TEORIA PRAGMÁTICA – CURSO 2o SEMESTRE DE 2010 PROFA. MÁRCIA CANÇADO ROTEIRO DE LEITURA: - LEVINSON, S. 2007. Pr agmá agm áti ca . Tradução: Luís Carlos Borges e Aníbal Mari. São Paulo: Martins Fontes. (Livro texto) E - YULE, G. 1996. Pragmatics . Oxford: Oxford University Press. CAPÍTULO 5 – ATOS DE FALA 1. Introdução Para as pessoas se expressarem, elas não produzem somente enunciados contendo estruturas gramaticais e palavras; elas também produzem ações através desses enunciados. Por exemplo, em uma empresa, quando um chefe diz: (1) Você está despedido! Essa expressão é mais do que um enunciado, pois é usada como um ato de dispensa de emprego. As ações expressas por expressões podem ser de vários tipos, como em (a), elogio, em (b), um convite, em (c), um tipo de surpresa: (2) a. Você está fantástica! b. Você é muito bem vinda! c. Você está louca! Ações desempenhadas através de enunciados são geralmente chamadas atos de fala, que podem ser reconhecidos por expressarem agradecimentos, queixas, cumprimentos, convites, promessas, pedidos, etc. O estudo dos atos de fala é uma questão central da pragmática. Os termos descritivos usados para os diferentes atos de fala referem-se à intenção comunicativa do falante ao produzir um enunciado. O falante normalmente espera que a sua intenção comunicativa seja reconhecida pelo ouvinte. Ambos, falante e ouvinte, são auxiliados nesse processo pelas circunstâncias que envolvem o enunciado. Essas circunstâncias, incluindo os enunciados, são chamados de evento de fala. Sob várias perspectivas, é a natureza do evento de fala que determina a interpretação de um enunciado como um tipo particular de ato de fala. Por exemplo, em um dia bem frio, o falante ao pegar uma xícara de chá, pode ser interpretado como se fizesse uma queixa, ao proferir seguinte enunciado:
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(3) Esse chá está realmente frio!
Entretanto, se trocarmos o cenário para um dia de calor, o mesmo enunciado em (3), pode ser interpretado como um elogio. Portanto, se um mesmo enunciado pode ser interpretado como dois tipos diferentes de atos de fala, é óbvio que não haverá uma correspondência única entre um enunciado e um tipo de ação.
2. Atos de Fala Austin (1962) propõe que o ato comunicativo pode se apresentar em vários níveis, sendo os mais relevantes: o ato locucionário, o ato ilocucionário e o ato perlocucionário. O ato locucionário resume-se ao ato de proferir uma sentença com um certo significado e um conteúdo informacional, ou seja, o sentido restrito da sentença, a descrição dos estados de coisas. O ato ilocucionário é a intenção do proferimento do falante, ou seja, as ações que realizamos quando falamos: ordenamos, perguntamos, avisamos, etc. O ato ilocucionário é desempenhado através da força comunicativa de um enunciado. E o ato perlocucionário são os efeitos obtidos pelo ato ilocucionário, ou seja, o resultado que conseguimos com nosso ato de fala: assustamos, convencemos, desagradamos, etc. Por exemplo, meu filho não quer fazer o dever e eu digo: (4) Vou desligar o videogame. O ato locucionário é o proferimento da sentença vou desligar o videogame. Entretanto, posso ter pronunciado a sentença com a intenção de ameaçar: esse é o ato ilocucionário ou força ilocucionária. Inteiramente distinto de ambos os atos é o ato perlocucionário: o comportamento subsequente que pretendo que meu filho tenha, ou seja, que se sinta ameaçado e vá fazer o dever. A distinção entre os atos ilocucionário e perlocucionário é importante: o ato perlocucionário é o efeito que o falante espera conseguir sobre o ouvinte, ao pronunciar tal proferimento. Por isso, o ato perlocucionário não é, geralmente, considerado relevante para o estudo do significado linguístico. Em relação aos outros dois níveis, é importante realçar que não podemos pensar que os atos ilocucionários são consequências dos atos locucionários. A sentença vou desligar o videogame, sozinha, não constitui uma ameaça. Já quando uso a sentença, a força empregada no ato de proferir essa sentença atribui a ela uma força ilocucionária particular (pode ser, ou não, uma ameaça). Kempson (1977: 59) distingue essas três análises da seguinte maneira: um falante profere sentenças com um determinado significado (ato locucionário) e com uma determinada força (ato ilocucionário), para atingir determinado efeito sobre o ouvinte (ato perlocucionário).
