Dan Sperber
Estruturalismo e Antropologia
ESTRUTURALISMO E ANTROPOLOGIA Dan Da n Sperbe Spe rber r Éste livro focaliza, em termos de descrição crítica, alguns dos principais a spectos da obra antropológica de Claude Lévi-Strauss, obra que, melhor do que qualquer outra, contribuiu decisi vamente para dar à atividade estrutural de pesqui sa e teorização o prestigio de que ela hoje desfru ta no campo das Ciencias Humanas. Conforme êle próprio assinala logo no inicio de E s t r u t u r a l i s m o e A n t r o p o l o g í a , preocupou-se o seu autor em considerar aqui “os dois domi nios prediletos da análise estrutu ral: o parentesco e a mitologia, e duas hipótes es implícitas: urna sôbre a natureza dos fatos sociais, outra sôbre o espirito espirito hum ano” . Assim é que, que, com base nesse nesse ro teiro de trabalho, cuida êle de enfocar, no capítulo de abertura do livro, os sistemas de parentesco tão detidamente estudados por Lévi-Strauss, que os conceituou “como urna especie de linguagem, ou seja, um conjunto de operação destinadas a assegu rar, entre os individuos e os grupos, um certo tipo de comunicaç ão” . O segundo capítulo ocupa-se da leitura estrutural dos mitos como sistemas simbólicos: a sua análise em mitem as, a classifica ção dos mitemas em paradigmas, a explicação das dimensões semânticas do mito no plano sociológico, cosmológico, etc., e da sua dependencia do univer sal humano. No capítulo terceiro, detém-se Dan Sperber nns estruturas comunicativas — de código c de réde — , do mesmo passo em que mostra a inadequnçflo dos modelos estruturalistas atuais pa ra n expllcaçSo dos sistemas políticos. O capítulo final comidera os instrumentos da pesquisa estru tural o inodêlo e o grupo de transformaçõe s —
Coleção
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QUE É O ESTRUTURALISMO?
QUE É O ESTRUTURALISMO?
O Estruturalism o não é, como apregoa ram tantos de seus mal informados ou mal in tencionados divulgadores, uma passageira moda intelectual, criada especialmente para o deleite dos esnobes da cultura. É, isto sim, um dos mais sérios e fecundos empenhos de que se tem notícia, nos últimos tempos, de dar rigor científico às chamadas “ciências do signo” ou às ciências ciências humanas. Inspirado na nova ma neira de enfocar os problemas do signo que teve seu ponto de partida no pensamento lin güístico de Ferdinand de Saussure, o método estrutural, graças sobretudo às brilhantes apli cações que dêle fêz Claud e Lévi-Strauss no campo da pesquisa antropológica, não tardou a conquistar para si novas áreas de aplicação na Sociologia, na Psicanálise, na Filosofia, na Teoria da Liter atura , etc. Daí ser ser indispensável, a quem queira estar em dia com o que haja de mais atual e válido nessas disciplinas, familiari zar-se com as origens históricas, os problemas metodológicos e as contribuições teóricas do Estruturalismo. A coleção “Que é o Estruturalismo?”, que a Cultrix ora coloca ao alcance da curiosidade intelectual do leitor brasileiro, particularmente do leitor universitário, constitui-se em excelen te roteiro roteiro introdutório nesse sentido. Compos ta de cinco volumes, focaliza a série, sucessiva mente, as relações entre o Estruturalismo e a Lingüística, a Poética, a Antropologia, a Psica nálise e a Filosofia. Cada volume, preparado por um especialista na matéria, é autônomo e apresenta, em têrmos de balanço histórico e
Uma visão panorâmica, concebida em têrmos de rotei ro histórico e introdução crítica, das principais contri buições trazidas pela pesquisa estrutural às Ciências Humanas. Volumes Volumes de caráter autônomo, autônomo, preparados por especialistas nos diversos campos disciplinares. 1. ESTRUTURALISMO E LINGÜÍSTICA — Osivald Ducrot 2. ESTRUTURALISMO E POÉTICA — Tzvetan Todorov 3. ESTRUTURALISMO E ANTROPOLOGIA — Dan Sper ber 4.
ESTRUTURALISMO E PSICANÁLISE Mo ustafa afa Safouan Safo uan — Moust
5. ESTRUTURALISMO E FILOSOFIA — François Wahl
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ANTROPOLOGIA Tradução de A m é l ia
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EDITORA
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C U L T R IX
SÃO PAULO
Titulo do original:
LE STRUCTURALISME EN ANTHROPOLOGIE In Incl cluido uido no volume volume
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QU’EST-CE QU’EST-C E QUE LE STRU CTU RAL ISM E? © Editions du Seuil, Seuil, 1968. 1968.
ÍNDICE
In t r o d u ç ã o
11
CAPÍTULO I
AS ALIANÇAS MATRIMONIAIS 1.
Proibição do incesto e circulação das mulheres
15
2.
Proibição extensa: os sistemas Crow-Omaha
18
3.
Prescrição estrita: as “Estruturas Elementares”
20
4.
Insuficiência dos modelos de permutação
27
5.
Quais são as estruturas elementares empiricamente possíveis?
32
Problemas suscitados pela interpretação de Claude Lévi-Strauss
38
6.
CAPÍTULO II MCMLXX Direitos de tradução para o Brasil adquiridos pela EDITÔRA CULTRIX LTDA. Rua Conselheiro Furtado, 648, fone 278-4811, S. Paulo, que se reserva a propriedade literária desta tradução. Impresso no Brasil Printed in Brazil
OS MIT OS 1.
47
2.
Mito Mitolo logi giaa e Estrut Estrutura urali lismo smo Leitura estrutural de um mito
3.
Crítica da leitura
58
4.
As transfor transformações mações dos mitos mitos entre si
61
5.
Teoria mitológica e terminológica lingüística
66
49
CAPITULO III
SISTEMAS E MODELOS DE COMUNICAÇÃO 1.
Estrutu ras de comunicação comunicação
73
2.
Sistemas Sistemas de comunicação
75
3.
O caso dos sistemas políticos
79
4.
Orientação da pesquisa
85
CAPÍTULO IV
AS ESTRUTURAS DO ESPIRITO HUMANO 1.
Necessida de da explicação
91
2.
Os instrumen tos estruturalistas
92
3.
O homem e a diversidade cultural
107
4.
Os dispositivos humanos
111
Bib l i o g r a f ia
116
Êste texto é resultado de um trabalho empreendido em Oxford, no Nuffield College e no Instituto de Antropologia Social, de 1963 a 1965, e depois disso continuado em Paris, no qua dro do C .N .R .S . e do Grupo de Pesqui Pesquisa sa em em Antropologia Antropologia e Sociologia Sociologia Política dirigido por Georges Balandier. Os estímulos, estímulos, as observações e as sugestões do Dr. Rodney Needham, que diri giu êste trabalho, foram um apoio constante par a mim. Os Srs. Daniel de Coppet, Pierre Smith e François Wahl releram o manuscrito, e muito devo às suas críticas amigáveis. amigáveis. La st bu t not least, gostaria de sublinhar a profunda dívida intelectual que, como a maioria dos jovens antropólogos, tenho em relação a Claude Lévi-Strauss. O texto texto que aqui se se apresen ta trata, e de de um ponto de vista particular, de apenas alguns aspectos de sua obra científica, obra para a qual não há outra introdução senão uma formação de antropólogo.
Como todo antropólogo, o estruturalista toma por objeto a diversidade das manifestações humanas, e consagra urna parte essencial do seu trabalho a fazer-Ihes o inventário. Além disso, contudo, um método nôvo lhe permite retomar o interesse dos Clássicos pe la universalidade do humano . É déste último e duplo aspecto que se tratará aqui. Tentar-se-á dizer aquilo que o estruturalista afir ma acerca do huma no e do social. Por afirmação entende-se uma proposição fundada e enunciável de tal maneira que se possam conceber-lhe contraprovas e, dado o caso, afirmá-la: afirmar é excluir. Seja dito, desde logo, que a questão que se pro põe responder aqui não é habitualmente a do estrutu ralista. A antropologia estrutural é um conjunto de pesquisas em curso, mais do que uma teoria estabele cida. Seu mérito menos contestável é de haver am pliado de modo sistemático o inventário da perti nencia; para isso, terão sido suficientes fundamentos provisorios e resultados ainda pouco explicitados. Por três razões, não será respeitada aqui tal fe cunda prudên cia. Em primeiro lugar, o Estruturalis mo em Antropologia, particularmente o de Claude Lévi-Strauss, nos parece comportar um certo número de afirmações gerais, fundadas e referidas aos fatos.
Em contrapartida — e em segundo lugar —, existem domínios da vida social, como o político, aos quais o tratamento estruturalista dificilmente se aplica; reque rem êles modelos apenas mais complexos do que os utilizados até agora, ou modelos diferentes? Isso de pende do que os modelos excluam. Em terceiro lugar, um empenho característico do Estruturalismo de Claude Lévi-Strauss consiste em fundar a relação do uni versal com o particular sobre as relações de transfor mação dos modelos entre si. Esta forma de proceder nos parece comportar uma afirmação, implícita pelo menos, acerca da natureza dos fatos — à qual cum prirá interrogar. Ao apresentar o Estruturalismo como uma teoria tanto quanto, e mais que um método, afastamo-nos da interpretação do próprio Claude Lévi-Strauss, que está na origem da maior parte dos debates. No entanto, depois que Noam Chomsky demons trou que em Lingüística o Estruturalismo seria um mé todo pa rtic ula r — falso, de resto, no seu enten der -— e não o método da Ciência, convém perguntar-se se, também na Antropologia, não se trata de uma teoria — falsa ou correta. É apenas esta questão que, no pre sente estado das pesquisas, queremos propor ao estru turalista, ao seu crítico, a seu leitor, ao submeter-lhes nossa posição. Serão considerados dois domínios prediletos da análise estrutural: o parentesco e a mitologia, e duas hipóteses implícitas: uma sôbre a natureza dos fatos sociais, outra sôbre o espírito humano.
12
I
AS ALIANÇAS MATRIMONIAIS (*)
o
1.
P r o ib iç ã o
d o
d a s
I n c e s t o
e
C ir c u l a ç ã o
M u l h e r e s
1.1. Os fatos de parentesco. Os fatos de pa rentesco são diversos tanto em têrmos dos planos nos quais se situam quanto do modo pelo qual cada socie dade os realiza: fatos de linguagem com terminolo gias; atitudes para com parentes, com condutas de evitação, de “familiaridade”, de hostilidade ri tual, etc.; práticas econômicas, rituais, políticas; re gras de filiação, de herança; organização das gerações; proibição do incesto, universal mas de extensão dife rente; regras de casamento que proibem, prescrevem, privilegiam cônjuges possíveis.
(!) Éste capítulo requer do leitor pouco familiarizado com os problemas tratado s uma ate nção que êle talvez julgue cansativa. Não se quis renunciar ao vocabulário, aos diagramas, aos modelos sem os quais o atual estado da questão não poderia ser apresentado. De resto, êste capítulo forma um todo cuja leitura só é indispensável para a do § 2.2 do capítulo IV.
1.2. A proibição do incesto, “regra universal”. Todos êsses fenômenos agem uns sôbre os outros, mas não se determ inam rigorosamente entre si. Não basta, por exemplo, conhecer a terminologia de parentesco de uma sociedade para deduzir suas regras de casa mento, nem conhecer o sistema de atitudes para de duzir as regras de sucessão, etc. De preferê ncia a per manecer numa complexidade desordenada, ou a privi legiar cada aspecto por vez, Claude Lévi-Strauss parte daquele que parece ser o mais inelutável, a proibição 15
do incesto: regra social, portanto, mas universal e que participa, assim, da natureza dos fatos (2). Tratada como fenômeno natural, ou seja, bioló gico, a proibição permanece incompreensível, visto que em certas sociedades ela discrimina entre primos paralelos (primos derivados de coirmãos de mesmo sexo) proibidos, e primos cruzados (primos derivados de coirmãos de sexos opostos) permitidos, ou então entre primas cruzadas patrilaterais (filhas da irmã do pai) proibidas e matrilaterais (filhas da irmã da mãe) permitidas. Relações de mesmo grau de consangüini dade são submetidas à proibição em alguns casos, en quanto que em outros lhe escapam e mesmo se tornam o tipo da relação matrimonial. Tampouco se poderia explicar a proibição do in cesto por um desinteresse sexual em relação aos pró ximos; se êsse fôsse o caso, por que interdizer aquilo que ninguém desejaria fazer? Não se trat a de sabe doria biológica, dado que muitas sociedades ignoram a genética, e que, de resto, a genética não condena o incesto. Impõe-se então explicá-la por uma série de causas particulares, como o faz Durkheim? Mas por que então a universalidade? A aliança matri monial. 1.3. Claude LéviStrauss resolve o problema ampliando-o para abran ger não apenas os aspectos negativos, mas também os positivos da proibição: interditar a união com as mu(2) Notar-se-á, entreta nto, que, se em cada sociedade as relações sexuais são interditadas com certos parentes, a extensão e a severidade da regra variam. Pròpriamente falando, é a proibição, não a regra, que é universal. Por outro lado, cumpre sem dúvida distinguir a proibi ção do incesto pròpriamente dito, ou seja, de relações sexuais, da proi bição do casamento, cuja extensão pode ser muito maior. Ve r adiante, no § 4.2, uma observação da mesma ordem.
16
lheres próximas equivale a tornar necessária a união com mulheres mais longínquas e, no mesmo passo, liberar as primeiras em proveito de homens mais dis tantes; é fazer da união dos sexos o objeto de uma tran saç ão: uma aliança matrimo nial. Assim se instaura uma comunicação que, como Lévi-Strauss mostrará, opera de modo regrado: as alianças futuras dependem das alianças passadas. É claro que os casamentos de uma sociedade, to mados em si próprios, não são independentes uns dos outros. Pelo simples fato da proibição do incesto, cada união torna, pelo menos na geração seguinte, im possíveis certas uniões. Mas para além desta limitação evidente obedece ainda o conjunto de casamentos a uma regra interna, e isto em cada sociedade? Sim, tal é pelo menos a tese de Lévi-Strauss. Como se verá mais adiante, alguns casos a ilustram perfeitamente. Que significa, contu do, essa tese em sua generalidade? 1.4. Cadeias e ciclos. Se uma mulher proibida para um homem A, sua irmã por exemplo, esposa um homem B, cuja irmã esposa um homem C, cuja irmã esposa um homem D, etc., tem-se uma cadeia de alianças matrimoniais. Se o conjunto de casamen tos de uma sociedade não obedece a outras imposições internas que não a proibição do incesto (cujo efeito é justam ente o estabelecimento dessas cadeias, visto que um A deve esposar um não-A), então todos os arran jos concebíveis são efetivamente, e pela mesma razão, possíveis. As cadeias podem fechar-se em ciclos ou não, e os ciclos podem indiferentemente ser longos ou curtos. Apenas a existência das cadeias seria então notável; sua forma não importaria. 17
1.5. A hipótes e estruturalista. A hipótese estruturalista é que em cada sociedade, mesmo naquelas em que os casamentos parecem resultar apenas de es colhas individuais, ditadas por considerações econômi cas ou afetivas, estranhas ao parentesco, certos tipos de ciclos tend em a se constituir. Se uma ordem pode existir nos casamentos de uma geração, mesmo não sendo êles diretamente coordenados, é porque depen dem dos casamentos das gerações precedentes. -Esta dependência está para ser confirmada nas sociedades que, a exemplo da sociedade ocidental moderna, não lhe impõe regras explícitas. Por outro lado, são num e rosas as culturas nas quais as alianças nas gera ções anteriores especificam, de modo negativo e amplo, ou positiv o e restrito, os casamentos possíveis.2.
P r o ib i ç ão E x t e n s a :
O s S i s te m a s C r o w - O m a h a
Especificação negativa nos sistemas Crow-Omaha (cujo nome deriva de duas sociedades indígenas da América do Norte, nas quais êsse tipo de sistema foi particu larme nte estudad o) : como a sociedade ociden tal moderna, as sociedades de tipo Crow ou Omaha se contentam em estabelecer editos para proibições, mas elas as concebem de modo radicalmente mais am plo. Tais sociedades dividem-se em clãs ma tri ou patrilinea res exógamos. Os rebentos de um casamento contratado por um clã A num clã B não podem con tratar um casamento análogo durante certo número de gerações. Cad a nova aliança modifica, assim, o conjunto das alianças possíveis e transforma os novos aliados em parentes, tal como o testemunham as ter minologias características dos sistemas Crow-Omaha. Cada aliança deve ser diferente das alianças con 18
tratadas anteriormente, e disso deriva, sem margem para dúvidas, um arranjo muito particular das cadeias de aliança. Sabe-se da existência da e strutura des sas cadeias, mas aind a se ignora qual seja. A com plexidade dos dados e a multiplicidade das escolhas que permanecem para além das proibições requerem um tratamento matemático, sem o qual não se pode riam descobrir as leis estatísticas que governam os sis temas Crow-Omaha. 3.
As
P r e s c r iç ã o
“E s t r u t u r a s
E s t r it a : E l e m e n t a r e s ”
Defi nição . Há sistemas que, como os 3.1. Crow-Omaha, restringem poderosamente o número de casamentos lícitos, mas, neste caso, especificando-os pos itiv ame nte: as alianças anteriores, longe de não po derem ser repetidas, dão o tipo das alianças pos síveis. Só se pode rão contr ata r alianças análogas àquelas formadas anteriormente pelos ascendentes. Num sistema como êsse, é possível, como se verá, identificar a categoria dos cônjuges permitidos para uma categoria de pais. Par a o conjunto de sistemas nos quais essa possibilidade existe, Claude Lévi-Strauss fala de estruturas elementares de parentesco. Para melhor mostrar os problemas ainda suscitados pe lo estudo dessas estruturas, elas serão apresenta das numa ordem diferente, quase inversa da adotada por Lévi-Strauss. Sistemas que tais podem valer-se ou não da su cessão das gerações — decidindo, por exemplo, que os casamentos de uma geração serão semelhantes aos da 19
f ig u r a
ho mem
1
A A
=
A ---- > B
O
fil iação
r ~ 1— I ——-
casamento
A
A
mulher
sentido das alianças
(Vos tomadores aos doadores de mulheres) FIGURA 2
B
A
A<=
B
B
1>
A=
1
6“
A—õ
-A. B
C
A — 6“
Quer as alianças sejam bilaterais (Fig. 2), quer a filiação seja patri linear (como foi arbitràriamente representada aqui), ou matrilinear, quando as alianças se fazem no mesmo sentido em tôdas as gerações, a espôsa sempre pertence à categoria da filha do irmão da mãe (Fig. 1, que se reencontra nas Figuras 2 e 3).
