitelino decorrentes da falha de sua involução parcial ou total durante a fase embrionária. Po‑ dem ser assintomáticos ou determinar complicações cirúrgicas precoce ou tardiamente. O DM é o mais frequente derivado vi‑ telínico em torno de 90% dos casos e sede de importantes cau‑ sas de complicações cirúrgicas, especialmente na infância.1,2 Noções básicas de embriologia O conduto onfalomesentérico é uma comunicação embrioná‑ ria que liga o saco vitelino ao intestino primitivo em desenvol‑ vimento, surgindo em torno da 4a semana de gestação. Poste‑ riormente, o ducto vitelino inicia o processo de obliteração, transformando-se em fino cordão fibroso, reabsorvendo-se completamente em torno da 10a semana de gestação.2 Caso permaneça totalmente permeável, haverá a persistência com‑ pleta do ducto vitelino. Nas situações em que há regressão parcial, decorrem várias afecções: cisto vitelino, sinus umbili‑ cal, pólipo umbilical, divertículo de Meckel e banda fibrosa (Figura 1). Divertículo de Meckel – considerações iniciais Apesar de referido anteriormente, foi Johann Friedrich Mec‑ kel, em 1809,3 quem descreveu o divertículo que leva seu nome (Figura 2), a partir do ducto vitelino. É constituído por estrutura tubular decorrente da persistência parcial e proxi‑ mal ao intestino delgado do conduto onfalomesentérico. Des‑ crita como a anomalia congênita mais comum do tubo digestivo, ocorre em cerca de 1,5 a 3% da população geral.1,2 Localiza-se na borda antimesentérica do íleo terminal, aproximadamente 40 a 100 cm da válvula ileocecal, com comprimento médio de 4 a 5 cm contendo todas as cama‑ das da parede intestinal, sendo na maioria dos casos total‑ mente assintomático, e muitas vezes um achado acidental durante cirurgia abdominal. Estima-se, em longas séries,
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que a probabilidade de ser sintomático varia de 4,2 a 6,4%, sendo que 75% ocorre em crianças abaixo dos 10 anos de idade, sendo 30% antes de 1 ano de vida.2-5 Um cordão fi‑ broso partindo de sua extremidade livre pode uni-lo à base do umbigo ou a outra estrutura abdominal, em torno de 25% dos casos, predispondo à obstrução intestinal.1,4,5 Quando presente em um saco herniário, denomina-se hér‑ nia de Littré.
A
C
E
B
D
F
Figura 1 Anormalidades da involução do ducto vitelino. (A) Persistência do ducto vitelino. (B) Sinus umbilical. (C) Cisto vitelino. (D) Divertículo de Meckel. (E) Pólipo umbilical. (F) Divertículo de Meckel com banda fibrosa. Fonte: adaptada de Anais Brasileiros de Dermatologia.
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Figura 2 Divertículo de Meckel durante ato operatório.
Complicações cirúrgicas do divertículo de Meckel Geralmente surgem nos lactentes (metade dos casos), e as mais frequentemente descritas alternam-se entre a obstrução e a hemorragia intestinais,2,4,5 que podem ameaçar a vida da criança. Na experiência do autor, a causa obstrutiva é a mais comum. Hemorragia intestinal baixa Considerada em algumas séries como a complicação mais co‑ mum.4,5 O DM pode conter tecido gástrico ectópico, determi‑ nando úlcera péptica local ou no íleo adjacente, graças à pro‑ dução de ácido clorídrico.3,5 É a causa mais comum de hemorragia digestiva grave em crianças. O sangramento usualmente é profuso e indolor, podendo levar a palidez inten‑ sa, com eliminação de fezes com sangue vivo ou amarronzado, com ou sem coágulos, que geralmente cede naturalmente, mas com tendência a recorrência, podendo ser necessária oca‑ sionalmente reposição sanguínea. O diagnóstico diferencial é feito com coagulopatias, pólipos intestinais, hemangioma, malformação arteriovenosa, alergia a leite, colite ulcerativa e duplicação intestinal.3 O diagnóstico é realizado por meio da cintilografia com tecnécio-99m, sob a forma de pertecnetato, pois as células parietais da mucosa gástrica têm afinidade pelo isótopo.6,7 Com a introdução endovenosa do fármaco, haven‑ do mucosa gástrica ectópica, aparece área focal contendo ma‑ terial isotópico geralmente no quadrante inferior direito (pos‑ sível local do divertículo) (Figura 3). Normalmente o estômago capta o marcador havendo visualização da bexiga, pois o isó‑ topo tem eliminação renal. Visualização mais tardia (1 hora depois) ou nula pode acontecer quando a mucosa heterotópi‑ ca é de pequena quantidade para captar o fármaco, em casos de trânsito intestinal rápido e necrose da ulceração. A sensibi‑ lidade do exame varia de 25 a 92%, e a especificidade é de 95%, com 33,3% de falso-negativo.3,5-7 Resultados falso-positivos podem aparecer em duplicação intestinal com mucosa gástri‑ ca ectópica, obstrução urinária e raramente obstrução intestinal. A laparoscopia pode auxiliar no diagnóstico quan‑ do a cintilografia é negativa.3,5,8 O tratamento cirúrgico é a di‑
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Figura 3 Cintilografia com tecnécio-99m demonstra área de captação do fármaco por mucosa gástrica ectópica no quadrante inferior direito (seta) em divertículo de Meckel.
verticulectomia, que pode ser feita por laparoscopia ou laparo‑ tomia. Obstrução intestinal Pode ser decorrente de hérnia interna, em razão da banda fi‑ brosa que se estende da extremidade livre do DM, unindo-o à parede abdominal, a outro órgão ou ao mesentério, predispon‑ do, assim, a volvo intestinal. Pode ocasionar necrose e até pe‑ ritonite se o diagnóstico for tardio; é mais frequente em lac‑ tentes jovens.2-4 Inicialmente, a dor abdominal é do tipo cólica, associada a vômitos biliosos e distensão abdominal. Com o passar das horas, surgem sinais de toxemia e desidratação, e o abdome torna-se bastante doloroso, podendo evoluir com ne‑ crose de alça, perfuração e peritonite, com grande risco para o paciente. O quadro clínico e a radiografia simples do abdome em decúbito dorsal e ortostática fazem o diagnós‑ tico de quadro obstrutivo, sendo o divertículo como causa identificado durante a cirurgia, cujo procedimento varia de acordo com os achados operatórios. A outra forma – e mais frequente – de obstrução é a in‑ vaginação intestinal2,5 com quadro de dor tipo cólica inter‑ mitente e eliminação de fezes e muco sanguinolento pelo ânus, peristaltismo de luta e massa palpável na topografia dos cólons, sendo o diagnóstico feito pela ultrassonografia (US). O divertículo de Meckel pode impedir a redução hi‑ drostática da intussuscepção, forma comum de tratamento em lactentes entre 4 e 24 meses de idade sem sinais de irri‑ tação peritoneal. A indicação cirúrgica vai identificar o di‑ vertículo de Meckel, e o tratamento operatório deve ser a diverticulectomia ou a ressecção intestinal localizada, se‑ guida de enteroanastomose. Diverticulite Pouco frequente, pelo fato de a base do divertículo ser larga e não conter tecido linfoide para obstruí-lo, podendo ter origem
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Complicações Cirúrgicas do Divertículo de Meckel e de Outros Remanescentes Vitelínicos •
péptica.3,5 Pode determinar dor abdominal recorrente por acú‑ mulo de enterólitos e causar diverticulite crônica. Quando a base é estreita, e o divertículo, longo, a obstrução do lúmen por enterólito ou corpo estranho favorece a inflamação, perfu‑ ração ou mesmo necrose. Determina quadro de abdome cirúr‑ gico, com dor abdominal, náuseas, vômitos e febre, podendo ser confundida com apendicite aguda; o diagnóstico definitivo geralmente é efetuado durante a cirurgia, que pode ser lapa‑ roscópica.5,9 A US pode auxiliar no diagnóstico. Perfuração Complicação grave que ocorre principalmente antes dos 2 anos de idade, podendo ser decorrente de diverticulite ou úl‑ cera péptica decorrente de mucosa gástrica ectópica, determi‑ nando quadro de dor abdominal com peritonite.4 Persistência do conduto vitelino Consiste na comunicação congênita do umbigo ao íleo – fístu‑ la ileoumbilical (Figura 4) com saída de conteúdo intestinal, seja gasoso ou secreção verde-amarelada, determinando hipe‑ remia da pele adjacente, com infecção secundária. É a segun‑ da anomalia mais frequente derivada do ducto vitelino.5 Em alguns casos, antes da queda do coto umbilical, já pode ser presenciada a lesão. O diagnóstico é feito pela inspeção e mu‑ cosa intestinal frequentemente é vista com orifício central por onde drena secreção (Figura 5). Em casos de dúvida diagnósti‑ ca, radiografar o abdome após injeção de poucos mL de con‑ traste iodado através da sonda introduzida na fístula. Pode ha‑ ver prolapso da mucosa se a fístula for larga, com maior incidência nos primeiros 6 meses de vida.2,3,5 O tratamento ci‑ rúrgico consiste em ressecar toda a fístula até o íleo, concluin‑ do com onfaloplastia.
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ticos. A indicação cirúrgica justifica-se quando presentes duc‑ tos vitelinos remanescentes que predisponham à obstrução intestinal, na presença de tumores ou dor abdominal de ori‑ gem indeterminada.10 Sinus umbilical Consiste na persistência distal do ducto vitelino, com presença de mucosa intestinal em pequena depressão em fundo cego ao nível do umbigo, por onde drena secreção mucoide, deixando a região sempre úmida. Pelo fato de não se comunicar com o intestino, não sai conteúdo intestinal.4 Um sinograma com contraste iodado raramente é necessário, sendo indicado quando há dúvida diagnóstica. A ressecção cirúrgica é curativa. Pólipo umbilical Presença de mucosa intestinal na parte externa da cicatriz umbilical (Figura 6), remanescente do ducto vitelino, sob for‑ ma de pequeno nódulo de coloração vermelho-vivo, peduncu‑ lado ou não, sem orifício central e que drena secreção mucoi‑ de.1,2,4 Diferencia-se do granuloma umbilical, o qual, além de
Encontro acidental de divertículo de Meckel Pode ser encontrado durante outros procedimentos cirúrgicos abdominais ou laparoscopia diagnóstica.5,8,10 Tem sido contro‑ versa a necessidade da diverticulectomia em casos assintomá‑ Figura 5 Persistência do ducto vitelino, visualizando-se na região umbilical mucosa intestinal com orifício central e hiperemia da pele adjacente.
Figura 4 Após queda do coto umbilical, visualiza-se mucosa intestinal por persistência do ducto vitelino.
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Figura 6 Pólipo umbilical, visualizando-se mucosa intestinal.
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não apresentar tecido intestinal, tem coloração pálida e regri‑ de com nitrato de prata tópico. O pólipo usualmente contém fragmentos de mucosa gástrica e pode estar associado a outras formas de remanescentes do ducto vitelino.3 A excisão cirúrgi‑ ca é o tratamento recomendado. O exame histológico confir‑ ma o diagnóstico. Cisto vitelino Consiste na presença cística da porção média do ducto viteli‑ no apresentando revestimento mucoso em seu interior, pren‑ dendo-se ao umbigo e ao íleo através de cordão fibroso, po‑ dendo determinar quadro obstrutivo por hérnia interna.2-4 Outra complicação é o aumento da pressão no interior do cisto em razão da produção crescente de muco, predispondo à is‑ quemia e perfuração subsequente, originando quadro abdo‑ minal agudo. A US pode visualizar o cisto com debris no inte‑ rior. O diagnóstico geralmente é operatório, podendo ser confundido com várias causas de abdome cirúrgico, inclusive apendicite. O cisto vitelino, quando pequeno, pode ser assin‑ tomático.4 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Entender a embriogênese do divertículo de Meckel e dos remanescentes possíveis do duto vitelino. • Saber as principais complicações do divertículo de Meckel e as razões pelas quais acontecem. • Reconhecer precocemente as causas obstrutivas cirúrgicas abdominais do divertículo de Meckel, pois podem ameaçar a vida da criança. • Considerar a enterorragia na criança como complicação da patologia citada, pois pode levar a choque hipovolêmico.
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CAPÍTULO 18
APENDICITE AGUDA José Roberto de Souza Baratella José Raimundo Bahia Sapucaia
Introdução A apendicite aguda (AA) é a causa mais frequente de abdome agudo cirúrgico da criança e, embora seus efeitos letais sejam conhecidos há centenas de anos, apenas no século XIX a doença se tornou mais conhecida, sendo propostas as apendi‑ cectomias curativas. Incidência As apendicites ocorrem em qualquer faixa etária, do recém‑ -nascido ao idoso, mas são mais frequentes a partir da idade escolar, até a maturidade. A incidência é discretamente maior no sexo masculino. Etiopatogenia A obstrução da luz apendicular por fecalito (presente em 20% dos casos) ou por hiperplasia linfoide intramural, seguida de proliferação bacteriana distal (em órgão em fundo cego), é a causa etiopatogênica que explica a ocorrência das apendicites. Eventualmente, essa obstrução é determinada por uma se‑ mente ou mesmo um verme (Ascaris lumbricoidis). São descritas quatro fases evolutivas do processo: edema‑ tosa, flegmonosa, gangrenosa e perfurada. As duas primeiras desenvolvem-se, em geral, em 24 a 36 horas, sendo considera‑ das apendicites em fase inicial (não complicadas). As restan‑ tes aparecem classicamente após 2 a 3 dias de história e cons‑ tituem apendicites em fase avançadas (complicadas). Diagnóstico Na fase inicial, o paciente apresenta tríade sintomática carac‑ terizada por dor periumbilical, febre moderada e anorexia. A dor migra para a fossa ilíaca direita (FID); a febre, inicialmen‑ te, é quase sempre moderada (abaixo de 38°C), elevando-se acima de 38,5°C em quadros de peritonite franca (questionar o diagnóstico de apendicite em casos iniciais já com febre ele‑ vada); a anorexia é tão importante que se deve desconfiar de “apendicite” em criança com desejo de se alimentar. Note-se, entretanto, que os sintomas clássicos de AA aparecem em so‑
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mente cerca de 50% dos casos, o que ressalta a dificuldade diagnóstica inerente à doença. Ao exame físico, o que mais chama a atenção, no início, é a fá‑ cies de sofrimento e a postura do paciente, quieto, sem muita mobilidade, já que a movimentação desencadeia dor pela irrita‑ ção peritoneal. Não se deve deixar de inquirir se, no trajeto para o consultório/hospital, a criança referia dor quando o veículo que a transportava passava por alguma irregularidade do terreno. O paciente geralmente apresenta febre de pequena intensi‑ dade e quadro de irritação peritoneal, demonstrado pelos si‑ nais clássicos de Blumberg (descompressão brusca dolorosa na fossa ilíaca direita – FID) e de Rovsing (compressão retró‑ grada da porção descendente do colo que desencadeia dor na fossa ilíaca contralateral). A simples percussão da parede ab‑ dominal já determina dor mais intensa na FID, evidenciando o quadro de peritonite. As manobras palpatórias devem, ideal‑ mente, ser iniciadas longe do ponto apendicular. Com a progressão do quadro, a peritonite torna-se generali‑ zada, a febre aumenta e o paciente pode evoluir para choque séptico, geralmente após 7 a 10 dias de história. Esse período, no entanto, pode variar amplamente em função da idade e das defesas naturais da criança. O toque retal é um exame útil e geralmente revela dor na ca‑ vidade pélvica à direita e, em meninas, abaulamento da esca‑ vação retouterina (fundo de saco de Douglas – FSD), quando há coleção purulenta nesse local. Entretanto, por ser um pro‑ cedimento desconfortável, sua realização é restrita aos casos de dúvida diagnóstica. Existem vários sistemas de pontuação para o diagnóstico de AA, dos quais o mais conhecido é o de Alvarado; porém, em nosso meio, são pouco difundidos. Situações peculiares Em 30% dos casos, o apêndice tem situação pélvica (sintomas urinários, como polaciúria) e, eventualmente, coleções na es‑ cavação retouterina que, por irritarem o reto, podem determi‑ nar diarreia, dificultando o diagnóstico.
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Em 5% dos casos, o apêndice é retrocecal. Nessas condi‑ ções, a dor é lateroposterior ou lombar. Em pacientes portado‑ res de vício de rotação intestinal, o apêndice cecal ocupa posi‑ ção anômala na cavidade abdominal, de modo que a localização da dor acompanha a anatomia. Em recém-nascidos com AA, deve-se excluir a possibili dade de doença de Hirschsprung associada. Crianças jovens, com menos de 2 anos de idade, geralmente possuem omento curto e não bloqueiam bem quadros infecciosos intraperito‑ neais. Assim, nesses pacientes, a AA evolui mais rapidamente para peritonite generalizada. Exames laboratoriais e imagenológicos Embora o diagnóstico de AA seja essencialmente clínico, al‑ guns exames podem ajudar, inclusive, no acompanhamento dos pacientes. Hemograma Geralmente revela leucocitose moderada (até 15.000/mL) e desvio à esquerda dos neutrófilos. Valores maiores sugerem apendicites complicadas. Resultados normais apontam forte‑ mente contra a hipótese de AA, já que menos de 10% dos ca‑ sos evoluem com hemograma normal. A aplicação maior do exame, entretanto, está no acompanhamento dos casos de evolução desfavorável. Proteína C reativa Geralmente aumentada, é pouco útil no diagnóstico. Seu valor, como o do hemograma, reside na análise evolutiva dos casos complicados. Ultrassonografia de abdome Desde que realizada por profissional experiente, é o exame que melhor auxilia no diagnóstico de AA. Os achados mais im‑ portantes são: apêndice não compressível, diâmetro antero‑ posterior ≤ 7 mm, presença de líquido na cavidade peritoneal e hiperecogenicidade periapendicular. Radiografia simples de abdome A radiografia simples de abdome, realizada em decúbito dor‑ sal e em posição ortostática, é útil para auxiliar no diagnóstico das AA na ausência de ultrassonografia. Os achados mais im‑ portantes são: presença de íleo paralítico regional e de alça sentinela na FID, escoliose antálgica com concavidade à direi‑ ta e apagamento das imagens do psoas e da linha pré-perito‑ neal, também à direita. O encontro de fecalito sugere forte‑ mente AA (Figura 1). Tomografia computadorizada do abdome Em razão da grande quantidade de irradiação inerente ao pro‑ cesso, não há razão, a não ser em alguma situação excepcional, para utilização deste método em casos suspeitos de AA, ape‑ sar do alto grau de acurácia que ele apresenta. Deve-se lem‑ brar, mais uma vez, que o diagnóstico de AA é essencialmente clínico, de modo que, em caso de dúvida, a melhor conduta é internar o paciente e reavaliá-lo periodicamente por até 12 a 18
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Figura 1 Radiografia simples de abdome mostrando fecalito.
horas. Nesse intervalo, o quadro abdominal deve se esclarecer, sem necessidade de manipulações que carreguem potencial de iatrogenia. Diagnóstico diferencial Diante da variabilidade de formas sob as quais a AA pode se manifestar, admite-se o diagnóstico diferencial com pratica‑ mente qualquer processo que evolua com dor abdominal. Os mais importantes são: • infecções a distância (“adenite mesentérica”): –– tonsilite; –– pneumonia, particularmente de base D; –– meningite; –– otite média aguda; • afecções do trato digestivo, de seus órgãos anexos e do peritônio: –– gastroenterocolite aguda; –– doença de Crohn; –– diverticulite de Meckel; –– torção de cisto epiploico; –– colecistite; –– outros casos de peritonite; –– pancreatite; –– hepatite; • menarca e afecções do trato geniturinário, particularmente quando localizadas à direita: –– infecção do trato urinário; –– calculose ureteral ou renal; –– pielonefrite; –– torção de tumor de ovário; –– torção de testículo criptorquídico; –– anexite; –– gestação ectópica; –– rotura de cisto ovariano;
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Apendicite Aguda •
• neoplasias malignas; –– linfoma não Hodgkin; –– tumor de Wilms D roto; –– tiflite leucêmica; • outras afecções: –– púrpura de Henoch-Schönlein; –– anemia falciforme; –– psoíte; –– porfiria; –– doença de Kawasaki. Conduta Embora a cura da AA passe pela apendicectomia, não há con‑ senso entre os cirurgiões pediátricos a respeito da conduta ci‑ rúrgica ideal. Alguns aspectos, como o tratamento a ser dado ao coto apendicular (ligadura simples ou sepultamento), a ex‑ tensão da lavagem intraperitoneal e o uso ou não de dreno pe‑ ritoneal, fogem ao escopo deste trabalho. Entretanto, certos comentários devem ser feitos. Uso de antibióticos Existem dezenas de esquemas antibióticos, preferindo-se iniciar com amicacina, uma vez realizado o diagnóstico de AA. Dependendo dos achados cirúrgicos, acrescenta-se me‑ tronidazol (fase flegmonosa, com pus na cavidade) ou metro‑ nidazol + amoxicilina com clavulanato (fase gangrenosa ou perfurada). Assim, procura-se cobrir os germes mais preva‑ lentes Gram-negativos (E. coli e Klebsiella), anaeróbicos e o Enterococcus. Continua-se com o esquema antibiótico até que o paciente permaneça 24 horas afebril, quando é dada alta hospitalar, sem prescrição de antibióticos para tratamen‑ to domiciliar. Outros esquemas sugeridos na literatura são ceftriaxona + metronidazol ou mesmo monoterapia com cefotaxima. Apendicectomia – cirurgia de emergência Embora o costume seja indicar a cirurgia tão rápido quanto possível, não se deve esquecer que a apendicectomia não é ci‑ rurgia de emergência e que atrasos de 12 a 18 horas não pioram o prognóstico do paciente. Há, portanto, tempo suficiente para preparo pré-operatório adequado (p.ex., reidratação). Igualmente, não há necessidade premente de cirurgias reali‑ zadas na madrugada, quando as equipes cirúrgica e anestésica estão cansadas. Entretanto, se as condições forem adequadas, indica-se a cirurgia tão precoce quanto possível, a fim de se eli‑ minar, o quanto antes, a dor e o desconforto do paciente. Cirurgia convencional (aberta) ou laparoscópica (CL) Os dois métodos são igualmente eficazes no tratamento da AA. As vantagens referidas da CL referem-se a menor tempo de hospitalização, estética e facilidade da cirurgia em obesos, ainda que apresente maior custo. Na realidade, o tempo de hospitalização depende muito da fase em que o paciente é
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operado; crianças com AA edematosa podem receber alta em 24 a 36 horas, independentemente do tipo de abordagem ci‑ rúrgica. Por outro lado, conforme a habilidade do cirurgião pe‑ diátrico, a cirurgia aberta pode ser realizada com incisões me‑ nores e, consequentemente, mais estéticas. Em suma, os dois métodos são adequados, dependendo apenas da experiência cirúrgica de quem está operando, objetivando-se sempre fazer o melhor para o paciente e sua família. Apendicectomia retardada Alguns autores preferem, em determinados casos de AA, tra‑ tar o paciente inicialmente com antibióticos e operá-lo 8 se‑ manas depois. Até hoje, entretanto, não foi demonstrada qualquer vantagem objetiva dessa proposta sobre a orientação clássica de apendicectomia inicial, motivo pelo qual ela conti‑ nua sendo a conduta seguida pela maioria dos cirurgiões pe‑ diátricos. Pós-operatório No pós-operatório, realimenta-se a criança logo que as condi‑ ções clínicas permitam. Em geral, nos casos não complicados, cerca de 12 horas após a cirurgia. Não se usa sonda gástrica, a menos que existam vômitos biliosos. A mobilização precoce é importante, inicialmente sentan‑ do-se o paciente na poltrona e estimulando sua ida ao banhei‑ ro, quando necessário. No dia seguinte, se ainda não o fez, a criança é orientada à deambulação. Essa movimentação é útil para a retomada das funções intestinais. Complicações A incidência de complicações tem diminuído com a adminis‑ tração de antibióticos mais potentes, empregados nas falhas do protocolo terapêutico inicial, e com o acesso mais universal da população a sistemas de saúde especializados. Ainda hoje, as complicações ocorrem em função tanto do tempo de evolu‑ ção da doença quanto de fatores técnicos variados, e são signi‑ ficativamente menos frequentes em crianças operadas por cirurgiões pediátricos em relação àquelas operadas por cirur‑ giões gerais. As complicações mais frequentes são: • abscesso na cicatriz: em geral, apresenta resolução (espontâ‑ nea ou cirúrgica) por volta do 4º ou 5º dia de pós-operatório; • abscesso intraperitoneal: condiciona quadros febris prolonga‑ dos, mas que quase sempre cedem à reformulação da antibio‑ ticoterapia, não havendo, portanto, necessidade de precipita‑ ção em se indicar reoperação ou punção guiada por exame de imagem, especialmente se o estado geral do paciente for bom; • íleo paralítico prolongado; • fístula entérica: geralmente cede com medidas de suporte nu‑ tricional; • sepse (raramente): pode evoluir para óbito; • obstrução por bridas (tardiamente); • infertilidade em meninas: assunto controverso sobre o qual não há conclusão definitiva.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Lembrar que o quadro clínico (dor epigástrica que migra para a FID, febre moderada, anorexia e náuseas/ vômitos) só aparece em metade dos casos de apendicite aguda. • Reconhecer que o quadro clínico já é, por si só, diagnóstico de AA na maioria dos casos. • Saber que a apendicite aguda pode evoluir com quadro diarreico. • Indicar os exames imaginológicos mais úteis – US abdominal e radiografia de abdome em posição ortostática. • Empregar raramente a tomografia computadorizada no diagnóstico de AA, em função da grande quantidade de radiação inerente ao método.
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CAPÍTULO 19
MEGACÓLON CONGÊNITO (MOLÉSTIA DE HIRSCHSPRUNG) César Cavali Sabbaga
Introdução Megacólon congênito, aganglionose intestinal congênita, me‑ gacólon agangliônico, doença aganglionar dos cólons, agan‑ glionose colônica e outros termos são utilizados para designar uma doença congênita que cursa, em síntese, com disfunção do peristaltismo intestinal. Nos indivíduos portadores dessa moléstia, é possível identificar um segmento intestinal distal estreitado, geralmente nas porções terminais do colo, espásti‑ co, e, a montante dele, um segmento dilatado, grande (mega). A causa é a ausência, no segmento estreitado, dos plexos ner‑ vosos murais autônomos e, portanto, de gânglios nervosos (aganglionose). Essa doença já havia sido descrita por Ruysch em 1691, mas foi Harold Hirschsprung, pediatra dinamarquês, quem, pela primeira vez, em 1886, correlacionou uma doença que, precocemente, causa constipação, com um cólon conge‑ nitamente dilatado, considerado o segmento doente.1 Pelo fato de a multiplicidade de termos para identificar uma enti‑ dade nosológica ser indesejável, e como nenhuma das opções citadas foi adotada por todos os interessados, universalmente essa doença é conhecida por moléstia de Hirschsprung (MH). Nas décadas seguintes, vários estudos foram capazes de identificar a ausência de células ganglionares em segmento intestinal,2 observar que o segmento dilatado não era a cau‑ sa da moléstia, mas consequência da dismotilidade do seg‑ mento distal3 e, finalmente, relacionar dismotilidade e aganglionose.4-7 Somente em 1948, Bill e Swenson desen‑ volveram método diagnóstico baseado em biópsia retal e o primeiro tratamento cirúrgico fundamentado em conheci‑ mentos de fisiopatologia.8 Desde então, surgiram outros métodos diagnósticos e novas técnicas cirúrgicas. Epidemiologia A MH ocorre em, aproximadamente, 1 a cada 5.000 recém‑ -nascidos. Sua distribuição é uniforme no mundo, sem predo‑ mínio racial. A MH é cerca de quatro vezes mais comum no sexo masculino, sendo exceção a aganglionose cólica total, cuja distribuição é igual em ambos os sexos.
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Essa doença geralmente é esporádica, mas observa-se um au‑ mento dos relatos de incidência familiar. Seguramente, a inci‑ dência familiar é maior nos casos de aganglionose cólica total. Múltiplos loci parecem estar envolvidos, incluindo cromosso‑ mos 13q22, 21q22 e 10q.9,10 Mutações no Ret proto-oncogene têm sido associadas a neoplasia endócrina múltipla (MEN) 2A ou 2B e MH familiar. Outros genes associados à MH incluem o fator neutrófico derivado de células gliais, o gene receptor en‑ dotelina-B e o gene endotelina-3.11,12 A MH está associada à síndrome de Down e 5 a 15% dos pacientes também apresentam trissomia 21. Outra associa‑ ção, menos frequente, é com a síndrome de Waardenburg, especialmente o tipo IV, que está relacionada à mutação do gene PAX3, com fator de transcrição envolvendo o desen‑ volvimento da crista neural.13 Atresias intestinais, mais fre‑ quentemente atresia de duodeno e má rotação, também fa‑ zem parte das malformações associadas. Fisiopatologia O tubo digestivo primitivo é desprovido de plexos nervosos até a 5a semana de vida embrionária. Nessa ocasião, células nervosas primitivas, originadas da crista neural, migram para a parte cranial do tubo digestivo, e os neuroblastos já podem ser vistos na faringe. Inicia-se um processo de invasão da pa‑ rede do tubo digestivo por neuroblastos, no sentido cranio‑ caudal, através da camada muscular. Essa penetração atinge o esôfago na 6a semana, o cólon, na 8a, e o reto, na 12a. A parte fi‑ nal do reto, dentro do canal anorretal, cerca de 1 a 1,5 cm acima da linha pectínea, não tem células ganglionares ou apresenta distribuição irregular e variável com a idade.14 Após essa fase, os neuroblastos distribuem-se pela pare‑ de do tubo digestivo, migram para camadas mais superfi‑ ciais e maturam nas células ganglionares. Troncos nervo‑ sos parassimpáticos, provenientes da cadeia parassimpática paravertebral (excitadoras), e fibras adre‑ nérgicas (inibidoras) fazem sinapse com as células ganglio‑ nares. O conjunto de células ganglionares e de sustentação
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chama-se gânglio, os prolongamentos neuronais revesti‑ dos pela bainha de Schwann constituem os troncos nervo‑ sos, e o conjunto de células ganglionares e seus troncos for‑ mam os plexos. O plexo intramuscular recebeu o nome de plexo de Auerbach, o submucoso profundo, de Meissner, e o submucoso superficial, de Henle (Figura 1). Segundo Tam, o processo de maturação dos neuroblas‑ tos e, portanto, dos plexos não seguiria exatamente a mes‑ ma cronologia da migração, e o íleo seria o segmento final a maturar.15 Sidebotham et al. estudaram o papel da citocina endotelina-3 na colonização adequada do intestino distal a partir um pequeno número de células-tronco derivadas da crista neural e concluíram que o desenvolvimento normal dessas células depende da endotelina-3 produzida pelas células mesenquimais do próprio cólon.16 Na MH, ocorre uma interrupção da migração dos neuro‑ blastos, a qualquer altura do tubo digestivo, e toda a porção distal à parada do desenvolvimento dos plexos é denomi‑ nada aganglionar. Na forma clássica, que corresponde à maioria dos casos (75 a 80%), o segmento aganglionar cor‑ responde ao reto e ao sigmoide. Formas chamadas longas, com segmento aganglionar comprometendo o cólon ascen‑ dente ou até o transverso, correspondem a cerca de 7% dos casos. Quando a migração é interrompida no íleo terminal e, portanto, todo o cólon é agangliônico, utilizam-se as ex‑ pressões megacólon total ou, mais apropriadamente, agan‑ glionose cólica total (aproximadamente 8 a 10% dos casos de MH). Em 3 a 5% do total dos pacientes com MH, a zona aganglionar está limitada a uma pequena porção terminal do reto, pouco acima da zona normalmente desprovida de gânglios, próximo ao esfíncter interno (forma curta). Com incidência extremamente rara, existe a aganglionose da maior parte do tubo digestivo, incluindo todo o delgado ou mesmo o estômago. A propulsão do conteúdo intestinal é obtida pelo movi‑ mento de ondas peristálticas propulsivas em determinado segmento e de ondas de relaxamento no segmento imedia‑ tamente à jusante. A coordenação entre ondas propulsivas e ondas de relaxamento é mediada pela inervação mural in‑ trínseca do tubo digestivo. O segmento agangliônico, es‑
pástico, apresenta incoordenação do peristaltismo. Pode ser completamente aperistáltico ou contrair-se em bloco, sem ondas propulsivas e de relaxamento. Não há progres‑ são do conteúdo e, funcionalmente, equivale a um segmen‑ to atrésico ou estenosado, isto é, ocluído ou subocluído. O cólon proximal dilata-se pelo acúmulo de conteúdo e as ca‑ madas musculares hipertrofiam-se em consequência de excesso de atividade, na tentativa de vencer a pressão re‑ presentada pelo segmento agangliônico. Nas formas clássi‑ cas e longas, entre o segmento agangliônico e o segmento dilatado existe uma zona de transição, cônica, de maior ou menor extensão, mais fácil de identificar macroscopica‑ mente quanto mais tardio for o diagnóstico. Na agangliono‑ se cólica total, é mais difícil identificar a zona de transição, geralmente localizada no íleo terminal. A Figura 2 representa um espécime obtido em autópsia que mostra todo o cólon, com retossigmoide agangliônico, cone de transição e segmento proximal dilatado. Em cortes histológicos da parede intestinal, corados por hematoxili‑ na-eosina (HE), é possível identificar células ganglionares do plexo de Auerbach entre as camadas circular e longitudi‑ nal da muscular. Na MH, as células estão ausentes. Por outro lado, observa-se a presença de fibras nervosas hiper‑ trofiadas dispersas pela camada muscular, submucosa, muscular da mucosa e até na lâmina própria. Essas fibras são pré-ganglionares. Ao procurar neurônios para sinapse e não os encontrando, hipertrofiam-se, ramificam e distri‑ buem-se pelas camadas da parede intestinal, de forma de‑ sordenada. São fibras parassimpáticas, colinérgicas. Ocorre intensa atividade parassimpática, identificada por hipertro‑ fia das fibras colinérgicas e falta de atividade relaxante sim‑ pática. O cone de transição costuma ser uma zona hipogan‑ glionar, além de apresentar troncos nervosos hipertrofiados. Neurônios entéricos produtores de óxido nítrico, rela‑ xante da musculatura do tubo digestivo, estão ausentes na zona agangliônica, o que seria um dos motivos da espastici‑ dade também do esfíncter interno. Normalmente, quando a ampola retal se distende pela repleção de fezes, ocorre o chamado reflexo de inibição do esfíncter interno, que se re‑ laxa. Na MH, o esfíncter interno continua contraído, fecha‑
Figura 1 Células ganglionares entre as camadas circular e longitudinal da muscular e na submucosa.
Figura 2 Peça de autópsia: cólon com segmento agangliônico em reto e sigmoide.
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Megacólon Congênito (Moléstia De Hirschsprung) •
do. A adenosina deoxinucleotídeo fosfato diaferase e o óxi‑ do nítrico sintetase são alguns marcadores de neurônios produtores de óxido nítrico estudados em segmentos des‑ providos de neurônios produtores de óxido nítrico.17,18 Raramente encontram-se fibras adrenérgicas no seg‑ mento aganglionar e, quando presentes, são escassas, de forma que intensa atividade colinérgica excitadora presen‑ te no segmento agangliônico, associada à ausência de ativi‑ dade inibidora adrenérgica e não adrenérgica, mais a au‑ sência de atividade relaxadora óxido-nitrérgica levam esse segmento à espasticidade e à incoordenação do peristaltis‑ mo e, provavelmente, à tonicidade permanente do esfínc‑ ter interno. Outros tipos de fibras e neuropeptídios têm sido estuda‑ dos na zona aganglionar, como peptídio liberador de gastri‑ na (GRP), neuropeptídio Y, peptídio intestinal vasoativo (VIP), polipeptídio ativador de adenilato-ciclase (PACAP), gastrina/colecistoquinina, neurotensina, substância P e somatostatina. Receptores neuropeptídicos têm sido iden‑ tificados em altas concentrações e com padrões específicos em distintos tipos de doenças colônicas, entre elas, na MH. Os dados obtidos representam a base molecular para inves‑ tigar o papel de neuropeptídios na regulação de funções co‑ lônicas, na gênese da MH e o possível desenvolvimento fu‑ turo de métodos de diagnóstico, profilaxia e tratamento.19 Quadro clínico O conceito largamente difundido de que praticamente to‑ dos os recém-nascidos portadores de MH apresentam um retardo da eliminação de mecônio não é verdadeiro. Na rea‑ lidade, somente a metade dos recém-nascidos com Hirschsprung apresenta retardo na eliminação de mecônio, ao redor de 36 a 48 horas. Dessa forma, sua ausência não deve invalidar a suspeita de MH, quando outros sinais e sintomas sugerirem tal diagnóstico. Por outro lado, a meta‑ de dos recém-nascidos que elimina mecônio com retardo apresenta MH. A MH tem várias formas clínicas de apre‑ sentação. Uma das manifestações está representada pelo quadro de oclusão intestinal baixa no recém-nascido. Não há eli‑ minação de mecônio ao longo das primeiras 48 horas de vida e aparece distensão abdominal. O recém-nascido pas‑ sa a recusar a amamentação e surgem vômitos, inicialmen‑ te alimentares, a seguir corados por bile e, finalmente, es‑ curos, com aspecto de mecônio. O exame físico revela distensão e timpanismo abdominal. Ao toque retal, sente‑ -se o ânus tônico e o reto está vazio, já que o conteúdo colô‑ nico está retido acima do segmento agangliônico. Se esse segmento não for muito extenso e for ultrapassado pelo dedo do examinador (o que acontece na maioria dos pa‑ cientes), o toque retal costuma provocar eliminação brusca e ruidosa de grande quantidade de ar e mecônio. Se houver demora no diagnóstico e o abdome não for descomprimido, há risco de enterocolite grave, podendo causar perfuração e peritonite. O abdome torna-se intensamente distendido, timpânico e doloroso. Sepse pode complicar o quadro de
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enterocolite, por translocação bacteriana ou pela perfura‑ ção. Essas complicações graves, com altas taxas de mortali‑ dade, são evitadas com a investigação precoce de qualquer recém-nascido com quadro clínico de oclusão intestinal baixa, utilizando os métodos auxiliares de diagnóstico, dis‑ cutidos adiante. Essa é a manifestação de MH com seg‑ mento agangliônico severamente espástico, e não necessa‑ riamente longo. A biópsia retal mostra grande quantidade de fibras colinérgicas, denotando intensa atividade motora excitadora e consequente espasticidade mais acentuada. Segmentos agangliônicos menos espásticos, mesmo que um pouco mais longos, não levam a uma situação de oclusão no período neonatal e o quadro clínico é mais tar‑ dio. As crianças passam pelo período neonatal assintomáti‑ cas ou somente com um retardo de eliminação de mecônio e apresentam sintomas nas primeiras semanas de vida, re‑ presentados por obstipação intestinal. O intervalo entre as evacuações fica cada vez maior, as fezes tornam-se mais consistentes e são utilizados diferentes expedientes (supo‑ sitórios, lubrificantes e laxantes), que não funcionam ou funcionam por curto período. Sem diagnóstico e tratamen‑ to, essas crianças chegam a ficar vários dias sem evacuar e, quando o fazem, eliminam fezes duras, sólidas, na forma de pequenas esferas (síbalos) e à custa de grande esforço. O apetite diminui e o ganho ponderoestatural fica prejudica‑ do. Frequentemente o aleitamento é suspenso, em razão da inadequada suspeita de que o leite materno seja o res‑ ponsável pela obstipação, e várias fórmulas lácteas são ofertadas e modificadas em sequência, sem resultado. Após poucas semanas, o lactente fica desnutrido, com ab‑ dome protuso, peristaltismo visível, e palpa-se um fecalo‑ ma na alça dilatada, resultante da desidratação das fezes ali acumuladas. Ao contrário das constipações funcionais ou psicogênicas, não se observa encoprese. O toque retal mos‑ tra ânus tônico, graças ao esfíncter interno espástico e à ampola retal vazia. Atualmente, é cada vez mais raro obser‑ var crianças nesses estágios avançados da doença, graças ao diagnóstico e ao tratamento realizados precocemente. Existe outra apresentação clínica que frequentemente implica maiores dificuldades para o diagnóstico. Trata-se de lactentes que cursam com períodos de obstipação mo‑ derada, que trazem menos preocupação para os pais, inter‑ calados por períodos assintomáticos ou de distensão abdo‑ minal e diarreia. Sistematicamente, são crianças que aceitam mal a alimentação e, portanto, têm algum grau de desnutrição, por vezes grave. Essa forma clínica pode estar associada a qualquer comprimento da zona aganglionar, mas costuma ser o quadro clínico das formas longas ou da aganglionose cólica total. Na forma total, é comum não encontrar aganglionose de todo o cólon, mas, na realidade, hipoganglionose, com me‑ nor concentração de fibras colinérgicas. Por esses motivos, costuma ser difícil identificar o cone de transição entre o in‑ testino normal e o cólon doente, macroscopicamente. É ne‑ cessário enfatizar, portanto, que lactentes desnutridos, com distensão abdominal e que intercalam períodos de obstipa‑
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ção intestinal com períodos de diarreia, devem ser pesquisa‑ dos quanto à possibilidade de serem portadores de MH. As formas curtas são as mais frequentemente confundi‑ das com constipação intestinal funcional, porque os sinto‑ mas costumam se intensificar mais tardiamente, ao redor dos 2 anos de idade. Como o segmento agangliônico é mui‑ to curto, distal, é o reto que se dilata, formando um megar‑ reto semelhante ao que se encontra nas constipações fun‑ cionais. Na MH curta, no entanto, diferentemente do que ocorre na constipação funcional, existe algum grau de obs‑ tipação desde os primeiros meses de vida e não se observa encoprese. Além disso, na constipação funcional, o ânus costuma estar entreaberto e, ao toque retal, encontram-se fezes no canal anal. O diagnóstico diferencial entre MH e constipação intes‑ tinal funcional é, portanto, essencialmente clínico. Contu‑ do, há sinais e sintomas que tornam difícil a diferenciação entre essas afecções e, como o enema opaco revela megar‑ reto em ambas as situações e não consegue demonstrar zona de transição, o diagnóstico diferencial exige manome‑ tria e, fundamentalmente, biópsia retal. Enterocolite Em qualquer uma das situações descritas, especialmente nas formas obstrutivas do recém-nascido e do lactente, existe o ris‑ co do aparecimento de enterocolite, chamada por alguns de en‑ terocolite do megacólon ou enterocolite tóxica. É a complicação mais temida da MH, responsável pela quase totalidade dos óbi‑ tos nessa doença, apesar de a mortalidade da enterocolite na MH ter diminuído substancialmente nas últimas décadas, de 20%, em 1976, para 4 a 5%, atualmente. A melhora deve-se ao reconhecimento precoce dessa complicação e à instituição ime‑ diata de tratamento intensivo. O início da enterocolite manifesta-se por distensão agu‑ da do cólon acima da zona aganglionar, com lesão necrótica da mucosa, que logo se estende às camadas musculares e à serosa, podendo levar à perfuração. A necrose da mucosa pode se estender por longos segmentos do intestino e ser ir‑ reversível mesmo após o controle do surto, causando este‑ noses, fístulas e necessidade de ressecção cirúrgica. O Clostridium difficile, um bacilo esporulado anaeróbico Gram-positivo, é reconhecidamente responsável pelo desen‑ volvimento de diarreia e da colite associada ao uso de antibió‑ ticos. Na enterocolite da MH, é frequente a identificação de C. difficile e/ou de suas toxinas, mas seu papel na etiopatogenia da doença não está bem esclarecido. Provavelmente, altera‑ ções da flora bacteriana do cólon, provocadas pelos distúrbios motores e funcionais da MH, favoreçam a colonização pelo C. difficile, com liberação de toxinas que causam inflamação e dano à mucosa. Fica, porém, sem explicação o fato de não se conseguir isolar o bacilo ou identificar suas toxinas em todos os casos de enterocolite. Na enterocolite, há diarreia líquida muito fétida, escura, pútrida, com muco e pus, vômitos corados por bile ou fecaloi‑ des, febre e intensa distensão abdominal. Frequentemente, associa-se a sangramento retal, e as crianças maiores quei‑
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xam-se de dor abdominal e tenesmo. O estado geral é rapida‑ mente comprometido e o paciente apresenta torpor, sinais de desidratação, taquicardia, taquipneia e hipotensão, com a su‑ perposição de sinais e sintomas de sepse. Na ocorrência de perfuração, pode haver peritonite difusa ou formação de abs‑ cessos peritoneais. Ao exame radiológico, observam-se distensão generalizada de alças intestinais e, com alguma frequência, pneumatose in‑ testinal, o que pode causar dificuldade no diagnóstico diferen‑ cial com enterocolite necrosante. Na suspeita de enterocolite, o enema opaco deve ser evitado, por conta do risco de perfura‑ ção; quando realizado, em formas clínicas menos severas, cos‑ tuma mostrar um aspecto serrilhado da mucosa, múltiplas ul‑ cerações ou a presença de pseudopólipos. O tratamento consiste em vigorosa correção dos distúrbios hidreletrolíticos e do equilíbrio acidobásico, antibioticoterapia sistêmica, sonda nasogástrica, sonda retal e lavagens intesti‑ nais frequentes, com pequenos volumes, instilando e aspiran‑ do solução salina isotônica morna. Antes que se consigam resultados de culturas de amostras de sangue e fezes, admi‑ nistram-se antibióticos para a flora mista, incluindo, necessa‑ riamente, vancomicina. Esta também deve ser associada ao lí‑ quido das lavagens intestinais. Nessa fase, a colostomia está contraindicada, em virtude da alta mortalidade associada. A descompressão deve ser alcançada pelo uso de sonda naso‑ gástrica e pelas irrigações do cólon. Após obter a melhora ini‑ cial do quadro clínico, é aconselhável manter o intestino em repouso por mais 1 a 2 semanas, mantendo a nutrição por via parenteral, seguida de colostomia. Diagnóstico O que define o diagnóstico da MH é a ausência de plexos ner‑ vosos na parede do intestino. Esse fato torna definitivo o con‑ ceito de que é possível afirmar com segurança o diagnóstico de DH somente por meio da biópsia intestinal e do estudo histo‑ lógico do espécime obtido. Outros exames importantes são a manometria anorretal e os exames radiológicos. Exames radiológicos No recém-nascido, a radiografia simples de abdome mostra imagens de oclusão intestinal baixa, com presença de grande número de alças distendidas. Nessa idade, porém, quando existe grande distensão de alças, é difícil distinguir as alças de intestino delgado das alças de intestino grosso. Uma in‑ cidência útil é a obtida com a criança em decúbito ventral com raios horizontais, quando o sigmoide tem ar e é identi‑ ficado como uma imagem gasosa junto ao sacro. Esse dado é compatível com a forma clássica de MH e afasta uma obs‑ trução ao nível de íleo terminal, como atresia ou íleo meco‑ nial. Nas crianças maiores, além da distensão do delgado, observa-se grande volume de fezes no cólon. O enema opaco com bário é capaz de identificar o seg‑ mento agangliônico e sua extensão, além do cone de transi‑ ção e o segmento dilatado, na maioria das crianças com MH. Em recém-nascidos, porém, esses achados são fre‑ quentemente difíceis de demonstrar, uma vez que o cólon
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acima do segmento agangliônico ainda não está muito dila‑ tado e a identificação da zona de transição é difícil. Outra informação importante que o enema opaco fornece refere‑ -se ao calibre do reto. Normalmente, o calibre do reto ou do retossigmoide é igual ou maior que o calibre do restante do cólon, tornando-se menor na MH. Finalmente, em radio‑ grafias obtidas tardiamente, 24 horas após o exame, nota‑ -se retenção de contraste no cólon (Figura 3). Para obter imagens dessa qualidade, é necessário seguir alguns detalhes importantes: • não fazer limpeza prévia do cólon, visto que as irrigações po‑ dem distender o cólon agangliônico e dificultar sua identifica‑ ção, assim como a da zona de transição; • a sonda retal deve ser macia (borracha ou silicone) e sem ba‑ lão, para diminuir o risco de perfuração, e deve ser colocada somente no canal anal, para evitar a distorção de uma zona de transição baixa; • o contraste deve ser injetado com seringa, sob controle fluo‑ roscópico, lentamente, em incidência lateral ou oblíqua, iden‑ tificando o reto e a área de transição; • não injetar excesso de bário, evitando que a imagem da alça dilatada se sobreponha à imagem do segmento agangliônico e da zona de transição; • obter radiografias tardias, 24 horas após o exame; • não utilizar contrastes hipertônicos, como gastrografina, que trazem água para a luz do intestino graças a sua osmolaridade alta, dificultando a interpretação das radiografias de retardo, além de poder levar a criança a uma desidratação grave. Na aganglionose cólica total, essas imagens clássicas não exis‑ tem, uma vez que todo o cólon é agangliônico ou hipogangliô‑
Figura 3 Enema opaco: zona aganglionar e de transição (setas) e zona ganglionar dilatada.
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nico. O cólon pode ter desde um pequeno calibre até calibres próximos ao normal. Eventualmente, é encurtado, as flexuras hepática e esplênica são arredondadas e o aspecto geral lem‑ bra a forma de um ponto de interrogação. Nas formas curtas, o enema opaco revela a presença de megarreto, sem identificar zona de transição, e é, por si só, incapaz de diferenciar MH e constipação crônica funcional. Manometria anorretal A manometria anorretal não é um exame largamente utilizado na maioria dos serviços de cirurgia pediátrica. Sua indicação tem sido limitada e está restrita a crianças que apresentam constipação crônica, portadoras de megarreto e história atípi‑ ca tanto para MH como para constipação funcional. Esse exa‑ me pode confirmar ou excluir um diagnóstico ou, melhor ain‑ da, selecionar pacientes para a realização de biópsia retal. Também pode prestar informações importantes em crianças que chegam a um centro de referência já colostomizadas. Ou‑ tra limitação também seria a idade da criança, já que nos pri‑ meiros dias de vida a manometria anorretal é de difícil realiza‑ ção, em razão dos problemas técnicos. Em indivíduos com arco reflexo nervoso íntegro, anatô‑ mica e funcionalmente, a distensão do reto, pela presença de bolo fecal, relaxa o esfíncter anal interno. Esse fenôme‑ no fisiológico pode ser reproduzido artificialmente por meio de uma sonda, com balões infláveis posicionados ao nível do reto e do esfíncter interno e que registram as pres‑ sões respectivas. O aumento da pressão retal obtido pela insuflação provoca uma queda da pressão no nível do es‑ fíncter interno, e essas pressões são registradas em um po‑ lígrafo. Na MH, como o arco reflexo nervoso não está ínte‑ gro, pela ausência de células ganglionares e suas sinapses no reto, o esfíncter interno não relaxa, mesmo com altas pressões retais.20,21 A manometria anorretal é um exame feito sem anestesia, mas exige sedação em algumas crianças. O exame é depen‑ dente da experiência do examinador, da qualidade dos equipamentos, de sua calibragem e de sua sensibilidade. Aparelhos pouco sensíveis não registram a queda de pres‑ são do esfíncter interno, mesmo em crianças normais. Sua maior limitação refere-se aos recém-nascidos até 12 dias de idade e/ou peso abaixo de 2.700 g, quando o exame não é empregado, por conta da alta porcentagem de falso-negati‑ vos. Recentemente, porém, alguns autores com larga expe‑ riência em manometria têm apresentado resultados muito interessantes, com uma correlação precisa entre os acha‑ dos desse exame e do exame histológico, mesmo em re‑ cém-nascidos. Exames histológicos Biópsia Fragmentos de parede retal podem ser obtidos por biópsia ci‑ rúrgica ou biópsia por sucção. A biópsia cirúrgica é feita sob anestesia geral e fragmentos da parede retal são retirados por via transanal, com bisturi e tesoura, incluindo mucosa, sub‑ mucosa e ambas as camadas musculares. Os espécimes de‑
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vem ser obtidos a 2 e a 4 cm acima da linha pectínea, pois até a 1,5 cm acima dessa linha não existem células ganglionares. A biópsia cirúrgica tem a vantagem de fornecer amostras de bom tamanho ao patologista, permitindo um exame apropria‑ do, mas tem a desvantagem de exigir anestesia geral e apre‑ sentar risco de complicações (hemorragia e perfuração). O advento da técnica de biópsia da mucosa do reto por meio de uma pinça especial por sucção afastou quase total‑ mente eventuais complicações e permitiu, com o auxílio de técnicas histoquímicas enzimáticas, maior facilidade na identificação e na análise de alterações patológicas da iner‑ vação intestinal intrínseca. A biópsia do reto por sucção, que inclui mucosa e submucosa, é realizada sem necessida‑ de de anestesia, após lavagem intestinal adequada. A pinça de biópsia, modelo Noblett, é introduzida pelo orifício anal; a mucosa retal é sugada para dentro do dispositivo de suc‑ ção e uma lâmina cilíndrica corta o tecido, colhendo-se pelo menos dois fragmentos de reto, a 2 e 4 cm acima da linha pectínea.22 Bees et al., em 1983, em uma revisão de 1.340 biópsias de sucção, relataram 3 casos de sangramento re‑ querendo transfusão e um de perfuração resultando em morte.23 A casuística no Hospital Pequeno Príncipe com‑ preende 637 biópsias de sucção e somente 1 caso de hemor‑ ragia necessitando de transfusão como complicação maior.24 Histologia pela hematoxilina-eosina Os espécimes obtidos por biópsia são examinados pelo mé‑ todo convencional, com inclusão em parafina e cortes se‑ riados, no mínimo 50 níveis em espessura de 5 mcm, cora‑ dos pela HE. A ausência de células ganglionares entre as camadas circular e longitudinal da muscular e um aumento do número e da espessura dos troncos nervosos caracteriza histologicamente a MH (Figura 4). Os riscos de não encon‑ trar células ganglionares em um cólon normal diminuem
Figura 4 Presença de filetes nervosos grosseiros entre as camadas musculares da parede do cólon (seta) e ausência de células.
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quando se aumenta o número de cortes para 100, o que tem difícil execução na prática médica. Um número menor de cortes histológicos desconsidera a concentração normal de células ganglionares por volume de tecido e pode, erronea‑ mente, deixar de identificar células ganglionares que, na reali‑ dade, estão presentes na amostra. Histologia pelo método da acetilcolinesterase (AchE) Existe uma concentração elevada de acetilcolina no segmento agangliônico e um correspondente aumento da atividade de AchE. Em preparações histoquímicas, os troncos nervosos presentes na MH apresentam reação fortemente positiva para AchE. Nessa técnica, os espécimes obtidos a fresco são orientados em bloco de tecido hepático, submetidos a congelamento rá‑ pido em nitrogênio líquido a 160°C negativos e cortados em criostato. Os cortes histológicos seriados são obtidos em seis a oito níveis, em espessura de 10 mcm e corados pela técnica de Karnovsky e Roots, com modificação de Hanker et al., e con‑ tracorados pela hematoxilina de Carrazzi.25 Trata-se de um método histoquímico que tem como resultado final a colora‑ ção das fibras nervosas em marrom escuro. Os troncos nervo‑ sos que reagem positivamente com AchE não são todos neces‑ sariamente colinérgicos, mas onde existe fibra colinérgica existe AchE. Em indivíduos normais, filetes colinérgicos AchE-positivos podem ser demonstrados em uma trama deli‑ cada ao redor dos neurônios nos plexos de Auerbach e de Meissner. Raros filetes nervosos positivos para AchE são vis‑ tos normalmente na muscular da mucosa e, excepcionalmen‑ te, na lâmina própria. Meier-Ruge, utilizando o método de coloração de Kar‑ novsky e Roots, identificou a presença de um grande número de troncos nervosos acetilcolinesterase-positivos na lâmina própria e muscular da mucosa em pacientes com MH.26,27 Exis‑ te uma distribuição anormal de fibras colinérgicas na lâmina própria, na submucosa e na muscular da mucosa nos segmen‑ tos aganglionares (Figuras 5 e 6).
Figura 5 Troncos nervosos grosseiros na submucosa, em segmento agangliônico (AchE).
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Figura 6 Troncos nervosos na submucosa e na lâmina própria (AchE).
Tratamento Até as últimas décadas do século XX, o tratamento de MH era praticamente padronizado e todas as crianças eram submeti‑ das, inicialmente, a uma colostomia e, após algum tempo, de duração variável entre 2 meses e 1 ano, ao tratamento definiti‑ vo. Dependendo do tipo de colostomia realizada e da técnica cirúrgica adotada pelo cirurgião, a criança era submetida a duas ou três intervenções cirúrgicas e precisava conviver por algum tempo com uma colostomia. Todas as técnicas têm em comum a ressecção do segmento aganglionar e a reconstitui‑ ção do trânsito fecal mediante uma anastomose entre a por‑ ção terminal do intestino normal e a porção terminal do reto, ao nível da linha pectínea. A dificuldade técnica reside na ne‑ cessidade de ressecar toda a porção terminal do intestino agangliônico, o que, necessariamente, inclui o reto e a realiza‑ ção de uma anastomose que fica apenas 2 cm acima do orifício anal. Swenson descreveu a primeira técnica que preenche es‑ sas duas premissas, em 1948.8 A técnica original consiste em: • liberação do cólon a ser abaixado e do intestino distal agan‑ gliônico por cuidadosa dissecção pelve adentro, até 2 cm aci‑ ma do canal anal; • secção do reto ao nível distal da dissecção e fechamento da extremidade proximal; • no tempo perineal, o coto retal remanescente é invertido e ex‑ teriorizado, o cólon é abaixado através dele, o segmento agan‑ gliônico é ressecado e, após sutura do cólon ao reto, externa‑ mente, reto e cólon são reintroduzidos na pelve. Por outro lado, um conceito equivocadamente difundido de que o diagnóstico histológico de MH por esse método deveria necessariamente identificar troncos nervosos na lâmina pró‑ pria contribuiu para criar controvérsias quanto a sua validade. Nem sempre essa atividade está presente na lâmina própria, especialmente em recém-nascidos. Hirsig et al. mostraram que o número de fibras aumenta com o tempo e que a falta de atividade de AchE na lâmina própria não deve afastar o diag‑ nóstico de MH. Brito e Maksoud afirmam existir três padrões cronológicos bem definidos de distribuição dos troncos coli‑ nérgicos AchE-positivos, caracterizando um caráter evolutivo.
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No recém-nascido e até os 3 meses de idade, não há ati‑ vidade de AchE na lâmina própria, com a presença de tron‑ cos nervosos grossos na muscular da mucosa e na submu‑ cosa. Ao redor de 1 ano de idade, surgem, ao lado dos troncos grossos, fibrilas e alguma infiltração na lâmina pró‑ pria. Acima de 1 ano de idade, o padrão, denominado clás‑ sico, mostra fibrilas e não mais troncos grossos na submu‑ cosa, muscular da mucosa e nítida infiltração da lâmina própria. No mesmo estudo, os autores, ao realizar biópsias em diferentes idades na mesma criança, obtiveram os mes‑ mos resultados, demonstrando a evolução do padrão de atividade de AchE com a idade.28 Essa técnica deixava uma pequena porção do reto distal agangliônico (1 a 2 cm) intacta. A consequência era a ma‑ nutenção dos sintomas e a alta incidência de enterocolite no pós-operatório. Swenson modificou-a, fazendo a anas‑ tomose colorretal oblíqua, deixando apenas 1,5 cm de reto anteriormente e abrindo a parede posterior até o canal anal (Figura 7). Largamente utilizada por muitos anos, mesmo após o advento de outros procedimentos, hoje é utilizada por um número menor de cirurgiões. A cirurgia de Swenson impli‑ ca extensa dissecção pélvica, e um dos principais motivos que a levaram a deixar de ser utilizada em grande escala é o risco considerável de complicações ligadas a lesões de ner‑ vos pélvicos que inervam reto e bexiga e relacionados à fun‑ ção sexual. As consequências podem ser incontinência uri‑ nária, incontinência fecal, impotência sexual e ejaculação retrógrada. Em maio de 2002, Swenson publicou uma revisão de 50 anos de tratamento de MH. Baseado em sua própria expe‑ riência e em mais de 60 trabalhos de vários autores, in‑ cluindo complicações e resultados obtidos por todas as téc‑ nicas utilizadas e as inúmeras modificações de cada uma, defende sua cirurgia. Para Swenson, é a técnica que produz resultados semelhantes às outras e com menor índice de reoperações. Talvez o maior problema da cirurgia seja a di‑ ficuldade de sua execução, envolvendo meticulosidade téc‑ nica e a não obtenção uniforme, por outros cirurgiões, dos mesmos resultados conseguidos pelo próprio autor.
Figura 7 Operação de Swenson.
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Duhamel, em 1956, desenvolveu sua técnica, cujo princí‑ pio básico consiste em ressecar o cólon agangliônico, man‑ tendo, porém, o reto.29 O espaço retrorretal é acessado e fa‑ cilmente descolado por dissecção romba, sendo esta a única dissecção pélvica. O espaço retovesical não é aborda‑ do. O cólon normal é abaixado pelo espaço retrorretal. Por via perineal, a parede posterior do reto é aberta e, através dessa abertura, o cólon é anastomosado à parede posterior do reto por meio de duas pinças que esmagam a face ante‑ rior do cólon abaixado contra a parede posterior do reto. Por muito tempo, foi a cirurgia mais utilizada no tratamento da MH, e ainda hoje é a escolhida por muitos cirurgiões. O fato de ter sido a cirurgia para MH que recebeu o maior número de modificações também significa que tem problemas, os quais os autores tentavam solucionar com suas modifica‑ ções. Como a abertura da parede posterior do reto era feita acima do esfíncter interno, houve grande incidência de en‑ terocolite, e Duhamel passou a fazer a abertura abaixo do esfíncter interno, o que aumentou o número de pacientes com incontinência. Finalmente, a abertura passou a ser fei‑ ta na parede posterior do reto entre as fibras do esfíncter in‑ terno, preservando as fibras mais distais (Figura 8). Soave, em 1964, descreveu a última grande técnica para tratamento da MH.30 Mesmo as técnicas mais recentes, por videolaparoscopia ou acesso transanal exclusivo, utilizam princípios da operação de Soave. Nessa cirurgia, o cólon normal é abaixado por dentro do reto, cuja mucosa foi reti‑ rada até ao nível da linha pectínea, onde é anastomosado ao canal anal. Na técnica original de Soave, a anastomose é realizada em um segundo tempo, 12 a 15 dias após o acola‑ mento que ocorre entre a serosa do cólon abaixado e a face interna do coto retal, cuja mucosa foi retirada. Durante esse período, a porção terminal do cólon abaixado (5 a 6 cm) é
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exteriorizada pelo ânus, ressecada na ocasião da anasto‑ mose. Atualmente, a quase totalidade dos cirurgiões que utilizam a técnica de Soave faz a sutura imediata do cólon abaixado ao canal anal, conforme modificação proposta por Boley (Figura 9).31 A partir da década de 1980, vários cirurgiões passaram a realizar, em casos selecionados, o tratamento cirúrgico em um único tempo, sem colostomia prévia, por qualquer uma das técnicas conhecidas. Na segunda metade da década de 1990, porém, surgiram duas novas opções – a primeira, apresentada por Georgeson e que consiste na correção cirúrgica da MH por meio de um procedimento videolapa‑ roscópico,32 e a segunda, alguns meses depois, por de la Torre-Mondragon, logo seguido por outros autores, que descreveu uma técnica cirúrgica que possibilita o tratamen‑ to definitivo da MH por meio de um acesso totalmente transanal, sem laparotomia ou videolaparotomia e aplicá‑ vel à maioria das crianças com MH.33 Seguramente, esse foi um dos mais arrojados e revolucionários avanços em técni‑ ca cirúrgica em cirurgia pediátrica nos últimos anos. Toda a mucosectomia é realizada por via transanal (Figu‑ ra 10). Após a liberação de cerca de 6 a 8 cm de mucosa, o coto retal, então composto somente de muscular e serosa, é parcialmente evertido e aberto, e o cirurgião tem acesso à ca‑ vidade pélvica e ao cólon, que é sucessivamente liberado mediante ligadura dos vasos, junto à parede colônica, sendo possível exteriorizar o segmento agangliônico, o cone de transição e o cólon normal, ressecar a esse nível e realizar a anastomose do extremo distal do cólon normal ao canal anal, como na cirurgia de Soave. Assim, todo o procedimento é realizado por dentro do reto, sem laparotomia (Figura 11). É recomendada a realização de biópsia de congelação no intraoperátorio, para identificar o segmento a ser ressecado,
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Figura 8 Operação de Duhamel.
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Figura 9 Operação de Soave.
Figura 10 Mucossectomia.
Figura 11 Dissecção do cólon.
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incluindo a zona de transição. Esse procedimento exige, porém, patologista experiente e, mesmo assim, não é com‑ pletamente isento de erro. Quando a porção terminal do có‑ lon normal, logo acima da zona de transição, está muito di‑ latada, deve ser ressecada. Seu diâmetro excessivo dificulta a anastomose, além de apresentar peristaltismo alterado pela distensão e hipertrofia. Em algumas crianças, por efei‑ to do diagnóstico precoce ou do esvaziamento do cólon dia‑ riamente, até a cirurgia definitiva, a zona de transição desa‑ parece ou torna-se de duvidosa identificação macroscópica. A primeira etapa do tratamento de um recém-nascido ou lactente com quadro oclusivo ou suboclusivo consiste em descomprimir o intestino distendido, isto é, aliviar a oclusão por meio de lavagens intestinais evacuadoras. A maioria das crianças com essa apresentação da MH respon‑ de bem às irrigações do cólon, eliminando as fezes e os ga‑ ses retidos. A frequência das lavagens intestinais varia de criança para criança – algumas necessitam de mais de uma lavagem por dia, outras mantêm-se bem com uma lavagem a cada 2 a 3 dias, dependendo do grau de espasticidade do cólon agangliônico. O abdome permanece flácido, a aceita‑ ção alimentar é boa e podem ser conduzidos até o momen‑ to da cirurgia, em um único tempo, sem colostomia. O abaixamento transanal tem sido a opção de grande parte dos cirurgiões, factível na maioria dos pacientes, visto que em 75 a 80% dos casos o segmento agangliônico com‑ preende reto e sigmoide. Quando o cólon a ser ressecado não pode ser alcançado até sua extremidade proximal pelo acesso transanal, a cirurgia é completada sem problemas por videolaparoscopia ou laparotomia. A cirurgia pode ser realizada já no período neonatal, no primeiro mês de vida. Pequeno percentual de crianças permanece ocluído mesmo com lavagens, eliminando pouca ou nenhuma quantidade de fezes e gases. São crianças com cólon muito
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espástico ou com segmento agangliônico mais longo, não ultrapassado pela sonda de lavagem. Devem, então, ser submetidas à colostomia, por causa do elevado risco de en‑ terocolite. A lavagem intestinal em crianças com MH não deve ser feita como usualmente se faz em outras circunstâncias. In‑ troduzir uma sonda retal e injetar todo o líquido de uma só vez traz risco de retenção desse volume no cólon distendi‑ do, acima do segmento doente. Em consequência, pode ha‑ ver intoxicação hídrica em virtude da absorção de grandes volumes de água, piora da distensão abdominal com reper‑ cussões respiratórias e favorecimento de volvo do sigmoide ou de enterocolite. A lavagem deve ser feita com solução salina isotônica com 10% de glicerina. Deve-se utilizar sonda macia, mas calibrosa o suficiente para ultrapassar a zona de transição, já avaliada pelo enema opaco – quando a sonda atinge o có‑ lon normal distendido, costuma haver drenagem de gases e fezes espontaneamente. O líquido de lavagem deve ser in‑ troduzido com seringa, em pequenos volumes (cerca de 20 mL de cada vez), seguidos por aspiração, até que se obte‑ nha líquido claro à aspiração e o abdome se revele flácido. Quando necessária, a colostomia é realizada logo acima do cone de transição, em cólon gangliônico, do tipo terminal. O coto distal é simplesmente fechado ou pode-se ressecar a porção agangliônica até alguns centímetros acima da refle‑ xão peritoneal, já como parte da cirurgia definitiva, a qual pode ser realizada assim que as condições do recém-nascido ou do lactente permitirem, por qualquer das técnicas dispo‑ níveis, de acordo com a escolha e a experiência do cirurgião. Uma criança maior que se apresenta com constipação in‑ testinal crônica pode ser tratada, também, pelo abaixamento transanal, sem colostomia. Obviamente, será necessário esva‑ ziar inicialmente o cólon por meio das lavagens intestinais. Todavia, nos casos de diagnóstico muito tardio, felizmente cada vez mais raros, quando o cólon acima do segmento de transição se torna muito dilatado, é praticamente impossível conseguir uma limpeza adequada ou uma redução de seu diâ‑ metro para a cirurgia. Além disso, essas crianças costumam ser severamente desnutridas, sendo mais prudente realizar uma colostomia, e não tentar colocá-las em condições de ci‑ rurgia somente com irrigações evacuadoras do cólon, longas, desgastantes, traumáticas e frequentemente ineficientes. A cirurgia definitiva é realizada semanas ou meses após a colostomia, quando a criança estiver em bom estado nu‑ tritivo. Algumas crianças são portadoras de grandes fecalo‑ mas pétreos que são retirados apenas manualmente, sob anestesia geral. Complicações As complicações pós-operatórias incluem perda fecal intermi‑ tente (soiling), incontinência, deiscência de anastomose, este‑ noses e enterocolite. Todas as técnicas apresentam alguma in‑ cidência de perda fecal intermitente, que desaparece após semanas ou meses. Mesmo que temporária, a intercorrência traz grande desconforto para a criança e muita angústia para
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os pais, visto que provoca intensa e dolorosa dermatite peria‑ nal, de difícil controle. Com higienização frequente da região perianal e uso de diferentes métodos de proteção da pele, as lesões podem melhorar por poucos dias, mas retornam e pro‑ vocam grande desconforto. A cirurgia de Soave é a que apre‑ senta maior incidência dessa complicação e que leva mais tempo para resolução.34 Já a incontinência severa, prolongada ou definitiva, res‑ ponsável por precária qualidade de vida, tem como princi‑ pal causa erro técnico (p.ex.: abrir a parede posterior do reto, na operação de Duhamel, abaixo do esfíncter interno, ou retirar a mucosa abaixo da linha pectínea, na cirurgia de Soave ou no abaixamento transanal). Episódios de entero‑ colite no pós-operatório podem surgir vários meses ou anos após uma cirurgia bem realizada e com resultados até então satisfatórios. Nesses casos, é extremamente difícil enten‑ der suas causas. A maioria, no entanto, aparece nas primei‑ ras semanas ou nos primeiros meses de pós-operatório e está relacionada à retenção de fezes e gases em um seg‑ mento a montante de uma estenose, graças à permanência de um segmento distal agangliônico ou de uma zona de transição, ou seja, por problemas técnicos. Resultados A grande variedade de técnicas cirúrgicas e o grande número de modificações a elas acrescentadas são indicadores de que o tratamento cirúrgico da MH ainda não é o ideal e que ainda há muito a entender da fisiopatologia. A evolução em longo prazo, após o tratamento da MH, é de difícil de determinação, em razão dos relatos conflitan‑ tes da literatura. Alguns trabalhos mostram alto grau de sa‑ tisfação, enquanto outros descrevem altas incidências de constipação e incontinência. Outra inquietação a respeito dos resultados em longo prazo refere-se aos métodos de avaliação. O mais utilizado lista os resultados como exce‑ lentes, bons, regulares e insatisfatórios, envolvendo julga‑ mentos subjetivos. Outros incluem exames como defeco‑ grama ou manometria anorretal, além de dados clínicos, e criam pontuações. A realidade, porém, é a falta de unifor‑ midade na avaliação. O único resultado fácil de interpretar é o ótimo, ou seja, um indivíduo que consegue evacuar espontaneamente, em intervalos regulares e sem esforço, fezes macias e não eli‑ mina gases ou fezes inadvertidamente em nenhuma cir‑ cunstância – esse resultado é obtido em cerca de 70 a 80% dos pacientes, em média, nos vários relatos da literatura. Critérios um pouco menos exigentes e que admitem ainda como satisfatório eventuais perdas involuntárias de fezes durante episódios de diarreia ou à noite, desde que esporá‑ dicas e raras, assim como a necessidade, também eventual e com periodicidade baixa, de enemas evacuadores, permi‑ tem levar o percentual de resultado bom a 90%. O que se observa ao longo de vários anos de experiência, porém, é que resultados classificados por pais ou por cirurgiões como excelentes ou ótimos passam a não ser aceitos, quan‑ do o próprio paciente (adolescente ou adulto) se autoavalia.
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A comparação entre as três técnicas mais utilizadas nos últimos 50 anos e antes do advento das mais recentes, com base na extensa literatura médica disponível, leva a uma conclusão que pode ser assim resumida: a maior incidência de distúrbios sexuais e urinários acontece na operação de Swenson; de constipação, na cirurgia de Duhamel; e, de in‑ continência, no abaixamento de Soave. Aganglionose cólica total Na maioria dos casos de aganglionose cólica total, o diagnósti‑ co não é realizado no período neonatal. Apesar de todo o cólon ser agangliônico ou, mais frequentemente, hipogangliônico, não costuma apresentar forte espasticidade. O quadro clínico mais encontrado é o de uma constipa‑ ção crônica moderada, intercalada com episódios de diar‑ reia, distensão abdominal e desnutrição. O enema opaco mostra a imagem de um cólon de calibre pequeno ou com‑ patível com o normal, mas, em geral, é um cólon encurtado e com as flexuras arredondadas. A biópsia retal confirma o diagnóstico de MH. Não é raro que sejam feitas colosto‑ mias em zonas agangliônicas, erroneamente julgadas pelo cirurgião durante a operação como normais e que não fun‑ cionam adequadamente. Biópsias seriadas acabam por de‑ finir a altura da aganglionose no ceco ou íleo terminal, reali‑ zando-se, então, a ileostomia. O tratamento cirúrgico mais utilizado é o abaixamento endorretal do íleo, com o mesmo conceito da operação de Soave para MH clássica sem bolsas. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar os sinais e sintomas de megacólon congênito em suas diferentes apresentações clínicas. • Indicar os exames complementares necessários e suficientes para o diagnóstico de megacólon congênito. • Conhecer os detalhes técnicos na realização de um enema opaco na suspeita de megacólon congênito, sendo apto inclusive a colaborar em sua realização, quando necessário. • Ter noção das diferentes táticas e técnicas cirúrgicas que poderão ser utilizadas pelo cirurgião referenciado para o tratamento cirúrgico. • Identificar as complicações pós-operatórias mais frequentes e as condutas clínicas a serem tomadas em caráter de emergência nas mais graves, com risco de morte, como na enterocolite.
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CAPÍTULO 20
ESCROTO AGUDO Fernando Costa
Introdução O escroto agudo, ou síndrome escrotal aguda, é um quadro clí‑ nico caracterizado por dor súbita, seguida de aumento de vo‑ lume e hiperemia, na região escrotal. Geralmente é unilateral e, em alguns casos, o paciente apresenta febre, náuseas, vômi‑ tos e dor abdominal. O escroto agudo pode ser desencadeado por afecções de natureza isquêmica, processos inflamatórios, traumatismos e até mesmo por encarceramento herniário. Na Tabela 1, encontram-se as causas mais conhecidas que podem levar ao escroto agudo.1 A síndrome escrotal aguda deve ser conduzida como uma situação de emergência, tendo em vista que, se for decorrente de uma torção do cordão espermático, levará, em poucas ho‑ ras, à perda da gônada. Na impossibilidade de um diagnóstico etiológico seguro, o paciente deve ser levado à cirurgia em ca‑ ráter de urgência. O aspecto clássico da síndrome pode ser ob‑ servado na Figura 1. Para orientação diagnóstica, o médico deve levar em conta a idade da criança, os sintomas e os achados do exame físico.2 A torção do cordão ocorre, geralmente, no período neonatal e no início da puberdade; a torção de apêndice testicular atinge mais os pré-púberes; e a epididimite é mais comum entre ado‑ lescentes e adultos jovens. A dor súbita e muito intensa, prin‑ cipalmente se acompanhada de náuseas, vômitos e dor abdo‑ minal, é mais sugestiva de torção de testículo. Febre, sintomas urinários, afecções geniturinárias prévias ou instrumentação
urológica fazem suspeitar de epididimite. Durante o exame, além de dor, edema e hiperemia escrotal, deve ser avaliado o tamanho, a consistência e as alterações na posição do testícu‑ lo. Nem sempre isso é fácil de ser realizado, pois a dor pode ser muito acentuada e, muitas vezes, existe hidrocele reacional. Atenção especial deve ser dada ao cordão espermático e ao ca‑ nal inguinal, à procura de eventual hérnia encarcerada. Os dados de história e o exame físico cuidadoso são funda‑ mentais para uma conduta rápida e adequada, evitando perda de tempo, que pode comprometer a viabilidade de um testícu‑ lo isquêmico. Exames laboratoriais e de imagem podem auxi‑ liar, mas não devem retardar a terapêutica. Se a suspeita maior é de epididimite, deve-se coletar urina para análise. O exame sonográfico com Doppler colorido, que é considerado de alta especificidade e sensibilidade na torção de testículo, pode ser realizado em muitos serviços de forma imediata. En‑ tretanto, principalmente nas crianças menores, seus resulta‑ dos não são tão confiáveis e devem ser analisados com caute‑ la. A cintilografia com radioisótopos (tecnécio) também pode ser utilizada, entretanto, é mais demorada, não está pronta‑
Tabela 1 Causas de escroto agudo Torção de cordão espermático Torção de apêndices testiculares Epididimite/orquite Trauma Edema escrotal idiopático (dermatite, picada de inseto) Vasculite (púrpura de Henoch-Schönlein) Hérnia inguinal encarcerada
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Figura 1 Aspecto clássico de criança portadora de escroto agudo apresentando hiperemia e edema unilateral.
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mente disponível na maioria dos hospitais e pode provocar um retardo diagnóstico inadmissível. É importante insistir: se a torção de cordão espermático não puder ser afastada rapida‑ mente e com segurança, deve-se indicar com urgência a ex‑ ploração cirúrgica. A seguir, serão abordadas as principais afecções que provo‑ cam escroto agudo na criança. Torção de testículo Aproximadamente 1 entre 158 homens pode apresentar torção do cordão espermático antes dos 25 anos; a incidência anual gira em torno de 1:4.000. O episódio pode ocorrer em qualquer época da vida, mas a frequência é bimodal, com um pico na fase perinatal e outro próximo da puberdade. Cerca de 90% dos casos ocorrem na fase pós-puberal, com pico de incidên‑ cia entre 14 e 16 anos, sendo responsável por cerca de 25% dos casos de escroto agudo em crianças.1-3 Dois tipos de torção podem ocorrer: extra e intravaginal (Fi‑ gura 2). A primeira é mais comum na fase perinatal, quando a fixação do testículo na bolsa ainda não está bem estabelecida. O cordão espermático torce acima da inserção da membrana vaginal. Nas crianças maiores, é mais frequente a torção intra‑ vaginal, ocasionada pela inserção alta dessa membrana, fa‑ zendo o testículo ficar pendurado como o “badalo de um sino”, facilitando sua rotação. Essa anormalidade anatômica é en‑ contrada em 12% dos homens e, geralmente, é bilateral.3 Os sintomas clássicos da torção são representados por dor aguda na região escrotal, normalmente unilateral, seguido de aumento de volume, edema e hiperemia nessa região. Dor ab‑ dominal e vômitos podem estar presentes em muitos casos. Dependendo do tempo e do grau de torção, os dados de exame físico são mais acentuados e a palpação é mais difícil, pela fal‑ ta de cooperação da criança. A gravidade da torção define a in‑ tensidade do comprometimento vascular. Quatro a 8 horas de torção podem levar a grave dano isquêmico, com repercussão
A
B
Figura 2 Representação esquemática dos dois tipos de torção do cordão espermático, com hidrocele reacional. (A) Extravaginal. (B) Intravaginal.
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permanente para a morfologia testicular e para a espermato‑ gênese. Após 12 horas, poucos testículos podem ser salvos.2,3 Portanto, o caso deve ser conduzido como urgência, sem pe‑ ríodos de observação para avaliação posterior. Diante da sus‑ peita de torção, a cirurgia deve ser indicada imediatamente. Relato de trauma escrotal ou de exercício físico vigoroso deve ser considerado com ressalvas como agente do quadro doloroso; muitas vezes, precedem, na verdade, uma torção testicular. Muitas crianças maiores referem sintomas seme‑ lhantes, de curta duração e de resolução espontânea, que po‑ dem ter sido episódios de torção intermitente.4 Exames de imagem devem ser realizados apenas nos casos duvidosos, se isso não demandar muito tempo. Historicamen‑ te, o exame com radioisótopos era o estudo de escolha para os casos suspeitos. Entretanto, atualmente a ultrassonografia (US) com Doppler colorido (Figura 3) tem se tornado mais po‑ pular, pois é mais rápida, menos invasiva, oferece resultados semelhantes e está disponível em maior número de hospitais. Estudos demonstram sensibilidade de 88,9% e especificidade de 98,8%, com falso-positivo de 1%.5 Apesar disso, o exame não é 100% sensível ou específico, e há relatos de torção com resultados normais ou duvidosos. Portanto, quando o diag‑ nóstico de torção não pode ser afastado com segurança, deve‑ -se indicar a exploração cirúrgica. Normalmente, realiza-se uma incisão na rafe mediana do escroto e aborda-se o lado afetado. O testículo comprometido é destorcido e envolto em compressas banhadas com soro fi‑ siológico morno. Se a gônada revela-se inviável, deve ser reti‑ rada. Em geral, são candidatos a orquiectomia pacientes com mais de 8 horas de torção, sem fluxo na US com Doppler e sem sangramento cerca de 10 minutos após incisar a membrana vaginal.2 Quando houver algum grau de reperfusão, deve-se fi‑ xá-lo à bolsa. Apesar de prontamente tratados, 40% dos testí‑ culos não podem ser salvos e mais de 25% dos casos em que a gônada foi considerada viável evoluem para atrofia (Figu‑ ra 4).6 Além disso, deve-se lembrar que mesmo testículos fixa‑ dos podem apresentar um novo episódio de torção ao longo da vida. O testículo contralateral deve ser fixado, preventivamen‑ te, com pontos de fio não absorvível às estruturas paratesticu‑
Figura 3 Ultrassonografia com Doppler colorido: observa ‑se a ausência de fluxo no testículo esquerdo torcido, quando comparado com o contralateral normal.
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Escroto Agudo •
Figura 4 Aspecto cirúrgico de exploração escrotal: torção do testículo com necrose.
lares, tendo em vista que a condição anatômica que levou à torção, frequentemente, é bilateral. Trabalhos experimentais realizados em animais relatam que o fenômeno isquemia-reperfusão, que ocorre durante o mecanismo de torção e distorção, libera radicais livres que agridem o testículo. Considera-se também que pode haver dano no testículo contralateral, em virtude da formação de an‑ ticorpos antiesperma como resposta ao dano isquêmico.2 Al‑ guns autores, invocando os fenômenos prejudiciais que ocor‑ rem durante o processo de isquemia-reperfusão, levando a uma síndrome compartimental testicular com lesão na micro‑ circulação, preconizam incisão na albugínea, como uma “fas‑ ciotomia”, para diminuir a pressão no parênquima da gônada. Consideram que, com essa manobra, a melhora da irrigação é bastante evidente.6,7 Quando foi realizada orquiectomia ou se, na evolução, houve atrofia do testículo comprometido, deve‑ -se considerar a colocação de uma prótese. Não existe consen‑ so sobre qual a melhor época, mas, em geral, considera-se a adolescência. Os casos devem ser avaliados individualmente, levando em conta a opinião da família e, quando possível, a do paciente. A abordagem do recém-nascido com quadro de escroto agudo perinatal é controversa. Na torção pré-natal, geralmen‑ te, nota-se massa escrotal unilateral endurecida, de coloração escura e pele da bolsa aderida à massa, reflexo da evolução prolongada. Nessa situação, muitos consideram que raramen‑ te pode-se encontrar um testículo viável e não indicam explo‑ ração cirúrgica. Entretanto, tendo em vista trabalhos que rela‑ taram testículos viáveis após a distorção cirúrgica e casos de torção assíncrona no testículo contralateral comprometendo as duas gônadas, recomenda-se a fixação ou orquiectomia no lado comprometido e orquipexia preventiva no testículo nor‑ mal.8 A cirurgia somente deve ser protelada se houver altera‑ ções clínicas adversas que levem a um risco anestésico inad‑ missível. Quando o evento ocorre no período pós-natal, a criança apresenta o quadro clássico do escroto agudo. Obvia‑ mente, a cirurgia deve ser realizada com urgência, recomen‑ dando-se também a fixação do testículo contralateral.
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Torção de apêndice testicular Alguns remanescentes embrionários localizados no testículo ou no epidídimo persistem durante a vida adulta. O mais im‑ portante é o chamado apêndice testicular ou apêndice vesicu‑ loso (hidátide de Morgagni) (Figura 5). Essa estrutura existe em 90% dos homens, tem a forma de um pequeno pólipo pe‑ diculado e sua torção é a causa mais comum de escroto agudo. Trata-se de um resto mülleriano e, por ter receptores estrogê‑ nicos, aumenta por estímulo hormonal na fase pré-puberal, tornando sua torção, seguida de isquemia e necrose, mais fre‑ quente no período entre 7 e 12 anos de idade.3 A sintomatologia é menos severa que a da torção do testícu‑ lo, tem início mais insidioso e dor menos acentuada, localiza‑ da principalmente na região superior da gônada. O edema e a hiperemia aparecem de forma mais gradual, e os sintomas sis‑ têmicos, como febre, náuseas e vômitos, raramente estão pre‑ sentes. Durante o exame físico, na fase inicial, pode-se palpar o testículo normal ou discretamente aumentado, pouco dolo‑ roso, e, às vezes, um nódulo na sua porção superior. O nódulo pode exibir uma coloração azulada escura, às vezes mais bem visto por transiluminação, sendo conhecido como sinal do ponto azul; representa o apêndice necrótico.2,3 Com o tempo, os sinais inflamatórios aumentam, pode aparecer hidrocele reacional e, então, o diagnóstico diferencial com torção fica mais difícil. Na ecografia, comparando-se com o lado não aco‑ metido, existe fluxo sanguíneo normal para o testículo e um nódulo ecogênico ou hipoecogênico na região superior da gô‑ nada, sem fluxo ao Doppler colorido (Figura 6).9 Com o tempo, os sinais inflamatórios aumentam, pode aparecer hidrocele reacional e o diagnóstico diferencial com torção fica mais difícil. Na dúvida, deve-se indicar a interven‑ ção cirúrgica com ressecção do apêndice testicular isquêmico ou necrosado (Figura 7). Quando a torção de testículo está totalmente descartada, po‑ de-se optar pelo tratamento clínico, orientando-se analgesia e
Figura 5 Representação esquemática da torção do apêndice testicular ou apêndice vesiculoso (hidátide de Morgagni) com hidrocele reacional.
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Figura 6 Ultrassonografia com torção de apêndice vesiculoso (hidátide de Morgagni). A. Nódulo em região superior do testículo (seta). B. Nódulo sem perfusão ao Doppler colorido (entre as setas).
não é incomum; encontra-se dor, eritema e edema no lado afe‑ tado. O epidídimo e, muitas vezes, também o testículo estão dolorosos e aumentados de volume pelo processo inflamató‑ rio. Não é raro, na evolução do processo, ocorrer hidrocele rea‑ cional. O exame de urina pode ou não revelar bactérias, pois a epididimite pode ter natureza viral.3 O exame ultrassonográfi‑ co com Doppler demonstra aumento de volume e de fluxo san‑ guíneo para epidídimo e testículo, quando comparado com o lado normal. Afastada, com segurança, a possibilidade de um processo isquêmico testicular, institui-se tratamento clínico com antibióticos, anti-inflamatórios, analgésicos e repouso.
Figura 7 Escroto agudo com intensa reação inflamatória e torção de apêndice testicular necrosado.
repouso. Os sintomas tendem a regredir em poucos dias, no má‑ ximo em 1 semana. As recidivas de torção de anexos são raras. Epididimite e orquite O processo inflamatório do epidídimo ou de epidídimo e testí‑ culo é pouco frequente em crianças pequenas. Quando ocorre, deve-se pensar em anomalias das vias urinárias, que levam a refluxo de urina através do canal deferente. Eventualmente, um ureter ectópico com drenagem para o deferente ou vesícu‑ la seminal pode causar inflamação pela urina que reflui, mes‑ mo sem estar infectada. Assim, nesses casos, recomenda-se investigar os rins e as vias urinárias com ecografia e uretrocis‑ tografia miccional.1,9 Nos adolescentes e em adultos jovens se‑ xualmente ativos, os processos inflamatórios de epidídimo e testículo são, geralmente, decorrentes da migração ascenden‑ te de bactérias, como gonococos, clamídia e, eventualmente, micoplasma e coliformes.3 O quadro clínico tem início arrastado, e as alterações do es‑ croto podem ser precedidas por sintomas urinários. A febre
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Edema escrotal idiopático Esta afecção apresenta-se como processo escrotal agudo, in‑ flamatório, na maior parte das vezes em crianças menores. Cursa com edema e hiperemia da bolsa, eventualmente pruri‑ do, que pode atingir o períneo e a região inguinal. Não existem sintomas sistêmicos. Pode ser confundida com celulite ou, mais raramente, com torção de testículo. O exame de urina não tem alterações e a ecografia mostra testículos normais. A causa é desconhecida, mas acredita-se que seja um fenômeno alérgico, eventualmente associado a picada de inseto ou infec‑ ção disseminada a partir da região anal.1,3 Geralmente regride em poucos dias e não exige tratamento além de analgesia. Púrpura de Henoch-Schönlein Esta doença, muito rara, é uma vasculite que pode afetar pele, articulações, sistema geniturinário e gastrointestinal. Em 1/3 dos pacientes, aparece dor e edema escrotal, preferencialmen‑ te em crianças jovens, com menos de 7 anos. Apesar de os sin‑ tomas poderem simular torção testicular, o exame ultrassono‑ gráfico mostra testículos normais. A história e o exame detalhados revelam púrpura, dores articulares e hematúria. Normalmente, esses pacientes são medicados com corticoste‑ roides.3 Outras afecções Outras causas menos comuns de escroto agudo, como hérnia inguinal encarcerada, trauma, abuso sexual e neoplasia, tam‑ bém devem ser consideradas.3 Nas hérnias encarceradas, é
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Escroto Agudo •
preciso considerar a possibilidade de isquemia testicular pro‑ vocada pela compressão do cordão espermático, levando, muitas vezes, a dano irreversível.10 Normalmente, os dados de história e exame físico, associados a exames de imagens, quando necessários, definem o diagnóstico, cujo tratamento é bem definido.
Referências bibliográficas 1. 2.
3. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar que o paciente é portador do quadro de escroto agudo e que deve ser tratado como urgência. • Analisar as possíveis etiologias, com ênfase para a possibilidade de torção do cordão espermático. • Indicar, se necessário, ultrassonografia com Doppler colorido, desde que possa ser feita imediatamente. • Solicitar avaliação urgente do cirurgião pediátrico, se a hipótese de torção de testículo não for afastada de maneira rápida e segura.
4.
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CAPÍTULO 21
DISTOPIA TESTICULAR Kleber Moreira Anderson
Conceito Distopia testicular (DT), criptorquidismo ou testículo não des‑ cido (TND) compreendem, genericamente, anomalias de po‑ sição do testículo, sejam uni ou bilaterais (Figura 1). Criptorquidia significa testículo fora da bolsa escrotal, mas situado em seu trajeto de descida embriológico, podendo estar intra-abdominal (25%) ou no canal inguinal (75%), sendo in‑ tracanalicular, emergente ou na raiz da bolsa. A ectopia testicular ocorre quando o testículo se apresenta fora do trajeto normal de descida, podendo ser encontrado na bolsa inguinal de Denis Browne (região superficial à aponeu‑ rose do oblíquo externo), no períneo, na base do pênis e, inclu‑ sive, na bolsa escrotal contralateral. Pode ser decorrente de orientação anormal do gubernáculo, bloqueio do canal ingui‑ nal ou posição anormal do nervo genitofemoral. Testículo retrátil é aquele testículo já descido que, por hi‑ percontratibilidade do músculo cremaster, retrai intermiten‑ temente, permanecendo eventualmente fora da bolsa. Esse testículo é levado ao fundo da bolsa com facilidade, e ali per‑ manece. O reflexo cremastérico, que está praticamente ausen‑ te antes dos 3 meses de idade, tem expressão máxima no
p eríodo escolar e diminui após a adolescência, com o cresci‑ mento dos testículos. Nos testículos retráteis, a bolsa escrotal e o testículo são morfologicamente normais. Testículo ascendente é aquele que se torna impalpável na bolsa escrotal em crianças maiores, mas que tem relato de ter sido normal em alguma fase anterior. É provável que a maioria dos casos com história de testículo retrátil seja decorrente do remanescente fibroso do processo vaginal obliterado ligado à túnica vaginal do testículo, o que dificulta o alongamento nor‑ mal do cordão espermático. Com o crescimento, esse rema‑ nescente causa tração e ascensão do testículo para a região in‑ guinal. O testículo retrátil não é muito frequente, e a maioria apresenta conduto peritoneovaginal patente. Monorquia é a ausência de um testículo, que pode ocorrer em virtude da malformação embriológica ou secundária à tor‑ ção testicular intrauterina ou perinatal (vanishing testis). Já anorquia, a ausência de ambos os testículos, é incomum e pode ser detectada no pré-operatório de criptorquidia bilateral se não houver resposta ao estímulo com gonadotrofina coriô‑ nica (hCG), com resposta aumentada de dosagem de testoste‑ rona, produzida pelo testículo.
Figura 1 Criptorquidia esquerda.
Epidemiologia O criptorquidismo representa uma das anomalias genitais mais comuns nos meninos, ocorrendo em média de 3% dos nascimentos a termo.1 Nos prematuros, essa incidência au‑ menta, podendo chegar a 70% nos bebês com peso menor que 1.500 g. Durante o primeiro ano, essa incidência diminui e es‑ tabiliza-se em 1%, até a vida adulta. A maioria dos casos de testículos que descem no 1o ano de vida acontece nos primeiros 3 meses. Após 12 meses de vida com testículo fora da bolsa, 2/3 são unilaterais, com prevalên‑ cia de 2:1 no lado direito. O testículo é impalpável em 20% dos casos e, destes, 20% são ausentes na exploração cirúrgica. A frequência de monorquia e anorquia em crianças com DT é de 4% e 0,6%, respectivamente, e a prevalência de monorquia na população geral é de 1%.
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Distopia Testicular •
A persistência do conduto peritoneovaginal e as anomalias morfológicas do epidídimo podem estar presentes em 50% das DT. Anomalias do trato urinário superior e inferior, como hipospadia e válvula de uretra posterior, estão associadas em 10% às DT. Defeitos da parede abdominal (gastrósquise e onfa‑ locele) estão associados em cerca de 20%, e síndromes com deficiência de gonadotrofina (Kallmann, Prader-Willi, Lauren‑ ce Monn-Biedl) vêm sempre acompanhadas de DT.2 Embriologia A descida testicular desenvolve-se em dois estágios: o transab‑ dominal, a partir da 5a até a 28a semana gestacional, quando o testículo migra da crista geniturinária até o canal inguinal; e o inguinoescrotal, no qual o testículo se localiza na bolsa escro‑ tal por volta da 35a semana. Essa descida depende da intera‑ ção de diversos fatores. O hipotálamo produz o hormônio liberador de gonadotro‑ fina (GnRH), que estimula a produção pela hipófise do hor‑ mônio luteinizante (LH) e do hormônio folículo-estimulante (FSH). Enquanto o LH estimula as células de Leydig do testí‑ culo a produzir testosterona, o FSH parece aumentar a re‑ cepção do LH na membrana das células de Leydig, as quais, por volta da 9a semana gestacional, estimuladas pela gona‑ dotrofina e pelo LH, secretam a testosterona necessária e essencial para diferenciação dos ductos mesonéfricos em ductos de Wolff e, estes, em epidídimo, canal deferente e ve‑ sícula seminal. A testosterona e sua conversão em dihidrotestosterona (DHT) pela enzima 5-alfa redutase é responsável pela forma‑ ção dos órgãos genitais masculinos (pênis e bolsa escrotal) por volta da 15a semana em razão da fixação dos receptores de androgênio na genitália externa. Em torno da 9a semana, as células de Sertoli, também estimuladas pelo FSH da hipófise, liberam o fator inibidor mülleriano (MIS), que inibe o desen‑ volvimento dos órgãos genitais internos femininos por regres‑ são dos ductos de Müller (paramesonéfricos). Além da regres‑ são dessas estruturas, o MIS também parece atuar nas fases iniciais da descida testicular3 (Figura 2). A segunda fase da descida testicular depende da interação de fatores humorais e mecânicos. Essa descida tem início por volta da 28a semana e ocorre paralelamente à migração do gu‑ bernáculo, necessitando, também, de estimulação androgêni‑ ca. Um argumento que sustenta fatores mecânicos envolvidos na descida testicular é a grande incidência de criptorquidismo em patologias com defeitos da parede abdominal, como gas‑ trósquise, onfalocele, síndrome de Prune Belly e lesões altas de espinha bífida, que pode estar relacionada a estudos indi‑ cando que a testosterona poderia atuar indiretamente na via núcleo-medular do nervo genitofemoral no nível de L11 e L124. Segundo Willian Hunter,5 o gubernáculo tem influência na descida testicular em virtude das alterações morfológicas em seu desenvolvimento. O testículo produz testosterona, que causa aumento do gubernáculo por consequência do aumen‑ to da substância intercelular, distendendo passivamente o ca‑ nal inguinal e a bolsa escrotal, servindo como guia e tracio‑ nando o testículo. O gubernáculo é uma estrutura formada de
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Hipotálamo
GnR
Pituitária
PSII
LII
Testículo
Célula de Sertoli
Célula de Leydig
MIF
Testosterona
5-alfa redutase
Dihidrotestosterona
Receptores periféricos
Inibição do desenvolvimento dos órgãos genitais femininos
Genitália masculina normal Testículo descido
Figura 2 Esquema hormonal da descida testicular.
mesênquima, rica em ácido hialurônico, com seu ápice conec‑ tado aos testículos e ao epidídimo, fibras cremastéricas em sua periferia e processo peritoneovaginal dentro de sua subs‑ tância. No desenvolvimento normal, o gubernáculo move-se do canal inguinal até o fundo da bolsa escrotal, sua matriz ge‑ latinosa é absorvida e o processo vaginal alonga-se em seu centro. Assim, qualquer falha – isolada ou não – nessa intera‑ ção de fatores humorais e mecânicos pode levar à não descida dos testículos.
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Clínica Deve-se perguntar aos pais se desde o nascimento foi notada alguma alteração em relação aos testículos e se, além disso, foi notada alguma tumoração na região inguinal. O exame físico nos casos de DT é muito importante e deve ser realizado por profissional treinado e experiente. Nos primeiros meses, o re‑ flexo do músculo cremaster, que é derivado do músculo oblí‑ quo interno, não é muito forte, razão pela qual essa é a melhor época para fazer um diagnóstico mais preciso. A criança deve estar confortável e tranquila, em ambiente não ameaçador. Deve-se inspecionar a bolsa escrotal, procu‑ rando sinais de hipotrofia (distância entre as pregas da bolsa menor que do lado contralateral). Se não houver sinais de hi‑ potrofia na bolsa escrotal vazia, pode ser um caso de testículo retrátil. Devem ser palpadas as regiões inguinal, crural e peri‑ neal, na tentativa de palpar um testículo. Existem manobras para examinar melhor crianças com suspeita de DT. Com a criança deitada, por exemplo, tenta-se palpar o testículo com a mão esquerda entre a espinha ilíaca anterossuperior e o púbis. Se for palpável, é deslocado para a bolsa e mantido nessa posição enquanto a mão direita tenta levá-lo até o fundo da bolsa. Se com essa manobra o testículo não chegar ao fundo da bolsa ou chegar apenas a sua raiz, é considerado testículo ectópico ou criptorquídico. Se o testícu‑ lo é levado ao fundo ou à metade da bolsa escrotal, permane‑ cendo nesse local sem retração, trata-se de um caso de testícu‑ lo retrátil. Quando não se podem palpar os testículos com essas manobras, é possível que se esteja diante de um testícu‑ lo intra-abdominal ou ausente. Diagnóstico Após boa história clínica e bom exame físico, se não for pos‑ sível encontrar e diagnosticar um testículo, pouco resta em termos de exames complementares, exceto optar pela lapa‑ roscopia, que pode ser diagnóstica e terapêutica. Dos métodos de imagem utilizados, como tomografia computa‑ dorizada, ressonância magnética, venografia e arteriografia gonadal seletiva, a ultrassonografia com Doppler, em alguns casos (principalmente em obesos), tem ajudado no diagnós‑ tico dos testículos situados no canal inguinal. Sem dúvida, um grande avanço no diagnóstico dos testículos impalpáveis tem sido a laparoscopia, que, além de evidenciar a presença ou não de testículo, ajuda a decidir a conduta a ser seguida, isto é, orquidopexia em um tempo, pelo canal inguinal, ou orquidopexia em dois tempos, com ligadura prévia dos vasos espermáticos. Nos casos de testículos impalpáveis bilaterais, deve-se fazer diagnóstico diferencial entre anorquia e bilateralmente, por meio de dosagem hormonal de testosterona, LH e FSH. Se as dosagens de LH e FSH estiverem muito altas, a anorquia é pro‑ vável. Pode-se estimular com hormônio (gonadotrofina coriô‑ nica, na dose de 1.500 mg, intramuscular – IM), 1 vez/dia, em três doses em dias alternados e, no oitavo dia, repetir a dosa‑ gem de testosterona. Se a testosterona elevar-se, é sinal de que deve existir testículo, sendo necessária a abordagem cirúrgica.
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Complicações do criptorquidismo Qual é a necessidade de corrigir e, mesmo nos casos impalpá‑ veis, de encontrar um testículo intra-abdominal? O objetivo é prevenir potenciais sequelas, sendo que as mais comumente associadas são subfertilidade, malignização testicular, torção de testículo e associação com hérnia inguinal. O testículo, em sua posição normal na bolsa escrotal, é mantido a uma temperatura de 33°C, comparado a 34°C da região inguinal e 37°C quando situado na cavidade abdominal. Sob temperaturas elevadas, os testículos sofrem alterações progressivas, primeiramente nas células germinativas, depois em outras estruturas, acarretando diminuição dos túbulos se‑ miníferos e fibrose peritubular. Essas lesões histológicas, pos‑ teriormente, podem ocasionar diminuição da fertilidade. Homens que tiveram TND têm menor quantidade e pior qualidade de esperma em comparação à população geral.6 Es‑ sas alterações aumentam nos casos bilaterais e conforme a idade em que for realizada a correção cirúrgica, daí a necessi‑ dade de corrigir o TND durante e primeiro ano de vida. Esses danos podem não ser completamente reversíveis com o trata‑ mento cirúrgico, mas há vantagens quando realizado antes dos 2 anos de idade.7,8 A degeneração progressiva das células germinativas e a dis‑ plasia intrínseca do TND podem levar ao câncer testicular. Cerca de 10% dos pacientes com câncer testicular são ou fo‑ ram portadores de TND,9 principalmente nos casos intra-ab‑ dominais e bilaterais.10 Nos TND, a incidência de aparecimen‑ to de seminomas é maior,11 enquanto nos testículos operados e baixados há maior incidência de aparecimento de tumores das células germinativas não seminomatosos.12 Embora não haja prova de que a orquidopexia reduza o ris‑ co de aparecimento de tumor, ela permite melhor detecção em razão do próprio exame físico local.13 Ainda que não haja sóli‑ da evidência, a incidência de torção testicular também parece ser maior nos TND que nos situados na bolsa escrotal.14 A tor‑ ção intra-abdominal do testículo pode se apresentar com qua‑ dro de abdome agudo. A maioria dos casos de TND (90%) está associada a processo vaginal patente.15 Se a hérnia inguinal for clinicamente diagnosticada, será corrigida de imediato com a fixação do testículo. Além dessas justificativas estruturais e clínicas para a cor‑ reção do criptorquidismo, devem-se considerar os fatores psi‑ cológicos da ausência do testículo na bolsa escrotal. Tratamento A abordagem ao TND é principalmente cirúrgica, por cirurgia aberta ou laparoscopia, nos casos de testículos impalpáveis. O tratamento dos TND diminui o risco de torção e melhora a função endócrina e o aspecto psicológico, embora não altere o risco de malignidade. Em algumas situações, pode-se usar hormonoterapia como coadjuvante ao tratamento cirúrgico ou mesmo como única arma terapêutica. Por haver influência hormonal na descida testicular, pode-se usar esse modo de tratamento principalmente nos testículos retráteis e inguinais baixos ou na raiz da bolsa escrotal. Utiliza-se hCG IM, que es‑
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Distopia Testicular •
timula o testículo a produzir testosterona, atuando localmen‑ te e influenciando na descida.16 Um dos protocolos é hCG na dosagem de 1.500 a 2.500 mg, IM, 2 vezes/semana, por 4 se‑ manas. Teoricamente, testículo ectópico não responde ao tra‑ tamento hormonal. Os efeitos colaterais da hormonoterapia, que incluem cres‑ cimento de pelos púbicos, aumento do tamanho dos testícu‑ los, alargamento do pênis e distúrbios de comportamento com agressividade, devem ser esclarecidos com os familiares. Após o término do tratamento, esses efeitos diminuem.17 O uso de hCG é importante para identificar a presença de testí‑ culo, quando ele é impalpável bilateralmente, com resposta positiva ao aumento da dosagem de testosterona, que indica presença de testículo intra-abdominal. Estudos com GnRH mostram mais eficácia terapêutica que com hCG.18 A orquidopexia está indicada por volta dos 12 meses de vida, em virtude dos fatos já discutidos. Quando houver hér‑ nia inguinal clinicamente evidente, a cirurgia deve ser realiza‑ da de imediato. A orquidopexia aberta (Figura 3) está indicada sempre que o testículo estiver palpável. Nessa técnica, após a incisão da pele, abre-se a aponeurose do grande oblíquo, ex‑ plora-se e isola-se o canal inguinal e trata-se o saco herniário, se houver. Então, disseca-se o testículo, separando-o do gu‑ bernáculo, e continua-se a dissecção dos vasos espermáticos e
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do canal deferente no retroperitônio, liberando o testículo o máximo possível. Geralmente, o que impede a descida dos testículos são os vasos espermáticos curtos. Forma-se um caminho até o fundo da bolsa escrotal, no qual se fixa o testículo em um espaço en‑ tre o músculo dartos e a pele. Em alguns casos, esse testículo está muito alto no canal inguinal, dificultando sua descida. Nessa situação, pode-se baixar ao máximo o testículo e tentar nova orquidopexia em segundo tempo (6 meses depois) ou realizar o procedimento de Fowler-Stephens, no qual os vasos espermáticos são ligados o mais alto possível, mantendo a irri‑ gação testicular pela circulação colateral da artéria diferencial e por alguns vasos do cremaster. Conforme anteriormente ci‑ tado, os vasos espermáticos é que são curtos, e não o canal de‑ ferente. Nos casos de testículos impalpáveis, está indicada a abor‑ dagem laparoscópica, que pode ser diagnóstica e potencial‑ mente terapêutica. Primeiramente, é importante determinar a presença de testículo nos casos bilaterais. Nos casos de testí‑ culos impalpáveis unilaterais, inicia-se já com a laparoscopia. Por meio de acesso umbilical, abordagem segura e rápida, exa‑ mina-se o anel inguinal. Verifica-se o status do processo vagi‑ nal, se patente ou não, e, então, procuram-se estruturas wolf‑ fianas (testículo e canal deferente) e vasos espermáticos. As
Testículo não descido
Unilaleral
Palpável
Bilaleral
Não palpável
Não palpável
Palpável
Palpável
Não palpável
Reavaliar com 6 meses
Cirurgia
Estímulo com hCG
Cirurgia Reavaliar com 6 meses
Testículo alto
Testículo baixo
Genitália externa normal
Genitália ambígua
Reavaliar com 6 meses
Reavaliar
Terapia normal
Reavaliar
Hormonoterapia nos testículos baixos
Falha
Resposta positiva
Resposta negativa
Laparoscopia
Anorquia
Avaliação do estado intersexual Cirurgia
Falha Normal
Intersexo Recém-nascido
Cirurgia Hormonoterapia
Laparoscopia diagnóstica e/ou terapêutica
Diagnóstico e tratamento
Criança maior
Falha
Figura 3 Esquema do manuseio do criptorquidismo. Fonte: adaptada de Stiven et al.19
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opções terapêuticas são baseadas nos achados: se forem en‑ contrados vasos espermáticos terminando em fundo cego, sem penetrar no anel inguinal, significa ausência testicular (vanishing testis) e o procedimento termina. Esse achado ocor‑ re em cerca de 10% dos testículos impalpáveis.20 Geralmente, nos casos de testículos impalpáveis, 50% são intra-abdominais. Nesses casos, se os vasos espermáticos es‑ tão normais e penetram no anel inguinal, há necessidade de exploração inguinal. Se os vasos espermáticos forem hipotro‑ fiados e penetrarem pelo anel inguinal, porém, a abordagem inguinal para ressecar possível remanescente de tecido testi‑ cular também é necessária. Se o testículo apresentar vasos curtos que o impedem de chegar ao anel inguinal, pode-se, se for testículo “viável”, fazer a ligadura dos vasos espermáticos e realizar a orquidopexia entre 6 e 9 meses depois. Esse interva‑ lo possibilitará a formação de circulação colateral. Se, final‑ mente, for encontrado um testículo disgenético, deve-se optar por orquiectomia. Complicações Embora rara, em uma metanálise de literatura urológica,21 hou‑ ve 8% de resultados não satisfatórios da orquidopexia nos testí‑ culos não descidos palpáveis e 25% nos testículos impalpáveis. A complicação mais significativa da orquidopexia é a atrofia tes‑ ticular, que, geralmente, decorre da dissecção dos vasos testicu‑ lares, além de edema pós-operatório, causando isquemia e pos‑ terior atrofia testicular. Outra complicação, ainda, é a ascensão do testículo, que necessita de nova orquidopexia. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer um testículo não descido, ou seja, ausência da gônada na bolsa escrotal. • Diferenciar o testículo não descido do testículo retrátil. • Recomendar avaliação com o cirurgião pediátrico após 6 meses de idade, se o testículo não estiver situado na bolsa escrotal.
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CAPÍTULO 22
FIMOSE: O QUE FAZER E QUANDO REALIZAR? Marcelo Iasi
Introdução Existem relatos sobre circuncisão há mais de 15 mil anos. Ins‑ crições em cavernas, no período Paleolítico, mostram dese‑ nhos ilustrando o ritual da circuncisão na tumba de Ankh-Ma‑ hor, no Antigo Egito (2.400 a.C.). A circuncisão é uma tradição judaica, relatada no livro bíblico de Gênesis (Capítulo 17), quando Abraão se circuncisou aos 99 anos de idade para man‑ ter um pacto com Deus, e ainda nos dias de hoje os judeus reli‑ giosos são circuncisados no oitavo dia de vida. Durante a Segunda Guerra Mundial, um grande número de combatentes americanos foi acometido por enfermidades tro‑ picais no prepúcio, provocando, nos Estados Unidos, uma tendência à prática da circuncisão neonatal rotineiramente, chegando a 95% dos recém-nascidos do sexo masculino em 1960 e gerando gastos aproximados de 50 milhões de dólares por ano, sendo considerado um problema de saúde pública. Atualmente, cerca de 61% dos meninos americanos ainda são circuncisados no período neonatal. A fimose e seu tratamento são assuntos extremamente po‑ lêmicos, não somente por acometer um órgão genital e envol‑ ver aspectos médico-epidemiológicos, mas por dizer respeito a assuntos sociais, culturais e religiosos. Dúvidas são trazidas com frequência aos consultórios do pediatra e do cirurgião pediátrico, muitas vezes até antes de o menino nascer, indagando sobre o melhor momento para tra‑ tar a fimose, se logo ao nascimento ou após a retirada das fraldas. Embriologia e anatomia O prepúcio origina-se por volta da 8a semana de gestação, a partir de um espessamento da epiderme sobre a glande. Esse crescimento é mais rápido dorsalmente que ventralmente e, à medida que a uretra glandar se fecha, o prepúcio ventral de‑ senvolve-se como espessamento de pele que se funde forman‑ do o freio balanoprepucial. Esse processo se completa até a 16a semana de gestação, e a superfície interna do prepúcio adere à superfície da glande. Por esse motivo, ao nascimento, pratica‑
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mente todos os meninos têm o prepúcio aderido à glande em toda sua extensão (Figura 1). No decorrer do primeiro ano de vida, o prepúcio vai se des‑ colando da glande gradativamente e tornando-se mais elásti‑ co, aumentando o diâmetro do orifício prepucial, o que propi‑ cia a exposição da glande quando se provoca a retração do prepúcio até a visualização da coroa da glande – região de co‑ loração arroxeada escura que contorna toda a glande. Estatis‑ ticamente, ao nascimento, apenas 4% dos meninos conse‑ guem expor a glande, 20% o fazem ao redor dos 6 meses, e cerca de 75%, com 1 ano de idade. Definição Pode-se definir fimose como o estreitamento do orifício pre‑ pucial que impede ou dificulta a exposição total da glande.
Figura 1 Anatomia do pênis.
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Diagnóstico • grau II: é possível visualizar o meato uretral, mas a glande não O diagnóstico de fimose é feito por meio do exame físico (Figu‑ se exterioriza totalmente (Figura 5); ra 2). • grau III: consegue-se exteriorizar toda a glande, mas o orifício A criança é colocada em decúbito dorsal horizontal e, deli‑ prepucial, que é estreito, provoca um anel de constrição no cadamente, com a ajuda dos dedos polegar e indicador de am‑ corpo do pênis, impedindo o retorno do prepúcio à sua posi‑ bas as mãos, o examinador tenta retrair o prepúcio em direção ção original. Esse grau é o responsável pela situação patológi‑ à base do pênis, na tentativa de expor a glande sem provocar o ca denominada parafimose, que consiste em edema impor‑ descolamento da superfície interna da pele do prepúcio ou pro‑ tante do prepúcio e da glande em razão da dificuldade do vocar fissuras e sangramento, pois isso causaria dor (Figura 3). retorno venoso causado pelo anel de constrição. Essa condi‑ Geralmente, o descolamento balanoprepucial forçado e as ção de urgência, que pode causar sofrimento vascular do fissuras são os responsáveis pelo fechamento cicatricial quase prepúcio e da glande, deve ser prontamente revertida, segu‑ completo do orifício prepucial, de modo que esse procedimen‑ rando-se firmemente a região do anel e tracionando-se o pre‑ to (“massagem”) nunca é indicado como tentativa de resolver púcio para a posição original. Às vezes, é necessário reduzir o problema da fimose. cirurgicamente, seccionando-se o prepúcio até o anel prepu‑ cial estenótico e, depois, eletivamente, realizando a postecto‑ Classificação mia (Figura 6). Didaticamente, pode-se classificar a fimose em 3 graus: • grau I: apresenta orifício prepucial bastante estreito, mas não Durante o exame físico, além de realizar o diagnóstico da fi‑ impede a visualização do meato uretral. Essa situação leva à mose e classificá-la nesses três graus, pode-se fazer o diagnós‑ queixa frequente de que a criança, ao urinar, apresenta um tico de acolamento balanoprepucial, que é o prepúcio aderido abaulamento no prepúcio (urina é coletada entre a glande e o em alguns pontos na glande sem estreitamento do orifício pre‑ prepúcio) e depois exterioriza o jato urinário (Figura 4); pucial (Figura 7). Essa situação é fisiológica e, portanto, resol‑
Figura 2 Prepúcio sem tração ao exame físico.
Figura 4 Fimose grau I.
Figura 3 Tração do prepúcio ao exame físico: tentativa de expor a glande.
Figura 5 Fimose grau II.
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Fimose: o Que Fazer e Quando Realizar? •
ve-se espontaneamente com o tempo, até os 5 ou 6 anos de idade. No acolamento balanoprepucial, é muito comum observar, por transparência, coleções amareladas que são cistos de re‑ tenção de esmegma, uma secreção sebácea produzida pela su‑ perfície interna da pele do prepúcio (Figura 8). À medida que ocorre o descolamento balanoprepucial, essa secreção se exte‑ rioriza e é relatada como uma “massa branca”, a qual deve ser retirada durante a higiene local. A fimose impede a higiene adequada do pênis, propiciando, por meio do acúmulo de urina e secreções, o desenvolvimento de um processo inflamatório local muito frequente denomina‑ do postite. Ademais, à superfície interna do prepúcio, que tem características diferentes da externa, podem aderir bactérias, podendo até provocar infecção urinária. A fimose também pode ser responsabilizada por doenças sexualmente transmissíveis, câncer de pênis e câncer de colo uterino, na mulher.
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Tratamento O tratamento da fimose é cirúrgico, denominado postectomia, e pode ser realizado nas diferentes faixas etárias, desde o pe‑
ríodo neonatal (circuncisão), até a idade adulta; lembrando-se que, do ponto de vista médico, só é possível fazer o diagnósti‑ co de certeza de fimose após 1 ano de idade. A idade ideal para realizar a cirurgia de fimose é após 1 ano e antes dos 18 meses de idade, quando o menino já começa a ter consciência do ge‑ nital masculino. No recém-nascido, a cirurgia pode ser realizada sob aneste‑ sia local, habitualmente no 2o ou no 3o dia de vida, ou, no má‑ ximo, até o 15o dia, por meio de um bloqueio anestésico do nervo peniano, com lidocaína a 2%, sem vasoconstritor, na do‑ sagem máxima de 7 mg/kg de peso corpóreo. Esse procedi‑ mento deve ser sempre realizado em ambiente de centro cirúr‑ gico, promovendo-se descolamento balanoprepucial, ligadura do freio balanoprepucial, retirada do prepúcio, hemostasia cuidadosa e sutura da pele interna à externa, com fio absorví‑ vel. O procedimento é clássico, podendo ser realizado, tam‑ bém, por meio de outras técnicas, como o uso de Plastibel® ou de circuncisor. O curativo com pomada à base de vaselina, principalmente na área desepitelizada da glande e do meato uretral (agora exposto e em contato com a fralda), pode apre‑ sentar um processo inflamatório denominado meatite, levan‑ do à estenose do meato uretral.
Figura 6 Fimose grau III.
Figura 8 Cisto de esmegma.
Figura 7 Acolamento balanoprepucial.
Figura 9 Aspecto pós-operatório.
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Nas crianças maiores, o procedimento é realizado basica‑ mente da mesma maneira, mas sempre sob anestesia geral inalatória e bloqueio anestésico peniano, existindo, portanto, a necessidade de internação hospitalar em virtude da aneste‑ sia geral. Em sistema de hospital-dia, porém, a alta hospitalar ocorre após um período de observação de aproximadamente 4 horas. Habitualmente, mantém-se um curativo circular no pênis, o que diminui o edema local e dá maior segurança à criança. Esse curativo é mantido por aproximadamente 24 horas e, após esse período, utiliza-se somente a pomada à base de va‑ selina, 2 vezes/dia, por 10 dias. Em termos de medicação, são utilizados analgésicos e anti-inflamátorios durante 3 dias. São descritas algumas complicações decorrentes da postec‑ tomia, como sangramento, hematomas, infecção local, este‑ nose do meato uretral, linfedema, estenose prepucial e siné‑ quias balanoprepuciais.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Definir fimose. • Fazer o diagnóstico de fimose. • Discutir com o cirurgião a necessidade de tratamento cirúrgico.
Tratamento clínico O tratamento tópico com uso de pomada (betametazona a 0,2% e hialuronidase) é uma opção terapêutica válida que pode ter bons resultados quando usada em casos seleciona‑ dos, como após 1 ano de idade, com ausência de postite pré‑ via, exposição parcial da glande e sem fibrose importante do orifício prepucial.
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CAPÍTULO 23
OBSTRUÇÃO PILÓRICA Maria do Socorro Mendonça de Campos Rosane Kleine Passos
Introdução • tipo 2: cordão fibroso entre o estômago e o duodeno, ocorre A síndrome da obstrução pilórica pode ser definida como uma em 34% dos casos; dificuldade parcial ou total do esvaziamento gástrico decorren‑ • tipo 3: extremamente raro (8%), um segmento atrésico com‑ te de fatores mecânicos ou funcionais. Pode apresentar-se de pleto entre o estômago e o duodeno (Figuras 2 e 3). forma subaguda e progressiva. As principais manifestações clí‑ nicas incluem: náuseas, vômitos, sensação de plenitude gástri‑ O tratamento para o tipo 1 pode ser feito com a excisão des‑ ca, dor epigástrica tipo cólica, desidratação e perda de tempo. ta membrana pela técnica de Heineke-Mikulicz ou piloroplas‑ A obstrução pilórica pode ser causada por etiologias congê‑ tia de Finney (Figuras 4 e 5). Atualmente, é preconizada a gas‑ nitas, como atresia do piloro, duplicação pilórica ou cisto ente‑ troscopia com fibra ótica e ressecção da membrana por laser. rógeno e estenose hipertrófica do piloro (EHP); ou etiologias Para os tipos 2 e 3, o tratamento é feito pela gastroduodenos‑ adquiridas, como doença ulcerosa péptica, obstrução primária tomia ou gastrojejunostomia, dependendo do tamanho do do esvaziamento gástrico, obstrução pilórica por corpo estra‑ segmento atrésico (Figura 6). nho, além de outras causas de etiologias mais raras. Atresia do piloro (AP) A AP é uma doença extremamente rara, descrita por Calder em 1749. Acomete 1 entre 100.000 nascidos vivos e correspon‑ de a menos de 1% de todas as atresias gastrointestinais. Pode ocorrer isolada ou associada com outras anomalias congênitas ou hereditárias. É frequentemente associada com a epidermó‑ lise bolhosa, principalmente a do tipo juncional, e menos fre‑ quentemente associada a outras anomalias gastrointestinais e renais. Quando ocorre isolada, apresenta bom prognóstico, mas quando associada a outras anomalias, é um fator associa‑ do à alta mortalidade. A AP comumente se apresenta com distensão abdominal alta e vômitos não biliosos. Seu diagnóstico é sugerido pela radiogra‑ fia simples de abdome (Figura 1), que mostra classicamente ape‑ nas a bolha gástrica e a ausência de gás no intestino delgado e no cólon. O diagnóstico antenatal pode ser sugerido na ultrassono‑ grafia (US) materna realizada no 2º trimestre da gravidez, por meio do polidrâmnio e da distensão gástrica do feto. A AP pode ter 3 tipos anatômicos: • tipo 1: apresenta-se sob a forma de uma membrana diafrag‑ mática que obstrui total ou parcialmente a luz do piloro, ocor‑ rendo em 58% dos casos;
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Figura 1 Radiografia simples – atresia de piloros (bolha gástrica única).
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Tipo 1
Tipo 1
Tipo 2
Tipo 2
Tipo 3
Tipo 3
Figura 4 Técnica de Heineke-Mikulicz.
Tipo 2
Tipo 3
Figura 2 Atresia de piloro.
Figura 3 EDA – atresia tipo 1 – membrana pilórica.
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Figura 5 Técnica de piloroplastia de Finney.
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Obstrução Pilórica •
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Figura 6 Gastroduodenostomia.
Doença ulcerosa péptica A doença ulcerosa péptica e suas complicações são raras em crianças. No entanto, há relatos de úlceras perfuradas em neonatos e crianças, assim como obstrução pilórica decorrente de processo inflamatório agudo causado pelas úlceras gástricas do tipo II, classificação de Johnson (localizadas no corpo do estômago em combinação com uma úlcera duodenal, geralmente associadas a uma excessiva produção de secreção de ácido) e do tipo III (úlceras pré-pilóricas que se comportam como úlceras duodenais associadas a hipersecreção de ácido gástrico), que parece, na maioria dos casos, estar associada com Helicobacter pylori. A doença ulcerosa péptica manifesta-se com retardo do esvaziamento gástrico, anorexia ou náuseas acompanhadas de vômitos, podendo levar a desidratação, alcalose metabólica hipoclorêmica e hipopotassêmica secundária à perda de suco Figura 7 EDA – úlcera péptica. gástrico rico em íons de hidrogênio, cloro e potássio. O diagnóstico é feito por meio de história clínica, exame físico, testes do H. pylori invasivos (endoscopia digestiva alta com biópsia – EDA) e não invasivos (sorologia e teste do car- retardo do esvaziamento gástrico, designada como gastropabono marcado). Os principais métodos diagnósticos da úlcera resia. péptica são a EDA (Figura 7), os exames radiológicos simples e A gastroparesia é um distúrbio de motilidade crônico, cacontrastados do trato gastrointestinal alto e a radiografia de racterizado pelo retardo do esvaziamento gástrico na ausência tórax em ortostase para afastar perfuração da úlcera, com de uma causa mecânica de obstrução na região antropiloropneumoperitônio. duodenal, em decorrência da diminuição da força contrátil da O tratamento é dirigido principalmente à redução da acidez musculatura do estômago. gástrica e à erradicação da H. pylori. A terapia tripla com inibiA gastroparesia pode ocorrer em muitos contextos clínicos, dor da bomba de prótons, amoxicilina e claritomicina é a pri- com uma ampla variação, dependendo da gravidade dos sinmeira escolha. Nos casos resistentes à claritomicina, usa-se o tomas. São causas de gastroparesia: metronidazol. O tratamento cirúrgico fica reservado para as • complicação de procedimentos cirúrgicos como fundoplicacomplicações, como a perfuração, ou nos casos de inflamação tura de Nissen com lesão do vago e ressecção gástrica parcial crônica do duodeno com episódios recorrentes de cicatrização, com vagotomia; que levam a fibrose e estenose do lúmen duodenal e obstrução • distúrbios gastrointestinais associados ao esvaziamento gásdo esvaziamento gástrico, situação em que se deve realizar a trico retardado, como doença do refluxo gastrointestinal piloroplastia pela técnica de Heineke-Mikulicz ou de Finney. (DRGI), dispepsia funcional e EHP; • distúrbios neurológicos, como tumores do sistema nervoso Obstrução primária do esvaziamento gástrico central (SNC); Os distúrbios gastrointestinais funcionais são caracterizados • distúrbios endócrinos e metabólicos; principalmente por sintomas sugestivos de comprometimen- • doenças do colágeno; to das funções motora ou sensorial, na ausência de anormali- • distúrbios alimentares, como anorexia nervosa. dades estruturais ou da mucosa, ou de distúrbios bioquímicos ou metabólicos comprovados. Tem sido crescente o reconhe- Os sinais e sintomas são: vômitos não biliosos com restos alimentares parcialmente digeridos, desidratação, distúrbio do cimento de doenças e condições clínicas que se associam ao
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equilíbrio hidreletrolítico, dor abdominal, pirose, distensão da região epigástrica e perda de peso. O diagnóstico pode ser feito pela história clínica e pelos exames complementares, como EDA, condição mandatória para o diagnóstico diferencial com corpo estranho. O estudo radiológico de esôfago, estômago e duodeno (EREED) pode mostrar órgão dilatado, repleto de líquido ou de resíduos ali‑ mentares, esvaziando-se com dificuldade. A radiografia tardia (6 horas) pode mostrar estômago ainda contendo resíduos ali‑ mentares (Figura 8). A cintilografia com estudo do esvazia‑ mento gástrico também é útil. Um método alternativo alta‑ mente promissor é a US, que alia as vantagens de razoável acurácia, baixo custo e ampla disponibilidade. O tratamento de pacientes com gastroparesia sintomática consiste em controlar os sintomas, corrigir o distúrbio hidrele‑ trolítico e nutricional, e identificar e tratar a causa subjacente da gastroparesia, quando possível. No caso de doença relativa‑ mente branda, é possível controlar satisfatoriamente os sinto‑ mas por meio da modificação da dieta e da administração de um agente antiemético ou pró-cinético. Nos casos refratários ao tratamento conservador, a piloroplastia tipo Heineke-Mi‑ kulicz tem bons resultados. Duplicação pilórica ou cisto enterógeno do piloro Duplicação gastrointestinal é uma entidade rara, que ocorre aproximadamente em 1 entre 4.500 nascidos vivos. Frequen‑
Figura 8 EREED – gastroparesia.
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temente apresenta tecido gástrico e pancreático ectópico. A duplicação pilórica pode apresentar sinais obstrutivos com vô‑ mitos não biliosos progressivos, podendo ou não ser em jatos, e tumoração palpável na projeção do piloro, sendo necessário, por esses motivos, o diagnóstico diferencial com EHP. A inves‑ tigação diagnóstica pode ser realizada por US de abdome (Fi‑ gura 9), EDA e EREED, porém a confirmação diagnóstica só será possível após abordagem cirúrgica, seja por laparotomia ou por videolaparoscopia com ressecção total do cisto e estu‑ do anatomopatológico da peça cirúrgica. Obstrução pilórica por corpo estranho Ingestão de corpo estranho é um problema comum encontra‑ do na população pediátrica, principalmente na faixa etária en‑ tre 6 meses e 3 anos, fase em que a criança coloca objetos na boca como parte da sua interação normal com o mundo. Há maior incidência de ingestão de corpo estranho entre a popu‑ lação de crianças que apresentam distúrbios do desenvolvi‑ mento neuropsicossocial. É importante ressaltar a necessida‑ de de atenção especial para essas crianças quando se apresentam inapetentes, com vômitos com resíduos alimen‑ tares, perda de peso, irritabilidade e pneumonias recorrentes por aspiração. As complicações da ingestão de corpo estranho incluem obstrução e perfuração do intestino. O diagnóstico clínico representa um desafio para o pediatra. A maioria dos corpos estranhos é radiopaca, podendo ser facil‑ mente visualizada em uma radiografia simples da região abdo‑ minal. A EDA é o método diagnóstico mais preciso, pois, além de permitir a visualização direta do corpo estranho, também proporciona o meio menos invasivo para a sua remoção (Figu‑ ra 10). A abordagem cirúrgica por laparotomia, videolaparos‑ copia ou procedimento combinado de videolaparoscopia e en‑ doscopia fica reservada para os casos em que a EDA não
Figura 9 Ultrassonografia – cisto enterógeno do piloro.
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Tem sido relatada associação da EHP com uma variedade de anormalidades cromossômicas e certo número de síndromes hereditárias, como Smith-Lemli-Opitz e Cornelia de Lange. Aproximadamente 10% dos casos de EHP são familiares. Es‑ tudos com gêmeos mostraram taxa de 25% de concordância e de 40% em gêmeos monozigóticos. O risco de recorrência em irmãos está em torno de 10% para o sexo masculino e 2% para o feminino. Essa afecção tem 17 vezes mais chances de ocorrer em descendentes de mães que tiveram EHP do que na popula‑ ção em geral, sugerindo ser herdada geneticamente de fator li‑ gado ao cromossomo X, com predileção pelos primogênitos. Teorias incluem eventual relação com colecistoquinina e somatostatina, níveis elevados de prostaglandinas no suco gástrico aumentando a acidez, hiperacidez gástrica induzindo espasmo pilórico e hipertrofia, redução de fibras nervosas peptidérmicas causando deficiência da síntese de ácido nítri‑ co (neurotransmissor da musculatura lisa), motilidade anor‑ mal secundária à diminuição de células tipo marca-passo, e outras. Figura 10 EDA – corpo estranho no piloro.
obteve êxito ou quando o paciente já apresenta sinais de com‑ plicação. Estenose hipertrófica de piloro A EHP é uma condição congênita que afeta recém-nascidos e lactentes. É caracterizada pela hipertrofia e hiperplasia difusa e progressiva da musculatura lisa, em especial a camada circu‑ lar do piloro, resultando em alongamento e estreitamento per‑ sistente do canal pilórico, causando obstrução parcial com consequente retardo do esvaziamento gástrico, ou até mesmo obstrução total da sua luz. Em resposta ao peristaltismo vigo‑ roso, a fim de vencer a resistência ao escoamento do conteúdo gástrico, a musculatura do estômago torna-se hipertrofiada, e o estômago, dilatado. Patologistas descrevem constante associação de edema, de grau variável, na submucosa e em pregas longitudinais redun‑ dantes na mucosa do piloro, contribuindo significativamente para a obstrução local. Sugerem também que essas alterações da camada mucosa e submucosa podem ser eventos inician‑ tes do desenvolvimento da EHP em crianças predispostas. Epidemiologia A EHP é a causa mais comum de obstrução gastrointestinal em recém-nascidos e lactentes menores de 3 ou 4 meses de idade. Raramente, o surgimento dos sintomas ocorre logo ao nascimento, bem como após os 5 meses de idade. A incidên‑ cia da EHP em populações ocidentais é cerca de 2 a 4 por 1.000 nascidos vivos, e menos prevalente em populações africanas e asiáticas. Por razões desconhecidas, acomete mais o sexo masculino, na razão de 3:1 a 4:1. A etiologia e o exato mecanismo fisiopatológico da EHP ainda não estão explicados, tendo provavelmente causas mul‑ tifatoriais. A predisposição genética está bem estabelecida.
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Quadro clínico Vômitos alimentares, não biliosos, em jato, que ocorrem nor‑ malmente 30 a 60 minutos após a alimentação, a partir da 2ª a 6ª semanas de vida. Em 15% dos casos, pode conter sangue no vômito, se gastrite associada. Por causa dos vômitos, ocorre fome insaciável, perda de peso, desidratação, constipação e, em 2 a 5% dos casos, pode ocorrer icterícia, à custa da bilirru‑ bina indireta, em virtude da diminuição da atividade da enzi‑ ma glucuronil-transferase por redução da ingesta calórica ou pelo aumento da circulação êntero-hepática. Nos casos mais graves, em que os vômitos são mais fre‑ quentes e o diagnóstico é tardio, ocorre alcalose metabólica hi‑ popotassêmica e hipoclorêmica característica, pela perda de ácido clorídrico nos vômitos e aumento da concentração plas‑ mática de bicarbonato; distúrbio hidreletrolítico decorrente de perdas de cloro, sódio e potássio pode gerar letargia e/ou convulsões. Pais mais atentos referem ondas deslocando-se no abdome superior. Diagnóstico O diagnóstico clínico é baseado na história de vômitos não bi‑ liosos, em jato, a partir da 2ª semana de vida, podendo estar associada a achados, no exame físico, de desidratação, desnu‑ trição, icterícia, distensão da região epigástrica, hiperperistal‑ se gástrica, ondas de Kussmaul observadas após alimentação (Figuras 11 e 12) e palpação de tumoração móvel de forma ovoi‑ de, medindo 1 a 2 cm de diâmetro (oliva pilórica), na região epigástrica ou próxima ao umbigo. A palpação da oliva pilórica por um examinador experiente geralmente é considerada específica e diagnóstica, não haven‑ do necessidade de testes adicionais. Todavia, a palpação do abdome requer disponibilidade de tempo, uma criança calma e, se o estômago estiver distendido, é necessária a descom‑ pressão com uso de sonda nasogástrica. Nos pacientes cuja oliva pilórica não é palpável, a avaliação por métodos de ima‑ gem é necessária.
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Figura 11 EHP – ondas peristálticas.
de imagem, a hiperperistalse gástrica e a aperistalse do canal pilórico podem ser avaliadas. Contrapondo-se ao aspecto nor‑ mal, visto em lactentes não portadores de EHP, várias altera‑ ções radiográficas podem ser observadas na região antropilóri‑ ca de pacientes com EHP. Comumente, nem todas essas alterações são visualizadas em um exame STGS, porém po‑ dem aparecer simultânea ou sequencialmente à medida que as imagens são obtidas. As mais importantes são: alongamen‑ to e estreitamento persistente do canal pilórico (2 a 4 cm de comprimento); sinal de ombro (Figura 13); sinal de mamilopi‑ lórico; sinal do cordão (Figura 14); sinal de bico; sinal do du‑ plo/triplo trilho (Figura 15); sinal de Kinklin ou de cogumelo; sinal do diamante ou recesso do twining; sinal da lagarta; dis‑ tensão gástrica e refluxo gastroesofágico.
Figura 12 EHP – ondas peristálticas.
As duas modalidades diagnósticas utilizadas para elucidar a EHP são US e seriografia do trato gastrointestinal superior (STGS). Em relação aos exames radiográficos, o principal receio de sua utilização é a radiação ionizante e o risco de aspiração do contraste baritado. O diagnóstico da EHP nunca deve ser feito com base ape‑ nas em radiografias simples, pois esse exame não permite diagnóstico de exclusão com o piloroespasmo – uma afecção não cirúrgica, cujo diagnóstico é diferencial. As principais alterações da EHP, na radiografia simples, consistem em: dilatação gástrica marcante; inexistência de bulbo duodenal com ar; escassez ou ausência de ar no intesti‑ no delgado e no grosso; conteúdo gástrico espumoso e motea‑ do; pneumatose gástrica (rara), ou mesmo um aspecto normal. Com a utilização de intensificadores de imagem e outras modificações na técnica da STGS, podem-se reduzir os riscos da excessiva exposição à radiação ionizante. Nas radiografias contrastadas, o bário deve ser o contraste utilizado, pois forne‑ ce melhor definição da mucosa gastrointestinal. Após interva‑ los de 5 minutos, spots diagnósticos mostram a estenose piló‑ rica ou um piloro normal. Sob radioscopia com intensificador
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Figura 13 STGS – sinal do ombro.
Figura 14 STGS – sinal do cordão.
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Figura 15 STGS – sinal do duplo trilho. Figura 16 Ultrassonografia de EHP – corte transversal.
A US é altamente sensível e, por permitir a visualização di‑ reta da musculatura pilórica, tem sido utilizada como método de escolha para diagnóstico e/ou exclusão. Embora seja me‑ nos dispendiosa financeiramente, a possibilidade de se obter diagnóstico de outras causas de vômitos, como refluxo gas‑ trointestinal e má rotação intestinal, torna a STGS o método com melhor relação custo-benefício. Comparando-se esses dois métodos, as vantagens da US incluem: ausência de invasividade; risco de aspiração pratica‑ mente ausente; facilidade de execução ao leito; visualização tridimensional da oliva pilórica e localização precisa do piloro, ajudando no acesso cirúrgico. As desvantagens incluem: difi‑ culdade para avaliar todo o estômago; incapacidade de distin‑ guir outras doenças ou demonstrar adequadamente o intesti‑ no distal ao duodeno; dificuldade para detalhar imagens sob a presença excessiva de gás (artefatos gasosos); necessidade de experiência na técnica e na leitura das imagens; dificuldade para obter imagens nítidas quando o paciente chora. Além de dados qualitativos relacionados à função gástrica, parâmetros quantitativos são empregados para caracterizar as anormalidades do piloro. Não há consenso sobre medidas pa‑ drão utilizadas para o diagnóstico de EHP, podendo ocorrer também variações das dimensões do músculo pilórico de acordo com a idade e o peso do paciente. Os aspectos ecográficos mais importantes para o diagnósti‑ cos da EHP são: • sinal do alvo: corresponde ao anel hipoecoico do músculo pi‑ lórico hipertrofiado em torno da mucosa ecogênica central‑ mente localizada (Figura 16). A oliva é visualizada medial‑ mente à vesícula biliar e anterior ao rim direito; • sinal do duplo trilho e sinal do cordão: obtidos quando peque‑ nas quantidades de líquido podem ser vistas aprisionadas en‑ tre dobras de mucosa ecogênica redundante (Figura 17); • sinal do mamilo mucoso: protrusão de mucosa pilórica re‑ dundante em direção ao antro gástrico;
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Figura 17 Ultrassonografia de EHP – corte longitudinal.
• sinal do ombro: impressão do músculo pilórico hipertrofiado sob a parede distal do antro gástrico; • sinal da cérvice: endentação da camada muscular no antro cheio de líquido, apresentando um canal pilórico alongado e estreitado, formando uma imagem semelhante ao da cérvice uterina; • diâmetro pilórico transverso (DPT): medido entre as margens externas opostas do piloro. Valores ≥ 8 mm sugerem o diag‑ nóstico de EHP. É considerado o parâmetro menos fidedigno; • comprimento do canal pilórico (CCP): medido da base do bul‑
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bo duodenal ao antro gástrico, acompanhando a linha ecogê‑ nica central da mucosa para determiná-lo. Seu valor diagnós‑ tico é ≥ 17 mm. Apresenta sensibilidade de 100% e especificidade de 84,85%; espessura do músculo pilórico (EMP): medido da parede ex‑ terna do músculo pilórico à margem externa da mucosa, ex‑ cluindo mucosa e lúmen. Valores ≥ 3 mm sugerem EHP com especificidade e sensibilidade de aproximadamente 100%; razão pilórica: calculada por meio da divisão da espessura do músculo pilórico pelo diâmetro pilórico (EMP/DPT), sendo relativamente independente do peso e da idade do paciente. Usando-se o valor > 0,27 para indicar a anormalidade, obtêm‑ -se sensibilidade de 96% e especificidade de 94%; volume pilórico: medido pela fórmula ¼ (p × [DPT]2 × CCP), em que p = 3,14, seu valor deve ser maior que 1,4 cm³. Apre‑ senta 33% de falso-negativos e tem utilidade prática limitada; espessura da mucosa (EM) e razão espessura da mucosa/es‑ pessura do músculo pilórico (EM/EMP): caracteriza o espes‑ samento e a redundância da mucosa como um dos fatores causais da EHP. A espessura da mucosa corresponde ao diâ‑ metro do canal preenchido por mucosa e submucosa redun‑ dantes, que equivale a 1/3 do diâmetro pilórico (DPT) = 4,1 ± 0,9 mm. A razão com a espessura muscular (EM/EMP) é igual a 0,89; outros achados ecográficos compreendem: esvaziamento gástrico retardado do líquido para o bulbo, ondas peristálticas exageradas e peristalse retrógrada. A presença de peristalse gástrica ativa que cessa de modo abrupto na margem do mús‑ culo hipertrofiado, associada à ausência de abertura normal do piloro, com passagem diminuída de líquido do estômago para o duodeno, é achado útil no diagnóstico da EHP.
Tratamento Cuidados pré-operatórios Dieta zero via oral; decúbito elevado; sonda nasogástrica (SNG) apenas se, mesmo em dieta zero, o bebê apresenta vô‑ mitos; correção dos déficits de líquidos, eletrólitos, equilíbrio acidobásico, hemoglobina e proteínas. Nos casos de desnutri‑ ção grave, fazer nutrição parenteral total antes da cirurgia. É indicada antibioticoterapia profilática com cefalosporina, dose única, 30 minutos antes da incisão cirúrgica, e lavagem gástrica a fim de evitar vômitos na indução anestésica, princi‑
palmente nos lactentes submetidos a exame radiológico con‑ trastado. Tratamento cirúrgico A EHP não é considerada uma emergência cirúrgica. O proce‑ dimento cirúrgico é considerado curativo e só deve ser realiza‑ do com o paciente em condições ideais. A técnica cirúrgica usada é a de Fredet-Ramstedt, que consiste na excisão longitu‑ dinal, e dissecção romba extramucosa do músculo pilórico na porção anterossuperior do piloro (piloromiotomia clássica), até completo abaulamento da mucosa intacta pela incisão. Essa técnica apresenta como vantagem a manutenção da inte‑ gridade da mucosa, além de evitar a contaminação da cavidade abdominal por conteúdo intestinal (Figura 18). A via de acesso clássica é realizada por meio de pequena incisão transversa no quadrante superior direito. Também pode ser realizada através de pequena incisão subcostal à direita, paralela ao rebordo cos‑ tal, lateral ao músculo reto abdominal; por incisão circumbili‑ cal, ou ainda por via videolaparoscópica. A escolha da via de acesso deve ser fundamentada na experiência do cirurgião. Como complicação cirúrgica, pode ocorrer, na realização da piloromiotomia, perfuração da mucosa duodenogástrica, que deverá ser suturada com fio absorvível, e o paciente, mantido no pós-operatório com SNG aberta por cerca de 48 horas (Figura 19). Cuidados pós-operatórios Manter dieta zero via oral e SNG por 8 a 12 horas. Hidratação parenteral com cálculo calórico e reposição de eletrólitos e das perdas pela SNG. Reiniciar dieta com leite materno ou fórmu‑ la diluída em pequenas quantidades até atingir volume e con‑ centração normais. Prognóstico A cirurgia da EHP apresenta mortalidade mínima associada em torno de 0 a 0,5%. Existem relatos em literatura de esteno‑ se recorrente do piloro, sendo necessária, nesses casos, a dila‑ tação endoscópica por balão ou até mesmo refazer a piloro‑ miotomia. A precocidade do diagnóstico determina o tratamento em tempo hábil a fim de que haja adequada prevenção do desen‑ volvimento de complicações clínicas que, porventura, possam se instalar.
Figura 18 Piloromiotomia – técnica de Fredet-Ramstedt.
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Quadro clínico compatível com EHP
Piloro palpável?
Sim
Piloromiotomia
Não
Negativa
Ultrassonografia
Observação
Positiva
Vômitos recorrentes
Melhora
REED com pesquisa de refluxo: - EHP - RGE - Membrana antral/pilórica - Piloroespasmo - Estenose de duodeno - Má rotação - Duplicação gástrica
Alta
Piloromiotomia
Figura 19 Fluxograma de investigação da EHP.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer náuseas, vômitos, sensação de plenitude gástrica, dor epigástrica tipo cólica e desidratação como as principais manifestações clínicas de obstrução pilórica. • Saber que a obstrução pilórica pode ser causada por etiologias congênitas ou adquiridas.
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CAPÍTULO 24
PECULIARIDADES NO ATENDIMENTO À CRIANÇA TRAUMATIZADA João Vicente Bassols
Introdução Quando uma criança sofre um trauma, sofre física e emocio‑ nalmente, sendo acompanhada pelos pais que, angustiados, sentem-se desamparados e culpados, o que deve ser lembrado sem prejuízo para a atenção e execução de procedimentos ne‑ cessários. A manifestação de medo é uma constante nessas crianças, e o principal agente para seu conforto é um pai ou cuidador com bom vínculo afetivo. Os pais ou substitutos são elementos importantes para a contenção e o controle da crian‑ ça na sala de emergência. É importante dizer a verdade para a criança, que deve ser informada precisamente e com termos adequados ao seu nível de compreensão sobre o prognóstico e os procedimentos aos quais será submetida. A imobilização da criança no momento do exame deve ser feita da forma menos traumática possível, com o auxílio de uma terceira pessoa. A anamnese e o exame físico são fundamentais em todas as situações, não devendo ser negligenciados. Traumas são lesões ou alterações causadas por agentes ex‑ ternos. Nesse conceito, estão incluídos traumas físicos e emo‑ cionais, contusões, ferimentos penetrantes, intoxicações e corpos estranhos em orifícios naturais ou não. Epidemiologia Mais de 80% dos traumas nas crianças são contusos. Enquan‑ to nos Estados Unidos 10 milhões de crianças sofrem traumas por ano e 10 mil morrem, no Rio Grande do Sul, a mortalidade decorrente de causas externas é de 30%, aproximando-se das cifras daquele país. O trauma cranioencefálico (TCE) é o motivo de internação mais comum. A maior causa de trauma na infância está asso‑ ciada ao politraumatismo. À medida que a criança cresce, au‑ menta a chance de trauma por maior exposição aos seus agen‑ tes causadores. Em um levantamento epidemiológico, observou-se que o perfil do paciente pediátrico que sofreu trauma em nosso meio e necessitou de internação no Hospital de Pronto-socorro Mu‑
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nicipal de Porto Alegre, RS, foi um menino com idade aproxi‑ mada de 12 anos que caminhava pelas ruas no período da tarde e foi atropelado, tendo como consequência o TCE. O trauma, ou as denominadas causas externas em nosso meio, é a causa de maior morbimortalidade na criança após 1 ano de idade. Não há medidas de precisão para avaliar o im‑ pacto dessas perdas ou incapacitações permanentes ou tem‑ porárias. Trata-se de seres que têm a maior parte de suas vidas pela frente e que, repentinamente, se veem privados delas por causas passíveis de prevenção. Os efeitos das drogas, principalmente do álcool, têm sido cada vez mais presentes na gênese do problema. Em relação aos programas lançados para diminuir a ingesta de bebidas al‑ coólicas e/ou o uso de outros tipos de drogas, a sua associação ao trauma tem sido frequente. Considerações sobre a criança A afirmação de que “crianças não são adultos em miniatura” deve sempre ser enfatizada. Elas têm características únicas em sua anatomia, fisiologia e composição bioquímica, além de aspectos emocionais, que as fazem responder de maneira dis‑ tinta às agressões sofridas. Diferentemente do adulto, em que se pode estabelecer mo‑ delo de suscetibilidade ao trauma e fatores de risco, na criança o estabelecimento de um modelo é complicado. O crescimen‑ to, com suas constantes mudanças anatômicas e fisiológicas, faz que a diferença não seja apenas um acréscimo em peso ou massa corporal. As crianças são obviamente dinâmicas em seu crescimento e desenvolvimento e, à medida que alcançam marcas no crescimento, no comportamento e na aquisição de habilidades, sua interação com o ambiente muda. Modificações físicas Uma criança tem cerca de 50 cm de comprimento. No primei‑ ro ano de vida, há um crescimento de 25 cm, isto é, um adicio‑ nal de 50% da altura inicial. O comprimento dobra aos 4 anos de idade. Na adolescência, há um acréscimo de 5 a 6 cm por
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Peculiaridades no Atendimento à Criança Traumatizada •
ano, até atingir altura média de 1,77 m no homem ou 1,65 m na mulher. O peso ao nascer é de aproximadamente 3 kg, duplicando em 5 meses, triplicando em 1 ano e quadruplicando em 2 anos. Até a puberdade, há um aumento aproximado de 10 kg no pri‑ meiro ano, 20 kg em até 5 anos e 30 kg em até 10 anos. Na vida adulta, o peso é, com grandes variações, de 70 kg no homem e 67 kg na mulher. As proporções entre as diversas partes do corpo também se modificam, com mudanças substanciais, inclusive no centro de gravidade. A cabeça da criança é relativamente grande quando comparada ao resto do corpo, principalmente por ser o primeiro segmento a completar seu desenvolvimento. A cir‑ cunferência cefálica é de aproximadamente 34 cm ao nascer, 50 cm aos 4 anos ou 80% da circunferência do adulto e aproxi‑ madamente 95% da do adulto aos 8 anos. Quanto à musculatura, também há características interes‑ santes. Os membros inferiores de um adulto têm 55% de seu peso muscular, correspondendo, aproximadamente, à metade da altura corporal. No lactente, os membros inferiores equiva‑ lem a 1/3 do comprimento total, e o maior volume muscular está no pescoço e no tronco. O adulto tem cerca de 40% do peso total em massa muscular e 5% em órgãos (fígado, cora‑ ção, cérebro e rins). No lactente, a distribuição é bastante dife‑ rente, sendo 20% em massa muscular e 18% em órgãos. Por essas características, depreende-se por que as crianças são mais vulneráveis ao trauma. A pele na criança é menos espessa e cobre uma superfície de 800 cm2/kg, enquanto a de um adulto cobre 300 cm2/kg. Isto é, o adulto tem mais pele para cobrir menos superfície que a criança. Comportamento A criança é mais vulnerável, por exemplo, em um atropela‑ mento. Por ser mais impulsiva e facilmente distraída, sofre mais atropelamentos com consequências mais graves. A per‑ cepção auditiva e visual são habilidades em desenvolvimento, prejudicando sua interação com o ambiente e sua autodefesa. Em geral, a criança é superestimada pelos pais quanto a suas habilidades e não tem condições, por exemplo, de atra‑ vessar ruas com segurança até os 8 anos de idade. Mesmo sen‑ do educadas, as crianças têm dificuldades de observar o tráfe‑ go antes de atravessar uma rua. A educação ajuda, mas não muda a sequência do desenvolvimento. Cinemática do trauma Mecanismos de trauma Ao estudar a epidemiologia do trauma pediátrico, encontram‑ -se diferentes mecanismos. No caso das agressões, os meca‑ nismos dependem da zona atingida e do meio utilizado pelo agressor, podendo ser desde contusões e queimaduras até agressões por arma branca ou projéteis de arma de fogo. Em caso de intoxicações, corpos estranhos e afogamento, há dife‑ rentes mecanismos conforme as características do produto causador da intoxicação. Os corpos estranhos causam quadros de obstrução digestiva ou respiratória, enquanto o afogamen‑
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to apresenta quadro obstrutivo inicial com asfixia por elemen‑ to líquido. Embora seja praticamente impossível eliminar as causas de lesões na criança, a melhor maneira de combatê-las é pela pre‑ venção. Considerando que o trauma não é um acidente, isto é, algo fortuito, imprevisível, é possível, conhecendo os padrões de lesão típicos e a etiologia do trauma, diminuir a incidência com medidas preventivas. A agitação na sala de emergência pode levar o médico a ne‑ gligenciar informações relevantes a respeito daquele que está atendendo. É importante o entendimento de que a cena e o desenrolar do trauma são fundamentais para diagnóstico das possíveis lesões da criança. É um erro avaliar uma criança víti‑ ma de trauma como um evento que chega ao pronto-socorro como uma fotografia, pois o trauma teve uma história, ocor‑ rendo como um filme. Inúmeros fatores, como velocidade, aceleração, área de contato, distância de frenagem, amorteci‑ mento, sistemas de contenção e colisões secundárias, estão envolvidos em um acidente de trânsito, por exemplo, e se o médico tiver ideia de como esses fatores atuam, mais rápido e preciso será seu diagnóstico. Na sala de emergência, é necessário conversar com os pais ou cuidadores para obter informações sobre o local do aciden‑ te. No caso de acidentes de trânsito, deve-se questionar sobre os equipamentos de proteção, como cintos de segurança e airbags, a posição da criança no veículo, os fatores que possam ter precipitado o acidente e as condições dos outros passagei‑ ros. A colocação incorreta do cinto de segurança, por exemplo, provoca quatro vezes mais traumatismos de vísceras abdomi‑ nais. Informações valiosas também são possíveis de ser obti‑ das, por meio dos policiais e das equipes de atendimento de rua, em relação ao tipo e à situação do veículo, às condições da rodovia, aos procedimentos de extricação, à direção do impac‑ to e às deformidades encontradas. No caso de quedas, podem ser obtidas informações sobre a altura, o tipo de piso do local do impacto, a possibilidade de colisões e o amortecimento em janelas, varandas ou outras es‑ truturas do ambiente. O trauma pediátrico não ocorre de for‑ ma casual, isto é, obedece a um padrão de idade, sexo, tipo de atividade, local e lesões, podendo apresentar variações para cada centro de atendimento. O conhecimento desses padrões pela equipe médica torna o atendimento mais efetivo. Características da criança A criança tem a cabeça proporcionalmente maior quando comparada ao corpo. A cabeça também é relativamente pesa‑ da, sendo o pescoço e os ombros pouco desenvolvidos para sustentá-la. O centro de gravidade do corpo desloca-se à medida que a criança cresce. Está ao nível de T11 para T12, no lactente, e cai para L4 a L5, no adulto. Isso significa que o centro de gravida‑ de do lactente está um pouco acima do umbigo e, ao redor de 1 ano de idade, no umbigo, e continua descendo até a sínfise pú‑ bica ou a crista ilíaca no adulto. O atrito entre a criança e o banco provoca um retardo no lançamento da parte inferior do corpo, de modo que a cabeça e
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a parte superior do corpo sempre são lançados primeiro. O mo‑ vimento que a criança descreve em uma colisão, se não estiver contida, é de um corpo leve que voa para a frente com a cabeça primeiro, muitas vezes com força suficiente para colidir com o painel ou ser ejetada pelo para-brisa. Pelo maior peso corporal em órgãos cavitários, o abdome é protuberante e flácido. Além disso, quanto menor a criança, me‑ nos protegido será seu abdome. Física A compreensão dos mecanismos de lesão passa pelo entendi‑ mento de alguns conceitos da Física, entre eles: • a energia não é criada ou destruída; • a energia muda de forma; • um corpo em movimento ou em repouso tende a permanecer nesse estado, a menos que alguma força atue sobre ele; • a energia cinética (EC) é igual à massa de um objeto em movi‑ mento multiplicada pela velocidade ao quadrado, dividida por dois: EC = (M 3 V2)/2; • a força é igual à massa multiplicada pela aceleração (ou desa‑ celeração) e à massa multiplicada pela distância: F = M 3 d. A lesão traumática depende da quantidade de energia trans‑ mitida, da velocidade de transmissão, da superfície da área so‑ bre a qual a energia é aplicada e das propriedades elásticas dos tecidos sobre os quais ocorre a transferência de energia. A transferência de energia pode ser comparada a uma onda de choque que se move a velocidades variáveis através de meios diferentes. Ao considerar a propagação dessas ondas de choque em um meio elástico, como são os tecidos do corpo hu‑ mano, o estiramento transmitido pelos tecidos depende da ve‑ locidade das partículas de matéria que iniciam a onda de cho‑ que, da velocidade das ondas nos tecidos e da densidade da massa do próprio material. Se a velocidade excede a tolerância dos tecidos, ocorre sua laceração, produzindo a lesão traumá‑ tica. Considerando a propagação das ondas de choque através dos tecidos, é fácil entender que as lesões traumáticas ocor‑ rem, com maior probabilidade, nas proximidades de zonas de transição entre diferentes tecidos ou interfaces ar/tecido. O estiramento também ocorre nessas zonas. Enquanto se propagam, as ondas de choque liberam energia dos tecidos mais densos para os menos densos. Para que um objeto em movimento perca velocidade, é necessário que sua energia de movimento seja transmitida a outro objeto ou que se transfor‑ me em outra forma de energia. Um golpe intenso e com igual força contra a calota craniana e o abdome transmite a mesma quantidade de energia. Entretanto, os efeitos da transferência de energia são claramente visíveis no crânio e podem não o ser no abdome. Um soco desferido no abdome pode deformar profundamente a parede, sem deixar marcas visíveis. Quando não há fraturas ou evidência de lesão tecidual, a extensão da lesão pode não ser determinável pelo exame físico. O tamanho da cavitação temporária é determinado pela quantidade de energia transferida. A transferência de energia, por sua vez, é determinada pela quantidade de partículas do tecido que são impactadas pelo objeto em movimento e sua
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EC. Quanto maior a superfície e mais denso o tecido, maior o número de partículas afetadas. Um objeto estreito, com uma superfície pequena, atravessando um tecido que não é muito denso, como o intestino delgado ou o pulmão, não cria grande cavitação, pois apenas poucas partículas teciduais são atingi‑ das. Já o osso é muito denso e, quando impactado por um ob‑ jeto com uma superfície grande, quebra, fragmenta e, frequen‑ temente, seus fragmentos são deslocados à distância do ponto de impacto. Outro fator a ser analisado é o estado físico do tecido no momento em que a energia é aplicada sobre ele. Um exemplo prático disso é fazer um furo de agulha em um balão vazio e em um cheio de ar sob pressão. No balão vazio, surgirá apenas um pequeno furo, já o balão cheio explodirá, espalhando frag‑ mentos. Isso acontece porque, no caso do balão inflado sob pressão, as fibras do polímero constituem um estado de sobre‑ carga triaxial que, quando puncionada pela agulha, rompe-se em todas as direções. Já o balão vazio está sob efeito de uma sobrecarga uniaxial e rompe apenas as cadeias sob tensão. Muitos órgãos, como coração, estômago, fígado, diafragma, bexiga, são sujeitos a forças multiaxiais e resultam em lesões estreladas, irregulares e extensas. Colisões de veículos automotores Um acidente automobilístico pode ser visto como uma série de quatro eventos: 1. A colisão inicial do veículo: durante esse período, pode haver lesão direta por intrusão ou deformação do veículo sobre seus ocupantes. 2. Quando os ocupantes batem contra o interior do veículo: essa é a forma mais comum de lesão e a área na qual se consegue mais sucesso nas medidas de prevenção. O corpo humano é trifásico, composto por sistemas sólido, líquido e gasoso com‑ binados para fornecer função e proteção. O cérebro está conti‑ nuamente banhado por líquido, o que promove proteção, já que a lâmina de líquido alivia a transmissão de energia e ofe‑ rece absorção do impacto. 3. Quando um órgão sofre colisão contra os limites do espaço em que está confinado. 4. Os objetos que estão soltos dentro do veículo e que se trans‑ formam em projéteis, mantendo a velocidade que o veículo vinha desenvolvendo e podendo atingir os ocupantes causan‑ do lesões. A colisão em si raramente mata. As crianças são mortas quan‑ do seus corpos, movendo-se em alta velocidade, chocam-se com o painel interno do veículo. Um veículo em movimento e todos os seus ocupantes e ob‑ jetos têm uma EC que acompanha sua velocidade. Pelo fato de a EC depender da velocidade ao quadrado, um aumento de ve‑ locidade de 90 para 105 km/h leva a um aumento de 40% na EC do veículo. Para parar, a energia cinética do veículo deve ser dissipada, o que normalmente acontece pela fricção dos freios. Quando um motorista se aproxima do sinal, o ocupante do veículo pode notar a força aplicada por meio dos freios, se a desaceleração ocorrer em um longo intervalo de tempo. Con‑
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tudo, se a desaceleração ocorrer em um período muito curto (0,01 segundo, típico em colisão frontal), uma força muito maior vai ser aplicada. Essa força normalmente é descrita uti‑ lizando-se a força da gravidade como medida de comparação. A força de desaceleração usada para dissipar a energia cinética (EC) pode ser calculada pela física. Para parar um veículo que anda a 50 km/h em um espaço de 6 m, é necessária uma desa‑ celeração de 1,5 forças G (unidade de força). Para parar o mes‑ mo carro em 5 cm, deve-se gerar uma força de desaceleração de 180 G. Os freios não param o passageiro, somente o carro. Assim, a EC do ocupante do veículo também deve ser dissi‑ pada. Em uma frenagem normal, o atrito com o assento é sufi‑ ciente para parar o ocupante. Se uma força de 180 G é aplicada, a energia deve ser dissipada de alguma forma. Se estiver usan‑ do o cinto, boa parte da energia será dissipada nele, porém, em uma criança solta dentro do veículo, a energia será transferida para o local da colisão contra o painel, acontecendo as lesões. As forças não provocam lesões sozinhas, mas quando aplica‑ das ao corpo. Isso é mais bem descrito em termos de força de re‑ sistência e força de estiramento. A força de resistência é aquela aplicada sobre uma superfície e representa a resistência a essa força aplicada. Já a de estiramento representa a deformação que o objeto vai apresentar e depende da sua natureza. Existe, ainda, a chamada força de cisalhamento, que é a le‑ são resultante da ação de duas forças aplicadas em direções opostas. Mecanismos de lesão em acidentes com veículos automotores Embora existam muitas variáveis em uma única colisão, pa‑ drões de lesão podem ser descritos e analisados, enquanto fato‑ res de risco podem ser identificados. Do conhecimento desses padrões é que surge o alto grau de suspeita clínica de algumas lesões que poderiam passar inicialmente despercebidas. As colisões frontais representam grande risco quando o veí‑ culo colide com outro em movimento e, principalmente, quando colide contra um anteparo fixo. O número de mortes quando um veículo colide contra um anteparo fixo é 2,5 vezes maior que quando ocorre colisão entre dois veículos em movi‑ mento. Imaginando um ocupante dos assentos dianteiros do carro, na colisão frontal, os joelhos são os primeiros a colidi‑ rem contra o painel; porém, quando isso acontece, o automó‑ vel ainda não parou completamente e o corpo tem sua maior área de atrito junto à musculatura glútea. A articulação coxo‑ femoral funciona como zona de dobradiça, podendo surgir fra‑ tura e luxação do tornozelo e do joelho, fratura do fêmur e lu‑ xação posterior da cabeça do fêmur. Quando a colisão se conclui, o tronco e a cabeça são lançados para frente. O tórax e parte do abdome colidem contra o painel e o volante. Muitas lesões torácicas e abdominais apresentadas depen‑ dem do ângulo da coluna de direção, mas compressão do es‑ terno e fraturas de costelas são comuns. A cabeça é o último ponto a se chocar. Se o passageiro golpear um para-brisa de vi‑ dro laminado, ele pode se deformar até por 15 cm antes de se romper, absorvendo parcialmente a energia de impacto. Parte da lesão apresentada na cabeça e na coluna cervical deve-se
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ao impacto direto contra o vidro ou ao choque do cérebro con‑ tra as estruturas ósseas do crânio. Em determinado momento, o impacto da desaceleração se faz em um único plano hori‑ zontal, levando a importantes lesões articulares da coluna, além de lesões de nervos, cérebro e medula espinal por cisa‑ lhamento. Nas colisões laterais, o tipo de lesão apresentada depende da posição do ocupante do veículo. Essas colisões são muito comuns e só perdem em mortalidade para as colisões frontais. No impacto lateral, o ocupante é submetido a uma aceleração que o afasta do ponto de colisão. Se o impacto for do lado do motorista, ele poderá apresentar lesões abdominais e toráci‑ cas à esquerda, principalmente do baço, e fraturas costais. Os encostos para a cabeça são pouco efetivos nessa situação. A mobilização lateral do pescoço pode causar lesão importante da coluna cervical e do plexo braquial. Um passageiro que so‑ fre o impacto do lado direito tem um perfil semelhante de le‑ são, mas envolvendo o fígado. Além disso, as colisões laterais modificam a trajetória do veículo, podendo resultar em colisão contra outro veículo ou contra um anteparo fixo. O impacto traseiro tem conotações biomecânicas diferen‑ tes. O acidente típico é colisão contra um veículo parado, o qual, ao absorver a energia do veículo que o atingiu, é jogado para a frente. Os ocupantes também são jogados para a frente, sendo que o tronco vai primeiro, ficando a cabeça e o pescoço para trás. Caso o encosto da cabeça não esteja bem posiciona‑ do ou não exista, haverá uma hiperextensão seguida de uma flexão cervical, o que se chama de mecanismo de chicote. Como resultado, pode ocorrer lesão dos elementos posteriores da coluna cervical, fratura de lâminas, dos pedículos e dos pro‑ cessos espinhosos. Fraturas múltiplas também são comuns. Durante o mecanismo de rebote, que leva à flexão cervical, pode ocorrer colisão da cabeça contra o para-brisa. Um tercei‑ ro modo de lesão das estruturas intracranianas é possível por um mecanismo de golpe e contragolpe, ocasionando lesões frontais e occipitais. Capotagem é o tipo de mecanismo de lesão mais grave e im‑ previsível nos acidentes de carro. Durante a capotagem, o ocu‑ pante, quando não está usando cinto de segurança, pode se chocar contra qualquer estrutura do interior do veículo, em ângulos imprevisíveis de choque. Um estudo canadense evi‑ denciou que a capotagem é o tipo de acidente mais comum com ônibus escolares e que produz graves lesões aos ocupan‑ tes. Lá, os ônibus escolares fazem a “compartimentalização” das crianças por assento, já que o uso de cintos de segurança em ônibus demonstrou aumento nas lesões de crânio e coluna cervical. Esse método de proteção consiste em assentos e es‑ truturas de metal estofado para atenuar o efeito do choque do passageiro contra eles. A partir da análise desses acidentes, foi indicado o estofamento das laterais do interior do ônibus, já que muitos dos impactos que levam à capotagem são dessa forma, e as mortes ocorrem por choque da cabeça contra a la‑ teral em que está a janela. Entre os mais frequentes em nosso meio, estão os causados por veículos, sendo a criança passageiro ou vítima de atropela‑ mento, quedas, queimaduras e agressões. Menos frequentes,
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mas não menos importantes, são os afogamentos, as intoxica‑ ções, as ingestões ou aspirações de corpos estranhos e os feri‑ mentos por projétil de arma de fogo ou arma branca. As lesões de coluna cervical são bastante raras na criança, mas, quando acontecem, são extremamente graves. No banco traseiro do veículo, no qual normalmente deve‑ riam ser transportadas as crianças, também podem ocorrer traumas nas colisões ou outros acidentes. As estatísticas nos Estados Unidos demonstram que somente 5% das crianças usam mecanismos restritivos, isto é, 95% estão em diferentes locais do veículo, principalmente na parte dianteira, em pé ou brincando, aumentando muito os riscos de trauma. Bicicleta Os acidentes com bicicletas são comuns entre as crianças, ge‑ ralmente entre os 9 e 15 anos de idade, sendo os meninos mais acometidos que as meninas. O acidente fatal mais comum é a colisão contra um veículo automotor. Em geral, essas colisões são frontais, mas colisões laterais também são muito comuns. O traumatismo craniano é a maior causa de morte nos acidentes com bicicleta, ocorrendo em 22 a 47% dos ciclistas acidentados e sendo responsável por 60% das mortes e situações de invalidez. Também são fre‑ quentes nos acidentes sem morte. Os hematomas subdurais, acompanhados ou não de fraturas, são os maiores responsá‑ veis pelas mortes. Já as lesões de coluna cervical não são fre‑ quentes. Lesões pulmonares e abdominais também têm sido relatadas. Recente estudo mostrou uma associação maior en‑ tre o impacto direto do guidão da bicicleta sobre o abdome e a necessidade de uma laparotomia de urgência, quando compa‑ rados a crianças que são lançadas sobre o guidom. Fraturas de membros também são muito comuns. O uso de capacetes para prevenir o traumatismo craniano em ciclistas tem se mostrado uma medida altamente efetiva, sendo adotado como lei em al‑ guns países. O capacete reduz o risco de trauma craniano na ordem de 74 a 85%, mas, nos Estados Unidos, embora 50% das crianças ciclistas tenham capacete, somente 15 a 25% usam-no com frequência e corretamente. As crianças mais ve‑ lhas e os adolescentes são os que mais negligenciam o uso. Os capacetes protegem o cérebro das compressões, dimi‑ nuindo a desaceleração e protegendo o crânio de fraturas. To‑ dos os estudos realizados demonstram a eficácia de sua prote‑ ção. Em uma cidade da Austrália, onde é obrigatório o uso desse equipamento, houve considerável redução das lesões de crânio. O melhor momento de ensinamento aos pais e às crianças é quando ocorre um evento traumático. Os meninos entre 10 e 14 anos de idade constituem o maior grupo de risco, devendo‑ -se enfatizar o uso de equipamentos de proteção nesse grupo. As lesões mais frequentes são concussões e fraturas de crânio, ao passo que lesões focais são menos frequentes. Autores rela‑ tam que as contusões são mais frequentes que os ferimentos penetrantes, o que sugere que, protegendo melhor a cabeça, certamente haverá diminuição dessas lesões. Lesões pulmo‑ nares, hepáticas, esplênicas e rupturas intestinais podem es‑ tar associadas ao TCE. Fraturas de extremidades ocorrem mais frequentemente em traumas menos graves.