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Dessas três dimensões, a mais discutida é o ato ilocutório ou força ilocutória. Na verdade, o termo ato de fala é geralmente interpretado como se referindo somente à força ilocucionária de um enunciado. Explicitemos um pouco o que seria a força de um enunciado. Vejamos a sentença declarativa em (5). Para esse tipo de sentença, parece bem natural a aplicação do conceito de valor de verdade ao falarmos de seu significado: (5) O João quebrou o vaso. Entretanto, o que dizer de sentenças não-declarativas do tipo: (6) João, quebre o vaso!!! (7) O João quebrou o vaso? Não parece fazer sentido afirmarmos algo sobre a verdade ou a falsidade da sentença imperativa em (6) ou da interrogativa em (7). Entretanto, como observou Frege (1918), ainda podemos nos valer da noção de valor de verdade para estudar sentenças nãodeclarativas1. Veja que as sentenças em (5), em (6) e em (7) têm um conteúdo em comum: o fato de o vaso quebrar. Em (5), esse fato está sendo afirmado; em (6), o fato é objeto de um pedido; e, em (7), o fato é o objeto de uma pergunta. Frege nomeou de conteúdo aquilo que as sentenças têm em comum; e nomeou de força aquilo que cada sentença exprime, ou seja, a sua característica de declaração sobre um fato, de uma ordem ou solicitação de algo e de uma interrogação sobre um fato. As condições de verdade podem ser aplicadas na caracterização do conteúdo da sentença. E as diferentes interpretações do enunciado podem ser caracterizadas pelas forças características de cada sentença. Voltando ao exemplo em (4), podemos perceber que a força ilocucionária estava implícita no proferimento, mas não fazia parte do ato locucionário. Entretanto, existem casos em que a força ilocucionária está explícita no próprio ato locucionário, recebendo o nome de proferimento performativo; nesse tipo de proferimento, as forças locucionária e a ilocucionária parecem coincidir:
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Existem posições contrárias a essa afirmação de Frege. Vale ressaltar que alguns linguistas, seguindo mais a direção da análise de Austin, voltaram-se para os atos de fala como uma solução para os problemas relacionados ao significado. Por exemplo, Fillmore (1971) sugere que seria mais útil falar de condições para uso adequado de sentenças e de palavras, do que falar em condições de verdade para dar o significado de sentenças e de palavras. Tomemos a palavra acusar : em vez de falar o que essa palavra significa, pode-se estabelecer que essa palavra tem como condições para o seu uso adequado o fato de que o acusador assuma que o acusado é responsável por algum ato e que o acusador assuma que esse ato seja uma ação não desejável, má. Porém, uma proposta dessa natureza deixa de caracterizar o significado da maneira dual (ou seja, o significado mais abrangente como sendo a soma de aspectos estritamente semânticos e de aspectos estritamente pragmáticos), eliminando a dicotomia competência e desempenho, proposta por Chomsky.
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(8) Prometo-lhe que não chegarei atrasada. (9) Aposto como ele vai voltar atrás. (10) Concordo que você participe do grupo. Verbos desse tipo, prometer, apostar, concordar , são chamados de verbos performativos, pois ao usá-los, o falante já está realizando uma ação. Veja, entretanto, que podemos ter proferimentos com os mesmos verbos, mas que constituem apenas descrições de situações: (11) Ela prometeu que não chegaria atrasada. (12) Ela apostou que ele voltaria atrás. (13) Ela concordou em que você participasse do grupo. As sentenças acima não podem ser entendidas como ações de promessa, de aposta ou de concordância, mas como descrições de algumas situações. Em realidade, o que acontece é que existem verbos específicos dos proferimentos performativos, entretanto, só quando usados afirmativamente, na 1ª. pessoa do presente simples, é que dão origem a sentenças performativas. Outros exemplos desses verbos