«FILOSOFIA IL RELIGIÃO». R i U o t'c. t'c.
for L E O N A R D O COIM BRA
RÉGIS JOLI JOLI V E T DI’.tANO . tANO DA FAC. DE FILO SOF IA DA UN IV. CATÓLICA DE LIÃO
As A smwmm mwmms s
MISTMMLISmS Prefácio de DELFIM SANTOS
A S O R / G E N S DO E X I S T E N C I A L I S M O I. SÕRE SÕ REN N KIERKEGAA KIER KEGAARD RD 11. 11. FREDERIC FRED ERICO O NIETZSCHE NIET ZSCHE
A S D O U T R I N A S E X I S T E N C I A L I S T A S I. I I. III. III. IV.
MARTINI MARTINI 10 HEIDEGGER J0 Â 0-P A U L 0 SART SARTRE RE CARLOS CARLOS JASPERS JAS PERS GABRIEL MARCEL
«FILOSOFIA E RELIGIÃO» Biblioteca fundada jior L E O N A R D O C O IM B R A
"V ^
T O M A M A Z D E A Q U I N O » — I n i c i a ç ã o a o E ê t u d o d a S u a F i g u r a e d a S u a O b r a — por João A meal, meal, da Academia Portu
1 -4 «S/ÍO «S/ÍO
guesa da História, 3.“ edição ......................... ..................................... .............. ................... . . .
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«o « o M U N D O I N V I S Í V E L » — A E s p ir ir it it is is m o
Teologia Católica Perante o
C o n t e m p o r â n e o — pelo
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Cardeal Alexis Lépicier, *
o. s. m., traduzido do inglês pelo professor Eduardo Pinheiro. 3." edição, br....................................................................., ................................ 3—
« P A R A A L Ê M D A C I Ê N C I A . . . » , por Louls de Broglie (Prémio * crt i lange lang es, O . P ., membros do Instituto de França, * Nobel), A . D . S crti e Daniel-Rops, Raymond Chãrmet, Pierre Dsvaux, André Thérive, - # traduz traduzid idoo do francês pelo pelo profassor Eduardo Edu ardo Pinheiro, 2 .“ edição, br.
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, 30,
« O R T O D O X I A » , por Gilbert Keith Chesterton, traduzido
do inglês J o ã o A m ea l, pelo professor Eduardo Pinheiro e prefaciado por Jo
2.* edição, br............................. br........................................ ....................... ....................... ....................... ....................... ....................... ................... .......
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5 — « F R E U D » — E s t u d o C r í ti t i c o d a P s i c a n á l i s e — por Rudolph A V er s, professor de Psicologia na Universidade Cató
2 .a edição, br............................. br........................................ ....................... ....................... ....................... ....................... ....................... ................... ....... 6 — « B E R G S O N » — A I n t u i ç ã o C om om o M é t o d o n,a M e t a f ís í s i c a — por Diamantino Martins, S. da F ac ul da de de Fi lo so fia , b r..... r...............................
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S óreen K i er k eg aard, aar d, traduzido por Sór por Adolfo Casais Monteiro, 3.“ edição, br ................................................
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8 — « À S D O U T R I N A S E X I S T E N C I A L I S T A S » — D e K i e r k eg eg a a r d a S a r t r e - p o r Régis )olivet, da Universidade Cató'ica de Lião, traduzido por Antóáio Vasconcelos e Lencastre. Prefácio,do Prof. D r. De lfim S a n t o s ....... ........... ........ ....... ....... ....... ...... ...... ...... ...... ...... ....... ....... ...... ...... ...... ...... ....... ........ ....... ....... ....... ...... ...... ...... ...... ....... .... . .
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7 — «O
DESESPERO HUMANO»,
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9 — « N 1 E T S C H E , F I L Ó S O F O D A C U L T U R A » , por David Copples -
ton, S. J„ traduzido pelo professor Eduardo Pinheiro .....................
E m prepar preparaç ação ão • ' ' « D E U S . O H O M E M , O U N I V E R S O » , sob a direcção de Jacque Jacquess Bivort de la Saudée, com a colaboração de /. Huby, H. de Lübac, Jacque Jacquess L eclerc, A . A mou, mou , G . V andebr andebroe oekk , etc.
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«FILOSOFIA E RELIGIÃO» Biblioteca fundada jior L E O N A R D O C O IM B R A
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Teologia Católica Perante o
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Cardeal Alexis Lépicier, *
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« O R T O D O X I A » , por Gilbert Keith Chesterton, traduzido
do inglês J o ã o A m ea l, pelo professor Eduardo Pinheiro e prefaciado por Jo
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5 — « F R E U D » — E s t u d o C r í ti t i c o d a P s i c a n á l i s e — por Rudolph A V er s, professor de Psicologia na Universidade Cató
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S óreen K i er k eg aard, aar d, traduzido por Sór por Adolfo Casais Monteiro, 3.“ edição, br ................................................
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DESESPERO HUMANO»,
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9 — « N 1 E T S C H E , F I L Ó S O F O D A C U L T U R A » , por David Copples -
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E m prepar preparaç ação ão • ' ' « D E U S . O H O M E M , O U N I V E R S O » , sob a direcção de Jacque Jacquess Bivort de la Saudée, com a colaboração de /. Huby, H. de Lübac, Jacque Jacquess L eclerc, A . A mou, mou , G . V andebr andebroe oekk , etc.
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«FILOSOFIA E RELIGIÃO» NOVA SÉR IE
8.° VOL.
AS A S DOUTRINAS
EXISTENCIALISTAS DE KIERKEGAARD A SARTRE
DO MESMO AUTOR LIVRARIA EMMANUEL VITTE
Essai sur le Bergsonisme, 1931. Études sur le Problème de Dieu dans la Philosophie contemporaine, 1932. LÉglise du Christ, par J. Lippert (tradução), 1933. Cours de Philosophie, 4.* edição, 1947. Traité de Philosophie Tomos Tom os I — Logique et Cosmologie. II — Psychologie. taphys i que que. III — M étaphysi or ale.. IV — M orale Vocabulaire de la Philosophie. 1946. UVRARIA DESCLÉE DE BROUWER:
Le Thomisme et la Critique de la Connaissance, 1933. D i eu, solei solei l des des espri spri ts, 1934. Les Sources de l'idéalisme, 1936. Saint Sai nt A ugusti n. C ontra A cadê cadêmicos. mi cos. D e beata beata vita. vi ta. D e O r dine. di ne. Texto, tradução, introdução e notas, 1939. LIVRARIA GABRIEL BEAUCHESNE :
La notion de Substance. Essai
historique et critique sur développement des doctri doctrine nes, s, d’Aristote à nos jours, 1929. (Premiado (Prem iado pela pela Académie des des Sciences morales et politiques). A la r echer cher che de Di D i eu, 1930. L’Intuition intellectuelle et le problème de la Métaphysique, 1935. Le problème du mal d’après Saint Augustin, 1936. LIVRARIA J. VRIN:
Essais sur les rapports entre la pensée grecque et la pensée chrétienne, 1931. UVRARIA DENOËL :
Saint Sai nt A ugusti ugust i n et le N éo-platonisme o-platoni sme chré chr éti en, 1932. démie Française). EDIÇÕES DE FONTENNE FONTENNELLE LLE :
Introduction à Kierkegaard, 1946.
(Premiado pela Aca
RÉGIS JOLIVET Decano da Fac. de Filosofia da Unio. Católica de Li&o
ÄS Ä S BOUTRINAS
MS MSTMCIALI ALISTAS DE
KIER KEGAARD
A SARTRE
Prefácio de P r o f . D r . D e l f i m S a n t o s
1 95 3 LIVRARIA TAVARES TAVARE S M ARTINS— PORT PO RTO O
O original
desta
obra
Intitula-se
LES DOCTRINES EXISTENTIALISTES T r a d u ç ã o p o r t u g u t s a de
ANT ANTÓN ÓNIO IO DE QUEIR QUEIRÓS ÓS VASC VASCON ONCE CELO LOSS li LENCASTRE
Direitos exclusivos da
LI V R A R I A T A V A R E S M A R T I N S para Portugal e Brasil
PREFACIO
po p o s içã iç ã o exist ex isten enci cial al na filo fi loss o fia fi a con co n tem te m porâ po rânn ea é con co n sese quência das situações limites do idealismo e do realismo, demarcantes, durante séculos, do pensamento filosófico oci dental. Tanto uma como outra destas tendências extremas, e suas posições intermédias, formularam metodologicamente esquemas de abstracção e de generalização que deixavam o mistério da existência humana «entre parênteses», isto é, como algo que deveria ser tratado posteriormente em função dos resultados gerais das concepções idealistas ou realistas acerca do mundo e das coisas. O primado da objectividade c a pas sagem por subrepção do metodológico a ontológico, com a desvalorização do « real» no idealismo e a desvalorização do «ideal» no realismo, levaram inevitàvelmente a «existência» a ser considerada atributo entre atributos, e o homem, demitido da sua unicidade, a identificar-se como coisa entre coisas e a aplicar a si um método de conhecimento que só às coisas dizia respeito. Já J á K a n t m ostr os trar araa q u e a exis ex istê tênn cia ci a n ã o é p r edic ed icaa d o . ou determinação de qualquer coisa , e que as relações de todos A
VIII
PREFÁCIO
05 predicados ao sujeito não designam por si algo existente, porque o sujeito deve, como existente, ser previamente admi tido, embora insusceptível de demonstração, dada a incomensurabilidade entre a razão, que é função neutralizadora da existência e redutora desta à essência, e a existência, que é acto absoluto e irredutível a qualquer conceptualização ou artifício racional. Nunca os predicados por si determinam se pertencem a um sujeito existente ou simplesm ente possível. Nesta indeterminação radica a impossibilidade de a existên cia ser considerada predicado ou atributa, ou equiparada nocionalmente à essência, problema que surge actualmente na questão da precedência da existência relativamente à essência, especialmente tratado no capítulo referente a Sartre. De facto, a essência não garante a existência, nem a existência garante a essência, como ocorre na dialéctica nocional da escolástica. Tema problematizado em novos termos na filosofia actual, embora os novos termos recordem certas posições na história da filosofia, e mormente da filosofia de S. Tomás, que, relativamente a este problema, tem posição original e distinta. A existência não é acidente a atribuir à essência, mas a essência acidente a atribuir ao existente. As noções de existência e de essência, e a consequente neutra lização da existência pela essência, pendor irresistível do pensamento filosófico da idade moderna , pressupõem o mesmo níoel a duas noções originàriamente diferenciadas e cuja ordenação é oposta à tradicionalmente admitida. O verbo latino «esse» tem nisso grave responsabilidade. «Esse», que significa existir, segundo Gilson, não provém de ressentia», mas é «essentia» que provém ou deriva de «esse». O mesmo
PREFÁCIO
IX
é dizer que a possibilidade não é anterior ao existente , pois possibilidade pressupõe o existente e tem no existente a sua origem. Os esquemas gerais estruturados em íntima coerência pela filosofia não serviam a hermenêutica do existente , isto è, a interpretação do homem na sua situação concreta do «estar-no-mundo», situação que, por incómoda, era também deixada «entre parênteses» nos grandes sistemas. Esta situação con creta, inapreensível pelos ramos divergentes da dicotomia abstractiva, e irredutível ao plano nacional em que radica a dicotomia classificatória, era inevitavelmente subsumida e con siderada como «contingência», sempre de menos valor, por tanto, em relação às verdades necessárias pela abstracção fàcilm ente fornecidas. A correcção desta pretensa anomalia conseguia-se, pior ou melhor, com a análise progressiva do complexo humano, análise que permitia úteis e convenientes dissociações, que pretensamente garantiam o valor supremo da necessidade lógica. A lógica, porém, é apenas jogo nocional, e tanto mais significativo quanto mais abstracta . A exis tência humana é tanto mais significativa quanto mais concreta e irredutível a identificações. Sartre afirma: «nenhum ser necessário pode explicar a existência; a contingência não é aparência enganadora que se possa dissipar: é o absoluto e, por consequência, a gratuidade perfeita». Ante o perigo de subordinação do objectivo ao subjectivo e o perigo de subordinação do subjectivo ao objectivo, a filo sofia preferiu, a partir do século passado, a aventura do segundo, — porqu e não lhe parecia aventura, — apostando na. segurança e na comodidade aparente da positiva objectividade.
PREFÁCIO
M as fá cil ê notar que o primado do objectivo, como exigência do senso comum laivado de ciência e garantido demonstrativamente pela lógica, é expediente alienante e deturpante do próprio subjectivo, sempre sujeito da opção, e, como sujeito livre, sem medida comum com o universo construído pela conceptualização apropriada ao sólido e maciço. É simples mente um produto de «má-fé», de duplicidade «nojenta» que tittbordina, na terminologia de Sartre, o «por-sh ao «em-si», a liberdade à necessidade apodítica, sua construção. O mate rialismo, uma das consequências, é dedução inevitável quando o ponto de partida é a objectividade, e esta se empresta ao que é apenas ideia, e mesmo ideia geral abstracta, como1é o caso da noção de matéria, noção arbitrária, sem conteúdo nem possibilidade de apreensão ou sensível verificação, embora tenha servido para estruturar ideologicamente uma pseudo objectividade aparentemente anti-idealista mas falsamente realista. A recusa à redução do homem ao plano conceptual das coisas e à subsumpção idealista ou realista, que, neste caso, se equivalem como agentes de deturpação da existência humana, é característica da filosofia existencial desde Kierkegaard e das perspectivas diversas que, a partir do pensador dina marquês, se estruturam em Heidegger e Sartre, Jaspers e Mareei, enquanto reivindicação dos direitos d a subjectivid ade, sempre ponto de partida absoluto do existente em sua radical temporalidade, quer esta existência seja ou não admitida como participação divina. E mesmo quando esta particip ação divina é negada, como explicitamente em Sartre, isso acontece por exigência de coerência interna do ponto d e partida
PREFÁCIO
XI
existencial impeditivo de qualquer extrapolação fácil; a partir da existência, Sartre admite que o projecto fundamental do homem é ser Deus. E chamamos a atenção do leitor interes sado para as páginas em que se trava vivo diálogo entre o católico Jolivet e o ateu Sartre, páginas de grande interesse, pois a negatividade age logicamente sobre conceitos e não sobre a «existência», que está para além da «paixão inútih da afirmação ou negação. Aliás, afirmar é negar a negação Èo que se afirma, como negar é afirmar a afirmação do que se nega. E afirmar ou negar a «ideia» de Deus, pois afirmação e negação só às ideias se referem, tem recíproca equivalência. Deus, como existente, não pode ser subsumido pela «ideia» sempre imperfeita da sua apreensão, como a filosofia exis tencial o afirma para a existência humana. A dualização abstractiva, momento permanente em recor rência na história da filosofia, com as artificiais oposições do mundo e do homem, do corpo e da alma, da matéria e do espírito, do ideal e do real, da essência e da existência, da potência e do acto, etc., e a neutralização inevitável do segundo pelo primeiro termo destas oposições, isto é, pela valorização do que é susceptível de ser tratado por métodos de planificação lógica, por métodos laboratoriais em exer cício de dessorado experimentalismo, ou reduzido a quanti ficação estatística enganosa e falsificante, teve as consequên cias que, neste momento, não é preciso inventariar, mas que o leitor descobrirá. Contrariando-as surgiu a filosofia exis tencial que, no insuspeito testemunho do autor deste livro, podemos considerar como «dialéctica da existência que obsti nadamente concentrada sobre o mais concreto existir procura
PREFÁCIO
desvendar, neste próprio existir, o sentido mais profundo da vida humana », e que, para isso, deslocando os eixos de refe rência tradicionais do idealismo
PREFÁCIO
XIII
pensamento filosófico já estruturado em sistema final e refutado ou sem qualquer valor especulativo. A designação preferível seria «filosofia existencial» com determinativos especificantes do ponto de partida que dá sen tido à análise ou hermenêutica da existência humana, do mistério do existir, diferente do acto de viver, e com referên cia ao nível ontológico, ou à destruição da ontologia, ou à admissão de uma ontologia fenomenológica, considerada esta possível. O que perturba os mantenedores da tradição filosó fica sob a form a d e professores, não professos em autentici dade, é a necessidade urgente e a cómoda conveniência, não admissível, de reduzir o novo a esquema já elaborado e, deste modo, com mal contido ressentimento e agressiva calúnia, substituir ao ponto de partida de aprofundamento do ainda não compendiado certo número de considerações em forma de con clusão ou resultado, que nem são uma\ nem outra coisa, para evitar o trabalho, não fácil, de compreender o que representa, na filosofia contemporânea, o esforço mais vigoroso e pro fu ndo de investigação invalidante do muito que as histórias da filosofia facilmente fornecem. Muitas vezes, o mesmo se tem verificado a propósito do que, alterante do estabelecido, se classifica de «moda». Mas esta atribuição e recusa chama-se em psicanálise existencial «má-fé» e processo «nojento» de se atacar o que se chama moda com a moda de outro tempo que se tornou comum e vulgar... De qualquer forma, e como pre ventivo contra fácil diatribe, o livro agora em tradução ofe recido ao leitor facilita a tomada de contacto com o que inautentícamente se tem tornado tema de discussão, embora nem sempre alicerçada na compreensão da transcendência do
xrv
PREFÁCIO
acto de «existir» e suas implicações de ordem metafísica. E se há divino no mundo, afirma Gilson, é no acto de existir, e não na actualização do pensamento conceptual, que ele misteriosa mente se encontra. * *
*
A tradução de uma obra expositiva das quatro mais rele vantes- tendências da filosofia existencial pode ter para a nossa cultura consequências de grande importância. A primeira delas consiste em mostrar que o chamado existencialismo merece o respeito e o estudo cuidadoso de personalidades categori zadas como o ilustre Decano da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Lião. A segunda, que muito nos agrada acentuar, consiste na lição de imparcialidade e valori zação de atitudes filosóficas que não podem ter a adesão do autor, tomista e dos mais ilustres da hora presente. Razão suficiente para colhermos, para além do que o livro ensina aos seus leitores, o proveito de uma lição valiosa e rara entre nós, entre nós que até nos chamados meios cultos — «meios» em sentido ambbencial e não quantitativo apenas se pretende compreender o que partidàriamente se admite, e, de tudo o mais, para poupar o esforço de compreensão, se trata depre ciativa e polèmicamente, quando não insultuosamente. O Rev. Régis Jotívet, ante as diferentes tendências do que chamou doutrinas existencialistas, em atitude quanto possível imparcial, sem attaque nem apologia, pretendeu a avaliação da estrutura intrínseca das doutrinas expostas e a verificação da sua coe?
'
XV
PREFÁCIO
rência interna. Ainda quando se tenha de reconhecer que em certos momentos expositivos tal critério pode parecer insu ficiente, o certo é que o autor apresenta copiosamente o pen samento do filósofo estudado, com lealdade e sempre aberto h interpretação crítica do leitor. Decerto que não abdicou da sua própria posição, nem isso é nunca possível; mas, quando toma atitude crítica ante o contraditório com as suas próprias convicções , fá-lo com elegância, sem intolerância dogmática e respeitoso das concepções que não pode admitir. Como bom discípulo de S. Tomás, o Rev. Jolivet é filósofo do seu tempo, e do seu tempo pretende compreender o que outros mais facilm ente combatem e refutam sem o trabalho que as páginas deste livro suficientemente testemunham. E depois destas poucas palavras de simpatia, que resumem muitas, e são expressão de admiração pela obra em vasta bibliografia do autor deste livro, e pela sua personalidade atraente, que em inesquecível convívio conhecemos em Coimbra, durante a comemoração centenária de Francisco Suarez, apenas nos resta desejar que os temas da filosofia existencial sejam medi tados e tratados em Portugal com o interesse que lhes é devido, temas que podem contribuir fecundamente para novo surto e enriquecimento da nossa pobre, estiolada e insignificativa. cultura filosófica. D e l f im S a n t o s,
INTRODUÇÃO
O
existencialismo pode significar ou a corrente filosófica, dentro da qual múltiplas doutrinas se têm desenvol vido, ou o fenómeno sociológico, assinalado pela voga extraordinária que, nos últimos anos, alcançou a palavra «existencialismo». Duas coisas distintas, mantendo embora, entre si, numerosos pontos de contacto. Nesta obra, propomo-nos focar apenas o aspecto doutrinail do existencialismo, procurando mostrar as suas origens mais próximas e descrever as suas formas mais característi cas. O nosso objectivo é, portanto, de ordem histórica. Não poderemos, entretanto, abstrair por completo de tudo aquilo que criteriosamente se tem afirmado sobre essas doutrinas, que envolvem os mais graves problemas da filosofia e nos apresentam o homem sob uma concepção que, em muitos aspectos, se nos afigura altamente contestável. Queremos, todavia, concretizar, desde já, a forma que revestiu a nossa crítica e os limites que a demarcaram. Pode ríamos ter apresentado uma doutrina que se opusesse ás filo sofias existencialistas em estudo. Preferimos não o fazer. É certo que da própria crítica, tal como a conduzimos, será sempre possível extrair a doutrina que nela se encontra implí cita. Mas não é a partir de um tal critério, por mais justifi cado que ele se nos pudesse afigurar, que iremos discutir as
2
AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
teses essenciais de Heidegger, de Sartrc e de Jaspers. Por vezes, teremos de acusar estes autores de ignoratio elenchi (ou de laborarem em erro quanto ao sentido e alcance das questões), mas, sempre que o fizermos, será devidamente fundamentado. Não queremos que, contra nós, se possa tambénfc voltar essa mesma acusação! De uma maneira geral, a nossa preocupação foi encarar sempre essas doutrinas atra vés da sua estrutura intrínseca, apreciando-as, por um lado, em função dos princípios que invocam ou implicam e do seu grau de coerência interna e, por outro lado, em função dos argumentos que pretendem justificar esses mesmos princípios e postulados. A critica, assim concebida, não passa, portanto, de uma forma de diálogo que o autor vai mantendo consigo mesmo. Deste modo, ninguém poderá acusar o autor de fazer crítica a priori ou de estar preso a preconceitos. A opiniões de outros recorreremos, no entanto, sempre que venham a con tribuir para maior clareza da discussão. A preocupação de objectividade levou-nos a separar da exposição doutrinária os comentários críticos que nos foram ocorrendo. A exposição não deve ser interrompida com amiu dadas considerações, pois, com isso, correm perigo a sua cla reza e o raciocínio das suas deduções. Este perigo torna-se particularmente grave quando a exposição versa assuntos de especulação existencialista que, não sendo, na verdade, con fusos, se revestem, contudo, de um modo geral, de certa dificuldade, não só pela novidade do seu vocabulário mas também porque os seus temas colidem brutalmente com as formas clássicas da filosofia. Por este motivo, procurámos dar à exposição a maior objectividade possível, seguindo muito de perto as obras dos autores existencialistas e furtando-nos a interromper os seus pensamentos com as nossas próprias opiniões, que serão anotadas, à parte, nos fins de página.
INTRODUÇÃO
3
Entretanto, apresenta-se-nos, como questão prévia, defi nir o que se entende por «existencialismo». A questão não é fácil de resolver: por um lado, há várias formas de existen cialismo que, à primeira vista, parecem contradizer-se, e, por outro, a própria ideia de existencialismo reveste, por sua vez, múltiplas significações, em que o essencial e o acidental andam de tal maneira misturados que são aparentemente indiscerníveis. Procuraremos, todavia, desfazer essa confusão e descobrir o verdadeiro sentido do existencialismo e a sua expressão unitária. Para isso, o que poderá parecer mais indicado será ouvir os próprios pensadores que são tidos como «existen cialistas». Este inquérito, todavia, não tardará a trazer certa decepção. Seria, efectivamente, de supor que a ideia de uma filo sofia da existência se tivesse imposto a todos no mesmo sentido e com o mesmo valor. Aqui, todavia, começam já as divergências capitais que separam em três grupos distintos os principais existencialistas. Alguns, como jaspers, seguindo a concepção kierkegaardiana, afirmam que a noção de exis tência implica a negação da filosofia como sistema, uma vez que, para eles, a «filosofia da existência» apenas corresponde à análise da existência, no que ela tem de mais individual e mais concreto; tudo o mais, a começar pela especulação meta física, não passa de uma «cifra», cujo valor existencial não tem relação, senão simbólica ou indicativa, com o sentido objectivo que reveste. Outros, como 'Heidegger, recusam-se categoricamente a admitir que o existencialismo se deva limitar à análise exis tencial, a que Jaspers o circunscreve, e intentam constituir, a partir dessa análise, uma filosofia do Ser, ou seja, uma ontologia. Aos olhos de Jaspers e de Berdiaeff, porém, tal
4
AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
ontologia nunca poderá passar de uma filosofia sobre a exis tência, análoga a outras especulações abstractas de que a história dos sistemas nos fornece tantos exemplos 'artificiosos e vãos. Compreende-se, por isso, que Heidegger, neste sen tido. se recuse a enfileirar no número dos existencialistas. Em relação a Jaspers, devê-lo-íamos considerar antes como antiexistencialista. Sartre, por seu lado, não esconde a preo cupação de construir uma «ontologia fenomenológica», e, nisto, aproxima-se de Heidegger. Quanto a Gabriel Mareei, parece hesitar bastante entre a direcção seguida por Jaspers e o sistema de orientação preconizado por Heidegger. Esta mos convencidos de que. tendo-se limitado, de facto, até aqui, à análise existencial, Mareei admite agora a possibilidade de constituir uma filosofia concreta, que não será rigorosamente uma ontologia, mas antes uma sistematização das exigências essenciais do homem, a partir da necessidade do Absoluto, que é a sua característica mais vincada e persistente. Conviria, finalmente, estabelecer um terceiro grupo com as doutrinas daqueles pensadores que também são conside rados existencialistas, como Camus e Bataille, embora, por um lado, eles repilam energicamente essa designação e, por outro, não apresentem, de facto, nada de comum com os filó sofos precedentes excepção feita a G. Mareei ■—•a não ser a crença na absurdidade fundamental da existência e do mundo. Precisamente por se encontrar nesta afirmação do absurdo uma das características mais gerais que parece ter servido para definir o existencialismo, é que o hábito, que o público tomou de agrupar estes dois filósofos, mesmo con tra a sua vontade, entre os existencialistas, tem a sua justi ficação (*). Falta dizer que ambos rejeitam, quer a «filosofia (’) Justificação, na verdade, um tanto precária, porque, como jus tamente observa M. L. T h o o r e n s (à la cencontre cTAÍbert Camus, La Si xaine, 1947), e para não falarmos senão de Camus, o absurdo deste
INTRODUÇÃO
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da existência» de Jaspers, que se lhes afigura uma construção tão abstracta como qualquer outra, quer a ontologia exis tencialista de Heidegger e de Sartre, que supõem destinada, apesar das aparências, a conservar certo optimismo e a ser vir de fundamento a um racionalismo, que eles terminante mente se recusam a aceitar. Estaremos nós, portanto, num beco sem saída, devendo renunciar a uma definição do existencialismo, que seja apli cável a todas as obras que se costumam agrupar ordinàriamente sob este nome? Não encontrando resposta nos próprios existencialistas, voltemo-nos para os críticos e historiadores. Para uns, o existencialismo caracteriza-se pelo facto de todos os seus adeptos partirem da análise da experiência concreta e vivida (2), debruçando-se, directamente, sobre o. homem em vez de o tomarem apenas como meta a atingir e como algo que não se pode alcançar senão por meio de uma pesquisa, feita de um modo abstracto a partir de Deus e do Ser, do mundo e da sociedade, das leis da natureza e da vida (3). Para outros, o existencialismo consistirá essencialnão coincide de forma alguma com o absurdo de Sartre. Para este último, o Ser é fundamentalmente absurdo (não é agora a altura de saber se esta questão tem sentido), enquanto que, para Camus, o absurdo, tal como ò define o M ythe de Si syphe, resulta do conflito entre o homem e o mundo, das exigências racionais do 'homem lutando constantemente (e espe cialmente em presença da morte) contra a irracionalidade do mundo. A ideia do absurdo tem, portanto, aqui, um carácter sobretudo ético — ao passo que, em Sartre, reveste um sentido ontológico. (2) Cf. J. B e a u f r e t , A ptopos de 1'existentialisme em Confluences, n.° 2, Março de 1945, pág. 192. P. D e s c o q s , UAthèisme de J. P. Sartre, em R evue de Philosophie, 1946, págs. 39-40. (’) Cf. S i m o n e d e B e a u v o i r , Littérature et Métaphysique em Temps Modernes, 1.° de Abril de 1946, págs. 1159-1160. Há duas manei»’ ras de compreender e explicar a realidade metafísica. A primeira é pro* curar «esclarecer o seu sentido universal em linguagem abstracta». A teo ria toma forma objectiva e intemporal; o sistema exclui a íiipôtese d*
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mente na afirmação de que a existência é posição pura, e não perfeição da essência, ou, por outras palavras, na afirmação de que a existência precede a essência (4). Ambos estes pontos de vista devem ser examinados cuidadosamente. A resolução de partir do homem, directamente, será sufi ciente para caracterizar o existencialismo? Parece-nos evi dente que semelhante fórmula é demasiado genérica e iria alargar desmedidamente o campo da filosofia existencial. Movidos por esta ideia é que certos críticos pretenderam anexar a este género de filosofia pensadores que, de facto, não só lhe são alheios, mas até se lhe opõem em muitos aspec tos. Neste momento, pensamos sobretudo em Santo Agosti nho e Pascal. Platão também, por vezes, foi julgado digno da mesma honra. Ê certo que Kierkegaard havia estabelecido a precedência fazendo de Sócrates — que era o tipo do filó sofo teórico e descarnado, para Nietzsche — o pensador exis tencialista por excelência da antiguidade grega. Mas Platão não é Sócrates. O «conhece-te a ti mesmo» do mestre tomou, para ele, sentido mais amplo, servindo-lhe de incentivo para uma outra forma poder ser igualmente real; não são tomadas em conta a subjectividade e a historicidade. A verdade, censitàriamente, coincide com a expressão que o sistema lhe fornece. «Mas pode-se também incorporar na doutrina o aspecto dramático, concreto e singular, da experiência e, por consequência, admitir uma espécie de verdade temporal, que não é a verdade em si e abstracta, mas a minha verdade, tal como a tenho vivido. É esta a via existencialista — e por ela se explica que o existencialismo tenha, muitas vezes, preferido exprimir-se por meio da ficção, tanto no romance como no teatro (G. Mareei, Sartre, Camus). Trata-se, por isso, de apreender o sentido da existência em plena existência, no próprio acto pelo qual ela se realiza». (*) Cf. R. T r o i s f o n t a i n e s , Le Choix de /. P. Sartre, Aubier, 1945, pág. 39 sg.. R. C a m pb e l l , /. P. Sartre ou une Littérature philosophique, Ed. P. Ardent, 1945, pâgs. 207-222. M . M e r l e a u - P o n t y , Phénoménobg i e de la Perception, págs. ix-xii, pág. 496 sg.. P . F o u l q u e , Lexistentialisme. Presses líniversitaires, 1946, pág. 7 sg..
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o conhecimento do mundo e, mais rigorosamente, do mundo das Ideias, que é o verdadeiro real, do qual o homem em si apenas encontra sombra ou reflexo. É por isso que Jaspers não admite que se possa ver nos diálogos platónicos uma forma primitiva, ou mesmo um esboço, do método exis tencial, porque esses diálogos encaminham o pensamento para um além da existência e não correspondem a uma ver dadeira «comunicação existencial»; são trocas de ideias ou de pontos de vista abstractos que não referem experiências vividas. Quanto a Santo Agostinho e a Pascal, ambos partem da mais concreta experiência humana; mas, foi, sobretudo, o patético das «Confissões» e dos «Pensamentos» que levou a incluí-los entre os iniciadores do existencialismo. Todavia, o patético é um critério muito ambíguo e conduz-nos fàcilmente àqueles processos oratórios que, segundo Kierkegaard, são precisamente a antítese do verdadeiro existencialismo. Se o patético definisse o existencialismo, então, Itambém Bossueí deveria ser tomado como existencialista. É certo que os escri tos de Nietzsche, de Heidegger e de Jaspers revestem um carácter dramático e envolvem-se numa atmosfera de angús tia. Entretanto, o pensamento francês, mesmo existencialista, já não mostra a mesma tendência e a atitude de um Voltaire perante a obra pascaliana, bem como as reservas de um Valéry, são iniludível indício de uma repulsa pelo patético que, de certo modo, parecia congénito ao temperamento fran cês (5). De facto, a náusea de Sartre está muito longe da (5) Cf., a propósito do patético de Pascal, no Dialogue avec A ndré G ide, de Ch. d u Bos (Paris, Corréa, 1947, pág. 284), as reflexões de Gide que o autor refere e a forma como as comenta. Gide declara: «Hoje, para mim, o valor supremo de Pascal está no patético e só no patético; oh! eu bem sei que não posso reler certas das suas frases sem deixar de soltar um suspiro! mas, ai! quanto mais avanço na leitura e menos prazer sinto, maior é a minha indignação ao ver que são as minhas
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angústia heideggeriana («Quando surge o trágico, declara um dos personagens de L'Âge de raison, é por que se pro curou o sério») <— e o desespero de Camus tem um carácter intelectual que o distingue nitidamente do patético dos exis tencialistas alemães. Sòmente Bataille parece ter tendência para a vociferação. Mas isso mesmo é tão estranho num escri tor francês que até há quem chegue, aliás injustamente, a pôr em dúvida a sua sinceridade. Torna-se, portanto, necessário encarar o problema mais de perto. De facto, para ser existencialista, não basta tomar directamente o homem como objecto de estudo e encontrar nesse estudo a possibilidade de um patético mais ou menos emocionante. É preciso ainda, como dizem os críticos que estamos a seguir, que essa forma de considerar o homem constitua, não uma ciência, mas uma experiência ou, se pre ferirmos, consista no esforço, que deverá coincidir com a mesma experiência, «para desfazer esse enigma que o homem é sempre para si próprio» (8) —' no esforço para arrancar à obscuridade da sua condição humana, e tendo presente o entranhas que estão a ser atingidas. Dá-me vontade de dizer: não me toquem abaixo da cinta — isso não c do jogo; a ferir, que seja só da cinta para cima». (Estas reflexões encontram-se também em C h . d u Bos, Journal, 22 de Outubro de 1923, Corrêa, 1946, pág. 342). No Dialogue avec A ndré Gide, Ch. du Bos acrescenta; «Temos de concordar com Valéry que tanto o patético de Pascal como o do Hamlet de Shakespeare ultrapassam por vezes a meta, desde que os encaremos sob o ponto de vista, não menos austero, da estética e do gosto francês». Esta opinião de Ch. du Bos é muito significativa. Cremos, entretanto, que ela dificilmente se poderá aplicar a Pascal: a que propósito, efectivamente, é aqui chamado o aspecto da estética e do gosto, com que Pascal evidentemente nunca se preocupou ao lançar, só para si, sobre o papel, as reflexões que, na obra que preparava, teriam de revestir indubitavelmente uma forma completa mente diferente? (*) H u b e r t J u in , ]. P. Sartre ou La condition humaine, ed. La Boétie, Bruxelas, 1946, pág. 36.
