“Toda “Toda feita”: Gênero e identidade no corpo travesti Marcos Renato Benedetti Série Textos de de Divulgação – Nº 008/97
“TODA FEITA” GÊNERO E IDENTIDADE NO CORPO TRAVESTI
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Marcos Renato Benedetti
As travestis1 hoje constituem um grupo cada vez mais numeroso e proeminente na nossa sociedade. Já dispõem, no nosso espaço social, de um papel que lhes é legítimo e que, em si, indica processos maiores de mudança social, como foi muito bem apontado por Silva e Florentino (1996). Assim, o novo aqui não é a travesti ou qualquer dos personagens que lhe rodeiam e lhe constituem, mas antes a visibilidade cada vez maior desses personagens na sociedade abrangente e sua inscrição popular e social como um ator reconhecido, com as quais os todos os habitantes das cidades, em especial seus “conviventes” (familiares, vizinhos, amigos, depiladoras, “cafetinas”, “bombadeiras”, maridos, clientes da prostituição, pais-de-santo, etc.), mantêm relações cotidianas de intercâmbio e influência de linguagem e valores.
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Trabalho apresentado no GT “Corpo, Salud y Dolência” na II Reunión de Antropología del
Mercosur, Piriápolis, novembro de 1997. **
Mestrando junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul - Brasil. 1
Creio ser relevante esclarecer aqui a razão da inversão do gênero do substantivo “travesti”.
No Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, a palavra aparece como um substantivo masculino, o que seria a forma ortograficamente correta e que também é, de certa forma, assim utilizada pelo senso-comum. Entretanto, há uma razão êmica: elas mesmas entre si, chamam-se durante o tempo todo, pela desinência feminina, e querem que as pessoas assim o façam. Desta forma, mais do que uma atitude metodológica, penso esta conclusão/atitude como fruto desse encontro de subjetividades, dessa relação dialógica que a Antropologia se propõe a executar.
Procurarei aqui, apresentar algumas notas sobre a construção da identidade de gênero e da identidade social desta personagem, procurando privilegiar uma opção teórico-metodológica que procura apreender os fenômenos sociais através do corpo. O corpo é visto aqui então como sendo o acesso para o mundo social. Este trabalho limita-se a descrever os processos e as técnicas de fabricação do corpo e afirmação da identidade social destes atores ou destas atrizes, procurando romper com as concepções de senso-comum e o exotismo sobre estas personagens, sobretudo no que diz respeito à apresentação de suas formas corporais. O processo aqui apresentado — de afirmação de uma identidade de gênero e então, de uma identidade social através do corpo— por sua vez, alinhase a outros estudos que buscam desconstruir toda e qualquer naturalização do corpo ou argumentação em favor de um essencialismo biológico. É uma demonstração de como o mundo simbólico está informando e formando estas percepções e práticas. Creio enfim, que as travestis evidenciam em suas formas incorporadas os processos culturais de fabricação do sujeito. Concentrar-se na compreensão da identidade social das travestis é em si uma manifestação de validade da afirmação que este grupo social já está incorporado na sociedade brasileira, ainda que seja depositário de uma grande carga de estigma2. Em quase todas as cidades do Brasil estas personagens já não são típicas da época do carnaval ou vistas somente à noite em lugares secretos. Pelo contrário, as travestis têm agora um caráter “social e solar” (Silva & Florentino, 1996: 107), e já nos relacionamos cotidianamente (seja através dos anúncios na seção de “acompanhantes” dos jornais, através dos vários quadros com travestis nos programas de auditório televisivos de sábado à tarde, no supermercado ou no centro da cidade) com sua linguagem, seus valores e especialmente com suas imagens e seus corpos, que formam e nos informam a sua identidade. Conforme Heilborn (1996) a identidade social é a possibilidade 2
Nos termos cunhados por Goffman, estigma é a “situação do indivíduo que não está
habilitado para a aceitação social plena.”
(1988: 7) Estigma é algum atributo que faz com
que os sujeitos sejam enjeitados socialmente, provocando uma segmentação social.