são: (14) a. Eu te desculpo por tudo. b. Eu te autorizo fazer a prova depois. c. Nós te condenamos por todos os seus atos. d. Eu te nomeio meu procurador. Apesar de a maioria das sentenças performativas ocorrerem na 1ª. pessoa do presente simples, singular ou plural, existem algumas exceções, com verbos ocorrendo na 3ª. pessoa do presente simples. Por exemplo: (15) a. Você está proibido de entrar aqui. b. Os passageiros do vôo para Paris estão proibidos de entrar no país. Um interessante teste para verificar se uma sentença é performativa, seria acrescentar a expressão adverbial por meio destas palavras e ver se a sentença tem aceitabilidade: (16) a. Por meio destas palavras, eu te desculpo por tudo. b. Por meio destas palavras, eu te autorizo fazer a prova depois. c. Nós te condenamos por todos os seus atos, por meio destas palavras. d. Por meio deste instrumento, eu te nomeio meu procurador. e. Por meio deste ato, você está proibido de entrar aqui. Caso não seja performativa, a sentença parecerá estranha: 4
(17) a. *Por meio destas palavras, eu canto. b. *Por meio destas palavras, eu acredito em Deus. c. *Por meio destas palavras, ele avisou para ela que sairia. É interessante fazermos uma observação. Podemos perceber que os atos de fala de Austin fundem-se naturalmente com a Teoria de Grice sobre a comunicação: para os dois autores, a força ilocucionária de um proferimento e as implicaturas que um proferimento possa ter dependem de suposições partilhadas entre o ouvinte e o falante. Como conseqüência, temos que a força ilocucionária de um proferimento pode ser considerada como parte da mensagem implicada. Vejamos um exemplo dado por Kempson (1977), para ilustrar essa afirmação. Alguém que profira a sentença João estará na festa hoje à noite, sabendo que a ouvinte separou-se de João recentemente, de maneira não amigável, e levando-se em conta que a relevância da comunicação está sendo mantida, está pretendendo fazer uma advertência à ouvinte, esperando que ela entenda essa advertência: "Não vá à festa hoje à noite". Ou seja, o ato ilocucionário empregado à sentença é de advertência. Entretanto, essa advertência só pode ser entendida a partir das possíveis implicaturas que a sentença João estará na festa hoje à noite possa ter, se é proferida com base nas máximas da cooperação. Como em todos os casos, devemos pensar que essa é uma análise possível, mas não a única possível, ou seja, podem existir para o mesmo proferimento outras forças ilocucionárias e outras implicaturas possíveis. Para concluir, realço que a grande questão que se impõem ao estudo dos atos de fala é que um mesmo enunciado na forma performativa não explícita pode ter, potencialmente, várias forças ilocucionárias distintas. Veja os exemplos em que o ato locucionário em (a), pode ser uma previsão, como em (b), pode ser uma promessa como em (c) e pode ser um aviso, como em (d): (18) a. Te vejo mais tarde. (=A) b. Eu prevejo A. c. Eu prometo A. d. Eu te aviso A. Como os falantes podem saber quais são as forças ilocucionárias existentes em sentenças que não trazem explicitamente o verbo performativo indicando a ação pretendida pelo seu interlocutor? Austin (1962) sugere que, mesmo para sentenças performativas não explícitas, os verbos performativos ainda são a melhor introdução para um estudo sistemático de todos os diferentes tipos de enunciação performativa. Essa sugestão parte do princípio de que toda sentença performativa não explícita poderia, a princípio, ser colocada na forma de uma sentença performativa explícita. Com isso, ao estudarmos todas as sentenças performativas, não estaremos deixando de fora nenhum outro tipo de ação que possa estar sendo executada por outras formas de enunciação. Podemos, por exemplo, classificar sistematicamente os vários tipos de atos de fala, usando o teste da expressão 5
adverbial por meio destas palavras, em um extenso trabalho de campo, fornecendo, assim, uma lista dos verbos performativos em forma de um dicionário.