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aspecto vivo do seu «existir», «uma verdade que interprete a nossa nostalgia fundamental» (7). Tudo isto, de facto, nos aproxima muito da posição de Heidegger — mas não da de Kierkegaard e de Jaspers e, menos ainda, da de Santo Agos tinho e de Pascal. Pascal e Santo Agostinho nunca admitiram que a aná lise do homem ou da consciência, como realidade singular e concreta, pudesse ser suficiente para nos revelar o enigma do nosso destino e para esclarecer a obscuridade da nossa condição. Ambos pensam e dizem precisamente o contrário: a análise da condição humana não pode, de forgia alguma, levar à imanência. «Peço perdão, escreve Pascal em Entre tien avec M. de Saci sur Epictète et Montaigne, de me trans portar assim para a teologia, em vez de me manter, perante vós, dentro do campo da filosofia, mas, ao tratar-se de qual quer verdade, é difícil abstrair da teologia, porque ela é o centro de todas as verdades». É certo que Santo Agostinho e Pascal exigem que a filosofia do homem comece pela inves tigação da realidade humana. Mas tantos outros sustentaram a mesma ideia, sem que até hoje alguém sonhasse fazer deles existencialistas: poder-se-iam citar aqui,.de um modo geral, todos os pensadores cristãos — e todos os .escritores que se propuseram interrogar a si próprios sobre eles mesmos, Epicteto e Séneca, Montaigne e La Rochefoucauld, Vauvenargues e Rousseau, Jouber,t e Amiel, ■— ainda que «o estúpido projecto de se pintar a si próprio», de Pascal (8), os venha a abranger com todo o seu desdém! O facto é que parece haver duas correntes existencia listas que não seguem exactamente no mesmo sentido. Kier kegaard e Jaspers, que representam a primeira, não admitem que a análise existencial possa conduzir a uma verdade uniO (’)
J.
loc. cit., pág. 192. Pensées, n.° 62. Bea
u f r e t ,
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versai. Para eles tudo se reduz a uma pura experiência, que não é comunicável (directamente, pelo menos), nem universalizável, e que é um contacto inteiramente pessoal com o absoluto do ser, consciência vivente do «instante eterno». Por graça deste instante, o homem separa-se do labirinto das suas próprias contradições e atinge uma «verdade» que não é de modo algum formulável. Realiza, num lance, a signi ficação do seu existir — que, rigorosamente, não é outra coisa senão o mesmo existir. O paradoxo desta atitude está em que ela levaria a suprimir não somente a filosofia, mas ainda qualquer expressão da existência. O existencialista coe rente, como Kierkegaard bem o notou, teria de limitar-se a existir: tudo o resto é demais e o discurso é o sinal de um existir mais oratório e poético do que real. O autêntico existenite é silêncio — mesmo para si. Olhada sob este ponto de vista, a filosofia existencial èxaute-se na sua própria e radical negação. — Heidegger e Sartre não admitem esta forma de existencialismo. Ambos são, profundamente, ontologistas: propõem-se constituir uma «ciência do ser» (9). Se esta intenção é particularmente vincada em Heidegger, Sartre também dela comparticipa e UÊtre et le Néant apresenta-se formalmente como uma ontologia. Que estas duas ontologias sejam fenomenológicas, isso nada altera a sua natureza de ciência universal, isto é, de ciência que se firma sobre a uni versalidade do ser, valendo, ao mesmo tempo, para a univer salidade dos homens. Falta dizer, por fim, que, tanto para uns como para outros, a filosofia tem sempre como princípio a análise con(®) Heidegger insistiu, muitas vezes, neste ponto e ainda recente mente. De facto, a primeira parte de Sein und Zeit, definida pelo próprio Heidegger como «análise fundamental preparatória da realidade humana», é sobretudo uma análise existencial, destinada a servir de introdução à Ontologia.
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creta, nas suas formas mais singulares, para que, através dessa análise, se chegue à descoberta quer de uma verdade, inefável e estritamente pessoal, quer de uma noção universal do homem, e do mundo, no seio do qual se desenrola o des tino humano. G. Mareei também perfilha este último ponto de vista, mas não admite o aspecto imanentista que caracte riza o existencialismo de Heidegger e de Sartre; neste parti cular, G. Mareei está muito mais perto de Kierkegaard que todos os outros existencialistas — e também de Pascal e de Santo Agostinho, por consequência. Admitiremos, portanto, que a «análise existencial» é uma das características mais vin cadas do existencialismo, embora não baste para o definir. Na afirmação de que «a existência precede a essência» se encontra a outra característica que também foi escolhida para definir o existencialismo —■afirmação sobre a qual tanto se tem insistido, sobretudo depois que J. P. Sartre, de forma bastante agressiva, acentuou a sua importância. Esta afir mação afigurou-se mesmo a certos críticos tão caracteristi camente existencialista que, para satisfazerem as exigências da simetria, até se sentiram na obrigação de inventar o que eles, por oposição ao existencialismo, apelidam de essencia~ lismo. O termo, todavia, parece-nos pouco feliz e susceptível de tornar confusa a discussão. Procuremos primeiramente concretizar o sentido em que, para os existencialistas, a existência precede a essência. Uma primeira certeza se impõe desde já: é que, neste ponto, eles não se encontram inteiramente de acordo. Enquanto G. Mar eei hesita na posição a tomar (10), Heidegger, Jaspers e (10) Cf. Etre et Avoit, pág. 24: «Sempre me preocupou o pro blema da prioridade da essência em relação à existência. Suponho, entre» tanto, que, no fundo, nele apenas existe pura ilusão, uma vez que estamos á opor aquilo que não está senão concebido (e que nos permitimos trataf como não-existente) àquilo que é realidade». G. Mareei frisa (pág. 25 ),
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Berdiaeff, embora admitam, como Sartre, que o Dasein, ou o existente como tal, é pura existência, divergem de Sartre, quanto ao significado que deverá ser dado a tal afirmação, Ver-se-á que, para Heidegger, a existência em bruto designa um estado, aliás impensável, em que o existente é sem ser ou essência, absolutamente aquém de toda a inteligibilidade, Há, portanto, para ele um «ser da existência», que, de qual quer modo que se considere, terá de ser essência. Mas esta essência não é uma potência que o acto de existir venha a actualizar. Pelo contrário, o existente é que, existindo, cons trói a sua essência, de tal maneira que a essência ou o ser não é nele senão a própria existência, na sua realidade con creta. Poder-se-ia dizer também que a existência não tem essência distinta dela mesma ou, melhor ainda, que ela é simultâneamente existência e essência, isto é, existência afir mada no plano do ser ou da inteligibilidade. É este o sentido em que Heidegger afirma que a existência precede a essência. Como sc há-d/e ver, Heidegger prefere falar de uma prioridade ou de um primado da existência em relação à essência. «A essência do Dasein, escreve, reside na sua numa nota datada de 1934, que agora já não subscreveria, sem hesitação, afirmação tão categórica. É possível, entretanto, que este comentário se não refira directamente ao texto acabado de citar. Em todo o caso, afirma mais adiante gue a sua hesitação em aceitar o princípio da «prioridade da essência» provinha do esforço que então (12 de Junho de 1929) dispendia «para romper com todo o idealismo, qualquer que ele fosse — e, por con sequência, que ela se referia, sobretudo, ao sentido idealista dessa fórmula. Em R. I., pág. 152, G. Mareei volta ao assunto a propósito da filosofia da pessoa e marca a mesma hesitação: «Para mostrar, no fundo, o meu pensamento, direi, por um lado, que a pessoa não é, nem pode ser, uma e&sência, e, por outro lado, que uma metafísica, que se edificasse de fcerto modo afastada ou ao abrigo das essências, se arriscaria a desfazer-se como um castelo de carias. É isto unicamente o que posso dizer, embora, na realidade, o assunto represente para mim uma espécie de escândalo e até de decepção».
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existência». Sartre, em princípio pelo menos, coloca-se numa posição mais radical. Para ele, a existência precede absoluta mente a essência, não só porque o termo existência só tem aplicação perfeita na realidade humana (o resto sendo pura mente e simplesmente, mas não existindo), mas ainda porque a existência, no homem, não é senão o nome dado ao nada que é o «por-si» ou a consciência. Há, entretanto, quem considere estas diferenças apenas como acidentais e que elas não excluem uma maneira de ver comum. De forma unânime, os existencialistas recusam-se, de facto, a considerar a existência como coisa da qual se possa abstrair, como coisa susceptível de ser conhecida de fora, a título de dado objectivo. A subjectividade é o carácter essencial da existência e, por isso, ela está para além do saber, é irredutível a uma noção, refractária a qualquer tentativa de conceitualização (ia). Ê sob este ultimo aspeoto que o existencialismo de Kierkegaard e de Jaspers encara a exis tência. Supomos, entretanto, que Heidegger e Sartre já não perfilham, pelo menos de um modo absoluto, esse ponto de vista, que, de resto, porque é tão pouco característico do exis tencialismo, se vai encontrar também expendido, com outra clareza e até, porventura, com outra evidência, em doutrinas de inspiração muito diferente. Jaspers e Berdiaeff insurgem-se contra o método e as ambições de Heidegger, invectivando a sua ideia de cons truir uma filosofia sobre a existência, tornando, assim, a exis tência objecto de pensamento. O próprio Heidegger não se furta ià acusação e é o primeiro a declarar, còmó já vimos, que a sua finalidade fé constituir uma ontologia, que, tendo como fundamento a análise existencial, a ela não se poderá limitar uma vez que a si se define como ciência do ser. (“) Cf. A. F o r e s t , Uessence Maio de 1947, págs. 216-217.
et l’existence,
em
Tèmoigtitigtx,
M
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Perante esta doutrina seria admissível pensar que nos encon tramos simplesmente a caminho de uma metafísica clássica, de tipo atistotélico, embora Heidegger, tendo certamente as suas razões, contra isso se insurja. De facto, por singular paradoxo, Aristóteles e S. Tomás é que deveriam ser cha mados (se a designação lhes pudesse ser atribuída) verdadei ros existencialistas, mas num sentido completamente diferente do de Heidegger, precisamente naquele sentido que pode salvar a noção de existência que, no método heideggeriano, corre risco de se perder por volatilização. Desde que, com efeito, para Aristóteles e S. Tomás, o saber filosófico tem por matéria as essências, tais como as elabora o pensa mento conceituai, a existência nunca poderá ser conceituada e deduzida. Por mais diversas que sejam as razões que, depois, venham a ser invocadas, nada poderá destruir a afir mação fundamental de que não há nem pode haver ciência da existência como tal, isto é, do acto de existir. Neste aspecto, a existência é extra genus notitiae (12). Não poderá ser apreendida senão por meio de uma intuição irredutível a conceito ou posta como condição absoluta de inteligibilidade. Se, portanto, o existir está e deve estar, como tal, necessàriamente excluído do saber filosófico, tendo a ciência do ser, enquanto ser, unicamente como objecto um ser indiferente à existência — serão estes os limites a admitir para a filoso fia, cujas asserções e construções ficam, assim, basilarmente afectadas de um carácter de relatividade e de inacabamento. As essências, de facto, não se podem conceber e fazer valer senão em relação ao acto de exisitir, o qual nunca pode ser reduzido a conceito; será, pois, sempre e necessariamente em função da existência que deverão ser postos e resolvidos todos os problemas da filosofia, uma vez que as essências, que a
(“)
S.
T o m á s,
D e Veri tafe, q.
3,
art
3, ad. 8 m..
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análise descobre e que o saber abstracto organiza e sistema tiza, são apenas meios de resolver as questões, que a existên cia formula, por via de uma objectivação destinada a tornar inteligível a matéria ou o conteúdo —imas, tendo sempre em mente que o próprio existir, por mais numerosos e subtis que sejam os conceitos que exprimem a sua natureza ou proprie dades, jamais perderá a sua irredutível singularidade (13). Sob este aspecto, nenhuma doutrina encontra explicação para a subjectividade estrutural do existir, nem para o mis tério que esse existir opõe a qualquer tentativa de objectiva ção. Daqui se segue que a ciência do ser fica sempre em aberto e inacabada, pois o existir não cessa de levantar inde finidamente novos problemas, e, em primeiro lugar, o do pró prio acto que ele é e que nada permite racionalizar (14). Esta concepção implica evidentemente a distinção entre essência e existência, cuja razão de ser é justamente salvar a realidade absoluta do existir. Sem esta distinção, a meta(u ) «Os universais, diz S. Tomás (I Sent., d. 36, q. 1, art. 1), de . qualquer maneira que se combinem, nunca poderão fazer um existente» (Universalia, quocumque modo aggregentur, nunquam ex eis fiet singulare ). — E G. Mareei compreendeu isso bem. Cf. Etre et Avoir: «Em suma, o pensamento não se firma senão nas essências» (pág. 41). Mas, por outro lado, «o pensamento não pode sair da existência: não pode abstrair dela a não ser dentro de certa medida e o que importa principalmente é que deste acto de abstracção ela não saia prejudicada. A passagem à existência é qualquer coisa de radicalmente impensável, qualquer coisa que não tem mesmo sentido algum» (pág. 34). (“ )' Cf. as observações de E. G i l s o n , Limites de la philosophie, em UExistence, Gallimard, 1945, págs. 81-87. ~ G. Mareei definiu muito bem este ponto de vista em Etre et Avoir (pág. 11): «O existente pen sado como obstáculo ou ponto de referência — como qualquer coisa contra a qual me oponho em certas circunstâncias — permanece imperaneávd. Sem dúvida que esta impermeabilidade é pensada, mas pensada como não Sendo absolutamente pensável». «É pensada, mas nunca reduzida. A cidade do mundo é, em certo sentido, irredutível».
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física deixaria dc ter objecto e esgotar-se-ia em intuição pura, inefável e intransmissívél. A esta lógica consequência deveria chegar Heidegger, para o qual a essência consiste na própria existência, não podendo de forma alguma distin guir-se dela. É certo que ele, ao contrário de Jaspers, não se resigna a deter-se na existência e pretende constituir uma ontologia. Mas essa ontologia não poderá ser, por definição, senão uma «ciência da existência», tão irreal como o círculo quadrado, porque, assemelhando-se, em virtude do seu carác ter abstracto e universal, com as ontologias clássicas, terá de assumir a desgraça, que não as tocou a elas, de concei tuar a própria existência, isto é, de a fazer desaparecer, como frisava Kierkegaard. O existencialismo, compreendido desta maneira, conduz à negação da existência. Não é, poríanto, este o caminho que devemos seguir para justificar com clareza a distinção entre existencialismo e «essencialismo». É certo que há uma corrente filosófica, platónico-idealista, que se propõe chegar ã apreensão das essências, definindo primeiramente o ser através do universal e do necessário. Conhecer e saber, à luz desta doutrina, é antes de tudo, apreender, no ser, o absoluto de que ele participa, a ideia que ele realiza por forma mais ou menos perfeita. Segundo a fórmula de Platão, o saber filosófico consiste numa dialéctica que, «sem utilizar nada que seja sensível, não se serve senão de ideias para ir, através de ideias, a outras ideias e terminar em ideias» (15). Esta fór mula corresponde, como facilmente se vê, ao tema cons tante do idealismo, e L, Brunschvig não dizia outra coisa quando afirmava que «o pensamento é o antípoda do real». Em oposição ao existencialismo, afirma-se aqui que há uma verdade metafísica, anterior à existência como dado concreto,
(“ ) République, 511b,
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como devir ou temporalidade, e que a existência só é inteli gível em função dessa verdade intemporal que a funda menta (16). O que determina esta maneira de filosofar é a ambição de descobrir o meio de tornar a existência anal'tti~ camente inteligível, sob forma total, isto 'é, de modo que o pensamento racional a penetre inteiramente sem que nela permaneça qualquer resíduo opaco. Os nomes de Spinoza, Leibnitz, Fichte, Hegel poderiam servir para demonstrar essa desmedida ambição. E também para provar o fracasso dessa mesma ambição, porque uns e outros acabam sempre por esbarrar com o obstáculo que pretendiam eliminar. Para pode rem ser integralmente racionais, estas doutrinas terão de aceitar o facto e o dado, e admitir, ainda que de mã vontade, uma contingência que renitentemente se mantém rebelde à análise. O termo essencialismo parece, portanto, designar, antes de mais nada, uma tendência, e, tomado com este significado, -o seu emprego não traria quaisquer inconvenientes e seria alté plausível. Fora desta significação, porém, pode dar origem a um equívoco e levar-nos a falsear o sentido das doutrinas que, considerando a ciência do ser como necessariamente abstracta e geral — podendo, sob este aspecto, passar por «essencialistas» (17) —' sustentam também que o verdadeiro (16) Cf.
Lachelier,
Psychologie et Mêtaphysique, Oeuvres, t. I,
pág. 207: «É necessário, portanto, que a consciência intelectual tire de si mesma a luz —- que nunca poderá emanar da consciência sensível; é necessário que haja em nós, antes de qualquer experiência, uma ideia daquilo que deve ser, um esse ideal, como pretendia Platão, que seja para nós o tipo e a medida do esse real. É esta ideia que é e ünicamente pode ser o sujeito do conhecimento, visto que ela não é uma coisa, mas a verdade a priori de todas as coisas; e o conhecimento não é senão a consciência que essa verdade ideal toma de si mesma, reconhecendo-se nas coisas que a realizam». (” ) Cf. P. F o u l q u i e , Vexistentiallsme, págs. 11-36.
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e único real é a existência e que é dela que é necessário partir e é a ela que é preciso voltar. É escusado, entretanto, dizer que, pelo facto de não aceitarmos a noção de essencialismo„ em virtude das confusões que o termo é susceptível de pro duzir, não queremos negar a originalidade própria do exis tencialismo. Nada disso. O que pretendemos é determinar com exactidão essa originalidade e, por consequência, conhe cer as razões por que o existencialismo se opõe a todas as antigas formas da filosofia. Ora, sob este ponto de vista, não há motivo para pôr em dúvida que o sina! de contradição é o princípio que estabelece a prioridade da existência sobre a essência. Mas, claro está, desde que esse principio seja interpretado no sentido exis tencialista, Ê que há também um sentido segundo o qual o menos existencial dos filósofos viria a estar de acordo com Heidegger. Já tivemos ocasião de observar (1S) que uma filo sofia, como a de S. Tomás, para a qual a existência não é senão a actualidade da essência, não poderia supor uma essência anterior à existência. A essência não tem senão uma forma possível de ser (no sentido próprio da palavra), que é existir. A existência tem, assim, sobre a essência a priori dade de uma condição absoluta. É certo que se pode dizer que as essências «preexistem» no Pensamento Divino. Mas isso não passa de uma forma de expressão muito pouco exacta, porque o qoe preexiste não são as essências, mas sim a Essência Divina, isto é, Deus como fundamento de todas as essências e de todas as existências possíveis. Rigorosa mente, as essências não podem existir realmente senão atra vés da existência que as faz existir, isito é, elas só existem como singulares e concretas. Só o indivíduo existe. Escla recida, assim, a questão, houve até quem quisesse fazer de S. Tomás um «existencialista». Mas, que S. Tomás deva oa (“)
G i l s o n ,
loc. cit., pág. 83.
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não ser considerado «existencialista», isso é outra ques tão (10). Prioridade da existência sobre a essência, tal como Heidegger e Sartre a entendem, significa precisamente que a existência não tem essência distinta dela mesma ou, se qui sermos, que a essência é a própria obra da existência (20). As consequências desta doutrina, segundo a qual a existência é sem natureza ou estrutura, isto é, posição pura e absoluta {quaisquer que sejam aqui os sentidos ou modalidades que esta fórmula possa revestir), deduzem-nas imediatamente os existencialistas. Poderemos sintetizá-las nesta asserção fun damental: a realidade própria da existência, não podendo ser referida a nada que seja distinto dela mesma, é contin gência total e finitude irremediável. A existência é «arre messada», em tal abandono que não repousa senão em si e não pode contar senão consigo. Isto equivale ,a dizer que ela é essencialmente «liberdade», precisamente porque depende (10) Cf. G. M a r c e l , Existentialisme et pensée chrétienne, pág. 158: «Não convém dar ao termo «existencialismo» um sentido muito amplo, nem demasiadamente vago. Pascal pode, indubitavelmente, ser conside rado como um precursor do existencialismo. De Descartes já não se poderá dizer bem o mesmo. S. Tomás, então, é que de forma alguma poderá ser incluido, bem como qualquer filósofo da antiguidade, entre os existencialistas, a não ser que o termo perca por completo a sua signi ficação». (2Ü) Em Platons Lehie von der Wahrheit. Mit einem Brieí über den «Humanismus », Heidegger diz que «a tese fundamental de Sartre da prioridade da existência sobre a essência justifica o nome de existen cialismo que foi dado à sua filosofia mas que a tese do existencialismo não tem nada que ver com o princípio [da prioridade da existência sobre a essência] do seu Sein und Zeit — sem tomar mesmo em linha de conta que Sein und Zeit não podia versar a questão da relação entre essência e existência, até porque isso implicaria uma explanação prévia do assunto». É possível, mas a prioridade da existência sobre a essência é admi tida, em princípio, no Sein und Zeit.
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exclusivamente de si. Liberdade significa, portanto, contin gência absoluta e por ela se define apropriadamente o ser da existência (21). Daqui se conclui que a existência jamais poderã ser apreendida, a não ser sob a forma de uma história, como Kierkegaard constantemente repetia, ou, segundo a expres são de Heidegger, como temporalidade. De facto, só a essên cia, enquanto distinta da existência, é que poderia dar ao ser uma espécie de base intemporal, ou a título de possível eterno preexistindo no seio da Essência e do Pensamento Divino —■ou, ao menos (como em Aristóteles), a título de potência que permanece no acto de existir. Mas nada disto tem sen tido no contexto existencialista. A existência não comporta potencialidade alguma: aquilo que ela pode ser é-o sempre em acto e os seus possíveis não são senão uma expressão do que ela é em acto. Por conseguinte, a realidade da existência não poderá consistir senão na sua temporalização. A existên cia identifica-se com a sua história e com o borbotar original pelo qual a liberdade, que ela é, a constitui e, ao mesmo tempo, a limita e enclausura, pois, a cada momento do seu devir, ela é tudo o que pode ser e não é realmente mais nada (22). É isto o que explica, como havemos de ver, a (M) A. F o r e s t (Io c . cit., págs. 217-218) mostra muito bem como esta concepção toma foros de tema kantiano. (s ) Sartre, todavia, (Action, 27 de Dezembro de 1944, M i se au point) declara que «o existencialismo deverá estabelecer para o homem uma definição que não seja fechada em si mesma mas sempre aberta». A definição do homem terá de ser «aberta» porque o homem, segundo Sartre, é fundamentalmente liberdade absoluta, liberdade sem fundamento, liberdade não predeterminada na sua essência. Mas, noutro sentido, tam bém se poderia dizer que a definição do homem terá de ser «fechada em si mesma», porque, desde que a liberdade se acaba necessariamente nela mesma, não pode admitir nada para além de si, nem valer estritamente senão por si.
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ausência de dimensão em profundidade da liberdade existen cialista. Não há mais nada para lá dela mesma: a existência não tem espessura, porque em nada se apoia senão em si própria. Sartre vincou bem este carácter ao insistir na con tingência absoluta e na absurdidade da liberdade — embora venha a admitir, um tanto contraditoriamente, sob a desi gnação de «desejo de ser fundamental», um equivalente de essência, anterior, pelo menos logicamente, à existência pura (23). Todavia o princípio mantém-se absoluto, mesmo que não seja inteiramente respeitado: para além da liberdade não há nada, e a própria liberdade, isto é, a existência da
(” ) Teremos de voltar a este ponto no capitulo consagrado a J. P. Sartre. No entanto, observaremos desde já que Sartre não consegue desligar-se da noção de natureza humana, ou seja, de uma essência que especifica a existência e, por isso, (logicamente) a precede. É assim que ele se pronuncia em Réflexions sur la question juive (P. M o r ih i e n , 1947, pág. 76): «Estar em situação, significa escolher para si uma situação e os homens diferem uns dos outros como as suas situações e também segundo a escolha que fazem da sua própria pessoa. O que há de comum em todos eles não é uma natureza, mas uma condição, isto é, um conjunto de limites e de constrangimentos: a necessidade de morrer, a necessidade de trabalhar para viver, a necessidade de existir num mundo habitado por outros homens. E esta condição, no fundo, é que é a situa ção humana fundamental, ou, melhor, o conjunto dos caracteres abstractos comuns a todas as situações ». (É nosso o sublinhado destas últimas pala vras). E que será a essência ou natureza, senão isto mesmo? A essên cia não é evidentemente uma coisa: só tem realidade através da existência, que é seu acto. Distinta da existência, somente é e apenas pode ser um conjunto de «caracteres abstractos», ou, como Sartre diz mais adiante, um conjunto de «dados gerais», comuns a todas as situações existenciais. Mas, a tal título, a essênda precede a existência, pois define-lhe a natu reza ao conferir-lhe determinada natureza específica, uma existência humana, por exemplo. Sòmente, esta precedência é puramente lógica; antes de existir, a essência não é nada, senão uma possibilidade abstracta* um conjunto de «caracteres abstractos» ou de «condições gerais», isto í, uma ideia.
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realidade humana é esse nada pelo qual ela escapa ao maciço e ao determinismo do «em si», construindo a sua própria essência. Esta é a razão por que a existência, como tal e como história, não comporta, dentro de si, nem tensão, nem impulso, nem apelo, nem ímpeto, nem potencialidade, nem virtualidade. Na realidade, ela não tem «dentro»; o seu den tro é o seu fora; o seu possível é o seu acto. Ela é acto puro, oú seja, aqui, dado puro e finitude absoluta. Tal é, no nosso entender, a verdadeira característica do existencialismo. Poderemos, portanto, defini-lo como o con junto de doutrinas segundo as quais a filosofia tem como objectivo a análise e a descrição da existência concreta, con siderada como acto de uma liberdade que se constitui afir mando-se e que tem unicamente como génese ou fundamento esta afirmação de si (24). É certo que se pode objectar que eslta
(!<) Cf. J. P. S a r t r e , L ’exi stentialisme est un humanisme. Ed. Nagel, Paris, 1946, pág. 3 8: «O homem, sem qualquer apoio e sem ajuda alguma, está condenado em cada instante a inventar o homem». — L. L a v e l l e (Introduction à l’ontologie. Paris, Presses Universitaires, 1947, pág. 7), contrapõe da maneira seguinte a «filosofia do ser» da «ontologia tradi cional» à filosofia existencialista: «O emprego da palavra ser caracteriza todas as doutrinas que consideram a participação na sua origem, ou seja, nessa omnipresença em que ela se embebe e que continuamente divide: em si, a palavra ser compreende simultâneamente a existência e a essên cia. A ontologia tradicional deve ser considerada como filosofia do ser. — A palavra existência retém da participação o acto pelo qual ela se realiza; implica, por si, não »ma inferioridade em relação à essência, mas a impossibilidade de ser outra coisa que não seja o acto pelo qual um indivíduo a assume. Esta filosofia, cuja inspiração não é nova, adquiriu, em nossos dias, sob o nome de existencialismo, um desenvolvimento notá/vel». — Mais adiante (pág. 36), L. Lavelle fixa, no mesmo sentido que nós, a posição existencialista: «cada um de nós (é) um ser solitariamente lançado ao mundo com as suas própri as possibili dades, competindo-nos sômente descobri-las e actualizá-las. Desta forma, não se sabe o que per turbará mais o ser: se sentir-se confinado por uma separação ontológica,
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•definição não se concilia bem com a doutrina de G. Marceíl que, pelo contrário, vê na existência uma exigência de mais-além, um impulso para o Absoluto impulso e exigência que, para ele, constituem a mais perfeita definição da existência humana. Mas, o que resta saber é que valor poderá logica mente ser atribuído a estas conclusões dentro do contexto existencialista e à luz da tese que afirma que a existência é posição absoluta (25) — e, depois, também não deverá ser posta de lado a hipótese de G. Mareei ter de vir a ser excluído do grupo existencialista, dada a sua hesitação em aceitar o princípio da precedência da existência sobre a essência. Neste caso, o existencialismo cristão não seria uma espécie de existencialismo, mas sim um género de existencialismo completamente â parte, sem qualquer noção unívoca comum.
■que é incapaz de superar, se dispor de certas possibilidades misteriosas de origem desconhecida, se determinar o seu destino pelo uso que dele fizer e cujas consequências, portanto, ignora». A angústia que comprime e restringe o exercício da liberdade existencial «resulta não da simples ambiguidade que essa liberdade encerra mas, sim, por um lado, da impos sibilidade em que nds encontramos de nos libertar dessa mesma liberdade e, por outro lado, da inclinação que sentimos para aquelas soluções nega tivas, nas quais julgamos perder o contacto com a existência, uma vez que se descobre à existência uma saída que, em vez do nada, atinge o ser». Sob o ponto de vista históri co, o existencialismo pode-se explicar •como uma reacção anti-hegeliana. Assim o considera G. Mareei em Exis tentialisme et pensée chrétienne, loc. cit., pág. 158: «No meu entender, e comigo está J. Wah l, (o existencialismo) deverá ser definido, sob o ponto de vista histórico, como reacção, ocorrida no século xix, contra o sistema de Hegel: em função das ideias hegelianas é que o existencialismo se afirma com todo o seu sentido e valor». (26) Tanto Sartre como Heidegger (e, como mais forte razão ainda, Jaspers) aceitam fenomenològi camente a realidade dessa exigência e desse impulso. Camus insiste mesmo nessa realidade (em Le Mythe de Sisypht), Mas tanto Camus como Sartre e Heidegger supõem-na sem fundamento e unicamente capaz de conduzir a úm fracasso.