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de existência desses sujeitos num mundo social. Para esta autora, a identidade social é “...um conjunto de marcas sociais que posicionam um sujeito em um determinado mundo social.”(1996:137, grifos meus) Heilborn afirma que a identidade social importa simultaneamente em três dimensões diferentes: “A primeira delas refere-se, de fato, à existência de um elenco de atributos e traços que constituem classificatoriamente o sujeito e nesta dimensão pode-se arrolar indicadores como inserção na estratificação social, idade, gênero, etc. O segundo nível refere-se ao modo como tal elenco de atributos insere-se num campo de significações sociais em que outros eixos classificatórios estão presentes. (...) uma terceira instância se apresenta em que tais marcas se expressam mediante determinados valores, corporificando-se em significados que articulam a imagem de si e a relação com o outro.(...) Identidade social é, assim, a moldura possível onde os sujeitos podem existir e se expressar...” (1996:137, grifos meus) A hipótese desenvolvida aqui é que a identidade social destas personagens está inscrita, localizada e percebida no corpo e suas formas, isto é, reconhece-se alguém como travesti em função de sua apresentação corporal e dos investimentos que faz para obter um corpo que é valorizado em seu meio. Este “modelo” de corpo a ser atingido não é estático e tampouco único: varia entre as travestis, especialmente a partir de seus habitus de classe e de geração, conforme Bourdieu (1980). As travestis mais jovens por exemplo, podem ter preocupações diferentes daquelas apresentadas pelas mais velhas na fabricação de sua plástica feminina: enquanto que para estas últimas o nariz nunca foi um problema em sua afirmação, para as mais jovens um nariz afinado é um excelente símbolo de feminilidade, portanto as cirurgias plásticas para modelar o nariz são valorizadas entre elas e podem ser usadas até como um sinal de status no grupo, uma vez que pelo seu alto custo, sinaliza também a diferenciação na estratificação social. Assim, o corpo todo é lido, simbolizado e valorizado numa “luta por classificação” social e simbólica. Quando da consciência do descompasso entre seus sentimentos a respeito da sua identidade de gênero feminina e o tratamento lhes dispensado por toda a 4
sociedade, vivenciam sofrimentos psíquicos profundos (Silva e Florentino, 1996; Silva, 1993) uma vez que é preciso produzir, a partir de um corpo com aparato genital masculino e que foi socializado como menino, um corpo com apresentação feminina, ou como me disse Márcia comentando sobre as novas formas do corpo de sua companheira Gabriela 3, “um corpo de travesti ”. É quase como um segundo nascimento, conforme a metáfora empregada por Silva e Florentino (1996), um segundo nascimento com um novo corpo, com um corpo feminino, que tem, por sua vez, um estatuto diferente do corpo da mulher. 4 Esta diferenciação se dá pela incapacidade reprodutiva das travestis: mesmo aquelas operadas jamais serão mulheres porque além de não possuírem este potencial da mulher, continuam a se relacionar social e sexualmente neste meio social que circunda as travestis, além daquilo que me disse Neusa taxativamente: “Mesmo operada, ela continua a pensar como bicha!5” Com a fabricação deste novo corpo, que explicita a identidade de gênero e a identidade sexual destas pessoas, o sujeito então se inscreve e é percebido como travesti neste espaço social. Quero deixar claro aqui que a identidade social de travesti não pode estar automaticamente vinculada ou mesmo ser pensada como sinônimo da categoria generalizante “homossexual”, ainda que as travestis mantenham (porém não exclusivamente) práticas sexuais homoeróticas6, e contextualmente, se 3
Todos os nomes de travestis empregados ao longo do texto são fictícios. As observações e
depoimentos apresentados neste trabalho foram recolhidas em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, junto às travestis que, regular ou esporadicamente, se postituem. Elas têm de 15 a 55 anos, a maior parte reside nos bairros de periferia da cidade, têm baixo grau de instrução, e muitas são migrantes das cidades do interior do estado ou mesmo de outros estados do Brasil e países vizinhos. 4
A respeito da diferenciação entre o feminino da mulher e o feminino travesti, veja a p. 16
deste trabalho. 5
Forma êmica de designar travestis.
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Parker (1991) e Fry (1982) discutem a formação da categoria “homossexual” na cultura
sexual brasileira e afirmam não ser suficiente a prática sexual homoerótica para definir os
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identifiquem também enquanto “homossexuais.” A identidade de travesti está antes associada à fabricação de um novo corpo, do que às práticas e orientações sexuais. Talvez possamos tipologizar em quatro áreas principais as alterações corporais levadas a cabo pelas travestis com o intuito de demonstrar suas características femininas: a primeira é o trato com os pêlos; a segunda a produção de seios, quadris e de uma silhueta associada à mulher; a terceira o domínio de um “código de beleza”, isto é, o uso correto e eficiente de roupas, sapatos, penteados, maquiagem, acessórios, etc.; e por fim, o investimento e treinamento do gestual e comportamento feminino, que compreende desde a forma de andar e a inflexão do olhar até mesmo uma forma de pensar específica, como já anunciado acima por Neusa.