Exercícios 1. Dê um exemplo de uma sentença contextualizada e explicite o ato locutório, o ato ilocutório e o ato perlocutório envolvidos no exemplo. 2. Explicite algumas das possíveis forças ilocucionárias apresentadas pelas sentenças abaixo: 1) Desculpe-me, você está no meu caminho. 2) Por favor, passe-me o sal. 3) Eu te imploro perdão. 4) Cuidado, tem um buraco no caminho. 5) Eu vou apagar seu nome da lista. 3. Quais verbos abaixo apresentam usos tipicamente performativos? Use o teste proposto para evidenciar esse uso. 1) garantir 2) preocupar 3) indicar 4) desculpar 5) saber 6) esquecer 7) avisar 8) concordar 9) desejar 10) discordar
3. A hipótese performativa Seguindo a idéia de Austin, uma maneira de pensar sobre os atos de fala que estão sendo executados através dos enunciados é assumir que por trás de todo enunciado (E) existe uma sentença subjacente (como a mostrada em (16)), contendo um verbo performativo (Vp) que faz a força ilocucionária explícita. Esse procedimento é conhecido como a hipótese performativa (Ross, 1970; Sadoch, 1974). O formato básico da sentença subjacente a cada enunciado é: 6
(19) Eu (por meio deste) Vp você (que) E Nesse tipo de sentença, o sujeito deve estar na primeira pessoa do singular (eu, nós), seguido pela expressão adverbial por meio deste, indicando que o enunciado vale como uma ação, ao ser proferido. Também existe o verbo performativo (Vp) no presente e um objeto indireto na segunda pessoa do singular (você). Essa sentença subjacente sempre tornará explícita, como (20b) e (21b), o que está implícito no enunciado em (20a) e (21a): (20) a. Arrume essa bagunça! b. Eu , por meio destas palavras, te ordeno que arrume essa bagunça. (21) a. O trabalho foi feito pela Maria e por mim mesma. b. Eu, por meio destas palavras, te comunico que o trabalho foi feito pela Maria e por mim mesma. Os exemplos em (20b) e (21b) (normalmente sem a expressão adverbial por meio destas palavras) são usados pelos falantes como atos performativos explícitos. Exemplos como (20a) e (21a) são atos performativos implícitos, algumas vezes chamados também de atos performativos primários. A vantagem desse tipo de análise é que torna claro quais elementos estão envolvidos na produção e interpretação dos enunciados. Por exemplo, existem certas sentenças que requerem a ocorrência de antecedentes, mas aparecem sem os mesmos. Na sintaxe, a expressão anafórica por mim mesma, como em (21a) requer a ocorrência de um antecedente eu dentro da mesma estrutura sentencial. Mas, misteriosamente, a sentença é gramatical sem a presença deste antecedente. O que Ross (1970) propõe é que esse antecedente está presente na sentença subjacente performativa, como em (21b), que provê esse elemento. Da mesma forma, quando você fala com alguém: (22) a. Faça isso por si mesmo! A forma explícita da sentença subjacente recupera o pronome você, antecedente à expressão anafórica: (23) Eu te ordeno que você faça isso por si mesmo! Outra vantagem do uso da hipótese performativa é em relação ao uso de alguns advérbios como honestamente, ou sentenças adverbiais como porque eu posso estar atrasado, como mostrados abaixo, que estão naturalmente ligados aos verbos performativos da sentença explícita, e não às versões das sentenças implícitas: (24) a. Honestamente, ele é um canalha! b. Eu te falo honestamente que ele é um canalha! 7
(25) a. Que horas são agora, porque eu posso estar atrasado. b. Que horas são agora? Eu estou te perguntando isso porque eu posso estar atrasado. Em (24), é a ação de falar feita pelo verbo performativo que está sendo feita honestamente e, em (25), é a ação de perguntar que está sendo justificada pela expressão porque eu posso estar atrasado. Entretanto, existem certas desvantagens na hipótese performativa. Por exemplo, o proferimento performativo explícito de uma ordem, como em (20b) tem muito mais impacto do que a versão implícita em (20a). Podemos concluir, consequentemente, que as duas versões não são exatamente equivalentes. Também, às vezes, é difícil se saber exatamente qual é o verbo performativo implícito de determinados proferimentos. Mesmo que o falante e o ouvinte reconheçam que o proferimento em (26a) tem um insulto como um ato de fala, seria muito estranho ter (26b) como a versão explícita desse ato: (26) a. Você é mais burro que uma pedra! b. ???Eu, com essas palavras, insulto você que você é mais burro do que uma pedra. Finalmente, o grande problema com uma análise baseada na identificação dos verbos performativos explícitos é que, a princípio, nós não sabemos exatamente quantos e quais verbos performativos existem em qualquer língua. Por isso, propomos, seguindo Searle (1976), que ao invés de tentar listar todos os possíveis verbos performativos existentes, como Austin propõe, tentaremos distinguir classificações mais gerais de tipos de atos de fala existentes.
Exercícios 1. Segundo a hipótese performativa, ache as sentenças subjacentes aos seguintes enunciados: 1. Não se meta no meu caminho! 2. Eu estou aqui, para o que der e vier. 3. Eu virei, com certeza. 4. Vá para casa agora. 5. Você já está pronta? 6. Eu sei falar um pouco de inglês. 7. Fale mais baixo. 8. Vá devagar! 9. É melhor você estudar mais. 8
10. Eu nasci no Brasil. 2. Dê exemplos em que as relações anafóricas e expressões adverbiais só podem ser recuperadas através da sentença subjacente. 3. Dê exemplos em que não é possível recuperar a sentença subjacente.