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Parece, aliás, que esta ê a opinião do próprio Gabriel Mareei (2"). ★
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As considerações expendidas bastarão para dar conta do plano e do contexto desta obra. Reunimos aqui as quatro doutrinas que supomos mais significativas do existencialismo contemporâneo, dividindo-as em dois grupos distintos, que correspondem às duas principais correntes do existencialismo: no primeiro grupo juntamos Heidegger e Sartre, no segundo, Jaspers e Mareei (27). Como, em qualquer dos grupos, cada (“) Cf. Bxistentialisme et pensée chtêtienne, pág. 162: «Propo nho-me demonstrar aqui o mais claramente possível como as pesquisas filosóficas sobre a existência, e sobre a própria natureza do existir, se articularam, no meu caso, com um conjunto de preocupações que remata ram na minha conversão ao catolicismo e como pôde constituir-se, assim, o que, com certa relutância, aliás, me resigno a ver designar por exis tencialismo cristão». (í7) Desta forma, ficam desde já justificadas íertas lacunas que noutro trabalho de carácter estritamente histórico seriam inadmissíveis. Não se compreenderia, de facto, que, num trabalho histórico, se passasse em claro sobre os nomes de Chestov, Berdiaeff, Merleau-Ponty, Camus, Bataille (ainda que estes dois últimos se excluam a si próprios do grupo existencialista) e também Maurice Blondel, cuja filosofia da Acção apre senta muitos pontos de contacto com o existencialismo. M. Blondel chega mesmo a ver na sua doutrina a verdadeira filosofia existencial. Pelo menos, é o que se depreende da sua comunicação ao Congresso Inter nacional de Filosofia de Roma (Novembro de 1946), que foi lida por M J. Paliard. Devemos, declara Blondel, exprobrar enèrgicamente o exis tencialismo de J. P. Sartre, que estabelece o primado da existência sobre a essência. «Como, para Sartre, Deus não existe, o homem não podia ser criado segundo um tipo ou uma essência definida e normativa; o homem faz-se a si mesmo pela sua acção e pela sua liberdade. Ora, acres centa M. Blondel, semelhante conceito exclui qualquer norma, seja de
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uma das doutrinas tem o seu carácter próprio, resolvemos fazer separadamente a exposição de cada uma delas: preferi mos, assim, correr o risco de possíveis repetições a enveredar pelos caminhos da síntese, nem sempre claros e conducentes. ordem metafísica, moral, social ou religiosa; nele nada mais se encontra do que puro verbalismo irracional e um imoralismo absoluto. Assim, do existencialismo, unicamente o método é de aproveitar, porque, incidindo sobre o estudo da acção humana, que é uma via para o absoluto, nos revela o que ela contém de inteligível». (Segundo o resumo dado pelo Giornale di Metafísica, 15 de Março de 1947, págs. 200-201). — Quanto a L. Lavelle, para o qual se pretendeu criar a fórmula curiosa de «exis tencialismo essencialista», podemos considerá-lo existencialista, mas num sentido completamente diferente daquele que define as doutrinas de Heidegger, de Jaspers e de Sartre (por mais estranhas que sejam entre si sob o ponto de vista da «participação») e também bastante diferente do que caracteriza a doutrina de G. Mareei. É t> que, muito pertinentemente, defende M. Delfgaauw no seu trabalho Het spiritualistisch Existentialisme vati Louis Lavelle (Amsterdam, 1947). Recordando que, para Lavelle, e segundo as palavras de D e 1’A cte (pág. 95), «o único sentido que para nós tem a existência é o de nos permitir realizar, não uma essên cia preestabelecida, mas a sua determinação, por meio da nossa escolha, e a nossa coincidência com ela»; em lugar de dizermos que a essência «é a possibilidade da existência, diremos antes que a existência é que é a pos sibilidade da essência», — ou ainda {A de rèflexil et Acte créateur, em Bulletin de la Société /r. de philosophie, 1936, pág. 153), que «eu sou um ser que se ultrapassa sempre, que produz continuamente, sem nunca acabar de a produzir, a sua verdadeira essência». — M. Delfgaauw observa (págs. 130-131) que Lavelle vai ao encontro daquela tradição metafísica que define, de modo idêntico, as relações entre a existência e a essência. Trata-se, efectivamente, como refere Lavelle na carta citada por M. Delfgaauw (pág. 125), de afirmar que «a existência nos é dada com. o fim de nos permitir adquirir, precisamente, uma essência», ou seja, a nossa «existência individual». Lavelle diz ainda que não rejeita a noção de uma «essência ideal», mas que a considera como termo intermédio «entre o puro Ser e a existência individual». Tudo isto, evidentemente, afasta Lavelle de Sartre e de Heidegger e, por isso, o existencialismo de Lavelle terá de ser entendido segundo a acepção da maior parte dos 616* eofos e, de uma forma especial, dos pensadores cristãos.
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por vezes, a aproximações muito discutíveis. Por último, para explicar a génese do existencialismo, pareceu-nos conveniente ir buscar à sua própria origem, isto é, a Kierkegaard e a Nietzsche, os temas que mais o caracterizam. Se quiséssemos ultrapassar o ponto de vista racional e filosófico e definir sob forma mais genérica o clima existen cialista da nossa época, teríamos de considerar ainda outras influências, de ordem afectiva, que reforçaram poderosamente os temas fundamentais destas doutrinas, provocando a explo são existencialista que tem assinalado estes últimos anos. Devemos observar — sem sair do ponto de vista geral e, portanto, um tanto sumário, em que nos queremos manter que os trágicos acontecimentos dos derradeiros anos contri buíram prodigiosamente para acentuar o regresso à subjec tividade, que é uma das características do existencialismo. O pavoroso cataclismo da guerra mundial, com os inominá veis horrores a que deu origem, o clima de insegurança terri torial em que a humanidade viveu, o desmoronamento de todos os valores até então respeitados, a angústia que cons trangeu os corações durante alguns dos mais sombrios anos que o mundo conheceu, tudo isto contribuiu grandemente para afastar o homem das especulações abstractas que nos tempos felizes tanto o deleitavam, reconduzindo-o a si, preo cupado em descobrir uma doutrina mais próxima dai vida e
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reflexão sobre o mistério da vida e da existência (28). É a história de cada um de nós, no decurso destes últimos anos. Fomos violentamente reconduzidos a nós mesmos, como que sacudidos por um tremor de terra, bruscamente despojados, pelo ímpeto do furacão, de todos os artifícios conceituais de que estávamos revestidos e que nos manietavam. O que tínhamos à nossa frente, era o drama de uma humanidade que, no temor e no tremor, procurava o sentido da vida, como se o problema houvesse tomado um rumo novo, absoluta mente inédito, reclamando imperiosamente soluções igual mente novas. Pela mesma forma e ao mesmo tempo se explica o sucesso das filosofias do absurdo e do desespero. O mundo parecia entregue à loucura, o universo desprovido de sentido, a vida fundamentalmente absurda, apoiada sobre o nada, o universo vazio de Deus. A influência, que não era de mini mizar, do pensamento níetzschíano conjugava-se com a imensa desesperança dos anos sombrios para enegrecer ainda mais a noite em que a humanidade, enlouquecida, se debatia. Um passado de negações — negação da aptidão do espírito para (2S) #G. M a r c e l refere o caso no ensaio que, sob o titulo Regatd en arcière, escreveu para o volume que as edições Plon consagraram à sua obra, L ’existerdialisme chrétien, G. Marcel, Paris, Plon, 1947, e que vem publicado nas últimas páginas deste livro. Cf. pág. 312: Colo cado à frente de um serviço de informações da Cruz Vermelha «senti-me obrigado, pela força das circunstâncias, a concentrar a minha atenção sobre os desaparecidos e, assim, a ter sempre presente no espírito um dos aspectos mais horríveis, mais injuriosos para a razão e para o coração, de uma hecatombe, perante a qual senti o odioso de nada mais poder ser do que simples espectador... Mas houve ainda outra coisa que em mim influiu grandemente. As investigações a que ia procedendo levaram-me a reflectir sobre o condicionalismo que envolve qualquer inquérito ou ques tionário, e também, por forma indirecta, a concluir que nfio é possível transcender a ordem quando a actividade do espírito se limita ao registode perguntas e respostas». >
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encontrar a verdade, negação dos valores espirituais e morais da tradição cristã, negação da transcendência do homem em relação ao resto do mundo ■—- tudo favorecia essa espécie de queda vertical nos abismos do desespero. A desordem inau dita em que estivemos engolfados, com a apologia da impos tura e das atitudes ambíguas, da carnificina e da pilhagem, a profunda desmoralização provocada pelo mercado negro, tudo contribuía para generalizar um cepticismo diante do qual nenhum valor moral mantinha prestígio. Perante tal estado de coisas, não custa a compreender que tenham sido tão bem acolhidas as filosofias do absurdo, isto é, as filosofias que se fundam no postulado do absurdo universal, como outras, recentemente, se fundam no postu lado da identidade entre o real e o racional. O Nada tomava na transcendência o lugar deixado vago pela Razão e por Deus. As doutrinas de Camus e de Bataille, o existencialismo de Heidegger e de Sartre têm grande parte da sua origem nessa corrente de absurdismo. Entretanto, todas estas dou trinas se apoiam também na angústia e no desespero, osten tando, assim, a marca de uma época atormentada e a virtude de chamar o homem à subjectividade. Esta corrente de pensamento não tardou em cristalizar as tendêngias con fusas do nosso tempo, fornecendo-lhes uma expressão e uma moldura. A sua eclosão, e sobretudo o seu prodigioso sucesso, não se poderiam conceber, por exemplo, nos primeiros anos deste século. Era necessária uma profunda transformação, um cataclismo, tal como o previa ■— e desejava ■— o génio profético de Nietzsche, para que a afirmação do absurdo se impusesse com uma força tão percuciente.
PRIMEIRA PARTE
AS ORI GENS DO EXISTENCIALISMO
C a pít u l o
P r i m e ir o
KIERKEGAARD
do existencialismo de Kierkegaard não é hoje *• tarefa fácil, de tal maneira os temas fundamentais do pensamento kierkegaardiano têm sido desenvolvidos e, por vezes, contraditados por parte das novas formas existen cialistas. O fracasso dos sistemas, o paradoxo e o absurdo, o desespero e a angústia, o abandono do homo naturalis e o compromisso do homo cheistianus, o sentido do risco e o drama do indivíduo, o valor, exclusivo da subjectividade e a incerteza absoluta do «objectivo»; —' eis os temas fun damentais de Kierkegaard que, depois, ao lado de certos princípios estabelecidos por outros filósofos, como Nietzsche e Husserl, viriam a ter ressonâncias imprevistas no contexto das novas doutrinas existenciais. Deste modo, as teses de Kierkegaard passaram a explanar-se num clima que já não é o clima kierkegaardiano e que, pelo menos em parte, chegbu até a merecer a veemente repulsa do filósofo dinamarquês. Por outro lado, também não poderemos deixar de dizer que foram essas formas novas de existencialismo que mais contribuíram para revelar o pensamento de Kierkegaard, mesmo quando elas o contradizem em pontos essenciais» Kierkegaard está incontestavelmente na origem do moviI—< a l a r
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mento existencialista contemporâneo — mas ele é também, de certa maneira, o efeito ou a consequência desse movimento. Há aqui um jogo de causalidade recíproca — vulgar na his tória das doutrinas. Descartes revela-se e completa-se em Malebranche e em Leibniz, e também em Hume e em La Mettrie. A sua verdade é mais futura do que passada. O mesmo deveremos dizer de Kierkegaard: os seus temas principais só encontram significação completa nas obras dos seus sucessores. Sem K. Barth, sem Heidegger e Jaspers, o pensamento de Kierkegaard teria ficado parcialmente implí cito ou virtual; os próprios desvios que sofreu, ao ser submetido às congcminações dos existencialistas de hoje, permitem-nos apreender melhor a sua significação original. Corre-se, portanto, involuntàriamente o perigo de apre sentar o existencialismo de Kierkegaard, não só sob uma tonalidade ou aspecto menos exacto, mas até sob uma forma que poderá trair a sua originalidade. Entretanto, esse perigo, que talvez não seja possível afastar por completo, de tal forma a nossa sensibilidade filosófica se encontra afectada pelo novo clima — só vem sublinhar a actualidade de Kier kegaard, a perene intensidade da sua influência e o carácter sempre vivo do seu pensamento. Todavia, para bem com preendermos Kierkegaard, deveremos esforçar-nos por, apro veitando muito embora toda a luz que o existencialismo contemporâneo nos possa fornecer, fazer por abstrair dessas novas correntes filosóficas
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o que seguiremos o mais de perto possível os escritos de Kierkegaard através das suas Obras e do seu Diário (*). I
As origens do existencialismo kierkegaardiano
1. Falar das origens do existencialismo kierkegaar diano é abordar um plural discutível. Porque, no fundo, o existencialismo kierkegaardiano só tem uma origem, que é a realidade existencial de Sõren Aabye Kierkegaard , a sua personalidade concreta, o indivíduo que já era antes de se decidir a ser únicamente «Indivíduo» — esse indivíduo que (*)
Nas citações utilizaremos as siglas seguintes: JH : K i e r k e g a a r d , Die Tagebücher (Diário), atrsgewählt und über setzt von Th. H a e c k e r , 1923, T. n. Jpg: K j e r k e g a a r d , Journal (Extractos), 1832-1846, tradução F e r l o v e G a t e a u , Gallimard, 1941. A2: L'Alternative, 2.“ parte, trad. P.-H. T i s s e a u , Bazoges-en-Pareds, Vendée, 1940. CT: Crainte et Tremblement, trad. P.-H. T i s s e a u , ed. Montaigne, Paris, 1935. CA: Le Concert d'angoisse, trad, P.-H. T i s s e a u , Alcan, 1935. P S : Post-scriptum aux Miettes philosophiques, trad. P . P e t it , Gallimard, 1941. TD: Traité du désespoir, trad. F e r l o v e G a t e a u , Gallimard, 1932. (P.-H. Tisseau publicou, em 1946, uma nova tradução deste Tratado com o título de La Maladie à la mort, Bazoges-enPareds, Vendée). Existe desta obra uma tradução portuguesa de A. Casais Monteiro com o título O desespero humano, Livraria Tavares Martins. PV: Point de vue explicatif de mon oeuvre, trad. P.-H. T is s e a u , Bazoges-en-Pareds, Vendé^, 1940. EC: L'Ecole du Christianisme, trad. P.-H. T i s s e a u , Bazogea-eaPareds, Vendée, 1936. 3
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tomou o «Indivíduo» como tema central da sua doutrina. É certo que, no pensamento de Kierkegaard, devem ter actuado muitas influências exteriores e acidentais, que have mos de procurar definir. Mas é também certo que essas influências revestiram apenas carácter episódico e ocasional. Estas considerações poderão parecer supérfluas, visto que, no fim de contas, todas as doutrinas exprimem sempre, qualquer que seja o seu ponto de vista filosófico, uma dada situação na qual o temperamento do pensador conta como factor mais importante. Mas em Kierkegaard o caso é dife rente, porque o seu pensamento formou-se, não tanto por assimilação de elementos estranhos, mas sobretudo através de um profundo e persistente exame da sua própria persona lidade, através de uma luta de consciência, cada vez mais intensa e cada vez mais exigente, perante as condições, não já da existência em geral, mas do seu próprio existir. Nele, como em muitos outros, deu-se uma reacção do séu próprio temperamento, da sua individualidade concreta, como produto das influências que actuaram no seu pensamento — mas a sua filosofia é precisamente ele próprio, e ele próprio não for tuitamente e como que de certo modo contrariado (o que de resto é vulgar, ainda que muitos pensadores de tal se exi mam), mas é e/e próprio voluntariamente e sistematicamente, a tal ponto que o «existir como Indivíduo» e a consciência reflectida desse existir chegam a ser para ele condição abso luta da filosofia e até a sua única razão de ser. Sobre este ponto, insistirá Kierkegaard durante toda a sua vida de filósofo. Logo a partir do 1.° de Abril de 1835, ele afirma no seu Diário (2) que a grande questão é «encon trar uma verdade, mas uma verdade para mim, encontrar a ideia para a qual quero viver e morrer». É certo, acrescenta, que se terá de admitir a realidade de um imperativo moral. (2) JFg> pág. 31.
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Mas este imperativo, é necessário que cada um de nós o absorva vivendo e que, em suma, cada um de nós constitua com ele um todo uno para que ele seja apenas uma expressão da própria existência de cada um de nós. Desde então, Kierkegaard não mais pôde conceber uma verdade que de qualquer forma lhe fosse exterior, que pudesse ser apenas visão do espírito. A verdade é a própria vida que a exprime: é a vida em acto. Aqui se pode encontrar a explicação da luta que 4 Kierkegaard manteve consigo mesmo, luta que só acabou com a sua vida e que provinha da inquietação que sentia por não viver plenamente a verdade, por deixar subsistir um intervalo entre ela e ele, em lugar de se ajustar absolutamente a ela. Nisto se resume a questão da existência poética, continua mente posta ante a consciência de Kierkegaard e nunca cabal mente resolvida. Fazer um todo uno com a verdade; vivê-la em lugar de a pensar. Para este ideal é que deve tender um existencialismo coerente. Para corroborar mais este ponto de vista, poderíamos ainda recorrer aos numerosos textos em que Kierkegaard declara que toda a sua obra não é senão uma expressão da sua própria vida. Tomamo-lo como autor quando ele não é mais do que um ouvinte, como um escritor religioso quando é apenas «pregador para ele mesmo» (3). «Eu sou completamente ao contrário dos outros pregadores, escreve, eles falam para os outros, eu falo para mim mesmo». «Toda a minha obra, observa _ ainda no Post-scriptum (4) , gira sobre mim mesmo, única e exclusivamente sobre mim mesmo», e no Diário (5) insiste: «Tudo o que tenho produzido é unicamente fruto da minha educação». Os seus escritos fixam as diversas fases dessa (■) JH, pág. 68. (4) PS, págs. 419-420. (•) JH, pág. 70.
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educação, ou seja, desse esforço prosseguido sem desfaleci mento para se apropriar reflexivamente da sua própria ver dade e para se assimilar com essa verdade assim conquistada, suprimindo qualquer distância de si para consigo. Colocados neste ponto de vista, iteremos de admitir que o escrito, como Kierkegaard observou muitas vezes, é um sinal de fracasso, ou, pelo menos, o indício de uma empresa não acabada. A situação do orador ou do poeta é uma situação ambígua: o discurso é sinal de um desvio. Desde que se encontre realizada a perfeita coincidência do pensamento com a vida, já não há motivo para falar, escrever ou raciocinar. («Eu penso, portanto não existo», diz Kierkegaard, por oposi ção ao racionalismo cartesiano). Não há mais nada senão existir: a verdade é a própria existência, na sua realidade singular e incomunicável (pelo menos directamente). Ou, mais exactamente, é a consciência da existência coincidindo com essa mesma existência. As origens do pensamento de Kierkegaard constituem portanto, e finalmente, um problema de psicologia, num sen tido muito mais radical do que o vulgarmente admitido. Ora, para tratar deste assunto, é necessário em primeiro lugar pôr em evidência a profunda tendência de Kierkegaard, verda deiramente constitucional, para a reflexão e para a análise. Os génios, a quem uma necessidade irresistível prende cons tantemente ao estudo da sua vida interior (um Epicteto, um Agostinho, um Montaigne, um Pascal, um Biran, um Amiel) são, por natureza, se assim se pode dizer, existencialistas: a filosofia foi sempre para eles, segundo a expressão de Kier kegaard, como que uma «reduplicação» da sua personalidade concreta. O esforço que outros despendem em se esquecerem de si. empregam-no eles a conhecerem-se, esperando que desse conhecimento próprio, aumentado sempre em profundidade, virá o conhecimento do restante ■— do homem, do mundo e de Deus. Esta espécie de «autoscopia» toma, em Kierkegaard,
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proporções surpreendentes. Ele próprio chegou a declarar que era «reflexão do princípio ao fim» e que a sua perma nente ocupação era escutar o murmúrio dos seus pensamentos, fazer-se coincidir com o ritmo da sua vida interior. Logo no inicio da sua vida de pensador ("), em carta (talvez fictícia1) a Peter Lind, chama a atenção para a vantagem de se sentir um tanto abandonado por parte dos seus amigos. O silêncio deles, diz, é-me nitidamente proveitoso porque me obriga a fixar a vista no meu eu; porque rae estimula a apreender^ esse eu que é o meu; porque me obriga a manter-me fixo na infinita instabilidade da vida e a voltar para mim o espelho côncavo com que dantes procurava abarcar a vida fora de mim mesmo. «Esse silêncio agrada-me porque me sinto capaz desse esforço e com coragem para segurar o espelho, mos tre-me ele o que mostrar, o meu ideal ou a minha caricatura». Homem-problema para si mesmo, Kierkegaard nunca deixou de se interrogar e de se analisar a si próprio. Para ele, a filosofia resumia-se em tomar consciência, por forma cada vez mais penetrante, através de um profundo conhecimento da sua própria existência, das exigências absolutas de uma existência autêntica, A subjectividade tornava-se, assim, para empregar a sua própria expressão, o critério e a verdade da objectividade. Portanto, o existencialismo, para Kierkegaard, é, antes de mais nada, a forma de uma necessidade, a expres são de uma tendência tão acentuada que poderia servir para * definir a sua própria personalidade. 2. Deste modo se explica facilmente que Kierkegaard tão depressa tenha sentido e compreendido que o racionalismo hegeliano era precisamente o antípoda do seu próprio pen samento. Durante os anos que frequentou a Universidade»
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JFfl. pág. 30.
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insurgiu-se muitas vezes contra Hegel, que, então, sobretudo nos países escandinavos, pontificava por completo nos domí nios da especulação. A influência hegeliana estendia-se a todos os sectores intelectuais e a própria teologia de um Martensen se ressente fortemente dessa influência. E Kierkegaard depressa viria também a deixar-se seduzir pelo jogo subtil da dialéctica hegeliana: a lógica, para ele, tomou sempre foros de «apaixonante voluptuosidade». Entretanto, * depressa também se começou a sentir impressionado pela forma como o sistema se arrogava o direito de ignorar a existência ou, o que vem a dar o mesmo, de a engendrar racionalmente a seu bel-talante, como se se tratasse de qual quer vulgar conceito. Mas a existência não é susceptível de se deixar meter na forma! Kierkegaard, ao referir-se a este escândalo dos seus tempos de estudante, sublinha a fei ção cómica que reveste a atitude do «pensador objectivo e abstracto», isto é, do idealista tipo hegeliano, para quem a existência, na medida em que se permite considerá-la, se trans forma num objecto como outro qualquer (7). Esse pensador O Hegel ao qual se opõe Kierkegaard não é o da Fenomenologia do espírito (1807), (Cf. Jean H y po u t e , G enèse et Structure de la Phénoménologie de l'esprit de H egel, Paris, Aubier, 1946), mas o Hegel idealista de 1827, para quem a história não é mais do que o desenvolvi mento e a manifestação de uma lógica, visto que, entre as coisas finitas e o seu principio absoluto, a relação é essencialmente idêntica à que existe, numa dedução racional, entre o princípio absolutamente primeiro e as suas consequências necessárias. Explicar o mundo será, portanto, deduzi-lo a partir da Ideia (ou do Espírito Infinito), isto é, admitir que, estabelecido o Espírito Infinito, o mundo dele resulta necessariamente, com todos os caracteres que a experiência apresenta e toda a sucessiva variedade dos seres e da história. O sistema racional, sendo rigoroso, terá de exprimir a evolução imanente do absoluto indeterminado <— evolução que traduz objectivamente, através do jogo das limitações internas (ou dos seres fini tos), o que o Absoluto é subjectivamente e nos dá consciência dele nessas próprias limitações pelas quais explicita sucessivamente as suas virtuali(')
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idealista, ou racionalista, transforma-se portanto em objecto para si mesmo, isto é, deixa de existir! Para ele, tratar da existência, é precisamente aboli-la e negá-la, porquanto «ser sujeito» e «existir» são sinónimos. Para vincar o carácter sur preendente da operação racionalista basta dizer que é a sua própria objectividade que suprime o objecto. Porque o exis tente laz parte d o problema: é um dos seus elementos. Abstrair do existente é, portanto, mutilar a realidade e renegar a objec tividade. O objecto é um sujeito, ou, pelo menos, implica sempre o sujeito. O conhecimento do mundo >é primeiramente, ou antes, é, do princípio ao fim, conhecimento de si. Eis por que, diz Kierkegaard, se é muito fácil ser-se idealista em imaginação, já não é tão fácil ter que existir como idealista! Aí está «um encargo para toda a vida e um encargo extre mamente penoso, porque, em tal caso, é justamente na existência que encontramos o obstáculo». Exprimir, existindo, o que se compreendeu de si mesmo nada tem de cómico; mas compreender tudo, exceptuando-se a si mesmo, isso é intei ramente cómico (8). Para Kierkegaard, o que importa é compreender-se a si mesmo e compreender-se existindo e, se assim se proceder, ficar-se-á a compreender tudo. Para quê construir palácios magníficos, cheios de lógica e de cla ridade, se em seguida tivermos de dormir ao lado, no alpendre vizinho! Portanto, a posição existencialista de Kierkegaard expli ca-se bem, sob o ponto de vista lógico, como negação do racionalismo hegeliano. Sob o ponto de vista histórico e dades infinitas. A coisa em si é, portanto, o Pensamento ou a Ideia,
havendo identidade perfeita entre o real e o racional. Segundo a dialéctica das Ideias, o entendimento reproduzirá a própria ordem e a necessária sequência das coisas. Dialéctica e História são dois aspectos da mesma realidade. Ó PS, pág. 237.
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dentro de uma feição mais concreta, poderemos dizer também que ele se origina nas próprias delimitações do sistema hegeliano, como fruto da desilusão causada por esse mesmo sis tema. E assim, o existencialismo kierkegaardiano, apesar de todo o seu anti-racionalismo, terá, sob este ponto de vista, de ser considerado racionalista. De resto, foi pela mão do racionalismo que Kierkegaard se iniciou na especulação e é esse mesmo racionalismo que, a titulo de exigência insatisfeita, ainda subsiste no próprio existencialismo (9). De facto, nada está mais conforme com a doutrina de Kierkegaard que essa tensão dialéctica no seio do pensamento. «O ponto de vista contrário ao que defendo, ‘diz ele, encontra sempre em mim o seu mais acalorado defensor» (lü). A filosofia do Indivíduo e do Único aparece assim como «a 'decepção de um hegeliano fascinado pela ideia do Saber absoluto, que traz no coração a nostalgia do Sistema, mas que, descobrindo o existente e vendo que ele é irredutível, mantém a lucidez bastante para compreender que esse contingente é soberana mente interessante e importante» i 11). Deslumbrado com esta descoberta, Kierkegaard leva o radicalismo da sua oposição a rejeitar, não somente o racio nalismo hegeliano, mas ainda qualquer sistema, seja ele qual for. Um sistema, escreve, promete tudo, sem poder dar absolutamente nada (12). Tem de recorrer a postulados ou a intuições que escapam à demonstração e, no entanto, apre senta-se como integralmente racional, propondo-se substituir o facto ou a hipótese pelo absoluto do direito e pelo rigor {’) Cf. a nossa I ntroduction ò K i erk egaar dpágs. 55-70, e pág. 231 sg. (") JH, pág. 95. (u) R. V e r n e a u x , De 1’A bsurde, em R evue de Philosophie. 1946, pág. 167. (“) PS, pág. 8.
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da prova. O sistema desenvolve-se, portanto, na ficção e constrói-se de certo modo ao invés, a partir do tecto. O esforço para atingir a perfeição lógica elimina o sentido do real: tende sempre a lançar para a sombra e para o esquecimento o sentido do problema e até o próprio problema que suscitou o sistema. A moldura devora o painel; a dialéctica suprime o mistério, É assim que pensa Kierkegaard quando afirma que o sistemático se opõe à vida como o que está fechado se opõe ao que está aberto (13). Quanto à filosofia, Kierkegaard só a aceita desde que ela se afirme unicamente como expressão da existência. Ora, a filosòfia, por definição, procura o abstracto e, por isso, sempre que depara com a existência, vê-se obrigada a pen sá-la como abolida e como não-existente. «Há, diz Kierke gaard, uma luta de morte entre a existência e o pensamento». E essa luta dá-se porque » realidade pensada (e, portanto, abstracta) nunca passa de um possível. Por este motivo é que as construções racionais são susceptíveis de ser comparadas com as obras de arte: quer sob o ponto de vista estético quer sob o ponto de vista intelectual, «uma realidade só é com preendida e pensada quando o seu esse se encontra dissolvido no seu posse». No domínio da vida, consoante, por exemplo, admite a ética, dá-se o contrário: a possibilidade só se pode compreender quando cada posse é na realidade um esse (14). Assim se compreende que, da mesma forma que sistema e existência, também filosofia e existência se não possam pensar conjuntamente. A existência estabelece o mundo da contin gência radical; dá origem ao intervalo que mantém as coisas separadas; é princípio de pluralidade e não de multiplicidade quantitativa, não podendo, portanto, ser somada nem redu zida a um número; esfrangalha todos os sistemas. Ao mesmo H (“ )
PS, págs. 78-79. PS, pág. 217.
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tempo, leva a-filosofia a convencer-se da sua impotência: qualquer doutrina racional só poderá constituir-se como uma espécie de mágica num universo de possíveis, dentro do qual o movimento, a vida, a exisitência e até o próprio filósofo não passam de conceitos como outros quaisquer. Diremos, portanto, mais uma vez, que não há pensamento real sem ser existencial e vivido. Por outras palavras, o saber terá de formar, conjuntamente com o ser, apenas uma única e mesma coisa, 3. Convém referir agora a influência que mais profun damente actuou no pensamento de Kierkegaard, que mais fortemente modelou a sua sensibilidade, contribuindo, de uma maneira decisiva, para a génese do seu existencia lismo, Referimo-nos à influência do cristianismo, mas dum cristianismo impregnado de luteranismo. O cristianismo luterano adaptou-se tão bem à íntima psicologia de Kier kegaard que com ela quase se confunde, ficando nós sem saber se é Kierkegaard que é cristão se é o cristianismo que é kierkegaardiano. Aqui se encerra todo o drama da melan colia de Kierkegaard. O cristianismo duro e sombrio, angus tiante e terrífico, considera-o Kierkegaard como tipo do cristianismo vivido (ainda que, em páginas admiráveis, tenha também exaltado o seu carácter pacificador e estimulante). Terá esse cristianismo actuado como causa ou como efeito desse complexo melancólico que, durante toda a vida, pairou sobre a existência de Kierkegaard? Supomos poder afirmar quç actuou de ambas as formas. Como negar, com efeito, ~se é o próprio Kierkegaard que a invoca constantemente — a influência que a religião paterna nele exerceu durante os anos da juventude? Por outro lado, também não poderemos deixar de ter em atenção a monstruosa melancolia que de cada vez mais assediava a sua alma, incutindo-lhe, por vezes, ideias de suicídio e reflectindo-se tanto na sua concepção do
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cristianismo autêntico que, em certas ocasiões, ele chega mesmo a ver nesse cristianismo autêntico a própria expressão da «mais desumana crueldade» (10). Na mente de Kierkegaard manteve-se sempre a ideia de que «se retirássemos o pavor ao cristianismo, nos encontraríamos perante um cris tianismo de fantasia» (in). «Deus, diz ele ainda, é o teu mor tal inimigo». Devemos observar aqui que nada reforça tanto o sentimento da existência como a inquietação e a angústia. O homem, vivente e existente, prova-se muiito mais no sofri mento do que na alegria. Esta é sobretudo expansão e euforia e provoca uma espécie de dispersão cósmica. A alma angus tiada de Kierkegaard conciliava-se, portanto, sob este novo ponto de vista, com o cristianismo, que é princípio de exis tência vivida no temor e no tremor — e sentia-se, por outro lado, naturalmente inclinada a admitir, como regra (ou equa ção), que o cristianismo ou, mais exactamente, o «devir cristão» é o verdadeiro existencialismo. A filosofia, para Kierkegaard, consistia, no fim de contas, numa propedêutica da vida cristã ou, melhor, numa vivida consciência de todas as exigências do cristianismo , isto é, num permanente, pro gressivo e consciente esforço de acabamento de si mesmo à luz do ideal cristão, ou, então, na busca de um saber que terá de constituir um todo uno com o existir como cristão. Logo no início da sua carreira de filósofo, Kierkegaard estabeleceu acerca deste ponto um princípio que não mais haveria de renegar ou mesmo corrigir: «A Filosofia e o Cris tianismo, escrevia (17), nunca podem estar unidos. Porque, se tenho de defender aquilo que, por pouco que seja, há de essencial no cristianismo, isto fé, a redenção, terei também (“ ) (M) (" )
PV , pág. 61. PS, pág. 401. TD , págs. 231-233.
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de admitir que, desde que ela é real, terá naturalmente de polarizar toda a vida do homem. É certo que seria possível con ceber uma filosofia de acordo com o cristianismo ou tomando em conta o homem cristão. Mas isso seria uma filosofia cristã». A filosofia não se pode completar senão renegando-se a si própria, pois só se poderia completar pelo reconhecimento daquilo que ela não pode produzir, nem mesmo descobrir e compreender, ou seja, o existir cristão, fundado em categorias que nenhuma razão saberia deduzir. Portanto, desde que, como dissemos, temos de admitir que só a atitude religiosa, e mais precisamente a atitude cristã, com tudo o que implica de angústia e de dilaceração, é que, na realidade, se adapta à vida real do homem, também teremos de admitir que só um existencialismo cristão, ou antes, para fugir à fórmula abs tracta, só uma existência inteiramente apoiada no devir cris tão, é que poderá corresponder a um existencialismo coerente, fiel a todas as exigências de um existir autêntico. II As condições da existência
Depois de termos visto como e em que bases se originou o existencialismo kierkegaardiano, podemos agora concretizar as condições que o regem, encarando-as através daquele sen tido que o próprio Kierkegaard lhes conferiu. Para isso, não precisamos de entrar pelo domínio da abstracção. O existen cialismo nunca poderá ser uma teoria como outra qualquer, porque a existência não é, em si, susceptível de teoria. O exis tencialismo, para Kierkegaard, é apenas a expressão da sua própria vida e a única coisa de geral ou de universal que contém é a exortação que a todos nos dirige para que nos tomemos cristãos. A natureza deste existencialismo só poderá,
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portanto, ser definida em função das condições que são requeridas por um existir autêntico■— existir que se deverá iniciar, e intensificar seguidamente, por meio de uma reflexão capaz de fazer, de uma existência vivida, uma existência desejada e pensada, de um pensamento em acto, um acto pensado. Essas condições podem reduzir-se a três: a neces sidade do compromisso e do risco, o primado da subjectivi dade e a prova da angústia e do desespero. A. O compromisso e o risco. 1. Para podermos compreender cabalmente o que é o compromisso e o risco, teremos de partir da noção kierkegaardiana de verdade. Haecker (18) exagera-lhe a feição subjectivista, como se Kierkegaard alguma vez tivesse afir mado que qualquer asserção se pode ou não considerar verdadeira consoante a paixão com que é enunciada. Kier kegaard parece estar muito longe de dar foros de consagração a esta lógica passional — ainda que certos aspectos da sua doutrina corram, por vezes, o risco de nos levar a supor isso mesmo. É certo que ele admite um «imperativo do conheci mento», isto é, uma regra objectiva de pensamento, pelo mesmo motivo que há um imperativo moral (19). Mas esse imperativo, como também esclarece logo, deverá coincidir de certo modo comigo próprio. Pela vida, eu devo transformar-me na regra do meu comportamento, graças à esponta neidade da razão e do coração, que são conalturais da verdade e do bem. Cinicamente pox isto é que a verdade se tornará & minha verdade, porque não há verdade para o indivíduo senão
La notion de la vérité chez S. Kierkegaard, em Essais sur Kierkegaard, Pétrarque et Goethe (Colecção L e R oseau dw ) , (18)
Haecker,
Pion, 1934, pág. 9 sg.. (” )
JFg . pág. 31.