20
geração dos avós, e diferentes dos da geração dos pais. Serão considerados, inicialmente, os sistemas que não usam um mecanismo como esse. 3.2. Sistemas sem alternância do sentido das alianças. Suponhamos que os homens de uma linha gem A esposam em tôdas as gerações as mulheres de uma linhage m B. Neste caso, as mulheres B tornam-se, a partir da segunda geração, filhas dos irmãos das mães dos homens A. Em outros têrmos, o casa mento se faz na categoria dos primos cruzados matrilaterais (cf. Figu ra 1 ). Se, além disso, os homens B tomam suas esposas de A, então as mulheres B tam bém são filhas das irmãs dos pais dos homens A; ou seja, primas cruzadas patrilineares. O casamento se faz então com as primas cruzadas bilaterais. O ca samento de primos cruzados bilaterais é freqüente mente associado a uma organização dualista da socie dade, que se limita ent ão às duas linhagens A e B (cf. Figura 2). Notar-se-á que, nas linhagens exógamas, os pri mos paralelos (derivados de coirmãos do mesmo sexo) pertencem à linhagem e são, portanto, proibidos (e, as mais das vêzes, assimilados aos irmãos e irmãs). Quando a isto se soma que a regra de casamento é unilateral e sem variação do sentido das alianças de geração em geração, então tal regra é necessàriamente matrilateral e a prima cruzada patrilateral é proi bida. Daí a utilidade, na terminologia de uma socie dade como essa, de uma distinção entre primas patri e primas matrilaterais, e a possibilidade de assimilar a categoria destas últimas à de esposas. Enquanto um sistema de aliança bilateral pode funcionar com duas linhagens, são necessárias pelo 21
FIGURA
B. \
.
A. M fi
^
1
!
\ CL
1
J ^
A
4: o
SISTEMA KACHIN E. R. LEACH)
('SEGUNDO
A, B e C são linhagens de chefes de distritos, qu e se c asa m e m cír cu lo e são d oa do ra s de m ulheres às linhagen s dos chefes de aldeia de cada um de seus distritos.
Assim, A doa mul her es à linh agem de seu chefe de aldeia a, que, por seu lado, se casa em círculo com as linhagen s b e c dos outros chefes de aldeia do mesmo distrito.
a, por seu turno, doa mulheres à linhagem plebéia tt, que habita sua aldeia e se casa em círculo com as linhagens plebéias p e y.
oc
T f i g u r a
5:
ALGUNS IX)S CICLOS DE ALIANÇA PURUM (s e g u n d o R..
NEEDHAM)
A linhagem Julhung do cia Kheya ng (A) recebe mulheres de cinco grupos (B, C, D, E e F), além de outros que nao estão representados na Figura, e as áo a a três grupos G, H e I. A despeito da multipli cidade de ciclos, as alianças são unilaterais e sempre no mesmo sentido. Elas se realizam, portanto, necessàriamente, com parentes matrilaterais e o casamento se faz na categoria da prima cruzada matrilateral.
22
menos três para permitir um sistema de aliança uni lateral: se A toma suas esposas de B, cumpre que êle dê suas mulheres a uma terceira linhagem C, que, por sua vez, pode eventualmente dar as suas a B, fe chan do assim o ciclo. O sistema se confunde, então, com um ciclo único (cf. Figura 3). 3.3.
Multipli cidade de ciclos nos sistemas uni
É sob a forma de um ciclo único e de exten são determinada que algumas das sociedades que praticam a “aliança assimétrica” (unilateral) se representam seu próprio sistema. Ao mesmo tempo, contudo, parece poder-se afirmar — e a isso voltare mos — que a propriedade dos sistemas assimétricos seja de funcionar com uma multiplicidade de ciclos de extensões diversas. Edmund Leach e Rodney Needham (os dois an tropólogos britânicos que mais contribuíram para a difusão das idéias de Claude Lévi-Strauss entre seus colegas de língua inglêsa) insistiram ambos nesse ponto. Tomamos-lhes de empréstimo dois exemplos: os 300 000 Kach in da Alta Birmânia, assim como os cêrca de 300 Purum de Manipur, ao leste da índia, praticam a aliança assimétrica matrilateral, com uma multiplicidade de ciclos. laterais.
3.3.1. O exemplo Kachin. Os Kachin, estu dados por Edmund Leach (3), concebem suas alian ças matrimoniais como operando de modo circular entre cinco clãs patrilineares. Por outra parte, con tudo, a relação não-recíproca doador/tomador de mu(3)
Para tôdas as referências, ver a bibliografia.
23
lheres (mayu/dama) polariza tôda a vida social: os doadores são considerados superiores aos to madores. Em conseqüência, se os chefes de uma un i dade política devessem tomar as esposas entre seus súditos, o sistema estaria em contradição consigo pró prio. Esta contradição é em par te resolvida pela multiplicidade dos ciclos: as linhagens aristocráticas de alguns distritos se casam “em círculo” e são, em princípio, exclusivamente doadoras de mulheres, su periores, portanto, às linhagens plebéias de cada um de seus distritos (cf. Fig. 4). 3.3.2. O exemplo Purum. Pa ra os Purum, co nhece-se o pormenor das alianças matrimoniais, rela tado por Tarak Chandra Das e analisado por Rodney Needham . Considerando somente uma parte dos ciclos de aliança dos quais participa apenas um dos treze grupos reunidos em cinco clãs (a linhagem Julhung do clã Kheyang) obtém-se uma rêde a tal ponto complexa que pouco tem a ver com a fórmula simplificada da aliança assimétrica, mas que lhe res peita entretanto a regra (cf. Figura 5). O casamento se efetua sempre numa categoria de parentes matrilaterais, e nesta, em particular, a prima cruzada no sentido genealógico. O diagra ma simplificado genea lógico (cf. Figura 3) não é contudo uma repre sentação adequada do sistema, cujas propriedades es senciais, além da assimetria, são a multiplicidade e a extensão variável dos ciclos. 3.4. Sistemas com alternância do sentido das alianças: o sistema Aranda. Em contraposição, os sis temas que alternam o sentido das alianças de gera 24
ção em geração se limitam normalmente a um ciclo único, de extensão dada , e simétrico. É o caso dos Aranda da Austrália, cujo sistema pode ser representado da seguinte maneira (cf. Figura 6 ):
FIGURA 6:
O S I S T E M A A R A ND A
fi li açã o pa te rn al (no s doi s se nti dos ) fi li ação mat er na l (n o se nt id o da fl ex a) aliança (nos dois sentidos)
Sejam quatro grupos A, B, C, D e uma alternância de gerações 1 e 2, portan to oito classes Aj, A2, Bls Bo, C1} Co, Dj, Do. 25
Seja uma permutação (4) p tal que os filhos de um homem de X pertençam à classe p ( X ) : f Ai A2 Bi B2 Ci C2 Di D2 ] P =
tem por valor m — pf-1 (em outros têrmos, os filhos de uma mulher pertencem à classe dos filhos dos ho mens da classe de seu ma rido ). Logo:
i
f Ai A2 Bi Ba Ci C2 Di D2 ] m = \ [ B2 Di A2 Ci D2 Bi C2 Ai J
[ A2 Ai B2 Bi C2 Ci D2 Di J
Seja uma permutação / tal que a esposa de um homem de X pertença à classe / ( X ) : f Ai A2 Bi B2 Ci C2 Di D2 ]
f =\
\
[ Bi D2 Ai C2 Di B2 Ci A2 J
Eis o sistema inteiramente descrito. Em um siste ma como esse, com efeito, cada indivíduo pertence a uma e única classe de que todos os membros do mes mo sexo se casam em uma e única classe. Pode-se, portanto, deduzir disso que a permutação m, tal que os filhos de uma mulher de X pertençam à classe m (X),
fABGDI (4) Um a permutação q = | q a D B j se ^ c o lu na p or co lu na , de alto a baixo: “A dá C, B dá A, C dá D, D dá B”, ou ainda: q ( A) = C , q (B) = A, etc. O inverso de q escreve-se g"1 e se lê como q, mas de baixo para o alto: “A dá B, B dá D, etc.” íABGD) O produto de q por um a permutação r = j D B A C f se aplicando primeiro g e depois r a cada elemento; í AB GD ] ~ portanto, rq = j ^ d G B j ' ^ n o t a? ^ ° e indica a permutação idên tica, na qual e (X) = X (X designando indiferentemente seja A, se \ d 1 í ABC D ja B, se ja C, et c .) . Po r exe mp lo, e — | BCD Êsses modelos de permutação aplicados ao parentesco foram ela borados por A. Weil num anexo das Structures élémentaires de la pf lr en té , e depois por White, e por Courrège.
Verificar-se-á que: a) p X p = e; ou seja, o neto pertence à mes ma classe que seu avô; como há oito classes, há pois quatro grupos patrilineares. b) m X . m X m X . m - e; ou seja, uma filha pertence à mesma classe que sua trisavô, e há por tanto dois grupos matrilineares (pelo menos potencial mente) . c ) / — m p m' 1m-1 — m m pA mA = p m p-1p '1 — p p m'1p '1. Em outros têrmos, os primos oriundos de primos cruzados do mesmo sexo casam-se entre si. É importante notar que os sistemas com alternân cia de gerações envolvem classes matrimoniais e que a regra de casamento pode ser expressa em têrmos de classes. Nos sistemas sem alternân cia de gerações, en contram-se linhagens ou um gênero de grupo de fi liação, e a regra se exprime em têrmos de categorias de parentesco. 4.
I n s u f i c iê n c i a s
nos
M odelos
Pe r m u t a ç ã o
Mode los e definição das estruturas ele 4.1. mentares. Ê s t e m o d e l o d a e s t r u t u r a A r a n d a p e r t e n c e a uma família de modelos concebíveis que se pode de-
6 26
d e
IBLIOTECA «¿te: If, r.íncte ÜBWM*** ¡.eiras s Me*
2 7
finir da seguinte forma: um grupo triplo de permuta ções num conjunto, tal que ésse conjunto represente uma divisão da população em classes exógamas; tal que essas três permutações representem a relação en tre a classe do pai e a dos filhos, entre a da mãe e a dos filhos, e entre a de um homem e a de suas esposas possíveis; e tal, enfim, que, conhecendo-se duas das permutações, se possa calcular a terceira. Em par ti cular, basta conhecer as duas classes dos pais para de duzir a da esposa; a classe da esposa é também a de um tipo particular de pais (por exemplo, “prima cru zada bilateral”). Os modelos dessa familia (que podem, em teo ria, representar sistemas com ou sem alternância, si métricos ou assimétricos) satisfazem portanto à defi nição dada por Claude Lévi-Strauss para as estrutu ras elementares do parentesco: “Entendemos por estruturas elementades de parentesco os sistemas cuja nomenclatura permi te determinar imediatamente o círculo dos pa rentes e o dos aliados; ou seja, os sistemas que pres crevem o casamento com um certo tipo de pa rentes; ou, se se preferir, os sistemas que, ao de finir todos os membros do grupo como parentes, distinguem êstes em duas categorias: cônjuges possíveis e cônjuges proibidos.” (Structures élémentaires de la parente, p. IX). Todo sistema adequadamente representado por um dos modelos de permutação definidos acima seria ipso facto um caso de estrutura elementar no sentido de Lévi-Strauss. Tentar-se-á mo strar, con tudo (cf. § 4.3): 28
a) Que certos casos de estrutur a elementar não são adequadamente representados por nenhum dos mo delos de permutação. b) Que alguns dos modelos logicamente conce bíveis não correspondem a nenhum modêlo empirica mente possível. Se tivermos razão, a teoria dos modelos de per mutação não poderia ser uma teoria geral do paren tesco elementar. Voltaremos a esse ponto no quarto capítulo, no qual serão tratadas as relações, na an tropologia estruturalista, entre teoria geral e mode los de sistemas particulares. Exogamia e proibição do incesto. Mas, 4.2. para começar, um fato trivial: o número de classes não poderia ser ilimitado. Tamp ouco poderá reduzir-se a dois. sem acarre tar uma ligeira inadeq uação do modêlo. Sejam duas classes A e B. Tem-se necessàriamente : fAB] f = \
[B AJ
fAB1
} e seja p = \ [A BJ
fAB]
}•, seja m = \
j-.
t ABJ
Do que se segue que, seja m — f, p = f; em outros têrmos, quer a mãe quer a filha pertencem à classe das esposas. Ora , nos sistemas de “meta des” há proi bição do incesto com a mãe e filha; esta proibição se junta, sem se confundir com ela, à exogamia de me tade, que é a única representada pelo modêlo. De modo geral, um modêlo no qual tanto p como m iguala a permutação idêntica e, vale dizer, 29
no qual os filhos pertencem seja à classe de sua mãe seja à de seu pai, deve ser completado por uma regra que proíba, ademais, o casamento com a filha ou com a mãe. Além disso, mesmo num sistema com alter nância de gerações (no qual m ^ e e p ^ e e no qual m = mA, ou então p — pA), se as avós ou as netas são explicitamente proibidas, então faz-se mister ain da uma regra suplementar. Pode ser que a exogamia e a proibição do incesto sejam fundadas no mesmo princípio; mas elas têm cada qual as suas próprias regras.
Entre os sistemas unilaterais concebíveis, há b) alguns que, segundo Rodney Needham (5), são empi ricamente impossíveis: os sistemas patrilaterais (ou seja, nos quais o casamento se faz com a filha da irmã do pai, e nos quais a filha do irmão da mãe é, pelo FIGURA 7:
7a
O MODELO P ATRIL ATER AL
A
B
C
4.3. Modelos de sistemas assimétricos. Mais notável é o fato de que, na família de modelos que se definiu, só são adequados a sistemas reais aquêles em que / — f-1, vale dizer, aquêles em que a regra de casa mento seja bilateral. Os modelos de sistemas assimétricos (nos quais f f' 1) são inadequados de duas maneiras: a) Ocorre que todos os sistemas assimétricos co nhecidos são matrilaterais e operam entre um número indefinido de grupos, aliados segundo vários ciclos (cf. § 3. 3) . Trata -se de um fato que simplesmente constatamos, e que não é logicamente necessário nem necessàriamente trivial. Em contrapartida , os mode los de permutação implicam um número dado de clas ses e um ciclo único pa ra cada classe. Êles represen tam, portanto, no máximo, uma fórmula extremamen te simplificada dos sistemas assimétricos reais. Deixam de lado certas propriedades que, como se mostrou com o exemplo Kachin, são indispensáveis para a inteligi bilidade do sistema. 30
(5) R. Needh am chamou-nos a atenção para o fato de que essa idéia já havia sido expressa pelo antropólogo holandês F. A. E. Van Wouden em 1935.
31
contrário proib ida). Tais sistemas supõem, com efei to, a inversão do sentido das alianças em cada geração (cf. Figura 7); como o sentido dessas alianças está em piricamente ligado à assimetria das relações sociais entre os grupos, a alternância das gerações implica ria ao mesmo tempo que um grupo A dominasse um grupo B e fôsse dominado por êle. Esta é somente uma das razões pelas quais, conforme Needham, se explica a impossibilidade de encontrar sistemas co mo êsses. Se as observações a) e b) forem justificadas, conclui-se que, ainda que certas estruturas elementares sejam adequadamente representadas por modelos de permutação, a família desses modelos não é adequa da para o conjunto da estruturas elementares do pa rentesco. Resta contudo uma eventualida de que me rece ser encarada: poderia dar-se que os modelos de permutação permitissem definir os conceitos de assi metria e de alternância das gerações da maneira mais satisfatória, para exprimir com rigor certas genera lizações. 5.
Q u a i s Sã o a s E s t r u t u r a s
E le m e n t a re s
E m p i r i c a m e n t e P o s s ív e i s ?
5.1.
Assimetria e alternânc ia do sentido das
Um a estrutura elementar, com a equação que implica entre uma categoria de parentes e a ca tegoria dos esposos, ordena as relações sociais de ma neira própria. Esta ordenação pode ser especifi cada de três maneiras: pode haver uma multiplicidade de ciclos, a exemplo de uma divisão da população alianças.