4. DIFIs A força ilocucionária está convencionalmente ligadamente às performativas explícitas e a outros indicadores. Como mostrado, o mais óbvio dispositivo indicador de força ilocucionária (IFID) é a expressão do tipo mostrada abaixo, em (27), onde existe uma lacuna para o verbo que explicitamente nomeia o ato ilocucionário que está sendo executado: (27) Eu (Vp) você que ... Nos exemplos abaixo, os verbos performativos prometer e avisar quando são explicitados são claramente usados como IFIDs: (28) a. Eu prometo a você que te vejo mais tarde. (ato ilocucionário = promessa) (29) b. Eu aviso a você que te vejo mais tarde. (ato ilocucionário = aviso) Entretanto, os falantes nem sempre executam seus atos de fala de forma tão explícita. Como já vimos nas sentenças performativas não-explícitas, podemos recuperar o verbo performativo que será também um DIFIs. Existem, também, outras formas, como por exemplo, descrever o ato de fala que está sendo utilizado. Imagine uma conversa telefônica, como em (30), em que uma pessoa está tentando contatar a Maria: (30) A: Eu poderia falar com a Maria? B: Não, ela não está aqui. C: Eu estou te perguntando se eu poderia falar com ela? D: E eu estou de respondendo que ELA NÃO ESTÁ AQUI! Nesse cenário, cada falante descreveu e acentuou a força ilocucionária de seu enunciado (perguntar e responder). Podemos, ainda, apontar outros tipos de DIFIs que podem ser identificadas no foco do enunciado e na entonação do enunciado, como mostrado nas diferentes versões da mesma sentença: (31) a. Você está INDO! (Eu ordeno a você que vá) b. Você está indo? (Eu estou te perguntando se você está indo) 9
Outros recursos, como uma voz mais grave para ameaças, uma voz mais suave para um convite, entre outros, ainda podem ser usados para indicar a força ilocucionária. Vale realçar também que esses enunciados devem ser produzidos em certas condições específicas para atingirem a força ilocucionária desejada pelo falante. Entretanto, ilustrar somente como as DIFs são ligados convencionalmente aos atos de fala não nos leva realmente a entender como isso se dá. Searle (1996, 1979), então, propõe que para entendermos as regras constitutivas que ligam os DIFIs aos atos de ilocucionários, temos de dar uma classificação mais ampla das condições em que esses atos ilocucionários ocorrem efetivamente, ou seja, estabelecer as condições de felicidade do enunciado, segundo o termo proposto por Austin.
5. Condições de Felicidade Segundo Austin, existem certas circunstâncias, tecnicamente conhecidas como condições de felicidade (ou condições de adequação ou condições ideais), para que o desempenho do ato de fala seja considerado satisfatório. Ou seja, a princípio, as condições de felicidade de um proferimento performativo são as condições que o contexto deve satisfazer para que o uso de uma determinada expressão possa ser adequado2. Vejamos um exemplo bem claro em que o desempenho do ato de fala será infeliz ou inadequado, pois o falante que profere o enunciado não é a pessoa específica exigida pelo contexto – o falante que profere a sentença abaixo não é um juiz: (32) Eu te sentencio a seis meses de prisão! O ato de fala de sentenciar alguém em (32) não é reconhecido como adequado e, portanto, não terá validade nesse determinado contexto. Outro exemplo, o presidente da assembléia entra na sala de reuniões da assembléia e profere: (33) Eu declaro que a sessão está aberta! Essa sentença tem as condições de felicidade exigidas para ser um proferimento aceitável e vai desencadear o processo de abertura da sessão. Entretanto, se um vigia entra no mesmo ambiente e diz a sentença em (3), a sentença não preenche as condições de felicidade e a ação estabelecida pelo proferimento não se desencadeará. Portanto, de uma maneira geral, podemos estabelecer que uma das condições de felicidade de um ato ilocucionário de ordenar é que o falante deva ser um superior ou uma autoridade em relação ao ouvinte. Uma das condições de felicidade de um ato ilocucionário de acusar é que o acusado esteja errado sob algum ponto de vista. E assim por diante. 2
As condições de felicidade na pragmática podem ser comparadas às condições de verdade na semântica.