O cotidiano a contra-pêlo Os pêlos são um constante obstáculo na fabricação do corpo travesti. Elas travam uma verdadeira batalha diária contra a proliferação dos pêlos no corpo, especialmente os da barba. O rosto sendo a apresentação da pessoa, é a parte do corpo que ostenta o maior número de atributos femininos. As travestis vêem os pêlos como um dos signos que mais fortemente representa o masculino. Várias técnicas são desenvolvidas e acionadas para dar conta disso e diminuir o ciclo de crescimento dos pêlos. A pinça é um instrumento básico de
sujeitos enquanto “homossexuais”. Esta categorização seria muito mais pertinente a meios sociais mais abastados, com forte ideário individualista desenvolvido. Na cultura popular brasileira, de onde a maior parte das travestis minhas informantes são provenientes, o que importa é mais a atuação sexual do que a prática. Assim, as significações estão depositadas sobre o par ativo/passivo, sendo categorizado enquanto “homossexual” somente o sujeito passivo da relação. Para mais discussões sobre o sistema de categorização sexual e de gênero entre travestis no Brasil, ver o artigo de Don Kulick (1997) e também o de Andrea Cornwall (1994); veja também à página 16 deste trabalho.
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qualquer travesti e é muito raro encontrar alguma que não carregue consigo este instrumento na bolsa. Ela pode desempenhar duas funções básicas: além de acabar com a barba, ajuda a modelar a sobrancelha. A barba é arrancada fio a fio com o auxílio da pinça (e às vezes sem o uso de um espelho)7, num trabalho minucioso e paciencioso. Às vezes, gasta-se horas em função com o “chuchu”8, que precisa ser diariamente “dizimado”.9 Outra técnica amplamente empregada é a retirada dos pêlos faciais com cera. Aplica-se uma camada de cera depilatória quente ou fria sobre o rosto, e então, num movimento rápido, retira-se a placa de cera com os pêlos. Muitas travestis reclamam da dor desta operação, que, de um só golpe puxa vários fios. Entretanto, como recompensa ela produz resultados mais eficazes, pois além de diminuir a quantidade de fios que nascem no rosto, aqueles que persistem nascem cada vez mais finos, aparecendo menos. Estes então, podem ir sendo eliminados com a pinça. Há ainda a ação dos hormônios femininos que provocam uma diminuição na produção de pêlos pelo corpo. Assim, aproximadamente após dois meses de tratamento hormonal, já pode-se observar seus efeitos: os fios diminuem em quantidade e também em espessura. Os pêlos do tórax e das pernas começam a nascer em menor quantidade, bem como a barba, que começa a nascer mais rala e
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Também Lopes (1995) observou a ação da pinça sem o uso de espelho, o que nos dá uma
mostra da consciência de si e dos limites do corpo presente nesta população. 8
As travestis desenvolveram um código linguístico com vocabulário organizado que se chama
“bate-bate”. Ele é falado em todo o Brasil, ainda que conheça algumas variações regionais. Segundo interpretações nativas tem em parte origem na linguagem iorubá falada nos cultos afro-brasileiros. Não há nenhum estudo específico sobre o “bate-bate”, mas é interessante o “Diálogo de Boneca”, um pequeno livrinho organizado por Jovana Baby (uma influente militante do movimento pelos direitos humanos das travestis) que traz uma compilação de termos utilizados neste código linguístico. ”Chuchu” em “bate-bate” significa barba (talvez pela semelhança entre um rosto barbudo e o aspecto espinhento do fruto chuchu). 9
Hélio Silva também registra esta técnica entre as travestis cariocas. (Silva, 1993:37)
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fina: “Toca aqui, a gente fica só com uma penugem.”, disse-me Sandra durante uma sessão de depilação em casa de uma das informantes. Outra alteração consiste em “fazer a sobrancelha”, isto é, com o uso da pinça modela-se o supercílio de forma a ficar mais fino e curvo, acrescentando ao olho uma forma alongada. Os cabelos também devem ser longos e bem cuidados, sempre com cortes femininos. Poucas travestis fazem uso da peruca pelo fato de não ter cabelo longo. A peruca — que no “bate-bate” é chamada de “ picumã” — é valorizada para a produção de um visual diferente, mas quando utilizada como cabelo longo (o que denota que esta travesti têm cabelo curto) pode ser motivo de ridicularização, pois a iguala a uma “bicha-boy”10. As longas madeixas sempre são exibidas com muito orgulho e, ademais, fazem parte de um jogo de cena muito comum entre as “monas”11: trata-se de virar para o lado, jogando antes do corpo, todo o cabelo, como a mostrar uma certa displicência (quase sarcástica) ou uma descompromissada superioridade sobre tudo.