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em classes matrimoniais, de modo que os homens de uma classe A só esposem as mulheres de uma outra classe B (caso ao qual os modelos de permutação são adequ ados) . Ém segundo lugar, a aliança pode ser simétrica ou assimétrica. Em terceiro lugar, a regra de casamento pode ser, ou não, de molde a implicar uma alte rnância de gerações genealógicas. Estas três especificações, logicamente independentes, estão con tudo empiricamente ligadas, e parece poder-se afirmar aproximadamente isto: a divisão em classes não é compatível com a assimetria, e a multiplicidade de ciclos não é compatível com a alternância das gerações. Pode-se discutir, todavia, o conteúdo exato que convém dar aos conceitos de simetria e alternância. Poder-se-ia sustentar que um sistema patrilateral é simétrico em um sentido, visto que, num sistema como êsse, dois grupos A e B são reciprocamente doa dores de mulheres um em relação ao outro, sendo que o grupo A dá mulheres de geração 1 e as recebe de geração 2 ; como, ademais, se trata de gerações genea lógicas, a troca pode muito bem ser simultânea; houve quem visse nisso uma forma de troca direta (cf. Robin Fox, Kinship and Marriage, capítulo 7). A questão, aqui, é saber se há que pôr ênfase na regra unilateral ou na relação “direta” entre grupos aliados. Tampouco é perfeitamente clara a noção de alternân cia de gerações (cf. adiante, § 5.2). Êsses conceitos recebem, entretanto, uma defini ção precisa se os relacionamos aos modelos de permu tação. Definir-se-á a simetria como a propried ade de um modêlo / = /-1, vale dizer, no qual tanto os ho mens quanto as mulheres de uma classe A se casam na mesma classe B. Definir-se-á a alter nância das ge 2
rações como a propriedade de um modelo no qual a regra de casam ento (ou seja, o valor específico de /) é tal que não se poderia ter nem p — e, nem m — e, o que equivale a dizer que os filhos não pode riam pertencer nem à classe de seu pai nem à de sua mãe. Adotadas provisoriamente essas definições, verificar-se-á que todo sistema (e não somente o patrilateral) cuja regra excluísse o casamento com a ca tegoria à qual pertence a prima cruzada matrilateral seria ipso facto caracterizada por uma al ternâ ncia de gerações. (Em outros termos, / 7^ p nr1 implica p ^ e e m ¥=e.) S e é feita a inversão entre antecedente e conseqüente, a implicação deixa de ser logicamente verdadeira, o que logo nos proporá um problema. Dados os fatos conhecidos até h oje (todos os sis temas de aliança assimétrica são matrilaterais e não têm divisão em classes) (6), pareceria que as duas ge neralizações seguintes fôssem fundadas: 1) Não há alternân cia de gerações sem uma di visão da população em classes, tal que os homens de uma classe se casem em apenas uma outra classe. (6) O célebre caso dos Mu rngin não tem valor de contra-exemplo. Se se quer dar conta simultáneamente do sistema simétrico com 8 classes e da regra de casamento m atrilateral, h á duas possibilidades lógicas que parecem empiricamente excluídas, e uma possibilidade empírica que não é lógica. As duas possibilidade s lógicas são: um sistema de 8 X 4 = 32 classes, ou então um sistem a de 8 X 2 = 16 classes com dois sub conjuntos endógamos de 8 classes. Não há razão pa ra cre r que essas soluções estranhas correspondam de perto à realidade, à revelia dos próprios Murngin. A possibilidade empíric a é que não haja mais de oito classes e que, por conseg uinte, o sistema de classes e a reg ra de casamento sejam, em certa medida, mutuam ente incoerentes. O fato de que um sistema possa ser incoerente não deixa de ter interesse, mas não tem relação imediata com a questão que nos preocupa.
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2) Não há divisão em classes sem uma simetria tal que tanto os homens quanto as mulheres de uma classe A se casem numa mesma classe B. Se as duas generalizações são válidas, então: um sistema patrilateral está completamente excluído; um sistema assimétrico está necessàriamente associado a uma multiplicidade de ciclos; um sistema bilateral pode estar associado com uma alternância de gerações ou com uma multiplicidade de ciclos. Resta a possibilidade de que duas generalizações semelhantes sejam válidas, mas não com os conceitos de permu tação que utilizamos. Êste seria o caso, por exemplo, se a existência de um “sistema oblíquo des contínuo” (casamento com a filha da irmã, distinta da filha da irmã do pai) estivesse confirmada (ver os trabalhos de P.-G. Rivière). 5.2. Um contra-exemplo possível: o casamen to com a filha da irmã. As equações que defi
niriam um tal sistema são as seguintes (ver Fi gura 8 ) : / = m e / ^ mpA. Verificar-se-á que destas equações se segue que / = p nr1 (em outros têrmos, a filha da irmã é, ao mesmo tempo, a filha do irmão da mãe), e sobretudo: p ^ e e m ^ e (ou seja, há ne cessàriamente alternância de gerações no sentido dado a esta noção no parágrafo precedente). Disso decorre que, se se encontrasse um tal sis tema: com classes matrimoniais, êle infirmaria a ge neralização (2 ); sem classes, infirmaria a generali zação (1). Poder-se-ia então ser tentado a abando nar uma ou outra das generalizações, ou ambas, mas ain da restaria dar conta da ausência de sistemas patrilaterais.
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Que fazer se tal caso se verificasse? Ora , há um sentido possível do conceito de simetria que distingue o casamento patrilateral do casamento com a filha da irmã: no primeiro caso, irmãos e irmãs se casam em linhagens diferentes, ao passo que no segundo caso êles se casam na mesma linhagem. Um a definição como essa seria útil se um sistema de casamennto com a filha da irmã se encontrasse associado a classes matrimoniais, e se se quisesse conservar uma genera lização semelhante a (2) . Dito isso, tal definição de assimetria é um tanto controvertida, e, tanto quan to sabemos, não foi sugerido que um sistema como êsse pudesse encontrar-se em classes matrimoniais do tipo australiano (7). Há também um sentido possível do conceito de alternância que diferenciaria o casamento com a fi lha da irmã do pai do casamento com a filha da irmã: no primeiro caso, o pai e o filho se casam em linha gens diferentes, há alternância; no segundo caso, êles se casam na mesma linhagem, não há alternância. Uma definição que tal parece razoável; ela permiti ria conservar uma generalização semelhante a (1 ) se um sistema de casamento com a filha da irmã fôsse encontrado, como é provável, sem um sistema de classes. Essa definição de alte rnân cia certamente se pode exprimir em termos de permu tação (sim(7) Notar-se-á, todavia, que Lévi-Strauss encara a possibilidade de um sistema de tipo australiano de casamento com a filha da irmã, que constituiria o “elo perdido” entre os sistemas com duas metades e os sistemas com oito subseções, e a “fórmula teórica” do sistema Murngin (les Structures élémentaires de la parente, pp. 229-232). Pa rece, entreta nto, ha ver apenas um sistema matr ilateral simples, e êle não nota que, no seu modêlo, “filha do irmão da mãe” = “filha da irmã”.
36
fi li açã o pa te rn al ( nos doi s se nt id os )
•■
fi li açã o ma te rn al
e aliança (no sentido da jlexa)
plesmente: f ^ pm -1) mas, diversamente da definição adotada no § 5.1., ela não corresponde a uma cate goria “natural” nesse formalismo, pois a noção perti nente aqui não é mais a de classe, mas a de linhagem. Duas observações mais. Primeiro , mesmo que as generalizações desejadas pudessem exprimir-se util mente em têrmos de permutação — o que, como se acabou de mostrar, está longe de ser evidente —, elas não se pode riam explicar nesses têrmos. Os modelos de permutação têm por meta formalizar a idéia se gundo a qual as estruturas de parentesco são regidas pelo “princípio de reciprocidad e” (cf. § 6. 4) . Se as estruturas de parentesco fossem apenas regidas por regras de troca, a assimetria ou a simetria, a alternân cia ou a não-alternância do sentido das alianças e a multiplicidade ou a unicidade dos ciclos poderiam combinar-se livremente. Se uma combina tória que tal 37
não está inteiramente disponível, é porque às im posições da troca se conjugam as imposições do signo, conjugação que será o único objeto do ca pítulo 3. Em segundo lugar, reunir os dados disponíveis sob a forma de generalizações apresentará um interes se restrito se não se fundarem estas últimas sôbre uma hipótese concernente à natureza dos fatos encarados. É uma hipótese como essa que permitirá escolher um conjunto de conceitos de preferência a um outro, e não uma elegância formal que muito bem poderia ser desprovida de qualquer alcance empírico. 6.
P r o b l e m a s d e
S u s c it a d o s
C l a u d e
P el a
In t e r p r e t a ç ã o
L é v i-S t r a u s s
Em les Structures éiémentaires de la párente, Claude Lévi-Strauss oferecia uma apresentação e che gava a uma interpretação diferente, sob vários aspectos, daquelas propostas aqui: 6.1. Troca “restrita” e troca “generalizada Procurou-se mostrar que os modelos logicamente con cebíveis não são todos igualmente adequados, e que al guns nem mesmo correspondem a qualquer sistema real. Lévi-Strauss parece querer mostrar, pelo contrário, que todos os modelos logicamente concebíveis devem ser retidos sem distinção (8). É por isso que êle parte dos (8) Impõe-se precisar ainda que o problem a da formalização permanece marginal nas Structures éiémentaires; que os fatos de que nos valemos aqu i pa ra nossos argumentos são postos em evidência e co mentados pelo próprio Lévi-Strauss, e que, se êles nos parecem pro blemáticos, é porque limitamos nossa discussão àquilo que, na teoria estrutura l, é claram ente formalizável e, portanto , em princípio, infirmável.
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sistemas australianos com aliança simétrica e núme ro fixo de classes (“troca restrita”) para chegar aos sistemas unilaterais com número indefinido de grupos (“troca generalizada”). É verdade que o modêlo simplificado dêstes últimos sistemas esclarece em par ticular as terminologias de parentesco, mas será neces sário que êle obscureça uma complexidade estrutural mente pertinente? 6.2.
Sistemas “harmônicos” e sistemas “desar-
Claude Lévi-Strauss interp reta a alter nân cia das gerações dos sistemas australianos como o re sultado de uma diferença entre a regra de filiação e a regra de residência. Assim, quan do se perte nce ao grupo da mãe, mas se reside com o pai, o sistema será dito “desarmônico”. Se, pelo contrário, a regra de filiação fôsse patrilinear e a regra de residência patrilocal, o sistema seria “harmôn ico” . Daí duas gene ralizações diferentes daquelas sugeridas mais acima: ligam-se os sistemas desarmônicos à troca restrita e a troca generalizada aos sistemas harmônicos. Pode-se, contudo, dizer que um sistema de troca restrita como o dos Aran da é desarmônico? Sua re gra de residência é patrilocal; seria necessário, por tanto, que sua regra de filiação fôsse matrilinear para que o sistema fôsse desarmônico. É verdade que se pode calcular uma permutação m que divida a socie dade Aranda em dois grupos de filiações matrilineares potenciais (cf. § 3.4 supra). Mas: a) as “meta des” matrilineares são desprovidas de conteúdo em pírico; b ) não há razão lógica para privilegiar a per mutação m em relação à permutação p, nem, pois, para considerar que os Aranda sejam matrilineares e não patrilineares, desarmônicos e não harmônicos. mônicos”.
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*
Louis Dumont consagrou recentemente um artigo a essas questões (“Descent or Inter-marriage”), no qual nos inspiramos para representar o sistema Aranda. Nesse artigo, êle denuncia os preconceitos dos antropó logos segundo o qual um sistema de parentesco seria sempre dominado por uma regra de filiação. Um sis tema como o dos Aranda é marcado antes de mais nada pela alternância das gerações. As generalizações de Claude Lévi-Strauss sôbre a troca restrita e generalizada, em termos de harmo nia e desarmonia, parecem pois conter uma hipótese demasiado forte acerca do papel das regras de resi dência e filiação. Em co ntrapa rtida, elas são mais fracas que as generalizações propostas mais acima, na medida em que não excluam os sistemas patrilaterais. Ora, Rodney Needham mostrou que os raros casos propostos de estruturas elementares patrilaterais, ou não eram patrilaterais, ou não eram elementares (mas veremos que êste último ponto é co ntestad o). Eis porque propusemos ligar a alternância das gerações, e não a desarmonia, à troca restrita, e a troca genera lizada à ausência dessa alternância, e não à harmonia; daí duas generalizações mais poderosas (vale dizer, mais excludentes) que aquelas adiantadas nas Structures élémentaires de la parente em 1949. 6.3.
Sistemas “elementares”, “prescritivos”, “pre
Nas pStructures élémentaires, a definição de “elementar” era ambígua: tratava-se de uma re gra que ora prescrevia o casamento com uma catego ria de parentes, ora privilegiava uma dessas categorias. Conhecem-se, com efeito, sistemas prescritivos, nos quais um casamento não conforme à regra requer uma validação particular, e sistemas preferenciais,
ferenciai s”.
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nos quais um certo tipo de aliança é valorizado, sem que por isso outras alianças sejam menos normais. Rodney Needham interpreta “elementar” como prescritivo; os modelos elaborados a partir da obra de Lévi-Strauss são, efetivamente, modelos de sistemas prescritivos. No entanto, em “The Future of Kinship Studies”, Claude Lévi-Strauss rejeita a pertinên cia da distinção: nenhuma prescrição é inteiramente seguida, ainda que uma regra preferencial esteja afe ta ao espaço genealógico da mesma maneira, se não no mesmo grau, que uma regra prescritiva. A ma neira pela qual o espaço genealógico é afetado fica esclarecida pelo modêlo, que apresenta de mo do mecânico fatos que são sempre de natureza estatística. Mas: a) Os modelos propostos, já inadequados aos sistemas de ciclos múltiplos, são-no ainda mais aos sistemas preferenciais. Não somente os sistemas preferenciais se afastam ainda mais dêsses modelos de um ponto de vista estatístico, mas, sobretudo, não mais estabelecem um limiar entre os casamentos que obedecem à regra e os outros. Se o elementar é dilatado até incluir o pre b) ferencial, perdem-se as generalizações propostas mais acima; há, por exemplo, sistemas preferenciais patri laterais, como os Trobriandeses, estudados por Malinowski. 6.4. O “princípio de reciprocidade” . LéviStrauss atribui menos importância que nós às gene ralizações do tipo proposto, e mais à “curvatura” do espaço genealógico; isto devido à interpretação que dá ao parentesco, em geral, e não mais somente ao 41
parentesco elementar. Dessa interpreta ção muito rica, só poderemos reter aqui os elementos essenciais. A circulação das mulheres se faz de acordo com os princípios de uma troca recíproca. Que se deve en tender por isso? Mais que o simples fato de que, de vido à proibição do incesto, os homens devam aban donar suas irmãs para receber as dos outros; menos do que a idéia, manifestamente falsa, de que êles re cebam tanto quanto deram. Lévi-Strauss parece que rer dizer que a circulação das mulheres se efetua de maneira tal que as cadeias de alianças tendem a fe char-se em ciclos de tipos particulares. Quand o um círculo se abre, uma linhagem dá uma mulher; tão logo o ciclo se volta a fechar, uma mulher lhe é restituída. Êste “princípio de reciprocidade” é pró prio ao homem em geral, e governa o parentesco in dependentemente dos outros sistemas, econômicos, po líticos, etc., que influenciam a circulação das mu lheres, mas não a explicam. As uniões matrimoniais fundam as relações ge nealógicas em função das quais se estabelecem as alianças. A circulação das mulheres obedece a regras internas, independentes das características extraparentais das mulheres trocadas. Trata -se de uma tese verificada ou verificável para os sistemas prescritivos, preferenciais ou Crow-Omaha, mais difíceis de inter pretar para uma sociedade como a nossa. Segundo Claude Lévi-Strauss, esta estrutura in terna do conjunto das alianças matrimoniais é uma es trutura de comunicação: a “comunicação das mu lheres”, pela qual os grupos se realizam e significam sua relação de reciprocidade. Atentemos (a isso se voltará no terceiro capítulo) para que, em termos de 42
comunicação, tem-se aí uma estrutura de rêde: re gras de comunicação independentes das diferenças en tre os objetos (mulheres) comunicados. Numerosos estudos surgidos após Les str uctu res élénientaires de la parenté contestam precisamente êste derrade iro ponto. Êles mostram que, mesmo nos sistemas australianos, as alianças são objeto de estra tégias complexas, e são influenciadas em alto grau pela posição social das mulheres: a prátic a não de pende senão em pa rte das regras da aliança. Isto não refuta em nada a análise que Claude Lévi-Strauss faz das próprias regras, mas concerne mais ao lugar dessas regras entre os fatos de parentesco. É no estudo das próprias regras, e não em sua utilização, que encontramos dois problemas gerais, ambos ligados à exclusão dos sistemas patrilaterais: a) Ta l exclusão não se explica nem pelo “prin cípio de reciprocidade”, nem pelos princípios da tro ca em geral. Impõe-se considerar, pois, uma estrutura que seja mais, ou outra coisa, que uma estrutura de troca (cf. § 5. 2) . A isso voltaremos no terceiro ca pítulo. b) Os modelos de permu tação utilizados ofe recem um dos únicos exemplos de formalização estruturalista . Só parcialm ente é que êles são ade qua dos, contudo; em particular, não permitem prever a exclusão dos sistemas patrilatera is (cf. § 4.3). Disso deriva um problema metodológico, que será retomado no quarto capítulo. Por ora, esperamos ter mostrado que a análise es trutural do parentesco conduz a numerosas proposi ções gerais, fundadas e infirmáveis (mas não infir madas), portanto científicas. 4}
11
OS M I T O S
1.
M it o l o g ia
e
E s t r u t u r a l is m o
1.1. Teorias simbolistas e funcionalistas. Po de-se, com Edmund Leach, classificar as teorias dos mitos em dois grupos: simbolistas e funcionalistas. As primeiras, que dominavam no início do século com a escola alemã, depois com Frazer e Freud, e que sem pre seduziram os diletantes da mitologia, tomam dire tamen te as narrativas míticas como objeto. Ao contexto sociológico em que os mitos são narrados os simbolistas dedicam escassa atenção. Na narrativ a mítica, êles reconhecem símbolos familiares, e podem assim decifrá-los. Malinowski, um dos pais do funcionalismo, cha mou a atenção para o quanto essas decifrações se riam especiosas, o quanto fracassavam no dar conta da função efetivamente exercida por um mito no con texto social par ticul ar em que é utilizado. Sua aná lise funcional, todavia, como as análises simbólicas anteriores, peca não tanto pelo que tem de arbitrária quanto pelo que deixa de arbitrário nos próprios mi tos; ambas as análises retêm apenas alguns elemen tos do mito; o resto torna-se divagação. ' De um ponto de vista etnocêntrico, podem-se con siderar os mitos como divagações, como discursos li bertos das regras de verossimilhança. Isso se faz es1
47
quecendo a que ponto os mitos do mundo inteiro se assemelham e, no fundo, testemunham rigor. Ê mais legítimo supor que obedeçam a regras próprias, muito mais gerais que os contextos, diferentes conforme as culturas em que aparecem. 1.2 .