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Mas, segundo Searle (1969, 1979), as condições de felicidade não devem ser entendidas somente como as condições em que as enunciações podem dar certo ou errado. Como uma das grandes questões da teoria é explicitar quais são os atos de fala, ou forças ilocucionárias pretendidas pelo falante ao fazerem um enunciado, Searle propõe que, através dessas condições, podemos, também, traçar um tipo de grade para comparar os diferentes atos de fala. Portanto, a caracterização adequada da força ilocucionária é fornecida especificando o conjunto de condições de felicidade para cada força. Para fazer isso, o autor se vale de um tipo de classificação mais geral para tais condições, dividindo-as em: condições gerais, condições de conteúdo, condições preparatórias, condições de sinceridade e condições essenciais. As condições gerais valem de uma maneira geral para todos os tipos de ato ilocucionário. São condições estabelecidas entre os participantes, como por exemplo, que eles entendam a língua que está sendo usada, que os falantes partilhem das mesmas informações sobre o contexto social, que eles estejam usando o bom senso, etc. Existem as condições de conteúdo que especificam restrições ao conteúdo. Por exemplo, para uma promessa ou um aviso, o conteúdo do enunciado deve ser sobre um evento futuro. Outra condição para uma promessa é que o evento futuro seja um ato futuro do próprio falante. As condições preparatórias dizem respeito a pré-requisitos do mundo real para cada ato ilocucionário. As condições preparatórias de uma promessa são bem diferentes das de um aviso. Quando se promete fazer alguma coisa, existem duas condições preparatórias básicas: primeira, o evento não acontecerá por si só, e, segundo, o evento terá um efeito benéfico. Quando se avisa a alguém, alguma coisa, existem outras condições preparatórias: não é claro que o ouvinte saiba que o evento irá ocorrer, o falante pensa que o evento irá ocorrer, e o evento não terá um efeito benéfico. As condições de sinceridade enunciam as crenças, os sentimentos e as intenções exigidos do falante, como adequadas a cada tipo de ação. Por exemplo, para uma promessa, o falante tem que estar com a intenção real de cumprir a ação futura e, para um aviso, o falante acredita realmente que o futuro evento não terá um efeito benéfico. Finalmente, as condições essenciais, que é uma condição de natureza um tanto distinta, é definida por Searle como “enunciar X conta como fazer Y”.
Exemplifiquemos um pouco essa definição. Ao enunciarmos uma promessa, mudamos o estado do falante de não-obrigação para obrigação de cumprir o prometido. Para um aviso, o enunciado pode mudar o estado de não informar sobre um futuro ruim para a informação sobre o futuro. Assim, dado que as condições de felicidade definem e constituem a natureza de qualquer ato de fala específico, espera-se que, em termos de condições de felicidade será possível oferecer uma classificação dos atos de fala mais abstrata e mais bem sustentada do que uma mera listagem de verbos performativos, como a proposta por Austin.
Exercícios 11
1. Dê exemplos de enunciados, localizando os tipos de IFDs. 2. Dê as condições de felicidade para cada ato ilocucionário abaixo: 1) o ato ilocucionário de pedido 2) o ato ilocucionário de desculpar 3) o ato ilocucionário de saudar 4) o ato ilocucionário de nomear 5) o ato ilocucionário de protestar
6. Classificação dos atos de fala Searle (1976), porém, não se satisfaz com a classificação por ele proposta. Segundo o autor, dar as condições de verdade para cada tipo de verbo performativo acarretará um número indefinido de comparações, como as feita no item anterior, entre os verbos performativos prometer e avisar . O mais interessante seria derivar algum esquema geral que delimitasse os tipos de força ilocucionária possíveis, tendo por fundamento algum conjunto de princípios. Com isso, Searle propõe um esquema mais abstrato e geral, baseado nas próprias condições de felicidade3. O autor, então, propõe que existem apenas cinco tipos básicos de ação que alguém pode executar ao falar, por meio dos seguintes cinco tipos de enunciações: declarações, representativas, expressivas, diretivas e comissivas. Declarações são enunciações que mudam o estado institucional de coisas e que tendem a se valer de instituições extralingüísticas complexas. Como ilustração, no exemplo em (34), o falante tem que ter um papel institucional específico, em um contexto específico, para que a declaração seja enunciada adequadamente: (34) a. Padre: Eu vos declaro marido e mulher! b. Juiz de futebol: Você está expulso! c. Júri de tribunal: Nós achamos que o réu é culpado! Ao usar tais declarações, o falante muda o estado de coisas através das palavras. Exemplos de outros verbos performativos declarativos: excomungar, declarar guerra, batizar, demitir de emprego, etc. 3
A tipologia proposta por Searle, apesar de ser um progresso em relação à de Austin, carece de princípios básicos que a fundamentem de forma satisfatória. Ao contrário do que propõe Searle, não podemos nem mesmo basear essa classificação, de uma forma sistemática, nas condições de felicidade. Atualmente, já existem várias outras propostas com esquemas classificatórios rivais (ver Hancher, 1979).