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Bicha-boy é um termo emicamente utilizado para designar uma “pré-travesti”. É uma fase
em que os códigos deste universo ainda não são totalmente dominados, o que produz indivíduos com imagens que não são condizentes com imagens de travestis. Assim, a apresentaçao de uma “bicha-boy” é também chamada de “caricata”. O depoimento de Fernanda Albuquerque (uma travesti) no seu livro é exemplar:
“Ela não era só um
pouquinho melhor do que eu. Meu olhar se acabava no rego que lhe aparecia entre os peitos. Já tinha me condenado: bicha sem peito, sem bunda e com peruca!”
(Albuquerque &
Jannelli: 1995:61). Lopes (1995) também analisa este processo de metamorfose da bicha-boy em travesti. 11
Em “bate-bate” significa travesti.
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Com as formas em forma
“ Eu quero fazer meu corpo, eu não agüento mais ser reta!” (Karen, 17 anos)
É o corpo roliço que representa as formas femininas. As formas e linhas quadradas, retas e angulosas do corpo de homem precisam então serem modeladas de forma a atingir uma aparência redonda e roliça. É aqui que entra o uso dos “químicos” (Lopes, 1995:229), que são dois produtos utilizados nesta fabricação: o hormônio e o silicone. Os hormônios femininos12 são normalmente o primeiro (e para algumas o único) produto a ser acionado com este objetivo. Ainda adolescentes, boa parte das travestis inicia a ingestão ou aplicação de pesadas doses de medicamentos que contenham progesterona e estrogênio. Estas substâncias começam a agir sobre o organismo, desenvolvendo os seios, arredondando os quadris e as pernas, afinando a cintura (e a voz, segundo algumas 13) e diminuindo a produção de pêlos, especialmente os da barba e do peito. E elas dizem mais: o hormônio provoca uma série de modificações que não são necessariamente físicas. O depoimento de Gabriela é exemplar:
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Há hormônios comercializados em cápsulas e também em ampolas injetáveis (normalmente
são medicamentos para contracepção feminina). Os injetáveis são usualmente aplicados nas nádegas, embora Denise tenha me relatado injetar diretamente no peito (pois acredita que o seio se desenvolve mais). A ingestão ocorre em grandes quantidades. O normal para a manutenção de formas é tomar quatro comprimidos por dia ou uma injeção por semana, mas várias travestis me confidenciaram duplicar as doses em algum momento, especialmente quando no início do tratamento. A utilização dos injetáveis normalmente requer o auxílio de outra pessoa, usualmente outra travesti; poucas me relataram a auto-aplicação. E o tratamento com hormônios não pode parar. Uma vez começado, deve ser sempre seguido, sob pena de se regredir, isto é, de perder as formas e os contornos já conquistados. 13
Conforme informações de um médico, a ação dos hormônios não atinge as cordas vocais.
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“Eu acho que o hormônio na vida de uma travesti é a feminilidade toda, tudo tá ligado ao hormônio. Inclusive, tem amigas minhas que quando vão à farmácia comprar hormônios elas costumam colocar assim, ó: ‘—Eu vou comprar beleza.’; porque o hormônio é realmente a beleza na vida de uma travesti. Ele ajuda na pele, que fica mais macia (...), inibiu o crescimento de pêlos, desenvolveu a glândula mamária, entendeu, arredondou formas, e até a expressão do olhar de quem tomou hormônio é diferente (...). A gente fica mais feminina prá falar, prá sentar, e tudo isso é efeito do hormônio no teu organismo.”