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quando ele próprio, agindo, a produz. Kierkegaard insistiu sempre neste ponto: o ser da verdade nunca poderá consistir no enunciado de um tema do pensamento ou no enunciado de um juízo teórico. Isto só seria possível se a verdade, como há quem pareça supor, fosse um objecto que se pudesse adqui rir (como se adquirem coisas no mercado) e possuir como uma coisa. Ora isso é inteiramente contrário à essência da verdade, que é possuidora e não possuída. Dizemos que a meditamos e que a contemplamos, mas, na realidade, ela é que nos contempla e nos acena. Ninguém se apodera dela; ela é que toma posse de nós e só existe quando nós nos dis pomos a ser a verdade. Ela exige absolutamente ser vivida. Vida e verdade coincidem (su). Pelo que acabamos de expor se compreende o motivo que levou Kierkegaard a ligar sempre o pathos (a paixão) à verdade e à existência. Quando afirma que qualquer verdade é apaixonada, quer dizer que, para ele, não há verdade que não seja vívida, que não há verdade que, como tal, não ponha em jogo tudo o que eu sou e tudo o que faço. A paixão é o que há de mais elevado na subjectividade e por consequência a mais perfeita expressão da existência (21). Da'qui a afirma ção em Crainte et Tremblement (22) de que «ias conclusões da paixão são as únicas dignas de fé, ais únícais que provam». A verdade não pode, portanto, procurar-se senão na paixão. Isto explica por que a verdade existencial teim necessàriamenfce um carácter dramático. Podeir-se-ia dizelr também, usando um termo familiar a1 Kierkegaard, que ela1 é essen cialmente dialéctica: implica o diálogo comigo mesmo, ou seja, o acto pelo qual eu elaboro a minha própria verdade, quando a assumo, e me crio a mim mesmo na acção, e implica ainda (") H (“)
E C. pág. 250. PS, pág. 132. CT, pág. 165.
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o estado de tensão que em mim provoca o risco que qualquer compromisso sério envolve sempre. Verdade, compromisso e risco estão, de facto, necessa riamente ligados. Não pode haver verdade para mim desde que eu não me disponha a tomar um compromisso e a arris car tudo. Recusar o risco é recusar a verdade. Os homens fazem grande alarde da's suas verdades. Quereis saber se eles crêem nessas verdades que anunciam e proclamam? — Vede como eles vivem; repairai se elles vivem a verdade levando-a até às suias última® consequências, sem qualquer evasiva ou subterfúgio, de onde, à última hora, passa vir a surgir um novo beijo de Judas (23). Estes pontos de vista levam Kierkegaard a fazer da fé, com o risco que ela comporta, o verdadeiro tipo da adesão sincera e do autêntico compromisso. A fé é para ele a ver dade por excelência, não só porque é verdade de Deus e não do homem mas também porque exige o mais alto grau de subjectividade. A incerteza objectiva — porque a fé é «o absurdo» — só me permite professar essa fé na paixão e no sentimento de que toda a minha existência no mundo, e até na eternidade, nela está interessada. «A subjectividade, escreve Kierkegaard, culmina na paixão; o cristianismo é o paradoxo; paradoxo e paixão podem-se juntar porque se con ciliam tão perfeitamente, como o paradoxo se concilia com o que existe em mais elevado grau» (24). B.
O primado da subjectividade.
2. De acordo com o que ficou expctóto, devemos con siderar a incerteza objectiva como sendo a condição da verdade existencial e, deste modo, tomar a fé como definição da verdade. Servindo-se de uma fórmula um tanto arrojada D H
CA, págs. 200-201. PS, pág. 152.
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(que parece justificar a interpretação de Haecker), Kierkegaard escreve: «Uma incerteza objectiva, intensamente vivida na mais fervorosa interioridade — eis o que é a verdade, a mais elevada verdade para um sujeito existente» (2B). Se colocarmos, entretanto, ‘este texto no sieu meio pró prio, encontraremos nele um sentido menos saibjectívfeta do que à primeira vista se poderia supor. Temos, efectivamente, a convicção de que, nessa afirmação, Kierkegaard queria dizer que a razão última, que me leva a aderir à verdade, a assumi-la sob forma de certeza vivida, nunca pode ser o seu valor objectivo. Só assim se explica que os homens estejam tão divididos entre si e que não consigam convencer-se uns aos outros. Kierkegaard faz notar que quanto mais a verdade objectiva, isto é, a massa das provas, aumenta, tanto mais a certeza diminui. «Basta ver Os extraordinários esfoirços metafísicos e lógicos que se têm despendido nos nossos dias para sê conseguir apresentar sobre a imortalidade da alma uma prova nova, integral, absolutamente exacta e entrando em linha de conta com as anteriormente apresentadas: e, no entanto, estabelecida que seja essa prova, a certeza 'diminui. O pensamento da imortalidade está dotado de tal poder, tem, nas suas consequências tal energia e na sua aceitação tal res ponsabilidade que é capaz de refazer a vida mas num sentido que também é de recear. Qualquer indivíduo, que saiba apre sentar a prova da imortalidade da alma mas que não esteja convencido dela, sentirá sempre angústia diante de qualquer fenómeno que o impressione e que o obrigue a penetrar o sentido da imortalidade para o homem» (26). 3. A certeza termina, portanto, na impotência .de demonstnvr. Não quer feto dizier que se idescure ou despreze (“ ) PS, págs. 134-135. (*) CA, pàg. 201.
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a objectividade. Mas ela não basta e até, em certo sentido, nunca nos determina. O que me determina é a concordância da verdade com as mais profundas exigências da pessoa, com essa verdade moral que é em mim o Indivíduo queteu sou e quero ser. Sob este ponto de vista, o tipo da verdade é efectivamente a fé, pois o que aqui me leva à adesão nem é a evidência, que é impossível, nem a verosimilhança, pois se trata do «absurdo», mas a minha decisão de escolher o que há em mim de eterno ou de infinito. Guardadas as proporções, pode dizer-se que qualquer verdade é deste género. Segundo Kierkegaard, a verdade e a certeza não andam a par. Histo ricamente, parece mesmo que estão em razão inversa uma da outra. De cada vez se generaliza mais o sistema de provar pela abstracção lógica ou pela demonstração metafísica: é que a certeza vai sempre decrescendo à medida que as provas se acumulam. A verdade não nos pode ser imposta do exterior! A certeza só pode derivar da prova da vida e da acção, por que não é a razão pura mas o próprio existente, e justamente enquanto existente, que crê e assume a verdade. A mesma observação se iimpõe quando consideramos a opção como sendo aquilo que distingue a existência. Para o racionalismo, a opção faz-se por si, sem qualquer difi culdade: quando, de facto, ste joga alpetnas com conceitos, todo se mostra claro e não há motivo paira acidentes impre vistos. Todavia, quando a vontade intervém, com tudo o que em si comporta de irracionail, as coisas já não se aipresemtaim tão simples: a paixão entra no debate; a opção, de problema abstracto torna-se dialéctica viva, na qtuad eu mesmo me encontro em causa. Eis por que nenhuma opção (quando há realmente opção) se pode fazer sem angústia. A opção è o sinal distintivo da existência. Existir é opção. Dever-se-ia dizer, mais exactamente ■ainda, que existir e escolher-se, porque, de facto, a opção recai unicamente sobre nós mesmos. Qualquer opção «externa» é função de
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uma opção interior, de uma1 opção pela qual me realizo a mim mesmo. O eu que me foi dado nunca é um eu completa mente feito, uma essência que se deverá actualizar, mas sim uma simples possibilidade. A existência precede a essência: eu sou, de certo modo, o artífice da minha própria essência e existo na medida em que completo essa essência. Ora isto não se faz sem risco , como vimos, e por consequência realiza-se pela opção , se bem que o acto de escolher e de escolher a escolha, isto é, de se escolher livremente a si mesmo, possa, por sua vez, servir para definir a existência. Kierkegaard esclarece que não se trata, aqui, de uma opção arbitrária. Liberdade não significa acaso ou (lança mento de dados. A característica própria do homem está em sentir-se obrigado a formular uma opção livre. A escolha é simultaneamente necessária e livre . Eu devo escolher aquito que escolho e nunca o escolho 'tão livremente senão quando vdjo que não posso deixar -de o escolher (por exemplo, no momento da morte, em que a opção recai sobre o único necessário) (zr). Com estas fórmulas abruptas e paradoxais, devemos entender apenas que a opção ê, de facto, necessá ria) e livre, mas com senltidos diferentes: necessária, no semtido de obrigatória, e livre como não sendo constrangida. Ora, qual será. então, a necessidade, ou a obrigação abso luta, que determina a opção que temos de fàzex? Responde Kierkegaard: o eu deve absolutamente escolher e escolher-se conforme o que nele há de infinito e de eterno. 4. TaJ é o motivo por que devemos dizer que só é exis tência autêntica a que se identifica com um estar «.diante de Deus» (28), isto é. a que está ligada ao transcendente e ao absoluto. Efectivamente, a subjectividade, à medida que se (») JH, págs. 139441. (“) TD, pág. 165 sg.
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torna mais profunda, aparece-nos oomo função de um outro absoluto. En cher-me do stentido do meu eu pessoal, isto é, do sentido de existir, é necessariamente ultrapassar e cotmo que superar o en pessoal, porque é passar para além do espaço e do tempo e, em virtude da mesíma intensidade do instante vivido, instalair-se de certo modo no eterno. Kierkegaard retoma aqui, sob modalidade nova, o tema fundamental dfe Santo Agostinho: Deus, interior intimo meo et superior summo meo. Redi in te. ibi habitat Veritas. As coásas do mundo, quando muito, chamam a atenção. O seu papel é levarem-me à descoberta ’die mim mesmo, por meio de provações, da angústia e do desespero que a sua variedade e caducidade fazem nascer em mim, e, obrigamdo-me a debruçar sobre mim, revelarem ao meu íntimo esse Absoluto sem o qual eu não seria para mim senão sucessão reprimida e descontínua, mens momentanea. Pairece que estamos a ouvir Spinoza'. Sentimus et expe~ timur nos aeternos esse. A comparação terá, porém, de ser afastada porque, para Kierkegaard, a experiência do Absoluto nunca se pode consumar na imanência do panteísmo. Ela é, com efeito, paradoxo e mistério, ao passo que o eterno, ao qual nos leva a subjectividade, torna-se por si histórico e temporal. A transcendência, à qual me sinto ligado e contra a qual, simultaneamente, vou chocar existindo, é sempre a do Paradoxo absoluto, que é o Homem-Deus — Cristo. Ê na minha relação com ele, que delvie ser contemporaneidade vivida, que eu me complelto no que há em mim die etletmo e alcanço a felicidade. O mistério a que nois etsiüamos reífericndo (e que enicerra o que há de mais íntilmo no siofrimieintio religioso), é justamente o de uma Transcendência absoluta que, como tal, não tem necessàriaanente nelação com mais naida senão consigo, e que, não obsitawte, não exisitie para mmn senão na relação que eu tenho com el'a. Graças à consciência desta relação paradoxal, eu realizo .. com a intensidade da paixão.
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a plenitude da interioridade. Entre a subjectividade e a objecti vidade dá-se uma confluência perfeito: o contacto com o transcendente (contacto vivido e não pensaido, parque ele é essencialmente não-saber) faz-me atingir e viver a'o mesmo tempo o meu próprio absoluto. Tal é o mistério do «perante-Deus», ou, mais exactamente, como sie exprime Kferkegaaird, o mistério do «perante-Cristo» (20). Daqui se segue que as «ciências do homem» (no sentido em que Pascal tomava esta expressão: filosofia, moral, polí tica) só se podem constituir desidíe que sejam tomadas em conta todas as condições históricas do destino humano: pecado original, Incarnação e Redenção — e que a existência autêntica não se pode compreender senão em relação com o cristianismo ou, miais exactamente, com o facto «de existir nele » (30). Gomo toda a existência, que é tensão e pathos, o existir cristão deve juntar os contraditórios. A existência cristã > estende-se à eternidade, mais completa,-sie no instante: ela é expectação e opção, êxtase e reflexão, risco e ganho, vida e morte, futuro que reaparece como passado, passado que se projecta no futuro, contacto e conflito; tensão constante entre o finito e o infinito. O existente encontra-se, portanto, colo cado num estado em que os extremos opostos se apresentam sempre juntos, na sua própriiai opostíção. É assim que eJe conhece simultâneiamente a inquietação e a paz, sietodo a sua paz feita justamente da sua inguMação, como a inquietação é o fruto da paz. Este o motivo por que escolher é sempre para e!e saltar para além de tadais ais veroisdimilhanças racio nais, transpor os abismos da razão abstracta, arriscar tudo incluindo a sua própria pessoa, afirmar, numa opção solene (que terá de ser constantemente renovada), a verdade do H H
TD, pág. 224. PS, pág. 255.
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eterno, afirmar-se a si mesmo, e no próprio instante, como eterno. Eslfca é, pois, 'a verdadeira filosofia e a vendaideira sabedoria. Acostumámo-nos a considerar uma e outra através de uma especulação sàbiammte ordenada, por meio de conceitos bem deduzidos e entrelaçados, segundo os diversos cânones do método racionalista. Mas quem não vê que procedendo assim nos encontramos fora da vida? Não basta que a espe culação se ordene à acção: é necessário ainda que ela seja prática e eficaz. Ora a praticai, aquela que defime a acção do Indivíduo com todas as circunstâncias reais que comporta, essa prática não atende a conceitos: é feita ide akernativtas, de crises e -de saí tos; inclui o pró e o oonibra; faz intervir opções que desconcertam a lógica abstracta. Quanto à efi cácia, nunca a podeireimos encontraír num discurso que sie dirige apenas ao espírito, porquanto o que está em causa não é a simples existência, mas a minha existência, aio que ela pctô»ui de singular e 'de único. Portanto, se a filosofia deve ser, no sentido socrático, busca da sabedoria (e para nós não pode ser senão busca da sabedoria criisitã) — é necessário que ela nos ensine a airte de ser, não u'm «pensador», maisi alguém, um Indivíduo. 5. Kierkegaard alonga-se em considerações sobre os meios de podermos vir a ser este Indivíduo, que é para ele sinónimo de existente. Tornar-se um indivíduo, observa ele, não é muito difícil: compreende-se bem que o homem, ao con trário do animal, não queira encontrar o seu fim na espé cie (S1). Isto, porém, não é senão o começo. Na verdade, o que interessa é tornar-se, de facto, «o Indivíduo», e para isso é preciso que cada um seja, ao mesmo tempo e no mesmo senn
JH, pág. 426.
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tido, o Único entre todos (o extraordinário e o excepcional) e, por outro lado, que seja toda a gente. Singular e universal: tal é o verdadeiro existente e tal é a dialéctica do indivíduo na ambiguidade do seu duplo movimento. Daqui se segue imediatamente que qualquer relação entre existentes será sempre uma relação entre sujeitos. Entre objectos só pode haver contactos mecânicos e nurnca «rela ções». O eu só é um sujeito através da reflexão que lhe permite tomar posse de si e, simultaneamente, conquistar e alfirmar a sua liberdade. Qual o meio de que ele se servirá paira exercer influência sobre outrio sujeito, colocado diainte dele como existente e, por consequência, considerado também coimo uma capacidade de reflexão e de liberdade? Tem apenas um meio que é formular a escolha, isto é, estar diante de outrem como uma opção viva — e espera'r doesse outrem qtue um idêntico redobr-annento e uma idêntica -liberdaide con dicionem uma escolha que o faça, par sua vez, um sujeito. Quailquer relação de influência é, portanto, necesisíàriaimiente, do tipo «tu e eu» (52). Diálogo e interrogação mútua, num frente a frente próprio da amizade. Comunicar com outro é fazê-lo existir. Mas fazê-lo existir é também fazer-se existir a si próprio. Magnífica emulação em que caída um tanto mais ganha quanto mais dá! Cada qual fica o meslmo quando sfc opõe ao outro, que não é ele; em todo o -oaiso, senti'r-sc-á máis cheio da sua própria personalidade à -medida que acolhe a de outrem e que corresponde ao seu chamamento. Aqui, a distância é aproximação, o intervalo é contacto, & dualidalde é unidade e a unidade é distinção. Para diar todo o valor a eisCe existencialismo, que se com pleta dentro da ideia crisitã, Kierkegajaird esclarece que o objecto, para o crente, não tiem a -mesma significação que
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EC, pág. 286.
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reveste para o síimpks Indivíduo socrático. Essie objecto, perante o qual o crente se cüloca (a fé implica sempre, como vimos, um «perante Deus»), despoja-se, de certo modo, da sua objectividade, uma vez quie é Paxaidoxo e Absuscido. (Dá-se o mesmo que em relação ao sentido da vista: aquilo que esitá totalmente privado da luz não é objecto). Deus não é para mim nem objecto, nem conceito, nem coisa, mas uma Pessoa e um Sujeito, Alguém, o « Tu » em frente de mim, e é isto mesmo que nos permite compreender que se «a exis tência produz a paixão, a existência pairaidoxaâ produz o paroxismo 'da paixão» (8S). Esitie Suijeito infinito tem de ser, seguramente, o Transcendente. Mas o abismo pode ser trans posto pelo amor (3i). C.
O desespero e a angústia.
6. O desespero e. a angústia caracterizam, finalmente e por forma de certo modo infalível, o existente. A filosofia de Hegel e o radonafcmo em geral esbarram sempre com esta realidade existencial; a culpa, a angústia e o desespero não encontram assimilação nessas doutrinas. É certo que elas tentam explicar a sua realidade empírica, mas ao racionalizá-los truncam-lhes a cada passo o sentido. São as filosofias da felicidade, segundo as quais a infelici dade da consciência encontra a sua própria consolação no facto de descobrir o seu lugar necessário e a sua função no todo. Existir é sofrer necessàri&mente o desespero e a angústia, ligados uma e outro à realidade e à possibilidade da cuipa. De resto, pelo simples facto die o Indivíduo se sientii na
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PS, pág. 238. JH, págs. 392-393.
fr*
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obrigação de escolher, e de se arriscatr quando escolhe (e o risco, tratando-se do Pairadoxo, recai sobre o todo), deve desesperar. São muitas as vias quie levam ao desespero e nem todo o desespero é fatalmente condição de salvação. O deses pero que salva é o que é a negação absoluta e definitiva do finito . Como tal é a porta da grandeza, porque quem escolhe o desespero escolhe-se a si meSmo no seu vaiar eterno (85), isto é, arrisca tudo o que é finito nessia jogada paradoxal. Ê impossível escapar ao desespero. A ausência de deses pero equivaleria, rigorosamente, ao nada. Quem diz desespero, diz consciência, espírito e reflexão, visto que a escolha se impõe necessariamente e, para escolher o eterno, temos que desesperar daquilo que somos e ido que temos na ordem do finito. O homem, de qualquer maneira qu'e a si se enoare. esbairra sempre com os seus próprios limiltes; verifica e sente que o mundo inteiro não o pode completar e que também não pode completar-se a si mesmo. A sua existência ou con siste na sua relação com o transcendente, relação absoluta com o absoluto, ou então não é nada. A angústia é a forma que toma essa consciência e o desespero é o tetrmo a que ela conduz. Como tal, o desespero desarraiga o homem de si mesmo, corno ser finito, e entrega-o a si mesmo naquilo que tem de eterno. É certo que o homem polcLe itambém fechar-se dentro de si mesmo, entrincheirar-se no segredo da sua miséria e.. desesperado, escolher-se. Neste casio, o desespero torna-se um «contra Deus»: desespero demoníaco que ora é desafio, ora se apresenta como ausência1ide desespero. Mas há também um desespero saudável e salvador, distintivo de uma humanidade que simultaneamente se reconhece finita e infinita. É a porta que se abre para a transcendência do ' Absoluto; faz-nos penetrar no eterno. Pnotvoca o despretndi(“ ) A2, pág. 187. 0
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mento e o salto, graçais aios quais o homem ultrapassa, como vimos, os seus .limites, enche-se da siua verdade e existe verdadeiramente e plenamente. Desita forma, o desespero cresce eim profundidade com a consciência', oomo também a consciência' aumenta em intensidade com o desespero. O desespero é portanto ambíguo e dialéctico, como todas as coisas do homem. Gonduz a V i as divergentes. Tudo depende da maneira como cada um desespera . Se o desespero se malogna ao produzir um rompimento no íntiimo da alma, levando ao endurecimento, estamos perdidos; é a morte, mas uma morte em que não se acaba de morrer. Se, pelo contrário, o desespero força & alma a concitar ois seus últimos recusrsos, a «'desesperar em vardiade», isto é, absolutamente, então desperta nela a consciência db seu vailotr eterno. Importa, pois, desesperar em verdade: é Isto que caracteiriza aquele existente que atingiu o ponto culminainte do pathos exis tencial. 7. A angústia é coisa muito diferente. Conquanto o desespero esteja ligado ao fracasso e déle resulte, a angústia precede o pecado e está ligada à possibilidade e à liberdade. Caracteriza também a existência1e serve até paira revelar ao existente o 'seu ser.‘ Desde que, ide facto, o que é dado não é o eu, mais somente ai possibilidade do eu (86), caída um de ' nó® sentir-se-á colocado diamte do nada e como que debruçado sobre o vácuo. Vertigem diante do que não é, mas poderá ser pelo uso de uma liberdade que não se experimentou e que não se conhece, a angústia do espirito assiemelha-se à ver tigem física, naquilo que ela sim-ultâneamente encerra de ‘ temor e de atracção, ide simples vislumbre da possibilidade e também de fórrível encanto (S7). Espécie de antipatia sãn-
n JFg, pág. 125. (” ) JH, pág. 52.
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pética ou de simpatia antipática, a angústia é desiejo do que se teme, temor do que se deseja1. É nesita' mistura de coisais opostas, cheia de mágica fascinação (o emoaintaimento 'da serpente do Gênese) que tem lugar o primeiro petcado e é por isso, observa Kierkegaard, que ele se afigura falto de responsabilidade ■— e essa falta é preciisamemite o que lhe dá sedução (a8). Nenhuma vida humana se pode eximilr à angústia que, assim, passa a ser, juntamente com o desespero — aquela anterior e este posterior à liberdade ■—’
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JFg, pág. 152.
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III A Filosofia Existencial
1. Expusemos nas suas linhas gerais o existencialismo kierkegaardiano. É agora a altura de procurarmos saber se ele deverá ou não ser considerado como uma filosofia. Para isso, convém que tenhamos ipresentie não só o princípio em que assenta, mas também a maneira como Kierkegaard o interpretou, isto é, .precisamos 'de encarar a própria doutrina, sob a forma concreta que revestiu. Vimos que, em princípio, Kieirkegaaxd nunca aldmitiu que o ponto de vista existencial pudesse vir a constituir um corpo de doutrina formando sistema, ou, usando a expressão de Berdiaeff, uma teoria sobre a existênoia. Esitie o motivo que o levou a querer mianter~s!e sempre no plaino concreto de uma análise existencial que interessasse apenas a sua própria subjectividade. Insistiu também na ilmpfolstsibi'líid(aíde de uma «comunicação directa» desta1 subjectividade:: a existência- é inefável, como o Indivíduo, com o qual ela se confunde. Só pode efectuar-se a «comunicação indirecta», que etm si mesma não é mais do que um apelo dirigido a alguém para que, solicitado pelo meu existir concreto, tal como o «traduzem» (no sentido próprilo da palavra ) ai minha vida, os meus aictoe e as minhas obras, esise alguém se 'decida a seir ò fatidivíduo e o Único. Este princípio sfâmprie o aceitou Kaerkegaaapd. Do que sie pode duvidar ê que ele o tenha respeitado sempre no seu rigorosio e absioiluto sentido. Os próprios títulos de vária® das suas obras já são um indício claro 'da1patssaigiem da análísie exisitencial à filosofia da existência ou ao «existencialismo». Assim sucede, por exemplo, com o Conceito de Angústia e com o Tratado do Desespero, que pressupõem, evidentemente,
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a sistematização e a universalização indispensáveis para tor nar inteligíveis e comunicáveis os dados da atnálíse existen cial Con-tra os sieus princípios, Kferkegaa-rd põe-se a filosofar, isto é, passa para o plano do conceito e do sistema, e, con sequentemente, para o campo da abstracção e da generalidade. E isto que acabamos de dizer deve ser generailizado a uma boa parte da abra de Kierkegaiand e, assim, encontraremos explicação paira a censura-, que ele próprio c omsta-nitemen-toe dirigia a si mesmo, de tratar as realidades da existência- como poeta e orador. É certo que ele pretende manter-se sempre fiel ao seu princípio, decla-raindo que as suats exposições se destinam a ser transformadas pelo leitor em verdades pes soais e vividas. Mas isso não impelde que o abstracto e o universal sirvam de intermediários entre o autor e o lleiltor. Não é possível haver entre ambos verdadeira comunicação senão por meio ide uma- «Moisófia», isto é, peiai via do conceitct —■e embora essa- comunicação seja indirecta, nem por isso deixa de ser uma- «comunicação». Sob este aspecto, não nos oferece Kie-rkegaard uma- filo sofia organizada e concluída (como é, por exemplo, a de Jaspers, embora sofrendo da mesma contradição internai), mas apenas elementos fragmentários de uma filoisòfi-a- exis tencial. São de lembrar aqui as admiráveis análises do deses pero e -da angústia, do gozo estético e da vida étiica, ,das condições da vida religiosa, do compriomisso e do risco, dia liberdade c da escolha. Mas todos estes trabalhos estão longe de constituir um todo completo. É certo que poderiam ser coligidos os principais pontos de vista de Kierkegaard sobre os diversos estádios da existência; isso, porém, nunca pas saria de uma reconstrução mais ou merios arbitrária. 2. Pelo que fica exposto, já podemos availiar da pro priedade que assiste à expressão «existencialismo kierke-
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gaardiano». Deveremos observar agora que a palaivra «filo sofia» teim, para Kierkegaard, um sentido muito especial. Quer por decisão voluntária, qufer, maiis provàvelmente, pela força das circunstâncias em que decorreu a sua vida, Kierkegaard procurou, de facto, apresentar um método de vida e não uma doutrina filosófica. O seu tema funda mental é o do Indivíduo, daquele indivíduo que devemos procurar vir a ser e que Kierkegaaírd faz coincidir com o «devir cristão». Para a religião kierkegaardiana, como para a vida moral tomada na sua mais elevada acepção, a única coisa que interessa é o aperfeiçoamento e o profundo conheci mento da personalidade, uma vez que só «o Indivíduo» existe. Por esta razão, à doutrina de Kierkegaard caberã melhor a designação de «método existencial» do que a de «filosofia existencial», a não ser que consideremos a «filosofia» como sendo apenas uma forma iou instrumento do método, um meio e'n,tre outras e não um fim •— porque tudo se refere à prática e à vida. A «filosofia», para Kierkegaard, não é uma ciência especulativa, mas sim «ciência prática», dentro daquele sen tido itécnico da expressão que se emprega, por exemplo, para definir a fítica. Como conclusão diremos, em primeiro lugar, que uma filosofia existencial tem de partir sempre do Indivíduo, que é a própria realidade, na sua plenitude ontológica. Os dados, quie unicamente podem valer para ponto de partida, são os que se enraizam na existência concreta, que é necessariamente a minha ou a tua e não a de «toda' a gente» (o que, de resto, não teria ’sentido algum). Na investigação existencial deve, por isso, ter-se sempre presente não atpenais a existência, que ainda é um abstracto, mas também o exisitenite e o Indivíduo, que é concretamente uma história, isto é, tema sequência de acontecimentos que tomam realidade e continuidade não só peilo facto de serem assumidos por mim mas também porque
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a sua necessidade se mudou em 'liberdade (36). Isto equivale a dizer que, se quisermos pensar a existência e transformá-la, porftanto, em conceito (o que é inevitável, uma vez que «filo sofar» é passar necessàriamente, quer se queira quer não, para o plano do conceito e do sistema), temos que referi-la sempre às experiências singulares, donde 1'he vem a sua significação e a sua verdade, as quais excedem, como tais, qualquer saber objectivo, qualquer expressão geral e abstracta. Em segundo lugar, a filosolfia tomada neste sentido deverá ser sempre, para cada um de nós, não apenas um sistema objectivo, que se olha de fora como quem olhai para uma torre, mas uma realidade viva, que seja ao mesmo tempo símbolo e ocasião de uma vida ou de um existir pessoais, uma vez que não há verdade senão na apropriação e na subjecti vidade. Não existimos para filosofar, mas filosofamos para existir. A filosofia não será nada sic não for siimultâneiametote a expressão da vida e o meio de que nos servimos para a viver. Tal é a mensagem de Kierkegaard: um método de vida ou, antes, um método de pensamento que se acomoda às exigências da vida. Assim entendido, o exiisltemciatemo não poderá ser considerado como uma doutrina, conresponderá antes a uma orientação para aquilo a que chamaremos, ootm Gabriel Mareei, uma «filosofia concreta», ou seja, para uma investigação da personalidade espiritual, através da qual possamos apreender, no universal, o singular e, na' própria1 contingência individual, o Absoluto -— esse Absioluto que unicamente lhe pode transmitir valor e sentido.
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A2, pág. 223.
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N I E T Z S C H E
1\ 1 Ão há dúvida nenhuma que a influência de Nietzsche * foi ainda mais acentuada que a de Kierkegaard, embora na obra nietzschiana não se encontre enunciada qualquer teoria existencialista. Os escritos de Kierkegaard mantiveram-se praticam ente desconhecidos durante toda a segunda metade do século xix. As ideias de Nietzsche pude ram, assim, antecipar-se às de Kierkegaard, com profunda repercussão nos meios contemporâneos. Poderemos mesmo afirmar que a aceitação qu'e a doiultrina de Kierkegaaid viria a ter, depois do estuido a que foi voltada na França e na Alemanha, se deve em grande parte à forma como os temas nietzschianos haviam predisposto os espíritos e suscitado nos filósofos a ideia de procuraram um novo caminho fora do ideaiismo então reinante. Todos os exfeitCncialliístas pensam desta maneira, nomeadamente Heidegger e Jaspers. Que terá contribuído, portanto, para que Nietzsche seja tomado como um dos precursores do existencialismo?
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I Pensamento e existência
1. Ao compararmos Nietzsche com Kierkegaard deve mos ter primeiramente em conta que ais ideias, tanto de um como do outro, reflectem a personalidade de cada um deles. Eslte retratamento da personalidade, através das res pectivas ideias, toma para ambos a forma de exigência fundamental, que Nietzsche eleva ao mais alto superlativo e que Kierkegaard considera como o predicado mais caracte rístico de uma doutrina existencial. Nietzsche chegou mesimo a declarar, em termos idênticos aio do pensador dinamarquês: «Escrevi os meus livros com o meu próprilo sangue» e um dos temas em que mais insiste é o ide que o pensamento e a vida se condicionam entre si tão intimamente que só chegam a ser inteligíveis através um do outro. Assim como os escritas de Kierkegaard correspondem às fasies da sua educação e às sucessivas expressões da sua hisitória, assam itambém a fiilosdfia de Nietzsche não é sienão a expressão ida' sua vida e a tradução do seu mais íntimo drama peSsoal. E é is'to, que poderia passaT como simples facto seím consequências, qu:e constitui, tanto para Nietzsche como para Kierkegaard, a forma necessária da filosofia autêntica. Paara eles, o pensa mento só vaile na medida em que, irrompendo da própria existência, compromete por completo a vida e aceita todos os riscos desse compromisso. Quando veisa este tema, Nietzsche retoma, sem ter conhecido o seu predecessor, os sarcasmos kierkegaardianos contra o «pensador puro» que pretende subtrair as suas especulações àsi contingências 'dia exísitência individual e do meio histórico. Fusitiiga, com a saia ironia, esse intelectual descarnado, devoto 'do «conhecimento
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sem mácula» (1) , que designa por «homem teórico» e que ele também pretendeu sei na juventude {como Kierkegaard no tempo do seu fervor hegeliamo). Não tem dificuldalde nenhuma em demonstrar que todas as filosofias do absoluto intemporal são função das situações concretas em que elas se desenvolveram. A sua sem-razão esltá em se envergonharem deisisa dependência e em renegarem esses laças cairnais, o pesio da terra que em si comportam, o calor vi'ta'1 que 'lhes dá valor e sentido. Parque uma fiilosolfia não pode s!er sfenão um pensamento que se forja na1inquietação e na angústia, através das vicissitudes da existência' individual. A filosofia só pode vailer pela vida, na qual mergulhai tadasi as su'as raízes (2). Tadas as doutrinas existenciais retomaram este tema fundamental de Kierkegaard e de Nietzsche. Segundo elas, a filosofia é, primeiiro que tudo, uma experiência, e, se Heidegger e Sartre pretendem construir uma ontologia sobre essa experiência, esta permanece sempre comio basie necesisária da especulação. O próprio JaSpers, que se aproxima maás de Kierkegaaind e de Nietzsche, diz que a filosofia não é em sentido rigoroso senão essa própria' experiência no que (*) A lso sprach Zarathustra, n, Von der unbefleckten Erkentnis (Krõner, p. 132), (2) M enschli ches, AUzumenschli ches, i, 292: «Dá à tua própria vida o calor de um instrumento e de um meio de conhecimento; procede de forma que tudo o que experimentas ~ ensaios, falsas manobras, erros, ilusões, paixões, teus amores e tuas esperanças — tudo isto te conduza ao teu desígnio... Quando o teu olhar for suficientemente penetrante para atravessar as sombrias origens do teu ser e do teu conhecimento, talvez possas então ver aparecer nelas, como num espelho, as estrelas longínquas das culturas vindouras... É tempo, e não te espantes se os nevoeiros da morte se aproximam. A caminho da luz ~ tal deve ser o teu último movi mento; um grito, uma aclamação ao arroubamento do saber — seja a ta« derradeira palavra!». 5
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ela tem de mais individual e de mais comcrelto. Ninguém como Nietzsche levou tão longe a1sua. fidelidade a este modo de ver. Nunca defendeu a «objectividade» e aceito as contra dições que correspondem, de certo modo, a momentos da sua história. A coerência sistemática é, simultánea mente, para ele, uma ilusão e uma absurdidade. Não é sòmente a1vida, mudança contínua, passagem incessante do pró ao contra, que se opõe a essa sistemática; o sentimento das complexidades da exis tência não admite também a lógica rígida dos sistemas. A realidade é feita de oposições e de conflitos; mostra sempre aspectos em que é inesgotável; qualquer afirmação provoca uma negação e qualquer negação implica uma afirmação. Ê unicamente esta multiplicidade de ponltos de vi's'ta apostos que pode dar, em profundidade, a dimensão da vida e da história e tornar apreensível, na sua verdade dialéctica, a experiência interior do existente. Eis também o motivo por que Nietzsche apresenta' cada um dos steuis escritos sòmente para um dado momento dessa' dialéctica vivente, a qual nunca se pode considerar ligada às suas formas passadas. Como Kierkegaard, ele sustenta que todos esses livros devem ser antedatados, porque se viver é ir para a frente, pensar é vir sempre para trás.