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Além do TCE, que é o motivo de internação mais comum, destacam-se alguns casos de traumas abdominais produzidos pelo guidom da bicicleta como traumas de duodeno, intestino delgado e mesentério, necessitando de tratamento cirúrgico. Pedestres Lesões a pedestres são um importante componente nas mor‑ tes por trauma em crianças entre 1 e 14 anos de idade. Estatis‑ ticamente, os pré-escolares e os escolares correm mais risco de morte como pedestres que como passageiros de veículos. A maioria dos traumas fatais e não fatais em crianças pe‑ destres ocorre entre os 4 e 9 anos de idade, com outro pico en‑ tre os 18 e 19 anos. Muitos estudos têm demonstrado que os meninos são mais propensos a esse tipo de trauma que as me‑ ninas. Estudos também mostram que crianças de áreas pobres têm maiores riscos de atropelamento. O tipo de trauma mais comum é aquele em que a criança é golpeada pela frente do carro e o contato é feito com o para‑ -choque ou o capô. O exato ponto de contato com o corpo de‑ pende da altura da criança, que, em seguida, gira sobre o capô e bate a cabeça, o ombro e o tórax contra o para-brisa ou a lata‑ ria do carro. A vítima é lançada na mesma velocidade em que o carro vinha e, se o veículo freia, como geralmente acontece, o carro diminui sua velocidade em relação ao pedestre, que con‑ tinua a se mover para a frente e cai na pista deslizando e rolan‑ do. Assim, existem duas fases no atropelamento, uma com múltiplas lesões de contato direto com o carro e outra com le‑ sões resultantes do deslizar e rolar na estrada. Grande varieda‑ de de lesões pode surgir, com sua gravidade diretamente pro‑ porcional à velocidade do veículo. Entre as lesões sofridas por pedestres vítimas de atropelamento, as mais comuns são as torácicas, as cranioencefálicas e as de extremidades rígidas. Em seguida, com a parada do veículo, a vítima é lançada ao solo, deslizando ou rolando sobre ele. Há, portanto, duas fases no mecanismo de trauma no atropelado: a primeira, de múlti‑ plo contato com o carro, e a segunda, quando ocorre o impacto da vítima com o solo. A gravidade das lesões está diretamente relacionada à velocidade do impacto na primeira fase. A melhor maneira de prevenir esses acontecimentos seria retirar as crianças das ruas, oferecendo locais apropriados para jogos e brincadeiras. Testes de teor alcoólico e multas maiores ou a retirada da licença para dirigir também são medidas efica‑ zes, assim como campanhas de prevenção junto às escolas. Quedas As quedas representam a primeira causa de traumatismo não fatal e a segunda causa mais importante de lesões de medula e cérebro. As quedas produzem lesão em virtude da desacelera‑ ção brusca do corpo em movimento. Sempre que uma força externa é aplicada ao corpo humano, a gravidade das lesões é resultante da interação entre os fatores físicos da força e os te‑ cidos do corpo. Se o corpo está em movimento, a gravidade das lesões depende da capacidade que a superfície estacioná‑ ria tem de interromper o movimento anterógrado do corpo. No impacto, o deslocamento diferenciado dos tecidos dentro do organismo causa sua laceração. A diminuição da velocidade
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de desaceleração e o aumento da superfície para a qual se dis‑ sipa a energia do impacto aumentam a tolerância à desacelera‑ ção, por promover um deslocamento mais homogêneo dos te‑ cidos. A natureza da superfície que recebe o impacto também é importante, pois o concreto, o asfalto ou qualquer superfície rígida aumenta a velocidade de desaceleração, sendo respon‑ sável por lesões mais graves. A elasticidade e a viscosidade dos tecidos afetados também influenciam na gravidade da lesão. Devem ser lembradas as fraturas típicas da criança, como em galho verde e torção, e a possibilidade de elas atingirem as zonas de crescimento. Ao sofrer atropelamento, a criança geralmente tem uma atitude diferente da do adulto, colocando-se de frente para o veículo e podendo, por sua menor estatura, ser atingida no ab‑ dome, no tórax ou na bacia, com lesões muitas vezes impor‑ tantes em vários locais. O mecanismo é inicialmente um golpe que atinge diretamente uma área maior do corpo da criança, causando lesões multissistêmicas. Os escolares são os mais atingidos, no período da tarde, quando saem da escola. Trata‑ -se de um problema essencialmente urbano, visto que cerca de 80% dessas lesões ocorrem dentro das cidades. Em cerca de 3/4 dos casos há sinais de frenagem do veículo e calcula-se que a maioria dos atropelamentos ocorre a uma velocidade de cerca de 50 km/h. Trabalhos mostram que nas áreas urbanas mais pobres as crianças sofrem mais lesões como pedestres. Em Porto Alegre, o mecanismo de trauma que mais levou crianças a serem hos‑ pitalizadas foi o atropelamento. Em geral, as crianças menores são vítimas de atropelamento próximo a suas casas, sendo que quem conduz o veículo é um membro da família da vítima ou um vizinho. O uso de álcool e os problemas de comportamen‑ to são frequentes causas de atropelamento. No mecanismo de trauma no atropelamento, o local do cor‑ po atingido depende diretamente do tamanho da criança (Fi‑ gura 1). Após o primeiro contato, a criança roda, e a cabeça, o ombros e o tórax são atingidos secundariamente ao se choca‑ rem contra alguma estrutura. Padrões anatômicos de lesão Atualmente, as pesquisas em trauma caminham em direção à prevenção e à previsão. É fato que muitas lesões ocorrem em padrões já conhecidos e estudados por décadas, portanto, me‑ didas preventivas simples podem ser muito eficazes, desde que se conheçam os mecanismos que levam às lesões. Mais de 60% da mortalidade de crianças por trauma deve‑ -se à lesão do neuroeixo. Na maioria das séries, as crianças que apresentam traumatismo de crânio não estavam perfeitamen‑ te colocadas nos assentos ou nos dispositivos de segurança quando passageiras de veículos automotores. As lesões de co‑ luna cervical são menos frequentes que os traumatismos de crânio, mas, em contrapartida, apresentam mortalidade dez vezes maior. Apenas 1/3 das lesões encefálicas graves apre‑ senta fratura do crânio associada, e o trauma direto não preci‑ sa necessariamente ocorrer para que se desenvolva uma lesão fatal.
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Lesões por inércia ocorrem como resultado de força de ro‑ tação ou angulares, que podem ocorrer durante uma colisão e resultam na mobilização do cérebro contra estruturas fixas do crânio. Hematomas subdurais são o exemplo da lesão por des‑ locamento por forças de inércia. O cérebro move-se em relação à dura-máter que o cerca, lesando vasos que o conectam com os seios de drenagem. Já os hematomas epidurais ocorrem por lesões diretas ao cérebro. Lesões cervicais podem ocorrer por uma variedade de me‑ canismos, mas as lesões por flexão-compressão são as mais comuns, compreendendo aproximadamente 2/3 das lesões de coluna cervical no grupo pediátrico. Uma força aplicada à região occipital leva à flexão abrupta do pescoço, resultando em fraturas de C5-C7. Um terço das lesões cervicais em aci‑ dentes com veículos automotores é do tipo extensão, mais co‑ mum quando a criança bate a região frontal contra o interior do veículo, o que leva a importante extensão cervical. Pode ha‑ ver fratura cervical alta, semelhante à fratura do enforcado ou à ruptura atlanto-occiptal, que é uma lesão bem mais comum em crianças que em adultos. Colisões laterais levam à flexão lateral, estando esse mecanismo presente em aproximada‑ mente 10% das lesões cervicais. Geralmente, ocorre fratura de C4-C5 nessa situação. As lesões fechadas do tórax e abdome têm mais semelhan‑ ças que diferenças. Geralmente, forças diretas aplicadas no tronco e nas estruturas adjacentes não causam rompimentos. A complacência acompanha a compressão, resultando na transmissão da força para estruturas internas. A complacência do abdome é alta, pelo fato de a muscula‑ tura abdominal ser facilmente compressível. As vísceras ocas abdominais têm capacidade de deslizar para evitar a lesão, po‑ rém, rupturas de estômago ou intestino podem ocorrer. Hérnia diafragmática traumática é outra possibilidade e tem sido diagnosticada até 3 anos após um acidente de automóvel. Queda de altura em pé e em alta velocidade pode levar a des‑ garros de zonas de fixação de vísceras abdominais, mas a lesão intra-abdominal mais comum é a lesão de fígado e baço, ór‑ gãos encapsulados.
Figura 1 Zona anatômica de impacto (Buntain).1
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No tórax, as costelas constituem uma proteção contra as le‑ sões, mas essa proteção é limitada em virtude da capacidade de complacência da caixa torácica, podendo levar a lesões in‑ tratorácicas sem fratura de costelas. A caixa torácica é capaz de resistir a grandes forças, desde que sejam aplicadas em bai‑ xas velocidades. De outra forma, forças menores aplicadas com velocidades maiores sobre o tórax podem levar a extensas lesões, típicas dos acidentes de automóvel, em que sempre há alta velocidade. A Tabela 1 resume as lesões possíveis em cada tipo de aci‑ dente.
Cabeça e pescoço Cerca de 63% das crianças até os 4 anos de idade e 73% entre 4 e 15 anos morrem por trauma neurológico. Na verdade, dessas crianças vítimas de trauma em estradas dos Estados Unidos, nenhuma estava adequadamente restringida no veículo em que viajava. As lesões de coluna cervical, embora graves, são raras em crianças. As raras lesões por trauma de coluna cervical ocor‑ rem mais comumente por mecanismos de flexão-compressão (2/3 dos mecanismos nessa faixa etária). Outro mecanismo menos comum é a extensão, ocorrendo lesões similares ao
Tabela 1 Lesões em cada tipo de acidente Acidente Colisão em geral
Lesões Lesão direta por intrusão ou deformação do veículo Choque dos ocupantes contra o interior do veículo Choque das estruturas internas do corpo contra seus limites ósseos Lesões por objetos soltos dentro do veículo
Colisão frontal
Lesão dos joelhos contra o painel Luxação do tornozelo Luxação do joelho Fratura do fêmur Luxação posterior da cabeça do fêmur Trauma torácico fechado Fratura de esterno e costelas Lesão abdominal alta Trauma de crânio Lesão de coluna cervical
Colisão lateral
Lesões de crânio, abdominais e torácicas contra a lateral interior do veículo (lembrar que o passageiro é jogado para o lado oposto ao lado da colisão) Lesão de coluna cervical e plexo braquial
Colisão traseira
Mecanismo de chicote Traumatismos cervicais variados Lesão intracraniana por golpe e contragolpe Lesões frontais e occipitais
Capotagem
Lesões imprevisíveis Trauma de crânio contra a lateral do lado da capotagem
Acidentes de bicicleta
Traumatismo de crânio (impacto na prevenção com o uso de capacetes) Fraturas de extremidades Lesões abdominais
Atropelamentos
Fraturas de membros inferiores no ponto de contato com o para-choque Trauma de crânio, ombro e tórax Lesões por rolagem e deslizamento na pista
Quedas
Dependem do ponto de contato com o solo. Quanto maior a área de contato com o solo, menor a intensidade de lesão Queda em pé: fratura de calcâneo, fratura de cólon de fêmur, compressões vertebrais, lesões ligamentares da coluna, avulsões de vísceras abdominais Quedas de cabeça: lesões de crânio e fraturas graves de coluna cervical
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Peculiaridades no Atendimento à Criança Traumatizada •
mecanismo da fratura do enforcado. Esse mecanismo pode acarretar ruptura atlanto-occipital, sendo 250 vezes mais co‑ mum na criança que no adulto. Menos frequentemente, em cerca de 10% das vezes, acontece o mecanismo de flexão late‑ ral, geralmente com traumas no nível de C4-C5 (Figura 2). Tronco O mecanismo mais comum de trauma no tronco também é o contuso. A complacência é maior no abdome e o conteúdo in‑ tra-abdominal é viscoso, permitindo o deslocamento entre os órgãos intra-abdominais e evitando lesões. Os sintomas em uma contusão abdominal são pouco confiáveis, exceto pela presença de irritação peritoneal e pela ausência de ruídos hi‑ droaéreos. As lesões mais frequentes na cavidade abdominal estão localizadas no fígado e no baço, que são órgãos encapsu‑ lados. Vários sentidos de forças podem ocorrer sobre os ór‑ gãos, causando diferentes lesões (Figura 3). Nos traumas cau‑ sados por veículos automotores, a maioria das crianças com equipamentos de proteção mal posicionados, entre os 4 e 9 anos de idade, pode sofrer lesões associadas a esse mau posi‑ cionamento. A caixa torácica é bastante complacente, graças às caracte‑ rísticas da criança, principalmente do lactente, suportando grandes forças sem fraturas e com importantes lesões intrato‑ rácicas. Quando há fratura, deve-se interpretar que o mecanis‑
Figura 2 Mecanismos de lesão cervical.
mo de trauma foi muito intenso e que lesões importantes dos órgãos intracavitários podem ter acontecido. Os elementos a ser considerados no mecanismo de trauma contuso no tórax são a quantidade de força empregada, a porcentagem de com‑ pressão torácica e a velocidade de compressão, segundo traba‑ lhos de Viano.2 Isso significa que a caixa torácica tolera uma pesada batida, se for aplicada com baixa velocidade (lenta‑ mente). Cadeiras As cadeiras próprias para crianças pequenas também são equipamentos que, em um acidente, podem levar a criança a diferentes mecanismos de trauma, inclusive como projétil. Airbags Se a batida for aplicada com mais velocidade, porém, podem ser produzidas extensas lesões. Na verdade, a velocidade da deformidade, a quantidade de força, o tamanho da superfície de contato e a complacência torácica são determinantes da ex‑ tensão do trauma. Sistemas de segurança Cintos Os sistemas de segurança empregados determinam mecanis‑ mos de trauma peculiares. Os cintos de segurança, quando mal posicionados, podem causar lesões características. O cinto ab‑ dominal, mais frequentemente utilizado nos bancos traseiros dos automóveis, causa o típico mecanismo do canivete, com lesões principalmente de duodeno, mesentério e coluna lom‑ bar (Figura 4). O cinto superior mal posicionado também pode causar lesões como enforcamento com asfixia traumática. Podem causar lesões nas crianças, principalmente peque‑ nas, com sufocação. Estudos comprovam, entretanto, que o uso do airbag isolado concorreu para reduzir a mortalidade em 18% nas estradas dos Estados Unidos. Além disso, seu uso associa‑ do ao cinto de três pontos reduziu a mortalidade em até 71%.
Certo
A
B
C
D
Figura 3 Mecanismos de lesão sobre vísceras maciças (Buntain).1
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2183
Errado
Figura 4 Posições do cinto de segurança na gênese do trauma.
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2184 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 25 CIRURGIA PEDIÁTRICA
Nenhum sistema de segurança elimina os traumas e a mor‑ talidade por trauma, mas, certamente, diminui as forças capa‑ zes de produzir lesão e a morbimortalidade do trauma. Isso é o que já tem sido conseguido com campanhas bem dirigidas, como a SafeKid, desenvolvida em Washington pelo cirurgião‑ -pediatra Martin Eichelberger. Politraumatismo Trata-se de lesões traumáticas em diversas regiões, órgãos ou sistemas do corpo, em que pelo menos uma das lesões coloca o paciente em risco de morte. Quadro clínico • Diminuição do nível de consciência até o coma; • insuficiência respiratória até apneia; • instabilidade hemodinâmica até choque hipovolêmico (vole‑ mia = 80 mL/kg); • perda sanguínea: –– até 25%: frequência cardíaca normal ou até 20% acima do normal para a idade, pressão arterial normal, enchimento capilar normal (≤ 2 segundos, nível de consciência manti‑ do, frequência respiratória mantida); –– entre 25 e 40%: palidez cutânea, sudorese, extremidades frias, confusão, desorientação, pulso fino, frequência car‑ díaca acima de 20% do normal para a idade, taquipneia, diminuição discreta da pressão arterial, enchimento capi‑ lar mais prolongado; –– acima de 40%: idem à anterior, acrescentando coma, taquipneia acentuada ou apneia, pulsos não palpáveis, pressão arterial em queda acentuada, parada cardiorrespi‑ ratória. Avaliação na sala de emergência A conduta para avaliação rápida do ABCDE (Advanced Trauma Life Support – ATLS, Pediatric Advanced Life Support – PALS, Atenção Inicial ao Trauma Pediátrico – AITP) e reani‑ mação consiste em: via aérea e manutenção da coluna cervical: –– obter via aérea por manobras manuais: tração do mento ou empurrando a mandíbula; –– entubação orotraqueal: o diâmetro da cânula deve corres‑ ponder ao diâmetro do dedo mínimo ou da narina da criança; –– manter imobilização adequada da coluna cervical sem causar hiperextensão: um auxiliar deve segurar a cabeça da criança com as duas mãos em posição neutra. Se neces‑ sário, podem ser usados medicamentos para auxiliar entu‑ bação: atropina 0,01 a 0,03 mg/kg, endovenosa – EV; mi‑ dazolam 0,15 mg/kg, EV, ou quetamina 0,5 a 1 mg/kg, EV. Em caso de TCE, atropina + quetamina ou tiopental 3 a 5 mg/kg, EV, ou lidocaína 1 mg/kg, EV, ou, abaixo dos 3 anos de idade, propofol 1 mg/kg, EV. Até 9 anos de idade, deve-se utilizar tubo sem balonete; –– cricotireoidostomia com agulha com jato intermitente de oxigênio; • respiração/ventilação:
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–– manter adequada com controle por oximetria de pulso. Se necessário, instituir ventilação mecânica com fração inspi‑ ratória do O2 (FiO2) em 1 (100%), frequência do ventilador 20 para escolares e 24 para pré-escolares e lactentes, pres‑ são expiratória final positiva (Peep) = 5 cmH2O; • circulação: –– controlar sangramentos por compressão; –– sinais mínimos de choque após perda de 30% da volemia; –– acesso venoso superficial com cateteres de grosso calibre (tipo Abocath) ou intraósseo (intramedular nos ossos longos); –– iniciar o tratamento do choque: oo estabilizar as condições hemodinâmicas, isto é, pulsos femorais ou radiais não palpáveis, pressão arterial sis‑ tólica abaixo do normal para a idade (até 12 meses < 70 mmHg, acima de 12 meses = 70 mmHg + 2 para cada ano de idade), palidez acentuada; oo iniciar com 20 mL/kg de Ringer lactato, EV, em 10 min; oo persistindo sinais de choque, repetir até três vezes, para estabilizar; –– após estabilizar: instalar soro de manutenção para 24 horas: oo SG 5% 4:1 com SF em crianças com peso ≤ 10 kg, 100 mL/kg; oo de 10 a 20 kg = 1.000 mL + 50 mL/kg que ultrapassar 10 kg; oo > 20 kg = 1.500 mL + 20 mL/kg que ultrapassar 20 kg, acrescentar KCl; oo monitor cardíaco e oxímetro de pulso; oo sonda nasogástrica ou orogástrica e controle de diurese; • exame neurológico sumário: –– preferencialmente, instituir escore da escala de coma de Glasgow (Tabela 2); • exposição completa do paciente e cuidados com o meio am‑ biente: –– retirar toda a roupa do paciente, sem grandes mobilizações, em um ambiente adequadamente aquecido para evitar per‑ da de calor. A infusão de líquidos também deve ser aquecida; –– verificar outras consequências do trauma (exame secun‑ dário) por meio de exame da cabeça aos pés, de cabeça, co‑ luna, tórax, abdome e extremidades/cintura pélvica, fra‑ turas e imobilizações; –– se necessário, promover analgesia com fentanil 3 a 7 mg/ kg, EV lenta (em 1 a 2 minutos), ou morfina 0,05 a 0,1 mg/ kg, EV; –– para verificação dos padrões dos sinais vitais, consulte Ta‑ bela 3. TCE isolado Lesões primárias Compreendem tecido encefálico e vasos sanguíneos conse‑ quentes ao trauma e que podem necessitar de abordagem ci‑ rúrgica. Lesões secundárias Compreendem hipóxia, isquemia e edema de tecido nervoso, consequentes a trauma, hipotensão, hipoxemia, hipercapnia
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Peculiaridades no Atendimento à Criança Traumatizada •
Tabela 2 Escala de coma de Glasgow Idade
Pré-verbais
Abertura ocular
Espontânea
Acima de 3 anos
4
Escore
Ao estímulo verbal
3
À dor
2
Sem abertura
1
Resposta verbal
Sorriso social, fixa, segue, reconhece pais
Lúcido, coerente, orientado
5
Choro consolável
Confuso
4
Choro inconsolável, irritabilidade persistente
Palavras inapropriadas
3
Agitado, inquieto
Sons incompreensíveis
2
Sem resposta
Sem resposta
1
Resposta motora
Obedece a comandos
6
Localiza a dor
5
Retirada à dor
4
Flexão anormal (descorticação)
3
Extensão anormal (descerebração)
2
Paralisia flácida
1
Tabela 3 Sinais vitais Idade (anos)
Peso (kg)
Frequência Pressão FR cardíaca (mmHg) (m/m) (bpm)
Débito urinário (mL/ kg/h)
Lactente (0 a 1)
0 a 10
< 160
> 60
< 60
2
Criança (1 a 3)
10 a 14
< 150
> 70
< 40
1,5
Pré-escolar (3 a 5)
14 a 18
< 140
> 75
< 35
1
Escolar (6 a 12)
18 a 36
< 120
> 80
< 30
1
Adolescente (> 12)
36 a 70
< 100
> 90
< 30
0,5
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Conduta • Escala de coma de Glasgow ≤ 9: TCE grave; • entubação orotraqueal imediata; • cricotireoidotomia com lesões faciais graves; • hiperventilação: –– FiO2 = 1 (100%); –– FR = 20/minuto e 24/minuto para crianças menores; –– Peep = 5 cmH2O, volume corrente 1 a 1,5 vezes o normal; • estabilização hemodinâmica: tratar o choque; • sonda orogástrica; • cateter venoso; • entubação traqueal: se houver distúrbios respiratórios, lesões faciais, cervicais e torácicas graves, instabilidade circulatória, risco durante transporte. Lesões raquimedulares (TRM) Geralmente, as lesões raquimedulares são causadas por aci‑ dentes de trânsito ou quedas. A proporção entre TCE e TRM é de 1:100. Em toda a criança que sofreu TCE ou trauma grave deve suspeitar-se de TRM. A mortalidade de crianças com lesão de coluna vertebral é de 60%. O TRM pode ser primário (descon‑ tinuidade aguda da medula) ou secundário, após horas ou dias do trauma, em virtude da diminuição da circulação. O início dos sintomas neurológicos pode sofrer atraso de 30 minutos a dias, compreendendo dores na região da nuca, pa‑ restesias/anestesias (queimação nas pontas dos dedos e pal‑ mas das mãos, perda de sensibilidade), ausência de sensibili‑ dade dolorosa, paralisia/perda de reflexos medulares, priapismo, posições viciosas (p.ex.: pescoço torto), curvamen‑ to da coluna, bradicardia/choque (choque medular em lesões completas acima de T6), falta de respiração diafragmática (le‑ são acima de C5) e parada respiratória (Tabela 4). Conduta Pode haver lesão sem evidência radiológica em ossos verte‑ brais. Na dúvida, deve-se tratar como se houvesse lesão, ou seja: • fixar a cabeça e a coluna cervical em posição neutra (mãos/ colar cervical);
FR: frequência respiratória.
Tabela 4 Níveis de lesão
ou aumento da pressão intracraniana. Podem se manifestar ho‑ ras ou dias após e ser controladas por procedimentos clínicos. Quadro clínico Verificar nível de consciência pela escala de coma de Glasgow, ferimentos do couro cabeludo, fraturas cranianas, lesões ma‑ xilares e de face, sangramentos, hematoma ocular, sangra‑ mento auricular, liquorreia pelas narinas ou pelos condutos auditivos e outros distúrbios, como paresias, alterações pupi‑ lares, crises convulsivas, distúrbios de ritmo respiratório, ap‑ neia e distúrbios cardiocirculatórios (disritmias, alterações de pressão arterial, choque).
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Segmento
Espinhal
Musculatura
Função
Clínica
C3 a C5
Diafragma
Respiração
C5 e C6
Bíceps
Flexão do cotovelo
C7 e C8
Tríceps
Extensão do cotovelo
C8 e T1
Flexor digital profundo
Fechamento do punho e mão
L2 a L4
Quadríceps
Extensão do joelho
L4 e L5
Tibial anterior
Dorsiflexão do tornozelo
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2186 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 25 CIRURGIA PEDIÁTRICA
• evitar torções da coluna cervical. Em pacientes com capacete, não se deve retirá-lo se houver função respiratória preserva‑ da. A manobra para retirar o capacete é segurá-lo firmemente e imobilizar a cabeça da criança com as duas mãos, enquanto alguém o tira; • monitorar funções vitais: respiração, circulação, nível de consciência; • entubação traqueal cuidadosa; • estabilizar condições hemodinâmicas; • manobras de reanimação, se necessárias; • para transporte: superfície plana e rígida com fixação estável da cabeça. Trauma torácico Cerca de 15 a 20% das crianças com trauma e gravemente lesa‑ das apresentam trauma torácico. Graças à grande elasticidade do tórax, fraturas de costelas são raras, mas a energia é trans‑ mitida às estruturas intratorácicas, podendo acarretar lesões importantes. As principais lesões são: ferimento aberto de tórax, pneu‑ motórax hipertensivo, hemotórax maciço, tamponamento cardíaco, tórax instável, ruptura traqueobrônquica, contusão pulmonar, hematoma pulmonar e contusão miocárdica. Clínica 1. Sintomas gerais: • insuficiência respiratória; • instabilidade cardiocirculatória; • parada cardíaca. 2. Sintomas específicos: • lesão torácica aberta: –– defeito na parede com entrada e saída de ar; –– ruído característico de entrada e saída de ar; –– dispneia/taquipneia, cianose, dor; –– ingurgitamento de veias do pescoço; • pneumotórax hipertensivo: –– dispneia, batimento de asas do nariz, taquipneia, cianose, dor; –– murmúrio vesicular diminuído à percussão, hipertimpa‑ nismo; –– movimentação do tórax reduzida unilateralmente; –– ingurgitamento das veias do pescoço; –– taquicardia, hipotensão, choque; • hemotórax: –– as mesmas características do pneumotórax com macicez à percussão e hipotensão, taquicardia e choque; • tamponamento cardíaco: –– ingurgitamento de veias do pescoço; –– hipofonese de bulhas; –– hipotensão e choque; • tórax instável: –– dispneia, taquipneia, cianose e dor; –– movimentos respiratórios paradoxais; –– crepitação; –– às vezes, choque;
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• ruptura traqueobrônquica: –– pode associar-se aos sintomas de pneumotórax; –– estridor; –– hemoptise; –– enfisema subcutâneo. Conduta 1. Parada cardíaca e/ou respiratória requer reanimação: –– O2 a 100% com máscara se as vias aéreas estiverem per‑ meáveis; –– entubação traqueal; –– drenagem torácica se não melhorar a insuficiência respira‑ tória uni ou bilateral. 2. Medidas específicas: • lesão profunda aberta da parede torácica: –– entubação; –– ventilação mecânica; –– analgesia; –– curativo semioclusivo com válvula ou drenagem torácica; • pneumotórax hipertensivo: –– punção no segundo ou terceiro espaço intercostal na linha hemiclavicular (Abocath calibroso); –– drenagem pleural entre a linha axilar anterior e a média no 5º espaço intercostal; –– tamanho do dreno: recém-nascido: 8 a 12 F, 1 a 6 meses: 14 a 16 F; 6 a 12 meses: 16 a 18 F; 1 a 5 anos: 20 a 28 F; 6 a 12 anos: 30 a 32 F; crianças maiores: até 40 F; –– posição semissentada; –– oxigênio; –– entubação traqueal; –– ventilação mecânica; –– analgesia (morfina, EV); • hemotórax: –– oxigênio; –– elevar parte superior do corpo; –– repor volume se houver sinais de choque; –– acessos venosos calibrosos para reposição; –– analgesia; • tamponamento cardíaco: –– toracotomia imediata ou pericardiocentese com Abocath 14 junto ao apêndice xifoide à esquerda, no sentido do om‑ bro esquerdo, com ângulo de 30°; • tórax instável: –– decúbito elevado, pressão sobre o local; –– oxigênio; –– entubação; –– ventilação mecânica; –– analgesia (morfina) e sedação (midazolam); • ruptura traqueobrônquica: –– entubação; –– ventilação mecânica; –– oxigênio; –– drenagem pleural; –– analgesia e sedação.
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Peculiaridades no Atendimento à Criança Traumatizada •
Trauma abdominal Trauma abdominal fechado Trauma violento, não penetrante, lesando órgãos intra-abdo‑ minais (mais frequentemente baço, fígado, pâncreas, rins, duodeno ou bexiga). A lesão manifesta-se por hemorragia ou peritonite (geralmente com mais tempo de evolução 6 a 24 ho‑ ras) ou combinação de ambas. Quadro clínico • Palidez, taquicardia; • dor espontânea ou à palpação e defesa; • distensão abdominal; • sinais peritoneais (diminuição de ruídos hidroaéreos, dor à descompressão); • equimose da parede; • marcas de pneu ou cinto; • sangue no aspirado gástrico, na urina ou nas fezes; • dor no ombro esquerdo (ruptura de baço, irritação frênica); • dor no ombro direito (ruptura de fígado); • hipotensão arterial ou outros sinais de choque hipovolêmico. Conduta • Avaliar funções vitais; • verificar existência de outras lesões; • reposição de volume; • O2 e ventilação, se necessário; • analgesia; • sonda oro ou nasogástrica; • cirurgia. Trauma abdominal aberto Causado por ferimentos de arma branca, arma de fogo, empa‑ lamento ou outros. A conduta é a exploração cirúrgica. Lesão hepática e esplênica São as vísceras mais frequentemente atingidas na contusão abdominal. Não são frequentes fraturas de arcos costais asso‑ ciadas a essas lesões, graças à elasticidade óssea nessa faixa etária. Podem ser observados equimoses ou hematomas nos hipocôndrios e pode haver defesa abdominal e tensão. Mais da metade das crianças com lesões de fígado ou baço tem associadas lesões cranianas, tórax ou musculoesqueléti‑ cas. Cerca de 90% das lesões hepáticas ou de baço são tratadas conservadoramente. Quando o paciente está estável com le‑ sões isoladas dessas vísceras, confirmadas por US ou tomogra‑ fia computadorizada (TC) com contraste, pode-se adotar o tra‑ tamento conservador. Preconiza-se acompanhamento em unidade de tratamento intensivo com acurada observação por até 4 dias. O paciente pode ser liberado para casa com restri‑ ção de atividade física por no mínimo 6 semanas. O acompa‑ nhamento é feito por exame clínico, US ou TC, se necessário. Quando há indicação de cirurgia pela instabilidade do pa‑ ciente ou por associação com outras lesões, o tratamento deve ser o mais conservador possível. Lesões hepáticas que não sangram mais não devem ser manipuladas. Lesões sangrantes
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devem ser suturadas (hepatorrafias) e, eventualmente, neces‑ sitam de hepatectomias parciais. Nas lesões esplênicas, da mesma forma, deve ser adotada essa conduta. Quando houver necessidade de esplenectomia, deve-se manter tratamento com penicilina via oral até os 5 anos de idade ou até 2 anos após a cirurgia em crianças maio‑ res. A vacina antipneumocócica também é recomendada. Outro método preconizado nas lesões de vísceras maciças é a angioembolização para tratamento em pacientes com san‑ gramento ativo confirmado por TC. No acompanhamento pós‑ -operatório de um paciente com lesão tanto esplênica quanto hepática, deve-se avaliar clinicamente a evolução até 6 sema‑ nas após o trauma. Se houver dúvidas, indica-se US ou TC com contraste, para complementar a avaliação. Lesão renal A abordagem é, em geral, conservadora. Cerca de 90% dos pa‑ cientes apresentam lesões de grau I ou II com excelente resul‑ tado com o tratamento conservador. Quando houver grande extravasamento urinário, confirma‑ do por US ou TC iniciais, o paciente deve ser submetido a uma exploração cirúrgica com tentativas de preservação do órgão, mesmo que parcial. Quando isso não for possível ou nas lesões do pedículo não houver condições de recuperação, deve-se realizar nefrectomia, observando as condições do órgão con‑ tralateral. Indicações para tratamento cirúrgico em pacientes com trauma renal contuso são: hematomas em expansão, le‑ sões vasculares renais, grande extravasamento de urina, hi‑ pertensão persistente. Todas as crianças com lesões de órgãos sólidos hemodina‑ micamente estáveis são candidatas ao tratamento conserva‑ dor após a definição das lesões por US e/ou TC com contraste. Deve-se ter extrema acurácia na suspeita de lesões de vísceras ocas associadas ou complicações do tratamento conservador. O estudo radiológico simples de abdome agudo pode ser útil na confirmação diagnóstica. Aumento da dor abdominal, distensão, vômitos e sinais in‑ flamatórios são indícios de complicação ou de lesões associadas de vísceras ocas e necessitam de tratamento cirúrgico imediato. Lesão de vísceras ocas Nas lesões de vísceras ocas, tanto no trauma contuso quanto no penetrante, o tratamento cirúrgico deve ser com desbrida‑ mento, rigorosa hemostasia e rafia primária. Apenas em gran‑ des lesões de cólon com importante comprometimento de vascularização devem ser usadas derivações (enterostomias). Lesão perineal complexa Nas lesões perineais complexas com fraturas de bacia, deslo‑ camentos e lesões de uretra e/ou reto devem ser realizadas derivações para o tratamento adequado das lesões. O trânsito digestivo e/ou urinário deve ser reconstituído somente após a correção definitiva dos defeitos primários. As fraturas instá‑ veis de bacia devem ser adequadas e precocemente imobiliza‑ das com fixadores externos.
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2188 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 25 CIRURGIA PEDIÁTRICA
Há estudos com uso de angioembolização e cirurgia mini‑ mamente invasiva (videolaparoscopia) para o tratamento de lesões contusas e penetrantes. A videolaparoscopia e a video‑ toracoscopia devem ser usadas nos ferimentos penetrantes na transição toracoabdominal. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Entender os mecanismos de trauma e a maneira como a criança responde. • Reconhecer as diferenças anatômicas e fisiológicas da criança. • Saber as características das lesões em cada tipo de acidente. • Avaliar as necessidades de tratamento das crianças dependendo das consequências das diferentes lesões mais frequentes no trauma.
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SEÇÃO 26
Ginecologia COORDENADOR
José Domingues dos Santos Junior
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COORDENADOR E AUTORES SEÇÃO 26 GINECOLOGIA
Coordenador José Domingues dos Santos Junior Professor da Escola Superior de Ciências da Saúde do Distrito Federal. Médico Ginecologista do Adolescentro da Secretaria de Estado da Saúde do Distrito Federal (SES‑DF) e Delegado do Distrito Federal da Sociedade Brasileira de Obstetrícia e Ginecologia da Infância e da Adolescência (Sogia). Autores Camilla Luna Médica Residente em Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCM/Uerj). Cecília Gomes Vianna Médica Ginecologista Infanto‑puberal do Adolescentro e do Hospital da Criança de Brasília José de Alencar/SES‑DF. Denise Leite Maia Monteiro Professora Adjunta da Uerj. Professora Titular do Centro Universitário Serra dos Órgãos.
Endoscopia Ginecológica do Hospital Materno ‑infantil de Brasília. Membro da Comissão Nacional de Endometriose da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Isabela Ballalai Presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações – Gestão 2015/2016). Membro do Comitê Técnico Assessor em Imunizações do Estado do Rio de Janeiro. João Bosco Ramos Borges Professor Titular de Ginecologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí. Secretário da Sogia e da Sociedade Brasileira de Mastologia, Regional São Paulo. João Tadeu Leite dos Reis Pós‑graduado pelo Consejo Superior de la Universidad de Buenos Aires, Sociedad Argentina de Ginecologia Infanto Juvenil, Argentina. Assistant Étranger pela Université Paris V – René Descartes, França. International Fellowship em Ginecologia Pediátrica pela International Federation of Pediatric and Adolescent Gynecology.
Erika Krogh Mestre pela Universidade Federal do Maranhão. Médica‑assistente do Setor de Ginecologia da Infância e Adolescência do Hospital Universitário Materno Infantil. Delegada da Sogia no Maranhão.
José Alcione Macedo Almeida Professor‑assistente Chefe do Setor de Ginecologia da Infância e Adolescência da Divisão de Clínica do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina (FM) da USP. Mestre e Doutor pela FMUSP. Presidente da Sogia‑BR.
Frederico José Silva Corrêa Mestre em Ciências Genômicas pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Doutorando em Ginecologia pela USP. Professor‑assistente de Ginecologia da Faculdade de Medicina da UCB. Supervisor do Programa de Residência Médica em
Liliane Diefenthaeler Herter Professora de Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Coordenadora do Setor de Ginecologia da Infância e Adolescência do Hospital da Criança Santo Antônio/Santa Casa de Porto Alegre.
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Maria de Lourdes Caltabiano Magalhães Pós‑graduada pelo Consejo Superior de la Universidad de Buenos Aires, Sociedad Argentina de Ginecologia Infanto Juvenil. Mestre em Obstetrícia pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Docente da Disciplina Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Unichristus. International Fellowship em Ginecologia Pediátrica pela International Federation of Pediatric and Adolescent Gynecology. Marta Francis Benevides Rehme Professora Adjunta do Departamento de Tocoginecologia da Universidade Federal do Paraná. Vice‑presidente da Sogia‑BR – Região Sul.
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Miriam da Silva Wanderley Mestre e Doutora em Tocoginecologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da UnB. Membro da Comissão de Ensino e Avaliação da Febrasgo. Zuleide Aparecida Felix Cabral Mestre e Doutora em Medicina pela USP. Professora do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal do Mato Grosso. Professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Várzea Grande, da Faculdade de Medicina de Cuiabá e da Faculdade de Medicina de Cacoal. Vice‑presidente da Sogia‑BR – Região Centro‑Oeste. Presidente da Comissão Nacional Especializada de Ginecologia Infanto‑puberal da Febrasgo.
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CAPÍTULO 1
CARACTERÍSTICAS DA CONSULTA GINECOLÓGICA NA RECÉM-NASCIDA, NA CRIANÇA E NO ADOLESCENTE José Domingues dos Santos Junior
A abordagem ginecológica exige do pediatra, ou de qualquer outro profissional que necessita ou deseja realizá-la, conheci‑ mento do processo de maturação somático e genital e da ana‑ tomia e fisiologia do sistema reprodutivo, das transformações psíquicas e sociais que se manifestam durante as diversas eta‑ pas do desenvolvimento infantil e da adolescência.1 Três períodos distinguem-se nesse processo de desenvolvi‑ mento da menina:2 • neonatal; • pré-puberal ou infância; • puberal ou adolescência. Período neonatal O primeiro exame ginecológico da menina deve ser feito, se‑ gundo Huffman et al.2, logo após o nascimento, no berçário, onde é possível certificar a normalidade da genitália externa feminina com visualização do clitóris, dos grandes e pequenos lábios e do orifício himenal. Realiza-se também a palpação ab‑ dominal e inguinal para identificar a presença de tumores ou herniações. Considera-se normal o intumescimento dessa genitália após o nascimento, além da presença de leucorreia decorrente da presença de hormônios maternos e principalmente da ação do estrógeno, que algumas vezes pode causar um sangramen‑ to vaginal na recém-nascida (aparece do 2º ao 5º dia de vida e desaparece em 3 a 5 dias), assim como causar aparecimento de broto mamário uni ou bilateral, com saída de secreção co‑ nhecida como “leite de bruxa” e que desaparecerá em torno de 2 ou 3 semanas.3 Quando estão presentes os sinais de edema vulvar, leucor‑ reia, ingurgitamento mamário e/ou sangramento vaginal con‑ figura-se a chamada “crise genital da recém-nascida”, que tam‑ bém irá desaparecer espontaneamente em 3 a 5 dias.4 Podem ser observadas também alterações nos mamilos, sendo a mais comum a politelia, que é a presença de dois ou mais mamilos distribuídos na linha hemiclavicular (“linha lác‑ tea”).3
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Ao serem identificadas alterações na genitália externa, como dificuldade de distinguir o sexo (genitália ambígua) ou outras malformações, essas neonatas devem ser referendadas a um ambulatório específico com equipe multiprofissional com geneticista, cirurgião pediátrico, urologista pediátrico, gi‑ necologista infantopuberal, entre outros, para melhor resolu‑ ção do problema. Outros achados mais simples, mas não menos importantes, como hímen imperfurado ou clitóris aumentado, devem ser relatados para acompanhamento posterior.4 Período pré-puberal Após o nascimento e até os primeiros sinais do prenúncio da puberdade, a menina pode apresentar uma série de problemas ginecológicos, como: • corrimento vaginal; • coalescência de pequenos lábios; • sangramento vaginal/vulvar; • lesões vulvares (ulcerações ou vegetações tipo verrugas); • prurido vulvar; • crescimento das mamas (telarca precoce); • crescimento dos pelos púbicos (pubarca precoce); • outros. Para identificação dessas alterações, além da anamnese cuida‑ dosa com coleta de dados do nascimento até o dia atual, na consulta deverá ser realizado um exame físico (que não neces‑ sariamente precisa ocorrer na primeira consulta), sendo de fundamental importância que a criança se sinta segura e esta‑ beleça o mínimo de vínculo com o profissional.5 Em primeiro lugar, a criança deve estar vestida com um avental, de tamanho adequado para a sua idade. No caso de o exame ser realizado sem roupa, deve ficar deitada na mesa ou maca de exame coberta com um lençol. Realizar o exame geral, com análise das mucosas oculares, orofaringe e boca (incluin‑ do as condições e estágio da dentição), palpação de pescoço para a procura de gânglios cervicais, palpação de tireoide e de
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forma descendente, examinar mamas e mamilos (número, posição no tórax e, com presença de botão mamário, medir com fita métrica ou uma pequena régua a distância do mamilo até o sulco mamário). Seguir com palpação superficial e pro‑ funda do abdome, verificando se há visceromegalias e/ou tu‑ morações, principalmente em fossas ilíacas. Observar se há presença de herniações umbilicais e inguinais. Por fim, pes‑ quisar sinal de descompressão brusca. Nesse momento, deve-se posicionar a criança com as per‑ nas flexionadas e juntando os calcanhares para exame da ge‑ nitália ou realizar o exame com a criança no colo da mãe.6 Pro‑ curar “brincar” com a criança pedindo que ela faça a posição das pernas como uma bailarina ou uma borboleta. Utilizar luvas nas duas mãos e com os dedos polegar e indi‑ cador, pinçar os grandes lábios e projetá-los para a frente e li‑ geiramente para fora. Com isso, pode-se observar, além dos grandes e pequenos lábios, o clitóris, o hímen e seu preguea‑ mento com segurança, sem incomodar a criança. Observar se o hímen se encontra pérvio (aberto) ou imperfurado. No caso de detectar se há imperfuração, ou qualquer de seus subtipos como semilunar ou anular, septado, cribiforme ou microperfu‑ rado, deve-se registrar no prontuário para acompanhamento posterior ou referenciar para serviço especializado de gineco‑ logia infantojuvenil para investigação específica5. É importan‑ te, nesse momento, avaliar se a higiene local está ou não ade‑ quada para orientação do responsável. Observar se os pequenos lábios (ninfas) estão separados (padrão anatômico normal) ou parcialmente aglutinados (coalescidos) ou totalmente aglutinados. Na presença de aglu‑ tinação parcial ou total das ninfas, adota-se a conduta de utili‑ zação de creme à base de estrógeno na ráfia mediana, durante 2 a 3 semanas, acompanhado de substância umidificadora no restante da vulva (qualquer hidratante incluindo óleo mineral ou vaselina líquida, entre tantos). Deve-se realizar uma ava‑ liação ao final desse período para verificação se as ninfas vol‑ taram ao padrão normal ou se há necessidade de mais um pe‑ ríodo de tratamento. Caso haja o aparecimento de pelos púbicos ou de broto mamário, o tratamento deve ser interrom‑ pido por até 60 dias com posterior reavaliação. Em se manten‑ do a aglutinação das ninfas, recomenda-se a repetição do tra‑ tamento.4,6 Examinar o clitóris e, se ele estiver aumentado (hipertrofia‑ do), deve ser pesquisada a hipertrofia congênita de suprarre‑ nal, caso o diagnóstico não tenha sido realizado anteriormente. Pedir para a criança tossir (manobra de Valsalva) e observar se há saída de secreção pela vagina e quais são suas principais caraterísticas, como cor e odor. Avaliar se há necessidade de colher material para identificação da presença de alguma bac‑ téria específica. Esse procedimento deve ser realizado com um swab para meio de cultura e de forma delicada e rápida. Atentar que as crianças alérgicas ou com quadro de infec‑ ções repetidas de vias aéreas superiores podem apresentar, concomitantemente, leucorreia por contaminação sistêmica ou por inoculação de germes presentes nas mãos. A leucorreia com consequente vulvovaginite será abordada em capítulo à parte.
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O exame especular e a colpovirgoscopia só deve ser realiza‑ da por profissional habilitado e muitas vezes sob narcose, em situações especiais como busca e retirada de corpo estranho, suspeita de tumor, traumatismos ou para esclarecer alguns sangramentos vaginais. Os instrumentos mais utilizados são o otoscópio infantil e o colpovirgoscópio de Bicalho, além do es‑ péculo de virgem, o espéculo nasal e o histeroscópio.3,5,6 É importante ressaltar que o profissional que realiza o aten‑ dimento à criança e à adolescente necessita conhecer os crité‑ rios de desenvolvimento puberal descritos por Marshall e Tan‑ ner,7 com o objetivo de diagnosticar quadro de telarca ou pubarca precoce isolada. Crianças que referem crescimento de mamas ou pelos púbicos precisam ser classificadas segundo esses critérios. Nessa situação, é necessária a realização do exame de radiografia de punho para verificar se a idade crono‑ lógica da criança está compatível com a idade biológica. Deve‑ -se realizar também ecografia pélvica para visualização dos ovários e do útero, identificando se há estímulo hormonal. Caso a idade biológica seja igual à idade cronológica, trata-se de quadro de telarca ou pubarca precoce isolada. Nessa situação, a conduta será tranquilizar a família e apenas acompanhar essa criança, pois a maioria manterá o atual estágio de Tanner, e sua evolução ocorrerá normalmente até atingir sua puberdade. Caso a idade biológica seja superior à idade cronológica e havendo sinais de ação hormonal (principalmente estrógeno) nos ovários e no útero ou presença de menarca, deve-se refe‑ renciar a criança para serviço especializado de ginecologia in‑ fantil ou endocrinologia pediátrica. Período da adolescência Alguns autores sugerem que a adolescência seja dividida em duas etapas: a inicial, que abrange dos 10 aos 14 anos, e a tar‑ dia, que vai dos 15 aos 19 anos. Normalmente, aquelas que se encontram na fase inicial são acompanhadas da mãe ou res‑ ponsável durante o exame ginecológico e são as que exigem maior habilidade e tempo de conversa para a realização do exame físico, pois são bastante resistentes em razão do pudor acentuado.3,8 Na fase tardia, elas demonstram maior interesse em ter a consulta sem a presença da mãe ou acompanhante e, embora apresentem medo do exame ginecológico, são menos resisten‑ tes em fazê-lo. Na adolescência, os problemas ginecológicos mais frequen‑ tes são: • irregularidade menstrual; • dismenorreia; • leucorreia; • orientação sobre anticoncepção; • assimetria mamária; • acne; • aumento de pelos pelo corpo; • suspeita de infecção de transmissão sexual; • agressividade e labilidade de humor no período pré-menstrual. No exame ginecológico realizado na adolescência, deve-se manter o mesmo rigor na anamnese com levantamento de da‑
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Características da consulta ginecológica na recém-nascida, na criança e no adolescente •
dos desde o pré-natal e do parto, além de saber como foi o de‑ senvolvimento neuropsicomotor (com que idade andou, falou, engatinhou) e a ordem cronológica com que apareceram os ca‑ racteres sexuais secundários (idade da telarca, pubarca e me‑ narca). Se já estiver menstruando, avaliar as características do ciclo menstrual quanto ao intervalo, se são regulares (a cada 28 dias) ou irregulares, duração em dias e também a quantida‑ de do fluxo (perguntar quantos pacotes de absorvente são gas‑ tos em cada menstruação, uma vez que a utilização de dois ou mais pacotes no mês pode caracterizar hemorragia). Avaliar ainda a presença de cólicas menstruais e sintomas como irrita‑ bilidade, agressividade e/ou tristeza, aumento de apetite para doces e inchaço das mamas e abdome, sintomas que caracteri‑ zam a tensão pré-menstrual. Outro dado de anamnese muito importante, que às vezes cria situações de embaraço na consulta, pela presença da mãe ou outro acompanhante adulto, é quanto ao questionamento sobre atividade sexual. Ela pode estar namorando, ficando ou “pegando” e esses tipos de relacionamento podem incluir apenas beijos, abraços ou até mesmo relações sexuais. Quando há dúvi‑ da se a mãe ou o acompanhante sabem que essa adolescente já iniciou as relações sexuais, é melhor não perguntar naquele mo‑ mento. Em outra ocasião da consulta, deve-se solicitar que o acompanhante aguarde fora do consultório para que seja garan‑ tida a confidencialidade da consulta, direito este garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Inicia-se o exame físico com as medidas antropométricas, quando também deve ser aferida a pressão arterial da adoles‑ cente, após a colocação de avental apropriado. Em muitos ser‑ viços, essas medidas são realizadas por equipe de enferma‑ gem em uma sala de pré-consulta. Na realização da ectoscopia, deve-se dar atenção especial para a presença de acne e pelos na face, tórax anterior e poste‑ rior e no abdome. Avaliar a dentição, se em uso ou não de apa‑ relhos ortodônticos, higiene bucal, palpação de região cervical, tanto da tireoide quanto da cadeia ganglionar. Deve-se realizar a classificação de Tanner para pelos púbi‑ cos e mamas e, no exame das mamas, observar também se há simetria ou assimetria das mamas. Verificar os mamilos e a aréola, quanto ao número e posição no tórax, se há nódulos ou descarga papilar. No abdome, inspecionar e palpar à procura de visceromegalia ou alguma tumoração. Se referir atraso menstrual, verificar o fundo do útero para análise de possibili‑ dade de gravidez. Completar o exame com visualização da coluna cervical e torácica, em virtude de possíveis vícios posturais, comuns nessa faixa etária, além dos membros inferiores, com verifica‑ ção de circulação venosa. Se essa adolescente relatar que ainda não teve relações se‑ xuais e não trouxer à consulta queixa alguma relacionada a qualquer estrutura da sua genitália externa ou períneo, o exa‑ me especular pode e deve ser protelado para consultas subse‑ quentes. Se já iniciou atividade sexual (com cinco ou mais re‑ lações sexuais) e/ou apresenta queixa de leucorreia, ferida ou caroço na vagina, sangramento vaginal ao ter relação sexual
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ou prurido, deve-se realizar o exame ginecológico com coloca‑ ção de espéculo vaginal, tendo, logicamente, o consentimento da adolescente. Esse exame sempre deve ser realizado com a presença de algum profissional de enfermagem ao lado ou com a presença do acompanhante, se ele já souber que a ado‑ lescente iniciou a atividade sexual. O Ministério da Saúde, por meio do Instituto Nacional de Câncer (Inca), não recomenda a realização de exame de Papa‑ nicolaou em adolescentes e jovens até 25 anos de idade.9 Re‑ fletir se naquelas que viveram violência sexual com penetra‑ ção e aquelas que apresentam infecções de transmissão sexual atual ou de repetição, principalmente papilomavírus humano (HPV), não é importante a coleta de material para o exame de Papanicolaou, pois alguns autores têm descrito a presença de alterações pré-cancerígenas tipo NIC II e III em colo uterino de adolescentes.2 Deve-se verificar se as adolescentes estão com calendário de vacinação completo de acordo com a sua idade (tríplice vi‑ ral, dT, hepatite B e HPV). Lembrar que uma característica importante das adolescen‑ tes quando estão sendo submetidas a uma anamnese é referir uma queixa ou um sintoma que na realidade não é o verdadei‑ ro motivo que a trouxe à consulta, pois o problema ou o que ela gostaria de ver abordado no atendimento é outro tema completamente diferente, principalmente quando se trata de alguma queixa ou problema ligado à esfera sexual. Por exem‑ plo: refere uma dor abdominal, mas na realidade teve sua iniciação sexual e está tomando um anticoncepcional oral in‑ dicado por uma amiga e ela quer saber se está tomando corre‑ tamente.1,3,8 Por fim, é importante ressaltar que na consulta ginecológi‑ ca da criança e da adolescente não é primordial que o profis‑ sional tenha formação específica; no entanto, há necessidade de que esse profissional tenha como requisitos básicos tempo, paciência e suavidade no trato com a paciente.8 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que o primeiro exame ginecológico da menina deve ser feito, preferencialmente, logo após o nascimento, no berçário. • Conhecer o significado clínico da “crise genital da recém-nascida” e como ocorre sua evolução natural. • Conhecer alguns princípios básicos e as principais etapas para realizar o exame ginecológico na criança e na adolescente. • Conhecer os critérios de classificação de Marshall e Tanner e suas principais etapas no desenvolvimento puberal da menina. • Diferenciar os quadros de telarca ou pubarca precoce, como entidade clínica isolada de puberdade precoce verdadeira. • Conhecer os princípios de confidencialidade que são garantidos às adolescentes em uma consulta ginecológica.
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Referências bibliográficas 1.
Magalhães MLC. A consulta ginecológica: neonatal – infância – adoles‑ cência. In: Magalhães MLC, Reis JTL (eds.). Compêndio de ginecologia infanto-juvenil: diagnóstico e tratamento. Rio de Janeiro: Medsi, 2003. p.53-67. 2. Huffman JW, Dewhurst CL, Caprano VJ. Examination of de newborn. In: Huffman JW (ed.). The gynecology of childhood and adolescence. 2.ed. Filadélfia: Saunders, 1981. p.70-5. 3. Magalhães MLC. Consulta ginecológica: recém-nascida – infância – adolescência. In: Magalhães MLC, Reis JTL (eds.). Ginecologia infanto‑ juvenil: diagnóstico e tratamento. Rio de Janeiro: Medbook, 2007. p.5166. 4. Zegueir BK. Examen en la recién nascida. In: Zegueir BK (ed.). Gineco‑ logia infanto-juvenil. 2.ed. Buenos Aires: Medica Panamericana, 1987. p.49-54.
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5. Zegueir BK. Examen en la primera y secunda infancia. In: Zegueir BK (ed.). Ginecologia infanto-juvenil. 2.ed. Buenos Aires: Medica Paname‑ ricana, 1987. p.55-61. 6. Sanfilippo JS, Muran D, Lee PA, Dewhurst J. Pediatric and adolescent gynecology. Filadélfia: WB Saunders, 1994. 7. Zegueir BK. Examen en las adolescentes. In: Zegueir BK (ed.). Ginecolo‑ gia infanto-juvenil. 2.ed. Buenos Aires: Medica Panamericana, 1987. p.62-70. 8. Mendez RJM. Características de la consulta adolescente. In: Ribas JMM (ed.). Enfoque actual de la adolescente por el ginecólogo: una visión lati‑ no-americana. 2.ed. Buenos Aires: Ascune, 2005. p.124-30. 9. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Diretrizes bra‑ sileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero/ Instituto Nacio‑ nal de Câncer. Coordenação Geral de Ações Estratégicas. Divisão de Apoio à Rede de Atenção Oncológica. Rio de Janeiro: Inca, 2011.
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CAPÍTULO 2
VULVOVAGINITE NA INFÂNCIA Liliane Diefenthaeler Herter
Conceito e prevalência Vulvovaginite (VV) é a inflamação da vagina e/ou da vulva e pode se manifestar por corrimento, ardência, vermelhidão, odor, coceira, sangramento, sintomas urinários, irritação peri‑ neal, entre outros sintomas da área genital.1 Pode também ser confundida com secreções fisiológicas no início da puberdade (leucorreia fisiológica). Costuma ser o motivo de consulta gi‑ necológica mais comum nas meninas pré-púberes. Pode gerar preocupação aos profissionais e/ou pais, pois alguns casos es‑ tão relacionados ao abuso sexual e à infertilidade. Fatores de risco A menina pré-púbere é bastante suscetível a inflamações geni‑ tais em razão de sua fisiologia, anatomia, dificuldades de hi‑ giene e comportamento próprios da idade. Os seguintes fato‑ res podem ser associados à VV: • proximidade entre a vagina e o ânus; • pequena abertura himenial; • pequenos lábios pouco desenvolvidos; • ausência de coxins adiposos vulvares e de pelos púbicos; • mucosa vaginal atrófica e pH vaginal alcalino; • deficiência de anticorpos, lisossomos, lactoferrina e zinco; • higiene insuficiente ou inadequada; • micção com joelhos aproximados com consequente refluxo da urina para o períneo; • uso de roupas apertadas e/ou de material sintético que não permitam a evaporação do suor ou outras secreções com con‑ sequente maceração da vulva; • uso de produtos que irritam a pele e mucosas (sabonetes, per‑ fumes, talcos, amaciantes, sabão em pó, tira-manchas, banho com bolhas de sabão); • traumatismos (abuso sexual, acidentes com bicicletas, intro‑ dução de corpo estranho, masturbação); • doenças sistêmicas subjacentes (infecção de vias aéreas su‑ periores, diabete, sarampo, varicela, parasitose intestinal) ou dermatológicas (líquen escleroso, líquen simples, dermatite atópica, dermatite de contato, psoríase, dermatite das fraldas, herpes simples, vitiligo).
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Anamnese É importante obter informações para orientar o diagnóstico e o tratamento: características da secreção (cor, duração) e sin‑ tomas associados (odor, prurido, disúria, ardência, vermelhi‑ dão); episódio agudo ou recorrente; hábitos de higiene; presença de sangramento; tratamentos prévios; doenças asso‑ ciadas ou prévias (infecções respiratórias ou intestinais) e me‑ dicações em uso. Exame físico Sugere-se manter o acompanhante durante todo o exame físi‑ co para a criança se sentir mais à vontade e assim poder ser mais cooperativa durante o exame. Deve iniciar-se pela avaliação geral de saúde (peso, altura, pressão arterial), face, cavidade oral, mamas, abdome e, por último, o exame ginecológico, para que se possa criar vínculo e confiança com a pequena paciente. O exame ginecológico deve ser feito sempre sem roupas para permitir o afastamento completo dos joelhos. Pode ser feito em posição ginecológica ou em posição de “sapo”, posi‑ cionando a menina deitada de costas na maca e mantendo os joelhos fletidos e afastados. Com o uso de luvas, o examinador deve tracionar gentilmente os grandes lábios em sua direção para retificar o hímen e ampliar o orifício himenal. Assim, po‑ derá observar com maior nitidez e atenção as paredes hime‑ nais e a vagina. Pode-se pedir para a paciente tossir nesse mo‑ mento para ver se reflui secreção vaginal ou não. Quadro clínico O quadro clínico depende das causas, que podem ser fisiológi‑ cas, inespecíficas ou específicas. Leucorreia fisiológica A leucorreia fisiológica apresenta-se como uma secreção ino‑ dora, homogênea, leitosa ou transparente e não pruriginosa. Ocorre nas recém-nascidas ou nos meses que antecedem a menarca por ser estrógeno-dependente. É formada basica‑ mente por exsudato vaginal, descamação de células superfi‑
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ciais e muco endocervical. Ao microscópio, observam-se célu‑ las epiteliais, bacilos de Döderlein e ausência de patógenos ou leucócitos. Essa secreção, apesar de clara, pode se tornar ama‑ relada quando depositada na calcinha e deve ser diferenciada daquela secreção que é in natura amarelada ou esverdeada e associada a sintomas de prurido ou odor. O exame direto da secreção ou o exame bacteriológico con‑ firmam apenas a presença de lactobacilos e ausência de puru‑ lência. O tratamento é expectante e inclui a orientação da paciente e a higiene com água e sabão neutro. Vulvovaginite inespecífica (vestibulite) A VV inespecífica ou vestibulite é a causa mais comum de VV na infância e envolve alterações da flora normal, causando in‑ flamação da vulva e vagina distal, à custa do aumento de ger‑ mes saprófitas. A secreção vaginal e o odor estão comumente associados à higiene fecal e urinária inadequadas. Pode ocor‑ rer também após infecção respiratória ou intestinal por autoi‑ noculação pela própria paciente. Alterações cutâneas vulvares como escoriações, edema, eritema, maceração e descamação do epitélio também podem ser observadas. O exame direto identifica flora mista, leucócitos e outros detritos. No exame físico, podem-se constatar má higiene (esmeg‑ ma ou outras secreções) e sinais inflamatórios agudos ou su‑ bagudos no vestíbulo (face interna dos pequenos lábios até as paredes himenais) com saída de secreção amarelada em pou‑ ca quantidade pela vagina. Frequentemente se encontra hipe‑ remia apenas no vestíbulo, e as paredes vaginais têm cor usual. Na ausência de secreção purulenta muito aumentada, de alguma doença sexualmente transmissível (DST), de altera‑ ções traumáticas himenais ou de anamnese sugestiva de abu‑ so sexual ou VV de repetição, não há necessidade de realizar o exame da secreção vaginal. O tratamento inicial inclui medi‑ das gerais apresentadas no Quadro 1. Nos casos refratários às medidas gerais e depois de excluí‑ das outras causas específicas, pode-se utilizar pomada local com antibióticos (sem o uso do aplicador ginecológico) como o metronidazol ou a clindamicina.2 Por se tratar de uma infec‑ ção por flora mista, têm sido utilizadas com muito boa expe‑ riência pomadas que contenham a associação de metronida‑ zol, nistatina e benzalcônio, aplicada no vestíbulo 2 vezes ao dia, por 10 dias. Nos casos de recidiva após suspensão do tra‑ tamento, pode-se, à semelhança da profilaxia de outras infec‑ ções de repetição (infecção urinária, cândida ou herpes), fazer profilaxia utilizando a mesma pomada, mas 1 vez ao dia, 2 a 3 dias na semana, por até 12 semanas. Excepcionalmente, em casos mais graves (grande quanti‑ dade de secreção purulenta) ou refratários ao tratamento tópi‑ co, e após cultura negativa para agentes específicos (estrepto‑ coco piógenes, clamídia, gonococo, vaginose, tricomoníase, candidíase), pode-se utilizar antibiótico de amplo espectro como amoxacilina ou amoxacilina-clavulanato. O uso de emolientes (vitaminas A + D, ácidos graxos essen‑ ciais, benzalcônio + decetrimônio) durante e após o tratamen‑
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to costuma causar alívios dos sintomas e pode auxiliar na pre‑ venção de novas crises. A vestibulite costuma ter bom prognóstico ao entrar na pu‑ berdade, pois os fatores de risco são naturalmente removidos. Causas específicas Candida sp: pode provocar prurido, ardência vulvar, secreção esbranquiçada e hiperemia, que podem se estender até a face interna das coxas. Ocorre em meninas usuárias de fraldas, em uso de corticosteroides, antibióticos ou após a telarca, por ser estrógeno-dependente. É uma causa infrequente de VV na in‑ fância, mas, apesar disso, frequentemente é sobrediagnostica‑ da e equivocadamente tratada. O tratamento pode ser tópico (nistatina, miconazol, clotrimazol, terconazol) ou oral, com fluconazol.3 Shigella sp: pode provocar secreção vaginal purulenta e/ou sanguinolenta e estar associada à diarreia. O tratamento pode ser feito com trimetoprima/sulfametoxazol, ampicilina, cef‑ triaxona ou azitromicina.3 Enterobius vermicularis: provoca prurido anal e vulvar, prin‑ cipalmente à noite. É mais frequente em escolares e pode de‑ terminar um eritema em forma de “8” que envolve vagina e ânus. Na presença de prurido genital ou anal, a paciente pode ser tratada empiricamente com vermífugo. Tratamento: me‑ bendazol 100 mg, 2 vezes/dia, por 3 dias e repetir em 14 dias; albendazol 400 mg, em dose única e repetir em 14 dias; ou pa‑ moato de pirantel, dose única (11 mg/kg e 1 g no máximo) e re‑ petir em 14 dias.3 Patógenos respiratórios costumam causar secreção puru‑ lenta (S. aureus, Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenza, Streptococcus beta-hemolítico A, N. meningitidis e B. Quadro 1 Medidas gerais para tratamento da vulvovaginite inespecífica Banhos de assento com água morna (não é necessário incluir sabão) por 10 a 15 minutos, 2 vezes/dia por 7 a 10 dias.2 Na presença de sinais inflamatórios, é possível utilizar também banhos de assento com: permanganato de potássio 6% (diluir 10 mL de solução em 2 L de água fervida); benzidamina (diluir 1 envelope em 2 L de água fervida); chá de camomila (ferver 2 saquinhos de chá em uma caneca e juntar a 2 L de água morna) Utilizar sabão neutro para o banho e a higiene das roupas íntimas Evitar banheiras e papel higiênico colorido ou perfumado Lavar calcinhas com produtos neutros Usar calcinhas de algodão e secá-las ao sol ou em máquina de secar e passá-las a ferro Usar roupas arejadas Fazer higiene fecal para trás a fim de evitar entrada de fezes na vagina ou na uretra Urinar com os joelhos abertos para evitar que a urina bata na coxa e reflua para dentro da vagina Manter as unhas aparadas e limpas Orientar para não molhar excessivamente o papel higiênico, evitando liberar pequenos pedaços de papel que possam entrar na vagina e causar reação de corpo estranho Manter a vulva sempre limpa e seca
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Vulvovaginite na infância •
catarrhalis). O estreptococo do grupo A (Streptococcus pyogenes ou Streptococcus beta-hemolítico A) é o agente espe‑ cífico mais comum em crianças pré-púberes por causar grande processo inflamatório e sangramento vaginal. O diagnóstico é feito por meio da cultura com pesquisa do S. pyogenes e o tra‑ tamento é a penicilina ou amoxacilina.2,3 Os sintomas dos de‑ mais germes da flora respiratória costumam ceder com medi‑ das gerais, mas em casos resistentes ou na presença de secreção purulenta, pode ser necessário antibiótico. Gardnerella vaginalis: causa secreção amarelada com odor amínico típico ao teste com KOH 10% e, em crianças, pode de‑ terminar prurido e vermelhidão. Seu achado é inconclusivo para diagnosticar abuso sexual.4 Tratamento: metronidazol 15 mg/kg/dia, divididos em três doses, por 7 dias. Trichomonas vaginalis: apresenta uma secreção esverdeada e bolhosa, associada a ardência ou prurido genital. É altamen‑ te suspeita, mas não diagnóstica de abuso sexual, pois pode ser transmitida por fômites.4 É pouco frequente em crianças por se desenvolver melhor em ambiente estrogenizado. Trata‑ mento: metronidazol 15 mg/kg/dia, divididos em três doses, por 7 dias, ou 50 mg/kg em dose única (no máximo 2 g).3 Chlamydia sp: pode ser assintomática ou causar abundante secreção mucopurulenta, disúria e prurido. Convém ressaltar que algumas DST, quando encontradas nos primeiros 2 anos de vida da criança, podem ser contraídas pelo canal de parto. Se‑ gundo os Centers for Disease Control and Prevention (CDC), é diagnóstico de abuso sexual.4 O diagnóstico de clamídia deveria ser realizado pela cultura, que é o padrão-ouro, mas esse méto‑ do não está disponível em nosso meio. Testes não culturais para clamídia podem não ser suficientemente específicos quando há suspeita de abuso sexual em crianças e devem ser interpretados com cuidado. A sorologia para clamídia (IgG, IgM) é inespecífi‑ ca, apresentando falso-positivos e falso-negativos e não deve ser utilizada para o diagnóstico. O exame de PCR é o mais espe‑ cífico e sensível dos métodos diagnósticos não culturais e pode ser realizado por meio de coleta vaginal ou uretral ou urinária. Quando a técnica disponível for por imunofluorescência direta, é importante que o kit da clamídia seja específico da C. trachomatis, para diferenciá-la da C. pneumoniae. Neisseria gonorrhoeae: pode ser assintomática ou causar abundante secreção mucopurulenta, disúria e prurido. Pode ser contraída pelo canal de parto. Quando presente após 2 anos de vida, é diagnóstico de abuso sexual e deve ser notifica‑ do.4 Para o diagnóstico, deve-se solicitar cultura para N. gonorrhoeae da vagina, que é o padrão-ouro. Não é necessário reali‑ zar coleta de material cervical em crianças pré-púberes. O Gram é inadequado para avaliar pré-púberes e, isoladamente, não deveria ser usado para o diagnóstico nem para excluir a doença. Tratamento: em < 45 kg, usar eritromicina 50 mg/kg/ dia, divididos em quatro doses, por 14 dias; em crianças 45 kg e com menos de 8 anos, usar azitromicina 1 g em dose única e, em maiores de 8 anos, usar azitromicina 1 g em dose única ou doxiciclina 100 mg, 2 vezes/dia, por 7 dias.3 Corpo estranho: é causa comum de VV aguda, crônica ou recorrente. Costuma causar secreção purulenta, sangramento genital e mau cheiro. Os objetos mais comuns são pedaços de
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papel higiênico ou sementes eliminadas juntamente com as fezes, mas existem relatos de moedas, tampa de caneta, clipes, prendedores de cabelo, esponja de banho, etc. A ecografia e a radiografia dificilmente ajudam no diagnóstico, a não ser em caso de objetos metálicos (radiografia). Por isso, o diagnóstico baseia-se na anamnese, atento exame físico da genitália e, se houver necessidade, vaginoscopia. Ao visualizar algum pe‑ queno corpo estranho por meio da inspeção, pode-se tentar removê-lo (em menina cooperativa), aplicando anestésico lo‑ cal (lidocaína gel) nas bordas himenais e tentando remover o corpo estranho com uma pinça delicada, de preferência com ponta romba. Se houver êxito, na sequência, fazer instilação com soro morno por meio de uma seringa de 20 mL. Após o procedimento, observar por algumas semanas se os sintomas persistem ou não. Se o quadro clínico persistir, está indicada a vaginoscopia sob anestesia geral. Algumas vezes, por reação inflamatória, o corpo estranho pode fazer uma “capa” em volta de si e não ser percebido em um primeiro momento. Por isso, na vaginoscopia “branca”, pode-se fazer gentil toque retal, pois nesse momento é possível deslocar ou tocar no objeto. Ureter ectópico: pode causar irritação crônica perineal e queixa de umidade, pois há eliminação crônica de urina no pe‑ ríneo ou vagina, dependendo de onde é sua desembocadura. Eventualmente pode ser vista a presença de urina na vagina ou o cheiro amoniacal no períneo. O diagnóstico pode ser su‑ gerido pela ecografia e pela pielografia endovenosa. O trata‑ mento é cirúrgico. Líquen escleroatrófico: tem origem desconhecida e é causa de coceira, ardência, disúria, sangramento e fissuras. O diag‑ nóstico é clínico pela observação de lesões tipo “pele de cebola” em volta do períneo e região anal. Pode haver áreas com he‑ morragias, fissuras e sinéquias pelo processo inflamatório crô‑ nico. A biópsia é raramente necessária. O prognóstico parece ser diferente da mulher adulta, pois não parece haver associa‑ ção com malignidade. O tratamento inclui corticosteroide tó‑ pico de alta frequência (clobetasol a 0,05%), 2 vezes/dia, por 2 semanas, e reavaliação. Se houver melhora, mantém-se o tratamento por 6 a 12 semanas com redução gradual da dose. Durante e após o tratamento, é importante usar emolientes (vitaminas A + D, ácidos graxos essenciais, benzalcônio + de‑ cetrimônio) e afastar agentes irritativos (sabonete colorido ou perfurmado, roupas sintéticas). Lesões não tratadas podem evoluir a sinéquias graves e disfunção sexual. Úlceras vulvares: úlceras genitais podem ser sexualmente transmitidas (lues, herpes genital, cancro mole) ou não. Em 1913, Benjamin Lipschütz descreveu úlceras genitais doloro‑ sas de aparição súbita e associadas à febre e linfoadenopatias inguinais em jovens sem início de atividade sexual.5 Atual‑ mente vários estudos têm relacionado esse quadro clínico a primoinfecção pelo Epstein-Barr, ureaplasma, micoplasma, febre paratifoide, caxumba, citomegalovírus e influenza A, mas sua etiopatogenia ainda é pouco entendida.2,6 Essas úlce‑ ras são denominadas de úlceras de Lipschütz ou úlceras afto‑ sas e costumam ter mais de 1 cm, podendo ser únicas ou não, contendo base purulenta. Sugere-se solicitar hemograma, mo‑ noteste, pesquisa de citomegalovírus e herpes genital. O trata‑
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mento inclui analgésicos orais e tópicos e antibióticos, se hou‑ ver infecção da úlcera. Sondagem vesical pode ser necessária em alguns casos, se houver retenção urinária. Alguns autores utilizam corticosteroides. As úlceras costumam durar de 1 a 3 semanas e podem recorrer. Quando recidivam, estão associa‑ dos à baixa de imunidade por infecções com febre alta ou es‑ tresse. Essas úlceras devem ser diferenciadas de úlceras de‑ correntes de vasculite por doença de Behçet (aftas orais, uveíte e artrite) ou fístula por doença de Crohn.2 Diagnóstico O diagnóstico das VV pode ser feito por meio de várias técni‑ cas e depende da suspeita clínica. A coleta deve ser realizada com material delicado: swab uretral ou vaginal, pipeta para virgens ou conta-gotas estéril. Pode-se solicitar que a criança tussa. Ao tossir, a secreção pode escorrer pelo orifício himenial e ser coletada junto ao introito vaginal com uma espátula de Ayre. A criança, muitas vezes preocupada em tossir, nem per‑ cebe a coleta do introito. As pesquisas específicas (pesquisa de gonococo, clamídia, estreptococo beta do grupo A, Haemophilus) devem ser solici‑ tadas nos casos suspeitos de abuso, leucorreia intensa, recor‑ rente ou refratária aos tratamentos convencionais. O exame bacteriológico comum não é capaz de identificar esses germes específicos. De forma resumida, os exames que podem auxiliar a elucidar o diagnóstico das VV estão listados no Quadro 2.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer os principais diagnósticos diferenciais de vulvovaginite na infância. • Saber diferenciar a vulvovaginite específica da inespecífica e as principais formas de diagnóstico e de tratamento de ambas. • Conhecer os principais exames para avaliação de secreção vaginal anormal na infância. • Saber identificar as úlceras vulvares mais comuns na infância.
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Quadro 2 Exames disponíveis para avaliar a secreção vaginal anormal Exame direto da secreção vaginal: é possível ver clue cells, hifas e esporos, tricomoníase, leucócitos. Gram: é possível ver bacilos, cocos, fungos, clue cells. Bacteriológico da secreção vaginal: atenção para não tratar bacilos de Doëderlein. Cultura para gonococo. Pesquisa de clamídia: a cultura é o padrão-ouro; a segunda escolha é o PCR; e por último, IFD. Exame parasitológico de fezes e pesquisa de oxiúro. Pesquisa de Shigella: coprocultura, hemocultura ou cultura de secreção vaginal. Vaginoscopia. PCR: reação em cadeia da polimerase; IFD: imunofluorescência direta.
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CAPÍTULO 3
DISTÚRBIOS MENSTRUAIS MAIS FREQUENTES NA ADOLESCÊNCIA Zuleide Aparecida Felix Cabral
Introdução do, com duração maior do que 7 dias.4 Amenorreia secundária As alterações do ciclo menstrual na adolescência são causadas é a ausência de menstruação por 3 meses. A oligomenorreia é principalmente pela imaturidade do eixo hipotálamo-hipófi‑ utilizada para denominar a diminuição da quantidade de fluxo se-gônadas. Nessa situação, considerada fisiológica, com ex‑ menstrual, embora outros autores a utilizem para os interva‑ pressão clínica de duração variável, o estabelecimento do los menstruais maiores de 36 dias.1 equilíbrio hormonal garante, posteriormente, o padrão cíclico O termo sangramento uterino anormal (SUA) é utilizado menstrual regular. No entanto, a irregularidade menstrual para as alterações menstruais decorrentes de qualquer etiolo‑ nesse período pode ainda ser causada por outras situações, gia, seja por doenças dos órgãos genitais e/ou sistêmicas. como as doenças do aparelho genital, doenças sistêmicas e Para as situações em que há a disfunção hipotálamo-hipófise‑ distúrbios endocrinológicos de origem ovárica, tireoidiana, -gonadal, independentemente da presença ou não de ovulação suprarrenal ou hipofisária. A distinção dessas circunstâncias ou da forma de apresentação clínica do sangramento uterino nem sempre é fácil, mas certamente contribui para o diagnós‑ anormal, utiliza-se o termo sangramento uterino disfuncional tico de situações que poderiam ser precocemente tratadas.1 (SUD).1,3 Padrões de sangramento O padrão menstrual próprio de uma mulher deve situar-se dentro de limites estabelecidos para a população feminina em geral. As pequenas variações individuais podem existir sem conotação de doença, principalmente quando se repetem com regularidade. De acordo com a maioria dos autores, um ciclo menstrual é considerado normal quando o intervalo mens‑ trual varia de 24 a 35 dias, a duração do fluxo menstrual é de 2 a 8 dias e a perda sanguínea de até 80 mL por ciclo, média de 30 a 40 mL.2 Nomenclatura Embora não exista uma nomenclatura universalmente aceita para os padrões anormais de sangramento uterino,3 a forma de apresentação clínica da alteração menstrual pode facilitar o entendimento da sua fisiopatologia e permitir inferir a etiolo‑ gia dessas alterações.1 Denomina-se proiomenorreia o interva‑ lo menstrual de 20 a 25 dias, polimenorreia quando o intervalo é de 15 dias, opsomenorreia entre 35 e 45 dias e espainome‑ norreia quando o ciclo menstrual acontece a cada 2 a 3 meses. A metrorragia é a perda sanguínea sem regularidade ininter‑ rupta ou intermitente, e menorragia refere-se ao sangramento excessivo, superior a 80 mL por ciclo menstrual, ou prolonga‑
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Etiologia Na puberdade, a base biológica para as menstruações irregula‑ res é atribuída à anovulação transitória após a menarca. Pos‑ tula-se que a anovulação, nesse período, seja decorrente de um distúrbio explicado pela imaturidade do eixo hipotálamo‑ -hipófise-gonadal, que nessa fase é altamente vulnerável à in‑ fluência de processos fisiológicos e patológicos, sendo 75 a 95% das alterações menstruais nessa fase secundárias a essa imaturidade, e 5 a 25% decorrentes de alguma condição anor‑ mal que já se manifesta nessa fase. No início da puberdade, quando os ciclos anovulatórios são mais comuns, a produção contínua de estrógenos sem a oposição de progesterona leva a uma estimulação endometrial persistente. O tecido endome‑ trial, então frágil e vascularizado, descamaria de forma desor‑ denada e abundante. O sangramento uterino anormal mani‑ festado por aumento do intervalo menstrual, podendo chegar à amenorreia, traduz geralmente as situações decorrentes de alterações funcionais do eixo hipotálamo-hipófise-gonadal. Em 55% dos casos, essas situações associam-se à disfunção hipotálamo-hipofisária, em 44% à anovulação crônica hipe‑ randrogênica com ovários micropolicísticos, e em 1% à ame‑ norreia hipergonadotrópica de mulheres jovens.5 A disfunção hipotálamo-hipofisária acontece nos regimes de emagreci‑
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mento por restrição calórica, nas situações de exercícios físi‑ spotting. Esse tipo de irregularidade menstrual é mais frequen‑ cos excessivos ou em situações de estresse. Essas situações te no início do uso da medicação, com melhora espontânea do podem ser evidenciadas em adolescentes atletas, particular‑ quadro após 3 meses do início da droga. Além disso, o spotting mente nas fundistas, ginastas e bailarinas condicionadas a pode estar relacionado com a falha no uso dos anticoncepcio‑ treinamentos intensos, restrição calórica e estresse psíquico. nais ou com interações medicamentosas. As drogas mais co‑ Postula-se que, além das alterações na secreção pulsátil das mumente registradas como interativas são os anticonvulsi‑ gonadotrofinas, o fator emocional, denominado “hipotalâmi‑ vantes, a rifampicina e outros antibióticos. O sangramento co”, levaria à alteração do padrão de secreção de estrógeno em intermenstrual pode ser também observado em usuárias de nível ovárico (inervação simpática) ou, ainda, alteraria a pró‑ dispositivo intrauterino (DIU).1,5 pria resposta endometrial.6 O sangramento uterino anormal pode, ainda, ser resultado A síndrome dos ovários policísticos é considerada uma sín‑ de fatores uterinos locais, endometriais e miometriais. As per‑ drome de disfunção ovariana, com manifestações clínicas que turbações primárias do endométrio, que mais frequentemente se iniciam geralmente na adolescência. Sua fisiopatologia é se manifestam como distúrbios de hemostasia endometrial lo‑ multifatorial e poligênica com diagnóstico baseado primeira‑ cal, podem também incluir outras entidades, como vasculogê‑ mente na exclusão de outras causas de irregularidade mens‑ nese alterada ou anomalias na resposta inflamatória local.3 trual e hiperandrogenismo, como síndrome de Cushing, Nessa situação, é denominado sangramento uterino anormal neoplasias secretoras de andrógenos, hipotireoidismo, hiper‑ de causa idiopática ou essencial. prolactinemia e formas não clássicas das hiperplasias adre‑ Diagnóstico nais congênitas e falência ovárica precoce.6 Quando a ovulação ocorre, mas coexiste insuficiência foli‑ O diagnóstico do SUA baseia-se na anamnese minuciosa, exa‑ cular ou luteínica, as alterações menstruais também podem me físico geral, exame ginecológico e exames complementares. acontecer. As formas de apresentação clínica do SUD ovulató‑ Nos casos de urgência, procura-se fazer o diagnóstico concomi‑ rio variam segundo a disfunção, seja folicular ou luteínica. A tante às medidas para coibir o sangramento. Na história clínica, deficiência relativa de FSH pode resultar no desenvolvimento são importantes os dados referentes à idade da menarca, ao in‑ retardado do folículo e prolongamento da fase pré-ovulatória. tervalo entre as menstruações, à duração e à quantidade do flu‑ Pequenos sangramentos no meio do ciclo podem ocorrer pela xo menstrual; história pregressa de sangramento profuso não queda transitória do nível crítico de estrógeno no momento da genital e antecedente familiar de coagulopatias. Investigar so‑ ovulação. Por outro lado, o alongamento da fase folicular pode bre o uso de anticoagulantes, anticonvulsivantes, antidepressi‑ ainda resultar em opsomenorreia ou espaniomenorreia.1 vos tricíclicos e digitálicos. A quantidade de sangue perdida Os defeitos da fase lútea podem ser expressos pelo peque‑ pode ser avaliada pela frequência de troca dos absorventes e/ou no sangramento pré-menstrual e menorragia por produção tampões vaginais, podendo ser classificada em leve, moderada inadequada de progesterona. Por outro lado, o alongamento ou intensa. Os hábitos de vida devem ser avaliados, incluindo as da fase lútea, por persistência do corpo lúteo, com manuten‑ dietas para emagrecimento, prática de esportes competitivos e ção dos níveis plasmáticos de progesterona e descamação ou risco de doenças sexualmente transmissíveis. O uso irregular amadurecimento irregular do endométrio, pode resultar em dos contraceptivos hormonais, a associação destes com outros hipermenorreia ou hipermenorragia ou, ainda, em opsome‑ medicamentos ou adaptação inicial ao contraceptivo também podem ser causas de perda sanguínea irregular, assim como o norreia ou espaniomenorreia.1 Entre as causas orgânicas de sangramento anormal ou irre‑ uso de dispositivo intrauterino. Os sinais e sintomas de endocri‑ gular na adolescência estão as complicações da gravidez, as le‑ nopatias são relevantes na anamnese inicial e exame físico. O exame clínico da adolescente inclui a medida da pressão sões localizadas nos órgãos genitais, as doenças sistêmicas, as arterial e do nível de consciência, o exame das mucosas, sinais causas iatrogênicas e as essenciais.5 Os distúrbios da coagulação frequentemente causam san‑ de coagulopatias como gengivorragia, equimoses e petéquias. gramento menstrual excessivo. Aproximadamente 10% das Na presença de obesidade, acne, hirsutismo e alteração do ca‑ adolescentes com discrasias sanguíneas apresentam alteração belo, as doenças que cursam com hiperandrogenismo devem menstrual do tipo metrorragia ou menorragia. A doença de ser investigadas. Na presença de sinais e sintomas de tireoi‑ Von Willebrand, a deficiência de protrombina, a púrpura trom‑ diopatia, os hormônios e ultrassonografia da tireoide devem bocitopênica idiopática ou os distúrbios que levam à deficiên‑ ser solicitados. O exame pélvico, mesmo nas pacientes vir‑ cia ou disfunção plaquetárias, como leucemias e hiperesple‑ gens, deve ser realizado, com técnicas adequadas, objetivando nismo, muitas vezes só serão suspeitados ou diagnosticados informações detalhadas dos órgãos genitais para descartar ou‑ nesse período. A afecção mais diagnosticada é a púrpura trom‑ tras causas de sangramento genital anormal. bocitopênica idiopática, seguida pela doença de Von Wille‑ Os exames complementares são solicitados de acordo com brand.5 cada caso. As adolescentes com sangramento uterino anormal O uso de anticoagulantes e hormônios deve ser investigado. com repercussão sistêmica por perda sanguínea necessitam Os anticoncepcionais, geralmente aqueles contendo somente de estudo completo da série vermelha para avaliar o grau de progestagênios ou os combinados de baixa dosagem, podem anemia. Para investigar os distúrbios da coagulação, impõem‑ causar sangramentos intermenstruais escassos na forma de -se o coagulograma, a avaliação da agregação plaquetária, a
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Distúrbios menstruais mais frequentes na adolescência •
pesquisa do fator de Von Willebrand e o cofator de ristocetina, principalmente se a manifestação hemorrágica for desde a menarca.1 A persistência de irregularidade menstrual após 1 ano da menarca pode indicar anovulação crônica e requer uma investi‑ gação hormonal mais detalhada. O teste de gravidez (beta‑ -hCG) deve ser realizado nas adolescentes que mantêm relações sexuais. A ultrassonografia pélvica (transvaginal e/ou transab‑ dominal), a tomografia e ou ressonância magnética para a ava‑ liação dos órgãos genitais internos podem ser úteis para a con‑ firmação ou exclusão de doenças ováricas e uterinas. Exame pélvico normal pode reduzir a necessidade de exames invasi‑ vos como videolaparoscopia, histeroscopia e curetagem uteri‑ na, raramente indicados na adolescência. O exame especular deverá ser realizado em adolescentes com atividade sexual e naquelas de risco para as doenças sexualmente transmissíveis.1 Tratamento O tratamento do sangramento uterino anormal na adolescên‑ cia é realizado de acordo com a forma clínica manifesta do sangramento e a sua etiologia. As doenças sistêmicas e endo‑ crinopatias devem ter tratamento e seguimento de acordo com cada caso. Nos casos de SUD, o objetivo primordial é res‑ tabelecer o controle natural hormonal sobre o tecido endome‑ trial, restituindo eventos endometriais sincrônicos, universais, com estabilidade estrutural e ritmicidade vasomotora. Na maioria dos casos, o tratamento conservador, não hormonal ou hormonal, é suficiente. Nas formas agudas de SUD, outros objetivos incluem a manutenção da estabilidade hemodinâ‑ mica, correção da anemia aguda ou crônica, prevenção das re‑ corrências e proteção endometrial das hiperplasias (sequelas em longo prazo).7 No sangramento uterino disfuncional, for‑ ma leve que se manifesta com hematócrito acima de 30% e hemoglobina maior do que 11 g/dL, a conduta expectante com observação dos ciclos por meio do calendário menstrual pode ser adotada, uma vez que tendem a se normalizar após 1 a 2 anos da menarca quando, geralmente, os ciclos menstruais se tornam ovulatórios. É conveniente a orientação para dieta ba‑ lanceada e rica em ferro, além de atividade física aeróbica re‑ gular para as não atletas. Em casos persistentes ou aqueles que evoluem para a forma de sangramento moderado ou grave, a terapêutica medicamentosa é necessária. Nas situações de sangramento moderado, hematócrito en‑ tre 25 e 35% e hemoglobina entre 9 e 11 g/dL, a seguinte opção terapêutica hormonal pode ser adotada: anticoncepcionais orais combinados com 30 mg de etinilestradiol, 1 comprimido, 3 vezes/dia, por 7 dias e redução da dose, 1 comprimido ao dia, após esse período até o final da cartela. Outra opção são os es‑ trógenos conjugados na dose de 1,25 a 2,5 mg/dia até a sus‑ pensão do sangramento, quando um novo sangramento pode‑ rá ocorrer e o tratamento de manutenção deve ser iniciado. Outras opções são o uso do valerato de estradiol ou 17 beta-es‑ tradiol, na dose de 1 a 2 mg/dia até a diminuição do sangra‑ mento, associando-se 10 mg de progestagênios/dia, por 10 a 14 dias, em ciclos de 21 dias. Progestagênios isoladamente devem ser administrados na dose de 60 a 120 mg, fracionada,
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3 vezes/dia. Cessada a hemorragia, reduzir a dose para 20 mg/ dia, por no mínimo 10 dias. O tratamento de manutenção é obrigatório e deve ser introduzido um dos esquemas combina‑ dos, por no mínimo 3 meses. Quando o SUD se manifesta de forma grave, o hematócrito é menor que 25% e a hemoglobina menor que 9 g/dL, a inter‑ nação é necessária para o restabelecimento da volemia, con‑ trole da hemorragia e tratamento da anemia. A estrogeniotera‑ pia é indicada, seja isolada ou, preferencialmente, associada ao progestagênio. São utilizados estrógenos conjugados com‑ primidos de 1,25 mg ou 2,5 mg de 4 ou 6 horas até o controle da hemorragia. Uma opção é a de manter os estrógenos conju‑ gados, em dose decrescente, começando com 5 mg/dia por 10 dias, 2,5 mg/dia por 5 dias e seguir com 1,25 mg ao dia até completar um ciclo de 21 dias. Nesse caso, associar 1 compri‑ mido de 10 mg de noretisterona ao dia nos últimos 10 dias. Esse esquema permite aumentar ou diminuir a dose do estró‑ geno de acordo com cada caso. Como segunda opção, introdu‑ zir contraceptivo hormonal combinado (30 ou 50 mg de etini‑ lestradiol) 3 vezes/dia, durante 10 dias e seguir com 1 comprimido ao dia por mais 10 dias. Após esse período, é aconselhado o tratamento de manutenção até o total de 6 me‑ ses, com os contraceptivos hormonais orais (pausa ou conti‑ nuamente) ou apenas progestagênios isolados a partir do 14º dia do ciclo menstrual por 10 a 14 dias. A curetagem uterina, nos casos de sangramento intenso, está indicada apenas na ausência de resposta ao tratamento clínico, sendo raramente necessária na adolescência. Caso a adolescente tenha relações sexuais, a escolha da prescrição de um contraceptivo hormo‑ nal deve feita.8 Os antifibrinolíticos, ácido tranexânico (2 com‑ primidos de 250 mg a cada 6 horas) ou ácido aminocaproico (500 mg ao dia), podem ser utilizados para redução dos episó‑ dios de fluxo menstrual intenso.9 O suplemento com ferro é sempre necessário para a correção da anemia. Adolescentes com SUD ovulatório, afastadas as causas or‑ gânicas, não necessitam de tratamento na maioria das vezes. Entretanto, se os ciclos menstruais forem muito curtos, se a perda sanguínea for abundante ou prolongada ou existir o san‑ gramento intermenstrual, a ponto de incomodar a paciente, justifica-se o tratamento hormonal. A administração de pro‑ gestagênios na fase lútea do ciclo ou um esquema cíclico de estrógeno e progestagênio, ou um anticoncepcional oral pode‑ rão solucionar o problema. Nas situações de estresse e anore‑ xia nervosa, a normalização do peso e o acompanhamento por um profissional da saúde mental são essenciais.6 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Caracterizar os ciclos menstruais das adolescentes identificando padrões normais daqueles anormais e também que os primeiros ciclos menstruais podem ser irregulares. • Identificar se há quadro clínico de hemorragia uterina disfuncional (HUD) e como proceder diante desses casos. • Orientar e tratar as principais irregularidades menstruais nas adolescentes.
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Referências bibliográficas 1. 2.
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CAPÍTULO 4
DISMENORREIA: QUANDO PESQUISAR ENDOMETRIOSE Frederico José Silva Corrêa
Definição Dismenorreia é definida como um sintoma patológico associa‑ do à menstruação, caracterizado por cólica e dor abdominal durante o período menstrual que interfere nas atividades coti‑ dianas.1 Habitualmente, a dor é percebida no abdome inferior, mas pode acorrer também na região lombar e nos membros in‑ feriores. Outros sintomas gerais como náuseas, vômitos, diar‑ reia e cefaleia podem estar associados.1,2 A dismenorreia pode ser primária, quando a dor menstrual ocorre sem a presença de patologia orgânica associada, ou se‑ cundária nos casos em que a menstruação dolorosa está asso‑ ciada a uma doença orgânica de base. Algumas características clínicas podem ser úteis na diferenciação entre a dismenorreia primária e secundária (Tabela 1).1 Epidemiologia A dismenorreia é um problema comum em mulheres adoles‑ centes, com prevalência variando de 40 a 90% em função da na‑ tureza subjetiva dos sintomas relatados.1-3 É considerada a quei‑ xa ginecológica mais comum e a causa mais frequente de absenteísmo na escola e no trabalho entre adolescentes e adul‑ tas jovens.2 A taxa de absenteísmo escolar por adolescentes em função da dismenorreia varia entre 14 e 25% de acordo com es‑ tudos realizados em diferentes países. Um estudo sueco com adolescentes reportou uma prevalência de 72% de dismenor‑ reia, das quais 34% apresentavam sintomas leves, 23% modera‑ dos e 15% graves.2 Os sintomas tipicamente acompanham o iní‑ cio do fluxo menstrual ou ocorrem poucas horas antes ou após a menstruação, com duração entre 24 e 48 horas.1 A intensidade dos sintomas está diretamente relacionada com menarca preco‑ ce e com a duração e a intensidade do fluxo menstrual.1 O taba‑ gismo pode estar relacionado a maior incidência de dismenor‑ reia, assim como maior duração dos sintomas.3 Dismenorreia primária A dismenorreia primária ou funcional é o tipo mais prevalente entre mulheres adolescentes e adultas jovens e está associada
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com ciclos menstruais ovulatórios normais e ausência de pa‑ tologia pélvica com etiologia fisiológica evidente.1-3 Geralmen‑ te os sintomas se iniciam entre 6 e 12 meses após a menarca com a presença dos ciclos ovulatórios.2 Após a ovulação, ocorre um acúmulo de ácidos graxos nos fosfolípides das membranas celulares no endométrio. Subse‑ quente ao declínio dos níveis de progesterona antes da mens‑ truação, esses ácidos graxos, particularmente ácido araquidô‑ nico, são liberados, e uma cascata de prostaglandinas (PG) e leucotrienos é iniciada no útero. A síntese do ácido araquidô‑ nico e a via da cicloxigenase são ativados pelo declínio da pro‑ gesterona na fase secretória tardia do ciclo menstrual. Os ní‑ veis de PG no endométrio na fase secretória tardia é 3 vezes maior que na fase proliferativa. Um novo aumento nos níveis de PG também é observado no período menstrual. As concen‑ trações de PGE2 e PGF2 alfa são maiores no fluido menstrual de mulheres com dismenorreia quando comparados a mulhe‑ res com menstruação não dolorosa. A PGF2 alfa, metabólito do ácido araquidônico, causa vasoconstrição e contrações miometriais potentes, levando a isquemia e dor (cólica).1-3
Tabela 1 Diagnóstico diferencial da dismenorreia primária e secundária1 Dismenorreia primária
Dismenorreia secundária
Início
Até 3 anos após a menarca
Mais de 5 anos após a menarca
Idade
15 a 25 anos
> 30 anos
Evolução
Melhora gradual
Piora gradual
Casamento
Melhora sintoma
Sem mudança
Pós-parto
Melhora sintoma
Sem mudança
Achados em laparoscopia
Normal
Endometriose, mioma, outros
Momento
Menstruação
Menstruação ou outro período, caso piore
Duração
4 a 48 horas
1 a 5 dias
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Os sintomas gerais associados, como náuseas, vômitos e cefaleia, decorrem do influxo de PG e seus derivados na circu‑ lação sistêmica.1,2
triose também pode ser classificada em endometriose perito‑ neal (superficial), profunda (lesões com mais de 5 mm de pro‑ fundidade) ou ovariana (cistos de endometriose no ovário – endometrioma). Por muito tempo, a idade de maior prevalên‑ Dismenorreia secundária cia da endometriose era por volta dos 30 anos. Entretanto, nos A dismenorreia secundária ocorre de forma muito semelhan‑ últimos 15 anos, vários estudos têm demonstrado que os sinto‑ te à dismenorreia primária, entretanto, tende a iniciar um mas da doença se iniciam geralmente bem antes dos 30 anos, pouco mais tarde, por volta dos 20 anos de idade. O diagnósti‑ exatamente no período que compreende a adolescência.4 co é feito quando há uma patologia pélvica que possa ser a etiologia da dor durante a menstruação. As causas mais co‑ Endometriose na adolescência muns de dismenorreia secundária em adolescentes são endo‑ A endometriose na adolescência tem a mesma prevalência da metriose, malformações congênitas, estenose cervical e infec‑ doença na idade adulta. O diagnóstico de endometriose em ções pélvicas (Tabela 2).2 A dismenorreia secundária pode adolescentes submetidas à laparoscopia por dor pélvica crôni‑ estar associada a dor pélvica crônica, dor no meio do ciclo, dis‑ ca varia de 19 a 73% em diferentes estudos.4,5 Essa variação se pareunia e metrorragia.1-3 deve à disparidade nos sintomas e nas indicações da laparos‑ copia. A endometriose foi diagnosticada por laparoscopia em Endometriose 50 a 70% das adolescentes com dor pélvica crônica refratária A endometriose é definida pela presença, fora do útero, de te‑ ao tratamento clínico com anti-inflamatórios não hormonais cido endometrial composto por glândulas e estroma. Estima‑ (AINH) e contraceptivos orais.4,5 -se que a doença afete 10 a 15% de todas as mulheres em idade Em uma revisão sistemática sobre endometriose diagnosti‑ reprodutiva, 70% das mulheres com dor pélvica crônica e 50 a cada por laparoscopia em adolescentes com dismenorreia ou 70% das mulheres inférteis.4,5 dor pélvica crônica publicada em 2013, os autores encontra‑ A fisiopatologia da endometriose ainda não está bem esta‑ ram uma prevalência geral de 62% (25 a 100%).6 A prevalência belecida. A teoria da menstruação retrógrada proposta por Al‑ parece ser maior em adolescentes com dor pélvica crônica re‑ bert Sampson no início do século XX não é capaz de explicar a sistente ao tratamento com AINH e contraceptivos orais presença de endometriose em apenas 15% das mulheres, visto (75%) e adolescentes com dismenorreia (70%), quando com‑ que o refluxo de sangue menstrual pelas tubas uterinas é um paradas àquelas com dor pélvica crônica não resistentes ao evento comum às mulheres que menstruam. Alterações gené‑ mesmo tratamento.6 De acordo com essa revisão, 32% das ticas e imunológicas associadas a formas de disseminação por adolescentes com diagnóstico laparoscópico apresentaram contiguidade e a distância são outros fatores associados ao endometriose estádio III (moderado) e IV (grave).6 surgimento da doença, assim como a metaplasia do epitélio A sintomatologia comum da endometriose na adolescência celômico do peritônio. A endometriose parece ter uma origem inclui dismenorreia, dor em abdome inferior e dispareunia. multifatorial.4,5 Contrariamente ao que se observa nas mulheres adultas, nas Os principais sintomas da endometriose são dismenorreia, quais a dor é geralmente cíclica, nas adolescentes a dor pode dor pélvica acíclica, dispareunia, distensão abdominal, sinto‑ ser cíclica ou acíclica ou apenas acíclica, frequentemente asso‑ mas intestinais como obstipação e diarreia, sintomas uriná‑ ciada a sintomas gastrointestinais ou urinários (Tabela 3).5 rios como polaciúria, e infertilidade.5 Os locais mais comuns de acometimento pela endometriose são ovários, tubas uteri‑ Dismenorreia na adolescência – quando nas, escavação retouterina (fundo de saco de Douglas), liga‑ investigar endometriose mentos uterossacrais e peritônio pélvico.4,5 A dismenorreia é muito comum na adolescência, podendo ou A endometriose é classificada de acordo com os achados ci‑ não estar relacionada a uma doença pélvica como a endome‑ rúrgicos em endometriose estádio I ou mínima, estádio II ou triose. Esse aspecto inespecífico da dor muitas vezes dificulta leve, estádio III ou moderada e estádio IV ou grave. A endome‑ o diagnóstico clínico da endometriose em adolescentes. Tabela 2 Causas de dor pélvica crônica em adolescentes2 Sistema reprodutivo
Trato gastrointestinal
Sistema musculoesquelético
Doença inflamatória pélvica Endometriose Aderências Neoplasia ovariana Torção ovariana intermitente Dismenorreia primária Obstrução do trato genital
Síndrome do intestino irritável Doença inflamatória intestinal Constipação Hérnia Cólica recorrente de apêndice Semioclusão recorrente de intestino delgado
Escoliose e cifose Síndrome miofascial Lesões espinais
Porfiria aguda intermitente Linfoma Intoxicação por metais pesados Neurofibromatose
Abuso sexual Estresse psicológico Distúrbios psiquiátricos
Doenças sistêmicas
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Dismenorreia: Quando Pesquisar Endometriose •
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Tabela 3 Sintomas em adolescentes com endometriose (adaptado)5 Laufer et al.
Chatman e Ward
Goldstein et al.
Bai et al.
Dor cíclica e acíclica
62,5%
Dor pélvica crônica
43%
Dor
100%
Dor pélvica crônica
27%
Dor cíclica
9,4%
Dismenorreia
82%
Dor cíclica
64%
Dismenorreia
18%
Dor acíclica
28,1%
Problemas digestivos
29%
Dor acíclica
36%
Dor pélvica aguda
21%
Ciclos irregulares
9,4%
Dispareunia
14%
Ciclos irregulares
28%
Massa pélvica palpável
21%
Dor digestiva
34,3%
Dor irradiada
14%
Problemas digestivos
21%
Infertilidade
3%
Dor urinária
12,5%
Sangramento anormal
36%
Dispareunia
25%
Secreção vaginal
6,3%
Assintomática
3,6%
Problemas vesicais
5%
Secreção vaginal
12%
Estudos realizados em vários países avaliaram o tempo gasto adolescentes pode ser traduzida pelas modificações no compor‑ entre o início dos sintomas da endometriose e o diagnóstico de‑ tamento social, como a impossibilidade de participar de certas finitivo.7 O tempo de retardo no diagnóstico da endometriose foi atividades, como ir às aulas ou aquelas que podem interferir de 12 anos nos EUA, 8 anos no Reino Unido e 6,1 anos na Aus‑ com o desenvolvimento psicossocial.5 A avaliação da intensida‑ trália. Em estudo realizado no Brasil com 200 mulheres porta‑ de da dismenorreia deve ser a mais objetiva possível, com os se‑ doras de endometriose, o tempo médio entre o início dos sinto‑ guintes critérios: dose cotidiana de analgésicos, número de dias mas e o diagnóstico da endometriose foi de 7 anos. Entretanto, de tratamento, qualidade de vida, calendário de dor e repercus‑ nos casos em que os sintomas iniciaram antes dos 19 anos, o são na vida social.9,10 A resistência com a terapêutica habitual, tempo para o diagnóstico foi de 12,1 anos, sendo 2 anos para a em especial ao uso de AINH associado a contraceptivo oral, é primeira visita ao médico em função da dor e mais 9 anos entre um critério maior de diagnóstico da endometriose.5 a primeira consulta e o diagnóstico cirúrgico.7 O atraso no diagnóstico pode diminuir o potencial reprodu‑ Dismenorreia na adolescência – como tivo e resultados funcionais, e a identificação e o tratamento investigar endometriose precoces da endometriose podem resolver a dor, prevenir pro‑ Anamnese gressão da doença e dano aos órgãos, além de preservar a ferti‑ O diagnóstico clínico da endometriose nem sempre é fácil. Na lidade.4 De acordo com estudo publicado pela Associação anamnese, é muito importante identificar idade da menarca, Americana de Endometriose em 2009, em que foram avaliadas início do quadro de dor, características da dor, intensidade, in‑ 4.334 mulheres com endometriose, o início dos sintomas ocor‑ terferência com a qualidade de vida e com a tarefas cotidianas reu na adolescência em 67,1% dos casos, 21% antes dos 15 anos e sintomas associados.5,6,10 e 17% entre 15 e 19 anos de idade.8 Esse estudo demonstrou ainda que, quando os sintomas se iniciaram na adolescência, o Exame físico tempo para o diagnóstico foi maior, o tempo para procura do Achados do exame físico em geral são pobres nos casos de en‑ médico foi maior e o número de médicos visitados antes do dometriose mínima e leve, mas podem estar presentes nos ca‑ diagnóstico foi maior quando comparados às mulheres adultas sos mais avançados da doença. Na inspeção, devem-se avaliar as características sexuais se‑ ao início dos sintomas. Além disso, dados dessa pesquisa mos‑ traram que 63% das mulheres com endometriose ouviram dos cundárias que permitem avaliar o status hormonal da pacien‑ seus médicos em algum momento que “não havia nada de er‑ te. Nas pacientes que ainda não iniciaram vida sexual, pode‑ rado com ela”, sendo que 68,9% ouviram essa afirmativa de -se usar uma haste de algodão para avaliar o canal vaginal e um ginecologista, 52,9% de um generalista e 13,4% de outros afastar alterações vaginais como septos parciais e estenose. especialistas.8 As adolescentes ouviram mais essa afirmativa Nos casos possíveis, o exame especular pode mostrar desvio do que as mulheres adultas ao início dos sintomas (69,6% vs. lateral do colo uterino pela presença de endometriose nos liga‑ mentos cardinais ou uterossacrais, ou a presença de lesões de 49,8%; OR = 2,26, IC: 95% 1,97-2,59, P < 0,0001).8 As características da dor não são muitos diferentes entra as endometriose no fundo de saco vaginal. A palpação abdominal deve ser realizada para avaliar o lo‑ adolescentes submetidas à laparoscopia com e sem lesões de en‑ dometriose. Um aspecto relevante no diagnóstico clínico da cal da dor e a presença de tumorações pélvicas, como grandes endometriose em adolescentes é a intensidade da dor. Uma pa‑ endometriomas ovarianos. Habitualmente, a palpação do ab‑ ciente em cada 2 que apresentam dismenorreia grave é portado‑ dome é inespecífica e não traz muitas informações em relação ra de endometriose.5 A gravidade da dor ou a dismenorreia em à endometriose.
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Diferentemente das outras etapas do exame físico, o toque vaginal é de extrema importância no diagnóstico clínico da en‑ dometriose. Sempre que possível, deve ser realizado com ob‑ jetivo de avaliar a presença de nódulos dolorosos nas paredes vaginais, no septo retovaginal e no fundo de saco posterior. A mobilidade do útero pode estar diminuída e dolorosa em fun‑ ção de aderências provocadas pela endometriose. Os ovários podem estar fixos, dolorosos e aumentados de volume nos ca‑ sos em que há presença de endometrioma ovariano. O toque retal pode ser útil nos casos em que o toque vaginal é inade‑ quado.5,6,10 Exames biológicos Nas ultimas 2 décadas, várias pesquisas de marcadores bio‑ químicos, imunológicos e genéticos no sangue, no fluido peri‑ toneal e na urina têm sido realizadas para o diagnóstico da en‑ dometriose. Entretanto, até o momento, não há um marcador com acurácia adequada para uso clínico. A dosagem sérica do CA-125 tem boa sensibilidade, mas é muito pouco específico para o diagnóstico de endometriose, o que restringe muito sua utilização.10 Exames radiológicos Ultrassonografia (USG) A ultrassonografia transvaginal (USG-TV) é considerada o exame complementar de primeira escolha no diagnóstico da endometriose pélvica. O exame realizado com preparo intesti‑ nal prévio e por profissional experiente, treinado em imagens de endometriose, tem elevada acurácia no diagnóstico de en‑ dometriose de retossigmoide e retrocervical.9,10 A USG-TV apresenta boa acurácia para lesões de endometriose em liga‑ mentos uterinos, fundo de saco posterior, ovários, bexiga e ureter. Entretanto, não apresenta boa acurácia nos casos de endometriose superficial ou peritoneal. Em 2007, foi publicado estudo brasileiro de grande impac‑ to realizado por Abrão et al. sobre o diagnóstico clínico da en‑ dometriose. Os autores compararam sensibilidade, especifici‑ dade, valor preditivo positivo (VPP), valor preditivo negativo (VPN) e acurácia do toque vaginal, da USG e da ressonância magnética (RM) no diagnóstico da endometriose. Os resulta‑ dos de sensibilidade, especificidade, VPP, VPN e acurácia para endometriose de retossigmoide foram, respectivamente, 98,1%, 100%, 100%, 98% e 99% para a USG-TV; 83,3%, 98%, 97,8%, 84,4% e 90,3% para a RM; e 71,2%, 54%, 62,9%, 64,2% e 63,4% para o toque vaginal bimanual. Os resultados de sen‑ sibilidade, especificidade, VPP, VPN e acurácia para endome‑ triose retrocervical foram, respectivamente, 95,1%, 98,4%, 98%, 97% e 97% para a USG-TV; 76%, 68%, 61%, 81% e 71% para a RNM; e 68,3%, 46%, 45,1%, 69% e 54,8% para o toque vaginal bimanual.9 A USG pélvica via abdominal não apresenta acurácia ade‑ quada para o diagnóstico de endometriose, mas pode ser utili‑ zada para afastar alguns diagnósticos diferenciais de dor pélvi‑ ca crônica. A ultrassonografia tridimensional transretal (USG-TR) pode ser utilizada nos casos em que a USG-TV é inadequada. A
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SG-TR também apresenta boa acurácia para lesões de retos‑ U sigmoide e retrocervicais.9,10 Ressonância magnética e tomografia computadorizada (TC) A RM apresenta uma excelente acurácia para o diagnóstico das lesões de endometriose profunda ou ovariana. Deve ser indicada sempre que a USG-TV for contraindicada, nos casos de lesões duvidosas na USG-TV e nos casos de lesões ovaria‑ nas suspeitas. Assim como os outros exames de imagem, a RM não é capaz de diagnosticar as lesões superficiais ou peri‑ toneais de endometriose.9,10 A TC não está indicada na pesquisa de endometriose, em função da baixa acurácia no diagnóstico da doença. Laparoscopia O diagnóstico definitivo da endometriose é feito por cirurgia, preferencialmente a laparoscopia, com visualização das lesões e realização de biópsia para estudo histopatológico. A endo‑ metriose pode se apresentar de várias formas, como lesões avermelhadas, pigmentadas (azuis ou negras), lesões superfi‑ ciais, vesículas, lesões esbranquiçadas, lesões profundas no‑ dulares e falhas peritoneais, além dos cistos de endometriose ovariana. Com a laparoscopia, é possível visualizar as mais di‑ versas lesões e classificar a endometriose. Além disso, é possí‑ vel realizar o tratamento com exérese das lesões de endome‑ triose e lise de aderências no mesmo tempo operatório. Tratamento da endometriose na adolescência O tratamento da endometriose visa melhorar a qualidade de vida das pacientes, evitar a evolução e diminuir as sequelas provocadas pela doença, como a infertilidade. Existem atual‑ mente dois tipos de tratamento utilizados na prática clínica: o tratamento medicamentoso hormonal e a cirurgia. O tratamento hormonal com contraceptivos orais é o mais utilizado ainda hoje, com bons resultados na diminuição ou resolução dos sintomas. Entretanto, esse tratamento não se mostrou eficaz na resolução das lesões ou na contenção da evolução da doença. O tratamento cirúrgico deve ser realizado preferencialmen‑ te por laparoscopia e tem como objetivo a ressecção das lesões, o restabelecimento da anatomia e a prevenção da evolução da doença.10 Considerações finais A endometriose é uma doença ainda enigmática em relação a fisiopatologia, diagnóstico e tratamento. Trata-se de uma pa‑ tologia crônica, de início precoce na adolescência, recidivante e de comportamento irregular, que pode levar à piora impor‑ tante na qualidade de vida, com interferência no aspecto so‑ cial, profissional, sexual e conjugal, além da infertilidade. O diagnóstico, em geral, é retardado em função de várias questões. Os tratamentos propostos para a endometriose não levam à cura da doença, mas o acompanhamento adequado pode diminuir o sofrimento das mulheres com a doença e pre‑ venir sua evolução para outros órgãos, como intestino e siste‑
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Dismenorreia: Quando Pesquisar Endometriose •
ma urinário, prevenir a infertilidade, preservar a fertilidade e diminuir as sequelas provocadas pela doença. Em função de todos esses aspectos, algumas considerações a respeito da condução da endometriose na adolescência de‑ vem ser feitas: • não subestimar o sintoma de dismenorreia ou dor pélvica ací‑ clica nas adolescentes; • investigar mais profundamente esses sintomas nos casos de dor intensa e interferência na vida social da adolescente; • alertar a família sobre a possibilidade da endometriose; • encaminhar ao médico ginecologista ou especialista em en‑ dometriose para abordagem adequada, com o acompanha‑ mento multidisciplinar que a doença exige. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer os sintomas e a prevalência da dismenorreia. • Diferenciar dismenorreia primária da secundária. • Reconhecer as diversas causas de dismenorreia secundária. • Conhecer e suspeitar dos principais aspectos da endometriose em adolescentes. • Saber que a ultrassonografia transvaginal, a transretal e a ressonância magnética são os exames mais indicados no diagnóstico da endometriose pélvica. • Lembrar que anti-inflamatórios não hormonais e contraceptivos orais melhoram os sintomas e a qualidade de vida em grande parte dos casos. • Considerar tratamento cirúrgico nos casos mais graves.
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CAPÍTULO 5
SÍNDROME DOS OVÁRIOS POLICÍSTICOS Marta Francis Benevides Rehme
A síndrome dos ovários policísticos (SOP) é um distúrbio en‑ dócrino e consiste na principal causa de hiperandrogenismo, afetando cerca de 5 a 10% das mulheres em idade reprodutiva, caracterizada por anovulação crônica, hiperandrogenismo clí‑ nico (hirsutismo) e/ou bioquímico (hiperandrogenemia) e ovários policísticos à ultrassonografia.1
A SOP pode manifestar-se ao longo da vida reprodutiva e o seu diagnóstico torna-se importante para a correta intervenção, uma vez que essa síndrome está relacionada a alterações meta‑ bólicas e de risco cardiovascular como obesidade, aumento de resistência insulínica, intolerância à glicose, diabete melito tipo 2, doença cardiovascular e síndrome metabólica (Figura 1).2,3
Reprodutivo
Síndrome dos ovários policísticos ao longo da vida Infância
Adolescência
Adrenarca prematura
Hirsutismo
Anos reprodutivos
Pós-menopausa
Irregularidade menstrual Acne Infertilidade Complicações na gravidez
Metabólico
Obesidade (> 50%) Resistência à insulina (60 a 80%) Dislipidemia (70%) Síndrome metabólica (30 a 40%) Intolerância à glicose (15 a 30%) Diabete melito tipo 2 (4 a 10%) Risco para doença cardiovascular aumentado Câncer de endométrio?
Acompanhamento multidisciplinar Pediatra / Ginecologista / Endocrinologista / Nutricionista / Cardiologista
Figura 1 Repercussões da SOP ao longo da vida reprodutiva.
!
Fonte: adaptada de Sam e Dunaif, 2003.3
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Síndrome dos ovários policísticos •
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Nas adolescentes, o diagnóstico da SOP deve ser criterioso, Diagnóstico uma vez que no período que sucede a pós-menarca é frequen‑ Anamnese te a presença de irregularidades menstruais em decorrência da A SOP pode ser suspeitada nas adolescentes que apresentam imaturidade do eixo associada com ovários multicísticos à ul‑ queixas de irregularidade menstrual tipo oligomenorreia e/ou trassonografia. Outra dificuldade no diagnóstico é a valoriza‑ amenorreia ou naquelas que apresentam sangramento disfun‑ ção dos achados ultrassonográficos, uma vez que 30 a 35% cional com hiperplasia endometrial que persiste após 2 anos das adolescentes saudáveis com ciclos regulares e sem evidên‑ da menarca, hirsutismo e em situações específicas de acne cia de hiperandrogenismo podem apresentar ovários micropo‑ grave e resistente ao tratamento. licísticos. Enquanto nas mulheres adultas os critérios diagnósticos da Exame clínico SOP permitem variações de fenótipos, nas adolescentes mui‑ Todas as pacientes com suspeita de SOP devem ser avaliadas tos achados podem ser transitórios ou estarem em involução. com: Por essa razão, é sugerido que para o diagnóstico da SOP na • medida da pressão arterial, peso e estatura para avaliação do adolescência sejam levados em consideração os seguintes cri‑ índice de massa corporal (IMC), medida da circunferência da térios segundo o Consenso de SOP (2012):4 cintura (nas obesas); • anovulação: aguardar no mínimo 2 anos após a menarca para • presença de sinais clínicos de resistência à insulina como considerar a irregularidade menstrual como possível quadro acantosis nigricans em pescoço, axila, tórax e virilha, no senti‑ clínico da SOP. do de rastrear sinais clínicos de alterações metabólicas e de • hiperandrogenismo: o hirsutismo é considerado o melhor risco cardiovascular; marcador clínico para o hiperandrogenismo. A acne ocorre • diferenciação entre hirsutismo e hipertricose, que é o cresci‑ em 15 a 25% das pacientes com SOP, mas não é considerada mento excessivo de pelos velosos, independente de androgê‑ um bom marcador de hiperandrogenismo. Em algumas situa‑ nios, mais proeminente em áreas não sexuais. Pode ter cará‑ ções, a acne severa e resistente ao tratamento pode ser consi‑ ter familiar, estar associado a medicações ou distúrbios derada como sinal de hiperandrogenismo e a SOP pode ser in‑ sistêmicos como hipotireoidismo, anorexia, desnutrição, por‑ vestigada nessas pacientes portadoras de acne severa. firia ou dermatomiosite, entre outros. Para a avaliação do hir‑ • ovários policísticos: não há consenso se os ovários devam ser sutismo, utiliza-se a somatória das nove áreas descritas pelo incluídos como critério diagnóstico, uma vez que na adoles‑ índice de Ferriman-Gallwey, sendo considerado hirsutismo cência eles podem fazer parte da fisiologia normal. Outra difi‑ um índice > 8 (Figura 2).6 culdade de considerar a avaliação ultrassonográfica dos ová‑ Exames complementares rios é que nas adolescentes a maioria dos exames é realizada via abdominal e prejudica de certa forma a sensibilidade do A SOP é um diagnóstico de exclusão e os exames visam ao diag‑ exame na avaliação dos ovários, quando comparado à via va‑ nóstico diferencial com outras doenças que cursam com anovula‑ ginal.5 ção e/ou hiperandrogenismo como: hipogonadismo, hiperpro‑ lactinemia, disfunções de tireoide, tumores de adrenal, tumores A Tabela 1 define os critérios diagnósticos de SOP na adoles‑ funcionantes de ovário, hiperplasia adrenal de início tardio (HAC), cência, segundo o consenso de 2012.4 síndrome de Cushing. É importante lembrar que nas adolescen‑ Os fenótipos sugestivos de SOP devem ser acompanhados tes sexualmente ativas, a gravidez deve ser afastada. periodicamente. É importante identificar grupos de risco (obesidade, hirsutismo, irregularidade menstrual) e dosar os Dosagens hormonais androgênios para identificar o hiperandrogenismo bioquímico, As seguintes dosagens hormonais fazem parte da investigação sempre com critério para evitar o superdiagnóstico. diagnóstica da SOP: testosterona total, sulfato de di-hidroe‑ piandrosterona (SDHEA), 17-hidroxiprogesterona (17-OH-pro‑ gesterona), prolactina (PRL), hormônio tireoestimulante (TSH), tiroxina (T4) livre, hormônios folículo-estimulante e luteinizan‑ te (FSH e LH) (Tabela 2). O screening para síndrome de Cushing Tabela 1 Critérios para o diagnóstico da síndrome dos deve ser limitado às pacientes que apresentem sinais de hiper‑ ovários policísticos (SOP) na adolescência cortisolismo: hipertensão grave, fraqueza muscular, atrofia de SOP na Anovulação Hiperandrogenismo Ovários adolescência crônica policísticos pele e tecido celular subcutâneo e presença de estrias arroxea‑ das e hiperpigmentação em áreas expostas ao sol (mãos, face e Diagnóstico Sim Sim Sim de SOP pescoço). Nesses casos o teste de supressão simples com dexa‑ Sugestivo de Sim Sim Não metasona e dosagem de cortisol podem ser solicitados.1 SOP
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Exames de imagem A ultrassonografia pélvica para avaliação dos ovários caracteriza a SOP se apresentar pelo menos um ovário com volume > 10 cm3 ou presença de > 12 folículos medindo entre 2 e 9 mm
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de diâmetro.2 A ressonância magnética ou tomografia compu‑ tadorizada podem ser solicitadas nos casos de resultados de dosagens hormonais que levem à suspeita de prolactinoma, tumores de suprarrenal ou de ovário. Rastreamento das doenças metabólicas e de risco cardiovascular Além das dosagens hormonais, é importante rastrear as doen‑ ças metabólicas e de risco cardiovascular em todas as pacien‑ tes com diagnóstico de SOP: perfil lipídico (colesterol total, LDL-C, HDL-C e triglicérides) e teste oral de tolerância à glico‑ se (TOTG) com 75 g de glicose. Se normais, esses exames po‑ dem ser repetidos a cada 2 anos. Tratamento A terapia da SOP é direcionada para os três distúrbios princi‑ pais, que estão fisiopatologicamente interconectados: anovu‑
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lação, hiperandrogenismo e alterações metabólicas e de risco cardiovascular. Nas pacientes com SOP e obesas, é importante enfatizar a perda de peso por meio de um programa de reeducação alimen‑ tar e atividade física regular que vai promover a melhora da função menstrual, diminuir a androgenicidade e, consequente‑ mente, melhorar o perfil lipídico e a resistência insulínica. Irregularidade menstrual: para corrigir os ciclos anovulató‑ rios, estão indicados os contraceptivos orais combinados (COC) contendo entre 20 e 30 mcg de etinilestradiol que con‑ tenham progesteronas de terceira geração (ou seja, aqueles com progesteronas com ação antiandrogênicas como drospi‑ renona, acetado de ciproterona, desogestrel, clormadinona ou gestodene). Nas pacientes com contraindicação ao uso do es‑ trógeno, pode ser indicada a progesterona isolada para regula‑ rização do ciclo (na segunda fase do ciclo menstrual) ou inter‑ mitente (a cada 2 meses) promovendo a descamação do
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Figura 2 Índice de Ferriman-Gallwey. Fonte: adaptada de Hatch et al., 1981.6
Tabela 2 Principais doenças a serem excluídas na investigação das pacientes com suspeita de síndrome dos ovários policísticos (SOP) Exames para exclusão de outras doenças
Avaliação
Testosterona total > 200 ng/dL
Tumores de ovário
DHEA-S > 700 mg/dL
Tumores de suprarrenal
17-OH-progesterona > 2 ng/mL ou 200 ng/dL
HAC de início tardio
Teste ACTH 60 min > 10 ng/mL ou 1.500 ng/dL PRL > 25 ng/mL
Hiperprolactinemia
TSH, T4
Disfunção de tireoide
FSH e LH
Hipogonadismo
Teste de supressão simples da dexametasona com dosagem de cortisol às 08:00 da manhã > 1,8 ug/dL
Síndrome de Cushing
DHEA-S: sulfato de di-hidroepiandrosterona; ACTH: hormônio adrenocorticotrófico; PRL: prolactina; TSH: hormônio tireoestimulante; T4: tiroxina; FSH: hormônio folículo-estimulante; LH: hormônio luteinizante; HAC: hiperplasia adrenal de início tardio.
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endométrio com a finalidade de evitar a hiperplasia endome‑ trial, que pode ocorrer nos ciclos anovulatórios. É muito importante, na prescrição de terapia hormonal, que sejam res‑ peitados os critérios de elegibilidade para o uso de contracep‑ tivos da Organização Mundial da Saúde (OMS).7 Hiperandrogenismo: nos casos de hiperandrogenismo leve (IFG < 16), os contraceptivos exercem efeito antiandrogênico e podem ser utilizados como primeira escolha. Nas pacientes com hirsutismo moderado (IFG entre 16 e 25) ou grave (IFG > 25), estão indicados os antiandrogênicos associados ao con‑ traceptivo para promover a contracepção eficaz durante o tra‑ tamento, uma vez que essas drogas apresentam risco de femi‑ nização em fetos masculinos. Os antiadrogênicos indicados são espironolactona 100 a 200 mg/dia, via oral, ou acetato de ciproterona 100 mg/ dia, via oral. Disfunção metabólica: a metformina está indicada para o tratamento da resistência insulínica, nos casos em que as mu‑ danças de hábitos não surtirem o efeito desejado na perda de peso. Iniciar com 500 mg junto às refeições e aumentar grada‑ tivamente a dose, se necessário, até 1.500 mg/dia. Eventos adversos: diarreia, flatulência, náusea, dor abdominal, anore‑ xia e gosto metálico na boca. Nesses casos, a dose deve ser rea‑ justada. O uso de estatinas isoladas ou associadas com met‑ formina pode ser prescrito para melhorar o perfil lipídico nas pacientes com SOP obesas que apresentam dislipidemia e que não respondem às medidas gerais de mudanças de hábitos e exercícios físicos.8 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Entender que a síndrome dos ovários policísticos (SOP) deve ser suspeitada na adolescente que apresenta irregularidade menstrual tipo oligomenorreia/ amenorreia que persiste após 2 anos da menarca e sinais de hiperandrogenismo (hirsutismo) associada com morfologia de ovários policísticos à ultrassonografia.
• Saber que a SOP é um diagnóstico de exclusão de outras doenças que cursam com anovulação e hiperandrogenismo. • Reconhecer que o rastreamento de doenças metabólicas e de risco cardiovascular é importante por causa da prevalência de obesidade, resistência insulínica, diabete melito tipo 2 e síndrome metabólica nas pacientes portadoras de SOP. • Saber que o tratamento da SOP é direcionado para os três distúrbios principais: anovulação, hiperandrogenismo e alterações metabólicas e de risco cardiovascular.
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CAPÍTULO 6
SANGRAMENTO VAGINAL NA INFÂNCIA Miriam da Silva Wanderley
Introdução O sangramento vaginal em adolescentes e mulheres adultas, fora dos períodos menstruais regulares, é uma das queixas mais comuns nas consultas com o ginecologista. Em meninas, o sangramento transvaginal, motivo de grande preocupação e angústia para os pais e responsáveis, em um período da vida no qual não é esperado e não deveria ocorrer, deverá ser sem‑ pre investigado, independentemente da sua duração e intensi‑ dade. As causas do sangramento vaginal em crianças diferem de forma significativa daquelas observadas em adolescentes após a menarca e devem ser avaliadas de forma cuidadosa. Nos serviços de atenção primária, entre as causas mais co‑ muns estão: sangramento neonatal, presença de corpo estra‑ nho na vagina, vulvovaginites, líquen escleroso, traumas, pro‑ lapso uretral e verrugas genitais. Além dessas, puberdade precoce e tumores, entre outras, também poderão se apresen‑ tar como causas. Sangramento fisiológico Sangramento neonatal Durante a vida intrauterina, o estrógeno materno cruza a bar‑ reira placentária e, após o nascimento, o organismo da meni‑ na recém-nascida responde fisiologicamente a essa estimula‑ ção hormonal. Entre os efeitos mais comumente observados está a pre‑ sença de broto mamário bilateral. Também pode haver saída de secreção vaginal mucoide, que se caracteriza pela presença de células esfoliadas vaginais e de muco produzido pelas glân‑ dulas cervicais.1 O estrógeno materno também estimula o crescimento do endométrio fetal. Após o nascimento, há a queda dos níveis de estrógeno da menina, e, ocasionalmente, aquele endométrio estimulado pode descamar e ocorrer sangramento transvagi‑ nal. Esse sangramento é autolimitado, ocorrendo geralmente nos primeiros 5 a 10 dias após o nascimento, podendo perdu‑ rar até a 4ª semana de vida, não necessitando de tratamento
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específico.2 Caso o sangramento persista após esse período, ou se inicie após os 10 dias de vida, será necessária investigação propedêutica adequada.1 Sangramento patológico Corpo estranho na vagina A presença de um corpo estranho na vagina leva a uma reação inflamatória local intensa, o que pode resultar em sangramen‑ to de intensidade variável e/ou presença de secreção vaginal purulenta ou piossanguinolenta com odor fétido. O papel higiênico é o corpo estranho mais comumente ob‑ servado, mas tampas de caneta, prendedores de cabelo, clipes de papel, pequenos brinquedos ou partes de brinquedos, grãos de areia, de arroz, milho, feijão ou outros cereais, além de peda‑ ços de buchas de banho também são relativamente comuns. A história é importante para a tomada de decisão sobre a melhor forma de retirar o objeto, que variará conforme a sua natureza. No entanto, o que se observa na prática é que as crianças geralmente não admitem terem inserido algum obje‑ to na vagina, com receio da reação dos pais e/ou responsáveis, ou não se lembram de tê-lo feito.1 Poderão ser necessários o exame sob sedação em crianças pequenas ou naquelas muito agitadas e ansiosas, e o uso de vaginoscopia para visualização direta e retirada de objetos maiores ou para excluir outras causas de sangramento. Apesar de não ser comum, a ultrassonografia pélvica poderá ser utili‑ zada em alguns casos, assim como a radiografia da pelve para observação de objetos radiopacos. Na maioria das vezes, o corpo estranho de pequenas di‑ mensões, como papel higiênico fragmentado e grãos de areia ou arroz, poderá ser removido com irrigação vaginal com soro fisiológico morno. Vulvovaginite Vulvovaginite é a queixa mais comum nos ambulatórios de gi‑ necologia infantil e uma das mais frequentes causas de san‑ gramento vaginal em crianças.
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Sangramento vaginal na infância •
Uma série de fatores fisiológicos contribui para isso, como a presença de pH alcalino vaginal, mucosa da vagina fina e atró‑ fica, ausência de coxim gorduroso nos grandes lábios e epitélio vulvar mais fino, que tornam a região menos resistente a infec‑ ções locais.3 Aliados a isso, a higiene perineal e anal inadequa‑ da, o uso de produtos de higienização irritativos e o vestuário pouco apropriado, como leggings, jeans e roupa íntima de teci‑ do sintético, contribuem para o aparecimento ou a piora do quadro clínico. Os patógenos podem alcançar a área genital por contigui‑ dade com o reto, a uretra ou a pele circundante. A difusão de bactérias também é possível por autoinoculação ou, ocasio‑ nalmente, por via hematogênica.3 Pode haver desde leve desconforto até secreção vaginal e prurido intenso, o que leva a criança a coçar as áreas vulvope‑ rineal e perianal afetadas, podendo ocasionar hiperemia e sangramento por escoriação, que geralmente é pequeno nes‑ ses casos. Entre os patógenos que mais cursam com esse qua‑ dro estão as parasitoses, cujo agente mais comum é o Enterobius vermicularis. 1. Enterobius vermicularis (oxiuríase): além do quadro prurigi‑ noso em região perianal e vulvoperineal, que pode ocasionar escoriações, pode haver sangramento vaginal por vasculite alérgica e erosão da mucosa, provocados pela presença do pa‑ rasita. A criança pode apresentar irritabilidade, sono intran‑ quilo e até acordar durante a noite. Se o prurido noturno é evi‑ dente, a inspeção da região perianal poderá visualizar os parasitas. É importante lembrar que o oxiúro também poderá carrear bactérias fecais para a região vulvovaginal, podendo oca‑ sionar piora do quadro clínico e uma infecção vulvar bacte‑ riana superimposta.4 Já as infecções fúngicas, particularmente a candidíase, não são comuns em meninas hipoestrogenizadas5 e, quando ocorrem, são geralmente precedidas por tratamento sistê‑ mico com antiobióticos ou em crianças imunossuprimi‑ das.3 Em diversos estudos, não foi observado mais do que 8% de cultura positiva para Candida em crianças sintomá‑ ticas.4 Quanto aos agentes bacterianos que podem causar vulvo‑ vaginite em meninas, duas bactérias estão particularmente ligadas ao sangramento vaginal: Streptococcus beta-hemo‑ lítico do grupo A (Streptococcus pyogenes) e espécies de Shigella. 2. Streptococcus pyogenes (Streptococcus beta-hemolítico do grupo A): pode cursar com secreção vaginal geralmente puru‑ lenta com rasgos de sangue, sendo o aspecto mais caracterís‑ tico a presença de vulvite ou vulvovaginite intensa, com limi‑ tes bem definidos. Pode haver ou não história familiar de faringite ou de faringite sintomática concomitante,3 e a cultu‑ ra obtida da orofaringe é positiva em 70% dos casos.6 3. Shigella: geralmente, há secreção vaginal sanguinolenta ou se‑ rossanguinolenta e vulvite. Aproximadamente 1/3 das pacien‑ tes apresenta história de diarreia concomitante ou anterior ao quadro de sangramento, e a infecção é adquirida pelo consu‑ mo de alimentos e água contaminada e higiene deficitária.3
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A história, o exame físico e a pesquisa de possíveis agentes infecciosos por meio da avaliação da secreção vaginal obti‑ da por swab para exame a fresco, coloração pelo Gram e/ou cultura podem ser utilizados no diagnóstico.1,2 Nos casos em que for observado à cultura algum agente es‑ pecífico, quando houver infecção bacteriana crônica e/ou exuberante, o tratamento deverá ser com antibiótico sistê‑ mico orientado pelo antibiograma. O diagnóstico de infec‑ ção fúngica ou de parasitose também demanda tratamento específico. Propedêutica local com permanganato de po‑ tássio na forma de banho de assento poderá ser utilizada. Nos casos em que houver irritação muito intensa, creme à base de corticosteroide está indicado para aliviar o prurido. Além disso, orientação de vestuário adequado e higiene, sem uso de substâncias irritativas ou abrasivas, é funda‑ mental para o tratamento. Além dessas bactérias, também pode haver autoinoculação do nariz ou orofaringe para a vulva de vários outros patógenos como o Staphylococcus aureus, Haemophilus influenza, Streptococcus pneumoniae, Moraxella catarrhalis e Neisseria meningitidis. No que se refere aos patógenos entéricos, a Yersinia enterocolitica e a Escherichia coli também têm sido associadas a quadros de vulvovaginite e sangramento vaginal.2-5 Líquen escleroso Trata-se de uma alteração inflamatória mucocutânea de etio‑ logia desconhecida, que afeta principalmente a região vulvar e perianal, conferindo um aspecto descrito como de ampulheta ou do numeral oito, ocupando áreas de extensão variável, que se apresentam como placas esbranquiçadas e atróficas, simé‑ tricas e de bordos regulares.7 Pacientes podem se queixar de prurido, sangramento, dolorimento local, disúria e constipa‑ ção. Embora o sangramento não seja comum, geralmente é se‑ cundário à coçadura vigorosa e a escoriações; também podem ocorrer telangectasias e hematomas.7 Em geral, o diagnóstico é clínico, podendo ocasionalmente ser necessária a realização de biópsia para confirmação histo‑ lógica. O tratamento consiste em medidas de higiene, uso de corticosteroide tópico e de antibióticos quando houver infec‑ ção concomitante, e deve-se evitar o uso de substâncias irrita‑ tivas. Traumas genitais Nas meninas, a ausência de coxim gorduroso nos grandes lá‑ bios e a vulva anteriorizada podem predispor aos traumas, cujas manifestações clínicas dependerão do agente causal e da intensidade e profundidade da lesão. A maioria dos traumas na região genital, em crianças pe‑ quenas, usualmente ocorre em casa ou na escola, não são pe‑ netrantes e não costumam ser significativos. Nesses casos, as causas mais comuns são quedas à cavaleiro sobre objetos rombos, assentos de bicicleta que fazem pressão contínua so‑ bre o períneo e brinquedos de parquinhos. Geralmente, essas contusões não intencionais ficam confi‑ nadas à genitália externa, podendo-se observar pequenos he‑
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matomas ou lacerações superficiais com discreto sangramen‑ zação de um exame detalhado sob anestesia para avaliar pos‑ to e resolução espontânea na maioria das vezes, sem sível lesão no terço superior da vagina ou no fundo de saco, na necessidade de intervenção; podem ser aplicadas compressas mucosa ou no esfíncter retal, na uretra e até mesmo em vísce‑ frias, se necessário. No entanto, também podem ocasionar le‑ ras intrapélvicas nos casos mais graves. Nesses casos, a con‑ sões extensas. Nos grandes hematomas ou nos que aumen‑ duta cirúrgica é obrigatória, e a avaliação inicial poderá ser fei‑ tam de volume rapidamente, poderão ser necessários incisão ta já em centro cirúrgico, quando houver suspeita clínica. cirúrgica, evacuação de coágulo, identificação dos pontos san‑ Na maioria das vezes, a história e o exame físico, em centro grantes e hemostasia, além do uso de antibióticos.1 cirúrgico, quando necessário, são suficientes para o diagnóstico. Também podem ocorrer traumas penetrantes que laceram No entanto, em crianças politraumatizadas, exames de imagem a parede vaginal, causando hemorragia, podendo comprome‑ e avaliação laboratorial concomitante poderão ser necessários, ter a uretra e/ou região anorretal e até atingir órgãos pélvicos com a solicitação de avaliação urológica e proctológica nas lace‑ e/ou intra-abdominais. Podem ser resultantes de quedas so‑ rações extensas e hematológica nos casos de hemorragias. bre objetos pontiagudos (de vidro, lápis, caneta, mobiliários Se houver suspeita ou for confirmada negligência, maus‑ da casa, cercas de jardim), além de introdução de objetos na -tratos e/ou abuso sexual, toda a rede de proteção à criança de‑ vagina ou no ânus, por si própria ou por terceiros, geralmente verá ser acionada, além de solicitar exames e profilaxia contra sob pressão mais intensa, e do coito propriamente dito. Nesse doenças sexualmente transmissíveis. último caso, as lesões costumam ser mais graves e podem de‑ Prolapso uretral mandar reparo cirúrgico.8 Traumas genitais também podem ocorrer durante aciden‑ Em meninas pré-púberes, a região distal da mucosa uretral tes automobilísticos, podendo causar lesões significativas na pode prolapsar através do meato uretral de forma parcial ou genitália e períneo, e estão mais frequentemente associados total, formando uma massa circunferencial completa, friável, com fraturas em região pélvica.8 arroxeada e edemaciada. Geralmente, a criança apresenta san‑ Tanto nos casos de contusões como de traumas penetran‑ gramento, disúria e/ou dificuldade para urinar. tes, e em particular nesses últimos, cuidadosa história deverá As causas do prolapso uretral permanecem desconhecidas, ser obtida a fim de avaliar possível abuso sexual, o que não é mas podem ser divididas entre defeitos congênitos e adquiri‑ fácil, principalmente se a criança estiver com vergonha ou dos. Entre os congênitos estão a inadequada aderência da mu‑ com medo de revelar o fato. É fundamental identificar quando cosa uretral ao tecido subjacente e a hipermobilidade uretral; os adquiridos, menos comuns, compreendem o trauma local e e como a lesão ocorreu e o que a causou. A ausência de correlação entre história e exame físico deve a nutrição deficitária.10 Os fatores de risco predisponentes in‑ servir como alerta para o médico investigar possível abuso se‑ cluem o hipoestrogenismo e o aumento da pressão intra-ab‑ xual.9 Dowd et al. observaram que 5% das crianças avaliadas dominal, secundária à tosse crônica ou à constipação.10 em uma emergência pediátrica com história inicial de queda à Em alguns casos, será necessária a realização de exame físico cavaleiro eram, na verdade, vítimas de abuso sexual.9 sob sedação para melhor avaliação dessa massa e para identifi‑ Da mesma forma, um exame físico cuidadoso deverá ser cação do orifício com uso de sonda uretral. É obrigatório o diag‑ realizado. Apesar de várias posições terem sido sugeridas para nóstico diferencial com outras patologias, principalmente o sar‑ se adotar durante o exame, a que as crianças aceitam com coma botrioide de vagina, em razão do aspecto da massa mais facilidade e, portanto, a que se tem mostrado mais efeti‑ observada. va é a semissentada ou deitada em decúbito dorsal unindo a Quando a lesão é pequena, e não há obstrução urinária ou planta dos pés, conhecida como posição de "bailarina" ou "rã‑ necrose tecidual, poderá ser utilizado creme de estrógeno tó‑ zinha", ou na posição de litotomia em crianças mais velhas. pico por algumas semanas. O tratamento cirúrgico poderá ser A genitália externa e a região anorretal deverão ser exami‑ necessário quando houver retenção de urina, lesão grande e/ nadas de forma detalhada, a fim de avaliar o comprometimen‑ ou necrótica e recorrência do prolapso,2 o que pode ocorrer em to tecidual e a gravidade da lesão. Deve-se ter em mente que o até 67% dos casos.1 aspecto externo da área lesionada não traduz necessariamen‑ te a sua gravidade, uma vez que pequenas lesões visíveis vul‑ Verrugas genitais (papilomavírus) vares podem estar acompanhadas de extensos danos internos. As verrugas de localização genital, quase sempre assintomáti‑ E é fundamental que o médico conheça as variantes normais cas, podem ocasionar sangramento quando se localizam prin‑ da genitália feminina e do hímen, a fim de evitar interpreta‑ cipalmente na superfície mucosa do introito vaginal ou dentro ções equivocadas. do anel himenal. Também podem acometer vulva, vagina, Uma vez que lesões uretrais concomitantes não são inco‑ ânus, uretra, boca e olhos. muns, a presença de sangue no meato uretral e a história de Entre as causas de verrugas genitais em crianças estão: hematúria ou obstrução da uretra devem ser pesquisadas. É transmissão vertical por ocasião do parto, autoinoculação, importante avaliar a presença de diurese espontânea após o contato físico sem conotação sexual com objetos contamina‑ trauma. dos e abuso sexual. Em alguns casos, quando há muita dor e ansiedade e na‑ A manifestação clínica mais comum é a presença do condi‑ queles com sangramento profuso, pode ser necessária a reali‑ loma acuminado. A resolução espontânea das verrugas geni‑
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Sangramento vaginal na infância •
tais ocorre em mais da metade das crianças afetadas até os 5 anos de idade.7 Dessa forma, há recomendação de tratamento mais conservador na infância, além da orientação dos pais/ responsáveis quanto à possibilidade de recidivas, os modos de transmissão, o período de latência e as alternativas terapêuti‑ cas.7 Entre as medidas para sua erradicação, se necessário, es‑ tão a aplicação de ácido tricloroacético, de podofilina, de 5-fluorouracil e de imiquimode e a eletrocirurgia.7 Tumores genitais Hemangiomas É um tumor benigno do endotélio vascular. A maioria dos he‑ mangiomas vulvares apresenta-se como um leve rubor na pele, ou não é percebido ao nascimento, e depois prolifera ra‑ pidamente por vários meses. Quase sempre regride esponta‑ neamente e desaparece por volta dos 5 a 10 anos de idade; os hemangiomas congênitos involuem mais rapidamente do que os adquiridos após o nascimento.7 O diagnóstico é clínico, e, nos casos em que não houver obstrução de um orifício ou ulceração e as lesões forem peque‑ nas, a conduta poderá ser expectante. Nos casos de lesões grandes ou que aumentem de volume rapidamente em poucas semanas, ou quando qualquer das condições anteriores estiver presente, poderá ser introduzido tratamento clínico com prednisona oral.7 Naqueles em que há sangramento importante, têm sido descritos o uso de laser, a embolização e a excisão cirúrgica.2 Quando a localização do hemangioma for intravaginal, poderá ser indicado o uso de va‑ ginoscopia para o diagnóstico diferencial com outras causas de sangramento, particularmente corpo estranho e trauma. Pólipo na vagina ou na carúncula himenal São tumores benignos que podem se manifestar na forma de sangramento, particularmente pela fricção da mucosa. Em ge‑ ral, regridem espontaneamente,2 mas à persistência do pólipo vaginal, este deverá ser retirado cirurgicamente para diagnós‑ tico diferencial com outras patologias, particularmente o rab‑ domiossarcoma de vagina. Rabdomiossarcoma de vagina (sarcoma botrioide) Os tumores malignos são relativamente raros como causa de sangramento vaginal na infância; entre eles, o rabdomiossar‑ coma de vagina é o mais comum, afetando, quase exclusiva‑ mente, meninas abaixo dos 5 anos de idade.11 De forma geral, o tumor cresce na submucosa da vagina e espalha-se rapidamente abaixo do epitélio vaginal intacto, po‑ dendo estender-se para o períneo, a vulva e a cavidade pélvi‑ ca.1 Posteriormente, há uma grande quantidade de formações polipoides que podem se exteriorizar através do orifício vagi‑ nal, com aspecto semelhante a cacho de uva, de tamanho va‑ riável e friável.11 O sangramento vaginal pode ser o primeiro sintoma e moti‑ vo da consulta, antes mesmo da protrusão do tumor, em razão de necrose e da erosão da mucosa e/ou do desprendimento de massa tumoral.
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O diagnóstico é confirmado pela biópsia da lesão, e o trata‑ mento consiste em quimioterapia e ressecção cirúrgica. Tumor do seio endodérmico É um tumor de células germinativas, raro, que se manifesta pela presença de secreção sanguinolenta ou sangramento transvaginal franco, podendo ocorrer, posteriormente, a sua exteriorização.11 Em razão dessa apresentação clínica, o diag‑ nóstico diferencial com rabdomiossarcoma de vagina é funda‑ mental. Puberdade precoce É caracterizada por desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários antes dos 8 anos de idade. Nesses casos, deve ser realizada a avaliação completa clínica e laboratorial para con‑ firmar o diagnóstico e sua etiologia, e iniciar o tratamento o mais precocemente possível. Hipotireoidismo O hipotireoidismo primário pode determinar menstruação precoce associada a cistos ováricos bilaterais. Postula-se que o hormônio tireoestimulante (TSH) e o hormônio folículo-esti‑ mulante (FSH) poderiam atuar por meio dos mesmos recepto‑ res no ovário. Dessa forma, em algumas pacientes, o TSH ele‑ vado estimularia o receptor gonadal para o FSH.1 O tratamento adequado com l-tiroxina resolve o quadro.1 Menarca precoce isolada É uma causa rara de sangramento vaginal em crianças e pode ser observada em meninas que não apresentam nenhum ou‑ tro sinal de puberdade precoce. Geralmente, é transitória e se‑ cundária à resposta aumentada dos receptores endometriais a níveis baixos de estrógeno circulante. Por ser um diagnóstico de exclusão, todas as outras possíveis causas deverão ser in‑ vestigadas, como corpo estranho na vagina, tumores genitais e abuso sexual, entre outras. Confirmado o diagnóstico, a con‑ duta é expectante. Considerações especiais Alguns aspectos merecem consideração especial: • Apesar de discutível, o uso de anestésico tópico, à base de cre‑ me de lidocaína, poderá ser aplicado em pequena quantidade sobre a região himenal de crianças cooperativas quando da vi‑ sualização e/ou retirada de pequeno corpo estranho na vagi‑ na. No entanto, se o aspirado vaginal se destinar à cultura ou material forense, não deverá ser utilizado. • Para adequadamente visualizar o canal vaginal de crianças pré-púberes, instilação de soro morno e retirada de corpo es‑ tranho, poderão ser utilizados histeroscópios e cistoscópios pediátricos.2 • Só para a visualização do canal vaginal, o otoscópio poderá ser uma alternativa. Contudo, geralmente ele não permite a visualização do terço superior da vagina, o que pode falsear o diagnóstico inicial. • A tranquilidade do profissional e sua experiência na realização do exame da região genital de crianças são extremamente im‑
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portantes, uma vez que, apesar de raros, há relatos de traumas e sangramentos iatrogênicos oriundos de exames realizados de forma atabalhoada e/ou com instrumentos inadequados.
Considerações finais No sangramento vaginal em crianças, a história e o exame físi‑ co cuidadoso têm papel fundamental. Ao contrário de outras alterações clínicas, em que é imprescindível a realização de exames de imagem e/ou laboratoriais, aqui eles são utilizados com bastante parcimônia. É importante lembrar que as crian‑ ças e seus pais e/ou responsáveis estão ansiosos e aflitos por ocasião dessas consultas. Portanto, a calma e a confiança transmitidas pelo profissional médico habilitado são essen‑ ciais para a boa condução do caso.
Referências bibliográficas 1.
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5. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que o sangramento vaginal na infância deverá ser sempre objeto de investigação, independentemente da sua duração e intensidade. • Identificar que entre as causas mais comuns estão o sangramento neonatal, a presença de corpo estranho na vagina e as vulvovaginites. • Compreender que a história clínica e um cuidadoso exame físico são essenciais para o diagnóstico etiológico adequado e posterior conduta. • Entender que, se houver suspeita ou forem confirmados negligência, maus-tratos e/ou abuso sexual, toda a rede de proteção à criança deverá ser imediatamente acionada. • Saber que a tranquilidade e a experiência do profissional na realização do exame da região genital de crianças são extremamente importantes para evitar iatrogenias e para a adequada condução do caso.
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CAPÍTULO 7
EXAME DA MAMA NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA João Bosco Ramos Borges
Introdução Um exame da mama deve ser incluído no exame físico anual de todas as crianças e adolescentes, independentemente de queixas específicas serem mencionadas pela criança, pela jo‑ vem ou pela mãe.1,2 O desenvolvimento mamário inicia na maioria das meninas entre 8 e 13 anos de idade, com média etária de 11,2 anos. A importância da telarca é que ela é habi‑ tualmente o primeiro sinal do início da puberdade. Educar uma jovem adulta ou uma adolescente mais velha sobre as técnicas de autoexame de mama, no momento do exame de mama, pode aumentar sua compreensão do exame em curso e fazê-la sentir-se mais à vontade na consulta com o pediatra.3 Apesar de o câncer de mama ser incomum durante os anos da adolescência, o aumento da conscientização sobre a preva‑ lência de câncer de mama entre mulheres tem levado mães e adolescentes a ficarem muito preocupadas com a presença de nodulosidades mamárias em adolescentes, o que as leva a pe‑ dir orientação ao pediatra.4 Esse comportamento pode ser construtivamente utilizado pelo pediatra, que deve encorajar essas jovens mulheres a buscar avaliação preventiva de saúde de rotina e também de se informar sobre o desenvolvimento mamário normal e as controvérsias sobre as técnicas de ras‑ treamento de câncer mamário, incluindo o autoexame.4 Embora as adolescentes possam aprender bem essas técni‑ cas de autoexame, elas o praticam apenas esporadicamente e muitas vezes não no final da menstruação, como é preferível. O exame das mamas pelo pediatra começa quando se fa‑ zem os primeiros exames da recém-nascida no berçário (ou no ambulatório), e o tecido mamário pode ser evidenciado por es‑ tímulo secundário dos hormônios maternos. As bebês têm muitas vezes aumento transitório do tecido mamário, secun‑ dário à estimulação do estrógeno materno perinatal; esse au‑ mento pode permanecer por vários meses antes de ocorrer re‑ gressão espontânea. O exame da recém-nascida inclui a avaliação do tamanho da mama, posição da papila, presença de mamilos acessórios e descarga papilar.2 Esse aumento ou
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assimetria e/ou fluxo papilar leitoso (“leite de bruxa”) relacio‑ nado à estimulação de hormônios maternos pode ocorrer em meninos e meninas. Crianças podem apresentar problemas mamários como mamilo acessório, infecções, hemangiomas, lipomas e linfan‑ giomas. O exame da criança na fase pré-puberal inclui inspe‑ ção e palpação da parede torácica evidenciando nódulos, dor, descarga papilar ou sinais de telarca prematura ou desenvolvi‑ mento prematuro (ou ginecomastia, em meninos).5,6 As crianças obesas podem ter falso aumento mamário pre‑ coce, em que a aréola é pequena, a papila é plana e o tecido mamário é mole. Esse aumento contrasta com o desenvolvi‑ mento normal da mama, em que a aréola é grande, a papila é elevada e o tecido circundante é firme. Aspectos importantes da anamnese da adolescente com queixa de nódulo de mama incluem avaliar a duração e o ta‑ manho do nódulo, os sintomas associados (secreção papilar), doença de mama ou malignidade anterior e passado de radio‑ terapia no tórax. É importante também a avaliação da cronolo‑ gia do desenvolvimento das características sexuais secundá‑ rias, a história menstrual e de gravidez, o histórico de uso de medicações (uso de anticoncepcionais orais, cimetidina ou outras drogas) e a presença ou não de doença de mama e cân‑ cer de mama familiar.1,7 As diretrizes da American Academy of Pediatrics Bright Futures sugerem que as mamas devem ser avaliadas para clas‑ sificar a maturidade sexual entre as idades de 11 e 20 anos, e o exame clínico da mama deve tornar-se de rotina após a idade de 20 anos.4 Para o exame da adolescente, a melhor época para avaliar as mamas é 1 ou 2 semanas após a menstruação, quando o ní‑ vel estrogênico está mais baixo, não há ainda a progesterona ovulatória, e as mamas, assim, tornam-se menos ingurgitadas e sensíveis, facilitando o exame pelo pediatra e tornando o exame menos doloroso para a jovem. Esse exame clínico das mamas permite ao médico tranqui‑ lizar a adolescente, observando que suas mamas estão cres‑
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cendo e se desenvolvendo normalmente ou, se esse não for o caso, identificando anormalidades que a adolescente pode ter sido relutante em mencionar. Esse exame inclui a observação de anormalidades grosseiras (assimetria, retrações, alteração de coloração da pele) com a jovem sentada e com os braços ao longo do corpo (inspeção estática). Provocar movimentos do tórax, como elevar e abaixar os braços, observando o tórax e as mamas (inspeção dinâmica) pode fazer salientar o nódulo ou a retração não percebidos na inspeção estática. A palpação da mama é realizada com a paciente em decúbito dorsal e o braço ipsilateralmente à mama que está sendo analisada, colocado sob a cabeça.2,7 O tecido mamário é examinado com as pontas dos dedos, utilizando o método circular concêntrico, ou no sentido horário como os raios de uma roda.1 Em todos as dife‑ rentes modalidades do exame de palpação da mama que os pediatras possam ter o hábito de fazer, o importante é que as pontas dos dedos sejam movidas de uma forma ligeiramente rotativa (aproximadamente do tamanho de uma moeda mé‑ dia) para sentir anormalidades menores. Além disso, a aréola deve ser “comprimida” suavemente para avaliar presença de descarga papilar (papiloma juvenil em crianças e adolescen‑ tes).8 O exame de mama completo termina com a palpação da região axilar, supraclavicular, infraclavicular e a avaliação de linfadenopatias. A classificação de maturidade sexual mamá‑ ria (estágios de Tanner) pode ser concluída após esse exame. Portanto, a sequência que deve ser dada ao exame físico da mama é: • inspeção estática e dinâmica (criança ou adolescente de pé ou sentada com o pediatra à sua frente); • palpação das mamas com a paciente deitada (usando o tórax como suporte mais firme para a identificação do tecido ma‑ mário e eventuais alterações); • expressão mecânica delicada da papila, com a paciente ainda deitada; • exame das cadeias axilares, à procura de linfonodos alterados, com a paciente voltando à posição sentada. A maioria das adolescentes que vêm ao consultório com quei‑ xa de um tumor de mama apresenta apenas alterações mamá‑ rias normais (alterações fibrocísticas), já que o câncer de mama é extremamente raro nessa faixa etária.7 Nessas adoles‑ centes, depois de uma história cuidadosa e exame para des‑ cartar doença mais grave, a simples observação desse “tumor” por um ou dois ciclos menstruais é a melhor conduta.7,9 Essa forma de conduzir é baseada na observação de que a maioria das adolescentes que procuram seu pediatra com nódulos ma‑ mários tem nodularidade normal ou alteração fibrocística, e que a maioria dos nódulos mamários extirpados cirurgicamen‑ te é fibroadenoma, que não necessitaria ter sido removido.7 Aspectos importantes do exame físico incluem:1,7 • localização do nódulo: alterações fibrocísticas e fibroadeno‑ mas geralmente estão localizados nos quadrantes superoex‑ ternos. Os nódulos bem circunscritos de papiloma intraductal juvenil podem estar localizados sob a aréola ou nos ductos da periferia da mama. Já a ectasia do ducto mamário e os cistos de Montgomery são subareolares;
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• consistência do nódulo (cístico ou sólido): ectasia do ducto mamário e cistos de Montgomery são císticos, enquanto fi‑ broadenomas, tumores phyllodes, necrose gordurosa e tumo‑ res malignos da mama (raríssimos) são geralmente sólidos; • tamanho do nódulo: fibroadenomas são geralmente menores do que os tumores phyllodes (média de 2 a 3 cm versus 7 cm).6,8 O tamanho do nódulo pode ser monitorado pelos ci‑ clos menstruais; • mobilidade do nódulo: fibroadenomas são geralmente mó‑ veis, ao passo que os tumores malignos da mama são geral‑ mente (mas nem sempre) fixos ao tecido subjacente; • sensibilidade pode estar presente antes do início da mens‑ truação em adolescentes com alteração fibrocística e fibroa‑ denoma. Esse sintoma também pode ocorrer em pacientes com infecção ou trauma; • alterações na pele que recobre o nódulo podem ocorrer em grandes fibroadenomas, tumores phyllodes (a pele é brilhante e tensa pelo crescimento rápido do tumor) e no câncer de mama (peau d’orange, retração); • secreção papilar ou descarga papilar pode ocorrer na doença fibrocística (verde ou marrom, não sanguinolenta), cistos de Montgomery (claro a marrom), papiloma intraductal (san‑ gue), ectasia do ducto mamário (colorido, pegajoso), phyllodes (com sangue), infecção (purulenta) e câncer de mama (com sangue); • aparência: a papila pode parecer azulada ou ter um pequeno nódulo azulado sob ele nas meninas com ectasia do ducto mamário. A retração do mamilo pode ocorrer em pacientes com câncer de mama; • linfadenopatia: pode estar presente em pacientes com infec‑ ção ou câncer mamário; • hepatoesplenomegalia pode ser uma indicação de câncer me‑ tastático. Se assimetria ou distúrbio do desenvolvimento mamário é en‑ contrado, a medida exata da aréola, do tecido mamário glan‑ dular, o tamanho da mama, etc. devem ser anotados a cada exame, pelo pediatra. Uma sugestão de anotação pode ser vis‑ ta a seguir, na Tabela 1. A primeira medida é craniocaudal; a segunda no sentido la‑ teral (direita-esquerda). A medida total também é lateral (D/E) e vai da borda do tecido gorduroso mamário até o ápice da mama. Portanto, vê-se a importância do exame da região mamária na propedêutica a que deverão a criança e a jovem adolescente ser submetidas, sob indicação do pediatra. Somado a uma anamnese cuidadosa, esse exame físico será o suficiente na maioria das queixas que envolvam a mama. É por meio da pro‑ pedêutica clínica que se tranquilizará a grande maioria das Tabela 1 Sugestão de anotação a cada exame pediátrico Aréola (cm)
Glândula mamária (cm)
Total
Mama D
2,3
4×5
7,3
Mama E
2,1
3×4
6,1
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exame da mama na infância e na adolescência •
queixas mamárias, e também é após esse tempo, balizados os achados clínicos, que deverão ser indicados os exames subsi‑ diários naquelas meninas em que estes se fizerem necessários. Nesse tempo clínico aprenderá a jovem a importância do auto‑ conhecimento mamário, o hábito de autoexame, a importân‑ cia da prevenção e, no futuro, a estruturar a boa educação em saúde mamária na prevenção do câncer de mama. É com o pe‑ diatra que se iniciarão os conceitos de prevenção das doenças mamárias da futura mulher adulta.