O enfoque estruturalista,.
O estruturalista
considera os mitos, todos os mitos, como dependendo de um sistema simbólico. Como os simbolistas, êle se interessa primeirame nte pelo texto (sem obstar-se de esclarecê-lo pelo contexto cult ura l). Mas os sim bolistas, que trabalhavam sôbre o objeto próprio, não procura vam nêle o sistema. Em contra partida , os funcionalistas procuravam o sistema onde êle não poderia estar: nas condições variadas do uso dos mitos. Se o empenho do estruturalista o incita a pro curar um sistema por detrás dos mitos, também lhe sugere uma concepção particular do que o sistema possa ser: êle procura rá corta r a narra tiva mítica em elementos mínimos, os “mitemas”, e classificá-los em paradigma s. De fato, a leitura penetran te que LéviStrauss oferece dos mitos leva-o a deixar de lado as operações de corte (découpage) e de classificação dos “mitemas”, e muito mais a utilizar operações não sô bre os elementos mas sôbre a própria totalidade do mito.! Êstes problemas ainda permanecem em segundo plano: mal saímos, hoje, de uma interp retação dos mitos de desalenta dora pobreza. A êsse respeito, os dois primeiros volumes das Myt hologiques surgidos até o momento ( Le Cru et le Cuit e Du miei aux cendres ) abrem uma verdadeira brecha. Começa-se a saber ler. 48
1.3. O problema das variantes. Note-se, de passagem, que essa leitura somente se tornou possível pela rejeição de um falso problema. Os analistas fre qüentemente viam um obstáculo na multiplicidade de versões disponíveis para u m único mito. Procurava m a versão “boa” p ara reje itar tôdas as outras. Claude Lévi-Strauss observa que o mesmo dispositivo mental está na origem de tôdas as versões de um mito. É a sua própria diversidade que deveria permitir dêle ex trair-se a estrutura comum. Esta última idéia já havia sido expressa pelo folclorista russo Vladimir Propp, em 1928, e utilizada por Georges Dumézil, desde an tes da guerra. Raramente se encontra um limiar bem definido entre as variantes de um mesmo mito e um outro mito, próximo do primeiro. Par a a leitura de um mito, o estruturalista de bom grado recorre, cada vez mais, a tôda a mitologia: tome-se um mito das My tho lo giques; encontrá-lo-emos confrontado em diversos lugares com mitos diferentes, e êstes somente se tor narão inteligíveis quando confrontados com ainda ou tros mitos; logo teremos lido os volumes surgidos e sentiremos que, para a leitura do primeiro mito, fa zem falta os volumes futuros. Claude Lévi-Strauss parece ter adotado o lema de Jacob Burkhardt: “É preciso pensar alto”. 2.
L e it u r a
E s t r u t u r a l
d e
u m
M it o
2.1. Mi to Ter ena da origem do tabaco. Am plia-se, assim, o inventário do que é pertinente à lei tura dos mitos. Tomar-se-á como exemplo disso um mito Terena da origem do tabaco, ao quàl Lévi-Strauss 49
retorna com freqüência, sem no entanto consagrar-lhe uma análise de conjunto: “Havia uma mulher que era feiticeira. Ela man chava de sangue menstrual as plantas de caraguatá (uma bromeliácea cujas folhas centrais têm manchas vermelhas na base), que depois dava a comer ao ma rido. Após comer, êle caminh ava ma ncando e não ti nha gôsto pelo trabalho. “Aconselhado pelo seu filho, o homem anuncia que vai buscar mel no mato. Depois de ter entrecho cado as palmilhas de suas sandálias de couro para achar o mel mais fácilmente, êle descobre uma col meia embaixo de uma árvore e uma cobra bem perto. “Reservando o mel puro para o filho, êle con fecciona para a mulher uma mistura feita de mel e da carne de embriões de serpente, extraídos do ven tre da que tinha matado. “Tão logo a mulher começa a comer sua porção, o corpo lhe começa a coçar. Coçando-se, ela anuncia ao marido que o vai devorar. O homem foge, trepa num a árvore na qual se aninh am papagaios. Êle acalma momentaneamente a ogra lançando-lhe um após o outro os três passarinhos que estavam no ni nho. Enq uanto ela persegue o maior, que esvoaça para escapar-lhe, o marido se salva indo em direção de uma fossa que êle próprio havia cavado como ar mad ilha de caça. Êle a evita, mas a mulher cai no buraco e morre. “O homem tam pa a fossa e a vigia. Um a vege tação desconhecida cresce no local. Curioso, o ho mem deixa secar as folhas ao sol; chegada a noite, bem escondido, êle as fuma. Seus compa nheiros o sur JO
preendem e o interrogam. Assim os homens ad quiriram a posse do tabaco.” ( Le Cru et le Cuit, p. 108, Du miei aux cendres, p. 395, segundo Baldus.) 2.2. Duas etapas. Um texto como êsse tem, desde logo, uma significação lingüística ordinária: trata de uma certa mulher que suja o alimento de seu marido , etc. É o sentido lingüístico que nos pe r mite parafra sear o mito, traduzi-lo, resumi-lo. Mas o mito não é somente uma narrativa: por detrás do sentido narrativo buscar-se-á um sentido propriamen te mítico. Par a tanto, procederemos em duas etapas: a) Pa ra revelar o sentido mitológico, tenta r-se-á primeiramente mostrar que segmentos da nar rativa são portadores de uma significação diferente de seu sentido lingüístico. A êles se atrib uirão valores semânticos novos sôbre um pequeno número de di mensões (9) pertinentes ao pensamento mítico. b ) Mostrar-se-á que êsses valores estão organi zados entre si, sem relação imediata com a ordem da narrativ a. Por um lado, as dimensões são reag rup a das em alguns pla nos : plano sociológico, plano tecnoculinário, etc.; por outro lado, em cada um dêsses planos, os valores do mito são ligados por um arranjo comum. Nos têrmos de Lévi-Strauss, uma mesma “armadura” rege vários “códigos”. Retornemos, contudo, ao mito Terena: 2.3. As dimensões do mito. (®) Esclareçamos com u m exemplo os conceitos de “valor ” e “dimensão” : os têrmos de parentesco “pai” e “mã e” podem ser de finidos por meio de valores sôbre três dimensões: valor “prim eira ge ração ascendente em relação ao ego” sôbre a dimensão da geração; valor “em linha direta” sôbre a dimensão da lateralidade; valor “masculino” para pai, “feminino” para mãe, sôbre a dimensão do sexo.
51
2 . 3 . 1 . No nível dos segmentos. Numerosos paralelismos e oposições entre os temas dêsse mito ocorrem ràpida ment e ao espírito. Por exemplo: — entre a mulher “aberta” sôbre as plantas de caraguatá e a mulher fechada sob as plantas de tab aco; — entre a mulher que envenena naturalmente um alimento e o homem que envenena um alimento natural por meio de um preparado; — entre o caráter vegetal dos alimentos envene nados (para os índios, o mel — que se acha nos tron cos das árvores ôcas — é vegetal) e a origem animal dos venenos; — entre a necessidade de o homem ser advertido das causas do seu mal, e o saber imediato da mulher envenenada, etc. Do conjunto dessas oposições pode-se destacar um pequeno número de dimensões, ou variáveis, se mânticas que admitem, cada qual, apenas dois ou três valores. Assim, a dimensão do alto e do baixo (ou do acima e do abaixo) vale não somente para a posição relativa da mulher e das plantas, mas também para o homem empoleirado na árvore e a mulher caída na cova. O interno e o externo (ou o aberto e o fecha do) concernem igualmente aos embriões da serpente. O vegetal e o animal se encontram na busca carnívo ra da mulh er e no tabaco fumado pelo marido. O segrêdo e a revelação caracterizam ainda todo o último episódio, no qual o tabaco é dado ao conjunto dos homens. 2 . 3 . 2 . No nível das partes. A narrativa míti ca como um todo parece, também ela, construída 52
sôbre oposições: os dois primeiros episódios (os en venenamentos) e os dois últimos (perseguição carn í vora e tabagismo) envolvem formas de consumo opos tas à alimentação human a normal. No entanto, ao passo que os dois primeiros temas se opõem a essa ali mentação ao sujá-la, ao torná-la imprópria para o con sumo, o terceiro se situa aquém da alimentação hu mana, do lado da alimentação animal; o quarto se situa além, do lado de um consumo que já não é ali mentar, fumaça que, nessa sociedade, se eleva rumo aos sêres sobrenaturais. Além do mais, a narrativa mítica na íntegra é testemun ha de uma progressão: do primeiro ao ter ceiro episódio, assiste-se a uma disjunção crescente da mulher, de um lado, do homem, da cultura e da humanidade do outro, e isto por meio de um afasta mento da cozinha, acentuado de episódio em episódio. O quarto episódio, pelo contrário, conjuga o homem, o tabaco, as técnicas do tabaco e, por fim, a socie dade dos homens. 2.4. Os planos do mito. Prossegue-se obser vando que disjunção e conjunção marcam várias das dimensões referidas mais acima ou, mais exatamente, vários grupos de dimensões semánticamente ligadas entre si, particularmente no plano tecno-econômico e no plano sociológico. Plano tecnoculinário. O mel e o tab a 2.4.1. co, conforme as Myth ologique s, situam-se aquém da cozinha, num caso, e além dela, no outro: o mel, sem ser cozido, tem tudo de um alimento cozinhado; quei ma-se o tabaco pa ra consumi-lo. A êsses três têrmos, o mito acrescenta dois outros, sôbre um eixo que se
poderia dizer perpen dicular ao primeiro: o veneno que se opõe à alimentação humana ao torná-la inconsumível; a carne fresca cujo consumo, inumano, é pro pria mente bestial. Por meio dessas dimensões, o mito situa todos os atos de consumo, um por um, em oposição à cozinha, aqui afastada das atividades humanas. Em contrapartida, e pelo mesmo movi mento, o homem é tornado senhor do tabaco e de suas técnicas. 2 . 4 . 2 . Plano sociológico. No plano sociológico, vemos o casal separar-se. A separação reca i sobre a mulher: ela é rejeitada para fora da humanidade. O homem aparece como eminentemente cultiva do; todos os seus comportamentos manifestam um savoir faire: técnica para achar o mel, envenenar, apanhar a mulher na armadilha, finalmente usar o tabaco; parcimônia na utilização da linguagem: êle dissimula suas intenções, guarda o segrêdo, depois o revela. A mulh er é na tura l: envenena com seu san gue, coça-se, consome o cru; mostra-se tão imediata, tão pouco prevenida que não usa a palavra senão para dar ao seu marid o tempo de fugir. No final do mito, uma conjunção sociológica: aquela do herói e da so ciedade dos homens. 2 . 4 . 3 . Plano cosmológico. Os dois elementos dêsse mito que menos se compreendem atraem a aten ção de Claude Lévi-Strauss: a claudicação do herói envenenado e o batime nto das sandálias. A cham ada por batidas não corresponde a uma técnica verificada da procura de mel e, de resto, é encontrada entre os mitos em contextos totalme nte diferentes. O estudo dos materiais comparativos permite associar o apêlo 54
por batidas aos “instrumentos das trevas” que as so ciedades européias, por exemplo, utilizam durante o período pascal. De modo mais geral, o ruído se as socia aos eventos cósmicos e os instrumentos das tre vas à mudan ça das estações. A claudicação se acha também ligada a uma mudança dêsse tipo, e Claude Lévi-Strauss é levado a opor-lhe o desequilíbrio ao ciclo regular das estações; ela poderia significar o de sejo de ver a estação sêca se encurtar em proveito da estação úmida. A cha mad a por batidas e a claudica ção intervêm justamente no ritual Terena que marca o início da estação sêca. É també m na sêca que o ta baco permite esquecer a penúria e mantém os homens, que a fome impeliria rumo ao “estado de natureza”, em contato com os sêres sobrena turais. Pode-se arriscar a hipótese de que, no plano das relações do homem e do cosmo, tem-se uma disjunção expressa pela clau dicação, depois um acôrdo reencontrado mediante o apêlo por batidas e evocado no final do mito pela sucessão do tabaco secando ao sol e do fumante noturno. 2.4.4. As duas oposições fundamen tais. mito Terena se disporia portanto a partir de duas oposições fundamentais, paralelas e contraditórias: en tre natureza e cultura por um lado, entre aquilo que, na cultura, permanece submetido à natureza, e aqui lo que lhe escapa, por outro lado; a mulher aí está, demasiado natural na cultura, a cozinha demasiado feminina, tanto uma quanto a outra ligadas em de masia ao homem para que êste pertença plenamente à cultura. Na verdade, não há uma separação rigoro sa entre natureza e cultura, mas uma interpenetra ção, uma superposição. O mito vai fundar a descon55
O
tinuidade necessária ao pensamento, rechaçando para a natureza aquilo que lhe pertencesse, ainda que pou co, e traçando aí uma brecha intransponível. É pre ciso que a cozinha seja afastada para separar o ca sal, é preciso que o casal seja separado para enviar a mulher, não “aos seus fornos”, onde ela seria reen contrada depressa demais, mas antes à animalidade. Reencontra-se, então, a sociedade dos homens (10), a cultura impassível diante das provações sazonais. Explica-se assim, não a origem do tabaco, mas aquilo que o torna tanto bom para fumar como “bom para pensar”. 2.4.5. A segunda parte do mel. Se o mito cor responde à descrição que acabou de ser feita dêle, tor na-se possível dar um sentido a um pormenor parti cular. O marido, de volta de sua busca, prepara duas partes de mel; um a é pu ra; êle a dá ao filho. Não há dúvida de que, para o pensamento Terena, a separa ção de gerações é muito n ítida: a ambigüidade da infância não constitui problema como a feminilidade, o filho alimentado permanece humano em confronto com a mulher envenenada; mas, comedor de mel, êle é natural em relação aos adultos fumadores de taba(10) à boire )
É agradável encontra r uma canção francesa que não diz outra coisa:
de
taverna
(chanson
El le ne vn
(“Ela não mais porá / Água no meu copo / A peçonha, a macaca / Está morta”.) Também aí é necessário que a mulher seja anticozinheira e animal para que o homem reencontre a sociedade dos bebedores.
%
co; a cultura não lhe está nem fechada, nem ainda aberta. 2.5. Rique za do mito. Não se poderia negli genciar êste pormenor, pois êle se situa simultánea mente nos planos culinário e sociológico. Em c ontra posição, há planos inteiros que foram deixados de lado: nada se disse, por exemplo, da serpente e do papagaio. Par a mostrar, contudo, que sua pre sença não é mais casual que a do mel e a da claudi cação, resumiremos dois outros mitos próximos do mito Terena: “Num mito Bororó da origem do tabaco, uma; mulher que carrega um pedaço de serpente morta na caça por seu marido vê-se fecundada pelo sangue do animal. Ela gera uma serpente que se aninha no seu útero e não o deixará senão para lhe colhêr frutos das árvores. Os irmãos da mulher, a seu pedido, mata rão a serpente durante uma de suas saídas, e, das cinzas do cadáver, nascerá o tabaco entre outras plantas.” (Le Cru et le Cuit, p. 212.) “Um mito Tacana trata de um homem hábil na colheita mas indolente na caça, que é abandonado no alto de uma árvore pelos seus cunhados, que cortam o cipó que lhe servira para subir. A árvore é habi tada por uma “serpente-papagaio (boa constrictor) à qual o homem deve resistir dura nte certo tempo. Êle ouve um barulho, que acredita ser de alguém em busca de mel, mas que é, na realidade, o Espírito das Matas, em busca de serpentes. O Espírito o ajud a a descer, o livra da sua indolência na caça, e lhe dá um alimento envenenado com gordura do coração da ser pente. Êsse prato transform ará os cunhados em ara 57
ras, depois em serpentes, das quais o Espírito se ali menta.” (Du miei aux cendres, pp. 287-288.) Reencontram-se, associados à serpente, o ruído, e pelo ruído o mel, o cheio e o ôco, e, por aí, a mu lher “aberta”, o vegetal e o animal, o alimento e o veneno. Outros mitos, ainda, fazem claramen te da serpente um animal sedutor, ou seja, um ser cuja na tureza afeta a cultura, como o mel é um alimento sedutor, na tura l e cultura l ao mesmo tempo. A difi culdade, com a maneira de leitura que se adotou, não seria pois situar a serpente sôbre certas dimensões, mas justificar as dimensões retidas dentre tôdas aquelas que o corpus mitológico sugere, ou, ainda, explicar a própria multiplicidade das dimensões per tinentes se tôdas fôssem retidas. As mitografias anteriores pecavam pela pobreza à qual reduziam seu objeto. Par a a leitura estruturalista, pelo contrário, o problema é a riqueza; será sem dúvida mais fácil explicar essa riqueza ou redu zi-la do que ampliar os empenhos cuja coerência provinha da pobreza. 3.