II Verdade e valor
2. Tudo isto implica uma noção nova de «verdade». Esta desce, se assim se pode dizer, do seu céu métafísico e Jógico para se instalar no plano psicológico e moral. A verdade já não é coincidência do pensamento com o absoluto, subtraído este às servidões do espaço e do tempo, mas uma forma de crença, uma opção pessoal, uma escolha vivida. A distinção
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clássica entre o verdadeiro e o falso deixou de ter sentido, porque as asserções não são nem podem ser senão expressões subjectivas da personalidade concreta e, por isso, inteiramente válidas em todos os casos, desde que se renuncie à ilusão da «objectividade» e desde que se tomem as «verdades» apenas como ficções susceptíveis de traduzir a experiência e a exis tência. Nietzsche veio a insurgir-se tràgicamente contra este problema da verdade, quando compreendeu que a solução que lhe dava implicava uma transformação total da escala de valores. Se, para ele, não há «céu da verdade», é porque não há um Deus que dê fundamento (à estabilidade e à perenidade. A «morte de Deus» que Nietzsche proclama nos seus últimos escritos equivale à total e definitiva ruína do absoluto. O mundo é humano; a história é humana; o homem é homem e somente homem. Os «inquiridores da verdade» vêem-se desapossados do seu domínio de eleição, »porque já não há verdade mas tão sòmente o homem, que não permanece, mas evolui. Qualquer moral é portanto a forma contingente e vitalícia de um «devir» histórico jamais acabado, cujo termo infinito é esse Super-homem que tem como característica ultrapassar-se sempre a si mesmo. O homem nietzschiano corresponde verdadeiramente a esse «ser das lonjuras» de que hão-de vir a falar Heidegger, Jaspers e Sartre e que, não repousando senão em si, deve escolher-se a si próprio, tendo como única finalidade saltar constantemente para além de si mesmo. O Super-homem é um fuituro que nunca se pode alcançar, e, na ruína de todas as verdades e sistemas, a única verdade que subsiste é a que afirma o homem, e por isso o define, como sendo um impulso e um salto para um possível que lhe foge sempre numa fuga eterna. 3. Devemos, então, renunciar à moral? Em Nietzsche encontram origem todos os sarcasmos com que Heidegger
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fustiga o impessoal «se» e com que Sartre zurze o «sério». Mas o que Nietzsche pretende é fundar uma nova moral nos escombros da antiga. Moral dos fortes, isto é, dos que com preendcram a vaidade das morais «burguesas» e c/as lógicas por medida e dcs que, na noite da angústia, se resolvem: a construir o homem do futuro. À «moral dos escravos», que é servidão e rotina, opõem eles a moral do Super-homem, que é liberdade e criação de valores. Em todas as doutrinas exis tenciais, repercutindo o eco de Nietzsche e de Kierkegaard, encontraremos estes mesmos temas, que se caracterizam pela preocupação de encontrarem uma ética nova que, orientada inteiramente num sentido relativista, possa dar nova expressão ao valor e, por isso mesmo, operar uma verdadeira «reavalia ção» de todos os valores humanos. O problema da valoriza ção aparece, assim, como problema central destas doutrinas. Todas elas, incluindo a de Heidegger, são intencional e eèsencialmente éticas. Por último, devemos dizer que Nietzsche não apresentou, de facto, nenhuma moral positiva, ou antes, que as suas teses neste domínio são tão diversas como contraditórias. A única asserção, que persiste em todos estes temas em conflito e que lhes dá unidade, é a de que a verdade moral consiste em ultrapassarmo-nos constantemente a nós mesmos. Este ultra passamente de nós próprios podemo-lo, entretanto, considerar como uma forma de coincidência connosco mesmo e, por consequência, como um aspecto dessa sinceridade e dessa lucidez que Nietzsche incessantemente reivindicou, uma vez que o homem se reconhece sempre futuro, para lá de si mesmo, e se perde encontrando-se, não se podendo encon trar senão perdendo-se.
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III A angústia existencial
4. Compreende-se facilmente que tudo isto se não possa dar sem angústia. Nietzsche e Kierkegaard aparecem-nos como os heróis da angústia, e é pela conjugação da vida e das obras de ambos que o tema da derrelicção, ou do abandono, surgirá em todas as doutrinas existencialistas. 'Em Nietzsche, porém, este tema reveste aspecto particular e tem, na sua vida, diversas origens. Primeiramente (e este primeiramente deverá ser tomado apenas no sentido cronológico) Nietzsche ' considera a angústia como exprimindo o paradoxo da exis tência individual, que é o grande e insondável mistério —■ porque o real é constituído, antes de tudo, pelos poderes tenebrosos que se manifestam na vida biológica e nos instintos. Nisto está o fundamento (o Grund) sobre que assenta impes soalmente a individualidade, mas que em si não é individual. O Indivíduo afirma a sua individualidade, mas esta só poderá tear realidade e potência quando se encontrar mergulhada no oceano da vida orgânica e for completamente reabsorvida por ele. Aqui se encerra, para Nietzsche, a contradição íntima do Indivíduo. Daqui a tensão provocada pela oposição entre o princípio dionisíaco, segundo o qual o homem como que sai de si mesmo para fazer parte de qualquer coisa mais vasta e profunda, e o princípio apolíneo, fonte de vida individual e de consciência pessoal (3). A angústia é o sentimento desse conflito absoluto e insolúvel, no qual o existente se sente
(*) Descohre-se aqui um primeiro esboço da náusea e da angústia heideggerianas provocadas pelo súbito deslizar do mundo do ser para g mundo da existênda bruta e do caos.
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como que esquartejado. Esta angústia, no grau mais elevado, será a porta aberta para a loucura. Mais tarde, Nietzsche já vê a angústia sob outra forma. Admite-a ligada ao tema do «eterno retorno», por meio do qual «o mundo da aparência (irá) até aos limites em que se cria a si próprio, procurando refugiar-se no seio da verda deira e única realidade». O presente fará surgir neoessàriamente a angústia, porque, como tal, traduz em movimento a negação da causa e do fim; é elemento de um círculo ver tiginoso dentro do qual o homem gira eternamente em redor, sem razão nem justificação, tornando constantemente ao mesmo ponto e estando, por isso, condenado a só poder medir-se a si mesmo. Sente-se impelido para um adiante que é um voltar atrás, para uma liberdade que é fatalidade (4). Fundando-se nisto e também nos vários acontecimentos da sua vida, Nietzsche envolve a dor numa espécie de apoteose, supondo-a capaz de atingir, no seu auge e con torcendo-se sobre si mesma, o ponto em que, por esgota mento, terá de acabar na loucura. Em Zarathustra, Nietzsche aJude com insistência à propensão característica do homem para as solidões e para o deserto e à facilidade com que ele se apresenta ora como profeta, ora como negador da sua própria mensagem (5). A contradição habita nele por quanto está sempre em busca de novos horizontes e de
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«O devir tem tem um válor vál or constante constant e para cada momento e o seu valor total será constante; ou, antes, não tem valor algum, porque nos falta o instrumento para medir, ou seja, aquela norma sem a qual a pala vra valor nâo pode ter sentido. O valor total do mundo é impossível de avaliar; consequentemente, o pessimismo filosófico assenta no cómico.» (*) Ensaio de uma reavaliação dos valores, 1888: «O moralista é o contrário do pregador de moral; é um pensador que encara a moral como suspeita, duvidosa, muna palavra, como um problema. Lamento ter de acrescentar que, por isso mesmo, o moralista terá também de ser con siderado como um suspeito».
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mundos desconhecidos. Não pode fixar-se em parte nenhuma, e, se aceita tudo, porque tudo compreende, ouve bramir incessantemente a revolta no seu coração. Am A m or fati fa ti e vontade de potência, resignação e revolta, o seu ser é rasgão e negação da lógica. Sabe que é pres pr esaa d e um mundo mu ndo absu ab surd rdoo e que não poderá encontrar a salvação senão na loucura, isto é, na crença igualmente absurda de uma idade de oiro que o há-de libertar da sua miséria presente (e). A angústia é, portanto, a forma da sua vida e o sinal permanente de que o homem se mantém ao nível do seu destino, isto é, tendendo para além de si mesmo no sentido do impossível. IV A nova religião e a nova moral
5. O que fica dito ajudará ajud ará a compreen compreender der a atitude de Nietzsche perante a religião e especialmente perante o cristianismo. Em nome da «filosofia histórica», que explica as manifestações do espírito religioso (dogmas e mitos) como fruto das condições biológicas, psicológicas e sociológicas, no meio das quais se produziu o desenvolvimento histó rico, Nietzsche nega de um modo geral toda a dogmática cristã. Com tal perspectiva, não há, de facto, lugar para a verdade absoluta: tudo, sem a menor excepção, se reduz prop pr opri riaa m ente en te às c ond on d içõ iç õ es humana hum anas, s, que acabam com quais (°) Gide {Prétextes, págs. 177-178) observa muito judiciosamente, falando da loucura de Nietzsche, que o que se deveria dizer é que «Nietzs che procurou fazer-se louco». De facto, «à medida que via mais claro mais exaltava o inconsciente. Para Nietzsche, a alegria convinha-lhe por qual* quer preço. preço . Com toda a força da sua razão, atirava-se atirav a-se para a loueu loueur», r», ' como para um refúgio».
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quer pretensões pretensões cie cie «objectividade» «object ividade» ( 7). Isto Ist o mesmo mesmo se deveria dizer, aliás, da metafísica em geral: também ela está exclusi vamente destinada a entrar no domínio da história, como forma ultrapassava da civilização. Não deveremos supor, entretanto, que a atitude de Nietzsche para com a religião é puramente negativa. Pelo contrário, Nietzsche antevê o aparecimento de uma nova religião, isto é, de uma concepção de salvação, sobre as ruínas das religiões dogmáticas, especialmente do cristianismo, rela cionando-a com o tema do eterno retorno que, como se viu, é para o indivíduo, que se reconhece finito e transiente, fonte de angústia e de terror, mas tamém principio de imensa exaltação, desde que sabemos, pela nossa existência presente que estamos já na eternidade. A angústia e a aflição, pro vocadas pela visão implacável de um destino trágico indefi nidamente repetido, dão à nossa presente existência individual valor metafísico e religioso, porque nos revelam a nossa eter nidade. Dionísio, do qual somos membros parcelares, cumpre por p or nós o seu desti de stino no eter et ernn o . Deste sentimento procede o lirismo de Zaratustra (8):
( ’ ) «Sempre que que encontramos uma uma moral, encontramos encontr amos uma valo va lo rização e uma classificação hierárquica dos instintos e dos actos humanos. Essas classificações e essas valorizações são ordinàriamente a expressão das necessidades de uma comunidade ou de uma grei: o que aproveita à grei, o que é útil ao seu primeiro chefe — e ao segundo e ao terceiro — é que serve também de medida suprema para aquilatar o valor de cada indivíduo. As condições de conservação variam muito de uma comunidade para outra, porque resultam de morais muito diferentes; e se considerar mos todas as transformações essenciais que as greis e as comunidades, os Estados e as sociedades terão ainda de sofrer, poderemos profetizar que ainda hão-de aparecer, de novo, morais muito diferentes. A morali dade corresponde, para o indivíduo, ao seu instinto gregário.» (*) Z a R a t h u s t r a , Das andere Tanzlied, 3 (Krõner, p á g . 2 4 ) . i
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Ó homem1 homem1 Atenção! Atenção! Que diz a profunda meia-noite? Eu dormi, dormi, De profundo sono eis-me acordado: O mundo é profundo Tão profundo como nunca supôs o dia. Profundo é o seu mal, A aleg al egri riaa — mais profunda ainda que a pena: A d o r diz: diz : Pass Pa ssa! a! Ma M a s toda to da a aleg al egri riaa quer qu er a eter et ernn idad id ade, e, Quer a profunda, bem profunda eternidade! Entretanto, a sabedoria dionisíaca exige a aceitação pronta e total da existência, exactamente como ela é no Devir infinito. O homem deve assumir o Destino no qual se encontra vertiginosamente comprometido. A existência deve tomar um sentido religioso, em vintude do destino individual de cada um se identificar com o destino do Todo e ser esse mesmo destino, identificando-se, assim, com Deus que nasce, morre e renasce eternamente (9). Tal é a verdade existencial (9) Cf. C f. Fragm. Fragm . da Ciência jocosa (Krõner, v, págs. 265-266}: «Que aconteceria se, dia e noite, um Demónio te seguisse na tua solidão mais solitária e 'te 't e dissesse: dissesse: «Est «E staa vida que que vives e tens tens vivido vivido terás que que •vivê vi vê-la -la ainda mais uma vez ve z e ainda ai nda uma infinidade infinidade de vezes: vez es: ela el a nada te apresentará de novo e cada sofrimento, cada alegria, cada pensamento, cada suspiro e cada facto indizivelmente grande ou pequeno da tua vida deverão suceder-se de novo e pela mesma ordem — assim como essa tei^ de aranha e esse luar entre as árvores, assim como este instante e eu mesnjo mesnjo.. A ampulheta da existência existê ncia volta vo ltar-s r-se-á e-á indefinidam indefinidamente ente — e, com ela, ela, também também tu, tu, grão da sua areia». ^ Não Nã o te rojarias por terra, rangen rangendo do os dentes e amaldiçoando o Demónio que te falasse assim? Ou, dar-se-á o caso de teres já vivido um desses instantes prodigiosos em que lhe tivesses tivess es respondido: «T u és um Deus e nunca ouvi nada mais divfnol divfnol». ».
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que deve fundamentar a nova Religião e trazer a salvação ao mundo (10). Uma nova moral se impõe, portanto, perante estas intuições. É isto o que sobretudo interessa a Nietzsche. Quanto ao dogma cristão, criva-o de tais motejos que a sua atitude nos faz lembrar muitas vezes a de Voltaire (u). A seus olhos, a dogmática não passa de um aspecto desprezível do cris tianismo. Há, entretanto, no cristianismo um erro maior e mais perigoso, porque é causa das ilusões que mais grave mente prejudicam o homem. Este erro é a Moral. Foi ela que falsificou todos os nossos juízos sobre o bem e o mal. Nietzsche insiste constantemente neste ponto, que é, sem dúvida, aquele que dá mais unidade à sua obra crítica. Retoma iodos os temas cépticos da antiguidade; acusa, sobretudo, a moral cristã de ter levado o homem a pensar que nunca se poderá ultrapassar por si mesmo, instalando-o num conforto interior, na satisfação de si, na submissão ao facto e, por fim. numa má fé. E isto constitui, em relação à grandeza (” ) Este tem tema do amor fati viremos a encontrá-lo, sob formas aliás diferentes, em Heidegger, em Jaspers e em Sartre. Também a noção jasperiana do «instante «instante eterno» eterno» (já encontrada encont rada em Kierkeg Kie rkegaard aard)) se apro ap ro xima muito da ideia nietzschiana da eternidade. O «eterno retorno» de Nietzsche apresenta também, sob certo aspecto, forte semelhança com a «repetição» kierkegaardiana. Por último, devemos ainda observar que o isolamento trágico do indivíduo e da sua consciência perante o mundo, segundo segundo a concepção concep ção de Nietzsche Nietz sche (ou de Kierk Ki erkega egaard ard)) —- «Dev «D evee ser terrível o ser-isolado, escreve Nietzsche, encontrar-se sozinho em frente do juiz e do vingador da sua própria lei, qual estrela projectada no espaço vazio ou no hálito gelado do ser-sòzinho» — se há-de voltar a encontrar em Heidegger, Sartre e Jaspers. (u) Humano, demasiado humano é a sua apreciação de Voltaire. Mais tarde, Nietzsche escreverá a propósito desta apreciação: «Voltaire é, sobretudo, um grande fidalgo de espírito: o que eu sou, eu também, — o nome de de Volt V oltaire aire num escrito escrit o meu meu constitui na realidade um pro pro gresso gre sso •— é um progre pro gresso sso em direcçã dire cçãoo a mim mesmo».
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humana, a pior das abdicações. Porque não há grandeza senão na liberdade com que o homem constrói para si, na luta e na angústia, um destino consoante a sua envergadura. É preciso, portanto, que o homem deixe de ser moral para se tomar sage; precisa de conquistar uma nova inocência por sobre as ruínas de todos os conformismos que ligam o destino do homem à fidelidade de uma pretensa «natureza humana». Não há natureza humana: a essência do homem é futura, sempre pro ject je ctad adaa no horizonte horiz onte do mundo mundo que ele el e edifica edific a com a sua dor e as suas lágrimas. A moral cristã, nos últimos escritos de Nietzsche, toma-se o tipo da «moral dos escravos». Desde que os valores não são senão o produto dos instintos, os valores cristãos terão de apresentar-se como o fruto de uma verdadeira impotência. A causa principal desta impotência deve procurar-se no ressentimento dos fracos contra os fortes: estes, nos quais se manifestava, com toda a energia, a riqueza expansiva da vida, aceitaram, quando a decadência da força criou as condições favoráveis a esse contra-senso, a qualificação de «maus». Deixando-se convencer pelos fracos de que havia outro mundo, aonde estavam reservados castigos para os poderosos, vieram a adquirir uma má consciência. Duvidaram de si mesmos e, por fim, abdicaram perante os mitos inven tados pelo ressentimento dos fracos. Desde então, a noite do cristianismo passou a envolver o mundo. 6. Deste De ste modo, o home homem, m, ao proclamar a morte de Deus e a agonia do cristianismo, deve fazer tábua rasa de todos os valores à sombra dos quais tem vivido ou vege tado. Importa, todavia, que essa desvalorização não venha a converter-se num puro e simples niilismo. «Ainda que radicalmente niilista, escrevia Nietzsche em 1887, eu não desespero de encontrar a porta de saída, a passagem que levt a qualquer coisa». O ateísmo não se fez para assegrumr ao
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homem um quietismo satisfeito ou um repouso sem grandeza. O ateísmo é doloroso: implica um drama; arranca o homem à paz enganadora em que ele sonha poder estabelecer-se e lança-o à conquista dele mesmo, numa empresa cheia de perigos e de riscos. O ateísmo obriga a operar uma alteração de valores, a forjar para eles uma nova escala qíie vienha substituir a que outrora só tinha a autoridade e o prestígio que vinham de Deus. A essa nova escala, nunca Nietzsche chegou a defi nir-lhe o sentido. O seu pensamento modificava-se constante mente à medida que a ia enunciando, negando sistemàticamente o que primeiro tinha concebido e afirmado. Nenhum dos miitos que inventa tem, a seus olhos, valor para substituir o Deus ausente: nem a arte, nem o génio, nem o saber his tórico, nem o super-homem, nem o eterno retorno, nem essa «vontade de poderio», cuja invenção marca, no trágico des moronamento da razão de Nietzsche, o último fracasso dos seus esforços para preencher a lacuna aberta pela «monte de fi loss o fia fi a Deus». Pode-se afirmar, em boa verdade, que toda a filo de Nietzsche gravita, do princípio ao fim, em torno do pro blema de Deus. Deus é a personagem principal e, por assim dizer, única, da história dramática de Frederico Nietzsche — € a cruz de Cristo domina domina visivelmente todo o horizonte nietzschiano ( 12). A negação ne gação,, pela sua- própria violência,
{” ) Cf. Carta a Peter Gast (21 (21 de Julho Julho de 1881) (Nietzsches, gesam gesamm melte lt e B r i efe, fe, Inselverlag, Leipzlg, t. iv, pág. 63), a propósito de A uror ur ora: a: «Veio-me à ideia que o continuo debate que, no meu livro, inti mamente travo com o cristianismo vos poderia parecer estranho e ser-vos até penoso; é que o cristianismo é ainda o melhor elemento de vida ideal que eu até agora realmente conhed: desde a infância que o tenho seguido até em muitos dos seus escaninhos e creio nunca lhe ter feito injúria no meu coração. Em suma, eu sou descendente de gerações inteiras de ecle siásticos cristãos — perdoai-me perdoai-me esta falta». »
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transforma-se, aqui, em afirmação e o «não» é também uma forma do «sim» (13). São estes os temas principais que irão constituir a herança do existencialismo contemporâneo. Vê-se bem como eles vão ao encontro do existencialismo kierkegaardiano. Primado e valor exclusivo da subjectividade, afirmação da existência como valor fundamental, precedendo e condicionando a essência do homem, que não pode ser senão frutto do esforço e obra ob ra da liberdade, liber dade, — necessida neces sidade de para par a o homem homem de se ultrapassar sempre, sem poder descansar nunca em qualquer aquisição estável de ordem racional ou de ordem moral, — (“) Jaspers (Nieízsche und das Christeníum, Verlag Fritz Seifert, Hameln, 1938) interpreta a atitude de Nietzsche perante o cristianismo sob uma forma que, caracterizando curiosamente o pensamento jasperiano, é, também, de aceitar em muitos aspectos. Jaspers considera o cristianismo como «reivindicação». Ora, diz ele, a hostilidade de Nietzsche contra o cristianismo, como realidade, é inseparável do seu afecto de facto ao cristianismo, como reivindicação, e esse afecto deve ser considerado como nitidamente positivo, porquanto, escreve Nietzsche, «também nós, os sem-Deus e antimetafísicos, vamos buscar o nosso fogo ao incêndio que a velha fé milenária ateou» (pág. 9). Jaspers resume assim (pág. 13) os pon tos essenciais es senciais da sua análise: 1. A luta de Nietzsche contra o cristianis cristianismo mo é consequência das suas tendências cristãs (e Nietzsche tem perfeitamente consciência disso). 2. Essas tendências cristãs manifestaram-se nele desde o princípio, sobrevivendo à perda total da fé nos dogmas cristãos; trans formaram-se, desde então, para ele numa franca energia de progresso. 3. Assim se explica como Nietzsche foi conduzido ao niilismo, ou seja à negação de todas as noções que primeiramente havia adoptado. 4. Mas esse niilismo, que Nietzsche considera como inevitável e que leva às suas últimas consequências, não lhe agrada para nele se instalar; peto contrário, propõe-se atacá-lo embora dentro de uma luta com feição Jaspers rs iflteiramente iflteiramente nova. nov a. — Para Pa ra estabelecer estes diferentes diferentes pontos, pontos, Jaspe esforça esfo rça-se -se por po r mostrar (págs. 424 2-43 43)) que que a possib possibilida ilidade de de uma uma visão de conjunto da história universal é de origem cristã e que esta mesma visão implica a concepção do homem como ser corrompido, ou seja, usa noção cristã, assim como a crença na possibilidade de salvação. Mas esta.
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desprezo pela filosofia que se baseia na lógica abstracta, estranha à vida e incompatível com o ilogismo e a absurdidade de que o mundo está est á impregna impr egnado do —- nece ne cess ssid idad adee do compro c ompro misso e do risco, fatalidade do desespero e da angústia, como condições permanentes da grandeza humana, — não aceitação da religião, nem do cristianismo, como plataforma segura para o pensamento e para a acção, — profunda tensão do ser em relação a Deus, que não se pode encontrar senão negando-o: todos estes temas, diversamente assimilados pelas doutrinas de hoje, virão criar um clima ou uma «situação» que definirá filosoficamente a época contemporânea.
segundo Nietzsche, realizar-se-á sem divindade. Por outro lado, Nietzsche deseja a verdade por qualquer preço, a verdade sem sombra, absoluta. Esta exigência, diz Jaspers, leva a conceber um mundo sem Deus, em virtude do próprio fracasso do saber que, em si, pretende ser absoluto. Neste caso, há três caminhos a seguir: ou bem que a absurdidade do mundo reduz o pensamento aos seus limites e estes têm como exigência elevar-se para a Transcendência que não é conhecível (esta possibilidade de acesso à Transcendência não se revela senão aos investigadores ver dadeiramente grandes e dotados de forte capacidade de ascese espiritual): — ou bem que o mundo absurdo é insuportável: o interesse pela verdade cessa ces sa imediatamente imediatamente e surge o niilismo; niilismo; — ou, então, o homem terá te rá de conformar-se com a insuportabilidade do absurdo. Pois1bem, acrescenta Jaspere Jaspere,, Nietzsche Nietzsche seguiu seguiu estes estes três caminh caminhos. os. Qual deverá ser, portanto, a nossa posição em face do pensamento de Nietzsche? Nele, diz Jaspers, nunca poderemos encontrar firmeza em qualquer verdade. «O seu pensamento, na realidade, não nos mostra o caminho a seguir, não nos ensina uma crença, não nos proporciona terreno firme. Pelo contrário, ele tira-nos o sossego, atormenta-nos incansavel mente, escorraça-nos de todos os abrigos em que procuramos refúgio, estilhaça todos os disfarces» (pág. 83). «Deste modo, ao instalar-nos no nada, ele pretende dar fundamento ao nosso espaço, fornece-nos o meio de procurar o nosso próprio e autêntico fundamento, do qual teremos de partir. Leva-nos a descobrir o que sabemos e o que não sabemos, o qute podemos conhecer e o que é incognoscível. Para ele, sòmente é verda deiro o que surge do nosso próprio substrato» (págs. 84-85),
SEGUNDA PARTE
AS A S D O U TR I N A S EXISTENCIALISTAS
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|\ I o existencialismo existenci alismo contemporâneo, Heidegger Heid egger e Sar S artr tree ^ ocupam ocupam uma uma posiçã p osiçãoo especial e inteiramente distinta dos outros existencialistas. Ambos recorrem à fenomenologia husserliana e, embora dela se distanciem muito, seguem~lhe, contudo, o método. Ambos se propõem, também, fundar uma ontologia, isto é, uma ciência do ser , se bem que o ser que eles encaram seja o ser da existência humana. Por esta diferença específica se caracterizam as duas doutrinas, que, nem por isso, podem deixar de ser consideradas como ver dadeiras ontologiasi Revestem-se, assim, as doutrinas de Heidegger e de Sartre de um cunho de originalidade própria que as distingue nitidamente daquelas que se agrupam à volta do nome de Jaspers. Semelhantes sob este ponto de vista, as filosofias de Heidegger e de Sartre esitão, entretanto, longe de ser idên ticas entre si. Embora se sirvam do mesmo método e versem temas comuns, cada uma tem o seu cunho ou espírito pró prio. Para Heidegger a vida autêntica existe no desespero; para Sartre é pa p a r a além al ém do desespero que ela se realiza. O conteúdo doutrinário de cada uma delas mostra-se assim muito diferent dife rente, e, tornando tornan do inconfundíveis inconfun díveis as duas duas filosofias. 8
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Sartre, de resto, como teremos ocasião de ver, é o primeiro a discutir e a criticar os pontos pon tos essenciais essen ciais da doutrina de Heidegger. E, se Heidegger chegasse a publicar a segunda parte de Sein und Zeit, estamos certcs de que a oposição entre as duas filosofias iria até à contradição. Enquanto Heidegger se insur insurge ge con c ontr traa aquele aqueless que o tomam tomam por ateu at eu ■— aind ai ndaa que a primeira parte do Sein und Zeit não seja de molde a justificaj essa sua indignação — , Sartre manifesta-se, através do seu sistema, nítida e formalmente ateísta. Seja, todavia, qual for a forma como o encaremos, o certo é que este aspecto verdadeiramente capital diferencia as duas doutrinas que, por outro lado, comungam no mesmo propósito de fundarem uma ciência do ser da realidade humana, se devotam igualmente à fenomenologia e ambas se ressenrem (a de Sartre em menor grau) da influência nietzschiana
A r tig o
I
M A R T I N HO HEIDEGGER
I O problema do ser e o seu método
1. Desde De sde a primeira página págin a de Sein und Zeit, Heidegger deixa transparecer o intuito de retomar pela base o pro blema do ser, começando, dentro de tal desígnio, por definir o sentido dessa mesma questão (*). (J) S Z , págs. 12-13. Nas N as citações servir-nos-emos servir-nos-emos da6 da6 seguin seguintes tes siglas: Sei n und Zeit Zei t ( O ser e o tempo), tempo), Max Niemeyer, Verlag, Halle, SZ: Sein 1 / edição edição,, 1927. 1927. des G r undes undes ( D a essê essênc ncii a do fundame fundamento), nto) , Nie W g r: V om W esen de meyer, Halle, 1.“ edição, 1929. KPM: Kant und das Problem der Metaphysik (Kant e o problema da Metafísica), Verlag G. Schulte Bulmke, Frankfurt-a.-M., 1934. W M . W as ist M etaphysi taphysikk ? (Q ue é a Me M etafí sica si ca?? ) , Verlag G. Schulte Bulmke, Frankfurt-a.-M., 1930. HWD: Hölderlin und das Wesen der Dichtung (Hölderlin e * essência da poesia), Albert Langen, Georg Müller, München, 1936. As citações de SZ serão tiradas directamente do texto afanlfo ns
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Não nos devem surpreender estes primeiros propósitos: com eles abrem classicamente todos os tratados de Onto logia, desde Aristóteles e Platão. Devemos, entretanto, subli nhar aqui uma expressão empregada por Heidegger — a da «elaboração concreta», com a qual pretende definir não só o intento da sua obra, ou seja esclarecer o sentido do ser, mas também o seu método, que é proceder por via concreta a esse esclarecimento. Este apelo ao concreto, inteccalado na definição vulgar da Ontologia, caracteriza o existencialismo. Sobre este assunto, fixemo-nos desde já num ponto de primordial importância. Heidegger pretende constituir uma filo fi loso sofia fia d o ser se r fundada na análise do ser concreto e singular. Orientada no sentido de uma teoria do ser da existência humana e, mais ainda, no sentido de uma teoria do ser em geral (a), Heidegger quer que esta filosofia seja designada por existencial e não por existentiva. A designação de «filo sofia do existente ou existentiva» conviria pelo contrário, segundo o mesmo Heidegger, à doutrina de Jaspers que, recusando-se inteiramente a admitir que a análise da exis tência concreta possa conduzir a uma teoria do ser, se atém
das outras obras referem-se à tradução de H. Corbin. (Quesí-ce que la Mé M étaphysi taphysi que? ue? por Martin Heidegger, seguida de extractos sobre o ser e o tempo e de uma conferência sobre Hõlderin; traduzida do alemão com prefácio e notas por Henry Corbin, Paris, Colecção Les Essais, n. Vil, Gallimard, 1938). Soci été fran(’ } Cf. o que que escrevia Heidegger, Heidegger, em carta car ta dirigida dirigida à Socié çaise de Philosophie, em 1937 (Bulletin de Outubro-Novembro de 19 37 3 7 ) : «Devo dizer de novo que as minhas tendências filosóficas, embora se Sei n und und Z ei í de E xi ste st enz e de K i er k egaard, não podem ser triate em Sein classificadas como Existenzphilosophie. É provável que este erro de inter pretação seja, de momento, difícil de afastar. Entretanto, devo declarar que a questão que me preocupa não é a da existência do homem: é a do ser na sua totalidade, e como tal».