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Representativas são enunciações que comprometem o falante com a verdade da proposição expressa, ou seja, expressam o que o falante acredita ser o caso ou não. Afirmações, conclusões, descrições, como exemplificado em (31), são todos exemplos de enunciações representativas: (35) a. A terra é redonda. b. Enfim, o Chomsky revolucionou o estudo da linguística. c. Era um dia ensolarado e agradável.
Expressivas são enunciações que expressam o estado psicológico dos falantes, ou seja, seus sentimentos. Podem ser ilustradas através de afirmações de prazer, dor, satisfação, insatisfação, desculpas, etc. Como ilustrado em (32), elas podem ser causadas por alguma coisa que o falante ou ouvinte façam, mas são enunciados sobre a experiência do falante em relação a esses fatos: (36) a. Desculpe-me, estou realmente chateado com o que aconteceu! b. Parabéns! c. Ah! Isso está muito bom!
Diretivos são enunciações que os falantes usam para conseguir que o ouvinte faça algo. Esses enunciados expressam a vontade do falante e podem ser expressos por ordens, pedidos, sugestões, perguntas e, como ilustrado abaixo, podem ser positivos ou negativos: (37) a. Arrume o quarto, imediatamente! b. Você poderia me emprestar seu lápis, por favor? c. Não mexa nisso!
Comissivas são enunciações que o falante produz se comprometendo com uma ação futura. Esses enunciados expressam a intenção do falante e podem ser expressos através de promessas, recusas, ameaças, oferecimentos. Esses enunciados podem ser executados por um falante sozinho ou por um falante como um membro de um determinado grupo: (38) a. Eu estarei de volta logo. b. Eu farei isso de forma correta, na próxima vez. c, Nós não faremos isso. Ilustremos essas cinco funções gerais dos atos de fala, com seus traços chaves, segundo a tabela proposta por Searle (1979):
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Tipos de atos de fala Declarações Representivas Expressivas Diretivas Comissivas
F= falante e X= situação F causa X F acredita em X F sente X F quer X F tem a intenção de fazer X
Exercícios 1. Diga que tipo de função geral do ato de fala está sendo executado nas seguintes sentenças: 1. Eu te agradeço muito. 2. Eu te batizo, em nome do pai, do filho e do espírito santo. 3. Você é um desmiolado! 4. Você sabe onde fica a Pampulha? 5. Parece que a experiência deu certo. 6. A FALE é realmente uma boa faculdade. 7. Infelizmente, não consegui atender ao seu pedido. 8. Você está admitido aqui na firma, a partir de amanhã! 9. Eu te peço que não demore. 10. Esse pão de queijo está bom demais!
7. Atos de fala diretos e indiretos Existe, ainda, uma maneira mais geral, baseada na estrutura das sentenças, que pode ser utilizada para distinguir tipos de atos de fala. Uma simples divisão estrutural, baseada em três tipos básicos de sentenças, pode ser apontada para várias línguas, entre elas o português. Como mostrado em (39), existe uma relação facilmente reconhecível entre as formas estruturais declarativas, interrogativas e imperativas e as três funções comunicativas mais gerais como afirmações, interrogações e ordens/pedidos: (39) a. Você está usando o cinto de segurança. (declarativa) b. Você está usando o cinto de segurança? (interrogação) c. Use o cinto de segurança! (imperativo) Todas as vezes que temos uma relação direta entre a estrutura e a função, temos aí um ato de fala direto. Quando temos uma relação indireta entre a estrutura e a função, temos um 14
ato de fala indireto. Portanto, um uso declarativo para fazer uma afirmação é um ato de fala direto, mas um uso declarativo para fazer um pedido, é um ato de fala indireto. A sentença em (40a) é declarativa. Quando usada para fazer uma constatação, como em (40b), funciona como um ato de fala direto. Quando usada para fazer um pedido, como em (40c), funciona como um ato de fala indireto: (40) a. Está frio lá fora. b. Eu (com estas palavras) falo com você sobre o tempo. c. Eu (com estas palavras) peço a você para fechar a porta. Também, diferentes estruturas podem ser usadas para executar a mesma função básica, como em (41): (41) a. Saia da frente da TV! b. Você tem que ficar bem em frente da TV? c. Você está bem em frente da TV. A função básica de todas as três sentenças acima é a de um pedido/ordem, mas somente (41a) representa um ato de fala direto. A sentença interrogativa em (41b) não está sendo usada como uma pergunta, sendo, portanto, um ato de fala indireto. E a estrutura declarativa em (41c) também é um ato de pedido indireto. Um dos mais comuns tipos de ato de fala indireto, em muitas línguas, incluindo o português, tem a forma interrogativa, mas não é usado tipicamente para fazer uma pergunta; não se espera uma resposta, mas se espera uma ação. Os exemplos abaixo são normalmente entendidos como pedidos: (42) a. Você poderia me passar o sal? b. Você saberia me dizer as horas? c. Você teria um tempinho para mim? Concluindo, podemos perceber que atos de fala indiretos estão geralmente mais associados à polidez de tratamento do que os atos de fala direto. Para entendermos o motivo dessa associação, temos de olhar para um contexto maior do que uma simples enunciação executada por um simples ato de fala.