O hormônio goza de um status privilegiado: seu consumo parece ser o elemento simbólico que determina o ingresso nesta identidade social em fabricação, nesta moldura social possível. As travestis somente reconhecem outras travestis nas pessoas que fazem ou fizeram uso destas substâncias. Tanto Hélio Silva (1993:133) quanto Suzana Lopes (1995:229) observaram também este fato: é travesti quem (no mínimo) toma hormônios. O hormônio (e conseqüentemente as formas que ele desenvolve no corpo) parece ser um instrumento ritual de passagem, porque é junto com os seios e as formas redondas do novo corpo que a travesti (re)nasce para o mundo, que esta identidade se afirma e se comunica. O silicone é o outro produto utilizado na fabricação do feminino. Este já é um caminho mais imperativo, pois não tem volta: uma vez aplicado, a retirada do 14
silicone é praticamente impossível . Freqüentemente quem faz uso do silicone já têm uma história
de tratamento com hormônios e deseja aprimorar as suas
formas. A decisão parece ser muito bem pensada e refletida, e há algumas travestis que dizem jamais querer fazer uso deste produto. Aplica-se o silicone em praticamente todas as partes do corpo: pernas, joelhos, coxas, quadris, nádegas, seios, face, boca, pés, etc. Ele é um elemento muito valorizado porque além do seu efeito imediato, ou seja, logo após a
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Silva observou um travesti que retirou o silicone dos seios, “voltando” a ser “homem”.
(Silva, 1993: 91). Viviane, entre as minhas informantes também manisfestou o desejo de retirar os seios que foram mo delados com silicone líquido.
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aplicação já se observam seus resultados, como me disse Sofia: “O silicone te dá formas que o hormônio não dá.”.
Já não se recomenda mais modelar os seios com silicone líquido (ainda que várias travestis, especialmente aquelas que tem mais de 40 anos, tenham assim produzido seus seios). O que a maior parte recomenda atualmente é uma cirurgia para implante de próteses de silicone. Algumas travestis entretanto, depois de um tempo, sofrem rejeição ao implante, tendo que retirá-los. Nem mesmo a rejeição somada aos altos valores em dinheiro requeridos para tal fim lhes servem de desestímulo.
As travestis avaliam que no peito os riscos de
aplicação do silicone líquido são maiores. Explicam que além de ser uma região com muitas veias — o que dificulta o trabalho da “ bombadeira”15, o silicone pode “caminhar ” para o pulmão, o que é então igualável à morte. As travestis que já moldaram seus seios com silicone líquido, me contam que depois da aplicação é preciso usar um sutiã muito firme adaptado com um pedaço de madeira entre os seios, para evitar que se fique com “ peito de pomba” ou “peito de sapo” (quando o silicone se une, formando um único seio no meio do peito), além de aplicar toalhas quentes várias vezes ao dia para que os seios tomem uma forma naturalmente redonda, sem que fiquem marcados. Os corpos moldados com silicone são muito admirados por todas as travestis. É um desejo da maioria ostentar formas curvas e perfis suaves. O adjetivo “toda feita” é um elogio de alto grau, pois designa que aquela travesti se moldou com uma “bombadeira” competente, dado o resultado que ficou muito bom, ou seja, um corpo bastante feminino. Seu antônimo seria “toda plastificada”
indicando aplicações mal feitas ou que resultaram numa forma
exagerada ou que debilitem a harmonia do corpo.
15
”Bombadeira” é um termo êmico utilizado para designar aquela que executa as operações
de injeção de silicone, geralmente uma travesti.
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A cirurgia de mudança de sexo parece ser vislumbrada somente como uma possibilidade distante. Esta é uma decisão radical pois significa entre outras coisas abdicar do orgasmo, que é muito valorizado entre elas. As opiniões sobre a mudança de sexo são divididas: a maior parte diz não ter este desejo, mas há outras que dizem que se no Brasil fosse possível ou que se tivessem muito dinheiro para viajar e então consumar o ato, não hesitariam em seguir adiante. De qualquer forma, esta é sempre uma possibilidade quase remota. Hélio Silva observa no Rio de Janeiro este desejo com uma dinâmica parecida: a decisão em “ fazer a cirurgia” funcionaria como algo mais a atestar a “mulher” que vive naquele corpo, um recurso a mais para afirmar sua feminilidade, como maneira de expressar uma identidade íntegra, mas se as probabilidades fossem realmente efetivas, mesmo assim a cirurgia não seria levada a cabo. (Silva, 1996:63) Por fim, outra técnica desenvolvida pelas travestis finaliza a aparência do corpo: “desacuendar a neca”, expressão que designa a arte de esconder o pênis sob a roupa, conferindo uma aparência do genital da mulher. Normalmente puxase o pênis para trás, ocultando-o por entre as pernas, com o auxílio de uma calcinha justa. As travestis que se prostituem executam esta operação cotidianamente e dizem estarem acostumadas com o pênis na nova posição. Todavia, este hábito já não é fundamental, porque o conjunto produzido a partir do emprego de todas estas técnicas corporais cria formas tão convincentes que este passa a ser apenas um detalhe. Há, como bem observado por Hélio Silva, uma feminização do membro, que já não parece ser o mesmo de um “homem” (Silva, 1996: 63), como se em todas as partes do corpo o princípio feminino ali residisse e se reproduzisse.