Referências bibliográficas 1. 2.
3. 4.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender que o exame da mama deve ser incluído no exame físico anual de todas as crianças e adolescentes. • Saber que o exame das mamas, pelo pediatra, começa quando se faz o primeiro exame da recém-nascida no berçário. • Compreender a importância da anamnese na adolescente com queixa de nódulo de mama. • Saber que as mamas devem ser avaliadas para classificar a maturidade sexual entre as idades de 11 e 20 anos, e que o exame clínico da mama deve tornar-se rotina após 20 anos de idade. • Entender que a sequência do exame físico da mama na adolescente é a inspeção estática e dinâmica, a palpação das mamas, expressão mecânica delicada da papila e o exame das cadeias axilares. • Saber que os aspectos mais importantes do exame físico incluem localização do nódulo, bem como sua consistência e tamanho, mobilidade, sensibilidade, alterações na pele que recobre o nódulo, presença de secreção e aparência da papila, e avaliação de linfadenopatia.
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CAPÍTULO 8
CONTRACEPÇÃO: MELHOR ABORDAGEM NA ADOLESCÊNCIA João Tadeu Leite dos Reis Maria de Lourdes Caltabiano Magalhães
No Brasil, gravidez não planejada na adolescência é considera‑ da um problema de saúde pública, sendo bem conhecidos seus desdobramentos: interferência na formação individual dos adolescentes e em seus projetos de vida, repercussões clí‑ nicas maternas e fetais de pré-natais realizados de maneira in‑ completa e consequências reprodutivas de abortamentos clandestinos. De maneira inversa à da população brasileira em geral, há pelo menos duas décadas, a taxa de fecundidade en‑ tre adolescentes aumentou 26%, expressivamente entre jo‑ vens menos escolarizadas, mais pobres e residentes em área urbana.1 Existem razões para se preocupar com a contracepção en‑ tre os adolescentes? Existem várias, muitas delas ligadas às mudanças sociais atuais. A prática do “ficar”, às vezes compe‑ titiva, em série e com eventuais relações sexuais, possivel‑ mente sem proteção adequada, banaliza a sexualidade nessa idade. Continuam presentes sentimentos de onipotência e in‑ vulnerabilidade, além das pressões de grupos sociais caracte‑ rísticas na adolescência. A faixa etária de brasileiros entre 10 e 19 anos constitui hoje uma população de cerca de 34 milhões de indivíduos que, em sua maioria, têm início prematuro da vida sexual, com prote‑ ção contraceptiva irregular, incorreta ou ausente e grande ris‑ co de uma gravidez não planejada logo no primeiro ano. Pou‑ cos métodos contraceptivos estão disponibilizados pelo sistema público de saúde, seu acesso pelos adolescentes é difí‑ cil e a orientação de como os utilizar é insuficiente e falha. Cabe refletir sobre a qualidade dos programas de educação sexual nas escolas, a influência de tabus ou preconceitos religiosos sobre a sexualidade, a distância que separa a realida‑ de dos jovens da de seus pais, a falta de diálogo dentro de casa e entre alunos e professores, a falta de informações sobre regu‑ lação da fecundidade e o pouco conhecimento dos jovens so‑ bre si mesmos e sobre o mundo que os cerca. Seria necessário ampliar o debate sobre sexualidade, uma vez que os adolescentes recebem informações de maneira in‑ completa ou equivocada, verbalizam algum conhecimento,
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mas permanecem com dúvidas, curiosidades e falhas em suas concepções. Os métodos mais conhecidos são “pílula” (sem conhecerem suas particularidades), anticoncepcionais injetá‑ veis, dispositivo intrauterino (DIU), preservativos, contracep‑ ção de emergência e coito interrompido.2 Apesar de muito utilizados, métodos como “pílula” e pre‑ servativos apresentam altos índices de falha e descontinuida‑ de durante o primeiro ano de uso. Assim, apresenta-se um grande desafio: manter a adolescente utilizando o método de maneira correta e consistente. A literatura mostra que, desse ponto de vista, os métodos conhecidos como LARC (métodos contraceptivos reversíveis de longa duração, como implante, DIU, injetáveis) são muito efetivos porque sua ação independe da usuária, o que reforça sua indicação para adolescentes.3,4 O profissional médico com frequência se sente inseguro e vulnerável ao abordar e orientar uma adolescente em relação à contracepção, ainda mais se ela for menor de 18 anos e se man‑ tiver vida sexual sem ciência de seus pais. O documento Diretrizes: contracepção, adolescência e ética, definido pela Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (Febras‑ go) e pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), mostra que a prescrição de método anticonceptivo para adolescentes não fere nenhum princípio ético ou legal.5 Vai mais além e garante o direito do adolescente à prescrição de contracepção, indepen‑ dentemente da idade. O documento Marco teórico e referencial: saúde sexual e reprodutiva de adolescentes e jovens, do Ministé‑ rio da Saúde, respalda a prescrição médica ao reforçar direitos anteriormente definidos pelo Estatuto da Criança e do Adoles‑ cente (ECA) e pela Organização das Nações Unidas (ONU).1 Os principais são a privacidade e a confidencialidade, quando do atendimento médico, além do direito ao sigilo profissional, à educação sexual e à prescrição de métodos contraceptivos. A escolha do método contraceptivo A Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza que os adolescentes, como indivíduos saudáveis, poderiam fazer uso de qualquer método desde que se respeitassem fatores sociais,
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Contracepção: melhor abordagem na adolescência •
familiares e comportamentais avaliados de uma maneira indi‑ vidualizada, além de recomendar a apreciação de pontos como:3 • Aceitação e motivação: esse é um método que a paciente usa‑ rá regularmente? O parceiro participará? São casados? • Eficácia do método: esse método protege contra a gravidez em coito não planejado? • Número de parceiros sexuais. • A paciente terá condições financeiras de manter o método a longo tempo? • Segurança/risco: o uso por pouco tempo resultará em des‑ vantagens por um longo tempo? • Frequência de atividade sexual. • Aspectos pessoais, familiares, religiosos, éticos e filosóficos influenciarão o uso do método? • Manter a dupla proteção: o uso concomitante do preservativo (para prevenir doenças sexualmente transmissíveis – DST). O documento Medical eligibility criteria for contraceptive use, da OMS, estabelece que somente a idade não seja razão para atra‑ sar o uso de qualquer método, salientando que, para adolescen‑ tes, o uso de métodos que não exijam um regime diário pode ser o ideal, que adolescentes casadas são menos tolerantes em rela‑ ção aos efeitos adversos, com índices maiores de abandono do método escolhido, que a escolha do método pode ser influencia‑ da por fatores como relações sexuais esporádicas e necessidade de esconder atividade sexual ou uso de contracepção, e deve-se evitar que o custo do serviço e do método limite sua utilização.3,6 A Faculty of Sexual & Reproductive Healthcare (FSRH) apoia a OMS e reforça os benefícios dos métodos contraceptivos rever‑ síveis de longa duração, assim como a importância de acompa‑ nhamento médico próximo, principalmente no primeiro ano de uso, período de altas taxas de descontinuidade do método ini‑ cialmente escolhido.4 O uso ou não de contracepção na primeira relação sexual e nas subsequentes é influenciado por vários fa‑ tores individuais, como informação, atitude, aspirações, per‑ cepção de risco, apoio do parceiro, e por outros gerais, como es‑ trutura familiar, condição socioeconômica, normas sociais e acesso aos serviços de saúde.4 A confidencialidade das informa‑ ções prestadas quando do atendimento garante uma opção li‑ vre, baseada em informações técnicas e características indivi‑ duais. Há diferença entre as eficiências teórica e real de cada método, e a possibilidade de abandono está relacionado à moti‑ vação e ao nível de instrução da adolescente. Apesar da ampla oferta de informações, ainda são fre‑ quentes crenças e preconceitos, tanto por parte dos adoles‑ centes quanto pelos médicos. As pacientes preocupam-se com aumento do peso corporal, diminuição de oleosidade da pele, das espinhas e cravos, interferência com fertilidade fu‑ tura e melhora dos sintomas perimenstruais. Os profissio‑ nais têm dúvidas sobre quando iniciar com a contracepção, sobre a associação de infertilidade futura e DIU, sobre méto‑ dos mais recentes como implante e anel vaginal, receiam não serem capazes de solucionar os problemas do dia a dia, tendendo a prescrever um método com o qual já estão fami‑ liarizados.
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Análise do uso dos diversos métodos contraceptivos na adolescência Métodos comportamentais Requerem determinação do período fértil, o que nem sempre é simples, considerando-se a idade, a disciplina e o conheci‑ mento das mudanças físicas puberais, resultando em eficácia média a baixa. No início da vida sexual, podem ser o único re‑ curso disponível, educam a adolescente sobre seu ciclo repro‑ dutor, atendem aquelas que por motivos religiosos ou filosófi‑ cos não se permitem usar outros métodos e não têm custo.6 Métodos de barreira O preservativo masculino (látex) e feminino (poliuretano) são os métodos que oferecem comprovadamente dupla proteção. Sua eficácia depende da técnica e constância de uso, com índi‑ ces de falha do preservativo masculino em 15% e do feminino em 5% a 21%.3,6 O feminino é mais caro e de distribuição mais limitada do que o masculino, mas protege também a genitália externa. A literatura insiste em sua utilização, independente‑ mente da indicação anticonceptiva, em razão de sua ação pre‑ ventiva em relação às DST.4,6 Diafragma e espermicida são pouco eficazes: o primeiro com índice de falha em 16% e o segundo em 29%.3,6 Pouca inti‑ midade com a genitália pode dificultar a inserção do dia fragma. Dispositivo intrauterino (DIU) com cobre e sistema intrauterino (SIU) liberador de levonorgestrel O DIU com cobre pode ser uma alternativa, mas não é a pri‑ meira escolha para as adolescentes e as nulíparas. Índices de falha teórica de 0,6% e real de 0,8% não interferem com a ovulação e promovem uma resposta inflamatória intrauterina de ação espermicida.3 Para a OMS, o risco de sua associação com doença inflamatória pélvica (DIP) depende mais da téc‑ nica de inserção e da adequada seleção da usuária do que da idade, devendo-se considerar o número de parceiros sexuais, dependência ou não de álcool e drogas e de estar ou não em um relacionamento sexual estável. Pode ser uma alternativa para as adolescentes que já engravidaram, quando houver contraindicação à anticoncepção hormonal ou quando os be‑ nefícios superarem os riscos. O risco de perfuração está asso‑ ciado à habilidade do profissional e, apesar do risco de DIP ser maior nos 20 dias seguintes à inserção, a literatura não reco‑ menda antibioticoterapia profilática para mulheres de baixo risco para DST, mas seleção adequada das pacientes e assep‑ sia correta.4,6,7 Ainda são necessários mais estudos do sistema intrauteri‑ no com levonorgestrel na adolescência, mas a OMS não relata influência sobre a densidade óssea. Índices de falha teórica e real são de 0,1%.3 Há provável baixa incidência de DIP em ra‑ zão do espessamento do muco cervical, atrofia endometrial e diminuição do sangramento uterino. Nas nulíparas, o maior calibre do insertor do SIU parece estar relacionado à maior in‑ tensidade de dor à sua inserção, sem associação com maior risco de perfuração ou expulsão.7
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São eficazes por tempo prolongado, mantêm a privacidade da usuária e independem do fator “esquecimento”. Desvanta‑ gens: custo, mobilização uterina e treinamento médico ade‑ quado para sua inserção. Métodos hormonais As adolescentes podem utilizá-los desde a menarca, reconhe‑ cendo e utilizando seus benefícios além da contracepção: re‑ tardo puberal, amenorreia hipotalâmica disfuncional, controle de cistos ovarianos funcionais e de sangramento nas discrasias sanguíneas, tensão pré-menstrual, anovulação crônica, irregu‑ laridade menstrual, dismenorreia, endometriose e hiperandro‑ genismo.8 Não interferem no amadurecimento do eixo hipotá‑ lamo-hipófise-ovário, nem na soldadura das epífises ósseas.4 A via oral é a mais utilizada, mas pode-se optar por outras vias como a de depósito, a transdérmica e a vaginal: evitam a pri‑ meira passagem hepática e interferência da absorção gastroin‑ testinal, permitem níveis séricos mais constantes e dosagens mais reduzidas, além de dispensar a ingestão diária de pílula.8 Na avaliação prévia para sua prescrição, deve-se observar data da última menstruação, padrão menstrual, presença ou não de tensão pré-menstrual e/ou dismenorreia primária. É fundamental avaliar contraindicações absolutas como hepa‑ topatias graves, tireoideopatias descompensadas, doenças tromboembólicas, gestação ou suspeita de gravidez. Como ro‑ tina, recomenda-se realizar exame físico geral com verificação de mucosas e ecleróticas, pressão arterial, peso corporal, pal‑ pação da tireoide e do abdome (visceromegalias, principal‑ mente hepática). No exame ginecológico, devem-se avaliar mamas, trofismo vaginal, processos inflamatórios genitais, vi‑ sualização direta de fluxos patológicos e/ou DST. Pela OMS, é desnecessária a realização de exames laboratoriais prévios como colesterol total e frações, triglicérides, glicemia de jejum, hemograma ou função hepática.3,4,8 Contraceptivos hormonais combinados orais de baixa dosagem (AHCO) O consenso para a OMS é a prescrição de AHCO de baixa dose, considerando adesão, falha pelo esquecimento, abandono do método e benefícios, além da contracepção. O índice de falha real é de 8%.3 Na maioria dos produtos, o componente estrogênico é o etinilestradiol (EE), em doses de 15 a 50 mcg (baixa dose), as‑ sociados a diferentes progestagênios, em compostos monofá‑ sicos e em regimes tradicionais de 21/7 dias. Há disponibilida‑ de de produtos com valerato de estradiol e 17-beta-estradiol em doses e regimes diferenciados. Os progestagênios variam sua ação considerando sua ligação com receptores glicocorti‑ coides, androgênicos, mineralocorticoides e estrogênicos: acetato de ciproterona, acetato de clormadinona, levonorges‑ trel, desogestrel, gestodeno, drospirenona, dienogeste e no‑ megestrol.8 A prescrição de produtos com acetato de ciprote‑ rona deve ser limitada a situações clínicas com distúrbios andrógeno-dependentes. Os regimes tradicionais monofásicos de 21/7 dias são bem aceitos. Para aumentar a adesão e a eficácia, além de diminuir as
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queixas associadas ao período menstrual, novos regimes são su‑ geridos (bifásico, quadrifásico) com períodos de pausa variáveis, podendo-se utilizar ou não comprimidos com placebo nesses dias. Opção em evidência atualmente é o uso estendido dos con‑ traceptivos hormonais combinados, com pausas programadas definidas de maneira individual, a partir de 2 ciclos contínuos. Como vantagens, há a possibilidade de: (1) aumentar a eficiência contraceptiva pela diminuição do esquecimento quando do rei‑ nício do método e pelo aumento da supressão ovariana; e (2) re‑ duzir o sangramento de supressão e os sintomas menstruais. A grande dificuldade clínica é a presença de sangramentos não programados, que podem inviabilizar a escolha por essa opção.6 Na adolescência, há controvérsia sobre utilização da dose de EE e ganho de massa óssea, especialmente quando utiliza‑ da a dose de 20 mcg ou menos: parece não haver perda, mas as usuárias ganhariam menos densidade mineral óssea (DMO) quando comparadas a não usuárias.9 A OMS não faz restrição à sua prescrição nem ao tempo de uso.10 Fármacos e drogas podem interagir com os contraceptivos orais por meio de alteração na ligação com as proteínas séricas e aumento do metabolismo hepático pela indução das enzi‑ mas do citocromo P-450, podendo haver diminuição na eficá‑ cia de ambos.3,5 Contraceptivos orais apenas com progestagênio Não estão associados ao estrógeno e são utilizados de maneira ininterrupta. Não interferem na DMO, apresentam poucos efeitos adversos e poucas contraindicações (OMS).3 Acetato de noretindrona ou levonorgestrel têm em comum uma inibi‑ ção da ovulação inconstante, efeitos androgênicos variáveis e sangramento uterino imprevisível. O desogestrel pode ser uti‑ lizado além do período de aleitamento, promove uma inibição da ovulação eficiente, possui baixa ação androgênica, com tendência a amenorreia/sangramentos infrequentes e melho‑ ra da dismenorreia.6,8 Contraceptivos hormonais injetáveis (de uso trimestral ou mensal) Trimestral: acetato de medroxiprogesterona (MPA-D) espessa o muco cervical e altera o endométrio, mas também inibe a ovulação. Falha real de 3%.3 De baixo custo, está indicado para usuárias de drogas antiepilépticas e em diabéticas sem doença vascular. Pode causar cefaleia, aumento de peso (de 2 a 3 kg), mastalgia, depressão, alterações no fluxo menstrual, amenor‑ reia e atraso no retorno da fertilidade em até 1 ano após sua descontinuidade.4 Há evidências de diminuição da DMO ao longo do tempo em adolescentes, além de prejudicar a aquisi‑ ção de massa óssea naquelas que ainda não atingiram seu pico de ganho ósseo.4,9,10 Ainda não há conclusão definitiva sobre os efeitos sobre o futuro ósseo: em pacientes maiores de 18 anos de idade, não há restrição para sua prescrição; em pa‑ cientes entre a menarca e 18 anos, seu uso continuado depen‑ de de avaliação individual de riscos e benefícios.6,10 Mensal: inibe a ovulação e torna o muco cervical espesso. Falha real de 3%.3 Por utilizarem estrógeno natural e não sin‑
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Contracepção: melhor abordagem na adolescência •
tético, apresentam poucos efeitos comuns aos orais, como os sobre a pressão arterial, a homeostase e a coagulação, o meta‑ bolismo lipídico ou a função hepática. É uma boa opção para adolescentes que não tenham a disciplina da tomada diária da pílula ou apresentem intolerância gástrica com a via oral.4,6 Contracepção de emergência É para ser utilizado em situações excepcionais, ou seja, após uma relação sexual sem proteção, falha potencial de um méto‑ do já utilizado ou estupro. A terminologia “pílula do dia se‑ guinte” sugere um uso equivocado, uma vez que pode ser utili‑ zada até o 5º dia após a relação sexual desprotegida (se utilizado em até 72 horas, reduz a possibilidade de gravidez em 75%).3 O Ministério da Saúde e a OMS sugerem o uso isola‑ do de levonorgestrel (dose única de 1,5 mg) porque é mais efe‑ tivo, não há efeitos adversos do estrógeno, nem interage com medicamentos retrovirais. O mecanismo de ação varia: se uti‑ lizada na primeira fase do ciclo menstrual, impede a ovulação; na segunda fase, atua principalmente pelo espessamento do muco cervical. Atualmente não há registros de que tenha efei‑ tos teratogênicos, de que interfira na implantação ou de que altere o endométrio.3,11 Implante subdérmico É um bastão do polímero evatane contendo o progestagênio etonogestrel que inibe a ovulação (nos 2 primeiros anos de uso) e espessa o muco cervical (ao longo de 3 anos). Falhas teórica e real de 0,05%.3 Promove atrofia endometrial e man‑ tém a atividade ovariana e níveis quase normais de estrógeno. Sua inserção é ambulatorial após treinamento específico. Pode ser utilizado com segurança por pacientes diabéticas, hi‑ pertensas, com doença cardiovascular, obesas ou imunossu‑ primidas, não afeta o ganho de massa óssea, mas pode asso‑ ciar-se a acne, depressão e cefaleia. Amenorreia em 21% das pacientes no primeiro ano de uso.3,4,6 Anel vaginal Anel flexível do polímero evatane que libera dose diária cons‑ tante de EE e de etonogestrel, suprimindo a ovulação. Falha real de 8%.3 É inserido e retirado pela própria adolescente, de‑ vendo estar em contato com a mucosa vaginal por 3 semanas seguida por uma de pausa. A OMS confirma que não interfere com a flora vaginal nem altera lesões intraepiteliais escamosas de baixo grau cervicovaginais.3 É discreto e com bom controle de ciclo.4,6 O manuseio da genitália para sua colocação pode dificultar seu uso no início da vida sexual. Há registros de ex‑ pulsão espontânea em 2 a 3% das pacientes.3 Adesivo transdérmico É um produto fino e flexível que libera dose diária constante de EE e de norelgestromina, suprimindo a ovulação. Falha real de 8%.3 Deve ser trocado semanalmente ao longo de 3 sema‑ nas, seguidas de uma de pausa. A evidenciação do uso de con‑ tracepção pela visualização do adesivo pode dificultar ou não sua aceitação entre adolescentes. A OMS confirma presença de desconforto mamário, reações dermatológicas locais e dis‑
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menorreia, além de sugerir que a eficácia declina em pacientes com peso igual ou maior que 90 kg.3,4 Métodos cirúrgicos permanentes (vasectomia e laqueadura tubária) São de uso excepcional na adolescência. Só estariam justifica‑ dos em condições clínicas ou genéticas nas quais seja impera‑ tivo evitar a gravidez permanentemente. A lei do Planeja‑ mento Familiar n. 9.263 de 12 de janeiro de 1996 restringe métodos cirúrgicos em menores de 25 anos com menos de dois filhos. Considerações finais Diante da realidade de adolescentes engravidarem em situa‑ ções não planejadas, mesmo em países onde há uma grande preocupação com essa faixa etária, a tendência da literatura e dos especialistas é a de estimular a indicação e o uso dos mé‑ todos contraceptivos reversíveis de longa duração, visando à maior efetividade contraceptiva. Merece uma consideração especial a abordagem médica para o sangramento irregular que com frequência acompanha a escolha desses métodos, di‑ ficultando a adesão a eles. As adolescentes devem ser orienta‑ das de forma individualizada, enfatizando-se o uso regular e constante, buscando-se sua adesão ao método escolhido.4 Considerando a pluralidade de opções contraceptivas exis‑ tentes na atualidade (doses, esquemas, vias de administra‑ ção) e que as necessidades e objetivos são específicos para cada adolescente, cabe ao profissional de saúde oferecer todo o leque de alternativas para que a escolha recaia sobre o méto‑ do mais adequado e eficiente. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Respeitar a privacidade e a confidencialidade no atendimento de adolescentes. • Orientar contracepção para adolescentes abordando todos os métodos. • Atentar para a individualização na orientação e na prescrição de contracepção. • Identificar as vantagens e desvantagens de cada método hormonal. • Identificar e considerar benefícios não contraceptivos dos métodos hormonais. • Manter a adolescente estimulada a utilizar o método escolhido de forma regular e correta.
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8. Speroff L, Fritz M. Clinical gynecologic endocrinology end infertility: oral contraception. Filadélfia: Lippincott Williams & Wilkins, 2011. p.949-1048. 9. Man Z, Moggia AS, Larroudé AS. Salud ósea y anticoncepción hormo‑ nal. Rev Asoc Méd Arg Anticoncep 2008; 4(1):17-27. 10. World Health Organization. WHO statement on hormonal contracep‑ tion and bone health, july 2007. Disponível em: www.who.int/repro‑ ductivehealth/topics/family_planning/pbrief_bonehealth_es.pdf. Acessado em: 15/08/2015. 11. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departa‑ mento de Ações Programáticas Estratégicas. Anticoncepção de emer‑ gência: perguntas e respostas para profissionais de saúde. Brasília: Mi‑ nistério da Saúde, 2005. Disponível em: http//bvsms.saude.gov.br/ bvs/publicações/anticoncepção_emergencia_perguntas_respostas _2ed.pdf. Acessado em: 15/08/2015.
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CAPÍTULO 9
VACINA CONTRA O PAPILOMAVÍRUS HUMANO (HPV): VISÃO DO GINECOLOGISTA Denise Leite Maia Monteiro Camilla Luna Isabela Ballalai
Introdução O colo uterino é o terceiro local mais frequente de instalação de câncer na população feminina, sendo superado apenas pe‑ los cânceres de mama e colorretal. Ocupa o quarto lugar entre as causas de óbitos em mulheres por neoplasias no Brasil.1 O câncer de colo de útero ocorre na maioria dos casos (> 80%) em regiões menos desenvolvidas. Em 2012, foram esti‑ mados 226.000 óbitos por neoplasia cervical em todo o mundo, sendo 7,5% dos óbitos por câncer em mulheres. Em países desenvolvidos, os óbitos foram inferiores a 2/100.000; já em países em desenvolvimento, foi maior que 20/100.000.2 A esti‑ mativa do Instituto Nacional de Câncer (Inca) para o ano de 2014 é de 15.590 novos casos de câncer de colo uterino no Brasil, com risco estimado de 15,33 casos a cada 100.000 mulheres.3 O desenvolvimento do câncer de colo uterino é ocasionado pela infecção persistente com os tipos oncogênicos do papilo‑ mavírus humano (HPV), em praticamente 100% dos casos.1 Em virtude do panorama global atual, faz-se necessário utili‑ zar as vacinas como importante ferramenta na prevenção da incidência do câncer cervical, todavia sempre conscientizan‑ do a população quanto à necessidade da triagem ginecológica. A infecção pelo HPV Atualmente, a infecção pelo HPV é considerada a mais fre‑ quente das doenças sexualmente transmissíveis (DST). Fo‑ ram identificados aproximadamente 40 tipos do vírus associa‑ dos à infecção genital, sendo 12 carcinogênicos. Os tipos de HPV considerados de alto risco, por estarem associados ao de‑ senvolvimento do câncer, são o 16, 18, 31, 33, 35, 39, 45, 51, 52, 56, 58, 59 e, ainda, o 68 e o 73, apesar de estes ainda possuí‑ rem evidência limitada.2,4 No mundo, os tipos virais 16, 18, 31 e 45 são os mais preva‑ lentes. Desses, o HPV16 e o HPV18 estão presentes em 70% dos diagnósticos de neoplasia cervical, e são considerados os HPV de alto risco mais frequentes. Já os de baixo risco (princi‑ palmente o HPV6 e o HPV11) estão associados ao surgimento de verrugas genitais.4-6
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A Organização Mundial da Saúde (OMS) apresentou um estudo que evidenciou que o HPV16 foi o mais comum em to‑ dos os continentes. Já o HPV18 e os outros tipos oncogênicos (HPV31, 39, 51, 56, 58, 59) apresentaram prevalência similar e eram os tipos posteriormente encontrados em mulheres que haviam apresentado previamente o diagnóstico do HPV16, ou estavam concomitantes.2,6 Atualmente, estima-se que cerca de metade da população feminina sexualmente ativa irá se infectar pelo vírus HPV em algum momento. A população masculina possui alta preva‑ lência da infecção, entretanto, a grande maioria não evolui com sintomas clínicos. Estima-se que nas mulheres com in‑ fecção cervical e/ou lesões por HPV, em mais de 70% dos ca‑ sos o parceiro seja portador do vírus.4 O principal fator de risco para o desenvolvimento do câncer de colo do útero é a infecção persistente pelos tipos de HPV de alto risco. Mulheres que possuem infecção persistente pelo HPV16 possuem chance 400 vezes maior de desenvolverem carcinoma de células escamosas; já pelo HPV18, a chance é 250 vezes maior, quando foram comparadas com pacientes que nunca entraram em contato com o vírus. Entretanto, não são todos os casos que evoluem para o câncer, uma vez que as infecções tendem a ser de curta duração e regredir esponta‑ neamente em 2 anos, na maior parte dos casos. Desse modo, uma porcentagem menor evolui para infecção persistente e uma parcela ainda menor para lesão carcinogênica.5,6 A infecção pelo HPV pode ocorrer de diversas maneiras: por autoinoculação, contato íntimo não sexual, transmissão verti‑ cal e contato indireto com objetos infectados. Entretanto, a principal via é o contato sexual com o parceiro infectado.4 Com a redução da idade da iniciação sexual, mais precoce‑ mente haverá o contágio pelo vírus – uma vez que ocorre com mais frequência nesses momentos e, consequentemente, com maior precocidade no risco de surgimento das formas clínica, subclínica e latente.3-5 A forma de apresentação clínica (verrugas e condilomas) corresponde a 1% dos casos e em 20% evoluem com regressão
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espontânea, sendo causadas por tipos de HPV de baixo risco As vacinas contra o HPV atualmente comercializadas são (aproximadamente 90% dos casos pelos tipos 6 e 11). A forma profiláticas, ambas derivadas de VLP L1 (virus-like particles) – latente não é contaminante (não há replicação do vírus) e só é ou seja, são vacinas inativadas derivadas de partículas seme‑ diagnosticada por meio da identificação do DNA viral. Já a for‑ lhantes ao vírus, a partir da expressão recombinante da principal ma subclínica é causada pelos HPV de alto risco, e é a de maior proteína do capsídeo viral (L1). Por isso, utilizam apenas o envol‑ relevância por ser assintomática; e o diagnóstico definitivo só tório do vírus, não contendo material genético (DNA). Portanto, ser realizado por meio da colposcopia.7-9 induzem apenas ao desenvolvimento de alta titulação de anti‑ A infecção persistente pelo vírus HPV desenvolvida por corpos neutralizadores específicos para o HPV, que irão induzir aproximadamente 5 a 10% das mulheres infectadas é definida resposta imune adaptativa superior à promovida pela infecção pela presença do DNA HPV do mesmo tipo, em dois exames natural.2 As pessoas vacinadas não correm risco de adquirir a in‑ de biologia molecular, com intervalo de 6 meses entre eles fecção pelo HPV por meio da vacinação, já que as vacinas são (esse intervalo não é universalmente aceito). Essa infecção elaboradas por engenharia genética e destituídas de DNA viral.13 pode evoluir para uma lesão pré-maligna diagnosticada no exame histopatológico, a neoplasia intraepitelial cervical Esquema vacinal (NIC), que possui três categorias: NIC1 – neoplasia intraepite‑ No momento, existem duas vacinas contra o HPV: lial cervical grau 1 (displasia leve ou NIC de baixo grau) –; • Vacina HPV quadrivalente recombinante (contendo VLP dos NIC2 e NIC3 – neoplasia intraepitelial cervical graus 2/3 (dis‑ HPV6, HPV11, HPV16 e HPV18), denominada Gardasil®, produ‑ 2,9 plasia moderada/acentuada ou NIC de alto grau). Em ado‑ zida pelo laboratório MSD, que contém o alumínio (sulfato hi‑ lescentes, a taxa de regressão das lesões é alta: ASC-US em droxifosfato de Al) como adjuvante e é licenciada para meninas 91%, lesões intraepiteliais de baixo grau em 63,6% e 50% das e mulheres entre 9 e 45 anos e meninos e homens de 9 a 26 anos, lesões intraepiteliais de alto grau, de acordo com um estudo com esquema de aplicação intramuscular (IM): 0, 2 e 6 meses.14 brasileiro.10 Nos EUA, a regressão foi de 38% no primeiro ano • Vacina HPV oncogênico (contendo VLP dos HPV16 e HPV18, de seguimento, 63% no segundo ano e 68% no terceiro ano.11 recombinante, com adjuvante AS04), denominada Cervarix®, O tratamento das lesões pré-neoplásicas (NIC) é realizado por fabricada pela GlaxoSmithKline Biologicals (GSK), também meio da destruição do tecido celular, podendo ser por crioterapia, chamada de bivalente, contém AS04 (Al(OH)3+MLP) como eletrocirurgia ou excisão cirúrgica, a depender da extensão.2 adjuvante, sendo licenciada para meninas e mulheres a partir dos 9 anos, sem limite superior de idade, com esquema de Vacinas contra o HPV aplicação IM: 0, 1 e 6 meses.2,15 Características das vacinas em geral • O local preferencial de aplicação das vacinas é no músculo As características de uma vacina dependerão da natureza do deltoide. Não há indicação para realização de exames antes antígeno nela presente. Existem dois tipos básicos de vacinas: da vacinação, nem mesmo para avaliar a presença do HPV.13 as inativadas e as atenuadas, classificadas de acordo com o • A vacina quadrivalente (tipos 6, 11, 16, 18) é indicada para a tipo do antígeno presente, se enfraquecido ou inativado. A prevenção de câncer do colo do útero, do ânus, da vulva e da compreensão dessa lógica é importante por oferecer maior se‑ vagina causados pelos tipos 16 e 18 de HPV; verrugas genitais gurança na utilização e entendimento dessa poderosa ferra‑ causadas pelos tipos 6 e 11 de HPV; infecções e as seguintes menta de saúde pública que são as vacinas. lesões pré-cancerosas ou displásicas causadas pelos tipos 6, As vacinas atenuadas são desenvolvidas a partir de antíge‑ 11, 16 e 18: NIC de graus 1, 2 e 3 e adenocarcinoma do colo do nos vivos, que foram cultivados em condições adversas, de útero in situ (AIS), neoplasia intraepitelial anal (NIA), vulvar modo que exclui o potencial patogênico e, quando administra‑ e vaginal de graus 1, 2 e 3. Para meninos e homens de 9 a 26 das, promovem multiplicação do antígeno, potencializando a anos de idade, é indicada para prevenção de câncer do ânus resposta imunológica no indivíduo vacinado. Em virtude dis‑ causados pelos tipos HPV16 e HPV18; verrugas genitais cau‑ so, não requerem a adição de agentes adjuvantes e podem ser sadas pelos tipos HPV6 e HPV11; lesões pré-cancerosas ou administradas por via subcutânea ou intramuscular. displásicas causadas pelos tipos HPV6, HPV11, HPV16 e As vacinas inativadas contêm antígenos inativados (não vi‑ HPV18 de HPV; e neoplasia NIA de graus 1, 2 e 3.14 vos) e com menor capacidade de estimular a resposta imuno‑ • A vacina HPV oncogênico 16 e 18 (recombinante) está indica‑ lógica. Por esse motivo, geralmente se faz necessário um da para prevenir eventos que podem evoluir para o câncer de maior número de doses e o acréscimo de adjuvantes. Essas colo uterino, incluindo infecções incidentes e persistentes, substâncias são imunopotencializadoras e promovem aumen‑ anormalidades citológicas, como células escamosas atípicas to da resposta imunológica, sendo o alumínio o adjuvante de significado indeterminado (ASC-US) e NIC, NIC1 e lesões mais utilizado. Quando administrada, promove reação infla‑ pré-cancerosas (NIC2 e NIC3) causadas por HPV oncogêni‑ matória local (hiperemia, edema e dor), que culmina em pro‑ cos tipos 16 e/ou 18 e infecções incidentes e persistentes cau‑ teção de longa duração. Em razão dessa intensa reação, faz-se sadas por HPV oncogênicos tipos 31 e/ou 45.15 a administração por via intramuscular. Adjuvantes mais mo‑ dernos, como o ASO4, são capazes de intensificar a imunoge‑ Deve-se enfatizar que as vacinas contra HPV são exclusiva‑ nicidade desses antígenos, levando à produção de níveis de mente profiláticas e não apresentam indicação para tratamen‑ anticorpos mais robustos.12 to de lesões ou infecção pelo HPV já existente.13
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Vacina contra o papilomavírus humano (HPV): visão do ginecologista •
Novas vacinas estão em desenvolvimento para aumentar a proteção conferida pelas vacinas HPV. Em 2014, a Food and Drug Administration (FDA) aprovou a vacina HPV 9-valente (Gardasil®9), que promove cobertura para nove tipos de HPV (6, 11, 16, 18, 31, 33, 45, 52, 58), apresentando cobertura poten‑ cial de aproximadamente 90% dos cânceres de vulva, vagina, colo uterino e anal. No momento, ainda não está sendo co‑ mercializada no Brasil. Várias outras abordagens também es‑ tão a ser exploradas, incluindo vacina baseada na proteína do capsídeo viral L2 de HPV.2 Em março de 2014, o Sistema Único de Saúde (SUS) pas‑ sou a incluir a vacina HPV quadrivalente no Programa Nacio‑ nal de Imunizações, tendo como alvo meninas entre 11 e 13 anos de idade. O esquema vacinal é composto por três doses, sendo a segunda dose administrada 6 meses após a primeira, e a terceira dose 5 anos (60 meses) após a primeira dose (es‑ quema 0-6-60 meses).16 No ano de 2015, a população-alvo da vacina foi ampliada, passando a incluir meninas entre 9 e 13 anos de idade, bem como mulheres HIV-positivo com idade entre 9 e 26 anos, de acordo com o Ministério da Saúde. Meninas que receberam a primeira dose e completaram 14 anos possuem o direito de re‑ ceber a segunda dose, apesar de não estarem mais dentro da população definida como alvo.16 Ambas as vacinas foram originalmente licenciadas para imunização utilizando esquema de três doses. Após a terceira dose, ambas são altamente imunogênicas com maior resposta imune observada entre meninas de 9 a 15 anos. O esquema de duas doses pode ser administrado com a: • vacina quadrivalente (tipos 6, 11, 16, 18): para meninas e me‑ ninos de 9 a 13 anos (0,5 mL, 0 e 6 meses). Para eficácia desse esquema de doses, o intervalo mínimo entre a primeira e a se‑ gunda dose deve ser de 6 meses. Se a segunda dose da vacina for administrada antes que se completem 6 meses após a pri‑ meira dose, uma terceira dose deve obrigatoriamente ser apli‑ cada. Alternativamente, a vacina pode ser administrada com três doses (0,5 mL, 0, 2, 6 meses). A segunda dose deve ser administrada no mínimo 1 mês após a primeira, e a terceira dose, no mínimo 3 meses após a segunda dose. Para moças e rapazes com 14 anos de idade ou mais, a vacina deve ser ad‑ ministrada com três doses (0,5 mL, 0, 2, 6 meses);2,14 • vacina contra HPV oncogênico 16 e 18: para meninas de 9 a 14 anos (0,5 mL, 0 e 6 meses). A segunda dose pode ser aplicada entre 5 e 7 meses após a primeira dose. Se a primeira dose for administrada aos 15 anos ou mais, três doses (0,5 mL, 0, 1, 6 meses) são recomendadas. A segunda dose pode ser feita entre 1 e 2,5 meses após a primeira dose, e a terceira dose, entre 5 e 12 meses após a primeira dose. Se em qualquer idade a segunda dose da vacina for administrada antes do 5º mês após a primei‑ ra dose, a terceira dose deve sempre ser administrada.2,15 Recomenda-se que o início da vacinação ocorra antes do início da atividade sexual, de preferência aos 9 anos, mas as vacinas não são contraindicadas em mulheres que já iniciaram a vida sexual ou que apresentam infecção por HPV atual ou pré‑ via.2,13 Até o presente, não há recomendação de reforço. Os re‑
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sultados são limitados pelo tempo de seguimento dos ensaios clínicos (9 anos) e não podem ser interpretados como indican‑ do o período máximo de proteção dessas vacinas.2 Imunogenicidade e eficácia Ensaios clínicos com ambas as vacinas contra o HPV apontam que, após a aplicação, observa-se um pico de anticorpos 4 se‑ manas após a terceira dose, anticorpos estes que declinam dentro de 1 ano, quando se estabilizam em um platô, e, a partir daí, o nível de anticorpos permanece estável. A resposta soro‑ lógica após a vacinação é muito mais intensa que a resposta após a infecção natural pelo vírus, o que provavelmente se deve à ação do adjuvante e à maior ativação de células linfono‑ dais pela aplicação parenteral da vacina que pela infecção das mucosas. As células plasmáticas da medula óssea continua‑ mente produzem anticorpos IgG e são responsáveis pela per‑ sistência de anticorpos específicos de HPV em longo prazo.2 As vacinas contra o HPV foram licenciadas pela demonstra‑ ção de sua eficácia clínica em mulheres adultas jovens. Na Austrália, o programa usou a vacina quadrivalente em meninas de 12 a 13 anos com catch-up até 26 anos, terminado em 2009. Em 2013, foi estendida para meninos de 12 a 13 anos, junto com catch-up por 2 anos para meninos de 9 anos. Estudo em oito centros de saúde mostrou redução de 59% na procura de mu‑ lheres por verrugas genitais e imunidade de rebanho, com de‑ clínio no diagnóstico das verrugas em homens não vacinados. Homens que fazem sexo com homens estão em maior risco de infecção por HPV persistente e doença associada, estando me‑ nos propensos ao benefício da imunidade de rebanho.17 Na Escócia, onde o programa de vacinação usou a vacina bivalente, verificou-se redução significativa na prevalência de HPV16/18 de 29,8% (IC95% 28,3-31,3%) para 13,6% (IC95% 11,7-15,8%), além de indicar proteção cruzada contra HPV31, HPV33 e HPV45.18 A informação sobre a imunogenicidade das vacinas em pa‑ cientes imunocomprometidos e/ou HIV-positivos é limitada. Os dados sobre o esquema de três doses em infectados pelo HIV entre 7 e 12 anos de idade mostram segurança. Não há da‑ dos sobre o uso do esquema de duas doses para nenhuma das duas vacinas.19,20 Não há dados clínicos disponíveis sobre a equivalência das duas vacinas contra o HPV. No entanto, os níveis de anticorpos aceitáveis e a proteção contra o HPV16 e o HPV18 (tipos com‑ partilhados por ambas as vacinas) seriam esperados, seguindo cronograma de combinação. Recomenda-se que, ao iniciar o esquema com uma vacina, deve-se, sempre que possível, com‑ pletar com essa vacina. Em casos em que o esquema inclui combinação das duas vacinas contra o HPV inadvertidamente ou em decorrência de um evento adverso após uma vacina, a pessoa é considerada completamente imunizada contra a doença por HPV16 e HPV18 se um total de três doses de vacina foi aplicada, obedecendo-se o intervalo entre as doses.2,17 Segurança O comitê consultivo de segurança vacinal da OMS estabeleceu que as vacinas possuem excelente perfil de segurança. Estudos
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clínicos de ambas as vacinas descreveram reações adversas se‑ melhantes, como sintomas como dor, edema e eritema no local da aplicação da vacina, além de sintomas gerais como fadiga, queixas gastrointestinais, cefaleia, insônia e mialgia. Todavia, os eventos adversos tenderam a ser passageiros e brandos. Ne‑ nhuma das reações sistêmicas teve relação causal com a vacina contra o HPV. A Tabela 1 mostra a incidência de eventos adver‑ sos (EA) no Brasil após a aplicação da vacina HPV, segundo o Ministério da Saúde. Dentre os EA não graves, 606 casos (7,6/100.000 doses administradas) foram classificados como reação de ansiedade relacionada com a imunização.21 A Tabela 2 mostra os eventos graves após a vacina contra o HPV. Em relação à causalidade, as anafilaxias e a síndrome dolorosa complexa regional (SDCR) são classificadas como consistentes, e as paralisias, classificadas como reações de an‑ siedade relacionadas à imunização. As demais foram classifi‑ cadas como indeterminadas, pois possuem relação temporal consistente com a vacinação, entretanto, sem evidências na li‑ teratura para se estabelecer relação causal. Mais de 200 milhões de doses já foram aplicadas e a OMS continua a atestar o perfil de segurança da vacina. A OMS orienta sobre a importância da supervisão contínua e da in‑ vestigação epidemiológica, com destaque para a coleta de da‑ dos de alta qualidade, essenciais à interpretação de quaisquer eventos adversos após a vacinação.2
Tabela 1 Eventos adversos (EA) da vacina contra HPV no Brasil (março/2014 a fevereiro/2015) EA
Número
%
Inc*
Não graves
2.124
96,8
26,5
Graves
71
3,2
0,9
Total
2.195
100
27,4
* Incidência de EA por 100.000 doses administradas (total de 8.022.251 doses). Fonte: SIPNI/SIEAPV/Datasus/MS. Dados sujeitos à revisão.
Tabela 2 Eventos adversos graves (EAG) após a vacina contra HPV EAG
Número
Anafilaxia
16
Convulsão
21
Paralisia de Bell
3
Proteção cruzada A vacina contra o HPV, quando administrado o esquema com‑ pleto, confere proteção cruzada para outros tipos virais não con‑ tidos na vacina. A vacina quadrivalente promove resposta cru‑ zada contra o HPV31. Já a vacina bivalente induz resposta de anticorpos neutralizantes contra os HPV31, HPV33 e HPV45, promovendo proteção contra maior número de tipos virais2. Segundo a OMS, esses resultados são de particular impor‑ tância para os médicos, epidemiologistas e gestores a fim de que possam fazer recomendações sobre as situações em que cada tipo de vacina contra o HPV deva ser utilizada. Os HPV31, HPV33 e HPV45 estão presentes em considerável porcenta‑ gem de cânceres cervicais em nível mundial (4% para o HPV31, 33 e 6% para o HPV45). A proteção cruzada é um fato real, mas deve ser vista como um benefício plausível. Como os es‑ tudos das vacinas contra HPV não foram delineados para ana‑ lisar a proteção contra outros tipos, não havendo ajuste para múltipla infecção, todos os dados de proteção cruzada devem ser interpretados com cautela e como possível ganho adicio‑ nal.2,14-16 Embora as vacinas sejam muito eficazes, não estão incluí‑ dos todos os tipos de vírus associados com o câncer cervical. Dessa forma, como oferecem apenas proteção parcial, é neces‑ sária a manutenção do exame de Papanicolaou periodicamen‑ te, mesmo nas mulheres vacinadas, visando à prevenção do câncer do colo uterino. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que existem dois tipos de vacinas disponíveis contra o papilomavírus humano (HPV), a Cervarix® (bivalente) e a Gardasil® (quadrivalente), conhecer suas principais características e indicações, além de saber que o Ministério da Saúde do Brasil (por meio do Programa Nacional de Imunizações – PNI) adotou a quadrivalente. • Compreender que as vacinas contra o HPV são exclusivamente profiláticas e não apresentam indicação para tratamento de lesões ou infecção pelo HPV já existentes. • Conhecer os principais eventos adversos relacionados à vacinação contra o HPV. • Saber que a vacina contra o HPV também está indicada para meninos, embora ainda não comtemplada no calendário vacinal do PNI. • Entender o conceito de proteção cruzada.
Neurite ótica
3
Referências bibliográficas
Encefalomielite disseminada aguda (Adem)
4
1.
Trombose venosa profunda
2
Síndrome dolorosa complexa regional (SDCR)
2
Síndrome de Guillain-Barré
4
Púrpura trombocitopênica idiopática
3
Outras paralisias
13
Total
71
Fonte: SIPNI/SIEAPV/Datasus/MS.
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Vacina contra o papilomavírus humano (HPV): visão do ginecologista •
4.
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CAPÍTULO 10
VIOLÊNCIA SEXUAL: QUANDO SUSPEITAR E COMO ACOMPANHAR? Maria de Lourdes Caltabiano Magalhães João Tadeu Leite dos Reis
Definição Conforme definição da Agência de Notícias dos Direitos da Dentre as situações que permeiam a sociedade moderna, a Infância (ANDI), a violência sexual contra C/A tem origem violência contra a pessoa é indiscutivelmente o evento bioéti‑ nas relações desiguais de poder. Dominação de gênero, classe co da maior relevância, não somente pelos danos físicos e psi‑ social e faixa etária, sob os pontos de vista histórico e cultural, cológicos que causa, como também pelo número de ações ne‑ contribuem para a manifestação de abusadores e explorado‑ cessárias ao seu tratamento.1 res. A vulnerabilidade da criança e/ou adolescente, sua difi‑ Sabe-se que a violência sempre esteve presente na história culdade de resistir aos ataques e o fato de a eventual revelação da humanidade, se manifesta em todas as esferas do convívio do crime não representar grande perigo para quem o comete social e é uma realidade sentida em todo o mundo. Por esse são condições que favorecem sua ocorrência.5 motivo, tornou-se ponto de convergência das preocupações e temores de todos, independentemente da condição social, Incidência e prevalência econômica e de etnia.2 Pesquisa realizada pela Organização Mundial da Saúde O conceito de violência abrange violência física, negligên‑ (OMS) mostrou que 20% das mulheres e 10% dos homens cia, violência psicológica e violência sexual.3 foram vítimas de abuso sexual na infância, e 30% das pri‑ A Conferência Internacional da Organização das Nações Uni‑ meiras experiências sexuais são forçadas.6 A quantidade e a das (ONU) sobre População e Desenvolvimento no Cairo, em 1994, qualidade dos dados disponíveis em todo o mundo são rela‑ e posteriormente a da Mulher em Pequim, em 1995, lançaram lu‑ tivamente inferiores ao real, e sua comparação é difícil em zes sobre a questão da violência sexual, considerando ser uma im‑ virtude das definições, metodologias de coleta de informa‑ portante cesura nos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e ções, notificações e legislações diferentes. Não é possível adolescentes. Da mesma forma, o Conselho Econômico e Social avaliar com exatidão a prevalência da violência sexual a par‑ das Nações Unidas classificou a violência sexual como “um proble‑ tir das estatísticas da polícia ou de serviços que atendem es‑ ma de saúde pública” a ser combatido em todo o mundo e por to‑ ses casos, porque apenas pequena parte das vítimas denun‑ dos os governos, sugerindo a questão em sua plataforma de ações.2 cia ou procura atendimento.7 Acredita-se que as vítimas Define-se a violência sexual contra crianças e adolescentes tendem a silenciar sobre o assunto, seja por medo de repre‑ (C/A) como o envolvimento destes em atividades sexuais com sália, vergonha ou sentimentos de humilhação e culpa.8 um adulto ou com qualquer pessoa um pouco mais velha ou Apesar do tímido percentual de denúncias, a agressão sexual maior, entre as quais haja uma diferença de idade, de tamanho é um crime cada vez mais reportado, acometendo 12 milhões ou de poder, em que a criança ou o adolescente é usado como de mulheres a cada ano em todo o mundo.7 objeto sexual para gratificação das necessidades ou dos desejos Um artigo de 2015 da Coordenação de Enfrentamento da do adulto, sendo ela(e) incapaz de dar um consentimento cons‑ Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes da Secretaria ciente por causa do desequilíbrio no poder ou de qualquer inca‑ de Direitos Humanos do Paraná forneceu os seguintes dados pacidade mental ou física. Essa prática é considerada crime, sobre as denúncias de violência:9 mesmo se exercida por um familiar. Crianças e adolescentes • no ano de 2013, o Disque 100 recebeu e encaminhou 124.079 não estão preparados física, cognitiva, emocional ou socialmen‑ denúncias de violência contra C/A; desse total, 31.761 denún‑ te para enfrentar uma situação de violência sexual. A relação se‑ cias estão direcionadas ao contexto da violência sexual; xualmente abusiva é uma relação de poder entre o adulto que vi‑ • até novembro de 2014, foram recebidas 88.091 denúncias di‑ tima e a criança e/ou adolescente que é vitimizada(o).4 recionadas a C/A; dessas, 25% informavam casos de violên‑
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Violência sexual: quando suspeitar e como acompanhar? •
Classificação, quadro clínico e diagnóstico A violência sexual pode ocorrer em duas circunstâncias: intra‑ familiar e extrafamiliar.2 A violência sexual intrafamiliar ou incestuosa é definida como qualquer relação de caráter sexual entre um adulto e uma criança ou um adolescente, ou entre um adolescente e uma criança, quando existe um laço familiar ou relação de res‑ ponsabilidade. Na maioria dos casos, o autor é uma pessoa que a criança conhece, ama ou em quem confia. Essa modalidade é a que normalmente tem duração mais longa, e as sequelas para as vítimas do ponto de vista biopsi‑ cossocial são mais intensas. Já a violência sexual extrafamiliar ocorre fora do âmbito da família. O abusador é, na maioria das vezes, alguém que a criança e/ou o adolescente conhece e em quem confia (vizi‑ nhos ou amigos, educadores, responsáveis por atividades de lazer, médicos, psicólogos e psicanalistas, padres e pastores). Eventualmente, o autor da agressão pode ser uma pessoa to‑ talmente desconhecida. A violência sexual intra e extrafamiliar pode se expressar de diversas formas: • violência sexual sem contato físico: assédio sexual; abuso se‑ xual verbal; telefonemas obscenos; exibicionismo; voyeuris‑ mo; pornografia ou por meio da internet; • violência sexual com contato físico: são atos físicos genitais que incluem carícias nos órgãos sexuais, tentativa de relações sexuais, masturbação, sexo oral.
cia sexual; dessas, 84% eram denúncias de abuso sexual e 24% de exploração sexual; • no ranking das regiões que mais ofereceram denúncias de vio‑ lência sexual contra C/A em 2014, estão: Nordeste 30,7%; Su‑ deste 32,45%; Sul 16,44%; Norte 9,36% e Centro-oeste 10,41%.
As estatísticas mostram que, com frequência, a violência se‑ xual ocorre no lar, perpetrado pelo pai biológico ou padrasto com a “conivência” da mãe. Esta, geralmente, tem dificulda‑ de em identificar que a violência vem ocorrendo por medo de perder o companheiro ou por também ter sofrido violência sexual na sua infância e/ou adolescência, o que a deixa “imobilizada” para interromper a violência que a sua filha está vivendo. Em levantamento realizado no Adolescentro, ambulatório de vivência de violência sexual da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, de maio de 2005 a março de 2007, com 136 incidentes, encontrou-se a distribuição ilustrada na Figura 1.10 A pouca significância do dado quantitativo revela sua signi‑ ficância qualitativa; a escassa notificação está associada ao tabu cultural que cerca as questões da sexualidade. Há ainda um aspecto a ser levado em consideração: quando a violência sexual é em crianças, muitas vezes não se admite que sua pa‑ lavra possa ter a mesma credibilidade que se oferece à do agressor; tende-se a considerar seus relatos fantasiosos e achá-las incapazes de diferenciar o lúdico do real, protegendo, incompreensivelmente, o abusador.10
Pai
18 15
Padrasto 14
Amigo Vizinho (a)
10
Tio
9
Primo (a) Vínculo
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8 6
Conhecido Desconhecido
5
Irmão
4
Avô
3
Profissional
3
“Ficante”
2
Outros
2 1
Mãe/madrasta 0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
20
Porcentagem
Figura 1 Distribuição dos autores por vínculo com a vítima, em porcentagem.
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Alguns autores subdividem essa categoria em com penetração, podendo ser penetração vaginal ou anal, com pênis, dedos, lín‑ gua ou qualquer outro objeto. Independentemente da forma de violência sexual, é importante ressaltar que mesmo aquela sem contato físico pode ter consequências biopsicossociais importantes a essa criança e/ou adolescente, e por isso é tam‑ bém considerada violência sexual; em razão das concepções de gênero seculares em nossa sociedade, tende-se a considerar violência sexual “apenas” quando ocorre penetração.10 Para não se ter dúvida, a definição de estupro deve sempre ser lem‑ brada: “qualquer forma de coito (vaginal, anal, oral ou manipu‑ lação genital), se for contra o consentimento inteligente e res‑ ponsável da vítima, seja ela do sexo feminino ou masculino”. Como a violência contra C/A apresenta-se sob diversas for‑ mas, um sintoma ou sinal isolado não permite afirmar sua existência. Por esse motivo, é fundamental o olhar atento e crítico da equipe de saúde mediante os problemas identifica‑ dos – seja de ordem física, sexual ou emocional – procurando a sua correlação com o relato da possível vítima, dos familiares ou pessoas de sua convivência sobre o ocorrido.11 Os sintomas podem se manifestar logo após a agressão, ou em médio e longo prazo.12
Transtornos geniturinários Lesões na área genital e no períneo: observar presença de dor, sangramento, infecções, corrimento, hematomas, cicatrizes, irritações, erosões, assaduras, fissuras anais, hemorroidas, pregas anais rotas ou afrouxamento do esfíncter anal, dimi‑ nuição do tecido ou ausência himenal, enurese, infecções uri‑ nárias de repetição sem etiologia definida.
Transtornos psicológicos • Aversão ao contato físico, apatia ou avidez afetiva; • retardo psicomotor sem etiologia definida, com melhora quando a criança se separa da família (hospitalização); • transtorno do sono ou da alimentação; • episódios de medo e pânico; • isolamento e depressão; • conduta agressiva e irritabilidade; • interesse precoce em brincadeiras sexuais ou conduta sedutora; • choro fácil sem motivo aparente; • comportamento regressivo; • comportamento autodestrutivo; • comportamento submisso; • desenho ou brincadeiras que sugerem violência; • baixo nível de desempenho escolar; Manifestações clínicas11 • fugas, mentiras, furto; Transtornos em pele, mucosas e tegumento • tentativa de suicídio; • Contusões e abrasões, principalmente em face, lábios, náde‑ • fadiga; gas, braços e dorso; • baixa autoestima; • lesões que reproduzam a forma do objeto agressor (fivelas, • aversão a qualquer atividade de conotação sexual. cintos, dedos, mordedura); • equimoses e hematomas em tronco, dorso e nádegas, indi‑ Atendimento, tratamento, prognóstico e prevenção cando datas diferentes da agressão; • alopecia resultante de arrancamento brutal e repetido dos cabelos; O hospital é o local para onde se dirigem C/A com lesões, às • queimaduras em dorso e genitais, com marcas do objeto (ci‑ vezes graves, e em risco de vida, e é o espaço em que se pode garro, por exemplo); atuar para interromper o círculo dessa violência.13 • lesões endobucais ocasionadas por laceração do freio da lín‑ O atendimento requer a atenção de uma equipe multipro‑ gua por tentativa de introdução forçada de alimentos; fissional, em que os papéis e responsabilidades de cada mem‑ • síndrome da "orelha de lata": equimose unilateral, edema ce‑ bro devem estar bem definidos, conforme a estrutura disponí‑ rebral ipsolateral e hemorragia retiniana; vel no serviço. O registro e a notificação dos casos também • fácies de boxeador, por traumatismo facial. devem estar sistematizados na divisão de tarefas da equipe. Caso o hospital ou a unidade de saúde não possua um progra‑ Transtornos musculoesqueléticos ma específico para o atendimento a vítimas de violência se‑ • Fraturas múltiplas: ossos longos em diferentes estágios de xual, o médico pode realizar o primeiro atendimento e tomar consolidação, secundárias à torção com sacudidelas violentas, as medidas necessárias. com rápida aceleração-desaceleração; Segundo o Ministério da Saúde: • fraturas de costelas em menores de 2 anos; O ideal é que esse tipo de atendimento seja prestado por equipe multiprofissional, composta por médicos, psicólogos, enfermeiros e as• fraturas de crânio ou traumatismo craniano por choque direto sistentes sociais. Entretanto, a falta de um dos profissionais da equiou sacudidas vigorosas concomitantes com edema cerebral, pe – com exceção do(a) médico(a) – não inviabiliza o atendimento.14 hematoma subdural e hemorragia retiniana, podendo tam‑ bém se manifestar por convulsões, vômitos, cianose, apneia e alterações de déficit motor; A relação do profissional com a pessoa que acompanha a • hematoma subperiosteal de diferentes estágios (síndrome da criança ou o(a) adolescente deve ser firme, sincera e, ao mes‑ criança espancada). mo tempo, demonstrar a sensibilidade de que esse tipo de pro‑ blema requer acolhimento com carinho e respeito, evitando‑ Transtornos viscerais -se a discriminação de qualquer natureza. Ruptura subcapsular de rim e baço, trauma hepático ou de O espaço físico hospitalar para atendimento das vítimas mesentério que necessite de intervenção cirúrgica de urgência. deverá refletir a preocupação com a privacidade, sem, no en‑
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Violência sexual: quando suspeitar e como acompanhar? •
tanto, estigmatizar as crianças e os adolescentes ali atendidos, com placas indicativas nas salas para atendimento a vítimas de violência. O espaço ideal deve constar de sala privativa para atendimento onde possam atuar o assistente social e o psicó‑ logo, além de um consultório médico com sala de exame gine‑ cológico e pequeno armário contendo medicamentos para a profilaxia de DST/aids e anticoncepção de emergência. Deve dispor ainda de centro cirúrgico, mesmo que pequeno, para os atendimentos que necessitem de correção cirúrgica de urgên‑ cia e para a realização de abortos previstos por lei.1 A Figura 2 ilustra um fluxograma geral para atendimento às pessoas vítimas de violência.13 Atendimento médico Ao ser procurado para atender uma criança ou um(a) adoles‑ cente vítima de violência sexual, o profissional médico deve agir de forma indiscriminada, tanto em relação ao paciente quanto aos seus familiares, segundo o que preceitua o Código de Ética Médica em seu art. 1º: “A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação de qualquer natureza”.15 Esse atendimento, de maneira ideal, deveria acontecer nos Centros de Referência ao Atendimento às Vítimas de Violência Sexual, prioritariamente até 72 horas do ocorrido, para a correta profilaxia de DST virais e não virais, da gravi‑ dez indesejada e para o atendimento multiprofissional. Os profissionais, além das providências legais, fazem um acom‑ panhamento da vítima e de seus familiares, atitude extrema‑ mente desejável naqueles casos em que se questiona o pai ou padrasto como agente ativo. Só o efetivo acompanhamento poderá coibir recorrências de agressão sexual dentro da fa‑ mília, além de ajudar a garantir a segurança física da vítima.2 Em qualquer situação, a recusa médica ao atendimento é caracterizada como omissão de socorro de acordo com o art.
Recepção
Abertura de prontuário
Atendimento: médico
Atendimento: especializado
Assistente social
Exames laboratoriais Tratamento das lesões
Comissão de maus-tratos
Figura 2 Fluxograma geral para atendimento às pessoas vítimas de violência.13
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13, §2º, do Código Penal Brasileiro, e a exigência de apresenta‑ ção de boletim de ocorrência (BO) e laudo do Instituto Médico Legal (IML) para atendimento é ilegal.16,17 O atendimento médico deve ser realizado sem a preocupa‑ ção de estar prejudicando a avaliação pericial, pois no ordena‑ mento jurídico brasileiro consta que o bem maior do indivíduo é a sua própria vida. Nos casos de violência, todos os dados obtidos a respeito da vítima devem ser cuidadosamente registrados no prontuá‑ rio, uma vez que a justiça pode solicitar cópia da documenta‑ ção da unidade de saúde. O profissional deve realizar a anam‑ nese e o exame físico de forma cuidadosa. No caso de crianças, o exame deverá ser realizado, se possível, na presença do res‑ ponsável. Os(as) adolescentes e as crianças maiores devem ser orientados previamente sobre todos os procedimentos que se‑ rão realizados. Para a anamnese detalhada, a identificação dos casos pode ser feita por meio do relato da vítima (no caso de crianças, adolescentes e pessoas com deficiência cognitiva, por familia‑ res ou responsáveis) ou por evidências de lesões genitais du‑ rante exame clínico; nessas circunstâncias, a abordagem pro‑ fissional é facilitada. No entanto, os relatos espontâneos e os sinais de violência não estão evidentes em um número expres‑ sivo de casos.18 Exame físico completo com especial atenção para: boca, mamas, genitais, região perineal, nádegas e ânus. É importan‑ te descrever detalhadamente as lesões.1,19 Ao exame ginecológico, usar sempre um par de luvas, pois o fato de tocar no(a) cliente ou no material de coleta de exa‑ mes com a mão pode deixar DNA do(a) médico(a) no material coletado. O médico deve ser criterioso, com descrição minuciosa na ficha de atendimento/prontuário das lesões encontradas; se possível com registro fotográfico. Coleta de material para a identificação do(a) agressor(a):1,19 • das roupas do(a) cliente: deixar secar em ar ambiente e guar‑ dar em saco de papel; • dos pelos púbicos: caso tenha secreção na região dos pelos púbicos, coletar uma amostra e acondicionar em papel, deixar secar ao ar ambiente e guardar em envelope comum; • de conteúdo vaginal e endocervical, oral ou anal, com swab de algodão. O material deve ser fixado em papel de filtro poroso, estéril, deixado secar em ar ambiente e ser armazenado em en‑ velope comum. Identificar com nome da vítima, data da agres‑ são e da coleta. O material deve ficar à disposição da Justiça; • caso haja microscópio disponível, deve-se realizar a pesquisa de espermatozoide em lâmina a fresco, com solução salina; • reparo das lesões: realizar, se possível, no local do atendimen‑ to ou no centro cirúrgico, quando necessário, e promover a co‑ bertura com antibióticos e analgésicos.1 Exames laboratoriais e profilaxia • Bacteriologia do conteúdo vaginal e anal; • cultura para Neisseria gonorrhoeae, pesquisa de Chlamydia trachomatis e papilomavírus humano (HPV), quando houver suporte laboratorial;
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• solicitar a sorologia para sífilis, hepatites B e C, anti-HIV e tes‑ te de gravidez; exames necessários para avaliação do estado anterior ao episódio de violência. A sorologia anti-HIV deve ser realizada após o compromisso verbal no momento do atendimento de emergência;19 • a profilaxia das DST não virais deve ser iniciada até 72 horas após a violência. Tratamento profilático recomendado pelo Ministério da Saúde Adultos e adolescentes com mais de 45 kg: penicilina benzati‑ na 1.200.000 UI intramuscular (IM) + azitromicina 1,0 g, via oral (VO), com ou sem ceftriaxona, 1,0 g, VO. Crianças e adolescentes com menos de 45 kg: ceftriaxona 125 mg, penicilina benzatina 600.000 UI, IM + azitromicina 20 mg/kg (máximo 1,0 g), VO, dose única. O metronidazol e outros derivados imidazólicos podem apresentar interações medicamentosas importantes com ritonavir; por esse motivo, deve-se evitar o uso concomitante. Esquema alternativo com quinolonas: ofloxacino, ceftriaxona 1,0 g, IM, ciprofloxacino, 400 mg, a cada 12 horas durante 3 dias. Contracepção de emergência: até 5 dias, deve ser realizada em todas as pacientes expostas a gravidez por contato certo ou duvidoso com sêmen, independentemente do período do ciclo menstrual em que se encontrem e que já tenham tido a primeira menstruação; o risco de gestação advinda do estu‑ pro oscila de 4 a 7%. Administrar contracepção hormonal à base de levonorgestrel em dose única oral de 1,5 mg ou 2 comprimidos de 0,75 mg (primeira dose no momento imedia‑ to ao atendimento e a segunda após 12 horas).1,19 A contracep‑ ção de emergência deve ser utilizada preferencialmente nas primeiras 24 horas, mas pode-se administrar com uma segurança contraceptiva menor até o 5º dia após o ato de vio‑ lência sexual. Prevenção de hepatite B • Indicada em casos de violência com exposição ao sêmen, san‑ gue ou outros fluidos corporais do agressor até 14 dias após a violência sexual; • contraindicada em mulheres e crianças imunizadas correta‑ mente ou em situações de abuso crônico; • dose única de imunoglobulina humana anti-hepatite B, IM, 0,06 mL/kg. Prevenção de infecção pelo HIV O HIV acomete 0,8 a 2,7% das pacientes, com risco variável de acordo com o número e o perfil dos agressores, se houve ou não ejaculação e o local das lesões (sexo anal 0,1 a 3%; vaginal 0,08 a 0,2%; oral 0,0 a 0,04%); maior suscetibilidade em me‑ ninas em razão da imaturidade da mucosa vaginal. A prevenção é indicada nos casos de penetração anal/vagi‑ nal com ou sem coito oral; deve ser iniciada até 72 horas após o crime sexual e mantida por 4 semanas. É contraindicada se for usado preservativo masculino ou feminino durante o crime sexual ou se for realizado o teste rá‑ pido anti-HIV no agressor com resultado negativo.
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O acompanhamento ambulatorial deve ser semanal nas 4 primeiras semanas, e deverá ser solicitado o hemograma com‑ pleto, provas de função hepática e sorologia. Em razão do dinamismo da indicação das drogas antirre‑ trovirais, sempre que houver necessidade de as utilizar, deve‑ -se reavaliar qual o melhor esquema a ser utilizado. Outras medidas Realizar vacinação antitetânica, em caso de ferimentos perfu‑ rocortantes ou contato com a terra. Quando a violência sexual resultar em gravidez, está pre‑ visto no Código Penal Brasileiro, em seu art. 128, inciso II, a realização de aborto legal. As requisições podem partir tanto das autoridades policiais quanto do Ministério Público, como do Juiz de Direito, nos casos de apuração criminal; exclusiva‑ mente do Juiz de Direito, nos casos civis; e da chefia imediata, nos casos administrativos. Seguimento laboratorial O acompanhamento sorológico deverá estar completo em um espaço de 6 meses, quando as possibilidades de viragem soro‑ lógica serão mínimas. Em 2 semanas, devem-se repetir: hemograma completo, plaquetas, TGO e TGP. Em 6 semanas e em 3 meses: anti-HIV e VDRL. Em 6 meses: anti-HIV e sorologia para hepatites B e C. Notificação dos casos de violência: assistência médica e a lei Embora todas as pessoas tenham o dever de notificar às autori‑ dades quando ocorre um caso de vitimização de C/A, os profis‑ sionais da saúde que interagem com esse segmento são os maiores responsáveis por essa medida, tornando possível de‑ sencadear os mecanismos de proteção. Desses profissionais, o médico tem um papel fundamental na identificação, tratamen‑ to e prevenção de C/A vítimas de maus-tratos, por frequente‑ mente atender casos dessa natureza. O não cumprimento des‑ sa responsabilidade decorre da falta de conhecimento da lei por alguns profissionais da saúde, ou por eles não estarem con‑ vencidos de que devem exercer esse papel.2 O art. 245 do ECA define como infração administrativa a não comunicação de violência e maus-tratos pelos médicos, professores ou responsáveis por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola, à autoridade competente, sujeita a multa de 3 a 20 salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.20 O ECA não cobra do profissional ou do gestor das instituições de saúde uma atitude ou uma ação policial, nem deverá haver qualquer equívoco nesse sentido. O que cabe ao profissional de saúde é fazer chegar às autoridades competentes a necessária infor‑ mação de que a criança ou o(a) adolescente está sendo vítima de maus-tratos (ou há suspeita dessa ocorrência). Vale ressal‑ tar que a notificação não se caracteriza como um ato pessoal, mas uma obrigação legal do ponto de vista profissional e ins‑ titucional, seja por meio da Comissão ou da Direção do Servi‑ ço de Saúde.
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Violência sexual: quando suspeitar e como acompanhar? •
A violência sexual contra menores de 18 anos de idade deve ser obrigatoriamente comunicada ao Conselho Tutelar pelo serviço que atendeu o(a) paciente, para o devido acompanha‑ mento policial, já que pela lei atual esse processo será automá‑ tico, não dependendo de representação dos responsáveis pela vítima.19 Os Conselheiros, além das providências legais, fazem um acompanhamento da vítima e de seus familiares. Do ponto de vista legal, o crime de estupro sofreu significa‑ tivas alterações com a edição da Lei n. 12.015/2009, que am‑ pliou o sujeito passivo do tipo, abrangendo, a partir de então, homens e mulheres, bem como absorveu o crime de atentado violento ao pudor.21 Houve a fusão dos anteriores art. 213 (es‑ tupro) e art. 214 (atentado violento ao pudor), e a substituição do art. 224 (violência presumida) pelo novo art. 217 (estupro de vulnerável): “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato li‑ bidinoso com menor de 14 (quatorze) anos”. Pena: reclusão de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. Fica evidente que a intenção do le‑ gislador com essas alterações foi punir com mais vigor os que cometem crimes contra a liberdade sexual, principalmente quando há o envolvimento de menores de idade. O crime de estupro de vulnerável, que substitui o antigo estupro median‑ te violência presumida, ocorre qualquer que seja o meio de execução, e ainda que haja o consentimento da vítima.17,21 A equipe de saúde deve buscar identificar organizações e serviços disponíveis na comunidade que possam contribuir com a assistência à vítima. Os membros da rede de proteção são responsáveis pela de‑ fesa, pelo atendimento e pela responsabilização.13 Para melhor assistência à vítima, esses membros devem trabalhar integra‑ dos, viabilizando o processo das ações em rede. Considerações finais Além da violência estrutural a que são submetidas as crianças e os(as) adolescentes em decorrência das desigualdades sociais existentes em nosso meio, também são violentadas dentro dos seus lares de inúmeras maneiras, muitas vezes silenciosa e con‑ tinuamente. Todas as formas de violência podem causar danos ao seu desenvolvimento biopsicossocial, em curto, médio e lon‑ go prazo. É preciso que se compreenda que o fenômeno da vio‑ lência ultrapassa o domínio exclusivo de uma área do conheci‑ mento, sendo necessário o atentamento para as múltiplas determinações do singular e do coletivo e o envolvimento e o en‑ frentamento da questão também pelo médico, o que se dá pelo seu comprometimento com a causa da criança e do adolescente. É importante sempre lembrar que, no caso de violência se‑ xual, o acompanhamento deve ser de mais ou menos 5 anos, sempre multiprofissional, interdisciplinar e interinstitucional; e a “alta”, em qualquer tipo de violência, só é concedida após a análise de toda a equipe para se ter a certeza de que todas as questões foram bem elaboradas.13 No Brasil, o fenômeno da violência tem mobilizado dife‑ rentes áreas que procuram estabelecer parcerias e buscam diferentes estratégias de prevenção e intervenção, no enfren‑ tamento do problema. Essa prática visa assegurar o cumpri‑ mento de princípios legalmente assegurados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), quanto às políticas e progra‑
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mas voltados à violência social e interpessoal contra crianças e adolescentes. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Entender o conceito de violência e principalmente da violência sexual. • Entender a importância da equipe de saúde e do papel do médico no atendimento à vítima de violência sexual. • Saber como atender e conduzir o atendimento, tanto do ponto de vista médico como legal, às vítimas de violência. • Estar sensibilizado(a) para cooperar na proteção à vítima de violência.
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CAPÍTULO 11
COALESCÊNCIA DE PEQUENOS LÁBIOS Erika Krogh José Alcione Macedo Almeida
Conceito Caracteriza-se pela aderência das bordas internas dos pequenos lábios sobre o introito vaginal, formando-se na linha mediana uma membrana translúcida que obstrui parcial ou completa‑ mente o canal vaginal (Figura 1), por vezes existindo apenas um orifício abaixo do clitóris por onde escoam a urina e o sangue menstrual.1,2 Também é denominada de sinéquia vulvar e de aderência, aglutinação ou fusão dos pequenos lábios. Epidemiologia Acomete em torno de 0,6 a 5% das meninas pré-púberes, com um pico de incidência entre 13 e 23 meses.3 Raramente é en‑ contrada em recém-nascida. Fisiopatologia Ainda sem consenso, a etiologia é atribuída a causas diversas, mas acredita-se que a principal seja o hipoestrogenismo, teo‑ ria que se apoia no fato de ser rara em meninas até a 6ª sema‑ na de vida, as quais estão ainda sob os efeitos dos estrógenos maternos circulantes.4
Figura 1 Coalescência de pequenos lábios com aderência dos bordos internos dos pequenos lábios sobre o introito vaginal. Observa-se na linha mediana uma membrana translúcida que obstrui completamente o canal vaginal.
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A coalescência dos pequenos lábios geralmente é adquirida, mas também pode ser congênita. Nesse caso, ocorre entre o 3º e o 4º mês de vida embrionária.5 A maioria dos autores consi‑ dera como uma condição adquirida.6 A patogênese não é bem estabelecida, mas há várias teo‑ rias: inflamação da mucosa dos lábios, resultante de higiene precária, vulvite ou irritação mecânica e uma certa proprieda‑ de viscosa decorrente do exagerado hipoestrogenismo, o que é normal na infância.6 A característica da pele é outro fator do qual dependeria a ocorrência dessa alteração. Pele delicada e hipopigmentada seria mais passível de sofrer a adesão dos lábios menores.7 Processos autoimunes inflamatórios, como ocorre no lí‑ quen, penfigoide cicatricial, psoríases e eczemas, poderiam fa‑ vorecer a coalescência dos pequenos lábios.7 Para alguns autores, o traumatismo vulvar, inclusive por abu‑ so sexual, favorece o processo aderencial dos pequenos lábios.4 Diagnóstico Faz-se o diagnóstico clinicamente pela inspeção da vulva, quando se detecta a linha de união dos pequenos lábios. Na maioria das vezes essa união é incompleta e percebe-se um pequeno pertuito ao longo da linha mediana (Figura 2). Quan‑ do há dúvida, a incidência de luz direta sobre essa linha me‑ diana mostra, por transparência, a verdadeira situação anatô‑ mica. O achado incidentalmente no exame de rotina não é raro, pois muitas crianças são assintomáticas e a descoberta é feita pela mãe ou pelo médico pediatra. Outras vezes, as pacientes queixam-se de dificuldade para urinar ou da sensação de perda de urina após o ato miccional. Pode cursar com infecção urinária. Manifestações como prurido ou ardor vulvar acompanhado ou não de corrimento vaginal também podem ser queixas. Fazendo-se a inspeção vulvar e leve afastamento lateral dos grandes lábios, percebe-se a fusão dos pequenos lábios na linha mediana, apresentando-se com coloração pálida, geral‑ mente com transparência (Figura 2).7
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Figura 2 Coalescência de pequenos lábios com pequeno pertuito ao longo da linha mediana.
A aderência pode ser fina, avascular e translúcida ou uma rafe espessa na linha mediana vulvar. Em raras ocasiões, pode ser confundida genitália ambígua, agenesia vaginal ou hímen imperfurado.7 Tratamento Em relação ao tratamento, independentemente da terapêutica preconizada, o médico deve orientar a mãe ou a pessoa res‑ ponsável pela criança sobre a necessidade de boa higiene local, explicando detalhadamente sobre a doença em questão e como poderá ser feita a correção com o tratamento estipulado. Em crianças assintomáticas com coalescência parcial, na ausência de complicações, há quem preconize a conduta ex‑ pectante, pela possibilidade de resolução com melhora da hi‑ giene, principalmente quando a criança deixa de usar fraldas. Se a coalescência persistir até o início da puberdade, a estroge‑ nização fisiológica da mucosa pode promover a resolução es‑ pontaneamente.8 Nos casos sintomáticos, diferentes tratamentos são relata‑ dos. Quase sempre o tratamento tópico é suficiente, e é neces‑ sário que o médico tenha habilidade para convencer a mãe da criança a ser perseverante e fazer corretamente o tratamento. Recomenda-se uso tópico de creme à base de estriol ou pro‑ mestriene uma vez ao dia, aplicado diretamente sobre a linha média da sinéquia, massageando a região (pode-se usar coto‑ nete). Geralmente, a mãe ou provedora é orientada a realizar o procedimento por 15 dias. Se necessário, dá-se um intervalo de 2 semanas do uso do creme e repete-se o tratamento por mais 15 dias. Após a separação, mantém-se a região higieniza‑ da e umedecida por período não inferior a 1 mês. O uso de apenas vaselina pura, com massagem delicada verticalmente no sentido uretra-ânus, duas vezes ao dia após o banho e higiene local, também surte bons resultados. Indica-se, ainda, a betametasona em creme a 0,05%. Deve‑ -se aplicar quantidade suficiente para cobrir a fusão, duas ve‑ zes ao dia, fazendo leve pressão digital no sentido uretra-ânus,
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por no máximo 45 dias. As reações adversas com o uso da be‑ tametasona são eritema, foliculite, prurido, vesículas, cresci‑ mento de pelos finos e atrofia da pele.9 O grupo de Ginecologia da Infância e Adolescência do Hos‑ pital das Clínicas da Universidade de São Paulo, nas últimas três décadas, não tem indicado cirurgia, pois o tratamento clí‑ nico tem resolvido, mesmo que em alguns casos demore mais de 1 mês. Usou-se no passado o creme de estrógenos conjuga‑ dos, mas a sua ação sistêmica pode determinar surgimento de broto mamário ou escurecimento da região dos pequenos lá‑ bios, quando o uso é prolongado.10 Após uma intervenção cirúrgica para separar os lábios, é alta a possibilidade de voltarem a se unir, e forma-se uma cica‑ triz mais fibrosa que a original, sendo mais difícil seu trata‑ mento, além dos riscos da anestesia e do trauma psicológico que há em todo procedimento cirúrgico. Após abertura da fusão, o pediatra deve orientar a manter a região sempre lubrificada com óleo infantil ou cremes à base de vitamina A e D, a fim de evitar recidivas. Prognóstico O tratamento incorreto geralmente é a razão de sua falha. A taxa de recorrência é em torno de 23 a 40%, e não há diferença em relação aos tratamentos propostos.11 Deve-se informar os pais e responsáveis que não se trata de uma malformação genital e, assim, acalmá-los, esclarecendo o real diagnóstico, tratamento e bom prognóstico. Deve-se orientar quanto aos preceitos de higiene da genitália da crian‑ ça, já que em muitos casos as más condições de higiene e a presença de vulvovaginite favorecem a recidiva.1 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Entender que a coalescência dos pequenos lábios se configura pela aderência dos pequenos lábios da vulva na linha mediana. • Saber que a coalescência de pequenos lábios também se denomina como sinéquia vulvar, aderência de pequenos lábios e aglutinação dos pequenos lábios. • Compreender que a adesão pode ser total, mas é mais frequente na forma parcial, quando há pertuito por onde escoa a urina. • Saber que o pico de incidência se dá entre 13 e 23 meses de idade. • Identificar que a causa mais provável de coalescência de pequenos lábios é o hipoestrogenismo. • Compreender que o diagnóstico é clínico pela inspeção da vulva, quando se detecta a linha de união dos pequenos lábios. Na maioria das vezes, essa união é incompleta e percebe-se um pequeno pertuito ao longo da linha mediana. • Entender que o tratamento clínico é o preferencial, massageando-se a linha de aderência com creme de estriol ou mesmo vaselina.
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Coalescência de pequenos lábios •
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CAPÍTULO 12
ASPECTOS IMPORTANTES DO DIAGNÓSTICO E ACOMPANHAMENTO PRÉ-NATAL DE ADOLESCENTES Cecília Gomes Vianna
Aspectos da epidemiologia da gravidez precoce no Brasil A gravidez na adolescência tem sido identificada como um dos grandes problemas de saúde pública tanto no Brasil como em muitos outros países. Quando são analisados os possíveis fa‑ tores etiológicos ligados ao incremento da gestação nessa fai‑ xa etária, pode-se perceber a complexidade desses fatores, pois eles apontam para a existência de uma enorme rede mul‑ ticausal, tornando, assim, os adolescentes vulneráveis a essa situação.1 As taxas de fecundidade caíram de forma acelerada no Bra‑ sil nos últimos 50 anos. A taxa de fecundidade total (TFT) era de 6,3 filhos por mulher em 1960, caiu para 5,8 filhos em 1970, reduziu para menos da metade em 2000 (2,4 filhos) e chegou a 1,9 filho por mulher em 2010. Contudo, embora a TFT brasi‑ leira já esteja muito baixa, a gravidez na adolescência ainda é relativamente alta. As taxas específicas de fecundidade (TEF) no Brasil, de acordo com os últimos três censos, indicam uma queda em todos os grupos etários, menos entre as adolescen‑ tes (15 a 19 anos).2,3 O censo de 2010, porém, mostrou que a fecundidade conti‑ nuou caindo não só em todos os grupos etários acima dos 20 anos, mas inclusive entre as mulheres mais jovens. A taxa era de 74,8 nascimentos para cada 1.000 adolescentes e jovens (15 e 19 anos) em 1991, subiu para 89,5 por 1.000 em 2000 e teve um declínio para 67,2 por 1.000 em 2010.2,3 Mesmo com a queda da fecundidade em adolescentes e jo‑ vens (15 a 19 anos) entre 2000 e 2010, o Brasil continua tendo, nesse grupo etário, uma fecundidade específica bem mais ele‑ vada não só em relação aos países europeus, mas inclusive em relação a outros países com menor grau de desenvolvimento e urbanização, como África do Sul, Indonésia, Tailândia, China e Líbia. No caso deste último, o contraste é marcante, pois a Líbia possui uma TFT de 2,38 filhos por mulher, mas possui uma fecundidade de apenas 2,5 nascimentos por 1.000 mães adolescentes contra uma taxa de 70 por 1.000 mães adoles‑ centes no Brasil.2
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Preocupante foco da problemática da gravidez precoce no Brasil é o fato de a porcentagem de queda total ser bem me‑ nor entre as classes sociais mais baixas. Quando se olha para as causas multifatoriais da gravidez precoce na adolescência, é possível notar no Brasil algumas peculiaridades vivencia‑ das predominantemente por meninas de famílias mais po‑ bres, como: escolas de má qualidade, absenteísmo escolar, ausência de projeto de vida e consequentes uniões consen‑ suais precoces com o fito inconsciente de fuga. Esses pontos fazem parte dos fatores que corroboram a ocorrência de ges‑ tação na adolescência, contribuindo para a ideia de que exis‑ te uma complexa rede causal para a gravidez precoce, assim também como pulverizando a responsabilidade do fenôme‑ no tanto para o Estado, para os serviços de saúde, para a fa‑ mília, como para toda a sociedade brasileira. É necessário que as famílias e o Estado se preparem para oferecer informações e métodos de regulação da fecundidade para todos os adolescentes e jovens, com equidade de gênero. É preciso colocar em prática o que está definido na Constitui‑ ção Brasileira e na Lei n. 9.263/1996 (Lei do Planejamento Fa‑ miliar), ou seja, é preciso que o Estado forneça informações e meios para o pleno exercício dos direitos reprodutivos e para a prática do sexo seguro, para que a juventude possa usufruir de uma sexualidade prazerosa e sem medo ou embaraços de qualquer ordem, gozando de uma efetiva autonomia entre sexualidade e procriação.2 A fase da adolescência traz o confronto com as tarefas im‑ portantes para o seu desenvolvimento, como construção da sua identidade, procura de novas relações significativas (ami‑ gos, namorados), afirmação da personalidade, exercício pleno da sexualidade e função reprodutora, autoestima e indepen‑ dência. Essas experiências adquiridas são necessárias e fun‑ damentais para o seu amadurecimento psicossocial. Dessa forma, o bem-estar psicológico da adolescente está relaciona‑ do tanto às influências das diversas situações vivenciadas no seu cotidiano quanto às experiências e transformações sofri‑ das nessa época.4
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Diagnóstico da gravidez na adolescência O início precoce do pré-natal constitui ação importante para qualquer caso de gravidez. Entretanto, a revelação tardia sobre a existência da gestação é comum na adolescência, por medo da reação, principalmente, dos familiares. É comum o julga‑ mento por parte dos cuidadores e da sociedade, culpabilizan‑ do de forma isolada a menina por ter engravidado. Dessa forma, sabendo-se que o julgamento é fator de não confiança e entrega por parte das adolescentes, os profissionais de saúde, por sua vez, devem assumir postura com um olhar mais amplo sobre a ocorrência da gravidez na adolescência. A ocorrência de gravidez na faixa etária da adolescência possui causa multifatorial complexa, listando-se os fatores mais prevalentes: • desestruturação familiar; • falta de diálogo entre pais e filhos; • desproteção por parte dos cuidadores; • maturação precoce; • iniciação sexual precoce; • casamento e união consensual precoce, muitas vezes em de‑ corrência de desestruturação familiar; • escolas desestruturadas com apoio e vinculação deficiente entre alunos e educadores; • absenteísmo escolar; • ausência de projeto de vida; • informação sexual sobre métodos contraceptivos e doenças se‑ xualmente transmissíveis nas escolas e centros de saúde, por meio de abordagem pouco eficaz, encontrando-se pouca rela‑ ção entre o conhecimento e a mudança de comportamento; • profissionais de saúde com pouco manejo em relação às pecu‑ liaridades e dificuldades da adolescência; • desinformação entre os profissionais de saúde a respeito dos direitos do adolescente; • desejo inconsciente de gravidez com o pensamento mágico de que uma gestação e um bebê trarão uma vida melhor.4-6 O profissional de saúde que acompanha a adolescente deve ro‑ tineiramente indagar a respeito dos ciclos menstruais, tanto por se tratar de período comum de ocorrência de irregularida‑ de menstrual como para rastrear gravidez. Nos dois primeiros anos de idade ginecológica, é habitual a ocorrência de ciclos ano‑ vulatórios irregulares com até 2 meses sem menstruar, sendo necessário, portanto, perguntar sobre a prática de relações sexuais, mesmo em idades mais precoces, como abaixo de 14 anos. O diagnóstico de gravidez é feito por dosagem sanguínea do hormônio gonadotrofina coriônica humana (hCG), costuman‑ do-se dosar apenas a fração beta do hCG. Enquanto o beta‑ -hCG sanguíneo pode estar positivo já no primeiro dia de atra‑ so menstrual, os testes com beta-hCG urinário são melhores quando feitos após 1 ou 2 semanas de atraso menstrual, para se evitar falso-negativos.7 Em gestações mais avançadas, pode-se identificar o saco gestacional (estrutura que abriga o embrião) a partir da 5ª se‑ mana de gravidez por meio da ultrassonografia transvaginal ou a partir da 7ª semana através da ultrassonografia abdomi‑
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nal.7 É importante, contudo, levar em consideração que a qua‑ se totalidade das gestações na adolescência não foi planejada nem mesmo desejada e, assim, pode-se constituir opção mais cuidadosa obter o diagnóstico de gravidez primeiramente via teste laboratorial para uma acolhida mais suave e em ambien‑ te mais confortável e familiar. É comum a adolescente desconhecer a data da última menstruação e assim, após a confirmação laboratorial de gra‑ videz, deve-se solicitar rotineiramente ecografia para o cálculo da idade gestacional. Uma datação precoce constitui um dos pilares para um pré-natal cuidadoso, possibilitando um acom‑ panhamento preciso do crescimento fetal e evitando compli‑ cações no final da gestação. A ecografia, portanto, deve ser realizada o mais precoce‑ mente possível, a fim de não se perder o melhor momento para a datação, que é de até 14 semanas, período em que ainda é possível obter o comprimento cabeça-nádega do feto. Dessa forma, o profissional que diagnosticou a gravidez, antes mes‑ mo de encaminhar para o pré-natal, deve prescrever o ácido fólico e solicitar a ecografia gestacional. Aspectos do pré-natal da adolescente A rotina de pré-natal na adolescência segue os mesmos parâ‑ metros e rotinas preconizados pelo Ministério da Saúde para as mulheres adultas, do ponto de vista biomédico. Contudo, vários estudos que avaliam o prognóstico da gestação em ado‑ lescentes têm identificado nesse grupo maior probabilidade de alguns desfechos obstétricos desfavoráveis, como baixo peso ao nascer, prematuridade, pré-eclâmpsia, entre outros.8 Difere, portanto, em relação às complicações gestacionais mais preva‑ lentes nessa faixa etária e principalmente nas dificuldades e repercussões psicossociais da gravidez na adolescência. No que diz respeito às complicações gestacionais, com re‑ percussões médicas, na faixa etária precoce, podem ser lista‑ dos como mais relevantes: • Hipertensão: a incidência relatada entre adolescentes grávi‑ das na literatura varia de 12 a 31%. As cifras mais baixas en‑ contradas são decorrentes do cuidadoso controle dos fatores de risco. No outro extremo, números elevados de gestantes portadoras de pré-eclâmpsia grave e eclâmpsia são resultado de controle pré-natal inadequado ou insuficiente.9 • Diabete gestacional: não foi identificado maior risco de desen‑ volvimento de diabete gestacional na faixa etária em questão. Pelo contrário, grávidas adolescentes parecem apresentar me‑ nor incidência de diabete melito gestacional, quando compa‑ radas com mulheres adultas.8 Por outro lado, não se pode dei‑ xar de considerar as adolescentes portadoras de diabete tipo 1 ou 2. Existe evidência de que a gravidez em adolescentes dia‑ béticas é mais comum quando não há controle glicêmico ade‑ quado. Ou seja, em razão do estilo de vida e do grau de matu‑ ridade imprevisíveis, próprios do adolescente, é muito pouco provável a ocorrência de uma gravidez planejada, com nor‑ malização dos níveis glicêmicos antes e durante a gestação. Dessa maneira, as adolescentes diabéticas apresentam eleva‑ do risco de desenvolver complicações na gestação, evoluindo com desfechos obstétricos desfavoráveis.8
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• Anemia: a maior incidência dessa condição clínica entre ado‑ lescentes relaciona-se à espoliação materna, decorrente de condições nutricionais insatisfatórias. O ganho ponderal in‑ suficiente durante a gravidez pode trazer consequências dele‑ térias para sua evolução. Além de más condições de nutrição materna, muitas vezes presentes entre as mães de baixa ren‑ da, acrescenta-se a observação de hábitos dietéticos inade‑ quados e a diminuição do apetite provocada por estados de ansiedade, típico entre adolescentes.9 • Mortalidade materna: a gravidez aumenta o risco de mortali‑ dade materna nas idades extremas do período reprodutivo. Esse fato é agravado pelas altas taxas de abortamento provo‑ cado em condições desfavoráveis, revelação tardia da existên‑ cia da gestação e baixa adesão ao pré-natal pelas gestantes adolescentes.9 • Complicações do parto: as complicações mais graves do parto tendem a acometer meninas abaixo de 15 anos e são piores ainda em menores de 13 anos.9 A suposição de que a pelve ós‑ sea, nessa idade, não teria atingido o padrão adulto por oca‑ sião do parto não constitui o principal fator complicador do parto, e sim o sentimento de insegurança, solidão, culpa e medo que estão presentes no momento do parto e que dificul‑ tam a obtenção de calma, foco, colaboração e realização da for‑ ça e relaxamento adequados para a descida e expulsão do feto. • Parto pré-termo: a prematuridade é uma complicação fre‑ quente entre recém-nascidos de mães adolescentes. Particu‑ larmente, entre as gestantes mais jovens, esse aspecto é qua‑ se um consenso entre os autores. Observa-se que, entre as mães menores de 16 anos, a incidência varia de 5 a 20%, e de 1 a 9% entre as maiores de 16 anos, na dependência da popula‑ ção estudada10. Alguns autores relacionam o risco para parto pré-termo com a incapacidade funcional da matriz uterina em manter a gravidez até o termo. Entretanto, o parto pré-ter‑ mo entre as adolescentes é determinado por uma combina‑ ção de fatores que atuam de forma independente.9 Fatores emocionais como ansiedade, medo, desamparo e inseguran‑ ça aumentam a incidência de hipertonia uterina, enquanto a pouca vinculação ao serviço de pré-natal corrobora a não identificação do problema. • Parto operatório: o maior número de cesáreas em adolescen‑ tes é motivado, na maioria das vezes, pela crença de que exis‑ te uma maior taxa de desproporção cefalopélvica, fato que é referido por alguns autores.9 Entretanto, mais uma vez, a difi‑ culdade para o sucesso do parto pélvico advém muito mais da dificuldade de coordenação entre relaxamento e força eficien‑ tes no momento do trabalho de parto, atitudes de desespero e pânico consequentes da falta de amparo emocional, além da sensação de incapacidade vivenciada por grande parte das adolescentes com pouco apoio no período da gestação.
Esse fato acarreta altos índices de absenteísmo nas consultas de pré-natal e consequente agravamento das complicações médicas e psíquicas da gestação precoce. A abordagem da adolescente gestante deve ser composta por olhar distinto, que busca enfoque nos fatos e problemas que afligem e desprotegem a adolescente em questão. Talvez o ponto mais importante no pré-natal de uma adolescente seja a vinculação. É importante que ela saiba que pode contar com o serviço de saúde para todas as suas dificuldades, inclusive as de ordem psicossocial. São aspectos importantes para uma abordagem adequada e sucesso do pré-natal de adolescentes: • Olhar e enfrentamento da situação com sinceridade e realis‑ mo, mas ao mesmo tempo com acolhimento e amorosidade. • Estimular a presença do companheiro, caso ele esteja presen‑ te na vida da adolescente, em todas as consultas e eventos do pré-natal. Trabalhar com o casal a responsabilidade compar‑ tilhada em relação à gestação. • Estimular a constante presença da família, se possível mãe e pai, ou o cuidador mais presente na vida da adolescente. Essa presença não é somente em relação às consultas de pré-natal, mas também na vida e na participação das fases da gestação, estimulando as atitudes de proteção, cuidado e acolhimento da adolescente gestante por parte de sua família. É de suma importância trabalhar com os pais o reconhecimento de que, apesar de sua filha agora ser uma futura mãe, ela continua sendo filha e ainda uma adolescente em processo de amadu‑ recimento. • Trabalhar a responsabilização do casal na ocorrência da gravi‑ dez, com desculpabilização, entendendo e trabalhando junto a eles os múltiplos fatores que levaram a esse desfecho. A im‑ portância desse trabalho tem como finalidade ajudar a ado‑ lescente a perceber e compreender as várias questões que a trilharam para uma gravidez precoce. Caso essa consciência dos fatos não venha à tona, a probabilidade de ocorrência de uma nova gravidez em curto tempo após o parto é inevitável, já que as dificuldades que acarretaram essa primeira gestação ainda estão presentes e despercebidas. • Pesquisar durante todo o período de pré-natal sobre a fre‑ quência escolar para aquelas meninas matriculadas na escola. Também para as que se encontram fora do sistema educacio‑ nal, abordar insistentemente o que significa a escola, os estu‑ dos, para que serve e quais portas e caminhos sua conclusão pode abrir. O incentivo à frequência escolar é construído em conjunto com o estímulo à construção de um projeto de vida. Para se obter êxito nesse trabalho, é necessário encarar realis‑ ticamente as dificuldades vivenciadas por essas meninas, como vergonha do seu estado de gravidez, vergonha do corpo, medo do julgamento, desinteresse prévio para com os estu‑ dos, além das queixas físicas inerentes à gravidez. Repercussões psicossociais da gravidez • Desmistificar e explicar aspectos em relação ao parto, ponto na adolescência e uma abordagem mais em que, geralmente, as adolescentes possuem grande inte‑ adequada do profissional de saúde resse e medo. Falar sobre o parto, trabalho de parto, não es‑ Ao engravidar, a maioria das adolescentes no Brasil é inserida condendo aspectos reais sobre a dor que virá, mas ao mesmo em programas de pré-natal comuns, junto com o público adul‑ tempo naturalizando-a e ajudando a adolescente a se colocar to, e suas dificuldades são abordadas de forma não específica. em situação confortável e segura sobre esses eventos futuros.
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O que deixa essas meninas inseguras e aflitas é muito mais o desconhecimento e os mitos impostos por uma sociedade cada vez mais desconhecedora dos benefícios do parto nor‑ mal. Esses benefícios são ainda mais importantes quando re‑ feridos às adolescentes, por terem pela frente ainda muitos anos de vida reprodutiva.4-6
A experiência da equipe de pré-natal do Adolescentro, em Bra‑ sília (Centro Especializado de Atenção Integral a Adolescen‑ tes com Transtorno Mental), é que, com boa vinculação, estí‑ mulo à autoestima, apoio familiar e do companheiro, conhecimento e segurança em relação ao parto normal, as adolescentes possuem, na sua grande maioria das vezes, par‑ tos rápidos e fáceis. Esse fato, contudo, não é constatado nas maternidades onde adolescentes são tratadas como adultas e realizaram o pré-natal em serviços comuns, observando nes‑ ses casos, meninas em desamparo e partos com grande sofri‑ mento, contribuindo consequentemente para as altas taxas de parto operatório nessa faixa etária. A gravidez na adolescência é um evento complexo e, mui‑ tas vezes, está situado entre imaturidade, desinformação, de‑ samparo e desejo. Portanto, seria ingênuo considerá-lo único ou depositário de todas as dificuldades e insucessos posterio‑ res. Cabe atentar para a singularidade de cada caso e auxiliar a adolescente no caminho da transformação dessa gravidez pre‑ coce em aprendizado de amadurecimento e construção dos projetos de vida.4 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender que a gravidez na adolescência ainda tem sido identificada como um dos grandes problemas de saúde pública no Brasil. • Saber que um dos grandes desafios é fazer o diagnóstico da gravidez e o início mais precoce possível do pré-natal. • Entender que a gravidez na adolescência é multicausal dentro dos seus aspectos social, biológico e psicológico.
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• Saber que a rotina do pré-natal na adolescência segue os mesmos parâmetros e rotinas preconizadas pelo Ministério da Saúde para as mulheres adultas. • Conhecer as principais complicações obstétricas e que, dentre elas, a prematuridade é a complicação mais frequente entre recém-nascidos de mães adolescentes, principalmente entre as gestantes mais jovens.
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Oftalmologia COORDENADOR
Rubens Belfort Neto
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COORDENADOR E AUTORES SEÇÃO 27 OFTALMOLOGIA
Coordenador Rubens Belfort Neto Especialista em Oftalmologia pela Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e em Patologia e Oncologia Ocular pela McGill University, Canadá. Doutor em Oftalmologia pela EPM‑Unifesp. Chefe do Setor de Oncologia Ocular do Departamento de Oftalmologia da EPM‑Unifesp. Autores Ana Paula Silvério Rodrigues Pós‑Graduanda do Departamento de Oftalmologia e Ciências Visuais da Unifesp. Chefe do Setor de Catarata Congênita do Departamento de Oftalmologia e Ciências Visuais da Unifesp. Ana Tereza Ramos Moreira Fellowship em Oftalmologia Pediátrica e Estrabismo pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Mestre e Doutora em Oftalmologia pela Unifesp. Chefe do Serviço de Oftalmologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). André Corrêa de Oliveira Romano Professor Adjunto da Miller School of Medicine, University of Miami, EUA. Professor Visitante da Henry C. Witelson Ocular Pathology Laboratory, Canadá. Médico‑assistente Voluntário do Setor de Retina da EPM‑Unifesp. Ex‑fellow do Bascom Palmer Eye Institute, Miller School of Medicine, University of Miami, EUA. Ex‑fellow do Ocular Surface Research Foundation, EUA.
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Andrea Araujo Zin Doutora em Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente. Pesquisadora do Instituto Fernandes Figueira/Fiocruz. Arun Singh Diretor do setor de Oncologia Ocular do Cole Eye – Cleveland Clinic, EUA. Bruno L.B. Esporcatte Especialista em Glaucoma pela Unifesp. Doutor em Ciências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor de Oftalmologia da Universidade Estácio de Sá. Caio Vinicius Saito Regatieri Professor do Programa de Pós‑graduação do Departamento de Oftalmologia da Unifesp. Professor‑assistente do Departamento de Oftalmologia da Tufts Medical School, EUA. Camila Fonseca Netto Especialista em Glaucoma pela EPM/Unifesp. Postdoctoral Fellowship - New York Eye and Ear Infirmary, NYC, EUA. Pós-graduanda – Nível Doutorado – em Oftalmologia pela EPM/Unifesp. Cassiano Rodrigues Isaac Doutor em Ciências Médicas pela Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Oftalmologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Célia R. Nakanami Mestre e Doutor pela Unifesp. Chefe do Setor de Oftalmologia Pediátrica do Departamento de Oftalmologia da Unifesp.
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Christiane Rolim de Moura Mestre em Oftalmologia, Doutora em Ciências e Pós‑doutoranda em Oftalmologia pela Unifesp. Chefe do Núcleo de Glaucoma Pediátrico do Departamento de Oftalmologia da Unifesp. Claudia de Paula Faria Especialista em Oftalmologia com Especialização em Plástica Ocular e Estrabismo. Fellow em Oftalmologia Pediátrica e Estrabismo pelo Cedars ‑Sinai Medical Center e Wright Foundation – Dr. Kenneth Wright, EUA. Eduardo Alonso Garcia Doutorando do Departamento de Oftalmologia da Unifesp. Vice‑chefe do Setor de Vias Lacrimais da Unifesp. Chefe do Setor de Plástica Ocular e Vias Lacrimais da Santa Casa da Misericórdia de Santos. Elisabeth Nogueira Martins Doutor em Ciências pela Unifesp. Pós‑doutor em Retina e Vítreo pela Universidade da Califórnia, EUA. Chefe do Setor de Trauma Ocular do Departamento de Oftalmologia da Unifesp. Erika Yasaki Especialista em Retina e Vítreo pela EPM‑Unifesp. Ex‑fellow em Retina Pediátrica do Associated Retinal Consultants, William Beaumont Hospital, EUA. Médica Colaboradora do Setor de Retina e Vítreo do Ambulatório de Retinopatia da Prematuridade da EPM‑Unifesp.
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Francisco Bandeira e Silva Especialista em Doenças Externas, Transplante de Córnea e Cirurgias do Segmento Anterior. Pós ‑graduando na EPM‑Unifesp. Jacqueline Sousa Asam Especialista em Oftalmologia pela Unifesp. Especialização em Córnea pela Unifesp. Fellow no Setor de Uveítes e AIDS da Unifesp. Nilva Moraes Renato Wendell Ferreira Damasceno Doutor em Oftalmologia pela Unifesp. Professor Adjunto de Oftalmologia da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas. Renato Wendell Damasceno Doutor em Oftalmologia pela Unifesp. Professor Adjunto de Oftalmologia da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas. Rubens Belfort Jr. Professor Titular da Disciplina Oftalmologia da EPM ‑Unifesp. Membro Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia Brasileira de Ciências, Academia Brasileira de Oftalmologia e Academia Ophthalmologica Internationalis.
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CAPÍTULO 1
VIAS LACRIMAIS Eduardo Alonso Garcia
Introdução A patologia mais frequente é a obstrução congênita da via la‑ crimal, ocorrendo em mais de 50% dos recém-nascidos. Tra‑ ta-se de uma imperfuração da válvula de Hasner no final do ducto lacrimonasal, com retenção de lágrima e secreção no sistema lacrimal. A resolução espontânea atinge cerca de 85% dos casos no 6º mês, e aproximadamente 90% com 1 ano de idade. Todo quadro de lacrimejamento deve ser encaminhado para um oftalmologista para um exame completo, para excluir alterações na córnea, pálpebra e casos mais complexos, como o glaucoma congênito. Anatomia, embriologia e fisiologia A via lacrimal engloba um sistema secretor (glândula lacri‑ mal) e um excretor com pontos lacrimais, canalículos (supe‑ rior, inferior e comum), saco lacrimal e conduto lacrimona‑
sal. Sua função é drenar a lágrima dos olhos para a cavidade nasal.1 O sistema lacrimal começa sua formação na 4ª semana de gestação, próximo ao processo nasal e maxilar, e cresce tanto em direção ao canto da pálpebra e quanto em direção à fossa na‑ sal. Na 12ª semana, já apresenta bifurcação na extremidade su‑ perior (futuros canalículos). Um canal no centro dessa estrutura inicia-se na 13ª semana, progredindo do centro para as extremi‑ dades até a 28ª semana, com a abertura dos pontos lacrimais. A extremidade inferior abre-se na 32ª semana, completando a passagem até a cavidade nasal. Alguns recém-nascidos apre‑ sentam a imperfuração dessa abertura por persistência de uma membrana (válvula de Hasner) ou por acúmulo de detritos celu‑ lares. Esse é o local mais frequente de obstrução congênita.1-5 Diversas alterações congênitas podem ocorrer no sistema lacrimal e em qualquer época do seu desenvolvimento fetal, como mostra a Figura 1.
Canalículo superior 3
5 mm
Canalículo comum
2 mm
10 mm
Pontos lacrimais
8 mm
Canalículo inferior 12 mm
Saco lacrimal Válvula de Hasner 5 mm
Conduto nasolacrimal
Figura 1 Esquema anatômico da via lacrimal.
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Sistema secretor costuma ocorrer na pálpebra inferior, é unilateral e não tem A glândula lacrimal ocupa a porção superotemporal da órbita e sintomas, pois são integrados ao canalículo. está dividida em lóbulo orbital e palpebral por uma aponeuro‑ A imperfuração consiste na persistência de uma membrana se. Sua diferenciação embriológica da conjuntiva ocorre na 6ª sobre o óstio, podendo acometer pálpebras superior e inferior. semana e está com os lóbulos formados na 35ª semana, porém Resolve-se perfurando a membrana com um dilatador ou com continua seu crescimento entre o 3º e o 4º ano de idade. As sonda lacrimal de Bowman. glândulas acessórias palpebrais têm origem comum, porém A agenesia dos pontos lacrimais é uma anomalia no cresci‑ não migram para a órbita. mento do segmento proximal ou no processo de canalização. As lágrimas têm ação protetora sobre os olhos (lubrificação, Pode ocorrer agenesia do ponto lacrimal ou de todo o canalícu‑ bactericida), metabólica (oxigenação) e óptica. Inicia sua pro‑ lo. O tratamento cirúrgico pode ser apenas a abertura do cana‑ dução entre a 1ª e a 2ª semana de vida. Apresenta uma secreção lículo, com ou sem colocação de tubo de silicone ou até uma básica de cerca de 1 a 2 mcL/minuto, produzida pela glândula reparação da comunicação com a cavidade nasal (conjuntivo‑ lacrimal e pelas glândulas acessórias das pálpebras.3 A glândula -dacriocistorrinostomia) com tubo pirex de Lester-Jones. lacrimal produz 95% da camada aquosa da secreção básica e Todas essas alterações causam sintomas de obstrução alta, produz a secreção reflexa, que responde ao sistema nervoso com epífora sem secreção e sem acúmulo no saco lacrimal. central (SNC – V par) a partir de estímulos externos (corpo es‑ tranho, cílios, poluição), retinianos (luz intensa, fotofobia), psi‑ Canalículos cológicos (choro) e atos convulsivos (rir, tossir, vomitar, bocejar). No traumatismo, a lesão mais frequente é a laceração palpe‑ Cerca de 10 a 25% da lágrima sofre evaporação; o restante é bral, com rotura do canalículo inferior. O mecanismo de ação é escoado pelo sistema excretor das vias lacrimais.3,5 a tração da pálpebra inferior (muito comum na mordida de A ausência de glândula lacrimal é extremamente rara e, em cão), causando rotura no canto interno com secção do canalí‑ geral, está associada com outras anomalias congênitas (ausên‑ culo inferior. A cirurgia de reparação consiste na recateterização da via cia do globo ocular). A ausência de lágrimas é anomalia pouco comum, geralmente bilateral, com glândula lacrimal presente, lacrimal e sutura com tutor na luz do canalículo (tubo de sili‑ e apresenta sinais e sintomas de olho seco (ceratite, úlcera de cone, bastão metálico) por 4 a 6 semanas para evitar a esteno‑ córnea, queratinização conjuntival). Mais frequente que a au‑ se do local. A correção cirúrgica pode ser realizada até 3 a 5 sência da lágrima, a hipossecreção de lágrimas tem sintomas dias após a lesão. de olho seco; pode estar associada a outras alterações congêni‑ Saco lacrimal tas ou denervação congênita da glândula lacrimal.2 A fístula de glândula lacrimal apresenta-se no canto exter‑ A fístula do saco lacrimal é histologicamente idêntica aos ca‑ no da órbita, com saída de lágrima por pequenos orifícios cutâ‑ nalículos e pode se canalizar por completo ou fechar esponta‑ neamente. Em geral, é assintomática, a não ser quando asso‑ neos, sem comprometimento do sistema lacrimal. Os tumores são extremamente raros na infância, com exce‑ ciada à obstrução do conduto nasolacrimal. Não ocorrendo a ção do dermoide, envolvendo a glândula lacrimal. Pseudotumor regressão da fístula, pode ser necessário realizar a exérese também é raro, mas pode acometer a glândula lacrimal na ado‑ para evitar infecção. lescência. Os tumores epiteliais malignos (células mistas, ade‑ Mucocele (dacriocele, amniocele) é uma grande dilatação nocistos e carcinomas) são raros, mas há relatos na infância.1 do saco lacrimal no recém-nascido, sem sinais inflamatórios. É causada pela obstrução do ducto nasolacrimal associada a Sistema excretor um bloqueio (por uma dobra na mucosa) que obstrui o canal O sistema excretor é dividido anatomicamente e para fins comum, com acúmulo de muco e líquido amniótico.2 Tem alta incidência de infecção secundária do material re‑ diagnósticos e terapêuticos em porção alta (pontos lacrimais, canalículos superior e inferior e canalículo comum) e porção tido no saco lacrimal, sendo indicado uso de antibiótico tópico (colírio) para evitar que evolua para dacriocistite aguda, fistu‑ baixa (saco lacrimal e conduto lacrimonasal). Inicia-se nos pontos lacrimais (superior e inferior) no canto lização e celulite orbital. A compressão do saco lacrimal é pouco eficiente. Caso não interno das pálpebras e segue pelos canalículos superior e in‑ ferior até fundirem-se em um só (canalículo comum). O cana‑ regrida em 1 semana, a sondagem da via lacrimal deve ser rea‑ lículo comum desemboca no saco lacrimal, um reservatório lizada.1-5 No diagnóstico diferencial, deve-se pensar na possibilidade com função de bomba exercida pelo seu componente elástico. Um segmento longitudinal (conduto lacrimonasal) continua de meningocele quando a dilatação aparece após trauma, se do saco lacrimal através de um canal ósseo até atingir a fossa apresenta acima do tendão do canto interno do músculo orbi‑ nasal no meato inferior, abaixo do corneto inferior. A única cular e se endurece quando a criança chora.3 porção visível desse sistema são os pontos lacrimais. Conduto lacrimonasal Bloqueio anatômico Pontos lacrimais A ectopia ocorre geralmente associada ao mau posicionamen‑ A anomalia lacrimal congênita mais frequente é a obstrução to das bordas palpebrais (entrópio, ectrópio). A duplicidade do final do conduto lacrimonasal (válvula de Hasner). Estu‑
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Vias Lacrimais •
dos demonstram uma média de ocorrência em 50% dos re‑ cém-nascidos, porém, com evidência clínica, cerca de 5 a 15%, pois a abertura espontânea ocorre na grande maioria dos ca‑ sos entre a 3ª e a 6ª semanas de vida, atingindo 85% no 6º mês e 90% com 1 ano de idade.1-6 O diagnóstico baseia-se no lacrimejamento constante e invo‑ luntário (epífora), secreção ocular e distensão do saco lacrimal. O quadro inicia com hiperemia ocular, conjuntivite crônica que persiste ao tratamento, geralmente unilateral. A contami‑ nação secundária causa secreção purulenta, e a compressão sobre o saco lacrimal produz refluxo (mucoide ou purulento). Alguns casos evoluem para quadros de dacriocistites. Estudos mostraram que 54% dos casos com sintomas de lacrimeja‑ mento comprovavam obstrução baixa; os outros casos in‑ cluíam alergias, conjuntivites, alterações palpebrais (entrópio, ectrópio), agenesia de pontos lacrimais e outras anomalias congênitas.2 A Fundação da Academia Americana de Oftalmologia dá o seguinte auxílio diagnóstico para a abordagem do lacrimeja‑ mento do recém-nascido: • lacrimejamento constante sem secreção (ou secreção mínima): sugestivo de obstrução alta (pontos lacrimais, canalículos); • lacrimejamento constante com secreção mucopurulenta abundante, colando os cílios: sugestivo de obstrução baixa (ducto lacrimonasal – válvula de Hasner); • lacrimejamento intermitente com secreção esporádica: su‑ gestivo de obstrução/estenose intermitente por edema de mucosa ou impactação de fluido (sinusite, rinite, infecção de trato respiratório superior); • sinal mais importante: o refluxo à expressão do saco lacrimal (compressão digital) caracteriza a obstrução baixa da via la‑ crimal. Anomalias palpebrais Causam a hipersecreção reflexa (epífora) por exposição ou atrito com a superfície ocular. No entrópio congênito, ocorre a inversão da posição palpe‑ bral, com trauma dos cílios sobre a córnea. No ectrópio congênito, a eversão da pálpebra causa exposi‑ ção da superfície ocular (corneoconjuntival), com queratiniza‑ ção da mucosa evertida. O coloboma apresenta um segmento palpebral incompleto (pode acometer o ângulo nasal que contém o ponto lacrimal). A blefarofimose causa diminuição da fenda palpebral asso‑ ciada a ptose (queda da posição palpebral superior) e telecan‑ to (distanciamento do canto interno da pálpebra com o nariz), alterando a anatomia do conduto nasolacrimal e causando um bloqueio funcional dos canalículos, ao alongar e estreitar seu lúmen. Tratamento da obstrução congênita do ducto lacrimonasal (Figura 2) Massagem A compressão do saco lacrimal firme e para baixo, realizada várias vezes por dia (manobra de Criegler) pelos pais, pode di‑ minuir os casos que necessitam de sondagem. A pressão hi‑
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drostática gerada pela massagem da via lacrimal excretora pode forçar a abertura na parte final do conduto lacrimonasal e auxiliar também na eliminação do acúmulo de material mu‑ copurulento, reduzindo o risco de dacriocistites.4 Sondagem A maioria dos estudos considera a idade e o quadro clínico como os principais parâmetros na decisão terapêutica. En‑ quanto os sinais e sintomas não se agravam (dilatação do saco lacrimal, dacriocistite, fístula cutânea), a observação, a limpe‑ za e a massagem podem ser prolongadas do 3º ao 6º mês. En‑ tre o 6º e o 12º mês, não ocorrendo a abertura espontânea, a sondagem deve ser realizada. Até o 13º mês, os índices de su‑ cesso são excelentes (acima de 90%).1,2,4,5 Existem aqueles que defendem a sondagem precoce, entre o 4º e o 6º mês, rea‑ lizando o procedimento por contenção no consultório (evitan‑ do, com isso, o risco anestésico) e com índices de 98% de su‑ cesso. Outros preconizam a sondagem após 1 ano de idade e apresentam índices de sucesso de 45% com massagem, 52,5% com sondagem e 2,5% com cirurgia (dacriocistorrinostomia).7 Com índices de cura espontânea tão altos e complicações inerentes de um procedimento delicado sob contenção (falso trajeto, traumatismo da mucosa), além do desgaste emocional da família e a pressão sobre o profissional, deve-se optar por uma conduta mais suave e segura, executada em ambiente hospitalar, sob os cuidados de anestesista, entre o 9º e 12º mês de idade.1,4 A parte óssea relacionada ao sistema excretor está com seu desenvolvimento incompleto ao nascimento, sendo que a condrificação e a calcificação iniciam-se na 6ª semana de vida e vão causar uma dificuldade significativa após o 18º mês, com índices de êxito caindo próximo dos 50%.1,4 Irrigação Realizada imediatamente após a sondagem (sob narcose), in‑ jetando-se 1 a 2 mL de água destilada com fluoreisceína pelo ponto lacrimal, faz-se a aspiração do líquido na fossa nasal
Massagem (manobra de Criegler)
Sondagem sob narcose
Quadro mantido
Solução espontânea
Sucesso na sondagem
Entubação da via lacrimal com silicone
Quadro mantido
Sucesso na entubação
Dacriocistorrinostomia
Figura 2 Tratamento da obstrução congênita do ducto lacrimonasal.
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correspondente. A presença do contraste no material aspirado confirma a abertura do conduto. Contudo, 5 a 10% das sonda‑ gens podem não ter êxito (cistos de mucosa, obstruções na transição do saco lacrimal com o conduto), sendo quase um consenso realizar nova sondagem (preferencialmente assisti‑ da por fibroscopia nasal), a não ser que a criança seja maior (mais que 2 anos) ou os sintomas piorem.1,2,4-6 Entubação Caso a sondagem não tenha êxito, mesmo após um segundo procedimento, a entubação da via lacrimal excretora com son‑ da de silicone (sob anestesia inalatória) está indicada. Índices de até 85% de sucesso são apontados nos menores de 5 anos, embora existam relatos de até 16 anos de idade.4 A sonda de silicone permanece, em média, de 1 a 3 meses. Dacriocistorrinostomia Com a persistência do quadro após sondagem e entubação da via lacrimal excretora, a cirurgia é indicada para recomunicar o saco lacrimal com a cavidade nasal (meato médio), preferen‑ cialmente em crianças com mais de 5 anos de idade.1-4 Os índi‑ ces de sucesso variam de 62,5 a 96%.
Referências bibliográficas 1.
2.
3. 4. 5. 6.
7.
Soares EJC, França VP. Sistema lacrimal de drenagem. Rio de Janeiro: Cultura Médica/São Paulo: CIBA Vision/CBO, 1999. (Manuais Básicos/ CBO; 17). Weil BA, Milder B. Sistema lagrimal – Dacriologia básica: diagnóstico y tratamiento de sus afecciones. Buenos Aires: Editorial Médica Paname‑ ricana, 1986. Stewart WB. Surgery of eyelid, orbit and lacrimal system. v.3. Oxford: Oxford University Press, 1995. p.265-69. Day S. Lacrymal system. In: Taylor D. Pediatric ophthalmology. , 1990. p.199-206. Sá LCF, Put M. Doenças das vias lacrimais. In: Dantas AM, Moreira ATR. Oftalmologia pediátrica. 2.ed. , 2006. p.163-8. Orbit, Eyelids, and Lacrymal System (7), Basic and Clinical Science Course The Foundation of the American Academy of Ophthalmology, 2001-2002. Schellini SA, Viveiros MMH, Jaqueta E, Padovani CR, Padovani CRP. Obstrução nasolacrimal congênita: fatores relacionados com a possibili‑ dade de cura Arq Bras Oftalmol 2005; 68(2):241-44.
Bibliografia 1.
Obstrução das vias lacrimais. In: Silva JAF. Manual de condutas em of‑ talmologia. São Paulo: Unifesp/Instituto da Visão, 2008. p.1063-9.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que o lacrimejamento não é sintoma exclusivo de obstrução da via lacrimal, e que outras alterações da superfície ocular, córnea, pálpebras e até o glaucoma congênito precisam ser investigadas pelo oftalmologista. • Ter em mente que o retardo nesse encaminhamento pode atrasar e dificultar a terapêutica, resultando em transtornos oculares, por vezes irreversíveis.
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CAPÍTULO 2
DISTÚRBIOS DAS PÁLPEBRAS Renato Wendell Damasceno
Anatomia e fisiologia das pálpebras As pálpebras são importantes para a proteção do olho e a distribuição do filme lacrimal na superfície ocular. Enquanto a abertura das pálpebras é realizada principalmente pelo músculo levantador da pálpebra superior, o fechamento palpebral é desempenhado pelo músculo orbicular ocular. O músculo levantador da pálpebra superior é inervado pelo nervo oculomotor (III par craniano). O músculo orbicular ocular é inervado pelo nervo facial (VII par craniano). Principais distúrbios palpebrais Ptose palpebral ou blefaroptose A ptose palpebral ou blefaroptose é uma anormalidade congênita ou adquirida do posicionamento palpebral, sendo caracterizada pela diminuição da distância entre o reflexo de luz projetado no centro da córnea e a margem palpebral superior. Ela pode ser classificada de acordo com seus mecanismos fisiopatológicos em miogênica, aponeurótica, neurogênica e mecânica. A ptose miogênica é o tipo mais frequentemente observado em crianças e adolescentes, sendo causada por miopatia congênita do músculo levantador da pálpebra superior. O tratamento é cirúrgico, podendo-se adotar a técnica de suspensão do músculo levantador da pálpebra superior ao ventre frontal do músculo occipitofrontal ou a técnica de ressecção da aponeurose do músculo levantador da pálpebra superior. O momento para realizar a cirurgia depende da gravidade da ptose palpebral. Enquanto os casos de blefaroptose com obstrução do eixo visual devem ser tratados imediatamente, em razão do risco de ambliopia, os pacientes com ptose palpebral mais leve podem ser submetidos ao tratamento mais tardiamente. Epibléfaro O epibléfaro é uma rotação anormal e congênita dos cílios em direção à superfície ocular, causada pelo descolamento superior da pele e do músculo orbicular ocular nas pálpebras inferiores,
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acarretando atrito dos cílios com a superfície ocular. Na maioria dos casos, há melhora espontânea com o avanço da idade e o crescimento facial. Em casos persistentes e com alterações da superfície ocular em razão do atrito dos cílios, realiza-se a transposição do músculo orbicular ocular na região acometida. Hordéolo O hordéolo é uma inflamação aguda, infecciosa e supurativa dos folículos pilosos e/ou das glândulas sebáceas e sudoríparas das pálpebras. É causado por uma proliferação das bactérias da flora cutânea palpebral, principalmente Staphylococcus aureus. Clinicamente, caracteriza-se por lesão nodular, única, endurecida, edemaciada e dolorosa. Quando há acometimento das glândulas tarsais (glândulas de Meibomius), é denominado hordéolo interno. Quando afeta os folículos pilosos, as glândulas sudoríparas (glândulas de Moll) ou as glândulas sebáceas (glândulas de Zeiss), é chamado de hordéolo externo. O tratamento é realizado com a utilização de compressas de água morna e associação de antibiótico com corticosteroide tópico. As complicações incluem celulite palpebral e abscesso local, sendo indicados antibioticoterapia sistêmica e drenagem cirúrgica, respectivamente. Calázio O calázio é uma inflamação crônica, não infecciosa e lipogranulomatosa das glândulas sebáceas das pálpebras. Clinicamente, caracteriza-se por uma fase aguda com lesão nodular, hiperemiada, dolorosa e edemaciada, seguida por uma fase crônica indolor. O tratamento inclui o uso de compressas de água morna e a associação de antibiótico e corticosteroide tópico. Quando não ocorrer resolução com tratamento conservador, a excisão cirúrgica deve ser indicada com a drenagem do calázio e a retirada da pseudocápsula. Outra opção é a infiltração local de corticosteroide de depósito (0,1 a 0,2 mL de acetato de triancinolona). Um exame histopatológico da lesão deve ser realizado em casos de calázio recidivante.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Diagnosticar e tratar os principais distúrbios das pálpebras em oftalmopediatria.
Bibliografia 1.
Damasceno RW, Heindl LM, Hofmann-Rummelt C, Belfort R, Schlöt‑ zer-Schrehardt U, Kruse FE et al. Pathogenesis of involutional ectropion and entropion: the involvement of matrix metalloproteinases in elastic fiber degradation. Orbit 2011; 30(3):132-9.
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2.
Damasceno RW, Osaki MH, Dantas PE, Belfort R Jr. Involutional ectro‑ pion and entropion: clinicopathologic correlation between horizontal eyelid laxity and eyelid extracellular matrix. Ophthal Plast Reconstr Surg 2011; 27(5):321-6. 3. Tan MC, Young S, Amrith S, Sundar G. Epidemiology of oculoplastic conditions: the Singapore experience. Orbit 2012; 31(2):107-13. 4. Vital Filho J, Velasco e Cruz AA, Schellini SA, Figueiredo AR, Matayoshi S, Herzog Neto G. Órbita, sistema lacrimal e oculoplástica. Coleção Con‑ selho Brasileiro de Oftalmologia. 3.ed. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 2013.
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CAPÍTULO 3
EXAME OFTALMOLÓGICO DA CRIANÇA E ESTRABISMO Claudia de Paula Faria Célia R. Nakanami
Introdução A avaliação oftalmológica da criança começa ao nascimento pelo pediatra e deve continuar como parte da rotina das con‑ sultas, apropriada para a idade da criança. Crianças com alto risco de doenças oculares, como bebês muito prematuros ou com história familiar de catarata congênita, retinoblastoma, doenças genéticas ou metabólicas, com importante atraso no desenvolvimento, problemas neurológicos ou doença sistêmi‑ ca associada, devem ser encaminhadas ao oftalmologista para exame ocular.1 Procedimentos para avaliação da visão e alterações oculares História ocular A informação dos pais é muito importante, sendo necessário questionar se a criança enxerga bem, se apresenta episódios de desvio ocular e se aproxima os objetos dos olhos.1 Pacien‑ tes com história de leucocoria (reflexo pupilar branco) notada pelos pais, pediatras ou outros observadores devem ser enca‑ minhados ao oftalmologista.2 Inspeção No exame externo, devem-se observar pálpebras, conjuntivas, esclera, córnea e íris com uma pequena lanterna. A ptose pal‑ pebral pode ser causa de ambliopia mesmo quando a pupila não esteja ocluída, em razão de astigmatismo induzido. Ptose bilateral pode estar associada a doença neurológica e, por isso, é indicada a investigação pelo neurologista.1 Lacrimejamento e secreção persistentes podem ser atribuí‑ dos a infecção, alergia ou glaucoma, mas a causa mais comum no recém-nascido é a obstrução das vias lacrimais. Como os mesmos sinais são observados no glaucoma congênito, diante da não resolução após o tratamento, da presença de opacidade ou do aumento assimétrico das córneas, a criança deve ser prontamente encaminhada ao oftalmologista.1 Posição anormal da cabeça (torcicolo) também deve ser in‑ vestigada pelo oftalmologista. Se a criança apresenta a cabeça
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inclinada ou a face girada para os lados, pode se tratar de um mecanismo compensatório para reduzir o estrabismo ou blo‑ quear um nistagmo,3,4 obtendo-se fusão ou melhora da visão, respectivamente. O mento elevado pode estar relacionado à ptose palpebral. Ao alinhar a cabeça da criança, essas altera‑ ções provavelmente serão observadas. Acuidade visual É avaliada por meio de métodos objetivos e subjetivos apro‑ priados à idade, respeitando-se a capacidade perceptiva da criança. Essa avaliação é importante em todas as crianças, in‑ dependentemente da idade. Crianças pré-verbais Do nascimento até aproximadamente 2 meses de idade, as crianças apenas fixam e seguem um alvo esporadicamente, apresentando movimentos sacádicos com os olhos.3,4 A acuida‑ de visual ao nascimento é pobre, entre 20/200 e 20/800, me‑ lhorando rapidamente nos primeiros 3 a 4 meses de vida.3 Dos 2 aos 6 meses de idade, a criança deve ter a habilidade de fixar e seguir um objeto. Examina-se um olho de cada vez, ocluindo um olho e movimentando um alvo (que pode ser o rosto do mé‑ dico ou um brinquedo), para observar se a criança fixa central‑ mente (olha diretamente para o alvo) e segue o objeto. A reação da criança à oclusão também precisa ser observa‑ da, isto é, deve-se avaliar se ela fica mais agitada quando um olho é ocluído em relação ao outro (criança com baixa visão em um olho fica agitada quando o olho com boa visão é ocluí‑ do). Se forem notadas pobre fixação e/ou dificuldade para se‑ guir um objeto após 3 meses de idade, o paciente deve ser en‑ caminhado ao oftalmologista.1 Crianças verbais Entre 2,5 e 3 anos de idade, as crianças são capazes de coope‑ rar com os testes de acuidade visual com optotipos, sejam fi‑ guras ou a tabela de Snellen. Quando a criança não for capaz de cooperar na primeira visita, deve-se agendar outra consulta
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para novo teste.1 Deve-se sempre testar um olho de cada vez e colocar a tabela na distância designada de 3 ou 6 m. Crianças usuárias de óculos ou lentes de contato devem ser examina‑ das com a correção, mas, se estiverem sem ela, são testadas com o estenopeico (olhando através de um buraco puntiforme, que pode ser feito em um cartão com pequenos orifícios). Se a acuidade visual melhorar com o orifício estenopeico, significa que um erro refrativo é a causa mais provável da baixa acuida‑ de visual. Se a acuidade visual da criança entre 3 e 4 anos de idade for pior que 20/40 ou com mais de duas linhas de diferença entre os olhos, ou se criança maior que 5 anos de idade apresentar visão pior que 20/30 ou mais de 2 linhas de diferença entre os olhos, deve-se encaminhar ao oftalmologista. Em crianças com visão muito baixa, a acuidade visual é medida pela habili‑ dade de contar dedos (deve ser anotada a distância), ver o mo‑ vimento da mão (a 30 cm) ou perceber luz.3 Reflexo vermelho O teste do reflexo vermelho ou “teste do olhinho” tem a finali‑ dade de detectar anormalidades que ameaçam a visão ao nas‑ cimento ou em idade precoce, como catarata congênita, glau‑ coma congênito, doenças da retina, altos erros refrativos, doenças sistêmicas com manifestações oculares e retinoblas‑ toma; neste último, o teste pode salvar a vida da criança, uma vez que o tumor pode ser fatal. É o teste mais importante para a avaliação oftalmológica do recém-nascido e deve ser repeti‑ do em todas as idades e visitas ao pediatra.5 Esse teste usa a transmissão de luz do oftalmoscópio direto através de todas as estruturas normalmente transparentes do olho, incluindo o filme lacrimal, a córnea, o humor aquoso, o cristalino e o humor vítreo. A luz refletida do fundo do olho do paciente é a imagem vista pelo examinador, isto é, o reflexo vermelho da retina. Há significativa variação no reflexo verme‑ lho de crianças de diferentes grupos étnicos ou raciais, em ra‑ zão dos diferentes níveis de pigmentação do fundo do olho.6 O exame é realizado em ambiente escurecido (para aumen‑ tar o tamanho da pupila), com um oftalmoscópio direto próxi‑ mo ao olho do examinador. A luz deve ser projetada em ambos os olhos simultaneamente a cerca de 50 cm de distância.2 O paciente pode olhar diretamente para a luz do oftalmoscópio direto3 ou fixar um foco distante.4 Pode-se iniciar com a luz di‑ minuída e aumentá-la aos poucos até que o reflexo vermelho seja visto. Em exame normal, observa-se um reflexo vermelho simétrico que preenche toda a pupila e um pequeno reflexo lu‑ minoso branco, chamado reflexo luminoso corneano, posicio‑ nado simetricamente (Figura 1). Qualquer opacidade dos meios ópticos ou patologia da reti‑ na que comprometa uma grande área resulta em reflexo ver‑ melho anormal. No retinoblastoma, porém, é observado um reflexo amarelado ou branco. Na catarata, observam-se refle‑ xo branco, vermelho assimétrico ou imagens puntiformes ou manchas escuras no reflexo vermelho. Na anisometropia (erro refrativo assimétrico), nota-se reflexo vermelho assimétrico e, no estrabismo, o reflexo vermelho é mais brilhante, a pupila parece um pouco maior no olho desviado e o reflexo luminoso
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Figura 1 Reflexo vermelho normal.
Fonte: Departamento de Oftalmologia da EPM-Unifesp.
corneano é assimétrico. Se um reflexo ausente, anormal ou as‑ simétrico estiver presente, o paciente deve ser imediatamente encaminhado ao oftalmologista.5 Reflexo pupilar As pupilas devem ser de mesmo tamanho (isocóricas), redon‑ das e reativas à luz em ambos os olhos. Anisocorias podem in‑ dicar lesão expansiva tumoral ou vascular, além de lesão is‑ quêmica no sistema nervoso central (SNC) ou alteração de nervos periféricos (III nervo craniano ou fibras simpáticas pu‑ pilares).3 Alterações pupilares clássicas incluem síndrome de Horner (bloqueio simpático) e síndrome de Adie (bloqueio pa‑ rassimpático – paresia do III nervo craniano). Doenças da reti‑ na ou do nervo óptico também causam defeito pupilar aferen‑ te relativo, que pode ser identificado pelo teste de alternância da luz nas pupilas. Nesse caso, a pupila apresenta dilatação paradoxal quando iluminada diretamente. Pequenas diferenças podem ocorrer normalmente, chama‑ das de anisocoria fisiológica, mas costumam se manter duran‑ te a dilatação e a contração pupilar e são menores que 1 mm. Grande assimetria entre as pupilas (maior que 1 mm) requer investigação adicional.1 Motilidade extrínseca ocular Para avaliar a motilidade extrínseca ocular, solicita-se ao pa‑ ciente que siga, apenas com o olhar e sem mexer a cabeça, um alvo que é movido em todos os sentidos. Na presença de restri‑ ções, paresias ou paralisias oculomotoras, observa-se limita‑ ção dos movimentos. O alinhamento ocular pode ser avaliado pelo reflexo lumi‑ noso corneano ou teste de Hirschberg, isto é, iluminam-se os olhos e solicita-se que a criança fixe diretamente a luz. Os re‑ flexos luminosos das córneas devem estar simetricamente centralizados ou pouco deslocados nasal ou temporalmente em ambos os olhos (Figura 2). O deslocamento do reflexo em um dos olhos indica estrabismo. Para o exame oftalmológico de rotina realizado pelo pedia‑ tra, sugere-se o teste do reflexo corneano (Hirschberg), por ser mais simples e por necessitar apenas da observação dos refle‑ xos luminosos em ambos os olhos para confirmar se existe desvio ocular.3
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Exame Oftalmológico da Criança e Estrabismo •
Figura 2 Reflexo luminoso corneano simétrico: teste de Hirschberg. Fonte: Departamento de Oftalmologia da EPM-Unifesp.
Todo paciente com estrabismo ou suspeita deve ser enca‑ minhado ao oftalmologista. Oftalmoscopia (exame do fundo de olho) A oftalmoscopia direta é realizada com o oftalmoscópio direto e pode ser difícil de realizar em crianças pouco colaborativas. Esse exame permite a observação do disco óptico, dos vasos retinianos, da fóvea e da retina central (próxima ao disco e à fóvea). Para a avaliação da fóvea, a criança deve olhar direta‑ mente para a luz, pois o disco óptico está localizado nasal‑ mente à fóvea.1,3 Estrabismo Estrabismo é o desalinhamento dos olhos. O alinhamento ocular é um dos requisitos necessários para o desenvolvimen‑ to visual normal. A visão binocular depende da integração da imagem retiniana dos dois olhos em uma única imagem. O processo de fundir essas imagens separadas de cada olho em uma única imagem é chamado fusão e é necessário para man‑ ter o alinhamento ocular e proporcionar estereopsia (percep‑ ção tridimensional).3 A estereopsia é a propriedade binocular de utilizar sinais de disparidade para compor a percepção de profundidade.5 O período crítico para o desenvolvimento da visão binocular permanece controverso, mas parece iniciar nos primeiros 3 a 4 meses de vida em humanos. A criança que apresenta estrabismo em idade precoce ou antes dos 4 a 5 anos de idade não apresenta diplopia porque existe supressão do olho não fixador. A supressão é um meca‑ nismo de defesa, no nível cortical, para evitar a diplopia e a confusão de imagens, interrompendo o desenvolvimento vi‑ sual binocular com perda da fusão e estereopsia. Se adquirido depois de 6 a 7 anos de idade, quando a visão binocular já se desenvolveu, haverá diplopia. Crianças com estrabismo adquirido, diplopia, limitação dos movimentos oculares, ptose ou outros sinais neurológicos e baixa visão ou alteração do reflexo vermelho devem ser en‑ caminhadas para consulta urgente com oftalmologista.3 Ao nascimento, o alinhamento ocular é variável, de modo que 70% das crianças apresentam pequena e variável exotro‑ pia (desvio divergente), 30% têm olhos alinhados, e esotropia
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(desvio convergente) é rara, possivelmente em razão da posi‑ ção anatômica divergente das órbitas e da imaturidade dos centros visuais no cérebro responsáveis pelo processamento visual.7 Pacientes com estrabismo após os 2 meses devem ser encaminhados ao oftalmologista. Rápidos episódios de adu‑ ção simultânea (espasmo de convergência bilateral) são fre‑ quentes até os 4 meses de idade.11 O pseudoestrabismo é uma condição muito comum, na qual a criança tem a falsa aparência de estrabismo (Figura 3). Algumas características faciais simulam estrabismo, como epicanto ou distância interpupilar grande (base larga de nariz) ou pequena (base de nariz estreita),8 mas, no teste de Hirsch‑ berg, o reflexo é simétrico. Esses casos devem ser diferencia‑ dos da esotropia,3 e, muitas vezes, é difícil convencer os pais de que a criança não tem estrabismo. O estrabismo pode ser constante ou intermitente e há vá‑ rios tipos de estrabismo, como a esotropia, a exotropia e os desvios verticais (hipertropias) e torsionais, que podem ser classificados em comitantes ou incomitantes (Figuras 4 e 5). No estrabismo comitante, o desvio é o mesmo em todas as po‑ sições do olhar, e os olhos movem-se em todas as direções, sendo o tipo mais comum. Já no desvio incomitante, o desvio é diferente nas diferentes posições do olhar, e observa-se limi‑ tação dos movimentos oculares, que pode ser causada por res‑ trições ou paresias/paralisias (do III, IV ou VI nervo).3
Figura 3 Criança de 1 ano de idade com pseudoesotropia. Fonte: Departamento de Oftalmologia da EPM-Unifesp.
Figura 4 Criança de 3 anos de idade com esotropia. Fonte: Departamento de Oftalmologia da EPM-Unifesp.
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Figura 5 Criança de 5 anos de idade com exotropia. Fonte: Departamento de Oftalmologia da EPM-Unifesp.
Estrabismos comitantes Os estrabismos comitantes mais comuns são a esotropia con‑ gênita, a esotropia acomodativa, a esotropia comitante adqui‑ rida e a exotropia intermitente. Esotropia congênita A esotropia congênita, esotropia infantil ou do lactente é a for‑ ma mais frequente de estrabismo na infância.7 Como na maioria dos casos o desvio não é observado ao nascimento, o termo con‑ gênito tem sido substituído por infantil. É definida como uma esotropia de grande magnitude, com início antes dos 6 meses de idade. Pacientes com grande ângulo de desvio constante, pre‑ sente depois dos 2 meses de idade, têm pequena probabilidade de resolução espontânea. Em geral, existe alternância de fixa‑ ção, mas pode haver forte preferência para fixar com um olho, o que é indicativo de ambliopia, que ocorre em aproximadamente 40% dos casos.9 Alguns pacientes apresentam limitação bilate‑ ral da abdução (síndrome de Ciancia), nistagmo latente e fixa‑ ção cruzada (fixa o lado esquerdo do campo de visão com o olho direito em adução e o campo direito com o olho esquerdo). Face girada para a direita ou a esquerda também é observada nesses pacientes, pois eles fixam com os olhos em adução.7,8 Estrabismo vertical associado à esotropia infantil pode ser observado quando há anomalias motoras associadas, como hiperfunção do músculo oblíquo inferior ou superior e desvio vertical dissociado. O nistagmo latente, que se manifesta ao cobrir um olho, é visto em 50% dos pacientes. O tratamento da esotropia infantil é cirúrgico. Se houver ambliopia, o paciente deve ser tratado antes da cirurgia, com oclusão do olho dominante. A oclusão não altera o alinhamen‑ to ocular, mas melhora a visão do olho amblíope.3 Apesar de não haver consenso sobre a idade ideal para a correção cirúrgi‑ ca, acredita-se que a cirurgia da esotropia antes de 1 ano de idade proporciona o desenvolvimento da visão binocular, o que não ocorre na cirurgia tardia (após 2 anos de idade). Al‑ guns estudos sugerem ainda que a correção cirúrgica antes dos 6 meses de idade pode proporcionar alto grau de estereopsia. Esotropia acomodativa Crianças hipermétropes acomodam para enxergar com niti‑ dez. A acomodação é acompanhada de convergência e miose
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pupilar (reflexo do olhar para perto). Dessa maneira, um au‑ mento da acomodação resulta no aumento desproporcional da convergência dos olhos, causando um desvio convergente.3 A correção da hipermetropia com óculos ou lentes de contato reduz a acomodação e a convergência, corrigindo a esotropia. A esotropia acomodativa é totalmente corrigida com o uso dos óculos. Quando o desvio não é corrigido totalmente com óculos, é chamado de parcialmente acomodativo. Nos pacien‑ tes com esotropia puramente acomodativa, há alinhamento ocular e a visão binocular é normal com a correção óptica.3,4,7,10 A esotropia acomodativa costuma se manifestar entre 1 e 5 anos de idade (geralmente entre 2 e 3 anos). Inicialmente, o desvio é pequeno e intermitente, sendo visto mais frequente‑ mente na fixação para perto ou quando a criança está cansada. Com o tempo, o desvio pode se tornar mais constante e, se a hi‑ permetropia não for corrigida, pode-se desenvolver ambliopia. É importante realizar o diagnóstico diferencial com ou‑ tras esotropias adquiridas, incluindo as de causa neurológica (tumor intracraniano, miastenia grave). O imediato encami‑ nhamento para o oftalmologista é importante em pacientes com esotropia acomodativa ou adquirida, a fim de fornecer tratamento precoce (prescrição da correção), restabelecer a visão binocular e descartar causas neurológicas. Deve-se prescrever a correção total da hipermetropia (todo o “grau” sob cicloplegia). Aos pacientes que apresentam alinhamento ocular com óculos quando fixam para longe, mas continuam com esotro‑ pia quando fixam para perto, indica-se a correção para perto com a prescrição de óculos bi ou multifocais. Se os óculos não corrigirem todo o desvio, o desvio residual deve ser corrigido com cirurgia.3 Esotropia comitante adquirida A esotropia comitante adquirida, também chamada de esotro‑ pia essencial e esotropia comitante não acomodativa, surge geralmente entre 1 e 3 anos de idade e apresenta início súbito do desvio, após estresse físico, emocional ou intermitente.5 Nesses casos, é importante descartar a possibilidade de pro‑ cessos neurológicos.3,4 A história familiar é especialmente im‑ portante nesse tipo de estrabismo, havendo grande incidência familiar. O desvio geralmente é grande, com baixo erro refrati‑ vo (quando há hipermetropia, é baixa e normalmente não in‑ fluencia o ângulo de desvio) e grande associação com disfun‑ ção dos músculos oblíquos.7,8 O tratamento é sempre cirúrgico, e o prognóstico para res‑ tabelecer a visão binocular é relativamente bom.4 Antes da ci‑ rurgia, deve-se realizar o tratamento da ambliopia, com o ob‑ jetivo de alcançar a acuidade visual igual em ambos os olhos, e a correção da hipermetropia, se moderada ou alta, que expres‑ sa presença de fator acomodativo. Exotropia intermitente A exotropia intermitente é o tipo mais comum de exodesvio. Trata-se de um desvio controlado parte do tempo pela conver‑ gência fusional e que se manifesta de modo intermitente. Em geral, ocorre entre 2 e 8 anos de idade. Inicialmente, é obser‑
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Exame Oftalmológico da Criança e Estrabismo •
vado somente quando o paciente está cansado.3 Quando se co‑ bre um olho, o desvio se manifesta, sendo mais bem observa‑ do ao teste de cobertura que ao teste do reflexo corneano. Uma característica quase constante da exotropia intermitente é o fechamento de um olho diante de luz intensa.8 Quando não tratada, a maioria dos casos tende a evoluir para uma exotro‑ pia constante.7 Os pacientes com exotropia intermitente informam visão binocular normal quando os olhos estão alinhados e supres‑ são monocular quando o olho se desvia. A ambliopia é rara nesses pacientes.3,4,7,8,10 O tratamento até os 4 a 5 anos de idade deve ser realizado clinicamente, com prescrição de oclusão parcial antissupressi‑ va (algumas horas/dia) ou por óculos com lentes negativas. Após essa idade, indica-se correção cirúrgica.4,7,8 Estrabismos incomitantes O estrabismo incomitante mais comum na infância é causado pela paresia congênita do músculo oblíquo superior.3 Paresia congênita do músculo oblíquo superior A paresia congênita do músculo oblíquo superior é uma das causas mais comuns de desvio vertical na infância. A criança apresenta invariavelmente torcicolo, compensando o desvio com a posição da cabeça, ou seja, inclina a cabeça sobre o om‑ bro oposto ao músculo parético para manter os olhos alinha‑ dos. Pacientes com paresia congênita do oblíquo superior têm boa estereopsia e manifestam o desvio vertical de modo inter‑ mitente quando estão cansados. A maioria tem habilidade de suprimir a imagem do olho desviado, não apresentando diplo‑ pia. Assimetria facial discreta é observada na maioria dos pa‑ cientes.3,8 Geralmente, no fim da infância ou na vida adulta, os pa‑ cientes começam a apresentar sintomas decorrentes de enfra‑ quecimento do controle fusional, resultando em desvio verti‑ cal. Nesses casos, a cirurgia está indicada. Outras causas de paresia do músculo oblíquo superior na infância incluem: anomalias craniofaciais, traumatismo cra‑ niano, tumores cerebrais e sua ressecção. Outros estrabismos incomitantes Síndrome de Duane
Está sempre presente ao nascimento, embora geralmente seja observada mais tarde pelos pais.7 É causada por uma anoma‑ lia na inervação do reto lateral que recebe inervação insufi‑ ciente ou nenhuma na tentativa de abdução e, durante a adu‑ ção, recebe uma inervação anômala, contraindo juntamente o reto medial. O paciente apresenta limitação da abdução e/ou adução, geralmente unilaterais. É comum os pacientes apre‑ sentarem torcicolo, com a face virada para o olho comprome‑ tido. Apresentam, também, estreitamento da rima palpebral à adução e alargamento na tentativa de abdução do olho aco‑ metido. Pode estar associada a várias anomalias congênitas, como a síndrome de Goldenhar, e a anomalias causadas pela exposi‑ ção pré-natal à talidomida.3,8 O tratamento cirúrgico é indica‑
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do para corrigir ou melhorar o torcicolo ou na presença de es‑ trabismo importante.3 Paralisia do músculo reto lateral
É incomum em crianças, sendo que a paralisia congênita é muito rara. Recém-nascidos podem apresentar paralisia tran‑ sitória associada à paralisia facial que se resolve entre 4 e 8 se‑ manas.3 A paralisia adquirida do músculo reto lateral na infân‑ cia pode ser observada na neuropatia pós-viral ou pós-imunização, ocorrendo geralmente entre 2 e 6 anos de idade, com a maioria apresentando resolução espontânea en‑ tre 8 e 10 semanas.3 Outras causas incluem traumatismo cra‑ niano, tumores intracranianos, meningites e mastoidites. Síndrome de Brown
O paciente apresenta limitação da elevação em adução, isto é, não consegue olhar para o lado nasal superior. Pode ser congêni‑ ta (inelasticidade ou encurtamento do tendão da bainha do músculo oblíquo superior) ou adquirida (trauma na região da tróclea, inflamações ou cirurgias que produzem aderências entre o tendão do músculo superior e a tróclea, doenças autoimunes e sinusites).7 A maioria dos pacientes apresenta boa visão binocu‑ lar e posição compensatória de cabeça com o mento elevado.3 O tratamento da síndrome de Brown congênita é cirúrgico quando o paciente apresenta grande desvio vertical na posi‑ ção primária do olhar e posição anormal da cabeça. Nos casos adquiridos, o tratamento pode ser clínico com corticosteroi‑ des via oral ou injeções locais,3,7 ou cirúrgico. Síndrome de Möebius
É caracterizada pela paresia ou paralisia dos VI (abducente) e VII (facial) nervos cranianos, com acometimento uni ou bila‑ teral, podendo haver envolvimento de outros nervos crania‑ nos, anomalias das extremidades, malformações craniofaciais, malformações musculoesqueléticas, retardo do desenvolvi‑ mento neuropsicomotor e autismo. O diagnóstico pode ser feito logo após o nascimento, em ra‑ zão do fechamento palpebral incompleto durante o sono e da dificuldade na sucção, observando-se, posteriormente, que a criança não apresenta expressão facial (fácies amímica) e au‑ sência ou diminuição da abdução, geralmente bilateral.7 O desvio pode ser convergente (esotropia) ou divergente (exotropia), e o tratamento é cirúrgico. Paralisia do III nervo craniano
Envolve quase todos os músculos extraoculares, exceto o reto lateral, inervado pelo VI nervo craniano, e o oblíquo superior, inervado pelo IV nervo craniano. Observam-se ptose palpe‑ bral, exotropia, hipotropia (olho desviado para baixo), midría‑ se e ausência de reação à luz (na paralisia completa). As cau‑ sas podem ser: congênita (causa desconhecida), traumática, tumores intracranianos, malformações vasculares (aneurisma de comunicante posterior entre elas) e doenças sistêmicas (hi‑ pertensão arterial, diabete).3,7 O tratamento do estrabismo, quando possível, é cirúrgico com resultados não muito satisfatórios.7
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Suspeitar de baixa de acuidade visual em um ou ambos os olhos de acordo com a idade da criança. • Utilizar o teste do reflexo vermelho, o teste oftalmológico mais importante realizado pelo pediatra. • Avaliar a presença de estrabismo com o teste de Hirschberg. • Entender a importância do diagnóstico precoce de estrabismo para o tratamento da ambliopia. • Saber que crianças sem desvio ocular podem apresentar ambliopia, por isso, é importante comparar a visão entre os olhos. • Conhecer as diferentes opções terapêuticas no estrabismo (óculos, oclusão, cirurgia, etc.).
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CAPÍTULO 4
DOENÇAS DA CÓRNEA E DA CONJUNTIVA Francisco Bandeira e Silva Rubens Belfort Jr.
Alterações congênitas da córnea As alterações congênitas da córnea são fatores de risco para deficiência visual permanente ou cegueira. A prevalência de opacidades corneanas congênitas é de aproximadamente 3/100.000. O diâmetro da córnea de um recém-nascido mede de 9,5 a 10 mm. Aos 2 anos, alcança o tamanho que terá até o final da vida, cujas medidas são de aproximadamente 11,5 mm na ver‑ tical e 12 mm na horizontal. Microcórnea Córneas com diâmetro menor que 10 mm são microcórneas. Em geral, estão relacionadas à herança autossômica dominan‑ te. As associações sistêmicas mais comuns são: alcoolismo fe‑ tal e síndromes de Turner, Ehlers-Danlos, Weill-Marchesani, Waardenburg, Nance-Horan e Cornelia de Lange. Megalocórnea Em recém-nascidos, uma córnea de diâmetro maior que 12 mm é uma megalocórnea. A partir dos 2 anos, o valor é de 13 mm. É um distúrbio bilateral e simétrico, não progressivo, com herança recessiva ligada ao X. Entre as comorbidades associadas, encontram-se: alta miopia e subluxação do cris‑ talino, craniossinostose e síndromes de Down, Marfan e Alport. Pacientes que apresentam crescimento axial progressivo e/ ou assimétrico do globo ocular, proptose e exoftalmia devem ser encaminhados para avaliação da pressão intraocular e glaucoma congênito. Córnea plana Apresenta diâmetro maior que 10 mm e raio de curvatura infe‑ rior a 40 dioptrias. Associações comuns incluem: microcór‑ nea, esclerocórnea, microftalmo, mucopolissacaridoses e sín‑ drome de Peters. Frequentemente é bilateral e há predisposição ao glaucoma congênito.
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Anomalia/síndrome de Axenfeld A herança é autossômica dominante, mas a forma esporádica é a mais comum. Um defeito na migração da 3ª onda mesecto‑ dérmica resulta em formação de embriotoxo posterior com aderências iridoendoteliais, que podem ocasionar dano endo‑ telial e opacificação da córnea. A principal consequência é o glaucoma, que pode se desen‑ volver em 40 a 50% dos casos entre 3 e 30 anos de idade. Quando associada a anomalias esqueléticas, hiperteloris‑ mo e hipoplasia dos ombros, chama-se síndrome de Axenfeld. Anomalia/síndrome de Rieger De herança autossômica dominante, com expressividade va‑ riável e associação aos genes PITX2 e FOXC1. Caracteriza-se pela combinação de embriotoxo posterior e hi‑ poplasia de íris com cistos, corectopia e pseudopolicoria, ectrópio uveal, sinéquias anteriores e hipoplasia do estroma corneano. Ge‑ ralmente é bilateral e tem associação com glaucoma em 60% dos casos, principalmente durante a infância ou em adultos jovens. É chamada de síndrome de Rieger quando associada a ano‑ malias dentárias e faciais e pele umbilical redundante. Síndrome de Axenfeld-Rieger Engloba características de ambas as condições descritas ante‑ riomente. Anomalia de Peters Caracteristicamente, apresenta leucoma central da córnea (Fi‑ gura 1), com adesões irianas ou lenticulares na face posterior da córnea; a periferia é transparente na maioria dos casos. O tipo de herança é autossômica recessiva, mas é comum ser esporádica. É bilateral em 80% dos casos, e as associações oculares mais comuns são glaucoma, microftalmia e colobo‑ mas. A síndrome de Peters plus caracteriza-se pela presença simultânea de fenda labial/palatina, baixa estatura, pavilhão auricular anormal e retardo mental.
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As lesões podem ser únicas ou múltiplas, são esbranquiçadas no centro, com vascularização das bordas e localizam-se principalmente na região temporal inferior, podendo acometer a córnea, próximo ao limbo corneano. Na maioria dos casos, não há progressão, mas, durante a puberdade, pode haver aumento de tamanho. O tratamento pode ser clínico ou cirúrgico, de acordo com a extensão do dermoide, obstrução do eixo visual ou indução de astigmatismo.
Figura 1 Síndrome de Peters: leucoma central. Fonte: cortesia da dra. Maria Emília Xavier.
O pediatra não deve postergar o encaminhamento no caso de suspeita de síndrome/anomalia de Peters, pois há risco de piora do prognóstico visual para casos que têm indicação de transplante. Distrofia polimorfa posterior É uma distrofia rara, bilateral, assimétrica e assintomática, com herança autossômica dominante. Manifesta-se ao nascimento e não progride. As células endoteliais apresentam as mesmas características das epiteliais. Surge um padrão endotelial em vesícula, em faixa ou geográfico. Pode haver associação com síndrome de Alport e ceratocone. Distrofia endotelial congênita hereditária Ocorre pela ausência focal ou total do endotélio e edema de córnea. O aspecto varia de azul-acinzentado à opacidade total. Deve ser diferenciada de glaucoma congênito. Mucopolissacaridoses Em geral relacionadas a herança genética, há uma produção anormal de glicosaminoglicanos que se acumulam em tecidos e órgãos. Os pacientes tipicamente apresentam alterações faciais, esqueléticas, cardíacas e respiratórias. Patologias oculares são comuns em todos os tipos de mucopolissacaridoses e podem resultar em baixa visão, em decorrência de opacificação corneana, retinopatia e/ou aumento da pressão intraocular. As mucopolissacaridoses que apresentam opacidades corneanas mais importantes são a MPS IV (Morquio) e MPS VI (Marateaux-Lamy).
Trauma O edema de córnea secundário ao uso de fórceps é uma condição reconhecida de opacificação corneana neonatal. As quebras no endotélio são visíveis, lineares e unilaterais, correlacionando-se com o tipo de apresentação fetal. Olho vermelho O olho vermelho é uma condição complexa e inespecífica que pode envolver qualquer porção do olho da superfície ocular ao trato uveal. Conjuntivites podem causar cegueira: um único episódio grave pode ser suficiente para ocasionar sequelas ou alterações crônicas da superfície ocular. O pediatra pode realizar a avaliação e já iniciar o tratamento ou encaminhar diretamente ao oftalmologista durante a primeira avaliação, na qual devem constar: • uso de luvas: evita a disseminação de conjuntivite viral epidêmica; • avaliação da visão: em caso de redução da visão, encaminhar imediatamente; • exame com lanterna de bolso ou oftalmoscópio indireto: avaliação dos reflexos pupilares, transparência corneana e padrão de hiperemia; • uso de fluoresceína e do filtro azul do oftalmoscópio: diagnóstico de defeitos epiteliais; • tração das pálpebras: visualização do bulbo ocular, conjuntiva tarsal e pesquisa de corpos estranhos; • teste de motilidade ocular: processos orbitários podem limitar movimentos extraoculares; • anamnese detalhada e revisão sistemática completa: doenças sistêmicas podem se manifestar com olho vermelho; • trauma ocular: protetor de acrílico e encaminhamento do paciente ao pronto-socorro.
Ceratoconjuntivites infecciosas na criança Conjuntivite é toda inflamação da mucosa conjuntival caracterizada por hiperemia, vasodilatação, quemose e exsudação. Quando está associada a acometimento corneano, é chamada Dermoide epibulbar de ceratoconjuntivite. As conjuntivites são classificadas quanto ao tempo de apaConsistem em tecido conectivo de colágeno coberto por um epitélio epidermoide, que envolve o globo ocular. Podem ser recimento e duração em: uni ou bilaterais e em mais de 85% das vezes estão localizadas • conjuntivites neonatais (ophthalmia neonatorum): 1º mês de vida; na superfície ocular. O padrão de herança é variável, pode ser autossômico dominante, recessivo, ligado ao X ou multifato- • hiperagudas: início em até 24 horas; rial. As síndromes de Goldenhar e Treacher Collins são fre- • agudas: iniciam-se em horas a dias e duram até 3 semanas; • crônicas: duram mais que 3 semanas. quentes.
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Doenças da Córnea e da Conjuntiva •
Nos adolescentes, o principal fator de risco é o uso de lentes de contato, apresentando alta frequência de infecção por Pseudomonas aeruginosa e Acanthamoeba spp. Quando não há história de trauma, deve-se pensar em doença ocular prévia e infecção secundária (p.ex., alergia crônica, doenças sistêmicas ou imunossupressão). Em recém-nascidos, deve-se considerar contaminação pelo canal de parto, como herpes e gonorreia, ou conjuntivite química. Infecções bacterianas Conjuntivites bacterianas São autolimitadas e caracterizadas por descarga purulenta abundante. Raramente atingem a córnea, exceto em casos de conjuntivite hiperaguda por bactérias muito virulentas, como Neisseria gonorrhoeae e N. meningitidis. Nessa situação, o pediatra deve realizar notificação compulsória, tratar sistemicamente e encaminhar, pois há risco de perfuração ocular (Figura 2). Ceratites bacterianas Os principais fatores de risco relacionam-se com a deficiência dos mecanismos de defesa corneana: uso crônico de lente de contato ou colírios, hipoestesia corneana, trauma ou cirurgia. Os microrganismos mais envolvidos são Staphylococcus aureus, Streptococcus pneumoniae e Pseudomonas aeruginosa. A primeira linha de tratamento é a monoterapia com fluoroquinolonas de 4ª geração. Em casos de etiologia gonocócica ou por clamídia, deve ser investigado abuso sexual. Infecções virais Herpes simples (HSV) O HSV I é o principal agente etiológico das ceratites corneanas virais. A infecção primária é assintomática e autolimitada. Gatilhos reconhecidos para reativação são: infecções, febre, sol e trauma. A doença ocular primária caracteriza-se por vesículas ao redor do olho (Figura 3), que ulceram e evoluem para crostas em cerca de 7 dias. O quadro clínico pode ser confundido com impetigo ou blefarite bacteriana. Linfonodomegalia pré-auricular é um achado frequente na primoinfecção. Na primoinfecção, o pediatra pode tratar as lesões com antiviral tópico, quando elas se localizam na pálpebra ou próximas ao olho.
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Figura 2 Conjuntivite gonocócica com perfuração ocular. Fonte: cortesia do Departamento de Oftalmologia da Unifesp.
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Figura 3 Ceratite herpética dendrítica.
Fonte: cortesia do Departamento de Oftalmologia da Unifesp.
O tratamento da ceratite epitelial pode incluir o debridamento e a aplicação ocular de antiviral tópico (aciclovir pomada oftálmica a 0,3%, 5 vezes/dia, por 10 a 14 dias). O tratamento via oral nas mesmas doses é uma boa alternativa em casos de difícil aplicação, cooperação ou toxicidade. Para menores de 18 meses, a dose é de 100 mg, 3 vezes/dia; de 18 meses a 3 anos, 200 mg, 3 vezes/dia; 3 a 5 anos, 300 mg, 3 vezes/ dia; a partir dos 6 anos, 400 mg, 3 vezes ao dia. A profilaxia antiviral é reservada para casos de recorrência. A dosagem em crianças com mais de 2 anos de idade é a mesma usada em adultos (400 mg, 2 vezes/dia). A metade dessa dose deve ser dada a crianças menores de 2 anos de idade. Deve-se manter profilaxia enquanto o uso do corticosteroide for necessário. Varicela e herpes zóster É causada pelo vírus varicela-zóster, cuja infecção primária pode apresentar pápulas que erodem na região palpebral ou no limbo. Na reativação da doença, na forma do herpes zóster, pode haver quadro de conjuntivite associado. Após uma crise de catapora, o vírus mantém-se latente na raiz ganglionar de nervos sensitivos e, quando há reativação, projeta-se para a pele e os olhos. O herpes zóster oftálmico (HZO) ocorre em 15% dos casos, quando o ramo oftálmico do trigêmeo está comprometido. O HZO na infância é muito raro, mas casos de catapora precoce aumentam o risco. O uso precoce de altas doses de antiviral sistêmico reduz a severidade e as complicações do HZO. Adenovírus O adenovírus causa conjuntivite folicular aguda, que pode ser dividida em 2 tipos. A febre faringoconjuntival caracteriza-se por conjuntivite com comprometimento sistêmico das vias aéreas superiores, linfonodomegalia pré-auricular e febre. O período de incubação pode variar de 3 a 10 dias. O quadro é extremamente contagioso e tem evolução boa, com cura espontânea em até 2 semanas. A ceratoconjuntivite epidêmica tem quadro semelhante ao da febre faringoconjuntival, mas pode ser mais grave com ceratite (Figura 4) e não há acometimento sistêmico. A sintomatologia tem seu auge por volta de 5 a 7 dias do início dos sintomas, e a resolução pode demorar até 3 semanas. Em 50% dos casos, o olho contralateral é acometido.