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sistematicamente, e decalcando o método fenomenológico, à descrição das situações existenciais concretas do homem (3). Antes de entrar nesta analítica existencial, Heidegger procura primeiramente definir o sentido do problema do ser. A antiguidade grega, com Platão e Aristóteles, fornece, diz ele, elementos preciosos de solução. As especulações esco lásticas sobre o ser, que vieram depois, não sòmenfce não trouxeram nada de novo como até conduziram a investigação por caminhos errados — se bem que em nossos dias o pro blema do ser se encontre votado a inteiro esquecimento (4). Seria, de facto, afastarmo-nos irremediavelmente do ser, tomá-lo como sendo, de todos, o conceito mais geral, nada claro, insusceptível de ser definido e evidente por si. Tendo-se pronunciado, assim, a escolástica, poder-se-ia supor que esta ria tudo dito! Na realidade, porém,- está tudo por dizer, e, se quisermos compreender cabalmente a significação do ser, teremos de retomar a questão desde o principio. Indaguemos primeiramente qual é o sentido dessa ques tão, ou seja, a sua estrutura formal. Quando se formula uma pergunta, já se pressupõe, de oerto modo, a resposta. O facto de o homem se interrogar a si mesmo sobre o sentido do ser implica que ele já j á tenha qualquer conhecimento c onhecimento do ser — senão a interrogação não teria cabimento. Do ser, há uma evidência comum e vaga, que terá de ser o facto do qual deveremos partir. Esta evidência, porém, tem que ser minu ciosamente apreciada e esclarecida, havendo, portanto, neces sidade de a encarar como um problema (5). Este problema do ser jamais poderá ser resolvido (*) (*) S Z , págs. 12-13. 12-13. (') S Z, pág. 1. (') (' ) S Z , págs. 5-6. — Descartes, observa Heidegger, defi defini niu, u, de de certo modo pelo menos, o Cogitare servindo-se do Ego; entretanto, deixo« sw n inteiram o swn inteiramente ente por explicar (SZ, (S Z, pág. 4 6 ). , >
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mediante uma demonstração porque é impossível reduzir o ser, como tal, a outro ser, uma vez que o ser não é um pos sível. Para estudarmos a questão do ser, teremos, portanto, de recorrer ao método fenomenológico, que é uma espécie de «mostração» (“). Aqui, porém, surge uma dificuldade: qual será, entre todos os existentes, aquele que, por melhor reali zar a essência do ser, deverá em primeiro lugar prender a nossa atenção? — Caímos num círculo vicioso porque esta dificuldade só poderá ser resolvida desde que em nós haja um juízo antecipado sobre o ser (7). A dificuldade poderá, no entanto, ser removida uma vez verificado que não há realmente senão um ser capaz de se interrogar sobre o ser. Esse existente privilegiado sou eu mesmo. A inquirição recai, assim, sobre um único objecto possível, que é o próprio ser do sujeito existente, que nós designaremos, usando a terminoilogia de Heidegger, por Dasein. Pelo exame reflexivo deste existente se poderá che gar a uma noção do sentido do ser em geral (8). (*) SZ, pág. 6. (') SZ, pág. 7. (’ ) SZ, págs. 7 e 13. — Há aqui um equivoco, de resto já notado por vários comentadores de Heidegger (Cf. especialmente A. de W a e lh e n s , La Philosophie de Martin Heidegger, Louvain, Ed. do Instituí Supérieur de Philosophie, 2.’ ed„ 1946, pág. 8, nota 2). Heidegger define o Dasein (SZ, pág. 42) oomo sendo essencialmente ]emeinigkeit (quer dizer, o facto de ser alguém, de ser tal indivíduo ou tal pessoa). Neste caso, tudo o que se possa dizer ou afirmar do Dasein corresponde apenas àquilo que convém e pertence a tal Dasein ou a tal indivíduo. Entretanto, Heidegger afirma do Dasein em geral aquilo que constitui o Dasein próprio e pessoal de cada um, submetido à análise fenomenológica. Esta passagem do sin gular ao geral é certamente possível (constitui até a própria definição do conhecimento intelectual), mas não no contexto heideggeriano, que todo ele assenta num empirismo radical. Adolf Dyroff (Philosophía perennis, J. Habel, Regensburg, 1930, Band n, pág. 782), observa, precisamente acerca deste mesmo ponto, que Heidegger passa constantemente do een-
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De tudo isto resulta que a questão do ser, que constitui a própria metafísica, se reduz ao modo de ser do interrogante, que é propriamente o existente interrogando-se sobre o ser da existência. Isto equivale a dizer que a investigação onto lógica será preliminar e fundamentalmente consitituída (sem poder, de facto, ser de outra forma) pela análise existencial ^ontológica) do meu Dasein singular e concreto (9). 2. Tentaremos, portanto, determinar o sentido do ser em geral. Esta determinação é tanto mais necessária quanto é exigida por todas as ciências, as quais, chegadas a um certo grau de desenvolvimento, sofrem a inevitável «crise dos fundamentos». Esta crise consiste propriamente no exame das noções fundamentais, à volta das quais determinada ciência se organizou espontâneamente. Este exame tem como finatlidade definir exactamente qual a estrutura particular do ser que constitui o objecto dessa ciência. Foi assim que a mate mática, na aparência a mais rigorosa das ciências, teve em nossos dias a sua crise de crescimento, no debate que se deu entre o formalismo e o* intuicionismo. A teoria da relatividade veio a corresponder, na física, ao mesmo fenómeno crítico. existentivo ( = ser singular e concreto) ao sentido ontoló gico ou existencialista ( = ser em geral), supondo erradamente que há ' entre ambos equivalência ou igualdade. (’ ) Conservaremos a palavra Dasein (etimològicamente: estar-aí: da-sein) para designar a existência singular e concreta. A expressão realidade-humana, utilizada por H. Corbin e retomada por J.-P. Sartre, não corresponde, de facto, ao sentido de Dasein, porque acentua fortemente (mas não injustamente) a ambiguidade estrutural do Dasein heideggeriano, que tanto é o existente singular e concreto como o ser da existência humana em geral. Acabámos de apontar este equívoco. Resta dizer qu« para Heidegger a investigação corresponde, antes de tudo, a uma analítica do ser concreto do existente. O termo Dasein pode servir para traduzir esse conceito'— mesmo que o venha a ultrapassar nos seus limites. tido
ôntico ou
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Mas se todas as ciências acabam por ser convidadas a inter rogar-se a si mesmas sobre a estrutura do ser particular de que se ocupam, é evidente que outra questão mais vasta se levanta qual é a do sentido do ser em geral. Ora esta ques tão não poderá ser resolvida, contràriamente ao que por vezes se tem pensado, pelo simples desenvolvimento linear do dado científico. Faz parte do direito metafísico e não pode ser senão de ordem metafísica, porque a sua solução comanda a de todos os outros problemas. É a questão fundamental, que faz da ontologia a ciência filosófica por excelência. Orientada no sentido da determinação da existencialidade, a ontologia tem as suas raízes na análise existentiva (ou análise ôntica) do ser que está em cada um de nós. Daqui deriva o seu método, que é o da fenomenologia e que se pro põe ir, como se disse atrás e segundo a expressão de Husserl, «às próprias coisas». Há, todavia, um ponjto capital que separa Heidegger de Husserl. Husserl coloca, por assim dizer, a existência entre parêntesis, para unicamente se entregar à determinação da estrutura dos fenómenos e do seu modo de aparição perante a consciência transcendental. Heidegger, pelo contrário, concentra toda a sua investigação na determinação da existencialidade. As duas doutrinas seguem, portanto, vias completamente divergentes (10). Heidegger adopta um método que se lhe afigura mais adequado à ontologia, cuja finailidade é apreender o sentido do ser em geral. Sob o aspecto do ser é que a análise fenomenológica deverá, pontanto, encarar o dado existencial. Este dado existencial é constituído pelo ser do existente. Mas, contràriamente àquilo que se poderia pensar, este ser está
(“ ) Daremos, no Apêndice, uma ideia geral da Fenomenologia de Husserl, destacando também a posição de Heidegger e de Sartre pe rante ela.
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escondido, isto é, não é imediatamente manifestado naquilo em que ele se manifesta (1X). Torna-se, por isso, necessário descobri-lo. Nestes primeiros passos da ontologia heideggexiana pressente-se a influência sub-reptícia do kantismo: admitir o ser para lã do dado imediato é uma hipótese intei ramente gratuita, porque a análise fenomenológica nada disso nos revela. Afastamo-nos, assim, da forma apodíctica do método de Husserl. Heidegger, entretanto, não pensa da $ mesma maneira. Segundo ele, a forma apodíctica não exclui as implicações da análise (o não-imediafamente manifesto está implicado no manifesto) e, além disso, afastar, de uma forma radical, a ideia de coisas em si, escapando absolutamente à intuição. II A analítica fundamental do Dasein
1. A primeira questão a atender na investigação do sen tido do ser é a do carácter do Dasein ou seja a estrutura do existente que é cada um de nós. O ser dfeste existente é o meu (1?). Ora, dois aspectos característicos do ser se impõem H SZ, pág. 35. . (“ ) Importa concretizar desde já o significado que Heidegger atri bui aos terxnos ser (seirt) e existente (das Seiende), quando distintamente os emprega. O existente designa a existência bruta, situada aquém de qualquer inteligibilidade, numa indeterminação total. (Sob este aspecto, podê-lo-íamos comparar à matéria-prima dos Escolásticos, com a dife rença, na verdade capital, de que esta nunca existe naquela indetermina ção que caracteriza o existente bruto de Heidegger). Quando tivermos de o contrapor ao ser, designá-lo-emos por exi stente em bruto. — O ser do existente é o existente que o Dasein afecta de uma determinação que faz dele tal ser, conferindo-lhe inteligibilidade e verdade (SZ, pág. 230). É o mundo (quando constituído pelo Dasein, esclarece aliás Hddegger
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imediatamente à análise. O primeiro é que a essência do ser (isto é, o que ele é) reside na sua existência, uma vez que ele não pode ser separado nem distinguido dos seus modos de ser. O ser-tal do existente é, portanto, o ser pri mário e o único ser real do existente. Às suas propriedades são apenas modos possíveis do existente e não potências escondidas do ser. O Dasein é a possibilidade concreta e total da minha existência, e isto equivalerá, portanto, a dizer que a existência tem prioridade sobre a essência (1S). O segundo aspecto característico do ser a considerar é que o Dasein é sempre o meu. Não deve, portanto, ser tomado — W gr, págs. 67-68) que determina o existente (bruto) e faz dele um ser, incorporando-o numa totalidade. (” ) Importa frisar que Heidegger não diz que «a existência pre cede a essência» (como se exprime J.-P. Sartre); afirma apenas que há uma «preeminência» (Vorrang) da existência sobre a essência (SZ, pág. 43). Para Sartre, pelo contrário, como teremos ocasião de ver, a existência, como liberdade absoluta, não de existir mas de um determinado-existir , precede inteiramente a essência. Isto é o que Sartre esta belece pelo menos em teoria, porque, no fim de contas, ele acaba por invocar uma essência («desejo de ser») que condiciona fundamentalmente a existência e que, por consequência, a precede. —•Devemos dizer desde já que a palavra existência não tem exactamente o mesmo significado em ambos os filósofos. Para Heidegger designa apenas o modo de ser do Dasein, ou seja, o homem quando se interroga a si próprio sobre o seu ser. À existência, tomada no sentido genérico de qualquer presença no inundo, a título de dado, designa-a Heidegger por Existentia. Sartre não entra nesta distinção e para ele a palavra existência engloba os signifi cados de Existenz e Existentia e designa pura e simplesmente «presença efectiva no mundo». A palavra ser, em Heidegger, reveste ainda outros sentidos, bem delimitados nos termos alemães e que são: 1. Das Sein: o ser em geral,— ou o ser do existente. 2. Das Seiende: o existente em bruto (ou o sendo). 3. D as W esen: a essência — o que o existente tem de vir «a ser» (Zusein). — A essência do Dasein reside, portanto, na sua exis-
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ontològicamente como um caso ou um exemplar de uma ,espécie de existente, nem como o aspecto fenomenológico de um substrato que se mantém imóvel sob o fluxo da mudança. É totalmente meu e a sua expressão só será correcta quando adjunta do pronome pessoal: «Eu sou», «Tu és», de qualquer maneira que eu seja ou que tu sejas. O existente que é a minha pessoa está para o seu ser na mesma relação que para a sua própria possibilidade: é preciso dizer que o Dasein é a # sua possibilidade e não que ele tem ou possui a sua possi bilidade, como se itratasse de coisa presente e actualizável. Esta é a razão pela qual ele tem de se escolher e de se con quistar, podendo também perder-se, ou ganhar-se apenas em aparência. Está colocado entre a existência autêntica e a existência inautêntica <— e esta última não é um ser «menor» ou um grau «inferior» do ser: é ainda um ser plenamente concreto, mas absolutamente diferente do ser da autentici dade (14). tência. Ou ainda, segundo a fórmula de Hegel: A essência é o que «tem sido» (W esen ist was gewesen ist). 4. Das Dasein: o estar-aí, o existente singulär concreto. 5. Das In-der-Welt'Sein: o estar-no-mundo; o Dasein «em situa ção» no mundo das coisas-utensilios. 6. Das Mit-Sein: o ser-com; o Dasein relacionado com os outros Dasein. 7. D as E xistenz: a existência; ö modo de ser da essência do Dasein. 8. Das Vorhandensein (ou Existentia): presença no mundo; dado puro; ser do existente-coisa, como coisa. 9. Das Zuhandensein: ser da existente-utensilio, como utensílio. (“ ) SZ, págs. 42-43. — Heidegger não quer atribuir (cf. pág. 43) carácter moral a esta distinção. A apreciação moral, no entanto, já se encontra implícita na distinção entre ser autêntico e ser inautêntico, embora para esta distinção Heidegger não apresente qualquer critério que a justi fique ou fundamente. Perante a análise, o que leva a admitir que o existir «autêntico» é superior ao existir «inautêntico»— ou, então, qwri o motivo por que um é qualificado de «autêntico» e o outro de «teau-
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2. Para explicar o Dasein não se pode evidentemente partir de uma ideia da existência. O Dasein terá de ser des crito de uma maneira real, tal como se vê e se compreende, mesmo que ele se encontre no erro, pois o próprio erro é um modo do ser real, uma maneira de existir. É, portanto, da quotidianidade média e banal que temos de partir, sem nos preo cuparmos por enquanto de distinguir o que, dentro do Dasein, possa haver de autêntico ou de inautêntico. Por agora só nos interessa conhecer a estriftura da existência. Entretanto, a análise da quotidianidade não é coisa fácil, porque, como observa Heidegger, se se pode dizer com Santo Agostinho: «Quid propinquius meipso mihi?», com Santo Agostinho devemos também acrescentar: «Ego certe laboro hic et laboro in meipso: factus sum mihi terra difficultatis et sudoris nimii» (1B).
têntico» ? (Sobre o assunto, cf. as judiciosas observações de A. de W a e l h e n s , La Philosophie de Martin Heidegger, pág. 31, n. 1 ) . — Sartre (L'Etre et le Néant, págs. 651-652) critica de modo análogo esta distinção entre existir autêntico e não-autêntico e vai até mais longe na sua crítica. Na psicanálise existencial, diz ele, só se deve parar diante do que é evi dentemente irredutível, isto é, diante do proj ecto inicial, no qual o fim projectado aparece como ser do Dasein. Ora a classificação do projecto em «autêntico» e «inautêntico» não é irredutível. Heidegger funda-a na atitude do sujeito perante a sua própria morte, ou porque a aceite abso lutamente (autenticidade), ou porque a ela fuja refugiando-se na angústia (inautenticidade). Mas quem não vê que isso se explica pelo simples facto de nos encontrarmos agarrados à vida? Nem a fuga diante da morte, nem a sua aceitação resoluta podem, portanto, ser tomadas como projectos fundamentais. Tanto uma como outra atitude só poderão, pelo contrário, ser compreendidas desde que assentem num projecto original de viver ou de ser, isto é, desde que tenham como base a escolha original do nosso ser. Em suma, Heidegger caiu na mesma falta que tão vivamente censura nos outros: detém-se no õntico ou empírico, quando julga que está a abordar o ontológico ou metafísico. •(“ ) S Z , págs. 41-45 (S. A g o s t i n h o , Confissões, x , cap. 16).
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O estar-no-mundo é, declara Heidegger, a determinação fundamental do Dasein, aquela que se nos depara em primeiro lugar quando encaramos o ser da existência, tal como ele se apresenta em um ou outro dos seus medos, e, por consequên cia, indiferentemente em relação a cada um desses modos. Apreendido na sua totalidade concreta, o fenómeno estar-no -mundo, ou ser-no-mundo, pode ser considerado nos seus três aspectos: o mundo, o ser do existente e o ser-em, ou estar~em. 0 Ao considerar o mundo, no qual eu existo, impõe-se-me a obrigação de determinar a estrutura desse «mundo» e de definir a ideia de «mundanidade». O existente está sempre dependente do modo de ser-no-mundo. Precisamos de saber o que é este existente, isto é, o que é o Dasein submetido à quotidianidade. Estar-em evoca, primeiro que tudo, o facto de estar contido em qualquer coisa, como a água no copo ou o fato no guarda-vestidos. Não é, porém, neste sentido predicamental que o Dasein está no mundo. O estar-em é propria mente existencial, isto ê, pertence à estrutura específica do ser, enquanto que o estar-em predicamental significa apenas uma modalidade acidental a ajuntar à existência. Não se pode, portanto, atingir e pensar o eu senão ligado ao mundo, isto é, a todo este conjunto exterior que não é o eu, mas que lhe está ligado de tal sorte que essa ligação se torna precisamente constitutiva desse próprio eu (16). O ser-em do Dasein reveste formas múltiplas, entre as quais devemos destacar como mais frequentes as do habito e do diligo, e também as de empreender, executar, informar-se, interrogar, considerar, permitir, decidir, etc. Mas todos estes aspectos do ser-em dizem principalmente respeito ao modo de ser característico da preocupação (Bersorg en), cuja significa ção ontológica (ou existencial) se refere a um possível estar^ H
SZ, págs. 52-54.
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-no-mundo do Dasein; porque o esíar-no-mundo caracteriza essencialmente o Dasein, a relação do seu ser com o mundo é essencialmente preocupação. Esta faz, portanto, parte da estrutura ontológica do ser (17). 3. Como é que nós conhecemos o mundo? Em primeiro lugar o Dasein não pode apreender nele senão os objectos que correspondem às suas necessidades. O sentimento pré-ontológico que temos do mundo encontra-se, de facto, mode- # lado pelas coisas com que estamos em relação quotidiana. Isto, contudo, dá-se antes que o próprio Dasein acabe por se fazer coisa entre as coisas, constituindo-se em mundo separado e fechado com os objectos que suscitam o seu interesse ime diato. O mundo transformou-se no seu mundo. É necessário, entretanto, contrariar esta tendência natural e esforçarmo-nos por apreender o próprio mundo. A questão está em saber se o método de Heidegger permite de ver dade passar do nosso mundo para o mundo em que estamos. Heidegger realiza a passagem, com a simplicidade do filósofo que analisa a sua experiência. Para ele o que interessa é aclarar a ideia de mundanidade em geral (18). O que aqui naturalmente se impõe é reduzir o mundo à soma dos objectos que contém: casas, árvores, homens, montanhas, astros. Entretanto, facilmente se vê que o mundo não pode ser uma soma de coisas: o fenómeno «mundo» é uma totalidade, pois já é pressuposto pelas coisas. Estas são para ele e não ele para elas. Na realidade, «mundo» designa a ideia existencial de «mundanidade» (Weltlichkeit) . Esta ideia pode harmoni zar-se com as estruturas de diversos mundos particulares, mas contém sempre a noção «a priori» de mundanidade, e
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SZ, págs. 54-57. SZ , pág. 63.
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esta noção diz respeito, não a um mundo de objectos, mas ao mundo do Dasein. O carácter «a priori» da mundanidade impede evidentemente que ela seja sobrepujada e ultra passada: o nosso esforço deve tender simplesmente a expli cá-la (19). A análise dâ mundanidade em geral terá de partir do «mundo circundante» (Umtvelt), que será determinado em múltiplos sentidos pelas diversas formas da preocupação (20). O existente não é o objecto de um «mundo teórico», mas faz parte essencial daquele em que a preocupação lhe impõe a presença. O ser quotidiano vive num mundo de utensílios, que têm carácter pragmático e se relacionam essencialmente com o Dasein que deles se serve. A capacidade de se tomar utensílio (Zeughaftigkeit) é portanto constitutiva da coisa útil: esta não existe como ,tal mas sim apenas no acto em que se utiliza («utilizar» é, propriamente, tornar «útil»). Isto equivale a dizer que a nossa primeira apreensão do mundo não é teórica e desinteressada, mas prática e utilitária. Mas como, por outro lado, a coisa-utensílio leva ontològicamente a outras coisas-utensílios, por sua vez correlacionadas com outros complexos-utensílios, tudo o que é útil pressupõe o mundo, não podendo o «ser-em-si» do existente intramundano ser apreendido ontològicamente senão à luz do fenómeno «mundo» (S1) e, por consequência, à luz do Dasein, centro necessário do sistema dos utensílios e das relações que signi ficam, sem que ele esteja referido a nenhuma coisa. A totali dade que engloba o existente é de taí natureza qu t se apresenta
(“ )i A . de Waelhens (loc. dt., pág. 42) frisa que o mundo, assim concebido, corresponde sensivelmente ao que Gabriel Marcel designa por «mistério». (” ) SZ, pág. 66 sg. (” ) SZ, pág. 76. 1
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como sendo o conjunto das possibilidades que constituem o Dasein. É portanto o Dasein que confere aos objectos intramundanos sentido e inteligibilidade, isto é, que os faz ser (senão eles não passariam de «coisas», existentes em bruto ainda não emergidos do obscuro caos). Como eu sou as minhas possibilidades, a ordem dos utensílios intramundanos é a imagem projectada dessas minhas possibilidades, isto é, a imagem de tudo o que eu sou. O mundo é, portanto, aquilo a partir do qual o Dasien se mostra o que é. Como tal, o ser do mundo é determinação existencial (ontológica) do Dasein (22). Heidegger declara (23) que esta sua interpretação filo sófica se encontra muito distanciada do idealismo e muito mais próxima do realismo. Para ele, o famoso problema da existência do mundo exterior não passa de pseudo-problema. A existência do mundo exterior não requer, de facto, qual quer prova; evidencia-se imediatamente, porquanto, ninguém poderá conceber o Dasein abstraído do mundo. Entretanto, o realismo, por seu lado, considera suficiente o recurso ao existente (ou seja, aqui, o ser-em-si e a substância), sem se importar de explicar o ser do existente e, consequentemente, de saber se a realidade do mundo precisa de ser provada e se essa prova é possível. O mundo está, de facto, para além de qualquer prova, vindo o Dasein e o mundo a constituir conjunta e indissoluvelmente o «estar-no-mundo» (24).
D SZ, pág. 88. (” ) SZ , págs. 202-208. (**) Esta argumentação de Heidegger é das mais discutíveis e a sua libertação do idealismo muito precária. J.-P. Sartre (L'Etre et le Néant, pág. 306) observa, aliás muito judiciosamente, que «a transcendência heideggeriana corresponde a um conceito de má fé». Ela bem quer ultra passar o idealismo, ao acentuar o carácter estrutural do ser-com, que não se pode pensar sem o mundo. Mas isto não basta, porque o eu apenas apa-
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4. Resta-nos finalmente saber como é que o Dasein aparece como estando-no-mundo. Isto equivale a formular o problema do espaço. Este problema decompõe-se, de facto, em três problemas distintos, relativos à espacialidade dos seres intramundanos: — a espacialidade do es'tar-no-mundo, isto é, dó mundo como tal; a espacialidade do próprio Dasein; e a espacialidade do espaço (25). A espacialidade é um dos caracteres dos seres intra mundanos. Mas qual será a natureza desta espacialidade? Para formarmos dela uma primfeira ideia, devemos observar que a proximidade (Gegend) dos objectos em relação a nós é menos proximidade «material» {porque os objectos próximos de nós podem ser inexistlentes para nós) do que proximidade determinada pela preocupação; um objecto muito longínquo pode estar próximo de mim se ele me é de qualquer modo útil (os meus óculos, uma vez colocados, estão, para mim, mais longe do que o objecto que obstervo através delles). Somos, assim, levados a pensar que a relação da distância entre nós e os objectos (tomada em brulto) é sempre função das significações de que precisamente nos servimos para os constituir e, por consequência, que a proximidade resulta da preocupação e designa o conjunto dos lugares ocupados pelos objectos a que nós atribuímos utilidade. Não que ela seja
rece no contexto heideggeriano
como subjectividade a contemplar as suas próprias imagens. Este modo de ultrapassar o idealismo, no fundo, não é senão uma forma bastarda do mesmo idealismo, uma expressão de «psicokv gia empírico-criticista». Não resta dúvida que o Dasein «existe fora de sáx>; o mal é que este «existir fora de si» corresponda, para Heidegger, à defi nição do si-mesmo. Heidegger não consegue afinal livrar-se do idealismo. Em última análise, usa o mesmo processo do pseudo-reaUsmo {porque o autêntico realismo é coisa muito diferente): quer provar a «realidade» do mundo mas não o consegue. (“ ) SZ, págs. 101-113. *
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formada pela soma dos objectos úteis: na realidade, ela precede estes na ordem das possibilidades dentro da qual a preocupação distingue lugares e sítios. Nós atribuímos espacialidade ao Dasein. Mas este «estar-no-espaço» não pode evidentemente ser apreendido senão em função da maneira de ser desse existente. O Dasein, que não se caracteriza pela capacidade de se tornar utensílio, não tem lugar entre as coisas. Ele não está dentro do espaço, ainda que esteja «no» mundo definido pelas direcções da preocupa ção. Se, portanto, a espacialidade lhe convém de alguma maneira, ela só será possível sob o seu modo particular de ser-em. Ora esta espacialidade tem, simultaneamente, o carácter de aproximação e de estruturação. Com efeito, o Dasein tende constantemente a integrar no seu mundo circun vizinho o maior número possível de objectos e, por conse quência, tende a suprimir a distância. A civilização contem porânea ilustra admiràvelmente esta tendência constitutiva do Dasein, donde se vê que ela é fundamentalmente condicio nada pela preocupação: o «aqui» define-s|e propriamente pelo grau de utilidade (no sentido de utensílio). Mas esse mundo, de cada vez mais aproximado do Dasein e como congregado à volta dele, requer também uma organização. Esta ordem interior, que dá uma estrutura determinada ao conjunto das coisas-utensílios, é, por sua vez, efeito da preocupação. A vida social impõe-nos, de facto, um mundo já estruturado, mas no interior do qual as preocupações próprias do Dasein intro duzem ordens e estruturas novas correspondentes às suas necessidades individuais. O Dasein é, portanto, espacial ao mesmo «tempo que é espacializante; organizar é situar um objecto, relativamente a outros objectos, num dado lugar. Compreendie-se, efecti vamente, que os objectos sobre os quais pode actuar o Dasiein sejam susceptíveis die ser apreendidos por modos muito diversos, desde que pode haver entre eles relações lextrema-
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mente numerosas e variadas. Estas relações constituem o campo das possibilidades do Dasein e o espaço do mundo não é mais do que este campo de possibilidades. O espaço resulta, portanto, da estrutura «estar~no~mundo» do Dasein, que é espacial ao mesmo tempo que implica uma espécie de elasti cidade ou de mobilidade no interior da totalidade do mundo — condição fundamental da espacialidade do mundo (26). III O estar-no-mundo como «ser-com». O «se»
1. «O estar-em» fundamental do Dasein leva-nos agora a perguntar o que é esse Dasein submetido à quotidianidade (Alltäglichkeit). Esta nova estrutura que se define por «O que?» é uma maneira de ser do Dasein, como qualquer outra das suas estruturas, e constitui um existencial. Por ele somos levados a outras estruturas originais, que são o «sier-com» e a ipsidade ou sujeito da existência quotidiana (27).
(26) SZ, pág. 111. A. de Waelhens (loc. cit., pág. 333) diz, e muito bem, que Heidegger considera, assim, resolvido o problema do Dasein como corpo, Este, segundo ele, estaria compreendido na implicação reve ladora da espacialidade no Dasein. Trata-se, porém, de uma afirmação gratuita, porque a «revelação» da espacialidade nada mais poderá explicar que a formação do sentimento de espaço e nunca que existe um espaço e especialmente um corpo. É certo que Heidegger poderia aqui replicar dizendo que o existir como corpo está garantido pela equação: existência humana = estar-no-mundo. Mas, «isso seria grave ilusão, contesta, por sua vez, A. de Waelhens: o Dasein que é estar-no-mundo concebe-se como pura subjectividade e não como um ser de carne, enquanto que, recipro camente, esse mundo é uma forma de inteligibilidade e nunca um cosmos resistente». H SZ, págs. 114-130.
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O que é. portanto, este Dasein, do qual já consideramos tantos aspectos? — Somos nós, enquanto existentes; o ser do Dasein é o meu. Ontològicamente !é um sujeito com as carac terísticas do «eu» absoluto ou fundamental. Não se pode, todavia, supor que o eu absoluto ou fundamental tem de ser necessariamente o da quotidianidade. O ontológico não coincide fatalmente com o ôntico. O eu fundamental poderá coincidir com o eu do seu mundo, mas também é possível que o eu absoluto ou fundamental não seja o eu da existên cia quotidiana e que o eu da quotidianidade não seja um eu absoluto e autêntico: o eu pode escapar-se a si mesmo e per der a sua ipsidade. Isto, aliás, é um facto que se pode inter pretar de múltiplas maneiras. O que convém, portanto, é definir a estrutura essencial da ipsidade (28). Notemos, em primeiro lugar, que, como consequência das análises precedentes, nunca pode haver sujeito sem mundo. Não há um eu isolado, que tivesse sido dado sem outros eus. Portanto, o eu é propriamente um «ser-com», e este «ser-com» está em relação com outros Dasein, que compõem o meu mundo circunvizinho e que estão integrados neste e aproximados de mim pela preocupação, ao mesmo itempo que eu os trago por assim dizer comigo, da mesma forma que a terra se move no espaço envolta pela sua atmosfera. Os Dasein do meu mundo disitinguem-se dos utensílios porque eles «estão-aí-também-comigo(com-eu)». Este «com» e este «tam bém» são existenciais: designam essa estrutura do estar-no-mundo que implica a minha comparticipação no mundo com «os outros»'— não com «os outros», sinónimo dos res (**) A ipsidade (Selbstheit) não se confunde com o eu fundamen tal nem com o eu secundário. Pertence à essência do Dasein e tem valor existencial. O eu fundamental é um aspecto da ipsidade: esta exprime-se no eu fundamental; com o eu fundamental, o existente define-se como sendo ele mesmo, só ele e nada mais (SZ, pág. 318).
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tantes homens fora de mim, mas com «os outros» no sen tido de que não nos distinguimos desses outros, entre os quais nós também estamos. Assim, o estar ~no~mundo é um mundo em comum, e, para mim, estar é existir em comum com outros (2B). Distinguiremos dois modos essenciais do «ser-com». O primeiro, que definimos como preocupação, é a atenção ao mundo circundante. O segundo é a solicitude, que é atenção ao próximo como tal. Torna-se, porém, evidente que este último modo pode ser deficiente, em virtude da indiferença em relação ao próximo que a vida quotidiana muitas vezes comporta (30). De que modo é que nós conhecemos o outro, aquele que nós não somos? Há quem diga, refere Heidegger, que esse conhecimento vem pela simpatia (Max Scheler). Entretanto, não é o fenómeno da simpatia que pode, ontològicamente, estabelecer o primeiro contacto entre dois sujeitos. A simpatia não é um fenómeno existencial original: também exige um fundamento, que é justamente aquilo que a análise nos revela, ou seja, o «ser-com» como constituinte ontológico do ser-no-mundo. Ao mesmo tempo que o Dasein é, tem esse modo de ser que consiste em existir em comum com o outro (S1). Este é o motivo por que o conhecimento do outro estabelece que a minha relação com os outros seja uma projecção do meu próprio ser «num outro». O outro vem a ser um duplicado de mim, vindo eu a interpretá-lo segundo o meu próprio eu (S2). H SZ, pág. 118. (" ) SZ, pág. 121. (31) SZ, pág. 125. (“ ) SZ, pág. 124. — J. P. Sartre {L’Etce et le Néant, págs. 303-317) critica contundentemente esta análise do ser-em. Diz ele que Heidegger nâto justifica, de forma alguma, a passagem da verificação empírica do se*»» -em-comum para a posição da coexistência, como estrutura ontológica do
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2. Mas voltemos à questão de saber quem é o ser que tem o ser-em-comum com os outros na quotidianidade da existência. A experiência adverte-nos, aqui, que o carácter da exis tência, expresso em termos existenciais, é a dependência, O ser do eu é de certo modo assumido pelos outros, sem que seja possível dizer que é assumido por este ou por aquele. O eu está submetido constantemente à necessidade de se subordinar aos outros nas obrigações comuns da vida quotidiana e até nas ideias. Quando, portanto, se pergunta o que é o Dasein, deve-se responder que é um neutro impessoal: o «Se» (das M an). A existência em comum dissolve totalmente o Dasein de cada um no modo de ser dos «outros», a tal ponto que esses outros perdem os seus próprios caracteres distintivos. O «se» exerce verdadeira ditadura. Exige o nivelamento, a instalação na média, o que designaremos por «vida pública e aberta»:
estar-no-mundo. Mesmo que esta estrutura fosse provada, nunca ela poderia explicar o ser-com concreto (da minha amizade por João, por exemplo), uma vez que «o outro» é originalmente indeterminado. Heidegger não pode esta belecer a determinação, porque não é possível compreender como o ser-com, enquanto estrutura ontológica do Dasein, possa fazer surgir uma outra realidade humana. Sem dúvida que eu sou, como «ser-com», o ser pelo qual «há uma outra realidade humana». Estamos caídos na própria fórmula do solipsismo. O meu «ser-com», tal como o apreendo, a partir do «meu» ser, não é mais que uma exigência a priori do meu ser. Podemos acrescentar ainda que, como relação a priori, a minha relação com outrem é constitutiva da minha experiência e exclui qualquer facto que não haja sido construído por ela, isto é, qualquer transcendência, e, por con sequência, qualquer outrem concreto autêntico, que deverá sempre apre sentar-se como encontro ou acidente contingente (pelo menos quanto à sua realidade ontológica de «outrem»). Assim, portanto, conclui Sartre (pág. 307), «mesmo nos seus êxtases, a realidade-humana permanece só». A solidão do ser-em-comum é ainda uma solidão consigo, e o ser-com não passa de outro aspecto de mim mesmo.
