Regras para a orientação do espírito
Nas Regras Para a Direção do Espírito René Descartes nos dá um método para a busca da verdade. Através das regras temos um caminho seguro e ordenado para o conhecimento. A verdade está profundamente ligada ao método e se não seguirmos o método e não obedecermos a sua ordem, facilmente nos desviaremos da verdadeira ciência e trilharemos por caminhos que nos levarão a ter coisas falsas como sendo verdadeiras, e nas meditações Descartes mostra como é difícil arrancar de nossa mente as crenças duvidosas que lá foram colocadas desde o início pela falta de método. A primeira regra define a finalidade do estudo, ela nos ensina que todas as ciências devem ser tratadas como sendo a sabedoria humana que é única; o que muda são os objetos que são estudados pela ciência. Se dividirmos as ciências estaremos impondo limites ao espírito. Assim como a luz do sol que ilumina com a mesma intensidade os diferentes tipos de objetos, a sabedoria humana deve cuidar de todas as ciências sem distinção, sem que seja imposto limite algum ao espírito. Descartes diz que esta separação das ciências vem das artes, onde vemos que as pessoas que se dedicam a várias delas poderiam se tornar melhores artistas se se dedicassem a somente uma. Mas nas ciências isto não pode ser aplicado, pois o conhecimento de uma verdade facilita a descoberta de outra. As ciências estão unidas, uma depende da outra, e se estudarmos todas, além do maior progresso, aumentaremos a luz natural da razão de modo a podermos julgar tudo o que se depara ao espírito, pois na vida nos deparamos com todos os tipos de problemas e a todos temos que resolver. A segunda regra nos ensina a lidar somente com o que é certo e indubitável. À primeira vista ela limita a capacidade do nosso conhecimento, pois são poucas as coisas indubitáveis, mas como toda ciência é um conhecimento certo e evidente é esta regra que nos levará à verdade. Descartes diz que é melhor não estudar do que ocupar-se de coisas complexas complexas e difíceis que possam nos levar a confundir o falso com o verdadeiro e ter o duvidoso como certo. Isto é o que ele ensina nas meditações: tomar tudo o que é duvidoso como falso. O mesmo é ensinado no discurso do método, na segunda parte, que diz para jamais tomar algo como verdadeiro sem que se conheça a evidência desta verdade, e que esta evidência seja tão clara que não possa existir nem uma dúvida no espírito sobre ela. Aplicando esta regra teremos apenas a matemática e a geometria para 1
estudar, pois em todas as outras ciências não existe um acordo mesmo entre os homens mais sábios, e se dois discordam é certeza que pelo menos um está enganado, ou mesmo os dois, pois aquele que estivesse com a verdade teria razões certas e evidentes, e as exporia e convenceria o outro. Descartes mostra que há dois meios de aprender: a experiência e a dedução, mas a experiência muitas vezes nos engana. Isto é mostrado na primeira meditação quando ele diz: “ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos
eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar em quem já nos enganou uma vez.” Resta a dedução, pois a dedução pode ser omitida em caso de dúvida, mas o entendimento nunca pode deduzir algo de forma errada. Os erros sempre surgem em razão de experiências mal compreendidas, ou de juízos temerários e infundados, nunca de uma dedução errada. Por isso que a matemática e a geometria são mais certas e evidentes que outras ciências, pois lidam com objetos simples que não dependem da experiência e que são dedutíveis pelo intelecto. São as mais claras e simples, mas não significa que devemos nos ocupar unicamente delas. Significa que devemos nos ocupar na busca da verdade de objetos que nos deem certeza igual às demonstrações da matemática e da geometria. A terceira regra ensina que devemos procurar os objetos nos quais podemos ter uma intuição clara e evidente ou que podemos deduzir com certeza, desprezando opiniões e suspeitas. É o único modo para adquirir ciência. Aqui somos alertados sobre o estudo através da leitura, pois através dos livros podemos conhecer o que já foi descoberto e saber o que ainda falta descobrir, porém, Descartes diz que os escritores quando tratam de coisas controversas costumam usar de subterfúgios e argumentos sutis para nos convencer, e quando encontram algo claro e evidente não expõe com clareza, usam de rodeios, temendo que a simplicidade tire o mérito de sua descoberta. Mesmo que todos os autores expusessem tudo de maneira simples, sempre haverá um afirmando coisas contrárias ao que outro diz, e por causa disso nunca sabemos em quem acreditar. E não adiantará acreditar no que a maioria diz, pois em matérias difíceis é mais acreditável que menos pessoas tenham chegado à verdade. De nada adianta decorar as as deduções sobre a matemática se não conseguirmos resolver estes problemas através do nosso próprio entendimento. Do mesmo modo, de nada adianta ler os raciocínios dos filósofos se não tivermos a capacidade de emitir juízos sólidos e verdadeiros sobre tudo o que se nos apresenta, pois esta é a finalidade do estudo, mostrado na primeira regra.