Moda & estilo
Uma das primeiras atitudes das travestis na construção de sua identidade de gênero feminina é vestir-se com roupas feitas para mulheres. Muitas “monas” me contaram histórias de infância onde se vestiram com as roupas da mãe ou da 12
irmã mais velha e também que, quando ainda não haviam iniciado a modelagem do corpo, era a vestimenta que corporificava as qualidades femininas. “Eu me vestia completamente indefinida, era uma coisa que ninguém sabia o que era!”
me contou Júlia quando de seus quinze anos, ainda antes do uso de hormônios. As roupas e toda sorte de acessórios (bijuterias, apliques, lentes, jóias, lingerie) são itens valorizados pelas travestis. Roupas com decotes ousados ou saias muito curtas e justas estão entre as peças prediletas, que podem ser compradas inclusive de outra “mona”. Outro item básico de qualquer travesti são os vestidos de festa ou de desfile: com certa regularidade e sistematicidade promovem-se concursos de beleza para travestis e os vestidos usados para estes desfiles ou ocasiões são sempre peças muito valorizadas e ostentadas com orgulho. Há um pequeno e esporádico comércio informal entre as “bichas”, onde alguns acessórios e roupas circulam comprados e vendidos por várias donas. Um destes produtos mais mercantilizáveis são os sapatos, que são um produto valorizadíssimo pelas “monas”, que normalmente andam com um sapato de salto alto. Os “saltos italianos” são produto de luxo e quem os tem, não os dispensa tão freqüentemente. Estes sapatos têm um salto muito alto (normalmente medindo de 18 a 20 cm) e também muito fino, produzido num metal resistente. Encontrar sapatos bonitos e que caibam nos pés pode ser outra dificuldade cotidiana, daí o sucesso destes produtos no pequeno mercado informal da noite. Seja qual for o sapato utilizado, o salto alto é outro signo por excelência do feminino. Mesmo as travestis que já são muito altas não o dispensam, sempre a ostentar uma feminilidade em constante produção, afirmação e comunicação. A
maquiagem
(que
compreende
um
código
complexíssimo
de
categorização de diferentes produtos para diferentes fins produzidos por diferentes marcas) e toda sorte de produtos para a pele são amplamente empregados com desenvoltura e regularidade. A maquiagem precisa combinar com a roupa e com o ambiente e não há travesti que ande sem um batom na bolsa, pois a boca pintada é um indício forte do feminino. Também as unhas
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pintadas com esmalte regularmente são acionadas para significar o pertencimento ao feminino. Juntamente com as vestimentas femininas, a maquiagem e o uso de acessórios (brincos, colares, pulseiras, lentes de contato coloridas, anéis, bolsas, etc.) constituem um código complexo de pertencimento. Há uma forma correta, parcimoniosa e eficiente de utilizar estes atributos, o que entre as “bichas-boys”, não está plenamente desenvolvida e que é indicado como um sinal da emergente identidade em transição, não mais menino, mas ainda também não totalmente travesti.
“Ninguém cata que eu sou bicha!”
Mas não basta usar o vestido da irmã ou a saia da amiga ou ter um corpo todo feito, ou o rosto lisinho, com “pele de pêssego”: o importante é “ter estilo”. Carolina me conta que para ser travesti as “ bichas” têm que “...adotar um modelo de mulher, isto é, ou tu é mais garota, ou mais dona-de-casa, ou mais puta, ou mais tímida, ou mais moderna.”.