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o «se» é efectivamente uma espécie de caminho aberto a qual quer viandante. O «se» suprime a responsabilidade própria, em proveito de uma responsabilidade comum, que não é de ninguém. Cada um é o outro e ninguém é ele-próprio. O «se» não é ninguém. Como tal, é a forma da existência inautên tica (8S). Não se deve supor o «se», acrescenta Heidegger, como se fosse um «sujeito coledtivo», pairando, por assim dizer, acima da multidão. Ele é, na realidade, um existencial que pertence, a título de fenómeno original, à noção positiva do Dasein. É um ser real, a saber: o «Si-mesmo» (Man~selbst): um ser completamente imerso no ser-em-comum, mas cujo eu conserva a sua plena realidade, que consiste precisamente nesta falta de personalidade: eu sou, mas já não sou eu, no sentido de mim-mesmo; eu sou os outros sob a forma do «se». A concepção pré-ontológica do ser do Dasein quotidiano e do mundo tem a sua origem neste modo de ser, que é o «se». O mundo fica reduzido ao mundo circunvizinho, e, neste, tudo se converte em coisas: o próprio ser do existente, que é um ser-em-comum, torna-se uma coisa entre muitas outras (S4). 3. Tentaremos agora ir mais adiante na análise do (" ) SZ, págs. 126-128. (“ ) A. de Waelhens chama a atenção para a excessiva brutalidade com que Heidegger descreve o «se». Gabriel Mareei, por seu lado, fala da «sufocante tristeza» que emana dessa descrição destinada a abranger, segundo Heidegger, a maior parte da humanidade. Isso é desconhecer as riquezas espirituais do amor, da fidelidade ao dever e da fé, que tantas vezes se escondem sob as aparêndas da banalidade quotidiana. «Ê aqui, escreve A. de Waelhens (loc. cit., pág. 78), que se mostra pela primeira vez o enorme poder de destruição que estruturai sem dúvida, não só a própria base do pensamento de Heidegger como também a sua trágica grandeza».
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ser-em como tal, procurando apreendê-lo na sua unidade. Neste intuito, deveremos observar que o Dasein está neces sariamente aqui ou ali e que esta propriedade essencial de ser um ser situado (ou um «estar-aí»: dasein) é a que mais vincadamente caracteriza a existência, naquele sentido em que a escolástica afirma que a individualidade é a pró pria raiz do existente. Ora, o «estar-aí» manifesta-se prin cipalmente sob duas formas ontológicas: o «sentimento da situação originária» e a «interpretação». O que Heidegger denomina sentimento da situação ori~ ginária (Befindlichkeit) corresponde, na ordem ontológica, ao que se designa, sob o ponto de vista ôntico, por «estado afectivo». A cada instante, o Dasein experimenta um sen timento qualquer, por mais fraco que seja. Esses estados afectivos variam incessantemente, segundo as vicissitudes da quotidianidade e, muitas vezes mesmo, sem que lhes possamos descobrir a causa (35). Quanto mais inexplicáveis, mais eles se sentem. O sentimento revela profundezas que o nosso conhecimento não pode atingir. Ora o sentimento que está na origem de todos os outros é o que nos revela a nossa situação fundamental, que é precisamente a de estar-aí: é a maneira existencial pela qual se descobrem a mim, mostrando-me como neles me encontro implicado, o mundo, o existir em comum* e a existência, que. no seu conjunto, constituem, por seu lado, o estar-aí do ser-no-mundo. Esta situação é sentida como absolutamente originária e fundamental, porque não pode comportar nada que seja ulterior ao sentimento de estar-aí, de estar-Jançado-aí, de tér de existir, de ter de assumir a existência como um encargo ao qual eu correspondo (3G). Mas isto, vulgarmente, passa
H SZ, pág. 134. (**)■ Idem.
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desapercebido, a não ser naqueles casos em que, no meio da mais banal quotidianidade, o sentimento da situação origi nária se impõe bruscamente ao Dasein. A maior parte das vezes, porém, tudo se dispõe em nós de forma a dissimular mo-nos a nós próprios aquilo que somos fundamentalmente, e o sentimento originário deixa de atendler ao facto de se estar-lançado-aí, para exprimir a aversão ou o atractivo que sentimos pela existência. A aversão tem quase sempre a pre ferência: serve para iludir a existência; faz-me sentir estra nho a mim mesmo, convencendio-me de que me devo deixar perder por completo na banalidade do «se» (37). O sentimento fundamental do esta r-aí corresponde, por tanto, ao sentimento do estar-lançado-aí, ou seja, ao senti mento do abandono ou da derrelicção (Geworfenheit) (38). Este sentimento pertence à própria estrutura do ser e não resulta simplesmente de uma contingência acidental na maneira de chegar ao mundo mas sim da própria existência na sua realidade ontológica. Eu sou, com efeito, projectado no mundo sem que dá minha parte tenha havido qualquer escolha ; o sen timento de abandono e de solidão acompanha, portanto, a minha existência, impregnando-a de tal forma que imprime profundo carácter à sua natureza (39). Por isso, eu sinto (" ) SZ , pág. 135. (as) H. Corbin (loc. cit., pág. 15) traduz a palavra
por
déréliction.
Geworfenheit
t (“ ) Servir-se do abandono (estar-lançado-aí) para definir o estar-jâ-aí é seguir caminho um tanto arbitrário. Ninguém assiste à génese
do seu próprio ser e, quando eu me interrogo sobre essa génese, é porque já existo. Mas o que não se pode é ligar, de uma maneira universal, à verificação deste facto um sentimento de angústia e fazer desta angústia a própri a essência do Dasein. O que aqui se poderia dizer é que o existir-já-aí levanta um problema, que é o da minha existência e o da exis tência em geral. O sentimento do abandono, implicitamente, poderá ser uma solução desse problema, ou seja, a solução encarada através da
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também que a existência não será para mim senão o fruto de uma conquista, numa luta que nunca acabará. Raríssimas vezes, todavia, isto se reconhece: reconhecer no abandono a verdade fundamental da existência é próprio do existir autêntico. Quase sempre, porém, o sentimento da situação originária fica envolvido, escondido, deformado e recalcado no seio da massa movediça dos sentimentos da vida quoti diana. Pode-se analisar concretamente o sentimento da situação originária estudando os dois modos de ser que dele derivam: a angústia e o medo. Mais adiante falaremos da angústia. Quanto ao medo, três perguntas se podem formular: — de que temos medo, o que é ter medo e por que temos medo? Na res posta a estas perguntas se encontrará a estrutura do senti mento da situação originária (40). O terrífico é sempre um ser intramundano, apreendido como existente, mas no seu aspecto de fenomenalidade de objecto terrificante. Com aquilo que encerra de perigoso, ele apresenta-se-nos, com efeito, como uma ameaça que se apro xima de nós (enquanto o objecto está longe o que tem de temível permanece oculto). Trata-se indubitàvelmente de uma ameaça, porque o perigo não deverá aparecer como inevitável. — O medo, portanto, consiste menos em temer um mal futuro do que em descobrir uma ameaça que faz pesar sobre nós o objecto temível que se aproxima. — É sempre pelo Dasein que nós tememos, porque só o existente se pode amedrontar, quando está em causa o seu ser. Ê certo que também podemos temer pela segurança da nossa casa ou da nossa herdadé. Mas isso é porque o Dasein é conjuntamente aquilo que o preocupa: o perigo pairando sobre as coisas que o preocupam contingência absoluta e da estrutural absurdidade da existência. Todavia, afirmada a priori, esta solução é puramente gratuita. D SZ, págs. 140-142.
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torna-se uma ameaça para ele. De faeto, o medo traduz sem pre o sentimento originário do ser intramundano, que sente a sua existência como que ameaçada, e, por isso mesmo, faz parte da existência, acompanhando-a sempre. 4. O sentimento da situação originária não é, portanto, senão uma das estruturas ontológicas que constituem o «estar-aí» ou a haecceidade do Dasein. O «estar-aí» é também constituído pela «interpretação» (41). Este termo «interpre tação» não significa uma maneira de conhecer como outra qualquer, nem mesmo devemos supô-lo sinónimo de «explica ção» no sentido corrente da palavra. De facto, o conhecimento ou ia explicação de qualquer coisa constituem sempre derivados existenciais da interpretação, que definiremos como o ser existencial do poder-ser próprio do Dasein. Efectivamente, o Dasein aparece sempre como um poder-ser. Nunca é uma coisa fechada ou parada. É aquilo que pode ser e exisite segundo o modo das suas possibilidades. É aqui precisamente que está a origem da sua preocupação perante o «mundo» e perante os outros, ou seja, a questão fundamental da sua própria possibilidade. O Dasein deve, portanto, interpretar o seu ser, isto é, as suas possibilidades. Mas isto não significa uma liberdade de indiferença, como se o Dasein, colocado em face das suas possibilidades, tivesse de as escolher de fora como eu escolho numa montra o objecto que me agrada. Na realidade, o saber que se acomoda às minhas possibilidades pertence ao próprio ser do «estar-aí», que 'é essencialmente interpretação (e é só porque o Dasein (41) SZ , págs. 142-166. Para a tradução do termo Verstehen recor remos a A. de Waelhens (loc. cit., pág. 88, n. 1), que o traduz por «inter prétation». Convém, de facto, estabelecer a distinção entre o termo existencial que Heidegger designa por Verstehen (interpretação) e as noções correntes de compreensão e mesmo de explicação.
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é assim que ele pode perder-se e desconhecer-se e também reencontrar-se nas suas possibilidades). Eu sou, portanto, livre, mas dentro dos estritos limites da minha possibilidade — o que equivale a dizer que qualquer escolha é uma deter minação criadora do meu ser. A interpretação possui uma estrutura ontológica a que chamaremos pro-jecto (Ent-wurf). Pro-jectar é o resultado imediato do poder-ser. Este projecto não pode, entretanto, referir-se a qualquer plano preconcebido; o Dasein é que, de facto, está já projectado em si mesmo: existir, para ele, é necessariamente pro-jectar, isto é, assenhorear-se (semque nem sempre disso tenha conhecimento expresso) do espaço facultado ao jogo do poder-ser como carreira do seu ser. É, portanto, fazer existir a possibilidade. Esta é também a razão por que o Dasein é sempre «mais» do que aquilo que é de facto, mas nunca mais do que é realmente, porque o poder-ser pertence essencialmente à sua realidade. Ao Dasein podemos, portanto, dizer com toda a verdade: «Tornaste o que és». A interpretação determina aquilo a que chamamos a «visto» do Dasein (J2). Quando a vista do Dasein incide sobre a existência na sua totalidade dá lugar à clarividência — esse conhecimento de mim que me faz apreender o meu ser-no-mundo como sendo essencialmente um ser-com-os-outros, intervindo estes como momentos constitutivos da existência do Dasein. A inclarividência, pelo contrário, não corresponde apenas a um erro egocentrista na apreciação do meu ser, é sobretudo desconhecimento do mundo. Todo o nosso saber relativamente aos objectos, a nós mesmos e ao ser em geral deriva, portanto, da interpretação. Mas o ser, no pro-jecto, é somente interpretado e não apreendido ontològicamente.
H
SZ, pág. 146.
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O projecto reveste forma particular na explicação (Aus~ legung), que tem como carácter essencial determinar a estru tura de uma coisa como «servindo paira», isto é, definir a coisa como tal, enquanto tal (a casa como casa, a porta enquanto porta). O «em-quanto» é a forma mais geral da interpretação. Apreender um objecto é (como está bem estabelecido pela psicologia da forma) assenhorear-se dia significação desse objecto: uma coisa desprovida de sentido não existe para mim. Reciprocamente, o objecto reduz~se ao seu sentido e, então, é o que é para o meu projecto. A interpretação não pretende, portanto, isolar o objecto sobre que incide: consi derar a mesa como tal, equivale a colocá-la entre parêntesis em relação ao conjunto de que ela faz parte, mas não a des tacá-la desse conjunto. O que a interpretação pretende é situar exactamente o objecto no conjunto dos objectos intramundanos, isto é, apreender-lhe o sentido relativamente a mim, e isto reconduz-me à interpretação de mim mesmo e do mundo. As estruturas existenciais fundamentais são, portanto, como acabámos de ver, o sentimento da situação originária e a interpretação. Esta encontra a sua primeirta1expressão (Ãussage) nos gestos pelos quais manifestamos aquilo que nos explicitam os utensílios de que nos servimos. Esses gestos não são necessáriamente palavras nem mesmo ideias: são simples atitudes expressivas e as palavras, aqui, têm apenas o valor de um gesto imediatamente significativo de ordem prática. Todavia, a expressão pode tomar a forma de linguagem. Esta. por sua vez, resulta da discursividade (4S) — existen cial que se pode definir como sendo o instrumento pelo qual organizamos ou articulamos entre si os objectos intramundanos, conferindo-lhes um sentido, ao mesmo tempo que (“ )
Vamos buscar a A. de Waelhens (loc. cit,, pág. 28, n. 4) o termo discursivité, tradução de R ede, que tem, como origem da lingua* gem, um sentido que a palavra discurso interpretaria mal.
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organizamos e articulamos também a interpretação do nosso próprio Dasein. A discursividade é, portanto, juntamente com o sentimento da situação originária, um dos componentes do «estar-aí» (44). A linguagem é a expressão externa da discursividade, que estrutura o mundo nos seus diversos «membros», afec tando cada um de uma significação e imprimindo a todos o carácter do «ser-com» do Dasein. O Dasein é necessariamente diálogo, porque o seu existir é em si mesmo dialéctico; está constantemente referido aos «outros» que, no seu conjunto, constituem o mundo do Dasein (4S). 5. A análise das estruturas ontológicas ou existenciais do estar-no-mundo afastou-nos um pouco do exame da quotidianidade do Dasein. Torna-se necessário voltar agora ao assunto, com o fim de definir com mais propriedade o modo de ser do «se», isto é, da existência inautêntica (46). Este modo de ser comporta, efectivamente, uma sensibilidade, uma interpretação, uma discursividade e uma explicitação parti culares que, na sua realidade ontológica concreta, dão teste munho do fenómeno do abandono ou derrelicção. Anotaremos aqui três caracteres específicos da existência exterior e pública do «se», a saber: o tagarelar quotidiano, o espírito de curio sidade e o de ambiguidade, ou de equivocidade. Já dissemos qual era a origem da linguagem, que resulta da necessidade de comunicação, essencial ao ser, que é ser-em e ser-em-comum. A linguagem caraeteriza-se principalmente por concentrar tudo ao redor do «diz-se», que assim se toma a fórmula por excelência da exactidão e da verdade. Deste modo a linguagem (e por linguagem deveremos entender aqui (M) SZ , pág. 165. H SZ, pág. 170. (“ ) SZ , págs. 166-180.
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não só a linguagem falada mas também itudo o que se escreíve e se transmite na quotidianidade) perde aquela sua primeira ligação com o ser e passa a relacionar-se apenas com os eus utilizados, que se substituem às próprias coisas. O que «se tem dito» éique passa a estar em causa. Esta forma de lingua gem constitui o «tagarelar» (Gerede), que admite a possibi lidade de se compreender tudo sem necessidade de uma pré via adaptação às coisas (47). Não é possível evitar por completo esta forma da quo tidianidade, na qual o Dasein se encontra de cento modo imerso. É nela, por ela e contra ela que se realiza a inter pretação autêntica e a readaptação à realidade das coisas. Entretanto se o tagarelar se encerra, sem resistência nem revolta, na passividade do «se», torna-se, ontològicamente falando, uma interpretação da existência, ficando esta, dentro dessa interpretação, privada das suas raízes e das relações autênticas com o mundo, com os outros e consigo mesma. Deste estado, aliás, o Dasein não tem a menor consciência, porque a quotidiana e obstinada «realidade» do tagarelar lhe esconde o nada em que se encontra mergulhado (48). Este nada imagina-o o Dasein sob a forma do ser, atra vés do artifício da curiosidade. O des|ejo de saber, de que fala Aristóteles, citado por Santo Agostinho (49), reduz-se a uma simples preocupação de aparência: o Dasein procura desembaraçar-sie de si e perder-se nos objectos quotidianos. Para a curiosidade, não interessa compreender o que se vê. isto ê, penetrar até à realidade do ser; o que unicamente inltetfessa é ver. Ela só procura a novidade em si e não se importa com o que significa essa novidade. A curiosidade nunca se detém ou se concentra num objecto presente: pro D (*)
(™)
SZ, pág. 169. SZ, pág. 170. Confissões, X, c. 35.
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cura ir sempre mais longe, constantemente agitada por uma frenética necessidade de dispersão, que comunica à lexistência quotidiana aquela forma impulsiva e descontínua que é sinal de desarreigamento e de vácuo. Entretanto, o que a curiosi dade tem de pior é transmitir ao Dasein, que se lhe entrega, a impressão ilusória de uma autêntica vivência (50). Desta ilusão nasoe o terceiro fenómeno característico da quotidianidade, ou seja a ambiguidade. Por ela, torna-sie impossível distinguir o autêntico do inautêntico. Não se limita apenas ao mundo, mas estlende-se também ao existir^em-comum como tal e até ao próprio ser do Dasiein relativamente a si mesmo. Todos sabem tudo e falam de tudo o que ocorre; cada um sabe também tudo o qu|e d|eve acontecer e aquilo que deveria propriamente fazer-se. A capacidade die «discorrer» passa a ser a medida exacta do que sle sabe e daquilo quje é. A equivocidade do discurso quotidiano confere à acti vidade do Dasein um carácter significativo que & mantém constantemente em atraso, tornando-a inconsistente e super ficial, desintegrada do real. Pela ambiguidade em que se encontra instalado, o Dasein está sempre «aí», ou seja, nesse estado «público» do ser-em-comum em que as palavras mais vulgares e a curiosidade mais engenhosa são o seu alento: está sempre aí onde quotidianamente tudo acontece, mas onde, de [acto, nada se passa (51). 6. Esitas três características do estar-aí do Dasein determinam uma maneira de ser fundamental a que chamare mos desprendimento, descaimento (Verfallen). Todavia, não convém dar a esta palavra sentido negativo, como se a quo tidianidade fosse um não-ser. O descaimento tem, efectiva-
(■) (M)
SZ , págs. 170-173. SZ, págs 173-175.
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mente, uma certa positividade: o Dasein é inteiramente absorvido, por assim dizer, pelo «mundo» e pelo ser comu nitário. Trata-se, de facto, de uma maneira de «não-ser», mas no sentido de «não-ser-si-mesmo». O Dasein tornou-se positivamente outro, diferente de si-mesmo. Por outro lado, o desprendimento ou estar caído (des caimento) não deVe ser compreendido como queda de um estado primitivo mais alto e mais puro. Semelhante queda (pecado original) não só a não experimentámos sob o ponto de vista ôntico, mas nem mesmo, ontològicamlente, temos dela qualquer noção que nos permita atribuir-lhe determinado sentido (52). Na realidade, o descaimento ou desprendimento é uma determinação existencial do próprio Dastein, o qual, pelo facto de dever precisamente perder-se ou desprender-sie, já está em si perdido e decaído. Por fim, ainda poderia haver outra maneira errada de compreender a estrutura ontológica do Dasein que seria tomar o estado de desprendimento como fase que pudesse ser trans^posta por efeito de um progriesso de cultura. Não há dúvida que outras formas de civilização poderão vir a modificar grandemente os aspectos da autenticidade. Entretanto, esta terá de manter-se sempre como possibilidade fundamental do Dasein: é parte constitutiva do estar-no-mundo e o homem não pode desfazer-se dela da mesma forma que não pode saltar por cima da sua própria sombra (S3). (“ ) SZ, págs. 179-180.— A pág. 306, n. 1, Heidegger diz que a análise existencial do sentimento de culpabilidade nada esclarece a lavor ou contra a possibilidade de um pecado original. Rigorosamente falando, não se pode mesmo dizer que a ontologia do Dasein, em si, deixe aberta tal possibilidade: filosòficamente, não se «sabe» absolutamente nada acerca do pecado original. (“ ) Heidegger supõe que o Dasein começa sempre pela existência não-autêntica. Só depois, por qualquer forma, vem a resolução, que tefll a sua origem na dispersão e na decadência — apeio a uma vida que coesiga
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Podemos, portanto, resumir o estado inautêntico do Dasein como sendo uma alienação (Entfremduny), não no sentido do Dasein ser, de facto, arrancado a si mesmo, mas no de ter perdido as suas próprias possibilidades. O Dasein não se transforma, porém, em outro ser diferente do seu; realiza, sim, um modo de ser possível de si mesmo. O Dasein move-se por completo dentro de si mesmo. Somente, o movimento de se perder ou de queda, que designamos por alienação, per manece nele oculto, podendo porém vir a tomar o aspecto de acesso a uma vida superior, mais nobre, à vida «plenamente concreta e plenamente real». A existência autêntica, pelo contrário, não poderá ser considerada como um salto que o Dasein quotidiano pudesse vir a efectivar sobre o mundo exterior; corresponde unicamente a uma maneira diferente de comportamento por parte do mesmo Dasein em relação a esse mundo exterior, que ele apreenderá, portanto, sob uma forma também diferente. Anotemos, por fim, que o desprendimento nunca é um «facto concluído»; nunca pode também sfer considerado um estado de equilíbrio. É como que um turbilhão no qual o «se», mantendo-se aquilo que é, se engolfa de cada vez mais, ao mesmo tempo que se vai desapropriando progressivamente de si mesmo e aturdindo frenèticamente o seu nada pessoal na mais completa dispersão da banalidade quotidiana Nesta análise do Dasein encontraremos a base fenomenal para a interpretação sintética do ser do Dasein como «cuidado ou preocupação» (Sorge) (34).
libertar-se dos laços que a prendem e como que a inserem na estrutura do «se». H SZ, págs. 175-180.
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IV A preocupação como ser do Dasein
1. As análises precedentes do estar-no-mundo fazem-no-lo apreender como uma estrutura originária e como um todo. Verificámos, entretanto, que essa estrutura podia com portar múltiplos aspectos. Vemo-nos, por isso, na necessidade de saber como se deverá caracterizar, sob o ponto de vista ontológico e enquanto totalidade indiferenciada, a estrutura concreta do Dasein. O problema, porém, não poderá ser resolvido através de uma síntese dos resultados já obtidos. O que até agora constituiu objecto da nossa análise foi o modo de ser inautêntico do Dasein, te a questão do carácter ontológico fundamental do Dasein nada tem que ver com o ser da quotidianidade. Também não se pode pensar em deduzir esse carácter ontológico a partir da simples noção de homem, porque isso levar-nos-ia para o mundo da abstrac ção — solução que desde início temos afastado. Como única solução, e já que não é possível descobrir esse carácter no próprio Dasein, resta-nos ir ao encontro de qualquer fenó meno que nos revele o ser do Dasein naquilo que ele tem de mais profundo e original e no-lo apresente sob uma forma muito simplificada, pondo-o, por assim dizer, a descoberto. Esse fenómeno, que nos revela a estrutura do Dasein, apreendida na sua totalidade, é, como vamos ver, a angústia (Angst). A angústia exprime efectivamente o sentimento mais profundo do Dasein, aquele que é princípio e origem de todos os outros (vontade, anseio, desejo, inclinação, impulso), mas que se mantém normalmente velado ou latente sob a forma de cuidado e preocupação (S5). H
SZ, págs. 180-184.
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Partiremos da análise concreta do desprendimento (5G). Este apresentou-se-nos como fuga do Dasein perante si mesmo, enquanto capacidade de ser si-mesmo (Selbst). Como explicar essa fuga? Mais atrás estudámos o fenómeno do medo e vimos que ele se caracterizava por uma acção de recuo diante do objecto ameaçador, Poder-se-â equiparar a fuga do Dasein perante ele mesmo a iesse recuo que caracteriza o medo? É de supor que não, porque o medo refere-se sempre a um objecto bem definido, a este ou àquele. A angústia, pelo contrário, nunca é determinada por um objecto definido: supõe, é certo, uma ameaça, mas que não se encontra em parte nenhuma. Este «em parte nenhuma» não quer dizer nada; indica unicamente a exclusão de qualquer determinação. Na realidade, o mundo, directamente como tal, é que é a coisa perante a qual o Dasein se sente angustiado. Não quer isto dizer, todavia, que, para a angústia, a mundanidade do mundo tome a forma de realidade amea çadora. Esta mundanidade está simplesmente implicada na indeterminação da ameaça, diante da qual treme o Dasein, e naquela ausência de interesse com que são encarados todos os objectos do mundo: o mundo que circunda o Dasein encon tra-se sossobrado. Eis o mo'tivo por que a angústia reduz o Dasein ao seu próprio estar-no-mundo; ela isola-o pierante si mesmo e faz-lhe sentir intensamente esse isolamento: é o «solipsismo existencial», que corresponde à forma funda mental do sentimento da situação originária. E este estado é de tal natureza que o tagairelar quoti diano daqui em diante perde, por completo, qualquer interesse. Desaparecem todos os apoios da quotidianidade, reina a solidão e o Dasein experimenta um confuso e espesso senti mento de profunda estranheza e de total insegurança perante um mundo que não lhe permite estar «em-si», ou seja, o (*)
SZ, págs. 184-191.
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mundo da quotidianidade. Excluído desse mundo circunvizi nho, no qual a sua condição fundamental se encontrava velada por uma segurança factícia, sente que o seu ser se vê como que constrangido a usar da liberdade para se escolher a si mesmo; sente-se, inelutàvelmente, responsável de si mesmo. Poucos sentem a angústia (57). Mas 'é isso mesmo, desde que se tenha em conta que o «se» intervém constante mente com o fim de a suprimir, que constitui a prova evidente do seu carácter de dado fundamental. Ror si, ela tende a levantar o Dasein do seu descaimento e a obrigá-lo a escolher entre a existência autêntica e a existência inautêntica (58). 2. Estabelecemos que a angústia é o sentimento funda mental do ser-no-mundo, que ela própria surge do facto de o Dasein se sentir «já-arremessado-aí» e de se ver constran gido a ter de optar entre duas formas opostas de existência. Ora, estas determinações ontológicas não constituem elemen(67) SZ, pág. 190. — Heidegger acrescenta que muitas vezes a angústia tem sido mal compreendida até por aqueles que a descreveram como fenómeno específico. Santo Agostinho e Lutero relacionam-na com o pecado, fazendo-a, assim, revestir apenas o carácter acidental de fenó meno puramente psicológico que desaparece com o perdão do pecador. Kierkegaard, embora tendo ido mais longe na análise da angústia, não sai também do plano psicológico, quando o problema é ontológico e afecta a própria estrutura do ser. (“ ) Cf. W M , onde Heidegger retoma a análise da angústia sob outro aspecto, que é, aliás, complementar daquele que é encarado no SZ, Heidegger parte da ideia do nada, tal como ele se revela na angústia. Este nada é um nada que possui, entretanto, uma certa posifividade. Na angús tia, e por ela, temos desse nada a experiência fundamental (pág. 29). Como vimos, esta experiência corresponde a uma ameaça cuja origem é absolu tamente impossível determinar. Produz um «resvalameinto» da totalidade do existente e ao mesmo tempo comunica-nos a sensação de que resvala mos nós mesmos com ele: o nada desoobre-se-nos, assim, bruscamente (págs. 3C-32). — Ora, que é que este nada afectará? Claro está
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tos de um todo, ao qual um ou outro elemento pudesse fazer falta: entrelaçam-se organicamente numa estrutura original que nos deverá revelar a totalidade indiferenciada do Dasein, a sua natureza ontológica. Precisamos, portanto, de caracte rizar a unidade dessa estrutura. Fá-lo-emos dizendo que o ser do Dasein é cuidado ou preocupação (Sorge) e comporta, como tal, estes três elementos: o ser-para-diante (Das-sich-vorweg■sein) ou existência, o estar-já-no-mundo (Das-sich-vorweg~schon~sein) ou facticidade (Faktizität) o estar-arremessado-aí (Das-sein-bei) ou descaimento (Verfallen) (59). Efectivamente, o ser do Dasein aparece como estando sempre adiante de si mesmo, considerado não em relação a outros existentes, mas como poder-set (Sein-können ), isto é, responsável do ser que é como ser-já-projectado-em-um-mundo. O existir é um facto primitivo: quando, sobre ele, me interrogo, é porque já existo, com tudo o que a existência implica para mim de necessidade de me projectar para diante
aniquilado pela angústia. O que é aniquilado, o que desliza para o nada, é a inteligibilidade do ser, a ordem e a estrutura das coisas , o seu sentido e valor. Tudo parece desconjuntasse num caos sem que o existente não é
nome. Não se deve, entretanto, supor que se trata aqui de um acto positivo de aniquilamento nem de uma aparição do nada: o nada aniquila-se a si própri o (pág. 34). Daqui mesmo surge a manifestação originária do exis tente em bruto e a prova de que há um existente — e não nada. O «não nada» nada explica, mas acentua a pura alteridade da existência bruta, que não é nem isto nem aquilo, nada de ser que não é absolutamente nada, que é absurdo inominável, estranho e repugnante até à náusea. Devemos, entretanto, acrescentar que esta experiência do nada do ser e do valor só se toma possível em virtude de o Dasein ser princípio e ori gem do ser e do valor. Ela é, como tal, condição primeira do espanto (que é manifestação do nada) e por ela o homem é levado a formular objecções e a procurar razões ou fundamentos, e, mais rigorosamente ainda, a constituir-se a si próprio em objecção. Ultrapassa assim a questão fundamen tal da metafísica: antes do nada há o existente? (págs. 42-44). H SZ , págs. 249-250.
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de mim mesmo, isto é, de ser «preocupação de». A preo cupação não corresponde, portanto, como antecipação de si, a um comportamento particular e contingente do Dasein em relação a ele próprio: define, na sua unidade fundamen tal, todas as determinações do ser. Eu não tenho cuidado e preocupação, ou, se tenho cuidado e preocupação, se quero — desejo; se me sinto inclinado e impulsionado é o título de consequência: eu sou cuidado e preocupação ao mesmo tempo que sou (60). 3. Encontramo-nos agora aptos a poder apresentar uma solução para o problema da verdade. A filosofia correlacionou sempre a verdade com o ser, fazendo, consequentemente, coincidir o problema da verdade com o problema fundamental da ontologia. Sendo certo que a história da noção da ver dade só poderá ser escrita à luz da história da ontologia, é, por sua vez, evidente que a ideia de verdade implica por si uma concepção sobre a estrutura do ser, não podendo expli citar-se através de uma simples análise do sujeito como tal, porquanto a verdade diz sempre respeito a um objecto, não só distinto do sujeito como ainda oposto a ele. As duas asserções fundamentais sobre este tema devemo-las a Aristó teles, embora as encontremos também em Kant. São elas: o «lugar» próprio da verdade é o juízo; a essência da verdade encontra-se no «acordo» do juízo com o seu objecto. Tome mos, portanto, estas duas asserções e procuremos analisar o seu valor em função da ontologia existencial. Observemos, em primeiro lugar, que o acordo do juízo com o objecto implica que a coisa seja apresentada ao conheTf60) SZ, págs. 180-196. — O aubor traduz a palavra Sorge por Souci, anotando que o termo não significa apenas cuidado acompanhado de inquietação, mas traduz também o facto de «prendre soin», de «se sou cier». — N. do T.
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cimento tal qual é. O acordo pressupõe, portanto, uma relação do género «tal qual». O que interessa agora saber é como será possível estabelecer essa relação entre o intellectus e a res, isto é, entre o ser ideaí que é concebido e o ser real na sua realidade ontológica. Entretanto, o problema não se pode põr assim porque, formulado desta maneira, irá implicar a obrigação de estabelecer uma comparação e de operar a passagem ou transpor mesmo o abismo que separa o objecto concebido do objecto real, como se o real pudesse ser apreen dido sem o recurso ao conceito (ei). A verdade aparece-nos como uma descoberta (Ent-deckung) do real existente , tal como ele é em si mesmo. O objecto mostra-se e manifesta-se tal qual é. A verdade consiste precisamente nesta manifes tação do objecto no seu ser. De forma alguma tem, portanto, a feição de um acordo entre o conhecer e o objecto, pelo menos no sentido em que esse acordo se possa tomar como adaptação do sujeito ao objecto. A sua estrutura ontológica corresponde à maneira de ser que procura des-cobrir o próprio existente real (62). O juízo só é, portanto, possível desde quie se admita como primeira condição que o objecto existente já é acessível, o que implica, esclarece ainda Hieidegger (63), uma manifestabilidade ancepredicativa (ou verdade ôntica) do existente. Mas isto mesmo só poderá ser ontològicamente concebível (**) Esta crítica não visa o ponto de vista aristotélico, segundo o qual o objecto real está ontològicamente presente no sentido. A compa ração, exigida pelo «acordo» que define a verdade lógica, é, neste caso, estabelecida entre o conceito ou ideia e a imagem, que é a expressão do próprio real. (") Corresponde, segundo Heidegger, àquilo que os Gregos^ ante viram ao designarem o fenômeno original da verdade como à-Xr)0sta, isto é, como o facto de «não estar escondido». A verdade do Logos é, por tanto, para e!es uma cncocpavaiç, isto é, uma des-coberta, uma re-velação. («) W gr , pág. 55.