2
Se não tivermos este objetivo para o nosso estudo não estaremos fazendo ciência e sim história. Ao emitir um juízo sobre uma verdade não devemos misturar a este juízo qualquer conjectura, pois como foi dito na regra II, devemos nos ocupar apenas dos objetos para cujo conhecimento certo e indubitável o nosso espírito parece ser suficiente. Se não observarmos isso faremos como alguns estudiosos, que não se contentam com as coisas claras e certas e se ocupam do complexo passando a defender coisas obscuras e desconhecidas a partir de conjecturas prováveis, e pouco a pouco acabam acreditando nelas e confundindo o duvidoso com o verdadeiro. Para não cairmos neste erro devemos revisar todos os atos do entendimento que nos levam ao conhecimento. E os atos que nos levam ao conhecimento são apenas dois: a intuição e a dedução. A intuição é o “conceito da mente pura e atenta tão fácil e distinto que nenhuma dúvida nos fica acerca do que compreendemos .” É aquilo que nasce da razão e não é possível nenhuma dúvida, é o que traz a evidência, e é mais claro que a dedução, embora a dedução seja impossível de ser feita de forma errada, ela sempre é feita a partir de verdades intuídas. É pela intuição intelectual que sabemos que existimos, que pensamos (penso, logo existo, segunda meditação), que o triângulo tem três lados, e tantas outras coisas que a maioria não vê, simplesmente porque acha que dedicar a mente a coisas tão fáceis não é digno dos sábios. Descartes alerta para o fato de usar a palavra intuição não no sentido vulgar e sim no sentido original do latim, para poder transferir à mente o verdadeiro significado. A evidência e a certeza devem ser evidentes em todos os raciocínios. É a partir da intuição que podemos conhecer pela dedução. Como a maioria das coisas não são evidentes em si, portanto não podem ser intuídas, é pela dedução que temos certeza de sua verdade. O raciocínio deve funcionar como uma corrente, que a partir de uma coisa intuída passa a concluir a próxima e assim sucessivamente. Por isso que a dedução deve vir obrigatoriamente depois da intuição, pois em uma cadeia de raciocínios basta olhar para o último e saberemos que ele está ligado ao primeiro como uma corrente, pois cada um deles foi deduzido a partir do anterior. A dedução certa é como se fosse um movimento ou sucessão onde um está ligado ao outro sempre na sequência, não necessitando de uma evidência atual como na intuição, pois é nesse movimento sequencial que a razão busca a certeza. Portanto conhecemos as coisas, ou pela intuição ou pela dedução, sendo os primeiros princípios conhecidos só pela intuição e as conclusões mais distantes só podem ser conhecidos 3
pela dedução. Descartes diz que este é o caminho mais seguros para a ciência, sendo que todos os outros devem ser rejeitados conforme ele ensina nas meditações, pois são suspeitos e passíveis de erro. A quarta regra diz: “o método é necessário para a procura da verdade ”. As pessoas movidas pela curiosidade muitas vezes trilham caminhos desconhecidos de uma forma desorganizada como quem procura um tesouro e fica andando por todos os lugares contando apenas com a sorte de encontrar um que alguém tenha perdido. Assim, esses curiosos não usam a ciência como base. Um ou outro pode até ter muita sorte e encontrar alguma verdade, mas não por competência. A busca da verdade de forma desordenada costuma cegar os espíritos e obscurecer a razão. Os que nunca estudaram costumam fazer julgamentos mais sólidos e claros do que os que, pensando estudar, obscureceram sua mente com estudos desordenados. Método são regras claras e fáceis que fazem que jamais se tome por verdadeiro algo que é falso. Observando o método não se desperdiça esforço e se aumenta gradualmente o saber. Assim como no discurso do método e nas meditações, Descartes insiste que não devemos tomar absolutamente nada de falso como verdadeiro, sendo isto fundamental para adquirir o conhecimento e diz que devemos chegar ao conhecimento