Elas “escolhem” uma personagem, que será o referencial básico para toda uma série de investimentos que vão além do guarda-roupa: este modelo de mulher vai também conformar os gestos, a empostação da voz, o balanço no andar, a forma de cumprimentar, enfim, todos os usos do corpo nas suas relações e no seu cotidiano16. É um referencial feminino que, uma vez incorporado e tornado habitus, determina e organiza todos os automatismos e posturas corporais. Este “modo de ser” feminino conforma, além do corpo e seus usos, uma forma específica de pensar, agir e sentir, no sentido indicado por Bourdieu (1980) para hexis corporal. É um jeito de se portar no mundo que é “sensato”, isto é,
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Como exemplo de uso paradigmaticamente feminino do corpo é o ato de urinar sentada
como o fazem habitualmente as mulheres.
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está dotado de sentido prático (Bourdieu, 1980) o que faz com que estes comportamentos e percepções do mundo apresentem coerência e sentido. Esta hexis corporal é resultado de um longo aprendizado que é, antes de tudo, corporal. É a experiência do corpo que percebe o mundo significante. Assim, uma determinada visão de mundo é incorporada e com ela todas as percepções e as práticas que lhe são correlatas. É sua identidade de gênero feminina (associada a seus habitus de classe, de geração, de religião, etc.) que, corporificada, organiza toda uma série de investimentos, comportamentos e sentimentos desses sujeitos. Como sublinha Bourdieu (1980) a oposição entre masculino e feminino é o princípio fundamental de divisão do mundo social e do mundo simbólico. As travestis aprendem a se sentir femininas, a agir de forma feminina e ver o mundo com olhos, pensamentos e uma cultura feminina.
Feminino e feminina?
O sistema de gênero no Brasil tem sido objeto de estudo de vários trabalhos antropológicos, talvez pela sua especificidade ou diferença dos sistemas correntemente indicados para os Estados Unidos e Europa Ocidental, ou mesmo pela falta de estudos sobre esta temática naqueles países. Segundo Kulick (1997), Cornwall (1994) e também Parker (1991), o sistema de diferenças de gêneros no Brasil atual está baseado não tanto no sexo (como está baseado o sistema Norte Euro-Americano), mas antes na sexualidade, encontrando sua organização no par de oposições ativo/passivo, ou penetrador/penetrado. Esta diferença de origem acaba por produzir percepções e práticas diferentes do que deva ser um homem e uma mulher, ou como nos afirma Kulick: “Gênero na América Latina deve ser percebido não como consistindo no par homem e mulher, mas antes no par homem e não-homem; o último sendo uma categoria onde tanto mulheres biológicas quanto homens que apreciam serem analmente penetrados estão culturalmente situados. Esta localização específica produz indivíduos — não somente homens que
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apreciam serem analmente penetrados, mas todas as pessoas — com um quadro conceitual com o qual podem rearranjar com o objetivo de entender e organizar seus próprios desejos, corpos, relações físicas e afetivas e papéis sociais e também dos outros.” (1997:575, tradução livre)
Desta forma, as travestis, ainda que possuam o aparato genital e reprodutivo masculino, não são classificadas como homens (como seriam, segundo o autor na Norte Euro-América): estão classificadas antes na categoria residual de “não-homem” (Kulick, 1997) que compreende todos os sujeitos (inclusive as mulheres) que têm papel passivo ou de penetrado no ato sexual. Já Cornwall (1994) sublinha a impotência explicativa das categorias de “sexo”, “gênero” e “sexualidade” no sentido que são utilizadas correntemente na Norte Euro-América para a compreensão do fenômeno travesti no Brasil. Esta autora afirma que o sistema de gênero no Brasil não apresenta as diferenças entre homens e mulheres somente em função da aparência e da anatomia, mas também em termos de “atividade” (agency), isto é, do papel assumido durante o ato sexual. Para ela, as travestis representam e vivenciam uma identidade de gênero que se caracteriza antes de tudo por ser ambígua: as travestis são ao mesmo tempo femininas e masculinos. É aqui que cabe discutir o que é identidade de gênero. Minha proposta é argumentar em favor de que a identidade de gênero, fator fundamental na constituição da identidade social dos sujeitos, está incorporada, isto é, esta distinção entre masculino e feminino como um fenômeno primordial da cultura (Bourdieu, 1980) organiza, dá sentido e fornece um quadro conceitual para a concepção que os indivíduos têm sobre o que sejam corpos, desejos, relações, sentimentos, visões de mundo. Suas percepções e práticas são informadas e formadas no e pelo corpo, que é antes de tudo um corpo generado, se aqui nos permitirmos o neologismo. Mas quero também argumentar que as travestis se mostram um caso excelente para refletir sobre o “embodiment”, ou “encorporamento” como o fenômeno de aquisição destas características, conforme explanado por Csordas (1988). Para este autor, o corpo não pode ser visto como algo que é depositário 16
da cultura, ou que os fenômenos da cultura acabam por moldá-lo de tal ou qual maneira. Esta seria uma explicação já culturalmente reificada. “O corpo é a base existencial da cultura.”,
afirma Csordas. (1988: 5) O
“embodiment” como paradigma para analisar situações culturais rejeita a distinção entre corpo e mente, entre sujeito-objeto e até mesmo entre percepção e prática. O corpo é um princípio unificador de todas essas distinções, que são em si um produto reificado culturalmente. “O corpo é um campo de percepção e prática.”