C r ít i c a
d a
L e it u r a
3.1. Arbitrariedade das dimensões. A leitura do mito Terena comportava dois gêneros de hipóte ses: sôbre a estrutura dos mitos em geral e sôbre as dimensões pertin entes a êsse mito particular. Estas últimas poderiam parecer arbitrárias, principalmente porqu e o são. Visto que o sentido do mito é incons ciente, êle não pode ser submetido a uma paráfrase. É portanto difícil descrever o mito a partir dos tra ços semânticos tomados de empréstimo à linguagem ordinária . Pode-se afirmar, neste nível, a compa tibi 58
lidade do mito com certa caracterização do espaço semântico (o conjunto das dimensões) mas não uma relação necessária. Se, contudo, houvesse hipóteses disponíveis sôbre a estrutura dos mitos que permitis sem distinguir o que é mito do que não o é, e descre ver todos os mitos a partir das mesmas regras, e se essas hipóteses supusessem um espaço semântico do tipo utilizado para ler o mito Terena, então a arbi trariedade de tal leitura se veria singularmente cir cunscrita. Ainda não estamos nesse pon to; vejamos, no entanto: 3.2. Percorreu-se ao Questões sem respostas. contrário o caminho percorrido pelo pensamento míti co, e ainda não se fêz senão meta de do trajeto. Pa r tindo de um texto munido de uma significação lin güística ordinária, ascendeu-se a uma estrutura mito lógica port ado ra de sentido próprio. Seria necessá rio poder dizer a) como essa mesma estrutura mitoló gica se constituiu, e b) segundo quais regras é pos sível passar dessa estrutu ra à próp ria narrativa. En quanto não se conhecer a resposta a essas duas ques tões, poder-se-á oferecer uma leitura do mito melhor talvez do que a que propusemos, mas uma leitura sempre fundada na intuição e na arbitrariedade. A estrutura mitológica é uma interpretação de uma mesma armadura em vários planos semânticos (ou, nos têrmos de Claude Lévi-Strauss, segundo vá rios “códigos” ). Essa estrutura carece de três tipos de informação para que se pudesse constituir a nar rativa mítica: a) Qual é a ordem das seqüências na narrativa? b) Quais são as relações gramaticais (su jeito, predicado, etc.) entre os têrmos? c) Por que elemento léxico traduzir cada conjunto de valores? 59
Por outras palavras, são necessárias regras que permi tam passar dos planos simultâneos da estrutura mito lógica à continuidade (gramaticalmente especificada) dos elementos da narrativa; e um dicionário, que per mita, por exemplo, traduzir: -¡alimento, vegetal, doce, imedia tamen te consumível, diluível, etc .}- por “m el” entre os índios da América do Sul. Orientação da pesquisa. É evidente, por 3.3. um lado, que os mitos são linguagem comum; e, por outro lado, como mostra Claude Lévi-Strauss, êles es tão dotados de uma estrutu ra particular. Entre a es trutura mitológica do mito, tal como a descreve Lévi-Strauss, e sua estrutura lingüística, não há cor Esboça-se assim uma respondência têrmo a têrmo. teoria do mito que se afasta tanto das teorias simbo listas anteriores quanto do modelo estruturalista da linguagem (n ). A interpreta ção do mito não con siste em encontrar um sentido oculto em cada um dos termos da narrativa, como pensavam os simbolis tas. As relações entre o conteúdo (a estrutura mito lógica) e a expressão (a estrutura lingüística) não são relações de elemento com elemento, como quere ria o modelo estruturalista clássico, mas relações de estrutura com estrutura. O espaço semântico particular revelado pela análise das estruturas mitológicas não é exclusivo dos
mitos. Está sem dúvida subjacente a contos, a can tos, mesmo a representações plásticas e a rituais. Es pecífica do mito é uma utilização particular dêsse espaço semântico e, com ainda maior certeza, as re gras que permitem constituí-lo em narrativa. Lévi-Stráuss, no entanto, de preferência a estu dar as regras que constituem a estrutura mitológica e a transformam em estrutura lingüística, preocupa-se com as relações que os mitos mantêm entre si. Êsse estudo pode ser entendido de três man eiras: co mo uma exploração do espaço semântico mitológico, quer como o esbôço de uma segunda teoria dos mi tos (cf. § 4.2), quer como uma análise do exercício do pensamento mítico (cf. § 4.3.).
4.
As
T r a n s f o r m a ç õ e s
d o s
M it o s
E n t r e
si
Crítica de um exemplo. 4.1. Para Claude Lévi-Strauss, os mitos são transformações de outros mitos. Êle afirmar á, por exemplo, que o mito Bororó resumido mais acima é “rigorosamente simétrico” do mito Terena (e de um mito Toba) sôbre a origem do tabaco. Essa simetria poderia ser representad a da seguinte forma:
(lx ) Segundo êsse modêlo, um enunciado lingiiístico se decom põe em signos mínimos, unidades munidas simultáneamente de um significante e de um significado, tais que qualquer modificação de um provoca modificação do outro. Conform e uma definição como essa, é o mito inteiro que constituiria um signo mínimo, com a narraçã o por significante e o sentido mítico por significado, pois as correspon dências que se encontram no nível dos segmentos são mediadas pela estrutura do conjunto. Se decompuséssemos a narrativa mítica em “mitemas”, êstes unicamente seriam as unidades do único “significante”.
60
61
uma esposa usa ela tem um ma rido matador seu sangue va de cobras ginal como ve neno
fetos de serpen- a mulher queria des pente são ex truir seu marido por via oral, mas falha traídos da ma triz antes da época própria
uma espôsa é ela tem um ma fecundada pelo rido matador sangue que lhe de cobras penetra na va gina
uma serpente a mulher não queria proteger seu filho por permanece na via vaginal, mas é matriz após o obrigada a isso nascimento
o marido sobe na qual êle se a mulher é mor a uma árvore empenha nu ma ta pelo marido busca animal (papagaios)
sôbre o tú mulo
o filho sobe a na qual êle se o filho é morto empenha nu ma pelos irmãos uma árvore busca vegetal da sua mãe (frutos)
sôbre a fo gueira
da vítima nasce o tabaco
Em Le Cru et íe Cuit , p. 112, encontraremos um quadro diferente, mas que se aplica mais ao mito Toba que ao mito Terena. Que pensar dêsse gênero de transformações? Que nos ensina êle acêrca da natureza dos mitos? Em primeiro lugar, note-se que não há simetria rigo rosa entre os dois mitos. O quadro que os põe em confronto só foi obtido deixando-se de lado nu merosos elementos de cada mito (como a busca do mel no mito Terena, as plantas que nascem junto com o tabaco no mito Bororó). Por outro lado, a impres são de simetria está presente na medida em que os dois mitos contêm efetivamente muitos elementos co muns e em que se apresentaram elementos dife62
rentes em têrmos de valores opostos (protetor/destruidor, vaginal/oral, vegeta l/anim al). Poder-se-ia, pelo mesmo método, e seguindo Lévi-Strauss, notar que a mulher, morta pelo marido, é morta por um aliado, ao passo que o filho, morto pelos irmãos de sua mãe, sendo os Bororós matrilineares, é morto por paren tes, e opor assim o parentesco e a aliança. Essas oposições nos parecem legítimas -— com as reservas expressas mais acima a respeito das dimen sões semânticas. A pa rtir do momento, contudo, em que se interpretam os mitos num espaço semântico muito estruturado e dominado por oposições a dois ou três têrmos, é inevitável que mitos próximos testemu nhem tal simetria relativa. Seria muito mais notá vel que não houvesse jamais êsse gênero de parale lismo ou que, pelo contrário, se encontrasse uma si metria rigorosa ao ponto de que, conhecendo-se um mito, se pudesse construir mecânicamente o seu simétri co, e que êste tam bém fôsse um mito. Não parece, en tretanto, que qualquer dêsses dois casos seja verdadeiro. 4.2. Êsse relaciona Duas teorias dos mitos. mento dos mitos é útil para a exploração do espaço semântico, como o provam abundantemente as Myt ho logiques. Parece, todavia, que Claude Lévi-Strauss vê nisso mais do que um procedimento heurístico; para êle, as transformações são inerentes ao próprio pensamento mítico; elas fundam e definem o mito. Um mito é criado pela transformação de um ou vários outros mitos, conforme regras que cumpriria ainda definir. Aparece assim uma segunda teoria dos mitos, di ferente daquela esboçada mais acima. Segundo a teoria I, o conjunto dos mitos é engendrado por dois
níveis de regras: o primeiro nível define uma estru tura mitológica particular, o segundo dá ao mito a sua expressão lingüística. Segundo a teoria II, um mito é um discurso dotado de propriedades tais que certas regras de transformação lhe possam ser apli cadas, e o conjunto dos mitos é produzido pelo jôgo dessas transformações. A teoria I, mesmo no estado de esboço em que se encontra atualmente, não é nem tautológica nem trivial nem contradiz os dados estudados. A tarefa, agora, seria de explicá-la e de aplicá-la sistemática mente, a fim de melhor fundá-la. Há três maneiras de compreender a teoria II: seja pela afirmação de que relações de transformação — definidas vagamente — sempre são possíveis en tre os mitos, o que é evidente e pouco interessante. Seja pela afirmação de que regras de transformação são suficientes para engendrar o conjunto de mitos; mas então tais regras ainda estão para serem desco bertas. Enten dida dessa forma, a teoria II tornaria inútil a teoria I, e reciprocamente. A terceira ma neira de compreender a teoria II é menos desenco rajan te. Efetivamente, o estudo de corpus parti cula res em têrmos de transformação permitiu a LéviStrauss mostrar a existência de uma ordem cronoló gica verossímil entre certos mitos. A questão, assim, é de se a teoria II não daria conta das proprie dades dos corpus, mais que das propriedades dos pró prios mitos, objeto da teoria Lj O exercício do pensamento mítico. Dis 4.3. tingamos o pensamento mítico, que rege todos os mi tos, da utilização, do exercício dêsse pensamento, que rege os corpus (assim como se distingue a com 64
petência lingüística, que engendra tôdas as frases, do exercício dessa competência: o desempenho lingüís tico, que rege os enunciados efetivos). Se tôdas as culturas desenvolvem discursos muito particulares e notàvelmente homólogos entre si, que são os mitos, há fundamento para se reconhecer nisso, com Claude Lévi-Strauss, os frutos de um mesmo espírito huma no. O espírito humano, ou antes um dispositivo pró prio a êsse espírito, engendra as estruturas dos mitos. Entre a enumeração potencial de um número indefi nido de mitos e sua produção efetiva em corpus aber tos mas finitos, próprios a cada cultura, intervêm condições particulares, mentais e sociais, que se combinam com o pensamento mítico para lhe deter min ar o exercício. No primeiro plano dessas condi ções se porá naturalmente o próprio corpus, disponí vel no momento da emergência de um mito nôvo ou de uma versão nova. O inventor de um mito está indubitàvelmente sob a influência vigorosa do corpus que êle conhece: os mitos dos seus, e talvez mais ainda os de seus vizi nhos. Dêsse corpus, êle toma de empréstim o os ele mentos, os valôres votados de modo particular a cer tos temas ou mesmo episódios inteiros. Têm-se num e rosos testemunhos de que, ademais, êle possa con ceber seu mito em paralelismo e em oposição com outros mitos. Ocorre freqüen temente que mitos sir vam para afirmar a identidade ou as pretensões de um grupo em face de outros. Por fim, a simetria in versa dos mitos, apta por um lado para manifestar a oposição entre os grupos sociais, convém também à exigência mental de harmonia e estilo, com relação aos mitos de um mesmo corpus. 3
65
Se tal é o dominio das transformações das nar rativas míticas, elas não participam do próprio pen samento mítico, mas da utilização desse pensamento. Elas concernem à maneira pela qual os homens pen sam seus mitos, não à maneira pela qual “os mitos se pensa m nos homens” . É então difícil dizer que “os mitos se pensam entre si”. 5 .
T e o r ia
M it o l ó g ic a
e
T e r m in o l ó g ic a
deia e, no outro caso, é a cadeia que se lhe acha incorporada. Quer, todavia, o conjunto seja confeccionado com peças da cadeia, quer a própria cadeia tome lugar nela como uma peça, o princípio permanece o mesmo. Duas cadeias sintagmáticas ou fragmentos de uma mesma ca deia que, tomados à parte, não ofereciam senti do certo algum, adquirem sentido pelo próprio fato de se oporem.” (Le Cru et le Cuit, p. 313.)
L in g ü í s t i c a
5.1. Para Claude Em têrmos estruturalistas. Lévi-Strauss, entretanto, as teorias I e II constituem uma teoria única, relativa somente ao pensamento mítico. Escreve êle: “Considerada no estado bruto, tôda cadeia sintagmática deve ser tida como privada de sen tido; seja porque nenhuma significação apareça de imediato, seja porque se creia perceber-lhe um sentido, mas então sem saber se é o bom. Há só dois procedimentos para superar essa dificuldade. Um dêles consiste em recortar a cadeia sintag mática em segmentos suscetíveis de superposição, dos quais se demonstrará que constituem outras tantas variações sôbre um mesmo tema. O outro procedimento, complementar do precedente, con siste em superpor uma cadeia sintagmática to mada em sua totalidade, ou seja, um mito inteiro, a outros mitos ou segmentos de mitos. Trata-se, em conseqüência, cada vez, de subs tituir uma cadeia sintagmática por um conjunto paradigmático, e a diferença consiste em que, no primeiro caso, êsse conjunto é extraído da ca 66
É mister que os conceitos de paradigma e de sin tagma tenham aqui um sentido bem particular. Com efeito, normalmente entendido, um conjunto para digmático é um inventário de elementos que podem ser substituídos uns pelos outros no mesmo contexto sintagmático. Ora, em que sintagma pertinente os mitos inteiros toma m lugar? Por definição, nenhum. O modêlo estruturalista dos dois eixos paradigmáti co e sintagmático, ligados às duas operações de clas sificação e concatenação (ou inversamente, de re corte — découpage ) não se aplica às transformações dos mitos entre si. Êsse modêlo tampouco se aplica aos elementos re cortados no mito. Pa ra tanto, seria necessário que se pudessem substituir, num contexto estritamente in variante, todos os membros de um paradigm a. Ora, o que nos mostram justamente as transformações dos mitos entre si é que, se um elemento é substituído num ponto da cadeia, impõe-se no mesmo passo subs tituir outros em outros pontos. Em outros têrmos, jam ais se tem substituição num contexto invariante. Fiel à linguagem da lingüística estruturalista, Claude Lévi-Strauss quase não explicita as idéias ge67
III SISTEMAS E MODELOS DE COMUNICAÇÃO
1.
E s t r u t u r a s
d e
C o m u n ic a ç ã o
Segundo Claude Lévi-Strauss, cumpre considerar: “As regras do casamento e os sistemas de pa rentesco como uma espécie de linguagem, ou seja, um conjunto de operações destinadas a asse gurar, entre os indivíduos e os grupos, um certo tipo de comunicações. Que a “mensagem” seja aqui constituída pelas mulheres do grupo que circulam entre os clãs, as linhagens ou as famí lias (e não, como na própria linguagem, por pa lavras do grupo circulando entre indivíduos), isso em nada altera a identidade do fenômeno consi derado nos dois casos” ( Anth ropol ogie structu rale, p. 69). Uma distinção se impõe, entre tanto : as regras do parentesco regem a rêde de trocas matrimoniais; elas ditam o sentido das alianças; em contrapartida, não criam as mulheres e não levam em conta suas diferenças. As regras da linguagem, pelo contrário, criam as frases; elas regem o código lingüístico, mas deixam sem especificar as condições da troca, a rêde da comunicação verbal. 1.1. Estruturas de código, estruturas de rêde. Todo sistema de comunicação supõe simultaneamente 73
uma classe de objetos comunicáveis, mensagens, e o conjunto de canais entre “emissores” e “receptores”, pelos quais as mensagens são trocadas. Se é possível falar de comunicações por alianças, de um lado, e pela linguagem, de outro, considera-se de fato seja apenas um, seja apenas o outro dos dois aspectos da comuni cação. As trocas matrimoniais ou as mensagens lin güísticas. Chamemos estrutura de código às regras que re gem exclusivamente um conjunto de mensagens, e estrutura de rêde às regras que regem exclusiva mente um conjunto de trocas. Tentar-se-á mostrar que “tudo se passa como se” os antropólogos estruturalistas trabalhassem a partir de uma hipótese muito forte: os sistemas sócio-culturais são regidos por es truturas de código ou por estruturas de rêde. Ex cluem-se assim conjuntos de regras que governariam ao mesmo tempo as mensagens e os canais. 1.2. Dois exemplos. Para melhor dar a com preender onde se situa a escolha, eis dois exemplos. 1. 2 . 1. O telégrafo. O telégrafo é tipicamen te um sistema de comunicações que compreende um código e uma rêde distintos. O código permite tra duzir não importa qual série de letras do alfabeto ordinário e portanto, em particular, codificar tôdas as mensagens lingüísticas que se escrevam por meio dêsse alfabeto. A rêde liga entre si todos os centros do telégrafo e é caracterizada pela distribuição dos canais e sua capacidade, ou seja, o número de signos que êles podem transmitir num tempo dado. Tôdas as mensagens concebíveis podem ser trans mitidas por não importa qual canal. Poder-se-ia mo 74
dificar o código à vontade sem afetar a rêde, e desor ganizar a rêde sem tocar no código. 1.2.2. A polidez. Em contrapartida, naquilo que se chama de “código” da polidez, o que é comu nicado e a situação de comunicação estão intimamen te ligados. Não se tem aqui um conjunto de mensa gens que seriam definidas unicamente umas em rela ção às outras, e munidas de uma significação inde pendente das situações em que são transmitidas; a cada situação, corresponde um subconjunto muito restrito de mensagens possíveis. Tipicam ente , as re gras de polidez promulgam: que somente se deve co meçar a comer após a dona da casa; que se deve dei xa r à pessoa à qual somos apresentados a ini ciativa de estender a mão, se ela ocupar posição so cial superior; que podemos bater nos ombros dos ami gos, etc. É possível, sem dúvida, d ar um sentido a cada um dêsses comportamentos, mas sempre em re lação às situações apropriad as. A polidez, como sistema de comunicação, destina certas mensagens a certos canais, e é assim que deve ser analisada. Ora, como tentaremos mostrar, o Estruturalismo não levou verdadeiramente em conta êsse tipo de estrutura; êle vê na polidez uma linguagem e encara de fato os sis temas sócio-culturais em têrmos do modêlo do telé grafo; código e rêde, tendo cada qual sua lógica própria. 2.