de tudo, isto é a unicidade das ciências, mostrada na primeira regra. Para Descartes a mente humana tem algo de divino, sementes plantadas por Deus, que dão frutos espontâneos como o caso das verdades matemáticas. São as verdades eternas que foram impressas por Deus em nossa alma. Se cultivarmos essas verdades usando método e ordem, elas nos darão cada vez mais frutos, levando-nos cada vez a um grau maior de conhecimento para que possamos emitir juízos sólidos sobre qualquer assunto, pois este deve ser o objetivo de nosso estudo, como foi visto na primeira regra. Estas sementes da verdade, apesar de abafadas diariamente por um ensino que não leva em conta a clareza, nunca morrem. O motivo deste método é cultivar estas sementes e a partir delas chegar ao máximo do conhecimento. A regra V mostra como é o método a ser usado para o estudo: colocar em ordem e disposição os objetos do estudo, reduzir as proposições complicadas em simples, e só a partir das proposições simples, galgar os degraus de todas as outras. Descartes diz que para buscar o conhecimento, esta regra é como o fio de Teseu que permite entrar no labirinto sem se perder, e quem não seguí-la fatalmente se perderá, pois examinar questões difíceis de forma desordenada é querer chegar ao topo de um edifício de um só 4
salto deixando de lado as escadas construídas para isso. Portanto, o conhecimento deve ser buscado degrau a degrau, a partir do mais baixo e sempre seguindo a ordem. Nesta regra vemos a aplicação das anteriores: lidar só com o simples, que é certo e indubitável e foi encontrado pela intuição, e a partir da intuição usar a dedução e assim ir unindo os elos da corrente de forma que saibamos que cada elo está ligado ao anterior pela dedução. Descartes diz que as pessoas que não seguem esta regra perdem os conheci mentos acumulados e “julgam que a verdade nascerá de seu cérebro, como Minerva nasceu de Júpiter.”
A regra VI parece não ensinar nada de novo, mas é o principal segredo do estudo. O pensamento conhece as coisas de forma natural a partir das mais simples, logo, é esta a ordem que devemos seguir, pois como vimos nas regras anteriores devemos iniciar a investigação a partir das mais simples que são claras e evidentes. Se ordenadas a partir da ordem do conhecimento estaremos ordenando pela ordem de simplicidade. Quando comparamos as coisas entre si para conhecer umas a partir das outras elas são absolutas ou relativas. As absolutas são as de natureza pura e simples, tudo o que é universal, uno, semelhante, em relação ao problema analisado. São as que estão mais próximas do que estamos analisando. As relativas são as que participam da natureza da questão, mas não estão diretamente ligadas a ela, estão mais afastadas. Esta regra diz que devemos atentar para a conexão das coisas que estão mais afastadas para que a partir da mais relativa possamos chegar a mais absoluta, passando por todas as outras. Embora as coisas puras e simples sejam poucas na natureza é a partir delas que todas as outras são deduzidas, e devemos observar nestas outras coisas o grau de afastamento em relação à coisa simples. Nunca devemos começar o estudo pelas coisas difíceis. Primeiro devemos ver as verdades que se apresentam espontaneamente, ver se a partir delas podemos deduzir outras verdades, e assim sucessivamente, analisando com cuidado as verdades encontradas, ver porque umas foram mais fáceis de encontrar que outras, se são úteis ao problema em questão e se é necessário outras investigações. Observando isto com diligência encontraremos o caminho mais fácil para o conhecimento, sem desperdiçar esforços, pois as coisas podem ser buscadas por caminhos diferentes, sendo uns mais árduos que outros. 5
Bibliografia: DESCARTES, René. Regras para a orientaçao do espirito . São Paulo: Martins Fontes, 1999. xiii, 151p. DESCARTES, René. Meditações; Discurso do método; objeções e respostas; As Paixões da Alma; Cartas. São Paulo: Abril S.A, 1973. 336 p.(Os pensadores vol. XV).
6