nos diz Csordas (1988: 35); é no corpo que acontece a cultura. O
fenômeno da cultura gera um corpo significante num mundo de significados. Por isso, a identidade de gênero e a identidade social são vistos aqui não como produto mental mas sim como um corpo. A percepção em si nos outros do que seja feminino e masculino levada a cabo pelas travestis e por todas as pessoas não pode ser concebida como um fenômeno mentalístico ou subjetivo; esta distinção encontra-se localizada e marcada nos corpos. Entre as travestis, que são objeto da atenção deste trabalho, o corpo e a própria identidade social são percebidos de forma ambígua: tanto masculino quanto feminina. Assim, há “lócus privilegiados de significância” (Cornwall, 1994) que, dependendo da situação ou do contexto, são acionados para representar e localizar o masculino 17 e também o feminino (conforme descrição apresentada nos sub-itens “Cotidiano a contra-pêlo”; “Com as formas em forma”; “Moda & Estilo” e “Ninguém cata que eu sou bicha”). A identidade de gênero, e conseqüentemente a identidade social das travestis está ancorada e produzida no e pelo corpo, porque como todos os fenômenos da cultura, estes estão incorporados desde o início, desde o princípio da existência destes sujeitos. As travestis têm um corpo que antes de tudo também é ambíguo. É um corpo de homem feminino, não é percebido como um corpo de mulher, porque como me disse Patrícia numa entrevista : “Sem essa de 17
Conforme o depoimento de Bárbara: “A gente gosta tanto de trepar porque a gente
também é homem!”
ou o argumento de Paula: “Eu não gosto do verão porque eu sofro. Na
hora de trepar a gente transpira muito, que nem homem..”
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bicha ser mulher, eu nasci homem e sou homem, só que sou feminina”.
É um
corpo de travesti, como nos contava Márcia no início deste ensaio. Assim, as travestis não são e nem querem ser mulheres, nem tampouco possuírem corpos de mulheres, ainda que este seja para elas seu principal referencial do que seja feminino. As travestis “se sentem femininas”, mas um feminino diferente, outra possibilidade de feminino (Silva, 1993) que contempla em si também o masculino. Prova disto é o próprio fato de que as travestis executam e desenvolvem pesados investimentos e técnicas para produção deste feminino nos seus corpos, que é um feminino que não é antagônico ao masculino, mas antes reside próximo à tênue linha divisória destes dois domínios na cultura brasileira. Pois as experiências de ser feminina em um corpo de homem são qualitativamente diferentes das experiências de ser feminina em um corpo de mulher. (Cornwall, 1994) Arrisco-me a dizer, por fim, que as travestis corporificam os processos de aquisição destas identidades de gênero de forma totalmente nova e diferente, porque da mesma forma que concebem sua identidade de gênero e, conseqüentemente sua identidade social, de forma ambígua, também assim percebem o seu corpo. Ele é necessariamente ambíguo, com características masculinas e femininas, natural e artificialmente produzidas. As travestis, em seus corpos, invertem a eqüivalência dos termos das oposições básicas masculino/feminino = cultura/natureza, para a nova combinação feminino/masculino = cultura/natureza. Assim é o corpo. É preciso moldá-lo, esculpi-lo e conformá-lo de forma a incorporar percepções e práticas sobre a sexualidade e sobre o gênero, fatores estrurutantes da identidade social.
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