Sis t e m a s
d e
C o m u n ic a ç ã o
2.1. Sistemas de código ou de rêde. Claude Lévi-Strauss contribuiu para mostrar que, pelo menos em muitos casos, a rêde de alian 75
ças matrimona is tem uma estrutura própria. Da mesma forma, as trocas econômicas, na medida em que digam respeito a valores homogêneos, podem de pender de uma e strutura de rêde: as regras de troca podem ser independentes da natureza diversa dos ob jetos trocados. A análise lingüística da linguagem faz, por seu turno, abstração das condições variadas de sua uti lização. Tal redução é lícita porque, sejam quais fo rem as maneiras pelas quais o contexto limita a esco lha das mensagens lingüísticas, êsses limites se refe rem apenas a objetos já formados por regras próprias. A rêde não afeta o código (ao menos, na sincronia). Lévi-Strauss parte de uma consideração análoga quando analisa os mitos em si mesmos, quando busca regras para o pensamento mítico que sejam próprias do espírito humano e portanto independentes das con dições particulares de sua utilização. Um enfoque que tal revelou-se também fecundo no estudo dos sis temas de classificação; veja-se o admirável Le T o témisme aujourd’hui e La Pensée sauvage. Pode-se dizer que todos os progressos do Estruturalismo em todos os domínios (salvo o do parentes co — a isso se voltar á) parte m do isolamento de uma estrutura de código num sistema de comunicação. Êsse isolamento tem duas conseqüências: a) Êle permite imaginar um suporte concreto para as regras que engendram mensagens; com efei to, tais mensagens estão à disposição dos indivíduos; se elas dependem de uma estrutura própria, então essa estrutura rege uma aptidão mental, seja de modo universal, seja segundo regras próprias a uma lingua gem ou uma cultura particular. 76
b) Se isolamos o código, então dispomos de um conjunto homogêneo: as mensagens. É com esta condição que a análise estrutural pode recortar ele mentos e classificá-los com definir relações entre as classes. É a primeira dessas duas conseqüências — a in terpretação das estruturas de código em têrmos de aptidão mental — que terá suscitado a maior parte das controvérsias. As ciências hum anas tanto com bateram as idéias aceites acerca do espírito ou da natureza humana, tanto ressaltaram as diferenças entre culturas, que decididamente jogaram fora o bebê junto com a água do banho. Se há, no entan to, estruturas de código universais, de que podem elas depender senão do espírito humano? Em contrapartida, que as estruturas considera das sejam bem do modêlo estruturalista -— recorte e classificação — eis o que não foi contestado antes dos trabalhos de Noam Chomsky. Agora, contudo, é preciso reconsiderar nossos modelos não somente para a linguagem, mas para todos os sistemas se miológicos. As alianças matrimonais, tais como foram estu dadas por Claude Lévi-Strauss, também apresentam um conjunto homogêneo regido por regras que ope ram sôbre classes. O auto r das Structures élémentaires atribui tais regras ao espírito humano, e em particular a um princípio universal de reciprocidade. É essa análise e essa hipótese que fundam, a nosso ver, o pa ralelo estabelecido entre a linguagem tal como a con cebem os estruturalistas, e o parentesco (cf. § 1). Ana logia a partir dos modelos, portanto, e não a partir da função de comunicação. 77
2.2. Sistemas de código e de rêde ao mesmo tempo. É possível sepa rar a linguagem da comunica ção lingüística, o pensamento mitológico de sua uti lização, a rêde de trocas matrimoniais do conjunto de fatos de parentesco. Em contra partid a, existem sis temas sócio-culturais que não se deixam dividir nem em códigos nem em rêdes. O ritu al é regido por um simples código? Não, porque a significação e a própria composição de uma mensagem dependem das posições daquele que a emite e daque le que a recebe. Ora, a posição (a do feiticeiro, do iniciado, do rei divino, do padre, do fiel, etc.) não é suscetível de análise como um sim ples signo. “O há bito faz o mong e” se aquêle por êle assinalado como monge age também como tal, ou seja, se se submete não somente às imposições de um sistema de signos mas também às de um sistema de trocas, ao qual deve dar mais que o seu “significante” e do qual recebe mais do que o seu “significado” . Na verdade, as imposições que êle sofre são, ao mesmo tempo, semiológicas e econômicas; elas participam de um mesmo sistema total de comunicação, que não é suscetível de análise nem como rêde nem co mo código. E a política? Pode ser analisada como um simples sistema de trocas? Não, porque a dire ção, a amplitude, a eficácia das trocas políticas de pendem das próprias coisas que nelas são postas em movimento. Essas coisas (mensagens imperativas, mensagens normativas, bens econômicos, atos de vio lência) não se deixam isolar em um ou vários siste mas independ entes de signos ou de valores. “Uma ordem é uma ordem” unicamente numa relação de poder. O prestígio é considerado por numerosos an78
tropólogos como um objeto de troca; mas o prestígio adquirido influencia as próprias condições da troca. As escolhas políticas não se apóiam em valores ou signos homogêneos, nem mesmo em objetos hetero gêneos a comunicar, mas em atos de comunicação nos quais, como na polidez, o quê e o como se con fundem. 3.
O
C a so
d o s
Sis t e m a s
P o l ít i c o s
A política é negligenciada mas não completamen te ignorada na obra estruturalista. No seu estudo so bre “a noção de estrutura em Etnologia”, Claude Lévi-Strauss propõe três “métodos” para o estudo das “estruturas de subordinação” : perguntar-se “quais são os fatos” ; pôr em correlaçã o fenômenos de p a rentesco e as estruturas de subordinação “na medida em que possam ser ligadas entre si” ; estudar a priori “todos os tipos de estruturas concebíveis, resultantes de relações de dependência e de dominação surgidas ao acaso”. Em outros têrmos, nenhum a hipótese é aventada quanto à natureza dos sistemas de su bordinação. Restam alguns estudos de estruturalistas sôbre os sistemas políticos; examinare mos dois déles: a análise da chefia Nambiquara por Claude LéviStrauss e “Troca e poder, filosofia da chefia índia”, de Pierre Clastres. 3.1. A Lévi-Strauss.
chefi a Na mb iqua ra
segundo
Claude
3 . 1 . 1 . Apresent ação. Os Nambiqu aras são scminômades do Brasil ocidental que, durante a maior parte do ano, vivem em pequenos grupos, instáveis 19
de resto, caçando e coletando sua alimentação. Cada grupo tem um chefe que deve organizar as atividades coletivas e se mostrar constantemente generoso para com os seus seguidores. Em con trap artida, ele se be neficia de um privilégio exclusivo de poligamia. As mulheres são produtoras de alimento: portanto, a condição de celibatário seria miserável se os dons de alimento que o chefe faz ao grupo não viessem com pensar em parte a perda das mulheres suplementares que o grupo cedeu a seu chefe. “O consentimento é o fundamento psicoló gico do poder, mas na vida cotidiana êle se ex prime por, e encontra sua medida em, um jogo de prestações e de contraprestações que se desen rolam entre o chefe e seus companheiros, e que faz da noção de reciprocidade um outro atributo fun damen tal do poder. O chefe tem o poder, mas deve ser generoso. Tem deveres, mas pode obter várias mulheres. Entre êle e o grupo se estabelece um equilíbrio perpètuamente renovado de presta ções e de privilégios, de serviço e de obrigações. “No caso de casamento, contudo, passa-se algo mais. Ao conceder o privilégio polígamo a seu chefe, o grupo troca os elementos individuais de segurança, garantidos por uma regra monogâmica, por uma segurança coletiva esperada da autoridade.” (Tristes tropiques, p. 337.) “Existem chefes porque há em todo grupo hu mano homens que, diferentemente de seus com panheiros, apreciam o prestígio por si mesmo, sentem-se atraídos pelas responsabilidades, e para os quais a carga dos negócios públicos traz consi go sua recompensa.” (Ibid., p. 338.) 80
3 . 1 . 2 . Objeções. Esta explicação brevemente citada vai de encontro a duas objeções: a) Lévi-Strauss observava, àqueles que tent a vam dar conta da proibição do incesto por um desinterêsse sexual em relação aos próximos, que êles não explicavam por que uma instituição iria proibir aqui lo que, de qualquer modo, ninguém quereria fazer. Análogamente, se a preocupação com a segurança de uns e a ambição dos outros, exercendo-se no quadro de trocas recíprocas, basta para estabelecer relações assimétricas, por que a instituição da chefia? b) As prestações não são verdadeira mente re cíprocas. Com efeito, as mulheres valem muito mais nessa sociedade que qualquer outra coisa, e elas pró prias são produtoras de alimento. Parece, portanto, pouco verossímil que sejam “trocadas” pura e simples mente pelo alimento que produzem (12). 3.2. A chefia indígena segund o Pierre Clastres. 3.2.1. É da ausência de reci Apre sent ação. procidade que parte Pierre Clastres para dar conta da carência de poder real dos chefes nas sociedades indí genas semelhantes às dos Nambiquara.
“Na medida em que, recusando a idéia de uma troca das mulheres do grupo pelos bens e mensagens do chefe, examinamos por conseguin te o movimento de cada “signo” segundo seu cir(12) A interpre tação de Lévi-Strauss, segundo a qual elementos individuais de segurança por uma segurança coletiva, cita mais problemas do que os resolve. Com efeito, fica então ser determinada a natureza dessa segurança, para ser demonstrado ela é obtida pelo meno r custo, e par a ser especificada a noção de troca que modifica as condições das trocas ulteriores.
se trocam sus para que uma
81
cuito próprio, descobrimos que êsse triplo movi mento apresenta uma dimensão negativa comum que atribui aos três tipos de “signos” um destino idêntico: êles não mais aparecem como valores de troca; a reciprocidade deixa de regular-lhes a circulação e cada qual, a partir de então, é ex cluído da comunicação. Um a relação original entre a região do poder e a essência do gru po se desvela portanto aqui: o poder mantém uma relação privilegiada com os elementos cujo movimento recíproco funda a própria estrutura da sociedade; mas essa relação, ao negar-lhe um valor que é de troca no nível do grupo, instaura a esfera política não apenas como exterior à es trutura do grupo, mas muito mais como negadora desta: o poder está contra o grupo, e a recusa da reciprocidade, como dimensão ontológica da sociedade, é a recusa da própria sociedade.” ( Op. cit., pp. 61-62.) “Com descobrir o grande parentesco do po der e da natureza como dupla limitação do uni verso da cultura, as sociedades índias souberam inventar um modo de neutralizar a virulência da autor idade política. Escolheram serem elas pró prias suas fundadoras, mas de maneira que o po der só aparecesse como negatividade logo domi nada.” (Ibid., p. 64.) “Enquanto devedor de riquezas e de men sagens, o chefe não traduz outra coisa que não seja sua dependência em relação ao grupo, e a obrigação em que se encontra, de manifestar a cada instante a inocência de sua função.” [Ibid., p. 64.)
Destarte, essas sociedades criariam a chefia fora da comunicação, a privariam de poder real, e signifi cariam dessa forma sua recusa da auto ridade. A ins tituição seria uma filosofia em atos. 3.2.2. Objeções. Serão apresentad as três ob jeções contra essa exposição: a) É abusivo iden tificar — como o faz Pierre Clastres —• a comunicação com a reciprocidade. b) Se a comunicação parece ir aqui apenas num sentido, é porque foram separadas arbitràriamente a circulação de bens, a de palavras, a de mulheres. c) Um estruturalista não pode ignorar que so mente o incesto, e não a poligamia, interrompe a cir culação das mulheres: ora, as irmãs e as filhas do che fe se casam. Acrescentemos que parece pouco verossímil que tais sociedades recorressem a um conjunto de práticas dessa ordem para significar sua recusa de uma autori dade da qual nada permite dizer que realmente os ameaçasse. O próprio Pierre Clastres repelia no iní cio do seu artigo a idéia segundo a qual “a função po lítica é uma função de coerção ( . . . ) É ( . . . ) o etnocentrismo imanente a tal forma de encarar a ques tão que cumpr e afastar.” Após ter afastado tal “for ma de encarar a questão”, dez páginas mais adiante êle a empresta aos próprios índios: “Tu do se passa, com efeito, como se essas sociedades constituíssem sua esfera política em função de uma intuição que lhes faria as vêzes de regra: a saber, que o poder é em sua essência coerção.” Então, êrro “etnocêntrico” ou “in tuição” de uma “essência”? 83
3.3. A política deixacla por conta. As análises de Claude Lévi-Strauss e de Pierre Clastres são não apenas diferentes, mas inversas: reciprocidade contra destruição da reciprocidade; motivações individuais contra filosofía de uma sociedade; estrutura sem polí tica contra política fora da, e oposta à, estrutura; sis tema de trocas contra sistema de signos. Tudo se passa como se fôsse absolutamente neces sário reconduzir a política a urna rede ou a um código e como se a cultura, a comunicação, a reciprocidade, se juntassem todas para se opor à natureza e à subor dinação. Ta l oposição única é explícita na obra de Pierre Clastres. Está freqüentem ente implícita na obra de Lévi-Strauss: quando êle identifica, passo a passo, vida social e comunicação; comunicação, linguagem e troca ; troca e reciprocidade, quase não resta lugar para a política do lado da sociedade. 3.4. Hipótese s. Sem preten der analisar a chefia Nambiquara, apresentaremos algumas hipóteses. Uma sociedade como essa dispõe de dois tipos de va lores: as mulheres, em número limitado, renovando-se lentamente, e distribuídas por nascimento de modo irregular entre as famílias; a alimentação, em quan tidade estritamente suficiente, e renovada cotidiana mente pela atividade desigual de todos, sendo que a parte das mulheres na produção é essencial. Se a troca se efetuasse segundo uma simples regra de reciprocidade, aqueles que tivessem mais irmãs ou filhas, ou aqueles que produzissem tanto que pudes sem obsequiar perpètuamente seus vizinhos menos ati vos poderiam assegurar para si um maior número de mulheres, produtora s elas próprias. A concentração das mulheres e da sua produção aumentaria de gera
ção em geração; nada viria a corrigir tal desequilí brio; a sociedade se veria logo sufocada. A instituição de relações assimétricas em proveito de um chefe úni co assegura, pelo contrário, a regularidade das trocas de mulheres e de bens, restringe a poligamia a um só indivíduo e lhe previne os efeitos nefastos constrangen do o chefe a redistribuir o alimento, em grande parte produzido com a ajuda de suas mulheres suplementa res. Com ligar a poligamia a uma instituição e fazer desta, e não das próprias mulheres, o objeto da competição social, essas sociedades encontram de certo modo a solução de um “jôgo de comunicação contra a natu reza ”. Claude Lévi-Strauss mostrara, a propó sito do parentesco, que a proibição do incesto não pode ser explicada sem tomar em consideração seu aspecto positivo: a exogamia. Da mesma forma, o privilégi o da poligamia tem um aspecto negativo essencial: a monogamia geral. O efeito evidente do sistema político consiste em vincular a natureza das prestações à sua direção. Se fôsse o caso de desenvolver a análise no sentido em que a esboçamos, entretanto, nem um modelo de código, nem um modelo de rede, nem a justaposição de um e outro poderiam convir. 4.
O r ie n t a ç ã o
d a
P e s q u is a
4.1. A hipótese estrut uralista explícita. Par tiu-se, neste capítulo, da hipótese explícita dos esíruturalistas, segundo a qual todos os sistemas culturais são “lingua gens” . Se se entende por lingua gem todos os sistemas de comunicação, a hipótese é evidente, e só é parti cula r o sentido dado à palavra linguagem. Se nos ativermos, ao contrário, ao sentido mais geral ha 85
bitualmente aceito, uma linguagem é um conjunto de mensagens cuja formação se rege pelas mesmas regras. Ora, o sistemas sócio-culturais regulam não somente a constituição das mensagens, mas também sua cir culação.
4.2. A hipótese implícita. Interpretou -se então de forma diferente a hipótese estruturalista; os siste mas sócio-culturais devem ser representados por mo delos análogos aos modelos estruturalistas da lingua gem: um conjunto de elementos discretos e de regras que, operando sôbre elementos agrupados em classes (paradigmas) engendram um processo contínuo (sin tagma ). Uma condição necessária para efetuar o recorte pressuposto pelo modelo estruturalista é a posse de um conjunto homogêneo. Existem dois tipos de sistemas de comunicação capazes de apresentar tal homogenei dade: linguagens ou códigos, por um lado, rêdes pelo outro. Ao passo que a hipótese estruturalista explícita atribui a todos os sistemas sócio-culturais uma estrutu ra de código, as motivações que conduziram a tal hipótese permitem encarar igualmente uma estrutura de rêde. As pesquisas efetiva mente conduzidas nos pareceram repousar numa hipótese estruturalista im plícita, que atribui aos sistemas quer uma estrutura de código, quer uma estrutura de rêde. 4.3. Generalizar a noção de comunicação. Ora, existem sistemas que, como o político, associam dire tamente as condições da troca à natureza das mensa gens trocadas. Ao tra tar da política, o estruturalista se condena a nela ver apenas ou um sistema de troca, 86
ou um sistema de signos; êle chega então a conclusões insatisfatórias e contraditórias entre si. Efetivamente, o estruturalista deixa de lado os sis temas políticos e rituais, que seriam “mais complexos” que o parentesco e a linguagem. É só quando os mod e los estruturais dêsses sistemas relativamente simples forem mais bem desenvolvidos que se poderá ampliar-lhes a aplicação. Se se adm ite conosco que apenas um outro tipo de modelo pode representar adequada mente os sistemas políticos e rituais, o argumento da complexidade perde tôda a sua significação. Não há razão metodológica para deixar provisoriamente de la do êsses sistemas. A hipótese teórica que poderia jus tificar tal arranjo do programa nos parece insustentá vel: os sistemas sócio-culturais não são regidos exclu sivamente por estruturas de código ou estruturas de rêde. Não se tem um conjunto homogêneo para iso lar e recortar no político e no ritual; pelo contrário, mensagens e canais dependem uns dos outros. De vem-se abordar desde logo essas instituições a partir de hipóteses diferentes daquelas que fundam o estudo es truturalista da linguagem e do parentesco. Acrescentemos que, de um ponto de vista lógico, estruturas de código e de rêde aparecem como casos muito particulares, apesar de a teoria matemática da comunicação lhes ter dedicado um interêsse quase ex clusivo. A utilização dêsses modelos permitiu , talvez, pôr ordem nos fatos de linguagem e nos fatos de pa rentesco. Mas, entre os numerosos problem as que sub sistem nesses mesmos domínios, há alguns q ue ,. sem dúvida, só encontra rão solução a p arti r de modelos mais gerais. 87
Por exemplo, dispomos de modelos de rêde para as regras de parentesco, e de modelos de código para as terminologias de parentesco. No entanto, o porquê de uma terminologia deve ser procurado nas práticas do parentesco e da aliança; e o como dessas práticas en volve reciprocamente a terminologia. Se é que o con junto dos fatos de parentesco — e não mais somente os fatos de aliança, por um lado, e os fatos de vocabu lário, por outro lado — deva depender de um modelo único, então esse modêlo não poderia ser nem de có digo, nem de rêde. Cabe aos antropólogos suscitar uma matemática adequada a seu objeto.