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O tratamento é sintomático, com compressas de água gelada e lágrimas artificiais. Compressas com água boricada são contraindicadas, por serem irritativas às pálpebras. A higiene é fundamental para evitar a transmissão. Pode haver baixa de visão em virtude de infiltrados imunológicos subepiteliais, cuja resolução é lenta e pode durar vários meses.
máticos. O tratamento sistêmico tem o objetivo de evitar a pneumonite que ocorre após 3 a 13 semanas da conjuntivite. Utiliza-se estearato de eritromicina (30 a 50 mg/kg/dia) dividido em 3 a 4 doses diárias, durante 2 semanas. Pomada ocular de eritromicina (0,5%) pode ser usada 3 a 4 vezes/dia, durante 10 dias.
Conjuntivites neonatais Apresentam-se em recém-nascidos no 1º mês de vida. O tempo pós-parto de aparecimento dos sinais tem relação importante com os agentes causadores: • tóxica (química): 1 a 2 dias de vida; • gonocócica: 2 a 5 dias; • herpes simples: 5 a 7 dias; • clamídia: 5 a 19 dias.
Doenças externas Blefarite anterior Em crianças, a principal causa de blefarite anterior é a infecção estafilocócica, sobretudo por Staphylococcus epidermidis. As pálpebras apresentam-se hiperemiadas, espessadas, com telangiectasias e escamas, crostas ou úlceras superficiais nas margens. Pode haver madarose e poliose. Hordéolos e foliculites de repetição são frequentes. As principais queixas são ardor, prurido, sensação de corpo estranho, lacrimejamento e secreção (“olhos colados”). Os sintomas são mais importantes quando há ceratite, que pode resultar em neovascularização, úlceras e cicatrizes. O tratamento consiste em higiene palpebral com xampu neutro e curtos períodos de antibióticos tópicos, como pomada oftalmológica de eritromicina a 0,5%, aplicados na borda palpebral ou no fundo de saco. Esteroides tópicos podem ser prescritos nos casos com ceratite associada. Em casos refratários, está indicado o tratamento sistêmico, e o antibiótico de preferência para menores de 12 anos é a eritromicina. Em casos de recidivas múltiplas, está indicada a avaliação com imunologista.
Conjuntivite química É a principal causa de conjuntivite neonatal, causada pela profilaxia antigonocócica com nitrato de prata a 1%. É caracterizada por olho vermelho e secreção clara, com resolução espontânea em 2 a 3 dias. Conjuntivite gonocócica Extremamente grave, pois podem levar à perfuração corneana. O quadro é hiperagudo, com secreção purulenta intensa, blefaroedema e quemose. Há associação com quadros sistêmicos de meningite, pneumonite, artrite, proctite e rinite. Quando há comprometimento da córnea, a internação hospitalar é obrigatória, assim como uso de antibiótico via oral ou endovenosa: penicilina G, ceftriaxona ou cefotaxima. Em casos sem ceratite, pode-se utilizar ceftriaxona 1 g intramuscular (dose única) ou eritromicina oral 50 mg/kg/dia. Deve-se fazer lavagem abundante, a cada hora. A presença de outras doenças sexualmente transmissíveis (DST), tanto nos pais quanto no recém-nascido, é comum. Herpes neonatal A maioria das infecções neonatais pelo HSV ocorre por contaminação materna intraparto; os sinais aparecem entre o 5º e o 7º dia de vida, como uma blefaroconjuntivite, e o HSV II é o agente mais comum. A avaliação clínica para a doença sistêmica é fundamental para afastar complicações mais graves, como eritema vesicular, sepse, colapso respiratório, insuficiência hepática, coagulação intravascular disseminada (CIVD) e acometimento do sistema nervoso central (SNC). O tratamento da infecção ocular pelo HSV no neonato é feito com aciclovir endovenoso (5 a 10 mg/kg a 8 cada horas) por um período de 14 a 21 dias. Conjuntivite por clamídia A conjuntivite por Chlamydia trachomatis é a mais comum das conjuntivites neonatais. Ocorre entre o 5º e o 19º dias de vida, como uma conjuntivite mucopurulenta e com papilas. É comum a associação com otite média, rinite, vaginite e pneumonia intersticial afebril. O diagnóstico é feito por imunofluorescência direta ou por Giemsa, observando-se corpúsculos de inclusão intracitoplas-
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Hordéolo É uma inflamação aguda e nodular das glândulas da pálpebra. Pode ser interna ou externa, popularmente chamada de terçol. Pode ser estéril ou precipitada por uma infecção estafilocócica aguda. Calázio É uma reação lipogranulomatosa crônica e estéril de uma das glândulas tarsais (de Meibômio). A resolução pode ser espontânea. O tratamento clínico consiste em compressas locais mornas e higiene das pálpebras. Opta-se por excisão e curetagem cirúrgicas em casos refratários. Conjuntivites cicatriciais Síndrome de Stevens-Johnson É uma doença bolhosa aguda grave que acomete a pele e duas ou mais mucosas, com comprometimento ocular associado. No olho, causa conjuntivite crônica e pode levar a insuficiência límbica com consequências graves, como opacificação corneana e defeitos epiteliais persistentes com risco de perfuração. A história de internação recente com administração de diversas drogas pode ajudar no diagnóstico diferencial. O tratamento consiste na identificação e na remoção do agente causal. Na fase aguda, indicam-se lubrificação intensa, corticosteroide tópico, vitamina C (2 g/dia) e antibiótico tópico. Em alguns casos, são necessárias múltiplas cirurgias para resolução dos defeitos.
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Doenças da Córnea e da Conjuntiva •
Tracoma Conjuntivite crônica, insidiosa e bilateral causada pela Chlamydia trachomatis, que evolui com fibrose conjuntival, olho seco, entrópio, triquíase e opacidades corneanas difusas, que podem levar a cegueira. Os principais fatores de risco são condições sanitárias precárias e maus hábitos de higiene. A fase ativa da doença tem um pico de prevalência entre as crianças na faixa etária de 0 a 10 anos. Alergia ocular As conjuntivites alérgicas afetam até 40% da população e são reconhecidas 6 formas principais: aguda, sazonal, perene, primaveril, atópica e papilar gigante. As mais comuns são a sazonal e a perene. As conjuntivites primaveril e atópica são mais graves. Sintomas comuns a todas as formas incluem prurido ocular, sensação de corpo estranho, lacrimejamento, secreção mucosa e fotofobia. Para todas as formas, o acompanhamento com alergologista é importante na orientação, identificação e eliminação de gatilhos. Medidas gerais (uso de compressas geladas e lágrimas artificiais) são úteis para alívio dos sintomas. Conjuntivite alérgica aguda Ocorre após inoculação de grandes quantidades de alérgenos e tem quadro autolimitado. O blefaroedema é o sinal mais característico. Conjuntivites alérgicas sazonal e perene (rinoconjuntivite alérgica) Corresponde a mais de 90% dos casos de alergia ocular. A forma sazonal é a mais comum e surge principalmente no verão e na primavera. A perene é mais crônica e branda, e os sintomas persistem o ano todo, com exacerbações nos períodos de maior exposição aos gatilhos. O tratamento é feito com anti-histamínicos orais e tópicos, estabilizadores de mastócitos e colírios com ambas as ações.
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Figura 4 Conjuntivite vernal.
Fonte: cortesia do Departamento de Oftalmologia da Unifesp.
progredir com insuficiência límbica, vascularização e opacificação corneana. O tratamento é semelhante ao da conjuntivite vernal. Ceratocone Segundo o Consenso Global de Ceratocone, é um distúrbio ectático, bilateral, não inflamatório, que resulta em alteração da forma corneana, tomando um formato de cone. Em geral, o acometimento é assimétrico, com início na puberdade e progressão até a fase adulta, o afinamento é inferior e coincide com o ápice da córnea (Figura 5). É mais prevalente em portadores de prolapso de válvula mitral, síndromes de Down, Turner, Marfan e Ehlers-Danlos. O padrão de herança é indefinido. A prevalência é de 0,05 a 0,5% e queixas de distorção de imagens, “fantasmas”, diplopia e mudanças frequentes na refração são sugestivas de ceratocone. O tratamento visa à correção refracional e ao controle do prurido. O crosslinking é um procedimento novo que promove o enrijecimento da córnea e a estabilização do quadro, e seu objetivo é evitar complicações que podem levar ao transplante de córnea, como piora progressiva e refratária da visão, hidropisia, cicatrizes e opacificações (Figura 6).
Conjuntivite primaveril ou vernal É crônica e bilateral. Asma ou eczema atópico são frequentes. Primavera, climas secos e quentes provocam exacerbações. É mais comum entre 5 e 15 anos, mais prevalente em meninos e há melhora do quadro com o final da puberdade. Há formação de macropapilas (Figura 4) e úlceras assépticas que podem levar a cicatrizes e sequelas visuais. O prurido deve ser evitado, pois é um dos principais fatores de risco para evolução da doença e ceratocone. Anti-histamínicos reduzem o prurido, mas não controlam a doença. Em casos refratários, pode-se indicar tratamento com imunomoduladores (p.ex., tacrolimo). Conjuntivite atópica Bilateral, mais comum em homens com dermatite atópica entre a 2ª e a 5ª década da vida. Há agudização em várias épocas do ano, especialmente nas estações frias. Sinais e sintomas extraoculares, como asma, rinite, dermatite atópica e eczema são comuns. Não é autolimitada e pode
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Figura 5 Ceratocone.
Fonte: cortesia do Departamento de Oftalmologia da Unifesp.
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Figura 6 Hidropisia aguda e sequela pós-hidropisia. Fonte: cortesia do Departamento de Oftalmologia da Unifesp.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer as principais entidades que causam alterações congênitas e as doenças sistêmicas associadas a elas. • Saber que as opacidades congênitas podem ter tratamento e que este deve ser precoce para evitar déficit visual permanente. • Realizar a propedêutica inicial de quadros de olho vermelho e instituir o tratamento quando adequado. • Diferenciar as principais causas de alergia ocular, orientar a respeito do controle do prurido, medidas gerais e acompanhamento com oftalmologista.
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CAPÍTULO 5
GLAUCOMA CONGÊNITO E INFANTIL Bruno L. B. Esporcatte Camila Fonseca Netto Christiane Rolim de Moura
Definição O glaucoma na infância é um grupo de doenças raras, as quais cursam com pressão intraocular elevada, lesão no nervo óptico, impacto no desenvolvimento do globo ocular e diminuição da acuidade visual. Pode ser dividido em primário ou secundário. O glaucoma congênito primário é caracterizado por uma falha no desenvolvimento do seio camerular, estrutura responsável pelo escoamento do líquido que preenche a câmara anterior do olho (humor aquoso). Essa malformação resulta em dificuldade na drenagem do humor aquoso e, consequentemente, ao au‑ mento da pressão intraocular. Nos casos secundários, o aumen‑ to pressórico é provocado por alterações sistêmicas ou oculares, presentes já ao nascimento ou adquiridas ao longo da infância.1,2 Epidemiologia O glaucoma congênito primário é a principal causa de glauco‑ ma na infância, perfazendo 50 a 70% de todos os casos de glaucoma nessa faixa etária. Trata-se de uma condição rara com dados imprecisos sobre sua incidência. Estudos popula‑ cionais realizados nos EUA estimam que ocorra um caso de glaucoma congênito primário para cada 10.000 nascidos vi‑ vos.3 Em um protocolo prospectivo realizado na Grã-Bretanha, foram diagnosticados 35 novos casos de glaucoma congênito primário entre 646.887 nascimentos ocorridos em 2002 (1/18.500).4 A maioria dos casos são bilaterais (65 a 80%) e manifestam-se no 1º ano de vida (75%), dos quais 25% já estão presentes ao nascimento. A doença tem prevalência maior em pacientes do sexo masculino (65%).5 Quanto à genética, os glaucomas são um grupo complexo de doenças com uma heterogeneidade considerável. A maior parte dos casos de glaucoma congênito primário é esporádica e não hereditária. Pacientes com um padrão familiar normal‑ mente mostram uma herança recessiva com penetrância in‑ completa ou variável. A doença é familiar em 10 a 40% dos ca‑ sos, com penetrância variável (40 a 100%). Quatro loci estão associados a essa doença. O primeiro e mais importante foi mapeado no cromossomo 2p21 (GLC3A),
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o segundo no cromossomo 1p36 (GLC3B), o terceiro e quarto loci no cromossomo 14q24 (GLC3C e GLC3D). Entretanto, ape‑ nas dois genes foram identificados como causadores de glau‑ coma congênito primário: CYP1B1 (citocromo P450, família 1, subfamília B, polipeptídeo 1) no lócus GLC3A, e LTBP2 (com‑ plexo latente de ligação à proteína do fator de transformação de crescimento beta 2). O papel das proteínas codificadas por esses genes na etiologia da doença ainda não está totalmente esclarecido. O gene CYP1B1 é membro da superfamília dos citocromos p450 e codifica uma proteína de 543 aminoácidos. Mutações nesse gene em pacientes com glaucoma congênito primário foram identificadas em frequência variável (entre 20 e 100%), com alta taxa de prevalência em populações etnicamente ho‑ mogêneas. Algumas mutações no CYP1B1 foram descritas também no glaucoma juvenil de ângulo aberto. Essa forma de glaucoma também é considerada primária da infância – porém não há, em geral, imaturidade no desenvolvimento do seio camerular, o qual se apresenta normal ao exame de gonioscopia. Foi des‑ crita associação do glaucoma juvenil a mutações no gene myocilin (MYOC), nas formas autossômicas dominantes. No glaucoma secundário da infância, associado a outras alte‑ rações oculares e sistêmicas – como a síndrome de Sturge-We‑ ber, a anomalia de Peters e a síndrome de Axenfeld-Rieger –, as malformações do seio camerular podem ser mais comple‑ xas. Apesar de alterações nos genes PITX2, FOXC1 e PAX6 se‑ rem mais frequentemente descritas nessas doenças, muta‑ ções no CYP1B1 também foram encontradas em alguns casos. O estudo do perfil genético e ancestral dos pacientes com glaucoma congênito primário ampliou o conhecimento sobre o gene CYP1B1; porém, ainda permanece controversa a rela‑ ção genótipo-fenótipo nessa doença. É possível que exista uma associação entre as bases genéticas e a gravidade do glau‑ coma congênito. Um maior conhecimento dessa associação eventualmente permitirá a detecção precoce da doença, um melhor entendimento da sua fisiopatologia e história natural e,
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talvez, a definição de uma terapia mais racional e direcionada para cada subtipo. Quadro clínico O glaucoma na infância possui sinais e sintomas diferentes daqueles observados nos adultos. Uma tríade clássica de apresentação é composta por: lacrimejamento abundante (epífora), fotofobia e contração excessiva das pálpebras (blefaroespasmo). Esses sintomas são decorrentes da irritação causada pela difração da luz quando atinge o tecido corneano edemaciado pela pressão intraocular elevada (Figura 1). O quadro, em geral, instala-se em crianças menores de 3 anos, propensas a apresentar distensão do globo ocular em resposta à elevação da pressão intraocular. Esse aumento do globo se dá em função da imaturidade do colágeno corneano e escleral e é a causa do surgimento dos seguintes sinais: aumento do diâmetro da córnea; rotura da camada interna corneana – levando a edema e formação de estrias chamadas de Haab; aumento axial do globo ocular (buftalmo); aumento da escavação do nervo óptico; e, em casos avançados, a luxação do cristalino (Figura 2). Em diferentes patologias, são vistos sinais que devem chamar a atenção do pediatra em virtude da possibilidade de associação com o glaucoma (Tabela 1). A síndrome de Axenfeld-Rieger cursa com anomalias irianas (hipoplasia, buracos irianos e alteração do formato pupilar), as quais podem ser notadas à inspeção ocular. Além disso, alguns sinais sistêmicos chamam a atenção para o diagnóstico, como alterações dentárias (microdontia, hipodontia ou anodontia) e dos ossos da face (prognatismo, micrognatia, hipertelorismo).
Figura 1 Aumento do diâmetro corneano do olho direito. Fonte: Departamento de Oftalmologia da EPM-Unifesp.
Figura 2 Criança com glaucoma congênito apresentando lacrimejamento e fotofobia. Fonte: Departamento de Oftalmologia da EPM-Unifesp.
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Tabela 1 Sinais e sintomas do glaucoma na infância que podem ser detectados pelo pediatra Epífora sem secreção Fotofobia Blefarospasmo Queixa dos familiares de aumento do globo ou assimetria entre os olhos Dificuldade de fixação com o olho acometido Aumento do diâmetro da córnea Aumento do globo ocular (buftalmo) Perda de brilho da córnea Ausência de reflexo vermelho
O glaucoma também está frequentemente associado à síndrome de Sturge-Weber. É uma alteração congênita rara caracterizada por malformações vasculares cutâneas, meníngeas e oculares. Cerca de 30 a 70% dos pacientes com essa síndrome podem desenvolver o glaucoma, sendo que metade desse percentual inicia o quadro antes dos 4 anos de idade. Caracteristicamente, o olho envolvido é o homolateral à face afetada pelo hemangioma. A neurofibromatose tipo 1 (doença de von Recklinghausen) é uma doença autossômica dominante que apresenta alterações em diversos órgãos, sendo caracterizada pela tríade: tumorações nos nervos e no subcutâneo e manchas pigmentadas “café-com-leite”. Pode cursar com glaucoma unilateral, sendo que, em média, 50% dos casos ocorrem quando há neurofibroma palpebral ou orbital. Outros glaucomas secundários a malformações mais complexas são aqueles relacionados à síndrome de Peters e à aniridia. A síndrome de Peters corresponde a um defeito na formação da câmara anterior do globo ocular, que resulta na manutenção, após o nascimento, de aderências entre o cristalino e a córnea, causando opacidades corneanas congênitas e glaucoma em aproximadamente 50% dos casos. A síndrome de Peters pode estar associada a outras anomalias do desenvolvimento da crista neural – então chamada de síndrome de Peters plus. Nesses casos, pode haver fenda palatina, anormalidades das orelhas, dextrocardia, anormalidades do sistema nervoso central (SNC), agenesia do trato urinário, baixa estatura, dismorfismo facial, laringomalacia e macroglossia. Na aniridia, existe a ausência variável da íris, que é hipoplásica e rudimentar. Bilateral na maior parte dos casos, tem um padrão de herança autossômico dominante, com a penetrância incompleta. O glaucoma manifesta-se em 50 a 75% dos pacientes, em geral, na infância tardia ou na adolescência. A criança deve ser monitorada para o desenvolvimento de tumor de Wilms, em especial se detectada a mutação no gene PAX6. Na vigência do acometimento desse gene, anormalidades geniturinárias e retardo mental são frequentes.6 Dentre as causas secundárias adquiridas, o glaucoma corticogênico é o único que pode ser prevenido. O uso de corticosteroides, independentemente da via de administração (tópico, inalatório, oral ou endovenoso), pode provocar hipertensão
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GLAUCOMA CONGêNITO E INFANTIL •
Diagnóstico O sucesso do exame da criança depende de tempo, habilidade do médico e, principalmente, da cooperação do paciente. Uma boa anamnese e o exame clínico são de grande valia para o diag‑ nóstico. A inspeção sob a luz ambiente permite a pesquisa da fotofobia. O diâmetro da córnea é um importante parâmetro a ser avaliado de maneira aproximada no exame externo dos olhos (ectoscopia). Diâmetros corneanos horizontais maiores que 11 mm no recém‑nascido, que 12 mm no 1º ano de vida e que 13 mm a partir do 2º ano de vida são medidas que levam a sus‑ peitar do diagnóstico de glaucoma. Com o auxílio de uma fonte luminosa, é possível realizar a pesquisa do reflexo vermelho. Esse reflexo está ausente no glaucoma da infância, quando há edema ou opacidade da cór‑ nea, a qual adquire um aspecto acinzentado e sem brilho, im‑ pedindo a retina de receber e refletir a luz, como o faz em con‑ dições normais. Quando a doença se manifesta no período neonatal, o “tes‑ te do olhinho” – obrigatório em inúmeras maternidades do país – dá o primeiro sinal de alerta para detecção do glaucoma da infância. Em casos excepcionais, o recém‑nascido já tem o glaucoma instalado, porém o teste acusa a presença do reflexo vermelho à ocasião da alta. Isto porque a córnea, apesar de so‑ frer distensão e aumento de seu diâmetro, pode ainda perma‑ necer transparente nas fases iniciais de hipertensão ocular, e o edema corneano irá desenvolver‑se nas semanas seguintes. A partir dos 2 meses de vida, já é possível perceber dificul‑ dade à fixação nas crianças com glaucoma. As crianças maio‑ res podem referir dificuldade visual, embora não necessaria‑ mente. Quando as crianças são mais colaborativas, o exame oftal‑ mológico deve ser realizado à lâmpada de fenda, assim como a aferição da pressão ocular feita com o tonômetro de Goldman, ou ainda com o tonômetro de ICare® (que tem se mostrado rá‑ pido e acurado para aquisição do valor da pressão ocular). Iso‑ ladamente, a pressão ocular elevada não fecha o diagnóstico de glaucoma, pois, muitas vezes, em razão da falta de coope‑ ração da criança ou pelas características de alguns tonômetros, a pressão pode parecer falsamente elevada à mensuração. Caso seja impossível realizar o exame oftalmológico ambula‑ torial, é necessário examinar a criança com a suspeita de glau‑ coma sob anestesia geral. Nesses casos, a primeira aferição que se faz é a medida da pressão ocular. Alguns sedativos po‑ dem influenciar o valor pressão de maneiras variadas e, para
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minimizar esse possível viés, a medida deve ser feita tão logo a criança entre em plano anestésico. A propedêutica básica ainda deve contar com: medida obje‑ tiva do diâmetro corneano – então feita com compasso; ava‑ liação da transparência corneana; profundidade da câmara anterior; exame biomicroscópico da íris; realização da gonios‑ copia (avaliação do seio camerular) e da fundoscopia. A medida do diâmetro anteroposterior do globo serve tanto para o diagnóstico quanto para o acompanhamento feito após as abordagens cirúrgicas. Essa medida é obtida por meio da biometria – método ultrassonográfico ou óptico –, que calcula a distância entre superfície anterior da córnea e a retina. Esses valores são comparados com dados normativos e podem ser inseridos em gráficos de crescimento axial do globo ocular por idade (Figura 3). As medidas acima dos percentis normais, que avançam em crescimento exponencial em exames suces‑ sivos, chamam a atenção para a progressão da doença. Alguns diagnósticos diferenciais devem ser levados em consideração durante a avaliação da criança, por exemplo: obstrução de vias lacrimais (lacrimejamento); megalocórnea; trauma de parto (com lesão das camadas internas da córnea pela apreensão pelo fórceps); alta miopia; ceratites (traumáti‑ cas e virais – herpética e rubéola); e distrofias corneanas con‑ gênitas. Tratamento O tratamento medicamentoso do glaucoma congênito primá‑ rio deve ser instituído apenas em caráter temporário, enquan‑ to não for possível realizar o procedimento cirúrgico. Em geral, é feito com colírios hipotensores. As abordagens cirúrgicas ini‑ ciais têm por objetivo remover a obstrução relacionada à mal‑ formação do seio camerular, estabelecendo a rota de escoa‑ mento convencional do humor aquoso. Na presença de transparência corneana que permita a ob‑ servação do seio camerular, pode‑se realizar a goniotomia, técnica na qual é feita a secção interna do tecido malformado com o auxílio de um instrumento cortante.
Comprimento axial (mm)
intraocular. Caso anteceda os 3 anos de idade, costuma simu‑ lar um quadro de glaucoma congênito primário. Nas crianças maiores, simula o glaucoma juvenil. A capacidade hipertensi‑ va da medicação está relacionada à sua potência, concentra‑ ção e via de administração, sendo a via tópica ocular a mais desfavorável nesse aspecto. A cegueira por glaucoma corticogênico atinge todas as fai‑ xas etárias, no entanto, as crianças apresentam maior sensibi‑ lidade ao efeito hipertensivo ocular da medicação em compa‑ ração aos pacientes adultos jovens.7 Outro efeito colateral da corticoterapia prolongada é o desenvolvimento de catarata.
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Idade (meses) Figura 3 Diâmetro axial em milímetros (eixo Y), plotado versus idade em meses (eixo x). As áreas entre os limites superiores e inferiores da curva representam o desvio‑ ‑padrão do comprimento axial e a curva média representa a média de comprimento de olhos normais. Fonte: adaptada de Sampaolesi e Caruso, 1982.9
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Quando houver opacidade de meio – por edema corneano –, que impeça a observação da câmara anterior, a opção cirúrgica é a trabeculotomia. Nela, sob um retalho escleral perilimbar, a via de drenagem convencional (canal de Schlemm) é canulada (com o uso de uma haste metálica, o trabeculótomos de Harms) e, após rotação do aparato em direção à câmara ante‑ rior, cria-se uma comunicação direta desta com o canal citado. Caso as cirurgias angulares citadas não consigam atingir um controle satisfatório da pressão intraocular – evidenciado pela melhora do edema corneano e pela estabilização do cres‑ cimento do globo ocular –, o passo seguinte é optar entre a tra‑ beculectomia ou um implante de drenagem (ambos são proce‑ dimentos que criam uma via não convencional de escoamento do humor aquoso). Prognóstico O prognóstico visual do paciente depende em grande parte da precocidade do diagnóstico e do início da terapia. Khitri et al.,8 em revisão de prontuários do Hospital Pediátrico da Filadélfia, observaram que 60,1% dos pacientes com diagnóstico de glau‑ coma congênito apresentavam boa acuidade visual (melhor que 20/200), sendo que quanto menor a visão no momento do diagnóstico, pior o prognóstico visual. Nessa amostra, 62,9% dos pacientes necessitaram de mais de uma cirurgia para conse‑ guir um controle satisfatório da pressão intraocular, sendo o nú‑ mero de intervenções cirúrgicas inversamente proporcional à qualidade final da visão.8 Tão logo seja possível, todas as crianças devem receber o tratamento para correção das ametropias residuais e estimula‑ ção visual. Prevenção Os glaucomas da infância devem ser detectados e tratados com presteza, assim evitando as consequências nefastas da elevação da pressão intraocular. Ressalta-se, portanto, a im‑ portância do diagnóstico precoce, a fim de prevenir a evolução para a cegueira. A única causa evitável do desenvolvimento glaucoma na in‑ fância é a corticogênica. Todas as apresentações de corticoste‑ roides podem levar à hipertensão ocular e ao glaucoma. Por isso, deve-se desestimular a prescrição indiscriminada de colí‑ rios à base de corticosteroides por não especialistas. Quando necessário, seu uso deve ser limitado – e, de preferência, su‑ pervisionado. Crianças com indicação de corticoterapia sistê‑ mica prolongada devem ter acompanhamento oftalmológico periódico com medida da pressão intraocular e fundoscopia. Desafios Como o prognóstico visual final está relacionado à intervenção precoce, o desafio maior do glaucoma da infância é ampliar, na comunidade médica, a inclusão do exame oftalmológico bási‑ co na propedêutica perinatal e da infância. O pediatra deve, em todas as oportunidades, realizar a inspeção ocular à procu‑ ra de sinais como assimetria no globo ocular e perda do reflexo
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vermelho por opacidades corneanas. Crianças que apresentem reação alterada à luz e/ou lacrimejamento excessivo devem ser prontamente encaminhadas para avaliação especializada. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que 25% dos glaucomas congênitos são de aparecimento neonatal, detectáveis pelo “teste do olhinho” na saída da maternidade. • Reconhecer a tríade clássica do glaucoma congênito: epífora, blefaroespasmo e fotofobia. • Saber que o aumento do diâmetro da córnea é o sinal mais evidente do glaucoma na infância. • Saber que, depois dos 3 anos de idade, o aumento do globo ocular pela pressão é menos frequente e a medida da pressão intraocular é a única maneira de diagnosticar casos suspeitos. • Lembrar que uso de corticosteroide tópico ainda é a causa mais importante de cegueira por glaucoma na infância em nosso meio. • Saber que o glaucoma congênito leva à cegueira em 100% dos casos se não tratado, com grande custo de sofrimento e social para estes jovens. Suspeitas devem ser encaminhadas com urgência ao especialista.
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CAPÍTULO 6
DOENÇAS DA RETINA NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA André Corrêa de Oliveira Romano Rubens Belfort Neto
Anomalias congênitas e do desenvolvimento mais comuns Fossetas congênitas de papila A fosseta congênita de papila é uma depressão redonda ou oval na porção temporal do disco óptico. Geralmente única e unilateral, é uma anormalidade rara, encontrada em 1 a cada 11 mil pacientes. Consiste em herniação do tecido neuroectodérmico rudi‑ mentar, que contém elementos da retina sensorial, epitélio pigmentado da retina e tecido glial, penetrando pelo defeito do nervo óptico em direção ao espaço subaracnoide perióptico. A acuidade visual é normal. Aproximadamente 50% dos pacientes apresentam defeito de campo visual, incluindo: es‑ cotoma arqueado paracentral, aumento do ponto cego e cons‑ trição generalizada. Cerca de 40% dos olhos afetados apresen‑ tam descolamento seroso da retina, que se estende peripapilar até a região macular (Figura 1). Fibras de mielina A mielinização das vias ópticas inicia-se no corpo geniculado lateral no 5º mês de gestação, atingindo o quiasma no 7º mês, a porção retrobulbar do nervo óptico no 8º mês e a lâmina cri‑ vosa no 9º mês. A mielinização, porém, continua após o nasci‑ mento, atingindo a margem do disco óptico. A presença de fibras de mielina é uma condição benigna e não requer tratamento nenhum. É unilateral em 80% dos ca‑ sos e ocorre, predominantemente, no sexo masculino (Figu‑ ra 2). Alterações visuais não são frequentes, mas podem ser observadas, em casos raros, telangiectasias leves, neovascula‑ rização e oclusões vasculares. O acometimento macular é raro. Coloboma de disco óptico O coloboma de disco óptico é encontrado em 1 a cada 12 mil pa‑ cientes. Os colobomas verdadeiros resultam do fechamento in‑ completo da fissura embrionária: uma fenda ventral, às 6 horas, com surgimento em torno da 4ª semana de vida intrauterina e fechamento a partir da 5ª até o final da 6ª semana. Esse fecha‑
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mento inicia-se no centro e continua anteroposteriormente até a íris e o nervo óptico, no ponto de penetração da artéria hialoi‑ de. A fusão e o crescimento ocular devem coordenar-se de ma‑ neira perfeita; caso contrário, surge o coloboma verdadeiro, de diferentes tamanhos, mas sempre inferior.
A
B
C
D
Figura 1 Retinografia colorida. (A) Fosseta de papila próxima à margem temporal do disco óptico. (B) Angiorretinofluoresceinografia evidenciando hiperfluorescência com descolamento seroso temporal ao disco óptico, adjacente à fosseta de papila. (C e D) Tomografia de coerência óptica de domínio espectral mostrando fosseta no corte bidimensional e tridimensional temporal ao disco óptico.
Figura 2 Fibras de mielina ao redor do disco óptico esquerdo.
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Colobomas de nervo óptico podem ser uni ou bilaterais, es‑ porádicos ou autossômicos dominantes, apresentar altera‑ ções sistêmicas (Tabela 1) e têm sido associados a uma muta‑ ção no gene PAX6. A acuidade visual é bastante variável, dependendo do aco‑ metimento do feixe papilomacular. Vasculatura fetal persistente Conhecida no passado como persistência de vítreo primário hiperplásico, a vasculatura fetal persistente é resultado da fa‑ lha da regressão do vítreo primário, que surge no 1º mês de gestação e corresponde a um tecido vascular, incluindo vasos hialóideos, sustentado por arcabouço fibrilar. Em condições normais, o vítreo primário regride progressivamente e é subs‑ tituído pelo vítreo secundário ou adulto. Há três formas clínicas – anterior, posterior e intermediária – que apresentam características das duas primeiras. A forma anterior caracteriza-se por microftalmia, presença de massa glial retrolental vascularizada, tração do corpo ciliar e persis‑ tência da artéria hialoide; a posterior é microcórnea, com membranas vítreas, dobras retinianas e remanescentes da ar‑ téria hialoide, que são conhecidas como: • ponto de Mittendorf: é o remanescente anterior do sistema hialóideo. Apresenta-se como um pequeno ponto arredonda‑ do, branco, aderido à cápsula do cristalino, discretamente na‑ sal e inferior ao polo posterior da lente; • papila de Bergmeister: remanescente da artéria hialoide no nervo óptico, correspondendo ao tecido glial que se estende ao vítreo a partir da margem da cabeça do nervo óptico; • canal de Cloquet: corresponde ao local por onde se estende a artéria hialoide, patente ou ocluída, que pode estar presente desde a papila até o polo posterior do cristalino. A ultrassonografia ocular é importante complemento diagnós‑ tico nesses casos. A persistência de vítreo primário hiperplásico é uma causa importante de leucocoria na infância (Tabela 2), com prognós‑ tico geralmente ruim. Podem ser realizadas lensectomia e re‑ moção da membrana fibrovascular, com pobre resultado visual.
Tabela 1 Anormalidades sistêmicas associadas a coloboma do disco óptico Malformações do sistema nervoso central (SNC) Anencefalia Agenesia do corpo caloso Encefalocele esfenoidal Anormalidades cromossômicas Trissomia 13-15 (síndrome de Patau) Trissomia 18 (síndrome de Edward) Síndromes congênitas Síndrome de Meckel-Gruber (AR) Síndrome de Goltz Síndrome de microftalmia de Lenz
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Tabela 2 Diagnóstico diferencial de leucocoria Retinoblastoma Toxocara Doença de Coats Displasia retiniana Catarata Persistência de vítreo primário hiperplásico Retinopatia da prematuridade Endoftalmite Meduloepitelioma Fibras de mielina Coloboma de nervo óptico Síndrome morning glory Hemorragia vítrea Descolamento de retina Uveíte
Distrofias hereditárias da retina e da coroide Distrofias retinianas Distrofia de bastonetes Retinose pigmentária
A retinose pigmentária é caracterizada pela deterioração pro‑ gressiva das células visuais, do epitélio pigmentado e da coroi‑ de, sendo mais adequado o nome distrofia pigmentária da re‑ tina. Há uma disfunção de células fotorreceptoras, afetando primariamente os bastonetes. Mais tardiamente, também po‑ dem ocorrer alterações dos cones e do epitélio pigmentado da retina. O estreitamento vascular, a pigmentação tipo espículas ós‑ seas (osteoclastos) e a palidez cérea do disco óptico são carac‑ terísticas clínicas clássicas. Pode haver associação com edema macular cistoide, glaucoma, miopia e catarata subcapsular posterior. O quadro é bilateral, progressivo, iniciando-se no equador do bulbo ocular, seguindo para a periferia e o polo posterior. Nessa fase, a cegueira noturna é frequente, dificultando a lo‑ comoção em ambientes pouco iluminados. Grande número de doenças é classificado como retinose pigmentária, algumas apresentando manifestações sistêmi‑ cas, como amaurose congênita de Leber, doença de Gold‑ mann-Favre, síndrome de Usher e síndrome de Bardet-Biedl (Tabela 3). Embora a retinose pigmentária possa se manifestar em pra‑ ticamente todas as faixas etárias, a maioria dos pacientes co‑ meça a apresentar sintomas na adolescência e no início da ida‑ de adulta. Aos 30 anos, 75% dos pacientes são sintomáticos. A mutação ocorre no gene da rodopsina, apresentando he‑ terogeneidade não alélica, pois diferentes mutações em dife‑ rentes genes levam a graus variáveis da mesma doença. A for‑ ma esporádica é a mais frequente (40%). Os padrões de herança genética identificados são: autossômica recessiva (20%), autossômica dominante (10 a 20%) e herança ligada ao X (10% e mais grave).
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Doenças da Retina na Infância e na Adolescência •
Tabela 3 Retinose pigmentária e doenças associadas Retinose pigmentária – subtipos Autossômica recessiva Autossômica dominante Ligada ao X Amaurose congênita de Leber Retinose pigmentária e doenças sistêmicas Síndrome de Usher Doença de Alstrom Síndrome de Bardet-Biedl Síndromes retinorrenais Doenças mitocondriais Outras doenças relacionadas a fotorreceptores Cegueira noturna congênita estacionária Retinosquise juvenil ligada ao X Síndrome de Goldmann-Favre Atrofia girata
O uso de altas doses de vitamina A tem se mostrado pro‑ missor na desaceleração da doença. Estudos mostram melho‑ ra na resposta da função dos bastonetes após o uso de suple‑ mentação oral de vitamina A. Progressos no campo de prótese neural têm convergido com avanços em cirurgia vitreorretinia‑ na para possibilitar o desenvolvimento de próteses retinianas implantáveis para pacientes com retinose pigmentária. O im‑ plante pode ser dividido, de acordo com a localização da pró‑ tese, em superfície retiniana, espaço sub-retiniano e ao redor do nervo óptico. Essa alternativa parece ter papel promissor no futuro tratamento de doenças como a retinose pigmentária. Síndrome de Usher
A síndrome de Usher é um grupo de distúrbios autossômicos recessivos caracterizados por perda congênita neurossensorial da audição e disfunção vestibular associada à retinose pig‑ mentária, correspondendo a 18% de todos os pacientes com essa condição. Apesar de prevalência estimada entre 2 e 6 em cada 100 mil indivíduos, a síndrome de Usher corresponde a 5% do total de crianças com surdez profunda, sendo responsável por cerca da metade dos casos de cegueira associada à surdez. Distrofia de cones As distrofias de cones são divididas em formas estacionária e progressiva. A forma estacionária, também conhecida como acromatopsia, caracteriza-se pela ausência de função dos co‑ nes já ao nascimento. A forma progressiva, por sua vez, parece ser um grupo bastante heterogêneo de doenças, para as quais existem vários tipos de classificação e diferentes formas de he‑ rança. Entre as principais características, a maculopatia em alvo é classicamente descrita, mas não universal (Figura 3). Outros achados incluem atrofia progressiva do epitélio pigmentário da retina com consequente atrofia geográfica.
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Distrofias do epitélio pigmentado da retina Doença de Stargardt
A doença de Stargardt (distrofia macular juvenil) e o fundus flavimaculatus são considerados variantes da mesma doença, apesar de aparecerem em idades diferentes, apresentarem di‑ ferentes prognósticos e poderem aparecer simultaneamente em membros de uma mesma família. É a distrofia macular hereditária mais comum e representa cerca de 10% das distrofias de retina. Em geral, manifesta-se entre 8 e 14 anos de idade, tem caráter autossômico recessivo com o gene no lócus ABCA4 no cromossomo 1p21-22. O quadro bilateral caracteriza-se por piora progressiva da visão central, que pode apresentar aspecto macular de cobre batido. Essa área pode ou não ser circundada por flecks, isto é, lesões branco-amareladas no epitélio pigmentado da retina. Essas lesões são comuns em adultos entre a 4ª e a 5ª décadas da vida, porém, sem alteração macular, caracterizando outro aspecto da doença conhecido como fundus flavimaculatus. A distrofia de Stargardt acomete classicamente o polo pos‑ terior de crianças. A anatomia patológica revela desapareci‑ mento dos fotorreceptores e epitélio pigmentado da retina de regiões macular e perimacular. As camadas internas da retina podem demonstrar degeneração cistoide e depósito de cálcio. O prognóstico é desfavorável, uma vez que a acuidade vi‑ sual cai abaixo de 20/40 e tende a diminuir rapidamente, es‑ tabilizando-se em torno de 20/200. Doença de Best juvenil (viteliforme)
A doença de Best, ou distrofia macular viteliforme, é uma dis‑ trofia macular bilateral que apresenta aspecto de gema de ovo na região macular. Na infância, podem se formar alterações cistoides viteliformes que, ao coalescerem, dão origem à lesão macular característica chamada de pseudo-hipópio, podendo evoluir, na fase adulta, para fibrose macular, membrana neo‑ vascular sub-retiniana, atrofia geográfica e buraco macular. Histopatologicamente, há acúmulo de lipofucsina intrace‑ lular ou subepitélio pigmentado da retina, na região macular. É uma doença rara, com caráter autossômico dominante relacionado ao cromossomo 11. Geralmente, apresenta início dos sintomas na 1ª década de vida. O exame clássico é o eletro-oculograma, alterado com índi‑ ce de Ardem (razão fotópica/escotópica) < 1,85 e frequente‑
A
B
Figura 3 (A) Exame de angiofluoresceinografia de paciente com distrofia de cones mostrando hiperfluorescência transmitida na área macular. (B) Tomografia de coerência óptica de padrão espectral mostrando afinamento generalizado dos fotorreceptores e epitélio pigmentário da retina de paciente com distrofia de cones.
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mente próximo a 1,1 (abolido), mesmo em crianças assinto‑ máticas. Atualmente, não existe tratamento para essa doença, sen‑ do importante o aconselhamento genético.
Tabela 5 Padrões de doenças retinianas na infância
Albinismo O albinismo decorre de erro inato na estrutura de aminoácidos constituintes da enzima tirosinase, responsável pela produ‑ ção normal da melanina. Os principais tipos de albinismo são oculocutâneo e ocular. O oculocutâneo tem caráter autossômico dominante ou reces‑ sivo, sendo mais associado a alterações oculares. A variação nas manifestações clínicas depende da presença ou não da enzima tirosinase. No albinismo tirosinase-positivo, a deficiência ocorre no transporte intracelular da tirosina no melanócito, e a criança apresenta possibilidade de pigmenta‑ ção ao longo da vida, sendo esse tipo o mais comum. Por outro lado, o albinismo oculocutâneo tirosinase-negativo manifesta deficiência da atividade normal enzimática, sendo os pacien‑ tes incapazes de sintetizar melanina. A fóvea é hipoplásica, sem pigmento foveal, e, histologica‑ mente, não existe depressão foveal. Outras alterações incluem nistagmo congênito, fotofobia, alta miopia, estrabismo, distri‑ buição anômala de vasos retinianos e alteração na decussação das fibras retinianas (potencial visual evocado alterado). O albinismo oculocutâneo pode fazer parte de duas síndro‑ mes potencialmente letais: síndrome de Chediak-Higashi (al‑ binismo associado à suscetibilidade aumentada a infecções por alterações nos glóbulos brancos) e síndrome de Her‑ mansky-Pudiak (comum em Porto Rico nos EUA, associada a doença pulmonar e intestinal ou alteração na coagulação).
Distrofia de cone
Doenças vasculares retinianas (Tabelas 4 e 5) Tabela 4 Doenças vasculares retinianas e idade de apresentação Doença
Idade de apresentação
Doença de Coats
1ª ou 2ª década de vida
Doença de von Hippel
Infância ou adolescência
Hemangioma cavernoso
1ª ou 2ª década de vida
Síndrome de Sturge ‑Weber
Congênita
Síndrome de Wyburna ‑Manson
Congênita
Maculopatia em bull’s eye Doença de Stargart Síndrome de Bardet-Biedl
Distrofia de cones e bastonetes Drogas (p.ex., cloroquina) Síndrome de Alstrom Mácula em cereja Doença de Tay-Sachs Doença de Newmann-Pick Lipogranulomatose de Farber Oclusão de artéria central da retina Trauma Coloboma macular Coloboma macular típico Amaurose congênita de Leber Distrofia macular da Carolina do Norte Síndrome de Aicardi Síndrome de Down Toxoplasmose Hipoplasia foveal Albinismo Aniridia Síndrome de Prader-Willi Distúrbio pigmentar geográfico Atrofia girata Coroideremia Miopia patológica Fundus sal e pimenta Rubéola Sífilis Síndrome de Alstrom Miopatia mitocondrial Tortuosidade vascular Retinopatia da prematuridade Doença de Fabry Anemia falciforme Incontinência pigmentar Doença de Coats
Retinopatia diabética
50% dos pacientes após 7 anos
Retinopatia diabética proliferativa
Rara antes da puberdade
Doença de Eales
Adulto jovem
Hemangioma racemoso
Arterite de Takayasu
Adolescência
Doença de Eales
Doença de Norrie
Congênita
Doença de Kawasaki
1ª e 2ª década de vida
Oclusão venosa
Rara em criança
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Hemangioma capilar Diabete melito
(continua)
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Doenças da Retina na Infância e na Adolescência •
Tabela 5 Padrões de doenças retinianas na infância (continuação) Estrias angioides Pseudoxantoma elástico Doença de Paget
• • • • •
Talassemia Síndrome de Ehlers-Danlos Calcinose Acromegalia Descolamento de retina Retinoblastoma Retinopatia da prematuridade Trauma Doença de Coats Vasculatura fetal persistente Vitreorretinopatia exsudativa familiar Retinosquise juvenil ligada ao X Fosseta congênita de papila Síndrome de Stickler Alta miopia/degeneração lattice
Retinopatia diabética A retinopatia diabética é a principal causa de cegueira em pes‑ soas economicamente ativas (18 a 65 anos). Há pouco tempo, o diabete tipo 1 insulino-dependente era a única forma encon‑ trada em crianças. No entanto, com o aumento da obesidade entre a população infantil, o diabete tipo 2 e a resistência peri‑ férica à insulina têm se tornado frequentes em crianças e ado‑ lescentes, variando de 8 a 45% dos diabéticos. O diagnóstico precoce da retinopatia diabética se dá pela fluoresceinografia, visto que 50% dos pacientes diabéticos ju‑ venis não apresentam alterações ao exame de mapeamento de retina. A retinopatia diabética é uma complicação rara em crian‑ ças, sendo encontrada em aproximadamente 50% dos pacien‑ tes após 7 anos do início da doença. Cerca de 90% dos diabéti‑ cos tipo 1 apresentam algum tipo de alteração na retina após 20 anos de doença. O tempo de evolução é, portanto, o fator de risco mais importante para o desenvolvimento da retinopatia diabética. A idade do paciente também é um fator de risco in‑ dependente para seu desenvolvimento, de modo que a preva‑ lência da retinopatia diabética em crianças menores de 13 anos de idade é mais baixa (9%) que em adolescentes acima dessa idade com duração da doença em tempo similar. O controle metabólico adequado pode diminuir a progres‑ são das lesões, mas pode ocorrer piora transitória da retinopa‑ tia, principalmente se a normoglicemia for atingida rapida‑ mente. Clinicamente, classifica-se a retinopatia diabética em não proliferativa e proliferativa. A retinopatia diabética não proli‑ ferativa manifesta-se com as seguintes alterações: • dilatação vascular difusa com ingurgitamento venoso;
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microaneurismas; hemorragias intrarretinianas superficiais e profundas; exsudatos duros; manchas algodonosas (Figura 4A); edema macular diabético (principal causa de baixa visual na retinopatia diabética não proliferativa) (Figura 4D).
A retinopatia diabética proliferativa caracteriza-se pela proli‑ feração vascular e fibrosa em resposta à isquemia retiniana. Neovasos proliferam-se dentro de um diâmetro da cabeça do nervo óptico ou no trajeto dos vasos principais, porque há de‑ feitos ou ausência da membrana limitante interna no nervo óptico (Figuras 4B e C). Os neovasos crescem repousando no córtex vítreo poste‑ rior. As complicações inerentes à proliferação vascular são: descolamento de retina tracional, hemorragia pré-retiniana (sub-hialóidea) ou vítrea e glaucoma neovascular. O tratamento e o acompanhamento da retinopatia diabéti‑ ca não proliferativa variam conforme as alterações encontra‑ das. Nos casos leves, as visitas podem ser anuais desde que não haja comprometimento macular, sendo o controle realiza‑ do a cada 3 meses. No caso de edema macular clinicamente significativo ou retinopatia diabética não proliferativa grave e muito grave, a panfotocoagulação profilática guiada pela an‑ giofluoresceinografia deve ser realizada (Figura 4D). Na retinopatia diabética proliferativa, o tratamento é panfo‑ tocoagulação retiniana e cirurgia. A vitrectomia via pars plana é a opção de escolha, principalmente em casos de hemorragia ví‑ trea densa não reabsorvida, associada ou não ao descolamento de retina tracional. Doença de Coats A doença de Coats é uma anomalia vascular primária idiopáti‑ ca da retina, de caráter não hereditário, que quase sempre ocorre em meninos sadios sem história familiar pregressa. Os
A
B
C
D
Figura 4 (A) Retinografia colorida – hemorragias superficiais e profundas, microaneurismas, exsudatos duros e algodonosos. (B e C) Descolamento de retina tracional e neovascularização. (D) Edema macular diabético: presença de cistos intrarretinianos, descolamento de retina neurossensorial observado na tomografia de coerência óptica.
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sintomas iniciam-se, em geral, na 1ª década da vida, por volta dos 5 anos de idade, com estrabismo e leucocoria. Em 90% dos casos, é unilateral. Classicamente, a doença de Coats é caracterizada pela pre‑ sença de telangiectasias, que podem acometer a região macu‑ lar e a periferia retiniana e gerar exsudação lipídica maciça in‑ tra ou sub-retiniana e áreas de não perfusão capilar. Como complicações, observam-se descolamento de retina exsudativo, rubeose de íris, glaucoma, uveíte e atrofia bulbar. A angiorretinografia e a ultrassonografia ocular são impor‑ tantes no diagnóstico e no acompanhamento desses pacien‑ tes. Os diagnósticos diferenciais devem incluir todas as causas de leucocoria (ver Tabela 2). O tratamento inclui panfotocoagulação, crioterapia e vitrec‑ tomia via pars plana, para casos avançados com descolamento elevado e impossibilidade de tratamento com crioterapia. Retinopatia da anemia falciforme A anemia falciforme é uma hemoglobinopatia caracterizada por alteração na composição química das cadeias de hemoglo‑ bina. Várias hemoglobinopatias podem ocasionar manifesta‑ ções oculares, particularmente aquelas nas quais as hemoglo‑ binas mutantes são do tipo S ou C. Na hemoglobina S (HbS), há substituição do ácido glutâmico por valina na posição 6 da cadeia beta. Já na hemoglobina C (HbC), a substituição é por lisina, na mesma posição. Tanto a anemia falciforme C (SC) como a talassemia (S-thal) são associadas à anemia leve com manifestações oculares gra‑ ves, por apresentarem maior resistência à hipóxia, causando fal‑ cização apenas em pequenos capilares, como na periferia da re‑ tina. A retinopatia da anemia falciforme é resultado de hipóxia e acidose decorrente de falcização das hemácias, levando à oclu‑ são capilar retiniana, principalmente periférica. A angiofluoresceinografia mostra extensas áreas de não perfusão capilar e neovascularização. O tratamento envolve panfotocoagulação nas áreas de não perfusão para induzir re‑ gressão dos neovasos. A vitrectomia via pars plana está indi‑ cada em casos de descolamento tracional de retina e/ou he‑ morragia vítrea persistente. Doenças traumáticas Descolamentos de retina na infância As patologias vitreorretinianas que envolvem o descolamento de retina na infância são graves, de modo que o prognóstico costuma ser reservado. Além disso, o diagnóstico pode ser tar‑ dio, visto que, muitas vezes, a criança não refere baixa de vi‑ são unilateral, a menos que o segundo olho seja afetado. Os descolamentos de retina são divididos em regmatogênico e não regmatogênico (tracional e exsudativo). O regmatogênico é o tipo mais comum, ocorrendo na presença de uma ruptura retiniana que leva à separação da retina sensorial do epitélio pigmentar da retina pela presença de fluido sub-retiniano. O descolamento tracional ocorre pela presença de neovas‑ cularização vitreorretiniana e mecanismo de tração, sendo a retinopatia diabética proliferativa a doença mais comum. O descolamento exsudativo está associado a diversas doenças
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retinianas e acontece quando há presença de líquido intrarre‑ tiniano sem presença de rupturas. Outra causa de descolamento de retina é o trauma ocular contuso na infância. Sua importância é relevante em razão dos riscos de instalação de ambliopia e das complicações comuns dos ferimentos, como infecção, catarata, glaucoma, entre outras. As roturas de retina pós-trauma mais frequentes estão loca‑ lizadas nas regiões temporal inferior e nasal superior, nas quais se manifestam como desinserção da retina na ora serrata, pela tração vitreorretiniana ao longo de sua base posterior. O tratamento das roturas e dos descolamentos de retina va‑ ria segundo sua localização e extensão, podendo ser indicado bloqueio da rotura com laser, retinopexia pneumática, intro‑ flexão escleral ou vitrectomia via pars plana. Apesar de toda tecnologia e sofisticação no tratamento de traumas oculares, o prognóstico costuma ser ruim, também pela possibilidade de gerar ambliopia. O ponto-chave é focar na prevenção do trauma ocular, com orientação aos pais e uso de equipamento de proteção na prática de esportes e preven‑ ção de acidentes. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer a importância do exame de retina e encaminhar quando há suspeita clínica ou alteração no reflexo vermelho. • Entender a importância do exame de fundo de olho com as pupilas dilatadas em casos de suspeita de alteração de retina. • Conhecer algumas doenças sistêmicas que são fatores de risco para doenças da retina, como diabete e anemia falciforme. • Suspeitar clinicamente de alterações hereditárias de retina (baixa de visão central vs. noturna, etc.). • Entender a importância da prevenção do trauma ocular pelo risco de alteração visual irreversível. • Lembrar que retinopatia da prematuridade (ROP) é alteração que merece destaque especial e há capítulo exclusivo neste livro dedicado a ela.
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CAPÍTULO 7
TRAUMA OCULAR Elisabeth Nogueira Martins
Introdução impacto. As lacerações abrangem os ferimentos penetrantes O trauma ocular representa um problema de saúde pública, (um único ferimento de espessura total no globo, causado por pois, apesar de apenas 5% dos traumas resultarem em perda objeto cortante), perfurantes (duas lesões – uma de entrada e permanente de visão, os traumatismos são responsáveis por outra de saída – de espessura total) e corpo estranho intraocu‑ cerca de 40% dos casos de cegueira monocular na população lar (CEIO). As rupturas também são lesões que comprometem geral. Em crianças, além das sequelas visuais, o traumatismo a espessura total da parede do globo, mas são provocadas por pode causar danos de desenvolvimento e emocionais, espe‑ um objeto rombo. Nessa situação, o globo irá romper em um cialmente nos casos com defeito cosmético. Nas crianças me‑ ponto de maior fraqueza, podendo ou não ser o local do im‑ nores de 8 anos de idade vítimas de trauma, também pode pacto. ocorrer ambliopia, agravando ainda mais as sequelas físicas e Avaliação psicológicas. Anamnese O trauma ocular é mais frequente em meninos, na razão de 3:1. Crianças com idade entre 0 e 5 anos apresentam risco História detalhada é fundamental na avaliação do paciente ví‑ maior quando comparadas às com idade superior a 5 anos. tima de trauma, pois pode sugerir o mecanismo e a natureza Causas comuns de traumatismo incluem queda, atividades das lesões. Muitas vezes, a anamnese é difícil de ser obtida, recreacionais (incluindo esportes), pedras e acidentes auto‑ pois a criança pode ser muito jovem para informar os detalhes mobilísticos. No Brasil, o esporte mais frequentemente rela‑ e/ou o adulto entrevistado pode não ter presenciado o aciden‑ cionado ao trauma é o futebol. te. Especialmente nessas situações, é importante que o médi‑ Para uniformizar a descrição das lesões oculares relaciona‑ co verifique se existe consistência entre os achados do exame das aos traumatismos mecânicos, foi desenvolvida a classifi‑ físico e a história relatada. cação internacional do trauma, conhecida pela sigla BETT Algumas situações merecem destaque: (Birmingham Eye Trauma Terminology). • contato com produto químico: se positivo, a anamnese deve De acordo com essa classificação (Figura 1), os traumatis‑ ser interrompida, e a lavagem copiosa com soro fisiológico mos mecânicos são divididos em traumas fechados e abertos, dos olhos deve ser realizada a fim de minimizar as lesões; conforme apresentem ou não comprometimento de espessura • durante a anamnese, foi considerada a hipótese de lesão ex‑ total da parede ocular (córnea ou esclera). traocular que exija cuidados: nessa situação, realiza-se ini‑ Como trauma fechado do globo, há contusões, lacerações cialmente o exame geral, buscando a identificação e o pronto lamelares e corpos estranhos superficiais. As contusões são tratamento das lesões (p.ex., traumatismo cranioencefálico); traumas causados por impacto de objetos não pontiagudos • trauma foi causado por objeto pontiagudo ou rombo: os obje‑ (rombos), cujas lesões resultantes podem ocorrer no local de tos pontiagudos geralmente estão relacionados às lacerações impacto ou não. As lacerações lamelares são decorrentes de de espessura total, envolvendo córnea/esclera. Traumas trauma da parede do globo ocular (esclera ou córnea) ou da contusos de alto impacto também podem levar à ruptura do conjuntiva bulbar, sendo causadas por um objeto cortante, globo. sem penetração intraocular. No trauma aberto, há as lacerações e as rupturas. As lacera‑ Informações adicionais sobre história ocular prévia, doenças, ções são lesões que envolvem toda a espessura da parede ocu‑ medicações em uso, alergias e imunização para tétano tam‑ lar, causadas por um objeto cortante, ocorrendo no local do bém devem ser pesquisadas.
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Trauma ocular
Defeito de espessura total de parede?
Não
Sim
Trauma fechado
Trauma aberto
Defeito de espessura parcial?
Objeto rombo ou cortante?
Sim
Laceração lamelar
Não
Contusão
Rombo
Cortante
Ruptura
Laceração
Orifício único (entrada e saída)
Corpo estranho retido
Orifício de entrada e outro de saída
Penetrante
CEIO
Perfurante
Figura 1 Fluxograma do diagnóstico correto no traumatismo ocular (BETT – Birmingham Eye Trauma Terminology; 2002).
CEIO: corpo estranho intraocular.
Considerações anatômicas Órbita Esta cavidade óssea protege o globo do trauma lateral. Suas bordas absorvem o impacto no trauma contuso com objetos grandes (p.ex., uma bola). A parede lateral é mais espessa, en‑ quanto a parede medial e o assoalho têm espessura menor e são mais suscetíveis à fratura. O teto é também o assoalho da fossa craniana anterior e, assim, uma fratura de teto da órbita requer avaliação por equipe neurocirúrgica. Outras fraturas fa‑ ciais são comumente associadas às fraturas de órbita, sendo a mais frequente a de malar-zigoma. Nos casos de fratura, diplopia (por alteração da movimen‑ tação ocular, com encarceramento muscular) e diminuição da acuidade visual (secundária a hemorragia retrobulbar, neuro‑ patia óptica e ruptura do globo), podem ser observadas em al‑ guns casos. Pálpebras Protegem o globo de debris e traumas diretos envolvendo pe‑ quenos objetos, além de terem papel importante na manuten‑ ção do filme lacrimal sobre a superfície da córnea. O traumatismo das pálpebras, principalmente aquele no qual a margem palpebral está envolvida, pode resultar em ex‑ posição da córnea com consequente cicatrização (opacidade de córnea) ou infecção.
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O aparelho lacrimal está localizado próximo ao canto me‑ dial das pálpebras. A lágrima é drenada do olho por meio dos pontos lacrimais localizados na margem palpebral medial‑ mente (superior e inferior), passando pelos canalículos lacri‑ mais e alcançando saco lacrimal, de onde é drenada para a ca‑ vidade nasal pelo ducto nasolacrimal. O traumatismo por mordedura de animais domésticos com frequência lesa o canto medial e/ou a via canalicular, devendo ser considerado o risco de infecção. Nos traumas em geral, as lacerações de canalículo inferior são 3 a 4 vezes mais comuns que as de canalículo superior. As lacerações bicanaliculares são as menos frequentes. Caso o edema dificulte o exame no momento da chegada do paciente, pode-se esperar 24 a 48 horas para a realização do exame e do tratamento (reconstrução cirúrgica). Segmento anterior As estruturas expostas na fissura interpalpebral são a córnea e a conjuntiva. A córnea tem espessura central de 0,5 mm e 1 mm em sua periferia. Uma lesão superficial, isto é, limitada ao epitélio, geralmente apresenta resolução sem sequelas, en‑ quanto lesões que comprometem o estroma podem resultar em cicatriz e perda de acuidade visual. A conjuntiva recobre a esclera e reflete-se sobre a superfície interna das pálpebras. As hemorragias no espaço subconjunti‑
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Trauma Ocular •
val são, geralmente, benignas, mas podem dificultar a identifi‑ cação de lesões profundas, acometendo a esclera ou músculos extraoculares. A esclera tem menor espessura (0,3 mm) sob a inserção dos músculos extraoculares retos, sendo essa a área mais co‑ mum para ocorrência de ruptura do globo nos casos de trauma contuso. Internamente, o trauma de íris pode resultar em sangra‑ mento na câmara anterior (hifema). As lesões envolvendo a cápsula do cristalino podem levar à perda de sua transparên‑ cia (catarata traumática). Segmento posterior O segmento posterior inclui a porção posterior da esclera, a co‑ roide, a retina e o vítreo. Traumas graves podem causar he‑ morragia vítrea, edema de retina, rasgadura na retina e desco‑ lamento de retina. Em geral, os traumatismos que comprometem o segmento posterior estão associados a pior prognóstico visual, quando comparados aos limitados ao seg‑ mento anterior. Exame oftalmológico Após o trauma, a criança pode apresentar dor e medo e não cooperar durante a avaliação. Nessa situação, e considerando a possibilidade de trauma ocular aberto, é melhor encaminhar o paciente ao oftalmologista, porque pode ser necessária a rea‑ lização do exame sob narcose ou anestesia. Acuidade visual A avaliação da acuidade visual deve ser realizada consideran‑ do-se a idade da criança. Crianças em idade pré-verbal devem ser avaliadas quanto à habilidade de fixar e seguir objetos. Nesses casos, é preciso testar um olho de cada vez e utilizar objetos que não produzam ruído. Em crianças maiores, utili‑ zam-se tabelas com desenhos ou “E” (no caso das não alfabeti‑ zadas) ou as tabelas convencionais, para as crianças alfabeti‑ zadas. Novamente, cada olho deve ser testado separadamente. Caso a criança não consiga identificar a figura ou letra de maior tamanho da tabela, pode-se testar sua habilidade de contar dedos a diferentes distâncias (anotada como “conta dedos a X metros”), de percepção da movimentação das mãos do exami‑ nador (também chamada visão de vultos, deve ser anotada como “movimento de mãos”) e, por fim, percepção luminosa (anotada como “percepção luminosa” ou “negação de percep‑ ção luminosa”). É importante destacar que a acuidade visual inicial é o prin‑ cipal fator prognóstico nos casos de trauma aberto. Além dis‑ so, sua importância legal no prontuário do paciente é indiscu‑ tível. Exame externo A ectoscopia é parte importante do exame. Alterações como edema ou hematoma das pálpebras, lacerações faciais ou pal‑ pebrais, proptose, enoftalmia e hemorragia subconjuntival podem ser observadas e têm importância clínica.
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Se o globo aparenta estar intacto e a criança colabora com o exame, a palpação da margem orbitária pode ser realizada, para identificar fraturas e/ou enfisemas. A movimentação ocular também deve ser avaliada: observando-se limitação da movimentação, que pode ser resultado de edema ou hemorra‑ gia orbitária, fratura de órbita, paralisia de nervo craniano ou trauma direto do músculo. Também pode ocorrer diplopia as‑ sociada, por muitas vezes não informada pela criança. O exame deve ser sempre realizado de maneira cuidadosa, sem força ou pressão, pois, caso exista perfuração ocular, a for‑ ça que a criança faz para manter os olhos fechados e que o exa‑ minador faz na tentativa de abri-los pode provocar a extrusão de tecidos intraoculares. Se durante qualquer etapa do exame oftalmológico for identificada perfuração ocular, o exame deve ser interrompido e a criança deve ser colocada em jejum, repouso, com oclusão do olho acometido com concha rígida (evitando manipulação) e internação. Profilaxia antibiótica endovenosa de amplo es‑ pectro deve ser instituída. Pupila A presença de pupilas de forma arredondada e simetricamente reativas reduz, mas não elimina, a presença de trauma grave, com risco de perda permanente da visão. A irregularidade da forma da pupila pode ser decorrente de lesão do esfíncter pu‑ pilar ou de laceração de espessura total de córnea e/ou esclera (com herniação e/ou encarceramento de íris). A reação pupi‑ lar deve ser testada (reação direta e consensual) com fonte lu‑ minosa, com a criança fixando um objeto colocado a distância. O teste da “dança das pupilas” (swinging flash-light test) é realizado para verificar a presença de defeito pupilar aferente (ou pupila de Marcus Gunn). O teste é realizado alternando-se a posição da fonte luminosa de um olho para o outro. As pupi‑ las devem ser mantidas constritas, como resultado da respos‑ ta direta e consensual à luz. A dilatação paradoxal da pupila, ao se colocar a fonte de luz sobre o olho, indica um defeito afe‑ rente naquele olho, o qual pode ser decorrente de lesão do ner‑ vo óptico ou extensa da retina. Segmento anterior A avaliação do segmento anterior pode ser realizada com o au‑ xílio de uma lanterna ou oftalmoscópio direto. Hemorragia sub‑ conjuntival, lacerações de conjuntiva ou córnea, íris e pupila, bem como presença de corpo estranho, devem ser pesquisadas. O exame deve ter início pela conjuntiva bulbar, com a pro‑ cura de lacerações e corpos estranhos. Se afastada a hipótese de trauma aberto do globo, deve-se então avaliar a conjuntiva tarsal, com eversão da pálpebra superior, na tentativa de iden‑ tificar presença de corpo estranho. Caso seja identificado corpo estranho na conjuntiva tarsal, ele deve ser retirado, e o olho, ocluído com pomada antibiótica (tobramicina 0,3%) até reavaliação após 24 horas. Corpos es‑ tranhos apenas aderentes ao epitélio da conjuntiva podem ser removidos com uso de hastes de algodão, após instilação de co‑ lírio anestésico. Já os corpos estranhos mais aderentes podem ser removidos com a utilização de agulha de insulina (calibre 27
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ou 30) ou de uma pinça delicada. Corpos estranhos múltiplos superficiais podem ser removidos por irrigação o cular. A hiposfagma, ou hemorragia subconjuntival (Figura 2), é achada frequentemente no trauma ocular. É autolimitada, porém o clareamento completo da hemorragia ocorre lentamente, podendo levar semanas, dependendo da extensão inicial. Assim, é importante que os pais ou responsáveis sejam bem orientados. Deve-se considerar que a hemorragia subconjuntival pode mascarar a presença de laceração escleral e trauma ocular aberto, adiando seu diagnóstico e tratamento. A hemorragia subconjuntival pode ter causas não traumáticas, como: em recém-nascidos pela pressão durante as contrações uterinas, Valsalva (após crises de tosse ou vômito), em crianças com conjuntivite e, raramente, em pacientes com discrasias sanguíneas, sendo a apresentação bilateral a ocorrência mais comum nesses casos. Quemose (edema de conjuntiva) volumosa, hipotonia do globo ocular, corectopia e alterações da profundidade da câmara anterior (muito rasa ou muito profunda) também podem indicar a existência de trauma aberto oculto. Na observação dessas alterações, o exame ocular deve ser interrompido e deve ser solicitada a avaliação por oftalmologista. As abrasões conjuntivais podem ser identificadas com uso de corantes do tipo fluoresceína e podem ser tratadas com colírio antibiótico por 5 a 7 dias (tobramicina 0,3%, 1 gota, a cada 6 horas). As abrasões da córnea (disrupção do epitélio da córnea) são associadas à dor extrema em decorrência do grande número de terminações nervosas corneanas (nervo trigêmeo). Fotofobia e blefaroespasmo acompanham a dor. A utilização de corantes (p.ex., a fluoresceína) facilita a identificação de áreas com perda epitelial. Abrasões lineares na região superior da córnea, por exemplo, sugerem a presença de corpo estranho na conjuntiva tarsal superior. As abrasões costumam ter resolução (reepitelização) rápida, especialmente em crianças. Antibióticos tópicos podem ser usados profilaticamente até a resolução do quadro. Os casos de corpo estranho comprometendo a esclera e/ou a córnea devem ser cuidadosamente avaliados pelo oftalmolo-
gista, com auxílio da lâmpada de fenda para determinação de sua localização exata (profundidade). Nos casos de dúvida ou com aspecto sugestivo de localização profunda, o corpo estranho deve ser retirado apenas no centro cirúrgico, com preparo para possível intervenção. As lacerações de córnea sem comprometimento de espessura total podem ser tratadas clinicamente com curativo oclusivo ou lente de contato terapêutica. As lacerações com comprometimento de espessura total e menores que 2 mm podem ser tratadas com uso de adesivo tecidual (cianoacrilato); e as maiores devem ser corrigidas cirurgicamente com sutura sob anestesia geral. A presença de sangue na câmara anterior é denominada hifema (Figura 3). O sangramento é resultante das alterações dinâmicas que o olho sofre ao ser comprimido, como: rápido aumento da pressão intraocular, estiramento do limbo, expansão da esclera equatorial, deslocamento posterior do cristalino e ruptura dos tecidos angulares. A hemorragia decorre principalmente da lesão do círculo arterial maior da íris e de seus ramos – ramos do corpo ciliar ou arteríolas recorrentes coroidais. O sangramento é tamponado pelo aumento da pressão intraocular, por vasoespasmo e pela formação de coágulo de fibrina e plaquetas. Outro mecanismo da formação de hifema inclui lesão direta de estruturas intraoculares vascularizadas causada por trauma ocular penetrante ou perfurante. Quanto à epidemiologia, o hifema é mais comum no sexo masculino. Em estudo prospectivo com crianças realizado no Pronto-socorro de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a maioria dos pacientes era do sexo masculino (85,7%), e os agentes traumatizantes mais frequentes foram utensílios domésticos (40%). O tratamento do hifema é controverso. Preconizam-se repouso, aumento da ingesta hídrica e decúbito a 30°. O uso de cicloplégicos previne a formação de sinéquias (aderências) e proporciona maior conforto ao paciente. Corticosteroides tópicos reduzem a irite traumática e, em casos de aumento abrupto da pressão intraocular, os hipotensores tópicos estão indicados. Se necessária, a acetazolamida via oral pode ser
Figura 2 Paciente apresentando hemorragia subconjuntival após trauma com ponta de lápis.
Figura 3 Hifema após trauma contuso com bola de futebol.
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Trauma Ocular •
temporariamente utilizada, sendo exceção o caso de pacien‑ tes com diagnóstico de anemia falciforme, em razão do risco de desencadear crise de falcização das hemácias. As indicações para o tratamento cirúrgico (lavagem da câ‑ mara anterior) incluem: aumento da pressão intraocular, risco de ambliopia e pacientes portadores de anemia falciforme com pressão intraocular superior a 25 mmHg por 24 horas. O ressangramento pode ocorrer como complicação do hifema (entre o 2º e o 5º dia pós-trauma). Pressão intraocular elevada na admissão e baixa acuidade visual inicial foram relacionadas a maior risco de ressangramento. Além disso, estudos correlacio‑ nam o tamanho do hifema inicial com o risco de ressangramen‑ to, cuja incidência é muito variável (3,5 a 38%). Nos estudos rea‑ lizados no Pronto-socorro de Oftalmologia da Unifesp, a incidência de ressangramento em crianças foi de 8,6%. O prognóstico visual final dos casos de hifema traumático está relacionado à presença de lesões de segmento posterior e à acuidade visual na admissão. Segmento posterior O exame detalhado do fundo de olho de uma criança pode ser dificultado pela falta de dilatação pupilar; ainda assim, o refle‑ xo vermelho deve ser avaliado inclusive nessa situação. A au‑ sência ou a assimetria do reflexo vermelho pode indicar a pre‑ sença de hemorragia vítrea, catarata ou descolamento de retina. Além disso, outros achados, como abrasão de córnea, podem ser notados como uma opacidade no reflexo vermelho. Situações especiais Queimadura Se for relatado contato com produto químico, a lavagem co‑ piosa dos olhos com soro fisiológico deve ser realizada a fim de minimizar o tempo de exposição. Os fórnices conjuntivais de‑ vem ser cuidadosamente examinados, verificando-se a pre‑ sença de resíduos químicos que podem ser retirados com has‑ te de algodão, além de ser necessária irrigação adicional. Após a lavagem, o exame deve ser realizado novamente com especial atenção à presença de hiperemia/injeção conjuntival (a ausência de hiperemia, principalmente na área perilimbar, pode ser indicativa de isquemia) e à transparência da córnea (opaci‑ dade e edema da córnea são indicativos de queimadura grave). O encaminhamento ao oftalmologista durante as primeiras 24 horas é indicado, principalmente nos casos moderados/ graves, pelo risco de sequelas permanentes. Trauma aberto Nos casos com observação de laceração de córnea sem deter‑ minação da profundidade, o teste de Seidel deve ser realizado. Nesse teste, deve ser instilado colírio de fluoresceína estéril ou em bastão, seguido por exame utilizando luz cobalto azul. A fluoresceína forma uma fina camada fluorescente sobre a su‑ perfície externa, e a saída de fluido pela lesão é observada por meio do contraste com essa camada, indicando laceração de espessura total. Na criança, as perfurações corneanas (teste de Seidel posi‑ tivo) têm sempre indicação de tratamento cirúrgico, indepen‑
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dentemente de sua extensão, sob anestesia geral. A sutura deve ser realizada com fio nylon 10-0, pontos profundos (90% do estroma) e simétricos. Como nos adultos, sempre que pos‑ sível, deve-se evitar a colocação de sutura na região central (à frente da região pupilar). Se isso não for possível, devem-se fa‑ zer pontos menores nessa região. Trauma de parto O parto pode estar associado a traumatismos ocular e periocu‑ lar, incluindo edema palpebral, hemorragia subconjuntival, edema de córnea, abrasão corneana, hifema, hemorragias ví‑ trea e retiniana. O uso de fórceps pode aumentar a ocorrência de trauma. Roturas na lâmina limitante posterior (membrana de Descemet – penúltima das cinco camadas da córnea), cau‑ sando opacidade de córnea e astigmatismo, estão associadas à sua utilização. A hemorragia retiniana pode ser observada dentro das pri‑ meiras 24 horas após o parto. Em geral, tem resolução rápida e espontânea. Síndrome do bebê sacudido (shaken baby syndrome) Também denominada síndrome da criança espancada, en‑ globa alterações causadas por movimentos de aceleração e desaceleração, associados a forças de rotação, impostos a crianças de 0 a 5 anos, na maioria dos casos por abuso ou maus-tratos. Essa síndrome tem como consequência a tría‑ de hemorragia retiniana, hemorragia subdural e encefalopa‑ tia. Lesões cervicais, vasculares e edema cerebral também podem ser observados. Nos EUA, são descritos cerca de 50 mil casos por ano, com ocorrência de óbito em 25 a 50% dos casos. De acordo com essa base de dados, em 50% dos casos, os responsáveis pelo traumatismo são os próprios pais. No Brasil, a violência do‑ méstica atinge proporções alarmantes. Cerca de 12% das crianças com menos de 14 anos são agredidas, podendo existir uma média de 750 crianças sofrendo violência doméstica a cada hora. Estima-se que ocorram, somente no Estado de São Paulo, 500 mil agressões anuais, sendo 1.370 por dia. Ao exame oftalmológico, podem ser observados: hemorra‑ gia vítrea, hemorragia retiniana, descolamento de retina, diáli‑ se, retinosquise, dobras de retina, atrofia retinocoróidea, papi‑ ledema, atrofia de nervo óptico, luxação de cristalino, catarata, midríase traumática, rubeosis iridis, hemorragia subconjunti‑ val, conjuntivite (inclusão, P. pubis), edema, laceração, equi‑ mose palpebral, além de alterações de motilidade ocular ex‑ trínseca. Diante da suspeita de maus-tratos, a internação é manda‑ tória, com a finalidade de garantir a investigação diagnóstica completa e a proteção da criança. Prevenção Pacientes com cegueira unilateral têm maior chance de trau‑ matizar o olho bom. Como forma de prevenir essa ocorrência, nos EUA, crianças com visão inferior a 10% em um dos olhos devem, por lei, usar óculos de proteção. A Academia America‑
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na de Pediatria, em conjunto com a Academia Americana de Oftalmologia, recomenda o uso de protetor durante a prática esportiva para as crianças com acuidade visual inferior a 20/40 no pior olho e em pacientes submetidos à cirurgia oftal‑ mológica ou vítimas de traumatismo. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Coletar história detalhada sobre o tipo de trauma e quando ocorreu. • Realizar anamnese específica sobre os diferentes tipos de trauma. • Avaliar trauma ocular, incluindo hifema. • Usar exame adequado para paciente com suspeita de corpo estranho no olho. • Identificar sinais de gravidade no trauma ocular. • Identificar quando e como referir o paciente para o oftalmologista para o tratamento. • Dar o primeiro atendimento ao paciente vítima de queimadura ocular.
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CAPÍTULO 8
UVEÍTES E INFLAMAÇÕES OCULARES Jacqueline Sousa Asam Rubens Belfort Jr.
Introdução O trato uveal consiste de íris, corpo ciliar e coroide; entretanto, tanto as inflamações da úvea quanto as de estruturas adjacentes (esclera, retina, vasos retinianos, vítreo e nervo óptico) são designadas uveítes. Essas inflamações podem ser congênitas ou adquiridas e infecciosas ou não infecciosas. Como existe grande diversidade etiológica, o quadro clínico das uveítes é bastante variado e cada caso deve ser analisado individualmente. Este capítulo apresenta as uveítes mais importantes na pediatria, seja por sua frequência ou pela gravidade de suas sequelas. Toxoplasmose ocular Transmitida pelo protozoário intracelular Toxoplasma gondii, a toxoplasmose ocular é a principal causa de uveíte posterior no Brasil. Sua contaminação se dá pela ingestão de cistos (carnes mal cozidas) e oocistos (solo, verduras ou água contaminados), por via transplacentária e, mais raramente, por via transfusional e transplante de órgãos. Apesar de os felinos serem os hospedeiros definitivos, a infecção é disseminada entre humanos e outros animais domésticos e silvestres. Toxoplasmose ocular congênita Ocorre por transmissão transplacentária, quando a mãe adquire o protozoário durante ou muito próximo à gestação. Como 70 a 80% dos adultos são imunes no Brasil, calcula-se que 20 a 30% das gestantes são suscetíveis à infecção. Estima-se um caso de toxoplasmose congênita para cada grupo de 4.000 recém-nascidos vivos. Se a transmissão acontece no 1º trimestre, as malformações são graves e conhecidas como tétrade de Sabin (microcefalia com hidrocefalia, retardo mental, calcificações intracranianas e retinocoroidite). O olho é acometido em 70 a 90% dos casos, com predileção pelo polo posterior, sendo bilateral em 20 a 40%. Clinicamente, a retinocoroidite típica possui aspecto de roda de carroça, com pequenas lesões cicatrizadas (Figura 1), mas também pode se manifestar como catarata, estrabismo e nistagmo.
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Nos casos de infecção materna no final da gestação, o quadro clínico sistêmico é geralmente subclínico e a lesão ocular pode aparecer em qualquer fase da vida, geralmente na 1ª década e acompanhada de IgG positivo. Ao nascimento, as lesões estão quase sempre cicatrizadas, mas recidivas oculares podem ocorrer especialmente na 1ª década de vida. Toxoplasmose ocular adquirida A forma sistêmica aguda da toxoplasmose adquirida geralmente é subclínica e não diagnosticada. A toxoplasmose ocular ocorre em 2 a 30% desses casos, sendo 70% unilateral. É classificada em: • concomitante: mais rara, com lesões esbranquiçadas retinianas superficiais que regridem sem deixar cicatriz, mas que podem reativar e ocasionar retinocoroidite, simultâneas à doença sistêmica ativa (Figura 2); • tardia: forma mais comum, com aparecimento em intervalo de tempo variável entre a contaminação e a manifestação da doença. A lesão típica dessa forma é a retinocoroidite focal necrosante adjacente à lesão satélite já cicatrizada, com vi-
Figura 1 Retinocoroidite típica da toxoplasmose congênita, em aspecto de roda de carroça.
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Quando associada à síndrome de imunodeficiência adquirida (aids), a toxoplasmose é bilateral com maior frequência, com lesões atípicas e multifocais e discreta inflamação vítrea. Cerca de 25% desses pacientes apresentam envolvimento concomitante do sistema nervoso central (SNC).
Diagnóstico Achados típicos oculares geralmente são suficientes para o diagnóstico; entretanto, testes sorológicos ajudam no diagnóstico definitivo; os mais utilizados são imunofluorescência indireta e ELISA. Atualmente, a reação em cadeia da polimerase (PCR) é útil nas pesquisas e nos casos de clínica sugestiva e sorologias negativas, pois detecta o ácido desoxirribonucleico (DNA) do protozoário e fornece seu sorotipo. Os exames laboratoriais devem sempre ser correlacionados com o quadro clínico do paciente. Os níveis de IgM aumentam na 1ª semana,
Figura 2 Lesão esbranquiçada retiniana superficial na toxoplasmose ocular concomitante à doença sistêmica ativa.
Figura 4 Lesão típica da toxoplasmose ocular adquirida tardia, com retinocoroidite focal necrosante adjacente à lesão satélite já cicatrizada.
Figura 3 Lesão típica da toxoplasmose ocular adquirida tardia, com retinocoroidite focal necrosante adjacente à lesão satélite já cicatrizada.
Figura 5 Precipitados ceráticos granulomatosos na toxoplasmose ocular.
treíte moderada a grave em “farol de neblina” (Figuras 3 e 4). Pode haver também papilite, vasculites (com possíveis oclusões vasculares), precipitados ceráticos granulomatosos (Figura 5) e aumento da pressão intraocular.
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com pico em 1 mês e redução após 9 meses, podendo permanecer altos por mais de 2 anos após a infecção. O IgM não é transmitido de forma transplacentária; assim, sua detecção no recém-nascido indica infecção congênita. Já o anticorpo IgG pode ser detectável após 8 a 12 dias da infecção, persistindo positivo por tempo indeterminado. O teste de avidez do IgG baseia-se nas ligações iônicas entre antígeno-anticorpo, sendo indicado nos casos de IgG positivo com titulação inconclusiva (< 4) e IgM positivo durante a gestação. Infecções com mais de 2 meses formam ligações covalentes estáveis e com forte avidez (> 60%), enquanto infecções recentes formam ligações instáveis e com baixa avidez (< 30%), indicando maior risco de contaminação fetal. Como diagnósticos diferenciais, destacam-se as infecções do grupo TORCHS (rubéola, citomegalovírus, herpes simples e sífilis) e as síndromes mascaradas (principalmente pelo retinoblastoma). Tratamento O principal objetivo do tratamento é minimizar a perda visual. O esquema terapêutico mais aceito é sulfadiazina 500 mg, 2 comprimidos a cada 6 horas, por 45 dias, associado com pirimetamina 25 mg, 4 comprimidos no 1º dia seguido de 2 comprimidos/dia, por 44 dias, via oral. Deve-se solicitar hemograma completo com contagem de plaquetas e de reticulócitos, testes de função renal e hepática para controle, assim como prescrever ácido folínico 15 mg, 3 vezes/semana, via oral, durante o tratamento, apesar de nem sempre evitar as c omplicações. Na gestação, mantém-se o esquema clássico de tratamento, adicionando-se espiramicina 1,5 mUI a cada 6 horas, via oral; retira-se a pirimetamina no 1º trimestre e a sulfadiazina no 3º trimestre, para evitar danos fetais. O uso de corticosteroides está indicado quando há envolvimento do nervo óptico, polo posterior, grandes vasculites ou vitreíte intensa; deve ser iniciado após 3 dias de tratamento específico, e os antibióticos são mantidos por mais 10 dias após o término do corticosteroide oral. Outras opções terapêuticas são: clindamicina, sulfametoxazol com trimetoprima e tetraciclina. Como as lesões oculares da toxoplasmose geralmente se situam nas regiões periféricas da retina, não causam alteração na visão; contudo, podem se localizar no polo posterior, acometendo a visão central, principalmente na toxoplasmose ocular congênita com infecção precoce. A reativação pode ocorrer após anos, por três mecanismos: rotura de cistos quiescentes no interior das células retinianas desencadeando reação de hipersensibilidade aos antígenos liberados, reinfecção por cepas diferentes ou por antigenemia a partir de santuários extraoculares. Visando a diminuir o número de recidivas, pode-se prescrever profilaxia com sulfametoxazol-trimetoprim 800 mg-160 mg (1 comprimido, 3 vezes/semana, via oral), por anos, para crianças que não informam visão, que já têm visão ameaçada ou comprometida por crises anteriores e nas que possuem visão apenas em um olho. Contudo, ainda não se sabe quais pacientes realmente se beneficiam dessa medida preventiva nem por quanto tempo deve ser realizada.
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Toxocaríase ocular e DUSN Causada pelo Toxocara canis, um nematódeo presente no intestino dos cães, principalmente de filhotes. A contaminação ocorre pela ingestão de ovos eliminados nas fezes dos cães, presentes no solo, água e alimentos. Clinicamente, manifesta-se de duas formas: larva migrans visceral (sem grande envolvimento ocular) e toxocaríase ocular. Esta última costuma ser um quadro unilateral, com quatro formas distintas: • endoftalmite crônica (2 a 9 anos): uveíte graunulomatosa difusa com hipópio e vitreíte, podendo causar descolamento de retina, catarata, leucocoria e estrabismo; • granuloma de polo posterior (6 a 14 anos): granuloma único, bem delimitado, vitreíte muito leve ou ausente; comumente leva à baixa acuidade visual unilateral, estrabismo e ambliopia (Figura 6); • granuloma periférico (adolescência ou fase adulta): massa branca vitreorretiniana na periferia da retina ou espaço retrocristaliniano; boa acuidade visual, exceto quanto há tração retiniana causando distorção macular ou descolamento de retina; • neurorretinite subaguda unilateral difusa (diffuse unilateral subacute neuroretinitis – DUSN) (crianças e adultos jovens saudáveis): pode ser causada por outros nematódeos também (como Ancylostoma caninum, Strongyloides stercoralis, Ascaris lumbricoides e Baylisascaris procyonis). Na fase aguda, há vitreíte, edema de papila, lesões retinianas esbranquiçadas e pode-se observar o parasita intrarretiniano (Figura 7) ou seus túneis (linhas esbranquiçadas na retina) em alguns casos. Na fase crônica, ocorre degeneração difusa do epitélio pigmentar da retina, com palidez de papila e estreitamento dos vasos retinianos. Diagnóstico É clínico, porém, testes sorológicos podem ser úteis. A presença de anticorpos antitoxocara com títulos acima de 1:32 no soro é fortemente sugestiva da doença. Diagnósticos diferenciais incluem doenças que também causam leucocoria, baixa
Figura 6 Granuloma de polo posterior na toxocaríase ocular.
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vascular (Figura 8). Tardiamente, o nervo óptico torna-se pálido e os vasos retinianos, estreitados, lembrando novamente a retinose pigmentar. Manifestações tardias são caracterizadas pela tríade de Hutchinson: alterações dentárias, surdez por lesão do VIII par craniano e ceratite intersticial bilateral (alteração ocular mais comum dessa fase, ocorrendo geralmente entre 5 e 20 anos de idade). Outras alterações oculares tardias incluem: glaucoma, catarata e atrofia de íris com iridociclite recorrente.
Figura 7 Parasita intrarretiniano na neurorretinite subaguda unilateral difusa (DUSN).
visual e estrabismo, como toxoplasmose, retinoblastoma, doença de Coats, retinopatia da prematuridade, persistência primária do vítreo hiperplásico e vitreorretinopatia exsudativa familial. Tratamento Apesar de o uso de anti-helmíticos orais (albendazol e tiabendazol) ser questionável pela baixa penetração ocular, deve ser tentado para diminuir a inflamação, muitas vezes em associação com corticosteroide. Nos casos de DUSN em que o parasita pode ser visto, o tratamento de escolha é fotocoagulação a laser na região adjacente ao parasita, preferencialmente nas fases iniciais. Tratamentos cirúrgicos são reservados para complicações como descolamento de retina, catarata, endoftalmite crônica e glaucoma, quando não responsivas ao tratamento clínico. Sífilis ocular Trata-se de infecção sistêmica causada pela espiroqueta Treponema pallidum, com transmissão principalmente sexual, mas também vertical. Nesta seção, serão abordadas especialmente características da sífilis congênita; contudo, a infecção adquirida deve ser lembrada nos adolescentes e casos suspeitos de abuso infantil. Na sífilis congênita, o contágio geralmente ocorre após o 4º mês de gestação. O recém-nascido pode apresentar rash maculopapular, úlceras mucosas com fissuras, rinite e dificuldades respiratórias. Quando transmitida tardiamente na gestação, pode ser assintomática no recém-nascido, manifestando alterações oculares apenas no final da infância e adolescência. As alterações oculares apresentam amplo espectro de sinais e sintomas, sendo conhecida como doença “mimetizadora”. A sífilis congênita precoce (perinatal) apresenta-se como coriorretinite com fundo de olho em “sal e pimenta”, alterações pigmentares grosseiras semelhantes à retinose pigmentar, iridociclite, neurorretinite com estrela macular e engurgitamento
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Diagnóstico É baseado na clínica e em testes laboratoriais. O veneral disease research laboratory (VDRL) é um teste quantitativo não treponêmico que utiliza cardiolipina e reflete atividade, evolução e tratamento da doença. Já o fluorescent treponemal antibody absortion test (FTA-Abs) é qualitativo e específico para anticorpos antitreponêmicos, bastante sensível e permanece positivo mesmo após o tratamento (sequela sorológica). Para o diagnóstico da sífilis congênita, deve haver elevação do título do VDRL após o nascimento e teste IgM FTA-Abs positivo, pois IgG pode ser transferido passivamente via transplacentária da mãe para o feto. Importante lembrar que sífilis congênita é uma doença de notificação compulsória em todo o território nacional. Devem-se solicitar também hemograma completo, radiografia de ossos longos e exame de celularidade, proteínas e VDRL do líquido cefalorraquidiano (LCR). Entre os diagnósticos diferenciais estão outras infecções congênitas (TORCHS) e, nas fases tardias, pode ser confundida com sarampo, catapora, escarlatina, etc. Tratamento Para os recém-nascidos de mães tratadas, deve-se coletar VDRL em amostra de sangue periférico, e não do cordão umbilical. Se for assintomático com VDRL não reagente, indica-se acompanhar com exame clínico e laboratorial. Em crianças
Figura 8 Coriorretinite com fundo de olho em “sal e pimenta” na sífilis congênita.
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sintomáticas ou com LCR alterado, deve-se utilizar penicilina G cristalina 100.000 a 150.000 UI/kg de peso/dia, fracionada em 2 doses durante 7 dias e, depois, a cada 8 horas por mais 3 dias por via endovenosa; ou penicilina G procaína 50.000 UI/ kg de peso, 1 vez/dia, via intramuscular, por 10 dias. Nas assintomáticas com LCR normal, pode-se utilizar penicilina benzatina intramuscular em dose única. Eritromicina só é recomendada nos casos de alergia à penicilina. O acompanhamento inclui VDRL aos 3, 6 e 12 meses após a conclusão do tratamento. Nos casos com acometimento ocular, indica-se o uso de corticosteroide endovenoso e tópico, assim como cicloplégico tópico. Doença da arranhadura do gato É causada pela bactéria Gram-negativa Bartonella henselae, que se multiplica no trato digestório da pulga de gato Ctenocephalides felis. A transmissão ocorre pela inoculação direta através de uma ferida aberta, como arranhadura ou mordida do gato contaminada com fezes da pulga. Trata-se da causa isolada mais comum de neurorretinite no mundo. Inicialmente, forma-se uma pápula ou pústula na área de inoculação, com linfadenopatia regional e mialgia, cefaleia e febre. De 5 a 10% dos casos apresentam manifestações oculares: • síndrome oculoglandular de Parinaud (3%): conjuntivite folicular granulomatosa com febre e linfadenopatia; • neurorretinite (1 a 2%): geralmente unilateral, com perda indolor e aguda da visão central, defeito pupilar aferente relativo, edema de papila, descolamento seroso da retina e formação de estrela macular (Figura 9); • outros: retinite focal ou multifocal, vitreíte, coroidite, vasculite retiniana e oclusões vasculares.
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béola, herpes simples e sífilis (TORCHS), tuberculose, esporotricose e síndrome dos múltiplos pontos brancos. Tratamento A doença é autolimitada e seu tratamento é controverso. Pode-se usar doxiciclina 100 mg a cada 12 horas, por via oral, por 30 dias em imunocompetentes e por até 4 meses em imunocomprometidos. Alternativas são ciprofloxacino, gentamicina, azitromicina e sulfametoxazol-trimetoprim. A maioria dos pacientes recupera totalmente a visão, mas a regressão completa do edema de papila e da estrela macular pode levar meses. Sequelas como palidez de papila, diminuição da visão de contraste e de cores podem ocorrer.
Diagnóstico É clínico, mas exames laboratoriais podem ajudar. Sorologias, PCR e isolamento da bactéria em cultura podem ser realizados. Diagnósticos diferenciais incluem: toxoplasmose, varicela, ru-
Citomegalovírus O citomegalovírus (CMV) é um DNA vírus da família Herpesviride, que apresenta inclusões intranucleares e intracitoplasmáticas nas formas sintomáticas da doença. Sua transmissão é principalmente sexual nos adultos. A transmissão vertical acontece tanto na infecção primária (40%) quanto na reinfecção materna (1 a 3%), sendo a primeira mais comum, pois os anticorpos anti-CMV maternos garantem proteção parcial ao feto. A infecção perinatal (até 1 mês após o nascimento) ocorre pelo contato do recém-nascido com a mucosa vaginal durante parto normal ou leite materno contaminado, mas costuma ser assintomática e sem sequelas. Somente 10% dos recém-nascidos infectados são sintomáticos, com icterícia, hepatomegalia, petéquias, perda auditiva neurossensorial, calcificações intracranianas intraventriculares, hipotonia, microcefalia, atraso do desenvolvimento, epilepsia e alterações oftalmológicas. Dentre as manifestações oculares, a retinite é a lesão mais comum (11 a 25% das crianças sintomáticas). É caracterizada por extensas áreas de necrose retiniana branco-amareladas, próximas aos vasos retinianos, com hemorragias e vasculite (aspecto “pizza com catchup”) e branda inflamação vítrea (Figura 10). As lesões unilaterais podem progredir e comprome-
Figura 9 Neurorretinite com estrela macular na doença da arranhadura do gato.
Figura 10 Retinite em “pizza com catchup” na infecção por citomegalovírus.
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ter o olho contralateral quando não tratadas, podendo causar descolamento de retina e cegueira. Crianças inicialmente as‑ sintomáticas podem desenvolver lesões retinianas tardias, provavelmente pela reativação do vírus na retina. A retinite causada pelo CMV é a infecção ocular oportunista mais co‑ mum entre pacientes com aids, cuja incidência e o risco de de‑ senvolvimento aumentam nos pacientes com linfócitos CD4+ abaixo de 50 céls./mm3 e má adesão ao tratamento com antir‑ retrovirais. Diagnóstico É auxiliado por cultura do vírus na urina ou saliva do recém‑ -nascido nas primeiras 3 semanas de vida. Outras testes in‑ cluem PCR e presença de anticorpos IgM anti-CMV no sangue do cordão umbilical. Para comprovação pré-natal, pode-se realizar amniocentese e análise do vírus no líquido amniótico. Entre os diagnósticos diferenciais, destacam-se as outras cau‑ sas de infecção congênita (TORCHS). Tratamento É realizado com ganciclovir endovenoso por 6 semanas; im‑ plantes intraoculares dessa droga também estão disponíveis. Efeitos colaterais, especialmente mielotoxicidade, devem ser monitorados. Outra opção é foscarnet, mas seu uso restringe‑ -se aos casos resistentes, em virtude do alto índice de efeitos colaterais. Nos pacientes HIV positivos, a terapia antirretrovi‑ ral reduz a incidência de retinite por CMV. Rubéola congênita O vírus da rubéola é um RNA vírus, da família Togaviridae, cuja infecção durante a gestação causa a síndrome da rubéola congênita, caracterizada por graves anomalias fetais, púrpura, trombocitopenia, hepatoesplenomegalia, icterícia, meningo‑ cefalia, osteopatia de ossos longos, deficiência auditiva per‑ manente, malformações cardíacas, retardo do desenvolvi‑ mento e diabete melito. Dentre as alterações oculares, a mais comum é a retinopatia pigmentar (50%), com fundo de olho em “sal e pimenta” diferenciada da sífilis congênita por apre‑ sentar hiperpigmentação mais fina; sem acometimento dos vasos retinianos nem do nervo óptico, a visão geralmente é boa. Outras manifestações oculares incluem catarata bilateral nuclear perolada (20%), glaucoma (10%), hipoplasia iriana, irite, estrabismo e microftalmia. Diagnóstico A presença de anticorpos IgM específicos para rubéola na san‑ gue do recém-nascido é evidência de infecção congênita, já que esses anticorpos maternos não ultrapassam a barreira pla‑ centária, diferentemente dos anticorpos tipo IgG. No caso de IgM reagente no recém-nascido, recomenda-se a coleta de swab nasofaríngeo para identificação do genótipo por isola‑ mento viral. Com a vacina específica, houve redução impor‑ tante da sua incidência. Até o momento, não existe tratamen‑ to antiviral efetivo, sendo a terapêutica direcionada às malformações congênitas e complicações.
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Artrite idiopática juvenil (AIJ) Caracteriza-se pela presença de artrite crônica com início an‑ tes dos 16 anos de idade e duração mínima de 6 semanas, com ligeira predominância no sexo feminino. Pode ser classificada de acordo com o quadro clínico nos primeiros 6 meses em: po‑ liarticular (5 ou mais articulações), oligoarticular (4 ou menos articulações) e sistêmica (febre intermitente, rash e artrite). A forma oligoarticular está mais relacionada ao envolvimento ocular, sendo dividida em 2 grupos: 1. Subtipo I (30 a 40%): ocorre principalmente em meninas antes dos 5 anos de idade e acomete grandes articulações (ra‑ ramente o quadril); a iridociclite é a manifestação extra-arti‑ cular mais comum, geralmente bilateral, crônica e oligossin‑ tomática. 2. Subtipo II (10%): ocorre sobretudo em meninos maiores de 9 anos com HLA-B27 positivo, acomete grandes articulações dos membros inferiores (inclusive quadril) e ênteses; a irido‑ ciclite ocorre em 15 a 25% dos casos, sendo unilateral aguda, recorrente e sintomática, mas que pode acometer o olho con‑ tralateral nas recidivas. Os principais fatores de risco para o desenvolvimento de ma‑ nifestações oculares são: forma oligoarticular, sexo feminino, início precoce da AIJ e fator antinuclear (FAN) positivo. A in‑ flamação ocular não tem relação com o quadro articular sistê‑ mico. Em 5 a 10% dos casos, a uveíte aparece como manifesta‑ ção inicial da doença. Tratamento Inicialmente, o tratamento é feito com colírios de corticoste‑ roide e midriáticos (preferindo-se tropicamida 1%, pelo seu efeito de curta duração, e instilado à noite, para não interferir nas atividades escolares e não induzir ambliopia). Podem ocorrer complicações como formação de sinéquias posteriores, glaucoma, catarata e ceratopatia em faixa, lembrando que o implante de lente intraocular na cirurgia de catarata geralmen‑ te é contraindicado. Nos casos não responsivos, utilizam-se corticosteroide oral (até 2 mg/kg/dia), pulsos endovenosos de metilprednisolona (30 mg/kg/dose), imunossupressores (metotrexato, ciclosporina e micofenolato mofetil) e até agen‑ tes biológicos (como infliximabe e adalimumabe). O tratamen‑ to sistêmico deve ser realizado em conjunto com o reumatolo‑ gista pediátrico. Recomenda-se realizar exame oftalmológico trimestral nos 4 primeiros anos nos pacientes com FAN positi‑ vo e, depois, semestralmente; nos pacientes com FAN negati‑ vo ou idade de início da doença acima de 7 anos, o exame deve ser semestral, e anual nos pacientes com doença sistêmica. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer que a toxoplasmose adquirida ou congênita pode causar lesão na retina. • Saber que toda criança com diagnóstico de artrite reumatoide juvenil deve ser acompanhada pelo oftalmologista porque, às vezes, a inflamação grave pode ser assintomática.
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Lembrar que crianças com suspeita de infecção congênita podem apresentar uveítes. • Suspeitar de retinoblastoma em uveítes unilaterais nas crianças. • Identificar a necessidade de avaliação urgente no caso de catarata, pelo risco de ambliopia na criança. • Fazer avaliação oftalmológica em casos de doença da arranhadura do gato.
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CAPÍTULO 9
RETINOBLASTOMA Rubens Belfort Neto Arun Singh
Introdução Tumores intraoculares são raros em crianças. Retinoblastomas, hemangiomas, dermolipomas, linfangiomas, rabdomiossarco‑ mas e nevos estão entre os tumores que podem acometer o olho e a órbita de crianças e adolescentes. O retinoblastoma merece atenção especial por sua morbidade e sua potencial le‑ talidade, além do grande impacto socioeconômico causado pela idade dos pacientes. Definição e incidência O retinoblastoma é um tumor uni ou bilateral, originado nas células do neuroepitélio da retina. Geralmente, acomete crian‑ ças até os 4 anos de idade, por isso sua incidência costuma ser expressa em número de casos por milhão de crianças entre 0 e 4 anos de idade. A idade média de diagnóstico na cidade de São Paulo é de 18 meses, sendo que 90% dos casos são diagnosticados antes dos 3 anos de idade. A incidência de retinoblastoma nos EUA é estima‑ da em 11,8 casos por milhão de crianças entre 0 e 4 anos e man‑ tém-se estável nos últimos 30 anos. Na maioria dos países euro‑ peus, a incidência é semelhante à norte-americana. Algumas regiões apresentam incidência muito maior que a média mun‑ dial, como Mali (42,5 milhões), Uganda (24 milhões) e Valência (17,8 milhões), mas não foram identificados fatores ambientais responsáveis pelo aumento da incidência nessas populações, tão diferentes entre si. Alguns estudos podem superestimar a inci‑ dência por avaliarem populações pequenas por um curto período. História natural Retinoblastomas são tumores agressivos que, se não tratados, crescem rapidamente e destroem a arquitetura interna do olho. Acredita-se que o tumor tenha origem na retina, cres‑ cendo como uma massa rosada até que suas células adquiram a capacidade de sobreviver em ambiente mais isquêmico e se soltem, dando origem às células tumorais dispersas no vítreo, chamadas de sementes vítreas. Se não tratadas, as sementes aumentam a disseminação intraocular do tumor.
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Em estágios mais avançados, pode haver glaucoma neovas‑ cular, hemorragia intraocular, celulite asséptica pela necrose tumoral, atrofia ocular (phtisis) e tumor acometendo o seg‑ mento anterior e o nervo óptico. As células saem do globo ocu‑ lar principalmente por contiguidade, através dos nervos ópti‑ co e coroide e, depois, pelas vias hematogênica e linfática. Disseminação liquórica pode ocorrer sempre que houver inva‑ são do nervo e infiltração das meninges, mesmo quando a margem de ressecção do nervo está livre de neoplasia. Rara‑ mente, os retinoblastomas podem sofrer regressão espontâ‑ nea – o mecanismo etiológico dessa condição é desconhecido. Os pacientes com retinoblastoma hereditário têm maior suscetibilidade para desenvolver outros tumores malignos, principalmente em regiões irradiadas. Desses, osteossarco‑ mas, sarcomas de partes moles e pinealoblastomas são os que mais matam, embora rabdomiossarcomas, melanomas e leu‑ cemias também tenham sido descritos. A radioterapia externa aumenta a chance de segundas neo‑ plasias, principalmente se utilizada antes do 1º ano de vida, devendo ser evitada sempre que possível. A incidência de se‑ gundo tumor é de 38% após 50 anos do diagnóstico de retino‑ blastoma, e os pacientes irradiados apresentam 3 vezes mais tumores que aqueles que não receberam radiação. O pinealoblastoma, classicamente associado ao retinoblas‑ toma hereditário, é um tumor raro. Sua incidência nos EUA é de 3% para todos os pacientes com retinoblastoma e de 5% para os com retinoblastoma bilateral. Em geral, é diagnosticado entre 1 e 2 anos depois do diagnóstico de retinoblastoma. Essa situação é denominada retinoblastoma trilateral, em função da origem fi‑ logenética da pineal. Acredita-se que a utilização mais frequen‑ te da quimiorredução nos últimos anos tenha contribuído para a menor incidência de pinealoblastomas, considerando que possa haver um efeito protetor da quimioterapia. Padrão de herança e classificação O retinoblastoma é causado pela mutação do gene RB1, gene supressor tumoral localizado no braço longo do cromossomo
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13 (13q14). O RB1 foi o primeiro gene supressor tumoral a ser identificado e, atualmente, sabe-se que a proteína codificada por ele, a p105 Rb, tem importante papel na regulação do ciclo celular. Essa proteína também está envolvida em outros cân‑ ceres, como osteossarcomas e cânceres de pulmão, bexiga e mama. A teoria do second hit, proposta por Knudson, sugere a ne‑ cessidade de mutação das duas cópias do gene para desenvol‑ ver a doença. Nos casos de retinoblastoma familiar, por exem‑ plo, a criança já apresenta o primeiro hit em todas as suas células (herdado de um dos pais), precisando apenas de uma mutação para desenvolver a doença. Isso explica por que esses pacientes também apresentam maior chance de desenvolver câncer em outros órgãos. A primeira cópia mutante pode ser herdada de pais afeta‑ dos (forma familiar) ou de uma mutação germinativa (geral‑ mente no espermatozoide paterno, denominada esporádica hereditária). Nesses casos, quase 95% das crianças desenvol‑ vem o tumor, por consequência da alta penetrância da muta‑ ção, e quase 90% dos casos são bilaterais. Esses pacientes po‑ dem transmitir o gene mutante aos seus descendentes. A outra forma de apresentação é esporádica não hereditá‑ ria, responsável por cerca de 60% dos casos, sendo ainda mais frequente em países em desenvolvimento, talvez pela baixa sobrevida das crianças com a forma bilateral da doença. Na forma esporádica não hereditária, deve haver mutação nos dois alelos de uma célula depois da concepção (mutação so‑ mática). Nesses casos, a doença é unilateral e unifocal, e não existe chance de transmitir a mutação aos descendentes. Assim, o retinoblastoma pode ser classificado como fami‑ liar ou esporádico, unilateral ou bilateral, hereditário ou não hereditário. Todos os casos bilaterais são hereditários, mas 10% dos pacientes com doença unilateral são hereditários. A determinação do tipo de herança é essencial tanto para o prog‑ nóstico da criança quanto para o aconselhamento genético. Alguns laboratórios oferecem teste genético para detectar a mutação em portadores de tumor unilateral enucleados, fi‑ lhos de pais com retinoblastoma bilateral e pais de crianças com tumores bilaterais. Casos unilaterais são analisados quando existe tecido disponível (no caso de enucleação) para comprovar a detecção da mutação antes da análise de outros familiares. Sinais clínicos Os casos hereditários costumam ser detectados mais precoce‑ mente, sendo que, no caso de retinoblastoma familiar, as crianças devem ser examinadas desde o nascimento em busca do tumor, a menos que um exame genético demonstre ausên‑ cia da mutação. O diagnóstico dos casos unilaterais é um pouco mais tardio, e a suspeita costuma surgir quando a família percebe algo de errado no olho da criança. Um importante sinal é a leucocoria, alteração do reflexo vermelho, principalmente em fotografias com flash (Figura 1). Essa alteração está presente em até 80% dos casos e é causada pelo reflexo da luz sobre a superfície do tumor. Trata-se, no entanto, de um sinal inespecífico.
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Em estágios mais avançados, a criança pode apresentar es‑ trabismo. Outros sinais, como pupilas de tamanho diferentes (anisocoria), proptose, olho vermelho e doloroso, hifema (san‑ gue na câmara anterior) e heterocromia de íris, podem ser en‑ contrados em casos avançados. Maior tempo até o diagnósti‑ co, doença avançada e extensão extraocular (Figura 2) são mais frequentes em países em desenvolvimento. Diagnóstico O diagnóstico é baseado no exame oftalmológico e na ultrasso‑ nografia. Todos os casos suspeitos devem ser avaliados por um oftalmologista, e o exame sob narcose deve ser considera‑ do para permitir exame detalhado, minimizando dor e trauma da criança (Figura 3). Em razão do risco de extensão extraocu‑ lar, que piora o prognóstico, nunca se deve realizar biópsia ou vitrectomia em caso de suspeita de retinoblastoma. No exame de fundo de olho, o retinoblastoma apresenta-se como uma ou múltiplas massas tumorais rosadas ou brancas, vascularizadas, total ou parcialmente calcificadas, preenchen‑ do a cavidade vítrea. Células que se desprendem do tumor po‑ dem ser vistas junto à superfície tumoral ou soltas pelo vítreo.
Figura 1 Reflexo vermelho anormal (leucocoria) do olho direito.
Figura 2 Retinoblastoma com extensão extraocular.
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São denominadas sementes vítreas e representam as células mais agressivas do tumor (Figura 4). O segmento anterior do olho costuma ser normal. Nos ca‑ sos de opacidade de meios que impedem o exame oftalmoscó‑ pico, a ultrassonografia pode ajudar a determinar a presença de massa intraocular. Em casos avançados, pode haver infiltração tumoral na câ‑ mara anterior, luxação e opacificação do cristalino. Nessa si‑ tuação, costuma haver aumento da pressão intraocular. Propedêutica complementar A ultrassonografia mostra sinais característicos dessa doença (Figura 5). As massas tumorais são sólidas, e a maioria con‑ tém grau variado de calcificação. A presença de calcificação in‑ traocular em uma criança é quase patognomônico de retino‑ blastoma. A tomografia computadorizada (TC) do crânio ajuda a iden‑ tificar calcificações, mas é cada vez menos indicada porque a exposição à radiação é desnecessária, dando-se preferência à ressonância magnética (RM) sempre que disponível. A RM também permite melhor visualização do nervo óptico para de‑ tectar espessamento.
Figura 3 Exame sob narcose.
A
O pinealoblastoma, apesar de raro, é o segundo tumor pri‑ mário clássico (5%) nos casos hereditários, denominados reti‑ noblastomas trilaterais, e raramente é sincrônico com o reti‑ noblastoma. Alguns centros recomendam neuroimagem a cada 6 meses, até os 5 anos de idade, para identificar a presen‑ ça de pinealoblastoma. A biópsia intraocular, mesmo por agulha fina, é contraindi‑ cada. A disseminação extraocular do tumor muda o estadia‑ mento e o prognóstico da doença. A avaliação completa da criança portadora de retinoblasto‑ ma deve incluir a avaliação por equipe multidisciplinar, con‑ tando com oncologista pediátrico, geneticista e psicólogo, além do oftalmologista. Patologia Avaliação anatomopatológica é disponível apenas nos casos enucleados, já que o diagnóstico do retinoblastoma é clínico e as biópsias são contraindicadas. Essa avaliação é de grande importância, já que critérios histológicos são utilizados para classificar doença de alto risco, indicando complementação do tratamento com quimioterapia sistêmica. O retinoblastoma é um tumor composto por pequenas cé‑ lulas redondas com núcleo hipercromático e citoplasma escas‑
Figura 4 Retinoblastoma com sementes vítreas.
B
Figura 5 Ultrassonografia ocular. (A) Corte longitudinal. Duas lesões posteriores, formato arredondado, refletividade interna heterogênea. (B) Corte longitudinal com baixo ganho, evidenciando a calcificação intralesional.
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Retinoblastoma •
so. Geralmente, existe grande atividade mitótica. A formação de rosetas de Flexner-Wintersteiner é característica do retino‑ blastoma. Essas rosetas caracterizam-se por uma fileira única de células cuboides com citoplasma eosinofílico e núcleo peri‑ férico ao redor de um lúmen central circundado por uma es‑ trutura que lembra uma membrana, mas representa áreas de sinapses entre os fotorreceptores e as células de Müller. A ro‑ seta representa diferenciação retiniana em fotorreceptores, mas ainda é composta de células malignas. Outro tipo de rosetas, denominadas rosetas de Homer Wright, é menos frequente em retinoblastomas e pode ser vis‑ to em uma variedade de tumores neuroblásticos (neuroblasto‑ mas e meduloblastomas), sendo achado menos específico. Nessas rosetas, ao contrário das de Flexner-Wintersteiner, não se evidencia o lúmen central, e os processos citoplasmáticos acumulam-se no centro, formando uma área mais eosinofílica. O exame anatomopatológico de um olho com retinoblasto‑ ma deve ser detalhado e informar sobre a integridade da escle‑ ra e da extensão extraocular, se o tumor era uni ou multifocal, o nível de invasão do nervo óptico (geralmente pré ou pós-lâ‑ mina crivosa), a margem de corte de nervo óptico livre ou comprometida e o envolvimento maciço de coroide. Esses da‑ dos têm importância prognóstica e podem indicar necessida‑ de de tratamento complementar. Diagnóstico diferencial O diagnóstico diferencial inclui doença de Coats (malforma‑ ção vascular retiniana), persistência do vítreo primário hiper‑ plásico (anomalia congênita), infecção por toxocara, retinopa‑ tia da prematuridade, entre outros que serão abordados em outros capítulos desta obra. Tratamento O tratamento do retinoblastoma consiste em tratamento local de lesões pequenas e quimioterapia associada ao tratamento local para consolidação nos casos hereditários ou enucleação nos casos avançados (Figura 6). Desde a década de 1990, quando a quimioterapia passou a ser utilizada para tumores intraoculares hereditários e não apenas para doença extraocu‑ lar, o sucesso no tratamento aumentou muito. Como modalidades de tratamento local, há a laserterapia (fotocoagulação a laser ou termoterapia transpupilar – TTT), a braquiterapia (colocação de placa radioativa extraescleral), a crioterapia (congelamento das lesões) e a radioterapia externa, além da enucleação. A indicação de cada uma dessas modali‑ dades depende de sua disponibilidade e de características como local do tumor, seu tamanho e a presença de sementes vítreas. Como regra, evita-se a radioterapia externa porque existe a possibilidade de induzir deformidades faciais e au‑ mentar o risco de outras neoplasias. A quimioterapia costuma ser utilizada para diminuir a ne‑ cessidade de radioterapia externa e de enucleação. Existem inúmeros protocolos, mas costumam ser utilizados 6 ciclos de carboplatina e vincristina. Protocolos para casos mais avança‑ dos incluem etoposídeo sistêmico e injeção subconjuntival de carboplastina.
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Protocolos experimentais avaliam quimioterapia intra-ar‑ terial, que permite salvar olhos com doença avançada, mas as indicações precisas e os efeitos no longo prazo ainda não estão estabelecidos. O principal fator de mau prognóstico no retinoblastoma é o diagnóstico tardio. Quando a doença é diagnosticada precoce‑ mente, quase todas as crianças são curadas e muitas mantêm boa visão em pelo menos um olho (Figura 7). É fundamental que os pediatras realizem o exame do reflexo vermelho e con‑ siderem retinoblastoma diagnóstico diferencial em casos de leucocoria ou estrabismo.
Figura 6 Implante que substitui o olho pós-enucleação.
Figura 7 Retinoblastoma tratado.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer sinais de retinoblastoma, principalmente a leucocoria. • Saber conceitos básicos sobre o quadro clínico e o diagnóstico do retinoblastoma. • Distinguir as formas hereditária e não hereditária da doença.
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•
Entender a importância do diagnóstico precoce do retinoblastoma. • Orientar sobre as formas de tratamento. • Orientar sobre a importância do aconselhamento genético para os pacientes com forma hereditária que atingem idade fértil.
Bibliografia 1.
Abramson DH, Schefler AC. Update on retinoblastoma. Retina 2004; 24(6):828-48. 2. Abramson DH, Frank CM. Second nonocular tumors in survivors of bila‑ teral retinoblastoma: a possible age effect on radiation-related risk. Ophthalmology 1998; 105(4):573-9. 3. Balmer A, Zografos L, Munier F. Diagnosis and current management of retinoblastoma. Oncogene 2006; 25(38):5341-9. 4. Benedict WF, Murphree AL, Banerjee A, Spina CA, Sparkes MC, Spar‑ kes RS. Patient with 13 chromosome deletion: evidence that the retino‑ blastoma gene is a recessive cancer gene. Science 1983; 219(4587):973-5.
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CAPÍTULO 10
CATARATA INFANTIL Ana Paula Silvério Rodrigues Andrea Araujo Zin
Definição A catarata é uma anomalia da transparência do cristalino, presente ou desenvolvida após o nascimento. O cristalino normal (Figura 1) é uma estrutura transparente cuja função é focar os raios luminosos na retina. A opacidade nessa estrutura pode causar um bloqueio parcial ou total da passagem da luz, e a diminuição da visão depende da densidade dessa opacidade. A visão é um dos mais importantes sentidos no desenvolvimento físico e cognitivo normal da criança. Para que o desenvolvimento da visão seja normal, são necessárias boas condições anatômicas e fisiológicas. Obstáculos à formação de imagens nítidas em cada olho podem levar a um mau desenvolvimento visual (ambliopia), que se tornará irreversível se não for tratado a tempo. Epidemiologia A catarata pediátrica representa uma importante causa de cegueira na infância, podendo ser uma das principais causas em algumas regiões do mundo. Não há estudos populacionais no Brasil que demonstrem a prevalência e as causas de deficiência visual na infância. O que
Esclerótica Corpo ciliar Coróide Córnea
Retina Mácula lútea Fóvea Nervo óptico
Cristalino Pupila Íris Humor vítreo
Ponto cego Ligamentos
Figura 1 Anatomia do globo ocular.
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há disponível são estudos realizados em escolas de cegos e serviços de baixa visão, que não podem ser extrapolados para a população brasileira. De acordo com esses estudos, a catarata encontra-se entre as principais causas de cegueira infantil, variando entre 6,3 e 19,3% de todas as causas.1,2 Etiologia A catarata infantil pode ser um evento isolado ou fazer parte de síndromes, malformações oculares e/ou sistêmicas. A determinação da etiologia é bastante útil, pois auxilia no diagnóstico de doenças sistêmicas. Rahi et al. demonstraram que, em 92% das cataratas unilaterais e em 38% das bilaterais, nenhuma causa foi identificada. Mais de 50% dos casos bilaterais foram hereditários comparados com 6% dos unilaterais. Infecções pré-natais e outras causas sistêmicas contribuíram para 6% das cataratas bilaterais e 2% das unilaterais. Oliveira et al., em levantamento realizado no Setor de Catarata Congênita da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em 2004, encontraram 30,64% de causa infecciosa, 19,36% genética e 50% idiopática. Cataratas hereditárias e formas de herança Cataratas hereditárias são mais frequentemente herdadas como traço autossômico dominante (AD), podendo também apresentar herança autossômica recessiva (AR) ou ligada ao X. Os casos esporádicos não são associados a problemas sistêmicos e oculares, e estima-se que um quarto dessas cataratas seja decorrente de novas mutações, tornando-se hereditárias AD. Já os casos hereditários correspondem a 8,3 a 23% de todas as cataratas congênitas, e a herança mais frequente é a AD, com penetrância completa sendo transmitida pelas gerações. A catarata também pode fazer parte de síndromes hereditárias ou doenças sistêmicas. Dessa forma, é importante que a criança com catarata seja examinada para excluir problemas sistêmicos.
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Síndromes e doenças sistêmicas Diversas são as síndromes e doenças sistêmicas que apresentam catarata congênita, sendo as mais encontradas: síndrome de Marfan, síndrome de Weill-Marchesani, síndrome de Lowe, síndrome de Alport e síndrome de Down. Causas infecciosas Dentre as causas infecciosas, deve-se destacar a síndrome da rubéola congênita, resultante da infecção materna durante o 1º trimestre de gravidez. As alterações cristalinianas resultam da invasão direta do vírus na lente, que já foi isolado de tecido cristaliniano. Outros vírus, como herpes simples e citomegalovírus, também podem causar a catarata congênita, assim como infecção pela sífilis e toxoplasmose.
Figura 2 Teste do olhinho.
Causas metabólicas Hipocalcemia, hipoglicemia, hiperglicemia, galactosemia, homocistinúria, doença de Wilson e doença de Fabry, dentre outras, compõem as causas metabólicas. Detecção: quando examinar as crianças O teste do reflexo vermelho (TRV) ou teste do olhinho (Figura 2) é um teste efetivo para triagem de doenças oculares como catarata, glaucoma, retinoblastoma e doenças coriorretinianas (coloboma, retinocoroidite em atividade no polo posterior), não sendo indicado para triagem de retinopatia da prematuridade.3 Deve ser realizado pelo pediatra em local com pouca iluminação, usando oftalmoscópio direto, posicionado a uma distância aproximada entre 0,5 a 1 m dos olhos da criança, para se observar o reflexo vermelho que se reflete da retina (Figura 3). Todos os recém-nascidos devem ser submetidos ao TRV antes da alta da maternidade e pelo menos 2 a 3 vezes ao ano nos 3 primeiros anos de vida.4 Apesar de chamado de teste do reflexo vermelho, uma variação de coloração pode ocorrer por conta de uma combinação entre a área vascular e pigmentos da coroide, podendo ser vermelho, laranja avermelhado, alaranjado e amarelo claro (Tabela 1).11 Qualquer obstrução à passagem de luz, parcial ou total, altera o reflexo e aparece com uma marca escurecida ou sombra. Deixar a sala escura normalmente permite que a pupila dilate o suficiente para o exame. Caso surja alguma alteração ou dúvida, a criança deve ser encaminhada a um oftalmologista em, no máximo, 30 dias.6,7 Classificação das cataratas infantis As cataratas infantis podem ser classificadas de acordo com faixa etária acometida, morfologia, etiologia (como já descrito) e lateralidade (uni ou bilateral). Quando presente ao nascimento até os 3 meses de idade, a catarata é classificada como congênita. Entre 3 meses e 12 meses de idade, tem-se a catarata infantil precoce, e após 12 meses de idade, é denominada catarata infantil tardia. Essa classificação é importante, pois, de acordo com a etapa do desenvolvimento visual em que a criança se encontra,
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Figura 3 Reflexo vermelho alterado.
Tabela 1 Distribuição com relação à gradação de cores no TRV Gradação de cores do TRV
Nº de RN Olho direito
Olho esquerdo
Ambos
Vermelho
15
4
35
Laranja avermelhado
4
12
33
Alaranjado
13
12
46
Amarelo claro
3
6
24
Amarelo com mancha esbranquiçada
1
2
6
Total
36
36
144
indica o grau de comprometimento visual e o prognóstico. Os 3 primeiros meses de vida são cruciais para o desenvolvimento da via visual (período crítico do desenvolvimento visual). Quanto à morfologia, as cataratas podem ser classificadas, de acordo com a localização da opacidade no cristalino, em cataratas anteriores, centrais e posteriores, como mostra a Figu-
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Catarata Infantil •
ra 4, ou ainda pelo seu aspecto, como zonular, polar, total, membranosa e capsular. A morfologia da catarata pode auxiliar no diagnóstico de condições sistêmicas específicas (Tabela 2), assim como no planejamento do tratamento, que pode ser clínico ou cirúrgico, além de colaborar no prognóstico visual. As cataratas lamelares são as mais comuns na infância e apresentam bom prognóstico visual, precisando de intervenção cirúrgica somente em casos mais avançados. Já as cataratas nucleares maiores de 3 mm, quase sempre presentes ao nascimento, e as totais são as que mais comprometem a visão, devendo ser abordadas o mais rápido possível, principalmente nas crianças menores, para que se alcance um bom resultado visual.
Classificação A N T E R I O R
C E N T R A L
P O S T E R I O R
Figura 4 Classificação das cataratas quanto à localização.
Tabela 2 Tipo morfológico e doenças/síndromes associadas Tipo morfológico
Doenças/síndromes associadas
Catarata total
Esporádicas Hereditárias Síndrome da rubéola congênita Síndrome de Down
Catarata polar anterior
Alterações oculares: aniridia e síndrome de Peters Síndrome de Alport
Cataratas piramidais
Síndrome de Ehlers-Danlos Retinoblastoma
Cataratas subcapsulares
Uveítes Traumas Irradiação Dermatite atópica
Lenticone anterior (deformidade da cápsula)
Síndrome de Alport Síndrome de Waardenburg
Em “gota de óleo”
Galactosemia
Subcapsular posterior
Corticosteroides Radiações de tumores intra e perioculares Síndrome de Turner Doença de Fabry Síndrome de Bardet-Biedl Neurofibromatose tipo 2
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Cataratas unilaterais costumam ser achados isolados, mas têm sido muito associadas à persistência da vasculatura fetal (PVF). Quadro clínico Os sinais e sintomas presentes em crianças com catarata dependem da faixa etária, do grau de comprometimento da função visual, da lateralidade e da morfologia. Em crianças até 2 anos de idade, os sintomas mais frequentes são dificuldade de fixação visual, fotofobia, retardo do desenvolvimento neuropsicomotor e fixação excessiva em focos luminosos. Acima de 2 anos, os sintomas são diminuição da acuidade visual, perda parcial de percepção espacial, aproximação de objetos para enxergá-los, hiperatividade ou apatia e atraso no rendimento escolar. Os sinas são leucocoria, nistagmo, desvio ocular e alteração do reflexo vermelho. A presença de desvio ocular, nistagmo ou padrão de fixação excessiva em focos luminosos indicam um déficit visual de moderado a grave e são fatores indicativos de tratamento cirúrgico imediato. Uma avaliação oftalmológica completa deve ser sempre realizada e é constituída de anamnese e exame oftalmológico. Antecedentes familiares, pessoais e gestacionais podem fornecer informações importantes quanto ao diagnóstico etiológico e devem ser minuciosamente investigados. Antes do exame oftalmológico, é fundamental saber em que fase do desenvolvimento visual a criança se encontra e se este é adequado para a idade. A Figura 5 mostra as etapas do desenvolvimento visual da criança. Exame oftalmológico Um ambiente confortável e propício é fundamental e, sempre que possível, deve-se transformar o exame em uma grande “brincadeira”. Deve-se deixar a criança sentada no colo da mãe, virada para o examinador. Nos casos em que não é possível avaliar a criança acordada, pode-se levá-la ao centro cirúrgico e realizar o exame sob narcose.
2 a 3 anos
7 a 12 meses
5 a 7 meses
4 meses
3 meses 2 meses 1 mês RN
Visão adulto
Esteropsia
Coordenação mão - boca
Maturação foveal
Início VB
RBG
Fixa e segue
Fixa
Reflexo
Figura 5 Etapas do desenvolvimento visual.
Início VB: início da visão binocular; RBG: visão de cores (red, blue, green). Fonte: imagem cedida pela dra. Carmen Silvia Bongiovanni Gonçalves.
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Inspeção Avaliar alterações palpebrais, alterações do tamanho do olho da criança, tumores oculares, presença de secreção, desvios oculares, opacidades corneanas e/ou cristalinianas e nistag‑ mo. A presença de nistagmo é um indício muito importante de comprometimento visual precoce, mais especificamente nos 3 primeiros anos de vida da criança.
Refração sob cicloplegia É sempre importante fazer a refração sob cicloplegia (com uso de colírio de ciclopentolato 1%). É possível diagnosticar hiper‑ metropias, miopias, anisometropias e astigmatismos. Algu‑ mas alterações cristalinianas, como os lenticones, não alteram a transparência do cristalino, porém induzem altos astigma‑ tismos.
Avaliação das funções visuais Avaliar o padrão de fixação visual mono e binocular, observar as funções motoras e cognitivas, medir a acuidade visual com testes específicos de acordo com a faixa etária (Tabela 3): • cartões de acuidade de Teller (CAT) e potencial visual evoca‑ do de varredura (PVE): para crianças de 0 a 3 anos e crianças com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor; • teste “light house flash cards”, “lea symbols” e angular mão: para crianças de 3 a 4 anos; • tabela de Snellen: para crianças maiores de 4 anos; • reflexo pupilar fotomotor direto e consensual; • teste do reflexo vermelho – descrito anteriormente.
Ecobiometria A ecobiometria é um exame realizado para medir o tamanho do olho (medida do comprimento axial). Essa medida é usada para calcular o valor do grau da lente intraocular que será usa‑ da para corrigir a afacia.
Motilidade ocular A partir do 3o mês de vida, espera-se o estabelecimento do ali‑ nhamento ocular. A presença de desvios indica alterações que podem ser relacionadas somente à musculatura extrínseca ocular ou ser desvios secundários a uma baixa de visão resul‑ tante de alguma patologia ocular que esteja impedindo o de‑ senvolvimento visual. A presença de nistagmo pode indicar comprometimento do desenvolvimento visual entre 1 e 3 meses de vida extrauterina. Nesses casos, o prognóstico visual é limitado. Biomicroscopia de segmento anterior A biomicroscopia de segmento anterior é um exame realizado com um equipamento chamado lâmpada de fenda. Esse equi‑ pamento permite uma avaliação mais detalhada de pálpebras, córneas, câmara anterior (espaço entre a córnea e o plano da íris), íris e cristalino, além de permitir classificação do tipo de catarata. Mapeamento de retina O mapeamento de retina é um exame realizado com oftalmos‑ cópio indireto através da pupila dilatada com tropicamida 1%, permitindo avaliação do nervo óptico, vasos retinianos, retina e vítreo.
Ultrassonografia ocular Quando uma opacidade não permite avaliar a retina por meio do mapeamento de retina, utiliza-se a ultrassonografia ocular para informar e orientar quanto à presença de alterações reti‑ nianas, como descolamento de retina ou tumor intraocular. Tonometria A medida da pressão ocular é importante para descartar ou se‑ lecionar casos suspeitos de glaucoma. Se a criança não colabo‑ rar, opta-se pelo exame sob narcose. Ceratometria A ceratometria mede a curvatura corneana, que, junto com o comprimento axial, será usada para calcular o grau da lente in‑ traocular. Gonioscopia A gonioscopia examina a estrutura do seio camerular, onde o humor aquoso é drenado. Qualquer alteração nesse nível pode implicar elevação da pressão ocular. Investigação clínico-laboratorial Investigação laboratorial Apesar de 60% das cataratas pediátricas serem idiopáticas, patologias devem ser descartadas. De acordo com os antecedentes neonatais, a história fami‑ liar e o tipo de catarata, exames devem ser realizados para des‑ cartar as patologias mais comumente associadas a catarata na infância. A maioria dos casos de catarata unilateral é esporádi‑ ca, não hereditária e sem associação com doença sistêmica, não necessitando de investigação adicional.
Tabela 3 Avaliação da função visual de acordo com cada faixa etária Idade
Bebês < 3 meses
3 meses a 3 anos
3 a 5 anos
> 5 anos
Método de avaliação
Objetos grandes 30 a 40 cm Padrão de fixação CAT e PVE
Objetos menores a 40 cm Padrão de fixação (fixar e seguir)
E de Snellen Light house flash cards Lea symbols
Snellen
CAT: cartões de acuidade de Teller; PVE: potencial visual evocado de varredura.
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No entanto, em casos de crianças cujas gestações tiveram história de infecções ou na presença de microcefalia, surdez, anomalias cardíacas e/ou retardo do desenvolvimento neu‑ ropsicomotor, deve-se investigar toxoplasmose, varicela, ru‑ béola, herpes simples e sífilis (TORCHS) (sorologias). Etiologia traumática sempre deve ser descartada em casos de catarata unilateral. Já os casos bilaterais devem-se descar‑ tar TORCHS, galactosemia e deficiência de galactoquinase, por meio de rastreamento de substâncias redutoras na urina. Em crianças que apresentam glaucoma congênito, hipoto‑ nia e retardo no desenvolvimento neuropsicomotor (RDNPM), deve-se descartar síndrome oculocerebro-renal (síndrome de Lowe), pela pesquisa de aminoácidos na urina. Dosagem sérica de cálcio, fósforo e glicose deve ser consi‑ derada baseando-se na avaliação clínica da criança. Toda essa avaliação deve ser realizada de maneira conjunta com oftalmologistas. Avaliação genética Causas genéticas representam 8 a 29% de todas as cataratas congênitas, com um padrão de herança AD;2 já a herança AR e a ligada ao X ocorrem de maneira isolada. Mais de 40 genes diferentes e vários loci foram identifica‑ dos na catarata congênita. Mutação nos genes responsáveis por manter a transparência do cristalino, as cristalinas e cone‑ xinas, são os mais comumente descritos nas cataratas herda‑ das não associadas a síndromes. Mutações no gene das alfacristalinas tendem a causar cata‑ rata nuclear, lamelar, zonular e polar posterior. Em associação, mutações no CRYAA estão relacionadas também com micro‑ córnea. Mutações nas betacristalinas estão associadas há uma grande variabilidade fenotípica. Mutações de genes do desenvolvimento ocular, como PAX6, FOXE3, PITX3 e MAF têm implicações nas cataratas com parte da alteração das anomalias do desenvolvimento do segmento anterior. Catarata polar anterior é comumente encontrada nas mu‑ tações do gene PAX6 associadas ou não à aniridia, enquanto mutações no gene PITX3 causam predominantemente catara‑ tas polares posteriores. Os genes responsáveis pela maioria das cataratas sindrômi‑ cas são GALK117q (galactosemia), GLA (doença de Fabri) e NHS (síndrome de Nance-Horan). Tratamento O tratamento da criança com catarata é multidisciplinar e en‑ volve médicos oftalmologistas, pediatras, fisioterapeutas, fa‑ miliares, psicólogos e a escola. Diagnóstico precoce e tratamento são de extrema importân‑ cia para prevenir o desenvolvimento de uma ambliopia secun‑ dária à privação irreversível. Para o tratamento da catarata pe‑ diátrica, deve-se levar em consideração idade de aparecimento da catarata, lateralidade, morfologia da catarata, alterações oculares associadas e comorbidades sistêmicas associadas. Recentes avanços nos equipamentos, técnicas cirúrgicas, métodos mais eficazes da correção da afacia e reabilitação vi‑
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sual têm contribuído muito para melhorar os resultados após a cirurgia de catarata. Além disso, pode-se contar com aconselha‑ mento genético e testes, nos casos das cataratas hereditárias. Entretanto, certas condições específicas dos olhos pediátricos, como inflamação no pós-operatório, crescimento do olho, cál‑ culo do grau da lente intraocular, opacidade do eixo visual após cirurgia e como tratar corretamente a ambliopia, são ainda os maiores obstáculos para atingir um excelente resultado visual. A indicação de cirurgia nos casos de catarata depende de quanto a função visual está sendo afetada. Nos casos não cirúr‑ gicos, quando a catarata não compromete a função visual (ge‑ ralmente com opacidade periférica pequena), a criança pode ser acompanhada com exames periódicos. O tratamento con‑ siste em prescrição de óculos, uso de tampão e de colírios mi‑ driáticos, quando necessários, para evitar a ambliopia. Nos casos em que a catarata compromete a visão, o trata‑ mento cirúrgico é indicado. Os objetivos principais do trata‑ mento cirúrgico são cirurgia em tempo hábil com o menor ín‑ dice de complicação e transparência do eixo visual, permitindo que a luz passe e atinja a retina. Nos casos de catarata total bi‑ lateral, a conduta cirúrgica está indicada em qualquer idade. Nas crianças com catarata congênita unilateral, o ideal é que a cirurgia seja realizada entre 6 e 8 semanas de vida (período crí‑ tico de desenvolvimento visual), e nos casos bilaterais, entre 6 e 12 semanas, com intervalo máximo de 21 dias entre a cirurgia dos dois olhos. Em crianças que informam a acuidade visual, indica-se tratamento cirúrgico nos casos em que a acuidade visual está pior que 20/70 de maneira geral, mas prioriza-se sempre analisar cada caso individualmente. As técnicas cirúrgicas diferem de acordo com a idade do pa‑ ciente, a morfologia da catarata e a habilidade por parte do ci‑ rurgião, e compreendem a lensectomia e a facectomia. Ambas as técnicas visam à retirada do cristalino opacificado por vias de acesso diferentes: anterior na facectomia e posterior na len‑ sectomia. Após retirada do cristalino, a afacia pode ser corrigida com lentes intraoculares, lentes de contato ou óculos. O implante da lente intraocular para correção de afacia tem sido a técnica de escolha, principalmente em crianças maiores de 2 anos. Contudo, algumas peculiaridades dos olhos pediátricos, como crescimento ocular e a escolha do poder dessa lente, ainda são um grande desafio.8,9 O uso de lentes intraoculares em bebês foi motivo de um grande estudo prospectivo multicêntrico realizados nos EUA, o Infant Aphakia Treatment Study (IATS).10-12 Os resultados visuais, tanto no 1º quanto no 5º ano de acompanhamento, foram muito semelhantes nos 2 grupos, porém, as taxas de complicações e reoperações foram muito maiores no grupo dos bebês tratados com lente intraocular, o que encoraja o uso de lentes de contatos em bebês para corre‑ ção da afacia.11-12 Outra conclusão importante desse estudo foi que o acompanhamento pós-operatório é crítico para o bom resultado visual, com refrações atualizadas, uso adequado da correção e tratamento da ambliopia com a oclusão do olho contralateral. Observou-se que melhores acuidades visuais le‑ varam a uma melhor adesão à oclusão. Essa fase do tratamen‑ to pós-operatório depende muito dos pais e cuidadores.13
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Complicações As complicações no pós-operatório são mais frequentes em crianças quando comparadas com a cirurgia de catarata em adultos. A reação inflamatória mais proeminente leva à for‑ mação de sinéquias. Glaucoma secundário é também uma complicação temida pelos oftalmopediatras, e uma recente metanálise mostrou que o glaucoma está associado com cirur‑ gias precoces (dentro do 1º mês de vida). Várias são as teorias para descobrir a causa do glaucoma no pós-operatório, porém, nenhuma delas conseguiu ser comprovada. Opacidade do eixo visual é a complicação mais comum após cirurgia de catarata em crianças, mas algumas medidas na técnica da cirurgia e na escolha da lente intraocular têm prevenido e adiado o seu aparecimento. Descolamento de reti‑ na e endoftalmite são complicações graves, porém raras. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer a importância do diagnóstico precoce da catarata infantil. • Saber quando e como realizar o teste do reflexo vermelho. • Conhecer os conceitos básicos sobre o quadro clínico e o diagnóstico da catarata infantil. • Orientar sobre a investigação laboratorial da catarata infantil. • Orientar sobre as formas de tratamento. • Orientar sobre a importância do aconselhamento genético.
Referências bibliográficas 1.
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CAPÍTULO 11
AMBLIOPIA Ana Tereza Ramos Moreira Cassiano Rodrigues Isaac
Definição Ambliopia é um termo usado para definir a baixa visão provo‑ cada por falha no processo de desenvolvimento visual, decor‑ rente da falta de estímulos adequados durante o período críti‑ co do desenvolvimento. A palavra origina-se do grego (amblyós: debilitado e ops: visão) e significa “visão fraca”. Classicamente considera-se como amblíope o olho que apresenta diferença de acuidade visual de 3 ou mais linhas de visão em relação ao melhor olho, medida nas tabelas de Snel‑ len ou logarítmica (logMAR), com a melhor correção óptica (uso de óculos ou lentes de contato). Essa definição não se aplica a casos de ambliopia bilateral, quando se compara a acuidade visual encontrada com a esperada para a idade do paciente. A ambliopia desenvolve-se nos primeiros anos de vida, ge‑ ralmente até os 7 ou 8 anos. Nesse período, o sistema visual em desenvolvimento está sujeito a alterações que podem pre‑ judicar sua maturação normal. Alterações funcionais e estru‑ turais associadas à ambliopia são observadas em estudos do corpo geniculado lateral, córtex estriado e retina. Associada a uma anormalidade orgânica (como estrabismo, alteração refracional ou catarata), que desencadeia o processo, a ambliopia pode, muitas vezes, ser revertida com tratamento adequado. Entretanto, é preciso saber que a sensibilidade do sistema visual a esses estímulos anormais é maior nos primei‑ ros meses de vida (período crítico do desenvolvimento visual) e diminui progressivamente. Quanto mais precoce a alteração, mais grave será a ambliopia e mais difícil será sua reversão. Epidemiologia Trata-se da principal causa de baixa visual monocular, acome‑ tendo de 1,6 a 3,6% da população, com incidência maior em populações menos assistidas. A incidência é 4 vezes maior em crianças com parentes de 1º grau com ambliopia, estrabismo, prematuras ou pequenas para a idade gestacional.
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Quadro clínico A ambliopia não costuma provocar sintomas, a menos que acometa os dois olhos, situação em que podem ser referidos sintomas de baixa visão, como necessidade de se aproximar de objetos para vê-los ou dificuldade para copiar textos na escola. Classifica-se a ambliopia pelo distúrbio que a provoca, po‑ dendo ser dividida em 4 grupos, conforme segue. Ambliopia por estrabismo Quando existe um desvio ocular, não é possível fundir a ima‑ gem dos dois olhos. Para evitar o desconforto da diplopia (vi‑ são duplicada), o córtex visual suprime a imagem do olho des‑ viado, mantendo a atenção toda no olho “alinhado”. Essa supressão, se mantida nos primeiros anos de vida, leva a um prejuízo do desenvolvimento visual do olho desviado. Ocorre nas crianças com estrabismos constantes em fre‑ quência muito maior que nas crianças com estrabismos inter‑ mitentes (pacientes que conseguem manter os olhos alinha‑ dos por alguns períodos). A ambliopia é mais intensa quanto menor o desvio ocular, pois o controle da diplopia nesses ca‑ sos exige uma supressão mais profunda. Quando existe alter‑ nância entre os olhos desviados (estrabismo alternante), os dois olhos recebem imagens nítidas em algum momento, pre‑ venindo a ambliopia. Ambliopia anisometrópica Anisometropia é um termo que descreve uma diferença de erro refracional entre os olhos. Quando ocorre, resulta na for‑ mação de uma imagem retiniana nítida em um olho e borrada ou assimétrica no olho contralateral. Essa imagem “borrada” provoca prejuízo no desenvolvimento visual por mecanismo de supressão semelhante ao observado no estrabismo. Quanto maior a diferença de grau entre os olhos, maior a ambliopia que pode provocar. Geralmente, graus menores de astigmatismo e hipermetropia têm maior tendência a desen‑ volvimento de ambliopia que graus de miopia.
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Ambliopia por alto grau de refração bilateral Nas crianças com altas ametropias (erros de refração) bilaterais, as imagens retinianas formadas estão constantemente fora de foco. Isso prejudica a maturação visual, podendo levar à ambliopia nos dois olhos. São mais frequentes em crianças com altas hipermetropias e astigmatismos e menos frequentes nas com altas miopias. Pode existir ambliopia mesmo com graus menores de hipermetropia, quando existe prejuízo no mecanismo de acomodação (que ajuda a ajustar o foco nos hipermétropes), como ocorre frequentemente em portadores de síndrome de Down. Ambliopia por privação visual Também chamada de ambliopia por desuso ou ex-anopsia, ocorre quando existe uma diminuição do estímulo que atinge a retina. A ambliopia é mais intensa quanto mais cedo ocorre e mais densa é a privação. É mais intensa também nos casos em que acomete apenas um olho. Qualquer obstáculo à formação de imagem nítida na retina pode provocar a ambliopia. As principais causas são cataratas congênitas ou adquiridas, opacidades corneanas, opacidades vítreas (como hemorragias vítreas), ptoses palpebrais importantes (que atingem o eixo visual) e hemangiomas palpebrais. Até mesmo um tratamento oclusivo pode provocar ambliopia no olho ocluído, situação felizmente rara e, em geral, de fácil reversão. Diagnóstico A ambliopia é um problema sério que pode passar despercebido pela criança e pelos pais. Por isso, triagens visuais são tão importantes. Nas triagens, busca-se fazer diagnóstico de ambliopia ou de suas principais causas, visando a tratar precocemente as alterações encontradas. O teste do reflexo vermelho (teste do olhinho) é um importante aliado na identificação de alterações congênitas do eixo visual, especialmente a catarata congênita. Medidas da acuidade visual em escolas e consultórios médicos/pediátricos são importantes, mas somente identificam o problema quando a criança já consegue colaborar bem para a realização do exame, geralmente após os 4 anos de vida. Assim, pode-se perder muito tempo para iniciar o tratamento. É muito importante um acompanhamento oftalmológico regular, pois algumas causas de ambliopia somente podem ser identificadas com exames específicos. Dentre elas, vale citar: estrabismos pequenos, que podem passar despercebidos; anisometropias, quando um olho enxerga bem e compensa a deficiência do outro; e cataratas unilaterais. São recomendadas avaliações oftalmológicas anuais nos primeiros anos de vida (pelo menos até os 7 anos), durante o período de maturação do sistema visual. Tratamento Prescrição de óculos A primeira intervenção a ser realizada no paciente amblíope é a prescrição da melhor correção óptica. Na realidade, o diag-
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nóstico de ambliopia só pode ser firmado se, com o uso da prescrição óptica, o paciente ainda apresentar diferença na acuidade visual entre os dois olhos. Algumas vezes, o uso de lentes de contato é necessário; porém, restringe-se a casos de ambliopia por privação, como em crianças operadas de catarata congênita monocular e pacientes amblíopes com altas anisometropias. Quando, apesar do uso da prescrição óptica continuamente durante 4 a 6 semanas, persistir o diagnóstico de ambliopia, está indicado o início do tratamento oclusivo. Oclusão O tratamento da ambliopia com oclusão do olho dominante, ou seja, o não amblíope, é realizado há muitos séculos. É um tratamento de baixo custo, que tem se mostrado eficiente principalmente nos casos de ambliopia anisometrópica ou por estrabismo.1 Entretanto, a adesão ao tratamento oclusivo depende muito do esforço da criança e da família em usar a oclusão, e isso só ocorrerá se a família compreender a importância do tratamento, que tem como objetivo a recuperação visual do olho amblíope. Quanto mais precoce for diagnosticada a ambliopia, mais cedo será instituído o tratamento e maior será a chance de recuperação visual desse olho. As opiniões não são unânimes em relação ao número de horas que a criança deve usar a oclusão por dia, variando de oclusão parcial, 2 a 6 horas por dia, à oclusão total do período de vigília da criança (Figura 1). A partir de 2006, começaram a ser divulgados os resultados de estudos prospectivos multicêntricos randomizados e controlados, conduzidos pelo Pediatric Eye Disease Investigator Group (PEDIG). Esse grupo estudou a utilização do esquema oclusivo do olho não amblíope durante 2 horas por dia associado a 1 hora de atividade visual para perto e concluiu que o tratamento foi modestamente eficaz para recuperar ambliopia moderada a severa em crianças de idade variando entre 3 e 7 anos.2 O controle do tratamento é feito por meio de retornos periódicos para verificação da acuidade visual. Quando não houver melhora da visão após 3 a 4 meses de uso de oclusão, pode-se suspender o tratamento.
Figura 1 Uso de oclusão em olho direito.
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Ambliopia •
Penalização Penalização é um tratamento alternativo ao oclusivo. Está in‑ dicado quando não há adesão à oclusão, seja por processos ir‑ ritativos originados pelo oclusor aderido à pele, ou por não aceitação do tratamento, em decorrência de problemas psi‑ coemocionais. Pode ser feito farmacologicamente, quando utilizadas dro‑ gas cicloplégicas, ou por meios ópticos. O objetivo desse trata‑ mento é borrar a visão do olho fixador, ou seja, do olho bom, não amblíope, para perto e/ou longe. Atropina 1% em colírio ou pomada, 1 vez/dia, impede a acomodação e embaça a visão do olho fixador para visão de perto, forçando o desenvolvimento do olho amblíope nessa distância.3 Quando realizada por meios ópticos, a penalização tem como objetivo borrar a visão do olho fixador, por meio de lente positiva nesse olho, causando embaçamento visual no olho de boa visão, para distância. Desse modo, obriga o paciente a op‑ tar pelo uso do olho amblíope na visão a distância, o que resul‑ ta na utilização do olho amblíope para essa visão. A penalização farmacológica ou medicamentosa é reco‑ mendada para ambliopia de grau leve.4 O paciente deve retornar ao médico rotineiramente, para controle da visão e checagem da eficiência do tratamento. Levodopa É um precursor da catecolamina que, convertido no neuro‑ transmissor dopamina, eleva a norepinefrina, que está envol‑ vida em diferentes funções visuais. Com base nesses fatos, vá‑ rios investigadores iniciaram o uso dessa droga para o tratamento da ambliopia, associado à oclusão do olho domi‑ nante, por tempo determinado. O Pediatric Eye Disease Investigator Group conduziu estudo randomizado, multicêntrico, controlado em crianças de 7 a 12 anos de idade portadoras de ambliopia. A conclusão dessa investigação foi que qualquer melhora na ambliopia observada nessas crianças ocorreu pelo uso de oclusão associada à levodopa, e não por ação da droga.5 Prognóstico O prognóstico visual do tratamento da ambliopia varia muito de acordo seu tipo. A ambliopia decorrente da privação visual é de recuperação lenta e varia bastante de acordo com a idade da criança ao início do tratamento. Quanto mais precoce for a instalação da ambliopia, por exemplo, na catarata congênita, mais variável é o prognóstico visual. Nos demais tipos de am‑ bliopia, quanto mais precoce for o início do tratamento e ha‑ vendo boa adesão à terapia oclusiva, o prognóstico visual des‑ sa criança é bom. A adesão ao tratamento oclusivo é fator determinante para o sucesso do tratamento. A falta de entendimento, por parte da família, sobre a doença e o curto período em que é possível recuperar a visão da criança amblíope (9 a 10 anos) está direta‑ mente relacionada ao fracasso da adesão à oclusão como tra‑ tamento. Quanto mais jovem for o paciente, melhor o prog‑ nóstico e melhor a acuidade visual final.6
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Prevenção Na 1ª década de vida, o sistema visual encontra-se em desen‑ volvimento, apresentando, portanto, imaturidade e plasticida‑ de, estando suscetível a estímulos visuais anômalos e ao apa‑ recimento da ambliopia. Quanto mais precoce surgir a alteração, maior será o déficit visual. O período crítico ocorre mais cedo nos casos de privação visual e mais tardiamente em estrabismo e anisometropia.6 O teste do olhinho é uma das formas de tentar iniciar o tra‑ tamento visual precoce nos casos de privação visual, pois, uma vez operada a catarata congênita precocemente e insti‑ tuído rapidamente o tratamento da ambliopia, melhor será a resposta. Nos demais casos de ambliopia, a consulta oftalmológica precoce é a melhor forma de iniciar o tratamento oftalmológi‑ co adequado para cada criança, possibilitando a prevenção da ambliopia. Desafios As pesquisas mais recentes relacionadas ao tratamento da am‑ bliopia investigam a possibilidade de o tratamento abordar a somação da visão binocular por meio de estímulos binocula‑ res, em vez de monocular. No entanto, as pesquisas nesse sen‑ tido ainda necessitam de investigação, com mais resultados, para que possam ser colocados na prática diária de consultório. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Entender que uma criança com ambliopia grave pode aparentar visão normal pela boa visão no olho bom. • Descrever os mecanismos fisiopatológicos principais da ambliopia. • Reconhecer as manifestações clínicas da doença e suas causas. • Entender os princípios do tratamento e orientar familiares sobre a importância de se seguir orientações médicas. • Reconhecer a importância do diagnóstico precoce para melhores resultados com o tratamento. • Reconhecer que a ambliopia necessita de acompanhamento interdisciplinar e orientar a família sobre a necessidade de acompanhamento oftalmológico regular para prevenção e tratamento precoce da doença.
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CAPÍTULO 12
LEUCOCORIA Caio Vinicius Saito Regatieri Célia R. Nakanami
Introdução do reflexo vermelho (TRV), mesmo realizado por não oftalmo‑ Leucocoria é o reflexo pupilar branco decorrente da opacidade logistas, apresenta alta sensibilidade em detectar ambliopia de estruturas intraoculares como cristalino ou vítreo, ou ainda ou condições que causem ambliopia.2 decorrente de tumor intraocular, de membrana vítrea ou des‑ O reflexo vermelho é um teste importante na detecção de colamento retiniano (Figura 1). Esse sinal clínico sugere a pre‑ doenças oculares na infância. Nos estados de São Paulo e do sença de anormalidade anterior à retina, que reflete a luz inci‑ Ceará, a realização do TRV nas maternidades é obrigatória por dente à pupila antes que a luz alcance a retina ou a coroide. As lei estadual. causas mais comuns em crianças são retinoblastoma, catarata congênita, persistência hiperplásica do vítreo primitivo Como realizar o teste do olhinho (PHVP), doença de Coats, toxocaríase, retinopatia da prema‑ Este teste baseia-se na percepção do reflexo vermelho que turidade (RP), hamartoma astrocítico e descolamento da reti‑ aparece ao ser incidido um feixe de luz na superfície retiniana, na de longa evolução. Além de uma adequada anamnese, exa‑ sendo necessário que o eixo óptico (córnea, humor aquoso, me do segmento anterior e oftalmoscopia indireta, a utilização cristalino, humor vítreo e retina) esteja livre, isto é, sem ne‑ de métodos de imagens auxilia no diagnóstico diferencial.1 nhum obstáculo à entrada e à saída de luz pelo orifício pupilar. A ultrassonografia (US) é útil quando a opacidade de meio Trata-se de um exame simples, rápido e indolor. O equipa‑ impossibilita a avaliação oftalmoscópica, bem como na caracte‑ mento necessário é um oftalmoscópio direto. A sala do exame rização de tumores intraoculares suspeitados. Em função da deve ser escurecida, e um auxiliar deve segurar com delicade‑ alta sensibilidade para detecção de calcificação, a tomografia za a cabeça do bebê. O observador deve olhar pela abertura do computadorizada (TC) é utilizada para diagnóstico e estadia‑ oftalmoscópio, o maior círculo luminoso branco do oftalmos‑ mento dos retinoblastomas. A ressonância magnética (RM) é cópio deve ser direcionado para a pupila e, em seguida, deve‑ método complementar à TC na presença de tumor ocular, cole‑ -se focar a face do paciente. O oftalmoscópio deve ser posicio‑ ções líquidas anormais ou descolamento retiniano. O uso do co‑ nado a uma distância de aproximadamente 30 cm de cada rante gadolínio revela áreas de impregnação anormal, e sequên‑ olho do bebê, e o reflexo vermelho deve ser visto facilmente, cias gradiente-eco também podem identificar calcificações. homogêneo e simétrico em ambos os olhos. O teste pode ser realizado em poucos minutos. Quando se consegue identificar Teste do reflexo vermelho ou teste do olhinho o reflexo vermelho de ambos os olhos, o resultado é “normal”, O uso do reflexo vermelho como teste de triagem tem a vanta‑ mas se tiver dificuldade, o bebê deve ser encaminhado ao of‑ gem de ser realizado distante de uma criança ansiosa. O teste talmologista com urgência.3,4 O teste pode detectar qualquer patologia que cause obstru‑ ção no eixo visual, como catarata, glaucoma congênito e qual‑ quer outra patologia ocular que cause opacidade de meios, como opacidades congênitas de córnea, tumores intraocula‑ res grandes, inflamações intraoculares ou hemorragias intrao‑ culares. Algumas vezes, a falta do reflexo vermelho é identificada em fotografias feitas com o auxílio de flash. Figura 1 Perda do reflexo vermelho em razão da opacidade de meios.
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Diagnósticos diferenciais Os diagnósticos diferenciais de leucocoria estão listados na Tabela 1.1,5 A discussão neste capítulo será focada na PHVP, na doença de Coats e na catarata congênita. Retinoblastoma, re‑ tinopatia da prematuridade e uveítes serão abordados em ca‑ pítulos específicos. Retinoblastoma O retinoblastoma é o tumor primário intraocular mais comum na infância. O sinal de apresentação mais comum do retino‑ blastoma é a leucocoria, ocorrendo em torno de 60% dos ca‑ sos.6 O retinoblastoma é um tumor originário das células pri‑ mitivas da retina e geralmente compromete crianças menores de 3 anos, sem predileção por sexo ou etnia. É o tumor intrao‑ cular maligno primário mais frequente na infância, e sua inci‑ dência varia de 1/14.000 a 1/34.000 dos nascidos vivos. Estima-se que de 5.000 a 8.000 casos novos são observa‑ dos no mundo e que pelo menos 50% dos casos apresentam sinais ou sintomas de doença extraocular. Os casos com tumor restrito ao olho, de melhor prognóstico, são mais frequente‑ mente encontrados em países desenvolvidos, onde programas de prevenção são praticados. A maioria dos casos é diagnosticada antes dos 3 anos de idade, podendo já ser observado por ocasião do nascimento. Em nosso meio, 88,8% dos casos tiveram o primeiro sinal de doença antes dos 3 anos de idade. A doença bilateral é diag‑ nosticada mais precocemente do que a unilateral, sendo aos 12 meses nos casos bilaterais e 23 meses nos unilaterais. As metástases para o sistema nervoso central (SNC) e por via hematogênica ocorrem ao redor de 1 ano após o diagnósti‑ co, e a sobrevida nesses casos é de 6 meses. Etiologia O retinoblastoma é uma doença com herança autossômica do‑ minante, e aproximadamente 90% dos casos novos são consi‑ derados esporádicos e 10% familiares. O retinoblastoma pode originar-se de mutação germinal ou somática, sendo essa mutação recessiva, no nível de células re‑ Tabela 1 Diagnósticos diferenciais de leucocoria em crianças Catarata congênita Retinoblastoma Doença de Coats Persistência do vítreo primário hiperplásico Retinopatia da prematuridade Uveíte (toxocaríase, toxoplasmose) Endoftalmite Hemorragia vítrea Displasia retiniana Coloboma Hamartoma Doença de Norrie Fibras nervosas mielinizadas
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tinianase, ocorrendo no gene RB1 localizado no lócus 14q do cromossomo. O gene do retinoblastoma é classificado como um gene supressor de tumor. Para a expressão do tumor, há ne‑ cessidade de um duplo evento mutacional. No entanto, para que o tumor ocorra, a célula retiniana deve sofrer uma segunda mutação, no mesmo lócus de seu homólogo, tornando-se ho‑ mozigota recessiva. A primeira mutação é chamada de germi‑ nativa e ocorre no zigoto, e a segunda ocorre na retina, sendo chamada somática. Esses casos expressam-se como tumores multifocais que podem comprometer um ou os dois olhos. O Comitê de Prática e Medicina Ambulatorial da Academia Americana de Pediatria recomenda a realização do TRV ou “teste do olhinho” em todas as consultas de puericultura do pe‑ ríodo neonatal até os 2 anos. A Academia Americana de Oftal‑ mologia recomenda o TRV nos seguintes intervalos: primeiros 3 meses de vida, 6 meses, 12 meses, 3 anos, 5 anos e < 5 anos. Em nosso meio, o TRV é recomendado pela Sociedade Brasi‑ leira de Pediatria e pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia (Sociedade Brasileira de Oftalmologia Pediátrica) em docu‑ mento conjunto (2004), e vários estados brasileiros aprova‑ ram leis que tornam obrigatória a sua realização por pediatras nos seus berçários nas primeiras 72 horas de vida, além de sua repetição ambulatorial. A partir de 2013, o Ministério da Saúde incluiu o TRV nas Diretrizes de Atenção à Saúde Ocular na In‑ fância, orientando que todos os recém-nascidos devem ser submetidos ao TRV antes da alta da maternidade e, pelo me‑ nos, 2 a 3 vezes/ano, nos 3 primeiros anos de vida. Se detecta‑ da ou suspeitada qualquer alteração, o neonato deve ser enca‑ minhado para o oftalmologista para avaliação, com a finalidade de detecção e tratamento precoce de problema ocular. Por ser um tumor que pode se expressar por herança autos‑ sômica dominante, os recém-nascidos de famílias em que a doença esteja presente devem ser examinados nos primeiros meses de vida. Com incidência de 1 caso a cada 14.000 a 34.000 nascidos, o retinoblastoma não é uma doença frequente, mas seu diag‑ nóstico e tratamento precoces são imprescindíveis para salvar a vida e o olho. A detecção do tumor pela leucocoria mostra-se efetiva para salvar a vida, mas ineficaz para salvar o olho e a função visual, o que justifica a realização do exame oftalmoló‑ gico preventivo em toda criança, da mesma forma que se pes‑ quisam outras doenças, como a presença de fenilcetonúria (1/18.000), galactosemia (1/57.000) e deficiência de biotini‑ dase (1/80.000).7 É fundamental conscientizar pais e pedia‑ tras de que, mesmo sendo avaliado o TRV, ele não substitui o exame oftalmológico que deve ser realizado ainda antes dos 6 meses de idade. Persistência hiperplásica do vítreo primitivo (PHVP) Persistência hiperplásica do vítreo primitivo resulta da persis‑ tência anormal do estroma fibrovascular fetal (sistema hialói‑ deo) do olho. O vítreo primário forma-se por volta da 7ª sema‑ na de gestação e inicia sua involução na 20ª semana. A persistência e a hipertrofia desses vasos podem resultar em PHVP nas câmaras anterior e posterior.
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Leucocoria •
A PHVP foi inicialmente descrita por Reese em 1955 como uma afecção não hereditária caracterizada por microftalmia, câmara anterior rasa, alongamento dos processos ciliares e ca‑ tarata subcapsular posterior, bem como proliferação fibrovas‑ cular que se estende do cristalino ao nervo óptico7 (Figura 2 A,B). As crianças afetadas comumente não apresentam ante‑ cedentes pessoais ou familiares equivalentes. Não há predile‑ ção por sexo e é geralmente detectada em recém-nascidos pre‑ maturos.8,9 Etiologia A etiologia permanece desconhecida na maioria dos casos, po‑ rém a presença de alguns relatos em familiares sugere a possi‑ bilidade de herança autossômica dominante ou recessiva.8 A maior parte dos casos é unilateral e esporádica. Os casos bila‑ terais, apesar de raros, são descritos com associação de sín‑ dromes congênitas, como doença de Norrie (degeneração ocu‑ loacústico-cerebral progressiva) e síndrome de Warburg (malformações congênitas do SNC, microftalmia e descola‑ mento de retina uni ou bilateral). Quadro clínico A apresentação de PHVP é variável, podendo acometer o seg‑ mento anterior e posterior. O quadro clínico mais comum é de leucocoria, microftalmia e catarata. No fundo de olho, pode-se observar a artéria hialoide ou os remanescentes dos vasos hia‑ loides próprios.8 Catarata, glaucoma agudo e uveíte podem ser complicações da PHVP.10
A
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Figura 2 (A) Retinografia do olho direito: presença de exsudação subretiniana secundária à doença de Coats. (B) Ultrassonografia ocular que mostra o descolamento seroso da retina associado com imagens hiperecoicas correspondente à exsudação retiniana.
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A catarata é determinada pela persistência de fluxo sanguí‑ neo e da túnica vasculosa lentis,10 que inicialmente causam edema no cristalino, seguida pela opacificação (Figura 2B). Hemorragias vítreas de repetição ocasionalmente ocorrem e são geradas durante as contrações do tecido fibrovascular. Exames complementares Exames de imagem podem auxiliar no diagnóstico ou na con‑ firmação dessa patologia. Na ultrassonografia, pode-se obser‑ var um triângulo hiperecogênico cuja base situa-se na face posterior do cristalino, e o ápice, no nível da papila óptica (Fi‑ gura 2 C,D). A TC e a RM de órbita também podem ajudar no diagnóstico. Tratamento O tratamento dessa patologia varia com o espectro da doença. Pode ser conduzido conservadoramente com observações fre‑ quentes ou cirurgicamente. O tratamento cirúrgico é indicado em casos de hemorragia intraocular, descolamento tracional da retina ou opacidades vítreas. A cirurgia nessa doença tem o objetivo de prover ao paciente visão útil e evitar complicações como glaucoma de ângulo fechado ou phthisis bulbi (atrofia do globo ocular). Doença de Coats Doença de Coats é uma condição de etiologia indeterminada, caracterizada por telangiectasias e aneurismas retinianos as‑ sociados a exsudação sub-retiniana e intrarretiniana em indi‑ víduos saudáveis. É 3 vezes mais frequente em homens do que em mulheres, não há associação com etnia e é unilateral em pelo menos 80% dos casos. A média de idade no diagnóstico é de 8 a 16 anos. Aproximadamente um terço dos pacientes não apresentam sintomas antes dos 30 anos. A apresentação mais comum in‑ clui baixa de acuidade visual, estrabismo e leucocoria. Quadro clínico Os achados clínicos característicos da doença de Coats são ex‑ sudatos amarelados sub e intrarretinianos, associados a altera‑ ções vasculares da retina, mais comumente telangiectasia, tor‑ tuosidade vascular e dilatações aneurismáticas (Figura 3). Na ultrassonografia ocular, pode-se observar descolamento seroso da retina, com conteúdo seroso, lipídico ou hemorrági‑ co sub-retiniano (Figura 3). O curso da doença é variável e caracterizado por períodos de progressão aguda e de inatividade. A exsudação sub-reti‑ niana pode levar a descolamento de retina seroso que progride para descolamento de retina total. Tratamento O objetivo primário é erradicar os vasos anormais, minimizan‑ do a exsudação. Vários métodos podem ser empregados no tratamento da doença de Coats, incluindo diatermia, fotocoa‑ gulação com laser de argônio ou cirurgia, indicada em casos de complicações. O tratamento mais utilizado é a crioterapia (42%). O sucesso anatômico foi observado em 76% dos olhos,
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A
B
A
C
D
Figura 3 (A e B) Retinografia: mostra trave vítrea retiniana com tração da retina, secundário à PHVP. (C e D) Ultrassonografia ocular: mostra a trave vítrea aderida na superfície da retina e causando tração retiniana.
com acuidade visual de 20/50 ou melhor em 14% dos olhos, e ausência de percepção luminosa ocorreu em 40% dos casos.