Exercícios 1. Dê um exemplo de enunciado em que ocorram as três formas estruturais e as três formas de funções comunicativas mais gerais. 2. Dê um exemplo de ato de fala direto e de ato de fala indireto. 15
3. Dê um exemplo em que se tem uma forma estrutural, em que podem ser envolvidas as três funções comunicativas. Indique os atos de fala direto e indireto. 4. Dê um exemplo em que se têm as três formas estruturais exercendo a mesma função básica. Indique o ato de fala direto e o indireto.
8. Atos de eventos Podemos tratar um pedido indireto, como os mostrados em (42), como sendo uma questão de perguntar se as condições necessárias para um pedido estão adequadas. Por exemplo, uma condição preparatória para esses enunciados é que o falante assuma que o ouvinte é capaz, ou pode, executar tal ação. Uma condição de conteúdo concerne ao fato de ação ser futura, ou seja, que o ouvinte vá executar a ação. Essa estrutura pode ser ilustrada como abaixo: (43) Pedidos indiretos a. Condição de conteúdo
futura ação do ouvinte
b. Condições preparatórias o ouvinte é capaz de executar a ação
Você FARÀ X?
Você é CAPAZ de fazer X?
c. Fazer uma pergunta a um ouvinte, baseado nas condições acima, resulta em um pedido indireto. Existe uma diferença bem definida entre pedir a alguém para fazer X e perguntar para alguém se as pré-condições para fazer X estão adequadas. Perguntar sobre pré-condições não vale, tecnicamente, como um pedido, mas permite que o ouvinte reaja como se um pedido houvesse sido feito. Como um pedido é uma imposição do falante ao ouvinte, é melhor, na maioria das circunstâncias sociais, que o falante evite a imposição direta através de pedidos diretos. Quando o falante pergunta sobre as pré-condições, nenhum pedido direto está sendo feito. A discussão feita até aqui é essencialmente sobre uma pessoa tentando que outra pessoa faça alguma coisa, sem correr o risco de uma recusa ou de causar uma ofensa. Entretanto, esse tipo de situação não consiste em uma simples enunciação. É uma situação social que envolve participantes, que têm um tipo específico de relação social, e, que, em ocasiões particulares, têm objetivos particulares. Podemos olhar a esse grupo de enunciados produzidos nessas circunstâncias específicas como sendo eventos de fala. 16
Um evento de fala é uma atividade na qual participantes interagem através da linguagem, de uma forma convencional, para atingir determinado fim. Pode incluir um ato de fala central, óbvio, como eu realmente não gosto disso, em um evento de reclamação. Mas também incluirá outros enunciados, anteriores e posteriores, como uma reação a essa ação central. Na maioria dos casos, um pedido não é feito através de um simples ato de fala, subitamente proferido. Pedidos são tipicamente um evento de fala, como ilustrado abaixo: (44) A: Oh, Maria, estou satisfeito que esteja aqui. B: O que aconteceu? A: Eu não consigo ligar meu computador. B: Ele está estragado? A: Não me parece. B: O que está acontecendo, então? A: Eu não sei. Eu sou um fracasso em matéria de computadores. B: Que tipo de computador é? A: É um Mac. Você conhece esse tipo? B: Sim, conheço. A: Você tem um minuto? B: Claro. A: Ah! Que bom! A extensa interação acima pode ser chamada como um evento de pedido, sem o ato de fala central de pedido. Repare que não existe realmente um pedido de A para B para fazer qualquer coisa. Podemos caracterizar a pergunta Você tem um minuto? como sendo um pré-pedido, permitindo a B falar que está ocupada ou que tem algo a fazer no momento. Nesse contexto específico, a resposta claro é tomada não somente como uma resposta relativa à disponibilidade de tempo de B, mas também como uma confirmação que ela pode executar a ação que não foi claramente solicitada. A análise de eventos de fala é claramente uma outra maneira de se estudar como podemos comunicar muito mais do que realmente está sendo dito.
Exercícios 1. Dê um exemplo de um evento de fala.
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