IV AS ESTRUTURAS DO ESPÍRITO HUMANO
1.
N e c e s s id a d e
d a
E x p l ic a ç ã o
No capítulo precedente, tentamos tornar mani festas certas hipóteses implícitas do Estruturalismo acerca dos sistemas sociais considerados em têrmos de comunicação. Chegou-se assim a afirmações muito fortes e muito pouco verossímeis. Talvez se nos obje te que essas hipóteses vagas e provisórias não deveriam ser tomadas ao pé da letra, e que, se chegamos a con clusões insustentáveis ao explicitá-las, era desde logo absurdo querer explicitá-las. A isso se responderá d u plamente: a) Conclusões insustentáveis são mais úteis ao conhecimento que premissas sem conclusões: elas testemunham uma falha que se pode descobrir ao re tom ar o raciocínio. Esperamos ter explicado assim por que os modelos estruturalistas atuais são inadequa dos aos sistemas políticos. b) Nosso empenho, nosso pressuposto de expli citação não procede de uma hostilidade para com o Es truturalismo, mas bem ao contrário: não há, a nosso ver, teoria antropológica alguma à qual valha a pena aplicar o mesmo tratam ento. As hipóteses funcionalistas ou evolucionistas, por exemplo, tomadas ao pé da letra, não conduzem a absurdos: são absurdos; en tendidas num sentido vago, elas aparecem, pelo con trário, como evidentes ou tautológicas. Conforme ob91
serva Lévi-Strauss a respeito do funcionalismo, “dizer que uma sociedade funciona é um truismo; mas dizer que tudo, numa sociedade, funciona é um absurdo”. (.Anthropologie structurale, p. 17.) As hipóteses estruturalistas, por seu turno, têm um alcance certo, mes mo que não sejam nem igualmente fundadas, nem igual mente fecundas. Ao nosso ver, portanto, o Estruturalismo constitui um conjunto original de reflexões teó ricas sôbre o cultura l e o social. Êsse é, entretanto, um mérito alheio às pretensões dos estruturali stas : sua doutrina, dizem êles, é antes de mais nada uma meto dologia. Mostrou-se até aqui, contudo, que a pesqui sa estruturalista parte de hipóteses teóricas tanto quan do se aplica a certos domínios como o parentesco ou a mitologia como quando deixa provisoriamente de lado a política. Neste último capítulo, tentaremos mostrar que a própria “metodologia” estruturalista repousa sôbre hipóteses que não são nem tautológicas, nem tri viais, e que se referem à própria natureza dos fatos humanos. 2.
Os
I n s tr u m e n t o s E s t ru t u r a l is t a s
Existe um conceito, em antropologia estrutural, muito encontradiço, mas que poderia ser quase total mente eliminado do discurso, e que é empregado com definições diferentes, mas sem que disso resulte mal-entendido: o conceito de “est rutura ”. Diremos, por exemplo, que a estrutura é aquilo que há de comum no modêlo e no sistema repre senta do : homolo gia funda todo o empenho estruturalista. Nad a se opõe, então, a que, para simplificar, se confundam no dis curso a estrutura e o modêlo no qual ela se manifesta, a estrutura e o sistema que ela rege, e a estrutura e 92
as propriedades que destaquem suficientemente um objeto do caos para que se lhe possa conceber uma representação — com a condição, tudo isso, de jam ais toma r uma estrutura pelo conjunto que de la é dotado. 2.1. O modêlo estrutural. Em uma passagem freqüentemente citada de “A Noção de Estrutura em Etnologia”, Lévi-Strauss dá uma definição muito mais estrita, que iremos comentar. (1) “Em primeiro lugar, uma estrutura oferece um cará ter de sistema. Consiste de ele mentos tais que qualquer modificação de um dêles provoca uma modificação de todos os outros.” ( Anthropologie structurale, p. 306.) 2.1.1. Estrutura e elementos. Como Claude Lévi-Strauss notou com freqüência, e como o implica a proposição ( 1 ), são as relações entre os elementos e não os próprios elementos que definem a estrutura. Se uma estrutura “consiste de elementos”, então ja mais se poderia dizer que um sistema real e um modê lo construído têm a mesma estrutura: com efeito, os elementos não são os mesmos. Por exemplo, os mod e los de permutação estudados no primeiro capítulo en volviam símbolos: A, B, C, etc. Os sistemas represen tados comportavam, por sua vez, classes matrimoniais. É verdade que, num caso como êsse, tem-se uma rela ção biunívoca entre os elementos do modêlo e os do sistema: a um elemento do sistema corresponde um único elemento do modêlo e vice-versa. Na terminolo gia de Lévi-Strauss, trata-se de um modêlo “me cânico” : mas êle tamb ém considera modelos “estatís 93
ticos”, nos quais um elemento do modêlo representa uma função de vários elementos do sistema; se o modê lo é adequado, modêlo e sistema ainda têm a mesma estrutura. Parece, portanto, mais justo definir a es trutura como as propriedades de um conjunto — em particular as imposições de um sistema e as regras de um modêlo — do que como o conjunto munido dessas propriedades. 2.1.2. Para que um Est rutu ra e variações. conjunto seja munido de uma estrutura ou constitua um sistema, não é necessário que exista dependência absoluta entre seus elementos, nem que “qualquer mo dificação de um dêles provoque modificação de todos os outros”. Por exemplo, a terminologia de parentesco francesa pode ser representada exaustivamente por meio de dimensões e valores semânticos (ver Cap. II, p. 51, no ta) . As relações assim manifestadas entre os têrmos testemunham o caráter de sistema da termi nologia. Imaginemos agora que, em vez de ter os dois têrmos “primo” e “prima” com os valores masculino e fem inino, tivéssemos um único têrmo para o qual as dimensões do sexo não fossem pertinentes; seria neces sário, por isso, modificar todos os outros têrmos? Seria preciso, por exemplo, abandonar a distinção en tre “tio” e “tia ”, “irmã o” e “irm ã”, etc.? Certa men te que não. No caso do inglês, de resto, tem-se um único têrmo (cousin) que não tem valor específico sôbre a dimensão do sexo, sem que isso provoque transformação alguma concomitante, em relação à terminologia francesa. Encontram-se, portanto, no interior de conjuntos estruturados, zonas de coerência local cujas transfor mações não afetam a estrutura global. 94
Estrutura e generalidade. Pode-se com 2.1.3. preender de uma segunda maneira tal definição apa rentem ente demasiado restritiva da estrutura. LéviStrauss pode querer dizer que tôdas as modificações pertinen tes dos elementos obedecem a regras gerais. A pertinência não depende do método, e sim de uma hipótese sôbre a naturez a dos fatos. Ora, se apenas se retêm os fenômenos suscetíveis de serem vinculados a regras gerais, chega-se, no domínio do humano, a absurdos. Seria preciso, por exemplo, eliminar do mo dêlo de uma língua (de sua gramática) tôdas as ex ceções. É verdade que se enc ontram exceções lin güísticas aparentes que podem ser vinculadas a regras gerais; há outras, contudo, que dependem de regras ad hoc e devem ser aprendidas como tais pelos falan tes. Em nome de que se deixar iam de lado essas re gras ad hoc e se renunciaria com isso a nunca estabe lecer a gram ática de uma língua? É evidente que va riações livres não são regidas por uma estrutura; por outro lado, dizer que as idiossincrasias não são regi das por regras particulares é fazer uma afirmação in firmada pelos fatos. 2 .2 .
O grupo de transformações.
(2) “Em segundo lugar, todo modêlo pertence a um grupo de transformações, cada uma das quais corresponde a um modêlo de mesma família ainda que o conjunto dessas transformações constitua um grupo de modelos.” ( Ib id .) Seria difícil para nós o esclarecimento dessa pro posição, se não tivéssemos encontrado no primeiro ca pítulo um exemplo de “grupo de transformações” (ver § 3.4 e 4.1). 95
2 . 2 . 1 . A fam ilia de modelos. Certas estrutu ras elementares de parentesco podem ser representa das, como vimos, por modelos de permutação: seja N classe matrimonial e três permutações p, m e / repre sentando respectivamente a relação entre a classe do pai e a de seus filhos, a classe da mãe e a de seus fi lhos, e a classe de um homem e a de suas esposas pos síveis. Tem-se, por definição, f = nv lp (ou seja, a clas se de minha esposa e a da mãe cios meus filhos se con e ( e é a permutação idêntica e essa fundem) e / equação significa simplesmente que as classes são exógamas). Para cada valor de N > 2 podem-se calcular grupos tríplices de permutação que satisfazem tais condições. Tem-se então uma família de modelos suscetí veis, todos êles, de serem construídos dedutivamente a pa rtir de um a definição geral. Pode-se també m espe cificar essa definição (ao acrescentar, por exemplo, como condição, que f = /"\ ou seja, que as alianças sejam bilaterais, ou que N = 8, etc.). Obtém-se en tão uma subfamilia de modelos. Convém, portanto, notar que não há razão algu ma a priori para que os modelos de um conjunto de sistemas possam ser construídos mecanicamente a par tir de uma fórmula geral e constituam assim uma “fa mília”; por exemplo, nenhuma definição da gramá tica das línguas naturais permite considerar a constru ção dedutiva das gramáticas de tôdas as línguas pos síveis. 2 . 2 . 2 . As transformações . Seja como fôr, a proposição ( 2 ) não afirma somente que os modelos podem ser construídos dedutivamente, ela especifica o modo dessa construção: por “transformações” refe 96
ridas a modelos e que engendram modelos, exclusiva mente. Mal havia razão a priori pela qual os modelos fôssem engendrados a partir de regras próprias a uma família dentre êles; há ainda menos razão para que essas regras sejam regras de transformação do tipo considerado. Trata -se no caso de possibilidades ló gicas; se nelas queiramos ver necessidades, como está implícito na proposição (2 ), isso deve ser justificado empiricamente. Os modelos de permutação das estruturas elemen tares do parentesco constituem uma das únicas famí lias de modelos em Antropologia que se possam cons truir a parti r de uma definição geral. É, em todo caso, a única a qual poderíamos conceber as transfor mações conformes à proposição (2). Ver-se-á, ade mais, que nem tôdas as construções engendradas pelas transformações correspondem à definição do modêlo de parentesco. 2.2.3. As perm uta Primeiro exemplo Kariera. ções têm propriedades que permitem estabelecer rela ções de transformação entre os modelos de que se tra ta aqui. Consideremos um exemplo: sejam dois sis temas hipotéticos E e F, cujos modelos são os seguintes: E = i A B }
P E =
fAB] f AB] ! } »,=•! \ L = (a b j
(b a j
fAB] \ (b
ía j
E é um sistema de duas classes (ou “m etades” ) pa trilineares exógamas. F = ^XY[
4
fXY] PF =
]
[YXJ
fX Yl
f XY ] }■/,=<{ } [XYJ IYXJ
\m y = í
97
F é um sistema de duas metades matrilineares exógamas. Pode-se construir o modelo de um sistema G, produto de E e F (13) : G -
E X F = \ AX, AY,BX,BYÍ-
f AX AY BX BY ] PG = Ps X p , = 1 [[ AY AX BY BX J f AX AY BX BY ] mc —
x
^
LBX BY AX AY J
f AX AY BX BY 1 / = / X /F = { 1[BY BX AY AX J
O modelo assim obtido é uma representação do sistema australiano dos Kariera (cf. Figura 9a, b, c). Dir-se-á, por isso, que a “transformação” de dois sis temas de metades, um matri e outro patrilinear, pela qual o construímos, nos ensina algo acerca da natureza ou do funcionamento do sistema Kariera? Não necessàriamente. Em primeiro lugar, o fato de um sistema possuir certa prioridade não implica de modo algum que essa propriedade desempenhe qualquer papel no fun cionamento dêle. A isso se voltará. (13) O prod uto G de dois conjuntos E e F é o conjunto de duplas ( x , y ) no qual x é um elemento de E, e y é um elemento de F. Se a e ¡3 são respectivamente permutaçõe s de E e de F, y, permuta ção de G, é o produ to de a e |3 se y {x, y) = (a (x) , (3 {y) ). Para um de senvolvimento mais elegante e completo do presente exemplo, ver Courrège.
98
Em segundo lugar, naquilo que concerne ao sis tema Kariera, pode-se pensar, com Louis Dumont, que as metades matrilineares potenciais não têm existên cia efetiva alguma (14). Segundo exemplo Kariera. Em contra 2.2.4. posição, êsse sistema seria fundado na combinação de um sistema de metades patrilineares exógamas com uma regra de alternânc ia de gerações. Pode-se repre sentar tal regra pela construção H:
... .. .... 7
*
H = i 1 2 l
í 1 21 } »„ = pn = í 12 1 J
í 12) (1 21 { } \ fn = \ 121J L1 2 J
H não é um modêlo de sistema de parentesco, pois /H= e, o que contraria a definição dêsses sistemas (cf. supra). Em contraposição, as permutações de H exprimem a existência de gerações alternadas e o fato de que há casamentos dentro de cada geração. O pro duto K de E e H é um modêlo do sistema Kariera que põe em evidência essas propriedades (cf. Figura 9, a, d, e) : K — E X H — *j Aj, A2, Bi, B2 ^ Ík =
f Ai A2 Bi B2 ] X PH = ] } (_A2 Ai B2 Bi J f A i A2 Bi B2 ]
mK = mm X
/K = /, x (14) 6 . 2.
— \
[ B2 Bi A2 Ai J
4
f Ai A2 Bi B2 ] i [ Bi B2Ai A2 J
= j
Mesmo problema que para a estrutura Aranda; ver Cap. I,
99
FIGURA 9: D U A S M A N E I R A S D E O B T E R O S I S T E M A K A R I E R A POR T R A N S F O R M A Ç Ã O D E D O I S O U T R O S S I S T E M A S
9a : O sistema E : duas m etades patrilineares exogamas.
9b : O sistema F: duas metades matrilineares exógamas.
< -------------------------> ^
C
< F = = = = . = .^ > .....
x<— <
AX
A 9 c: O sistema G = E xF : sistema Kariera como produto de dois sistemas de me tades.
—
—
O sistema K — sistema Kariera como produto de um sistema de metades patrilineares e de uma regra de alternância de gerações.
100
_—
< = —
s
BX
> ^
Y
O
BY
A
AY
9 d: O sistema H : duas gerações alternadas, e a endogamia de geração.
E x H :
------
=
A
9 e:
.