B
Catarata congênita O cristalino normal é transparente; qualquer opacidade, seja adquirida ou congênita, é denominada catarata. Outra defini‑ ção frequentemente usada é a opacidade de cristalino que causa baixa de visão. Uma terceira definição relaciona as con‑ sequências funcionais da opacificação do cristalino com as ati‑ vidades diárias do paciente. Classificação morfológica Catarata congênita pode ser classificada de acordo com o tipo morfológico, e o prognóstico visual varia de acordo com o tipo de opacidade. Cataratas centrais incluem nuclear (Figura 4), lamelar, cortical, sutural, cerúlea e coraliforme. Cataratas po‑ lares podem ser anterior (polar anterior ou subcapsular ante‑ rior) ou posterior (polar posterior, subcapsular posterior ou lenticone posterior) (Figura 5). Etiologia Catarata congênita pode ocorrer isolada, ser causada por in‑ fecções intrauterinas ou estar associada a síndromes, altera‑ ções oculares e fatores genéticos. Genética Catarata congênita foi a primeira doença autossômica geneti‑ camente mapeada em humanos. A base genética é muito mais comum em cataratas bilaterais, correspondendo a 25% dos ca‑ sos de catarata congênita bilateral isolada. O modo de heredi‑ tariedade mais frequente é autossômico dominante, mas pode ser autossômico recessivo ou ligado ao X. Mutações no lócus dos cromossomos 1, 2, 3, 6, 9, 10, 12, 13, 14, 16, 17, 19, 20, 21 e 22 foram identificados em casos de cataratas com herança do‑ minante e recessiva.
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C
Figura 4 (A) Catarata polar posterior. (B) Catarata polar anterior. (C) Catarata cortical.
A
B
Figura 5 (A e B) Imagem mostra catarata nuclear em que o núcleo fetal está opacificado.
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Leucocoria •
Infecção Catarata congênita pode ocorrer após infecção neonatal com toxoplasmose, varicela, rubéola, herpes simples e sífilis (TORCHS). Antes da vacinação para rubéola, a síndrome de rubéola congênita correspondia à causa significante de catara‑ ta congênita. Atualmente, no Brasil, houve redução na inci‑ dência de síndrome de rubéola congênita, mas ela ainda é identificada como a segunda causa de cataratas congênitas. A infecção do feto é mais comum quando a mãe é infectada du‑ rante o 1º trimestre e pode causar também surdez, retardo mental, icterícia, microcefalia, glaucoma e retinopatia pig‑ mentária (Figura 6). Metabólica Várias deficiências metabólicas estão associadas à formação de catarata, como a galactosemia, que apresenta opacidade central mais bem observada com retroiluminação. Indivíduos com deficiência em galactose-1-fosfatouridiltransferase apre‑ sentam icterícia, hepatoesplenomegalia e catarata, enquanto crianças com deficiência de galactoquinase apresentam ape‑ nas catarata. Hipoparatireoidismo geralmente causa cataratas com pon‑ tos multicoloridos. Hipoglicemia causa cataratas lamelares. Nas disfunções do metabolismo do cobre também se podem identificar cataratas congênitas. A síndrome de Lowe, na qual ocorre erro inato do metabo‑ lismo de aminoácidos, apresenta associação de alterações sis‑ têmicas (retardo mental, nefropatia – síndrome de Fanconi e hipotonia muscular) com catarata e glaucoma congênito. Alterações oculares Outras alterações oculares ocorrem em 2% das cataratas bila‑ terais e 10% das cataratas unilaterais. Aniridia, microftalmia e disgensesia do segmento anterior estão associados à catarata congênita. Síndromes A associação de trissomia do cromossomo 21 e catarata congê‑ nita está bem estabelecida e ocorre entre 13 e 20% dos pacien‑
Figura 6 Retinografia que mostra retinose pigmentar com atrofia difusa da retina associada a acúmulo de pigmento na periferia.
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tes afetados. No entanto, o início da catarata não ocorre tipica‑ mente antes dos 12 anos de idade, com identificação apenas de 1,4% de diagnóstico no período neonatal. A apresentação clássica é de catarata cerúlea que não é visualizada antes dos 10 anos. Outros tipos de catarata, como nuclear, cortical e combinações, também são descritos. A trissomia do cromossomo 13 (síndrome de Patau) é ca‑ racterizada por alterações cardíacas graves e defeitos do siste‑ ma nervoso que levam à morte no período neonatal. Achados oculares incluem coloboma iriano com catarata setorial no mesmo quadrante, associado com persistência hiperplásica do vítreo primário. A trissomia do cromossomo 18 (síndrome de Edward) também tem associação com catarata congênita. As síndromes esqueléticas de Hallermann-Streiff-François e de Nance-Horan também apresentam associação com cata‑ rata congênita. Tratamento Clínico Os casos de catarata congênita que não apresentam grandes opacidades podem ser tratados clinicamente. Opacidades posteriores pequenas tendem a não necessitar de intervenção cirúrgica precoce e a ambliopia pode ser evitada com tratamento clínico. Pequenas opacidades posteriores e lenticone alcançam acuidade visual de 20/40 ou melhor ape‑ nas com óculos e oclusão. Dilatação pupilar farmacológica com ciclopentolato 1% ou fenilefrina 2,5% pode aumentar a área de visão ao redor de uma pequena catarata densa central. Indicação cirúrgica e momento da cirurgia O momento da cirurgia é crucial para obtenção de sucesso em casos de catarata congênita. Ambliopia por privação é um de‑ safio terapêutico que pode impedir um bom resultado visual pós-operatório, especialmente em cataratas unilaterais, em virtude da supressão rápida do olho com opacidade. Por essa razão, é importante operar essas crianças antes do período sensitivo de 6 semanas. Podem vir a apresentar acuidade vi‑ sual média de 20/40 ou melhor. 1. Cataratas bilaterais densas: requerem cirurgia imediata, antes de 6 semanas de vida, para evitar ambliopia por privação. 2. Cataratas bilaterais parciais: avaliar o quanto a catarata está causando baixa de visão. Se a interferência na função visual for pequena, é prudente monitorar as opacidades e operar mais tardiamente. 3. Cataratas unilaterais densas: a cirurgia deve ser realizada com urgência e posteriormente o tratamento antiambliopia (refra‑ ção adequada e tampão) deve ser realizado. Se a catarata for identificada após 16 semanas de vida, a chance de melhora da acuidade visual é muito pequena. 4. Cataratas unilaterais parciais: podem ser observadas, e a opa‑ cidade, monitorada. A partir do momento em que a opacida‑ de interferir na função visual, a cirurgia pode ser indicada. Cirurgia de catarata A técnica cirúrgica consiste em realizar abertura circular da cápsula anterior do cristalino (capsulorrexe) e aspirar o crista‑
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lino opacificado com auxílio de aparelhos como facoemulsifi‑ cador ou vitreófago. O implante de lente intraocular depende da idade do paciente e das condições oculares. A abertura cir‑ cular da cápsula posterior do cristalino associado a retirada do vítreo anterior é preconizada em crianças menores de 5 anos. Complicações pós-operatórias No período pós-operatório, podem ocorrer: • opacificação da cápsula posterior (se não for retirada): causa obstrução do eixo visual. Deve ser tratada com Yag laser ou ci‑ rurgicamente; • membranas pupilares inflamatórias decorrentes da reação exacerbada da criança, tratadas com injeção de TPA na câma‑ ra anterior; • proliferação do epitélio cristaliniano: causa opacidades; • glaucoma: pode se desenvolver em 20% das cirurgias; • descolamento de retina: é uma complicação incomum. Reabilitação visual Após o sucesso cirúrgico, deve-se realizar terapia antiamblio‑ pia para que se obtenham bons resultados visuais. A correção óptica pode ser realizada de três maneiras: óculos, lente de contato ou lente intraocular: • óculos: são indicados para casos de afacia bilateral e princi‑ palmente em crianças maiores. Nos casos de afacia unilateral, pode causar distorção no tamanho e na forma da imagem, po‑ dendo causar ambliopia; • lente de contato: a tolerabilidade é boa até cerca de 2 anos. Quando os cuidados com a lente de contato são adequados, alcançam-se resultados visuais semelhantes ao implante de lente intraocular; • lentes intraoculares: ainda não existe um consenso de qual a melhor idade para se implantar uma lente intraocular. No en‑ tanto, há tendência progressiva de se implantar em crianças menores. Tratamento de ambliopia Normalmente, a oclusão do olho contralateral, associado a correção óptica adequada, é necessária após cirurgia de cata‑ rata. O uso correto da oclusão é bastante difícil na idade entre 18 e 30 meses. Oclusão por pelo menos 1 hora por dia apresen‑ ta melhores resultados visuais no longo prazo. O uso correto da oclusão apresenta associação significante com os resulta‑ dos visuais, especialmente nos casos de catarata unilateral. Estudos mostram que crianças com catarata unilateral subme‑ tidas a cirurgia e que utilizaram corretamente o tampão (> 75% das horas prescritas) obtêm acuidade visual média de 20/50, comparado com 20/1.000 sem oclusão. Conduta em casos de leucocoria 1. História: idade de início, história familiar de uma das condi‑ ções mencionadas, prematuridade. 2. Exame ocular completo, incluindo medida do diâmetro cor‑ neano, exame da íris (procurando neovascularização) e ins‑ peção do cristalino (observando catarata). Exame do fundo de olho e do vítreo anterior são essenciais.
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3. Exames complementares:
• ultrassonografia ocular, se o exame do fundo de olho não é possível; • angiofluoresceinografia (doença de Coats, retinopatia da prematuridade e retinoblastoma); • TC ou RM de órbita e crânio (diagnóstico de retinoblasto‑ ma), particularmente para casos bilaterais ou aqueles com história familiar e casos de doença de Coats; • teste de ELISA para toxocara; • exame sistêmico (astrocitoma de retina, retinoblastoma). 4. Considerar exame sob narcose em crianças não cooperativas, particularmente em casos de retinoblastoma, doença de Coats ou retinopatia da prematuridade. Considerações finais Leucocoria é um sinal bastante importante, já que indica doenças oculares graves que necessitam de tratamento ime‑ diato. Dessa maneira, o TRV deve ser incorporado ao exame clínico de todos os recém-nascidos. O diagnóstico definitivo e o tratamento são realizados por uma equipe multidisciplinar com intuito de garantir a melhor acuidade visual. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar a leucocoria no exame clínico. • Saber os diagnósticos diferenciais em casos de leucocoria. • Realizar o teste do reflexo vermelho. • Reconhecer a importância de encaminhamento urgente ao oftalmologista em caso de leucocoria. • Pensar em retinoblastoma como diagnóstico diferencial de casos de leucocoria. • Entender a importância da reabilitação visual e do tratamento da ambliopia em paralelo ao tratamento da doença primária.
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CAPÍTULO 13
RETINOPATIA DA PREMATURIDADE Erika Yasaki Nilva Moraes
Introdução A retinopatia da prematuridade (ROP) é a doença dos vasos da retina de crianças que nascem prematuras e é reconhecida como uma das principais causas de cegueira na população in‑ fantil em países desenvolvidos.1 Estima-se que existam mais de 50 mil crianças no mundo que são cegas pela ROP,2-4 sendo que a metade delas encontra-se na América Latina.5 A ceguei‑ ra pela ROP decorre do descolamento da retina. No Brasil, estima-se que aproximadamente 18 mil prema‑ turos por ano, com peso ao nascimento menor do que 1.500 g, necessitam realizar o exame oftalmológico.6 O exame preven‑ tivo deve ser feito no 1º mês de vida para que o tratamento seja realizado antes de surgirem as sequelas da forma grave. Fisiopatologia A retina, estrutura vascularizada do fundo do olho, tem sua vasculogênese e angiogênese normal completa ao redor da 43ª semana de vida da criança nascida a termo. A vasculogênese é geneticamente determinada por fatores humorais. A angiogê‑ nese é regulada principalmente pelo fator de crescimento en‑ dotelial vascular (VEGF) e também pelo fator de crescimento insulínico (IGF). O VEGF é um constituinte normal do proces‑ so de angiogênese fisiológico, mas pode sofrer up-regulation decorrente de hipóxia, por isquemia retiniana, acelerando o processo de formação de neovascularização.7,8 O VEGF sofre down-regulation pelo fator humoral TGFB (transforming growth factor beta), que costuma aumentar sua concentração entre a 36ª e a 40ª semana. A ROP ocorre em bebês que não tiveram a formação vascu‑ lar completa e que, influenciados por fatores ambientais, de‑ senvolvem a doença vascular. A ROP é uma doença bifásica: na primeira fase, ocorre um atraso na formação vascular segui‑ da por uma segunda fase de proliferação vascular. A primeira fase da ROP ocorre entre 30 e 32 semanas de idade corrigida, época em que a área avascular da retina torna‑ -se metabolicamente ativa, o que leva a hipóxia. A segunda
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fase da ROP ocorre ao redor da 32ª a 34ª semana de idade cor‑ rigida, época em que há estímulo para neovascularização em virtude da hipóxia do tecido da retina. A hipóxia local estimu‑ la a produção de VEGF, entre outros fatores humorais, o que causa o crescimento vascular descontrolado. Atualmente, o VEGF é reconhecido como o principal fator de crescimento envolvido no desenvolvimento retiniano nor‑ mal, na manutenção dos vasos novos formados e na neovas‑ cularização anormal. Além da participação do VEGF na fisiopatologia da ROP, há estudos mais atuais que mostram que o IGF seria um fator per‑ missivo para o VEGF atuar na angiogênese da retina,9 e outros estudos que relacionam o desenvolvimento da ROP a níveis séricos reduzidos desse fator no período pós-natal.9 Fatores sistêmicos Sabe-se que a causa da ROP é multifatorial. Os principais fatores de risco são o baixo peso ao nascer e a própria prematuridade. A relação entre o oxigênio e o desenvolvimento da ROP é complexa. O oxigênio é reconhecido como fator de risco, mas a correlação direta entre a sua duração, concentração e varia‑ bilidade em relação à severidade da ROP não está esclarecida. O estudo Supplemental Therapeutic Oxygen for Prethreshold ROP (STOP-ROP) foi desenhado para testar a eficácia e a segu‑ rança da suplementação de oxigênio com o objetivo de preve‑ nir a doença limiar, ou seja, que necessita de tratamento. Foi demonstrada uma tendência de proteção no grupo que rece‑ beu a suplementação, mas sem significado estatístico. Mais recentemente, o ganho ponderal e os níveis de IGF-1, assim como a hiperglicemia, foram apontados como fatores de risco preditivos da ROP, mostrando que níveis séricos baixos de IGF-1 e baixo ganho ponderal nas primeiras semanas de vida estão fortemente relacionados como o desenvolvimento da ROP. Em relação aos fatores genéticos, já foi identificada muta‑ ção em três genes (Norrin, Frizzled 4 e Lrp5) que estão envol‑
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RETINOPATIA DA PREMATURIDADE •
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vidos na regulação do desenvolvimento vascular retiniano, em uma pequena porcentagem das formas graves da ROP. Classificação A Classificação Internacional da Retinopatia da Prematurida‑ de divide a doença de acordo com a (1) localização em zonas de maturidade da retina; (2) extensão da doença em horas de relógio; (3) estágios de acordo com a gravidade da doença na junção entre a retina avascular e vascularizada; (4) presença da doença plus. A localização da ROP é delimitada em zonas, com base no conceito de que o desenvolvimento e a maturação da vascula‑ rização da retina iniciam‑se a partir do nervo óptico. A retina é divida em três zonas, baseadas em círculos concêntricos, ten‑ do o nervo óptico como centro, o que vai definir o grau de ima‑ turidade da doença, ou seja, doença na zona I indica maior imaturidade na vascularização da retina em relação a zonas II ou III. A zona I consiste em um círculo com centro no nervo óptico, de raio correspondente a 2 vezes a distância do centro do nervo óptico à fovea (centro da mácula). A zona II estende‑ ‑se da margem da zona I à ora serrata (área mais periférica) na‑ sal, formando um raio concêntrico. A zona III corresponde à área remanescente temporal da retina da zona II. Por conven‑ ção, as zonas II e III são mutuamente exclusivas (Figura 1). O estado crônico da retina avascular pode causar uma fase aguda da ROP, caracterizada pela dilatação e tortuosidade dos vasos da retina, chamada de doença plus (Figura 2). Outros achados da doença plus são: dilatação dos vasos irianos, rigi‑ dez pupilar e opacidade vítrea. Portanto, quanto menor a zona, maior é a imaturidade; quanto maior o estágio, maior é a gravidade do quadro. A pre‑ sença da doença plus também indica maior severidade da ROP. Quadro clínico A primeira evolução da retina imatura é a ROP estágio 1: nota‑ ‑se uma linha de demarcação pouco espessa, plana, de colora‑ ção branca, que delimita a área da retina vascularizada da avascular. No estágio 2, a linha de demarcação adquire volume e torna‑se espessa, de cor rósea, chamada de crista (Figura 3).
12
Horas de relógio
12
Zona III Zona II
Zona II Zona I
9 Mácula
3
9
Zona III
Zona I
Nervo óptico Ora serrata
Olho direito
Olho esquerdo
Figura 1 Esquema da retina, do olho direito e do olho esquerdo, mostrando os limites das zonas para descrever a localização, e as horas de relógio para descrever a extensão da doença.
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Figura 2 Doença plus: nota‑se tortuosidade arteriolar e engurgitamento venular proeminente.
Figura 3 ROP estágio 2: nota‑se linha de demarcação entre retina avascular e retina vascularizada.
Há formação de shunts na crista e indução da angiogênese anormal. O crescimento vascular por sobre a linha, na neovas‑ cularização típica, ou anterior à linha na neovascularização atípica, é chamada de proliferação vascular e representa a pro‑ gressão para o estágio 3 (Figura 4). Os estágios 4 e 5 caracteri‑ zam‑se pela presença do descolamento da retina, que pode ser predominantemente tracional ou predominantemente exsu‑ dativo. O estágio 4A preserva a mácula, a área central da visão; já o 4B acomete a mácula (Figura 5). O estágio 5 caracteriza‑se pelo descolamento total da retina. A Tabela 1 resume as carac‑ terísticas da ROP conforme seus estágios. A ROP posterior agressiva é a forma clínica em que as alte‑ rações vasculares têm uma rápida progressão e a neovasculari‑ zação atípica pode evoluir para o descolamento de retina sem passar pelos estágios típicos 1 a 3, ou seja, não há formação da crista.2 Alguns estudos já demonstraram uma maior tendên‑ cia dessa forma para evolução desfavorável com cegueira. É importante reconhecer as características clínicas da ROP pos‑
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Tabela 1 Características clínicas da retinopatia da prematuridade
Figura 4 ROP estágio 3 com proliferação fibrovascular junto à linha de demarcação. Observa-se hemorragia retiniana próxima à linha de demarcação na arcada vascular temporal inferior.
Estágio da ROP
Características clínicas
Estágio 1
Linha de demarcação plana
Estágio 2
Linha de demarcação com volume
Estágio 3
Neovascularização na linha de demarcação
Estágio 4A
Descolamento de retina parcial que poupa a mácula
Estágio 4B
Descolamento de retina parcial que envolve a mácula
Estágio 5
Descolamento de retina total
Tabela 2 Características clínicas da ROP posterior agressiva Rápida progressão Evolução atípica Alto risco de descolamento de retina Geralmente localizada na zona I Presença de doença plus Neovasos planos
Figura 5 ROP estágio 4B: presença de fluido sob a retina e áreas de tração associadas a pregueamento e elevação da mácula.
terior agressiva (Tabela 2) para a indicação precoce do trata‑ mento. Diagnóstico O exame do fundo de olho deve ser realizado em toda criança prematura nascida com idade gestacional menor que 32 sema‑ nas e/ou peso inferior a 1.500 g. Considera-se também a reali‑ zação do exame em crianças que apresentam os seguintes fa‑ tores de risco: síndrome do desconforto respiratório, sepse, transfusões sanguíneas, gestação múltipla e presença de he‑ morragia intraventricular. O exame deve ser realizado entre a 4ª e a 6ª semana de vida, por oftalmologista treinado para reconhecer as características clínicas da doença, utilizando o oftalmoscópio indireto e a len‑ te de 28 dioptrias. A pupila é dilatada com os colírios tropica‑ mida a 0,5% associado à fenilefrina a 2,5%. Instila-se o colírio
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anestésico e, com o auxílio do blefarostato e indentador escle‑ ral, quando necessário, realiza-se o mapeamento de retina. A doença é estadiada e a conduta é baseada nos achados clínicos (Tabela 3). O seguimento é realizado da seguinte forma: • retina com vascularização incompleta ou presença de ROP menor que pré-limiar: reexame em 2 semanas; • ROP em regressão: reexame em 2 semanas; • retina com vascularização na zona I: reexames semanais; • ROP pré-limiar tipo 2: reexames em 3 a 7 dias; • ROP pré-limiar tipo 1 (zona I, qualquer estágio com plus; zona I, estágio 3; zona II, estágio 2 ou 3 com plus) e limiar: trata‑ mento em até 72 horas; • retina com vascularização completa: seguimento com 6 me‑ ses para monitorar o desenvolvimento visual. A ROP pré-limiar corresponde a ROP estágio 1 ou 2 na zona I sem doença plus, ROP estágio 2 ou 3 na zona II sem plus, ROP estágio 2 ou 3 com plus, mas menor que pré-limiar de alto ris‑ co na zona II.
Tabela 3 Critérios de triagem oftalmológica adotados no Brasil em prematuros Quem examinar?
Idade gestacional < 32 semanas e/ou peso < 1.500 g
Quando realizar o 1º exame?
4 a 6 semanas de vida
Quando considerar o exame?
Síndrome do desconforto respiratório, sepse, transfusões sanguíneas, gestação múltipla, presença de hemorragia intraventricular
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Retinopatia da Prematuridade •
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O tratamento pode evoluir para raras, porém graves, com‑ O exame é realizado até a vascularização completa, ou 45 semanas de idade corrigida sem ter desenvolvido a ROP pré‑ plicações oculares, como: -limiar ou pior, ou na ROP com regressão completa. • tratamento incompleto, com progressão para o descolamento da retina exsudativo e tracional; Diagnóstico diferencial • inflamação do segmento anterior do olho, que é evitada com São diagnósticos diferenciais da ROP: vitreorretinopatia exsu‑ uso de colírio anti-inflamatório; dativa familiar (FEVR), doença de Norrie, incontinência pig‑ • rotura da retina e da membrana de Bruch em razão da marca mentar, prega retiniana congênita, toxocaríase ocular e outras de fotocoagulacão muito forte; causas de leucocoria. A leucocoria, que é o reflexo branco dos • hemorragia da coroide ou descolamento exsudativo da coroi‑ olhos, pode ocorrer por qualquer opacidade de meios, em de; qualquer nível de profundidade entre a córnea e a retina. • lesões térmicas da córnea, íris ou tunica vasculosa lentis; • isquemia do segmento anterior com evolução para a atrofia Tratamento da íris, catarata e hipotonia. O tratamento de escolha para a ROP limiar é a fotocoagulação, preferencialmente com laser de diodo, na área da retina avas‑ Após a fotocoagulação, recomenda-se o uso de colírios de anti‑ cular, de padrão semiconfluente. Há indicação de tratamento biótico, corticosteroide e midriático, por curto período. também na ROP pré-limiar tipo 1 (Tabela 4). É possível que novas opções terapêuticas, como o uso de A criança é submetida a entubação orotraqueal, analgesia e drogas anti-VEGF, associado ou não a fotocoagulação, sejam sedação, pois é frequente ocorrer bradicardia e há risco de ap‑ indicadas para casos mais graves, como a ROP posterior agres‑ neia durante o procedimento. Uma vez feito o diagnóstico de siva, mas a utilização dessas drogas de forma rotineira exige ROP limiar ou pré-limiar tipo 1, o tratamento deve ser realiza‑ mais estudos com evidência científica favorável para justificar do em até 72 horas, dada a rápida progressão da doença (Figu‑ o seu uso na prática clínica, principalmente em relação à segu‑ ra 6). rança e eficácia. O descolamento da retina da ROP pode permanecer estável nas primeiras semanas ou meses após a fotocoagulação, e sa‑ be-se que não é possível determinar, pelo aspecto oftalmoscó‑ Tabela 4 Critérios adotados para indicação de pico, a estabilidade do descolamento parcial da retina ou da fotocoagulação acuidade visual. ROP pré-limiar tipo 1 (baseado no ETROP) Na ROP estágios 4 e 5, há indicação de tratamento cirúrgi‑ Zona I: qualquer estágio com plus co. Utiliza-se a técnica de vitrectomia via pars plicata, com ou Zona II: estágio 3 sem a preservação do cristalino. O objetivo no estágio 4 é con‑ seguir minimizar a distorção no polo posterior, sendo que, no Zona III: ROP 2 ou 3 com plus 4A, também busca-se preservar a visão central e, no estágio ROP limiar (baseado no CRYO-ROP) 4B, evitar a progressão para o descolamento total da retina. A ROP estágio 3, na zona 1 ou 2, com pelo menos 5 horas de extensão contíguas ou 8 horas intercaladas de cirurgia nos estágios 4B e 5 é realizada para se obter visão am‑ neovascularização, na presença de doença plus bulatorial, ou seja, enxergar objetos grandes e locomover-se dentro de uma sala sem bater nos objetos. Nos casos de ROP estágio 5, os resultados anatômicos e funcionais são limitados, já que o dano funcional decorrente da hemorragia sub-retinia‑ na e da distorção anatômica são devastadores à função visual, sendo que os melhores resultados alcançam visão de vultos. Infelizmente, mesmo com o tratamento cirúrgico adequado, 28% das crianças evoluem para visão de ausência de percep‑ ção luminosa.
Figura 6 ROP tratada com fotocoagulação: observam-se lesões hiperpigmentadas que correspondem a cicatrizes das marcas de laser em olho com diagnóstico prévio de ROP limiar.
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Seguimento A criança que desenvolveu a ROP, mesmo que não tenha ne‑ cessitado de tratamento, deve ser acompanhada por um oftal‑ mologista desde os primeiros meses de vida. O processo visual ocorre nos primeiros anos de vida, chamado de período crítico do desenvolvimento visual, em que o melhor potencial de vi‑ são deve ser oferecido à criança para evitar a ambliopia, ou seja, a visão preguiçosa. A estimativa da acuidade visual é rea‑ lizada pela avaliação clínica, pelo comportamento visual ou com cartões de acuidade de Teller (CAT) para crianças não verbais. Nos prematuros, estrabismo e ametropias são mais
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frequentes, principalmente a miopia e o astigmatismo. O exa‑ me de refração é realizado para avaliar a necessidade de corre‑ ção das ametropias com o uso de óculos. Na vida adulta, esses indivíduos podem ter boa acuidade visual, apesar das distor‑ ções encontradas no fundo de olho, e têm uma maior chance de desenvolver catarata, glaucoma, retinopatia exsudativa e descolamento de retina. Nos casos em que a doença deixa sequelas visuais, é extre‑ mamente importante que as crianças sejam encaminhadas para a estimulação visual precoce e posterior treinamento em visão subnormal. Prevenção A ROP é uma causa importante de cegueira em crianças, sen‑ do evitável na maioria das situações desde que o exame de triagem seja realizado no momento adequado. O sucesso e a adesão ao programa de prevenção à cegueira pela ROP depen‑ dem da instituição hospitalar e do envolvimento de toda a equipe de neonatologia, o que inclui enfermeiras, auxiliares, médicos neonatologista e oftalmologista, além do apoio dos familiares.
•
Referências bibliográficas 1. 2. 3.
4.
5. 6.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer que a retinopatia da prematuridade (ROP) é uma doença ocular que potencialmente leva a cegueira se não for tratada adequadamente. • Recomendar o exame de fundo de olho em todos os bebês prematuros que nascem com peso menor que 1.500 g e/ou idade gestacional menor que 32 semanas. • Recomendar o 1º exame de fundo de olho em 4 a 6 semanas após o nascimento do bebê prematuro; a reavaliação fica a critério do oftalmologista. • Reconhecer a forma grave da ROP (ROP posterior aguda), que apresenta rápida progressão do quadro e maior risco de perda visual irreversível. • Entender que o tratamento atual considerado padrão-ouro na ROP limiar é a fotocoagulação da retina, realizada com analgesia e sedação.
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Recomendar acompanhamento oftalmológico periódico a todas as crianças que nascem prematuras, mesmo as que não apresentaram a forma grave da ROP, para assegurar o desenvolvimento visual adequado.
7.
8.
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Odontopediatria COORDENADORA
Sylvia Lavinia Martini Ferreira
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COORDENADORA E AUTORES SEÇÃO 28 ODONTOPEDIATRIA
Coordenadora Sylvia Lavinia Martini Ferreira Doutora em Odontopediatria pela Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP). Presidente da Associação Paulista de Odontopediatria (APO) – Gestão 2014/2015 e Vice ‑presidente em Exercício – Gestão 2016/2018. Membro da Associação Latinoamericana de Odontopediatria (Alop).
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Fellowship na Orthodontics University Michigan, EUA.
Autores
Cristina Giovannetti Del Conte Especialista em Odontopediatria pela Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico da Odontologia (Fundecto‑FOUSP). Mestre e Doutora em Odontopediatria pela FOUSP. Professora do Curso de Especialização em Odontopediatria da Fundecto‑FOUSP. Equipe de Estomatologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e Santa Catarina.
Ana Estela Haddad Livre‑docente. Professora‑associada do Departamento de Ortodontia e Odontopediatria da FOUSP. Diretora de Gestão da Educação na Saúde do Ministério da Saúde (2005‑2015).
Danilo Blank Doutor em Saúde da Criança e do Adolescente. Professor Associado do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Ana Lucia Goulart Especialista em Neonatologia e Doutora em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Professora Adjunta da Disciplina Pediatria Neonatal do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Unifesp.
Fabian Calixto Fraiz Doutor em Odontopediatria pela USP. Pós‑doutor em Odontopediatria pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Titular de Odontopediatria na Universidade Federal do Paraná.
Benjamin Israel Kopelman Professor Titular Aposentado da Disciplina Pediatria Neonatal do Departamento de Pediatria da EPM ‑Unifesp. Coordenador da Assessoria Internacional da Unifesp. Presidente da ONG Viver e Sorrir: Grupo de Apoio ao Prematuro.
Fernanda Nahás Pires Corrêa Especialista em Odontopediatria pela Associação Brasileira de Ensino Odontológico. Mestre e Doutora em Odontopediatria pela FOUSP. Professora da Disciplina Odontopediatria da Faculdade São Leopoldo Mandic e Complexo Educacional FMU.
Bruno Frazão Gribel Cirurgião‑dentista. Mestre em Ortodontia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC‑MG). Doutorando em Radiologia pela
Isabela Almeida Pordeus Especialista em Odontopediatria pela UFMG. Mestre em Odontopediatria pela USP. Doutora em Epidemiologia e Saúde Pública pela University
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College London, Reino Unido. Professora Titular da Disciplina Odontopediatria do Departamento de Odontopediatria e Ortodontia da UFMG. Jaime Aparecido Cury Professor de Bioquímica e Cariologia da Faculdade de Odontologia de Piracicaba/Unicamp. Jenny Abanto Especialista em Odontopediatria pela Associação Paulista de Cirurgiões‑dentistas. Mestre e Doutora em Odontopediatria pela FOUSP. Professora do Curso de Odontopediatria baseada em Evidências Científicas e do Curso de Odontopediatria na Primeira Infância da Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico da Odontologia da FOUSP. Professora Colaboradora da Disciplina Prevenção em Odontopediatria do Departamento de Ortodontia e Odontopediatria da FOUSP. Joana Ramos‑Jorge Mestre e Doutora em Odontopediatria pelo Departamento de Odontopediatria e Ortodontia da UFMG. Pós‑doutora em Odontopediatria pelo Departamento de Odontopediatria da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Juliana Sayuri Kimura Especialista em Odontopediatria pela Fundecto ‑FOUSP. Mestre e Doutoranda em Odontopediatria pela FOUSP. Colaboradora do Centro de Pesquisa e Atendimento de Traumatismo em Dentes Decíduos da Disciplina de Odontopediatria da FOUSP. Professora na Clínica Integrada Infantil da Fundação Hermínio Ometto (FHO‑Uniararas). Júnia Maria Cheib Serra‑Negra Mestre e Doutora em Odontologia pela UFMG. Professora Associada do Departamento de Odontopediatria e Ortodontia da Faculdade de Odontologia da UFMG. Pós‑doutoranda na Università Degli Studi di Padova, Itália. Júnia Maria Villefort Silva Especialista em Odontopediatria pela USP‑Bauru. Especialista em Ortopedia Funcional dos Maxilares pelo CFO. Pós‑graduada em Ortodontia pelo Grupo Straight‑wire do Brasil. Mestre em Ciências da Saúde (Odontopediatria) pela USP‑Bauru. Karla Mayra Rezende Especialista em Odontopediatria pela Universidade de Taubaté. Doutora em Odontopediatria pela FOUSP. Professora dos Cursos de Pós‑graduação em Odontopediatria e Odontologia para Bebês da
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Faculdade São Leopoldo Mandic. Membro da Câmara Técnica de Odontopediatria (CROSP). Membro da Diretoria da Associação Brasileira de Odontopediatria. Lélia Cardamone Gouvêa Professora Titular de Pediatria da Universidade de Santo Amaro (Unisa). Professora da Pós‑graduação do Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde da Unifesp. Responsável pelo Ambulatório de Prematuros e Liga de Puericultura da Unisa. Membro do Departamento de Aleitamento Materno da Sociedade de Pediatria de São Paulo. Liliana Aparecida Mendonça Vespoli Takaoka Mestre e Doutora em Ciências Aplicadas à Pediatria pela EPM/Unifesp. Coordenadora do Grupo de Atenção Transdisciplinar Materno‑infantil. Coordenadora de Odontopediatria do Ambulatório de Atendimento ao Prematuro da EPM ‑Unifesp. Vice‑presidente da ONG Viver e Sorrir: Grupo de Apoio ao Prematuro. Luiz Anderson Lopes Professor Titular de Pediatria da Universidade de Santo Amaro (Unisa) e Professor Adjunto Visitante da EPM‑Unifesp. Responsável pelo Ambulatório de Distúrbios do Crescimento da Unifesp e da Unisa. Membro do Departamento de Nutrologia da SBP. Mara Lucia Rufato Cardoso Especialista em Ortopedia pela ABO e em Ortopedia Funcional dos Maxilares pelo CFO. Marcelo J. Strazzeri Böneker Doutor pela FOUSP e pelo Departamento de Epidemiologia e Saúde Pública da University College London, Reino Unido. Pós‑doutor pelo Dental Research Institute da Universidade de Witwatersrand, África do Sul. Professor Titular da Disciplina Odontopediatria da FOUSP. Membro da Diretoria da International Association Paediatric Dentistry. Marcia André Especialista em Prótese Bucomaxilofacial e em Pacientes com Necessidades Especiais pelo CFO. Mestre e Doutora pela FOUSP. Professora Doutora da Disciplina Prótese Bucomaxilofacial da FOUSP. Marcia Turolla Wanderley Mestre e Doutora em Odontopediatria pela FOUSP. Professora Doutora da Disciplina Odontopediatria do Departamento de Ortodontia e Odontopediatria da FOUSP. Coordenadora do Curso de Especialização em Odontopediatria da Fundecto
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‑FOUSP. Coordenadora do Centro de Pesquisa e Atendimento de Traumatismo em Dentes Decíduos da Disciplina Odontopediatria da FOUSP. Marcos Martins Curi Doutor e Mestre em Oncologia pelo AC Camargo Cancer Center/Fundação Antonio Prudente. Professor de Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial do Curso de Pós‑graduação da Universidade do Sagrado Coração. Responsável pelo Serviço de Estomatologia do Hospital Santa Catarina. Marcos Nadler Gribel Cirurgião‑dentista. Especialista em Ortodontia, Ortopedia Funcional dos Maxilares e Dor Orofacial e DTM pelo CFO. Maria Salete Nahás Pires Corrêa Mestre, Doutora e Livre‑docente em Odontopediatria pela FOUSP. Professora Associada da Disciplina Odontopediatria do Departamento de Odontopediatria da FOUSP. Coordenadora do Curso de Odontologia para Bebês na FOUSP. Coordenadora do Curso de Especialização em Odontopediatria na Fundação de Apoio à Pesquisa e Estudo na Área de Saúde. Mariângela Milena Santos Schalka Cirurgiã‑dentista e Odontopediatra. Especialista em Ortopedia Funcional dos Maxilares com ênfase em Reabilitação Neuroclusal pela Faculdade de Odontologia da Unisa. Mestre em Odontopediatria pela FOUSP. Patrícia Leila Camacho Roulet Especialista em Ortopedia Funcional dos Maxilares pelo CFO. Mestre em Odontopediatria pela USP. Professora de Odontopediatria do Núcleo de Aperfeiçoamento Profissional em Odontologia. Paulo Cesar Barbosa Rédua Especialista em Odontopediatria pelo CFO. Mestre em Ciências Fisiológicas pelo Centro Biomédico da Universidade Federal do Espírito Santo. Vice ‑presidente da Alop – Gestão 2016/2017.
Roseli Oselka Saccardo Sarni Doutora em Medicina pela EPM‑Unifesp. Professora ‑assistente do Departamento de Saúde Materno ‑infantil da Faculdade de Medicina do ABC. Presidente do Departamento de Nutrologia da SBP. Saul Martins Paiva Dentista. Mestre em Odontopediatria pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Odontopediatria pela USP. Pós‑doutor em Saúde Pública pela Universidade McGill, Canadá. Professor Titular da Disciplina Odontopediatria do Departamento de Odontopediatria e Ortodontia da UFMG. Sheyla Márcia Auad Especialista em Odontopediatria pela Faculdade de Odontologia da Universidade Vale do Rio Verde (UninCor). Mestre em Odontologia, com Área de Concentração em Odontopediatria, pela UFMG. Doutora em Odontologia pela University of Newcastle upon Tyne, Reino Unido. Professor Associado do Departamento de Odontopediatria e Ortodontia da UFMG. Silvia José Chedid Especialista em Ortodontia pela Roth/Williams Center e em Ortopedia pelo CRO/CFO. Mestre e Doutora em Odontopediatria pela USP. Soraya Carvalho da Costa Especialista em Estomatologia pelo CROSP. Mestre em Odontologia com Área de Concentração em Diagnóstico Bucal, Subárea Semiologia, pela FOUSP. Doutora em Ciências pelo Programa de Pediatria da Faculdade de Medicina da USP. Professora Adjunta das Disciplinas Semiologia e Estomatologia do Curso de Odontologia da Unicsul. Sucena Matuk Long Especialista e Doutora em Odontopediatria pela FOUSP. Professora Titular da Disciplina de Odontopediatria do Departamento de Clínica Infantil da Universidade Paulista. Professora Referência do Módulo de Clínica Integrada Infantil da Escola de Ciências Médicas e da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo.
Paulo José Bordini Especialista em Estomatologia pelo CROSP. Doutor em Odontologia com Área de Concentração em Diagnóstico Bucal, Sub‑área Semiologia, pela FOUSP. Professor Titular das Disciplinas Semiologia e Estomatologia dos Cursos de Odontologia das Universidades Cruzeiro do Sul (Unicsul) e Mogi das Cruzes.
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INTRODUÇÃO
QUALIDADE DE VIDA E SAÚDE BUCAL Sylvia Lavinia Martini Ferreira Luiz Anderson Lopes Paulo Cesar Barbosa Rédua
Um dos objetivos da odontopediatria é integrar diferentes equipes de saúde coletiva e demais especialidades quando as oportunidades se apresentam, a fim de contribuir para a pro‑ moção da saúde bucal e atender de forma inter e transdiscipli‑ nar, seja por meio de ações curativas e preventivas, seja atuan‑ do junto a órgãos públicos na implementação de políticas para a saúde coletiva, ou mesmo reorganizando os serviços de saú‑ de, que visam à prevenção das doenças bucais e à promoção da saúde bucal.1 A ideia de interação dos programas de atenção precoce com escolas, educação precoce e programas de cuidados infantis, comunidade de médicos, dentistas e outras comunidades pú‑ blicas ou privadas é defendida pela Associação Brasileira de Odontopediatria (ABO), para garantir o conhecimento de questões relacionadas à saúde bucal de acordo com a idade da criança.2 O atendimento odontológico deve ser iniciado entre 6 e 12 meses de vida, seguido de controles periódicos que visem a re‑ duzir o risco da criança a doenças bucais e dentárias.2 Cada vez mais, as especialidades da área da saúde estão ca‑ minhando para o atendimento do ser integral, e é preciso reu‑ nir disciplinas que foram dissociadas para que educar, preve‑ nir e humanizar de forma integrada venham a ser, de fato, o desejo de toda a equipe de trabalho.3 Entre os profissionais de saúde, o pediatra é o que tem opor‑ tunidade do primeiro contato com o bebê e com seus pais logo após o nascimento, uma vez que acompanha o crescimento e o desenvolvimento da criança e intervém nas doenças e altera‑ ções mais frequentes. Pela influência que exerce sobre a família da criança, uma vez que as crianças o visitam antes do odonto‑ pediatra, possui um importante papel de orientador e educador também sobre as questões de saúde bucal.4 O conhecimento dos eventos desde a concepção, assim como os aspectos de interesse na interface vida intrauterina/ construção de saúde bucal do bebê, são importantes na busca de melhor qualidade de vida para as crianças, uma vez que condições adversas durante o período gestacional (doenças
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maternas, uso de medicamentos, alimentação desequilibrada, poluição intrauterina, como dioxinas, uso de tabaco e álcool, entre outras) podem estar relacionadas aos defeitos no desen‑ volvimento dos dentes e outros problemas bucais.5 A ideia de qualidade de vida relacionada à saúde bucal (QVRSB) foi definida como “o impacto das doenças bucais so‑ bre os aspectos da vida cotidiana que são importantes para os pacientes e pessoas, com os impactos sendo de magnitude su‑ ficiente, quer em termos de frequência, gravidade ou duração, para afetar a percepção do indivíduo sobre sua vida em geral”. Esse conceito multidimensional engloba questões de saúde fí‑ sica, psicológica (incluindo aspectos emocionais e cognitivos) e social,6 que interferem nas atividades diárias, bem-estar e qualidade de vida dos indivíduos. Cárie dentária, lesões traumáticas dentárias e maloclusões são questões já estudadas e relatadas na literatura, que apre‑ sentam forte impacto na qualidade de vida relacionada à saúde bucal de crianças e adolescentes.7 Em situações especiais, por exemplo nas crianças com alta experiência de cárie, pode inclu‑ sive interferir na qualidade de vida dos pais ou de outros mem‑ bros da família.8 A alimentação, o sono, a fala, a comunicação, a interação social e a autoestima de crianças e adolescentes também podem ser afetadas por problemas de saúde bucal. Assim, a aproximação de práticas entre as duas especiali‑ dades – odontologia e pediatria – é o foco desta seção, aten‑ dendo, desse modo, ao conteúdo de saúde bucal proposta pelo Consórcio Global de Educação Pediátrica (GEPEC), em temá‑ rio de maior interesse para pediatria e odontopediatria. Como objetivo principal, busca capacitar para a identificação de fato‑ res de risco e de sinais associados às alterações mais frequen‑ tes na prática diária das duas especialidades, construindo uma ponte de conhecimento que minimize os possíveis danos a saúde bucal e sistêmica, além de aumentar a capacidade de resolução, por meio da cooperação e colaboração entre as es‑ pecialidades. Não houve a pretensão de se esgotar todos os aspectos de saúde bucal da criança e do adolescente, porém o pediatra con‑
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seguirá se informar sobre as alterações mais comuns a ser ob‑ servadas durante a consulta médica de rotina, conforme propõe o GEPEC, e que merecem acompanhamento e/ou tratamento odontológico, com encaminhamento para o odontopediatra. Uma das estratégias que pode e deve ser utilizada na busca pela qualidade de vida na saúde da criança e do adolescente é o trabalho multi e interdisciplinar, tanto em atendimento privado como em atendimento na saúde pública, em que pediatras te‑ nham um olhar mais cuidadoso para as questões de saúde bucal. Pensa-se, com isso, unir esforços para melhorar a saúde via redução de riscos e estabelecer um fator diferencial na prática de ambas as especialidades, sem interferir nas respectivas áreas de concentração, mas com ganhos importantes para crianças e adolescentes assistidos, pois o respeito ao paciente exige planejamento com troca de informações e conhecimen‑ to científico que proporcionem qualidade de vida do ponto de vista físico, psíquico e emocional. Referências bibliográficas 1.
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CAPÍTULO 1
EXAME FÍSICO DA CAVIDADE BUCAL Karla Mayra Rezende Fernanda Nahás Pires Côrrea Maria Salete Nahás Pires Côrrea
Introdução O crescimento e o desenvolvimento de uma criança são condicionadas pela herança genética, sendo fortemente influenciados pelo meio ambiente, sobretudo no que se refere à instalação de doenças e à qualidade de nutrição.1 Assim, as ações direcionadas ao atendimento de criança devem priorizar a promoção da saúde, seguida da prevenção, diminuindo, assim, o risco de desenvolvimento de afecções.2 A tendência atual no campo da saúde é o atendimento precoce e global da criança, que se inicia antes do 1º ano de vida. Logo, a maneira pela qual se examina uma criança é importante, e o profissional deve demonstrar carinho, delicadeza e muita paciência, principalmente em virtude das características próprias delas, como menor tamanho e rebeldia ao manuseio, sem deixar de lado a energia e a firmeza na condução do exame clínico.3 Sempre deve ser levado em conta que a criança está em evolução contínua, e quem a examina precisa estar familiarizado com os padrões normais e anormais de crescimento e desenvolvimento. Saber reconhecer e diagnosticar com segurança as anormalidades em estágios precoces é condição sine qua non para orientar, alertar e/ou tranquilizar os pais, indicando o tratamento adequado.4 Características morfológicas da cavidade bucal A boca do recém-nascido tem alta sensibilidade, o que lhe permite levar tudo para a boca e reconhecer objetos, entre eles o mamilo materno. É por ela que indivíduo consegue exercer funções vitais, como respiração, amamentação, alimentação e mecanismos reflexos de proteção das vias aéreas, como vômito ou tosse. O exame clínico da cavidade bucal (Figura 1) começa observando a face do bebê e o vedamento labial (Figura 2). Quando hipotônica, geralmente é porque o bebê está respirando pela boca. Se isso não for tratado, poderá influenciar as direções do crescimento facial e alterar o padrão funcional da musculatura orofacial.5
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Figura 1 Profissional realizando exame clínico da cavidade bucal do bebê com técnica joelho-joelho.
Figura 2 Aspecto do correto vedamento labial. Observa-se a relação maxilomandibular. No sentido anteroposterior, a mandíbula encontra-se retruída em relação à maxila.
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Ao analisar a cavidade intrabucal do recém-nascido, depara-se com os processos alveolares que estão cobertos pelos abaulamentos gengivais que, ao segmentar, indica os locais de desenvolvimento dos dentes. Nesse instante, a boca edentada da criança apresenta mucosa gengival de cor rosada, firmemente aderida, denominada rodete gengival. A maxila apresenta-se com pouca profundidade, porém rica em acidentes anatômicos. A região do palato encontra-se bem marcada, com as rugosidades palatinas bem evidenciadas. A mandíbula do recém-nascido apresenta o sulco lateral por distal da papila canina como acidente anatômico mais evidente. A característica morfológica mais comumente observa-
da é a presença de um cordão fibroso e flácido à palpação, denominado por alguns autores de cordão fibroso de Robin e Magitot, que colabora com vedamento dos maxilares, o que ajuda durante a sucção e, conforme se aproxima a época de erupção dos dentes decíduos, ele vai desaparecendo, sendo indicativo da época de erupção dentária. Não é muito frequente, mas alguns tipos de anomalias ainda são encontrados na mucosa bucal dos bebês. No entanto, essas alterações congênitas e de desenvolvimento, na grande maioria das vezes, resolvem-se sozinhas sem necessidade de tratamento;1,6 em outras, é necessário fazer alguma intervenção cirúrgica (Tabela 1 e Figura 3).7
Tabela 1 Anomalias mais frequentes encontradas na mucosa oral dos bebês Patologia
O que é
Localização
Freio do teto labial persistente
É quando o freio labial, prega de tecido fibroso e formato triangular, tem sua inserção anormal que pode dificultar os movimentos labiais, causar um efeito desarmônico na estética dentária ou ainda afetar a fonação de algumas letras, além de interferir na escovação
Entre os incisivos centrais superiores separando os dentes. Esse espaço é conhecido como diastema
Nódulo de Bohn
Pequeno cisto de coloração branca originado pela reminiscência do tecido mucoso glandular
Porção vestibular e lingual dos rebordos gengivais. Podem estar localizados no palato, mas longe da rafe palatina mediana
Pérola de Epstein
Pequenos cistos de coloração branca originada pela reminiscência dos tecidos epiteliais
Palato ao longo da rafe média palatina
Epúlide congênita
Também conhecida como cisto da lâmina dentária. É uma massa submucosa de tamanho variável. Geralmente, ao nascer, esse tumor pode até regredir e, somente se necessário, faz-se a remoção cirúrgica para ajudar na amamentação, deglutição e respiração do recém-nascido
A criança nasce com essa lesão que geralmente se localiza no rebordo alveolar da maxila, porém, em raros casos, pode também ser vista no rebordo da mandíbula
Mucocele
Trauma nos ductos de glândulas salivares menores que clinicamente mostra lesão bolhosa de superfície lisa com líquido claro no interior
Mais frequente no lábio inferior
Rânula
Semelhante à mucocele. Trauma ou sialolito no ducto da glândula submandibular acumulando a secreção grossa e viscosa nos tecidos
Assoalho bucal
Hemangioma
Proliferação anormal dos vasos sanguíneos. Geralmente é ativo nos primeiros meses de vida e depois estaciona ou regride
Mais comum no lábio inferior
Hiperplasia fibrosa inflamatória
Tumor benigno que pode estar ligado a algum trauma local
Face interna da mucosa jugal
A
B
C
D
E
F
Figura 3 Exemplos de algumas alterações encontradas na cavidade bucal de bebês. (A) Freio do teto labial persistente. (B) Nódulos de Bohn. (C) Pérolas de Epstein na rafe palatina. (D) Epúlide congênita. (E) Mucocele presente no lábio inferior. (F) Rânula localizada no assoalho bucal.
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Exame Físico da Cavidade Bucal •
A língua é um fator essencial na coordenação da sucção, deglutição, respiração e sabor por meio de suas papilas gustativas (Figura 4 e Tabela 2). Erupção dentária O processo embriológico da formação dentária decídua, também conhecida como “dentes de leite”, começa entre a 6ª semana de vida intrauterina e termina por volta dos 4 meses de gestação. A dentição permanente tem o início de sua formação aos 4 meses de vida intrauterina e é finalizada aos 10 meses de idade, com o dente que será o segundo pré-molar.8 Nos
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primeiros 6 a 8 meses de vida, os primeiros dentes, geralmente os incisivos centrais inferiores, começam a irromper na cavidade bucal do bebê (Figura 5). A sequência de erupção pode sofrer alguma influência de fatores sistêmicos que podem impedir e alterar a sequência de erupção. Os fatores mais comuns estão mencionados na Tabela 3 e ilustrados na Figura 6. No período de 24 a 30 meses de idade, os segundos molares erupcionam, o que marca completa a dentição decídua, composta por 20 dentes, sendo 10 na região da maxila e 10 na mandíbula. Essa dentição permanece até por volta dos 5,5 e 6 anos
Tabela 2 Anomalias da língua mais frequentes Patologia
O que é
Localização
Anquiloglossia
Alteração congênita. Freio lingual curto e aderido ao assoalho bucal
Freio lingual
Língua geográfica/glossite migratória benigna
Lesões erosivas eritematosas (avermelhadas), com bordas irregulares, cinzento-esbranquiçadas, um pouco salientes, que fazem lembrar os contornos de um mapa geográfico. Podem migrar de uma área da língua para outra
Dorso da língua
Língua fissurada
Alteração congênita caracterizada por vários sulcos e fissuras profundas. Apesar de ser indolor, essas fissuras favorecem a retenção de alimentos e bactérias, que causam mau odor. Em contatos com alimentos ácidos, há relatos de ardor
Dorso da língua
Doença de Riga-Fede
Úlcera traumática associada à presença de dentes natais (quando o bebê nasce com dentes) ou neonatais (quando irrompem antes dos 30 dias de vida do bebê)
Ventre da língua do bebê
A
B
Figura 4 Aspecto clínico da anquiloglossia em bebê. Nota-se o frênulo como uma membrana curta deixando a ponta da língua presa.
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C
Figura 5 (A) Início da erupção dos dentes decíduos. (B e C) Aspecto final da dentição decídua completa.
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de vida da criança, quando então começam a erupcionar os primeiros molares permanentes, no espaço posterior aos molares decíduos, conseguido pelo prévio crescimento contínuo da mandíbula em tamanho. A cronologia da erupção é variável e dependente de múltiplos fatores, como alimentação, clima, etnia, gênero e fatores endócrinos. A sequência favorável da erupção contribui para o desenvolvimento normal da oclusão. A dentição permanente é completada aos 13 anos da criança, totalizando 32 dentes. Alguns ainda podem ter os terceiros molares – também conhecidos como sisos –, que geralmente erupcionam por volta dos 18 anos de vida. A sucção não nutritiva começa na vida intrauterina e persiste até a vida pós-natal. Quando o hábito de chupar chupeta
ou dedo persiste por muito tempo, podem-se afetar a mordida, a postura da língua, a respiração e o desenvolvimento dos músculos da face, ocasionado problemas oclusais. Vale ressaltar que o desenvolvimento da dentição está intimamente associado à morfologia e ao crescimento da face, à maneira pela qual as funções da região bucofacial são exercidas (Figura 7). Outro tipo de anormalidade que também pode ser observado durante o exame médico é a condição da higiene bucal dos pacientes. Quando não há uma adequada higienização da boca, associada a uma dieta rica em sacarose e aos microrganismos encontrados na cavidade bucal, ocorre a doença cárie. De acordo com sua evolução, ela inicia-se com a desmineralização do esmalte e clinicamente aparece como uma mancha
Tabela 3 Possíveis alterações odontológicas mais frequentes observadas na dentição decídua Patologia
O que é
Localização
Cisto/hematoma de erupção
Cisto que envolve a coroa do dente em erupção. Há um aumento de volume recoberto por um tecido translúcido. Geralmente regride com a erupção do dente
Qualquer região da maxila ou mandíbula em que esteja ocorrendo erupção do dente
Dente natal
Quando a criança nasce com o dente
Mais frequente na região dos dentes anteriores inferiores – incisivos centrais
Dente neonatal
Quando há nascimento de dentes em até 30 dias de vida do recém-nascido
Mais frequente na região dos dentes anteriores inferiores – incisivos centrais
Dentes supranumerários
Também denominado de hiperdontia, são aqueles que excedem aos dentes da série normal. Por isso, podem causar impactação ou atraso do dente da sequência normal
Podem acontecer tanto na dentição decídua quanto na permanente, uni ou bilateralmente e em ambas a maxilas, porém são mais frequentes na região anterior da maxila
Agenesia dental
Ausência de alguns dentes
Qualquer dente pode estar ausente
Anquilose
Quando a raiz do dente se funde com osso alveolar
Mais frequente nos dentes posteriores – primeiro ou segundo molar
A
B
D
C
E
Figura 6 (A) Aspecto clínico do cisto/hematoma de erupção. (B) Recém-nascido apresentando dentes natais. (C) Detecção do dente supranumerário. Observa-se que clinicamente não é visualizado, e sim por meio de técnica complementar, como exame radiográfico (D). (E) Presença do segundo molar decíduo anquilosado. Nota-se que este dente encontra-se infraoclusal, quando comparado com os dentes vizinhos.
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Exame Físico da Cavidade Bucal •
branca no dente; pode evoluir até que ocorra destruição dos tecidos dentários (esmalte e dentina) (Figura 8). Além disso, o acúmulo de placa bacteriana é principal fator para que haja inflamação nas gengivas (gengivite), cujo sinal clínico é o sangramento espontâneo ao escovar os dentes. Crianças que apresentam com frequência refluxo gastroesofágico, regurgitação, tomam sucos ácidos e refrigerantes em excesso podem apresentar, nas superfícies oclusais dos dentes posteriores e na superfície palatina dos dentes anteriores, desgaste do esmalte e dentina denominado erosão dentária (Figura 9). Também é muito comum o relato de traumatismo nos dentes anteriores, decorrente de quedas por estarem aprendendo a andar ou por brincadeiras. Os traumatismos dentários po-
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dem ser desde os mais simples como pequenas fraturas de esmalte/dentina e trincas até fraturas mais complexas ou mesmo avulsão do dente. Independentemente do trauma, é de suma importância orientar os pais a levarem seus filhos imediatamente ao odontopediatra; quanto mais cedo a procura, melhor prognóstico para o tratamento. A cor do dente escurecida indica que a criança já teve algum tipo de trauma (ver Capítulo 13 – Trauma dentário). Durante a adolescência, é interessante avaliar algumas peculiaridades, como presença de manchas extrínsecas causadas por algum tipo de pigmentação (Figura 10) ou manchas intrínsecas, como é visto nos casos de fluorose, tetraciclinas ou alterações genéticas (Figura 11), e também na presença de cárie, alteração na oclusão ou mesmo uso de piercing.
A
B
Figura 9 Primeiro molar com sinais de desgaste dental em razão da erosão no esmalte. Nota-se presença de lisura e brilho excessivo além de formação de cuppings (pontos socavados).
C
Figura 7 Diferentes tipos de mordidas encontradas em crianças. (A) Mordida aberta. (B) Mordida profunda. (C) Mordida cruzada unilateral direita. Figura 10 Dentes com presenças de manchas extrínsecas – pigmentação.
Figura 8 Aspecto de lesões de manchas brancas e com cavidade.
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Figura 11 Dentes com manchas intrínsecas. Observa-se alteração no esmalte dentário, bem como pobre higienização dos dentes.
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Doenças e sua manifestação na cavidade bucal A saúde geral da criança está diretamente relacionada à sua saúde bucal e vice-versa. Recém-nascidos de risco são aqueles que apresentaram, em sua formação, intercorrências patológicas ou que foram submetidos a situações de estresse gestacional e/ou que tiveram mães portadoras de patologias, que potencialmente puderam desviar o curso normal de desenvolvimento, possibilitando ocorrências de doenças e maior predisposição à desnutrição, afetando, portanto, seu crescimento e desenvolvimento, que assim diferem da normalidade fisiológica esperada para a faixa etária em estudo. Esses bebês foram ou estão expostos a situações de risco que podem ser comprometedoras de sua saúde geral.1 Algumas patologias podem refletir na saúde bucal. Por exemplo, crianças com escarlatina têm lesões inflamatórias no palato e na tonsila, e sua língua é caracterizada com aspecto de morango. Já a sífilis é facilmente detectada porque os dentes molares têm sua morfologia semelhante a uma amora, e os dentes anteriores têm forma de barril. Manifestação de lesões em pápulas ou nódulos, indolores, intra ou extraorais na borda do vermelhão do lábios, palato e língua, pode demonstrar verruga vulgar, o que indica a presença do vírus HPV. Quando a criança nasce com problemas na bile e este ocorre durante a formação do dente, é possível os dentes serem afetados e erupcionarem com coloração esverdeada. Outros tipos de alteração nos tecidos dentários podem ocorrer por motivos genéticos, como dentinogênese imperfeita e amelogênese. Nesses casos, há defeito nas estruturas dos tecidos duros que pode causar sensibilidade dentinária, dor e perdas das estruturas. Já a perda precoce dos dentes pode indicar alguma síndrome, como é observado em crianças portadoras da Chediak-Higashi e hipofosfatemia.4,7,9,10 Essas alterações afetam a qualidade de vida da criança e, consequentemente, é refletida na saúde geral e sistêmica. Por fim, o pediatra deve agir com embasamento científico e bom senso clínico para que suas ações permitam que a criança fale, mastigue, respire e sorria com saúde, tornando-se um adulto com boa autoestima e, acima de tudo, qualidade de vida (Figura 12).
A
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Realizar avaliação clínica geral da cavidade bucal. • Examinar dentes analisando oclusão, presença de cárie e higiene bucal. • Identificar alterações de tecido mole e sua possível correlação com a saúde geral da criança. • Atuar de forma integrada com o odontopediatra, encaminhando para prevenção e tratamento, quando necessário.
Referências bibliográficas 1.
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B
Figura 12 Aspecto clínico da dentição permanente. (A) Ótima oclusão dentária, bem como higienização. (B) Vista da arcada superior pela oclusal.
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CAPÍTULO 2
ERUPÇÃO DENTÁRIA – ALTERAÇÕES, EVENTOS IMPORTANTES, CRONOLOGIA, FATORES INTERFERENTES Saul Martins Paiva Joana Ramos-Jorge Ana Estela Haddad
Introdução Os dentes são órgãos mineralizados, implantados nos ossos alveolares da maxila e da mandíbula. O órgão dentário e os os‑ sos maxilares fazem parte do aparelho mastigatório, que in‑ clui também músculos mastigatórios, língua, glândulas saliva‑ res, vasos, nervos e articulação temporomandibular (ATM). O órgão dentário é composto pelo dente e pelo periodonto. O periodonto é formado pela gengiva, ligamento periodontal (fibras que unem o dente ao osso), cemento (tecido em que se inserem as fibras do periodonto) e osso alveolar. A implanta‑ ção da raiz dentária no osso alveolar se dá na forma de uma ar‑ ticulação do tipo gonfose. A estrutura dentária é composta de quatro tecidos diferen‑ tes: esmalte, dentina, cemento e polpa. O esmalte, que envol‑ ve completamente a dentina coronária, é o tecido mais duro do organismo e desempenha importante papel na mastigação. A dentina representa o verdadeiro esqueleto do dente, encon‑ trando-se contornada na coroa e na raiz de maneira contínua. No interior da dentina, há uma cavidade mais ampla nos den‑ tes jovens, que reproduz de forma muito aproximada a anato‑ mia externa do dente, que é a cavidade pulpar. A polpa é uma massa mole de tecido embrionário fundamental onde se en‑ contram vasos e nervos, dando ao órgão dental sua condição de elemento vivo e de capacidade de renovação da dentina. Ao longo do processo de crescimento e desenvolvimento humano, estabelecem-se duas dentições: a dentição decídua e a dentição permanente. A decídua ocorre durante a primeira infância (0 a 6 anos de idade), seguida por uma fase de transi‑ ção dos 6 aos 12 anos de idade – a fase da dentição mista – quando os dentes decíduos são substituídos pelos dentes per‑ manentes, estabelecendo-se, assim, a dentição permanente. A dentição decídua é composta por 20 dentes, sendo 10 no arco superior (maxila) e 10 no arco inferior (mandíbula). Em cada hemiarco, são dois incisivos (central e lateral), um cani‑ no, o primeiro molar e o segundo molar, cuja anatomia é dife‑ rente entre o primeiro e o segundo, bem como entre os supe‑ riores e inferiores (Figura 1).
Tratado de Pediatria 4ed.indb 2333
A dentição decídua, também conhecida como dentição pri‑ mária ou temporária, inicia-se no 1º ano de vida da criança. Popularmente, esses dentes são chamados de “dentes de leite”, por causa de sua coloração branco-leitosa decorrente de um menor teor de cálcio na composição do esmalte em relação aos dentes permanentes. A partir da formação do germe dentário, ocorre um movimento contínuo do dente em direção à sua ex‑ posição na cavidade bucal. A erupção dos dentes decíduos é frequentemente responsabilizada pela ocorrência de sinais e sintomas, como febre, diarreia, irritabilidade, entre outros. Entretanto, um estudo longitudinal1 não confirmou a associa‑ ção entre erupção de dentes decíduos e a ocorrência de sinais e sintomas graves em bebês. Assim, é importante que o pedia‑ tra investigue a possibilidade de enfermidades que podem acometer a criança nessa fase, sendo, portanto, a verdadeira causa da sintomatologia. Durante o desenvolvimento da dentição decídua, é impor‑ tante observar a presença de respiração oral, o uso inadequa‑ do de mamadeira e a utilização prolongada de chupeta, já que estes são fatores predisponentes para o estabelecimento de maloclusão (ver Capítulo 6 – Hábitos orais).
Incisivo central superior Incisivo lateral superior Canino superior Primeiro molar superior Segundo molar superior
Primeiro molar inferior
Segundo molar inferior Canino inferior Incisivo lateral inferior Incisivo central inferior
Figura 1 Composição da dentição decídua.
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2334 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 28 ODONTOPEDIATRIA
Dentes natais e neonatais Geralmente, os primeiros dentes decíduos erupcionam entre o 6º e o 8º mês de vida da criança (ver Cronologia da erupção). Entretanto, é possível a presença de dentes ao nascimento, denominados dentes natais. Esses dentes são observados em aproximadamente 1/2.000 recém-nascidos.2 Frequentemen‑ te, há dois dentes na posição de incisivos centrais inferiores. Já os dentes neonatais aparecem durante o 1º mês de vida. A fixação, tanto de dentes natais quanto neonatais, é, muitas ve‑ zes, limitada à gengiva, com pouco suporte ósseo e pouca for‑ mação radicular. Esses dentes podem pertencer à série normal, quando ocorre uma erupção precoce do dente decíduo, ou ser um dente supranumerário (ver Capítulo 8 – Doença Cárie, Erosão e Defeitos do Desenvolvimento Dentário). O diagnósti‑ co é facilmente realizado com auxílio do exame radiográfico. Os dentes natais ou neonatais podem ocorrer por uma posi‑ ção superficial do germe dentário, por hereditariedade ou es‑ tar associados à fenda palatina, síndrome de Ellis-van Creveld, síndrome de Hallermann-Streiff, síndrome de Pierre Robin e outras anomalias. Entretanto, estudos robustos não confirma‑ ram essas associações. Geralmente, dentes natais e neonatais apresentam forma normal ou conoide e tamanho normal ou menor. Podem, ocasionalmente, causar dor e recusa do re‑ cém-nascido em alimentar-se, bem como desconforto mater‑ no durante a amamentação. Além disso, a língua do recém‑ -nascido pode apresentar uma ulceração traumática em sua superfície ventral, denominada doença de Riga-Fede3 (ver Ca‑ pítulo 10 – Estomatologia Pediátrica). Contudo, se o dente na‑ tal ou neonatal da série normal apresentar boa implantação, deve ser mantido na cavidade bucal, realizando-se polimento da borda incisal para evitar que tanto a criança quanto a mãe se machuquem durante a amamentação. Entretanto, se o den‑ te apresentar mobilidade e suporte apenas de tecidos moles, deve ser removido por causa da possibilidade de aspiração. Assim, a decisão de extrair um dente natal ou neonatal da sé‑ rie normal deve ser feita individualmente. Cronologia de erupção A cronologia de erupção dos dentes é um indicador para uma série de ocorrências biológicas e pode ser influenciada por di‑ versos fatores genéticos e ambientais. Enquanto a cronologia de erupção dos dentes serve de parâmetro para o crescimento e o desenvolvimento, o estudo da sequência de erupção é rele‑ vante para o acompanhamento do desenvolvimento da oclu‑ são. Alterações na sequência esperada de erupção dos dentes, decíduos ou permanentes, podem predispor, em geral associa‑ das a outros fatores, a determinados tipos de maloclusão. A dentição decídua apresenta um número menor de dentes e, portanto, também menor comprimento do arco dentário. O exame radiográfico ao nascimento já mostra a presença dos elementos dentários em formação no interior da maxila e da mandíbula. A tabela clássica e mais utilizada sobre a cronologia e a se‑ quência de erupção dentária foi por muito tempo a de Logan e Kronfeld.4 Considerando-se a influência de fatores raciais, ge‑ néticos, geográficos, entre outros, bem como a necessidade de
Tratado de Pediatria 4ed.indb 2334
se rever o assunto sob o prisma de metodologias de amostra‑ gem e análise estatísticas mais atualizadas, outros trabalhos foram realizados. Um estudo5 realizado no município de Guarulhos, durante a Campanha Nacional de Multivacinação, com crianças de 0 a 36 meses, observou a cronologia e a sequência de erupção dos dentes decíduos. Foram examinadas 908 crianças, e não hou‑ ve diferença estatisticamente significativa para a média de idade de erupção dos dentes decíduos entre o sexo masculino e o feminino. Os dentes que mostraram maior variação na épo‑ ca de erupção entre meninos e meninas foram o incisivo cen‑ tral e lateral inferiores e o canino superior. A erupção ocorreu significativamente mais tarde nas crianças nascidas de baixo peso do que nas crianças nascidas de peso normal. Com base na metodologia utilizada, estimou-se que 85% das crianças que compuseram a amostra apresentaram a sequência espera‑ da de erupção dos dentes decíduos. A quebra na sequência es‑ perada de erupção foi observada em 14,4% das crianças nasci‑ das de peso normal e em 18,4% das nascidas de baixo peso. Essa diferença não foi estatisticamente significante. A Tabela 1 demonstra a sequência principal ou esperada de erupção en‑ contrada em alguns estudos brasileiros. Estudos investigaram a possível correlação entre a cronolo‑ gia de erupção dos dentes decíduos e os seguintes fatores: sexo, peso ao nascimento e peso para a idade, comprimento ao nasci‑ mento e altura para a idade, tipo de aleitamento (materno ou ar‑ tificial) e renda familiar. A correlação entre o número de dentes erupcionados e os fatores estudados foi testada por meio da téc‑ nica estatística de regressão múltipla. O modelo que mostrou a maior correlação foi o do número de dentes com a altura para a idade da criança. Com base nos resultados, as autoras desenvol‑ veram uma tabela que fornece dados médios estatísticos com o número esperado de dentes erupcionados em função da idade e da altura da criança, correlacionadas às curvas de referência de crescimento proposta por Marcondes.5,6 A Figura 2 pode ser útil no acompanhamento da erupção dos dentes decíduos não apenas em relação à idade, mas tam‑ bém em relação ao crescimento somático geral da criança, es‑ tabelecendo uma conexão entre o atendimento odontológico e médico na primeira infância. Em crianças com fenda labiopalatina, observa-se atraso na erupção dos dentes relacionados com a área da fenda.7 Todos os dentes decíduos são substituídos por dentes per‑ manentes. Os incisivos centrais e laterais, bem como os cani‑ nos decíduos, são substituídos por dentes permanentes de mesmo nome. Já os primeiros e segundos molares decíduos são substituídos por pré-molares na dentição permanente. Uma vez que a dentição permanente é composta por 32 den‑ tes, enquanto a decídua é composta por 20, ocorre a erupção, sem substituição, de três molares permanentes em cada he‑ miarco, os primeiros, segundos e terceiros molares (popular‑ mente denominados sisos). A fase de dentição mista inicia-se por volta dos 6 anos de idade com a erupção dos primeiros molares permanentes infe‑ riores. Em algumas crianças, os primeiros dentes permanen‑ tes a irromper são os incisivos centrais inferiores. Para a maio‑
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Erupção Dentária – Alterações, Eventos Importantes, Cronologia, Fatores Interferentes •
2335
Tabela 1 Cronologia e sequência de erupção dos dentes decíduos segundo estudos com crianças brasileiras Dente
Vono,19728 (Bauru)
Tamburus et al., 19779 (Ribeirão Preto)
Menezes e Peters, 198310 (Piracicaba)
Aguirre e Rosa, 198811 (Florianópolis)
Haddad, 19975 (Guarulhos)
71,81 M F
8,00 8,37
9,59 8,19
8,00 8,20
7,60 7,32
8,16 8,36
51,61 M F
9,47 10,37
11,00 10,46
8,80 10,00
9,37 9,87
10,42 11,36
52,62 M F
11,21 12,17
12,25 12,22
10,40 11,00
10,28 11,43
12,39 13,23
72,82 M F
13,00 14,03
13,85 13,08
10,80 11,20
12,70 12,71
14,24 13,96
54,64 M F
15,62 15,19
16,11 15,19
16,30 16,00
15,09 14,46
16,50 16,07
74,84 M F
16,07 15,85
17,00 15,44
16,40 16,70
15,41 14,57
16,88 16,43
53,63 M F
18,18 18,85
18,98 18,97
18,80 18,60
18,25 18,87
20,26 20,25
73,83 M F
19,13 19,48
19,91 19,42
19,70 19,90
18,82 19,35
20,46 20,98
75,85 M F
25,67 25,11
26,23 25,11
24,60 25,20
26,07 26,09
27,20 27,72
55,65 M F
26,72 26,41
27,98 26,51
25,80 26,30
27,52 27,35
28,84 28,84
Odontograma 51- Incisivo central superior direito 52- Incisivo lateral superior direito 53- Canino superior direito 54- Primeiro molar superior direito 55- Segundo molar superior direito 61- Incisivo central superior esquerdo 62- Incisivo lateral superior esquerdo 63- Canino superior esquerdo 64- Primeiro molar superior esquerdo 65- Segundo molar superior esquerdo
ria das crianças, a dentição permanente está completa aos 12 anos de idade. As Figuras 3 e 4 mostram imagens radiográficas de crianças em fases de dentição decídua e mista. Anormalidades no desenvolvimento da dentição O pediatra é, na maioria das vezes, o primeiro profissional de saúde a acompanhar a criança em seus primeiros anos de vida. Assim, o reconhecimento precoce de alterações de normalida‑ de em relação à dentição, associadas a alterações patológicas sistêmicas ou não, é importante para indicar o tratamento adequado e a melhoria do prognóstico. Numerosas alterações de desenvolvimento dos dentes po‑ dem ocorrer em qualquer fase da formação dentária (odonto‑ gênese). A amelogênese imperfeita decorre de alterações du‑ rante a formação da matriz do esmalte dentário, e sua mineralização decorre de influências sistêmicas ou ambien‑ tais, podendo representar também um distúrbio hereditário. Deficiências nutricionais durante a gestação (vitaminas A, C e D, fósforo e cálcio), distúrbios renais, infecções virais e hipó‑ xia são as causas mais comuns. A amelogênese imperfeita ma‑ nifesta-se por meio de defeitos de esmalte por meio do qual a dentina subjacente amarela é observada. Afeta tanto dentes decíduos quanto permanentes. O esmalte defeituoso está su‑
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71- Incisivo central inferior esquerdo 72- Incisivo lateral inferior esquerdo 73- Canino superior esquerdo 74- Primeiro molar inferior esquerdo 75- Segundo molar inferior esquerdo 81- Incisivo central inferior direito 82- Incisivo lateral inferior direito 83- Canino inferior direito 84- Primeiro molar inferior direito 85- Segundo molar inferior direito
jeito à destruição por causa de abrasão e também tem se mos‑ trado mais suscetível à cárie dentária. A cobertura da coroa com material restaurador pode ser realizada para proteção da dentina, para reduzir a sensibilidade e melhorar a estética dentária. Os defeitos de esmalte podem ser hipocalcificados ou hipo‑ plásicos. A hipocalcificação é uma alteração qualitativa do es‑ malte e é caracterizada por áreas brancas opacas, difusas ou demarcadas. Já a hipoplasia é um defeito quantitativo do es‑ malte e manifesta-se como depressões ou áreas desprovidas de esmalte. Um importante fator etiológico de defeitos de es‑ malte em dentes permanentes é o traumatismo em dentes de‑ cíduos (ver Capítulo 8 – Doença Cárie, Erosão e Defeitos do Desenvolvimento Dentário). Similarmente à amelogênese imperfeita, a dentinogênse imperfeita é um distúrbio decorrente de alteração na minerali‑ zação da dentina, resultando em uma calcificação precária. Há um tipo de dentinogênese imperfeita que ocorre em famílias com osteogênese imperfeita. É transmitida como caráter au‑ tossômico dominante, mas pode ser recessiva se a osteogêne‑ se imperfeita também for. Clinicamente, os dentes apresen‑ tam alteração de cor variando de cinza ao violeta-acastanhado ou castanho. Como a junção entre o esmalte e a dentina é alte‑ rada, pode haver fratura do esmalte. Consequentemente, a
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2336 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 28 ODONTOPEDIATRIA
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Erupção Dentária – Alterações, Eventos Importantes, Cronologia, Fatores Interferentes •
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Figura 3 Radiografia panorâmica de uma criança em fase de dentição decídua. Todos os dentes decíduos apresentam sucessores permanentes em processo de formação. Alguns germes permanentes estão em estágios mais avançados de formação porque irão erupcionar primeiro. É possível verificar que os primeiros molares permanentes (indicados por setas) estão próximos da erupção. Portanto, essa criança tem aproximadamente 6 anos de idade.
Figura 4 Radiografia panorâmica de uma criança em fase de dentição mista. Nesta imagem, todos os incisivos centrais e laterais, tanto superiores quanto inferiores, foram substituídos pelos sucessores permanentes. Essa criança ainda apresenta os caninos, primeiros e segundos molares decíduos. Esses últimos serão substituídos, respectivamente, por primeiros e segundos pré-molares. Os primeiros molares permanentes estão em oclusão, já os segundos molares permanentes estão próximos de erupção. É possível visualizar o germe de 3 terceiros molares (indicados pelas setas).
dentina exposta é mais suscetível à abrasão e pode, assim, desgastar-se até o nível gengival. Os dentes ficam opacos e pe‑ rolados e a imagem radiográfica mostra raízes mais curtas, câ‑ maras pulpares e canais radiculares reduzidos ou ausentes. Acomete tanto a dentição decídua quanto a permanente e exi‑ ge um tratamento complexo, com a confecção de restaurações indiretas para a reconstrução total do dente.8
meio de exames radiográficos. Frequentemente, supranume‑ rários atrapalham a posição e a erupção dos dentes normais adjacentes. Assim, a assimetria na erupção dentária e a reten‑ ção prolongada de dentes decíduos são achados clínicos que podem estar associados à presença de dentes a mais. Uma ca‑ racterística clínica muito comum na ocorrência de mesiodens é a presença de amplos espaços (diastemas) entre os incisivos centrais superiores. Contudo, nesse caso, as possibilidades de o diastema ser resultante da inserção do freio labial superior ou de uma característica da criança devem ser descartadas. Os dentes supranumerários também ocorrem com displasia clei‑ docraniana e na área de fendas palatinas. O tratamento é ci‑ rúrgico com remoção do dente supranumerário e, frequente‑ mente, é necessário tratamento ortodôntico para correção da posição dentária (ver Capítulo 8 – Doença Cárie, Erosão e De‑ feitos do Desenvolvimento Dentário). A hipodontia (ausência de um ou mais dentes) é mais fre‑ quente na dentição permanente, mas quando há ausência de dente decíduo, normalmente ocorre ausência do sucessor per‑ manente. Os terceiros molares são os dentes mais afetados e, posteriormente, os segundos pré-molares e os incisivos laterais. A oligodontia é uma subdivisão da hipodontia e indica au‑ sência de 6 ou mais dentes e costuma afetar mais molares per‑ manentes. Alterações genéticas, traumatismo dentoalveolar, agentes químicos e radioterapia são os fatores associados à ocorrência de hipodontia. O tratamento dessas ausências den‑ tárias depende do número de dentes ausentes, da localização da região acometida, do espaço existente e da idade da criança. A correção ortodôntica, a confecção de próteses e a colocação de implantes são os tratamentos mais realizados. Já a anodontia refere-se à ausência de desenvolvimento dentário. Quando o número de ausências dentárias é alto, o paciente deve ser avaliado para diagnóstico quanto à displasia ectodérmica.8,9,10
Anormalidades de número dos dentes Tanto a falta quanto o excesso de dentes podem ocorrer. Essas anomalias numéricas podem ser classificadas em hiperdontia, hipodontia, oligodontia e anodontia. Quando a lâmina dental produz uma quantidade de germes dentários maior que o nor‑ mal, ocorrem dentes supranumerários (hiperdontia). A região mais frequentemente acometida é entre os incisivos centrais superiores (Figura 5). O supranumerário nessa região é deno‑ minado mesiodens ou mesiodente. O diagnóstico de dentes supranumerários, quando não há erupção, é confirmado por
Figura 5 Imagem radiográfica de dente supranumerário entre incisivos centrais superiores.
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Anormalidades de forma A geminação é definida como um único dente aumentado. A quantidade de dentes é normal quando o dente com a altera‑ ção é considerado como um, ou seja, sem alteração de número. É causada pela tentativa do germe dentário em dividir-se, ori‑ ginando um dente com coroa grande, dupla ou bífida, mas que compartilha a raiz e o canal radicular (Figura 6). Já a fusão dentária é a união de dois germes distintos. Assim, a conta‑ gem dentária revela ausência de dente quando o dente com a alteração é contado como um. Os dentes acometidos apresen‑ tam raízes e canais radiculares distintos. A geminação e a fu‑ são ocorrem tanto na dentição decídua quanto na permanen‑ te, com maior prevalência na primeira. Incisivos e caninos são os dentes mais frequentemente acometidos. Muitas vezes, a forma irregular dos dentes acometidos predispõe à cárie den‑ tária, à doença periodontal e ao comprometimento estético. Suspeita-se que a etiologia dessas alterações está relacionada a traumatismos, doenças sistêmicas ou predisposição genéti‑ ca. A maior parte dos casos não requer tratamento, principal‑ mente na dentição decídua. Já em casos de fusão na dentição permanente, o tratamento depende do grau de fusão, poden‑ do ser realizada a separação, a restauração, o ajuste oclusal, a exodontia ou simplesmente o acompanhamento. O tamanho dos dentes varia entre as pessoas. Entretanto, a presença de dentes excessivamente pequenos (microdontia) ou maiores (macrodontia) é uma alteração de normalidade. Incisivos laterais superiores permanentes são os dentes mais frequentemente acometidos pela microdontia, que se apre‑ sentam em forma cônica, com ponta afiada, chamados de dentes conoides. Seu tratamento, muitas vezes, exige a corre‑ ção ortodôntica associada à restauração protética do dente. A macrodontia difusa tem sido vista em associação com o gigan‑ tismo hipofisário, homens XYY e hiperplasia pineal com hipe‑ rinsulinismo. Já a macrodontia isolada ocorre mais em incisi‑ vos e caninos, mas é também observada em segundos
pré-molares e terceiros molares, ocorrendo de modo bilateral. O tratamento não é necessário, mas, se desejado por razões estéticas, pode ser realizada plastia dentária. Tanto a micro‑ dontia quanto a macrodontia isolada têm a hereditariedade como principal fator etiológico. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Compreender o processo de erupção dentária. • Identificar alterações do processo de erupção dentária. • Conhecer a cronologia de erupção de dentes decíduos e permanentes. • Identificar alterações no processo de desenvolvimento do dente. • Identificar alterações de normalidade no número de dentes. • Identificar alterações de normalidade na forma dos dentes.
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CAPÍTULO 3
HIGIENE BUCAL COM USO DE FLUORETO – MEDIDAS DE PREVENÇÃO Silvia José Chedid Danilo Blank Jaime Aparecido Cury
Introdução A cárie dentária é a doença crônica mais comum na infância, apesar do conhecimento existente de como ela ocorre e como poderia ser controlada. No Brasil, por mais que a prevalência de cárie dentária tenha diminuído bastante nos últimos anos, ainda é um grande problema de saúde pública, pois cerca de metade dos pré-escolares têm ao menos um dente decíduo ca‑ riado, e a prevalência média é de 2,4 dentes cariados, perdidos ou obturados por criança.1,2 A ocorrência de cárie na fase da dentadura decídua tem im‑ pacto negativo na qualidade de vida da criança, bem como no seu desenvolvimento, uma vez que impossibilita ou restringe a sua alimentação. A adição de açúcar (sacarose) ao leite das mamadeiras ou seu uso com suplementos açucarados em alta frequência é a principal razão de cárie na primeira infância. Em comparação com os dentes permanentes, o esmalte do dente decíduo é mais solúvel a ácidos, fazendo as lesões de cá‑ rie se desenvolverem mais rapidamente nesses dentes. A “cárie de mamadeira” é um processo típico e pode des‑ truir toda a estrutura da coroa do dente de leite, causando dor, processos infecciosos e dificuldade de alimentação. O risco de cárie em crianças menores de 5 anos tem como um dos principais determinantes a influência dos pais no de‑ senvolvimento dos hábitos do bebê. Como as visitas médicas nessa idade costumam preceder o primeiro atendimento da criança pelo dentista, o pediatra tem um papel importante na orientação dos pais sobre como a cárie dentária pode ser con‑ trolada. Um dos tópicos fundamentais a serem enfatizados é o efeito do fluoreto no controle da cárie, o que torna a higiene dental com dentifrício fluoretado a medida mais racional atualmente do que suplementos fluoretados por via oral, reco‑ mendados no passado.3 Cárie dentária e efeito do fluoreto Os conceitos sobre cárie dentária e de como o fluoreto é capaz de interferir no seu desenvolvimento sofreram profundas mu‑
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danças nas últimas décadas e têm importantes implicações clí‑ nicas. Cárie já foi conceituada como uma doença não só infec‑ ciosa como transmissível e preconizava-se que o fluoreto deveria ser ingerido durante a formação dos dentes para que eles se tornassem resistentes à cárie.4 Cárie, no presente, é trata‑ da pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma doen‑ ça não comunicável, que tem a mesma causa comum de outras doenças, como diabete, obesidade e doenças cardiovasculares. As bactérias que provocam cárie são naturais da boca de to‑ dos os indivíduos; aderem e acumulam-se nas superfícies dentais na forma de biofilmes (antigamente chamados de pla‑ ca dental). Embora o acúmulo de biofilme sobre determinadas superfícies dentárias seja o fator necessário para o processo de desenvolvimento de lesões de cárie, isso não é suficiente. Açú‑ cares da dieta são fatores determinantes negativos para o de‑ senvolvimento da doença e, entre os vários carboidratos, saca‑ rose é o mais cariogênico. Além de ser facilmente fermentada, a sacarose altera a estrutura do biofilme, tornando-o mais ca‑ riogênico. Assim, não é surpresa o efeito devastador que ocor‑ re com os dentes das crianças quando as mamadeiras são ado‑ çadas com sacarose (lactose, o açúcar natural do leite não tem essas propriedades). Dessa maneira, cárie é uma doença biofilme-açúcar-depen‑ dente, que provoca uma destruição ácida progressiva da estru‑ tura mineral dos dentes, originando as lesões. Essas lesões não são visíveis no início do processo, progridem lentamente, tornam-se visíveis através de uma opacidade localizada nas faces dentais onde há acumulo de biofilme e, por fim, a super‑ fície da lesão fratura, gerando uma cavidade (“o buraco”). Cá‑ rie como doença não é passível de ser erradicada, mas as le‑ sões de cárie podem ser paralisadas ou revertidas. Para o controle de cárie, é fundamental interferir com os fatores res‑ ponsáveis pela doença, ou seja, é necessário desorganizar, pela escovação, os biofilmes que se formam naturalmente so‑ bre as superfícies dentais e disciplinar a exposição a açúcares. Entretanto, em virtude das limitações da limpeza dos den‑ tes e da dificuldade de haver restrição absoluta a carboidratos
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da dieta, o uso de fluoretos é uma estratégia que tem se mos‑ trado indispensável para o controle de cárie. Há vários meios de usar fluoreto, e o mais racional é aliar a desorganização pe‑ riódica dos biofilmes dentais com a aplicação de fluoreto, o que pode ser feito simplesmente escovando os dentes com pasta fluoretada. Dinâmica do desenvolvimento da cárie e efeito do fluoreto No passado, considerou-se que seria necessário e indispensá‑ vel ingerir fluoretos durante a formação dos dentes para ter dentes resistentes aos ácidos produzidos pelos biofilmes den‑ tais quando ocorresse ingestão de açúcar. Foi considerado que o efeito anticárie era sistêmico (pré-eruptivo), mas esse erro conceitual ainda persiste, pois medicamentos fluoretados es‑ tão à venda no mercado, hoje com apelo promocional de que flúor é um micronutriente com ingestão diária recomendada. O conceito atual é que o fluoreto age localmente na cavida‑ de bucal interferindo com o processo de desenvolvimento de lesões de cárie. Elas ocorrem por um desequilíbrio entre os fe‑ nômenos de desmineralização e remineralização a que os den‑ tes são submetidos quando o biofilme é exposto a açúcares da dieta, e o fluoreto tem um papel importante nesse equilíbrio, contrabalançando o efeito negativo dos ácidos produzidos. Assim, até que o pH não seja inferior a 5,5 (Figura 1), a sali‑ va evita que o dente seja dissolvido, por ter íons cálcio e fosfa‑ to em concentrações supersaturantes em relação à solubilida‑ de do mineral hidroxiapatita dos dentes. Entretanto, quando determinados açúcares da dieta, como sacarose, glicose, fru‑ tose e maltose, são ingeridos, penetram no biofilme, onde são rapidamente metabolizados em ácidos, que reduzem rapida‑ mente o pH e o mantêm abaixo de 5,5 por um período de 20 a 40 minutos, antes de retornar ao normal. Enquanto o pH fica abaixo de 5,5 (Figura 2), o dente vai perdendo seus minerais na forma de íons cálcio (Ca) e fosfato (Pi) para a cavidade bu‑ cal, sofrendo o fenômeno de desmineralização (Des-). Por ou‑ tro lado, assim que o pH atinge valores maiores que 5,5, a sali‑ va tende a repor os minerais perdidos e o dente sofre o chamado fenômeno de remineralização (Re-). Como a quanti‑
dade reposta pela Re- é menor que a perdida pela Des-, a repe‑ tição desse processo “n” vezes ao dia por “n” dias leva a uma perda líquida de minerais dos dentes, gerando lesões de cárie nas faces cervical, oclusal e interproximal do dente, onde os biofilmes se acumulam. Entretanto, o equilíbrio entre Des- e Re- muda drastica‑ mente se o fluoreto estiver presente na cavidade bucal, porque ele interfere com esses fenômenos, reduzindo a Des- e ativan‑ do a Re-. Trata-se de um efeito físico-químico, porque quando o pH no biofilme cai a valores menores que 5,5, mas maiores que 4,5 (o usual), e o fluoreto está presente no biofilme, ao mesmo tempo que o dente perde minerais na forma de hidro‑ xiapatita (HA), parte dos Ca e Pi voltam para o dente na forma de fluorapatita (FA) (Figura 3). Isso ocorre porque, em pH in‑ ferior a 5,5, o meio fica subsaturante em relação à HA, que so‑ fre dissolução, mas é supersaturante em relação à FA (exceto com pH abaixo de 4,5, o que é raríssimo) e, assim, esse mine‑ ral precipita no esmalte. Como resultado, na presença de fluoreto, há redução da Des- (Figura 3). Em acréscimo, assim que o pH retorna a valo‑ res maiores que 5,5, o fluoreto presente ativa cerca de 2 a 3 ve‑ zes a capacidade da saliva de repor os minerais perdidos pelos dentes, sendo um potente ativador do fenômeno de Re-. As‑ sim, o fluoreto reduz a velocidade de progressão das lesões de cárie, mas não impede que elas se desenvolvam, porque não interfere com os fatores etiológicos responsáveis pela doença, isto é, o fluoreto não impede que as bactérias bucais formem biofilmes ou que eles transformem açúcares em ácidos. Assim, para um efeito máximo do controle de cárie, é imprescindível que os dentes sejam escovados regularmente usando dentifrí‑ cio fluoretado e que o consumo de açúcar seja disciplinado. Nesse contexto, dentifrício é considerado o meio mais racio‑ nal de uso de flúor. Higiene dental com dentifrício fluoretado Dentifrícios fluoretados são eficientes para o controle de cárie porque, ao mesmo tempo em que os biofilmes dentais são de‑ sorganizados pela escovação, o flúor é liberado na cavidade bucal para interferir com o processo de cárie. Ele é eficaz para
Manutenção da estrutura mineral do esmalte pela saliva PO43++ Ca PO43++ Ca
PO43++ Ca PO43++ Ca
pH >5,5 Esmalte Ca
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Açúcar
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PO43-
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Dentina
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Ca + PO ++
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Superfície dental bem escovada
Biofilme Gengiva inflamada
Dinâmica da cárie na ausência do íon flúor
Polpa
Gengiva sadia
Figura 1 Em pH igual ou maior que 5,5, a saliva encontra‑ -se supersaturada em relação aos minerais do dente, e a tendência físico-química é de o esmalte ganhar íons Ca e Pi do meio na forma de hidroxiapatita (HA), exercendo sua propriedade remineralizante.
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Ca + PO43++
Biofilme
H+ PO++43Ca HA PO4++3Ca
Gengiva inflamada
pH < 5,5 Esmalte Dentina
HA
++ Ca + PO43-
Superfície dental bem escovada
Polpa
Gengiva sadia
Figura 2 Quando da ingestão de açúcar e pH inferior a 5,5, a saliva não mais consegue proteger o esmalte, e o dente perde Ca e Pi para o meio, sendo dissolvido.
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Higiene Bucal com Uso de Fluoreto – Medidas de Prevenção •
controlar cárie de esmalte tanto de dentes decíduos como per‑ manentes. Seu uso está baseado em forte evidência de benefí‑ cio anticárie quando os dentes são escovados com um denti‑ frício que contenha flúor em comparação com um não fluoretado. Entretanto, não basta o dentifrício ser fluoretado; ele precisa ter uma concentração mínima de fluoreto para ga‑ rantir sua eficácia anticárie. Com base na melhor evidência científica, os dentes devem ser regularmente higienizados com um dentifrício contendo no mínimo 1.000 ppm F (1 mg de flúor solúvel por g de creme dental). Outro fator importante para a eficácia anticárie do dentifrí‑ cio fluoretado é sua frequência de utilização. Assim, os dentes devem ser escovados pelo menos 2 vezes/dia com um denti‑ frício fluoretado a partir da erupção do primeiro dente na cavi‑ dade bucal. Além da frequência de escovação, outro fator rele‑ vante é o horário em que os dentes são escovados. Escovar os dentes toda manhã tem como objetivo inibir as Des- que ocor‑ rem durante o dia quando das exposições a açúcares da dieta e escovar à noite antes de dormir ajuda a reparar as lesões de cá‑ rie pela ativação do fenômeno salivar de Re- dental. Enquanto a escovação dental pode paralisar a progressão de lesões de cá‑ rie, a reparação dessas lesões só ocorre se os dentes forem es‑ covados com um dentifrício fluoretado. Mesmo uma escova‑ ção deficiente realizada não só pelas crianças, mas pelos adultos e idosos, necessita de uma disciplina do consumo de açúcar da dieta. Nesse sentido, trabalhos experimentais mos‑ tram que, na ausência de uso de fluoreto no dentifrício, lesões de cárie se desenvolvem nos dentes após apenas 3 exposições por dia ao açúcar. Entretanto, quando dentifrício fluoretado está sendo usado, as Des- só ocorrem após 7 exposições diá‑ rias à sacarose. Dentifrício fluoretado e fluorose dentária Fluorose dentária é o único efeito sistêmico decorrente da in‑ gestão de flúor durante o período de mineralização e desenvol‑ vimento dos dentes. O ameloblasto, célula responsável pela formação do esmalte dental, secreta uma matriz contendo 25% de proteínas, as quais são reabsorvidas durante a minera‑ lização do esmalte, que, quando maduro, tem menos que 1% Dinâmica da cárie na ausência do íon flúor F
PO43-
_
Ca
F Ca
F
_
F
_
_
pH < 5,5; pH > 4,5
H+++ Ca _ FA ++ Ca HA PO_43-
Esmalte
++
++
F
Açúcar
++
_
Ca PO43-Ca ++
F
PO43-++ Ca
Biofilme
F
Gengiva inflamada
Dentina
FA HA
_
Ca + F ++ Ca + PO43++
Superfície dental bem escovada
Polpa
Gengiva sadia
Figura 3 Na presença do íon flúor (F-), ocorre uma redução da desmineralização porque parte do mineral perdido na forma de hidroxiapatita (HA) volta para o dente na forma de fluorapatita (FA).
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de proteína. O fluoreto ingerido e absorvido inibe a reabsorção de proteínas. Quando ingerido em doses equivalentes às en‑ contradas na água fluoretada em concentração ótima (0,7 ppm F para a maioria das cidades brasileiras), o esmalte for‑ mado torna-se mais poroso e isso clinicamente se reflete em opacidades. Como é um fenômeno sistêmico e crônico, as al‑ terações provocadas dependem não só da dose (mg F/kg/dia), mas também da sua duração. As opacidades são difusas e afe‑ tam dentes formados no mesmo período. Nos casos mais le‑ ves de fluorose, são observadas linhas brancas finas transver‑ sais e paralelas pouco perceptíveis na coroa dos dentes permanentes. Nos casos moderados, essas linhas fundem-se e tornam o aspecto esbranquiçado do esmalte mais visível. Nos casos mais graves (ingestão de água na concentração 2 vezes maior que a ótima), o esmalte é bastante poroso, podendo ad‑ quirir pigmentações durante a maturação pós-eruptiva e dei‑ xando o esmalte acastanhado e escuro. Dados do Brasil e dos EUA – onde as crianças estão expos‑ tas ao efeito sistêmico da ingestão voluntária de flúor pela água de abastecimento público otimamente fluoretada e pela ingestão inadvertida de dentifrício fluoretado – mostram que a maior prevalência encontrada de fluorose é de grau leve, que não compromete a qualidade de vida dos acometidos. Na rea‑ lidade, a cárie compromete mais a qualidade de vida das crian‑ ças do que a fluorose. Como a cárie continua sendo um proble‑ ma na infância e como não é possível predizer se uma criança terá ou não cárie no futuro, dentifrício fluoretado passou a ser recomendado a todas as crianças a partir da irrupção do pri‑ meiro dente. Além disso, o uso de uma pequena quantidade de dentifrí‑ cio fluoretado por crianças em idade de risco para fluorose está respaldada pelas recomendações de academias científi‑ cas e entidades de pediatria e de odontopediatria. Recomendações de uso de dentifrício fluoretado Tendo em vista que não é possível prever se uma criança terá ou não cárie no futuro, que os benefícios do uso de pasta fluo‑ retada estão baseados em evidências e que fluorose dental de‑ corrente do uso de dentifrício não é uma preocupação em ter‑ mos de saúde pública, os dentifrícios fluoretados têm sido recomendados por instituições de saúde e pesquisa do mundo inteiro. No Brasil, o uso de dentifrício fluoretado de no míni‑ mo 1.000 ppm F é recomendado pelo Ministério da Saúde,5 pela Associação Brasileira de Odontopediatria,6 pela Associa‑ ção Brasileira de Odontologia de Promoção de Saúde (ABO‑ PREV) e pela Sociedade Brasileira de Pediatria.7 No âmbito internacional, dentifrício fluoretado é recomen‑ dado pela OMS e, nos EUA, ele é recomendado pela Associa‑ ção Dental Americana (ADA) e pelas Academias Americanas de Pediatria (AAP) e de Odontopediatria (AAPD).2,8,9 A ADA, AAP e AAPD recomendam o uso de dentifrício fluoretado para todas as crianças a partir da irrupção do primeiro dente em uma quantidade de um grão de arroz até os 3 anos (Figura 4) e um grão de ervilha a partir de então2 (Figura 5).
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A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda: • uso de creme dental fluoretado com, no mínimo, 1.000 ppm de flúor, 2 vezes/dia, como coadjuvante da limpeza dos den‑ tes de todas as crianças; • enquanto a criança não tiver condições de se autocuidar, o uso de dentifrício fluoretado em pequenas quantidades é de responsabilidade dos pais ou cuidadores, garantindo, assim, segurança quanto ao risco de fluorose dentária; • dessa forma, recomenda-se que sejam utilizadas quantidades similares a um “grão de arroz cru” ou apenas uma “lambuza‑
dela” (0,15 g) de dentifrício fluoretado para a limpeza dos dentes de crianças menores de 2 anos de idade.
A quantidade de pasta a ser usada deve ser coerente com o nú‑ mero de dentes a serem escovados (Figura 6) e é uma medida segura (Tabela 1). Deve ser enfatizado que fluorose é um efeito sistêmico da fração do flúor ingerido que é absorvido, isto é, depende da biodisponibilidade do fluoreto presente na formulação do cre‑ me dental. Nesse sentido, há creme dental que é usado por to‑ dos de uma família (geralmente de menor custo) e há os mais consumidos por crianças (geralmente de maior custo). Os cre‑ mes dentais familiares são formulados com MFP/CaCO3 e contêm 1.500 ppm de F total, e os dirigidos ao público infantil contêm 1.100 ppm F e são formulados com NaF/SiO2. Embora os cremes dentais familiares contenham maior concentração de flúor total, eles possuem a mesma concentração de flúor solúvel (biodisponível) e, portanto, a segurança quanto ao ris‑ co de fluorose é a mesma. Outro fator a ser considerado quanto ao risco de fluorose é o intervalo entre a ingestão de alimentos e a escovação com dentifrício fluoretado, porque se fluoreto for ingerido com o
Figura 4 Dentifrício fluoretado em quantidade de um grão de arroz.
A
Figura 5 Dentifrício fluoretado em quantidade de um grão de ervilha.
B
Figura 6 Relação entre quantidade de dentifrício utilizada para a higiene bucal de bebês e o número de dentes irrompidos. As fotos mostram a quantidade aplicada em uma escova para bebês. Uma quantidade menor do que 0,05 g é suficiente para a higienização de dois dentes (A). A quantidade de 0,1 g (“grão de arroz”) de dentifrício parece até demasiada considerando a área de dentes a ser higienizada (B).
Tabela 1 Segurança no uso de dentifrício fluoretado nos primeiros anos de vida considerando o risco de fluorose dental10 Idade
Peso
Dentes já irrompidos
Quantidade de dentifrício utilizada por escovação
Quantidade de F solúvel por escovação
Dose diária para 2 escovações/dia*
% em relação à dose limite**
1 ano
10 kg
De 4 a 8 incisivos
0,05 g (semelhante à metade de um grão de arroz)
0,055 mg
0,011 mg F/kg/dia
16%
2 anos
12,5 kg
Todos os incisivos, primeiros molares, caninos
0,1 g (semelhante a um grão de arroz)
0,11 mg
0,0176 mg F/kg/ dia
25%
5 a 6 anos
20 kg
Todos os decíduos
0,3 g (semelhante a um grão de ervilha)
0,33 mg
0,033 mg F/kg/dia
47%
*Considerando que 100% do dentifrício utilizado na escovação tenha sido ingerido, sem mesmo descontar o que fica retido na escova ou que não tenha sido absorvido. **0,07 mg F/kg/dia, considerada a dose limite em relação ao desenvolvimento de fluorose em grau esteticamente aceitável.
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Higiene Bucal com Uso de Fluoreto – Medidas de Prevenção •
estômago vazio, haverá 100% de absorção. Se ingerido até 15 minutos após o café da manhã ou do almoço/jantar, a absor‑ ção é reduzida de 30 a 40%. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Indicar o uso de dentifrício fluoretado para escovar os dentes assim que eles irromperem na cavidade bucal. • Orientar que, para maior segurança em termos do risco de fluorose e enquanto as crianças não tiverem condições de se autocuidar, é responsabilidade dos cuidadores supervisionarem a escovação dental das crianças. • Orientar que, em termos de eficácia anticárie e segurança quanto à fluorose, a escovação deve ser realizada com uma pequena quantidade de dentifrício de concentração convencional (1.000 a 1.500 ppm F), em vez de usar um não fluoretado ou de baixa concentração de flúor.
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CAPÍTULO 4
ALEITAMENTO MATERNO – BENEFÍCIOS PARA A SAÚDE BUCAL Fabian Calixto Fraiz Lélia Cardamone Gouvêa Sylvia Lavinia Martini Ferreira
Introdução Aleitamento materno: desenvolvimento do A odontologia atual visa, por meio da educação em saúde, a paladar e prevenção da cárie dentária estimular a família na construção de uma postura de vida du‑ Na vida intrauterina, a boca já cumpre funções vitais como suc‑ rante a infância que seja associada à saúde e que provavel‑ ção e deglutição do líquido amniótico. Ao nascimento, o bebê tem mente permanecerá na fase adulta. Para isso, é necessário es‑ seu sistema neuromuscular com capacidade de cumprir funções tabelecer com a família uma relação de confiança, humanizada básicas como a respiração, a sucção e a deglutição do leite que re‑ e colaboradora.1 O estímulo ao aleitamento materno constitui cebe pela amamentação. O desenvolvimento funcional e morfo‑ um importante passo para atingir esse objetivo. lógico das células do paladar, incluindo o sistema olfatório, inicia‑ A ampliação da equipe de profissionais que promove o aleita‑ -se no 1º trimestre de vida intrauterina (IU) e, ao nascimento, os mento materno foi prevista pela Lei nº 11.265 que, em seu artigo sistemas gustatório e de olfato já estão funcionalmente ativos. 21, diz: “Constitui competência prioritária dos profissionais de Atualmente, está bem estabelecido que recém-nascidos saúde estimular e divulgar a prática do aleitamento materno ex‑ reagem aos cinco sabores reconhecidos: azedo, amargo, salga‑ clusivo até os seis meses e continuado até os dois anos de idade do, doce e umami. As reações aos sabores modificam-se du‑ ou mais”.2 A inclusão de todos os profissionais de saúde nesse rante toda a vida. Na infância, geralmente, ocorre uma mani‑ esforço exige que a abordagem dispersa e fragmentada, caracte‑ festação de prazer associado ao sabor doce; já o azedo e o rística da formação profissional em saúde, seja superada em amargo geram reações negativas.4 busca de uma unidade de discurso. Essa unidade deve conside‑ Ao nascimento, podem ser observadas expressões faciais rar a diversidade de olhares e conhecimentos. Para isso, tem de prazer em resposta a estímulos gustatórios com soluções que superar os limites disciplinares e compartilhar uma mesma de sacarose.5 Acredita-se que as expressões de preferências lógica e linguagem. O novo discurso que emerge desse processo alimentares no bebê indiquem uma direção biológica para ali‑ apresenta uma síntese transdisciplinar.3 No caso da promoção mentos com densidade proteica ou calórica e uma aversão ao de aleitamento materno, a concordância entre as recomenda‑ alimento potencialmente venenoso e tóxico. Atenção especial ções dos diversos atores que participam desse movimento é deve ser dada a esses aspectos, visto que, nesses primeiros fundamental, pois transmite uma mensagem abrangente, clara meses, as manifestações de preferência da criança podem es‑ e coerente. Dessa forma, apresenta maior probabilidade de im‑ timular o aumento de oferta de produtos com açúcar. pacto positivo na prevenção do desmame precoce. É difícil explicar os mecanismos associados à preferência Nesse contexto, a equipe odontológica é estratégica, visto alimentar. No campo anatômico, sabe-se que, quando compa‑ que possui amplo conhecimento sobre o crescimento e o de‑ rada com adultos, as crianças apresentam uma densidade senvolvimento faciais e sobre as consequências do uso de ma‑ maior de papilas fungiformes e de botões gustativos por área madeiras, de hábitos não nutritivos e de uma dieta inadequa‑ de língua, embora o número total de papilas fungiformes seja da. Além disso, muitas mães procuram a atenção odontológica menor.6 Reconhece-se que a preferência alimentar, inicial‑ desde os primeiros momentos de vida, especialmente no Bra‑ mente associada à predisposição genética, se modifica por fa‑ sil, onde a odontologia para bebês é uma realidade. tores ambientais. Ela sofre grande influência do contexto fa‑ Em capítulos anteriores, já foram discutidas as vantagens miliar e social, e tanto a oferta precoce como a exposição do aleitamento materno para a criança e a mãe. Neste capítulo, repetida podem interferir na aceitação de um alimento. serão aprofundados os aspectos relativos aos benefícios do Crianças amamentadas aceitam mais facilmente novos ali‑ aleitamento materno para a saúde bucal. mentos que aquelas não amamentadas, pois a criança é ex‑
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Aleitamento Materno – Benefícios para a Saúde Bucal •
posta precocemente a variações de sabores e aromas do leite materno, o qual varia de acordo com a dieta da mãe. Isso pode ser um facilitador para a introdução de uma maior variedade alimentar futura, na qual estejam incluídos alimentos saudá‑ veis como frutas e verduras7 (ver Capítulo 5 – Alimentação, saúde bucal e função mastigatória). O aconselhamento nutricional no 1º ano de vida direciona‑ do para a promoção do aleitamento materno e redução do consumo de açúcar (10 passos para uma alimentação saudá‑ vel) diminui a incidência e a severidade de cárie dentária.8 Crianças com má nutrição são mais propensas ao desenvolvi‑ mento de lesões de cárie.9 Além disso, o aleitamento materno promove uma melhor condição de saúde e, consequentemen‑ te, diminui a possibilidade de desenvolvimento de defeitos do esmalte nos dentes que estão em formação nesse período. A cárie dentária em crianças de pouca idade permanece como um dos maiores desafios clínicos para a odontologia. Nesses primeiros anos, essa doença, que em outras fases do ci‑ clo de vida tem uma evolução lenta, pode levar rapidamente a grande destruição dentária, comprometendo o crescimento e o desenvolvimento. São frequentes os quadros de dor e sofri‑ mento associados a essa doença. O processo saúde-doença cárie dentária nesse grupo é for‑ temente mediado por fatores alimentares e comportamentais. A ausência ou deficiência na higiene bucal e a adoção de pa‑ drão alimentar com alto conteúdo de carboidratos fermentá‑ veis são os aspectos mais intimamente ligados à velocidade de evolução da doença, sobretudo quando o consumo de carboi‑ dratos fermentáveis ocorre em alta frequência, associado ao sono e via mamadeira. A presença de sacarose na dieta do bebê facilita a implanta‑ ção de uma microbiota cariogênica, principalmente a coloni‑ zação da superfície dental por estreptococos do grupo mutans, o mais importante fator microbiológico envolvido no processo saúde-doença cárie dentária. O consumo frequente de sacaro‑ se garante aos estreptococos do grupo mutans substrato para a produção de glicanos extracelulares e para a diminuição do pH da placa dental a um nível em que sua capacidade acidúrica represente significativa vantagem ecológica (ver Capítulo 8 – Doença cárie, erosão e defeitos do desenvolvimento dentário). O consumo de alimentos cariogênicos durante o sono é preocupante porque os mecanismos de autolimpeza bucal (fluxo salivar e limpeza muscular ativa) estão diminuídos, propiciando uma permanência bucal incomum de substratos para metabolismo bacteriano. A mamadeira normalmente está associada ao consumo de alimentos cariogênicos. O aleitamento materno, na medida em que inibe o uso da mamadeira e, consequentemente, a possibilidade de utilização da sacarose na dieta do bebê, apre‑ senta uma grande contribuição para a prevenção de cárie den‑ tária. A partir da lactose, açúcar do leite, as bactérias do biofilme dental são capazes de produzir ácido com diminuição do pH, no entanto, sem atingir níveis críticos para a perda mineral do esmalte. Apesar disso, muitos clínicos relatam a associação entre aleitamento materno e cárie dentária, embora a literatu‑
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ra não demonstre evidências científicas nessa linha. Duas hi‑ póteses podem ser levantadas para compreender esse relato clínico: a primeira e mais provável é a ingestão de sacarose concomitantemente ao aleitamento materno. Nesse caso, é a sacarose proveniente de outra fonte alimentar que estaria re‑ lacionada à cárie dentária, e não a lactose do leite. A segunda hipótese é a presença de dentes com exposição de dentina, nos quais o pH crítico para perda mineral é mais alto. Cabe res‑ saltar que a principal causa de exposição de dentina está rela‑ cionada a crianças que apresentem defeitos de desenvolvi‑ mento do esmalte, o que é pouco frequente. A adoção de medidas simples, como a higiene bucal com flúor e a não utilização de sacarose, são suficientes para preve‑ nir o desenvolvimento de cárie em bebês, mesmo naqueles que apresentam defeitos de desenvolvimento do esmalte. Além disso, após a erupção dos dentes deve-se ir reduzindo a alimentação durante o sono. Já a correlação entre o uso da mamadeira e a presença de cárie está confirmada por várias pesquisas. A mamadeira é amplamente utilizada para a alimentação infantil, sendo alto o consumo de sacarose por meio dela, o que a transforma em um dos fatores mais importantes para o desenvolvimento de cárie dentária em crianças de pouca idade. Além disso, o uso da mamadeira parece estar associado com um padrão com‑ portamental e um estilo de vida que apresentam diversos fato‑ res capazes de contribuir para a determinação de um perfil de alto risco à cárie. Embora simples, as recomendações para a manutenção de saúde bucal representam um desafio para a família, pois mui‑ tos dos hábitos inadequados são culturalmente enraizados e de difícil modificação. Nesse aspecto, o aleitamento materno também é um fator importante. O contato físico e psicológico entre mãe e filho trazem repercussões positivas para todo o desenvolvimento emocional da criança, fortalecendo o víncu‑ lo mãe-filho. Um vínculo mãe-filho forte facilita as ações de educação em saúde, fundamentais para a promoção e manu‑ tenção da saúde bucal. Em resumo, o aleitamento materno apresenta diversos as‑ pectos que contribuem para a prevenção da cárie dentária: co‑ labora para a manutenção da saúde (e, assim, interfere positi‑ vamente na qualidade do tecido dental formado), evita a utilização de mamadeira (a qual está associada a um alto con‑ sumo de alimentos cariogênicos), melhora a aceitação futura de alimentos saudáveis e fortalece o vínculo mãe-filho (o que é um facilitador para a adoção de medidas domiciliares de con‑ trole da dieta e de higiene bucal) (ver Capítulo 3 – Higiene bu‑ cal com uso de fluoreto – medidas de prevenção e Capítulo 8 – Doença cárie, erosão e defeitos do desenvolvimento dentário). Aleitamento materno e desenvolvimento dento-orofacial O aleitamento materno promove um adequado equilíbrio neu‑ romuscular, estimulando um desenvolvimento facial mais harmônico e prevenindo as disfunções orofaciais. Os movimentos de sucção e ordenha realizados pelo bebê para extrair o leite da mama ocorrem de forma sinérgica e exi‑
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gem coordenação muscular e respiratória. Um dos aspectos mais importantes para o apropriado desenvolvimento facial é a respiração nasal, sendo que as posturas da língua e dos lá‑ bios durante a amamentação viabilizam uma correta respira‑ ção e diminuem a possibilidade de estabelecimento de deglu‑ tição atípica. Além da filtragem e umidificação do ar, a respiração nasal também contribui para o crescimento maxi‑ lar10 (ver Capítulo 5 – Alimentação, saúde bucal e função mas‑ tigatória e Capítulo 7 – Distúrbios de oclusão – reconhecimen‑ to, prevenção, orientação). Os recém-nascidos apresentam a mandíbula em uma posi‑ ção distal em relação à maxila. Os movimentos mandibulares anteroposteriores realizados durante a amamentação são fa‑ tores de estímulo para o crescimento mandibular. A criança que tem seu potencial de crescimento e desenvolvimento dos maxilares plenamente estimulado apresenta uma menor pos‑ sibilidade de apinhamentos dentários futuros.10 Com o uso de mamadeiras, os padrões musculares e de mo‑ vimentação mandibular são totalmente diferentes. Os movi‑ mentos anteroposteriores são pouco requeridos e primordial‑ mente são executados os movimentos de abertura e fechamento, os quais estimulam pouco o crescimento mandi‑ bular. Além disso, na alimentação por mamadeira, o músculo bucinador apresenta-se hipertônico, podendo contribuir para a atresia maxilar. Já a língua torna-se hipotônica e assume uma posição mais baixa e inadequada. Toda a musculatura bucal, incluindo a língua, tem que se adaptar ao bico artificial. Ao contrário, no aleitamento materno, é o mamilo que apre‑ senta a capacidade de moldar-se a boca do bebê, adaptando‑ -se plenamente às estruturas bucais. Mesmo em crianças que realizaram aleitamento materno, a introdução da mamadeira é capaz de interferir negativamente no desenvolvimento oro‑ facial, aumentando a prevalência de ausência de selamento la‑ bial, de posicionamento indesejado da língua com hipotonici‑ dade lingual, de respiração oral ou mista e atresia maxilar11,12 (ver Capítulo 6 – Hábitos orais). Assim, por diminuir a possibilidade de hábitos de sucção não nutritivos (como o uso de chupeta ou sucção de dedos), inibir o uso de mamadeira e estimular o crescimento e desen‑ volvimento orofacial, o aleitamento materno pode ser consi‑ derado um fator de proteção para as maloclusões. O leite humano e sua composição em minerais Entre tantos benefícios da adoção do aleitamento materno, a interferência na formação dental é um deles. As condições nu‑ tricionais nos primeiros 6 meses de vida influenciam positiva‑ mente no desenvolvimento de defeitos de esmalte nos primei‑ ros molares permanentes. A composição do leite humano, ao contrário das fórmulas, é dinâmica. Esse precioso fluido bioativo, cuja composição va‑ ria do colostro ao leite maduro, pode ter sua composição va‑ riando inclusive durante a mamada, de um dia a outro e entre mulheres. Isto porque a produção do leite humano, além de dinâmica, é única de acordo com a fase da lactação e atende à necessidade da criança em cada mamada.13,14
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A ingestão de cálcio por dia, adequada para os bebês de 0 a 6 meses, é de, em média, 210 mg/100 mL, e de 250 mg/100 mL para os bebês de 7 a 12 meses de idade. No leite humano, são excretados em média entre 200 e 270 mg de cál‑ cio/dia. Esse valor é a referência para o estabelecimento das necessidades do recém-nascido.15 No leite humano, a concentração de certos minerais e oli‑ goelementos não é afetada significativamente pela dieta ma‑ terna. O cálcio é o mineral mais estável em diferentes estágios de lactação.16 Mecanismos compensatórios, como a diminui‑ ção da excreção urinária de cálcio, entram em funcionamento; somente em casos extremos, as reservas e tecidos maternos são depletados.14 A concentração de minerais é menor no leite humano do que no de vaca e nas fórmulas; porém, no leite materno, a con‑ centração está adaptada às necessidades nutricionais e capa‑ cidades metabólicas do lactente. A relação cálcio-fósforo (2:1) no leite humano é fisiológica e facilita a absorção de cálcio pelo trato gastrointestinal do lactente.15 Há variações na concentração dos minerais no leite huma‑ no, sugerindo que isso ocorra para satisfazer o requerimento da nutrição da criança durante a primeira fase de vida. Esse achado corrobora a afirmativa de existir uma perfeita adequa‑ ção da composição do leite humano às necessidades da crian‑ ça nas diferentes fases da lactação.17 A necessidade de minerais é maior do que em adultos em razão do rápido crescimento corporal e também do elevado ní‑ vel de atividades metabólicas envolvidas no crescimento, ati‑ vidades físicas e combates a infecções, dentre outros. O aten‑ dimento a essa demanda é feito pelo leite materno, até que chegue a época do desmame.15,18 Qualquer condição que mantenha bons níveis de saúde ge‑ ral durante os primeiros anos de vida tem repercussão positiva na qualidade do tecido dental formado nesse período, e o alei‑ tamento materno constitui-se em um importante fator para a prevenção de doenças nos primeiros anos de vida, especial‑ mente as doenças infecciosas e a má nutrição. As alterações dentárias resultantes de doenças sistêmicas e de má nutrição com maior significado clínico são os defeitos de desenvolvi‑ mento do esmalte que, além de consequências estéticas, po‑ dem dificultar a higiene dental e favorecer o desenvolvimento de lesões de cárie. Os inúmeros benefícios do aleitamento materno para a saúde bucal também devem ser utilizados como incentivo a essa prática. Os responsáveis devem ser informados sobre o seu papel na prevenção da cárie dentária, prevenção dos hábi‑ tos de sucção não nutritiva (chupeta ou sucção de dedos) e principalmente sobre a sua importância no desenvolvimento das estruturas ósseas e dos músculos da face, auxiliando na mastigação e contribuindo para uma respiração nasal adequa‑ da, prevenindo as maloclusões e os distúrbios da fala. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber que o aleitamento materno promove um desenvolvimento facial mais harmônico.
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Aleitamento Materno – Benefícios para a Saúde Bucal •
• Reconhecer que o aleitamento materno favorece o vínculo mãe-criança, o que facilitará as futuras ações em educação em saúde, incluindo aquelas direcionadas para a adoção de hábitos de higiene dental e de dieta compatíveis com a manutenção da saúde bucal. • Entender que o aleitamento materno diminui a possibilidade de hábitos bucais não nutritivos, como o uso de chupeta ou a sucção de polegar. • Lembrar que o aleitamento materno diminui a possibilidade de ocorrência de defeitos de desenvolvimento do esmalte dentário.
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CAPÍTULO 5
ALIMENTAÇÃO, SAÚDE BUCAL E FUNÇÃO MASTIGATÓRIA Patrícia Leila Camacho Roulet Roseli Oselka Saccardo Sarni Mariângela Milena Santos Schalka
Introdução Quando se menciona o termo alimentação, o primeiro aspecto pensado é a qualidade nutricional dos alimentos. Neste capítulo, outro ponto será abordado: a interferência direta da forma de uso dos alimentos na função mastigatória e, por consequência, na saúde bucal. Além da importância dos aspectos de higiene e consumo de açúcar, o objetivo é como a textura e a consistência dos alimentos são corresponsáveis por potencializar o desenvolvimento genético do sistema estomatognático, junto com a respiração nasal e a amamentação nos seus aspectos de exercício e desenvolvimento neuromuscular. Outro ponto importante a ser ressaltado é o conceito e, principalmente, o modelo do que é um desenvolvimento normal. De tão frequentes que têm se tornado, as atrofias (subdesenvolvimentos) e oclusopatias resultantes da disfunção mastigatória (quase sempre associadas à respiração oral ou mista), são consideradas “normais” em sua aparência (Figura 1B). Ao nascimento, a relação das bases ósseas entre os maxilares é de retrusão mandibular (base óssea inferior mais retroposicionada que a superior). O movimento de ordenha do peito na amamentação natural é o primeiro “aparelho” funcional que estimula o desenvolvimento da mandíbula para anterior, favorecendo o correto alinhamento dos rodetes gengivais. Sobre essas bases irão irromper e se posicionar os dentes decíduos. Considerando a situação ideal (amamentação exclusiva), aos 6 meses de idade, inicia-se a introdução da alimentação complementar, que normalmente coincide com o início da erupção dos dentes (guia incisal). Paralelamente, a alimentação torna-se mais consistente, permitindo movimentos mais favoráveis. Em sequência, irrompem os primeiros molares, aumentando a eficiência na moagem dos alimentos. A próxima etapa é a erupção dos caninos. A associação dos movimentos mandibulares mais horizontalizados com os estímulos provenientes da língua, bucinadores e demais músculos da cavidade oral orientam a direção de erupção desses dentes no arco. A posição dos caninos é um dos determinantes para se atingir a
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eficiência mastigatória futura e, consequentemente, o bom desenvolvimento do sistema estomatognático ao longo dos próximos 5 a 6 anos. Os segundos molares completam a dentição decídua, deixando-a apta para a alimentação da família. O desenvolvimento do potencial genético do sistema estomatognático é modulado pelas aferências periféricas e por outras funções essenciais, como a respiração nasal e a deglutição. Assim como a atividade física tem relação com a trofia da musculatura esquelética do corpo, a mastigação é o elemento trófico da cavidade oral e da face. Para se ter ideia da importância desses estímulos, ao início da troca dos dentes decíduos pelos permanentes (5 a 6 anos), o crescimento craniofacial deve ter atingido cerca de 80% do seu tamanho total.1 Este capítulo visa a relacionar as fases de desenvolvimento normal da dentição decídua com as orientações ideais para alimentação dentro do conceito de puericultura.
A
B
Figura 1 (A) Criança com desenvolvimento compatível com a idade. (B) Criança de 6 anos e 4 meses com falta de espaço para trocas dentárias
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Alimentação, Saúde Bucal e Função Mastigatória •
Respiração nasal e amamentação – Preparação dos músculos da mastigação A respiração é um dos primeiros estímulos de excitação neural do recém-nascido. Por meio dos receptores nas fossas nasais, o sistema nervoso central (SNC) é informado sobre as condições do ar inspirado. Dentro das condições fisiológicas normais, instaura-se uma função correta, favorecendo o bom desenvolvimento da face e posicionamento dos dentes e tônus musculares.2 Outro estímulo neural para desenvolvimento do sistema estomatognático é a excitação bilateral e simultânea das articulações temporomandibulares (ATM). O movimento de ordenha executado durante a amamentação promove, entre tantos outros benefícios, o exercício necessário para o grupo muscular que depois será requisitado para a mastigação, além de potencializar a correção do retrognatismo mandibular fisiológico característico dos recém-nascidos2 (Figura 2). Além dos muitos benefícios já conhecidos do leite materno, a variação do seu conteúdo em função da dieta materna também tem influência na posterior aceitação dos outros alimentos por parte da criança.3 A literatura mostra que o uso inadequado e prolongado da mamadeira pode interferir negativamente no selamento labial, na postura de repouso da língua, na respiração nasal e no desenvolvimento normal do maxilar superior quando se compara com crianças que nunca usaram mamadeira.4 A partir dos 12 meses, as crianças refinam suas habilidades motoras, expandindo a aceitação alimentar, e já são capazes de lidar com líquidos em copos abertos. Uma boa orientação é que deixem os copos com bicos para situações pontuais, por exemplo, em passeios.5 Função mastigatória A mastigação é uma atividade sensoriomotora cujo objetivo principal é preparar o alimento na cavidade bucal para ser deglutido. Como outras funções vitais, é um reflexo condicionado e aprendido, resultante da interação do sistema motor-efe-
A
B
Figura 2 Retrognatismo fisiológico, normal para o bebê recém-nascido (A), e desenvolvimento esperado após 6 meses de amamentação exclusiva, respiração nasal e sem hábitos nocivos (B).
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tor (músculos, ossos, articulações, dentes e tecidos moles) com as aferências periféricas.6-8 Apreensão, corte, trituração e moagem dos alimentos pelas estruturas bucais acontecem mesmo na ausência de dentes. Com o alimento na cavidade bucal, há a análise pelo SNC do status desse bolo alimentar; uma vez detectado que não há mais necessidade de ele ser processado (mastigado), são disparados os comandos motores dos músculos da mastigação finalizando o processo, ou seja, ocorre o transporte do bolo pela língua até o ponto de deflagração da deglutição.6-8 A retroalimentação (feedback) gerada pelas aferências periféricas (basicamente pelos alimentos) tem muita influência, tanto no tempo e no número de ciclos como no componente horizontal (lateral) do movimento mandibular. Quanto mais consistente é o alimento, mais ciclos são necessários para seu processamento e maior o tempo que permanece na cavidade bucal. Na mesma relação, maior é o componente horizontal do movimento. Uma maior exigência desse padrão lateral de movimentação resulta em um melhor estímulo de crescimento e desenvolvimento do sistema como um todo.6-8 Estudos atuais têm demonstrado que os diferentes padrões rítmicos da mastigação seguem trajetórias de desenvolvimento distintas e que são consistência-dependentes desde tenra idade (7 meses).8,9 Outros estudos relacionam as dificuldades de aceitação dos alimentos mais consistentes aos 7 anos com o adiamento da introdução de pedaços mais resistentes na papinha para além do 2º semestre de vida.10 Embora aparentemente simples, os movimentos orofaciais rítmicos produzidos durante a mastigação exigem coordenação de diversos músculos da mandíbula, da face e da língua. A exemplo de outras funções cíclicas, como respiração e locomoção, o padrão rítmico desses músculos é determinado por uma rede de células neuronais designada CPG – do inglês, central pattern generation –, um sistema central gerador de padrão.7,11,12 A CPG da mastigação está localizada no tronco encefálico, e a maioria dos neurônios de sua composição está ligada ao núcleo motor e núcleo facial do trigêmeo. Seus mecanismos biológicos permitem que os impulsos provenientes do SNC e dos receptores periféricos (em mucosa, nos fusos musculares e nos ligamentos periodontais) que chegam ao núcleo interajam com as propriedades rítmicas de seus neurônios para ajustar e adaptar o movimento à dureza do alimento e, assim, estabelecer o padrão rítmico da mastigação. É essa riqueza de impulsos periféricos no 2º semestre de vida que influencia diretamente a formação da CPG e o futuro ritmo mastigatório na dentição madura.8-10 Para o profissional de saúde, em especial quem se dedica à puericultura, a associação dos estudos de pesquisa com a orientação da prática aos cuidadores é de extrema importância para que o objetivo de saúde, bem-estar e pleno desenvolvimento das crianças seja alcançado pelas famílias. Portanto, relacionando a orientação de como introduzir a alimentação complementar aos conceitos de neurofisiologia da mastigação (formação da CPG, exercício da musculatura apropriada), aspectos como tipo do alimento e o tempo do seu processamento na cavidade bucal tornam-se fundamentais.13
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Alimentação complementar e o desenvolvimento da dentição decídua Os Departamentos Científicos de Nutrologia e de Aleitamento Materno da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) adotam a orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde (MS) para que se recomende o aleitamento materno exclusivo até os 6 meses de idade. A partir dessa idade, inicia-se a alimentação complementar, que deve ser espessa desde o início e oferecida com colher. Nessa idade, a maioria das crianças atinge estágio de desenvolvimento com maturidade fisiológica e neurológica e atenuação do reflexo de protrusão da língua, o que facilita a ingestão de alimentos semissólidos. As enzimas digestivas são produzidas em quantidades suficientes, razão que habilita as crianças a receber outros alimentos além do leite materno.14 Se mais espessas e consistentes, as refeições apresentam maior densidade energética (caloria/g de alimento) quando comparadas com as dietas diluídas, como sucos e sopas ralas ou mamadeiras de leite. A partir dos 7 meses de idade, pode-se oferecer à criança pedaços de alimentos sólidos de pouca consistência para que coma ou manipule, sempre sob a supervisão de um adulto.14 A aceitação de diferentes texturas pela criança é maior quando ela pode manipular o alimento e principalmente se for feito nessa idade.8,10 O inverso também é bem relacionado na literatura. Em termos práticos, após o 1o ano, pode-se dizer que a criança que está acostumada a comer comida pastosa ou liquefeita e tomar várias mamadeiras ao dia terá mais dificuldades em executar movimentos de lateralidades com alimentos mais consistentes. Esse comportamento tem direta relação com treinamento neurológico. Demonstrou-se que a criança tende a sorver um semissólido após ter ingerido alimentos tipo purê e, por outro lado, após ingerir alimentos sólidos (um tipo de anel de cereal seco), ela tende a “mascar” cubos de gelatina (semissólidos). Este é mais um estudo que afirma a importância do feedback sensorial na resposta efetora motora.15 A sequência de irrupção favorável corrobora as orientações práticas alimentares. Uma vez irrompidos os dentes incisivos e estabelecida a guia incisal (Figura 3), a criança já está apta a
fazer o movimento de corte. Os pais/cuidadores devem segurar o alimento em pequenas fatias e incentivar que ela busque cortá-los bem frontalmente. Esse tipo de exercício (avanço mandibular com movimento de cisalhamento pelos bordos dos incisivos) deve estar em harmonia com as refeições, para que não interfira na quantidade de nutrientes e calorias diárias necessárias para o desenvolvimento da criança. Sucos, água e leite também já podem ser dados em copos abertos, evitando a instalação de hábitos nocivos de sucção (Figura 4). Como foi dito anteriormente, os elementos sólidos das papas são os responsáveis pela estimulação do componente lateral do movimento mandibular. Pequenos cubos de legumes levemente cozidos ( “al dente”) são excelentes fontes de estímulo sensorial, informando ao SNC que o bolo alimentar não está pronto para ser deglutido e necessita de processamento pelos músculos mastigatórios. O fato de a criança poder pegar o alimento com a mão incentiva a aceitação. Deve-se lembrar que a mastigação é uma função adquirida e deve ser ensinada. O cuidador deve fazer gestos para que a criança o imite e estar atentos para não colocar muitos pedaços de uma só vez na boca. Para evitar possíveis engasgos, o cuidador deve, desde o começo, ensinar o bebê a reconhecer os pedaços para continuar a processá-los. Frutas com pequenos “tropeços” são excelentes para esse exercício e podem ser usadas como brincadeiras no momento do lanche: “onde está o carocinho? Ache-o com a língua”, “Coloque-o para um lado, agora para o outro”, “Ponha-o para fora...”.
A
B
Figura 3 Guia incisal – esta relação de toque entre incisivos produz reflexos de excitação elétrica neural nos músculos da mastigação mais intensa que na ausência do contato.
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Figura 4 Cuidador propiciando criança aprender a cortar o alimento (A) e a tomar água sem uso de bicos artificiais – transição para o copo aberto (B).
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Alimentação, Saúde Bucal e Função Mastigatória •
Com a erupção dos molares, a criança que já está habituada aos movimentos mais horizontalizados começa a ganhar eficiência na moagem. Pode receber alimentos mais resistentes, por exemplo, cenoura crua. Bifes e coxinha da asa de frango podem ser oferecidos inteiros para as crianças quando já entendem que podem tirar pedaços com os próprios dentes e depois mastigá-los (Figura 5). Nessa fase, os movimentos verticais característicos da sucção devem ser reduzidos para que não interfiram na posição dos caninos. Caninos mal posicionados promovem o travamento dos movimentos mandibulares de lateralidade e restringem a eficiência mastigatória. É interessante entender o conceito de que não é a criança que tem que amadurecer para ingerir determinados tipos de alimentos, e sim o inverso: é o aprendizado com esses alimentos que promoverão a maturação do seu sistema mastigatório, sempre com supervisão e orientação (Tabela 1). Cronologicamente, os dentes inferiores irrompem antes dos superiores. Quando o estabelecimento da dentição decídua ocorre sob os estímulos favoráveis descritos, a função mastigatória amadurece corretamente, ou seja, com a atrição do maior número de contatos das faces oclusais durante o ciclo.16
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No desenvolvimento fisiológico com eficiência mastigatória, os movimentos mandibulares são livres, sem impedimentos no sentido horizontal (direita, esquerda e para a frente) com bom tônus muscular. A estrutura óssea da mandíbula é mais compacta do que a dos ossos maxilares e tem um movimento de força ativo – papel importante para a remodelação óssea do sistema e consequente estabelecimento do plano oclusal. Aos 6 anos, a maturação pode ser observada pelas bordas abrasionadas (planas) dos dentes decíduos, com contatos nas lateralidades e espaços (diastemas) entre os dentes anteriores (Figura 6).
A
Lateralidade direita
B
Lateralidade esquerda
C
Figura 6 Dentição madura com espaçamento entre dentes (diastemas), mandíbula com liberdade de movimentos (equilibrados e eficientes) e boa acomodação dos incisivos permanentes.
Figura 5 Criança exercitando a função de corte e estimulando crescimento mandibular.
Tabela 1 Exemplos de alimentos e exercícios para a mastigação O quê
Como
Para quê
Fatias de frutas: pêra, mamão, banana, melão, maçã
Segurar frontalmente. Falar para morder
Estimular o cisalhamento, com os rebordos e depois com os dentes
Cubos de legumes “al dente”: batata, cenoura, abobrinha Biscoitos secos (sem açúcar)
Deixar que a criança pegue, ir diminuindo o ponto de cocção para oferecer mais resistência
Estimular o componente horizontal pela lateralização do alimento com a língua
Bifes, coxinhas de frango inteiras. Bandas de laranja
Sempre supervisionado
Fortalecimento da musculatura
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Nessas condições, ocorre a troca dos incisivos decíduos pelos permanentes, e os primeiros molares permanentes irrompem diretamente do rebordo, atrás dos segundos molares decíduos. Inicialmente, instala-se uma sobremordida fisiológica dos incisivos permanentes, uma vez que os molares ainda não atingiram a dimensão vertical total. Por volta de 9 a 10 anos, acontecem as trocas dos molares decíduos dando lugar aos pré-molares e caninos. Os segundos molares permanentes irrompem por trás dos primeiros com novo aumento da dimensão vertical. Da mesma forma que para a dentição decídua, a mastigação é o motor do desenvolvimento nos três planos: transversal, vertical e sagital (Figura 7). Em condições de funcionamento ideal, a evolução da dentição permanente será semelhante à experimentada pela dentição decídua, desde sua erupção até os 12 anos. Assim, ocorrerão abrasões nos molares e nos incisivos, avanço mandibular, abertura do ângulo goníaco, movimentos amplos de lateralidade, diminuição da curva oclusal e estabelecimento das trajetórias condilares. Graças ao movimento funcional da mastigação, é estabelecido o plano oclusal fisiológico, cuja curva depende das trajetórias condilares, do trespasse dos incisivos e das alturas das cúspides.2 Disfunções mastigatórias A falta de vedamento labial e a postura baixa de língua são um dos pontos de partida para o desenvolvimento da disfunção mastigatória no bebê. Em geral, estão associadas ao uso inten-
so e prolongado de bicos artificiais e à falta de estímulo alimentar (papas muito pastosas). O aleitamento com uso da mamadeira não exige da musculatura o mesmo exercício exigido pela amamentação. Se persistente após os 9 meses, induz a um padrão vertical de movimentação da mandíbula. Além disso, a presença do bico artificial condiciona uma postura lingual baixa, impede o toque no palato no momento da deglutição e ele torna-se ogival e atrésico. Nessas condições de musculatura menos tonificada, rebordos possivelmente não alinhados no sentido anteroposterior e padrão vertical mais intenso de movimentação mandibular, podem surgir alguns dos problemas para a futura oclusão dos dentes decíduos. A não correção do retrognatismo fisiológico gera a sobremordida. O padrão vertical predominante, aliado à falta de estímulo da língua no palato, na fase de erupção de caninos, direciona sua implantação mais “fechada”, travando o desenvolvimento mandibular. Associando-se a uma possível atresia da base óssea superior, pode ocorrer o cruzamento dos dentes posteriores. Tudo isso começa a acontecer antes de se completar o 2º ano de vida (Figura 8). Isso significa que, se até os 6 anos não ocorreu estímulo funcional necessário para o correto desenvolvimento, dificilmente haverá a correção espontânea das oclusopatias. Existe ainda o agravante de que os dentes permanentes são sempre maiores em tamanho e número do que os dentes decíduos (exceto o segundo pré-molar). Portanto, dependem dos diastemas que devem aparecer por meio do desenvolvimento dos
A
B
C
D
Figura 7 Dentição permanente: desenvolvimento completo e equilibrado.
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Alimentação, Saúde Bucal e Função Mastigatória •
ossos maxilares. A troca da dentição inicia por volta dos 6 anos de idade, com a irrupção dos incisivos inferiores. Quando há atrofia maxilomandibular, os espaços são insuficientes para o correto posicionamento dos dentes permanentes. Ocorrem apinhamentos anteriores, sendo muito frequente os caninos superiores irromperem externamente ao arco, por serem os últimos dentes dessa fase (Figura 9). Por volta dos 18 anos, deveriam irromper os terceiros molares (“dentes do siso”), que, por falta de desenvolvimento anteroposterior do corpo mandibular, muitas vezes ficam inclusos em diversas más posições, fadados à remoção cirúrgica2 (Figura 10). “É bem provável, que a maioria das alterações oclusais, consideradas de origem ‘genética’ ou ‘desconhecida’, tenham se
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iniciado na função oclusal e neuromuscular alterada desde muito cedo.”17 Considerações finais Dentes bem posicionados permitem uma função vigorosa e equilibrada, fruto de um processo de maturação da primeira dentição, tendo como resultado a eficiência mastigatória e o preparo das arcadas (desenvolvimento pleno) para o início das trocas dentais. Para que esse círculo virtuoso se estabeleça, é fundamental uma alimentação dura, seca e fibrosa.18 “A função cria o órgão, o órgão proporciona a função.”2 Os artigos que discutem mastigação podem ser divididos em dois grupos: os que investigam a disfagia nos bebês e não
A
A
B
B
Figura 9 Criança com atrofia aos 7 anos e 3 meses (A) com consequente falta de espaço para caninos permanentes aos 13 anos (B).
C
Figura 8 Oclusopatias associadas ao torque negativo (inclinação para palatino) de caninos e molares por desarmonia da musculatura. (A) Sobremordida patológica em criança de 6 anos. (B) Inclinação desfavorável de caninos superiores em associação à mordida aberta por hábito de sucção não nutritiva. (C) Mordida cruzada do lado direito, que deve ser corrigida o quanto antes.
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Figura 10 Terceiros molares (dente do siso) impactados por falta de espaço para erupção.
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têm dentistas em sua equipe; e o grupo que, em geral, é formado por dentistas e investiga a mastigação em crianças maiores e adultos, mas não considera os aspectos neurológicos de formação da CPG. Mais estudos ligando os dois aspectos são necessários. Atualmente, os quadros de disfunção do sistema estomatognático, resultantes de alterações do desenvolvimento, estão se tornando tão frequentes que têm sido encarados como normais. Sorrisos bonitos, mas disfuncionais, passam despercebidos por vários anos até que realmente gerem um problema visível (Figura 11). Há que se conhecer o normal para cada idade para acompanhar as mudanças que vão ocorrer e evitar que posteriormente se tornem quadros patológicos. Para uma criança de 2 anos, é normal (apesar de menos favorável) os dentes estarem bem juntos. Não é o caso para a mesma criança aos 6 anos, cujo crescimento das bases ósseas
deveria ter acontecido por estímulo funcional correto, abrindo espaços entre os dentes decíduos (diastemas) e evitando o apinhamento na dentição permanente. Outra questão importante é o encaminhamento da criança para o odontopediatra, que está habilitado para lidar com as questões peculiares da criança pequena (em especial com comportamento para a avaliação funcional), em vez do “dentista da família”, que muitas vezes deixa de identificar possíveis alterações e fazer o encaminhamento para um tratamento oportuno. Uma vez constatada a disfunção, os odontopediatras e os especialistas em ortopedia funcional dos maxilares dispõem de recursos e técnicas para efetuar o tratamento, não sendo necessário esperar que a criança cresça. Muitas vezes, o que poderia ser simples acaba se agravando. Discussões sobre desenvolvimento normal da criança e a prática de uma puericultura que esteja atenta às demandas funcionais são importantes para que as situações de subdesenvolvimento estrutural do ser humano não sejam vistas, no futuro, como normais. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Entender por que a alimentação (exercício muscular) é fundamental para o desenvolvimento da função mastigatória. • Ter conhecimento sobre estímulos neurológicos de desenvolvimento do sistema que controla o ritmo mastigatório. • Reconhecer um padrão vertical de mastigação que pode retardar o crescimento mandibular. • Orientar quanto ao uso dos bicos artificiais, que alteram a postura lingual, o padrão respiratório e, consequentemente, a função mastigatória. • Encaminhar os pacientes a partir dos 6 meses para que o odontopediatra possa reforçar as orientações alimentares e acompanhar o desenvolvimento das arcadas dentárias, prevenindo ou tratando o estabelecimento de possíveis oclusopatias (estáticas e funcionais).
A
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Lateralidade direita
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Lateralidade esquerda
Figura 11 Oclusopatia funcional: aspecto harmonioso de uma dentição bem desenvolvida, porém com movimentos mandibulares desequilibrados e ineficientes (notar a ausência de toque nos molares em lateralidade).
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CAPÍTULO 6
HÁBITOS ORAIS Júnia Maria Cheib Serra-Negra Isabela Almeida Pordeus
Sucção fisiológica e patológica Hábito é conceituado como uma modalidade motriz, geral‑ mente inconsciente, que se manifesta pela repetição de costu‑ mes. Ainda dentro do útero materno, a criança já repete certos comportamentos. Sugar é um deles. A sucção é considerada a primeira atividade muscular coordenada do bebê.1 Considerada um reflexo inato, a sucção digital é observada na 29ª semana de vida intrauterina e representa o padrão de comportamento mais primitivo do ser humano. O trabalho muscular ocorrido nessa fase tem por objetivo fortalecer a musculatura perioral e conduzir à satisfação das necessidades nutricionais da criança, ou seja, a criança terá força muscular suficiente para conseguir mamar.1 Aleitamento natural e artificial O alimento de melhor valor nutricional para a criança vem da prática do aleitamento materno. Sorver o leite da mãe é um fa‑ tor protetor para as crianças e reduz o risco de mortalidade.2 Além disso, um importante trabalho muscular ocorre durante o ato de mamar, favorecendo o desenvolvimento harmonioso da face, além de ajudar a desenvolver padrões normais de res‑ piração e de deglutição.3 A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a criança receba aleitamento materno exclusivo por pelo menos 6 meses, seguido por sua continuidade com adição de alimen‑ tos complementares durante 1 ano2 e que o aleitamento artifi‑ cial com mamadeira não seja estimulado.3,4 Apesar dessa recomendação da OMS, observa-se que a pre‑ valência do aleitamento exclusivo por, pelo menos, 6 meses é menor (14%) do que a da alimentação mista que associa o alei‑ tamento natural com a mamadeira (62,9%).5 Crianças aleitadas ao seio da mãe estão menos propensas a apresentarem hábitos de sucção não nutritiva e, consequente‑ mente, menos propensas a apresentarem desarmonias nas ar‑ cadas dentárias, denominadas maloclusões.2,4-8 Durante o ato de amamentar, a criança dispende muita energia e toda sua musculatura perioral trabalha intensamen‑
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te, causando um cansaço. Consequentemente, o bebê fica cansado e tende a dormir, não sentindo necessidade de levar a mão, a chupeta e/ou outros objetos à boca.6 Outra explicação para essa associação é de que o aleitamento materno é capaz de satisfazer a criança tanto nutricionalmente quanto afetiva‑ mente, o que levaria a uma tranquilidade e não traria a neces‑ sidade de levar objetos à boca.1,6 Desarmonias nas arcadas dentárias Os hábitos de sucção não nutritiva são caracterizados pela sucção digital e/ou de chupeta. Quando esses costumes fa‑ zem parte da vida da criança, fora do padrão fisiológico da suc‑ ção, eles podem desencadear desarmonias nas arcadas dentá‑ rias, como mordida aberta anterior, mordida cruzada posterior e alterações no trespasse anterior das arcadas, denominadas alteração de overjet (Figura 1).5,7 A mordida aberta anterior caracteriza-se pelo encontro dos dentes posteriores com uma abertura na região anterior, ocor‑ rendo um trespasse negativo, chamado overbite zero (Figura 1A). A mordida cruzada posterior é a inversão da forma normal da oclusão dos dentes posteriores: dentes superiores ocluem mais internamente em relação aos dentes posteriores, estabe‑ lecendo, assim, um cruzamento (Figura 1B). Na região anterior, deve ocorrer um trespasse entre os inci‑ sivos do arco superior e os do arco inferior, sendo normal que os superiores cubram um terço da borda incisal dos inferiores. Em situações de alteração de trespasse horizontal (overjet), há uma projeção dos incisivos do arco superior com valor maior que 3 mm (Figuras 1C1 e 1C2).8 As consequências dos hábitos orais na harmonia das arca‑ das dependem da frequência e da duração desses costumes. Na literatura, há diferentes associações em diferentes culturas. Um estudo transversal demonstrou que crianças com curto período de amamentação (< 6 meses) apresentaram 4 vezes mais chance de possuírem o hábito de chupeta. Crianças com hábito de sucção de chupeta por mais de 3 anos evidenciaram mais chance de terem alterações no trespasse anterior hori‑
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HÁBITOS ORAIS •
zontal (overjet), e aquelas com hábito de sucção digital prolongado estiveram mais propensas à mordida aberta anterior.5 Entretanto, um estudo longitudinal verificou que o uso prolongado de chupeta favoreceu a mordida aberta anterior.8 Apesar de a OMS preconizar que a mamadeira não seja utilizada como artefato de alimentação infantil, há um forte componente cultural que envolve o aleitamento artificial.1 O uso prolongado da mamadeira também pode desencadear desarmonias, como foi constatado em um estudo brasileiro em que crianças aleitadas com mamadeira estiveram mais propensas a mordida aberta anterior (PR = 1,74; IC 95% 1,24-2,44).9 Em um trabalho de revisão sistemática, verificou-se que não há confirmação da associação entre o tipo de aleitamento e maloclusões. Os autores concluíram que estudos longitudinais devem ser estimulados para que haja comprovação dessa associação.4 As desarmonias oclusais podem afetar funções importantes do organismo. Alterações de respiração, deglutição e fala podem estar associadas com a presença de maloclusões.7,8 O respirador bucal tende a apresentar atresia de palato, hipotonicidade dos músculos orbiculares, ressecamento dos lá-
A
B
C1
C2 Figura 1 Desenhos esquemáticos de maloclusões. (A) Mordida aberta anterior. (B) Mordida cruzada posterior. (C1) Overjet de 3 mm. (C2) Overjet > 3 mm. (Arte de Serra-Negra JM.)
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bios pela falta de selamento e frequentes crises de tonsilites e faringites. Além disso, o fato de a criança ficar com a boca entreaberta favorece o ressecamento das gengivas na região anterior, o que pode predispor à gengivite. A atresia maxilar favorece a mordida cruzada posterior (Figura 1B).7 Alterações no trespasse anterior das arcadas podem influenciar no padrão de deglutição e fala. A mordida aberta anterior dificulta que, durante a deglutição, haja o vácuo necessário para essa função, e a língua interpõe-se entre as arcadas, o que favorece também alterações de fala, principalmente dos fonemas “s” e “z”. Palavras com esses fonemas são pronunciadas com sonidos sibilantes.6 Idade de abandono dos hábitos de sucção não nutritiva Crianças portadoras de hábitos orais por mais de 2 anos de idade apresentam maior chance de apresentarem maloclusões (OR=14,7; IC 95% 7,1-30,5).7 As desarmonias das arcadas dentárias podem se autocorrigir se o hábito de sucção não nutritiva for removido precocemente.8 Em um estudo longitudinal, observou-se que, em 70% das crianças cujo hábito de sucção de chupeta foi removido até os 2 anos de idade, houve correção espontânea.8 Portanto, se o hábito não estiver na vida da criança após 2 anos de idade, aumenta a chance de autocorreção. Quanto mais velha a criança, mais chance de sequelas em sua arcada dentária, o que torna praticamente impossível ocorrer autocorreção das desarmonias.8 Se hábitos de sucção não nutritiva persistirem na fase de dentição mista, pode-se afirmar que a correção de desarmonias acontecerá com o uso de aparelhos ortodônticos.8 As maloclusões e a desarmonias de crescimento facial não estão apenas associadas a presença de costumes adquiridos no decorrer da vida dos indivíduos. Pode ocorrer uma influência genética e do padrão facial da criança/adolescente que o predisponha a apresentar essas alterações.3 Existem dois padrões faciais importantes na análise do portador de hábitos orais: os braquicefálicos (Figura 2A) e os dolicocefálicos (Figura 2B). Dolicocefálicos caracterizam-se por um rosto oval, cuja musculatura facial tem uma fraca tonicidade. Braquicefálicos apresentam rosto quadrado com tendência a uma força muscular importante, principalmente do músculo masseter. Hábitos de sucção não nutritiva em crianças dolicocefálicas tornam-nas predispostas ao desenvolvimento desarmonioso do andar inferior da face, deixando-o mais ovalado e alongado. O mesmo não ocorre nos braquicefálicos. É importante levar em consideração essa característica genética do padrão facial porque a soma de fatores genéticos com a presença de estímulos externos que desencadeiam maloclusões podem agravar quadros de desarmonias na face, as quais ficarão registradas nas características do indivíduo, mesmo depois de submetidas a tratamento ortodôntico.3 A correção de alterações esqueléticas, em alguns casos, só é possível mediante cirurgias bucomaxilofaciais, daí a importância da prevenção dessas desarmonias. A família tem importante papel no tipo de hábito, na duração e na forma de abandono dos costumes. Quando a família
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Diferenciar a sucção fisiológica da sucção patológica. • Identificar as desarmonias oclusivas. • Motivar pais e responsáveis à remoção dos hábitos nocivos.
Referências bibliográficas 1.
2A
2B
Figura 2 Padrões faciais. (A) Braquicefálicos. (B) Dolicocefálicos. (Arte de Serra-Negra JM.)
constata que os hábitos de sucção não nutritiva estão causando transtornos físicos e emocionais na criança, em geral tomam-se medidas bruscas de erradicação do hábito, com utilização de substâncias amargas/pimentas, contenção da mão/ dedos, castigos, etc. A remoção brusca de um costume da infância pode levar à substituição por outro hábito, se a raiz do problema não for trabalhada. O hábito de onicofagia (roer as unhas) é o hábito de substituição mais prevalente entre as crianças na fase escolar. A prevalência da onicofagia entre crianças é de 38%, e quando as mães também possuem o hábito, há 4 vezes mais chance de a criança também apresentá-lo.10 Esse comportamento familiar retrata que há um componente emocional forte que envolve os costumes adotados pelas crianças, e isso reforça a importância de se promover campanhas educativas com o intuito levar conhecimento às comunidades sobre os hábitos orais e suas sequelas. O odontopediatra deve participar do desenvolvimento da criança o mais precocemente possível e, além disso, equipes multidisciplinares, envolvendo enfermagem, pediatria, otorrinolaringologia, psicologia, fonoaudiologia e ortodontia, devem trabalhar em parceria para estimular a promoção da saúde, com uma visão holística do paciente.
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Góes MPS, Araújo CMT, Góes PSA, Jamelli SR. Persistência de hábitos de sucção não nutritiva: prevalência e fatores associados. Rev Bras Saúde Matern Infant 2013; 13(3):247-57. 2. Peres KG, Cascaes AM, Peres MA, Demarco FF, Santos IS, Matijasevich A et al. Exclusive breastfeeding and risk of dental malocclusion. Pediatrics 2015; 136:e60-7. 3. Castelo PM, Gavião MBD, Pereira LJ, Bonjardim LR. Maximal bite force, facial morphology and sucking habits in young children with functional posterior crossbite. J Appl Oral Sci 2010; 18(2):143-8. 4. Hermont AP, Martins CC, Zina LG, Auad SM, Paiva SM, Pordeus IA. Breastfeeding, bottle feeding practices and malocclusion in the primary dentition: a systematic review of cohort studies. Int J Environ Res Public Health 2015; 12(3):3133-51. 5. Chen X, Xia B, Ge L. Effects of breast-feeding duration, bottle-feeding duration and non-nutritive sucking habits on the occlusal characteristics of primary dentition. BMC Pediatr 2015; 15:46. 6. Serra-Negra JMC, Pordeus IA, Rocha Jr. JF. Estudo da associação entre aleitamento, hábitos bucais e maloclusões. Rev Odontol Univ São Paulo 1997; 11(2):79-86. 7. Góis EG, Ribeiro-Júnior HC, Vale MP, Paiva SM, Serra-Negra JM, Ramos-Jorge ML et al. Influence of nonnutritive sucking habits, breathing pattern and adenoid size on the development of malocclusion. Angle Orthod 2008; 78(4):647-54. 8. Góis EG, Vale MP, Paiva SM, Abreu MH, Serra-Negra JM, Pordeus IA. Incidence of malocclusion between primary and mixed dentitions among Brazilian children. A 5-year longitudinal study. Angle Orthod 2012; 82(3):495-500. 9. Corrêa-Faria P, Ramos-Jorge ML, Martins-Júnior PA, Vieira-Andrade RG, Marques LS. Malocclusion in preschool children: prevalence and determinant factors. Eur Arch Paediatr Dent 2014; 15(2):89-96. 10. Serra-Negra JMC, Vilela LC, Rosa AR, Andrade ELSP, Paiva SM, Pordeus IA. Hábitos bucais deletérios: os filhos imitam as mães na adoção destes hábitos? Rev Odonto Cienc 2006; 21(52):146-52.
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CAPÍTULO 7
DISTÚRBIOS DE OCLUSÃO – RECONHECIMENTO, PREVENÇÃO, ORIENTAÇÃO Marcos Nadler Gribel Júnia Maria Villefort Silva Mara Lucia Rufato Cardoso Bruno Frazão Gribel
Introdução A oclusão dentária é o ato de aproximar e tocar os dentes, ou mesmo antes de eles estarem na cavidade oral, com o bebê to‑ cando os rodetes gengivais – acontece em raros momentos da vida de um ser humano. Ocorre somente por poucos milisse‑ gundos no ato de deglutir a saliva ou no final do ciclo mastiga‑ tório, quando o bolo alimentar devidamente triturado está pronto para ser deglutido. Isso representa um total de apenas 20 minutos, dos 1.440 minutos de um dia na Terra. No entan‑ to, uma oclusão dentária adequada, apesar da brevidade e da rapidez com que se manifestam os contatos dentários, pode influir positivamente na qualidade de vida e no bem-estar do indivíduo, além de contribuir para o desenvolvimento de faces harmônicas e saudáveis. Contudo, apenas o encaixe apropria‑ do dos dentes não é suficiente para se obter uma oclusão apro‑ priada. Os dentes são como as pontas de iceberg; representam apenas uma pequena parte do sistema estomatognático. Normoclusão É representada pelos dentes bem encaixados, com bases ós‑ seas bem relacionadas (maxila e mandíbula) e boa relação das estruturas das articulações temporomandibulares (ATM), bem como equilíbrio e atividade adequada da neuromuscula‑ tura. As características de normoclusão variam e modificam de acordo com o estágio de desenvolvimento da dentição. O que pode ser classificado como “normal” ou “usual” em uma determinada etapa do desenvolvimento do sistema estoma‑ tognático pode ser considerado como impróprio em outros momentos do desenvolvimento desse complexo sistema, que participa de funções nobres e essenciais para a sobrevivência e saúde do indivíduo. Oclusopatia Seu oposto é a oclusopatia, maloclusão ou dentes tortos, pre‑ sente e observável em cerca de 73% das crianças na segunda infância – entre 3 e 6 anos de idade aproximadamente – quan‑ do a dentição decídua (“dentes de leite”) está instalada e em
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maturação.1 É um importante problema de saúde oral, alta‑ mente incidente e prevalente, embora não seja considerado uma doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No entanto, afeta negativamente a qualidade de vida e o bem-es‑ tar da criança, assim como a autoimagem e a autoestima, pre‑ judicando o desenvolvimento harmônico da face e das fun‑ ções orais, podendo estar associado a bullying no meio de convívio da criança. A cavidade oral e seus componentes estruturais – incluindo os dentes – participam de mais de 26 funções, como a orde‑ nha da mama na amamentação natural, respiração, mastiga‑ ção, deglutição, articulação de fonemas, estabelecimento da postura de cabeça e pescoço, tosse, espirro, beijo, sorriso, gar‑ galhar e também na estética facial e do sorriso. Normoclusão do bebê sem os dentes Reconhecimento do retrognatismo mandibular fisiológico No neonato, é frequente e normal encontrar um ligeiro retrog‑ natismo mandibular em cerca de 99% dos casos. A diferença no posicionamento anteroposterior de maxila e mandíbula é da ordem de 6 mm em média, com desvio padrão de 2 mm, até próximo da erupção dos primeiros dentes decíduos – em geral, os incisivos centrais inferiores. Essa diferença reflete a in‑ fluência do vertiginoso crescimento da massa encefálica, até por volta dos 3 anos de idade, e dos globos oculares, deslocan‑ do a maxila à frente e a mandíbula para trás (Figura 1). Orientações para o desenvolvimento harmônico da oclusão do bebê ... É importante que profissionais da saúde, responsáveis pelo bem-estar geral da criança – e aqui consideram-se tanto pediatras como odontopediatras – tenham o conhecimento necessário sobre as características morfológicas de uma cavidade bucal considerada dentro dos padrões da normalidade ao nascimento. Além disso, é importante que saibam reconhecer e diagnosticar de maneira segura e correta as anormalidades em estágios precoces e as prováveis ano-
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malias que se apresentam nesses pacientes pediátricos, com a finalidade de orientar, alertar e/ou tranquilizar os pais ou responsáveis e indicar o tratamento adequado.2
O melhor recurso para que a característica do retrognatismo mandibular não se perpetue ao longo da instalação da dentição decídua é orientar as funções orais apropriadas. Até os 3 anos de idade, estará se definindo o padrão facial baseado no que a criança “recebeu” geneticamente e da sua interação com o meio ambiente. A principal interação que a criança tem nessa fase é a respiração, a amamentação natural (Figura 2), alimentos progressivamente mais firmes e duros (ver Capítulo 5 – Alimentação, saúde bucal e função mastigatória) e também o componente postural, muito associado também à questão respiratória. É importante que ocorra um bom desenvolvimento maxilomandibular dos rodetes gengivais no sentido anteroposterior, desde o nascimento até os 6 meses de vida, quando ocorre a irrupção dos incisivos e, durante a topogênese dos primeiros molares decíduos, a fim
Figura 1 Retrognatismo mandibular, em geral, presente até o início da erupção dos incisivos centrais inferiores.
Figura 2 Observar a posição ortostática de cabeça que propicia os movimentos protrusivos livres da mandíbula, assim como os movimentos verticais mandibulares.
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de que todos os dentes tenham o osso basal necessário para a sua erupção correta.3 (Figura 3)
Respiração nasal A respiração é o primeiro reflexo básico do indivíduo, e os primeiros anos de vida são extremamente importantes como fator determinante do tipo encefálico e facial do indivíduo. A respiração oral não contribui para o desenvolvimento transversal e vertical adequado da maxila e estimula a língua a assumir posição mais baixa e anteriorizada do que em indivíduos sadios. Isso estimula o desenvolvimento excessivo do arco dentário inferior e, às vezes, de toda a mandíbula, favorecendo a instalação das mordidas cruzadas posteriores e anteriores. A respiração oral também pode contribuir para alterações na postura de cabeça e pescoço, favorecendo um excesso da lordose cervical, hiperextensão de cabeça e, consequentemente, dificultando o desenvolvimento apropriado da mandíbula, perpetuando na criança o retrognatismo mandibular característico do neonato. A respiração oral também é prejudicial ao desenvolvimento dos músculos da face, especialmente os mastigatórios, da língua e lábios, diminuindo o tônus muscular. Por estarem comprometidos no seu desenvolvimento, esses músculos não apresentarão a força e a potência necessária a uma mastigação mais vigorosa, de alimentos duros, secos e fibrosos. Mastigando menos, há também menos estímulo para o desenvolvimento dos terços médio e inferior da face, assim como da região das ATM. Muitas crianças podem selecionar os alimentos não pelo sabor ou valor nutricional, mas sim pela consistência, reforçando o ciclo de subdesenvolvimento dos músculos e das funções orais e do menor crescimento dos ossos da face, favorecendo a instalação de oclusopatias. Manter as vias aéreas sempre limpas e desobstruídas é fundamental para o desenvolvimento harmônico e sadio dos ossos do crânio e da face (Figura 4). Competência, vedamento ou selamento labial Quando estiver dormindo, o bebê deve estar com a boca fechada e os lábios vedados, sinalizando para a respiração nasal, como ilustra a Figura 1.
Figura 3 Observar a normalidade da oclusão dos rodetes gengivais.
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Distúrbios de Oclusão – Reconhecimento, Prevenção, Orientação •
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seio com pouca frequência e/ou por tempo insuficiente. Mais raramente, podem ser identificadas condições genéticas ou congênitas. É importante reconhecer a relação harmônica entre as bases ósseas (maxila e mandíbula) no exame das arcadas dentárias em oclusão: • sentido anteroposterior: a ponta de cúspide do dente canino superior ocluindo entre o canino e o primeiro molar decíduo inferior é uma referência de normoclusão (Figura 5); • sentido vertical: os incisivos superiores trespassando os incisivos inferiores em pelo menos 1/3 do tamanho da coroa do dente inferior (Figura 5); • sentido transversal: a compatibilidade transversal entre os arcos dentários é dada quando o arco dentário inferior está totalmente incluído no superior. Figura 4 Desobstrução das vias aéreas evitando a respiração oral.
Aleitamento materno funcional A amamentação natural ou funcional é um potente estímulo para acelerar o crescimento mandibular e, assim, corrigir o retrognatismo característico do neonato (Figura 3). O movimento protrusivo da mandíbula (tarefa dos músculos pterigóideos laterais inferiores), aliado ao movimento vertical (responsabilidade dos músculos mastigatórios verticais – temporais, masseteres e pterigóideos mediais) para pressionar a mama entre os rodetes gengivais, estimula o crescimento mandibular na cartilagem condilar (cartilagem secundária, com características diferentes das cartilagens primárias dos discos epifisários dos ossos longos) sincronizada com os outros componentes da mandíbula (apófise coronoide, ramo mandibular, corpo mandibular e região alveolar/dentária). Cuidados com a postura da criança Evitar travesseiro alto que pode provocar uma antilordose cervical e contribuir para o estreitamento da região da orofaringe e da nasofaringe e agravar a função respiratória. Berço posicionado próximo da janela e móbiles pendurados estimulam o movimento de cabeça inadequado e podem interferir no desenvolvimento da face da criança. Bebês prematuros, internados em UTI pediátrica usando sondas oro ou nasogástricas podem ter o desenvolvimento comprometido das frágeis estruturas de maxila e mandíbula, favorecendo o surgimento das mordidas cruzadas posteriores e desvios mandibulares (ver Capítulo 12 – Atenção à saúde bucal do bebê prematuro). Normoclusão no início da dentição decídua Reconhecimento da redução do retrognatismo mandibular fisiológico Cerca de 1/3 de todas as crianças mantém o retrognatismo mandibular (típico do neonato desdentado) por volta da instalação completa da dentadura decídua (erupção dos segundos molares decíduos) por apresentar deficiências nas funções orais citadas anteriormente, sobretudo por mamar ao
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É normal a ausência de espaços (diastemas) entre os dentes vizinhos (arco tipo II de Baume) no início da dentição decídua (Figura 6).