A
Vv
< = ==> % N , — >
2.2.5. O dilema. O produto E X H é obtido pelas mesmas regras que o produto E X F. Se, no en tanto, as duas transformações são formalmente análo gas, elas diferem no tocante à proposição (2 ), pois F é uma estrutura de parentesco, e H não o é. Neste ponto, de duas coisas uma: — ou, como o faz Courrège, não se introduz a exogamia das classes (f=£e) na definição das estruturas consideradas; e H deixa de suscitar problemas parti culares. Mas então algumas das construções assim obti das não são mais modelos de parentesco. Conservam-se os “grupos de transformações”, mas perde-se a “fa mília de modelos”. — Ou então mantém-se a condição: f ^ e; nesse caso, talvez se conserve a “família de modelos”, mas o produto E X H não satisfaz às condições expressas na proposição (2 ), e perde-se o “grupo de trans formações”. Vê-se, então, que o único exemplo formalizado em Antropologia de um “grupo de transformações” so bre uma “família de modelos” é bem pouco conclu dente: no primeiro capítulo, havia-se mostrado que somente uma pequena parte dos “modelos” de per mutação eram modelos no sentido estrito, vale dizer, estavam aptos a representar sistemas empiricamente possíveis (cf. § 4, 3). Aqui, mostrou-se que as trans formações no sentido da proposição (2 ), que operam unicamente no interior de uma família de modelos, não são necessàriamente nem tôdas nem as únicas per tinentes. 2.2.6. Caráter teórico da proposição (2). Ao retomar os modelos de permutação, introduzidos no primeiro capítulo, intentou-se ilustrar a preposi101
ção (2) e alguns dos problemas que ela desperta. Se ja como fôr, não é preciso exemplo algum pa ra afirm ar o caráter infirmável dessa proposição: Quando se tem uma família de construções que são todas modelos; quando, sôbre tal família, podem-se definir transformações que a deixam inalterada, ou seja, que partem de, e sempre chegam a, modelos dessa família; quando, enfim, tais transformações têm valor de modelo, vale dizer, quando repre sentam um aspecto de funcionamento dos sistemas, tem-se aí um fato notável, suscetível de condu zir a belas generalizações. Mas não se poderia avançar a partir unicamente da epistemología de que tais re lações estruturais entre os modelos sempre têm cará ter de generalidade. Dizer que assim é em Antropo logia é fazer uma afirmação sôbre a natureza dos fatos. Mais adiante, consideraremos o sentido dessa afirmação. 2.3. As relações do modelo. (3) “Em terceiro lugar, as propriedades indicadas acima permitem prever de que modo reagirá o modêlo, em caso de modificação de um de seus elementos.” ( Ib id .) Essa proposição (3) somente será justa se uma modificação de um elemento obedecer a uma regra geral do modêlo [proposição ( 1 ) ], e se essa regra não passar de uma realização particular de uma regra ge ral a um grupo de modelos [proposição (2) ]. Con testamos que isso ou aquilo seja epistemológicamente necessário. 102
2.4. A adequação. (4) “Fin almente, o modêlo deve ser construído de tal modo que seu funcionamento possa dar conta de todos os fatos observados.” [Ibid.) As proposições (1), (2) e (3) concernem aos dois instrumentos estruturalistas, o modêlo e o grupo de transformações. A proposição (4) t rat a sucintamente de sua condição de adequ ação: que deve designar “tudo” do “tudo se passa como se”, do qual os estru turalistas fazem uso generoso? “Tudo” jamais designa tudo, mas a totalidade de um conjunto. Para determina r tal conjunto, há três coisas a fazer: 2.4.1. Real idade ou situação ideal. Quer os elementos dêsse conjunto sejam tomados tais como na realidade; quer sejam tomados numa situação ideal, abstraída da realidade, da qual se terão eliminados os fatores externos, ao objeto de pesquisa. Pense-se o que se quiser a respeito, é essa segunda possibilidade que se impõe: não se poderia dar conta, por meio de um modêlo, de fenômenos que não são devidos ao siste ma representado pelo modêlo. Mas tal escolha não se faz sem dificuldade; ela torna necessária uma hipóte se teórica sôbre a natureza do sistema; do contrário, eliminar-se-ia aquilo de que é difícil dar conta, jun tamente com aquilo que não pode nem deve ser ex plicado. 2 . 4 . 2 . O observado ou o possível. O conjunto retido pode ser exclusivamente tirado do corpus de observações, ou então compreender todos os fenôme 103
nos tornados possíveis pelo sistema, sejam ou não obser váveis. Pa ra o estruturalista em Lingüística e, ao que parece, em Antropologia, a análise de um corpus mui to variado é suficiente para dar conta do possível. Ora, cm Lingüística esta idéia foi radicalmente ques tionada por Noam Chomsky: a só considerar um cor pus necessàriamente finito, perde-se de vista um as pecto essencial da linguagem: sua infinita criativi dade. Tentamo s aqui mesmo, no segundo capítulo, mostrar que as propriedades do corpus mitológico não eram nem tôdas nem as únicas pertinentes ao estudo da estrutura dos mitos. O mesmo vale, portanto, para a Antropologia. O arranjo ou o dispositivo. Podemos 2.4.3. satisfazer-nos com todo conjunto dotado de proprie dades formalmente representáveis, ou então exigir, ade mais, que essas propriedades estejam ligadas ao funcionamento de um dispositivo real. Tam bém neste ponto parece que para o estruturalista o segundo vem praticamente a dar no primeiro, vale dizer, que pro priedades formais remetem sempre a um dispositivo real: o espírito humano, no caso. O próprio Claude Lévi-Strauss, em sua resposta a Maybury-Lewis, “On Manipulated Sociological Mo dels”, insiste entretanto na diferença:
“Para êle [Maybury-Lewis], a estrutura so cial é como uma espécie de quebra-cabeça, e tu do está feito quando se descobriu como as pe ças se jun tam . Se, no entanto, as peças forem recortadas arbritàriamente, não há estrutura al guma. Se, pelo contrário e como por vêzes se faz, as peças forem recortadas automàticamente, 104
de diferentes formas, por uma serra mecânica cujo movimento é regularmente modificado por árvore de dentes, a estrutura do quebra-cabeça existe, não no nível empírico (visto que há várias maneiras de reconhecer as peças que combinam entre si) : sua chave se encontra nas fórm u las matemáticas que exprimem a forma dos dentes na árvore de uma máquina e sua ve locidade de rotação; coisa muito afastada do quebra-cabeça tal como êle se apresenta ao jo gador, mas que “explica” o quebra-cabeça da única maneira inteligível.” Nas ciências, humanas, no entanto, a situação é mais complexa, sob dois aspectos, do que o exemplo do quebra-cabeça e da árvore de dentes. Em pri meiro lugar, o dispositivo que engendrou o conjunto estudado não é conhecido antecipadamente; trata-se, antes de mais nada, de mostrar a própria existência de tal dispositivo, e de precisar-lhe a natureza. Em segundo lugar, aquilo que corresponderia às “manei ras de reconhecer as peças que combinam entre si” no exemplo do quebra-cabeça — no caso, as múlti plas propriedades formais de todo conjunto fortemen te estruturado — bem pode passar pela chave da es trutura, a manifestação direta do dispositivo assumido. Há muito bons motivos para crer que um estrutu ralista mais metódico do que imaginativo, confronta do com um quebra-cabeça sociológico, ignorante de qualquer árvore de dentes, agiria menos como um fa bricante do que como um amador esclarecido. Êste último classifica as peças em vários grupos segundo sua forma, desenho, côr, e quando um elemento falta 1'05
no seu “sintagma”, êle o procura no conjunto “para digmático” apropriado. Quan to à árvore de dentes, êle a recorta sem classificar; não respeita Saussure. 2.4.4. As condições de adequação enunciadas pela proposição (4) não são nem necessárias nem su ficientes . Certos fatos observados não devem ser ex plicados, como por exemplo a imagem do quebracabeça, ou uma peça que estivesse quebrada em duas. Deve-se, pelo contrário, representar fenômenos que não são dados à observação; Lévi-Strauss não diz outra coisa quando mantém, com ou sem razão, o modêlo de um sistema de aliança patrilateral (cf. Cap. I, § 6 . 1 ), apesar de não se encontrar um sistema dêsse tipo. É preciso, enfim, justific ar o modêlo retido por uma hipótese acêrca do dispositivo que dá ao con junto representado sua estrutura, seja ou não obser vável tal dispositivo. 2.5. Especificação e adequação. Encontraram-se, nos capítulos II e III, certas especificações estruturalistas do modêlo: êle representa um conjunto homo gêneo; suas operações dizem respeito a elementos dês se conjunto. As especificações introduzidas pelas pro posições (2 ) e (3) não desempenham um papel es sencial a não ser em Antropologia, ainda que possam ser reencontradas na fonologia de Jakobson. Se a pesquisa estruturalista foi capaz de progre dir com instrumentos muito mais especificados do que os metodologicamente necessários, foi porque se satis fizeram critérios de adequação vagos em demasia. As análises assim produzidas não são más por isso, longe disso, mas na medida em que o “tudo se passa como se” permanece intuitivo e arbitrário, quase não é possível validá-las plenamente. 106
3.
O
H o m e m
e
a
D iv e r s id a d e
C u l t u r a l
3.1. A diversidad e considerada como irredu tível. Pensamos que o estruturalista ado ta seu modêlo particular e o “grupo de transformações” não por ra zões metodológicas, mas muito mais em conseqüên cia de uma opção teórica que se apóia no próprio objeto da Antropologia. A matéria da Antropologia é a diversidade das manifestações humanas. A sociedade que produziu os antropólogos estava interessada em mostrar que essa diversidade depende de uma alteridade que separa de início o homem “selvagem” ou “primitivo” do ho mem “civilizado” ou “moderno” . Os melhores etnó logos, um pouco cansados do papel que se esperava desempenhassem, e pagos para saber que não há duas humanidades, tinham a escolha de afirmar que há mui to mais que duas delas, ou então que há apenas uma. Preferiram a primeira solução, e Lévi-Strauss a se gunda. É verdade que, desde o abandono das teorias ra cistas (ou difusionistas unifocais) ninguém ignora a unid ade da espécie humana. Todo o problema, no<^=— entanto, consiste em saber qual é a parte do homem genérico nos fenômenos de civilização. O homem é um bípede vivíparo e onívoro que nasce prema turo. Diversamente das outras espécies animais, suas faculdades inatas se limitam, segundo nos dizem, a torná-lo capaz de adquirir não im porta o quê. Daí resulta que os sistemas sócio-culturais pouco ou nada devem à natureza humana, e es tão inteirame nte do lado do adquirido. Eis a idéia que funda a antropologia não-estruturalista que se ensi na hoje em dia. 107
-—
Descarta-se a natureza humana porque, como se afirma , a diversidade é irredutível. Em face disso, nada mais resta senão dar contas de cada sistema par ticular, com para r e classificar. Nota r fenômenos co muns a um conjunto de sistemas constitui a única ge neralida de que seja razoável pretende r. Em tais con dições, toda essa empresa, cujo princípio consistia em afirmar a diversidade, conduz a nada mais reconhe cer que não seja a semelhança. A Etnografia e a Etnologia se voltam as costas. Ora, como diz perfe i tamente Claude Lévi-Strauss, “uma disciplina cujo objetivo primeiro, senão único, é analisar e interpre tar diferenças, se poupa todos os problemas, ao ape nas levar em conta semelhanças. No mesmo passo, contudo, ela perde todo meio de distinguir o geral ao qual pretende, do banal com que se contenta”. (Anthropologie structurale, p. 19.) Viu-se mais acima (§ 2. 4. 3) em que consistia uma das opções essenciais no que concerne aos mo delos: pode-se representar todo conjunto munido de propriedades formais, ou então exigir ademais que essas propriedades sejam ligadas ao funcionamento de um dispositivo real. Pa ra os antropólogos dos quais falamos (mas não para Lévi-Strauss), não se pode sequer considerar um dispositivo cujo funcionamento não seja observável e que poderia apenas ser objeto de uma hipótese. O modelo não passa de uma ma neira econômica e coerente de representar os fatos. Está, por conseguinte, desprovido de qualquer valor explicativo. A êste respeito, o antropólogo não-estruturalista adota uma idéia feita comum a tôdas as ciências hu manas e sociais — que lhes vale o nome de “behavio108.
ral sciences” — : podem-se estudar apenas as mani festações da prática humana e não os dispositivos dos quais elas são o output observável. Na da de dispositivo; a fortiori, nada de natureza humana. 3.2.
A diversidade considerada como redut ível ao espírito humano. Para Lévi-Strauss, ao contrário,
as práticas dependem de dispositivos sem os quais são ininteligíveis: esquemas conceptuais. A praxis “cons titui para as ciências do homem a totalidade funda menta l”. Mas, “entre praxis e práticas se intercala sempre um mediador que é o esquema conceituai por cuja operação uma matéria e uma forma, desprovidas ambas de existência independente, se realizam co mo estruturas, vale dizer, como entes simultaneamen te empíricos e inteligíveis” (La Pensée sauvage, p. 173)ó Num sistema, a matéria não é mais nem simples conteúdo nem simples qualidade. Ela se recorta em elementos que pertencem a classes. Os elementos de um a mesma classe são substituíveis entre si. As rela ções entre as classes regem-se por um esquema. Dois sistemas cujos elementos sejam diferentes mas cujo esquema é o mesmo, são estruturalm ente análogos. Os esquemas conceptuais são êles próprios substituíveis entre si no interior de um grupo de transformações. Os grupos de transformações próprias aos diferen tes tipos de sistemas regem-se, por seu turno, por uma única combinatória. As regras dessa combinató ria são as do espírito humano, ao qual remetem, por tanto, tôdas as estruturas possíveis. Se se distingue o sistema, conjunto material, da estrutura de que é munido, pode-se dizer que só o es pírito engendra tôdas as estruturas, e engendra os sis temas “por meio do mundo do qual êle próprio faz
par te” . O “mundo ” disponível num tempo e num lugar dado não é sempre o mesmo, e isso pelo próprio fato da ação humana . Assim, a conjuntura e o evento selecionam entre o conjunto imutável das estruturas potenciais. Não há estrutura e tampouco regra (1S) univ er salmente presente. Mas o conjunto das estruturas exis te em potência, não pela simples coleção de cada uma delas, mas pela combinatória mental do homem, que lhes rege os grupos de transformações. A menos parti cular das naturezas. Para 3.3. os outros antropólogos, o espírito humano é capaz de tudo adquirir; para os estruturalistas, é capaz de tudo engendrar. Pa ra os primeiros, êle não desempenha papel algum; para os segundos, êle os desempenha to dos salvo u m : o papel que consiste em escolher qual papel será desempenhado, que pertence propria mente à História. Par a uns como pa ra os outros, en tretanto, nenhuma regra de uma língua, nenhuma re gra de uma cultura é inata. Seja que o espírito com bine tudo, seja que aprenda tôdas as combinações, basta-lhe para isso que disponha das operações mais gerais. Invocad a ou demitida, a nature za hum ana tem por peculiaridade ser a menos particular das naturezas. Os estruturalistas e os outros antropólogos se re encontram em certa medida onde ainda parecem se opor: uns não concebem dispositivo algum, os outros sempre reconhecem o espírito humano. Mas o espírito estruturalista tem o mesmo respeito que o beha(15) _ Salvo a proibição do incesto que, ao obrigar os homens a se comunicar em, funda a cultura. Semp re conforme Cl- Lévi-Strauss.
110
viorismo pelos fatos observáveis. São êles que êle re corta e combina. Assim, transform a as narrativ as mí ticas em narrativas míticas, mas não a estrutura mi tológica em narrativas (cf. Cap. II, § 3. 3) . A na r rativa mítica é observável. Um sentido mitológico “profundo”, do qual nem os elementos nem a ordem são os da narrativa, escapa à observação, e põe em dificuldade o estruturalista que no entanto o descobriu. O estruturalista formula hipóteses com audácia: em seguida, é timorato ao se restringir a recortar, clas sificar e combinar os fatos observáveis. O antro pó logo clássico, se chega a tanto, é bem temerário, visto que, de resto, sua prudência lhe veda as hipóteses que lhe dariam à découpage valor de explicação. A opção teórica do Estruturalismo é, pois, tanto paralela quanto oposta à que está na base da outra antropologia. No estado em que se encontra a disci plina, contudo, os problemas levantados contam mais que as soluções propostas. O espírito human o invoca do não se manterá por muito tempo no lugar que se lhe atribui. 4.
Os
D is p o s it iv o s
H u m a n o s
Os behavioristas jamais demonstraram que a lin- W guagem ou a cultura pudessem ser totalmente adqui ridas. Os estruturalistas jamais demon straram que pudessem ser engendradas mediante operações gerais. O exame dos fatos (dos quais daremos dois exemplos muito simples) leva antes a pensar que os dispositivos mentais do homem são muito específicos e não são os únicos a reger os sistemas sócio-culturais. O aprendizado da linguagem. A crian 4.1. ça que ouviu apenas um número finito de frases, de 111
resto quase tôdas incompletas ou mal construídas, acha-se capaz de produzir e compreender uma infi nidade de frases novas. IJm dispositivo munido tão-sòmente das operações de recorte, classificação e de percepção de analogias entre estruturas seria totalmen te incapaz de adquirir a gramática de uma lín gua. Com mais forte razão, um dispositivo como êsse fracassaria se fôsse engendrar tôdas as gramáticas pos síveis, para se limitar em seguida a selecionar uma dessas gramáticas a partir de um corpus de frases ouvidas. O aprendiz ado da linguagem supõe um dis positivo altamente especializado: regras inatas que permitam, a partir das frases ouvidas, selecionar e, em parte, construir uma gramática adequada. Tudo isso foi demonstrado por Chomsky. Dispositi vos e representação mental. 4.2. homem é capaz de conceber linguagens vocais muito diferentes das línguas “nat urais” . Seria, em contra partida, completamente incapaz de falá-las, por falta de um dispositivo mental específico. Isto nos conduz a distinguir entre as estruturas concebíveis e as estru turas disponíveis. É tautológico dizer que tôdas as es trutu ras concebíveis o são pelo espírito humano. Por outro lado, parece-nos absurdo dizer que tôdas as es truturas estão disponíveis e aptas para reger as mani festações humanas. É igualmente falso dizer que todos os dispositivos disponíveis para os homens o são para o espírito hu mano. Esta última hipótese deveria parecer-nos du vidosa desde quando, no Capítulo III, mostramos que r^jtiem todos os elementos sócio-culturais têm estruturas de código, estruturas cujo caráter mental é geralmente patente. Em compensação, basta considerar a econo112
mia moderna para encontrar manifestos mecanismos que não pertencem ao espírito dos indivíduos. Ao passo que a faculdade da linguagem é indi vidual, mesmo que só se manifeste em coletividade, a vida social testemunha uma lógica que não está à dis posição dos indivíduos. Os sistemas de comunica- < % ção complexos, tais como a política e o ritual, podem implicar dispositivos que não pertencem ao espírito de um homem. É verdade que freqüentem ente se con sidera o espírito humano como sendo tanto coletivo quanto individual; no nosso entender, erra-se em fazê-lo. Com efeito, o espírito hum ano em cada ho mem é universal; sua gênese é a da própria humani dade; o estudo dessa gênese não cabe à antropologia social e cultural. Por outro lado, na da permite afir mar que os dispositivos coletivos, chamemo-los ou não de “espírito”, sejam todos de um mesmo tipo univer sal. Suas estruturas particulares são produtos da His tória que, pelo menos sob êsse aspecto, devem ser in cluídos na Antropologia. 4.3. A natureza human a. Seguimos Claude Lévi-Strauss ao rejeitar a idéia feita segundo a qual a diversidade cultura l é irredutível ao human o. Corre-se, contudo, o risco de perder o benefício dêsse pri meiro passo ao supor que o espírito humano rege tudo, e isso graças a algumas operações gerais. É afir m ar demais, com poucos meios. Não basta reconhecer ao espírito humano um papel na constituição e no fun cionamento dos sistemas culturais para que se impo nha, no mesmo passo, considerar como possível a exis tência de dispositivos especializados e inatos. Nós não procuramos expor aqui o pensamento dos estruturalistas, nem fazer justiça à sua obra. Mas
---
O
113
■
ao examinar alguns dos problemas que o Estruturalismo suscita, às vêzes sem querer, talvez tenhamos pôsto em evidência uma de suas contribuições que, ainda que pouco reconhecida, é essencial para o desenvolvi mento d a nossa disciplina: a obra de Claude LéviStrauss conduz a Antropologia ao estudo de seu pri meiro objeto: a natureza humana.
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117