Figura 5 Relação harmônica entre as bases ósseas (maxila e mandíbula).
Figura 6 Arco tipo II de Baume – ausência de diastemas entre os dentes vizinhos.
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Orientações para o desenvolvimento harmônico da face e oclusão até os 3 anos Até os 3 anos de idade, a criança já está com cerca de 65% do volume da maxila e da mandíbula que terá quando adulta.4,5 Vale lembrar que os 65% aos 3 anos de idade serão a base a partir da qual maxila e mandíbula continuarão se desenvolvendo nos estágios subsequentes. O subdesenvolvimento dos arcos dentários e dos ossos da face nos primeiros anos de vida podem se manter nos estágios subsequentes.
distúrbios psicológicos ou comportamentais. Uma avaliação psicológica pode ser indicada nos casos mais persistentes. A maioria das mordidas abertas associadas à chupeta pode sofrer autocorreção, se a chupeta for removida até os 3 anos de idade, em virtude da alta plasticidade dos diversos tecidos presentes na face (plasticidade óssea, neuromuscular, articular [ATM], etc.). As Figuras 8 e 9 ilustram essa situação. Dieta Devem-se indicar alimentos nutricionais e funcionais para auxiliar no desenvolvimento do sistema estomatognático, por exemplo, alimentos progressivamente mais secos, duros e fibrosos, que incentivam a mastigação e contribuem para o desenvolvimento facial, neuromuscular, ósseo, dos arcos dentários, ATM, etc.
Respiração nasal É um importante estímulo ao desenvolvimento transversal da maxila, incluindo a região nasal. A respiração oral favorece o subdesenvolvimento transversal, vertical e sagital da maxila e mandíbula, as alterações nas posições dos dentes, desvios mandibulares ou ainda assimetrias faciais em instalação, como acontece nos casos de mordidas cruzadas posteriores, Normoclusão no final da dentição decídua – que afetam cerca de 23% da população infantil aos 3 anos de Idade cronológica, por volta dos 6 anos idade. A mordida aberta anterior também está associada à res- Deve haver o reconhecimento da relação harmônica entre as piração oral (Figura 7). bases ósseas (maxila e mandíbula) no exame das arcadas denA respiração oral, nessa fase, contribui para uma aceleração tárias em oclusão: no crescimento das massas dos tecidos linfoides (adenoides e • sentido anteroposterior: canino superior posicionado entre o tonsilas palatinas) que, hipertrofiadas ou hiperplásicas, concanino inferior e o primeiro molar decíduo, porém sem a pontribuem ainda mais para uma respiração inadequada. ta de cúspide, sinal de desgaste fisiológico pelo uso correto Presença de alergias, otites, tonsilites e outras inflamações das funções orais (Figura 5); do trato respiratório devem ser prevenidas ou tratadas o mais precocemente possível, para não comprometerem o desenvolvimento e o crescimento da face. Restrição dos hábitos deletérios: chupeta, mamadeira, sucção digital Crianças que apresentam amamentação natural não necessitam de mamadeira ou chupeta. A mamadeira e a chupeta em qualquer estágio de desenvolvimento, do ponto de vista fisiológico e do desenvolvimento craniofacial, estão contraindicadas. A chupeta está indicada nos casos de falta de aleitamento natural, desde que usada com parcimônia, apenas nos momentos de indução do sono, até no máximo 2,5 anos de idade. A perpetuação da “fase oral” pode prejudicar o desenvolvimento facial e oclusal da criança. Além disto, pode sinalizar para
Figura 8 Mordida aberta por uso de chupeta.
Figura 7 Mordida aberta, com ausência de vedamento labial, padrão típico do respirador oral.
Figura 9 Correção da mordida aberta após a remoção da chupeta.
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Distúrbios de Oclusão – Reconhecimento, Prevenção, Orientação •
• sentido vertical: incisivos superiores em posição de quase topo com os incisivos inferiores (Figura 5); • sentido transversal: surgimento de diastemas (espaços) entre os dentes decíduos anteriores. Isso representa o crescimento e o desenvolvimento adequado dos arcos dentários e das bases ósseas para receber os incisivos permanentes, maiores e mais largos, caracterizando os arcos tipo I de Baume (diastemados). Observar a coincidência entre as linhas médias dentárias (Figura 10). Orientações para o desenvolvimento harmônico até os 6 anos Cabe lembrar que, aos 6 anos de idade, as crianças já atingiram cerca de 80% das dimensões faciais que terão ao final da adolescência.4,5 A alta plasticidade dos tecidos envolvidos e a grande quantidade de crescimento nos 6 primeiros anos de vida, aliadas à alta suscetibilidade das ações das funções orais inadequadas, favorecem a alta prevalência de oclusopatias na infância (presente em 73% nas crianças aos 3 anos de idade),5 mas, ao mesmo tempo, facilitam o tratamento e a correção dos distúrbios de forma e função, utilizando as mesmas vias, no sentido oposto. Diversos recursos terapêuticos da ortopedia funcional dos maxilares, ortodontia e odontopediatria podem contribuir no tratamento e na prevenção das oclusopatias na infância.6 Dieta Existem evidências de que uma dieta mole, pastosa e pobre em fibras desempenha um papel importante na etiologia de algumas maloclusões. A musculatura mastigatória é pouco exigida, e a falta de função adequada resulta em subdesenvolvimento dos ossos da face, dos arcos dentários, das ATM, etc.; desgaste oclusal fisiológico insuficiente dificulta os movimentos horizontais bilaterais na mastigação.
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posteriormente aos caninos decíduos superiores (classe II de Angle), em virtude do retrognatismo mandibular (Figura 11). Noventa e nove por cento dos casos de classe II de Angle na infância estão relacionados com a posição distal (posterior) da mandíbula em relação à base do crânio e à maxila – retrognatismo mandibular. Esse tipo de maloclusão é o fator predisponente mais importante para traumas e fraturas dos dentes superiores anteriores. Vários recursos ortopédicos e ortodônticos podem ser utilizados para tratamento na infância desse tipo de oclusopatia.7 Mesioclusão, mordida cruzada anterior ou classe III de Angle Presente em cerca de 5% das crianças aos 3 anos de idade, sendo que a prevalência dobra em caso de crianças orientais ou com ascendência oriental (11%). Os caninos decíduos inferiores apresentam-se posicionados muito à frente em relação aos caninos decíduos superiores (classe III de Angle), em virtude do prognatismo mandibular e/ou deficiência da maxila no aspecto anteroposterior (Figura 12). Revisões sistemáticas e metanálises mostram vários recursos ortopédicos e ortodônticos que devem ser utilizados para tratamento desse tipo de oclusopatia na infância,4 prevenindo em cerca de 85% dos casos a necessidade de cirurgias bucomaxilofaciais corretivas na fase adulta.8,9 As Figuras 13 e 14 mostram o tratamento da mordida cruzada anterior em uma criança de 3 anos de idade
Distúrbios de oclusão ou tipos de oclusopatias Distoclusão ou classe II de Angle Está presente em cerca de 1/3 das crianças aos 3 anos de idade. Os caninos decíduos inferiores apresentam-se posicionados
Figura 11 Retrognatismo mandibular.
Figura 10 Aspecto normal dos arcos dentários e bases ósseas, caracterizado por diastemas e coincidência entre as linhas médias.
Figura 12 Prognatismo mandibular e/ou deficiência da maxila no aspecto anteroposterior.
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com as pistas diretas planas modificadas7 (planos inclinados de resina odontológica fotoativada, fixados aos dentes decíduos) e o resultado 6 meses depois (Figura 15). As Figuras 16 a 19 mostram o tratamento da mordida cruzada anterior com disjuntor palatino para expansão rápida da maxila e máscara facial para avanço do terço médio da face. A Figura 20 mostra o resultado depois de 6 meses de tratamento. Mordida aberta Ocorre quando os dentes perdem o contato ou o traspasse fisiológico normal. Em geral, está associada a alterações respiratórias, hábitos deletérios de infância (sucção digital e de
chupeta), trauma dental, alterações congênitas ou genéticas. A língua em geral adapta-se à mordida aberta tanto na fala quanto na deglutição e mastigação, funcionando como agente perpetuador e agravante da maloclusão (Figuras 21 e 22). Vários recursos ortopédicos e ortodônticos podem ser utilizados durante a infância para tratamento desse tipo de oclusopatia, recuperando as funções orais, melhorando a estética facial, auxiliando no controle dos hábitos deletérios da infância, etc.
Figura 16 Vista lateral de perfil de paciente com mordida cruzada anterior.
Figura 13 Mordida cruzada anterior.
Figura 17 Vista oclusal da mordida cruzada anterior.
Figura 14 Tratamento precoce da mordida cruzada anterior.
Figura 15 Mordida cruzada anterior 6 meses após a correção.
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Figura 18 Disjuntor palatino para expansão rápida da maxila.
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O inverso da mordida aberta é a mordida profunda, que acontece quando os dentes anteriores inferiores estão totalmente cobertos pelos incisivos e caninos superiores (Figuras 23 e 24). Podem ser tratadas na infância, diminuindo a chance de evolução para oclusopatias mais severas na adolescência.7 As Figuras 25 e 26 ilustram o tratamento da mordida profunda com as pistas diretas planas modificadas, colocadas na face oclusal de molares decíduos superiores.
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Mordida cruzada posterior Esta oclusopatia é caracterizada pela inversão do encaixe dentário, no sentido vestibulolingual, e afeta cerca de 23% das crianças aos 3 anos de idade. Os dentes inferiores estão mais vestibularizados, e/ou os superiores, mais lingualizados. Os fatores ambientais, como nas outras maloclusões, justificam a maioria dessas situações. Além das alterações funcionais na respiração, postura, mastigação, deglutição, fonação, etc., po-
Figura 22 Deglutição atípica com interposição lingual. Figura 19 Tratamento com máscara facial para avanço do terço médio da face.
Figura 20 Resultado do tratamento da mordida cruzada anterior concluído após 6 meses de uso dos aparelhos.
Figura 23 Mordida profunda. Observar que os dentes inferiores tocam a mucosa do palato.
Figura 21 Mordida aberta anterior.
Figura 24 Mordida profunda.Observar que não é possível enxergar os dentes incisivos decíduos inferiores.
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Figura 25 Mordida profunda tratada com as pistas diretas planas modificadas. Figura 27 Mordida cruzada posterior. Observar o desvio da linha média para o lado cruzado.
Figura 26 Correção da mordida profunda favorecendo os movimentos mandibulares e o crescimento facial.
dem estar associadas a essas oclusopatias também fraturas condilares, traumatismos faciais ou dentários, assimetrias faciais, que se não tratadas na infância, poderão evoluir para assimetrias graves na adolescência e nos adultos, implicando tratamentos complexos, envolvendo cirurgia bucomaxilofacial e ortodontia. Vários recursos ortopédicos e ortodônticos podem ser utilizados para tratamento desse tipo de oclusopatia na infância, contribuindo para a melhora funcional e estética da criança, melhorando a qualidade de vida e o bem-estar, diminuindo a necessidade de tratamentos complexos mais adiante.6,8 A mordida cruzada posterior (Figura 27) pode ser diagnosticada na sua origem e complexidade por meio de medições (cefalometria 3D) realizadas em tomografias computadorizadas de feixe cônico (Figura 28) ou helicoidais. As Figuras 29 a 31 mostram o tratamento da mordida cruzada posterior direita com desvio mandibular, pelas pistas diretas planas modificadas, e o resultado depois de 6 meses de tratamento. Apinhamento dentário Os dentes tortos e amontoados acontecem em mais da metade das crianças aos 6 anos de idade. Normalmente decorre do subdesenvolvimento dos ossos da face, associado aos fatores ambientais citados anteriormente ou relacionado à macrodontia – dentes com dimensões superiores à média (ver Capítulo 2 – Erupção dentária – alterações, eventos importantes, cronologia, fatores interferentes). O apinhamento dentário
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Figura 28 Cefalometria 3D, utilizada para diagnóstico das oclusopatias.
Figura 29 Mordida cruzada posterior direita com desvio mandibular.
torna-se evidente durante e após a troca dos dentes anteriores. No entanto, já pode ser detectado ainda na dentição de leite. Um arco dentário tipo II de Baume é caracterizado por não apresentar diastemas (espaços entre os dentes) e pode estar presente em crianças até o 3º ou 4º ano de vida. A partir dessa idade e de maneira progressiva, surgirão os diastemas, especialmente entre os incisivos superiores e também entre os in-
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feriores. O diastema que pode se apresentar na região anterior anteriores) como os melhores momentos para o tratamento (mesial) dos caninos superiores e na região posterior (distal) desses distúrbios do desenvolvimento e da oclusão dental.10 dos caninos inferiores é conhecido como diastema primata. As Figuras 32 e 33 mostram o apinhamento dentário no início Considerações finais da dentição mista, quando se torna muito evidente. As Figu- A maioria das oclusopatias ou maloclusões inicia-se, instalaras 34 e 35 mostram o aparelho funcional utilizado e o seu -se e agrava-se durante a infância. Portanto, podem e devem efeito depois de 1 ano de tratamento. Revisões sistemáticas na ser diagnosticadas na infância. literatura apontam o final da dentição decídua (de leite) ou o Até os 6 anos de idade, a criança atinge 80% do volume da início da dentição mista (início da troca dos dentes decíduos face que terá ao final da adolescência, representando, assim, o
Figura 30 Tratamento da mordida cruzada posterior pelas pistas diretas planas modificadas.
Figura 33 Apinhamento dentário na dentição mista, quando se inicia a troca dos dentes.
Figura 34 Tratamento com aparelho funcional. Figura 31 Mordida cruzada posterior após 6 meses de tratamento. Observar a correção da linha média.
Figura 32 Arcos dentários sem diastemas.
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Figura 35 Modelos em gesso realizados no início e após 1 ano de tratamento. Observar o aumento da distância intercanina e a correção de apinhamento dentário.
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período do desenvolvimento em que a face mais cresce. Tam‑ bém é o período de maior plasticidade de todos os tecidos e ór‑ gãos da face, tendo as funções orais papel importantíssimo no desenvolvimento facial e do sistema mastigatório. Vários tipos de oclusopatias podem ser prevenidos, sendo relevantes os profissionais da saúde na orientação dos pacien‑ tes. Quando presentes, várias oclusopatias podem e devem ser tratadas ainda na infância, por ser o melhor período para o tra‑ tamento.
4.
5. 6. 7.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer a oclusão dental na infância. • Reconhecer a importância das funções orais no desenvolvimento facial da criança. • Reconhecer os fatores de risco para estabelecimento de oclusopatias. • Diagnosticar oclusopatias na infância. • Conhecer as possibilidades de tratamentos para oclusopatias na infância e encaminhar o paciente para tratamento precoce.
8.
9.
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10.
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CAPÍTULO 8
DOENÇA CÁRIE, EROSÃO E DEFEITOS DO DESENVOLVIMENTO DENTÁRIO Sucena Matuk Long Sheyla Márcia Auad Jenny Abanto Marcelo J. Strazzeri Böneker
Introdução A cárie é uma doença crônica resultante do desequilíbrio de múltiplos fatores de risco e protetores ao longo do tempo,1 carac‑ terizando um desequilíbrio no processo saúde-doença em que componentes socioculturais apresentam marcante influência.2 A doença cárie pode se manifestar de forma grave, levando à destruição completa da coroa dentária em um tempo sur‑ preendentemente pequeno e interferindo de maneira negativa na qualidade de vida da criança, sobretudo nas de pouca idade. Na infância, essa doença está diretamente ligada a fatores die‑ téticos, principalmente a alimentação associada ao sono, com produtos que contenham carboidratos fermentáveis, em espe‑ cial a sacarose, e a ausência de higienização, que são facilita‑ dores da implantação de estreptococos do grupo mutans (EGM), principal fator microbiológico envolvido no processo saúde-doença da cárie dentária.2 Contaminação por estreptococos do grupo mutans EGM podem ser transmitidos verticalmente da mãe ou cuida‑ dor para a criança pelo contato salivar, afetado pela frequência e quantidade de exposição. Crianças de mães com altos níveis de EGM, resultante de cáries não tratadas, apresentam maior risco de adquirir os microrganismos mais precocemente, quando comparadas às crianças de mães com baixos níveis de EGM. A transmissão também pode ocorrer de forma horizon‑ tal, entre outras pessoas no dia a dia, em decorrência do com‑ partilhamento de utensílios contaminados por saliva, beijo na boca e limpeza oral da chupeta, entre outros.1 A contaminação da cavidade bucal do bebê ocorre a partir da irrupção do 1º dente, quando esses microrganismos já po‑ dem se colonizar. Por volta dos 19 a 31 meses de vida, com a ir‑ rupção dos primeiros e segundos molares decíduos (molares de leite), ocorre um período de risco denominado “janela de infectividade”, em razão da presença de sulcos e fissuras nas superfícies desses dentes e por sua localização mais posterior na cavidade bucal, o que predispõe a uma maior retenção de
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placa bacteriana e de EGM. Outras janelas são sugeridas na ir‑ rupção dos primeiros e segundos molares permanentes, res‑ pectivamente, aos 5 a 6 anos e aos 12 anos de idade.3 Cárie da primeira infância No Brasil, embora a prevalência de cárie venha diminuindo, os índices encontrados para os primeiros anos de vida ainda me‑ recem atenção especial. Tem ocorrido um aumento na preva‑ lência de cárie da primeira infância (ECC) (do inglês, early childhood caries).2 São quadros agudos, que evoluem rapida‑ mente e na sequência da erupção dos dentes, com exceção dos incisivos inferiores que, durante a amamentação, têm a proteção mecânica da língua (Figura 1). Em crianças com menos de 3 anos de idade, qualquer sinal de lesão cariosa em superfície lisa é indicativo de doença em estágios mais avançados, denominada cárie severa na primei‑ ra infância. A mamadeira é o principal veículo para o aleita‑ mento artificial, porém é nela que são oferecidos alimentos ca‑ riogênicos (p.ex., chá, suco, refrigerante, etc.), o que acarreta uma forte relação entre a presença de lesões cariosas e o uso
Figura 1 Cárie severa na primeira infância. Envolvimento dos dentes anteriores superiores. Observar inferiores íntegros em razão da proteção mecânica da língua durante a sucção.
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de mamadeira, principalmente se associada ao sono. Esse quadro é também conhecido como cárie de mamadeira.2 Lí‑ quidos como água, chá, sucos, etc. devem ser oferecidos no copo, assim como o uso da mamadeira nunca deve ser asso‑ ciado ao sono, quando ocorre redução do fluxo salivar, favore‑ cendo a retenção de substrato para colonização de microrga‑ nismos e desmineralização do esmalte. Quando o aleitamento materno ou artificial é realizado du‑ rante o sono e não é realizada uma higiene adequada dos den‑ tes, ocorre um aumento na predisposição à ECC. Outra asso‑ ciação aos quadros de ECC é a presença de otite média, quando a criança é alimentada em decúbito lateral.4 Em situações de doenças crônicas ou de ciclo repetitivo, com uso de medicação noturna, é necessário alertar os respon sáveis sobre o conteúdo de sacarose presente nos medicamen tos infantis sob a forma de suspensão e/ou xarope. A limpeza dos dentes após a ingestão desses medicamentos açucarados deve sempre ser orientada, evitando o início de desminerali‑ zação do esmalte dentário (ver Capítulo 3 – Higiene Bucal com Uso de Fluoreto – Medidas de Prevenção). A transmissão vertical de EGM mãe-filho, o padrão alimen‑ tar com uma alta frequência de uso de mamadeira à noite, com adição de açúcar a seu conteúdo, e o consumo alto e in‑ discriminado de alimentos açucarados oferecidos pelas mães
entre refeições são fatores de risco para o desenvolvimento de ECC. A falta de orientação sobre higiene oral para a família e o bebê é outro fator favorecedor. Muitas mães desconhecem o quadro de cárie precoce e que são agentes principais de sua transmissão, dados que mostram a necessidade de programas preventivos educativos sobre saúde oral nas unidades mater‑ no-infantis.5,6 A Tabela 1 apresenta a sequência de estágios de desenvolvi‑ mento das lesões na cárie severa na primeira infância.7 Nos estágios iniciais, a mudança de brilho do esmalte ocor‑ re nas regiões cervicais dos dentes, local de maior acúmulo de placa bacteriana, provocando uma desmineralização com sur‑ gimento de mancha branca opaca e rugosa (Figura 2). Essa si‑ tuação clínica é passível de remineralização com produtos fluoretados, pois é um estágio considerado reversível (ver Ca‑ pítulo 3 – Higiene bucal com uso de fluoreto – medidas de pre‑ venção), que deve sempre estar associado a um processo edu‑ cativo dos pais e das crianças, por meio de um programa preventivo com vistas à promoção de saúde bucal, realizado em qualquer estágio de desenvolvimento da doença cárie. Com a evolução da desmineralização, começa a ocorrer expo‑ sição da dentina subjacente, necessitando de remoção de teci‑ do cariado e restauração, associados a autocuidados caseiros (Figura 3).
Tabela 1 Estágios de desenvolvimento das lesões no quadro de cárie severa na primeira infância Estágios
Idade da criança em meses
Aspecto clínico
Observação/sintomatologia
1º: Inicial
10 a 20
2º: Perda de estrutura
16 a 24
Dentes anteriores superiores: descolorações amareladas ou acastanhadas; defeitos superficiais (envolve dentina)
Pais alarmados
Primeiros molares superiores: estágio inicial
20 a 36
Dentes anteriores superiores: defeitos marcantes no esmalte; irritação pulpar. Primeiros molares superiores: 2º estágio; primeiros molares inferiores: estágio inicial
Presença de dor provocada evoluindo para espontânea
30 a 48
Dentes anteriores superiores: grande perda de esmalte e dentina; fratura das coroas Primeiros molares superiores: 3º estágio; primeiros molares inferiores: 2º estágio
Dor espontânea ou necrose pulpar com presença de fístulas e/ou abscessos
Dentes anteriores superiores: desmineralização branco ‑opaca (mudança de brilho do esmalte)
Despercebida pelos pais
3º: Lesões profundas 4º: Traumático
Fonte: adaptada de Veerkamp e Weerheeijm.7
Figura 2 Cárie severa na primeira infância. Estágio inicial: mancha branca opaca (ativa), bem junto à gengiva.
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Figura 3 Cárie severa na primeira infância. Estágio de perda de estrutura (envolvimento da dentina).
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Doença Cárie, Erosão e Defeitos do Desenvolvimento Dentário •
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A gravidade se intensifica com o aumento de envolvimento Para diminuir o risco de desenvolvimento de ECC, ressalta‑ da dentina, que evolui rapidamente em direção à polpa dentá‑ -se a importância da atuação profissional multidisciplinar no ria, aparecendo relato de dor, inicialmente provocada, e que cumprimento de medidas preventivas profissionais e caseiras pode se tornar espontânea (Figura 4). O estágio traumático (autocuidados), como redução dos níveis de estreptococos do ocorre pela evolução das lesões inicialmente cervicais que vão grupo mutans nos pais e irmãos, evitando o compartilhamen‑ contornando o diâmetro do dente em direção às faces linguais, to de saliva com vistas a diminuir a transmissibilidade, além formando uma espécie de colar de fragilidade nessa região, da implementação de medidas de higiene oral a partir da erup‑ que, diante de qualquer traumatismo de mínima intensidade, ção do primeiro dente, salientado-se a importância do uso do levam à fratura patológica da coroa, com exposição da polpa e dentifrício com flúor, observando a quantidade e a concentra‑ dor7 (Figuras 5 e 6). ção de flúor1 (ver Capítulo 3 – Higiene bucal com uso de fluore‑ Muitas vezes, o tratamento odontológico é realizado quan‑ to – medidas de prevenção). do a criança já apresenta algum problema, principalmente dor Outro fator relevante é passar aos pais informações sobre a de dente, que afeta sua qualidade de vida. Portanto, as inter‑ troca das dentições, quando a criança deve ser encaminhada venções devem ser focadas na prevenção e na redução de para o odontopediatra, uma vez que o primeiro molar perma‑ doenças orais.8 nente, dente chave para estabelecimento da oclusão, irrompe por trás dos últimos dentes de leite, sem a perda de nenhum Promoção da saúde bucal dente (ver Capítulo 2 – Erupção dentária). Por essa razão, sua A Associação Brasileira de Odontopediatria recomenda que presença passa despercebida pelos pais, que devem imple‑ uma avaliação do risco em saúde bucal seja realizada até o 6º mentar a remoção de placa bacteriana sobre a superfície desse mês de vida pelo odontopediatra ou por serviço de atenção dente, uma vez que é o dente permanente com maior preva‑ odontológica especializado. O método clínico-anamnésico é lência de cárie. uma importante alternativa e deve incluir a avaliação dos há‑ O conhecimento sobre etiologia e manifestação da cárie bitos dietéticos e de higiene bucal do bebê e de sua família, dentária em crianças com pouca idade, bem como os métodos acesso ao flúor, condições de vida e de saúde, além de um exa‑ de prevenção, devem ser de domínio de todos os profissionais me minucioso da boca do bebê.2 que atuam na área de saúde.2
Figura 4 Cárie severa na primeira infância. Estágio de lesões profundas. Observar presença de fístula.
Figura 6 Cárie severa na primeira infância. Estágio traumático com fratura das coroas dentais. Quadro crítico com envolvimento até dos incisivos inferiores.
Figura 5 Cárie severa na primeira infância. Estágio traumático com fratura das coroas dentais. Observar polpa exposta nos dentes anteriores superiores.
Figura 7 Primeiro molar permanente irrompendo atrás dos molares decíduos.
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Erosão dentária As dentições decídua (de leite) e permanente podem sofrer certo desgaste em processos que são considerados fisiológicos. Entretanto, a ocorrência de algumas condições pode contri‑ buir para um incremento nesse desgaste, resultando em uma perda significativa de estrutura dentária em processos que não são fisiológicos. Um desses processos está relacionado à ação direta de ácidos sobre os dentes, denominada erosão dentária. O desgaste dentário por erosão é uma condição multifato‑ rial, pois sofre a influência de fatores químicos, biológicos e comportamentais.9 Existe um crescente interesse em relação ao estudo da erosão dentária, e evidências científicas sugerem um aumento na prevalência dessa condição, principalmente entre crianças e adolescentes. Entretanto, dados de estudos nacionais e internacionais reportam uma ampla variação des‑ sa prevalência (0,6 a 100%), provavelmente em decorrência dos diferentes índices e critérios utilizados para o diagnóstico da condição.10 O desgaste dentário erosivo não tratado pode levar à sinto‑ matologia dolorosa, alterar a função e/ou estética dentárias, comprometer o órgão pulpar e impactar negativamente a qua‑ lidade de vida dos indivíduos afetados. O diagnóstico precoce dessa condição torna-se, portanto, fundamental, pois contri‑ buirá para a adoção de medidas adequadas para sua preven‑ ção e/ou controle. Entretanto, em seus estágios iniciais, as le‑ sões erosivas podem não ser muito evidentes, pois as
alterações no esmalte são sutis. Com a progressão do processo, as lesões tornam-se mais evidentes e apresentam aspecto clí‑ nico característico, com perda de estrutura dentária caracteri‑ zada por superfícies com margens lisas e brilhantes, em que a largura das lesões normalmente excede sua profundidade (Fi‑ guras 8 a 10). Origem dos ácidos envolvidos no processo de erosão dentária A erosão dentária ocorre pela ação crônica de ácidos de origem não bacteriana sobre a superfície dos dentes, o que a diferen‑ cia da cárie dentária, cujos ácidos envolvidos são resultantes do metabolismo de carboidratos pelas bactérias da placa bac‑ teriana. Os ácidos do processo erosivo podem ter origem in‑ trínseca, quando o conteúdo ácido do estômago entra em con‑ tato com o meio bucal, em decorrência de alterações orgânicas ou psicossomáticas (como refluxo gastroesofágico ou bulimia nervosa) e/ou extrínseca (dieta e/ou medicamentos ácidos).9 A erosão ocorre por uma desmineralização da superfície do esmalte dentário, que fica amolecida, podendo ser removida
Figura 9 Desgaste dentário erosivo afetando os incisivos superiores permanentes, de uma adolescente de 13 anos de idade, com a ocorrência de pequenas fraturas nas superfícies incisais. Fator etiológico presente: consumo diário de refrigerantes.
Figura 8 Desgaste dentário erosivo afetando as superfícies oclusais dos molares decíduos de um paciente do sexo masculino, de 6 anos de idade, destacando-se a perda de estrutura ao redor das restaurações em amálgama. Fator etiológico presente: consumo regular e frequente de suco artificial em pó.
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Figura 10 Desgaste dentário erosivo afetando as superfícies palatinas dos incisivos superiores permanentes, de um adolescente do sexo masculino, de 14 anos de idade, destacando-se o brilho e a lisura das superfícies. Fator etiológico presente: consumo diário de refrigerantes.
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Doença Cárie, Erosão e Defeitos do Desenvolvimento Dentário •
pela ação de forças mecânicas posteriores, como a escovação dentária ou hábitos bucais deletérios, como o bruxismo. Dessa forma, o desgaste não está relacionado somente à perda mine‑ ral, havendo a interação com processos de atrito e/ou abrasão, o que caracteriza o desgaste dentário erosivo. Pacientes com bruxismo e que apresentem fator etiológico para erosão de‑ vem ser encaminhados para o odontopediatra. Quando a ero‑ são não é controlada, pode afetar também a dentina, levando a um desgaste mais extenso da estrutura dentária e, potencial‑ mente, comprometer o órgão pulpar. Ácidos de origem intrínseca A ocorrência de erosão dentária por ácidos de origem intrínse‑ ca está associada a alterações como a doença do refluxo gas‑ troesofágico e/ou transtornos alimentares caracterizados pela ocorrência de vômito frequente, como a bulimia nervosa. A perda de estrutura dentária por ácido intrínseco apresenta um padrão característico (Figura 11). Inicialmente, as superfícies palatinas dos incisivos são mais afetadas, mas com a progres‑ são do processo, as superfícies e cúspides palatinas de pré‑ -molares e molares também podem ser acometidas. Em casos mais graves, as superfícies oclusais de molares e as superfícies vestibulares de todos os dentes podem ser envolvidas, levan‑ do a uma grande perda de estrutura dentária.10 Nessas situações, existe a necessidade de uma reabilitação extensa do paciente, em um tratamento complexo e de alto custo. Por isso, o diagnóstico precoce é fundamental. Em ca‑ sos de presença de refluxo, o pediatra deve encaminhar o pa‑ ciente para o odontopediatra. Considerando que a presença de erosão dentária pode ser o único sinal clínico da ocorrência de refluxo silencioso, o odontopediatra deve encaminhar o pa‑ ciente para o pediatra, em casos de suspeição. A ocorrência de asma é uma complicação da doença do refluxo gastroesofági‑ co. Entretanto, dados sobre a associação entre asma e erosão dentária ainda são conflitantes. Por outro lado, a presença de transtornos alimentares tem sido potencialmente associada a
Figura 11 Desgaste dentário erosivo afetando as superfícies palatinas dos incisivos e caninos e superfícies oclusais dos molares superiores decíduos, de um paciente do sexo feminino de 7 anos de idade, com história de doença do refluxo gastroesofágico. Destaque para a visualização da entrada da câmara pulpar dos incisivos.
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um aumento na ocorrência, na gravidade e no risco para ero‑ são dentária. Nem todas as pessoas que sofrem de transtornos alimentares desenvolvem erosão dentária, havendo uma ca‑ rência de sólida evidência quanto a essa associação, o que res‑ salta a dificuldade de avaliação de risco dos diversos fatores envolvidos.11 Ácidos extrínsecos Medicamentos
O uso frequente e prolongado de medicamentos e suplemen‑ tos com baixo pH (como ácido acetilsalicílico e ácido ascórbi‑ co) pode contribuir para um maior risco de erosão dentária, especialmente quando ingeridos sob a forma de tabletes mas‑ tigáveis ou preparações efervescentes. Medicamentos que re‑ duzem o fluxo salivar e/ou alterem a capacidade tampão da saliva, como antieméticos, tranquilizantes e anti-histamíni‑ cos, também podem contribuir sobremaneira para o desenvol‑ vimento de erosão dentária, embora ainda não haja evidência clínica sobre essa associação.2 Pacientes que fazem uso fre‑ quente dessas medicações devem ser encaminhados para o odontopediatra para avaliação de sua condição bucal e acom‑ panhamento clínico, quando necessário. Dieta
Existe uma crescente evidência quanto à influência do consu‑ mo de uma dieta ácida no desenvolvimento de erosão, que é modulada por fatores químicos, biológicos e comportamen‑ tais. Os fatores químicos estão relacionado a pH, concentração de íons (fosfato, cálcio e flúor), tipo e quantidade de ácido pre‑ sentes nos alimentos, entre outros. Dentre os fatores biológi‑ cos, o efeito protetor da saliva, para a neutralização de ácidos na cavidade bucal, é fundamental. É importante também con‑ siderar que o esmalte e a dentina dos dentes decíduos (de lei‑ te) são mais finos quando comparados aos dos dentes perma‑ nentes, o que pode contribuir para a progressão mais rápida da erosão. Quanto aos fatores comportamentais, é recomen‑ dável orientar os pacientes em relação a interromper hábitos que aumentem o tempo de contato entre a dieta ácida e a es‑ trutura dentária, por exemplo, bochechar ou reter as bebidas antes de degluti-las. O consumo próximo à hora de dormir também deve ser evitado, pela redução do fluxo salivar.9 Atenção também deve ser dada ao consumo de guloseimas ácidas, como balas e pirulitos, que são produtos sem valor nu‑ tritivo e que apresentam alto potencial erosivo, sendo normal‑ mente consumidos entre as refeições principais. O consumo de frutas e vegetais, como parte de uma dieta balanceada, deve ser recomendado e não está relacionado ao desenvolvimento da erosão. Entretanto, as mudanças de hábitos alimentares ob‑ servadas nas últimas décadas, com o aumento marcante no consumo de bebidas como refrigerantes, sucos de frutas, sucos de soja, sucos artificiais em pó, isotônicos e energéticos, são consideradas como um dos mais importantes fatores de risco relacionado ao desenvolvimento do desgaste dentário erosivo.2 Nesse sentido, é importante ressaltar que o aconselhamento dietético para prevenção de erosão está em consonância com o que se propõe para a saúde geral, que estimula o consumo de
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alimentos saudáveis de forma equilibrada (ver Capítulo 5 – Ali‑ mentação, saúde bucal e a função mastigatória). Controle da erosão dentária O desgaste dentário por erosão é uma condição de crescente ocorrência, sendo essencial que medidas preventivas adequa‑ das sejam implementadas, especialmente em grupos de risco. Essas medidas incluem a determinação e a abordagem do fa‑ tor etiológico, objetivando prevenir ou diminuir a progressão da erosão. Quando a perda dentária comprometer a função e/ ou a estética, o paciente deve ser encaminhado ao odontope‑ diatra para avaliar as possibilidades restauradoras. Defeitos de desenvolvimento dentário Da mesma maneira, o conhecimento de alguns defeitos de de‑ senvolvimento dentário pelos pediatras é de suma importân‑ cia, visto que atualmente os pais ainda têm uma maior predis‑ posição para consultarem o pediatra do que levarem seus filhos a uma consulta odontopediátrica em idades precoces. O pediatra é peça-chave no reconhecimento de alterações que afetam o tecido dentário, tanto esmalte quanto dentina, para poder referir adequadamente o paciente ao odontopediatra, pois muitos defeitos poderiam ser detectados clinicamente na cavidade bucal sem necessidade de exames radiográficos complementares. O processo de desenvolvimento dentário, denominado odontogênese, apresenta seis estágios, os quais são sensíveis à indução de fatores modificadores, gerando, cada um deles, defeitos variados e clinicamente diferentes.12 Anomalias que ocorrem nos estágios de iniciação e proliferação Anodontia Este termo é empregado genericamente para indicar a ausên‑ cia de um ou mais dentes. Pode ocorrer tanto na dentição per‑ manente quanto na dentição decídua (ou de leite).13 Os incisi‑ vos laterais superiores e incisivos inferiores são os dentes afetados com maior frequência13 (Figura 12).
Figura 12 Anodontia de incisivos laterais superiores decíduos. Observar caninos erupcionados ao lado dos incisivos centrais.
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Caso seja detectada a falta de algum elemento dentário e o espaço correspondente a esse dente, pode-se perguntar para o responsável se o dente foi extraído pelo dentista, perdido por trauma ou se esfoliou naturalmente. Em caso negativo, é im‑ portante que o paciente seja encaminhado para o odontope‑ diatra. Supranumerários São dentes adicionais àqueles da série normal. Ocorrem fre‑ quentemente na região anterior e na maxila, sendo geralmen‑ te únicos e mais frequentes na dentição permanente do que na decídua.14 Quando tem a forma conoide e está localizada na li‑ nha média, entre os incisivos superiores, é denominada de mesiodens ou mesiodente15 (Figura 13). Os dentes supranumerários podem impedir a erupção ou ocasionar mau posicionamento, impactação ou reabsorção de dentes adjacentes, e podem desenvolver cistos dentígeros quando não irrompidos.14,16 Quando detectado mais de um dente com as mesmas características anatômicas na mesma hemiarcada dentária, no caso de crianças maiores de 3 anos de idade, é fundamental o acompanhamento por um odonto‑ pediatra. Fusão e geminação A fusão consiste na união entre a dentina e/ou esmalte de dois ou mais dentes em desenvolvimento. A fusão pode ser de um elemento da série normal e outro supranumerário, mas pode ocorrer também entre dois dentes da série normal (Figu‑ ra 14). A geminação consiste na divisão de um germe dentário em dois. A ocorrência da fusão e geminação pode ser unilateral ou bilateral.13,15 Ambas são mais comuns na dentição decídua do que na permanente, e mais na região anterior.13,15 Clinicamente, a fusão e a geminação são similares, sendo que os elementos dentários parecem estar unidos pela coroa. O diagnóstico diferencial é realizado pelo odontopediatra por meio de radiografia.
Figura 13 Mesiodens conoide irrompido na dentição permanente.
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Clinicamente, o pediatra pode observar que os dentes apre‑ sentam uma cor que varia do cinza ao violeta-acastanhado ou castanho-amarelado, mas todos apresentam um aspecto opa‑ lescente ou translúcido.4 Pode haver perda precoce do esmalte e, consequentemente, um desgaste oclusal acentuado dos dentes (na região do dente em que a criança morde) que pode ocorrer até o nível gengival (Figura 16).
Figura 14 Fusão bilateral de incisivo central e lateral inferior decíduo.
Anomalias que ocorrem nos estágios de histodiferenciação Amelogênese imperfeita hipoplásica A amelogênese imperfeita do tipo hipoplásica é uma condição hereditária e está relacionada à produção inadequada de ma‑ triz do esmalte do dente. Afetam ambas as dentições, decídua e permanente, e a maior parte do esmalte está envolvida em todos os dentes.13,15 Clinicamente, o pediatra detecta altera‑ ções no esmalte dentário, sendo que, em alguns casos, o es‑ malte pode apresentar rugosidades e fossetas ou sulcos e ru‑ gas verticais e irregulares (Figura 15). Na forma lisa, o esmalte sobre toda a coroa é afetado, e os dentes apresentam cúspides afiadas como agulhas.13 Os dentes afetados apresentam coroas de coloração âmbar, lisas, brilhantes e duras, e ausência de contatos entre os dentes. Dentinogênese imperfeita São conhecidos três tipos de dentinogênese imperfeita:2 tipo I, associada com a osteogênese imperfeita; tipo II, em que ape‑ nas os dentes são afetados; e tipo III, que ocorre apenas em um grupo raro isolado nos EUA. O tipo II é o mais comum, ain‑ da que relativamente raro, afetando tanto a dentição decídua quanto a permanente.
Figura 15 Amelogênese imperfeita do tipo hipoplásico na dentição permanente. Observar que os incisivos centrais superiores receberam coroas estéticas.
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Anomalias que ocorrem nos estágios de morfodiferenciação Microdontia Os dentes são menores que o normal, em função do desenvol‑ vimento insuficiente do germe dentário. Pode ser generalizada, na qual todos os dentes são menores que o normal, ou localiza‑ da, envolvendo um único dente. A microdontia é mais comu‑ mente observada nos incisivos laterais com um formato conoi‑ de, nos terceiros molares e nos dentes supranumerários.15 Macrodontia Ocorre quando um dente ou vários dentes são maiores que os normais. Pode ser generalizada ou envolver um único dente.15 O pediatra deve encaminhar o paciente ao odontopediatra quando observar uma discrepância de tamanho positiva na anatomia de dentes homólogos. Anomalias que ocorrem nos estágios de aposição Hipoplasia de esmalte A hipoplasia de esmalte pode ser definida como a formação in‑ completa ou defeituosa da matriz orgânica do esmalte dental. A hipoplasia envolvendo um único dente é mais comumente observada em incisivos superiores permanentes (Figura 17) ou em pré-molares superiores e inferiores.13,15 As causas mais comuns dessas alterações são traumatismos relacionados aos decíduos predecessores (ver Capítulo 13 – Trauma – atendi‑ mento e prognóstico) ou infecção resultando em dano dos ameloblastos do permanente sucessor.13 Esses dentes geral‑ mente são denominados dentes de Turner. Também pode en‑ volver mais dentes, como no caso dos bebês prematuros (ver Capítulo 12 – Atenção à saúde bucal do bebê prematuro). Clinicamente, as alterações hipoplásicas variam de uma pigmentação amarelada ou acastanhada do esmalte até uma
Figura 16 Dentinogênese imperfeita acentuada na dentição mista (decídua e permanente). Foto gentilmente cedida pelo Prof. Dr. Alfredo Carrillo (Paraguai).
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Figura 17 Hipoplasia de esmalte em incisivo central esquerdo permanente (dente de Turner) decorrente de traumatismo no dente decíduo predecessor.
extensiva escavação e irregularidade da superfície, e as coroas geralmente são menores que o normal.13 Essas características podem favorecer a sensibilidade dentinária, a maloclusão e o aumento de predisposição à cárie dentária. Anomalias que ocorrem nos estágios de mineralização Amelogênese imperfeita do tipo hipomineralizada A amelogênese imperfeita do tipo hipomineralizada é a mais comum e está relacionada à mineralização inadequada do es‑ malte dentário. É uma anomalia hereditária em que o esmalte tem a consistência de giz amolecido e exibe um aspecto que varia de branco opaco até uma aparência mosqueada amarelo‑ -acastanhada13 (Figura 18). O esmalte apresenta consistência mole e perde-se logo após a irrupção do dente em boca, dei‑ xando a dentina exposta e altamente sensível.15 Anomalias que ocorrem nos estágios de irrupção Dente natal e neonatal Os dentes natais estão presentes ao nascimento, enquanto os dentes neonatais erupcionam até 30 dias após o nascimento. A maioria desses dentes são incisivos decíduos inferiores.17 As
complicações incluem desconforto durante a sucção causan‑ do irritação e trauma na língua do infante, ulceração sublin‑ gual, laceração do mamilo materno e aspiração do dente por conta da ampla mobilidade.17 No caso de dentes natais e neonatais em recém-nascidos e bebês, respectivamente, o pré-diagnóstico pelo pediatra tor‑ na-se mais evidente. Em síntese, é de suma importância a integração da área médica com a odontológica em relação aos conhecimentos de saúde oral, nos exames de rotina em consultórios médicos, o que implementaria o encaminhamento precoce ao odontope‑ diatra para orientações e cuidados mais específicos em relação à promoção da saúde bucal18 (ver Capítulo Introdução – quali‑ dade de vida e saúde bucal). Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer a doença cárie e seus diferentes estágios de manifestação. • Correlacionar doença cárie e seu comprometimento à qualidade de vida da criança. • Identificar a manifestação clínica da erosão. • Identificar a origem dos ácidos envolvidos no processo da erosão. • Conhecer e identificar os defeitos de desenvolvimento dentário. • Atuar de forma integrada com o odontopediatra e promover o encaminhamento para prevenção e tratamento precoce das manifestações das lesões de cárie, erosão e defeitos de desenvolvimento dentário.
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CAPÍTULO 9
ODONTOPEDIATRIA NO AMBIENTE HOSPITALAR Cristina Giovannetti Del Conte Marcos Martins Curi
Introdução Ao considerar que a boa saúde oral é um componente impor‑ tante de saúde geral e implica que dentes, gengiva e todas as mucosas orais estejam íntegras e saudáveis,1 a participação do cirurgião dentista na equipe multidisciplinar que atende pa‑ cientes internados torna-se necessária e permite que o pacien‑ te tenha uma assistência mais completa de saúde, proporcio‑ nando melhora na qualidade de vida, valendo afirmar que a “saúde começa pela boca”. A associação entre doença de boca e alterações sistêmicas está fortemente embasada na literatura. Pacientes com doen‑ ça periodontal apresentam maior risco para infecções pulmo‑ nares, diabete e doenças cardiovasculares,2 sendo recomen dados os cuidados orais para prevenção dessas doenças sistêmicas,3 os quais devem ser realizados ao longo da vida do paciente, e não somente no período de internação. Atuação do cirurgião-dentista no ambiente hospitalar A atuação do cirurgião dentista (CD) no ambiente hospitalar é extremamente diversificada, pois depende da estrutura e do perfil do hospital. Quanto mais diversificado for o hospital, maiores serão as necessidades de atuação do CD. Sua atuação pode ser em pacientes internados, em centro cirúrgico ou am‑ bulatório, e pode ser desde orientar sobre higiene e cuidados orais aos pais e à equipe de enfermagem até diagnosticar e tra‑ tar patologias orais e complicações decorrentes de tratamen‑ tos ou doenças sistêmicas complexas, tratamento odontológi‑ cos propriamente dito e tratamentos complexos cirúrgicos4,5 (Tabela 1). Durante o período de internação, a rotina do paciente muda e a higiene oral faz parte desse aspecto. Inúmeros fatores in‑ fluenciam essa condição, desde a própria doença de base, a impossibilidade de locomoção, a monitoração dos sinais vitais e outros recursos para controle e sobrevida do paciente, além da ampla gama de medicamentos utilizados que podem afetar a qualidade e a quantidade de saliva. Além disso, algumas
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Tabela 1 Possibilidades de atuação do cirurgião dentista em âmbito hospitalar Pronto ‑socorro
• Atendimento de trauma craniofacial; trauma dentário; infecções odontogênicas
Atendimento • Diagnóstico e tratamento de problemas ao paciente exclusivamente odontológicos: fratura de internado restauração, dor dentária; apertamento e bruxismo; abscessos; retenção prolongada de dentes decíduos • Interconsulta para diagnosticar e tratar lesões orais • Diagnóstico e tratamento de distúrbio temporomandibular Unidade de terapia intensiva
• Orientação de higiene • Cuidados orais de complicações da entubação • Tratamento de complicações na boca de alterações sistêmicas • Tratamento de complicações de quimioterapia e radioterapia • Diagnóstico e tratamento de lesões orais • Tratamento odontológico propriamente dito: curativo, cirurgias
• Orientação relativa a saúde oral do recém‑ Hospital ‑maternidade -nascido • Avaliação da cavidade oral do recém-nascido • Diagnóstico de freio lingual • Pacientes com necessidades especiais • Tratamento odontológico em centro cirúrgico sob anestesia geral • Acompanhamento e orientação para a resolução dos problemas em tecidos duros e moles da cavidade bucal com repercussão sistêmica para o paciente Pacientes oncológicos
• Participação de equipe multiprofissional que irá atender o paciente oncológico • Preparo de boca • Orientação a paciente e acompanhantes sobre medidas preventivas e cuidados especiais durante e após o tratamento oncológico • Acompanhamento diário do paciente com finalidades preventivas e curativas • Cuidado às complicações bucais durante e pós ‑quimioterapia e radioterapia • Preparação de abridores de boca individualizados para radioterapia
Pacientes transplanta‑ dos
• Preparo de boca • Orientação a paciente e acompanhantes sobre medidas preventivas e cuidados especiais durante e após o tratamento • Acompanhamento diário do paciente com finalidades preventivas e curativas
Fonte: adaptada de Haddad et al., 2015.
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complicações podem surgir durante o período de internação, como infecções oportunistas fúngicas e virais, lesões traumá‑ ticas, alterações das mucosas decorrentes do tratamento e dos medicamentos utilizados, manifestações orais de doenças e complicações dentárias, como abscessos, fratura de dente e risco de aspiração desses, que demandam atenção imediata de equipe especializada. Prevenção da pneumonia associada a ventilação mecânica Outro fator importante a ser considerado é o risco de pneumo‑ nia nosocomial, uma vez que a cavidade oral pode servir como um reservatório importante de patógenos respiratórios. A principal complicação em pacientes entubados sob ventilação mecânica é a pneumonia associada à ventilação mecânica (PAV), uma infecção nosocomial caracterizada por uma infla‑ mação do parênquima pulmonar, que se manifesta 48 horas após a instalação da ventilação mecânica, em pacientes entu‑ bados ou traqueostomizados, não portadores de pneumonia no momento da internação. A própria colonização e a aspira‑ ção de microrganismos da orofaringe são os principais fatores de risco para sua instalação e desenvolvimento. Pacientes en‑ tubados e/ou traqueostomizados, sob ventilação mecânica, são suscetíveis à PAV por conta da perda da barreira de prote‑ ção natural entre a orofaringe e as via aéreas respiratórias bai‑ xas, associada à eliminação do reflexo da tosse em virtude da sedação, promovendo o acúmulo de secreções contaminadas acima do cuff, o que permite maior colonização da árvore tra‑ queobrônquica e aspiração de secreções contaminadas para vias aéreas inferiores.6 O tubo endotraqueal pode ser um dis‑ positivo propício para a colonização de bactérias patogênicas da boca e da orofaringe, favorecendo a contaminação/infec‑ ção para os pulmões, e microaspirações podem contribuir para o desenvolvimento de pneumonia nosocomial.7 Portanto, o cirurgião-dentista tem papel de destaque, desenvolvendo protocolos de higiene oral, além de orientar e educar a equipe de enfermagem. Pacientes com necessidades especiais Em unidade de terapia intensiva e nas demais unidades de in‑ ternação, é comum a longa permanência de pacientes com necessidades especiais. Esses pacientes, principalmente por‑ tadores de paralisia cerebral, autismo e alterações de desen‑ volvimento, apresentam maior risco para doenças bucais (cá‑ rie e periodontal) por causa da dificuldade em realizar a higiene oral pelos cuidadores, diminuição do fluxo salivar, preferência por alimentos mais pastosos e ricos em sacarose, dificuldade de mastigação e uso frequente de medicação. Me‑ dicamentos como alguns anticonvulsivantes promovem o crescimento do tecido gengival, dificultando ainda mais a hi‑ giene oral, e outros medicamentos levam a uma alteração na qualidade e na quantidade da saliva, componente importante para o equilíbrio e a manutenção da saúde bucal.8 Aqueles que se alimentam por gastrostomia têm maior ris‑ co para doenças da boca, como acúmulo de cálculo e gengivi‑ te,8 além de frequentemente apresentarem bruxismo, que pro‑
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voca desgaste acentuado do esmalte e dentina. Se o paciente apresenta hipotonia muscular e permanece com a boca aberta a maior parte do tempo, há uma alteração na posição dos den‑ tes, o que pode dificultar ainda mais a higiene oral.9,10 Outro fator complicante é a retenção prolongada dos den‑ tes decíduos, ou seja, os dentes de leite continuam presos na gengiva sem caírem, dificultando a erupção dos dentes perma‑ nentes.9,10 Várias condições genéticas podem levar a atraso na erupção do dente permanente, como síndrome de Alpert, sín‑ drome de Down, osteogênese imperfeita, neurofibromatose, displasia do ectoderma, displasia cleidocranial, entre outras. Dentre as alterações sistêmicas que afetam a erupção dentária, destacam-se alterações endocrinológicas, quimioterapia, fis‑ sura palatina, doença celíaca, insuficiência renal, anemia, pa‑ ralisia cerebral e uso prolongado de fenitoína. Fatores como nutrição e peso também podem influenciar essa condição dentária.9 A retenção prolongada dos dentes decíduos pode acarretar inflamação gengival, sangramento, dor e até forma‑ ção cística nos dentes permanentes retidos. Outro grupo de pacientes que merece atenção são os pre‑ maturos, pois podem apresentar alteração na morfologia do palato, geralmente decorrente da entubação orotraqueal, alte‑ ração de esmalte dentário e dimensões dentárias, o que po‑ dem levar a desenvolver maloclusões11 e maior risco para de‑ senvolvimento da cárie dentária. Os pacientes com necessidades especiais requerem atendi‑ mento odontológico diferenciado, sendo necessário, em al‑ guns casos, o tratamento sob anestesia geral, quando se reali‑ zam cirurgias, tratamento de canais até restaurações. Enquadram-se também nesse grupo de pacientes aqueles que serão submetidos a cirurgias cardíacas e/ou transplantes, para quais a equipe de odontologia apresenta papel funda‑ mental na eliminação de focos de infecções em boca antes dos procedimentos cirúrgicos. Importância da higiene oral Conforme citado anteriormente, o CD tem um papel funda‑ mental na orientação, educação, motivação e capacitação da equipe de enfermagem para a realização de higiene oral de maneira efetiva e adequada para as necessidades de cada pa‑ ciente. É comum que pacientes e familiares encontrem-se mais re‑ ceptivos a novos conhecimentos e à mudança de padrões du‑ rante o período de internação, sendo essa uma fase ideal para o estabelecimento de bons hábitos.4 Possibilidade de reabilitação oral Pacientes portadores de defeitos dentofaciais congênitos ou adquiridos podem ser estigmatizados pela família e sociedade, o que os leva ao completo isolamento social. Vale ressaltar que outros fatores, além dos fatores estéticos inerentes à deformi‑ dade facial, também podem estar prejudicados, como a masti‑ gação, a fonação e a respiração nasal. Cabe à odontologia uma importante participação e responsabilidade na equipe multi‑ profissional voltada para a reabilitação estética e funcional desses pacientes, promovendo reabilitação, maior conforto,
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bem-estar e ganho na autoestima, permitindo, assim, sua completa integração na sociedade.4 Tratamento quimioterápico e cuidados orais Muitos medicamentos e terapias podem apresentar efeitos co‑ laterais na cavidade bucal e comprometer o tratamento do pa‑ ciente. Um exemplo importante desse efeito é o tratamento antineoplásico, no qual a uma das complicações clínicas é a mucosite. A mucosite é caracterizada por inflamação e ulcera‑ ção da mucosa oral, resultando em dor intensa, desconforto, disfagia e debilidade sistêmica. A mucosite desorganiza a bar‑ reira mucosa do trato aerodigestivo superior, criando uma por‑ ta de entrada para a microbiota oral e aumentando sobrema‑ neira o risco de bacteremia, fungemia e sepse. Vale ressaltar que a mucosite é um efeito colateral dispendioso, pois aumen‑ ta o tempo de internação e os custos com medicamentos para o controle das infecções associadas, das hemorragias e da des‑ nutrição.4,12 O acompanhamento odontológico é determinante para re‑ duzir a severidade da mucosite e o potencial séptico prove‑ niente de sítios bucais. A participação do CD no tratamento da mucosite oral acelera a cicatrização das lesões ulceradas e me‑ lhora significativamente a sintomatologia dolorosa e a quali‑ dade de vida do paciente já debilitado, por meio de orientação específica ao paciente e à equipe de enfermagem e nutrição, junto com os cuidados locais com higiene e uso do laser de baixa potência. O uso do laser de baixa potência especifica‑ mente é importante na prevenção e no tratamento da mucosi‑ te induzida por rádio e quimioterapia, diminuindo o tempo de internação e o tempo de evolução das lesões de mucosite e melhorando a dor. A avaliação odontológica prévia a rádio e quimioterapia também é fator importante na prevenção e na redução da severidade da mucosite, além de diminuir focos infecciosos em cavidade oral antes do tratamento.12,13 Atuação com gestantes e puérperas A orientação e a educação de gestantes e puérperas sobre os cuidados com a boca do bebê no 1º ano de vida servem de ali‑ cerce para as boas práticas e a valorização da saúde oral no nú‑ cleo familiar. Este é um período no qual a família está ávida por informações e conhecimentos que tragam benefício para o bebê, portanto, um momento oportuno para fornecer infor‑ mações sobre a saúde oral.14 Essas orientações podem ser for‑ necidas em cursos de pré-natal, na maternidade e antes do aparecimento do primeiro dente de leite. O odontopediatra na maternidade também pode ajudar a diagnosticar a anquiloglossia, o freio lingual curto e outras pa‑ tologias, como dente natal (dente que já está na cavidade oral no momento do nascimento) ou dente neonatal (dente que ir‑ rompe no 1º mês de vida). Nesses casos, o diagnóstico adequa‑ do após exame clínico cauteloso define o planejamento de atuação, seja cirúrgico ou conservador. Indica-se exame radio‑ gráfico dos dentes natais e neonatais para definir se são dentes da série normal da dentição decídua ou se são dentes supra‑ numerários, além de avaliar a condição clínica e o grau de mo‑ bilidade do elemento dentário. Nos casos que apresentem mo‑
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bilidade exagerada oferecendo risco de aspiração, a extração está indicada.15 Em alguns casos, pode ocorrer uma lesão traumática no ventre da língua, em virtude do atrito do dente com essa su‑ perfície ao mamar;15,16 nesses casos, quando a mobilidade for mínima, indica-se o alisamento do bordo incisal e a manuten‑ ção do elemento dentário. Outras ocorrências comuns em neonatos e que causam preocupação nos pais, pois se assemelham a dente, são as pé‑ rolas de Epstein, os nódulos de Bohn e os cistos da lâmina dentária. Trata-se de alterações de desenvolvimento que desa‑ parecem até os 3 meses de idade, sendo necessário apenas o acompanhamento clínico e nenhuma intervenção16 (ver Capí‑ tulo 1 – Exame físico da cavidade bucal). Considerações finais O impacto da condição oral na saúde do indivíduo está claro, destacando a possibilidade de que microrganismos presentes na cavidade oral e as respostas teciduais inflamatórias localiza‑ das na boca possam influenciar o início e/ou a progressão de vários processos patológicos, sendo, muitas vezes, a relação en‑ tre doenças bucais e outras doenças uma via de mão dupla. A participação do CD pode apresentar impacto positivo significa‑ tivo no tempo de internação e custo total do tratamento, melho‑ ra a qualidade de vida do paciente no período no qual permane‑ ce internado e traz um diferencial importante para a instituição.4 Diante do exposto, é indiscutível a necessidade de acompa‑ nhamento odontológico durante o período de internação hos‑ pitalar, participando do processo preventivo, terapêutico e melhorando a qualidade de vida do paciente.4 A ação de um CD integrado à uma equipe multidisciplinar, seja executando procedimentos, seja orientando pacientes e seus familiares e/ou responsáveis sobre a importância dos cuidados com a boca, tem um impacto positivo e significativo na saúde oral do paciente, tanto durante o período de interna‑ ção como ao retornarem aos seus lares. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Reconhecer a importância da saúde oral para a saúde geral do paciente. • Atentar para a diversidade da atuação do cirurgião ‑dentista no ambiente hospitalar. • Atuar na prevenção de pneumonia associada à ventilação mecânica (PAV). • Conhecer as peculiaridades do atendimento a pacientes especiais.
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CAPÍTULO 10
ESTOMATOLOGIA PEDIÁTRICA Paulo José Bordini Soraya Carvalho da Costa
Introdução A estomatologia pediátrica é um capítulo importante da odon‑ tologia, e seu foco é a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças e alterações orais que ocorrem na infância. Abrange um universo de patologias que deve ser do conheci‑ mento tanto do cirurgião-dentista como do médico, em espe‑ cial, o pediatra. Ao considerar a região orofacial do bebê, da criança ou do adolescente, o cirurgião-dentista e o pediatra devem estar aten‑ tos às mudanças estruturais que podem ocorrer nessa região, uma vez que elas desempenham um papel importante no de‑ senvolvimento da criança. Algumas delas estão presentes des‑ de o nascimento, outras manifestam-se meses ou anos mais tar‑ de; podem refletir alterações do crescimento e desenvolvimento das estruturas orais e/ou do complexo maxilomandibular, ou constituírem-se em verdadeiros processos patológicos que se desenvolvem mediante agressões das mais diversas naturezas. Atenção especial deve ser dada a crianças prematuras, pois apresentam um risco maior para desenvolver alterações pós-na‑ tais (ver Capítulo 12 – Atenção à saúde bucal do bebê prematu‑ ro). Prevenir, diagnosticar e tratar essas entidades requer, antes de qualquer coisa, um conhecimento profundo das bases fisio‑ lógicas e das especificidades dessas fases da vida do indivíduo. O objetivo deste capítulo é descrever de forma sucinta as principais afecções bucais que ocorrem nesse grupo de pacien‑ tes. Para uma abordagem mais profunda desse assunto, reco‑ menda-se recorrer aos compêndios de estomatologia. Alterações no recém-nascido Epúlide congênita Conhecida também como tumor de células granulosas congê‑ nito, mioblastoma congênito ou tumor de Neumann, é uma le‑ são não neoplásica rara encontrada em recém-nascidos. É uma entidade com etiologia ainda incerta, embora estudos mais re‑ centes mostrem que se trata de uma proliferação de células mesenquimais primitivas que exibem diferenciação para mio‑ fibroblastos, assemelhando-se às células do tecido nervoso.
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Clinicamente, aparece como nódulo único e pediculado, na maioria dos casos com menos de 2 cm de diâmetro, de superfí‑ cie lisa, às vezes, lobulado, com coloração variando do rosa ao vermelho, de consistência firme a elástica, localizado no rolete gengival da maxila, na região de dentes anteriores, em espe‑ cial na região dos dentes caninos decíduos que ainda não erupcionaram1,2 (Figura 1). Apresenta predileção pelo sexo feminino na razão de 8:1, correspondendo a aproximadamente 90% dos casos. Apesar de ser uma alteração de curso benigno, autolimitante e até re‑ gredir de forma espontânea, a remoção cirúrgica, na maioria dos casos, é necessária. Não há recidiva.1 Pérolas de Epstein e nódulos de Bohn Essas duas entidades fazem parte de um grupo de alterações denominadas “cistos palatinos do recém-nascido”. As pérolas de Epstein são nódulos císticos constituídos de queratina, provavelmente resultante de derivados de restos epiteliais re‑ tidos ao longo da linha de fusão dos processos palatinos du‑ rante o desenvolvimento fetal, enquanto os nódulos de Bohn
Figura 1 Epúlide congênita na região anterior do rebordo alveolar superior. Fonte: cortesia da Prof. Dra. Maria Salete Nahás Pires Corrêa.
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também são nódulos císticos preenchidos por queratina que se encontram na junção dos palatos duro e mole, derivados dos remanescentes epiteliais resultantes do desenvolvimento de glândulas salivares menores no palato. As pérolas de Epstein caracterizam-se por pequenas forma‑ ções nodulares com 2 a 3 mm de diâmetro, coloração esbranquiçada, firmes à palpação, circunscritas, únicas ou múltiplas, assemelhando-se a grãos de arroz, que ocorrem ao longo da rafe palatina mediana e tendem a desaparecer por es‑ foliação até os primeiros 3 meses de vida, portanto, não há ne‑ cessidade de tratamento2 (Figura 2). Os nódulos de Bohn, pequenos cistos preenchidos por que‑ ratina, são semelhantes às pérolas de Epstein, só que eles não ficam restritos à rafe palatina mediana, isto é, podem ser en‑ contrados espalhados pelo palato duro na forma de projeções esbranquiçadas.2 Cisto gengival do recém-nascido Este cisto origina-se a partir de remanescentes da lâmina den‑ tária, por isso, alguns autores também o denominam cisto da lâmina dentária. São encontrados nos rebordos alveolares dos recém-nascidos ou em crianças muito jovens, na mucosa ao longo dos lados vestibular e lingual dos processos alveolares, tanto da maxila como da mandíbula. Apresentam-se clinica‑ mente por múltiplas pápulas isoladas, circunscritas e de colo‑ ração esbranquiçada (Figura 3). São considerados como cistos gengivais de inclusão, pois possuem em seu interior um con‑ teúdo queratótico. Embora apresentem diferenças histológi‑ cas, ao exame físico, essas formações assemelham-se às péro‑ las de Epstein e aos nódulos de Bohn e também não necessitam de tratamento, uma vez que apresentam remissão espontânea.2
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gua de crianças que estão sendo amamentadas, ocasionada pela presença de dente natal ou neonatal. Trata-se de uma úl‑ cera traumática causada pelo atrito dessa mucosa com a su‑ perfície incisal dos dentes precocemente erupcionados na re‑ gião, durante o ato de sucção. A presença dessa úlcera pode interferir na capacidade de sucção e alimentação do lactente, podendo levá-lo a apresentar irritabilidade, inapetência e ris‑ co de deficiências nutricionais. Clinicamente, essa úlcera apresenta-se com bordas eleva‑ das e endurecidas, fundo necrótico de coloração branco-acin‑ zentada, halo inflamatório e é praticamente assintomática (Figura 4). O tratamento consiste, além da avaliação do estado geral e nutricional da criança, na remoção do agente irritante, por meio da extração do dente supranumerário ou alisamento das bordas cortantes e pontiagudas de dentes prematuros. A limpeza da superfície da úlcera 2 vezes/dia com hastes de al‑ godão embebidas em gluconato de clorexidina 0,12% é uma medida importante na prevenção de infecção secundária en‑ quanto se aguarda o procedimento cirúrgico3 (ver Capítulo 2 – Erupção dentária – alterações, eventos importantes, cronolo‑ gia, fatores interferentes).
Doença de Riga-Fede A característica principal desta doença é o aparecimento de uma úlcera, de dimensões significativas, na face ventral da lín‑ A
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Figura 2 Pérolas de Epstein: formação esbranquiçada na rafe palatina mediana. Fonte: cortesia da Prof. Dra. Maria Salete Nahás Pires Corrêa.
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Figura 3 Cisto gengival do recém-nascido no rebordo inferior (A) e superior (B). Fonte: cortesia da Prof. Dra. Maria Salete Nahás Pires Corrêa.
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Alterações em crianças e adolescentes Língua geográfica Também denominada de glossite migratória benigna ou erite‑ ma migrans, é um distúrbio inflamatório benigno, cuja preva‑ lência na população geral varia de 1 a 2,5%, sendo mais fre‑ quente nos adultos do que nas crianças. A causa específica da língua geográfica (LG) permanece desconhecida, porém vários fatores etiológicos têm sido sugeridos, como alergia, estresse emocional e condições sistêmicas como diabete e psoríase. Embora nenhum dos fatores etiológicos propostos forneça uma relação causal, alguns autores sugerem um papel signifi‑ cativo dos fatores psicossomáticos e genéticos na patogênese da LG. Essa alteração sem significado patológico ocorre principal‑ mente nos 2/3 anteriores do dorso da língua e/ou bordas late‑ rais. É caracterizada por áreas erosivas, eritematosas, de di‑ mensões variadas, podendo ter ou não um halo esbranquiçado contornando as erosões; na maioria das vezes, possuem limi‑ tes bem demarcados e apresentam um padrão circinado irre‑ gular lembrando um aspecto de mapa. As áreas erosivas, re‑ sultantes da descamação das papilas filiformes, permanecem
por pouco tempo, pois logo ocorre a reparação do tecido e no‑ vas áreas despapiladas surgem em outro ponto, dando a ideia de migração (Figura 5). Esse processo pode perdurar semanas ou meses, regredindo de forma espontânea e, eventualmente, recidivando mais tarde. De forma mais rara, os mesmos aspec‑ tos vistos no dorso da língua podem transcender essa região e acometer o epitélio que reveste o ventre da língua, assim como a mucosa do palato mole, mucosa labial e jugal, caracterizan‑ do uma variante dessa doença denominada estomatite migra‑ tória. A língua geográfica não tem significado patológico e não necessita de nenhum tratamento específico. Apenas orienta‑ ção ao responsável pela criança quanto à higienização da lín‑ gua, que deve ser feita com escova macia, e evitar ingestão de alimentos ácidos e/ou condimentados, em geral, são suficien‑ tes para diminuir a eventual queixa de glossodínea.4
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Figura 4 Doença de Riga-Fede. (A) Úlcera no ventre da língua. (B) Dentes neonatais. Fonte: cortesias do Prof. Dr. Danilo Antonio Duarte. e da Prof. Dra. Maria Salete Nahás Pires Corrêa.
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Figura 5 Língua geográfica: nota-se o contraste das áreas com e sem papilas filiformes. As papilas fungiformes não são afetadas.
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Úlcera traumática A úlcera traumática é uma solução de continuidade do epitélio oral resultante de uma agressão de natureza física dirigida contra os tecidos moles. Em crianças, não é raro ocorrer a mor‑ dida involuntária da mucosa oral após anestesia. Pode ainda ser resultante da ação traumática de dentes fraturados sobre a mucosa oral, ou mesmo ser causada por objetos introduzidos de forma intempestiva na boca. Traumas decorrentes de aci‑ dentes, quedas, brigas, cabeçadas, queimaduras térmicas ou químicas também podem levar à formação da úlcera traumáti‑ ca. O aspecto clínico depende do tipo de trauma, intensidade e localização, variando desde lesões de pequenas dimensões até grandes dilacerações. A exposição do tecido conjuntivo, ede‑ ma e dor são características comuns, podendo trazer dificul‑ dade em deglutir ou até mesmo falar2 (Figura 6). O tratamento requer a remoção, se ainda estiver presente, do agente causador (trauma) e limpeza da área com soro fisio‑ lógico, além de pesquisa e remoção de eventuais corpos estra‑ nhos. Em caso de trauma violento, em que haja acentuada ex‑ posição de tecido conjuntivo, as bordas da lesão devem ser aproximadas por meio de sutura. O tratamento sintomático com o uso de analgésicos e anti-inflamatórios pode ser neces‑
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sário para os casos de maior gravidade. A bioestimulação feita com laser terapêutico também melhora bastante o desconfor‑ to local e acelera o processo de reparação tecidual, sendo reco‑ mendado o uso do laser vermelho (visível) em uma potência de 3 a 6 J/cm2 sobre a lesão, com intervalos de 24 horas. Em geral, as úlceras traumáticas reparam-se de forma espontânea em um período de 7 a 10 dias.2 Cisto de erupção O cisto de erupção ou cisto eruptivo é uma tumefação que ocorre no tecido mole localizado sobre o rebordo alveolar con‑ tíguo ao dente decíduo ou permanente em erupção, bem antes de o dente aparecer na cavidade bucal. Essa doença é análoga ao cisto dentígero, porém, são reconhecidos como entidades clínicas separadas. O dentígero desenvolve-se ao redor da co‑ roa de um dente não erupcionado situado no osso; o cisto de erupção ocorre em tecidos moles após o rompimento da crista óssea, impedindo, assim, a erupção do dente. A sua exata etiologia não é clara; alguns autores referem a presença de trauma, infecções e falta de espaço para a erupção, resultando em dilatação, por acúmulo de fluido ou sangue, do espaço folicular que envolve a coroa de um dente em erup‑ ção.2,5 Segundo a literatura, a maioria dos cistos de erupção ocorre entre 6 e 9 anos de idade, nas regiões dos incisivos e molares, seguidos pelos caninos e pré-molares.5 Clinicamente, caracteriza-se pela ocorrência de um au‑ mento de volume em forma de cúpula, circunscrito, flutuante, de coloração translúcida ou azulada, assintomático, localiza‑ do e limitado à região do rebordo alveolar onde se dará a erup‑ ção de um dente decíduo ou permanente. A coloração azulada ou arroxeada se deve à hemorragia no espaço folicular entre a coroa do dente e o epitélio reduzido do esmalte; consequente‑ mente, a cavidade cística que circunda a coroa, em geral, pas‑ sa a ter essa coloração5 (Figura 7). Não é necessário nenhum tipo de tratamento, pois, na maioria das vezes, o cisto se rom‑ pe e ocorre a erupção do dente envolvido. Em alguns casos, pode ser feita a remoção da cobertura do cisto (ulectomia), permitindo que a erupção ocorra com maior rapidez.2
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Figura 6 Úlcera traumática decorrente de mordida após anestesia odontológica.
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Mucocele É uma lesão encontrada com frequência em crianças e adoles‑ centes; origina-se da ruptura de um ducto de glândula salivar menor e do consequente extravasamento de saliva para os es‑ paços teciduais adjacentes (cisto de extravasamento mucoso), ou pela retenção de saliva decorrente da obstrução parcial ou total do sistema de ductos (cisto de retenção). Quando a cole‑ ção de saliva ocorre superficialmente na mucosa oral, o seu as‑ pecto é bolhoso, assemelhando-se a uma cúpula de coloração translúcida ou azulada, superfície lisa, com tamanho aproxi‑ mado de 1 cm de diâmetro, consistência fluida, assintomática e que, se for perfurada, resulta em extravasamento de saliva (Figura 8). As mucoceles mais profundas exibem uma colora‑ ção rósea igualando-se ao tecido da região; as demais caracte‑ rísticas continuam inalteradas. A localização preferencial da lesão é no lábio inferior, em razão da grande concentração de glândulas salivares menores, podendo ocorrer também na
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Figura 7 Cisto de erupção ou eruptivo com destaque para a coloração azulada no rebordo.
Figura 8 (A) Superfície translúcida da mucocele superficial. (B) Mucocele exposta após excisão cirúrgica.
mucosa jugal e no ventre de língua. O tratamento é a excisão cirúrgica e, para minimizar a possibilidade de recidiva, as glândulas salivares envolvidas devem ser removidas e deve-se afastar qualquer injúria traumática na região.2,6
nho variado, raramente circunscrito, assintomático, de cor vermelha intensa, arroxeada ou azulada, que sofre isquemia quando submetido à pressão local (Figura 9). A punção, com a consequente aspiração de sangue, é uma manobra semiotéc‑ nica fundamental para o diagnóstico, uma vez que a biópsia, por razões óbvias, está contraindicada. Os hemangiomas localizam-se principalmente nos lábios, na mucosa jugal e na língua. A conduta envolve desde o acom‑ panhamento nos casos de hamartomas, pois eles tendem a re‑ gredir com o crescimento da criança, a até mesmo a aplicação intralesional de substâncias esclerosantes (oleato de etanola‑ mina ou glicose hipertônica), criocirurgia ou laserterapia ci‑ rúrgica para as lesões pequenas (hemangiomas capilares) e lo‑ calizadas em áreas de risco de traumatismo. Os casos de hemangiomas cavernosos devem ser encaminhados ao cirur‑ gião vascular para avaliação e conduta.2
Fonte: cortesia da Prof. Dra. Maria Salete Nahás Pires Corrêa.
Hemangioma É uma proliferação benigna anormal do endotélio dos vasos sanguíneos, sendo a neoplasia mais comum dos recém-nasci‑ dos e da infância. Em muitos casos, o hemangioma é conside‑ rado um hamartoma ou malformação, e não uma neoplasia verdadeira. Podem ser classificados de acordo com o envolvi‑ mento tecidual em: • capilares, quando associados a vasos de menor calibre, o que determina lesões, em geral, únicas e de pequenas proporções e mais superficiais; • cavernosos, quando vasos maiores, arteriais ou venosos dão origem a lesões únicas ou múltiplas, pulsáteis (arterial) e, em geral, deformantes.7 De forma clássica, a manifestação bucal do hemangioma apa‑ rece como uma lesão plana ou elevada da mucosa, sob a forma de nódulo endofítico, de consistência mole ou fluida, de tama‑
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Fonte: cortesia da Prof. Dra. Maria Salete Nahás Pires Corrêa.
Papiloma O papiloma oral é uma lesão que se manifesta na infância, também conhecido como papiloma escamoso. É uma prolife‑ ração benigna do epitélio escamoso estratificado que resulta no aparecimento de crescimentos papilíferos ou verrucosos
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É interessante ressaltar que esses subtipos virais não estão entre os da família HPV supostamente responsáveis por cau‑ sar a malignização dessas lesões orais, porque a virulência e a taxa de infectividade nesse tipo de lesão são extremamente baixas, diferindo, assim, de outras lesões induzidas pelo HPV. É a lesão papular mais comum da mucosa bucal, constituin‑ do 3% das lesões de boca. Foi relatado pela primeira vez por Tomes, em 1848, e recebeu a denominação “verruga gengival”. Clinicamente, manifesta-se como uma pápula ou nódulo exo‑ fítico, único, de tamanho variado (normalmente inferior a 0,5 cm de diâmetro), de base pediculada, bem delimitado, de su‑ perfície irregular papilífera (superfície verrucosa), consistência flácida, de coloração rósea, porém, como ocorre um depósito intenso de queratina na sua superfície, pode ter um aspecto es‑ branquiçado (Figura 10). Os locais de predileção para sua ocor‑ rência são a língua, os lábios e o palato, mas qualquer superfí‑ cie bucal pode ser afetada. Os papilomas orais não tendem à malignização e raramente aumentam de tamanho ou desapa‑ recem espontaneamente. O tratamento do papiloma oral é a remoção cirúrgica, e a margem de segurança não é obrigatória. A excisão cirúrgica pode ser realizada com bisturi convencional ou com laser de CO2, eletrocauterização e criocirurgia.9
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Figura 9 Hemangioma capilar na borda lateral da língua (A) e na mucosa jugal (B).
(semelhante à couve-flor).7 Essa lesão apresenta como possí‑ vel fator etiológico o papilomavírus humano (HPV). Há mais de 100 tipos sorológicos desse vírus com antigeni‑ cidade diferente, sendo que pelo menos 24 tipos de HPV estão associados com lesões de cabeça e pescoço, e os subtipos HPV-6 e HPV-11 são os mais comumente isolados nos papilo‑ mas orais. Embora sejam importantes, as formas de transmis‑ são na criança ainda permanecem um assunto controverso. Teoricamente, há várias possibilidades de transmitir o HPV para a criança, como transmissão perinatal, auto e heteroino‑ culação (sendo essas formas as mais prevalentes), além de abuso sexual e vias de transmissão indireta por meio de obje‑ tos contaminados8 (Tabela 1).
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Tabela 1 Modos de transmissão do HPV na criança8 Transmissão não sexual
Transmissão materna
Transmissão intraútero
Abuso sexual
Direta: De uma pessoa para outra Autoinoculação Indireta: Via objeto contaminado Via superfície contaminada
Parto vaginal Parto cesariano Ruptura precoce das membranas Via saliva (?) Via leite materno (?)
Infecção do trato genital materno Via transplacentária
Por meio do sêmen
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Figura 10 Papiloma em mucosa labial (A) e papilomatose viral no palato (B).
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A verruga vulgar também é uma hiperplasia focal do epité‑ lio escamoso estratificado que está relacionada principal mente aos subtipos virais HPV-2 e HPV-4, entre outros. É uma lesão comumente encontrada nas mãos de crianças, é conta‑ giosa e acomete a pele, mas também pode atingir a mucosa oral, principalmente por autoinoculação (hábito de chupar os dedos ou de roer as unhas). Quando isso acontece, a localiza‑ ção preferencial é a borda do vermelhão do lábio, a mucosa la‑ bial ou a ponta da língua. Clinicamente, a lesão é indistinguí‑ vel do papiloma. Eventualmente, a contaminação viral pelo HPV ocorre em uma área mais abrangente da mucosa oral; a presença do vírus na intimidade do epitélio estimula o cresci‑ mento epitelial local alterando a sua superfície, formando pla‑ cas esbranquiçadas de forma e contorno variáveis, de superfí‑ cie papilífera e assintomática. Essa entidade tem sido denominada papilomatose viral. O diagnóstico diferencial entre papiloma, papilomatose vi‑ ral e verruga vulgar e outras doenças é conseguido por exame histopatológico, em que se visualizam sinais de inclusão viral (coilocitose) e testes para a identificação genética dos vírus (imuno-histoquímico, hibridização in situ e reação em cadeia pela polimerase – PCR). O tratamento da verruga vulgar também é a excisão cirúrgi‑ ca, tomando-se o cuidado de remover a base da lesão.7-9 Gengivoestomatite herpética aguda A gengivoestomatite herpética primária é de uma das formas de resposta do hospedeiro diante da primoinfecção causada pelo Herpesvirus hominis. A infecção primária geralmente acontece na primeira infância, ao redor dos 2 ou 3 anos de ida‑ de, eventualmente no adolescente ou no adulto jovem, por meio de gotículas de saliva contaminada ou pelo contato com as secreções de lesões herpéticas ativas. Após o contágio, o sis‑ tema imune do paciente é ativado e, na maioria das vezes (99%), ocorre a formação de anticorpos neutralizantes, e a doença não se expressa clinicamente ou o faz de forma subclí‑ nica e inespecífica. No entanto, uma pequena parcela desses indivíduos infectados apresenta manifestações clínicas típicas como consequência dessa primoinfecção. Essa resposta pode ocorrer sob diversas formas clínicas e em várias regiões do or‑ ganismo, entre elas a gengivoestomatite herpética primária.2,6,7 Após um período de incubação de 1 semana, em média, o quadro clínico inicia-se por alteração do quadro geral, com ocorrência de febre, mal-estar geral, dores articulares, irritabi‑ lidade, dor ao deglutir e linfadenopatia regional que perdura cerca de 48 horas. O quadro local começa por inflamação gengival, com ede‑ ma, eritema e dor que precede a formação de vesículas que surgem a seguir, inicialmente na própria gengiva e depois se estendendo para língua, palato, mucosa jugal, orofaringe e re‑ gião peribucal (Figura 11). As vesículas aparecem até o 6o dia, rompem-se rapidamente deixando úlceras rasas no local, com halo eritematoso e fundo amarelo-acinzentado. Por vezes, outras mucosas, como a nasal e conjuntival, também estão comprometidas. Sialorreia e dor intensa completam o quadro clínico. Há casos em que as lesões são infectadas secundaria‑
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Figura 11 Gengivoestomatite herpética aguda em paciente adolescente. (A) Lesões vesicoulcerativas principalmente na gengiva palatina. (B) Gengivoestomatite herpética aguda em criança de 1,2 ano.
mente, agravando o estado geral do paciente. Em um período de 7 a 14 dias, não havendo complicações, as lesões regridem sem deixar sequelas, desaparecendo juntamente com os sin‑ tomas sistêmicos e a linfadenopatia.2,6,7 Após o desaparecimento das lesões e do quadro clínico ge‑ ral, os vírus tornam-se atenuados e permanecem latentes no interior das células do gânglio nervoso da região (trigeminal), podendo ser reativados em alguns casos, anos mais tarde, quando houver estado de imunossupressão local ou geral, dando origem a outra forma clínica da doença denominada herpes simples recorrente. O tratamento para a gengivoestomatite herpética primária é sintomático e de suporte. A terapêutica medicamentosa en‑ volve a administração de analgésicos, antitérmicos e anti-in‑ flamatórios. Eventualmente, essa doença pode ocorrer em as‑ sociação com a candidíase pseudomembranosa, o que requer o uso de antifúngico concomitante. Há recomendação espe‑ cial para a hidratação e dieta, que deve ser líquida, pastosa e proteica. Tratamentos locais incluem bochechos com antis‑ sépticos suaves, como o gluconato de clorexidina 0,12% diluí‑
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do na proporção de 1:1 de água filtrada, e, se necessário, anes‑ tésicos tópicos.2 Candidíase pseudomembranosa As infecções causadas pelo fungo do genêro Candida são deno‑ minadas candidíase ou candidose. A Candida albicans foi pri‑ meiramente descrita por Langenbeck (em 1830); é a espécie isolada das infecções com maior frequência, sendo considera‑ da o patógeno oportunista mais comum na espécie humana. Sua distribuição é muito ampla, podendo ser encontrada nas mucosas bucal, vaginal e gastrointestinal. Aproximadamente 40 a 60% das crianças são portadoras desse microrganismo na cavidade oral, permanecendo em um estado de equilíbrio com o restante da microbiota e com o sistema imunológico do hos‑ pedeiro (condição saprófita), sendo parte da microbiota nor‑ mal. No entanto, sob determinadas condições, como o uso prolongado de antibióticos, a imunossupressão causada pelo uso de corticosteroides, doenças imunossupressoras como HIV e quimioterapia, pode haver um crescimento desordena‑ do da colônia fúngica e ela passa da condição saprofítica para a condição patogênica, induzindo o aparecimento da lesão.
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Cerca de 10 a 24% das crianças desenvolvem o “sapinho” nos seus primeiros 18 meses de vida.10 A candidíase pseudomembranosa aguda, também conheci‑ da como “sapinho”, caracteriza-se clinicamente pelo apareci‑ mento de placas brancas facilmente removidas por raspagem, semelhantes a “leite coalhado”, localizadas em qualquer região da cavidade oral, principalmente na língua, mucosa jugal e pa‑ lato. Quando as placas são removidas, deixam uma superfície eritematosa e, às vezes, sangrante com leve sintomatologia dolorosa (Figura 12). Seu tratamento consiste no uso de antifúngicos tópicos ou sistêmicos, dependendo da extensão e da condição sistêmica do paciente, não se esquecendo de pesquisar a causa dessa proliferação desordenada da Candida. O antifúngico tópico de eleição é a nistatina, e os sistêmicos podem ser o fluconazol ou, mais recentemente, o itraconazol.6,7 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer as principais alterações orais que ocorrem na infância e na adolescência. • Identificar a manifestação clínica das alterações orais e seu comprometimento na qualidade de vida da criança e do adolescente. • Atuar de forma integrada com o odontopediatra e promover o encaminhamento para tratamento, quando necessário.
Referências bibliográficas 1.
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Figura 12 Candidíase pseudomembranosa aguda envolvendo a região anterior do ventre (A) e todo o dorso da língua (B).
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CAPÍTULO 11
FISSURAS PALATINAS Marcia André
Introdução As fissuras labiopalatinas (FLP) são deformidades congênitas que comprometem o terço médio da face. Em extensão variável, podem abranger lábio, rebordo alveolar, palato duro e palato mole. Encontram-se desde fissuras com morfologia simples, como a dissociação da musculatura orbicular do lábio superior, perceptível apenas durante a dinâmica labial, até fissuras que evidenciam falhas teciduais, distorções e deslocamentos das estruturas que compõem o maxilar superior.1 Etiopatogenia A etiologia das fissuras labiopalatinas é diversa e, muitas vezes, incerta, sendo que alguns casos se devem a alterações monogênicas, anomalias cromossômicas ou agentes ambientais. Em geral, a maioria é transmitida como uma condição multifatorial, em que se reconhecem fatores genéticos e ambientais.2 As fissuras de lábio e/ou palato representam uma das malformações congênitas de maior prevalência na espécie humana e, na literatura internacional, os índices oscilam entre 0,87 e 1,03:1.000, assemelhando-se aos registrados em diversos estudos no Brasil. A fissura de lábio ocorre por volta da 7ª semana de vida intrauterina, quando não há fusão do processo maxilar com o processo frontonasal, podendo ser uni ou bilateral. O momento e a duração do período de interferência determinam se a falha será restrita aos tecidos moles, identificando uma fissura labial incompleta, ou se será estendida até o forame incisivo, caracterizando uma fissura completa (Figura 1). A fissura de palato ocorre quando não há fusão das lâminas palatinas, ao redor da 10ª semana gestacional. Dependendo da extensão da falha de coalescência, a fissura palatina é completa, quando atinge os palatos duro e mole, ou é incompleta, ao comprometer apenas o palato mole (Figura 2). As fissuras de palato estão frequentemente associadas às fissuras de lábio, uma vez que, após a manifestação da fenda alveolar, sugere-se que a língua tende a ficar alojada nesse es-
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paço, permanecendo alta e anteriorizada, dificultando a horizontalização das lâminas palatinas e o subsequente fechamento do palato, o que ocasiona as fissuras labiopalatinas, que também podem ser uni ou bilateral, de forma completa ou não (Figura 3).
A
B
Figura 1 (A) Fissura labial unilateral esquerda completa. (B) Fissura labial bilateral incompleta.
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Fissuras Palatinas •
As fissuras palatinas são consideradas patologias distintas das fissuras labiais e labiopalatinas (Figura 3), porque, ao rever o processo embrionário, observa-se que essas estruturas se desenvolvem de forma e em tempos distintos. Além disso, a literatura mundial registra diferenças na incidência e na predis-
A
B
Figura 2 (A) Fissura palatina completa. (B) Fissura palatina incompleta.
Figura 3 Fissura labiopalatina unilateral direita completa.
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posição de sexo e etnia, na prevalência de anomalias associadas e na origem etiológica. Tratamento multidisciplinar As malformações orofaciais alteram a estética e são fatores de possíveis limitações funcionais (sucção, deglutição, respiração, mastigação, audição e fonação), com consequente distúrbiopsicossocial. O tratamento das fissuras labiopalatinas desenvolveu-se de forma significativa nas últimas décadas, sendo que a intervenção precoce e a atuação interdisciplinar caracterizam a melhor opção para o sucesso de uma reabilitação adequada. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda uma equipe multidisciplinar composta por neonatologista, pediatra, cirurgião plástico, cirurgião-dentista, otorrinolaringologista, fonoaudiólogo, psicólogo, assistente social, nutricionista e outros. Como o tratamento tem início ao nascimento e prolonga-se até o término do crescimento craniofacial, existem momentos em que a atuação de um determinado profissional é prioritária. A equipe base para a coordenação do trabalho terapêutico é constituída por cirurgião plástico, fonoaudiólogo e cirurgião-dentista. Tratamento cirúrgico O tratamento cirúrgico das fissuras labiopalatinas consiste em cirurgias primárias e secundárias, por meio de uma diversi dade de opções de técnicas e de oportunidades. A queiloplastia é a cirurgia primária que reconstitui a integridade labial e classicamente é realizada aos 3 meses de idade. Existe a tendência em alguns centros de reabilitação de executá-la precocemente, ainda na maternidade, porém a resultante tensão labial pode ser responsável por atresias maxilares significativas. A palatoplastia é a cirurgia primária indicada a partir dos 12 meses de idade, com o intuito de separar a cavidade nasal da bucal, visando sobretudo a restaurar a função sem prejudicar o crescimento do terço médio da face. Por essa razão, alguns centros postergam o fechamento do palato duro, optando somente pela palatoplastia velar no 1º ano de vida.3 As cirurgias secundárias são os procedimentos realizados para complementar as cirurgias primárias ou minimizar falhas eventualmente decorrentes delas. Nesse grupo, estão incluídas as rinoplastias, as faringoplastias e o enxerto ósseo alveolar. Tratamento fonoaudiológico A abordagem fonoaudiológica é precoce e intensa, com intervenções adequadas a cada fase do desenvolvimento da criança e coordenadas com os procedimentos cirúrgicos e o tratamento ortodôntico. A atuação precoce do fonoaudiólogo junto ao bebê é essencial quando a capacidade natural de alimentação está prejudicada. Em geral, as fissuras labiais permitem o aleitamento materno, enquanto as fissuras palatinas e as labiopalatinas necessitam de mamadeiras com bicos adaptados e manobras apropriadas, em razão da baixa pressão intrabucal (Figura 4). O uso da sonda nasogástrica é restrito às fissuras labiopalatinas associadas a pa-
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Figura 4 Fissura labiopalatina bilateral incompleta à esquerda.
tologias cardíacas, neurológicas e síndromes craniofaciais que acarretam estresse e perda ponderal por gasto energético. Sempre que há persistência de dificuldades respiratórias e de aleitamento, com ganho de peso insuficiente e cianose frequente, sudorese e cansaço, torna-se necessário um bom exame clínico para diagnóstico da presença de anomalias múltiplas.4 As orientações à família sobre alimentação, desenvolvimento cognitivo-motor, linguagem e audição são mensais até a finalização das cirurgias primárias. A partir dos 2 anos de idade, o fonoaudiólogo segue avaliando voz, fala, linguagem e audição da criança em terapia propriamente dita. Esse trabalho é um processo dinâmico e tem por objetivo permitir uma comunicação eficiente para o bem-estar psicossocial. Tratamento odontológico O tratamento odontológico precoce é instituído logo ao nascimento, com orientação aos pais quanto à necessidade de promoção de saúde bucal, ressaltando a importância da integridade dos dentes para uma adequada reabilitação. Recomenda-se que a higiene bucal seja introduzida logo ao sair da maternidade, por meio de gaze umedecida em água filtrada e fervida, pelo menos 1 vez/dia, para evitar que os resíduos do leite permaneçam nas regiões retentivas da fissura. Esse hábito ainda permite que a mãe supere o receio e/ou a repulsa gerados pela deformidade. As orientações quanto ao aleitamento, dieta alimentar e hábitos parafuncionais não devem divergir entre os membros da equipe e são fundamentais para o equilíbrio ósseo e muscular dos maxilares. Assim, torna-se indispensável o acompanhamento sistemático e regular. Paralelo ao trabalho educativo, pode ser iniciado o tratamento ortopédico maxilar precoce, também chamado de ortopedia neonatal ou ortopedia pré-cirúrgica. Previamente à queiloplastia, com a finalidade de corrigir e/ ou orientar o crescimento pré-maxilar, utiliza-se a bandagem adesiva, com um esparadrapo especial, antialérgico e sem
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grande aderência (Transpore 3M®), para evitar irritações dérmicas (Figura 5). Concomitante ao uso da bandagem adesiva, emprega-se a placa palatina em resina acrílica (Figura 6), que forma um bloqueio mecânico com os objetivos de facilitar a amamentação, orientar o posicionamento anatômico da língua, prevenir a irritação da mucosa vomeriana, evitar a sucção de dedo ou chupeta entre os segmentos maxilares e minimizar os problemas respiratórios, estimulando o correto crescimento maxilar.5 O uso de cremes adesivos favorece a adaptação e a retenção das placas palatinas, sendo que o movimento de sucção, institivo e intenso, também auxilia na estabilidade. As substituições dessas placas são feitas de acordo com o crescimento maxilar, portanto, dependem da idade e do padrão de desenvolvimento do bebê. Após a queiloplastia, a bandagem adesiva é suspensa, mas se mantém o uso das placas palatinas. Elas podem permanecer indicadas mesmo depois da palatoplastia, no caso de deiscências cirúrgicas ou quando se pretende minimizar o colapso dos segmentos maxilares, com a adição de parafusos expansores (Figura 7).
Figura 5 Bandagem adesiva com esparadrapo transparente em fissura bilateral.
Figura 6 Placa palatina em resina acrílica em fissura unilateral.
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Fissuras Palatinas •
Figura 7 Placa palatina com parafuso expansor em fissura bilateral.
Completando a dentição decídua, aos 3 anos de idade, a criança com fissura labiopalatina é monitorada regularmente pelo odontopediatra, para evitar as perdas dentárias por manifestação da cárie. Na literatura especializada, existem várias inconsistências quanto à prevalência de cárie em crianças fissuradas. Há um risco maior em razão das sobras teciduais e/ou retrações cicatriciais do lábio, decorrentes da reparação cirúrgica, em adição às frequentes anomalias dentárias de estrutura, forma, número e posição, particularmente nos dentes adjacentes à fenda alveolar (Figura 8). A odontopediatria acompanha as crianças fissuradas da mesma forma que as sem fissura, porém com atenção a: fibrose cicatricial, que pode interferir na eficiência da anestesia local; anomalias dentárias de número, pois elas impõem que as opções de intervenção sejam discutidas pela equipe multidisciplinar; presença de persistência da comunicação entre cavidade nasal e bucal; e alterações oclusais inerentes a cada tipo de fissura. A intervenção ortodôntica precoce, por meio de aparatologia quase sempre removível, justifica-se pela frequente redução da dimensão transversal do maxilar, que é mais severa na
Figura 8 Comprometimento dos dentes adjacentes à fenda alveolar.
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região de caninos (Figura 9). Em geral, quando as cirurgias reparadoras e a abordagem precoce da odontologia e da fonoaudiologia são bem conduzidas, as alterações oclusais presentes na dentição decídua não são significativas. Com a erupção dos primeiros molares permanentes, os problemas de oclusão intensificam-se e tendem a resultar em dano progressivo à relação esquelética e ao perfil facial, o que faz a atuação do ortodontista ser primordial nesse momento. O procedimento mais importante durante o desenvolvimento da dentição mista é a cirurgia de enxerto ósseo na fenda alveolar, que é realizada frequentemente entre 9 e 11 anos de idade, para promover a estabilização do arco maxilar, permitir a erupção do canino ou do incisivo lateral quando presente, dar suporte ósseo e periodontal e possibilitar a movimentação ortodôntica dos dentes adjacentes à fissura.6 Ao final da dentição permanente, fatores como influência dos tecidos cicatriciais, crescimento esquelético desfavorável inerente à própria patologia, padrões de crescimento herdados geneticamente e falhas na condução do tratamento determinam se a finalização da intervenção ortodôntica está ou não associada à cirurgia ortognática ou a um planejamento protético (Figura 10).
Figura 9 Aparelho ortodôntico removível expansor na dentição decídua.
Figura 10 Movimentação ortodôntica do canino na região do enxerto ósseo alveolar.
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Considerando-se que o tratamento de um portador de fis‑ sura labiopalatina realizado por uma equipe multidisciplinar tem início ao nascimento e se estende até o final do cresci‑ mento facial, pode-se inferir que os diversos profissionais en‑ volvidos precisam ter o compromisso de revisar periodica‑ mente a eficiência de sua atuação terapêutica e implementar mudanças no protocolo sempre que necessário, com o objeti‑ vo de alcançar a excelência em reabilitação, o que é certamen‑ te um grande desafio.
Referências bibliográficas 1.
2. 3.
4. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer a etiopatogenia das fissuras labiopalatinas. • Identificar as malformações orofaciais e possíveis limitações funcionais. • Organizar o tratamento de forma multidisciplinar. • Encaminhar para o tratamento odontológico logo ao nascimento. • Orientar os pais quanto à necessidade de promoção de saúde bucal.
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5.
6.
André M, Mattos BSC, Lopes MT. Fissuras labiopalatinas. In: Carvalho JCM, Dias RB, Mattos BSC, André M (orgs.). Reabilitação protética cra‑ niomaxilofacial. São Paulo: Santos, 2013. p.11-42. Castilho S. Etiopatogenia. In: Aljaro LM. Tratamiento interdisciplinario de las fissuras labio palatinas. Santiago: Pudahuel, 2008. p.43-56. Ferreira JCR, Minami E. Introdução ao estudo das fissuras labiopalatais. In: Melega JM (ed.). Cirurgia plástica – Fundamentos e arte – Cirurgia reparadora de cabeça e pescoço. São Paulo: Medsi, 2002. p.3-7. D’Agostino L, Rocha ISA, Cerrutti VQ. A fonoaudiologia nos pacientes portadores de fissuras labiopalatinas. In: Melega JM, Viterbo F, Mendes FH (eds.). Cirurgia plástica – Os princípios e a atualidade. Rio de Janei‑ ro: Guanabara Koogan, 2011. p.343-5. André M, Lopez MT, Abi Faraj JOR. Ortopedia e ortodontia nas fissuras labiopalatais. In: Carreirào S, Cardim V, Goldenberg D. Cirurgia plástica. São Paulo: Atheneu, 2005. p.297-306. Silva FOG, Ozawa TO, Carvalho RM. Enxerto ósseo secundário. In: Trin‑ dade IEK, Silva FOG. Fissuras labiopalatinas. Uma abordagem interdis‑ ciplinar. São Paulo: Santos, 2007. p.239-60.
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CAPÍTULO 12
ATENÇÃO À SAÚDE BUCAL DO BEBÊ PREMATURO Liliana Aparecida Mendonça Vespoli Takaoka Benjamin Israel Kopelman Ana Lucia Goulart
Introdução A Organização Mundial da Saúde (OMS) define crianças pré‑ -termo como aquelas que nascem com idade gestacional menor que 37 semanas.1 A prevalência de nascimentos pré-termo va‑ ria de acordo com a população estudada, e essa heterogeneida‑ de se deve às diferenças étnicas, culturais e sociodemográficas. No Brasil, a prevalência de prematuridade é de 5 a 15%, e as causas mais comuns são infecção do trato urinário, hipertensão arterial, desnutrição intrauterina, doenças maternas como car‑ diopatias, hipertensão arterial, diabete, placenta prévia, tabagis‑ mo, uso de drogas ilícitas, mães muito jovens vítimas de abuso, mães com idade acima de 35 anos, gestações múltiplas e outras.2 À medida que a sobrevida de prematuros aumenta, a im‑ portância de seu acompanhamento também cresce. Apenas nos estudos de seguimento de crianças e adolescentes nasci‑ dos pré-termo podem-se detectar as repercussões tardias das intercorrências e das intervenções no período neonatal em seu crescimento e desenvolvimento.3 As alterações orais encontradas com maior frequência em crianças nascidas prematuras são os defeitos de desenvolvi‑ mento do esmalte dentário (hipocalcificações e hipoplasias) que deixam o esmalte dos dentes mais porosos e com dimi‑ nuição da espessura e da dimensão da coroa. Essas alterações deixam os dentes predispostos ao acometimento de lesões de cárie dentária. Outras alterações orais observadas são as alte‑ rações no formato do palato e na sequência de erupção dentá‑ ria e dilaceração dentária.4,5 O conhecimento das alterações orais em crianças pré-ter‑ mo e de baixo peso ao nascer por parte dos pediatras e odonto‑ pediatras favorece a atuação transdisciplinar com o objetivo de educar, prevenir e atenuar as possíveis mudanças físicas e dentárias nessas crianças. Prevalência de defeitos de esmalte em crianças nascidas prematuras A formação do esmalte dentário começa ainda na vida intrau‑ terina. Os distúrbios do desenvolvimento de esmalte apresen‑
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tam-se como anomalias de estrutura e podem afetar ambas as dentições, tendo caráter sistêmico, local e hereditário.6 O dente funciona como um verdadeiro “quimógrafo biológi‑ co”, pois os ameloblastos são células extremamente sensíveis, e quaisquer insultos sistêmicos ou locais podem interromper a sua função de forma permanente ou temporária e responder como defeitos de esmalte. Como o esmalte, depois de forma‑ do, não sofre remodelação como os outros tecidos duros, qual‑ quer enfermidade sistêmica que provoca deficiência nutritiva ou trauma no germe em formação pode ser potencialmente capaz de produzir defeitos de esmalte.7 Investigações mais recentes feitas em crianças prematuras de muito baixo peso ao nascer reportam prevalência mais alta de defeitos de esmalte quando comparadas com estudos pré‑ vios. Na dentição decídua, Grahnén et al.7 avaliaram 82 crian‑ ças prematuras e 39 a termo e encontraram defeitos de esmal‑ te em 21% das crianças prematuras e 10% das nascidas a termo. Lai et al.8 observaram opacidade em 79% das crianças prematuras e em 30% das nascidas a termo e hipoplasia em 67% das prematuras e 10% das a termo. Velló et al.9 avaliaram 52 crianças prematuras e 50 a termo e observaram opacidade em 77% das crianças prematuras e em 80% das nascidas a ter‑ mo, além de hipoplasia em 60% das prematuras e 16% das a termo. Cruvinel et al.10 avaliaram 40 crianças prematuras e 40 a termo e observaram opacidade em 65% das crianças prema‑ turas em 63% das nascidas a termo, e hipoplasia em 38% das prematuras e 8% das a termo. Takaoka et al.5 avaliaram 45 crianças prematuras e 46 a termo e observaram que a frequên‑ cia de defeitos de esmalte foi de 87% no grupo de prematuros e de 44% nos nascidos a termo. Rythén et al.11 avaliaram 40 crianças prematuras e 40 a termo e observaram opacidade em 16% das crianças prematuras e em 0% das nascidas a termo. Na dentição permanente, Brogárdh-Roth et al.12 avaliaram 82 crianças prematuras e 82 a termo e observaram opacidade em 55% das crianças prematuras em 44% das nascidas a ter‑ mo, e hipoplasia em 2% das prematuras e 1% das a termo. Rythén et al.11 observaram opacidade em 40% das crianças
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2396 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 28 ODONTOPEDIATRIA
prematuras e em 30% das nascidas a termo, e hipoplasia em 5% das prematuras e 10% das a termo. Vale ressaltar que os estudos citados foram avaliados na revisão sistemática de Jacobsen,13 as crianças apresentam diferentes características e a metodologia e o cuidado técnico na avaliação interferem na frequência observada. Patogênese dos defeitos de esmalte em prematuros Os defeitos de desenvolvimento do esmalte podem se originar de fatores sistêmicos ou locais. Fatores sistêmicos Insultos sistêmicos podem ocorrer nos períodos pré-natal, neonatal ou pós-natal e podem levar a defeitos de desenvolvimento de esmalte.5,6,13,14 Os fatores sistêmicos associados aos defeitos de esmalte podem ser classificados como trauma de nascimento, infecções, distúrbios nutricionais, distúrbios metabólicos e bioquímicos, embora o mecanismo real dos danos teciduais ainda não seja muito bem entendido.5,6,13,14 Um fator etiológico que pode ser considerado na patogênese dos defeitos de esmalte em crianças nascidas prematuras é o desarranjo do metabolismo do cálcio e do fósforo que ocorre na maioria das crianças prematuras em graus variáveis. A etiologia dos distúrbios do cálcio e do fósforo é complexa e provavelmente resulta da interação de vários fatores. Dois terços dos estoques de cálcio e fósforo do neonato são acumulados durante o 3º trimestre de gestação, e crianças prematuras, nascidas entre 28 e 30 semanas de gestação, perdem muito da deposição desse mineral. Quando o cordão umbilical é clampeado ao nascimento, há uma abrupta cessação do transporte materno de cálcio e fósforo, levando a criança a utilizar o próprio estoque, principalmente dos tecidos duros, incluindo o esmalte dentário, para manter níveis séricos adequados. Até mesmo em crianças a termo, quando ocorre hipocalcemia, ela é vista nos dentes das crianças como uma linha neonatal que separa o esmalte calcificado na vida intrauterina do esmalte calcificado após o nascimento.6,14 Takaoka et al.5 observaram que crianças com déficit de crescimento pós-natal precoce, ou seja, aquelas com peso abaixo do percentil 10 de referência na idade corrigida de termo, têm 7,8 vezes mais chance de defeitos de esmalte do que crianças sem desnutrição nesse período. Fatores locais Sobrepostos aos fatores sistêmicos estão os fatores locais que podem predispor ainda mais as crianças nascidas prematuras aos defeitos dentais. Muitas crianças prematuras passam por laringoscopia e entubação endotraqueal para ventilação mecânica por insuficiência respiratória. Esses procedimentos podem resultar em forças traumáticas nos alvéolos.5,6 O trauma local do tubo orotraqueal, que pressiona a borda alveolar anterior dos maxilares, onde os germes dentários em formação ainda não estão protegidos pela tábua óssea, pode ser outra causa de hipoplasia de esmalte em crianças prematuras entubadas.6,13,14
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Estudo realizado por Boice et al.15 mostrou que crianças de muito baixo peso, que não sobreviviam, exibiam notável concavidade na borda anterior do maxilar esquerdo, delineando claramente o local do tubo orotraqueal. Secções histológicas feitas entre as bordas alveolares marcadas mostraram transtornos graves no desenvolvimento do órgão do esmalte. Em estudos mais recentes feitos com crianças nascidas prematuras que passaram por laringoscopia e entubação orotraqueal, observou-se que tiveram mais defeitos nos dentes anteriores maxilares. Takaoka e al.5 encontraram 100% de defei tos de esmalte nas crianças que foram entubadas. Levando-se em conta os achados, torna-se imperativo recomendar às equipes de atendimento neonatal que o uso do laringoscópio seja menos traumático e que seja considerado no protocolo de entubação orotraqueal o uso de suporte de proteção para o laringoscópio e para o tubo orotraqueal, feito de material resiliente, conforme sistema e método aplicados por Eremberg e Nowak.16 Aparência clínica dos defeitos de desenvolvimento do esmalte Defeitos de desenvolvimento de esmalte podem surgir de distúrbios na deposição da matriz, o que se acredita resultar em defeitos da superfície externa conhecida clinicamente como hipoplasia do esmalte. Esses defeitos no esmalte podem se apresentar como pontos ou ranhuras sobre a superfície do esmalte ou, em casos graves, como ausência de esmalte sobre as áreas de dentina. Em contraste, fatores que interferem com a calcificação e maturação do esmalte resulta na mudança da translucidez do esmalte conhecida como opacidade. É caracterizada por áreas brancas ou descoloridas, mas com superfície de esmalte intacta, exceto em alguns casos quando associados à hipoplasia.17 A formação do esmalte na dentição decídua é incompleta ao nascimento. Crianças nascidas prematuras teriam menos esmalte formado ao nascimento e a espessura, em geral, varia proporcionalmente com a idade gestacional.17 Defeitos de esmalte associados a fatores sistêmicos (Figura 1) são usualmente simétricos e envolvem as coroas dos dentes que estão passando pelo desenvolvimento no momento. É
Figura 1 Defeitos de esmalte associados a fatores sistêmicos.
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Atenção à Saúde Bucal do Bebê Prematuro •
muito importante que os profissionais de saúde conheçam a cronologia da formação da dentição humana (Tabela 1) para determinar a idade da criança no momento da instalação do defeito. Entretanto, ocasionalmente, esses defeitos não são simétricos, pois dependem da variabilidade do tecido local em desenvolvimento e da resposta à injúria recebida.17 Por outro lado, fatores locais durante o desenvolvimento dental tendem a afetar um único dente ou grupos de dentes. Nos prematuros submetidos à entubação orotraqueal, é frequente o envolvimento solitário do incisivo central superior esquerdo, sugerindo que fatores locais são responsáveis pela hipoplasia de esmalte17 (Figura 2).
2397
Figura 2 Defeitos de esmalte associados a fatores locais.
Tabela 1 Cronologia da formação da dentição humana de Logan e Kronfeld Dente
Dentição primária
Começo da formação da matriz do esmalte e da dentina Maxilar
Mandibular
Dentição permanente
Maxilar
Mandibular
Quantidade da matriz do esmalte formado ao nascimento
Esmalte completado
Saída para a cavidade oral
Raiz completada
Incisivo central
4 meses in utero
5/6
1,5 mês
7,5 meses
1,5 ano
Incisivo lateral
4,5 meses in utero
2/3
2,5 meses
9 meses
2 anos
Canino
5 meses in utero
1/3
9 meses
18 meses
3,25 anos
Primeiro molar
5 meses in utero
Cúspedes unidas
6 meses
14 meses
2,5 anos
Segundo molar
6 meses in utero
Pontas de cúspedes ainda isoladas
11 meses
24 meses
3 anos
Incisivo central
4,5 meses in utero
3/5
2,5 meses
6 meses
1,5 ano
Incisivo lateral
4,5 meses in utero
3/5
3 meses
7 meses
1,5 ano
Canino
5 meses in utero
1/3
9 meses
16 meses
3,25 anos
Primeiro molar
5 meses in utero
Cúspedes unidas
5,5 meses
12 meses
2,25 anos
Segundo molar
6 meses in utero
Pontas de cúspedes ainda isoladas
10 meses
20 meses
3 anos
Incisivo central
3 a 4 meses
Às vezes indícios
4 a 5 anos
7 a 8 anos
10 anos
Incisivo lateral
10 a 12 meses
4 a 5 anos
8 a 9 anos
11 anos
Canino
4 a 5 meses
6 a 7 anos
11 a 12 anos
13 a 15 anos
Primeiro pré a molar
1,5 a 1,75 ano
5 a 6 anos
10 a 11 anos
12 a 13 anos
Segundo pré a molar
2 a 2,25 anos
6 a 7 anos
10 a 12 anos
12 a 14 anos
Primeiro molar
Ao nascimento
2,5 a 3 anos
6 a 7 anos
9 a 10 anos
Segundo molar
2,5 a 3 anos
7 a 8 anos
12 a 13 anos
14 a 16 anos
Terceiro molar
7 a 9 anos
Incisivo central
3 a 4 meses
Às vezes indícios
12 a 16 anos
17 a 21 anos
18 a 25 anos
4 a 5 anos
6 a 7 anos
9 anos
Incisivo lateral
3 a 4 meses
4 a 5 anos
7 a 8 anos
10 anos
Canino
4 a 5 meses
6 a 7 anos
9 a 12 anos
12 a 14 anos
Primeiro pré a molar
1,75 a 2 anos
5 a 6 anos
10 a 12 anos
12 a 13 anos
Segundo pré a molar
2,25 a 2,5 meses
6 a 7 anos
11 a 12 anos
13 a 14 anos
Primeiro molar
Ao nascimento
2,5 a 3 anos
6 a 7 anos
9 a 10 anos
Segundo molar
2,5 a 3 anos
7 a 8 anos
11 a 13 anos
14 a 15 anos
Terceiro molar
8 a 10 anos
12 a 16 anos
17 a 21 anos
18 a 25 anos
Fonte: De Logan WHG e Kronfeld R. J Am Dent Assoc 1933; 20:379, levemente modificada por McCall e Schour.
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2398 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 28 ODONTOPEDIATRIA
Códigos dos defeitos de desenvolvimento de esmalte (DDE) Os defeitos de desenvolvimento de esmalte apresentam muitas variedades na apresentação clínica. Diversos autores propuseram classificações para identificar o padrão de distribuição dos defeitos de esmalte na dentição decídua e permanente. Em 1982, Ainamo e Cutress,17 da Commission on Oral Health, Research and Epidemiology, propuseram um sistema de classificação, e esse registro tornou-se o índice epidemiológico mais usado. Ele é denominado DDE Index (Index of Developmental Defects of Dental Enamel). Os autores basearam-se em aspectos clínicos para propor esse padrão de classificação, que foi normatizado de acordo com os seguintes critérios: superfície, tipo, número, demarcação e localização dos defeitos (Tabela 2). Para facilitar o uso desse quadro e melhorar o uso desse índice, torna-se importante definir os tipos, o número e a demarcação dos defeitos.
Tabela 2 Código dos defeitos de esmalte de acordo com a Commission on Oral Health, Research and Epidemiology17 Superfície (S) A – Vestibular B – Lingual C – Palatina
A opacidade é definida como defeito qualitativo de esmalte identificado como anormalidade na translucidez do esmalte. É caracterizado por uma área descolorida ou branca ou creme (Figura 3), ou amarela ou marrom (Figura 4), a superfície do esmalte é sempre lisa e a espessura do esmalte é normal, exceto em alguns casos associados à hipoplasia. A hipoplasia é definida como defeito quantitativo envolvendo a superfície do esmalte (defeito externo) e associado com a redução da espessura do esmalte. O esmalte defeituoso pode ocorrer como: • fossas superficiais pequenas ou grandes, profundas ou rasas (Figura 5); • sulcos arranjados horizontalmente de forma linear de um lado a outro da superfície do dente (Figura 6); • sulcos arranjados verticalmente (Figura 7); • ausência parcial ou completa de esmalte sobre uma área pequena ou considerável de dentina (Figura 8); • esmalte descolorido com aparência anormal, esta categoria excluindo a coloração opaca. Quanto ao número e à demarcação dos defeitos, é importante saber distinguir as seguintes apresentações: • simples: defeito bem diferenciado do esmalte normal adjacente. Somente uma lesão é visível na superfície do dente; • múltiplo: mais de um defeito com margens bem definidas e diferenciado do esmalte adjacente normal;
D – Mesial E – Distal Tipo de defeito (TD) A – Normal B – Opacidade – branca/creme C – Opacidade – amarelo/marrom D – Hipoplasia – fossas E – Hipoplasia – sulco horizontal F – Hipoplasia – sulco vertical G – Hipoplasia – falta do esmalte H – Esmalte descolorido I – Outros defeitos Número e demarcação dos defeitos (N) A – Simples
Figura 3 Opacidade branca/creme.
B – Múltiplo C – Difusos (linhas finas brancas) D – Difusos (irregular) Localização dos defeitos (L) A – Nenhum B – Metade gengival C – Borda incisal D – Metade incisal e gengival E – Oclusal F – Toda a cúspide G – Toda a superfície H – Outras combinações
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Figura 4 Opacidade amarelo/marrom.
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Figura 8 Hipoplasia – falta de esmalte.
Figura 5 Hipoplasia – fossas.
• difuso em linhas brancas finas: segue o padrão das periquimácias, com opacidade bem distinta. Linhas adjacentes de confluência podem ser observadas; • difuso com áreas nebulosas irregulares: opacidades bem distintas e com margens sem definição. Cárie dentária Defeitos de esmalte estão associados a aumento da prevalência de cárie, motivo pelo qual crianças nascidas prematuras poderiam eventualmente apresentar mais lesões de cárie do que crianças nascidas a termo. Isso se explica pelo fato de haver maior acúmulo de placa nos dentes com hipoplasia e hipocalcificação. No mesmo sentido, espera-se que a progressão da doença cárie seja mais rápida entre crianças nascidas prematuras, o que levaria à destruição mais grave dos dentes afetados18 (Figura 9). A atenção odontológica precoce e frequente com a finali dade de minimizar esses fatores de risco, inclusive por meio da educação e da instituição de hábitos saudáveis de dieta e higiene oral e de medidas preventivas direcionadas e eficazes, é de responsabilidade da equipe multidisciplinar que acompanha essa criança. Muitos casos de cárie de acometimento pre-
Figura 6 Hipoplasia – sulco horizontal.
Figura 7 Hipoplasia – sulco vertical.
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Figura 9 Cárie de acometimento precoce.
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coce poderiam ser evitados por cuidados odontológicos precoces e constantes. Defeitos do desenvolvimento do esmalte leves não são usualmente notados, embora o esmalte dental das crianças nascidas prematuras tenha se mostrado mais suscetível a hipoplasia de esmalte, o que aumenta a retenção de biofilme (placa bacteriana), tornando esses dentes mais suscetíveis à cárie. Em adição, a hipocalcificação pode conduzir à progressão mais rápida da cárie. As aplicações tópicas de flúor em esmalte defeituoso aumentam a resistência do dente para a cárie e elas devem ser trimestrais e nos casos mais graves podem ser mensais.18 Efeitos no palato Além dos danos para a dentição, forças de alavanca do laringoscópio e trauma contínuo do tubo orotraqueal têm potencial para alterar a configuração do palato.4 Muitos estudos foram feitos para determinar se as alterações do formato do palato são persistentes. Os resultados desses estudos mostraram que não há efeitos persistentes da entubação endotraqueal no palato e na configuração do arco dental, provavelmente pelo crescimento e remodelamento do palato. Observou-se que crianças prematuras podem apresentar maior predisposição aos fatores etiológicos que facilitam o desenvolvimento de mordida aberta anterior, como a adaptação precoce às funções orais extrauterinas (hábitos de sucção e nutrição), infecções respiratórias, respiração oral ou respiração nasal inadequada e hábitos orais não nutritivos (Figura 10). Os autores enfatizam a importância de estimular precocemente a atividade funcional dos músculos mastigatórios.4 É importante que o pediatra fique atento aos hábitos não nutritivos e aos aspectos da função mastigatória no período da transição líquido-sólido (estabelecimento da dentição decídua) e sua relação com as diferentes texturas alimentares. A mastigação é um reflexo condicionado aprendido e evolui com crescimento e desenvolvimento do complexo orofacial. Depende de que todas as partes necessárias do sistema nervoso central (SNC) e da musculatura tenham amadurecimento suficiente para tornar possível esse aprendizado.4
Figura 10 Arco dentário atrésico com mordida aberta.
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Cronologia de erupção dentária A prematuridade, por ser acompanhada de um grande número de afecções clínicas, pode constituir fator para o atraso da erupção dos primeiros dentes decíduos, que se processa de maneira integrada ao desenvolvimento e crescimento geral do organismo.4,18 Em estudo feito em prematuros, verificou-se que crianças com muito baixo peso ao nascer apresentaram poucos dentes decíduos erupcionados entre 6 e 11 meses de idade e entre 12 e 17 meses, comparadas a crianças com baixo peso ao nascer ou a crianças com peso normal ao nascer.18 Haddad e Correa19 fizeram estudo comparando a cronologia de erupção dos dentes decíduos em crianças de 0 a 36 meses, nascidas com peso adequado e com baixo peso, e concluíram que a erupção dentária ocorreu mais tarde nas crianças nascidas com baixo peso. Fernandes Neto20 acompanhou 40 crianças nascidas prematuras com peso inferior a 1.500 g e mostrou que a idade média de erupção dos primeiros dentes decíduos foi de 11 meses para a idade cronológica e de 9,61 meses para a idade corrigida. A comparação entre a média de idade de erupção dos primeiros dentes decíduos em relação à adequação nutricional ao nascimento mostrou que houve um atraso na idade cronológica de erupção nas crianças pequenas para a idade gestacional, no entanto, esse atraso não se confirmou quando a idade de erupção foi corrigida.18 Em revisão sistemática em que foram selecionados 113 artigos, apenas 13 preenchiam os critérios de inclusão. Foi observado atraso na maturação dentária e na erupção entre as crianças prematuras quando foi considerada a idade cronológica, mas nenhum atraso foi encontrado quando se considerou a idade corrigida.4 Alterações no tamanho das coroas dentárias Alguns estudiosos, observando o tamanho dos arcos dentários, analisaram também o tamanho das coroas dentárias e encontraram que as coroas dos dentes são significativamente menores para todos os dentes, exceto para os primeiros molares decíduos no grupo de prematuros. Outros observaram que quanto menor o peso ao nascer, menores eram as dimensões dentárias, enquanto um estudo não encontrou associação da prematuridade com a redução do tamanho da coroa dentária decídua.4 Considerações finais As crianças nascidas prematuras têm alta predisposição para apresentarem defeitos do desenvolvimento de esmalte na dentição decídua e permanente. A patogênese é multifatorial e o fator sistêmico mais importante é o desarranjo do cálcio no período neonatal. Entre os fatores locais que causam defeitos de esmalte inclui-se o trauma pelo laringoscópio e a entubação orotraqueal. Os fatores sistêmicos e locais não têm efeitos persistentes na dimensão do palato, na maturação e na erupção dentária. Programas eficientes devem ser implantados para a prevenção da instalação e progressão da doença cárie, evitando destruição mais grave dos dentes afetados.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer as alterações orais mais frequentes em crianças pré-termo e de baixo peso ao nascimento. • Identificar alterações de esmalte dentário. • Identificar alterações dos arcos dentários. • Acompanhar a cronologia da erupção de dentes e o tamanho dos dentes. • Identificar a manifestação clínica da cárie dentária. • Atuar de forma integrada com o odontopediatra e promover o encaminhamento para prevenção e tratamento precoce das manifestações das lesões de cárie e defeitos de desenvolvimento do esmalte.
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CAPÍTULO 13
TRAUMA DENTÁRIO: ATENDIMENTO E PROGNÓSTICO Marcia Turolla Wanderley Juliana Sayuri Kimura Sylvia Lavinia Martini Ferreira
Fatores de risco e prevenção do trauma dentário O trauma dentário pode ocorrer tanto nos dentes decíduos como nos permanentes, e sua prevalência varia de 20 a 30%1,2. Os dentes mais atingidos são os incisivos superiores, pois es‑ tão na região mais anterior da face. Quando a criança está aprendendo a andar, o equilíbrio e a coordenação motora ainda não estão amadurecidos e a crian‑ ça pode cair, bater a boca e por consequência os dentes, em parte em razão da ausência do reflexo de proteger o rosto. Ao longo do crescimento da criança e do adolescente, outros epi‑ sódios de traumas podem ocorrer por conta de brincadeiras, prática de esportes de contato, brigas, colisões em parquinhos, andar de bicicleta, skate e outros, podendo alguns traumas ser evitados e outros não. O importante é que, diante do trauma, a criança esteja assistida por um adulto responsável e que os cuidados pertinentes sejam realizados. Algumas crianças e adolescentes são mais propensos a que‑ das, como aqueles portadores de problemas ortopédicos, epi‑ lepsia, desmaios e/ou alterações no equilíbrio. Os responsáveis devem ser orientados sobre os cuidados de como evitar as que‑ das e consequentemente os possíveis traumas dentários, e aler‑ tados para procurar o odontopediatra, caso ocorra o traumatis‑ mo. O intervalo entre o acidente e o atendimento clínico vai depender do tipo de injúria causada pelo traumatismo, pois al‑ guns casos exigem urgência médica e odontológica. Na infância, a prevenção do trauma dentário está basica‑ mente relacionada aos cuidados gerais, como: não deixá-la sozi‑ nha, tentar deixar o ambiente seguro e adequar brinquedos e utensílios às diferentes idades, desenvolvimento e maturidade emocional da criança. Esses cuidados devem ser tomados des‑ de o nascimento, pois os dentes decíduos, localizados abaixo da gengiva em seu estado inicial de formação, podem sofrer trau‑ mas com consequências para as futuras dentições. Traumas se‑ melhantes àqueles que podem ocorrer nos casos em que o bebê, geralmente prematuro, ficou entubado por muito tempo (ver Capítulo 12 – Atenção à Saúde Bucal do Bebê Prematuro).
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Em geral, deve-se tomar cuidado ao trocar o bebê (eles po‑ dem se mexer e cair); evitar que a criança escorregue ao come‑ çar a engatinhar e andar, evitar o uso de meia, roupa de tama‑ nho maior que a criança, chão molhado e preferir que a criança ande descalça, de sapato ou meia com solado de borracha; li‑ mitar o acesso a locais altos (móveis em geral, janelas, esca‑ das); ao andar de carro devem usar cadeiras apropriadas e cin‑ to de segurança específico para as faixas etárias, entre outros cuidados.3,4 Dessa maneira, evita-se, além do traumatismo dentário, o risco de traumas mais graves e até risco de morte. Assim como recomendado pela Sociedade Brasileira de Pe‑ diatria, os andadores são contraindicados, pois a projeção da queda versus a velocidade do andador pode aumentar a força do impacto sobre a boca e os dentes durante a queda. Em relação à saúde bucal, existem fatores predisponentes que podem aumentar o risco de a criança traumatizar os dentes ao bater a boca. Esses fatores de risco são: mordida aberta anterior, protrusão dos incisivos superiores (sobres‑ saliência) e falta de selamento labial, que deixam os dentes superiores mais anteriorizados na face e sem proteção dos lábios.5 Normalmente, essa situação pode ocorrer na infân‑ cia em virtude do hábito de sucção inadequado e prolongado de chupeta, do dedo e/ou da mamadeira e ausência de sela‑ mento labial, associados ou não à síndrome do respirador oral, que deixam os dentes mais expostos aos traumatismos (Figura 1). Seguindo esse raciocínio, a prevenção do trauma nos den‑ tes decíduos começa desde o nascimento do bebê, com o in‑ centivo do aleitamento materno, uso racional da mamadeira e chupeta, bem como evitar a sucção do dedo (mais difícil de ser removido), para prevenir a maloclusão na infância3,6,7 (ver também Capítulos 4, 5, 6 e 7 desta Seção). Na dentição perma‑ nente, além desses fatores, há o padrão de crescimento facial da criança/adolescente, que pode comprometer a oclusão e outras funções orais, que por vezes exigem tratamento inter‑ disciplinar (otorrinolaringologista; ortodontista, fonoaudiólo‑ ga, fisioterapeuta e psicóloga).
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Trauma dentário: atendimento e prognóstico •
A
B
C
D
Figura 1 (A) Mordida aberta anterior. (B e C) Protrusão dos incisivos decíduos superiores (sobressaliência). (D) Ausência de selamento labial – fatores de risco para traumatismo dentário.
Crianças e adolescentes que praticam esportes de contato ou que tenham risco de quedas e colisões devem utilizar pro‑ tetores bucais, que recobrem os dentes a fim de protegê-los durante os impactos. Esses protetores são confeccionados de forma individualizada e necessitam de acompanhamento du‑ rante o período de crescimento e a troca das dentições. História clínica: como, quando e onde ocorreu o trauma A história clínica do paciente é muito importante na decisão de tratamento do traumatismo dentário, pois é preciso rela‑ cionar causa e efeito. No relato dos responsáveis e mesmo do paciente (quando possível), devem-se fazer três perguntas bá‑ sicas: como, quando e onde ocorreu o trauma. Ao examinar o paciente, devem-se relacionar o exame com a história relatada pelos responsáveis sobre como ocorreu o traumatismo, pois podem ocorrer casos de trauma não acidental, suspeitando-se de maus-tratos. Caso isso seja identificado, exame e anamne‑ se minuciosos devem ser realizados, procurando por outros si‑ nais e sintomas, recentes ou antigos, descrever bem o relato e fazer a notificação aos órgãos competentes para que outros profissionais possam avaliar a situação exposta. O relato de onde o paciente teve o traumatismo irá informar se o local es‑ tava contaminado e o tipo da superfície em que ele bateu (mais ou menos rígida), para avaliar a gravidade do trauma e a necessidade do uso de medicações e vacina antitetânica (caso esteja vencida). A informação de quando ocorreu é funda‑ mental para o tipo de tratamento e prognóstico do caso. O pa‑ ciente deve procurar orientação do cirurgião-dentista o mais rápido possível após ao trauma, pois a demora no atendimen‑ to pode comprometer a manutenção dos dentes ou cicatriza‑ ção dos tecidos moles (lábios, gengiva, etc.). Em algumas situações, os responsáveis e o paciente não se lembram do histórico de trauma, mas o paciente apresenta al‑ gum sinal ou sequela do trauma (p.ex., clinicamente: fratura dental, alteração de cor do dente; radiograficamente: reabsor‑
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ções no osso ou no dente). Esses casos podem ser chamados de trauma desconhecido, ou seja, a ocorrência do trauma não é lembrada ou relatada. Isso pode ser notado nos casos de trauma de baixa intensidade que não demonstram gravidade para eles, ou pelo fato de não terem sido observados, pela pou‑ ca idade da criança. Além disso, o paciente que bate uma vez o dente pode bater outras vezes, sendo comum a repetição dos traumas. Isso pode acontecer em virtude dos fatores predisponentes já cita‑ dos ou por fatores inexplicáveis. O que se sabe é que o trauma de repetição pode diminuir a resposta biológica de reparação dos tecidos envolvidos, prejudicando o prognóstico favorável do caso. Exame e diagnóstico: dente decíduo e permanente O traumatismo pode afetar o dente propriamente dito, os teci‑ dos de sustentação do dente, estruturas ósseas e tecidos moles. Em alguns casos, isso pode levar à perda do dente pelo próprio trauma (avulsão), ou em decorrência de o tipo de trauma ne‑ cessitar de exodontia, ou ainda ter repercussões como grandes infecções com perda radicular e óssea. Uma vez perdido o den‑ te, isso pode causar desequilíbrio na dentição e nem sempre ser fácil a sua recuperação com próteses, principalmente no pa‑ ciente em crescimento e desenvolvimento, podendo necessitar de tratamento ortodôntico para recuperação do espaço e poste‑ rior substituição do dente. Quando isso ocorre na dentição de‑ cídua, é preciso lembrar que no interior do osso, logo abaixo desse dente, está se formando o dente permanente, e que no momento do trauma, quanto mais jovem for a criança (princi‑ palmente menores de 3 anos), menos formado estará o dente permanente no osso. Esse dente permanente, ainda não erup‑ cionado, pode ser atingido também pelo trauma, alterando sua formação e, em alguns casos, parando seu desenvolvimento, levando a perda do dente permanente, com consequências im‑ portantes para o paciente.3,7,8,17 Nem sempre os responsáveis sabem que o dente decíduo (“dente de leite”) tem raiz e que dentro do osso está se formando o dente permanente. Mesmo o trauma de pequena intensidade deve ser exami‑ nado e acompanhado, pois as repercussões podem necessitar de tratamento, com exame clínico e radiográfico durante o acompanhamento. Os exames radiográficos intrabucais per‑ mitem observações sobre alterações no dente decíduo e no germe do dente permanente que está se formando (Figura 2). Quando o paciente chega com história de trauma dental, deve-se examinar com cuidado não só o dente atingido, mas os dentes vizinhos, estruturas ósseas ao redor do dente e dos maxilares e a região de articulação temporomandibular (ATM). É importante avaliar se o paciente teve traumatismo craniano, pois o tratamento do dente passa para uma situação de menor importância diante do risco de vida do paciente. Além disso, deve ser avaliada a saúde geral do paciente, pois em casos de saúde debilitada, a chance de cicatrização adequada diminui, prejudicando o prognóstico do caso. No exame clínico, deve ser observada a mobilidade do den‑ te, a presença de edema facial, o tipo e a intensidade da dor e
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Tratado de Pediatria 4ed.indb 2404 Alteração de dente permanente por trauma no dente decíduo: hipoplasia e mancha amarelada
Retenção prolongada de dente decíduo escurecido
Dente permanente
Contenção em dentes decíduos
Radiografia: endodontia em dente decíduo
Tratamento do trauma: Orientações básicas Restauração/proteção dentina-polpa Endodontia Contenção Reposicionamento Reimplante para permanente Extração entre outros
Trauma do tecido periodontal: • Concussão • Subluxação • Luxação lateral • Luxação intrusiva • Luxação extrusiva • Avulsão
Trauma dental: • Trinca de esmalte • Fratura de esmalte • Fratura de esmalte e dentina • Fratura com exposição pulpar • Fratura coronorradicular • Fratura radicular
TRAUMATISMO DENTAL
Dente decíduo
Polpa (nervo)
Osso alveolar
Dente permanente em formação intraósseo (germe)
Lesão apical – necrose pulpar
1 2 3
Incisivos central e lateral direitos: • Alteração de cor cinza • Necrose pulpar • Lesão apical Incisivo central direito (1): • Parada da formação radicular • Observar na radiografia área escura na coroa (2): remoção de parte coronária para acesso do canal (3)
Acompanhar formação radicular
Acompanhamento da formação radicular do dente permanente Acompanhamento de repercussões para o dente permanente Tratamento, se necessário
DENTE PERMANENTE
Coroa
Raiz
DENTES permanentes
Fonte: adaptada de Wanderley et al.6
Figura 2 Imagens radiográficas de incisivos superiores decíduos e permanentes. Esquema de tratamento e acompanhamento dos dentes traumatizados.
Acompanhamento Repercussão para o dente permanente em formação: • Mancha branca, amarela ou amarronzada • Hipoplasia • Alteração da formação coronária • Dilaceração coronária ou radicular • Malformação radicular • Parada da formação dental • Formação tipo odontoma • Duplicação radicular • Sequestro do germe do dente permanente
Fístula de dente decíduo (necrose pulpar)
Dente decíduo escurecido
Acompanhamento de repercussões para o dente decíduo e tratamento se necessário: • Alteração de cor: cinza, amarela, amarronzada • Necrose pulpar • Cisto • Fístula • Abscesso • Reabsorção interna da coroa e/ou raiz • Reabsorção externa radicular: com ou sem infecção • Reabsorção irregular • Retração gengival • Alveólise • Retenção prolongada (só para dente decíduo)
DENTE DECÍDUO
Coroa
Raiz
DENTES DECÍDUOS
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Trauma dentário: atendimento e prognóstico •
orientar os movimentos de abertura e fechamento da boca (observar se ocorre desvio de linha média ou desvio na mandí‑ bula que possam indicar fratura na região da ATM). Caso o paciente chegue sem o dente, deve ser avaliado se o dente foi perdido no trauma (avulsão), se instruiu (penetrou no osso ou em algum tecido mole, por exemplo, no lábio), ou ainda se o paciente o engoliu ou o aspirou. Tipos de trauma e tratamentos Os traumatismos dentários podem ser classificados em trau‑ ma de tecido dental: trinca de esmalte, fratura de esmalte, fra‑ tura de esmalte e dentina sem ou com exposição pulpar, fratu‑ ra coronorradicular, fratura radicular; e trauma de tecido periodontal ou de suporte: concussão (rompimento mínimo de algumas fibras do ligamento periodontal, sem mobilidade dental), subluxação (rompimento de um número maior de fi‑ bras do ligamento periodontal, levando à mobilidade mínima), luxação lateral (número maior de fibras do ligamento perio‑ dontal rompidas, levando a mobilidade, com ou sem desloca‑ mento da posição do dente), luxação intrusiva (quando o den‑ te penetra no osso alveolar), luxação extrusiva (quando o dente sai parcialmente de dentro do osso alveolar) e avulsão (quando o dente sai completamente do osso alveolar).3,7,8 A ocorrência de trauma em tecido mole deve ser avaliada e, se necessário, deve-se proceder à realização de tratamento per‑ tinente (limpeza da ferida, controle de hemorragia e sutura). Também pode ocorrer fratura do osso alveolar (ao redor do dente), que às vezes impossibilita o tratamento conservador do dente. Fraturas ósseas maiores podem ocorrer comprome‑ tendo a mandíbula, a maxila e a região da ATM, e às vezes ne‑ cessitam de intervenções cirúrgicas maiores para contenção. Nos pacientes com trauma no mento, deve-se avaliar tanto dentes anteriores como posteriores, pois dependendo da dire‑ ção da batida pode ocorrer fratura desses dentes, além do osso na região da ATM. Avaliar abertura e fechamento da boca (desvio da mandíbula) e palpar a região da ATM (área de ede‑ ma ou dor). Às vezes é necessário complementar o exame clí‑ nico com radiografias e/ou tomografias dessa região para ava‑ liar possível fratura. Em pacientes sem fratura, pode ocorrer esmagamento ósseo, e no acompanhamento pode ocorrer di‑ minuição de abertura de boca em decorrência de anquilose na região da ATM. Nesse caso, deve ser avaliada a necessidade de cirurgia. Em crianças e adolescentes que estão em fase de cres‑ cimento, terapias conservadoras devem ser avaliadas para não ocorrer comprometimento do crescimento na área da ATM. Nos traumas que envolvem os tecidos dentários (esmalte e/ ou dentina), os tratamentos normalmente são mais fáceis de se‑ rem realizados e são de prognóstico mais favorável para a manu‑ tenção do dente, pois envolvem técnicas odontológicas mais objetivas, como: restaurações ou colagem de fragmentos fratu‑ rados; endodontia/terapia pulpar (tratamento de canal); e mes‑ mo nos casos de necessidade de exodontia, podem ser feitas reabilitações por meio de próteses e/ou implantes3,6,9 (Figura 3). No caso das fraturas dentais, a maior parte da força do trau‑ ma é direcionada para fraturar o dente, e parte dessa força du‑ rante o trauma é transmitido para o ligamento periodontal,
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E
Figura 3 Fratura de dente permanente. (A e B) Ausência de selamento labial. (C) Maior exposição dos dentes a traumatismo. (D) Fratura de esmalte e dentina. (E) Restauração com resina composta.
podendo ocorrer o rompimento ou esmagamento de um pe‑ queno número de fibras do ligamento periodontal. Nos traumas de tecido periodontal, os tratamentos são mais complexos, pois as fibras do ligamento periodontal de‑ pendem da cicatrização/reparação do organismo do paciente e não tem como ser substituída pelo cirurgião-dentista. Tanto no trauma de tecido dental quanto no de tecido pe‑ riodontal, o quanto antes o paciente for atendido, maiores se‑ rão as chances de ocorrer a recuperação das fibras do ligamen‑ to periodontal, desde que muitas fibras não tenham sido rompidas e o osso alveolar não esteja comprometido. Sabe-se que essa cicatrização ocorre inicialmente nos 7 a 10 primeiros dias, portanto é recomendado para todos os traumas dentá‑ rios o protocolo de orientações básicas iniciais:3,6,7,10 • limpeza dos dentes traumatizados: utilizar gaze umedecida em água oxigenada 10 volumes ou solução à base de clorexidi‑ na 0,12%, na parte da frente e de trás dos dentes, pelo menos três vezes ao dia; durante 1 semana, e quando possível resta‑ belecer a escovação com dentifrício. Quando se faz uso de so‑ lução à base de clorexidina, ela deve ser utilizada depois de pelo menos 40 minutos da escovação, pois agentes do denti‑ frício interferem na ação da clorexidina. Os outros dentes de‑ vem ser escovados normalmente (Figura 4); • repouso da região: alimentação líquida/pastosa, evitar mor‑ der com o dente traumatizado. Em crianças, remover os hábi‑ tos de sucção (chupeta, dedo e mamadeira); • prescrever medicamentos se houver necessidade: analgésico, anti-inflamatório, antibiótico e observar a validade da vacina antitetânica; • encaminhar para cirurgião-dentista: para diagnóstico, trata‑ mento complementar necessário e acompanhamento clínico e radiográfico para avaliação das sequelas no dente traumati‑ zado. Em caso de dente decíduo, também será acompanhada a formação do sucessor permanente até a sua erupção. Essas orientações iniciais e básicas devem ser seguidas do en‑ caminhamento para o cirurgião-dentista, pois tratamentos adicionais e especializados podem ser necessários (Figura 5).
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A
B
C
D
Figura 4 (A e B) Limpeza dos dentes com gaze e solução antisséptica; caso seja possível, continuar escovando com escova macia ou pós-cirúrgica por vestibular (C) e palatina (D) dos dentes afetados.
Quando o dente está fora da sua posição original, deve ser avaliado se levar o dente para sua posição original não irá cau‑ sar um novo trauma nas estruturas envolvidas, pois logo após o trauma há hemorragia e edema na região do ligamento pe‑ riodontal, e se o paciente demorar, a manipulação na região nem sempre é o melhor tratamento.7,10,11 No caso do dente de‑ cíduo, deve-se tomar cuidado com o germe do dente perma‑ nente que, no incisivo superior, se encontra na região apical para palatino, pois manipular o dente decíduo pode causar um novo trauma na região e alterar a formação do germe do dente permanente.6,7,10 Avulsão dental Caso ocorra avulsão do dente decíduo, normalmente o reim‑ plante não é recomendado, pois, no momento de recolocar o dente de volta à sua posição no alvéolo, pode-se movimentar o coágulo em direção ao germe do dente permanente e este so‑ frer alterações. No entanto, podem ser avaliadas pelo dentista condições para que isso possa ser realizado com seguran‑ ça.3,6,7,9,10 No caso de avulsão do dente permanente, o reimplante é in‑ dicado no momento do trauma e deve ser realizado por quem estiver com o paciente (responsável, professor, colega, entre outros). O dente que saiu deve ser pego pela coroa (parte maior e mais clara do dente) e limpo em água corrente ou com soro fi‑ siológico (não esfregar e não deixar de molho). Identificando‑ -se a parte da frente do dente (vestibular), ele deve ser levado à posição original em que o elemento se encontrava e deve ser alinhado à posição dos dentes vizinhos ao trauma ou com base na arcada íntegra (pode-se utilizar o modelo de outra pessoa para esse fim). A seguir, deve-se pedir para o paciente manter
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o dente em posição (pode morder uma gaze) e encaminhá-lo o mais rápido possível ao cirurgião-dentista para que seja feita a contenção do dente reimplantado e as avaliações necessárias. O reimplante não é realizado por falta de informação da popu‑ lação ou receio de estar fazendo o procedimento de forma in‑ correta, mas é o melhor tratamento, pois aumenta a chance de o ligamento periodontal manter-se viável. Quando o reimplan‑ te não é realizado, o dente deve ser colocado em solução de soro fisiológico, leite ou saliva do próprio paciente e em menos de 30 minutos procurar o cirurgião-dentista para realizar o reimplante e a contenção7,10,12 (Figura 6). Caso tenha ocorrido fratura óssea na região da avulsão do dente, a princípio o reimplante não está indicado, devendo o paciente ser encaminhado para o cirurgião-dentista, que ava‑ liará essa possibilidade. Nos casos de luxação intrusiva (intrusão), quando o dente penetra o alvéolo ósseo, após o trauma, a tendência das fibras do ligamento periodontal, que são fibras elásticas, é de, com o tempo, voltar à sua posição original na boca (Figuras 7 e 8). No entanto, caso grande quantidade dessas fibras sejam rompi‑ das, o dente não reerupciona. Se o início da reerupção não ocorrer em 30 dias, a exodontia talvez seja necessária13 (Figu‑ ras 9 e 10). O trauma no dente decíduo, como no dente permanente, pode levar a repercussões como: alteração de cor (cinza, ama‑ rela, amarronzada), necrose pulpar, cisto radicular, fístula, abscesso, reabsorção interna da coroa e/ou raiz, reabsorção externa radicular (com ou sem infecção), reabsorção radicular irregular, retração gengival, anquilose, alveólise e retenção prolongada (só para traumas em dentes decíduos).3,6,7,10,14-16 Al‑ gumas dessas alterações precisam ser tratadas, pois, caso con‑ trário, o dente pode ser perdido. Portanto, é fundamental após o trauma fazer acompanhamento para analisar as indicações de tratamento de cada caso. No caso de dente decíduo, deve-se lembrar que o trauma pode causar: alteração no germe do dente permanente, em es‑ pecial quando ocorre movimentação da raiz do dente decíduo em direção ao germe do permanente (como em casos de intru‑ são, luxação lateral e avulsão); infecções prolongadas ou fratu‑ ras ósseas na região de formação do germe. As repercussões para o germe do dente permanente seriam: alteração de cor (mancha branca, amarela ou amarronzada), hipoplasia, alte‑ ração na forma da coroa, dilaceração coronária ou radicular, malformação radicular, parada da formação dental, formação tipo odontoma, duplicação radicular e sequestro do germe do dente permanente.3,7,8,10 O conhecimento sobre traumatismo dentário torna o pe‑ diatra um grande aliado na educação dos responsáveis quanto à prevenção e também na orientação quanto ao atendimento adequado para o trauma e suas repercussões para as dentições decídua e permanente.
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Trauma dentário: atendimento e prognóstico •
Tecido mole
Abrasão – limpeza Sangramento – hemostasia Laceração – sutura, quando necessário
Tecido duro
Diagnóstico Fratura dental e/ou óssea Redução e contenção
Encaminhar para o dentista ou bucomaxilofacial, dependendo da região envolvida e da gravidade
Orientações básicas: Limpeza: gaze umedecida em solução clorexidina 0,12% ou água oxigenada 10 volumes. Repouso da região: alimentação pastosa/líquida e evitar morder com o dente traumatizado Remover hábitos de sucção (chupeta, dedo e mamadeira) Medicamentos: quando necessário, analgésico, antiinflamatório, antibiótico Vacina antitetânica: verificar validade
Trauma dentário: (todos, exceto avulsão)
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Encaminhar para o dentista Possíveis tratamentos: Fratura dental – restauração Polpa exposta – endodontia Mobilidade – contenção Intrusão – acompanhar ou exodontia Avulsão – possibilidade de reimplante e contenção Grandes destruições – exodontia e restauração protética Acompanhamento
Figura 5 O que se deve fazer em casos de traumatismos?
Encaminhar para o dentista rapidamente: Dente em soro fisiológico: Reimplante – avaliar
Caso não faça o reimplante Avulsão de dente permanente Caso faça o reimplante
Pegar o dente pela coroa
Reimplante: No momento do trauma – ideal Dente em solução: soro fisiológico ou leite ou saliva Reimplante: até 30 minutos – desejável até 2 horas – questionável após 2 horas – necessita de avaliação do dentista
Lavar em água ou soro (não esfregar)
Dente seco: Colocar em solução e encaminhar ao dentista
Recolocar o dente dentro no alvéolo (ver posição correta, referência: dentes vizinhos)
Fazer pressão suficiente para manter o dente em posição (paciente pode morder uma gaze)
Avulsão Dente decíduo
Normalmente Não fazer reimplante Motivo: risco de alterar o dente permanente que está se formando dentro do osso
Encaminhar para o dentista rapidamente: Contenção Orientações básicas Administração de antibiótico Endodontia – avaliar Acompanhamento
Encaminhar para o dentista: Perda dental – próteses e implantes Perda de espaço – ortodontia Acompanhar formação do dente permanente
Figura 6 O que se deve fazer em caso de avulsão dental?
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A
B E
F
Dente permanente em formação (germe) D
C
G
Figura 7 (A e B) Criança do sexo masculino, 2 anos e 8 meses, que procurou atendimento 2 dias após o trauma, com intrusão para palatina do incisivo central decíduo superior direito. (C) Na radiografia periapical modificada observa-se o dente decíduo intruído com a raiz mais curta que o seu homólogo, em razão da inclinação da raiz para vestibular. O germe do sucessor permanente não mudou de posição. (D) Na radiografia lateral modificada observa ‑se a inclinação da raiz do dente intruído para vestibular, com imagem sugestiva de que a intrusão não foi de encontro ao dente permanente, que está por palatino.
B
A
C
D
Figura 9 Atendimento odontológico de criança (1 ano e 7 meses), do sexo masculino, após 40 dias da intrusão do incisivo central superior direito, que ficou retido no lábio, causando laceração e edema. A mãe relata que no hospital a criança foi diagnosticada com infecção e medicada com antibiótico. Durante o atendimento odontológico observou-se elevação do lábio superior e ausência do dente na boca (A). Na radiografia periapical modificada observou-se intrusão do incisivo decíduo superior direito, estágio inicial da formação dos germes dos sucessores permanentes (compatível com a idade da criança), estando o sucessor permanente do dente em questão deslocado para cima (B). Após anestesia local, foi realizada a tração e a liberação do lábio, que estava retido no dente (C), e exodontia do dente decíduo (D). Observar reabsorção radicular não fisiológica (E).
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Figura 8 Acompanhamento do caso anterior relatado (Figura 7). (E) Orientações básicas, como higienização da área. (F e G) Após 3 meses do trauma, cicatrização da região e melhora na posição do dente decíduo. (H) Após 1 ano do trauma, a radiografia periapical modificada indica diminuição do espaço pulpar do dente decíduo (calcificação pulpar), sem alteração aparente na formação e posição dos germes dos incisivos centrais permanentes.
F
E
H
H
G
I
Figura 10 Paciente do caso anterior (Figura 9), aos 4 anos e 8 meses, utilizando prótese removível infantil (F). Na radiografia observa-se que o germe do sucessor permanente não está se formando adequadamente (G). Aos 8 anos, paciente não apresentava incisivo central permanente superior direito erupcionado (H). A radiografia indica malformação do elemento permanente, com indicação de remoção cirúrgica (I).
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Trauma dentário: atendimento e prognóstico •
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer os fatores de risco e orientar os responsáveis quanto à prevenção do trauma dentário. • Identificar como, quando e onde ocorreu o trauma. • Identificar, na história clínica, características que sugiram a possibilidade de trauma não acidental. • Realizar o exame dentário e identificar lesões traumáticas associadas. • Conhecer as possíveis repercussões do trauma para os dentes decíduos e/ou permanentes afetados. • Saber que em caso de trauma em dente decíduo, ele pode afetar a formação do permanente. • Fazer as orientações básicas iniciais quanto à higiene oral e alimentação nos casos de trauma recente. • Reimplantar um dente permanente em caso de avulsão dentária. • Referir rapidamente ao dentista todos os pacientes que sofreram trauma dentário.
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Medicina do Esporte COORDENADOR
Ricardo do Rêgo Barros
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COORDENADOR E AUTORES SEÇÃO 29 MEDICINA DO ESPORTE
Coordenador
Autores
Ricardo do Rêgo Barros Pediatra. Especialista em Pediatria e Medicina do Adolescente pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e Associação Médica Brasileira (AMB). Especialista em Medicina Desportiva pela Sociedade Brasileira de Medicina Desportiva e AMB. Chefe do Serviço de Adolescentes do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor de Pediatria da Pós-Graduação da Universidade Veiga de Almeida.
Getúlio Bernardo Morato Filho Especialista em Pediatria pela Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), em Medicina do Adolescente pela Universidade de Brasília (UnB) e em Medicina Esportiva pela AMB. Docente do Curso de Medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS/SES-DF). Pediatra da SES-DF. Maria Fátima Monteiro Pereira Leite Cardiopediatra do Instituto Fernandes Figueira (IFFFiocruz). Especialista em Pediatria pela SBP. Mestre em Cardiologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Doutora em Ciências da Saúde (Cardiologia) pelo Instituto Fundação Universitária de Cardiologia do Rio Grande do Sul. Priscila Toniolo de Oliveira Morato Especialista em Pediatria pela SES-DF. Pediatra da SES-DF.
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CAPÍTULO 1
TREINAMENTO RESISTIDO EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES Getúlio Bernardo Morato Filho Priscila Toniolo de Oliveira Morato
Introdução O treinamento resistido, também chamado de treinamento de força, é um método de condicionamento físico em que indiví‑ duos são submetidos a diferentes cargas para melhorar a saú‑ de e o rendimento físico.1 Para realizar esse tipo de treinamen‑ to, podem ser utilizados pesos livres, elásticos, máquinas com polias e até o próprio peso do indivíduo. Por décadas, o uso do treinamento resistido em crianças e adolescentes trouxe preo‑ cupação aos pediatras quanto ao risco de lesões ortopédicas, principalmente nas placas de crescimento, o que poderia pre‑ judicar o crescimento somático. Apesar de já existir um gran‑ de número de publicações científicas recentes sobre a segu‑ rança e a eficiência dos treinamentos resistidos em crianças e adolescentes,1-3 o tema segue controverso entre pediatras e demais profissionais de saúde. O assunto também é motivo de questionamento frequente dos pais nos consultórios pediátricos sobre quando iniciar a prática de exercícios físicos resistidos em academias e sobre a segurança desse tipo de modalidade de treinamento. Os pais acabam encontrando in‑ formações conflitantes entre profissionais de saúde em rela‑ ção aos efeitos do treinamento resistido no crescimento e de‑ senvolvimento da criança e do adolescente, retardando os benefícios que esse tipo de treinamento traria a esse grupo. Como qualquer treinamento físico, o treinamento resistido segue os princípios da individualidade biológica, da progres‑ são de carga, da especificidade, da continuidade e da reversi‑ bilidade. Assim, para que ocorram os benefícios desse tipo de treinamento, os exercícios devem ser prescritos de acordo com a idade, o sexo, as capacidades físicas do indivíduo, a téc‑ nica e a experiência nesse tipo de treinamento. Para que ocor‑ ram as adaptações musculoesqueléticas, é necessário que a criança ou o adolescente seja submetido a estímulos diferen‑ tes e crescentes. O treinamento também deve ser voltado para o objetivo específico da criança e do adolescente. Caso o indi‑ víduo busque maior ganho de força, são dados estímulos de maior intensidade, com menos repetições. Caso o jovem bus‑ que maior resistência, as cargas serão menores, porém com
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maior número de repetições. O treinamento resistido com o objetivo de hipertrofia muscular geralmente utiliza um núme‑ ro intermediário de cargas e repetições. Para que os benefícios de ganho de força e resistência sejam obtidos, também é necessário que o treinamento ocorra de forma frequente. In‑ tervalos muito prolongados entre as sessões podem não pro‑ mover adaptações musculoesqueléticas esperadas. A manu‑ tenção da prática também é necessária para que os benefícios obtidos sejam mantidos. A interrupção total do treinamento faz os benefícios obtidos com o treino retornarem aos valores pré-treinamento em até 8 semanas.4 Benefícios do treinamento resistido para crianças e adolescentes O treinamento resistido apresenta diversos benefícios para a saúde da criança e do adolescente.1,5-10 Jovens que realizam essa modalidade de treinamento de forma regular apresentam ga‑ nho de força muscular,10,11 aumento da capacidade aeróbica, au‑ mento da massa óssea, alteração da composição corporal com aumento da massa magra e diminuição do percentual de gordu‑ ra, melhora da estabilidade das articulações e melhora da coor‑ denação motora.9,11 Também há um aumento da capacidade de armazenamento de glicogênio e fosfocreatina e um aumento de enzimas glicolíticas. Na fibra muscular, ocorre um aumento na expressão de receptores GLUT-4, aumentando a sensibilidade à insulina durante e imediatamente após a prática de atividade fí‑ sica em alta intensidade, pela ativação da enzima AMPK, um sensor energético intracelular, que é ativada com o aumento da concentração de adenosina monofosfato (AMP). Durante a adolescência, ocorre o aumento da resistência insulínica em ra‑ zão da elevada concentração de IGF-1, que compete com os re‑ ceptores para a insulina. O sedentarismo durante o estirão pu‑ beral pode ser um fator de risco ainda mais importante para o desenvolvimento da obesidade, e o treinamento resistido, pela capacidade de consumo dos estoques intracelulares de glicogê‑ nio e ativação da AMPK, pode ser especialmente benéfico para evitar a obesidade em indivíduos jovens.
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Inicialmente, o aumento da força muscular em crianças e adolescentes é obtido por adaptações neurais, com maior re‑ crutamento de fibras musculares pelos motoneurônios. Em crianças e adolescentes pré-púberes, por causa da baixa con‑ centração de hormônios sexuais, o aumento da força se deve principalmente à melhora da técnica de execução do movi‑ mento e maior mobilização de fibras musculares, com pouca hipertrofia muscular. Após a puberdade, além das adaptações iniciais ao treinamento resistido, ocorre um aumento da quan‑ tidade de miofibrilas em paralelo dentro de uma fibra muscu‑ lar e da expressão de enzimas glicolíticas e oxidativas, além da maior capacidade de armazenamento intramuscular de subs‑ tratos energéticos, aumentando a capacidade de geração de força. Treinamento resistido e o crescimento somático em crianças e adolescentes Um dos principais medos dos pais no consultório pediátrico é que o excesso de carga sobrecarregue a estrutura óssea da criança ou do adolescente em crescimento e prejudique a esta‑ tura final do filho. Essa preocupação que o treinamento resisti‑ do afete as placas de crescimento, no entanto, não encontra embasamentos na literatura científica. Não existe nenhuma evidência de que o treinamento resistido promova alteração no crescimento linear da criança e do adolescente.1,3 Ao contrário, os períodos pré-púbere e púbere parecem ser aqueles em que o esqueleto responde melhor à carga, aumentando a massa ós‑ sea e a arquitetura do osso,1 pois exercícios resistidos promo‑ vem a síntese aguda de testosterona e GH após a atividade.12 A resposta óssea à carga é sítio-específica, isto é, para aumentar a massa óssea do colo do fêmur, é necessário o envolvimento de carga na articulação coxofemoral, em atividades que envolvam a flexão e a extensão do quadril ou movimentos de salto e ater‑ risagem. O uso do treinamento resistido pode ser especialmen‑ te interessante em crianças pré-púberes que apresentem so‑ brepeso ou obesidade. O percentual de gordura elevado em crianças está associado ao desenvolvimento de puberdade pre‑ coce. Como essas crianças apresentam dificuldade em partici‑ par de modalidades esportivas coletivas por conta de seu baixo rendimento esportivo, o treinamento resistido pode promover um aumento do gasto energético de forma significativa, asso‑ ciado a um aumento da força, da massa magra e da autoestima, além de redução do percentual de gordura.2,13 Atletas de ginástica olímpica geralmente são utilizadas de forma errônea como exemplo do efeito deletério que o treina‑ mento resistido pode promover no crescimento final. A baixa estatura dessas atletas, principalmente de nível competitivo, se deve sobretudo à seleção das atletas baixas em virtude da vantagem esportiva que elas possuem.14 Essas ginastas são ca‑ pazes de executar movimentos acrobáticos com maior facili‑ dade que atletas de maior estatura. No caso específico dessa modalidade esportiva, pelo grande volume de treinamento, muitas atletas acabam sendo incapazes de atingir a quantidade de calorias para permitir o crescimento, além de possuírem um percentual de gordura muito baixo se comparado com a média da população. Atletas que apresentam um percentual
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de gordura muito baixo acabam entrando tardiamente na pu‑ berdade e crescem em velocidades menores, mas se interrom‑ perem a prática de ginástica ou reduzirem o volume de treina‑ mento, são capazes de recuperar a estatura ao nível normal previsto.14 Para que a prática ocorra de maneira mais segura, é impor‑ tante reforçar que o treinamento resistido depende da correta execução dos exercícios e alinhamento adequado da coluna, reforçando o acompanhamento de educadores físicos capaci‑ tados para o acompanhamento de crianças e adolescentes. Desvios do eixo da coluna podem ser acentuados com a incor‑ reta execução de exercícios ou uma prescrição inadequada de exercícios resistidos.1 A prescrição do treinamento resistido em crianças e adolescentes deve envolver exercícios multiarti‑ culares, de moderada a alta intensidade, para otimizar os be‑ nefícios para a mineralização óssea.1 Treinamento resistido para a prevenção de lesões musculoesqueléticas Um dos principais fatores de risco para lesões musculares e or‑ topédicas é a falta de força muscular e óssea.1 Crianças e ado‑ lescentes que já participam de treinamentos esportivos estru‑ turados ou que praticam de forma frequente modalidades esportivas que envolvam saltos, contato físico ou mudanças frequentes de direção são especificamente beneficiados com o treinamento resistido. Adolescentes atletas que praticavam treinamento resistido nos seus treinamentos físicos apresen‑ taram menos lesões musculoesqueléticas e também se recu‑ peraram de forma mais rápida quando apresentaram lesões.1 Jovens atletas de futebol do sexo feminino também apresenta‑ ram menor incidência de lesões de sobretreinamento quando incorporaram treinamento resistido à preparação física. É fre‑ quente observar lesões de sobretreinamento em crianças e adolescentes atletas, e o treinamento resistido adequadamen‑ te supervisionado pode reduzir em até 50% a incidência des‑ sas lesões.15 A fadiga muscular também está associada a uma maior in‑ cidência de lesões musculoesqueléticas.16 Crianças e adoles‑ centes destreinados, ao participar de atividades esportivas que envolvam saltos e mudanças de direção, apresentam um risco elevado de entorses de joelho e tornozelo, pois, com o aumento da acidose muscular com a prática da atividade físi‑ ca, o ajuste do movimento durante o salto ou mudança de di‑ reção pode se tornar ineficiente. O aumento da força muscular é um fator protetor para as articulações e para retardar o esta‑ do de fadiga muscular, com o aumento do número de fibras musculares do tipo IIa, que possuem maior quantidade de mioglobina, mitocôndrias e maior quantidade de enzimas oxi‑ dativas, se comparadas às fibras tipo IIx. A prática de atividades físicas envolve um risco intrínseco de lesões musculoesqueléticas, e a total eliminação dessas le‑ sões é um objetivo inatingível.1 Um programa supervisionado com treinamento proprioceptivo, de condicionamento geral e específico de força e condicionamento aeróbico pode reduzir de forma significativa a incidência de lesões relacionadas ao esporte.1,15
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Treinamento Resistido em Crianças e Adolescentes •
Treinamento resistido em adolescentes do sexo feminino As adolescentes parecem ser ainda mais influenciadas pela falta de treinamento resistido durante o período de crescimen‑ to rápido observado após a puberdade. O crescimento somáti‑ co rápido sem as adaptações neuromusculares apropriadas fa‑ vorecem o surgimento de mecânicas articulares alteradas, que aumentam o risco de lesões musculoesqueléticas.1 Adolescen‑ tes do sexo feminino que não foram submetidas a treinamen‑ tos de força durante o crescimento apresentaram mais fatores de risco para lesões musculoesqueléticas, como aumento do estresse em valgo durante a aterrisagem após um salto. O trei‑ namento de força também diminuiu a incidência de lesões do ligamento cruzado anterior em adolescentes que iniciaram o treinamento de força de forma precoce. O treinamento resisti‑ do também aumentou a aptidão esportiva e a melhora da bio‑ mecânica do movimento em adolescentes do sexo feminino.1 A adolescente do sexo feminino deve ser especialmente monitorada em relação ao excesso de treinamento. A presen‑ ça da tríade da mulher atleta, composta de distúrbios alimen‑ tares, amenorreia e osteopenia/osteoporose,17 pode ser espe‑ cialmente prejudicial em adolescentes, pois a adolescência é o período crítico para a formação de massa óssea no sexo femi‑ nino. O pediatra não deve aguardar o aparecimento da tríade para realizar uma intervenção. Adolescentes do sexo feminino com distúrbios alimentares durante a prática de treinamentos em alta intensidade ou grande volume apresentam risco ele‑ vado para o aparecimento de alterações ósseas. Jovens do sexo feminino com percentual de gordura abaixo dos 12% também devem ser monitoradas, pois o diagnóstico de ame‑ norreia primária só ocorre após os 16 anos e as alterações ós‑ seas podem surgir antes desse período. A orientação não deve ser de suspensão repentina do treinamento, pois provavel‑ mente não será seguida, mas a redução da intensidade e do volume do treinamento, com um acompanhamento nutricio‑ nal próximo.17 Benefícios psicossociais do treinamento resistido na juventude Ainda são poucos os estudos avaliando benefícios psicosso‑ ciais duradouros dos treinamentos resistidos em crianças e adolescentes. Os estudos existentes apresentam resultados controversos, sem um benefício significativo demonstrado pela literatura científica.1 Crianças e adolescentes com baixa autoestima podem ser mais favorecidos pela prática de ativi‑ dade física utilizando exercícios resistidos se comparados com jovens que já apresentam autoestima elevada.1 Essas alterações na autoimagem costumam aparecer tar‑ diamente, após 8 a 12 semanas de treinamento resistido. O ex‑ cesso de treinamento, ao contrário, pode levar a alterações psicológicas importantes, sobretudo em grupos mais vulnerá‑ veis emocionalmente ou com algum comportamento de alte‑ ração do humor prévio ao início do treinamento. No caso espe‑ cífico dos adolescentes, o pediatra deve entender as motivações da criança e do adolescente com a prática de trei‑ namentos resistidos em academia. Crianças geralmente são
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levadas pelos pais em busca de melhora da saúde. O adoles‑ cente, principalmente após o início da puberdade, além da melhora da saúde, possui motivações estéticas, buscando o aumento da massa magra, a redução do percentual de gordura e o aumento da força muscular. A insatisfação com o corpo a todo o momento, porém, pode indicar um transtorno dismór‑ fico corporal chamado vigorexia, sendo um fator de risco im‑ portante para o uso de suplementos esportivos em excesso e sem acompanhamento profissional e de esteroides anaboli‑ zantes. A vigorexia pode estar associada a outras alterações do comportamento e do sono, como irritabilidade excessiva, can‑ saço, insônia, alterações alimentares com dietas restritivas, excesso de proteínas e pequena quantidade de gorduras e car‑ boidratos. Nesses casos, é importante um acompanhamento multidisciplinar, com o acompanhamento de psicólogos, psi‑ quiatras e nutricionistas para o melhor manejo do quadro. O adolescente que ganha peso de forma muito rápida e em músculos que geralmente não são tão solicitados nos exercí‑ cios resistidos, como a musculatura cervical, pode estar utili‑ zando esteroides anabolizantes e deve ser abordado durante a consulta. O uso de esteroides anabolizantes tanto pode indicar um transtorno comportamental prévio como pode precipitar novos transtornos comportamentais, como excesso de agres‑ sividade, depressão e transtornos bipolares. Prescrição de exercícios resistidos em crianças e adolescentes O papel do pediatra não deve se limitar à autorização da práti‑ ca de treinamentos resistidos. É importante que o pediatra siga acompanhando a criança e o adolescente para monitorar o crescimento somático, o desenvolvimento puberal e possí‑ veis alterações de comportamento. O pediatra não pode ser uma barreira à prática de atividades físicas. Frequência A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que exer‑ cícios que aumentem a força muscular e óssea sejam realiza‑ dos ao menos 3 vezes/semana.18 Um maior número de ses‑ sões de treinamento por semana está associado a um maior ganho de força em jovens atletas,8 porém o adolescente deve ter um repouso adequado entre as sessões, principalmente se o grupo muscular treinado no dia anterior for utilizado nova‑ mente no dia seguinte de treinamento. O treinamento com dor ou em fadiga diminui a sua qualidade e, em longo prazo, pode trazer queda de rendimento e lesões. Volume e intensidade O volume de treinamento é definido como a quantidade de exercícios executados multiplicados pela carga utilizada, em quilogramas. Intensidade é a carga utilizada pelo indivíduo durante a execução do exercício e pode ser quantificada pelo peso do objeto utilizado ou pelo percentual de uma repetição máxima (1RM).1 1RM é a carga com que a pessoa consegue rea‑ lizar uma repetição em um determinado exercício, sem conse‑ guir realizar uma segunda repetição de forma completa. Em trabalhos de hipertrofia muscular, geralmente utiliza-se 60%
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de 1RM, ou seja, uma carga 40% menor que o máximo de car‑ ga que o indivíduo suportaria, o que geralmente permite que o indivíduo execute de 6 a 12 repetições máximas em uma série. O excesso de carga sem que a execução do movimento esteja sendo realizada da forma correta pode trazer danos agudos aos músculos, tendões e estruturas articulares. Um excesso de volume de treinamento ao longo do tempo pode induzir o apa‑ recimento de lesões de sobretreinamento.1 Profissionais de educação física utilizam protocolos para verificar o valor de 1RM ou uma carga em que a criança ou o adolescente consiga realizar de 8 a 12 repetições máximas de forma correta e segura. Seleção de exercícios Não cabe ao pediatra a seleção específica dos exercícios, sendo esta uma competência do profissional de educação física. O pediatra pode solicitar o fortalecimento de grupos musculares e deve solicitar que sejam utilizados preferencialmente exercí‑ cios multiarticulares e grandes grupos musculares. É impor‑ tante que sejam incluídos exercícios de aquecimento e pro‑ prioceptivos antes do treinamento de força e exercícios de alongamento após ou em sessões separadas de treinamento. Não existe evidência de que a prática de alongamentos estáti‑ cos antes do treinamento de força previna lesões musculoes‑ queléticas.19 O principal objetivo da prática de alongamentos é manter a flexibilidade normal das articulações, e esse tipo de atividade deve ser realizado com a musculatura previamente ativada. Progressão da intensidade e do volume de treinamento Para o treinamento resistido, a criança e o adolescente devem ser submetidos a cargas e volumes diferentes para gerar a adaptação muscular e óssea. A ausência de progressão pode indicar um repouso inadequado entre as sessões de treina‑ mento ou inadequação da dieta ao treinamento. Sem a modifi‑ cação da carga ao longo do tempo, ocorre o fenômeno do des‑ treinamento, pois a carga se torna proporcionalmente mais leve em relação à maior capacidade de geração de força obtida com o treinamento. A progressão deve ser individualizada. O jovem pré-púbere apresenta uma progressão de carga mais lenta se comparado ao púbere, pela menor capacidade de hi‑ pertrofia muscular. A progressão muito rápida pode levar a er‑ ros de execução do movimento e aumento nas lesões muscu‑ loesqueléticas ao longo do tempo. Velocidade e forma de execução A criança e o adolescente que forem realizar atividades em academias devem seguir as orientações de execução feitas pelo educador físico. Estímulos diferentes podem ser obtidos apenas modificando a velocidade de execução das fases de contração concêntrica e excêntrica dos músculos. O período que gera maior estímulo à hipertrofia muscular ocorre durante a fase excêntrica de contração, em que a carga é superior à ca‑ pacidade de geração de força e o movimento de contração ocorre em sentido contrário ao vetor de força gerado pela con‑ tração muscular. É importante que a criança e o adolescente
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sejam capazes de entender e obedecer às orientações de pro‑ fissionais de educação física para minimizar o risco de lesões. Acompanhamento pediátrico Alguns sinais e sintomas devem ser verificados a cada consul‑ ta pediátrica: 1. Perda ponderal significativa entre as consultas: é fundamen‑ tal que as necessidades calóricas e nutricionais sejam adequa‑ das ao aumento do gasto energético promovido pela prática de atividade física, em especial em crianças ou adolescentes no início da puberdade. Como eles apresentam um gasto energético basal relativamente baixo, o acréscimo de ativida‑ des físicas de alta intensidade pode promover o aumento do gasto energético total em mais de 100%. Assim, é importante que, em toda consulta pediátrica, a criança ou o adolescente que iniciou treinamentos resistidos esteja ganhando peso, a não ser que o treinamento vise objetivamente à perda de peso em pacientes com obesidade. A perda de peso e a redução na velocidade de crescimento podem indicar que o paciente pe‑ diátrico esteja consumindo menos calorias que a necessidade total. O ajuste pode ser feito de duas formas: aumentando as calorias na dieta, com escolha de alimentos integrais, ou redu‑ zindo o volume de treinamento, com a redução do tempo total de prática ou modificação na intensidade do treinamento. 2. Sinais de sobretreinamento15 e vigorexia: • excesso de preocupação com a imagem corporal; • alterações comportamentais, como excesso de agressivi‑ dade ou apatia; • ganho de massa muscular incompatível com o volume de atividade praticado; • aparecimento de insônia ou alterações negativas na quali‑ dade do sono; • distúrbios alimentares, principalmente em jovens do sexo feminino. O pediatra também deve alertar a criança ou o adolescente so‑ bre o ambiente que pode encontrar em uma academia. O uso de suplementos alimentares e esteroides anabolizantes é fre‑ quentemente observado e estimulado por usuários leigos e até por profissionais de saúde. A suplementação alimentar em crianças e adolescentes é raramente necessária, e o pediatra deve explicar que as necessidades nutricionais são obtidas utilizando alimentos. Em casos específicos, como em adoles‑ centes atletas que têm grande volume de treinamento ou em jovens com grande dificuldade de ganho de peso, a suplemen‑ tação pode ser necessária. Nesses casos, é obrigatório o acom‑ panhamento por uma equipe multidisciplinar especializada. Academias que oferecem serviços para crianças e adolescen‑ tes devem buscar garantir um ambiente preparado para rece‑ ber o público jovem, livre de propagandas de suplementos ali‑ mentares.1 Considerações finais O treinamento resistido deve fazer parte da prática rotineira na orientação de atividade física de crianças e adolescentes.1,18 Os treinamentos devem ser supervisionados por profissionais
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com qualificação e individualizados de acordo com as habili‑ dades, as necessidades e os objetivos das crianças e dos ado‑ lescentes. Profissionais de saúde que lidam com crianças e adolescentes não devem ser um obstáculo para a iniciação de treinamentos resistidos e devem buscar monitorar não apenas o treinamento, mas também as modificações físicas e psicoló‑ gicas da criança e do adolescente com o treinamento.15 Crianças e adolescentes que participam de competições es‑ portivas devem realizar atividades físicas que busquem o au‑ mento da força muscular e óssea para reduzir a incidência de lesões musculoesqueléticas. A participação precoce em treina‑ mentos resistidos aumenta a probabilidade da utilização da atividade física como um hábito em estágios posteriores da vida. Os programas de treinamento de força para crianças e adolescentes devem ser seguros, efetivos e prazerosos. Jovens não devem ser pressionados a obterem resultados em curto prazo nem a realizarem treinamentos com dor ou fadiga. O trei‑ namento resistido deve ser adaptado às motivações da criança e do adolescente, e o pediatra deve ser um parceiro e estimula‑ dor da inclusão de treinamentos resistidos como parte do pro‑ grama de condicionamento físico da criança e do adolescente. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Entender os benefícios do treinamento resistido em crianças e adolescentes. • Orientar e acompanhar a criança e o adolescente que realizam treinamento de força. • Identificar possíveis alterações de comportamento relacionadas ao excesso de treinamento.
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CAPÍTULO 2
NUTRIÇÃO, HIDRATAÇÃO E SUPLEMENTAÇÃO ESPORTIVA PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES Ricardo do Rêgo Barros
Introdução A nutrição é uma poderosa ferramenta para que crianças e adolescentes candidatos a atletas consigam atingir seus po‑ tenciais plenos de desempenho no futuro, e, embora muitos jovens saibam do valor de uma nutrição adequada, vários er‑ ros específicos são cometidos na atividade física diária recrea‑ tiva ou competitiva.1,2 Os adolescentes informam-se sobre nutrição com professo‑ res de educação física, técnicos, nutricionistas e médicos, mas, hoje em dia, a tecnologia virtual, por meio da internet e redes sociais, é a maior fonte de informações utilizadas pelos jovens em suas experiências nutricionais, sendo muito difícil diferen‑ ciar as informações enganosas das confiáveis, incluindo o charlatanismo nutricional. O papel da nutrição para qualquer indivíduo é de preservar a saúde, entretanto, crianças e adolescentes procuram por bene‑ fícios adicionais como retardar a fadiga, mudar a composição e o peso corporal, acelerar a recuperação, reduzir doenças, me‑ lhorar a eficiência biomecânica e implementar o desempenho. As crianças e os adolescentes necessitam de uma nutrição adequada para manter a saúde, possibilitar um crescimento apropriado e adequar o balanço nutricional, em função da constante atividade física. Entretanto, os hábitos alimentares irregulares de crianças e adolescentes são caracterizados por:1,3 • maior tendência a pular refeições, especialmente café da ma‑ nhã e almoço; • excesso de frituras e lanches hipercalóricos; • excesso de atividades diárias extracurriculares, impedindo uma alimentação balanceada; • experiências com suplementos dietéticos; • consumo excessivo de refrigerantes e baixa ingesta de água; • baixo consumo de cereais, vegetais, frutas e derivados lác‑ teos; • ingestão inadequada de nutrientes essenciais em função dos modismos alimentares (vegetariana, vegana, crudivorismo).
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Modismos alimentares 1. Macrobiótica: divididos em duas categorias, de acordo com a filosofia oriental do yin e yang, a alimentação deve ser combi‑ nada na hora da refeição e são proibidos produtos industriali‑ zados, carne vermelha, leite, laticínios e açúcar. 2. Ovolactovegetarianismo: exclusão de qualquer tipo de carne, sendo a alimentação constituída de frutas, hortaliças e ce‑ reais. 3. Lactovegetarianismo: exclusão de carne e ovos; leite e laticí‑ nios são consumidos. 4. Vegana ou vegetarianismo estrito: consumo exclusivo de ali‑ mentos de origem vegetal, como frutas, legumes, verduras, sementes e cereais. É proibido qualquer alimento de origem animal. 5. Crudivorismo: só permite o consumo de legumes, verduras, sementes e frutas em forma natural, sem nenhum cozimento, ou seja, a ingestão de alimentos crus ou aquecidos até 42°C. O fato de o alimento ser consumido na forma crua não significa que seja frio, pois pode ser amornado em fogo baixo em pane‑ las de barro, para não destruir suas enzimas e sua energia vital. 6. Orgânica: esse estilo preocupa-se com a forma como o ali‑ mento é cultivado, o tipo de cultivo do alimento, sem insu‑ mos químicos como agrotóxicos e fertilizantes. 7. Sem glúten nem lactose: os seguidores não ingerem alimen‑ tos com aveia, trigo e centeio. No segundo caso, não ingerem leite e derivados. O início da puberdade, com seu aumento na velocidade de crescimento, mudanças na composição corporal, atividade fí‑ sica e menarca (nas meninas), afeta as necessidades nutricio‑ nais normais durante a adolescência. Os incrementos de peso no sexo feminino se fazem mais à custa de gordura e, no mas‑ culino, à custa de massa muscular, ocasionando necessidades nutricionais diferentes.4,5 Na adolescência, o ganho em altura, durante a fase de cres‑ cimento, é de aproximadamente 10 cm/ano e de 50% do seu
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peso final; desse modo, havendo restrição da ingesta alimen‑ tar nos adolescentes fisicamente ativos, pode ocorrer parada no crescimento, diminuição da taxa metabólica basal e, em meninas, amenorreia. Considerando a rápida velocidade de crescimento nessa faixa etária, recomenda-se que, nas duas primeiras décadas de vida, as gorduras devam fornecer 30% das calorias da dieta, desde que não haja histórico familiar de dislipidemias ou doença arterial coronariana (DAC). Índices nutricionais A antropometria, mesmo considerando suas limitações, tem sido o método mais utilizado para avaliação corporal e é tam‑ bém proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS).6 Os indicadores antropométricos usados na avaliação nutri‑ cional de adolescentes não são específicos, sendo considera‑ dos critérios sugestivos de maior risco nutricional. Entretanto, isoladamente, em avaliações populacionais, não identifica ca‑ rências específicas, como hipovitaminose A, anemia ferropri‑ va e deficiência de cálcio, nutrientes muitas vezes deficientes na dieta dos adolescentes. A puberdade caracteriza-se por alterações nos componen‑ tes da massa isenta de gordura: o conteúdo hídrico diminui à medida que o conteúdo de potássio e a densidade óssea aumentam. A massa óssea aumenta 15% em meninos e 28% em meninas, sendo que a massa isenta de gordura é ligeira‑ mente menor em meninos do que nas meninas pré-púberes. O índice de massa corpórea (IMC) ou índice de Quetelet (peso corpóreo dividido pela altura ao quadrado) é a fórmula mais frequentemente usada nos adultos para diagnosticar so‑ brepeso, obesidade, magreza e desnutrição, mas sua precisão em adolescentes é variável, primariamente em virtude do rá‑ pido crescimento e desenvolvimento e do fato de haver dife‑ rentes depósitos de tecido adiposo com o crescimento linear. Necessidades nutricionais Fontes de energia7-9 Como regra geral, os altos componentes energéticos armaze‑ nados nos músculos são utilizados durante exercícios de alta intensidade e de curta duração. O carboidrato armazenado no músculo sob forma de glicogênio pode ser usado sem oxigênio para exercício intenso com duração de 1 a 3 minutos. Por outro lado, a oxidação do glicogênio e das gorduras é importante nas atividades de resistência com duração superior a 5 minutos. Gorduras As necessidades calóricas diárias variam de acordo com a fase da puberdade, ficando em torno de 2.200 a 2.500 kcal nas me‑ ninas e 2.800 a 3.200 kcal nos meninos, sendo que os valores maiores devem ser utilizados durante o estirão de crescimen‑ to, em ambos os sexos. Crianças e adolescentes jovens utilizam mais gorduras e me‑ nos carboidratos como fonte energética nas suas atividades, mas esse fato não influi nas recomendações da necessidade do consumo de gorduras de não mais do que 30% do total de calo‑ rias diárias, 10% de gorduras saturadas e menos de 30 mg/dia de colesterol. Esse segmento etário utiliza mais energia em suas
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atividades habituais quando comparado aos adultos, necessi‑ tando de 25 a 30% mais energia/kg. A principal razão desse au‑ mento das necessidades de energia é a adequação da coordena‑ ção entre os músculos agonísticos e antagonísticos usados na atividade motora, tornando-os metabolicamente menos econô‑ micos no uso das fontes de energia, durante as atividades diárias. Carboidratos Os carboidratos tornam-se a principal fonte de energia após os 13 anos de idade, devendo contribuir com 55% da ingestão ca‑ lórica total, garantindo o metabolismo e a temperatura corpó‑ rea. Enquanto os estoques de gordura constituem a maior re‑ serva de energia corporal, os carboidratos são a principal fonte de energia para utilização imediata, poupando o glicogênio muscular e mantendo a glicemia durante as atividades diárias dos adolescentes. Proteínas Em crianças e adolescentes, a ingestão de proteínas deve man‑ ter um balanço nitrogenado positivo, ou seja, a ingestão deve ser maior que a utilização para manter normal o crescimento e o desenvolvimento de órgãos e tecidos. Assim, enquanto as necessidades diárias de um adulto são de 0,8 a 1 g/kg/dia, crianças de 7 a 10 anos requerem 1,1 a 1,2 g/kg/dia, e adoles‑ centes de 11 a 14 anos necessitam de 1 g/kg/dia, necessidades estas contempladas por uma dieta balanceada, pouco fre‑ quente nessa faixa etária. Minerais Na adolescência, principalmente durante o estirão do cresci‑ mento, existe um substancial aumento nas necessidades de três minerais: cálcio, ferro e zinco. Cálcio A deficiência de cálcio é atribuída à baixa ingesta de leite, deriva‑ dos lácteos e dietas restritivas (ou alternativas), influenciando a mineralização óssea e predispondo a osteopenia e a osteoporose, considerando-se que 20 a 30% do cálcio ingerido é absorvido. Na adolescência, ocorre um aumento do esqueleto associa‑ do ao crescimento, principalmente na fase de aceleração, exer‑ cendo impacto sobre as necessidades diárias de cálcio, sendo diretamente relacionado à estatura, ou seja, as demandas des‑ se mineral em adolescentes altos é sempre maior do que na‑ queles mais baixos. Estima-se uma necessidade diária de cálcio da ordem de 500 a 1.200 mg/dia, devendo ser levada em consideração a in‑ gestão excessiva de bebidas gaseificadas (refrigerantes), que trocam o cálcio pelo fósforo, contribuindo para uma menor ab‑ sorção desse mineral. Na dieta, encontra-se o cálcio em ali‑ mentos como couve, feijão, nabo, laticínios e sardinhas. Ferro A anemia em adolescentes é bastante prevalente, em todos os níveis sociais, reforçando uma ingesta inadequada desse mi‑ neral. Em alguns casos, não se encontra anemia laboratorial, mas sim, ferropenia, com ou sem sintomas clínicos.
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Os grandes incrementos de massa muscular e volume san‑ guíneo ocorrem com maior velocidade e magnitude no sexo masculino, durante o estirão de crescimento. Essa relação in‑ verte-se ao fim do período de aceleração rápida, já que as meni‑ nas, por apresentarem perdas menstruais (1,4 mg de ferro por dia), passam a necessitar 3 vezes mais ferro do que os meninos. As necessidades de ferro para os adolescentes situam-se entre 12 e 16 mg diários, podendo ser supridas por uma dieta de boa qualidade, à base de carne (também peixe), grãos, ovos, vegetais, leite e queijo. Nas adolescentes que já apresentam menarca e adolescentes atletas de ambos os sexos, deve-se ter uma preocupação especial em checar os níveis sanguíneos de ferro, visando a prevenir a anemia que, em competições espor‑ tivas, irá repercutir diretamente no desempenho esportivo. Outro aspecto importante é a opção dos adolescentes por utilizarem dietas vegetarianas, que são pobres em ferro e cál‑ cio e ricas em fitatos e oxalatos, pois estes se ligam ao ferro já deficiente, dificultando sua absorção, aumentando o risco de anemia e comprometendo o crescimento. Zinco O zinco é reconhecido como mineral essencial para o cresci‑ mento e a maturação sexual dos adolescentes, podendo ser encontrado em carnes, peixes, ovos e leite. As recomendações diárias estão em torno de 10 a 15 mg, podendo ocorrer hipogo‑ nadismo, queda de cabelos e retardo do crescimento quando a ingestão de zinco for abaixo de dois terços do recomendado. Hidratação – líquidos e eletrólitos10-12 Crianças e adolescentes jovens produzem menos suor, geram mais calor durante o exercício e não possuem mecanismos ade‑ quados de trocas de calor com o ambiente externo, já que têm maior superfície corporal do que os adultos, o que resulta em grandes ganhos de calor nos ambientes quentes e grandes per‑ das de calor nos ambientes frios. Sendo assim, os fluidos são de extrema importância na manutenção da saúde e no desempe‑ nho dos atletas jovens, devendo ser evitada a desidratação in‑ duzida pelo exercício, pois crianças e adolescentes apresentam um aumento muito grande na temperatura corporal interna. Suplementos nutricionais12-14 São definidos como produtos alimentícios, acrescidos à dieta, que contêm pelo menos um dos seguintes ingredientes: vita‑ mina, mineral, ervas ou plantas, aminoácidos ou combinação de qualquer desses ingredientes. De acordo com essa defini‑ ção, os suplementos nutricionais podem conter nutrientes es‑ senciais, como vitaminas, minerais e aminoácidos, mas tam‑ bém outras substâncias não essenciais, como ginseng, ginkgo, yombine, ma huang e qualquer outro produto dito fitoterápico. Diversos recursos ergogênicos têm sido utilizados para me‑ lhorar o desempenho atlético por meio do aumento da potên‑ cia física, da força de explosão e da resistência. Os recursos ergogênicos nutricionais supostamente têm a finalidade de influenciar os processos fisiológicos e psicológi‑ cos para aumentar a potência física e a força mental. A Tabela 1 analisa cada suplemento nutricional com base na propagan‑
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da das empresas nutricionais e na avalição dos especialistas sobre seu efeito ergogênico. A seguir, são dadas algumas orientações sobre o que usar e como indicar esses suplementos de maneira saudável e nutri‑ cionalmente adequada. Proteicos (“whey protein”) Os aminoácidos, unidades estruturais das proteínas, estão en‑ volvidos em diversos mecanismos que afetam o metabolismo do exercício e, assim, tem sido sugerido que a suplementação com esses elementos poderia melhorar o desempenho em atletas e aumentar a massa muscular em adolescentes que tra‑ balham com programas de força. Os suplementos proteicos, os “whey protein”, são feitos do soro do leite e podem ser adquiridos sob a forma de pó, líquido, barras ou cápsulas: embora seu uso esteja universalmente di‑ fundido entre todos os praticantes de atividades físicas, os maiores usuários desses suplementos são alunos de acade‑ mias que desejam ganhar massa muscular associado à muscu‑ lação (hipertrofia muscular). Os suplementos proteicos são indicados em casos de restri‑ ção calórica (principalmente em meninas que praticam espor‑ tes nos quais a redução ponderal e a manutenção de peso são importantes para o desempenho, como ginástica olímpica e balé), vegetarianos, crudivoristas e naqueles que não conso‑ mem carboidratos adequadamente. Ao prescrever suplementos visando à hipertrofia muscular, é preciso utilizar uma associação de 10 g de proteínas com 20 g de carboidratos, o que reduz a degradação proteica pós-exercí‑ cio se utilizados de 30 a 60 minutos após a atividade de hiper‑ trofia muscular. Aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA) Alguns aminoácidos não são sintetizados pelo corpo e devem ser ingeridos na dieta, entre eles, os aminoácidos de cadeia ra‑ mificada isoleucina, leucina e valina, conhecidos como branch chain amino acids (BCAA). Embora indicados por nutricionistas e médicos do esporte para diminuir não só a fadiga em exercícios de resistência como também o risco de infecções por estimulação imunológi‑ ca, nada foi comprovado pelos estudos científicos disponíveis. Carboidratos (ou hidratos de carbono) Enquanto os estoques de gordura constituem a maior reserva de energia corporal, os carboidratos são a principal fonte de energia para utilização imediata, poupando o glicogênio mus‑ cular e mantendo a glicemia durante o exercício. Podem ser usados de duas maneiras: supercompensação de glicogênio muscular, prática que associa a maior ingestão de glicídios com a diminuição do treinamento em evento único de resis‑ tência, como maratona ou triatlon, e suplementação de carboi‑ dratos antes e durante os exercícios aeróbicos e anaeróbicos. As pesquisas confirmam o efeito ergogênico da super‑ compensação de carboidratos na dieta dos atletas de resis‑ tência que praticam exercícios com duração superior a 60 minutos, já que os depósitos de glicogênio muscular come‑
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Nutrição, Hidratação e Suplementação Esportiva para Crianças e Adolescentes •
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Tabela 1 Suplementos nutricionais mais usados Suplemento
O que promete
O que falam os especialistas
Carboidrato (energético)
Fonte de energia imediata Redução de fadiga Modismo atual: maltodextrina (malto)
Mantém glicemia, poupando glicogênio muscular, em exercícios de alta intensidade, acima de 60 minutos Sport drinks: com 4 a 8% de glicídios, ajudam a diminuir a fadiga em exercícios de média e longa duração O uso excessivo causa ganho de peso Potencial ergogênico confirmado
Creatina (3 aminoácidos)
Aumento de massa muscular Aumento da resistência em exercícios de média e longa duração Aumento da fonte energética ATP-CP, de rápida reposição
Dose: 20 g/dia em 4 tomadas, por 5 a 7 dias, com manutenção de 2 a 5 g/dia, em ciclos de 4 a 12 semanas Indicado em: • atividades anaeróbicas intensas • ganho de massa muscular em treinamentos de força • contraindicado para menores de 18 anos (lesões musculoesqueléticas) • hipertensão? Cãibras? Potencial ergogênico confirmado (não em todos os atletas) USO CRITERIOSO
Proteínas (whey protein, shakes, barras de proteínas)
Aumento de massa muscular Melhora do desempenho
Complicações comuns: • sobrecarga renal • hipertensão arterial • hiperuricemia Indicado em: • restrições calóricas (balé, ginástica olímpica) • dietas vegetarianas • ganho de massa muscular Potencial ergogênico confirmado
Aminoácidos anabólicos e BCAA
Aumento de massa muscular Fonte energética alternativa Redução do risco de infecções
Complicações comuns: • sobrecarga renal Potencial ergogênico não confirmado
Estimulantes (cafeína, efedrina)
Metabolização de gordura Aumento da resistência aeróbica Aumento da concentração Redução da sensação de fadiga
Complicações comuns: • dependência • insônia • inquietação • taquicardia DOPING PROIBIDO
Ma huang, Chinese Efhedra
Estímulo à queima de gordura – fat burners
Complicações comuns: • parada cardíaca • combinação perigosa de cafeína e efedrina PROIBIDO
Carnitina
Estímulo à queima de gordura – fat burners
Nenhum efeito ergogênico
çam a diminuir após esse período, em exercícios de alta in‑ tensidade. Durante a competição, 30 a 60 g de carboidratos devem ser ingeridos para cada hora de exercício, e os repo‑ sitores líquidos (“sport drinks “) contendo de 4 a 8% de gli‑ cídios associados a fórmulas hidreletrolíticas ajudam a di‑ minuir a fadiga, melhorando o desempenho em eventos de média e longa duração, com resultados confirmados em vá‑ rios estudos. Após o exercício extenuante, é preconizada a ingesta de carboidratos simples entre 0,7 e 1,5 g/kg de peso no período imediato de até 4 horas para garantir a ressíntese plena de gli‑ cogênio muscular. Deve-se dar preferência a mistura de glico‑ se, frutose e sacarose, já que a frutose isoladamente pode cau‑ sar problemas gastrointestinais. Maltodextrina (“malto”) ou carboidrato complexo A maltodrextrina, também conhecida apenas como “malto”, é um carboidrato complexo oriundo do amido de milho, resulta‑ do da união da maltose com a dextrina, sendo bastante conhe‑ cida dos pediatras que, nas décadas de 1970, 1980 e início da de 1990, prescreviam mamadeiras com leite de vaca acrescido
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de maltodextrina e algum tipo de farinha para adequar o valor calórico do leite em crianças pequenas. Ela pode ser indicada para atletas de alto desempenho, como tenistas, jogadores de futebol, maratonistas e pratican‑ tes de musculação. No entanto, para aqueles que praticam ati‑ vidades físicas de grau leve a moderado, a maltodextrina não deve ser prescrita, já que possui alto valor calórico (100 g = 350 kcal), podendo levar a ganho de peso indesejado. Creatina A suplementação oral com creatina pode aumentar a concen‑ tração muscular de fosfocreatina em 6 a 16%, implementando uma ressíntese mais rápida de ATP durante exercícios máxi‑ mos que possibilitam um repouso menor entre atividades, disponibilizam energia para esforços repetidos de alta intensi‑ dade com pausas e potencializam a explosão muscular. Além disso, o aumento de creatina muscular tampona o ácido lático produzido durante o exercício, retardando a fadiga muscular e a sensação dolorosa. A Academia Americana de Medicina Desportiva (ACSM 2000) e a Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte (SBMEE 2009) referendam que, em casos específicos,
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a creatina pode ser usada para melhorar o desempenho em exercícios que envolvam curtos períodos de atividade anaeró‑ bica de altíssima intensidade, ou seja, atividades nas quais predominam a utilização de fosfagênios. Essas atividades são exclusivas de competição e, portanto, essas substâncias não devem ser utilizadas por adolescentes que praticam ativida‑ des recreativas. A utilização da creatina visando ao ganho muscular não tem comprovação científica, e os trabalhos demonstram que a chamada “hipertrofia muscular” é consequência de retenção de água intramuscular, podendo também ocorrer cãibras bas‑ tante dolorosas em alguns atletas, em função do uso da dose de 20 mg/dia (preconizada pelos fabricantes) quando a dose considerada segura é de 2 a 5 mg/dia. Também não melhora o desempenho em exercícios aeróbi‑ cos (corridas em distância) ou de força isométrica (força está‑ tica). O ACSM contraindica a utilização de creatina por crian‑ ças e adolescentes até 18 anos, já que existem relatos médicos de problemas musculotendinosos e lesões musculares.13 Esteroides anabólicos androgênicos (EAA) ou anabolizantes: o sério problema do doping consentido Esteroides anabólicos androgênicos (EAA) (Tabela 2) são de‑ rivados sintéticos da testosterona e representam uma classe de drogas de uso abusivo por adolescentes e adultos jovens. O termo “anabólico” é relativo à estimulação da síntese proteica, e “androgênico” implica a estimulação das características se‑ xuais secundárias masculinas, incluindo ganho de massa muscular. Outras drogas que simulam o efeito anabólico dos esteroi‑ des – como de-hidroepiandrosterona (DHEA), androstene‑ diona (hormônios androgênicos produzidos pelas glândulas suprarrenais e testículos), hormônio do crescimento (GH) e gama-hidroxibutirato (GHB, liquid ecstasy, G) – têm sido utili‑ zadas visando ao rápido ganho de força muscular e da massa magra corpórea, mas os graves efeitos colaterais associados a todas essas drogas tornaram-nas proibidas em todo o mundo. Efeitos colaterais em ambos os sexos: • aumento da pressão arterial; • dano hepático e carcinomas; • diminuição de tolerância à glicose (diabete); • fechamento precoce das epífises; • aumento da incidência de ruturas ligamentares; • acne grave, especialmente na face e no dorso; • calvície (caracteristicamente parietal); • distúrbios do sono; • hepatites (B/C) e HIV (uso de seringas comuns). Efeitos colaterais em homens: • redução do volume testicular (20%); • redução da espermatogênese (90%); • impotência; • ginecomastia; • aumento prostático.
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Efeitos colaterais em mulheres: • atrofia mamária; • clitoromegalia; • aumento dos pelos faciais e corporais; • atrofia uterina; • engrossamento da voz; • amenorreia/problemas menstruais. Considerações finais A resiliência das crianças e adolescentes é testada diariamente pelo mundo virtual, e o desafio dos pediatras é cada vez maior no sentido de orientar a prática de atividades físicas de forma saudável e segura. Uma dieta bem balanceada é o ponto primordial para maxi‑ mizar o desenvolvimento, sendo os hábitos alimentares a prin‑ cipal intervenção para um crescimento sadio. A orientação nu‑ tricional deve ser parte essencial na anamnese, principalmente para jovens vegetarianos e aqueles com baixa ingesta calórica. Uma hidratação apropriada é de fundamental importância para manter o balanço hemodinâmico, prevenir distúrbios re‑ lacionados ao calor e otimizar as atividades diárias. Além dis‑ so, a ingesta diária adequada de carboidratos, ácidos graxos essenciais, proteínas, vitaminas e minerais previne distúrbios alimentares, como vigorexia e anorexia nervosa, extremamen‑ te prevalentes nos adolescentes. Os médicos também devem ajudar pais e professores de educação física a entenderem os limites individuais de cada criança/adolescente, pois uma alimentação balanceada pro‑ porciona crescimento normal e maturação adequados, propi‑ ciando também a aquisição de habilidades específicas para as diversas atividades físicas. Em casos específicos, pediatras e nutricionistas poderão trabalhar em conjunto para orientar a suplementação apro‑ priada à prática esportiva escolhida, geralmente esportes de competição. Mitos e tabus O perigo do uso de suplementos nutricionais reside no fato de que os adolescentes continuarão usando e experimentando cada vez mais essas substâncias e todos os novos produtos do mercado sem embasamento científico. Para fins legais, os suplementos dietéticos incluem não só vitaminas e nutrientes essenciais, mas também ervas e produ‑ tos naturais utilizados pelos seres humanos para suplementar a alimentação. A crescente aceitação de medicinas alternati‑ vas, modismos alimentares e uma mentalidade esportiva de vencer a qualquer preço estimulam o mercado de suplemen‑
Tabela 2 Exemplos de esteroides anabólicos1,13 Orais
Injetáveis
Estanozolol (Winstrol)
Nandrolona (Deca-Durabolin)
Oximetolona (Anadrol)
Nandrolona (Durabolin)
Oxandrolona (Anavar)
Testosterona (Depo Testosterona) Boldenona (Equipoise)
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Nutrição, Hidratação e Suplementação Esportiva para Crianças e Adolescentes •
tos com a proliferação de novas fórmulas, nem sempre isentas de efeitos colaterais. Os diversos produtos existentes no mercado prometem au‑ mento da força muscular, aumento da massa corporal magra, rápida perda de gordura, diminuição da fadiga e rápida recu‑ peração muscular. O sucesso no esporte durante a puberdade é um fator de extrema importância para os jovens que, assim estimulados por uma massiva propaganda, utilizam diversas substâncias ditas ergogênicas, sem se preocupar com os efei‑ tos nocivos ou a legalidade delas, além de não considerarem a desonestidade desse tipo de recurso na prática esportiva. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Saber as especificidades da nutrição e da hidratação em jovens. • Descrever as principais carências nutricionais dos atletas jovens. • Analisar criticamente os modismos alimentares. • Ter noções básicas dos ditos suplementos nutricionais esportivos, analisando benefícios e malefícios. • Enumerar os principais suplementos proibidos. • Orientar famílias sobre a dieta adequada e as necessidades líquidas de crianças que participam de atividades físicas para recreação ou competitivamente.
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A lista proibida de 2014 Código mundial antidopagem Válida a partir de 1º de setembro de 2014. De acordo com o artigo 4.2.2 do Código Mundial Antidopa‑ gem todas as Substâncias Proibidas devem ser consideradas como “Substâncias especificadas” exceto Substâncias das classes S1, S2, S4.4, S4.5, S6.a, e Métodos Proibidos M1, M2 e M3. Substâncias e métodos proibidos permanentemente (em competição e fora de competição) Substâncias proibidas S0. Substâncias não aprovadas Qualquer substância com atividade farmacológica que não es‑ teja referenciada por nenhuma das seções subsequentes dessa lista e sem aprovação em curso por autoridade governamental regulamentadora da saúde para uso terapêutico em humanos (ex.: drogas em desenvolvimento pré-clínico ou clínico, ou des‑ continuadas, drogas de desenho, substâncias aprovadas apenas para uso veterinário) são proibidas em qualquer tempo. S1. Agentes anabólicos Agentes anabólicos são proibidos. 1. Esteroides anabólicos androgênicos (EAA)
a. EAA exógenos*, incluindo: 1-Androstenodiol (5-androst-1-eno-3ß,-17ß-diol); 1-androsteno‑ diona (5-androst-1-eno-3,17-diona); bolandiol (estr-4-eno‑ -3ß,17ß-diol); bolasterona, boldenona; boldiona (androsta-1,4‑ -dieno-3,17-diona); calusterona; clostebol; danazol ([1,2] oxazola[4´,5´:2,3]pregna-4-en-20-in-17-ol); dehidroclorometil‑ testosterona (4-cloro-17ß-hidroxi-17-metilandrosta-1,4- dien-3-ona); desoximetiltestosterona (17-metil-5-androst-2-en-17ß-ol); drostanolona; etilestrenol (19-norpregn-4-en-17-ol); estanozolol; estembolona; fluoximesterona; formebolona; furazabol (17-me‑ til[1,2,5]oxadiazola[3´,4´:2,3]-5-androstan-17ß-ol); gestrinona; 4-hidroxitestosterona (4,17ß-di-hidroxiandrost-4-en-3-ona); mestanolona; mesterolona; metandienona (17ß-hidroxi-17-me‑ tilandrosta-1,4-dien-3-ona); metandriol; metasterona (17-hidro‑ xi-2, 17-dimetil-5-androstan-3-ona); metenolona; metildienolona (17ß-hidroxi-17-metilestra-4,9-dien-3-ona); metil-1-testostero‑
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na (17ß-hidroxi-17-metil-5-androst-1-en-3-ona); metilnortestos‑ terona (17ß-hidroxi-17-metilestr-4-en-3-ona); metribolona (me‑ tiltrienolona, 17ß-hidroxi-17-metilestra-4,9,11-trien-3-ona); metiltestosterona; mibolerona; nandrolona; 19-norandrosteno‑ diona (estr-4-eno-3,17-diona); norboletona; norclostebol; noretandrolona; oxabolona; oxandrolona; oximesterona; oximetolona; prostanozol (17ß-[(tetraidropiran-2-il)oxi]-1´Hpirazola[3,4:2,3]-5-androstano); quimbolona; 1-testosterona (17ß-hidroxi-5-androst-1-en-3-ona); tetrahidrogestrinona (17-hi‑ droxi-18ahomo- 19-nor-17-pregna-4,9,11-trien-3-ona); trembolo‑ na (17ß-hidroxiestr-4, 9,11-trien-3-ona) e outras substâncias com uma estrutura química similar ou efeito(os) biológico(s) similar(es). b. EAA endógenos** quando administrados exogenamente: androstenodiol (androst-5-ene-3ß,17ß-diol); androstenodio‑ na (androst-4-ene-3,17-diona); dihidrotestosterona (17ß-hi‑ droxi-5-androstan-3-ona); prasterona (deidroepiandrostero‑ na, DHEA, 3ß-hidroxiandrost-5-en-17-ona); testosterona; e seus metabólitos e isômeros, incluindo mas não limitados a: 5 -androstano-3,17-diol; 5-androstano-3, 17ß-diol; 5-androsta‑ no-3ß, 17-diol; 5-androstano-3ß,17ß-diol; androst-4-eno-3, 17-diol; androst-4-eno-3, 17ß-diol; androst-4-eno-3ß, 17-diol; androst-5-eno-3, 17-diol; androst-5-eno-3, 17ß-diol; androst-5-ene-3ß,17-diol; 4-androstenodiol (androst-4-eno‑ -3ß, 17ß-diol); 5-androstenodiona (androst-5-eno-3,17-dio‑ na); epi-dihidrotestosterona, epitestosterona; etiocolanolona, 3-hidroxi-5-androstan-17-ona; 3ß-hidroxi-5-androstan-17‑ -ona; 7-hidroxi-DHEA; 7ß-hidroxi-DHEA; 7-keto-DHEA; 19-norandrosterona; 19-noretiocolanolona. 2. Outros agentes anabólicos, incluindo, mas não limitados a:
Clembuterol, moduladores seletivos de receptores androgênicos (SARM), tibolona, zeranol, zilpaterol. Para compreensão desta seção: * “Exógena” refere-se a uma substância que, normalmente, não é produzida naturalmente pelo corpo. ** “Endógena” refere-se a uma substância que, normalmente, é produzida naturalmente pelo corpo.
S2. Hormônios peptídicos, fatores de crescimento e substâncias relacionadas As seguintes substâncias, e outras substâncias com estrutura química similar ou efeito(os) biológico(s) similar(es), são proi‑ bidas: 1. Agentes estimuladores da eritropoese [p.ex., eritropoetina (EPO), darbepoetina (dEPO), estabilizantes de fatores indu‑ zíveis por hipóxia (HIF), e ativadores (p.ex., xenon, argon) metoxi polietileno glicol-epoetinabeta (CERA), peginesatide (hematide)]. 2. Gonadotrofina coriônica (CG) e hormônio luteinizante (LH) e seus fatores de liberação, em homens. 3. Corticotrofinas e seus fatores de liberação. 4. Hormônio do crescimento (GH) e seus fatores de liberação e fator de crescimento semelhante à insulina-1 (IGF-1).
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Além disso, os seguintes fatores de crescimento são proibidos: Fatores de crescimento fibroblástico (FGF), fator de cresci‑ mento de hepatócitos (HGF), fatores de crescimento mecâni‑ cos (MGF); fator de crescimento derivado de plaquetas (PDGF), fator de crescimento endotelial-vascular (VEGF), as‑ sim como qualquer outro fator de crescimento que afete a sín‑ tese/degradação de proteínas de músculo, tendão ou liga‑ mento, vascularização, utilização de energia, capacidade regenerativa ou modificação do tipo de fibra; e outras substân‑ cias com estrutura química similar ou efeito(os) biológico(s) similar(es). S3. Beta-2 agonistas Todos os beta-2 agonistas incluindo todos os isômeros óticos (p.ex., d- e l-) onde pertinente são proibidos com exceção de salbutamol inalado (máximo 1.600 mcg durante 24 horas), formoterol inalado (dose máxima administrada 54 mcg du‑ rante 24 horas) e salmeterol quando administrado por inala‑ ção conforme recomendação de uso terapêutico do fabricante. A presença de salbutamol na urina em concentração superior a 1.000 ng/mL ou de formoterol em concentração superior a 40 ng/mL é compreendida como não sendo uso terapêutico planejado e será considerada como um Resultado Analítico Adverso, a menos que o atleta prove, através de um estudo far‑ macocinético controlado, que este resultado anormal seja consequência do uso da dose terapêutica inalada até o limite máximo exposto acima. S4. Moduladores hormonais e metabólicos As seguintes classes de substâncias são proibidas: 1. Inibidores da aromatase incluindo, mas não limitados a: anastrozola, 4-androsteno-3,6,17-triona (6-oxo), androsta‑ -1,4,6-trieno-3,17-diona (androstatrienodiona), letrozola, aminoglutetimida, exemestano, formestano, testolactona. 2. Moduladores seletivos de receptores de estrogênios (SERM) incluindo, mas não limitados a: raloxifeno, tamoxifeno, tore‑ mifeno. 3. Outras substâncias antiestrogênicas incluindo, mas não limi‑ tados a: clomifeno, ciclofenila, fulvestranto. 4. Agentes modificadores da função(ões) da miostatina incluin‑ do, mas não limitados a: inibidores da miostatina. 5. Moduladores metabólicos: a) insulina; b) agonistas do receptor ativado de proliferação peroxisso‑ mal (PPAR) (p.ex., GW 1516) e agonistas do eixo proteína qui‑ nase PPAR -AMP-ativada (AMPK) (p.ex., AICAR). S5. Diuréticos e outros agentes mascarantes Agentes mascarantes são proibidos. Eles incluem: diuréticos, desmopressina, expansores de plasma (p.ex., glicerol; admi‑ nistração intravenosa de albumina, dextrana, hidroxietilami‑ do emanitol), probenecida; e outras substâncias com efeito(s) biológico(s) similar(es). A aplicação local de felipressina em anestesia dental não está proibida. Diuréticos incluem: ácido etacrínico, acetazolamida, amilorida, bumetanida, canrenona,
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Nutrição, Hidratação e Suplementação Esportiva para Crianças e Adolescentes •
clortalidona, espironolactona, furosemida, indapamida, me‑ tolazona, tiazidas (p.ex., bendroflumetiazida, clorotiazida, hi‑ droclorotiazida), triantereno, vaptanos (p.ex., tolvaptano); além de outras substâncias com estrutura química similar ou efeito(s) biológico(s) similar(es) (excetuando-se adrosperido‑ na, pamabrom e uso tópico de dorzolamida e brinzolamida que não são proibidas). O uso dentro e fora de competição, conforme o caso, de qualquer quantidade de uma substância sujeita a limites máximos (ou seja, formoterol, salbutamol, ca‑ tina, efedrina, metilefedrina e pseudoefedrina) associada com um diurético ou outro agente mascarante exige a concessão por uma Isenção de Uso Terapêutico específica para essa subs‑ tância, além da concessão para o diurético ou outro agente mascarante. Métodos proibidos M1. Manipulação de sangue e componentes do sangue Os seguintes são proibidos: 1. Administração ou reintrodução no sistema circulatório, de qualquer quantidade de sangue autólogo, alogênico (homólo‑ go) ou heterólogo ou de produtos de glóbulos vermelhos de qualquer origem. 2. Aumento artificial da captação, transporte ou aporte de oxigê‑ nio, incluindo, mas não limitado aos perfluoroquímicos, efa‑ proxiral (RSR13) e produtos à base de hemoglobina modifica‑ da (p.ex., substitutos de sangue com base em hemoglobina, produtos de hemoglobina microencapsulados), excluindo oxigenação suplementar. 3. Qualquer forma de manipulação intravascular de sangue ou de componentes do sangue, seja por meios físicos ou químicos. M2. Manipulação química e física Os seguintes são proibidos: 1. Manipular ou tentar manipular, visando a alterar a integrida‑ de e validade das amostras coletadas no Controle de Dopa‑ gem. Isto inclui, mas não se limita à substituição e/ou adulte‑ ração de urina (p.ex., proteases). 2. Infusões intravenosas e/ou injeções maiores que 50 mL por um período de 6 horas exceto aquelas administradas de for‑ ma legítima durante ocasiões de visitas hospitalares ou inves‑ tigações clínicas. M3. Dopagem genética Os seguintes, com o potencial de melhorar o desempenho atlético, são proibidos: 1. A transferência de polímeros de ácidos nucleicos ou análogos de ácidos nucleicos. 2. O uso de células normais ou geneticamente modificadas. Substâncias e métodos proibidos em competição Além das categorias S0 a S5 e M1 a M3 definidas anteriormen‑ te, as seguintes categorias são proibidas em competição:
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Substâncias proibidas S6. Estimulantes Todos os estimulantes, incluindo todos os isômeros óticos (p. ex., d- e l-) onde pertinente, são proibidos, exceto derivados de imidazola para uso tópico e aqueles estimulantes incluídos no programa de monitoramento de 2014*. Estimulantes incluem: a. Estimulantes não especificados: Adrafinil; amifenazola; anfepramona; anfetamina; anfetami‑ nil; benfluorex; benzilpiperazina; bromantano; clobenzorex; cocaína; cropropamida; crotetamida; femproporex; fencami‑ na; fendimetrazina; fenetilina; fenfluramina; fonturacetam [4-fenilpiracetam (carfedom)]; fenmetrazina; fentermina; furfenorex; mefenorex; mefentermina; mesocarbo; metanfe‑ tamina (d-); p-metilanfetamina; modafinil; norfenfluramina; prenilamina; prolintano. Um estimulante não citado expres‑ samente nesta seção é uma Substância Especificada. b. Estimulantes especificados (exemplos): Benzfetamina; catina**; catinona e seus análogos (p.ex., mefe‑ drona, metedrona, -pirrolidinovalerofenona); dimetilanfetami‑ na; efedrina***; epinefrina****(adrenalina); estricnina; etami‑ van; etilanfetamina; etilefrina; famprofazona; fenbutrazato; fencanfamina; fenprometamina; heptaminol; hidroxianfetami‑ na (parahidroanfetamina); isometepteno; levmetanfetamina; meclofenoxato; metilenodioximetanfetamina; metilefedrina***; metilhexanoamina (dimetilpentilamina); metilfenidato; nique‑ tamida; norfenefrina; octopamina; oxilofrina (metilsinefrina); pemolina; pentetrazol; propilexedrina; pseudoefedrina*****; se‑ legilina; sibutramina; tenanfetamina (metilenodioxianfetami‑ na); trimetazidina; tuaminoheptano; e outras substâncias com estrutura química similar ou efeito(s) biológico(s) similar(es). * As seguintes substâncias, incluídas no programa de monito‑ ramento de 2014 (bupropiona, cafeína, fenilefrina, fenilpro‑ panolamina, nicotina, pipradol, sinefrina) não são considera‑ das Substâncias Proibidas. ** Catina é proibida quando sua concentração na urina for maior do que 5 mcg/mL. *** Tanto a efedrina como a metilefedrina são proibidas quan‑ do sua concentração na urina for maior do que 10 mcg/mL. **** A administração local (p.ex., nasal, oftalmológica) de epi‑ nefrina (adrenalina) ou coadministração com agentes anesté‑ sicos locais não é proibida. ***** Pseudoefedrina é proibida quando sua concentração na urina for maior do que 150 mcg/mL. S7. Narcóticos Os seguintes narcóticos são proibidos: Buprenorfina, dextromoramida, diamorfina (heroína), fenta‑ nil e seus derivados, hidromorfona, metadona, morfina, oxi‑ codona, oximorfona, pentazocina e petidina. S8. Canabinoides Natural (p.ex., cannabis, haxixe, maconha) ou delta 9-tetrahi‑ drocanabinol sintético (THC) e canabimiméticos (p.ex., “Spice”, JWH018, JWH073, HU-210) são proibidos.
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S9. Glicocorticosteroides Todos os glicocorticosteroides são proibidos quando adminis‑ trados por via oral, retal, intramuscular ou intravenosa. Substâncias proibidas em esportes específicos P1. Álcool Álcool (etanol) é proibido somente Em Competição, nos es‑ portes relacionados a seguir. A detecção será feita por análise respiratória e/ou pelo sangue. O limite para a violação de dopa‑ gem é equivalente a uma concentração de álcool no sangue de 0,10 g/L. 1. Esportes Aeronáuticos (FAI). 2. Lancha de potência (UIM) 3. Tiro com Arco Karatê (WKF) 4. Automobilismo (FIA). 5. Motociclismo (FIM)
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P2. Betabloqueadores A menos que seja especificado, betabloqueadores são proibi‑ dos somente Em Competição, nos seguintes esportes: 1. Tiro com Arco (proibido também Fora De Competição). 2. Automobilismo (FIA). 3. Bilhar (todas modalidades) (WCSB). 4. Dardos (WDF). 5. Esqui/snowboarding – FIS (salto com esqui e estilo livre em snowboard). 6. Golfe (IGF). 7. Tiro ISSF, IPC (proibido também Fora De Competição). Betabloqueadores incluem, mas não se limitam, aos seguintes compostos: Acebutolol, alprenolol, atenolol, betaxolol, bisoprolol, bunolol, carteolol, carvedilol, celiprolol, esmolol, labetalol, levobuno‑ lol, metipranolol, metoprolol, nadolol, oxprenolol, pindolol, propranolol, sotalol, timolol.
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CAPÍTULO 3
AVALIAÇÃO CARDIOVASCULAR DO ADOLESCENTE ATLETA
Maria Fátima Monteiro Pereira Leite
Introdução Segundo a Diretriz em Cardiologia do Esporte e do Exercício 3% da Sociedade Brasileira de Cardiologia e da Sociedade Brasi‑ 1% 3% 2% Cardiomiopatia hipertrófica 2% 1 leira de Medicina do Esporte, atleta é o indivíduo que pratica HVE indeterminada 2% Anomalia coronária 3% atividade física e esportiva de maneira regular e profissional, Miocardite 37% 3% Displasia arritmogênica do VD competindo sistematicamente, com vínculo profissional com 3% Prolapso mitral Túnel da descendente anterior o esporte, por meio de clubes e/ou patrocinadores de qual‑ 4% Doença arterial coronariana quer natureza. Assim, a imagem do atleta é associada àquela Estenose aórtica 4% CM dilatada do ser humano que busca sempre ultrapassar seus limites e re‑ Sarcoidose Rotura aórtica 6% cordes e ao modelo de saúde. Por isso, a morte súbita de um Doenças dos canais iônicos Outras cardiopatias congênitas atleta, apesar de rara, provoca comoção e preocupação em in‑ Coração normal 9% 18% divíduos que praticam esportes no dia a dia e na sociedade em geral. As causas mais comuns de morte súbita no atleta estão associadas ao coração, sendo a função da avaliação cardíaca pré-participação suspeitar da possibilidade de ocorrência des‑ Figura 1 Distribuição das causas de morte súbita. ses eventos e evitá-los, sempre que possível. A Figura 1 mostra Fonte: adaptado de Maron et al., 2007. as principais causas de morte súbita no atleta. Não existe estatística oficial brasileira de morte súbita em atletas, especialmente na faixa etária adolescente. Os traba‑ Anamnese e exame físico lhos mais importantes sobre o tema são europeus e norte‑ São as principais ferramentas em qualquer investigação diag‑ -americanos e classificam como atleta jovem indivíduos de 14 a nóstica. Do ponto de vista cardiovascular, não só para o atleta, 35 anos. Especialmente na Itália, onde, por motivos genéticos como para qualquer indivíduo que vai praticar atividade física, e étnicos, existe maior incidência de determinadas cardiopa‑ deve conter um histórico detalhado de sintomas e sinais tias silenciosas, a incidência de morte súbita é estimada em atuais, além de história patológica pregressa e familiar e o exa‑ 3,6/100.000 atletas-ano.2,3 Já as estatísticas norte-america‑ me físico, que deve ser detalhado com ênfase no sistema car‑ nas demonstram uma incidência muito menor, ficando entre diovascular. 1,05 e 3,45/100.000 atletas-ano.3 Apesar disso, todos concor‑ Na busca por sintomas, é importante esclarecer ao adoles‑ dam em ressaltar que os benefícios do esporte para a saúde su‑ cente que muitas formas de doença cardíaca têm tratamento e peram em muito os riscos dessa prática. que a omissão no relato de sintomas não só pode colocar sua As formas de rastreio do risco de eventos cardíacos entre vida em risco como também retarda o início de tratamento atletas variam de país para país, no entanto, é unânime que toda adequado. a avaliação começa com uma excelente anamnese e um exame Na maioria dos países do mundo, existe um rastreio pré‑ físico minucioso, buscando sinais e sintomas para doenças car‑ -participação padronizado; nos EUA, ele é composto de um diovasculares mais comuns associadas a eventos durante a prá‑ questionário de 12 elementos, como mostra a Figura 2.4 A in‑ tica desportiva. Neste capítulo, serão discutidas as principais vestigação deve, então, incluir: formas de investigação cardiovascular em atletas adolescentes, • na história da doença atual: queixa de dispneia ou cansaço ex‑ suas vantagens, desvantagens e custo-efetividade. cessivo, história de síncope inexplicável e não sugestiva de va‑ 4
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sovagal, desconforto ou dor torácica, palpitação, principalmen‑ te se associados ao esforço físico ou imediatamente após este; • na história familiar: relato de cardiopatia congênita, doença coronariana, arritmia ou morte súbita. Nesta pesquisa, o mé‑ dico deve investigar cardiomiopatia hipertrófica, displasia ar‑ ritmogênica do ventrículo direito, obstruções das vias de saí‑ da do ventrículo esquerdo ou direito, doenças dos canais iônicos (síndrome do QT longo, Brugada), outras arritmias como síndrome de Wolff-Parkinson-White, além de síndro‑ me de Marfan, como algumas das mais comuns; • na anamnese, deve ser incluída a investigação sobre o uso de drogas lícitas e ilícitas; • o exame físico deve ser completo e incluir inspeção, palpação e ausculta.
Na inspeção, em geral, o indivíduo tem aspecto saudável, ca‑ racterístico dos atletas; no entanto, devem chamar a atenção estigmas de síndrome de Marfan (p.ex., altura-envergadura, aracnodactilia, malformações da parede anterior do tórax), principalmente nos praticantes de esportes como vôlei e bas‑ quete, em que a altura e a envergadura são importantes. Na palpação, deve ser dada atenção especial aos pulsos – que, quando diminuídos nos membros inferiores, por exem‑ plo, sugerem coarctação da aorta, que pode ser assintomática em número significativo de indivíduos – e ao precórdio, em que a presença de desvios do ictus, palpação de bulhas acessó‑ rias (principalmente quarta bulha) e frêmitos podem levantar a suspeita de doenças como a cardiomiopatia dilatada ou hi‑ pertrófica com ou sem obstrução. Na ausculta, a presença de alterações no ritmo, na intensi‑ dade das bulhas, bulhas acessórias e sopros devem sempre in‑ dicar a avaliação por um especialista, mesmo que o paciente não se queixe de sintomas. Na avaliação dos sinais vitais, a pressão arterial, tanto para a exclusão de doença hipertensiva primária como para afastar coarctação da aorta, é fundamental. Deve-se observar tam‑ bém a frequência cardíaca, lembrando, porém, que, no indiví‑ duo bem treinado, ela pode ser muito baixa, sem, contudo sig‑ nificar patologia. Nos EUA, a avaliação pré-participação termina com essa avaliação, ou seja, o atleta que não apresenta alterações nesse rastreio está liberado para prática desportiva sem restrições. No entanto, o questionário deve ser repetido a cada 2 anos, pois nada impede que esses dados se alterem no decorrer do tempo, e principalmente o atleta deve ser orientado a relatar o aparecimento de sintomas. Para os norte-americanos, a reali‑ zação do eletrocardiograma (ECG) em indivíduos assintomáti‑ cos e com rastreio pré-participação normal cria um custo adicional desnecessário e, pela baixa sensibilidade e especifi‑ cidade do método, o número de falso-positivos, que vão ne‑ cessitar de outros exames cardiovasculares para serem libera‑ dos para prática desportiva, não justificaria esse custo.4 O custo emocional da realização de exames complementares e, muitas vezes, do afastamento temporário da atividade, em in‑ divíduos assintomáticos e sem fatores de risco, principalmen‑ te aqueles que apresentam falso-positivos, também deve ser
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História médica* História pessoal
1. Dor torácica ou desconforto durante o esforço 2. Síncope ou lipotimia inexplicável† 3. Dispneia ou fadiga excessiva ou inexplicável associada a exercício ou esforço 4. Presença de sopro cardíaco 5. Aumento da pressão arterial sistêmica
História familiar
6. Morte prematura (súbita ou inexplicável) antes dos 50 anos de idade decorrente de doença cardiovascular em mais de 1 parente de 1º grau 7. Sequela de cardiopatia em parente de 1º grau com menos de 50 anos de idade 8. Conhecimento específico de certas condições cardíacas em membros da família: cardiomiopatia hipertrófica ou dilatada, síndrome do QT longo ou outras doenças dos canais iônicos, síndrome de Marfan ou arritmias clinicamente significativas
Exame físico
9. 10. 11. 12.
Sopro cardíaco‡ Pulsos femorais para excluir coarctação da aorta Estigmas de síndrome de Marfan Pressão arterial em membro superior (em posição sentada)§
Figura 2 Recomendações de 12 elementos da American Heart Association para rastreio cardiovascular pré ‑participação para atletas
Fonte: adaptado de Maron et al., 2007.4 * A história dos pais é recomendada em atletas escolares e adolescentes. † Não classificada com vasovagal e tem importância particular quando relacionada ao esforço. ‡ Ausculta deve ser realizada na posição deitada e em pé (ou com manobra de Valsalva), especificamente para identificar sopros de obstrução dinâmica do lado esquerdo do coração. § Preferencialmente aferida em ambos os braços.
considerado. Além disso, o número de falso-negativos tam‑ bém é bastante significativo. Para alguns países europeus, principalmente a Itália, e para o Comitê Olímpico Internacio‑ nal, o ECG deve ser incluído na avaliação pré-participação e suas principais características serão discutidas a seguir neste capítulo. Adaptações cardíacas ao exercício no exame cardíaco Diante de um atleta bem treinado, em sua avaliação clínica evolutiva, é necessário também lembrar que existem adapta‑ ções fisiológicas ao exercício que não devem ser consideradas patológicas, e sua presença significa apenas que há treina‑ mento intenso. Essas adaptações consistem em remodela‑ mento cardíaco com dilatação e hipertrofia das câmaras, e a intensidade de cada uma varia com a modalidade praticada. São achados comuns no exame físico bradicardia com fre‑ quência abaixo de 60 bpm, com aumento do tônus vagal, que pode levar a uma intensa variação respiratória do ritmo car‑ díaco conhecida como arritmia respiratória ou arritmia sinu‑ sal. A dilatação das câmaras cardíacas, por remodelamento fi‑ siológico relacionado ao exercício, permite o aparecimento de terceira bulha fisiológica (B3), além de sopros inocentes ejeti‑ vos nas vias de saída do coração, que não devem ser confundi‑ dos com doença cardiovascular.5
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Avaliação Cardiovascular do Adolescente Atleta •
Eletrocardiograma Nos países europeus, a avaliação ainda conta com a obrigato‑ riedade do ECG de 12 derivações em repouso.2 No Brasil, algu‑ mas instituições exigem a realização do ECG na avaliação pré‑ -participação, porém a avaliação desse exame deve ser muito cuidadosa, pois algumas apresentações do ECG do atleta po‑ dem mimetizar doenças cardíacas. No Brasil, o médico deve levar em consideração a dificuldade em obter esses exames, o que pode, além de tudo, desmotivar o atleta. Existe um número significativo de artigos científicos discu‑ tindo o uso rotineiro do ECG na avaliação pré-participação de atletas assintomáticos e sem fatores de risco conhecidos. Aque‑ les que são a favor, como os europeus, se baseiam em trabalhos italianos, realizados na região do Vêneto, em que houve uma diminuição de 95% dos casos de morte súbita no esporte após a inclusão do ECG no rastreamento pré-participação. Contudo, no trabalho de Corrado et al., que deu origem a essa sugestão, dos 22 pacientes afastados das atividades com diagnóstico de cardiomiopatia hipertrófica, somente 12 foram diagnosticados exclusivamente pelo ECG, o que correspondia a 0,0004% da população total estudada; nos 10 pacientes restantes, havia da‑ dos sugestivos na história familiar ou no exame físico.6 No en‑ tanto, existem diversas correntes que contestam o trabalho, su‑ gerindo que a avaliação de uma população específica não pode ser extrapolada para a população em geral. Além disso, nos EUA, seriam gastos 2 bilhões de dólares anuais somente para a realização de ECG e avaliações consequentes, com um número significativo de falso-positivos e falso-negativos.4,7 A Diretriz em Cardiologia do Esporte e do Exercício da So‑ ciedade Brasileira de Cardiologia e da Sociedade Brasileira de Medicina do Esporte1 estabelece o grau de recomendação I com nível de evidência A para realização rotineira de ECG na avaliação pré-participação em crianças e adolescentes de 5 a 18 anos em início de treinamento organizado e competitivo em escolas esportivas, academias e clubes.1 Crianças e adoles‑ centes em atividades esportivas não profissionais, assintomá‑ ticos e sem história sugestiva de cardiopatia estão liberados para a prática sem necessidade deste ou de outros exames. Quanto à sua análise, o ECG do atleta tem particularidades que devem ser levadas em consideração na sua interpretação, devendo-se ter o cuidado de não classificar como patológicas alterações específicas, relacionadas à adaptação ao exercício físico, assim como não deixar passar como fisiológicas doen‑ ças graves com risco evidente de complicações cardiovascula‑ res, inclusive potencialmente fatais. A Figura 3 mostra as prin‑ cipais alterações do ECG do atleta que não devem ser consideradas patológicas, e sim adaptações fisiológicas ao exercício. Teste ergométrico Sem dúvida, é indicado na presença de sintomas como dor ou desconforto torácico, dispneia, palpitação, síncope ou arrit‑ mias durante o esforço físico, com grau de recomendação I e nível de evidência A pela diretriz brasileira.1,2,4 No atleta assin‑ tomático, embora seja um excelente aliado na avaliação da ca‑
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Bradicardia sinusal Arritmia sinusal Bloqueio atrioventricular de 1º grau Bloqueio incompleto do ramo direito Repolarização precoce HVE por critério isolado de voltagem*
Figura 3 Achados comuns no ECG do atleta – adaptações fisiológicas ao exercício consideradas variantes normais do ECG do atleta.
Fonte: adaptado de Drezner et al., 2012.8 * A presença de outros critérios eletrocardiográficos de HVE deve levar a outros exames para investigação. HVE: hipertrofia do ventrículo esquerdo.
pacidade funcional, não está indicado rotineiramente, sendo considerado pela diretriz americana como recomendação III (não indicado). A diretriz brasileira coloca o teste ergométrico para avalia‑ ção pré-participação em indivíduos saudáveis e assintomáti‑ cos na categoria: nível de recomendação IIa com evidência B, significando que, embora a evidência não seja apoiada em vá‑ rios estudos randomizados, a recomendação é a favor, no en‑ tanto, não unânime, havendo controvérsias quanto a sua rea‑ lização rotineira.1 Ecocardiograma É um excelente método para diagnóstico de cardiopatias es‑ truturais, como cardiomiopatia hipertrófica e dilatação da aor‑ ta em pacientes com doenças do tecido conjuntivo, mas perde no custo-efetividade do método, pois a maioria dos estudos mostra que é muito pequeno o número de atletas assintomáti‑ cos, com exame físico normal, em que há diagnóstico de uma doença, principalmente com risco de morte súbita. Na maio‑ ria das vezes, o indivíduo é sintomático, tem história familiar anormal ou apresenta alterações no exame físico que justifi‑ quem a sua realização. A diretriz brasileira não recomenda a realização de ecocardiograma de rotina no exame inicial do atleta sem fatores de risco. No acompanhamento do adolescente atleta, também exis‑ tem alterações fisiológicas do coração que só aparecem no atleta jovem, com altos e intensos níveis de treinamento. As‑ sim, não são consideradas patológicas, a não ser que estejam acompanhadas de outras alterações, a hipertrofia ventricular septal com valores de septo menores que 12 mm em homens e 11 mm em mulheres. Também não é incomum o ecocardiogra‑ fista encontrar diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo chegando a medir mais de 5,5 cm, porém raramente chegando a 6 cm e com a função ventricular normal.5 Outros exames O avaliador do atleta pode lançar mão de outros exames, como ressonância magnética (RM), teste ergoespirométrico, cintilo‑ grafia de esforço, entre muitos outros. No entanto, estes só es‑ tão recomendados com base em achados anormais na história, no exame físico e no ECG. Nessa fase, o pediatra já deve ter so‑ licitado um parecer do cardiologista pediátrico, que vai condu‑ zir a avaliação.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar os principais aspectos cardiovasculares a ser avaliados no cuidado pré-participação do atleta adolescente. • Coletar anamnese e realizar exame físico como principais elementos da avaliação do atleta adolescente. • Esclarecer ao adolescente que muitas formas de doença cardíaca têm tratamento e que a omissão no relato de sintomas não só pode colocar sua vida em risco, como retardar o início de tratamento adequado. • Discutir o custo-efetividade dos exames complementares na avaliação do atleta assintomático. • Descrever as adaptações mais comuns encontradas no coração do atleta adolescente.
4.
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CAPÍTULO 4
INDICAÇÕES E CONTRAINDICAÇÕES DE ATIVIDADES FÍSICAS EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES – GUIA PRÁTICO Ricardo do Rêgo Barros
Introdução A rápida evolução da tecnologia virtual, o surgimento de redes sociais e a comunicação interligada globalmente contribuíram para que os adolescentes de hoje vivenciem uma rápida troca de informações e discutam assuntos em tempo real, implican‑ do aumento do número de horas gastas em frente às telas (smartphones, tablets, jogos eletrônicos), fator contribuinte para o aumento da obesidade mundial. Atualmente, é possível afirmar que todas as crianças e ado‑ lescentes passam por mudanças biopsicossociais/virtuais, sendo que as constantes mudanças virtuais trazem novos de‑ safios aos pediatras, sobretudo nos aspectos relacionados à prevenção de agravos psicológicos ou físicos gerados por essa vivência virtual. A resiliência de cada adolescente dilui-se no mundo virtual e, assim, é preciso estar atentos aos fatores pro‑ tetores ou agressores que possibilitem uma experiência positi‑ va de adolescer nessa busca do ser existencial adulto do futu‑ ro.1 Entre os benefícios psicológicos das atividades físicas, po‑ dem-se citar:1-3 • adquirir autoconfiança e satisfação pessoal; • combater o mundo virtual (computadores, jogos, smartphones); • sociabilizar/realizar atividades em grupo; • simular objetivos de vida (perder e ganhar, ter prazer na ativi‑ dade); • desenvolver habilidades motoras por “exploração” ativa e ação/reação a diversos cenários; • aprender errando: corrigir e implementar o que está errado sem pressão; • atingir suas possibilidades de habilidade no tempo adequado (meta máxima); • lidar com pressões e expectativas realísticas. Em relação aos benefícios físicos e clínicos, citam-se: • desenvolvimento de habilidades motoras básicas e específi‑ cas;
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• coordenação; • melhora da função cardiorrespiratória; • aumento do gasto calórico, com impacto no sobrepeso, obesi‑ dade e inatividade; • efeitos positivos na composição corporal, tônus muscular e densidade óssea. Fases do desenvolvimento2-4 Para entender os conceitos envolvidos na indicação de ativi‑ dades físicas, deve-se ter noções mínimas das fases de desen‑ volvimento de crianças e adolescentes que ocorrem com am‑ pla variação em cada indivíduo. Primeira fase (conhecimento): 0 a 1 ano Nesse período, a psicomotricidade é extremamente importan‑ te, pois as crianças aprendem a mudar de decúbito ventral/ dorsal, sentar, engatinhar e podem já iniciar os primeiros pas‑ sos, além de ter um primeiro contato com os meios aquático, terrestre e aéreo. Segunda fase: 1 a 6 anos Fase da complementação do desenvolvimento neuropsicomo‑ tor com estabelecimento da coordenação motora mínima, como andar, correr, saltar, arremessar e pegar. Além disso, passam a compreender as atividades da rotina diária e devem ser incentivados à recreação diversificada. Terceira fase: 6 a 12 anos Fase de crescimento, com desenvolvimento dos aparelhos car‑ diovascular e respiratório somado ao crescimento musculoes‑ quelético e à compreensão das mudanças afetivo-emocionais. Nessa fase, devem ser iniciadas as escolas de esporte co‑ nhecendo as várias modalidades esportivas e, em torno dos 8 a 10 anos, podem ser indicadas atividades mais específicas, como ginástica olímpica, natação, corrida e saltos. Desse modo, a aquisição de habilidades específicas ocorre segundo faixas etárias (Tabela 1):1,2
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• 2 a 5 anos: habilidade motora limitada/pouca reação de equi‑ líbrio; • 6 a 7 anos: julgamento da velocidade e seguimento de objetos em movimento; • 7 a 8 anos: habilidades de equilíbrio e postura; • 10 a 12 anos: atenção seletiva e uso de estratégias complexas da memória; • puberdade/estirão do crescimento: perda transitória do equi‑ líbrio e postura em função da readaptação ao novo corpo. Seleção do esporte ideal (10 a 13 anos)1,3,5 Ao se orientar crianças e adolescentes a escolherem o esporte ideal, devem-se analisar componentes físicos e psicológicos, como: • nível de crescimento: tamanho do corpo, força muscular, composição corporal, poder aeróbico/anaeróbico, grau de Tanner (maturação sexual); • maturidade: nível de proficiência das habilidades motoras bá‑ sicas e específicas; • desenvolvimento: competência social, emocional e cognitiva do atleta; • desempenho cardiopulmonar e neuromotor; • caraterísticas musculares (crianças e adolescentes são mais propensos a lesões musculares graves, por não saberem reco‑ nhecer sintomas); • características ósseas (os ossos em desenvolvimento têm me‑ nor resiliência ao estresse, podendo causar fraturas ou lesões ósseas, sem grande sintomatologia). É importante questionar os pacientes sobre os objetivos da ati‑ vidade física escolhida e também sobre quem escolheu, isto é, se foram os próprios pacientes ou seus pais. A grande pressão exercida pelos pais sobre os seus filhos é a principal causa de abandono das atividades físicas na adolescência, principal‑ mente considerando-se que muitos pais não aceitam erros e derrotas, submetendo seus filhos a um alto nível de estresse psicológico.
Tabela 1 Indicações de esportes de acordo com a idade Requisito
Idade
Valência física
Esporte
Julgar velocidade, seguir objetos em movimento
5 a 7 anos
Habilidade Agilidade Coordenação olhos/membros
Natação, futebol, capoeira, surfe, skate, danças, ginástica, lutas, futsal
Equilíbrio e postura
7 a 8 anos
Flexibilidade
Tai Chi Chuan, ioga
Atenção seletiva e uso de estratégias complexas
10 a 12 anos
Velocidade Sem uso de força
Ciclismo, atletismo, saltos e corridas curtas, muay thai
Puberdade
Resistência Sem atividades anaeróbicas/ explosão
Vôlei, basquete, handebol
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Os pediatras devem ter uma participação ativa na especiali‑ zação esportiva, ou seja, a escolha do esporte competitivo pe‑ los pacientes, orientando sobre hidratação e nutrição, monito‑ rando peso e altura a cada 6 meses e diagnosticando e tratando as lesões musculoesqueléticas.6 A morte súbita relacionada ao exercício e ao esporte (MSEE)5,7-9 pode ser definida como a morte que ocorre de modo inesperado, instantaneamente ou não. A causa mais co‑ mum de morte súbita no atleta jovem é a cardiomiopatia hi‑ pertrófica (CH). Os portadores de CH podem ser totalmente assintomáticos ou apresentar tonteiras, síncope, especialmen‑ te relacionadas com o exercício, dispneia, palpitações e angina. A história clínica continua a ser o padrão-ouro da avaliação pré-participação, podendo identificar mais de 70% das patolo‑ gias que exijam referências a outros profissionais.1 Com relação à anamnese, é possível resumi-la em 5 ques‑ tões básicas que dizem respeito à saúde familiar e à história de lesões:1,7 1. Algum familiar já sofreu infarto do miocárdio ou faleceu por problemas cardíacos antes dos 50 anos de idade (ou teve mor‑ te súbita não explicada)? 2. Você já teve que interromper uma corrida de menos de 2 km, por dispneia, dor torácica ou tosse? A tosse é um indicador de asma induzida pelo exercício. 3. Durante a prática de esportes, já perdeu a consciência ou teve “sensação de desmaio”, como síncope, palpitação, astenia? A perda de consciência pode ser um indicador de gravidade e deve ser avaliada pelo cardiologista. 4. Você usa algum remédio regularmente, como para controle de diabete ou asma? 5. Já teve alguma doença ou lesão que o impedisse de praticar esportes, que o tivesse levado ao hospital ou requisitasse ci‑ rurgia? A síndrome do excesso de treinamento (overtraining/burnout)6 O termo overtraining, antes restrito ao universo dos atletas, vem ganhando espaço nos consultórios pediátricos e vem acompanhado de uma série de sintomas, muitas vezes desva‑ lorizados pelos pediatras: cansaço, excesso de lesões, dor ge‑ neralizada nas pernas, dificuldade para acordar, mudança no humor, perda de apetite, recusa em ir à aula e queda no de‑ sempenho em competições.1,6,10 O termo burnout implica gra‑ ves alterações físicas, psicológicas e hormonais gerando im‑ possibilidade de treinamento6 e necessidade de cuidados multiprofissionais e interdisciplinares. As lesões osteoarticulares devem ser corretamente diag‑ nosticadas e adequadamente tratadas para evitar possíveis danos à placa fisária na criança e prejuízos à estatura final. As causas associadas às lesões ortopédicas são: • coordenação motora menor que dos adultos; • tempo de reação mais lento aos estímulos; • baixo nível de desenvolvimento de habilidades motoras; • cartilagem de crescimento mais vulnerável do que o osso completamente formado.
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Indicações e Contraindicações de Atividades Físicas em Crianças e Adolescentes – Guia Prático •
As patologias mais frequentes associadas ao excesso de ativi‑ dades físicas são: 1. Doença de Osgood-Schlatter: • apofisite do tubérculo tibial, hoje já considerada como fratura de estresse; • causa mais comum de dor no joelho em crianças e ado‑ lescentes e também a queixa mais frequente em atletas jovens menores de 16 anos; • esportes associados: futebol (em meninos) e ginástica e dança (em meninas). 2. Doença de Séver: • apofisite do calcâneo posterior; • dor crônica no calcanhar, piorando ao correr/pular; • comum em ginastas; • idade: 9 a 14 anos (pico entre 10 e 12 anos). 3. Espondilólise/espondilolistese: • a espondilólise é a causa mais frequente de dor crônica nas costas nos atletas jovens (15 a 32%); • defeito no espaço interarticular, com sintomas predomi‑ nantes na junção lombossacral; • associada a ginástica, voleibol, danças e mergulho; • repouso por 6 semanas a 3 meses. Considerações sobre patologias agudas1 Infecções do trato respiratório superior Excetuando-se a faringoamigdalite estreptocócica, a grande maioria das infecções respiratórias é causada por vírus. Conse‑ quentemente, o maior risco de liberação do paciente se deve ao grau de contágio para os demais atletas. A miocardite é uma complicação rara de várias viroses, mas, mesmo assim, deve ser sempre lembrada em casos complicados. Mononucleose Patologia extremamente frequente na adolescência, cursando normalmente com esplenomegalia e, em virtude do risco de ruptura esplênica, os esportes devem ser proibidos por, no mí‑ nimo, 4 semanas. A liberação de um atleta para suas ativida‑ des físicas habituais deve ser precedida de uma ultrassonogra‑ fia abdominal (para visualizar tamanho do baço) e provas de função hepática (para checar regeneração do fígado). Problemas dermatológicos Infecções fúngicas: a tinea versicolor (causada pelo Malassezia furfur) é frequente, e o atleta deve ser afastado dos esportes por 2 semanas. As tineas cruris e pedis vêm crescendo e devem ser investigadas em todos os atletas, com suspensão das ativi‑ dades esportivas até a cura completa. A escabiose e a pediculose também são comuns e, quando diagnosticadas, deve ser feita uma investigação em todos os atletas contactantes. Outras infecções Pneumonias, tuberculose, infecções urinárias, hepatites, fe‑ bre reumática em atividade, icterícias e doenças hemorrágicas (púrpuras, hemofilia) são contraindicações absolutas à prática esportiva.
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Recomendações práticas 1. Estimular a participação das crianças em esportes, de acordo com suas habilidades, com ênfase no aprendizado dos funda‑ mentos de cada esporte. 2. Evitar a especialização precoce em um único esporte. 3. Reconhecer lesões de “overuse” e sinais de estresse físico ex‑ cessivo. 4. Monitorar seriadamente crescimento, composição corporal, peso e maturação sexual (estágio de Tanner). 5. Assegurar ingesta nutricional adequada, orientando sobre ca‑ lorias totais, dieta balanceada e ingesta correta de ferro, zinco e cálcio. 6. Orientar sobre os riscos de patologias pelo calor e boa hidrata‑ ção. 7. Questionar o jovem sobre a escolha do esporte e seus objeti‑ vos. 8. Assegurar supervisão adequada. 9. Indicar, no mínimo, de 1 a 2 dias para descanso e lazer em ou‑ tras atividades recreativas que não o esporte escolhido. 10. Não fornecer atestado médico sem examinar o paciente. Considerações sobre o atestado médico Deve-se considerar que: • a participação de crianças e adolescentes em atividades físi‑ cas vem aumentando progressivamente a cada ano e que a participação em esportes competitivos vem ocorrendo em idades cada vez mais precoces; • exercício físico é definido como uma atividade física progra‑ mada, sistematizada e repetitiva com objetivos de melhorar a aptidão física e promover saúde (escolas de iniciação esporti‑ va como natação, danças, educação física escolar); • esporte de lazer é um conjunto de exercícios que, em última análise, correspondem aos gestos esportivos, submetido às regras das diversas modalidades, sem visar a desempenho ou competição (futebol de várzea, basquete, handebol e voleibol escolares); • esporte de competição é uma categoria especial que inclui atletas amadores e profissionais, federados ou não, partici‑ pando de eventos organizados com finalidade essencialmen‑ te competitiva; • a intensidade das atividades descritas sofre a influência direta das condições climáticas locais; • a maior parte das crianças, em sua vida pré-escolar, desenvol‑ ve atividades físicas que representam esforços importantes, como correr, saltar, pular; • um exame físico adequado, precedido de uma anamnese com ênfase na pesquisa de cardiopatias familiares, é fundamental para se prevenir complicações cardiovasculares relacionadas com o exercício e o esporte, especialmente a morte súbita. Também é preciso estabelecer que:
1. Os médicos, quando solicitados, e após anamnese familiar e
exame físico do paciente, poderão fornecer atestado ou decla‑ ração informando sobre as condições clínicas das crianças e dos adolescentes para a prática de atividades recreativas ou de lazer, privilegiando pacientes que já tenham um acompa‑
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nhamento seriado, facilitando, assim, o reconhecimento de problemas médicos preexistentes ou latentes. • Para liberação de crianças, mesmo para atividades mera‑ mente lúdicas, é recomendável pelo menos uma avalia‑ ção clínica inicial precedida de anamnese minuciosa an‑ tes da emissão do atestado ou declaração de aptidão; • no caso de algum sinal ou sintoma sugestivo de cardio‑ patia ou suspeita de alguma cardiopatia recém-instalada ou não diagnosticada anteriormente, o candidato à práti‑ ca físico-desportiva deve ser encaminhado a um cardio‑ logista; a solicitação de exames cardiológicos comple‑ mentares (eletrocardiograma, ecocardiograma com Doppler colorido) ficará a critério desse especialista; • é recomendável que o médico emitente do atestado ou declaração especifique para qual atividade físico-despor‑ tiva o candidato está sendo liberado. 2. Os médicos são obrigados a atestar a verdade, conforme o Có‑ digo de Ética Médica, capítulo X, artigos 110,111 e 112, e, assim, os atestados ou declarações devem ser fornecidos por médicos que, efetivamente, acompanhem as crianças e adolescentes. 3. Os atletas amadores ou profissionais que pratiquem ativida‑ des esportivas competitivas devem ser encaminhados, a cri‑ tério do pediatra, a profissionais especializados em medicina do exercício e do esporte, para quantificação de riscos e ava‑ liação mais rigorosa, se for o caso. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Identificar as fases do desenvolvimento das crianças de 0 a 13 anos de idade. • Buscar, na história clínica, doenças que possam limitar a participação de crianças e adolescentes nos esportes. • Conhecer a idade ideal para indicar as diversas atividades físicas. • Diagnosticar síndrome do treinamento excessivo. • Encaminhar a profissionais especializados em medicina do exercício e do esporte os atletas amadores ou profissionais que pratiquem atividades esportivas competitivas para quantificação de riscos e avaliação mais rigorosa, se for o caso.
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CAPÍTULO 5
FISIOLOGIA DO EXERCÍCIO EM ATLETAS JOVENS – HABILIDADES ESPECÍFICAS E VALÊNCIAS ESPORTIVAS Ricardo do Rêgo Barros
Introdução O Brasil é um dos maiores fenômenos mundiais de massificação esportiva: calcula-se que 70% dos meninos entre 12 e 18 anos joguem futebol, matriculados ou não em escolinhas dos clubes esportivos.1 A atividade física é um importante auxiliar para o aprimoramento e o desenvolvimento dos adolescentes, nos seus aspectos morfofisiopsicológicos, podendo aperfeiçoar o potencial físico determinado pela herança e treinar os jovens para um melhor aproveitamento de suas habilidades específicas.2 Esporte de competição é uma categoria especial que inclui atletas amadores e profissionais, federados ou não, participando de eventos organizados com a finalidade de atingir resultados e índices, com ênfase na vitória e na premiação. Considera-se também que praticar atividades físicas na mesma modalidade por mais de 2 horas configura competição.2 Nos últimos anos, houve um aumento crescente de crianças participando de esportes em nível competitivo, com treinamentos sistemáticos iniciando-se precocemente aos 5 anos de idade, a chamada “catch them young philosophy” (filosofia de detectar talentos precocemente).3 Esse é um conceito difundido mundialmente no qual, para se atingir sucesso nos níveis superiores de competição adulta, é necessário iniciar os treinamentos intensivos o mais cedo possível. Além de horas de treinamento sistemático e repetitivo e rigorosos cuidados nutricionais, esses jovens atletas também tendem a se afastar do grupo da escola e da família em função de treinamento em outros estados/cidades. Fisiologia do exercício As principais valências consideradas para efeitos de desempenho e aptidão física são: potências anaeróbica e aeróbica, força muscular, agilidade, flexibilidade, composição corporal e resistência (endurance) (Figura 1 e Tabela 1). Para compreender a fisiologia do exercício, cabe esclarecer algumas definições utilizadas em medicina desportiva.
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Agilidade
Resistência cardiorrespiratória
Resistência muscular
Potência muscular Flexibilidade
Força muscular
Potência muscular Agilidade
Composição corporal
Resistência muscular
Figura 1 Aptidão física.
Tabela 1 Valências e aptidão física Equilíbrio/ estabilidade
Composição corporal
Força
Agilidade
Velocidade
Coordenação olho-mão e olho-pé
Aceleração
Resistência (endurance) aeróbica e anaeróbica
Explosão
Flexibilidade
1. Força: expressão da força muscular, ou a capacidade do indi-
víduo de desenvolver tensão contra uma resistência externa. A força estática ou isométrica é a força exercida contra uma resistência externa sem qualquer alteração no comprimento muscular (p.ex., força de preensão da mão). A força explosiva ou potência é a capacidade dos músculos de liberar o máximo de força no período mais curto. 2. Resistência muscular (ou endurance): é a capacidade de repetir ou manter contrações musculares ao longo do tempo.4
Os princípios que descrevem as respostas do organismo ao exercício e ao treinamento físico são os mesmos para criança,
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adolescentes e adultos. Por outro lado, existem particularida‑ des da fisiologia do esforço em crianças que decorrem tanto do aumento da massa corpórea (crescimento) quanto da ma‑ turação corpórea, que se acelera na puberdade (desenvolvi‑ mento).4-6 A atividade física é uma maneira de participar do grupo so‑ cial infantil, podendo ser realizada em atividades programa‑ das (escolinhas) ou não programadas (parques, campos de várzea). Potência anaeróbica As crianças possuem menor concentração de enzimas glicolí‑ ticas, limitando, assim, a capacidade de liberar energia pela via anaeróbica lática, mas não ocorre interferência na potência anaeróbica alática (o cansaço ou fadiga muscular e dores mus‑ culares são causadas pela liberação de lactatos, produção pe‑ quena em crianças mais novas).3,5 Isso explica a rápida recu‑ peração dessas crianças entre atividades físicas, mesmo com características extremamente diferentes. A potência anaeróbica não difere entre meninos e meninas pré-púberes, mas cresce proporcionalmente mais em meni‑ nos a partir dos 12 anos de idade. Esse aumento da potência anaeróbica ocorre tanto pela maior massa muscular quanto pelo efeito dos hormônios sexuais sobre as características bio‑ químicas do músculo esquelético. Outra característica que se desenvolve com a maturação se‑ xual é o potencial de tamponamento da acidose muscular que aumenta com a idade, permitindo a realização de exercícios láticos mais intensos. Atividades de curta duração e grande intensidade, como saltos e sprints, são anaeróbicas, ou seja, elas não dependem do oxigênio na liberação de energia para a contração muscular. Não existem métodos eficazes para se avaliar a capacidade anaeróbica, sendo a mensuração feita de maneira indireta com protocolos como cicloergômetro de curta duração, corri‑ das rápidas (sprints de 50 metros) ou saltos verticais (jump tests), existindo poucos estudos em crianças. Os testes utiliza‑ dos sugerem que as diferenças nos testes anaeróbicos entre crianças e adolescentes possam estar relacionadas a fatores neuromusculares, fatores hormonais e maior evolução da coordenação motora.4,7,8 Potência aeróbica Em relação à potência aeróbica, ocorre um aumento do consu‑ mo máximo de oxigênio (VO2max) com maior aceleração em meninos do que em meninas.5 O crescimento acarreta aumento da massa muscular com proporcionais aumentos do consumo máximo de oxigênio cor‑ poral (VO2max), do débito cardíaco e da capacidade de trabalho. Especificamente na adolescência, as meninas ganham adi‑ posidade, gerando uma diminuição da massa corporal magra, enquanto os meninos têm um aumento da massa corporal magra por diminuição do percentual de gordura. O VO2max é considerado padrão-ouro na avaliação de com‑ petência física, mas os efeitos do treinamento aeróbico em crianças e adolescentes ainda não podem ser estimados.
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Após o estirão de crescimento e o término da maturação se‑ xual, o VO2max médio das meninas chega apenas a cerca de 70% dos valores médios para meninos.5,6 Adultos participando em programas de exercícios regulares apresentam uma série de mudanças fisiológicas, como fre‑ quência cardíaca mais baixa (em repouso) e débito cardíaco maior. Isso resulta em maior habilidade do sangue de usar o oxigênio para o metabolismo aeróbico e, assim, o VO2max tem um aumento de até 25%. Nas crianças que realizam o mesmo programa, o VO2max experimenta um aumento de 5 a 10% tanto em meninos quan‑ to em meninas. Outras evidências de que crianças apresentam uma resposta diminuída ao treinamento aeróbico são forneci‑ das pela comparação de valores de VO2max em atletas de resis‑ tência, adultos e crianças. Meninos corredores de distância têm um VO2max de aproximadamente 65 mL/kg/min, com‑ parado a 52 mL/kg/min nos meninos não treinados. Os jovens adultos corredores de distância apresentam um VO2max de 75 mL/kg/min, enquanto os homens não atletas têm um VO2max de 45 mL/kg/min. Isso pode sugerir um "teto" para o VO2max antes da puberdade e que as influências hormonais da adolescência poderiam implementar o treinamento aeróbico. As razões para essa resposta diminuída do VO2max ao trei‑ namento não são claras. Alguns acreditam que a intensa ativi‑ dade física diária das crianças pode significar um efeito de trei‑ namento e, assim, os programas estruturados de treinamento não significariam aumento dos níveis de atividade.6 Outros2,3 argumentam que benefícios de treinamento a partir da ativi‑ dade física diária não se sustentam porque: 1) a atividade físi‑ ca espontânea das crianças é tipicamente realizada sob a for‑ ma de exercícios rápidos e curtos, sem periodicidade; e 2) crianças que são privadas das atividades diárias não experi‑ mentam uma grande diminuição do VO2max. Força muscular O treinamento de resistência é atualmente recomendado tan‑ to pela Sociedade Brasileira de Pediatria como pela Academia Americana de Pediatria, e, como regra geral, são indicados programas graduais nem sempre aceitos pelos jovens que bus‑ cam um rápido ganho de força muscular. Esse programa pode ser iniciado aos 8 anos de idade com pesos livres (e não máquinas fixas) de até 15 kg, por não mais que 30 minutos, 3 vezes/semana, com supervisão individual, associado a exercícios aeróbicos como corridas, esteira ergo‑ métrica ou bicicleta também por períodos de 30 minutos. O ganho de força muscular não é acompanhado pelo au‑ mento do tamanho do músculo (hipertrofia), implicando que as crianças não se beneficiarão do efeito “muscle bulk” com exercícios com pesos. Os mecanismos envolvidos no ganho de força muscular poderiam ser adaptações neurais e aumento da capacidade muscular de produzir força intrínseca.2,9 Termorregulação Crianças apresentam peculiaridades relacionadas à regulação térmica: a velocidade de troca de calor com o meio é maior nas crianças do que em adultos, pois possuem maior superfície
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Fisiologia do Exercício em Atletas Jovens – Habilidades Específicas e Valências Esportivas •
corpórea por unidade de massa corpórea. Desse modo, não só a perda de calor em ambientes frios, mas também o ganho de calor em climas quentes são mais rápidos, aumentando o risco de complicações.5 Como agravamento, as crianças tendem a sentir menos sede do que o adulto, acarretando desidratação voluntária, re‑ dução da volemia e prejuízo do desempenho. Quando as crianças referem sede, já existe uma desidratação subclínica com perda de 2 a 3% do peso corporal. As crianças devem ser hidratadas a cada 20 minutos de exercício na primeira hora e, a partir daí, com soluções hidre‑ letrolíticas com concentração de HC (6 a 8%) e osmolaridade adequadas (sport drinks). Estatura final/maturação biológica Os somatotipos – endomórfico, mesomórfico e ectomórfico – contribuem para o sucesso em diversos esportes, sugerindo que atletas podem ser selecionados para determinados espor‑ tes com base em sua compleição física. Como regra geral, não ocorrem alterações na altura final dos meninos e, muitas vezes, os maturadores precoces são re‑ quisitados para esportes de força. Menarca atrasada As atletas tendem a apresentar menarca mais tarde que as não atletas, em média 2,3 anos depois, e considera-se que cada ano de treinamento pré-menarca atrasa a menarca em 0,4 anos. Deve-se ressaltar que, embora a menarca possa estar atrasada, o aparecimento dos caracteres sexuais secundários ocorre normalmente.2 Sua etiologia é multifatorial, como diminuição da gordura corpórea, estresse físico, estresse emocional e fatores nutricio‑ nais, incluindo anorexia e bulimia (frequentes na dança e na ginástica olímpica). Essas atletas, que normalmente seriam maturadoras tar‑ dias, mantêm um biotipo pré-puberal por um período maior (pernas compridas, quadris finos, seios pequenos e menor quantidade de gordura corpórea), levando vantagem em rela‑ ção a seus pares em diversas modalidades de esportes.3 A investigação diagnóstica é necessária caso a menina, aos 14 anos, não apresente desenvolvimento dos caracteres se‑ xuais secundários (mamas, pelos púbicos e axilares) ou nos casos de ausência de menarca aos 16 anos. A maior preocupação médica nos casos de menarca atrasa‑ da ou amenorreia secundária é o efeito deletério na densidade óssea associado a esses estados hipoestrogênicos, não ocor‑ rendo efeitos definitivos sobre a fertilidade naquelas que pas‑ sarem a menstruar, com a adequação da dieta e redução da in‑ tensidade dos exercícios. A perda da densidade óssea associada a amenorreia ou oli‑ gomenorreia é irreversível, colocando essas atletas sob maior risco de fraturas de estresse e osteoporose prematura. Efeitos do treinamento nos sistemas Os exercícios físicos requerem respostas funcionais coordena‑ das dos sistemas corpóreos não só para produzir propulsão
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muscular, mas também para manter a homeostase hidreletro‑ lítica e térmica. Aparelho cardiovascular Os atletas jovens de resistência (endurance) apresentam débi‑ to cardíaco máximo elevado, embora menor que nos adultos. Sinais do “coração de atleta”, como sopros, bradicardia, modi‑ ficações eletrocardiográficas (hipertrofia ventricular, condu‑ ção retardada) e ecocardiográficas (aumento ou hipertrofia de VE) não ocorrem nos atletas jovens, fato comprovado nos jo‑ vens corredores de distância, cujos exames físicos, eletrocar‑ diograma (ECG) e ecocardiograma não diferem daqueles que não praticam esportes. Alguns estudos em nadadores jovens demonstram discretas alterações no tamanho do VE em com‑ paração com não nadadores. Os sinais do chamado “coração de atleta” provavelmente não ocorrem nos jovens em virtude da ausência de um programa constante de resistência. Aparelho pulmonar Os atletas de resistência geralmente têm uma ventilação máxi‑ ma minuto maior durante o exercício do que os não atletas, mas essas diferenças são menos significativas e mais variáveis do que diferenças na VO2max. Assim como o VO2max, a ventilação máxima (Ve2max) não se modifica de maneira típica em jovens atletas em seu perío‑ do de treinamento. Essa observação é consistente com relação negativa entre um nível pré-treinamento aeróbico e a resposta máxima de VO2max e Ve2max a um período de treinamento de resistência. Composição corpórea A prática de atividades físicas programadas (competitivas ou recreativas) promove redução significativa da gordura corpó‑ rea e aumento da massa magra, com ação importante no con‑ trole do excesso de peso em crianças e adolescentes.10 Considerações finais As pressões sociais por uma imagem corpórea e estética de acordo com padrões globalizados e rapidamente difundidos pelos diversos meios de comunicação podem levar a lesões físi‑ cas sérias, patologias clínicas e transtornos psicológicos. A resi‑ liência fisiológica das crianças e adolescentes é testada diaria‑ mente pelos novos desafios de atividades físicas como “crossfit”, lutas tipo MMA, triatlo e tantas outras modalidades de espor‑ tes adaptados aos jovens. Desse modo, o desafio dos pediatras é cada vez maior no sentido de orientar a prática de atividades físicas de forma saudável, segura e principalmente prazerosa.2 Crianças sadias são mais ativas que adolescentes e adultos, e sua atividade espontânea intermitente sugere um bom con‑ dicionamento físico. Normalmente, essas atividades são ca‑ racterizadas por turnos de esforços intensos alternando com períodos curtos de descanso ou atividade mais leve. Essa rápi‑ da recuperação permite às crianças manterem atividades físi‑ cas por horas.4 Os médicos devem também ajudar os pais e os professores de educação física a entenderem os limites fisiológicos de
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cada criança/adolescente, orientando sobre a aquisição de habilidades específicas no momento adequado de seu cresci‑ mento e desenvolvimento e, assim, propiciando a prática de atividades físicas com a utilização do potencial pleno de cada jovem atleta (recreativo ou competitivo). Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Definir esporte competitivo/recreativo e jovem atleta. • Descrever as alterações fisiológicas dos atletas jovens. • Discutir a possível influência do treinamento sobre altura, composição corpórea e maturação. • Avaliar como idade, crescimento e maturação podem influenciar na inclusão ou exclusão do jovem em determinado esporte. • Orientar a prática de atividades físicas de forma saudável, segura e principalmente prazerosa. • Entender que as atletas tendem a apresentar menarca mais tarde que as não atletas, em média 2,3 anos depois, e que o aparecimento dos caracteres sexuais secundários ocorre normalmente.
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SEÇÃO 30
Medicina paliativa COORDENADORA
Cristiane Rodrigues de Sousa
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COORDENADORA E AUTORES SEÇÃO 30 MEDICINA PALIATIVA
Coordenadora Cristiane Rodrigues de Sousa Especialista em Pediatria pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Título de Especialista em Pediatria com Áreas de Atuação em Neonatologia e em Medicina Paliativa pela Associação Médica Brasileira (AMB) e Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Autores Jefferson Pedro Piva Especialista em Pediatria com Áreas de Atuação em Medicina Intensiva Pediátrica e Medicina Paliativa. Mestre em Farmacologia pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Doutor em Pediatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Titular de Pediatria da UFRGS. Chefe do Serviço de Emergência e Medicina Intensiva Pediátrica do Hospital das Clínicas de Porto Alegre. Jussara de Lima e Souza Especialista em Pediatria com Área de Atuação em Neonatologia pela SBP e em Medicina Paliativa pela AMB. Mestre em Pediatria pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM‑Unicamp). Médica‑assistente do Setor de Neonatologia e Coordenadora do Grupo de Cuidados Paliativos em Neonatologia do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher da Unicamp. Membro da Câmara Técnica sobre a Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos do Conselho Federal de Medicina.
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Márcia Puato Vieira Pupim Especialista em Pediatria e Terapia Intensiva Pediátrica pela Unicamp e em Acupuntura pelo Hospital do Servidor Municipal de São Paulo. Pediatra Intensivista da UTI Pediátrica do Hospital Samaritano. Médica Colaboradora da Disciplina Dor e Cuidados Paliativos Pediátricos do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (ICr‑HC ‑FMUSP). Mariana Bohns Michalowski Especialista em Hematologia e Oncologia Pediátrica pela Université de Lyon I, França, e em Medicina Paliativa pela AMB. Doutora em Pediatria pela Université Joseph Fourier, França. Professora do Departamento de Pediatria da UFRGS. Neulânio Francisco de Oliveira Especialista em Pediatria e Neonatologia pela SBP/ AMB e em Medicina Paliativa Pediátrica pela AMB. Mestre em Saúde Pública pela UFC. Patricia Miranda do Lago Especialista em Pediatria pela SBP, Medicina Intensiva Pediátrica pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib)/SBP e Cuidados Paliativos pela SBP/AMB. Doutora em Pediatria pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da UFRGS. Secretária do Departamento de Cuidados Paliativos da SBP. Membro da Câmara Técnica de Cuidados Paliativos do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul.
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Rosana Cipolotti Pediatra. Especialista em Hemato‑oncologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP‑USP). Mestre em Pediatria (Hematologia) e Doutora (Oncologia) pela FMRP‑USP. Professora‑associada do Departamento de Medicina da Universidade Federal de Sergipe.
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Silvia Maria de Macedo Barbosa Especialista em Pediatria de Cuidados Paliativos. Doutora em Ciências pela FMUSP.
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CAPÍTULO 1
ASPECTOS ÉTICOS DOS CUIDADOS PALIATIVOS EM PEDIATRIA Patricia Miranda do Lago Jefferson Pedro Piva Neulânio Francisco de Oliveira
Introdução O avanço tecnológico e a qualificação médica observada nas últimas duas décadas modificaram a evolução de diversas doenças, principalmente as crônicas e oncológicas, permitin‑ do a sobrevivência de crianças que até pouco tempo eram con‑ sideradas fora de possibilidade terapêutica e morriam preco‑ cemente.1 A taxa de mortalidade infantil vem declinando acentuada‑ mente em todo o mundo, mesmo no Brasil. Em contrapartida, observa-se um aumento no número de crianças portadoras de sequelas graves, dependentes de tecnologia e com reduzida expectativa de vida. Muitas dessas crianças necessitam de re‑ petidas internações hospitalares, inclusive na fase final da doença, e acabam recebendo terapias desproporcionais e fú‑ teis, sem a preocupação com a qualidade de vida e a dignidade da morte.2 Estudos têm demonstrado que para muitas crianças em fase terminal de doença irreversível, quando internadas em unidades de terapia intensiva pediátrica (UTIP) e neonatal (UTIneo), é indicado um tratamento centralizado na cura, que, nesses casos, é inalcançável, desconsiderando a necessidade de cuidados paliativos. Essa dificuldade na condução de crian‑ ças em fase final de vida em nosso meio tem como principais justificativas os receios de ordem legal (ou de infração ética) e a falta de ensino (tanto na graduação como na residência mé‑ dica) para lidar com os aspectos que envolvem o final de vida, como: fundamentos bioéticos, habilidades de comunicação e estratégias assistenciais paliativistas. Consequentemente, pe‑ diatras, neonatologistas e intensivistas pediátricos ressen‑ tem-se da falta desse treinamento, mantendo sua atuação no extremo da medicina curativa mesmo naqueles casos em que essa prática mostra-se ineficaz.2,3 Qnado a cura não pode mais ser oferecida, o enfoque do tratamento das crianças passa a ser o cuidar, com ênfase nos cuidados paliativos. Segundo a Organização Mundial da Saú‑ de (OMS), em conceito definido em 1990 e atualizado em 2002,
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Cuidados paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais.4
Aspectos éticos dos cuidados paliativos Todo paciente com doença debilitante e fora de possibilidade de cura tem direito a um final de vida digno, sem sofrimento e, sempre que possível, cercado pela família e familiares, com respeito as suas necessidades espirituais. O término de uma terapia curativa não significa o final de um tratamento ativo, mas mudanças no foco de tratamento. A OMS enfatiza que o tratamento curativo e o tratamento paliativo não são mutuamente excludentes e propõe que “muitos aspectos dos cuidados paliativos devem ser aplicados mais cedo, no cur‑ so da doença, em conjunto com o tratamento ativo” e são au‑ mentados gradualmente como um componente dos cuidados do paciente do diagnóstico até a morte. A transição do cuidado curativo para o cuidado com intenção paliativa é um processo contínuo, e sua dinâmica difere para cada paciente.4 É importante salientar que a boa prática médica (e, conse‑ quentemente, os cuidados paliativos) devem basear-se em seis valores fundamentais: 1. Autonomia: respeito à vontade do paciente (ou seu representan‑ te), que deve ter o direito de escolher ou recusar o tratamento. 2. Beneficência: toda conduta médica deve visar ao melhor inte‑ resse do paciente. 3. Não maleficência: toda definição de conduta não deve nunca causar mal ao paciente. 4. Justiça: a distribuição de tratamento deve ser igualitária para todos os pacientes. 5. Dignidade: o paciente e sua família têm o direito à dignidade, principalmente no final de vida. 6. Honestidade: o paciente e sua família têm direito à informa‑ ção verdadeira.
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Utilizando como norteador esses seis fundamentos é que de‑ vem ser definidas as condutas terapêuticas nos pacientes por‑ tadores de doenças terminais. Sendo assim, não existe senti‑ do em manter-se terapêuticas agressivas, muitas vezes dolorosas e invasivas, que não irão alterar a evolução de doen‑ ças sabidamente incuráveis. A vontade do paciente deve ser respeitada, com atenção especial ao tratamento dos sintomas, principalmente a dor, que causa sofrimento para a criança e desespero para a família.5 Baseadas nos ensinamentos de Hipócrates, que prevale‑ cem entre os profissionais de saúde, as condutas médicas de‑ vem sempre procurar ajudar o paciente, reconhecendo sua li‑ berdade e sua capacidade de escolher o tratamento que considerar mais adequado. Do respeito à dignidade de cada in‑ divíduo se derivam outros princípios fundamentais nos cuida‑ dos paliativos, como o respeito e a defesa da vida e o princípio terapêutico de oferecer conforto e alívio dos sintomas, quando a cura não é mais possível.4 A situação vivida por cada paciente é única, por isso os cui‑ dados paliativos devem ser individualizados, adaptando-se a cada uma de suas necessidades, motivações e situações viven‑ ciadas. O paciente e seus familiares precisam identificar e pro‑ mover os seus próprios desejos e preferências, a fim de dimi‑ nuir o seu sentimento de deterioração, perda da função e habilidades intelectuais. Isso pode aumentar o sofrimento do paciente e de sua família. Nesses pacientes é fundamental a elaboração de um plano construído junto com a equipe assis‑ tencial e com a participação do paciente e/ou sua família, para controle de sintomas e promoção do conforto.1,5 O amparo ético para a limitação de esforços terapêuticos em crianças em fase terminal de doença irreversível no Brasil Alguns médicos, no limitar da terapêutica curativa em pacien‑ tes em fase final de doença irreversível e progressiva, receiam estar infringindo o atual Código de Ética Médica em seus arti‑ gos 1º (é vedado ao médico causar dano ao paciente por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência) e 32 (é vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente). Evidentemente que “em favor do paciente” se refere “às intervenções benéfi‑ cas para aquele paciente naquele estágio da doença e não um ato compulsório de oferecer tudo que está disponível”.6 O atual Código de Ética Médica brasileiro (2010) destacou em vários artigos e incisos a necessidade e o dever ético do médico de evitar esforços fúteis e prover cuidados paliativos para pacientes vítimas de doença incurável e terminal, como indicado no capítulo 1, inciso XXII (nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados); no artigo 36, parágrafo 2º (que veda ao médico abandonar pacientes sob seus cuidados – salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou aos seus familiares, o médico não abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica
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ou incurável e continuará a assisti-lo ainda que para cuidados paliativos); assim como no artigo 41, que enfatiza que é veda‑ do ao médico “abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal”. No entanto, ressalta no parágrafo único que “nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponí‑ veis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inú‑ teis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vonta‑ de expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”. Conclui-se, portanto, que ao atender pa‑ cientes em fase final de doença grave e irreversível, é, por um lado, um dever do médico evitar a obstinação terapêutica, as‑ sim como prover a oferta de cuidados paliativos. Por outro lado, o descumprimento dessas diretrizes nessa situação é que representa falta ética.5,6 Deve-se ressaltar ainda que tanto no artigo 41 citado ante‑ riormente, como em vários outros (artigos 24 e 34; inciso XXI) do atual Código de Ética Médica é enfatizado que essa é uma decisão compartilhada com o paciente e a família (como no caso de crianças e pacientes incompetentes); sendo expressa‑ mente vedadas as decisões unilaterais e centradas exclusiva‑ mente na opinião da equipe médica. Tais decisões devem ser devidamente registradas de forma clara no prontuário médico do paciente. 5,6 Um olhar ético sobre as intervenções no final de vida No planejamento e na instituição de cuidados paliativos pe‑ diátricos, algumas etapas fundamentais devem ser adequada‑ mente atendidas para que se garanta um final de vida digno e com o mínimo de sofrimento possível. O entendimento da doença, o tratamento disponível e as possíveis limitações O paciente e seus familiares têm o direito de compreender o diagnóstico, o prognóstico e a provável evolução de sua doen‑ ça. Os diversos índices prognósticos existentes mostram-se sensíveis e específicos para serem aplicados em grupos de pa‑ cientes, mas com baixa acurácia quando aplicados em apenas um indivíduo. O grau de reversibilidade de uma doença é ba‑ seado em dados objetivos (p.ex., resultado de exames ou bióp‑ sias) e em aspectos subjetivos (p.ex., resposta ao tratamento). Obviamente, quanto maior o número de dados objetivos, me‑ lhor será prognosticada a evolução do paciente. Desse conjun‑ to de dados, estabelece-se um consenso dentro da equipe mé‑ dica sobre a potencial irreversibilidade da doença daquele determinado doente.1,2 O consenso sobre a irreversibilidade é, muitas vezes, um processo lento de ser alcançado dentro da própria equipe mé‑ dica. Informações antagônicas e perspectivas conflitantes por parte de membros da equipe assistencial em relação às possi‑ bilidades de cura podem ser um fator desagregador e causador de muita ansiedade, que influenciará todo o longo caminho que virá posteriormente. Portanto, antes de obter-se o con‑ senso na equipe médica, é preciso garantir que esse ambiente de incerteza seja estendido à família. 1,2,5
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ASPECTOS ÉTICOS DOS CUIDADOS PALIATIVOS EM PEDIATRIA •
À medida que o consenso se estabelece dentro da equipe médica, a família é progressivamente envolvida no processo decisório, por meio de discussão franca, objetiva e serena. In‑ dependentemente do grau de instrução, os familiares desejam ser ouvidos, entender as decisões relacionadas ao final de vida de seu filho e participar delas.7,8 É importante entender que a família também necessita de tempo e provas concretas para convencer-se de que o quadro é irreversível, não responsivo ao tratamento ou em fase terminal de doença. Para conduzir esse processo, a equipe médica deve manter um ambiente de con‑ fiança, respeito e solidariedade. Nessa fase da doença, a co‑ municação efetiva e qualificada entre a equipe médica e a fa‑ mília é fundamental para a aceitação da terminalidade.9 É aceitável e previsível que ocorram avanços e retrocessos no entendimento por parte da família quanto à irreversibilida‑ de da doença. A evolução é lenta, sendo necessário demons‑ trar inúmeras vezes por meio de exames ou provas clínicas que o estágio de doença é realmente trágico. Enquanto não houver esse entendimento, não há como evoluir na discussão para o estágio de definição de prioridades de tratamento (cura‑ tivas e paliativas). Definição dos objetivos e intervenções médicas Obviamente, a família encontra-se desolada diante da irrever‑ sibilidade da doença e da morte eminente de seu filho. É evi‑ dente que todos necessitarão de muito apoio e ajuda na dis‑ cussão da terapêutica a ser ofertado diante dessa nova realidade. Um erro frequente é a definição do plano assisten‑ cial a ser adotado de forma unilateral pela equipe médica, sem o envolvimento da família no processo decisório.10 Por outro lado, deve-se evitar cair no outro extremo quando da aplicação do princípio de respeito à autonomia. Em nosso meio, a imensa maioria das famílias deseja muito ser ouvida (“ter direito a voz”), mas de forma alguma pretende ter contro‑ le da situação e ser a responsável pela definição final em rela‑ ção a cada medida terapêutica.8,9 A habilidade da equipe mé‑ dica em conduzir essa discussão pode representar a diferença entre a tranquilidade da família (por entender que o melhor a seu alcance foi ofertado nos últimos momentos de vida de seu filho) ou a culpa permanente (por sentir-se responsável pelo sofrimento e pela morte de seu ente querido). Após o entendi‑ mento do paciente e de sua família sobre a irreversibilidade da situação, é que se deve iniciar o planejamento dos cuidados paliativos de final de vida.7-9 Prover as necessidades individualizadas e antecipar eventos Levando em consideração o estágio da doença ajustada às ex‑ pectativas e dos valores da família/criança, os cuidados pa‑ liativos são instituídos visando a atender às seguintes priori‑ dades: 1. Identificar e excluir intervenções fúteis. Trata-se de interven‑ ções que não modificam a evolução da doença e tampouco melhoram a qualidade de vida do paciente. 2. Prioridades terapêuticas. Definir as intervenções terapêuticas (curativas e paliativas) realmente apropriadas a cada caso.
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Não existe nenhuma definição prévia de qual medida é eficaz ou fútil. Essa definição é feita de forma individualizada em cada caso, considerando todos os fatores relacionados à doen‑ ça (estágio e o benefício daquela intervenção em termos de cura, retardo da evolução ou impacto na qualidade de vida) aliada às expectativas da família/criança. À medida que o cuidar passa a ser a prioridade, torna-se evi‑ dente que a analgesia e a sedação ganham atenção especial. 3. Decisões antecipadas de final de vida e possíveis intercorrências. Médicos com alguma experiência no atendimento de crianças gravemente doentes conseguem antever complicações ou manifestações da própria evolução do quadro. É dever discu‑ tir previamente com a família a conduta a ser adotada nessas eventualidades, registrar esse plano terapêutico no prontuá‑ rio, assim como combinar com o médico de plantão o seu ma‑ nejo em situações como piora do quadro respiratório e/ou ap‑ neia.1,2,10 Por tratar-se de uma recomendação que consta no Código de Ética Médica, as diretivas de final de vida (ordem de não reanimar, não instituição de determinado tratamento) de‑ vem estar adequadamente registradas no prontuário.5 Da mesma forma, devem ser registradas no prontuário as me‑ didas a serem adotadas em substituição a esses procedi‑ mentos, como ventilação não invasiva ou aumento da se‑ dação. 4. Mudanças no ambiente. É evidente que o momento é de mui‑ to estresse para a criança, a família e toda a equipe envolvida no atendimento. Manter essa família em um local com maior privacidade, com possibilidade de iluminação e ventilação natural, longe dos ruídos da UTIP e de seus equipamentos é uma prioridade. Viabilizar a entrada de objetos valorizados pela criança, assim como estimular as visitas e a interação com os familiares mantendo-a fora da cama são medidas al‑ tamente valorizadas pelo binômio família/criança. 5. Envolvimento da multidisciplinar. Os cuidados paliativos ba‑ seiam-se na presença ativa de uma equipe multidisciplinar, que será maior ou menor de acordo com cada local e situação. Entretanto, além do(s) médico(s) e enfermeiro(s) que pres‑ tam atendimento à criança, é necessária a participação ativa de assistente social, serviço de apoio psicológico e/ou psi‑ quiátrico, suporte espiritual (grupos de ajuda, padre, capelão, rabino), terapeuta ocupacional, educador (musicoterapia, re‑ creacionista), entre outros.4 6. Com o passar do tempo, a equipe multidisciplinar torna-se parte da família, portanto suas visitas de solidariedade e apoio à família/criança assumem enorme importância e são aguardadas com ansiedade. 7. A criança enfrentando a doença em sua fase terminal. A criança, mesmo quando não participa do processo de definições de final de vida, identifica a mudança de comportamento da família e da equipe médica, tornando-se mais carente. O ambiente deve ser o mais favorável e positivo possível. Os pais, os familiares e toda a equipe devem ser fontes de con‑ fiança, suporte espiritual e muita solidariedade. 8. A Academia Americana de Pediatria recomenda, sempre que possível, a inclusão dos pacientes na discussão.4 Contudo,
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quando e como discutir com uma criança a terminalidade de sua doença? Profissionais da área de saúde, pais e/ou respon‑ sáveis devem ter sensibilidade suficiente para não causar dano ou maior estresse psicológico ao discutir esses aspectos com crianças portadoras de doenças limitantes de vida. É pre‑ ciso sempre levar em conta a idade e o nível de desenvolvi‑ mento cognitivo da criança e/ou adolescente. Evidentemen‑ te, cada novo tratamento a ser instituído deve ser explicado e “desmitificado”. 9. Apoio à família após a morte de seu filho. Os cuidados paliati‑ vos são mantidos após o óbito da criança para oferecer apoio a essas famílias, nesse momento em que seu mundo ruiu. Uma atitude de compaixão e suporte deve ser ofereci‑ da, por meio do estímulo ao retorno destes familiares ao hospital para conversas com a equipe médica e de apoio psicológico.7-9
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer a definição de cuidados paliativos e saber como eles devem ser aplicados na criança portadora de doença debilitante. • Reconhecer os princípios bioéticos relacionados ao atendimento de pacientes portadores de doenças graves e irreversíveis. • Identificar as principais intervenções no final de vida de pacientes em cuidados paliativos e saber como elas se relacionam com o Código de Ética Médica brasileiro. • Reconhecer as principais necessidades de crianças portadoras de doenças incuráveis e seu familiares nos momentos finais da vida.
Considerações finais Apesar de todo o avanço na medicina atual, é preciso manter o compromisso estabelecido por ocasião da diplomação (“apli‑ carei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém”, Hi‑ pócrates 460 a.C.). É evidente que, na ocasião, não eram con‑ siderados apenas os pacientes curáveis. O juramento destina‑ va-se inclusive àqueles com doença irreversível e sem chances de recuperação. O código de ética salienta no artigo 1 que “é ve‑ dado ao médico causar dano ao paciente por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência”. Com base neste ensinamento devem ser norteadas nossas condutas naqueles pacientes sem possibilidade de cura. A sociedade espera que pediatras, usando de seu conheci‑ mento, liderança e respeitabilidade incorporem estratégias de cuidados paliativos para atender pacientes em final de vida, aliviando seu sofrimento, respeitando sua dignidade e aten‑ dendo suas necessidades dentro dos melhores parâmetros científicos e éticos.
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CAPÍTULO 2
CUIDADOS PALIATIVOS EM NEONATOLOGIA Jussara de Lima e Souza Neulânio Francisco de Oliveira
Introdução Existem condições que podem levar um recém-nascido (RN) a ter sua vida abreviada. Essas condições podem ser diagnosti‑ cadas ainda no período intrauterino ou advirem de um trauma ou fenômeno que ocorra durante ou logo após o parto. Dados americanos apontam que cerca de 15.000 RN estão nesta si‑ tuação a cada ano. Em sua maioria, esses pacientes são leva‑ dos para a unidade de terapia intensiva neonatal (UTIN), na qual a equipe muitas vezes tem dificuldades para determinar o limite para o investimento com condutas terapêuticas e início de cuidados paliativos.1 Estudo publicado na Austrália mostrou que, em 20 anos, a limitação de suporte de vida (LSV) em neonatos, que oscilava entre 14 e 30%, aumentou para 75% em uma unidade neonatal de referência para pacientes sindrômicos, cirúrgicos e com en‑ cefalopatia hipóxico-isquêmica, embora a taxa de mortalidade da UTIN tenha caído. O prognóstico parece ser o ponto mais considerado para definir a limitação do tratamento curativo.2 O que parece ser fundamental para se levar em considera‑ ção é como acontece a assistência de final de vida no período neonatal quando se trata de bebês que evoluem de maneira desfavorável, com prognóstico reservado. Em outras palavras, como eles morrem.3 Este capítulo não pretende esgotar o tema, mas trazer à tona uma questão que há muito já é tratada em países como Estados Unidos, Austrália e de toda a Europa, mas ainda timi‑ damente discutida no Brasil. Definição de cuidado paliativo neonatal Os cuidados paliativos em neonatologia são uma forma exten‑ siva e holística de oferecer cuidados a um RN cuja doença não pode ser curada, ou seja, tem caráter progressivamente desfa‑ vorável, bem como a seus familiares. Estes cuidados vão mu‑ dando ao longo da progressão da doença. Inicialmente, estão atrelados ao tratamento curativo até que, de acordo com a mu‑ dança da expectativa em relação à cura, tornam-se tratamen‑ tos totalmente paliativos. Essa forma de cuidado é orientada
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para o alívio do sofrimento do RN e para a melhoria de suas condições de vida e do seu processo de morte. É uma aborda‑ gem para aliviar o sofrimento físico, psicológico, emocional e espiritual do neonato e de sua família.1 O cuidado paliativo em neonatos pode ser definido e con‑ duzido de acordo com protocolos já validados. O modelo mais usado nos protolocos de unidades neonatais e em artigos cien‑ tíficos é o proposto por Catlin e Carter. No entanto, outros mo‑ delos têm sido desenvolvidos e aplicados em estudos para agregar uma nova abordagem de cuidados que incluem, além do cuidado hospitalar, o cuidado domiciliar. Estudos mostram que, quando existe a possibilidade de se utilizar um protocolo validado, a equipe de assistência fica mais tranquila em cuidar desses pacientes.4 Com o progresso das tecnologias obstétricas, muitos diag‑ nósticos de patologias ameaçadoras da vida do neonato são feitos ainda durante a gestação. Assim, o conceito de cuidado paliativo passa a ser mais amplo, englobando o período peri‑ natal. Com base no diagnóstico, podem ser iniciados o trata‑ mento da criança e o acolhimento e a orientação à família. Tratamento paliativo perinatal Em cuidados paliativos, o controle da dor tem papel fundamen‑ tal. A proporção de pacientes neonatos recebendo analgesia e sedação ao longo do tempo aumentou, o que parece se dever a uma mudança de atitude em relação ao manejo da dor do RN.2 No entanto, não apenas o controle da dor é importante nes‑ ses cuidados.5 Como já abordado antes, há um conjunto de fa‑ tores a ser considerados, dentre eles: • antecipação à ocorrência de sintomas, cuidados com a pele, cuidados com a boca, alívio da dispneia, redução da luz e do barulho; • oferecimento de um ambiente propício para um cuidado dig‑ no, de preferência assemelhando-se ao familiar com permis‑ são para visitas 24 horas ininterruptas; • respeito às questões éticas e religiosas de cada paciente e sua família;
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• garantia para a família de acesso à informação acerca da doen‑ ça e do processo de cuidados do paciente.1 E, para que esse trabalho seja desenvolvido a contento, tam‑ bém se torna importante: • ter um modelo para intervenção diante de possíveis conflitos; • considerar de que forma o conselho de bioética poderá ajudar a equipe ou a família do paciente; • contar com uma equipe de profissionais treinada em como oferecer cuidados paliativos.1 Limitação de tratamento O cuidado paliativo adequado também pressupõe que a equi‑ pe esteja atenta à limitação de tratamentos fúteis. Para isso, é necessário que haja parâmetros a serem avaliados neste pro‑ cesso de tomada de decisão.6 Estudos realizados em alguns países da Europa mostraram que o cuidado intensivo foi ativamente retirado em 55% dos prematuros que morreram no Reino Unido; 45% na França, 51,8% na Espanha e 55% na Holanda.6,7 Tomada de decisão O Comitê do Feto e Recém-nascido da Academia Americana de Pediatria recomenda que o tratamento de suporte de vida seja considerado inapropriado quando a condição da criança é incompatível com a vida ou quando o tratamento possa ser prejudicial ou fútil.8 Algumas atitudes podem ser tomadas para melhorar a to‑ mada de decisão: maior educação de profissionais e familiares sobre o processo do cuidado paliativo (CP), melhoria no su‑ porte aos profissionais, melhora da comunicação na UTIN, adoção de um protocolo de CP e envolvimento do comitê de ética. É fundamental que todas as etapas do processo sejam ano‑ tadas no prontuário.
tipla de órgãos ou quando apresentavam lesões cerebrais gra‑ ves (principalmente hemorragia parenquimatosa), com prog‑ nóstico sombrio do desenvolvimento neurológico e futuras capacidades relacionais.9 Na Espanha, os critérios predominantes foram: mal prog‑ nóstico do ponto de vista de sobrevivência e qualidade de vida (atual e futura), malformações congênitas, patologias neuro‑ lógicas secundárias a asfixia perinatal e hemorragia intracra‑ niana e/ou leucomalácia periventricular.7 Análise feita nos EUA constatou que profissionais da área da saúde são mais propensos a aceitar a limitação de trata‑ mento diante de alguns diagnósticos como trissomias, anen‑ cefalia, prematuridade extrema (23 a 24 semanas), hipoplasia de ventrículo cardíaco, hipoplasia pulmonar, hemorragia de sistema nervoso central grau IV, desordens genéticas e falên‑ cia múltipla de órgãos.10 O Comitê Nacional de Ética Italiano considera que o RN tem direito a cuidados quando ele tem a possibilidade de vida autônoma definida como “a possibilidade de sobreviver fora do corpo de sua mãe”. Qualidade de vida O tema qualidade de vida (QV) está presente nas discussões de limitação de tratamento desempenhando papel na decisão de tratar. O Conselho de Bioética de Nuffield (Londres) sugeriu ques‑ tionamentos que podem ser feitos para o julgamento da QV por meio de análise das capacidades da criança em sobreviver fora do hospital; estabelecer relações com outros e ter prazer.
Malformação Os pacientes malformados podem ser divididos em grupos com diferentes expectativas de deficiências físicas e mentais, características estas que podem influenciar as decisões de li‑ mitação:10 • patologias com potencial de recuperação total; Papel dos pais no processo • anomalias que permitem uma vida quase normal; A relação dos profissionais de saúde e pacientes deve estar • malformações que exigem supervisão permanente e/ou cui‑ pautada no respeito ao princípio bioético da autonomia. dados médicos; Quando o paciente é um recém-nato, a autonomia está total‑ • defeitos físicos e desenvolvimento mental subnormal; mente delegada aos responsáveis. • defeitos físicos e retardo no desenvolvimento mental graves; Para que estes familiares possam exercer este papel de forma • anomalias incompatíveis com a vida. adequada, é necessário que as informações sejam dadas de for‑ Prematuridade extrema ma clara e em um ambiente que respeite as diferentes opiniões. Pais e profissionais precisam estar conscientes de que suas Segundo a Associação Mundial de Medicina Perinatal, trata‑ decisões devem basear-se no melhor interesse da criança, pois mentos de suporte de vida não devem ser iniciados ou conti‑ alguns estudos demonstram que este objetivo nem sempre é o nuados se o médico não puder esperar a prevenção da morte centro da atenção. As decisões dos pais podem variar de acor‑ iminente ou minimização de morbidade e maximização do es‑ do com suas experiências gestacionais anteriores, bem como tado funcional dos pacientes nascidos no limite da viabilidade. características étnicas e culturais.6 A Associação Britânica de Medicina Perinatal propõe a conduta de crianças nascidas com menos de 26 semanas da Pacientes elegíveis seguinte forma:6 No Brasil, poucos grupos trabalham na definição de elegibili‑ • < 23 semanas – normalmente não reanimar; dade para limitação de tratamento no período neonatal.5 • 23 a 24 semanas – avaliar o desejo dos pais; Na Suíça, os neonatos foram considerados em processo de • 24 a 25 semanas – reanimar e reavaliar; morte irreversível, principalmente nos casos de falência múl‑ • > 25 semanas – reanimar e encaminhar para cuidado intensivo.
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Cuidados com os familiares Os profissionais de saúde devem promover o cuidado aos fa‑ miliares durante todo o período da doença e também durante o período de luto. O nascimento de uma criança malformada e/ou prematura já torna necessária para os pais a elaboração de um luto pela perda do “bebê sonhado”, que pode diferir muito do “bebê real”. Apesar do conceito da sociedade de que a perda do filho no período perinatal possa ser relativamente tranquila para a fa‑ mília, pelo curto período de convivência, este luto pode ser particularmente intenso, complicado e longo. A equipe também pode agravar este processo, pois a ênfase que dá a possibilidade de morte da criança pode ser tão inten‑ sa que dificulta o vínculo entre os pais e seu filho, promovendo um luto antecipatório e um distanciamento entre familiares e criança, que não beneficiará a nenhum deles. O trabalho da equipe deve ter o intuito de promover o maior período de con‑ vivência possível, por meio da política de visitas abertas, com atenção especial aos irmãos durante este processo. Em casos de mortes esperadas, deve ser dada a oportunida‑ de dos pais estarem presentes durante este processo, com o apoio da equipe cuidadora, além da possibilidade de interven‑ ção de profissionais religiosos, se for o desejo da família. Nesses momentos, outra situação que pode ser complica‑ dora é a necessidade de elucidação diagnóstica por meio de exames necroscópicos que, para algumas famílias, pode ser visto como mais uma agressão a seus filhos. Levantamentos da opinião dos pais têm enfatizado a im‑ portância de um encontro para discutir a morte com o neona‑ tologista. Isso, usualmente, ocorre algumas semanas ou me‑ ses mais tarde.5 No caso de realização de necropsias, os resultados podem ser informados neste momento. Nessas reuniões, os pais podem querer abordar as implicações para futuras gestações.
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Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Definir o cuidado paliativo neonatal. • Reconhecer condições que possam levar a equipe à discussão sobre a instituição do cuidado paliativo ou mesmo à limitação de suporte vital. • Estabelecer uma sequência de passos para a tomada de decisão sobre o plano de cuidado. • Melhorar a comunicação e a abordagem dos familiares do bebê em cuidado paliativo.
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CAPÍTULO 3
DOR NA FAIXA ETÁRIA PEDIÁTRICA Sílvia Maria de Macedo Barbosa Márcia Puato Vieira Pupim Mariana Bohns Michalowski
Introdução O diagnóstico e o tratamento da dor devem ser considerados parte essencial do cuidado na faixa etária pediátrica. Infeliz‑ mente, ainda hoje, convive-se com o espectro do não reconhe‑ cimento da dor à descrença e, consequente, subtratamento desses pacientes.1 Nos últimos anos, houve um crescimento exponencial do conhecimento científico com um aumento importante de pu‑ blicações com abordagem da dor: aguda, crônica e dos pacien‑ tes em cuidados paliativos. Como objeto de pesquisa, a dor em pediatria tem sido pau‑ latinamente incrementada, e os resultados dessas descober‑ tas têm sido incorporados cada vez mais à pratica clínica. Esse fato traz à terapêutica da dor como um componente essencial da prática atual na pediatria, em diversas situações como emergência, procedimentos, nas enfermarias, na terapia in‑ tensiva e dentro dos centros cirúrgicos. O conhecimento sobre a terapêutica da dor mostra-se útil em todas as especialidades pediátricas, sendo importante o treinamento dos profissionais no tema, na avaliação e no ade‑ quado uso das diversas modalidades terapêuticas antiálgicas. Mas, afinal, como se define dor? A dor é definida pela Associação Internacional para o Estudo da Dor como “uma sensação e uma experiência emocional de‑ sagradável relacionada à lesão real ou potencial, ou descritas em termos de tal lesão”.2 A definição da dor pela IASP implica a subjetividade da dor e o seu aprendizado por meio das expe‑ riências relacionadas a traumas e lesões, desde a faixa etária neonatal. É um fenômeno multidimensional com componen‑ tes sensoriais, fisiológicos, cognitivos, afetivos, comporta‑ mentais e espirituais. Esta definição enfatiza tanto o aspecto físico como o emo‑ cional da natureza da dor. Em se tratando da faixa etária pe‑ diátrica, “a inabilidade em se comunicar verbalmente não nega a possibilidade que um indivíduo esteja experienciando a dor e é necessário o tratamento adequado para o seu alívio".3
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A interação entre a resposta fisiológica à dor e as diversas dimensões da dor como as respostas cognitivas, afetivas e comportamentais alteram a forma como a dor é vivenciada, pela modificação da transmissão dos estímulos desagradáveis (nociceptivos) para o cérebro4 (Figura 1). A dor, ainda, é subvalorizada em pediatria. Estudos mos‑ tram que, quando comparada à população adulta, a criança é medicada em menor proporção, deixando de receber analgesia ou recebendo em menor quantidade que os adultos nas mes‑ mas condições. Quando dão entrada em um serviço médico para atendimento, em emergência, terapia intensiva, enferma‑ ria clínica ou cirúrgica, unidade de oncologia entre outras, as crianças acabam por experimentar a dor, o medo e a ansiedade. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adoles‑ cente, em sua Resolução n. 41/95 sobre os Direitos da Criança e do Adolescente Hospitalizados no artigo 7, versa sobre “di‑ reito de não sentir dor, quando existam meios para evitá-la”.5 O tratamento da dor é, portanto, um direito humano e como tal deve ser respeitado. A dor, quando não tratada, até mesmo em fase precoce da vida, pode desencadear uma reor‑ ganização estrutural permanente e funcional das vias nervo‑ sas nociceptivas, que podem afetar as futuras experiências de dor do indivíduo.6 O sistema responsável pela dor é um mecanismo sensorial complexo. A atividade neuronal de ativação da dor e as conse‑ quentes respostas podem ser modificadas pelos mecanismos de supressão. O sistema sensorial é notavelmente plástico e complexo, e a atividade cortical tem um papel importante na percepção da dor.6 Alguns fatores influenciam a resposta da criança aos estí‑ mulos nociceptivos: grau da lesão ou doença, fatores emocio‑ nais, comportamentais e situacionais, significado da dor para a criança, a explicação sobre seu processo, contexto da expe‑ riência dolorosa, precocidade desta experiência, fadiga, gravi‑ dade da doença, nível de ansiedade, fatores socioculturais, personalidade, nível cognitivo, aprendizados prévios, expe‑ riências prévias e memória da dor existente.1
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Estímulo nociceptivo
Transmissão da dor
Percepção sensorial da dor
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Experiência global da dor
Dimensões da dor
Cognitvo
Afetivo
Comportamental
Crenças, atitudes espirituais e culturais
Emoções
Mudanças de comportamento
Figura 1 Múltiplas dimensões da dor, que modificam a transmissão do estímulo doloroso para o cérebro.4
• • • •
A dor pode ser descrita em diversos aspectos conforme:6 mecanismos fisiopatológicos (nociceptiva, neuropática ou mista); duração (aguda ou crônica, dor incidental); etiologia (oncológica ou não oncológica); localização anatômica.
Neste capítulo, são descritos em mais detalhes os dois primei‑ ros aspectos. Mecanismos fisiopatológicos da dor A dor nociceptiva é decorrente de uma lesão tecidual que ativa os receptores específicos conhecidos como nociceptores que são sensíveis aos estímulos nociceptivos. Respondem a calor frio, vibração, estiramento e substâncias químicas liberadas dos tecidos. Elas podem ser subdivididas em somática e visce‑ ral, dependendo da localização dos nociceptores ativados.6 A dor neuropática é causada pelos danos estruturais e dis‑ função das células nervosas do sistema nervoso central ou periférico. Qualquer processo que cause dano aos nervos como condições metabólicas, traumáticas, infecções, isque‑ mia, tóxico ou imunomediado podem resultar em dor neuro‑ pática. Ela pode ser periférica, que ocorre como consequência da lesão ou doença que afeta os nervos periféricos, ou central, que ocorre em razão do acometimento do sistema nervoso central.6 Há poucos estudos sobre dor de caráter neuropático em pe‑ diatria. As causas de dores neuropáticas de caráter periférico em pediatria podem ser relacionadas a lesões do nervo, com‑ pressão nervosa, compressão externa por lesão que ocupa es‑
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paço como um tumor ou abscesso; danos provocados pela in‑ fecção pelo vírus HIV ou HTLV1, por efeitos tóxicos de medicamentos, neurofibromas ou neuromas pós-trauma ou cirurgia, membro fantasma, infiltração tumoral, entre outros. Por sua vez, as causas de dor neuropática central incluem, por exemplo, as lesões na medula espinhal. Outras dores de cará‑ ter neuropático podem acometer as crianças como as decor‑ rentes de neuropatias congênitas degenerativas, neuropatias periféricas e neuropatias inflamatórias (p.ex., síndrome de Guillain-Barré). Muitas das condições neuropáticas normal‑ mente observadas em adultos, como neuropatia diabética, neuralgia pós-herpética e neuralgia trigeminal, são raras em crianças.6 A dor é considerada mista quando coexistem a dor nocicep‑ tiva (somática e/ou visceral) e a dor neuropática ao mesmo tempo ou separadamente em momentos diferentes. Os diferen‑ tes mecanismos fisiopatológicos ocorrem juntos, produzindo a dor mista. Incluem-se aí os processos que danificam tecidos e nervos, como traumas, queimaduras e processos oncológicos. Duração da dor Outra forma de classificação da dor utiliza sua duração como critério. A dor aguda é aquela com duração inferior a 30 dias, e a dor crônica é a que dura mais que 3 meses. Os sintomas e as diversas causas da dor e os fatores fisiopatológicos podem se sobrepor independentemente da duração do fenômeno dolo‑ roso, sendo necessária muita atenção no momento da classifi‑ cação agudo/crônico.6 A dor aguda tem o início súbito e se segue imediatamente à lesão, com grande intensidade. A duração normalmente é li‑
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mitada, havendo um começo e um fim para a dor. Tem sua ori‑ gem nos nociceptores teciduais, que são estimulados com as diversas lesões.6 A dor crônica, por sua vez, é contínua ou recorrente e per‑ siste além do tempo esperado normal de cicatrização.6 Pode se iniciar como dor aguda e persistir por longos períodos ou rea‑ parecer pela persistência dos estímulos dolorosos repetidos ou exacerbação de uma lesão. A dor crônica também pode sur‑ gir e persistir na ausência de fisiopatologia identificável ou doença médica. A dor crônica pode afetar negativamente todos os aspectos da vida diária, incluindo atividades físicas, frequência escolar, padrões de sono, interações e relações familiares e sociais; pode levar a angústia, ansiedade, depressão, insônia, fadiga, ou mudanças de humor, como irritabilidade e comportamento de enfrentamento negativo. Nesses casos, uma abordagem global pode ser necessária para aliviar a dor. A dor episódica ou recorrente ocorre de forma intermitente durante longo período. A criança pode ficar livre de dor entre cada episódio doloroso. As sensações dolorosas muitas vezes podem variar em qualidade, intensidade e frequência ao lon‑ go do tempo e são, consequentemente, imprevisíveis. Este tipo de dor pode ser indistinguível da dor aguda recorrente, mas pode estar associado a um impacto mais grave sobre a vida física e psicossocial da criança afetada. São exemplos deste tipo de dor enxaqueca, dor de doença episódica falcifor‑ me e dor abdominal recorrente. Dores persistente e recorren‑ te podem coexistir, especialmente em condições como a doença falciforme. Avaliação da dor Qualquer terapêutica álgica, para ser instituída, depende de um correto diagnóstico do problema, o que, nos casos de dor, implica a adequada história clínica aliada à avaliação da dor. Este é o alicerce para um adequado tratamento antiálgico. Em pacientes na faixa etária pediátrica, a avaliação da dor é dificultada pela obtenção de uma medida acurada, objetiva e quantitativa da dor, principalmente em crianças não verbais como recém-nascidos, lactentes e crianças com atraso de de‑ senvolvimento neuropsicomotor. Muitas são as formas de avaliação da dor. Em pediatria, po‑ dem ser utilizados o autorrelato, a observação comportamen‑ tal e as medidas fisiológicas. A associação das diferentes for‑ mas de avaliação, como o autorrelato e os padrões fisiológicos, pode ajudar a obter uma informação mais acurada, assim como os diferentes aspectos da vivência dolorosa, como a in‑ tensidade, a localização, o padrão, o contexto da dor e o seu significado. A dor é uma experiência subjetiva, e o autorrelato é reco‑ nhecido como o padrão-ouro na sua avaliação. No desenvolvimento da resposta dolorosa ao estímulo no‑ ciceptivo, ocorre uma rápida resposta, com importantes reper‑ cussões vegetativas. A resposta fisiológica pode acontecer quando há um estímulo doloroso, ocorrendo aumento da pressão arterial, da frequência cardíaca, da frequência respira‑ tória e queda da saturação de oxigênio. A mensuração desses
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parâmetros torna-se útil na avaliação da dor de caráter agudo nociceptivo, seja de forma única ou como complemento, prin‑ cipalmente nos indivíduos que por alguma razão não possam se comunicar. A escala comportamental deve ser utilizada, quando as crianças não são capazes de fazer o autorrelato. Também é útil para suplementar a avaliação por autorrelato ou por medidas fisiológicas. Um dos desafios desse tipo de avaliação é a dife‑ renciação da agitação e da angústia das outras causas que po‑ dem desencadear a dor. A utilização de medidas padronizadas de avaliação permite uma mensuração fidedigna, a qual se aproxima da avaliação relatada pela criança, evitando com isso o risco de se subesti‑ mar a dor na faixa etária pediátrica. Causas da dor e tratamento Há muitas ocasiões nas quais as crianças podem vir a apresen‑ tar dor. As queixas podem ser decorrentes de procedimentos médicos, diagnósticos e terapêuticos, acidentes, fraturas, queimaduras, doenças oncológicas, doenças reumatológicas, anemia falciforme, doenças infecciosas e procedimentos ci‑ rúrgicos. Neste capítulo, será revisado o manejo farmacológico inicial conforme os últimos consensos nacionais e internacionais. Tratamento farmacológico da dor Para a escolha correta da(s) medicação(ções), é fundamental o diagnóstico do tipo de dor a ser tratada: nociceptiva, neuro‑ pática ou mista. Para isso, é necessário obter o maior número possível de informações sobre a dor por meio de anamnese de‑ talhada: localização, tipo de dor (aperto, queimação, choque, pontada), irradiação, início, duração, horários de preferência, fatores de melhora e piora, sintomas associados, intensidade (relato do paciente e escalas para avaliação de intensidade). O exame físico acurado é indispensável. A Organização Mundial da Saúde (OMS), nas diretrizes para tratamento farmacológi‑ co da dor persistente em crianças, datadas de maio de 2012, recomenda: • respeitar a escada analgésica com 2 degraus, de acordo com a intensidade da dor; • utilizar a via de administração possível, preferindo o uso de fármacos por via oral; • prescrever medicações em intervalos regulares; • tratamento individualizado, com medicações e doses adequa‑ das a cada paciente. Escada analgésica com 2 degraus O primeiro degrau, para tratamento de dor leve, recomenda o uso de analgésicos e anti-inflamatórios comuns não esteroi‑ des paracetamol e ibuprofeno, sendo, no nosso meio, também largamente utilizada a dipirona. Outros anti-inflamatórios também podem ser indicados. O segundo degrau, para trata‑ mento de moderada a grave, recomenda a associação de opioi‑ des fortes: morfina como primeira opção ou outros, de acordo com a necessidade de cada paciente e a tolerância a efeitos co‑ laterais.
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Em 1986, iniciou-se a recomendação para tratamento da dor de acordo com a escada analgésica constituída por 3 de‑ graus. O primeiro era composto por anti-inflamatórios e anal‑ gésicos comuns para dor leve, o segundo por opioides fracos (codeína e tramadol) para tratamento da dor moderada e o ter‑ ceiro, por opioides fortes para dor intensa. A partir de maio de 2012, suprimiu-se o segundo degrau. Desde então, é recomen‑ dada a dose mais baixa de morfina para tratamento da dor mo‑ derada (0,05 mg/kg/dose). Essa mudança ocorreu pois os es‑ tudos sobre o uso de tramadol em crianças são ainda insuficientes, não sendo esta droga recomendada para meno‑ res de 12 anos, embora seja largamente utilizada na prática. Quanto à codeína, sabe-se que uma parcela significativa da população (até 30%) não possui biodisponibilidade genética para transformação dela em metabólito ativo da morfina, por deficiência da enzima hepática CYP2D6. Portanto, não apre‑ senta, nesses casos, nenhum efeito analgésico. A associação de medicações adjuvantes ao primeiro ou se‑ gundo degrau é recomendada desde o início do tratamento, se necessária. Existem várias classes de medicamentos que po‑ dem contribuir para o controle eficaz da dor, como antidepres‑ sivos, anticonvulsivantes, relaxantes musculares, ansiolíticos e corticosteroides. Via de administração A cada situação clínica de cada paciente determina a escolha de uma ou mais vias de administração de analgésicos. A via oral (VO) deve ser a preferencial, se possível, por não causar dor, pela facilidade de administração e pela redução de custos. A via intramuscular (IM) deve ser sempre evitada por ser dolo‑ rosa, aumentando o estresse da criança. A via intravenosa (IV) é a de escolha para titulação de opioides, principalmente em pacientes sem condições de ingestão por via oral. A via subcu‑ tânea (SC) oferece boa absorção e é uma alternativa à admi‑ nistração IV de opioides, quando não há acesso venoso dispo‑ nível. O uso de adesivos de liberação controlada por via cutânea (patches) é boa opção para tratamento de dor crônica, após estabelecer-se a dose ideal de opioide IV. Para esta tran‑ sição, deve-se calcular a dose correspondente, de acordo com tabela específica. A via retal (VR) oferece absorção incerta e não pode ser usada para algumas as drogas. A via epidural pode ser considerada em situações especiais. Intervalos regulares A prescrição de analgésicos deve ter horários regulares estabele‑ cidos, evitando-se prescrições de doses a critério médico ou se necessário. Aguardar que o paciente tenha dor para depois ofe‑ recer analgesia pode gerar mais desconforto, além de sentimen‑ tos de medo e insegurança, inclusive nos familiares. O intervalo prescrito deve levar em consideração o tempo de ação da droga e pode ser ajustado conforme a necessidade, evitando-se recor‑ rência da dor antes do próximo horário de administração. Doses menores de opioides (25 a 50% da recomendada) podem ser adicionadas nos intervalos das doses regulares. São as chamadas doses de resgate, para controle de episódios in‑ termitentes de dor. No entanto, se forem necessárias mais que
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duas doses de resgate a cada intervalo, deve-se considerar o aumento da dose regular. Tratamento individualizado Cada paciente deve ser analisado como um ser único, conside‑ rando-se o diagnóstico, a condição clínica, a resposta indivi‑ dual a cada medicação e a tolerância a seus efeitos colaterais. As doses de opioides necessárias para controle da dor po‑ dem variar de um paciente a outro e no mesmo indivíduo em situações diversas. Não há recomendação sobre dose máxima de morfina, podendo ser aumentada até que haja alívio da dor. A dose ideal é a que promove alívio da dor, com efeitos colate‑ rais toleráveis. Se os efeitos indesejados da morfina forem intoleráveis, considerar o uso de outros opioides como fentanil, oxicodona ou metadona. O tratamento preventivo dos efeitos colaterais é recomendado desde o início, como a associação de laxativos para constipação. Medicações 1. Analgésicos comuns e anti-inflamatórios não esteroides: as drogas recomendadas pela OMS no primeiro degrau são para‑ cetamol e ibuprofeno. Outros anti-inflamatórios podem ser usados, sem garantia de maior eficácia. • paracetamol: antitérmico e analgésico para tratamento de dor leve. Metabolizado no fígado. No Brasil, só disponível para administração oral; • dipirona: antitérmico e analgésico para tratamento de dor leve. Metabolizada no fígado, excreção urinária; • ibuprofeno: anti-inflamatório, antitérmico e analgésico para tratamento de dor leve. Metabolização hepática, excreção uri‑ nária (80%) e biliar. Não pode ser usado em lactentes meno‑ res que 3 meses. 2. Opioides: no segundo degrau, para tratamento de dor modera‑ da a intensa, a droga recomendada é a morfina. Outras podem ser utilizadas, conforme a necessidade e a intolerância aos efeitos colaterais da morfina. A metabolização é hepática, e a excreção é renal em sua maioria. Não apresentam boa eficácia no tratamento de dor neuropática, com exceção da metadona. O paracetamol e a dipirona potencializam o efeito analgésico dos opioides. Por isso, recomenda-se administração conco‑ mitante dessas drogas. • morfina: primeira escolha para tratamento de dor moderada a intensa. Tem efeitos colaterais bem descritos e frequentes. Os mais comuns são náuseas e vômitos, constipação, prurido e sonolência, podendo ser controlados com o uso de sintomáti‑ cos na maioria dos casos; • fentanil: para tratamento de dor intensa, cem vezes mais po‑ tente que a morfina. Pode causar depressão respiratória, prin‑ cipalmente em neonatos e lactentes jovens. Disponível em forma de patches de liberação controlada; • metadona: mais usada para tratamento e prevenção de absti‑ nência após uso prolongado de opioides. Tem bom resultado no tratamento de dor neuropática; • oxicodona: indicada para tratamento de dor moderada a in‑ tensa. Disponível para uso oral;
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• hidromorfona: para dor moderada a intensa. Liberada para uso em pacientes maiores de 18 anos. Também disponível para administração oral; • tramadol: opioide fraco, indicado para tratamento de dor mo‑ derada. Não há evidências de que sua eficácia e segurança se‑ jam maiores que as da morfina. Não recomendado para uso em crianças menores de 12 anos, mas largamente utilizado na prática. Autorizada conforme Consenso da SBED; • codeína: opioide fraco, utilizado no tratamento da dor mode‑ rada. Pode não apresentar efeito analgésico, pois até 30% da população não possui biodisponibilidade genética para meta‑ bolização hepática em metabólito ativo da morfina. 3. Medicações adjuvantes: várias classes de medicamentos po‑ dem ser associadas desde o início do tratamento, ao primeiro ou segundo degrau da escada para controle eficaz da dor e sin‑ tomas concomitantes. Destacam-se os anticonvulsivantes e os antidepressivos para tratamento de dor neuropática, na qual os opioides têm pouca eficácia, neurolépticos, relaxantes musculares, ansiolíticos, anestésicos locais e corticosteroides, estes últimos com recomendações limitadas em pediatria. • anticonvulsivantes: os mais usados são gabapentina e carba‑ mazepina, podendo-se lançar mão também de topiramato, la‑ motrigina e outros. A carbamazepina é a droga recomendada para pacientes menores de 2 anos; • antidepressivos: os tricíclicos são largamente utilizados, des‑ tacando-se a amitriptilina. Esta é contraindicada se houver bloqueio de ramo e glaucoma de ângulo agudo; • neurolépticos: alteram a percepção da dor e melhoram a ansie‑ dade, a agitação psicomotora e a qualidade do sono. Entre os mais usados, estão clorpromazina, risperidona e haloperidol; • benzodiazepínicos: têm ação ansiolítica, relaxante muscular e sedativa. Os mais usados para esta finalidade são diazepam, lorazepam, clobazam e nitrazepam; • relaxantes musculares: utilizados para controle da dor mio‑ fascial e como antiespasmódicos. Em pacientes pediátricos, os mais usados são o baclofeno e a ciclobenzaprina. Diazepí‑ nicos também podem ser associados, mas promovem mais efeitos colaterais, como sonolência e aumento de secreção em vias aéreas superiores. A tizanidina, de ação central, pode provocar hipotensão e bradicardia graves; • anestésicos locais: lidocaína e bupivacaína podem ser indica‑ das para bloqueios simpáticos, de plexos e nervos, para inje‑ ção em pontos-gatilho, intra-articulares, epidurais e até por via IV. A lidocaína por via IV tem ação periférica e central, pro‑ movendo alívio de dores neuropáticas principalmente. A pri‑ locaína de uso transdérmico é indicada antes de procedimen‑ tos como punções venosa e liquórica; • corticosteroides: têm indicações limitadas na população pediátri‑ ca, sendo utilizados quando as reações inflamatórias e o edema são de fundamental importância na geração da dor, como doen‑ ças reumatológicas, oncológicas e neuropatias c ompressivas. Alguns pacientes tornam-se portadores de dores crônicas. Há evidências de que a dor crônica na infância predispõe o indiví‑ duo não somente à continuidade da dor, mas também ao de‑ senvolvimento de diferentes tipos de dor quando adulto.7
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Muitas destas crianças possuem sequelas físicas, psicológicas e sociais que afetam não somente a elas, mas também as famí‑ lias e os amigos. Existe também enorme desgaste financeiro para o indivíduo e sua família, com custos de cuidado de saú‑ de diretos e indiretos, além de perdas de oportunidades de melhorias. Embora não seja o foco deste capítulo, sugere-se a leitura de artigo de revisão sobre dor crônica em crianças e adolescentes publicado em 2015 por Landry et al.8 Doses recomendadas Tabela 1 Primeiro degrau Droga
Adminis‑ tração
Dose
Dose máxima
Restrições
Paraceta‑ mol
VO
10 a 15 mg/ kg/dose a cada 6 h
5 doses/24 h ou 60 mg/ kg/dia
Dipirona
VO, IV, IM
10 a 20 mg/ kg/dose a cada 4 a 6h
3.000 mg/ dia
Ibuprofeno
VO
5 a 10 mg/ kg/dose a cada 6 a 8h
40 mg/kg/ dia
Menores de 3 meses
Cetopro‑ feno
VO, IV, IM
1 mg/kg/dose a cada 8 a 12 h
300 mg/dia
Menores de 1 ano
Naproxeno
VO
5 a 15 mg/ kg/dose a cada 12 h
1.000 mg/ dia
Menores de 2 anos
Cetorolaco
IV, SL
0,5 mg/kg/ dose a cada 6 h
30 mg/dose, por 5 dias
Tabela 2 Segundo degrau Droga
Adminis‑ tração
Dose
Dose máxima
Morfina
VO, IV, IM, SC
VO: 0,3 a 0,6 mg/kg/dose a cada 2 a 4 h
Limitada pelos efeitos colaterais
IV, SC: 0,05 a 0,1 mg/kg/dose a cada 4 h até infusão contínua
Limitada pelos efeitos colaterais
IV: 0,5 a 2 mcg/ kg/dose até infusão contínua
Limitada pelos efeitos colaterais
TD: patches 12,5, 25 e 50 mcg/h
Trocar a cada 72 h 10 mg/dose
Fentanil
IV, TD
Metado‑ na
VO, IV
0,05 a 0,1 mg/ kg/dose a cada 4 a 12 h
Oxico‑ dona
VO
0,05 a 0,15 mg/ kg/dose a cada 4 a 6 h
Tramadol
VO, IV, IM
1 a 2 mg/kg/ dose a cada 4 a 6 h
400 mg/dia
Codeína
VO
0,5 a 1 mg/kg/ dose a cada 4 a 6 h
60 mg/dose
Restri‑ ções
Menores de 3 meses
VO: via oral; IV: intravenosa; IM: intramuscular; SC: subcutânea; TD: transdérmica.
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Tabela 3 Medicações adjuvantes Droga
Classe
Administração
Dose
Doses máximas
Restrições
Amitriptilina
Antidepressivo
VO
0,1 a 2,0 mg/kg/dose 1 a 2/dia
3 a 5 mg/kg/dia
Bloqueio de ramo, glaucoma
Clorpromazina
Antipsicótico
VO, IV, IM
0,5 a 1,0 mg/kg/dose a cada 4 a 6 h
40 mg/dia < 5 anos e 75 mg/dia > 5 anos
Carbamazepina
Anticonvulsivante
VO
10 a 20 mg/kg/dia a cada 8 a 12 h
35 mg/kg/dia
> 12 anos: 200 mg/dia a cada 12 h
1 g/dia
Gabapentina
Anticonvulsivante
VO
8 a 35 mg/kg/dia 1 a 3/dia Iniciar com 5 mg/kg/dose
3.600 mg/dia
Baclofeno
Miorrelaxante
VO
< 2 anos: 10 a 20 mg/dia a cada 8 h
40 mg/dia < 5 anos
2 a 7 anos: 20 a 30 mg/dia a cada 8 h
60 mg/dia
> 8 anos: 30 a 40 mg/dia a cada 8 h
120 mg/dia
Ciclobenzaprina
Miorrelaxante
VO
Não bem estabelecida para crianças
Diazepam
Miorrelaxante, anticonvulsivante
VO, IV, IM, VR
VO e VR: 0,12 a 0,80 mg/kg/dia a cada 6 h
Dexametasona
Corticosteroide
VO, IV, IM
IV: 0,04 a 0,30 mg/kg/dose a cada 2a4h
0,6 mg/kg a cada 8h
0,08 a 2,00 mg/kg/dia a cada 6 a 12 h
16 mg/dia
Conclusão O controle efetivo da dor faz parte do bom atendimento, pre‑ venindo com isso o sofrimento desnecessário e ajudando o pa‑ ciente na sua recuperação. A escolha de um analgésico adequado vai implicar a avalia‑ ção da magnitude da lesão, da patologia, e da intensidade de dor aliado à adequada história clínica. O conhecimento sobre as medicações disponíveis é mandatório. Muitas são as medicações disponíveis para tratar a dor e muitas outras ainda virão, principalmente na faixa etária pe‑ diátrica, para a qual muitas medicações ainda não foram estu‑ dadas e/ou liberadas. O indivíduo com dor, não importando a faixa etária, neces‑ sita de uma atenção firme com intervenções medicamentosas e não medicamentosas. O adequado atendimento com uma avaliação eficaz vai implicar menos sofrimento para a criança e seus familiares, diminuindo os fatores de estresse, permitin‑ do um ganho real na qualidade de atendimento para esse pa‑ ciente, o que, sem dúvida, repercutirá na sua qualidade de vida. Não se justifica mais a dor, cabendo aos profissionais de saúde a pronta atenção para esse problema. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Definir dor. • Compreender a importância do manejo da dor na infância. • Entender os riscos do manejo inadequado da dor para os pacientes e seus familiares. • Diferenciar os tipos de dor sob aspectos etiopatológicos e de duração. • Manejar, inicialmente, os diversos tipos de dor na infância. • Prescrever tratamento da dor conforme recomendação da organização mundial da saúde.
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CAPÍTULO 4
CRIANÇA E ADOLESCENTE DEPENDENTES DE TECNOLOGIA: DA UTI PARA O DOMICÍLIO Cristiane Rodrigues de Sousa
Definição A sobrevivência de crianças e adolescentes com doenças crô‑ nicas e sem possibilidade de cura é realidade no Brasil e em outros países. Atualmente, esses pacientes utilizam os servi‑ ços de saúde em média sete vezes mais e permanecem hospi‑ talizados por mais tempo que aqueles sem doenças crônicas.1 Dependendo da condição clínica, muitos desses indivíduos necessitam fazer uso de tecnologia médica, assumindo a con‑ dição de crianças dependentes de tecnologia, definidas como crianças que necessitam de equipamentos e cuidados médi‑ cos para compensar a perda substancial de uma função vital corporal e de cuidados permanentes para evitar a morte ou se‑ quelas.2 Epidemiologia Há poucos registros acerca da quantidade de crianças depen‑ dentes de tecnologia, porém estimava-se a existência de 100 mil e 6 mil desses indivíduos, respectivamente, nos Estados Unidos, no final da década de 1980, e no Reino Unido, no iní‑ cio de 2000. No Brasil, não existem registros exatos sobre a prevalência de crianças dependentes de tecnologia.3 No en‑ tanto, o Censo 2000 identificou que 2,5% da população brasi‑ leira, aproximadamente 4,4 milhões de pessoas, são portado‑ res de deficiências com limitações mais severas e dentro dessa parcela da população entende-se que estão inseridas as crian‑ ças e os adolescentes dependentes de tecnologia.4 São pacien‑ tes que no sistema de saúde, público ou privado, necessitam de assistência permanente e que podem se beneficiar de cui‑ dados paliativos, cujo intuito principal é garantir a melhor qualidade de vida possível para o paciente e sua família. Ao longo dos anos, os cuidados paliativos em pediatria fo‑ ram sendo ampliados da oncologia para doenças crônicas li‑ mitantes da vida. É importante que sejam oferecidos desde o diagnóstico e devem permanecer por todo o curso da doença, independentemente do desfecho final ser cura ou óbito e, nes‑ sa situação, deve envolver o suporte ao luto.5
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Um dos pontos principais no planejamento da assistência é oferecer opção realística aos pacientes e às famílias de como, por quem, em que tempo e onde os cuidados serão realiza‑ dos.6 Podem ser desenvolvidos tanto em hospital, ambulató‑ rio, em hospices quanto no domicílio. Em resumo, seguir os princípios de oferecer cuidado paliativo adequado, no melhor tempo e lugar.7 Formas de apresentação clínica Em diversas unidades de terapia intensiva (UTI), existem pa‑ cientes com doenças crônicas, dependentes de tecnologia, com sistema cognitivo preservado ou comprometido. Após período crítico de internação em UTI, muitos pacientes alcan‑ çam estabilidade clínica. Para alguns em especial, esta condi‑ ção está relacionada inicialmente à permanência em ventila‑ ção mecânica, definida como ventilação pulmonar mecânica prolongada se necessária por mais de 21 dias8, e posteriormen‑ te à dependência crônica de ventilação mecânica. Nesse caso, caracteriza-se a dependência, quando o suporte ventilatório mecânico é necessário, de modo intermitente ou contínuo, por mais de 1 mês, se crianças menores de 1 ano ou mais de 3 meses para pacientes com mais de 1 ano.9 Dentre os pacientes dependentes de ventilação mecânica, podem estar os porta‑ dores de doenças neuromusculares e aqueles vítimas de trau‑ ma raquimedular, em que o uso de suporte ventilatório artifi‑ cial contribui para prolongar a vida por meses ou anos,2 independentemente de onde é realizado, se em ambiente hos‑ pitalar ou domiciliar.9 Plano terapêutico e alta domiciliar A expectativa de vida para esses pacientes vem crescendo com o avanço tecnológico. Com o acesso a ventiladores mecânicos portáteis, a internação domiciliar surge como um caminho para a alta hospitalar. No entanto, para que os cuidados pos‑ sam ser realizados no domicílio, de modo eficaz e seguro, é ne‑ cessário que sejam atingidas algumas condições relativas ao
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paciente, às famílias e ao serviço de assistência domiciliar. Os • material médico-hospitalar: quantidade necessária semanal pré-requisitos para internação domiciliar são: estabilidade ou mensal, utilização e armazenamento corretos. clínica por período mínimo de 2 semanas, compromisso e trei‑ namento da família, assistência domiciliar por equipe multi‑ A ideia principal, na visão paliativista, é “acrescentar vida aos disciplinar com pediatra, enfermeiro, fisioterapeuta, nutricio‑ anos” e não “anos à vida”. Nesse sentido, os objetivos de dar nista e assistente social sempre com objetivo de prestar suporte, prolongar a vida com qualidade, reduzir morbidade, cuidado de forma integrada e ampla.10 contribuir para o crescimento e desenvolvimento, como tam‑ bém reduzir custos financeiros são os norteadores do planeja‑ Transição para o domicílio mento da assistência domiciliar.12 O plano de cuidados no do‑ A fase de preparação para internação domiciliar pode ocorrer micílio deve ser devidamente esclarecido, e a decisão para em ambiente hospitalar, de preferência fora da UTI, em unida‑ internação domiciliar, devidamente compartilhada, em res‑ de intermediária, por exemplo, que permite longa permanên‑ peito ao paciente e a sua família. cia de pacientes dependentes de ventilação mecânica ou outra tecnologia no ambiente hospitalar, de menor custo e com um Experiências e desafios no acompanhamento ambiente menos estressante para o paciente, bem como para domiciliar sua família,11 mais semelhante à moradia do paciente. Nessa A descrição de programas de assistência domiciliar para crian‑ etapa, o cuidado tem por objetivo obter o treinamento do cui‑ ças e adolescentes dependentes de ventilação mecânica, em dador, a adaptação do paciente ao ventilador mecânico portá‑ diversos países, dentre estes a Alemanha,12 é exemplo concre‑ til para os dependentes de ventilação mecânica e a preparação to e serve de estímulo para a criação de serviços com este fim. do ambiente no domicílio. O treinamento do cuidador familiar No Brasil, pode ser citada a experiência do Programa de Assis‑ é realizado por profissionais da equipe multidisciplinar (médi‑ tência Ventilatória Domiciliar (PAVD) do Hospital Infantil Al‑ co, enfermeiro, fisioterapeuta e nutricionista), nessa unidade bert Sabin (HIAS) da Secretaria da Saúde do Ceará.13 intermediária, e devem ser abordados os seguintes temas: O referido programa teve início em março de 2005 com ob‑ • conhecimento da doença: quadro clínico atual e progressão, si‑ jetivo de desospitalizar pacientes do HIAS dependentes de nais clínicos de infecção, sinais de perigo iminente e conduta; ventilação mecânica. Proporciona assistência em regime de • cuidados com o manuseio do paciente: lavagem das mãos internação domiciliar com equipe interdisciplinar em parceria sempre antes e após manuseio do paciente, postura no leito e com as famílias e a Associação Brasileira de Amiotrofia Espi‑ na poltrona, mudança de decúbito, uso de artifícios como co‑ nhal (Abrame). Foi regulamentado pela Portaria n. 1790 da xins e talas ortopédicas para assegurar o conforto do paciente Secretaria da Saúde do Ceará em 10/10/2007.14 e prevenir escaras e posições viciosas com impacto negativo A transição para o domicílio ocorre na unidade de pacien‑ na qualidade de vida; tes especiais, com oito leitos, que conta com médica diarista, • higiene: banho, higiene bucal e corporal, limpeza de roupas, enfermeira, fisioterapeuta e técnicos de enfermagem. Nesta do quarto e das demais dependências do domicílio; enfermaria, são realizados o treinamento dos cuidadores e a • aspiração das vias aéreas e do traqueóstomo: quando e como adaptação dos pacientes aos ventiladores mecânicos portáteis. realizar, técnica de aspiração e material utilizado; No domicílio, são realizadas as visitas domiciliares por pedia‑ • cuidados com a traqueostomia: limpeza do estoma, curativo tra (uma vez por semana ou quinzenal), enfermeira (uma vez no local, técnica para recolocação do traqueóstomo em caso por semana), fisioterapeuta (duas a três vezes por semana), de deslocamento acidental ou substituição por obstrução ou assistente social (uma vez por mês), nutricionista (uma vez ruptura da cânula (utilizando cânula orotraqueal no estoma); por mês) e cirurgião pediátrico (uma vez a cada 3 meses). Os • manuseio do balão autoinflável (AMBU®): manuseio no auxí‑ materiais médico-hospitalares são disponibilizados semanal‑ lio à tosse e eliminação de secreções, utilização nas intercor‑ mente nas visitas domiciliares e os medicamentos mensal‑ rências (queda de saturação e defeito no ventilador mecânico); mente, ambos padronizados no SUS. Os ventiladores mecâni‑ • manuseio do ventilador mecânico: cuidados com circuito e cos portáteis e os acessórios específicos são disponibilizados filtros, compreensão da tela de configuração (parâmetros e pelo HIAS por meio de contrato de locação com empresa espe‑ alarmes), a utilização da bateria e como proceder nos casos cializada. Os pacientes também fazem uso de oxímetro de pul‑ em que o equipamento apresentar defeito; so (pertencente ao HIAS), aspirador de secreções e nebuliza‑ • oxigênio: necessidade de uso, cuidados com o cilindro e mon‑ dor, estes últimos recebidos como doação pela Abrame ou tagem do sistema para fornecimento de oxigênio; adquiridos pela família. • medicações: indicações clínicas, posologia, preparação, ad‑ No período de março de 2005 a julho de 2015 foram desos‑ ministração por sonda de gastrostomia e reações adversas; pitalizados 32 pacientes, na maioria, portadores de doenças • alimentação: preparação da dieta artesanal, volume e número neuromusculares, dos quais 21 permanecem em atendimento domiciliar. Dois pacientes foram transferidos para serviço de de refeições e intervalos entre elas; • cuidados com a gastrostomia: limpeza do estoma, curativo no assistência domiciliar para adultos em razão da idade, um pa‑ ciente transferido para serviço de assistência domiciliar priva‑ local, procedimento na substituição da sonda em caráter de do, e oito pacientes faleceram. Dos 21 pacientes atualmente urgência (p.ex., exteriorização acidental por rompimento do no domicílio, 17 encontram-se em ventilação mecânica invasi‑ balão ou obstrução);
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va contínua (traqueostomia) e quatro pacientes em ventilação mecânica não invasiva intermitente (máscara oronasal). O acompanhamento da qualidade da assistência é feito por indicadores de infecção, hospitalização e óbito, regulamentados pela Anvisa (RDC n. 11 de 26/01/06),15 que possibilitam identificar resultados positivos na liberação de leitos de UTI e impacto na melhora da qualidade de vida dos pacientes.
5. 6.
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Perceber a mudança do perfil epidemiológico do paciente pediátrico. • Conhecer a definição de criança dependente de tecnologia. • Conhecer a definição de criança dependente de ventilação mecânica. • Entender a importância do cuidado paliativo na assistência a crianças dependentes de tecnologia. • Contribuir para elaboração do plano de cuidados domiciliares para desospitalização de pacientes dependentes de tecnologia. • Reconhecer a importância do trabalho em equipe multiprofissional na assistência a pacientes dependentes de tecnologia.
7.
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CAPÍTULO 5
CUIDADOS PALIATIVOS EM FINAL DE VIDA Rosana Cipolotti Este capítulo é dedicado ao médico intensivista Israil Cat, i. m., pela introdução e consolidação dos conceitos de medicina paliativa pediátrica em situação de final de vida no Brasil.
Introdução Os progressos no diagnóstico e no tratamento das doenças, es‑ pecialmente nas últimas 5 décadas, vêm alterando continua‑ mente as características da morte, que cada vez menos sobre‑ vém abruptamente, como em decorrência de infecção ou trauma, mas ocorre lentamente, ao final de um período variá‑ vel de doença ou condição crônica. Paralelamente a essas mu‑ danças, e acompanhando a crescente tendência à urbaniza‑ ção, as famílias progressivamente se tornam mais nucleares, reduzindo a disponibilidade de cuidadores familiares e fazen‑ do com que a morte ocorra no mais das vezes em ambiente hospitalar, sob cuidados profissionais especializados e tecno‑ logicamente sofisticados, mesmo em situações irreversíveis. Uma publicação de 1997 do Institute of Medicine1 identifi‑ cou deficiências nos cuidados de final de vida, entre as quais: • ineficiente abordagem da dor e de outros sintomas para os quais o tratamento sintomático é disponível; • impedimentos burocráticos, econômicos, legais e educacio‑ nais, passíveis de serem contornados; • protocolos de manejo de dor desatualizados e desprovidos de embasamento científico; • desconhecimento, por parte dos membros das equipes multi‑ disciplinares, das necessidades dos pacientes em final de vida; • ausência de abordagem do tema “cuidados de final de vida” durante a graduação, a residência e a especialização; • resistência a eventual aumento do custo do tratamento de um paciente com expectativa limitada de vida. O mesmo relatório continha sete recomendações com vistas à resolução das deficiências apontadas: 1. Pessoas com doenças avançadas potencialmente fatais de‑ vem receber tratamento paliativo e de suporte, conforme as melhores práticas conhecidas. 2. Médicos, enfermeiros, assistentes sociais e outros profissio‑ nais de saúde devem comprometer-se com o alívio de sinto‑ mas físicos e emocionais do paciente em final de vida.
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3. Outras categorias profissionais, além dos trabalhadores da
saúde, devem se engajar na promoção de estratégias de me‑ lhora da qualidade de vida dos pacientes e de seus familiares. 4. Cuidados de final de vida devem fazer parte dos tópicos aborda‑ dos transversalmente nos cursos de graduação, especialização e educação continuada e não apenas por disciplinas não clínicas. 5. Cuidados paliativos devem se tornar uma especialidade mé‑ dica, com espaços para prática, ensino e pesquisa. 6. Políticas nacionais de saúde devem incluir cuidados de final de vida. 7. Discussões e divulgação dos conhecimentos recentes sobre cuidados de final de vida, tanto em fóruns científicos como em veículos de comunicação.
Com base nessas recomendações, o National Institutes of Health (NIH) programou uma série de pesquisas abordando manejo clínico de sintomas no final de vida, particularidades da comunicação com pacientes e familiares, aspectos éticos envolvendo tomada de decisões, suporte ao cuidador, cuidado domiciliar, participação de ações de medicina complementar e alternativa e as particularidades do final de vida de neonatos, lactentes/pré-escolares e escolares/adolescentes, cujos re‑ sultados foram apresentados em uma conferência em 2004, copatrocinada pelo NIH, Center for Disease Control (CDC), National Cancer Institute, National Center for Complementary and Alternative Medicine, National Institute of Mental Health e National Institute on Aging,2 e serão sumarizados a seguir. Definições e conceitos2,3 1. Final de vida: sua definição não é precisa, por se tratar de um período não demarcável biologicamente. São necessariamente identificáveis os seguintes componentes: a) presença de doen‑ ça crônica e/ou sintomas ou incapacidades persistentes; b) a doença, sintoma ou incapacidade reflete uma condição irre‑ versível que requer cuidado e cujo desfecho previsto é o óbito. Essa característica dificulta o desenvolvimento de pesquisas que venham dar suporte científico aos protocolos de cuidados
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de final de vida. A indefinição do marco biológico se reflete na dificuldade de se estabelecer prognósticos individuais acura‑ dos quanto ao real tempo de vida, ainda que em determinados casos um prognóstico de curto prazo possa ser feito. 2. Não oferecer (withholding) tratamento de suporte: não iniciar um tratamento que tenha potencial para sustentar a vida (p.ex., não iniciar drogas vasoativas). 3. Retirada (withdrawal) do tratamento de suporte: é a interrupção de um tratamento que tenha o potencial para sustentar a vida (p.ex., retirada de diálise peritoneal que não esteja sendo efetiva). 4. Determinações antecipadas: instruções deixadas pelo pacien‑ te, enquanto plenamente provido de autonomia para decidir, sobre os limites do cuidado que deseja receber em situação de final de vida. 5. Sedação paliativa: sedação, em geral utilizando-se opioides, utilizada na duração e na intensidade necessárias para aliviar a dor de um doente sem perspectiva de melhora.
Habilidades de comunicação com o paciente, seus familiares e a equipe Comunicação com o paciente A criança e o adolescente devem ser incluídos desde a reunião inicial sobre o diagnóstico. Quando acontece dessa forma, a introdução dos cuidados de final de vida pode se dar de forma menos abrupta, ainda que não menos tensa. Entretanto, fre‑ quentemente, os pais relutam em incluir seus filhos nas con‑ versas com o médico/equipe, por temerem que a criança per‑ ca a esperança, entristeça e tenha medo de morrer.4 Mesmo com a tentativa dos pais de poupá-los, as crianças e os adolescentes vivenciam graus variados de antecipação do luto, pelo receio do comprometimento da aparência, das habili‑ dades e da perda dos amigos, além de temer causar sofrimento e tristeza aos familiares. A comunicação entre o paciente, sua família e o médico responsável permite a percepção de quanto envolvimento é admitido por eles. A utilização de recursos de comunicação adequados à idade do paciente permite que se ministre o melhor cuidado de final de vida possível (Tabela 1).
Comunicação com familiares Via de regra, os interlocutores familiares são os pais, ainda que, com frequência crescente, apenas um deles ou outro membro da família, ou mesmo alguém não parente, seja o cuidador principal. Sempre temida, a abordagem inicial sobre introdu‑ ção de cuidados paliativos em final de vida para uma criança define uma mudança de trajetória e inicia uma jornada em di‑ reção ao desconhecido. A principal causa de insatisfação dos familiares nesse cenário é a sensação de não estar sendo ouvi‑ do. Embora a escuta pareça ser uma tarefa fácil, requer paciên‑ cia e deve ser mantida de forma consistente desde o diagnósti‑ co até ao final da vida. A escuta fortalece a confiança entre a equipe e a família. A reunião familiar inicial deve ser conduzi‑ da de forma que o médico não só forneça informações, mas também escute as preocupações e esperanças. Algumas estra‑ tégias de comunicação podem tornar esses encontros menos árduos (Tabela 2). Questões sobre o prognóstico são, muitas vezes, cruciais, embora o desfecho possa não ser precisado nessa conversa inicial. Um estudo avaliou as lembranças que os pais tinham da conversa inicial com o médico responsável e as mais cons‑ tantes eram as referentes ao prognóstico e como as informa‑ ções afetaram sua confiança, sua esperança e o nível de estres‑ se emocional. Os autores também observaram que a percepção de prognóstico pelos familiares era significativamente mais otimista do que os médicos acreditavam ter comunicado. 12 Irmãos podem ser elos especialmente frágeis na cadeia de apoio familiar à criança ou ao adolescente em final de vida, e seu papel na cena familiar depende da idade, do grau de matu‑ ridade emocional e do tipo de relacionamento anterior com o irmão que está doente e com cada um dos pais. A intensidade da participação dos irmãos deve ser modulada pelo desejo de ambas as partes, buscando-se evitar sentimentos de culpa no irmão saudável (por manter o curso “normal” de sua vida, por disputar a atenção dos pais, por secretamente desejar que a si‑ tuação se resolva mais rapidamente, por simplesmente não estar doente).
Tabela 1 Estratégias de comunicação com crianças e adolescentes em final de vida, segundo o entendimento da morte em cada faixa etária5-11 Faixa etária
Entendimento
Estratégias
6 meses a 2 anos
Equivalente ao medo da separação. Reage ao desconforto dos pais
Manter a rotina. Permitir a companhia de familiares próximos e de brinquedos. Praticar e encorajar o contato físico
2 a 7 anos
Ausência de terminalidade. Entende as palavras literalmente (pensamento concreto). Pode preocupar-se sobre quem vai cuidar dele após a morte. Pesadelos. Culpa pela própria doença e por causar sofrimento aos pais
Corrigir equívocos. Usar linguagem direta, evitando termos vagos como “longa viagem”, “dormir” ou “morar numa estrela”. Encorajar e praticar o contato físico, quando aceito
7 a 10 anos
Entende a morte como definitiva, relacionando-a à interrupção de funções biológicas, como parar o coração. Pode ocultar suas preocupações para poupar os pais. Somatizações
Corrigir equívocos. Responder direta e honestamente às questões e permitir que manifeste seus sentimentos. Permitir a participação em funerais de pacientes conhecidos, se solicitado
10 a 13 anos
Entendimento pleno da terminalidade e universalidade da morte. Ambivalência: culpa versus autocomiseração
Reassegurar que ele continuará a ser amado. Estimular a presença de amigos próximos. Assegurar a participação na tomada de decisões
14 a 18 anos
Entendimento adulto da morte. Preocupações com o bem‑estar da família. Sensação de raiva, solidão, tristeza e culpa
Evitar manifestações de crítica ou de julgamento. Garantir momentos de isolamento, quando desejados, bem como a companhia de familiares, amigos próximos, namorado(a). OUVIR SEMPRE
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Tabela 2 Estratégias para reduzir barreiras na comunicação entre médico/equipe e paciente/familiares5,6 Objetivo
Condutas
Estar engajado e demonstrar interesse
Evitar distrações (p.ex., desligar telefones celulares) Privacidade no ambiente (p.ex., trancar a porta) Conduzir-se com naturalidade
Demonstrar que está ouvindo atentamente
Elaborar perguntas, solicitando esclarecimento sobre preocupações e expectativas
Assegurar-se que entende o ponto de vista dos interlocutores
Elaborar questões abertas
Expressar empatia
Elaborar frases que expressem solidariedade
Manter o foco no propósito da conversa
Explicar e relacionar quais são as estratégias para controlar sintomas físicos e emocionais
Comunicação com a equipe Dependendo da complexidade da estrutura local, a equipe pode abranger desde uma extensa lista multiprofissional até apenas um pequeno grupo responsável pelo cuidado direto ao paciente, sendo desejável a inclusão do pediatra da criança. As vantagens da participação do pediatra no processo são ine‑ gáveis, dado o lastro de confiança que em geral se estabelece com a família ao longo dos anos. Entretanto, dificuldades em lidar com a frustração e falta de preparo para enfrentar situa‑ ções-limite são razões apontadas por pediatras gerais para não participarem dos cuidados de final de vida de seus pacientes. A homogeneidade nas informações prestadas à família deve ser a tônica da comunicação entre os membros da equipe, pois qualquer discordância pode ser interpretada como inse‑ gurança ou falta de seriedade. Reuniões com a equipe devem anteceder as conversas com a família, para que as informações e as decisões técnicas sejam recebidas, discutidas e acordadas, incluindo explicações sobre diagnóstico, prognóstico, introdu‑ ção ou retirada de terapêutica. São apontadas pelos pais como as mais frequentes situações de quebra de confiança a intensi‑ dade na comunicação de más notícias, as informações confli‑ tantes e a inacessibilidade. 13 Controle dos sintomas Os princípios que orientam o manejo dos sintomas são:14 1. Parceria com o paciente e a família, por meio do estabeleci‑ mento de objetivos terapêuticos, visando à redução/remoção do sofrimento e, se possível, à melhora funcional. É necessá‑ rio informar sobre os efeitos benéficos e colaterais das medi‑ cações, especialmente dos opioides, bem como corrigir equí‑ vocos e mitos com relação à sua utilização. 2. Sofrimento emocional e ansiedade podem modificar a inten‑ sidade do sintoma. A abordagem multiprofissional dos sinto‑ mas pode ser necessária. 3. O relato da criança sobre a intensidade do sintoma é a princi‑ pal referência, mais importante do que suas atitudes ou que o relato dos pais. Entretanto, crianças muito pequenas ou cujas habilidades em comunicação estejam comprometidas neces‑ sitam de avaliação adicional, especialmente com relação à dor. 4. Abordar os sintomas antecipadamente, sempre que possível, evitando sofrimento adicional. 5. Reavaliar frequentemente, uma vez que, sem perspectiva de controle da doença, a expectativa é de progressão dos sintomas.
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O controle pronto e adequado dos sintomas é crucial quando se trata de cuidados de final de vida. Preocupação maior de pacientes e familiares, o manejo adequado da dor foi aborda‑ do no Capítulo 3. Outros sintomas serão abordados a seguir, especificamente em situação de final de vida:14 1. Constipação: é um sintoma frequente, decorrente de grande número de medicações utilizadas, redução da ingesta, relativa ou absoluta limitação ao leito e redução da motilidade intesti‑ nal. Medidas preventivas devem ser tomadas, especialmente quando for iniciada a analgesia com opioides. Deve ser solici‑ tado que os cuidadores observem e informem sobre a periodi‑ cidade e as características das evacuações. A abordagem pre‑ ventiva inicia-se com dieta rica em fibras solúveis e substâncias de efeito osmótico, como a lactulose. Casos resistentes ou mais graves devem ser tratados com enemas até a resolução dos sintomas, associados com as medidas preventivas. 2. Náuseas e vômitos: sintomas também muito frequentes, seu controle envolve identificação e correção de eventuais distúr‑ bios metabólicos e constipação, manejo adequado da dieta (volume, frequência, consistência, temperatura) e eliminação de desencadeadores do reflexo do vômito (odores e sabores). O tratamento medicamentoso visa ao bloqueio do gatilho do vômito, que inclui receptores de acetilcolina, histamina, sero‑ tonina e dopamina. Frequentemente, uma única droga não é efetiva, sendo necessário substituir ou associar uma nova, de classe diferente. Nos casos mais resistentes, a associação de esteroides por via venosa pode ser útil. 3. Dispneia: sensação subjetiva acompanhada de sinais objeti‑ vos de esforço respiratório, a dispneia frequentemente ante‑ cede o óbito em curto período. Podem ser úteis para alívio do sintoma a exposição da face a um ventilador, a inalação de oxigênio úmido através de máscara simples e a utilização de morfina por via oral, sublingual, retal ou inalatória. O esquema terapêutico proposto na Tabela 3 apresenta a dosa‑ gem, a via e o intervalo entre as doses das principais drogas utilizadas no controle dos sintomas mais frequentes em situa‑ ção de final de vida. O alvo terapêutico é o alívio do sintoma, com efeitos colaterais aceitáveis e controláveis em curto prazo, e o aumento da dose e/ou a redução do intervalo deve ser fei‑ to com esse objetivo. Receios com relação a efeitos colaterais de médio ou longo prazo, bem como a taquifilaxia ou tolerân‑ cia, não podem ser justificativa para a utilização tímida ou parcial dos recursos terapêuticos adequados.
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Tabela 3 Medicações usadas para controle de sintomas em final de vida11 Sintoma
Droga
Posologia
Dispneia
Morfina
0,3 mg/kg/dose, por via oral, sublingual, retal ou inalatória, a cada 3 a 4 h
Agitação
Haloperidol
0,02 mg/kg/dose, por via oral, sublingual ou retal, a cada 8 a 12 h
Prurido
Difenidramina
1 mg/kg/dose, por via oral, a cada 6a8h
Náuseas/ vômitos
Ondasetron
0,15 mg/kg/dose, por via oral, a cada 8 h
Convulsões
Diazepam
0,5 mg/kg/dose, por via retal, a cada 2 a 4 h
Secreção
Escopolamina
0,1 a 0,25 mg/dose, por via oral, a cada 4 h
Questões atuais em cuidados paliativos pediátricos em final de vida Inserção do ensino de cuidados paliativos pediátricos em final de vida nos currículos dos cursos de graduação em medicina Medicina paliativa faz parte do currículo de graduação em me‑ dicina na maior parte das universidades europeias. No entan‑ to, mesmo nos países com tradição na inclusão de cuidados paliativos na prática clínica, a maioria dos programas de gra‑ duação trata desse tópico apenas em adultos. Na Polônia, por exemplo, onde os cuidados paliativos são ministrados por equipes especializadas, existem atualmente cerca de 40 hospices pediátricos e, entre os anos 2000 e 2010, o número de crianças em cuidados paliativos em final de vida, em hospices ou em domicílio, aumentou mais de cinco vezes. Entretanto, mesmo com essa rede bem estabelecida, os autores apontam dificuldades no recrutamento de pessoal e deficiências no co‑ nhecimento sobre cuidados paliativos pediátricos em final de vida, resultantes da abordagem insuficiente durante o curso de medicina, e consideram que o treinamento mais abrangen‑ te, ministrado transversalmente durante a graduação em me‑ dicina e a residência em pediatria, seja viável e seria bem rece‑ bido pelos estudantes, além de melhorar a cooperação entre as equipes de cuidados paliativos e os pediatras, generalistas ou especialistas.15 Hospices pediátricos Estima-se que 500 mil crianças norte-americanas vivam sob alguma condição clínica que possa reduzir sua expectativa de vida e que 15 mil morram a cada ano por condições que justifi‑ cam a utilização de cuidados paliativos pediátricos em final de vida, os quais podem ser ministrados sob configurações diver‑ sas, incluindo hospitais comunitários, hospices e em domicí‑ lio. No Reino Unido, onde a versão moderna do movimento hospice pediátrico teve início com a fundação da Helen House em 1982, e em outros países europeus, a abordagem que mi‑ nistra cuidados paliativos pediátricos de final de vida em hospices é a que tem sido comumente empregada. Outros países, incluindo os Estados Unidos, adotam a consulta da equipe pa‑ liativista durante a internação hospitalar e o posterior atendi‑
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mento domiciliar. O Canadá adotou um modelo misto, com os programas de atenção em hospitais da comunidade e em hospices. São seis os hospices pediátricos atualmente em funcio‑ namento no Canadá, sendo o primeiro, Canuck Place Children’s Hospice, iniciado em 1995.16 Os hospices pediátricos europeus e canadenses oferecem serviços sem custo para as famílias dos pacientes e são finan‑ ciados por instituições governamentais e beneficentes. Os pa‑ cientes são encaminhados pelos médicos especialistas-assis‑ tentes e admitidos segundo critérios previamente definidos, que incluem a condição inexorável de final de vida. Pais, ir‑ mãos e outros familiares são recebidos e estimulados a partici‑ par das atividades recreativas, e classes hospitalares são man‑ tidas com professores das escolas públicas locais. Existe um médico de plantão para atendimento de intercorrências e me‑ didas de alívio dos sintomas, bem como para acompanha‑ mento e constatação dos óbitos.16 A primeira experiência brasileira em hospices pediátricos teve início em outubro de 2013, com a inauguração do Hospice Francesco Leonardo Beira, vinculado ao Serviço de Oncologia Pediátrica do Hospital Santa Marcelina, em São Paulo. Barreiras étnicas e socioeconômicas na aplicação prática dos conceitos fundamentais de cuidados paliativos em final de vida Diversos autores identificaram barreiras no encaminhamento de pacientes pediátricos para serviços de cuidados paliativos de final de vida, seja a abordagem em hospital da comunidade, em domicílio ou em hospice. Foram investigados aspectos étnicos/ raciais17,18 (brancos são mais frequentemente encaminhados para hospices do que os negros, e, entre os brancos, a prioridade é para os não hispânicos) e questões culturais, educacionais e éticas da equipe de especialistas-assistentes. Desconhecimen‑ to sobre cuidados paliativos em final de vida, conceitos equivo‑ cados de eutanásia, convicções religiosas e inconsistência ética foram alguns dos aspectos identificados.19,20 Aspectos socioeconômicos foram avaliados por um estudo,21 cujos autores destacam que a maioria dos jovens que necessi‑ tam de cuidados paliativos vive em países de baixa e média ren‑ das, nos quais o tratamento é menos disponível. Avaliando 30 programas de cuidados paliativos pediátricos em 21 países sub‑ desenvolvidos ou em desenvolvimento (baixa ou média renda per capita) e verificando um checklist composto por 14 itens, ve‑ rificaram pontuação média de 7. As lacunas mais frequentes fo‑ ram: apoio do sistema nacional de saúde (não disponível em 7 de 17 países), educação especializada (não disponível em 7 de 19 países) e acesso a opioide (não disponível em 14 de 21 paí‑ ses). Além disso, práticas específicas para o manejo da dor e apoio em fim de vida eram sistematicamente indisponíveis. Os autores concluem que a prestação abrangente de cuida‑ dos paliativos pediátricos em final de vida é possível, mesmo em ambientes marcadamente empobrecidos. Suporte do sistema nacional de saúde, formação especializada e acesso aos opioi‑ des são alvos-chave para se atingir a equidade. A aplicação de metodologia de checklist pode promover a conscientização so‑ bre as lacunas do serviço, orientando para seu fortalecimento.21
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CUIDADOS PALIATIVOS EM FINAL DE VIDA •
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Perceber a importância dos cuidados paliativos na assistência a pacientes em final de vida. • Entender a dificuldade em determinar o final da vida e os componentes necessários para esta definição. • Identificar sintomas presentes em pacientes em condições clínicas irreversíveis. • Conhecer a conduta medicamentosa para controle dos principais sintomas em final de vida. • Entender a necessidade de capacitar os profissionais de saúde para assistência adequada a pacientes em final de vida. • Perceber a importância de minimizar o sofrimento no final de vida.
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CAPÍTULO 6
SUPORTE À FAMÍLIA: MÁS NOTÍCIAS, DECISÃO COMPARTILHADA E ACOMPANHAMENTO NO LUTO Patricia Miranda do Lago
Introdução Os médicos recebem, durante sua formação, uma série de ensi‑ namentos visando a desenvolver habilidades para diagnosticar, tratar e curar seus pacientes, porém pouco se fala durante a graduação ou a pós-graduação sobre quando as coisas “não vão bem”. Não se discute como informar ao paciente e sua família que não há cura, que uma incapacidade é permanente ou que a morte é inevitável. Estudos têm demonstrado que comunicar más notícias é uma tarefa difícil e angustiante para os médicos, mesmo para os mais experientes, e essa tarefa torna-se ainda mais difícil quando o paciente é pediátrico. Observou-se tam‑ bém que pacientes e familiares estão insatisfeitos com a forma como os profissionais da saúde transmitem informações, espe‑ cialmente relacionadas a más notícias. Quem recebe uma má notícia dificilmente esquece quem, quando e como ela foi dita.1 Comunicar-se com crianças e as suas famílias é tarefa com‑ plexa, pois envolve a tríade médico-família-criança, sendo in‑ fluenciada pelo desenvolvimento e cognição da criança e in‑ clui a dinâmica de interação dentro da família e necessidades diferentes dos pais e dos filhos, além do preparo e da experiên‑ cia da equipe médica. Sabe-se que uma comunicação eficaz se relaciona com o grau de satisfação dos pais com os cuidados prestados, com uma discussão mais aprofundada dos assun‑ tos psicossociais e maior adesão e compreensão do tratamen‑ to, além de um luto mais tranquilo, nos casos de perdas. Definição Má notícia pode ser definida como qualquer informação per‑ cebida como algo que altera negativamente a vida da pessoa que a recebe, causando um desequilíbrio emocional que conti‑ nua após a notícia ter sido recebida.2 Existe grande variedade de informações difíceis de serem transmitidas em pediatria, principalmente nas situações em que a criança está internada em uma unidade de terapia intensi‑ va (UTI); algumas têm maior impacto do que outras, mas sem‑ pre será uma situação de estresse. Contar a uma mãe que seu fi‑ lho morreu ou que uma criança previamente hígida agora está
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com uma sequela neurológica irreversível parece, obviamente, muito ruim. No entanto, também há a situação de se ter de dizer a um pai que seu filho de 2 anos agora tem diabete melito ou fi‑ brose cística. Essa família vai precisar alterar toda sua rotina de cuidado com a criança, desde a dieta até atividades físicas. No caso do diabete, a administração de insulina, a realização do controle glicêmico e as consultas frequentes com equipe multi‑ disciplinar alteram todas as expectativas dos pais com a criança. Da mesma forma, dizer a uma mãe que mora em outra cidade e sem apoio familiar que a criança, apesar de melhor, vai perma‑ necer mais 1 semana hospitalizada pode implicar inúmeras difi‑ culdades relacionadas aos cuidados com os outros filhos e com seu trabalho diário. O médico precisa ter sensibilidade para en‑ tender o impacto de qualquer notícia para a família, mesmo que uma notícia possa parecer não “tão terrível” como outra. A comunicação refere-se ao processo relacionado ao pensa‑ mento, às opiniões e às informações. Trata-se da transmissão de informação contínua de uma pessoa para a outra, sendo então compartilhada por ambos. Para que haja comunicação, é necessário que o destinatário da informação a receba e a compreenda. A informação simplesmente transmitida, mas não recebida, não foi comunicada; para tal, é necessário ali‑ nhar o transmissor e o receptor entre os participantes do pro‑ cesso. A qualidade da comunicação está diretamente relacio‑ nada à compreensão das más notícias pelo paciente (quando em idade adequada) ou por seus familiares.3 Fatores envolvidos na comunicação Fatores médicos Transmitir más notícias é um processo complexo em qualquer situação, mas o ambiente hospitalar pode ter algumas peculiari‑ dades que dificultam ainda mais. A sala de emergência e as UTI, por exemplo, são locais com grande complexidade e altamente tecnológicos e, por isso, naturalmente estressores. Sinais de es‑ tresse, como irritabilidade, fadiga e baixa satisfação com a roti‑ na, são comumente vistos em profissionais que trabalham nes‑ sas áreas. Existe uma pressão de tempo sobre o médico e as
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decisões precisam ser tomadas de forma rápida e precisa, pois é um desafio também para as instituições. Grupos de apoio para fazem a diferença entre a vida e a morte. Em situações de urgên‑ médicos, reuniões interdisciplinares para discutir os casos mais cia e emergência, como a chegada de uma criança em estado complicados e treinamento com pessoal habilitado em técnicas grave, o médico precisa dar más notícias a uma família que não de comunicação são sugestões para auxiliar nessa tarefa.4 conhece, com quem não tem nenhum vínculo, o que torna essa tarefa muito especial e delicada. Além disso, o médico, a família Fatores associados às famílias e a suas e a própria sociedade acreditam que, com os avanços científicos preferências e tecnológicos atuais, sempre será possível salvar a vida da O ambiente hospitalar se caracteriza por uma combinação de criança, o que nem sempre acontece. Sentimentos de culpa e tecnologia avançada e fortes emoções. Os familiares, muitas frustração são comuns tanto nos médicos como nos familiares vezes, não sabem como agir ou se comportar nesse ambiente, nessa situação. A ilusão de que os avanços da medicina podem ficando ansiosos e confusos. Os primeiros momentos são mar‑ curar todos pode ainda causar a falsa impressão de que a morte, cados geralmente por incertezas e ansiedade; portanto, a fa‑ se ocorre, é resultado de uma falha do sistema de saúde ou do mília precisa receber informações sobre a situação do paciente médico, existindo assim temor também com implicações legais. e sobre as rotinas da unidade. Associado ao ambiente estra‑ Os médicos também se sentem incomodados e têm dificul‑ nho, as reações individuais às más notícias são dependentes dade de lidar com os diversos sentimentos e as mais variadas de uma série de fatores, como personalidade, crenças religio‑ reações que podem ocorrer quando más notícias são dadas sas, suporte de outros familiares e amigos, experiências pré‑ aos pacientes e a seus familiares. Reações como raiva, medo, vias semelhantes, contexto cultural e a forma como essa notí‑ negação, culpa, tristeza e, eventualmente, agressividade de‑ cia foi transmitida. Membros da mesma família têm reações mandam um suporte emocional por parte do profissional que, bastante diferentes em relação à mesma notícia. Esse conjun‑ muitas vezes, não está preparado para isso. Aprender a lidar to de aspectos individuais e psicossociais não pode ser altera‑ com a incerteza do prognóstico e da morte em si é outro desa‑ do pelo médico. fio para os médicos.4 Várias pesquisas descrevem a opinião dos pais sobre como Em algumas situações, como a da criança que já chega em deveria ser a comunicação médico-família. Entrevistando pais parada cardíaca por um acidente de trânsito, o médico vai ter de crianças que morreram em ambiente hospitalar, foram iden‑ uma única oportunidade de transmitir informações sobre diag‑ tificadas seis prioridades na transmissão de notícias pelo médi‑ nóstico, tratamento e prognóstico e, ao mesmo tempo, terá de co: informação completa e honesta, acesso fácil ao médico, roti‑ dar suporte emocional para essa família totalmente desconhe‑ na da comunicação e cuidado, médicos que expressem emoções cida. Demonstrar sentimentos em uma situação como essa é e forneçam suporte emocional, manter a relação pais-criança e considerado pelos pais muito adequado. Pais de crianças que ter fé. Em relação à comunicação, houve dois tipos contraditó‑ morreram de forma traumática descreveram que a sensibilida‑ rios de preferência: algumas famílias preferiram que a comuni‑ de e a empatia no momento de dar a notícia foram mais impor‑ cação fosse dada por uma única pessoa, enquanto outras prefe‑ tantes que o contato prévio com o profissional ou a sua profissão. riam escutar vários pontos de vista. Foi muito enfatizada a Geralmente, os médicos apresentam altos níveis de estres‑ necessidade de manter o papel dos pais como provedores e res‑ se, ansiedade e depressão em razão de diferentes estressores. ponsáveis pela criança. Pais queriam ser escutados, respeitados Médicos que apresentam sinais de fadiga emocional podem e incluídos no processo de decisões sobre seus filhos. Especial‑ não ter o envolvimento necessário com os cuidados do pacien‑ mente antes da morte da criança, os pais salientaram a impor‑ te. Pesquisas associam a diminuição da capacidade de comu‑ tância de poder tocar o filho, de um momento a sós com a crian‑ nicação e uma tendência a dar menos explicações aos pacien‑ ça, de privacidade e tranquilidade. Também a crença em alguma tes e a suas famílias com altos níveis de estresse. Os médicos religião auxiliou muitas famílias no processo de luto.5 identificam muito mais facilmente esses sintomas nos colegas Os pais muitas vezes desejam dar um retorno para os médi‑ do que neles próprios. cos de como ocorreu o processo de comunicação da morte de Burnout tem sido definido como a perda progressiva de seu filho(a) na UTI. Em um estudo em que foram ouvidos pais idealismo e energia, sensação de despersonalização e exaus‑ de crianças que morreram na UTI, foram identificados os se‑ tão emocional que experimentam alguns profissionais. Vários guintes problemas de comunicação: fatores associados ao controle do trabalho, como organização, • disponibilidade: a queixa mais comum foi a falta de disponibi‑ autonomia e disponibilidade de recursos, estão relacionados a lidade dos médicos para ouvir as famílias e responder seus aumento de estresse e burnout. Também se sabe que a sobre‑ questionamentos. Os pais apreciaram quando os médicos carga de trabalho é outro fator importante na gênese dessa si‑ sentaram para conversar e demonstraram atenção. Também tuação. Satisfação com o trabalho e suporte familiar são fato‑ alertaram para situações complicadas, como quando o médi‑ res protetores para síndrome de burnout. Sentimentos co só conversa com a família quando é solicitado ou quando o positivos do médico em relação a si mesmo são associados médico, estando fisicamente próximo à família, parece excluir com maior abertura para discutir as queixas do paciente e o familiar das discussões, conversando apenas com outros mais atenção com os aspectos psicossociais. médicos sem informar aos pais sobre as decisões tomadas; Os médicos precisam de boa saúde mental para fornecerem • honestidade e afeto: a maioria dos pais manifestou o desejo os melhores cuidados aos seus pacientes. Cuidar de quem cuida de informação completa sobre o estado de seus filhos, forne‑
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cida de maneira franca e simples. Essa maneira de se comuni‑ car auxilia no entendimento, na tomada de decisões e na cria‑ ção do vínculo de confiança no cuidado. Os pais querem informação clara e direta, mas transmitida de forma sensível e ao mesmo tempo com compaixão; ocultar informação e dar falsas esperanças: quando os pais sentiram que o médico estava retendo informação ou sendo muito otimista, sentiram-se muitas vezes enganados, com raiva, resultando em quebra de confiança; vocabulário e velocidade: os pais desejavam receber informa‑ ções compreensíveis e preferiam que fossem evitados termos médicos. As notícias devem ser fornecidas à família de acordo com seu ritmo de compreensão. Muito conteúdo transmitido de forma rápida, principalmente utilizando-se termos médi‑ cos, cria confusão e mal entendidos; informações contraditórias: muitas vezes, diferentes membros da equipe assistencial forneciam informações contraditórias; isso dificultava a confiança no tratamento. Todos os membros da equipe devem ser informados da situação do paciente e do plano de tratamento, e essas informações devem constar no prontuário. Uma das formas de melhorar a comunicação entre a equipe é a participação de todos em rounds diários; linguagem corporal: os pais desconfiavam dos médicos que não estabeleciam contato visual ou que diziam uma coisa, mas que se comportavam como se fosse outra. É importante ter um comportamento que esteja de acordo com a notícia e o conteúdo informado.
Outro aspecto importante citado pelos pais é em relação ao controle da dor e outros sintomas no ambiente hospitalar. Es‑ tudo descreveu que 89% dos pais de crianças que morreram de câncer relataram que seus filhos sentiram dor, fadiga ou dispneia no seu último mês de vida. A impressão de que a criança está confortável é parte essencial do cuidado. A angús‑ tia e o estresse gerado pela observação da criança com dor po‑ dem se tornar barreiras na comunicação com a equipe, se esta não der adequada atenção a essa queixa. Como foi demonstrado por vários autores, a dificuldade na comunicação do médico com a família passa por pelo menos três aspectos:6 • intrínsecos ao médico – qualidade de vida, saúde mental, su‑ porte familiar, experiências prévias, etc.; • relacionados ao trabalho – ambiente, recursos disponíveis, equipe de suporte, satisfação com o trabalho, treinamento, etc.; • referentes ao paciente e a sua família – crenças, fatores cultu‑ rais e psicossociais, entre outros. Identificar quais componentes estão agravando uma situação em especial é importante para resolver as barreiras de comu‑ nicação e facilitar a busca de soluções para cada caso. Protocolos para más notícias Tradicionalmente, os médicos aprendem a dar más notícias na prática diária e observando outros médicos. Essa transmis‑ são de ensinamentos informal e não sistematizada, infeliz‑ mente, nem sempre resulta em boa prática.
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As habilidades de comunicação devem ser ensinadas e in‑ corporadas na prática médica. Cursos de alguns dias, que as‑ sociam teorias e simulação, seja com atores, vídeos ou drama‑ tização dos próprios alunos, têm sido associados a melhorias na identificação de falhas de comunicação e treinamento. Além disso, a comunicação pode ser melhorada com protoco‑ los de informação estruturada, consultoria com equipes de éti‑ ca e cuidados paliativos. O protocolo SPIKES de Bayle e Buck‑ man tem sido o mais utilizado para manejo de más notícias com bons resultados (Tabela 1).7 Esse protocolo é constituído por seis passos: 1. S – setting up – preparar a entrevista. 2. P – perception – percepção sobre o paciente. 3. I – invitation – convite para o diálogo. 4. K – knowledge – transmitir conhecimento. 5. E – emotions – expressar emoções. 6. S – strategy and summary – organizar planos e resumir infor‑ mações. Passo 1 – preparar a entrevista Reler as informações sobre o paciente, exames, procedimen‑ tos, consultorias e tratamentos. Levar o prontuário se for pos‑ sível. Os familiares podem querer esclarecer algum ponto. Pensar sobre o que vai ser discutido com o paciente. Escolher o local em que será realizada a entrevista. Preferencialmente, escolher um local calmo e com privacidade. Decidir com o pa‑ ciente e família quem vai estar presente durante a conversa. Sentar e convidar a família a sentar também demonstra dispo‑ nibilidade e respeito (Tabela 2). Passo 2 – percepção sobre o paciente É fundamental iniciar descobrindo o que o paciente já sabe de sua condição. Iniciar com perguntas abertas sobre o que o pa‑ ciente sabe até o momento, o que ele pensa. Observar o voca‑ bulário usado e também a linguagem não verbal do paciente (postura, expressão facial, tom de voz e aspecto físico) para entender melhor a situação emocional e como se expressar com ele e sua família. Tabela 1 SPIKES – abordagem em 6 passos para comunicar más notícias Preparar (setting up) a entrevista
Manter a privacidade, envolver outros significativos, sentar-se, estabelecer uma ligação, minimizar as interrupções
Determinar as percepções do doente
“O que lhe foi dito sobre sua doença?”
Obter a autorização (invitation) do doente
“Gostaria que eu lhe desse a informação dos resultados dos seus exames?”
Dar conhecimento (knowledge) e informação ao doente
Começar com uma afirmação de aviso, evitar o jargão médico, evitar excessiva linearidade
Atender às emoções do doente
Ouvir, observar e identificar a emoção
Providenciar uma estratégia (strategy) e um sumário
Dar o prognóstico e as opções de tratamento e atender aos sintomas
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Tabela 2 Sumário de recomendações para uma boa comunicação Preparar-se para a conversa Escolher um lugar calmo e privativo Ter tempo para conversar, estar disponível Ouvir atentamente Dar a notícia na velocidade que possa ser assimilada pela família (ficar atento à linguagem verbal e não verbal) Observar e permitir emoções que obrigatoriamente vão surgir durante a discussão (tanto as suas emoções quanto as dos familiares) Evitar termos técnicos Ser honesto e claro, mas escolhendo as palavras para informar de forma gentil; demonstrar compaixão Periodicamente, checar se a família está entendendo, fazendo perguntas para os familiares Tolerar períodos de silêncio Não focar o assunto apenas em órgãos ou exames, falar sobre qualidade de vida e reais chances de recuperação Ser honesto sobre incertezas em relação a diagnóstico, prognóstico, etc. Sumarizar a informação Ser sensível a diferenças individuais, culturais e religiosas
Passo 3 – convite ao diálogo Descobrir com perguntas abertas o que o paciente quer saber sobre sua doença e tratamento. Embora a maioria queira rece‑ ber toda a informação possível, observar as limitações de cada indivíduo. Aceitar os silêncios e as evasivas e estar disposto a continuar a discussão em outro momento se for necessário. Passo 4 – transmitir conhecimento Transmitir as informações de maneira clara, objetiva e sensí‑ vel. Utilizar linguagem leiga adaptada ao nível intelectual e cultural de cada um. Evitar eufemismos, pois podem causar confusão. Fornecer a informação aos poucos, em uma veloci‑ dade que permita a assimilação pelo paciente/família. Permi‑ tir períodos de pausas e silêncios para que a família possa re‑ fletir sobre o que foi dito ou fazer perguntas. Passo 5 – expressar emoções O paciente e a família podem reagir de diversas formas, podem demonstrar medo, ansiedade, tristeza, negação, ambivalência ou raiva. O médico deve se perguntar se a reação percebida é socialmente aceitável ou um mecanismo de defesa emocional. Deve-se ajudar a família a passar por essas emoções, manter a calma. Algumas reações podem ser mais complicadas de lidar, como agressividade ou agitação. Muitas vezes, pode ser im‑ portante o apoio de outros profissionais, como psiquiatras. Além disso, deve-se lembrar que o médico também vai experi‑ mentar uma série de sentimentos durante a entrevista. Não começar a conversa sem estar preparado para apoiar o pacien‑ te emocionalmente.
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Passo 6 – organizar planos e resumir informações Resumir a informação facilita o entendimento e esclarece dú‑ vidas. Estabelecer um comprometimento com o alívio de sin‑ tomas e compartilhar preocupações. Elaborar juntamente com a família um plano a ser seguido, que inclua exames futu‑ ros, planos alternativos e opções de tratamento. Recomendações para uma boa comunicação Outras formas de auxiliar a aquisição de habilidades de comu‑ nicação são os cursos e as palestras focados nessa área. Basea‑ dos na experiência desses cursos, algumas recomendações podem ser feitas de acordo não apenas com os relatos dos pa‑ cientes, mas também dos médicos quanto à forma ideal para comunicação de más notícias aos pais de crianças gravemente doentes:4,8 • perguntar o que a família já sabe sobre a situação, o que ela quer saber e o que considera importante no momento. Informar de forma honesta, clara e com linguagem leiga; • dar espaço para discutir sentimentos e dar suporte emocional. Considerar que reações como culpa, medo, ansiedade e raiva vão surgir. Quando o médico fala menos, permite espaço para a família absorver a informação e expressar suas preocupa‑ ções. Os pais e os familiares desejam discutir questões emo‑ cionais, mas muitas vezes não conseguem trazer essa questão espontaneamente para a discussão; • informar sem retirar totalmente a esperança. Muitos pais re‑ latam a necessidade de manter a esperança, mesmo sabendo que as chances são mínimas. Notícias difíceis devem ser da‑ das preferencialmente por pessoas conhecidas; • cuidar dos irmãos. Os irmãos de crianças internadas em UTI também têm necessidades especiais. Se o médico despende al‑ guma atenção aos irmãos, isso é muito apreciado pela família; • manter um fluxo de informação com rotinas e horários. A pon‑ tualidade na informação é importante, pois atrasos geram mui‑ ta ansiedade. É importante descrever e explicar sobre exames e procedimentos realizados na urgência sem o consentimento ou a presença dos pais. Em situações emergência, quando a crian‑ ça apresenta muita instabilidade e ocorrem mudanças rápidas, podem-se manter os pais informados por meio de diálogos cur‑ tos e frequentes. A incerteza no prognóstico pode ser compen‑ sada pelo estabelecimento de metas a curto prazo e reavaliação diária dos objetivos. Por exemplo, “neste momento, nossa prio‑ ridade é controlar a infecção”. É necessário para a família saber que, apesar das dúvidas, existe um plano de investigação e tra‑ tamento que está sendo seguindo pela equipe assistente; • informar toda a equipe sobre tratamento e prognóstico. Men‑ sagens contraditórias quebram a confiança na equipe e geram dúvidas e medos. Como facilitar a comunicação com a família Algumas condutas simples podem facilitar muito a comunicação com a família; a seguir, as mais descritas na literatura.
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1. Permitir aos pais atuarem dentro do hospital. Outra impor‑
tante recomendação é em relação à permissão dos pais reali‑ zarem cuidados sob supervisão ou juntamente com a enfer‑ magem. O objetivo é que a família não se sinta intrusa ou uma visita, mas também responsável pelo cuidado. Os pais preci‑ sam manter uma sensação de controle sobre a vida e os cuida‑ dos dos seus filhos, como parte de seus papéis de protetores e provedores da criança. 2. Tratar a dor e outros sintomas. O manejo adequado da dor aparece como um fator de estresse frequentemente relatado pelos familiares e deve ser sempre prioridade no atendimento. 3. Atentar para outros atores responsáveis pelo suporte familiar. Pais percebem como muito útil a presença de outros familia‑ res e amigos, assim como a de padres, pastores ou outros reli‑ giosos, para dar suporte emocional. Isso é ainda mais impor‑ tante para aquelas famílias que perdem uma criança. Amigos e religiosos auxiliam durante a internação e continuam dando suporte após esse período. 4. Respeitar diferentes crenças. A fé é muito importante para os pais, especialmente se o estado da criança está muito grave ou ela morre. Permitir rituais e práticas, como rezar, e a pre‑ sença de um pastor ou padre pode ser útil para diminuir a an‑ gústia da família e dar conforto.9,10
Considerações finais Muito se tem estudado sobre como melhorar a comunicação entre médico e paciente/família. Já se sabe que existem vá‑ rios problemas de comunicação e que a má comunicação pode deixar marcas por longo tempo em quem recebeu as notícias. Os alunos de graduação e pós-graduação deveriam receber treinamento em habilidades de comunicação como parte do seu aprendizado. Para os próprios médicos, as dificuldades de comunicação podem ser um gerador de estresse, com prejuízo para eles mesmos e para o atendimento dos pacientes. Está demonstrado que os médicos podem adquirir conhecimento e melhorar suas habilidades nessa área. Enquanto se espera por mais evidências, recomenda-se uma abordagem sensível, ho‑ nesta, clara e focada nas necessidades individualizadas de cada paciente e da sua família, com base nos protocolos assis‑ tenciais já validados.10-13 Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Avaliar a importância da boa comunicação na assistência de pacientes em cuidados paliativos. • Identificar os fatores relacionados à comunicação de más notícias e à preferência das famílias.
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• Aplicar os protocolos para comunicação de más notícias, seguindo os 6 principais passos (preparo da entrevista, percepção do paciente e seus familiares, convite ao diálogo, transmissão de conhecimento, demonstração de sentimento e organização de um plano). • Estar apto a facilitar o entendimento da família sobre a situação clínica do paciente e a apoiar no que for necessário, inclusive no luto.
Referências bibliográficas 1.
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CAPÍTULO 7
SUPORTE À EQUIPE ASSISTENCIAL Neulânio Francisco de Oliveira Patricia Miranda do Lago
Introdução O conceito de cuidados paliativos se transformou ao longo do tempo. Inicialmente, entendia-se como medicina paliativa a oferta de cuidados médicos destinados a pacientes sem pers‑ pectiva de cura de suas enfermidades.1 Com a evolução dos es‑ tudos sobre o tema, a Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs uma nova definição, segundo a qual os cuidados palia‑ tivos não incluem apenas a doença incurável em sua fase final, mas, sim, um conjunto de medidas aplicadas ao paciente, o mais precocemente possível, após o diagnóstico de toda e qualquer doença crônica de caráter evolutivo e fatal.2 Para que os cuidados possam ser oferecidos aos pacientes, não apenas a prática médica estará envolvida, mas um con‑ junto de ações de uma equipe multidisciplinar de cuidados, com envolvimento de profissionais como enfermeiros, fisiote‑ rapeutas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, entre ou‑ tros.1 A prática colaborativa desses profissionais, que deve in‑ cluir coesão, decisão compartilhada, verdade, respeito, apoio mútuo e satisfação no trabalho, é o que resultará em uma as‑ sistência adequada aos pacientes.3 Considerar, então, o conjunto de atividades desses profissio‑ nais dentro do contexto de cuidados paliativos pode não ser uma tarefa muito fácil. De maneira mais simplista, poder-se-ia dizer que durante a formação acadêmica, cada profissional aprende a atuar diante do seu paciente, de acordo com suas atribuições. No entanto, quando se trata do paciente terminal ou daquele em cuidados paliativos, diversas variáveis estão envolvidas, como a formação profissional sem a devida abordagem desse tema, a sensação de impotência diante do paciente sem perspectiva de cura, a relação com os familiares e seus possíveis conflitos, a re‑ lação da própria equipe multiprofissional entre si, dentre outras. Para se alcançar o sucesso diante desse desafio, faz-se necessária a abordagem ou intervenção para que o grupo de fato se torne uma equipe e consiga evoluir para uma abordagem multiprofis‑ sional do cuidado, conforme abordado anteriormente.4 Ouvir profissionais envolvidos no cuidado de pacientes em cuidados paliativos, quando lidam com a possibilidade da morte e não tiveram treinamento durante o período de forma‑
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ção, além da falta de experiência com esse perfil de pacientes, deixa claro que existe uma angústia iminente, quando há ao mesmo tempo a vontade de prestar uma boa assistência, mas também a dificuldade em participar, junto com o paciente e a família, do enfrentamento do processo da possível morte.5 O treinamento adequado da equipe para prestar cuidados paliativos, a existência de um modelo ou protocolo de inter‑ venção diante desses casos e um suporte para familiares/cui‑ dadores e para os profissionais envolvidos com a assistência podem auxiliar a obtenção de melhor resultado deste trabalho.6 Os textos e os trabalhos publicados acerca do suporte em cuidados paliativos, em sua grande maioria, referem-se ao su‑ porte dado aos pacientes e a seus familiares. Isso demonstra a necessidade de se abordar cada vez mais o suporte à equipe multidisciplinar de assistência ao paciente terminal ou em cui‑ dado paliativo, uma vez que o profissional está inserido nesse contexto e não pode se eximir dos dilemas inerentes a ele. Repercussão da assistência ao paciente em cuidados paliativos À medida que o serviço de cuidados paliativos cresce, crescem com eles as demandas referentes aos seus pacientes. Com isso, crescem tembém a pressão e a responsabilidade do trabalho, culminando em estresse emocional e o burnout nos profissio‑ nais da equipe.7 Para a equipe médica, assistir o paciente terminal ou em cuidados paliativos pode gerar um sentimento de insucesso ou impotência. Isso causa uma tendência a um distanciamen‑ to do paciente e/ou de seus familiares.3 No ambiente de uma unidade de terapia intensiva (UTI), por exemplo, muitas vezes, a notícia do óbito chega a ser transferida para os menos experientes, como os médicos resi‑ dentes, ou até para outros profissionais, por exemplo, para o enfermeiro ou para o assistente social. Mesmo para a equipe de enfermagem, que parece estar mais voltada para uma atitude mais humanizada, lidar com a morte ou a impossibilidade da cura gera sentimentos como angústia e impotência.
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2472 • TRATADO DE PEDIATRIA • SEÇÃO 30 MEDICINA PALIATIVA
O psicólogo, profissional mais habituado com a figura da morte, na vivência do grupo de cuidados paliativos, parece ne‑ cessitar de um aprofundamento nas relações com a equipe e com o paciente e seus familiares, buscando uma forma madu‑ ra de encarar o adoecimento e a morte.3 Enfim, o envolvimento de toda a equipe no universo dos cuidados paliativos poderá vir a gerar sentimentos de estresse psicológico e burnout. A literatura demonstra que eles não acontecem mais nos profissionais que trabalham com cuida‑ dos paliativos, mas, de fato, acontece com eles, o que é rele‑ vante e exige que estratégias de enfrentamento sejam criadas.3 Suporte à equipe de assistência As ferramentas para se criar e se manter uma equipe eficaz de cuidados paliativos não são ensinadas na formação acadêmica do profissional, ainda que isso seja fundamental quando se trata de uma oferta de cuidados de boa qualidade. Logo, tam‑ bém é difícil estabelecer um modelo de suporte para a equipe assistencial. Elas variam de acordo com suas lideranças, os re‑ cursos disponíveis e as iniciativas de cada grupo.7 Na Europa, por exemplo, é dado enfoque maior a esse su‑ porte para se evitar o burnout. Já em uma experiência relatada em um grupo no Brasil, o objetivo maior foi preparar os profis‑ sionais para a construção do grupo de cuidados paliativos.3,8 A OMS lançou um instrumento orientador sobre os cuida‑ dos paliativos, abordando o manejo da dor e os cuidados de fi‑ nal de vida. Nesse instrumento, existe uma diretriz acerca dos cuidados com o cuidador, incluindo-se aí o profissional que presta a assistência.9 Dentro dessas orientações, incluem-se: 1. Reconhecer sinais e sintomas de estresse e burnout: • irritabilidade, raiva; • má qualidade do sono e baixa concentração; • fadiga; • falta de prazer nas atividades; • recorrer a álcool ou outras drogas; • medo de sofrer. 2. Prevenir e combater esses sinais e sintomas: • ser confiante de que dispõe dos recursos e meios para ofe‑ recer os cuidados ao paciente e à família; • definir para si mesmo qual o significado de cuidar; • evitar o que causa estresse; • usar estratégias que foquem no problema e não nas emo‑ ções; • mudar a abordagem do cuidado (dividir o trabalho em par‑ tes menores, ajustar o ritmo da prestação de cuidados, pe‑ dir ajuda a outras pessoas, encorajar o paciente a também cuidar de si mesmo, quando possível); • usar técnicas de relaxamento, como respirar profunda‑ mente; • cuidar da sua vida fora do trabalho (família, amigos, ou‑ tros interesses); • ter um tempo de folga regularmente; • cuidar da própria saúde; • ser ciente de que não pode fazer tudo e precisa de ajuda; • dividir os problemas com os colegas;
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• ter um tempo na semana para discutir os problemas dos pacientes juntos; • organizar sua vida social, atividades sociais. Considerações finais Existem grandes desafios na atuação profissional da equipe de cuidados paliativos. Dentre eles, a capacidade de se promover uma assistência multidisciplinar coesa e colaborativa, a clareza para reconhecer os riscos de se envolver física e emo‑ cionalmente no processo, o que pode trazer consequências desgastantes individualmente e para todo o grupo e, por fim, estabelecer estratégias para prevenção e enfrentamento des‑ ses riscos. São fundamentais o papel das lideranças de cada serviço ou grupo e o reconhecimento por parte dos gestores do valor do trabalho desempenhado por esses profissionais e da necessidade de suporte estrutural e psicológico à equipe de cuidados paliativos para a melhoria progressiva da qualidade da assistência prestada ao paciente dependente desse cuidado. Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: • Conhecer a nova definição de cuidado paliativo. • Compreender o papel da equipe multiprofissional de assistência ao paciente em cuidado paliativo. • Definir burnout. • Reconhecer sinais e sintomas de estresse profissional e burnout. • Relacionar ferramentas para identificar precocemente e combater os sinais e os sintomas relacionados ao estresse profissional.
Referências bibliográficas 1. 2.
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ÍNDICE REMISSIVO
A
Abdome agudo 179 diagnósticos diferenciais 179 principais etiologias 179 Abordagem genética do recém‑nascido 825 Abordagem ginecológica 2193 Abscesso peritonsilar 1679 retrofaríngeo 134 Abscesso pulmonar 1755 agentes etiológicos 1756 diagnóstico 1756 epidemiologia 1755 evolução e prognóstico 1757 microbiologia 1755 patogênese 1755 quadro clínico 1755 tratamento 1757 Abuso de substâncias 106, 109 definições 109 diagnóstico 110 epidemiologia 110 prevenção 113 prognóstico 111 tratamento 111 Abuso sexual 100, 374, 379, 387 avaliação clínica 101 conduta 102 manifestações clínicas 100 Acantose nigricante 670 Acidemia glutárica tipo I 840 metilmalônica 839 orgânicas tratáveis 838 Acidente vascular encefálico 1983 anemia falciforme 1985 aspectos epidemiológicos 1983 condições pró‑trombóticas 1986 diagnóstico diferencial 1987 doença cardíaca 1984 doença de moyamoya 1985 etiologia e fatores de risco 1984 hemorrágico 1986 manifestações clínicas 1987 métodos diagnósticos por imagem 1988 período perinatal 1984
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tratamento 1988 Acidente(s) com animais peçonhentos 230 aranhas 232 escorpiões 232 himenópteros 235 ictismo 236 lepidópteros 234 serpentes 230 de captação 81 de trânsito 109 de transporte 88 na infância 84 prevenção 84 vascular cerebral 1372, 1377, 1595, 1598 evolução 1374 hemorrágico 1372 isquêmico arterial 1372 sintomas e sinais de alerta no período perinatal 1373 Ácido úrico 1185 Acidose(s) metabólica 1174, 1952 respiratória 1954 tubulares renais 1181 renal tipo I ou distal 1181 renal tipo II ou proximal 1181 renal tipo IV 1181 Acne 599 abordagem terapêutica 602 aspectos psicológicos 602 aumento da produção do sebo 600 classificação 600 comedoniana não inflamatória 602 descamação anormal 601 epidemiologia 599 etiopatogenia 599 hiperqueratinização folicular 600, 601 inflamatória 600 liberação de mediadores da inflamação na pele 600 manifestações clínicas 600 medidas complementares 602 nodular moderada, com nódulos pequenos 602 papulopustular 602
moderada 602 presença e atividade da bactéria Propionibacterium acnes 600 severa nodular/conglobata 602 tratamentos 601 Acompanhamento pré‑natal 323 Acondrodisplasia 861 Acromegalia 2277 Ad‑internet 106 Adenite 1812 Adenomegalia cervical 1828 Adenovírus 726, 2265 Adolescência 353, 363, 368, 2194 características próprias 370 crise de identidade 369 desenvolvimento psicossocial 368 marco inicial 354 marcos do desenvolvimento 355 problemas ginecológicos 2194 Adolescentes com deficiência 386 educação da criança com deficiência 386 sexualidade 387 em situação de risco 384 Adrenalina 1905 Adrenarca precoce 642 Aerofagia 752, 754 Afecções cervicais 2096 Afecções pulmonares congênitas 2045 anatomopatologia 2051 classificação 2046 diagnóstico por imagem 2048 embriologia 2045 quadro clínico 2047 tratamento 2050 Afogamento 88, 164 classificação 166 epidemiologia 164 fisiopatologia 165 prevenção 166 prognóstico 165 tratamento 165 Afogamentos 73, 81, 87 Aftas 1812 Aganglionose cólica total 2151
extensa com comprometimento do intestino delgado 2076 Agenesia anorretal sem fístula 2093 dental 2330 do corpo caloso 2274 Agentes catecolaminérgicos 540 inotrópicos 540 Água 1926 Albinismo 2276 Albumina 1610 Alcalose metabólica 1954 Alcalose respiratória 1955 Álcool 109, 113 Aldosterona 1927 Aleitamento materno 2344 benefícios para a saúde bucal 2344 Aleitamento materno 315, 322, 334, 339, 1408 benefícios 339 desenvolvimento dento‑orofacial 2345 desenvolvimento do paladar e prevenção da cárie dentária 2344 desmame 320 orientações 325 problemas 334 abscesso mamário 337 bloqueio de ductos lactíferos 336 candidíase 335 dor 334 fenômeno de Raynaud 335 ingurgitamento mamário 335 mastite 336 trauma mamilar 334 recomendações quanto à duração 315 Alérgenos alimentares 431 Alergia a himenópteros 441 diagnóstico 442 epidemiologia 441 fisiopatologia 441 manifestações clínicas 441 prevenção 443 tratamento 442
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I-II • TRATADO DE PEDIATRIA
Alergia alimentar 431, 775 mediada por IgE 431 diagnóstico 432 dieta de exclusão 433 dosagem de IgE específica 433 exame físico 432 exames laboratoriais 432 fisiopatologia 432 história natural 434 manifestações clínicas 432 prevenção 435 testes cutâneos imediatos 432 de provocação oral 433 tratamento 433 Alergia ao leite de vaca 775 diagnóstico 778 fisiopatologia 776 manifestações clínicas 776 tratamento 781 Alergia ocular 422, 2267 classificação 423 diagnóstico 423 fisiopatologia 422 manifestações clínicas 423 medicamentos oftalmológicos tópicos 424 tratamento 424 Alfentanil 1920 Alimentação 1407, 1467, 2348 complementar 1411 do adolescente 1416 do escolar 1415 do lactente 1408 do pré‑escolar 1413 enteral 2086 para crianças não amamentadas 1412 para lactentes 1412 saudável 1408 Alta hospitalar 17 alta a pedido de terceiros 18 alta à revelia 20 alta por indisciplina 19 tipos 18 Alta miopia 2277 Alteração(ões) congênitas da córnea 2263 da regulação das paratireoides 696 do mecanismo acidobásico 1173 no perfil lipídico 672 Alucinógenos 110, 114 Amadurecimento psicológico 375 Amamentação 315, 323, 328, 339 em situações especiais 328 farmacologia e amamentação 339 método canguru 330 segurança dos fármacos 340 técnica 318 Amaurose congênita de Leber 2275, 2276 Ambiente de trabalho agrícola 87 Ambliopia 2303 anisometrópica 2303 desafios 2305 diagnóstico 2304 epidemiologia 2303 por alto grau de refração bilateral 2304 por estrabismo 2303 por privação visual 2304 prevenção 2305
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prognóstico 2305 quadro clínico 2303 tratamento 2304 Amelogênese imperfeita do tipo hipomineralizada 2376 hipoplásica 2375 Amicacina 905 Aminoácidos 1506 Aminoacidúrias 1176 Aminoglicosídeos 909, 927 Aminopenicilinas 920 Amiotrofia espinhal infantil 1361, 1363 Amoxacilina‑ácido clavulânico 908 Amoxicilina/clavulanato 921 Ampicilina 906, 920 Ampicilina‑sulbactam 908, 922 Anafilaxia 445 diagnóstico 446 diferencial 446 epidemiologia 445 etiologia 445 manifestações clínicas 446 patogênese 445 prevenção de recorrências 450 sinais e sintomas 447 Analgesia 1917 controlada pelo paciente 1921 em pediatria 1918 local e regional 1921 Analgésicos não opioides com atividade antipirética 1918 opioides 1918 Análise da microscopia urinária 1097 Anel vaginal 2225 Anemia(s) 1155, 1528 classificação e causas 1529 de Fanconi 1613 diagnóstico clínico 1529 diagnóstico diferencial 1528 diagnóstico laboratorial 1531 epidemiologia 1529 falciforme 2276 tratamento 1533 Anencefalia 2274 Anfotericina B 913 Anfotericina B desoxicolato 913 lipossomal 914, 1035 Angeíte leucocitoclástica cutânea 1802 Angioedema 416, 418 adquirido 418 diagnóstico 417, 420 epidemiologia 416 etiopatogenia 416 manifestações clínicas 417 tratamento 420 Angiofibromas faciais 1387 Angioma cutâneo 1388, 1389 em tufo 596 leptomeníngeo 1389 Angulação normal dos joelhos 2014 para os joelhos da criança 2015 Animais de grande porte 87 peçonhentos 89 Aniridia 2276 Anisometropia 2303 Anomalia de Ebstein 484 Anomalia de Peters 2263
Anomalia/síndrome de Axenfeld 2263 Anomalia/síndrome de Rieger 2263 Anomalias anorretais 2091 anomalias associadas 2092 avaliação 2092 classificação 2091 com fístula retouretral 2093 embriologia 2091 incidência 2091 resultados 2094 Anomalias branquiais 2096, 2099 Anomalias da língua mais frequentes 2329 Anomalias do segundo aparato branquial 2100 Anomalias estruturais dos autossomos 857 Anomalias mais frequentes encontradas na mucosa oral dos bebês 2328 Anomalias palpebrais 2253 Anomalias vasculares 2096, 2101 Anorexia 1490 nervosa 105 Anquiloglossia 2329 Anquilose 2330 Antagonista da aldosterona 542 de receptor de leucotrieno (montelucaste) 464 do receptor H2 da histamina 713 Anti‑inflamatórios não esteroides 720 não hormonais 1776 Antibióticos betalactâmicos 906 efeitos adversos 904 em infecções comunitárias 918 interpretação dos resultados 905 motivo e tempo de uso 905 no hospital 904 via de administração 904 Antifúngicos triazólicos 912 Antimicrobianos 904 Antimoniato de N‑metilglucamina 1035 Antropometria 1399 Apendicite aguda 181, 2137 complicações 2139 conduta 2139 diagnóstico 2137 diferencial 2138 etiopatogenia 2137 exames laboratoriais e imagenológicos 2138 Aplasia cútis 560, 826 Apneia da prematuridade 1212 Aptidão física 2033 Arritmia(s) 474, 1907 Arterite de Takayasu 1807, 2276 Artralgia 1769 Artrite 1767, 1802 Artrite gonocócica 1817, 2290 Artrite idiopática juvenil 1773 diagnóstico 1776 epidemiologia 1773 etiologia 1773 quadro clínico 1773 sistêmica 1812 tratamento 1776, 2290 tratamento farmacológico 1776 Artrite indiferenciada 1775
Artrite meningocócica 1818 Artrite poliarticular 1775 Artrite psoriásica 1775 Artrite reativa (pós‑infecciosa) 1820 Artrite relacionada à entesite 1775 Artrite séptica 1816, 2010 complicações 2012 diagnóstico diferencial 2011 exames complementares 2011 fisiopatologia 2011 quadro clínico 2011 tratamento 2011 Artrites infecciosas bacterianas 1816 Artrites virais 1819 Asfixia(s) 73 perinatal 1286 diagnóstico 1286 neonatais 1346 Asma 453, 461, 1868 aguda grave 1868 classificação da intensidade das crises 1869 epidemiologia 1868 fisiopatologia 1870 manejo terapêutico 1870 plano de alta 1878 apresentação clínica 461 avaliação da gravidade 462 da exacerbação 462 critérios para hospitalização 465 diagnóstico 453 diagnóstico diferencial 462 em lactentes 454 manejo da crise em casa 462 em serviço de urgência 462 no ambulatório 454 profilaxia 458 tratamento da crise asmática na emergência 463 profilático 465 Assimetria de pregas 1999 Associações de betalactâmicos com inibidores de betalactamases 908 Associações de penicilinas com inibidores de betalactamases 921 Astrocitoma(s) 1582 de células gigantes 1388 Astrovírus 726 Ataxia(s) 1375 agudas 1375 autossômicas recessivas 1378 cerebelar aguda pós‑infecciosa 1375 com apraxia oculomotora tipo I 1379 tipo II 1379 com deficiência de vitamina E 1379 crônicas 1377 adquiridas 1378 hereditárias progressivas 1378 não progressivas congênitas 1377 de Friedreich 1378 episódicas 1377 mitocondriais 1379 telangiectasia 1378, 1389 Atenção integral 56 primária 56 Atendimento odontológico 2325
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Índice remissivo •
Atestado médico 15, 2435 Atividade fibrinolítica 1526 Atividade física 1454, 1456, 1467 Atividades físicas em crianças e adolescentes 2433 indicações e contraindicações 2433 Atraso puberal 366 Atresia(s) brônquica 1710 das vias biliares 2111 de esôfago sem fístula 2061 do esôfago 2060 classificação 2060 complicações 2063 diagnóstico 2062 embriologia 2060 malformações associadas 2062 quadro clínico 2062 tratamento 2062 do piloro 2167 duodenal 2065 intestinal 2068 classificação 2068 diagnóstico 2069 diagnóstico diferencial 2070 embriologia 2068 evolução 2072 tratamento 2070 jejunoileais 2069 pulmonar com CIV 523 com septo interventricular íntegro 480 com septo ventricular íntegro 522 retal 2093 traqueal 1707 tricúspide 482 Atrofia cerebelar 1390 girata 2275, 2276 Atropelamento 71, 76 Atuação do cirurgião‑dentista no ambiente hospitalar 2378 Audição 60 Audiometria tonal liminar 1641 Ausculta cardíaca 511 Autismo 879 Autismo infantil 268, 273 conceito 268 continuum autístico 270 déficit afetivo 269 cognitivo 269 diagnóstico 269 psicofarmacoterapia 275 teoria afetiva 269 cognitiva 271 Autoagressão 92, 104 comportamento de risco 104 epidemiologia 107 prognóstico 107 tratamento 107 Autoanticorpos 1616 Autoestima 374 Autoinflamação, deficiência de anticorpos e alterações imunológicas associadas ao PLCG2 1814 Autonomia 17, 33 Autorreferência 374
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Avaliação cardiovascular do adolescente Atleta 2429 da capacidade de concentração urinária 1175 do estado nutricional 1399 do manuseio de potássio 1175 do manuseio de sódio 1174 do manuseio renal de cloro 1175 nutricional 1437 Avulsão dental 2406 Azitromicina 926
medidas preventivas 1728 patogênese 1721 tratamento 1723 Bulimia 105 Bullying 116, 121, 360, 386 avaliação 117 diagnóstico 117 epidemiologia 116 fatores causais 116 medidas preventivas 119 repercussões 117 Bupivacaína 1921
B
C
Bactérias multirresistentes controle 929 disseminação 929 principais mecanismos 932 Baixa estatura 873 classificação 875 contexto genético 873 causas de baixa estatura genética 875 principais genes envolvidos na baixa estatura e o resultado de sua mutação 875 critérios para avaliação 873 investigação 874 Baixo débito sistêmico 518 Baixo peso ao nascer 1185 Baixo rendimento escolar 289, 290 Balanço hidreletrolítico no recém ‑nascido 1223 Balão autoinflável 1218 Banco de leite humano 329 Barbitúricos 1922 Barotrauma 1663 Basofilia 1517 Benzodiazepínicos 1921 Betabloqueadores 541 Betalactâmicos clássicos 918 Bilirrubina conjugada 1096 Bioética 5, 9, 28 social 30 Blefarite anterior 2266 Boletim de Silverman‑Andersen 1278 Bolha de sucção 556 Botulismo 1361 Braquicefalia 1331 Brometo de ipratrópio 463 Bromoprida 713 Broncodilatadores inalados de curta ação (beta2‑agonista) 463 Broncomalácia 1708 Bronquiectasias 1712 diagnóstico 1714 epidemiologia 1712 etiologia e classificação 1712 fisiopatogenia e anatomopatologia 1713 prevenção 1718 quadro clínico 1713 Brônquio traqueal 1710 Bronquiolite aguda 1730, 1731 Bronquiolite viral aguda 1720 critérios de admissão hospitalar 1724 critérios de alta hospitalar 1728 diagnóstico 1721 epidemiologia 1720
Calázio 2255, 2266 Calcinose 1791, 2277 em cotovelo 1796 Cálcio 691, 1416, 1417, 1432, 1461, 1507 Calcitonina 693 Cálculo(s) da estatura estimada 1479 urinários 1126 Calendários de vacinação 1079 Canal de Cloquet 2274 Câncer 1463, 1487, 1534 avaliação nutricional 1488 diagnóstico e quadro clínico 1535 diagnóstico precoce 1534 epidemiologia 1463, 1534 etiologia e fatores de risco 1463 fatores de risco 1534 nutrologia 1463 pediátrico 1570 prevenção 1464, 1537 sinais e sintomas 1536 terapia nutricional 1487 terapia nutricional 1488 tratamento e prognóstico 1536 Cancro mole (cancroide) 1014 Candidíase 571 da área de fraldas 572 genital 1018 oral 571 pseudomembranosa 2389 Cannabis 109 Cânulas traqueais 1218 Carbapenêmicos 909 Carbenicilinas 921 Cardiopatias com apresentação no período neonatal 516 cenários clínicos principais nas cardiopatias canal ‑dependentes 517 definição de cardiopatias congênitas críticas e canal ‑dependentes 516 descrição das principais cardiopatias congênitas canal‑dependentes 522 diagnóstico de cardiopatia congênita canal ‑dependente 518 transição da circulação fetal para a neonatal 516 transporte do recém‑nascido com cardiopatia congênita 521 tratamento inicial das cardiopatias canal ‑dependentes 520
I-III
com fluxo pulmonar dependente do canal arterial 522 com fluxo sistêmico dependente do canal arterial 524 congênitas 471 aspectos clínicos e fisiopatológicos 471 características clínicas 473 com circulação em paralelo 527 esquema diagnóstico 472 triagem neonatal de cardiopatia congênita crítica 496 que se manifestam com arritmia 494 que se manifestam com cianose 474 que se manifestam com insuficiência cardíaca 484 que se manifestam por sopro cardíaco 492 Cardiopatias 1474 desnutrição 1474 efeitos da cardiopatia sobre o estado nutricional 1474 estratégia nutricional no período pós‑operatório de cirurgia cardíaca 1476 estratégia nutricional no pré ‑operatório de cirurgia cardíaca 1474 terapia nutricional 1474 Cardite 1768 Cárie 2369 estágios de desenvolvimento das lesões no quadro de cárie severa na primeira infância 2370 da primeira infância 2369 dentária 2339, 2399 desenvolvimento 2340 efeito do fluoreto 2339 Cariótipo 851 Casa segura 72 Catarata 842 congênita 2310 infantil 2297 cataratas hereditárias e formas de herança 2297 classificação 2298 complicações 2302 doenças/síndromes associadas 2299 epidemiologia 2297 etiologia 2297 exame oftalmológico 2299 investigação clínico‑laboratorial 2300 quadro clínico 2299 tipo morfológico 2299 tratamento 2301 Catecolaminas 1905 Cateterismo cardíaco 521 Cavidade bucal 2327 características morfológicas 2327 doenças e sua manifestação 2332 exame clínico 2327 exame Físico 2327 Caxumba 1819 Cefaleia 1381 causas 1381 primária 1381 síndromes periódicas 1382
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I-IV • TRATADO DE PEDIATRIA
tratamento 1382 Cefalosporinas 907, 922 de primeira geração 907 de quarta geração 908 de segunda geração 907 de terceira geração 907 Cefotaxima 908 Ceftazidima 908 Ceftriaxona 907 Cegueira noturna congênita estacionária 2275 Células epiteliais 1097 Celulite 564 Cepas produtoras de AmpC 932 de carbapenemases 932 de ESBL 932 Ceratite herpética dendrítica 2265 bacterianas 2265 Ceratocone 2267 Ceratoconjuntivites infecciosas 2264 Cerebelite aguda 1376 Cérebro 1330 Cetoacidose diabética 169 complicações 173 diagnóstico 170 etiologia 170 fisiopatologia 169 tratamento 170 Cetonas 1096 Chikungunya 1819 Chlamydia trachomatis 2266 Choque 209, 216, 1255, 1959 cardiogênico 212, 1961 diagnóstico 210, 1960 diferencial 211, 1961 distributivo 211, 1961 elétrico 71 epidemiologia 209 fisiopatologia 209, 216, 1959 hipovolêmico 211, 1961 monitoração 217 obstrutivo 212, 1962 séptico 216 tratamento 213, 1962 Cianose 472, 509 Ciclo da ureia 840 Cidadania 34 Cifose 2005 Cilindros 1097 Cinetose 1382 Circulação extracorpórea 1903 fetal 517 Circunferência abdominal 1401, 1448 de pescoço 1401 do braço 1401, 1402 corpóreas 1400 Cirurgia cardíaca pediátrica 1903 complicações do pós‑operatório 1907 pós‑operatório 1903 manejo clínico 1904 monitoração 1903 Cistinose nefropática 1182 Cistinúria 1132 Cisto broncogênico 1711, 2045, 2047 Cisto(s) de colédoco 2113 de erupção 2385
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de mília 556 dermoide(s) 2096, 2099 do ducto tireoglosso 2096, 2097 gengival do recém‑nascido 2383 hematoma de erupção 2330 renais em síndromes hereditárias 1161 renal simples 1162 tímicos 2100 vitelino 2136 Citomegalovírus 1305, 2289 diagnóstico 2290 tratamento 2290 Claritromicina 926 Classificação das doenças genéticas 828 Clearance de creatinina em crianças 1153 em lactentes 1153 Cleptomania 265 Cloaca 2094 Clonazepam 1273 Clonidina 1923 Cloranfenicol 926 Coagulação 1525 intravascular disseminada 1616 Coalescência de pequenos lábios 2239 diagnóstico 2239 epidemiologia 2239 fisiopatologia 2239 prognóstico 2240 tratamento 2240 Coalizão tarsal 2030 Coarctação da aorta 488, 525 Cobre 1433 Cocaína 114 Código de Ética Médica 10, 12, 26, 35 Código mundial antidopagem 2425 Colestase neonatal 798 abordagem terapêutica 803 complicações 804 diagnóstico 800 Coleta de amostra urinária 1093 Colete de Milwaukee 2005 Cólica do lactente 752, 754 Colite infecciosa 2131 Coloboma de disco óptico 2273, 2274 anormalidades sistêmicas associadas 2274 Coloboma macular típico 2276 Colostro 317, 330, 339 Coma 196 avaliação da criança em coma 197 avaliação do nível de consciência 198 etiologia 196 investigação laboratorial 201 prognóstico 203 tratamento 202 Complexo esclerose tuberosa 1387 Comportamento sexual 373 Composição corporal 1405, 1480 Compressão da medula espinal 1568 vascular da traqueia 1710 Compulsão alimentar 105 Comunicação broncodigestiva 2045, 2047 interatrial 492 interventricular 484 com hiper‑resistência vascular pulmonar 486
grande 486 justa ‑arterial duplamente relacionada 485 justatricuspídea 485 moderada 486 muscular 485 pequena 485 perimembranosa 484 Concentrado de fatores de coagulação 1610 de hemácias 1607 de plaquetas 1608 Concussão 1376, 1971 Condiloma acuminado 1020 Condrogênese 861 Congestão circulatória 1134, 1136 Conjuntivite(s) 2264 alérgica aguda 2267 alérgicas sazonal e perene 2267 atópica 2267 bacterianas 2265 cicatriciais 2266 gonocócica 2266 com perfuração ocular 2265 neonatais 2266 por clamídia 2266 primaveril ou vernal 2267 química 2266 vernal 2267 Consentimento informado 36 Constipação funcional 754 em escolares e adolescentes 753 em lactentes 753 intestinal 764 crônica 766 diagnóstico 766 epidemiologia 765 prevenção 768 prognóstico 768 quadro clínico 765 tratamento 767 Consulta de puericultura 52 do adolescente 354 Contracepção de emergência 2225 Contracepção na adolescência 2222 escolha do método contraceptivo 2222 Contraceptivos hormonais hormonais combinados orais de baixa dosagem 2224 hormonais injetáveis 2224 orais apenas com progestagênio 2224 Contusões 81 intraparenquimatosas 1974 Convulsões neonatais 1268 aspectos clínicos 1269 causas 1269 classificação 1269 diagnóstico 1270 etiologia 1268 exames complementares 1270 familiares benignas 1320 fisiopatologia 1268 prognóstico 1274 tratamento 1272 Coqueluche 994 complicações 995 diagnóstico 995 diferencial 995
epidemiologia 994 etiologia 994 patogenia 994 prevenção 997 prognóstico 997 quadro clínico 995 tratamento 996 Coreia 1768 Córnea plana 2263 Coroideremia 2276 Corpo estranho na vagina 2214 Cortes 81 Corticosteroide sistêmico 463 Craniofaringioma 1585 Crescimento 63, 625 alterado 628 alta estatura 628 baixa estatura 628 avaliação 65 causas para deficiência de hormônio do crescimento 630 condições 625 curvas de crescimento 63, 627 déficit no crescimento 628 elementos para avaliar 626 estatura‑alvo 625 hormônios e fatores necessários 625 maturação esquelética 64 na infância 626 pós‑natal 64, 626 puberdade 626 relação segmento superior/ segmento inferior 629 tratamento com hormônio do crescimento humano recombinante 632 velocidade de crescimento por idade 626 Crescimento 873, 1470 fetal restrito 1209 Criança com problemas auditivos 1650 Criança e adolescente dependentes de tecnologia 2458 acompanhamento domiciliar 2459 alta domiciliar 2458 epidemiologia 2458 formas de apresentação clínica 2458 plano terapêutico 2458 Crioprecipitado 1609 Criptorquidismo 2160 Crise asmática 461 epiléptica 205 convulsão febril 207 crises neonatais 207 etiopatogênese 205 exames complementares 206 manifestações clínicas 206 tratamento 207 Crise(s) aplástica 1595, 1598 convulsiva(s) 1268 febris 951 de sequestro esplênico aguda 1595, 1598 epilépticas 1326 febril 1315 diagnóstico diferencial 1316 diagnóstico e tratamento 1316 epidemiologia 1315
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Índice remissivo •
genética 1316 prognóstico 1317 hemolítica 1595 não epilépticas 1342 fisiológicas 1342 psicogênicas 1344 vaso‑oclusiva dolorosa 1597 Cristais 1097 Critério de Rochester 901 Cromossomo 13 em anel 859 Cromossomopatias 851 implicações na natimortalidade infantil 851 Crupe espasmódico 132 viral 130 Cuidados de saúde preventivos 56 Cuidados paliativos 2471 em final de vida 2461 controle dos sintomas 2463 medicações 2464 em neonatologia 2449 cuidados com os familiares 2451 limitação de tratamento 2450 tratamento paliativo perinatal 2449 em pediatria 2445 aspectos éticos 2445 estratégias de comunicação 2462 suporte à equipe assistencial 2471 Curva de crescimento 1479
D
Dacriocistorrinostomia 2254 Débito urinário 1227 Defeito(s) de desenvolvimento de esmalte 2398 de desenvolvimento dentário 2374 do desenvolvimento das paratireoides 696 do septo atrioventricular total 490 esternais 2105 Deficiência congênita de lactase 786 de adenosina desaminase 2 1814 de adesão leucocitária tipo I 1571 de adesão leucocitária tipo II 1572 de glicose‑6‑fosfato desidrogenase nos leucócitos 1575 de glutationa peroxidase 1575 de mieloperoxidase 1575 de transportador de glicose tipo 1 841 de vitamina K 1616 do antagonista do receptor de IL‑1 1812 intelectual 386, 830 abordagem clínica 833 aconselhamento genético 834 anamnese e exame físico 833 avaliação diagnóstica de criança com deficiência intelectual 833 causas ambientais 831 causas genéticas 831 definição, classificação e epidemiologia 830 exames complementares 833 fatores de risco e causas 830 seguimento 834
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primária de lactase 786 relativa de lactase do prematuro 786 secundária de lactase 787 Déficit de crescimento 1470 Deformidades congênitas dos pés 2021 torácicas 2103 Degeneração lattice 2277 Deglutição 1683 Dengue 954 diagnóstico 955 diferencial 956 epidemiologia 954 prevenção 957 quadro clínico 955 transmissão 954 tratamento 956 Densidade urinária 1095 Dente(s) natal 2330 natal(is) e neonatal(is) 2334, 2376 neonatal 2330 supranumerários 2330 Dentição decídua 2333, 2350 permanente 2352 Dentinogênese imperfeita 2375 Depressão 353 Dermatite atópica 410 complicações 411 epidemiologia 410 exame físico 410 fatores desencadeantes 411 fisiopatologia 410 história clínica 410 tratamento 412 de contato 585 alérgica 586, 587 diagnóstico 588 fototóxica e fotoalérgica 588 por irritante primário 585 prevenção 589 tratamento 588 de fraldas 585, 586 ictiosiforme 1814 seborreica 604 como marcador cutâneo de doenças graves na infância 606 diagnóstico diferencial 606 fisiopatologia 604 histologia 605 manifestações clínicas 604 tratamento 605 Dermatofitoses 566 Dermatomiosite juvenil 1361, 1786 avaliação clínica de atividade e dano 1790 critérios diagnósticos de Bohan e Peter 1787 diagnóstico 1787 diferencial 1789 epidemiologia 1786 mecanismos etiopatogênicos 1787 métodos diagnósticos 1788 prognóstico 1790 tratamento 1790 Dermatoses imunológicas 416 neonatais 554
prevalência 554 parasitárias 573 que cursam com hiperpigmentação 558 que cursam com pápulas, vesículas e pústulas 554 transitórias 555 vasculares 557 vesicopustulares causadas por agente infeccioso 556 Dermatoviroses 578 Dermoide epibulbar 2264 Derrame pleural 1740 diagnóstico 1741 epidemiologia 1740 prevenção 1744 prognóstico 1744 quadro clínico 1740 tratamento 1742 Desajuste ventilação/perfusão 1899 Descamação 605 Descolamento de retina 2277 na infância 2278 Desconforto respiratório 1278 Desenvolvimento do trato gastrointestinal 1230 motor 60 normal 59 avaliação 59 da fala e da linguagem 291 psicossocial 363 puberal 374 sexual 295 sexualidade de 0 a 9 anos 295 sexualidade do adolescente 296 Desidratação 175, 1228 aguda 175 Desnutrição energético‑proteica 1436 diagnóstico 1437 quadro clínico 1436 tratamento 1437 Destruição das paratireoides 696 Desvios angulares dos membros inferiores 2014 exames complementares 2016 tratamento 2016 rotacionais dos Membros Inferiores 2017 tratamento 2018 Dexmedetomedine 1923 Diabete insípido 1940 nefrogênico 1183 melito 649, 1466, 2276 acompanhamento ambulatorial 658 atividade física 658 características clínicas 650 classificação 649 diabete mitocondrial 651 diabete monogênico 650 diabete neonatal 650 diagnóstico 649 dieta 658 epidemiologia 651 etiopatogenia 651 maturity‑onset diabetes of the young 650 quadro clínico 653 regulação da secreção de insulina 654
I-V
tipo 2 663, 671, 1466 nutrologia 1466 tratamento 654 valores de glicemia plasmática 649 Diafragmas e atresia laríngea 1696 Diálise peritoneal 1150 Diarreia aguda 726 agentes bacterianos 727 avaliação do estado de hidratação 729 diagnóstico 728 epidemiologia 726 etiologia 726 fisiopatologia e quadro clínico 727 medicações 730 prevenção 730 tratamento e prevenção 729 crônica 732 abordagem terapêutica 736 alterações da motilidade 734 apresentação clínica 733 características das evacuações 734 defeitos estruturais dos enterócitos 734 diagnóstico 734 diarreia colerética 733 estado nutricional 735 etiologia 732 fisiopatologia 732 imagem 736 infecções 733 má absorção de carboidrato 733 de gordura 734 proteica intestinal 734 marcadores sorológicos não invasivos 735 principais causas 732 resposta imune anormal 733 sinais e sintomas associados 735 testes para avaliação de função digestivo‑absortiva, pancreática e inflamatória 735 tumores neuroendócrinos 734 funcional 753, 754 Diazepam 1921 Dieta(s) 1454 cetogênica 1351 restritivas 1471 Dificuldades alimentares 1496 diagnóstico 1498 epidemiologia 1496 prevenção 1499 prognóstico 1499 quadro clínico 1496 tratamento 1498 de aprendizado e linguagem 289 classificação 290 diagnóstico 293 epidemiologia 290 manejo das dificuldades de aprendizado 293 na leitura: sintomas mais frequentes 291 na linguagem escrita: sintomas mais frequentes 292
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I-VI • TRATADO DE PEDIATRIA
nas habilidades matemáticas: sintomas mais frequentes 292 Digoxina 542, 1907 Diminuição da ação do paratormônio 696 Disfagia 1490, 1683 achados clínicos 1683 avaliação clínica 1683 classificação das causas 1684 tratamento 1684 Disfonia 1686 avaliação clínica 1687 causas 1686 tratamento 1688 Disforia de gênero 300, 303 Disfunção do trato urinário inferior 1119 classificação 1120 comorbidades 1121 diagnóstico 1122 fisiopatologia 1120 tratamento 1123 Disfunções do metabolismo da vitamina D 696 Disfunções mastigatórias 2352 Dislipidemia(s) 664, 1440, 1454 diagnóstico 1441 etiologia 1440 prevenção 1441 tratamento 1443 primária 1441 Dismenorreia 2205 diagnóstico diferencial 2205 epidemiologia 2205 primária 2205 secundária 2206 Disostoses 861 Dispepsia funcional 752, 754 Displasia broncopulmonar 1758 diagnóstico 1759 epidemiologia 1758 fisiopatologia 1759 patogênese 1758 prevenção 1760 prognóstico 1760 quadro clínico 1759 tratamento 1759 Displasia cística renal 1162 Displasia do desenvolvimento do quadril 1999 etiologia 1999 exame físico 1999 exames complementares 2000 incidência 1999 tratamento 2001 Dispositivo intrauterino 2223 Disquezia 753, 754 Dissecção arterial cervicocefálica 1986 Distanásia 45 Distopia testicular 2158 complicações 2162 diagnóstico 2160 embriologia 2159 epidemiologia 2158 tratamento 2160 Distrofia(s) de cone 2275, 2276 e bastonetes 2276 do epitélio pigmentado da retina 2275
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endotelial congênita hereditária 2264 hereditárias da retina e da coroide 2274 macular da Carolina do Norte 2276 musculares 1361, 1364 polimorfa posterior 2264 Distrofinopatias 1365 Distúrbio(s) adquiridos relacionados aos fatores de coagulação 1616 da coluna vertebral 2003 da diferenciação do sexo 633, 634 DDS – 45,X/46,XY – disgenesia gonadal mista 635 DDS – 46,XX – deficiência da aromatase placentária (P450 aromatase) 637 DDS – 46,XX – hiperplasia suprarrenal congênita 637 DDS – 46,XX testicular 635 DDS – 46,XY – defeito do metabolismo dos androgênios nos tecidos periféricos 636 DDS – 46,XY – deficiência de 5‑alfa‑redutase tipo 2 636 DDS – 46,XY – deficiência de produção de testosterona 636 DDS – 46,XY – disgenesia gonadal incompleta ou parcial 635 DDS – 46,XY – erros inatos da biossíntese de testosterona 636 DDS – 46,XY – hipogonadismo hipogonadotrófico 636 DDS – 46,XY – hipoplasia ou agenesia das células de Leydig (insensibilidade testicular ao hCG‑LHr) 636 DDS – 46,XY – insensibilidade androgênica ou defeito do receptor de androgênio 636 DDS – 46,XY ou 46,XX – idiopático 637 DDS – 46,XY ou 46,XX – interferência transplacentária da biossíntese de testosterona por drogas ingeridas pela mãe 637 DDS – 46,XY ou 46,XX – secundário a quadros sindrômicos 637 DDS – 46,XY – persistência dos dutos de Müller 637 DDS – 46,XY – síndromes de regressão testicular bilateral 636 DDS – 46,XY (SOX9) – disgenesia gonadal associada à displasia campomélica 635 DDS – 46,XY (WT1) – disgenesia gonadal associada à doença degenerativa renal 635
DDS – vários cariótipos possíveis – ovário‑testicular 635 diagnóstico e conduta 638 diferenciação sexual feminina 634 diferenciação sexual masculina 633 estabelecimento do sexo genético 633 estado sexualmente neutro 633 da hemostasia secundária 1614 da laringe 1690 da orelha externa 1667 das pálpebras 2255 de difusão 1898 de movimentos relacionados ao sono 1339, 1340 do desenvolvimento cortical 1346, 1349 do equilíbrio acidobásico 1948 do metabolismo da glicose 1235 do cálcio 693, 1238 do cálcio, do fósforo e do magnésio 691 do fósforo 699 do fósforo relacionados ao seu manuseio renal tubular 1176 do magnésio 700, 1240 do potássio 1941 do sódio 1926 do paratormônio 695 do sono 1336, 1343 anamnese do sono 1336 classificação internacional dos distúrbios do sono 1336 identificação e classificação 1337 investigação complementar 1339 relacionados a ritmo circadiano 1339, 1340 rotinas e orientações sobre o sono 1340 tratamento 1340 gastrointestinais 764 funcionais 751 epidemiologia 751 fisiopatologia 751 prognóstico 754 quadro clínico e diagnóstico 751 tratamento 753 genéticos 852 decorrentes de mutações cromossômicas 852 menstruais 2201 diagnóstico 2202 etiologia 2201 padrão menstrual 2201 tratamento 2203 metabólicos do recém‑nascido 1235 nutricionais 796 ósseo e mineral 1155 obstrutivos do sono 664 pieloureterais 2122 pigmentar geográfico 2276 precoces da homeostase do potássio 1225 do cálcio 1226 do sódio 1225 puberais 639, 646 retardo puberal 646
qualitativos dos fagócitos 1571 respiratórios do recém‑nascido 1276 do sono 1340 relacionados ao sono 1337 traqueobrônquicos 1707 trombóticos 1616 avaliação laboratorial 1617 fatores externos 1617 manifestações clínicas 1617 tratamento 1617 Diuréticos 540, 541 Diversidade sexual 298 Divertículo de Meckel 181, 2131, 2133 complicações cirúrgicas 2134 Dobras cutâneas 1401 Dobutamina 1906 Doença(s) autoinflamatórias 1809 bolhosas agudas 613 cardíaca congênita 516 epidemiologia 516 cardiovascular 1452 fatores de risco 1453 nutrologia 1452 prevenção 1455 celíaca 738 diagnóstico 739 epidemiologia 738 forma assintomática ou silenciosa 739 forma atípica 738 forma clássica 738 forma potencial 739 grupos de risco 739 prevenção 741 prognóstico 741 quadro clínico 738 tratamento 740 císticas adquiridas 1162 congênitas não hereditárias 1162 hereditárias 1160 renais 1159 classificação 1159 crônicas 353 granulomatosas 1601 não transmissíveis 1452, 1463 da arranhadura do gato 2289 diagnóstico 2289 tratamento 2289 da córnea e da conjuntiva 2263 da retina 2273 da tireoide 675 das suprarrenais 684 de Alstrom 2275 de Behçet 1814 de Best juvenil 2275 de Chagas 999 diagnóstico 1001 epidemiologia 1000 etiopatogenia 999 manifestações clínicas 1001 prevenção 1003 profilaxia 1003 transmissão congênita 1000 tratamento etiológico 1002 de Charcot‑Marie‑Tooth 1369 classificação 1369 diagnóstico 1370 epidemiologia 1369 prevenção 1371
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Índice remissivo •
quadro clínico 1369 tratamento 1370 de Coats 2276, 2277, 2309 de Crohn 743 de depósito lisossômico 843 aconselhamento genético 849 classificação 843, 844 diagnóstico laboratorial 848 epidemiologia 843 padrão de herança 843 quadro clínico 843 tratamento 848 de Eales 2276 de Fabry 2276 de Hand‑Schüller‑Christian 1562 de Hirschsprung 734 com enterocolite 2131 de Hodgkin 1548 achados laboratoriais 1549 diagnóstico diferencial 1549 diagnóstico e classificação 1549 epidemiologia 1548 fatores prognósticos 1549 manifestações clínicas 1549 sinais e sintomas 1549 tratamento 1550 de Kawasaki 1806, 1825, 2276 complicações 1832 diagnóstico diferencial 1832 epidemiologia 1825 etiopatogenia 1826 evolução e prognóstico 1833 exames complementares 1832 fisiopatologia 1827 formas clínicas 1828 manifestações clínicas e critérios diagnósticos 1828 tratamento 1833 de Legg‑Calvé‑Perthes 2025 de Leigh 870 de Letterer‑Siwe 1560 de membrana hialina 1278, 1284 de Newmann‑Pick 2276 de Norrie 2276 de Paget 2277 de Pompe 1365 de Refsum 1379 de Riga‑Fede 2329, 2383, 2384 de Rosai Dorfman 1563 de Stargardt 2275 de Stargart 2276 de Sturge‑Weber 1388 de Tay‑Sachs 2276 de von Hippel 2276 de von Recklinghausen 2270 de Von Willebrand 1614 desmielinizantes do sistema nervoso central 1353 do ciclo da ureia 840 do complemento 1814 do enxerto contra o hospedeiro 1631 do refluxo gastroesofágico 709, 1478 cintilografia gastroesofágica 711 diagnóstico 711 endoscopia digestiva alta com biópsia 712 grupos de risco 711 impedanciometria esofágica intraluminal 711 manometria esofágica 712
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orientações dietéticas e posturais 712 pHmetria esofágica 711 quadro clínico 709 radiografia contrastada de esôfago, estômago e duodeno 711 sinais e sintomas 709 teste terapêutico empírico com supressão ácida 712 tratamento 712 ultrassonografia esofagogástrica 711 do xarope de bordo ou leucinose 839 falciforme 1594 diagnóstico clínico 1594 diagnóstico laboratorial 1595 epidemiologia 1594 fisiopatogenia 1594 tratamento 1596 febril aguda 951 genéticas 887 abordagem molecular 887 escolha do teste molecular para investigar uma doença gênica 888 interpretação do resultado de um exame molecular 889 principais tipos de exames genéticos moleculares 888 do complexo do comportamento autista 879 granulomatosas 1813 crônica 1574 hemorrágicas 1613 do recém‑nascido 1294, 2130 avaliação clínica inicial 1294 avaliação laboratorial inicial 1294 diagnóstico 1296 profilaxia 1297 quadro clínico 1296 tratamento 1298 hepática 1616 causas 795 complicações decorrentes da progressão crônica 794, 2117 da doença 796 diagnóstico 794 diagnóstico diferencial 796 gordurosa não alcoólica 663 quadro clínico 794 tratamento 796 infecciosas 1568 sistêmicas 1601 inflamatórias imunomediadas 1601 inflamatória do intestino 2131 abordagem diagnóstica 745 apresentação clínica 743 terapia medicamentosa 748 tratamento 746 mão‑pé‑boca 583 metabólica(s) 807 diagnóstico 808 do fígado 807 hereditárias 836 manifestações clínicas 808 óssea 1211 patogênese 808
que podem necessitar de transplante hepático 812 tratamento 809 mitocondriais 2275 neurológicas 1478 avaliação da condição nutricional 1479 avaliação da deglutição 1480 comorbidades 1478 deficiências nutricionais 1478 orientações nutricionais específicas 1480 neuromusculares 1361 classificação 1361 diagnóstico 1362 quadro clínico 1361 orgânicas 757 ósseas 861 piogênicas 1813 pulmonar crônica 1212, 1758 renal 1482 cística medular 1160 crônica 1152 avaliação laboratorial 1156 epidemiologia 1153 estágios 1152 etiologia 1154 fisiopatologia 1155 prognóstico e evolução em longo prazo 1156 progressão 1154 suspeita do diagnóstico 1156 tratamento 1156 policística autossômica dominante 1160 policística autossômica recessiva 1160 retinianas na infância 2276 sexualmente transmissíveis 1006 ulcerosa péptica 2130, 2169 vasculares retinianas 2276 Domperidona 713 Donovanose 1015 Dopamina 1906 Dor(es) 1917, 2006 abdominal(is) aguda 770 abordagem diagnóstica 771 causas 771 diagnóstico diferencial 771 epidemiologia 770 etiologia 771 fisiopatologia 770 tratamento 773 funcional 752, 754, 756, 757 abordagem clínica 758 com disfunção do tubo digestivo 757 com dispepsia – dispepsia funcional 757 com paroxismos isolados de dor periumbilical 757 epidemiologia 757 etiologia 757 prognóstico 759 quadro clínico 757 tratamento 758 periumbilicais 1382 anterior no joelho do adolescente 2027 na faixa etária pediátrica 2452 avaliação 2454
I-VII
causas 2454 tratamento 2454 medicações 2455 nas pernas 2029 nos membros inferiores 1382, 2024 nos pés 2030 pélvica crônica causas em adolescentes 2206 Doses de antiparasitários 1055 Drenagem anômala total das veias pulmonares 481 Drogas vasoativas 1905 Dupla via de saída do ventrículo direito 477 Duplicação intestinal 2131 Duplicação pilórica ou cisto enterógeno do piloro 2170
E
Ecocardiograma 2431 Ectima 564 Edema 1829 de córnea 2264 escrotal 1803 idiopático 2156 pulmonar 134, 518 subcutâneo 1802 Eixo mecânico nos membros inferiores 2014 Eletro‑oculograma 2275 Eletrocardiograma 2431 Eletrólitos 1506 Emergências infecciosas 1568 oncológicas 1564 Encefalite herpética 937 Encefalocele esfenoidal 2274 Encefalomielite disseminada aguda 1355 diagnóstico 1355 disseminada aguda 1376 epidemiologia e etiologia 1355 prognóstico 1356 quadro clínico 1355 tratamento 1356 Encefalomiopatias 870 Encefalopatia crônica 1478 epiléptica com descargas ponta ‑onda contínua durante o sono 1324 hipertensiva 1135, 1136 hipóxico‑isquêmica 1269, 1286 estágios 1289 etiologia 1286 fisiopatologia 1287 manifestações clínicas 1288 prognóstico 1292 tratamento 1290 mioclônica precoce 1320 Encontro acidental de divertículo de Meckel 2135 Endocardite infecciosa 530 critérios de Duke modificados para diagnóstico 531 diagnóstico 531 etiopatogenia 530 indicações cirúrgicas 535 profilaxia 532 tratamento 534 Endoftalmite crônica 2287
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I-VIII • TRATADO DE PEDIATRIA
Endometriose 2206 sintomas 2207 tratamento 2208 Endoscopia digestiva alta 722 Endovenosa 1220 Enfisema lobar congênito 2045, 2047 Enterococo resistentes à vancomicina 933 Enterocolite necrosante 2131 neonatal 2080 diagnóstico clínico 2081 estadiamento 2082 fisiopatologia 2080 histologia 2084 indicações cirúrgicas 2083 investigação diagnóstica 2081 prognóstico 2084 tratamento cirúrgico 2083 tratamento clínico 2082 Enteroparasitoses 1052 Enteropatia induzida por proteínas alimentares 778 perdedora de proteínas 1476 Enteroviroses 989 Entubação 2254 Enxaqueca 1381 abdominal 753, 754, 758 Enxertos intestinais 2089 Eosinofilia 1516 Eosinófilos 1097 Ependimoma 1584 Epibléfaro 2255 Epididimite 2156 Epifisiólise 2026 Epilepsia(s) 1316, 1319, 1321, 1342 ausência juvenil 1324 ausência na infância 1322 com pontas centrotemporais 1322 crises neonatais 1319 da adolescência 1324 da infância 1321 mioclônica do lactente 1320 mioclônica juvenil 1324 síndromes epilépticas do lactente 1320 Epstein‑Barr 1819 Epúlide congênita 2328, 2382 Equinocandinas 913 Equipamentos de uso rural 88 Equoterapia 1352 Erisipela 564, 1668 Eritema 605, 1830 em heliotropo 1787 infeccioso 988 marginado 1768 multiforme 613 tóxico neonatal 555 Eritrócitos 1097 Eritrograma 1519, 1532 Erosão dentária 2372 origem dos ácidos envolvidos no processo de erosão dentária 2372 Erro(s) da rotação intestinal 2066 inatos do metabolismo 807, 836, 1630 erros inatos e o sistema nervoso central 836 tratamento 837 Erupção dentária 2329, 2333
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anormalidades de forma 2338 anormalidades de número dos dentes 2337 anormalidades no desenvolvimento da dentição 2335 cronologia 2400 cronologia e sequência 2335 Erupções transitórias benignas 554 Escabiose 573 crostosa 573 norueguesa 573 Escafocefalia 1332 Escala de Ashworth 1348 de coma de Glasgow 198, 1865 de coma e de alterações da consciência de Glasgow 1967 de graduação de comprometimento neurológico de Hughes 1354 pediátrica 198 Esclerodermia juvenil 1792 classificação 1792 diagnóstico 1797 epidemiologia 1792 quadro clínico 1794 tratamento 1798 Esclerose múltipla 1355, 1356, 1377 diagnóstico 1357 diferencial 1357 epidemiologia e etiologia 1357 quadro clínico 1357 tratamento 1357 Esclerose tuberosa 1161 Escoliose 2003 causas 2003 grau 2005 indicação de tratamento 2005 sinais clínicos 2004 Escore de abstinência 1923 de alerta do paciente na enfermaria 1842 de risco de mortalidade pediátrica 1842 de logística de disfunção orgânica pediátrica 1842, 1844 Escroto agudo 2153 causas 2153 Esofagite 185, 716, 1490, 2130 cáustica 717 eosinofílica 717 infecciosa 716, 718 por Candida 716 por citomegalovírus 717 por herpes 716 por tuberculose 717 Esotropia acomodativa 2260 comitante adquirida 2260 congênita 2260 Esquizofrenia 274 Estado de mal epiléptico 1326 alternativas farmacológicas 1329 causas 1327 complicações 1329 epidemiologia 1328 etiologia 1327 fisiopatologia 1327 medidas farmacológicas 1328 tratamento 1328
Estado nutricional 1404 Estatinas 1445 Estatura 1400 Estenose aórtica valvar 487 anal 2092 brônquica 1710 da junção ureteropiélica 2125 hipertrófica de piloro 179, 2171 pulmonar 494 valvar crítica 523 subglótica 1694 traqueal congênita 1707, 1708 Esteroides sexuais 645 Estomatologia pediátrica 2382 Estrabismo(s) 2257, 2259 comitantes 2260 incomitantes 2261 Estreptococcia prévia 1769 Estreptococos do grupo mutans 2369 Estreptograminas 912 Estrias angioides 2277 Estridor 129, 1690 avaliação 1691 diagnóstico diferencial 1694 epidemiologia 1692 Ética 5 clínica 33 Etomidato 1922 Eutanásia 44 Exame cardiovascular 511 da mama 2219 de angiofluoresceinografia 2275 dos elementos anormais e sedimentoscopia da urina 1093 interpretação 1093 físico morfológico do recém‑nascido 825 ginecológico 2193 adolescência 2194 período neonatal 2193 período pré‑puberal 2193 oftalmológico 2281 da criança 2257 acuidade visual 2257 história ocular 2257 inspeção 2257 motilidade extrínseca ocular 2258 oftalmoscopia 2259 reflexo pupilar 2258 reflexo vermelho 2258 parasitológicos de fezes 1054 Exantema agudos 986 laterotorácico unilateral 989 maculopapular 986 papular 990 petequial 991 polimorfo 1828 súbito 951, 988 urticariforme 1828 vesicular 989 Exotropia intermitente 2260 Experimentação sexual 374 Exploração sexual 100 Exsanguinotransfusão 1607
F
Fácies esclerodérmica 1796 Falência intestinal 1492 Faringite(s) 1812, 1677 Faringotonsilite estreptocócica 1678 recorrentes 1680 Fases de adaptação metabólica extrauterina de água e sódio 1224 do desenvolvimento 2433 Fatores de coagulação 1295 Febre 899, 1595, 1596, 1769 amarela 959 ciclos epidemiológicos 960 de Chikungunya 964 diagnóstico 966 epidemiologia 964 gravidez 965 manifestações atípicas 965 prevenção 966 quadro clínico 964 transmissão 964 tratamento 966 desafios 963 diagnóstico 962 epidemiologia 959 estágios clínicos 962 hemorrágicas 991 prevenção 962 prognóstico 962 quadro clínico 961 tratamento 962 familiar do Mediterrâneo 1809 periódica 1812 reumática 1767 critérios de Jones 1770 diagnóstico 1769 diagnóstico diferencial 1770 epidemiologia 1767 prevenção 1771 prognóstico 1771 quadro clínico 1767 tratamento 1770 sem sinais localizatórios 899 avaliação 899 Zika 969 complicações 970 diagnóstico 970 epidemiologia 969 prevenção 971 quadro clínico 969 transmissão 969 tratamento 970 Fenitoína 1273 Fenobarbital 1272 Fenômenos hipóxico‑isquêmicos 1342 Fentanil 1920 Ferimento por arma de fogo 73 Ferro 1413, 1418, 1472 Fibras de mielina 2273 Fibrina 1526 Fibrose cística 1745, 2074 diagnóstico laboratorial 1749 epidemiologia 1745 fisiopatologia 1745 manifestações clínicas 1746 tratamento 1751 Fimose 2163 classificação 2164 diagnóstico 2164
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Índice remissivo •
tratamento 2165 Fisiologia do exercício em atletas jovens 2437 estatura final/maturação biológica 2439 força muscular 2438 potência aeróbica 2438 potência anaeróbica 2438 termorregulação 2438 valências e aptidão física 2437 Fisioterapia 1351 Fissura anal 2130 palatinas 2390 etiopatogenia 2390 tratamento multidisciplinar 2391 Fístula cutânea perineal 2092, 2093 retovaginal 2094 retovesical 2093 retovestibular 2093 traqueoesofágica 1709 traqueoesofágica em H 2061 Fluconazol 912 Fluidoterapia e eletrólitos no recém‑nascido 1223 Fluorquinolonas 910 Foliculite 563 Fonoaudiologia 1352 Fórmula(s) de aminoácidos 782 extensamente hidrolisadas 781 infantil(is) 782, 1420 características 1420 composição 1421 diluição 1421 indicações 1420 poliméricas à base de proteína de soja 781 Fósforo 691, 1507 Fosseta(s) congênita(s) de papila 2273, 2277 Fratura de crânio 1970 de dente permanente 2405 Freio do teto labial persistente 2328 Frequência cardíaca 510, 1217 respiratória 510 Frutose 790 Fumo 1703 Função desenvolvimento fisiológico 2351 mastigatória 2348, 2349 Fundus sal e pimenta 2276 Furunculose de repetição 563
G
Galactosemia 841, 842 Gastrinoma 734 Gastrite 2130 de estresse 2130 Gastropatias 186 Gene CYP1B1 mutações 2269 Gengivoestomatite herpética aguda 2388 Gentamicina 905 Gestação 1466 Gestão de risco em instituições de saúde 238
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controle dos eventos adversos e melhoria contínua 240 cultura de segurança 239 indicadores hospitalares 240 nomenclatura 239 princípios de falibilidade humana 239 protocolos clínicos institucionais 241 Glândula lacrimal 2251 Glaucoma 2269 congênito 2269 diagnóstico 2271 epidemiologia 2269 na infância 2269 prevenção 2272 primário 2269 prognóstico 2272 quadro clínico 2270 sinais e sintomas 2270 tratamento 2271 Glicocorticoides 1776, 1790 Glicogenoses 867 Glicose 1096, 1506 Glicosúria 1172 renal 1176 Glioma de alto grau (astrocitoma anaplásico e glioblastoma multiforme) 1583 diencefálicos 1582 infratentorial de baixo grau 1583 pontino difuso 1583 Globo ocular 2297 Glomerulonefrite difusa aguda pós ‑estreptocócica 1133 complicações 1134 diagnóstico diferencial 1135 epidemiologia 1133 etiologia 1133 evolução e prognóstico 1136 exames complementares 1135 fisiopatogenia e fisiopatologia 1133 patologia 1134 quadro clínico 1134 tratamento 1135 Glossite migratória benigna 2329 Gonadotrofinas 645 Gonorreia 1012 Gráfico de comprimento para ambos os sexos ao nascimento 826 de perímetro cefálico para ambos os sexos ao nascimento 826 de peso para ambos os sexos ao nascimento 826 Gram‑negativos 932 Gram‑positivos 933 Granuloma de polo posterior 2287 inguinal 1015 periférico 2287 piogênico 596 Granulomatose com poliangeíte 1804 eosinofílica com poliangeíte 1805 Gravidez 298 na adolescência 378, 2242 amamentação 379 diagnóstico 378, 2243 epidemiologia 2242 manifestações clínicas 378
pré‑natal da adolescente 2243 repercussões psicossociais 2244
H
H. pylori 720 Hábitos orais 2356 aleitamento natural e artificial 2356 desarmonias nas arcadas dentárias 2356 sucção fisiológica e patológica 2356 Hanseníase 1026 classificação 1027 diagnóstico 1028 epidemiologia 1026 episódios reacionais 1030 formas clínicas 1027 imunologia 1026 patogenia 1026 prevenção e controle 1031 tratamento 1030 Hanseníase dimorfa 1028 indeterminada 1027 neural pura 1028 tuberculoide 1027 virchowiana 1027 Hemácias fenotipadas 1607 lavadas 1606 Hemangioendotelioma kaposiforme 596 Hemangioma 558, 591, 2101, 2328, 2386 capilar 2276 cavernoso 2276 classificação 592 complicações 592 congênito não involutivo 596 rapidamente involutivo 595 de laringe 1695 patogênese 592 racemoso 2276 tratamento 594 Hematoma extradural 1972, 1973 subdural agudo 1973 intraparenquimatosos 1974 Hematúria 1100 Hemimegalencefalia 1349 Hemocomponentes 1606 Hemofilias 1615 Hemoglobina 1095 Hemoglobinopatias 1590, 1630 Hemograma 1515 interpretação 1515 Hemorragia digestiva 184 alta 185, 188 avaliação inicial 184 baixa 186, 190 diagnóstico 187 diagnóstico diferencial 185 manifestações clínicas 184 patogênese 185 principais causas 187 tratamento 188 intraventricular 1974 perintraventricular 1298 subaracnóidea traumática 1974 Hemostasia 1524
I-IX
Hemoterapia 1606 Hepatite B 1018, 1819 Hepatite C 1819 Hérnia diafragmática congênita 2054 avaliação 2055 definição 2054 diagnóstico 2055 etiologia e fisiopatologia 2054 incidência 2054 manifestações clínicas 2055 mortalidade 2056 prognóstico 2058 tratamento 2056 encarcerada 181 inguinal 2107 encarcerada e/ou estrangulada 2108 Herpes disseminado 937 neonatal 937, 2266 no período neonatal 582 simples 557, 990, 2265 genital 1016 vírus 1248 zóster 583, 939, 2265 tratamento 583 oftálmico 2265 Herpesvírus 6 e 7 950 alterações laboratoriais 952 epidemiologia 950 manifestações clínicas 951 prognóstico 951 testes diagnósticos 952 tratamento 952 Hidratação 176 venosa 1226 Hidrato de cloral 1922 Hidrocele 2108 Hidronefrose(s) fetal(is) 1165, 2122 abordagem no pós‑natal 1166 causas 1165 investigação por imagem 1166 Hidropisia aguda 2268 Higiene bucal 2339 dentifrício fluoretado 2341 fluorose dentária 2341 recomendações de uso de dentifrício fluoretado 2341 dental com dentifrício fluoretado 2340 oral 2379 Higromas 1975 Hiperaldosteronismo primário 1938 Hiperaminoacidúria 1173 Hiperandrogenismo 672 Hiperbilirrubinemia direta 1266 indireta 1262 complicações 1264 tratamento 1264 Hipercalcemia 693, 1226 da malignidade 694 neonatal 1239 Hipercalciúria idiopática 1131 Hipercalemia 1225 Hipercolesterolemia familiar 1441 Hiperemia 1829 periungueal 1788 Hiperfosfatemia 699 Hiperfosfatúria 1132
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I-X • TRATADO DE PEDIATRIA
Hiperglicemia neonatal 1237 Hiperinsulinismo 682 Hiperleucocitose 1566 Hipermagnesemia 700 neonatal 1240 Hipernatremia(s) 1936 essencial 1937 euvolêmica 1937 hipervolêmica 1937 hipovolêmica(s) 1938, 1941 transitória 1937 Hiperoxalúria absortiva 1131 Hiperparatireoidismo primário 693 Hiperplasia congênita das suprarrenais 687 principais formas 687 das tonsilas palatinas 1680 fibrosa inflamatória 2328 sebácea 555 Hiperpotassemia factícia 1945 Hipersonias 1340 de origem central 1338 Hipertensão arterial 1155, 1185 aspectos clínicos 1197 aspectos terapêuticos 1198 crise hipertensiva 1199 hipertensão essencial vs. hipertensão secundária 1186 lesão de órgão‑alvo 1186 prevalência 1185 subdiagnóstico 1185 valores de referência 1186 sistêmica 664, 1454, 1908 Hipertensão portal 2116 características clínicas 2117 classificação 2116 exames 2118 tratamento 2118 Hipertensão pulmonar 1907 persistente 1282, 1284 Hipertireoidismo 678 diagnóstico laboratorial 678 quadro clínico 678 tratamento 678 Hipertrofia de cutículas 1788 Hiperuricosúria idiopática 1131 Hipoalbuminemia 1932 Hipoaldosteronismo 1181 Hipocalcemia 695, 1226 neonatal 1238 precoce 1238 tardia 1238 Hipocalemia 1225 Hipocitratúria idiopática 1131 Hipofosfatemia 699 por mutação no cotransportador sódio‑fosfato (NaP2a) 1177 Hipoglicemia 681 cetótica 682 diagnóstico clínico e laboratorial 681 etiologia e tratamento 682 hiperinsulinêmica congênita 682 neonatal 1235, 1236 Hipogonadismo 366 hipergonadotrófico 366, 648 hipogonadotrófico 647 Hipogonadotrofismo 366 Hipolactasia 786 Hipomagnesemia 700 neonatal 1240
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Hipomagnesiúria 1132 Hipomelanose de Ito 1391 Hiponatremia(s) 1225, 1929 adquirida durante a hospitalização 1931 com volemia clinicamente normal 1932 hipervolêmicas 1932 Hipoparatireoidismo 695 Hipoplasia de esmalte 2375 foveal 2276 Hipopotassemia 1942 Hipotireoidismo 675, 1934 adquirido 677 classificação 675 congênito 675 diagnóstico 676 etiologia 675 quadro clínico 675 tratamento 676 Hipotonia 1362 Hipoventilação 1898 Histiocitose de células de Langerhans 606, 1560, 1563 apresentação clínica 1561 aspectos laboratoriais e de imagem 1563 classificação 1561 considerações terapêuticas 1563 HIV 980, 1819 profilaxia da transmissão 980 Homossexualidade 374 Hordéolo 2255, 2266 Hormônio antidiurético 1927 de crescimento 630, 875, 1155 tireoidiano 1907
I
Icterícia 798 fisiopatologia 1262 neonatal 1262 por bilirrubina direta 799 Identidade sexual 300, 370 Íleo meconial 2074 associado à fibrose cística 2074 diagnóstico diferencial 2077 diagnóstico por imagem 2076 na ausência de fibrose cística 2075 prognóstico 2077 quadro clínico 2075 tratamento 2076 IMC 1448 Impetigo 561 bolhoso 562 crostoso 562 tratamento 562 Implante subdérmico 2225 Imunização(ões) 1078 ativa 944 contraindicações 1078 passiva 943 Imunodeficiências congênitas 1630 primárias 401 diagnóstico 402 epidemiologia 401 prevenção 404 prognóstico 404 quadro clínico 402
tratamento 403 Imunoglobulina endovenosa 1610 Inalantes 114 Incontinência pigmentar 1390, 2276 urinária 1119 Indicações para análise cromossômica individual do paciente 829 Índice(s) de Ferriman‑Gallwey 2212 de massa corpórea 1403 de mortalidade pediátrica 1841, 1843 nutricionais 2421 Individualidade 369 Infecção congênita por CMV 1306 Infecção(ões) congênitas 1242 manifestações clínicas 1242 de repetição 395 anamnese 397 diagnóstico diferencial 398 exame físico 397 fatores de risco 395 tratamento 398 do trato respiratório superior 2435 do trato urinário 1105 avaliação morfofuncional do trato urinário 1108 diagnóstico 1106 diretrizes para investigação 1110 epidemiologia 1105 quadro clínico 1105 refluxo vesicoureteral 1110 tratamento 1107 durante a gravidez 1330 estreptocócica 1136 fúngicas 566 herpéticas 581 diagnóstico 582 etiologia 581 tratamento 582 hospitalar 243 associadas a cateteres vasculares 246 associadas à sondagem vesical 247 cirúrgicas 245 em unidade de terapia intensiva pediátrica 1911 pneumonia associada ao cuidado à saúde 244 intrauterinas 1346 medidas preventivas 1912 neonatal precoce 1256 neonatal tardia 1257 osteoarticulares 1816, 2008 pelo HIV 981 diagnóstico 982 indicação da terapia antirretroviral 982 quadro clínico 981 tratamento 982 vacinação 984 pelo H. pylori diagnóstico 722 perinatais 1251 pós‑natal precoce por CMV 1307 relacionadas à assistência à saúde 904 respiratórias agudas 1735 vigilância epidemiológica 1911
Inflamações oculares 2285 Influenza 972 diagnóstico 976 epidemiologia 972 quadro clínico 973 tratamento e quimioprofilaxia 977 Ingestão de corpo estranho 156 aspectos clínicos 156 identificação do corpo estranho digerido 156 tempos para indicação de endoscopia 157 Inibidores da angiotensina 541 da bomba de prótons 713 da enzima conversora da angiotensina 1906 da fosfodiesterase 1906 da secreção ácida 713 Iniciação sexual 375 Injúrias 353 Inquéritos alimentares 1404 Insônia 1337, 1340 Insuficiência cardíaca 473, 510, 537 classificação de acordo com sua classe funcional 539 congestiva 1932 etiologia 537 exames complementares 538 fisiopatologia 537 linha terapêutica 542 principais sintomas 539 quadro clínico 538 tratamento 540, 541, 542 orientação nutricional 1483 renal 1908 aguda 1135, 1136 avançada 1932 crônica 1482 respiratória 1896 quadro clínico 1899 tratamento 1900 aguda 1276 suprarrenal 684, 1935 diagnóstico laboratorial 685 etiologias 685 fisiopatologia e classificação 684 manifestações clínicas 685 suspeita clínica 686 tratamento 686 Insulina 655 análogos da insulina 655 características 655 humana 655 intermediária 655 regular 655 tipos 655 Insulinoterapia 656 efeitos colaterais 658 esquemas 656 Interação social 60 Internação hospitalar 249 admissão em unidade de terapia intensiva pediátrica 250 de recém‑nascido 251 Interrupção do arco aórtico 492, 526 Intertrigo candidiásico 572 Intolerância à frutose 790 aspectos epidemiológicos 792 diagnóstico 793
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Índice remissivo •
quadro clínico 792 tratamento 793 à lactose 733, 785 deficiência de lactase 786 diagnóstico 787 exames complementares 788 fisiopatologia 785 manifestações clínicas 787 tratamento 788 aos carboidratos 790 Intoxicação(ões) 71, 81, 87, 1376 exógenas 223 diagnóstico laboratorial 224 drogas letais 225 exame físico 224 quadro clínico 223 tratamento 224 por cianetos 226 por domissanitários 228 por organofosforados e carbamatos 227 por plantas 228 por produtos químicos e plantas 88 Intussuscepção intestinal 180 Isoproterenol 1906 Isoxazolilpenicilinas 906
J
Joelhos valgos 2014 varos 2015
K
Kwashiorkor 1438
L
Lactação 329 Lactente ictérico 798 Lactogênese 316 Lactose 785 Laqueadura tubária 2225 Laringe 1688 infantil 1690 Laringomalácia 1692 epidemiologia 1693 prognóstico 1694 quadro clínico e diagnóstico 1693 tratamento 1694 Laringotraqueobronquite 130 Larva migrans cutânea 575 Leishmaniose visceral 1032 diagnóstico laboratorial 1033 epidemiologia 1032 escore de gravidade clínica 1033 prevenção 1036 prognóstico 1033 quadro clínico 1032 tratamento 1034, 1035 Leite de doadoras 1232 humano 328, 329, 1232, 2346 complexo imune 328 maduro 317 materno 315 aspecto 317 como o leite é produzido 316 composição 317 Leptospirose 1037 diagnóstico diferencial 1040
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epidemiologia 1037 etiologia 1037 manifestações clínicas 1039 patogênese 1039 patologia 1040 prognóstico 1040 tratamento 1040 Lesão(ões) axonal difusa 1972 congênitas cervicais 2097 cutâneas hipomelanóticas 1387 difusas 1971 do encéfalo 1972 domésticas 71 esportivas 2035 lesões da coluna 2036 lesões do quadril e da pelve 2036 lesões do tornozelo e do pé 2037 lesões nas cartilagens de crescimento 2036 lesões no joelho 2036 lesões no ombro e no cotovelo 2036 lesões por sobrecarga 2037 prevenção 2037 extracranianas 1970 focais 1972 inflamatórias cervicais 2097 intracranianas 192, 1971 neoplásicas cervicais 2101 papulovesiculares 616 policíclicas 613 purpúricas 1828 palpáveis 1802 raquimedulares 2185 renal aguda 1147 abordagem terapêutica 1149 ajuste de drogas 1150 avaliação clínico ‑fisiopatológica e laboratorial 1147 evolução e prognóstico 1150 traumáticas 191 da cabeça 1970 vasculares 591 Leucemia 1540, 1631 linfoide aguda 1540, 1630 biologia e patologia 1540 diagnóstico diferencial 1541 epidemiologia 1540 exames complementares 1541 fatores prognósticos 1541 manifestações clínicas 1540 tratamento 1542 mieloide aguda 1542, 1630 biologia e patologia 1542 epidemiologia 1542 exames complementares 1542 manifestações clínicas 1542 tratamento 1543 mieloide crônica 1543, 1630 biologia e patologia 1543 epidemiologia 1543 manifestações clínicas e alterações laboratoriais 1543 tratamento 1544 Leucinose 839 Leucocitoesterase 1096 Leucócitos 1097 Leucocitose 1515 Leucocoria 2274, 2307 diagnósticos diferenciais 2308
Leucopenia 1517 Leucorreduzidos 1607 Leucorreia fisiológica 2197 Levetiracetam 1273 Levosimendam 1906 Lidocaína 1273, 1921 Lincomicina 911 Linfadenopatia 2096 Linfangiomas 2101 Linfo‑histiocitose hemofagocítica familiar 1563, 1575 Linfocitopenia 1518 Linfócitos T 407 Linfocitose 1517 Linfogranuloma venéreo 1014 Linfoma(s) 1545 anaplásicos de grandes células 1546 B primários de mediastino 1546 linfoblástico de células T 1546 não Hodgkin 1545 Linfonodomegalias 1601 abordagem diagnóstica 1601 generalizadas 1602 por processos neoplásicos 1602 investigação complementar 1603 tratamento 1604 Língua fissurada 2329 geográfica 2329, 2384 Linguagem gestual 61 Linhas de Beau 1830 Lipídios 1506 Lipogranulomatose de Farber 2276 Líquen escleroso 2215 Litíase biliar 2110 Logoaudiometria 1641 Lorazepam 1922 Lordose 2006 Lúpus eritematoso sistêmico 1780 achados laboratoriais e imunológicos 1783 apresentação clínica 1781 classificação 1780 epidemiologia 1780 etiologia e patogênese 1781 prognóstico 1783
M
Má notícia 2466 definição 2466 protocolos 2468 Má rotação intestinal com volvo 180 Maconha (cannabis) 113 Macrocefalia 1332 secundárias a patologia cerebral e do LCR 1333 secundárias a patologia óssea 1333 Macrodontia 2375 Macrolídeos 925 Magnésio 691 Malária 1042 grave 1045, 1048 na gestação 1045 por P. falciparum 1048 por P. vivax 1047 Malformação(ões) adenomatoide cística 2045, 2046 vasculares 596 arteriais 597 capilares 596 linfáticas 597
I-XI
mistas 597 venosas 597 Maloclusões 2357 Mama puerperal 334 Mancha mongólica 559 salmão 558 vinho do Porto na região malar 558 Manifestações puberais 672 Manuseio renal do cálcio 1175 do fósforo 1173 do magnésio 1176 Marasmo 1438 Marcha em rotação medial ou em rotação lateral 2017 Marginalidade 385 Massa óssea 1822 causas primárias e secundárias de baixa massa óssea 1822 Massagem cardíaca 1219 Mastigação 2349 Masturbação 297 Maturação sexual 354, 364 Mecanismos patogenéticos das anomalias congênitas 828 Medicações anticonvulsivantes 1272 Medidas de barreira 930 Meduloblastoma 1583, 1584 Megacólon congênito 2141 enterocolite 2144 epidemiologia 2141 fisiopatologia 2141 quadro clínico 2143 Megalocórnea 2263 Melanose pustulosa transitória neonatal 555 Membrana timpânica normal 1663 Menarca 374 precoce isolada 2217 Meningite 1316 Metabolismo do cálcio 691 recomendações dietéticas diárias de cálcio 691 do fósforo 698 do magnésio 700 Metadona 1920 Metoclopramida 713 Método(s) Canguru 1213 contraceptivos 380 de Cobb 2005 Metronidazol 910 Miastenia grave 1359, 1361 diagnóstico 1359 epidemiologia 1359 fisiopatologia 1359 neonatal transitória 1361 prognóstico 1360 quadro clínico 1359 tratamento 1360 Micoses superficiais 566 Microbiota intestinal 1468 Microcefalia 1330 por cranioestenose/ craniossinostose 1331 vera 1331 Microcórnea 2263 Microdontia 2375 Micronutrientes 1426, 1507 Midazolam 1273, 1922
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I-XII • TRATADO DE PEDIATRIA
Migrânea 1344, 1381 basilar 1377 Miíase 576 Miliária rubra 556 Minerais 1417, 1432 Miocardiopatias 498 arritmogênica do ventrículo direito 498 dilatada 498 hipertrófica 498 restritiva 498 sem classificação 498 Miocardites 500 diagnóstico 501 etiologia 500 Miopatia(s) da oxidação dos ácidos graxos 869 inflamatórias 1361 idiopáticas 1786 lipídicas, lipidoses ou defeitos 2276 metabólicas hereditárias 867 mitocondriais 870 Miopia patológica 2276 Miosites infecciosas 1361 Miringite bolhosa 1669 Modelo de desenvolvimento para os anos escolares 289 Moléstia de Hirschsprung 2141 Molusco contagioso 578 diagnóstico 578 etiologia 578 quadro clínico 578 tratamento 578 Monitoração da hidratação venosa 1227 Monitoramento dos sinais vitais 1255 Monobactâmicos 909 Monocitose 1517 Mononucleose 2435 infecciosa 988, 1678 Monossomia 18p ou síndrome 18p‑ 860 4p 858 5p, síndrome de cri du chat 858 Mordida aberta anterior 2357, 2403 cruzada posterior 2357 Morfina 1920 Morte 44 Mucocele 2328, 2385 Mucopolissacaridoses 2264 Musicoterapia 1352
N
Necessidade(s) calórica 1410 hídrica 1226, 1505 nutricionais 1417, 2421 Necrose epidérmica tóxica 614 gordurosa do subcutâneo 694 Nefrite lúpica 1781 Nefronoftise 1160 Nefropatia 1482 Nesiritida 1907 Neuroblastoma 1553 Neurofibromas em nervos periféricos 1386 Neurofibromatose 1385 tipo 1 2270
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Neuromielite óptica 1355, 1357 fisiopatologia 1357 quadro clínico e diagnóstico 1357 tratamento 1358 Neuropatia(s) aguda motora axonal 1353 periféricas 1368 classificação 1368 Neuroplasticidade 1640 Neurorretinite subaguda unilateral difusa 2287 Neutrofilia 1516 Neutropenia 1490, 1518 febril 1568 Nevo melanocítico congênito gigante 559 sebáceo 560 Nitrito urinário 1096 Nitroglicerina 1906 Nitroprussiato de sódio 1906 Nódulo Nódulo(s) de Bohn 2328 de Lisch 1386 escabiótico 574 subcutâneos 1768 subependimários 1388 Noradrenalina 1905 Norovírus 726 Nutrição do recém‑nascido pré‑termo 1230 enteral 1502 complicações 1504 contraindicações 1502 dietas 1502 indicações 1502 particularidades do neonato 1504 inadequada 353 parenteral 1230, 1493, 1505, 2087 Nutrientes 1506
O
Obesidade 106, 661, 668, 1185, 1453, 1467 etiologia e diagnóstico 668 exógena 1447 mecanismo das anormalidades relacionadas com a obesidade 670 morbidades associadas 1453 Obstrução(ões) brônquica 1711 congênita do ducto lacrimonasal 2253 duodenais congênitas 2065 infecciosa de vias aéreas superiores 129 na via de saída do ventrículo esquerdo 487 pilórica por corpo estranho 2170 primária do esvaziamento gástrico 2169 respiratória 1691 Oclusão de artéria central da retina 2276 dentária 2359 apinhamento dentário 2366 distoclusão ou classe ii de angle 2363 distúrbios de oclusão 2363
mesioclusão, mordida cruzada anterior ou classe III de Angle 2363 mordida aberta 2364 mordida aberta anterior 2365 mordida cruzada anterior 2364 mordida cruzada posterior 2366 mordida profunda 2365 normoclusão 2359 normoclusão no final da dentição decídua 2362 normoclusão no início da dentição decídua 2361 oclusopatia 2359 orientações para o desenvolvimento harmônico 2362 venosa 2276 Oclusopatia 2353, 2363 funcional 2354 Odinofagia 1490 Odontopediatria no ambiente hospitalar 2378 atuação com gestantes e puérperas 2380 pacientes com necessidades especiais 2379 possibilidade de reabilitação oral 2379 prevenção da pneunomia associada tratamento quimioterápico e cuidados orais 2380 Oftalmoscopia 2259 Olho vermelho 2264 Oligúria 1290 Onicomicose 569, 570 Operação de Duhamel 2148 de Soave 2149 de Swenson 2147 Órbita 2280 Orientações nutricionais 1416 Origem anômala da coronária esquerda 492 Orquite 2156 Ortopedia 1351 Ortotanásia 44 Osmolaridade sérica e urinária 1227 Osteocondrodisplasias 861, 876 Osteodisplasias 861 classificação e nomenclatura 862 diagnóstico molecular 861, 865 investigação diagnóstica 863 investigação genético‑molecular 865 Osteogênese 861 imperfeita 1460 tipo 3 861 Osteomalácia 697 Osteomielite 2008 crônica multifocal recorrente 1813 hematogênica aguda 2009 complicações 2010 exames complementares 2009 fisiopatologia 2009 quadro clínico 2009 tratamento 2010 Osteoporose 1459 idiopática juvenil 1460 na infância 1822 Osteossarcoma 1586
Otite externa aguda difusa 1667 localizada 1668 externa eczematosa 1668 externa maligna 1669 externa vírica 1668 média aguda 1657 média com efusão 1662 Otomicose 1668 Overjet 2357 Oxacilina 906, 919 Oxazolidinonas 911 Oxicefalia 1331 Óxido nitroso 1921 Oxigênio 1959 consumo 1959 extração 1960 transporte 1959 Oxigenoterapia 521 Oximetria de pulso 511
P
Pálpebras 2255, 2280 anatomia e fisiologia 2255 Pancitopenia 1518 Pâncreas anular 2066 Pancreatites 813 aspectos nutricionais 818 causas 814 complicações e prognóstico 819 diagnóstico 816 etiologia 814 fisiopatologia 813 medicamentos e tóxicos associados 815 quadro clínico 815 sinais e sintomas 816 tratamento 817 Papila de Bergmeister 2274 Papiloma oral 2386 Papilomatose laríngea 1696 Papilomavírus humano 1020, 2227 vacinas 2228 Pápulas de Gottron 1787 Paquigiria 1349 Parada cardiorrespiratória 137, 1847 Paralisia cerebral 1346 atáxica 1349 de pregas vocais 1695 do III nervo craniano 2261 do músculo reto lateral 2261 discinética 1348 espástica 1347 hipotônica 1349 mista 1349 Parasitoses intestinais 1052 diagnóstico 1053 etiologia 1052 quadro clínico 1053 tratamento 1054 Parassonias 1339, 1340 Paratormônio 692 Paresia congênita do músculo oblíquo superior 2261 Parvovírus humano B19 1819 Pé metatarso varo 2019 torto congênito (equino‑cavo‑varo) 2021
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Índice remissivo •
torto equino varo aduto bilateral 2019 Pectus carinatum 2104 excavatum 2103 Pediatric Trauma Score 1863 Pediculose 574 do corpo 575 púbica 575 Pele 549 colonização da pele do recém ‑nascido 552 comparação entre algumas estruturas da pele do recém‑nascido a termo e do pré‑termo 552 desenvolvimento da histologia 550 embriogênese, anatomia e histologia 549 métodos para o exame dermatológico 553 pele de recém‑nascido a termo 551 pele de recém‑nascido pré‑termo 551 variações anatômicas e fisiológicas da pele do recém‑nascido a termo e do prematuro 551 Penicilina 906 G benzatina 919 G cristalina 918 G procaína 919 V 919 Pênis 2163 Pentobarbital 1922 Peptídio(s) natriuréticos 1928 relacionado ao paratormônio 693 Percevejos 619 Perda auditiva 1651 Perfurações 81 Pérola de Epstein 2328 Persistência de membrana anal 2092 do canal arterial 489 do conduto vitelino 2135 hiperplásica do vítreo primitivo 2308 Peso excessivo das mochilas 2006 pH 1095 Picadas por abelhas, marimbondos e animais peçonhentos 87 Pico de velocidade de crescimento 364 Piodermites 561 Piperacilina‑tazobactam 909, 922 Pirâmide alimentar 1410 Piromania 265 Pitiríase versicolor 571 Plagiocefalia 1331 Planejamento alimentar 1414 familiar 382 Plantas tóxicas 89 Plaquetas 1521 Plaquetopenias adquiridas 1614 congênitas 1613 Plasma fresco congelado 1609 Playground seguro 83 Pneumatose cística e linear 2081 Pneumonia 1282, 1284 adquirida na comunidade 1282, 1735
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agentes etiológicos 1736 antibióticos utilizados para o tratamento 1738 avaliação clínica e diagnóstico 1735 diagnóstico 1736 etiologia 1735 prevenção 1739 tratamento 1736 Poliangeíte microscópica 1805 Poliarterite nodosa 1805 Poliartrite das interfalângicas proximais 1796 nodosa 1805 Polidipsia primária 1932 Poligrafia neonatal 1350 Polimiosites 1361 Polimixinas 912 Polineuropatia hereditária sensitivo ‑motora 1361 Poliomielite 1361 Pólipo umbilical 2135 Polirradiculopatia aguda inflamatória desmielinizante 1353 Polissonografia noturna 1339 Politraumatismo 2184 Politraumatizado 1861 abordagem sequencial 1865 atendimento inicial 1863 atendimento pré‑hospitalar 1861 Ponto de Mittendorf 2274 Potássio 1941 Prematuridade 1209, 1347 Prescrição da atividade física 2033 Pressão arterial 510 Presunção de estupro 379 Prevalência estimada de algumas aberrações cromossômicas entre nascidos vivos 829 Priapismo 1595, 1599 Princípio(s) bioéticos 9 autonomia 6, 9, 28, 42 beneficência 6, 9, 29 justiça 9, 30 não maleficência 6, 9, 29 éticos 28 autodeterminação 28 equidade 30 PRISM II 1842 PRISM III 1843 Problemas específicos de aprendizado 289 Processamento auditivo 1639 avaliação 1643 e transtornos de aprendizagem 1639 testes para avaliação 1641 Processo de aprendizagem 290 Proctite 778 Proctocolite 778 Prognatismo mandibular 2363 Programa de Reanimação Neonatal da Sociedade Brasileira de Pediatria 1216 Prolactina 317 Prolapso uretral 2216 Prontuário eletrônico do paciente 23 médico 21 acesso 23 arquivamento 23
comissão de revisão de prontuários 23 componentes 21 responsabilização 23 Propofol 1922 Prostaglandina E1 521 Proteína 1095, 1417 Proteinúria 1096, 1097 tubular 1173 Protozooses 1053 Protrusão dos incisivos decíduos superiores 2403 Prurigo 616 apresentação clínica 616 características 616 diagnóstico diferencial 617 prevenção 617 tratamento 617, 619 Pseudo‑hipoaldosteronismo 1182 Pseudoangiomatose eruptiva 991 Pseudoendocrinopatias 1183 Pseudoxantoma elástico 2277 Psoríase 608 da área de fraldas 609 do couro cabeludo 610 gutata 609 ungueal 610 Ptose palpebral ou blefaroptose 2255 Puberdade 65, 354, 363, 368, 384 atrasada 647 avaliação da criança com precocidade sexual 644 normal 364, 639 cronologia dos eventos puberais 640 modificações físicas 640 hormonais 639 precoce 365, 640 classificação 640 estádio puberal de Tanner 641 central 643 periférica 644 Puericultura 52 Pupila 2281 Púrpura de Henoch‑Schönlein 1802, 2156 Pustulose cefálica neonatal 557
Q
Quedas 71 Queimaduras 71, 81, 87, 159 classificação 159 fisiopatologia 160 incidência 159 reabilitação 163 tratamento 161 Quérion 567 Questionário CRAFFT 358 Quilotórax 1477 Quimerismo 1631
R
Rânula 2328 Raquitismo 697, 1428 de causa ambiental 697 genético 698 hipofosfatêmico familial 1176 hipofosfatêmico hiperfosfatúrico 698, 861
I-XIII
por defeitos da mineralização 698 por deficiência da 1‑alfa‑hidroxilase 698 por deficiência de vitamina D por resistência à vitamina D 698 vitamina D‑dependente 1178 Reação leucemoide 1516 Reação(ões) adversa aos alimentos 775 a medicamentos 436 antibióticos betalactâmicos 437 anti ‑inflamatórios não esteroides 439 classificação 436, 437 diagnóstico 437, 438 epidemiologia 436 exames laboratoriais 439 manifestações clínicas 438 penicilina 439 prognóstico 440 quadro clínico 437 testes diagnósticos 439 tratamento 440 alérgicas 405 classificação 405 fisiopatologia 405 de hipersensibilidade a medicamentos 436 Reanimação neonatal 1215 Recém‑nascido com crescimento fetal restrito 1209 aspectos nutricionais 1213 cuidados 1210 pré‑termo 1209 alimentação por via enteral 1233 desenvolvimento do trato gastrointestinal 1230 necessidades nutricionais 1230 nutrição parenteral 1230 práticas alimentares 1233 recomendações para NPT em RN prematuros 1231 Receptor‑sensor de cálcio 693 Recomendações nutricionais5 1408 Reconstituição de sangue total 1607 Registro Eletrônico de Saúde 23 Regulação endócrina do crescimento 363 Regurgitação infantil 751, 753 Reidratação oral e venosa 176 Relação médico‑paciente 33 aspectos éticos e legais 38 Remifentanil 1920 Rendimento esportivo 2034 Resistência à insulina 663, 669 Respiração 1217 oral 1670 Responsabilidade médica 12 culpa civil 13 culpa penal 13 dano médico 13 erro 12 imperícia 12 imprudência 12 negligência 12 Ressuscitação cardiopulmonar 137, 145 cuidados pós‑ressuscitação 146 Retardo de absorção de líquido alveolar 1212 do crescimento 1155
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I-XIV • TRATADO DE PEDIATRIA
mental 273 Retina 2314 Retinoblastoma 1556, 2277, 2292, 2308 diagnóstico 2293 diagnóstico diferencial 2295 história natural 2292 incidência 2292 padrão de herança e classificação 2292 patologia 2294 propedêutica complementar 2294 sinais clínicos 2293 tratamento 2295 Retinocoroidite toxoplásmica 1061 Retinografia 2273 Retinopatia da anemia falciforme 2278 da prematuridade 2276, 2277, 2314 características clínicas 2316 classificação 2315 diagnóstico 2316 diagnóstico diferencial 2317 fisiopatologia 2314 prevenção 2318 quadro clínico 2315 seguimento 2317 tratamento 2317 diabética 2276, 2277 proliferativa 2276 Retinose pigmentária 2274 Retinosquise juvenil ligada ao X 2275, 2277 Retocolite ulcerativa 744 Retração prolongada 274 Retrognatismo fisiológico 2349 mandibular 2360, 2363 fisiológico 2359 Rifampicina 926 Rim em esponja medular 1162 multicístico displásico 1162 Rinoconjuntivite alérgica 2267 Rinossinusite 1673 aguda 1673 alérgica 427 crônica 1674 Risco de mortalidade pediátrica 1841 Rizotomia dorsal seletiva 1351 Ropivacaína 1921 Roséola infantil 988 Rotavírus 726 Rubéola 987, 1819, 2276 congênita 1247, 2290 diagnóstico 2290 Ruídos cardíacos 511
S
Sala de parto 1221 Sangramento anormal 2201 digestivo 2129 alto 2129 baixo 2130 disfuncional 2201 uterino vaginal na infância 2214 causas 2214 Sarampo 986 Sarcoma de Ewing 1587
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Saúde bucal 2325, 2348 promoção 2371 do bebê prematuro 2395 aparência clínica dos defeitos de desenvolvimento do esmalte 2396 patogênese dos defeitos de esmalte prevalência de defeitos de esmalte em crianças nascidas prematuras 2395 escolar 1456 óssea 1456 Sedação 1917, 1921 avaliação do nível de sedação 1917 Sedativo dissociativo 1923 Sedentarismo 353, 1454 Segurança de brinquedos e atividades de lazer 81 do pedestre 76 na água 88 na internet e meios eletrônicos 121 no ambiente doméstico 71 no meio rural 87 no trânsito 75 Selênio 1432 Semenarca 374 Sepse neonatal 1251 diagnóstico clínico 1252 diagnóstico diferencial 1254 epidemiologia 1251 etiologia 1255 exames laboratoriais 1254 fatores de risco 1251 manifestações clínicas 1252 patogênese 1252 prevenção 1258 recém‑nascido a termo assintomático 1252 tratamento 1255, 1256 Sequestro broncopulmonar 2045, 2046 Sexarca 373 Sexo inseguro 353 Sexting 121 Sexualidade 373 descoberta 374 evolução 373 vivência 374 Shunt 1898 Sibilância recorrente pós‑viral 1730 diagnóstico 1731 diagnóstico diferencial 1730 manejo farmacológico 1732 medidas preventivas não farmacológicas 1733 medidas terapêuticas 1733 tratamentos 1733 Sífilis 1008, 2276 adquirida 1008 congênita 1009, 1244 precoce 1244 tardia 1245 durante a gravidez 1009 ocular 2288 Sigilo médico 25 Sinal de Hart 2000 de Nelaton‑Galeazzi 2000 de Peter Bade 1999
Síncope 148 autonômica 148 avaliação inicial 151 cardiogênica 149 etiologia 148 fisiopatologia 148 incidência 148 metabólica 150 neuropsiquiátrica 150 testes diagnósticos 151 tratamento 152 Síndrome(s) associadas à criopirina 1811 associadas à deficiência intelectual 831, 832 associadas aos tumores de SNC 1579 cromossômicas 630 da adolescência normal 384 da criança hipotônica 1362 da dor abdominal funcional 752, 754 da enterocolite induzida por proteína alimentar 776 da obstrução pilórica 2167 da ruminação no escolar no adolescente 752, 753 no lactente 752, 753 da varicela fetal ou congênita 940 da veia cava superior 1564 de abstinência 110 de Aicardi 1320, 2276 de Alagille 2117 de Alport 2298 de Alstrom 2276 de Asperger 274 de aspiração meconial 1280, 1284 de Axenfeld‑Rieger 2263, 2270 de Bardet‑Biedl 1161, 2275, 2276 de Bartter 1178 de Blau 1813, 1814 de Brown 2261 de Bruck 1460 de Chédiak‑Higashi 1574 de Cornelia de Lange 832 de Cushing 688, 1938 de Down 854, 1543, 2276, 2298 de Dravet 1321 de Duane 2261 de Edward 854 de Ehlers‑Danlos 2277 de Eisenmenger 486 de falência medular 1630 de Fanconi 1182 de febre(s) periódica(s) de Gianotti‑Crosti 990 de Goldmann‑Favre 2275 de Goltz 2274 de Griscelli 1574 de Guillain‑Barré 1353, 1361, 1368, 1376 de hiper‑IgE 1573 de hipoplasia do coração esquerdo 524 do ventrículo esquerdo 491 de insuficiência torácica associadas a distúrbios esqueléticos difusos 2106 de Kearns‑Sayre 870 de Klinefelter 366, 856 de Landau‑Kleffner 1323
de Laron 876 de Lennox‑Gastaut 1323 de lise tumoral 1566 de Lowe 2298 de Marfan 2298 de Meckel‑Gruber 2274 de microftalmia de Lenz 2274 de Miller Fischer 1353, 1376 de Möebius 2261 de Mounier‑Kuhn 1709 de Münchausen 92, 96 de Noonan 877 de Ohtahara 1320 de opsoclônus‑mioclônus‑ataxia (Kinsbourne) 1375 de Panayiotopoulos 1323 de Patau ou trissomia do grupo D ou trissomia do cromossomo 13 854 de Poland 2105 de Prader‑Willi 2276 de Rett 274 de Russel‑Silver 630 de secreção inapropriada do hormônio antidiurético 1933 de Stevens‑Johnson 613, 2266 de Stickler 2277 de Sturge‑Weber 2276 de Turner 366, 630, 854, 876, 1460 de Usher 2275 de Weill‑Marchesani 2298 de West 1321, 1350 de Wiskott‑Aldrich 1613 de Wyburna‑Manson 2276 de Zollinger‑Ellison 734 dismórficas 876 do bebê sacudido 94 do crupe 130 do desconforto respiratório 1212, 1882 do duplo Y (47,XYY) 857 do excesso de treinamento 2434 do intestino curto 1492, 2086 do intestino irritável 752, 754, 757, 760 do leucócito preguiçoso 1573 do respirador oral 1670 dos ovários policísticos 2210 dos vômitos cíclicos 752, 754 do X frágil 832 epiléticas neonatais 1270 febris idiopáticas 1812 genéticas 630 hemofagocítica 1624 hemolítico‑urêmica 1113 hereditária 1809 hiper‑IgD com febre periódica 1811 mediastinal superior 1564 metabólica 661, 671 miastênica congênita 1361 mielodisplásica 1630 nefrótica Idiopática 1138 neurocutâneas 1385 orofacial‑digital tipo 1 1162 perdedora de sal cerebral 1931 periódica associada ao receptor do fator de necrose tumoral 1810 pós‑concussional 1971 retinorrenais 2275 torácica aguda 1594, 1598
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Índice remissivo •
Sinostose coronal 1332 bilateral 1331 da sutura metópica 1332 unilateral 1332 Sinovite transitória do quadril 2024 Sinus umbilical 2135 Sistema cardiovascular na criança 509 avaliação clínica 509 exame físico cardiovascular 510 história clínica 509 história gestacional e perinatal 509 história pós‑natal 509 ruídos cardíacos 511 sopro cardíaco 512 Sistema(s) de escores para avaliação de gravidade 1841 de histocompatibilidade humano 1629 excretor 2252 canalículos 2252 conduto lacrimonasal 2252 pontos lacrimais 2252 saco lacrimal 2252 hemostático 1524 portal 2116 respiratório 1886 secretor 2251, 2252 Sódio 1926 Sopro cardíaco 473, 503, 512 avaliação clínica 503 classificação 505 diagnóstico diferencial do sopro inocente 506 exteriorização clínica do sopro patológico 507 intensidade 505 sopro 506 tipos 504 zumbido venoso 506 Staphylococcus aureus resistentes à vancomicina 933 à oxacilina 933 Sufentanil 1920 Sufocação/asfixia 81 Suicídio 104, 107 Sulfametoxazol/trimetoprima 927 Sulfato de magnésio 464 Suplementação alimentar 1472 de micronutrientes 1475 vitamínica e mineral 1413 Suplementos nutricionais 2422, 2423 Suporte à família: más notícias, decisão compartilhada e acompanhamento no luto 2466 avançado de vida 1847 equipe de ressuscitação e equipamentos avançados 1847 básico de vida 1848 Supraglotite 132 Suspensório de Pavlik 2001 Suturas cranianas abertas 1331
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T
Tabaco 109 Tabagismo passivo 1703 Talassemias 1590, 2277 alfa‑talassemia 1592 beta‑talassemias 1593 diagnóstico clínico 1591 diagnóstico laboratorial 1592 epidemiologia 1590 fisiopatologia 1591 Talento esportivo 2034 Taquipneia transitória do recém ‑nascido 1280, 1284 Tarefas de atenção auditiva sustentada 1643 Taxas de concentração de sódio no suor 2075 TCE 2184 Tecido adiposo 668 Teicoplanina 911 Telangiectasia(s) em pálpebra 1796 oculares 1379 oculocutâneas 1389 palpebrais 1787 Telarca 365 precoce 642 Teoria do risco 17 Terapia(s) antiviral 943 de substituição renal 1150 extracorpóreas 1150 Teratoma 2096, 2099 Teste(s) comportamentais de processamento auditivo 1641 da oximetria de pulso 519 de absorção de lactose pela sobrecarga oral 788 de Adams 2004 de hiperóxia 519 do H2 expirado 788 do olhinho 2298, 2307 do pezinho 1302 do reflexo vermelho 1301, 2307 ergométrico 2431 rápido de lactose em fragmento de biópsia 788 turbidimétrico 1098 Tetralogia de Fallot 475 com atresia pulmonar 523 Ticarcilina/clavulanato 922 Tinea capitis 566, 567 corporis 568 cruris 569 faciei 568 pedis 569, 570 Tinhas 566 Tiopental 1922 Tomografia de coerência óptica de padrão espectral 2275 Tonsilas palatinas 1677 Tonsilites 1677 agudas 1678 Tônus neuromuscular 1362 Topiramato 1273 Torção de ovário 181 de testículo 2154 Torcicolo congênito 2096, 2100
paroxístico 1382 Tortuosidade vascular 2276 Tosse 1073 Toxina botulínica 1351 Toxíndrome anticolinérgica 223 anticolinesterásica 223 depressiva 224 extrapiramidal 224 narcótica 224 simpatomimética 224 Toxocaríase ocular 2287 diagnóstico 2287 tratamento 2288 Toxoplasmose 1058, 2276 adquirida 1066 aguda 1066 congênita 1060, 1242 diagnóstico 1061, 1062 diagnóstico diferencial 1065 epidemiologia 1059 ocular 1060, 2285 prevenção 1069 prognóstico 1068 quadro clínico 1059 tratamento 1065 Tracoma 2267 Tramadol 1921 Transexualismo 303 Transfusão(ões) 1606 de componentes do plasma 1609 de hemocomponentes 1607 complicações 1610 de hemoderivados 1610 intrauterina 1607 sanguíneas 1598 Trânsito 76 Transplante de célula‑tronco hematopoética 1599, 1627, 1629 de intestino 2089 hepático 812 intestinal 1494 Transporte dos pacientes graves 1847, 1852 intra e inter‑hospitalar 1856 neonatal 1859 seguro de crianças 76 Transposição corrigida das grandes artérias 494 das grandes artérias 474, 527 Transtorno(s) alimentares 105, 1416 conversivo 1345 da identidade sexual 303 da personalidade antissocial 265 de ansiedade 1345 de aprendizagem 1640 de conduta 264 de déficit de atenção/hiperatividade 283 de estresse pós‑traumático 101 de gênero 300 de identidade sexual na infância 303 de oposição desafiante 264 desintegrativos 274 do comportamento 263 do déficit de atenção e hiperatividade 274 do desenvolvimento da linguagem 274
I-XV
puberal 365 do espectro autístico 273, 879 do processamento auditivo 1647 dos movimentos 1343 específicos do desenvolvimento da aprendizagem 274 explosivo intermitente 264 factício 1345 invasivos do desenvolvimento 268, 273 não especificados 273 não especificado da identidade sexual 303 oposicional desafiante 274 Traqueíte bacteriana 133 Traqueobroncomegalia congênita 1709 Traqueomalácia 1708 Trauma(s) 1862, 2176, 2264 abdominal 182, 2187 bicicleta 2180 cinemática do trauma 2177 colisões de veículos automotores 2178 dentário 2402 epidemiologia 2176 genitais 2215 ocular 2277, 2278 pedestres 2180 quedas 2180 torácico 2186 Traumatismo abdominal 1866 cranioencefálico 191, 1965 abordagem após o atendimento inicial 1975 atendimento inicial 1966 de motociclistas 75 de trânsito 71 de tórax 1865 geniturinário 1866 Travestismo bivalente 303 Treinamento resistido 2415 benefícios 2415 crescimento somático 2416 em adolescentes do sexo feminino 2417 em crianças e adolescentes 2415 para a prevenção de lesões musculoesqueléticas 2416 prescrição 2417 Triagem auditiva 1650, 1652 avaliação objetiva da audição 1653 em escolares 1655 em lactentes 1655 neonatal universal 1300, 1652 auditiva 1300 visual 1301 Tricomoníase 1016 Trigonocefalia 1332 Trissomia 13‑15 (síndrome de Patau) 2274 15 proximal 859 18 (síndrome de Edward) 2274 parcial do 8p 859 parcial lp 857 Trocas gasosas 1898 Trombocitopenia(s) 1523 hereditárias 1523 imune primária 1619 Trombocitose 1524
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I-XVI • TRATADO DE PEDIATRIA
Trombose 1526 sinovenosa cerebral 1372 Tronco arterioso 478 Tuberculose 1072 diagnóstico 1072 epidemiologia 1072 prevenção 1075 osteoarticular 2008 quadro clínico 1072 tratamento 1074 Tubulopatias 1172 Túbulos renais 1172 Tumor(es) abdominais 1552 de células germinativas 1555 de córtex suprarrenal 1556 de partes moles 1557 de Wilms 1553 do córtex suprarrenal 1555 do sistema nervoso central 1577 genitais 2217 hepáticos primários 1554 ósseos 1586 sólidos 1552 suprarrenais 689 vasculares 591 Tungíase 576
U
Úlcera traumática 2385 Ultrassonografia ocular 2274 Ureidopenicilinas 921 Urobilinogênio 1096 Urolitíase 1126 abordagem propedêutica do paciente agudo 1128 após a fase aguda 1130 patogênese 1126 quadro clínico 1127 tratamento do paciente agudo 1129 Uroterapia 1123 Urticária 416 causas 416 crônica 416, 418 diagnóstico 417 epidemiologia 416 etiopatogenia 416 manifestações clínicas 417 tratamento 417 papular 616
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Uso de dispositivos eletrônicos 353 de drogas 353, 385 Utilitarismo 30 Uveíte 2285, 1778, 1814 crônica 1774
V
Vacina 1078 BCG 1079 contra influenza 976 difteria e tétano 1083 difteria, tétano e pertussis 1083 febre amarela 1085 Haemophilus influenzae tipo b (Hib) conjugada 1083 hepatite A 1085 hepatite B 1082 Influenza 1086 injetável de poliovírus inativados 1082 meningocócica ACWY conjugada 1084 meningocócica B recombinante 1084 meningocócica C conjugada 1084 oral de poliovírus vivos atenuados 1082 papilomavírus humano (HPV) 1086 pneumocócica conjugada 1084 rotavírus 1082 tetra viral (sarampo, caxumba, rubéola e varicela) 1085 tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) 1085 varicela 1085 Valgo 2014 Vancomicina 905 Varicela 939, 989, 1819, 2265 de ocorrência neonatal 941 em imunodeprimidos 941 Varizes esofágicas e gástricas 186, 2130 Varo 2014 Vasculatura fetal persistente 2274, 2277 Vasculite(s) 1800, 1829 associadas ao ANCA 1804 de vasos de grande calibre 1807 de vasos de médio calibre 1805 de vasos de pequeno calibre 1802 mesentérica 1803
Vasculopatia associada a STING com início na infância 1814 Vasectomia 2225 Vasodilatadores 1906 Veia umbilical 1220 Ventilação com pressão positiva 1217 massagem cardíaca 1219 mecânica 1279 não invasiva 1888 no transporte da criança e do recém ‑nascido 1855 Ventrículo único (dupla via de entrada) 477 Verificação da ambulância 1859 Verrugas 579 filiformes 580 genitais ou condiloma acuminado 580, 2216 planas 579 plantares 580 vulgares 579 Vertigem paroxística 1382 benigna 1376 Via aérea glótica e subglótica 129 intratorácica 129 supraglótica 129 Vias lacrimais 2251 Violência 109, 353 autoinfligida 104 doméstica 92, 104, 253 física 92, 93 aspectos clínicos 254 aspectos éticos e legais 253 atendimento 253 critérios de internação hospitalar 254 diagnóstico 254 epidemiologia 253 notificação 255 responsabilidade legal 256 e adolescência 92 atendimento 98 avaliação clínica e diagnóstica 93 avaliação radiológica 95 crime de maus‑tratos 92 epidemiologia 93 negligência 92, 95 notificação 98 omissão 92 omissão do cuidar 95
prevenção 98 prognóstico 98 sinais específicos 93 na infância na mídia 121 psicológica 95 química 97 sexual 92, 95, 379, 2232 atendimento 2234 classificação 2233 diagnóstico 2233 incidência 2232 notificação 2236 prevalência 2232 prevenção 2234 prognóstico 2234 quadro clínico 2233 tratamento 2234 Viroses exantemáticas 985 Vírus Epstein‑Barr 946 herpes simples tipos 1 e 2 936 Influenza 972 varicela zóster 936, 936 Zika 969 Vitalidade ao nascer 1217 Vitamina(s) 1417, 1426 A 1426 C 1430 D 692, 1416, 1428, 1461 K 1295 do complexo B 1430 Vitreorretinopatia exsudativa familiar 2277 Vômitos cíclicos 1382 Voriconazol 913 Vulvovaginite 2197, 2214 diagnóstico 2200 exame físico 2197 fatores de risco 2197 inespecífica 2198 quadro clínico 2197
X
Xantogranuloma juvenil cutâneo 1563 Xerostomia 1488
Z
Zinco 1418, 1434, 1472
5/5/17 17:45
A Sociedade Brasileira de Pediatria vem ampliando suas ações em várias vertentes, sobretudo na área de atualização científica de qualidade para os pediatras brasileiros. Uma dessas iniciativas é representada pela quarta edição do Tratado de Pediatria, que foi completamente revisada e atualizada nos últimos meses com cuidado para ser entregue àqueles que se incubem de assistir às crianças e aos adolescentes. Trata-se da obra de maior perfil científico já produzida pela SBP e do livro-texto de medicina da criança e do adolescente mais difundido e utilizado pela classe pediátrica, pelas instituições de ensino médico e também pelos programas de residência médica na especialidade que cuida do ser humano no ciclo de vida marcado pelos fenômenos do crescimento e do desenvolvimento.
“A representação da Opas no Brasil reconhece a seriedade do trabalho realizado pelos Departamentos Científicos da SBP consubstanciado nesta obra que presta relevante serviço à causa do aprimoramento profissional dos pediatras.” Dr. Horácio Toro Representante da Organização Pan-americana da Saúde (Opas) e da Organização Mundial da Saúde (OMS) no Brasil
Inscreva-se no 2° curso de Pediatria da Sociedade Brasileira de Pediatria, que explora o conteúdo de cada Seção do Tratado na forma de videoaulas, estudos de caso e questões para avaliação. Acesse o site do curso: www.manoleeducacao.com.br/sbppediatria