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tendo em conta a noção de esfcar-no-mundo, uma vez que a verdade supõe, por um lado, que o Dasein está apito a des cobrir e, por outro lado, que o real existente é susceptível de ser descoberto. Não estamos em presença de simples definições nominais, mas de dados certos da análise ontoló gica: o acto de des-cobrir é um modo de ser do ser-no-mundo (64). É este mesmo modo de ser que exprime fundamentalmente a verdade da existência. Com efeito, dele resulta a inteligibili dade e o sentido do existente intramundano, e o Dasein não poderá apreender a sua verdade senão através de aquilo a que poderemos chamar o choque contra os objectos que ele vai organizando à medida que os descobre. Embora haja necessàriamente uma espécie de igualdade entre a verdade das coisas e a verdade do Dasein, o que agora está em causa é, num e noutro caso, a mesma e «única» verdade. Não há ser — não dizemos existente — se não houver verdade, e só há verdade quando e enquanto houver um Dasein: a ver dade, seja ela qual for, é sempre relativa ao Dasein (S5). É certo que o Dasein também se pode estabelecer na (M) Heidegger diz (SZ, pág. 220) que a verdade corresponde exclu sivamente a essa acção des-cobridora do Dasein, para além da qual nada mais há que a possa ex;plicar. Desta forma, Heidegger recusa-se formal mente a correlacionar a verdade com Deus, como seu primeiro funda mento e sua origem primeira. Para ele, não há «verdade ontológica», no sentido escolástico de que a inteligibilidade é essencial ao ser (cf. o nosso trabalho L'intuition intellectuelle et le problème de la métaphysique, Paris, Beauchesne, págs. 69-80) : a verdade é constituída pura e simplesmente pelo acto de des-cobrir, que arrebata o real existente (o existente em bruto) à noite que o envolve e na qual se encontra mergulhado. 6 o homem que, pela acção des-cobridora, cria a inteligibilidade que os exis tentes em bruto não possuem de forma alguma em si mesmos. (“ ) Heidegger afirma (SZ, pág. 227) que a questão das «verdades eternas» só poderá ser resolvida mediante a prova de que existe e existirá um Dasein por toda a eternidade. Enquanto essa prova não aparecer» as
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«não-verdade», como resultado do descaimento ou da queda: o existente manifesta-se ao Dasein, mas sob o modo da apa rência. Tudo o quç anteriormente havia sido des-coberto mergulha de novo na noite: o Dasein escolheu a vida inau têntica (60). «verdades eternas» não passam de afirmação fantástica e o facto de mui tos filósofos nelas terem «acreditado» não as legitima de forma alguma. (80) SZ, pág. 226. — Heidegger retomou a questão da verdade em a Essência da Verdade (Vom W esen der Wahrheit), estudo publicado em 1943 (Vittorio Klostermann Verlag, Francfort-sur-le-Mein, in-8.° de 32 págs.), que reproduz uma conferência repetida várias vezes por Heidegger, entre 1930 e 1932. A doutrina de Sein und Zeit é profun damente alterada neste 'novo trabalho (e, possivelmente, nele se con substancia também o motivo que levou Heidegger a desistir de publicar a segunda parte daquela obra). É difícil resumir em poucas palavras a nova posição de Heidegger. Partindo da noção da verdade como identidade entre a re-velação e o re-velado, Heidegger deduz que a essên cia da verdade é a liberdade, porquanto a liberdade consiste no acto de «deixar-ser» o existente por meio da re-velação. Todavia, acresceinta ele, esta re-velação é sempre necessàriamente acompanhada de um velamento (ou de uma dissimulação): o ser do Dasein é ainda mais dissimulante e velador do que des-cobridor e re-velador. Com efeito, a re-velação dos elementos singulares, com os quais o Dasein está relacionado, dissimula simultaneamente o existente como totalidade, razão por que a re-velação é ao mesmo tempo dissimulação: origina a errância (Irre). O Dasein é, portanto, simultâneamente clarividência e ilusão, verdade e não-verdade; a sua essência é confusão e mistério. A não-verdade irrompe da própria essência da verdade. O pior é que essa dissimulação se dissimula a si própri a: o mistério do Dasein envenena até as próprias origens da «ver dade». Desta forma, o homem histórico move-se nas trevas que o assediam por todos os lados. Só através da filosofia é que o homem se poderá libertar da errância. Como? Das trevas em que mergulha ele terá de levantar os olhos para o mistério do Dasein no qual encontrará explicação para aquelas mesmas trevas. Conseguiremos assim libertar-nos da errância através da filosofia que no-la revela na sua «verdade» (isto é, na sua necessidade). Entretanto, dever-se-á perguntar: sendo o Dasein um «ser dissimulante», na sua qualidade de re-velador, mistério e mistério insondável, abismo
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Não havendo verdade, acrescenta Heidegger, senão na medida em que o Dasein é, e só enquanto é, uma vez que qual quer verdade é sempre relativa ao seír do Dasein, não se segue daqui que qualquer verdade tenha de ser sempre «subjectiva», pelo menos no sentido em que esta palavra significa poder arbitrário do sujeito. A verdade como revelação é um modo de ser do Dasein e, como tal, escapa aos caprichos deste, porque resulta de uma estrutura que é universalmente característica do Da.sein. Há, portanto, uma «verdade uni versal» ou, mais exactamente, um «valor universal» para a verdade. Nenhum cepticismo, por consequência, é de admitir ou de justificar. Há necessàriamente uma verdade, por que, existindo nós sob o modo de ser do Dasein, já estamos na verdade. Quando «supomos» que há uma verdade, é porque o Dasein, ao mesmo tempo que é, já está convencido da sua capacidade de conhecer a verdade — e conhecê-la, para ele, é torná-la existente: ele, de certo modo, segrega-a naturalmente. Assim, como não se podem admitir «verdades eternas», também não se pode conceber que exista um céptico real, de carne e osso (67). de confusão e de ilusão, como é que ainda será possível atribuir qualquer sentido à «verdade do Dasein»? A verdade já não é senão o erro e o erro passa a ser a verdade, uma vez que a re-velação é dissimulação e que a dissimulação é re-velação (porquanto dissimula a dissimulação). Heidegger parece conformar-se com estas consequências; para ele, a última sabedoria do homem consiste na aceitação da ilusão, isto é, no reconhe cimento daquilo que é, ou seja, no reconhecimento da impossibilidade que inibe o homem de des-cobrir essa verdade, em cujo encalço ele se lança, no entanto, porfiada e afanosamente. (Durante a revisão das provas tipográficas desta obra, recebemos a tradução francesa que A. de W aelhens e W . Biemel acabam de publicar {Louvain Nauwelaerts, 1948) de Vom Wesen der Wahrheií, precedida de uma Introdução que muito ajuda a compreender este tema extremamente difícil). (0I) SZ, págs. 200-230, O cepticismo é, sem dúvida, mais para temer do que supõe Heidegger. Neste neo-kantismo em que o Dasein. pr&-
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V Ser-para-a-morte
1. Já estudámos a esitrutura fundamental do ser-no-mundo, cuja totalidade indiferenciada se revela como preo cupação: o Dasein é um poder-ser peto qual se torna, no seu ser, em problema do seu mesmo ser. O que precisamos agora de definir é o ser em geral. A análise existencial do Dasein, tal como a temos seguido, não é susceptível de nos fornecer uma interpretação ontológica do que no ser há de original e de primeiro, porque ela não nos deixou entrever ainda a unidade da estrutura total do existente. É, portanto, esta unidade da totalidade que precisamos agora de conhecer. A ela chega remos pela noção da morte (es). A análise do Dasein como preocupação mostrou-nos que o Dasein é perpétuo inacabamento. Como podemos, portanto, esperar apreendê-lo na sua totalidade, se esta jamais se encontra realizada? É certo que a morte pode ser considerada um acabamento: ontològicamente, é a possibilidade do Dasein, jectando a luz que é ele mesmo (es selbst die Lichíung ist, SZ, pág. 133), cria a inteligibilidade e q ser das coisas (isto é, dos existentes em bruto ou em-si), onde estará a prova ou o fundamento que possa justificar o valor universal atribuído à verdade? Heidegger apela para a estrutura universal do Dasein. Mas o círculo vicioso é notório: esta estrutura do Dasein não é, em si mesma, senão uma descoberta do Dasein, isto é, foi transformada por ele em verdade universal. Ora, é exactamente esta ver dade que está em questão! — Por outro lado, admitir que o Dasein segrega a «verdade» como o fígado segrega a bílis, é ir directamente ao encontro do cepticismo, cuja asserção fundamental se pode traduzir na fórmula de Protágoras: «o verdadeiro» é apenas o resultado de uma fatalidade psico lógica e só traduz, de facto, exigências puramente subjectivas. P ) SZ, págs. 231-235.
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na qual a totalidade do ser do Dasein se encontra em jogo. Este acabamento, porém, é ao mesmo tempo a sua ruína e o seu fim: o Dasein não pode ser de forma alguma, como existente, objecto de experiência (89). «—Mas nós observamos a morte dos outros... Esta observação, todavia,, só se pode fazer de fora e nada nos elucida sobre o que a morte é para o moribundo. Aliás, ainda mesmo que pudéssemos «experi mentar» ou «padecer» a morte de outrem, nada adiantaríamos, porque isso não seria penetrar o sentido ontológico da minha própria morte. Não é possível, nesltc caso, apelar para a comutabilidade dos Dasein, porque essa comutabilidade rea liza-se sob o modo do «se» e da quotidianidade: na morte, a comutabilidade cessa absolutamente, porque ninguém pode assumir a morte de outrem. Na quotidianidade, eu sòu todos-os-outros; mas, na morte, eu já não sou senão eu. Morre-«se» sozinho, dizia Pascal: a morte, na medida em que é morte, é essencialmente e exclusivamente minha (70). Deveremos, portanto, desistir de apreender a essência do fenómeno da morte? ■— Retomemos a análise da noção dg acabamento e de inacabamento, na sua relação com a noção de totalidade. Que significa o acabamento do Dasein? Poder-se-á definir como um «não ainda», uma dilação, uma delonga: o Dasein «ainda não» é o que será, e esta estru tura caracteriza-o durante todo o tempo em que ele é. Atingir o seu fim é para o «não ainda» cessar de existir como Dasein. Assim, o inacabamento do Dasein não pode de forma alguma comparar-se à falta de acabamento de certas coisas ape C ) SZ, pág. 236. (,0)' SZ, págs. 237-241. A. de Waelhens (loc. cit., pág. 138, n. 3) observa com razão que, nestas afirmações, há um grave equivoco. Hei degger não distingue «o morrer» fenómeno existencial (acontecimento individual concreto) da morte, fim de toda a existência. O fibtico e o ontológico são confundidos uma vez mais.
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nas incompletas por não terem reunido todos os elementos que as integram e que, sob qualquer forma, já existem. De facto, as coisas nunca são «incompletas»: são sempre completas tais como são e a nossa percepção é que, por referência a um modelo ou a uma essência, as faz ou não «incompletas». O crescente da lua é, cm si mesmo, uma coisa acabada: sou eu que o concebo como progressão para a lua cheia. A água, quando se aquece, é, em qualquer momento, com a temperatura que acusa, uma coisa acabada e perfeita mente determinada: mas eu, desejando água a ferver, consi dero-a como água «incompletamente» quente. Com o Dasein, nada disto acontece: o seu inacabamento é realmente consti tutivo: o «não ser ainda» é para ele maneira de ser essencial. O Dasein é uma fuga perpétua em direcção às suas possibili dades : corre atrás de um possível que não é outra coisa senão ele próprio e que, como tal, está necessariamente fora do seu alcance. O Dasein é, por essência, o ser que jamais poderá alcançar-se. A totalidade do Dasein poder-se-á comparar à matu ridade do fruto? Aqui, a comparação também não será per tinente. O fruto é. de facto, um acabamento, mas a título de perfeição adquirida, enquanlto que o acabamento do Dasein nada tem que ver com a perfeição: é um desmoronamento , ou seja, o esgotamento das suas possibilidades específicas. Morremos imperfeitos assim como morremos sozinhos. Será. por último, possível compreender a morte como cessação do Dasein? Diz-se que a chuva «cessa» quando deixa de cair, que o caminho «cessa» quando já não existe como tal, que o pão chegou «ao fim» quando se encontra consumido, que a pintura está «concluídta» quando a parede está pronta. Ora, nenhuma destas acepções convém à morte do Dasein: morto, o Dasein não fica nem acabado no sen tido de perfeito, nem simplesmente desaparecido, nem tornado pronto. Na realidade, como «não ainda» essencial, o Dasein,,
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desde que é, já é o seu fim. O seu ser é um set-para-o~fim (Sein-zum~Ende). Desde que o homem nasce já é suficiente mente velho para morrer. A morte não é, portanto, uma «cessação». O Dasein não cessa de existir por efeito de um acontecimento ou acidente exterior: a morte é para ele uma maneira de ser que o afecta enquanto existe (71). A morte é uma possibilidade que o próprio Dasein assumiu para definir, através da forma mais pessoal, o seu poder-ser. Os homens, geralmente, exímem-se à angústia da morte. Uns encaram-na como simples verdade estatística ou certeza experimental. Neste caso, fica indecisa a minha sorte pessoal. Outros reduzem a certeza da morte à certeza de que «se morre», como se a morte atingisse apenas o «se», que não é ninguém. A morte corresponde, para o tagarelar quotidiano, a um caso acidental e desagradável. Há sempre a preocupação de dissimular aquele ser-para-a-morte que nós somos: con solam-se os moribundos escondendo-lhes a iminência da morte (quem consola é que, de facto, se esforça por se animar a si mesmo). O «se» foge diante da morte: afasta o pensa mento da morte como debilitante; não item a coragem necessá ria para afrontar a angústia que ela envolve (T2). Esta angústia, porém, nunca poderá deprimir o homem se ele se colocar, de verdade, em presença da morte, enca rando-a como a sua possibilidade mais pessoal e menos mutável. Esta possibilidade, de facto, não é outra coisa senão a possível impossibilidade da existência em geral. Não se trata de uma certeza empírica, como a contida na afirmação: é certo que «a» morte há-de-vir. Trata-se, sim, de uma necessidade metafísica que é, quanto ao Dasein, a mais pessoal e, ao mesmo tempo, a mais geral: necessidade de uma não-
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SZ, págs. 241-246. SZ, págs. 252-255.
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-necessidade da existência, contingência absoluta de toda a existência humana. O homem é, essencialmente e constitucio nalmente, um ser-para~a~morte (Sein-zum-Tode). O homem só existe para morrer. Enquanto não compreender isto, o Dasein não se compreende a si mesmo. A interpretação existencial da realidade humana como ser-para-a-morte é a única que permite ao Dasein conformar-se com a existência autêntica e, por consequência, com a ipsidade da existência pessoal, uma vez que a morte se apresenta sempre e necessàriamente como sendo a minha morte (73). O que, portanto, me individualiza em mais alto grau é a angústia que provém da morte e do nada (7i). Deste modo, a angústia é a forma própria da autenti cidade. É a revelação do nosso ser, dando sentido a todas as nossas possibilidades e à totalidade do Dasein, e esta não é mais do que a absoluta inclusão de todo o nosso poder-ser na possibilidade fundamental da moríe (75). (" ) SZ, págs. 239, 240, 250, 263. (” ) J. P. Sartre (L'être et le néartt, págs. 617-619) não hesita em classificar esta argumentação de Heidegger tuna escamoteação. Heidegger, escreve Sartre, «começa por individualizar a morte de cada um de nós dizendo que ela é a morte de uma pessoa, de um indivíduo», não podendo, portanto, outro assumi-la por mim; e, a seguir e como consequência, «uti liza essa individualidade incomparável, que ele confere ã morte a partir do «Dasein», para individualizar o próprio «Dasein»; é arremessando-se livremente para a sua última possibilidade que o «Dasein» se conformará com a existência autêntica e se desprenderá da banalidade quotidiana para atingir a unicidade insubstituível da pessoa». Trata-se de argumentação circular. (’*) SZ, págs. 255-260. — Interessa apenas sublinhar o equívoco da fórmula «ser-para-a-morte». A palavra «para» pode ser tomada em dois sentidos completamente diferentes consoante designa termo ou finali dade. O homem é «para a morte» no sentido em que a morte é o termo neces sário da existência humana; mas não se segue que ele seja para a morte no sentido de a existência humana não ter outra finali dade que não seja
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2. A maior parte das vezes, o ser-para-a-morte corres ponde para o Dasein a um simples dado empírico: o Dasein não se reconhece no seu ser como sendo propriamente para a morte. Vimos, efectivamente, que a quotidianidade é uma espécie de fuga diante da morte. A autenticidade exigirá, pois, que o Dasein se possa manter e conduzir como sendo propriamente um ser-para-a-morte. Quais serão as condições existenciais dest3 possibilidade? Observemos em primeiro lugar que a possibilidade tem, aqui, um sentido completamente especial e, na verdade, único. Na ordem dos objectos intramundanos, realizar um possível é aniquilar a sua possibili dade, mas também é criar novas possibilidades: a possibilidade, como tal, subsiste a todas as realizações. A morte, ao con trário, nada realiza: ela é estritamente a possibilidade da impossibilidade de qualquer nova realização. A aceitação da morte equivalerá à espera da morte, visito que corresponde a uma possibilidade constitutiva e permanente do ser-para-a-morte. O suicídio não poderá ser, efectivamente, senão uma outra forma de fuga diante da morte. A existência autêntica está sempre colocada diante da morte, admitindo-a como próxima, e, pottanto, encontra-se em condições de poder compreender, em cada momento, a vaidade absoluta de qual quer realização e o nada de tudo o que pode ser tomado como real. Pouco a pouco, a contingência fundamental da nossa ou de qualquer outra existência torna-se «maior», isto é, a morte. O homem é-para-morret, já que morrer é uma lei inelutável da condição humana: mas também não-é-para-morrer, porque a morte nio constitui a razão de ser da existência humana. Ou então, servindo-nos de outras palavras dentro de linguagem mais heideggeriana: a morte nâo corresponde ao sentido absoluto e definitivo da existência. Digamos, pelo menos, que não se pode passar tão inadvertidamente, como o faz Heidegger, do primeiro para o segundo sentido, ou seja, do plano do facto o plano do direito.
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descobre-se como não suportando absolutamente qualquer limite, como não admitindo «mais ou menos», significando a possibilidade infinita da impossibilidade da existência. Con sequentemente, o Dasein consente na morte como a suprema e mais pessoal possibilidade do seu próprio existir, possibi lidade inelutável e sem apelo. Torna-se livre diante dela, ao sentir o nada de todo o ser (70). Livre para as suas próprias possibilidades, compreendi das como estão na possibilidade fundamental do ser-para-a-morte, o Dasein não corre o perigo de se deixar influenciar pela maneira como os outros compreendem a existência, nem, por sua vez, pretende constrangê-los a adoptar a sua própria maneira de ver. Admite que os outros sejam o que quiserem ser. Se é certo que o sentido autêntico da morte isola, tam bém é certo que a existência em comum é essencial ao Dasein e funda-se na possibilidade deixada a cada um de fazer do (") J.-P. Sartre critica àsperamente (Uêtre et le néant, págs. 615-638) estes pontos de vista de Heidegger. Não pode conceber que a realidade-humana possa ser definida como um ser-para-a-morte. É-me ahsolutamente impossível, diz, esperar a morte, como minha morte. A morte pertence evidentemente à condição humana; mas a minha morte não está nem pode estar dentro das minhas possibilidades. Não pode fazer parte da estrutura ontológica do «por-si». Ela mostra-nos o facto total mente contingente da existência do outro e do mundo, porque sem o outro, ela seria a desaparição simultânea do «por-si» e do mundo, do subjectivo e do objectivo: ela não pode ser queda fora do mundo senão porque o outro é causa de que haja ainda um mundo. A morte é, por
tanto, vun puro {acto, radicalmente contingente e absurdo, que eu não posso esperar e que me vem de {ora, por acaso, exactamente como o nas cimento, constituindo com este o dado puro e simples a que chamamos facti cidade. — Esta crítica de Sartre é decisiva. O ser-para-a-morte corres ponde a uma impossibilidade metafísica, porque a morte, como atrás refe rimos, não constitui de forma alguma um fim ou uma finalidade. Mas isto nâo significa que estejamos de acordo com Sartre. Não é agora oca sião de discutir o seu ponto de vista. A ele havemos de voltar.
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seu poder-ser aquilo que entender. Tal é a liberdade diante da morte, fundamentalmente manifestada pela angústia (77). 3. Tudo o que acabamos de dizer relativamente ao ser total do Dasein assenta no terreno fenomenológico. Sabemos que o ser-para-a-morte é existencialmente possível. Resta-nos saber se corresponde também a uma exigência do Dasein, quando este se encontra plenamente consciente de si. Para isso, precisamos de um testemunho. Só mediante um teste munho é que poderemos saber se o Dasein, em virtude de uma conexão essencial com o seu poder-ser fundamental, se arremessa, ou não, no ser-para-a-morte (78). Precisamos, portanto, de conseguir o testemunho de uma existência autêntica, isto é, de uma existência que se iretomou ou reconquistou, arrancada à empresa primeira do «se». O senso comum diz que é à consciência moral que se deve pedir esse testemunho. A voz da consciência é, com efeito, a expressão do que há de original no Dasein. INão é facto acidental; «existe» segundo o modo de ser do Dasein e cons titui com ele um único todo. Ora a consciência apresenta-se como apelo (Rof) do Dasein ao seu mais pessoal poder-ser e à sua própria respon sabilidade. Poderá haver quem interprete a voz da consdênda (” ) SZ, págs. 260-267. — Heidegger não põe a questão de um para-além da morte. É certo que, 30b o ponto de vista da análise do ser-no-mundo, a questão não deverá ser posta. No entanto, a análise fenomenológica deve certamente dar conta desta espécie de exigência de imor talidade que, em determinado sentido, também parece ser constitutiva da realidade humana. Todavia, Heidegger vê nisso apenas uma outra maneira de «fuga diante da morte». (™) A. de Waelhens (loc. cit., págs. 150-151) frisa que este «tes temunho» não pode ser tomado senão como complemento da teoria que o precede, como a teoria, em si, não pode ser senão uma interpretação dos factos.
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como sendo outra forma do imperialismo do «se». Entretanto esta interpretação não é de admitir porque o apelo da cons ciência, contrariando, por vezes, inteiramente as sugestões do «se», chega a provocar uma ruptura brutal no estado de aten ção e de submissão a esse mesmo «se». A quotidianidade desmorona-se perante a voz desse apelo, que vem de longe e ressoa ao longe. Quem é aqui o interpelado? Evidentemente que é o pró prio Dasein e o apelo ê dirigido, através do «eu-se», ao próprio si do Dasein. O «se», atravessado por este apélo, deixa de ter sentido — pelo menos, quando o interpelado escuta o apelo como deve ser e o interpreta fora dos moldes do tagarelar quotidiano. Mas, então, quem faz o apelo? Eis o que, sobre modo, interessa saber para podermos interpretar fielmente o fenómeno da consciência. Nós dizemos que a consciência faz apelo ao «si» do Dasein, para além do «se» do descai mento. Mas, como tal, fica indeterminada. Não diz nem o seu nome, nem a sua posição, nem a sua origem; não mostra o seu rosto. Opõe-se a que o seu clamor tenha uma inter pretação «mundana»; não quer ser outra coisa senão esse mesmo apelo. Quem é portanto que dirige o apelo? — Só pode ser o próprio Dasein. Mas, então, o Dasein interpelado vem a ser a mesma coisa que o Dasein interpelante? Claro está que o Dasein não se interpela deliberadamente a si mesmo. O grito de apelo sai-lhe contra a sua expectativa e até contra a sua vontade. Mas esse grito não provém de outro — de um outro qualquer situado no mundo. Ele retine no fundo de mim e também por cima de mim (79). Isto é o que , na realidade, se passa, quer (™) Reconhece-se aqui o tema agostiniano: «Deus intimlor intimo meo et superior summo meo». Heidegger repele, todavia, o recurso a Deus, como «apelante», ao afirmar que o apelo, a vir de Deus, seria puramente
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se considere esse grito como a voz de Deus guer como a expressão de uma força estranha (da sociedade ou das potên cias biológicas da raça e do sangue). Estes recursos, porém, são inteiramente inoperantes: não conseguem explicar a razão por que o apelo é simultaneamente meu e estranho a mim. Admitimos que o apelante é o próprio Dasein, um Dasein que nada permite identificar como realidade mundana, mas que se revela na angústia da sua condição original de ser-arremessado-no-nada~do-mundo. A sua voz parecerá, ao «eu-se» da existência quotidiana, como vinda de muito longe, de terra estrangeira, embora ela saia do próprio Dasein que é quem apela, como consciência, do fundo do seu ser. Este grito da angústia chama a si o Dasein e leva-o a encarar as suas autênticas possibilidades. Ao mesmo tempo, a consciência revela-se como o grito da preocupação: o apedante é o Dasein que, abandonado, se angustia ao ver-se devolvido ao sen tido da sua condição original; o apelado ié o Dasein, solicitadio a levantar-se do seu descaimento no «se». Perante o Dasein, equaciona-se, portanto, a escolha entre a autenticidade e a inauteniicidade; e a possibilidade desta alternativa radica-se na estrutura fundamental do Dasein, que é preocupação (80). 4, Interpelado, o Dasein djeve responder, isto é, deve escolher. De outro modo, o apelo deixaria de ter sentido. Ora a voz da consciência começa por nos falar de culpa e de culpabilidade (Schuld). Que quererá isto dizer? Ser culpável de qualquer coisa é ter contraído uma dívida para com alguém, em virtude de danos que lhe causámos nos seus bens. Devo-lhe exterior ao Dasein. No entanto, é aqui que se encontra a solução da que*« tão! Se a consciência exprime uma ordem de direito, que vem de Deus criador, o grito que ela lança não há dúvida que é simultâneamente dela e para ela -- sem deixar de ser de Deus.
H
SZ, págs. 267-280.
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aquilo de que o privei injustamente. Sou responsável perante ele dessa falta, ao mesmo (tempo que sou a sua causa. Pre cisamos, agora, de ir mais adiante, procurando definir o sentimento de culpa, não já em função do seu objecto, mas na medida em que o ser-culpável deve ser compreendido como modo de ser do Dasein. Para tanto, a ideia de «culpável» deve ser reduzida ao que ela possui de mais formal; deverá ser encarada em si, sem relação com qualquer dever ou lei, para que o culpável não possa sentir-se em falta por virtude da sua culpa. De resto, é o que se passa com a existência, como se viu: não porque ela seja perfeita, mas porque não pertence à categoria dos seres-coisas, aos quais qualquer coisa pode faltar. A cul pabilidade implica negatividade, e, por isso, convém esclarecer a natureza existencial desta negatividade. Ela não pode ser puramente objectiva e, portanto, não consiste apenas em privar outrem de um objecto ao qual tem direito: se assim fosse a negatividade estaria noutrem e não no culpável. Torna-se necessário acabar com a terminologia habitual e dizer que a minha culpabilidade não resulta de uma falta noutrem: a falta noutrem é que resulta da minha culpabilidade e deve-se unicamente ao facto de já se encontrar em mim a negativi dade. Que será, portanto, esta negatividade esjtrutural do Dasein, princípio e fundamento do mal que ele pratica? Fâcilmeníe o conseguiremos saber, desde que nos recordemos que o Dasein é essencialmente preocupação, isto é, abandono, pro-jecção e descaimento. O existente conhece-se como lançado-no-mundo e este carácter não se localiza atrás dele, como resultado de um facto consumado, mas acompanha toda a sua existência sob a forma de preocupação. Sob este aspecto, o Dasein existe como poder-ser, com o encargo e a respon sabilidade de escolher livremente as suas possibilidades. Todavia, esta liberdade não é absoluta: por um lado, o Dasein
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não se deu a si mesmo o ser que ê; por outro lado, as possi bilidades que se lhe abrem são limitadas: ele só realiza umas, excluindo outras; escolher é renunciar. O Dasein nunca pode, portanto, ser senhor absoluto da sua própria existência. Além disso, a negatividade é para ele constitutiva: em certo sentido, ele é, no fundo de si mesmo, uma negatividade. E é o duplo carácter de não ser por si mesmo, visito ser um ser-arremessado-ali, e de se sentir estruturalmente constrangido a tornar-se este ou aquele ser, que define a angústia do Dasein, não como correspondendo a um momento passageiro da sua existência, mas como a sua própria essência. Por este motivo o Dasein é culpável e culpável enquanto existe e como nega tividade que é. Esta mesma negatividade tem, portanto, o seu princípio no Dasein, uma vez que ele assume uma existência que a si se não deu e que consente em existir sob o modo de um poder-ser, que é fundamentalmente imperfeito e finito. Responsável da sua própria finitude e do seu nada, o Dasein é por isso mesmo inteiramente •culpável (81). (8I) SZ, págs. 280-289. — Ter-se-á notado certamente como nesta dialéctica acerca da culpabilidade e do pecado Heidegger se furta delibe radamente a qualquer referência religiosa. São curiosas, a este respeito, as considerações de A. de Waelhens {loc. cit., págs. 164-165). Por um lado, diz, não se poderia pensar em abolir a culpabilidade pela conversão a um novo género de vida: pelo contrário, ela é de tal forma essencial ao Dasein que nenhuma conversão passageira é concebível e, menos ainda, qualquer libertação ou redenção. A «redenção do homem», segundo este contexto, só poderia resultar de uma destruição da natureza humana — tese tipicamente luterana. Por outro lado, dificilmente se poderá conceber que a culpabilidade, assim compreendida, ainda conserve qualquer signi ficação moral. Está integrada no corpo como sua propriedade natural: não é um facto proveniente da vontade e da escolha. Heidegger afirma, e repisa, que é o Dasein que assume a sua própria finitude. Mas, como poderia ele deixar de a assumir? Encontramo-nos assim perante uma con cepção que a consciência moral repele de forma absoluta: nSo há dúvidk
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VI
A existência autêntica e a temporalidade
1. O conhecimento e o sentimento da culpabilidade pessoal, experimentados e vividos num silêncio de angústia, são a condição e a forma da «reso/ução>, que é o acesso à vida autêntica, à verdade original do Dasein. Esta « resolução» (Entschlossenh^it) é propriamente a projecção e a determi nação (isto. pelo menos, na ordem das situações concretas existenciais, porque, ontològicamente. a possibilidade do Dasein mantém-se sempre indeterminada, aberta) das mais pessoais possibilidades do Dasein, consideradas dentro da perspectiva da culpabilidade original e do ser-para-a-morte, irremediável e tctal. Com isto. porém, nada se alterou no conteúdo do mundo: as relações com os outros não se modificaram. O que se modifica profundamente é o aspecto sob o qual o mundo e os outros terão, de ora avante, de ser apreendidos. Estamos perante uma nova descoberta do mundo, segundo a qual o Dasein, permanecendo ser-no-mundo, passa a tolerar em absoluto os outros, sentindo que não pode modificar-lhes a consciência, e substitui as caprichosas e agitadas relações do interesse por um verdadeiro ser-em-comum (82). É certo que a existência resoluta não pods de forma alguma sepafar-se do clima e do ambiente do «se». Não é possível abstrair da «situação». que implica um sem-número de circunstâncias
que a
finátude é a condição primeira da possi bilidade do pecado; todavia, ela não constitui o pecado, Este reside, não na finitude, nem na escolha desta, que está fora do nosso akance, mas na livre escolha de uma acti vidade má. (■) SZ . págs. 296-298.
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(pessoas, lugares, profissão, negócios) sobre as quais o «se» reina como pleno senhor. Mas ao Dasein resoluto compete considerar a situação sob o aspecto da vaidade absoluta e do nada irremediável, que só ele, vivendo-a, será capaz de apreender, áo contrário do «se», para o qual tudo se reduz a ocasiões e acasos, acontecimentos isolados que surgem do fundo de uma «situação geral» que, provavelmente, aíé poderá ser considerada como uma coisa. Esta «resolução», que coloca tudo sob a perspectiva da morte, está, entretanto, longe de poder ser tomada como puro hábito. Corresponde a uma conquista permanente e corres ponde ainda, pelo próprio efeito das transformações inces santes da situação e das insidiosas tentações que elas originam, a uma vitória, que continuamente se renova, contra os sempre novos e constantes aliciamentos da inautenticidade í83). 2. Já podemos agora compreender melhor o sentido da preocupação como elemento constitutivo do ser do Dasein. Precisamos, entretanto, de ir mais longe na análise da preo cupação, es£crçando-nos por lhe apreender com mais precisão ainda a estrutura ontológica fundamental e estabelecendo a nossa análise sobre tudo o que nos é dado, e constantemente dado, fenomenológicamente, pela experiência do Dasein. A permanência do Dasein não se funda numa substancialidade ilusória, mas sim na autonomia do seu eu existente, cujo ser foi apreendido como preocupação. A preocupação, por sua vez, enraíza-se na experiência da temporalidade da existência resoluta. Esta temporaliza-se necessariamente, ainda que de modos diferentes, nas suas diversas possibilidades. Ela não está dentro do íempo, como uma coisa dentro de (a ) SZ, págs. 289-301.
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outra, mas é temporal por essência, da mesma forma que
existir não c mais do que exercer modos de temporalização.
Há uma constante reciprocidade entre a temporalização e os modos de ser do Dasein (84). Para podermos apreender o sentido da temporalidade (Zeitlichkeit) e o valor expressivo da totalidade do ser do Dasein, é preciso considerar que o Dasein é sempre e necessàriamente antecipante, uma vez que ele está continuamente voltado para as suas possibilidades. Em seu ser, o Dasein é fundamentalmente futuro (85): o homem é «o ser das lonjuras'» (86). Na existência resoluta, esta antecipação terá de ser necessàriamente a da morte, que, como possibili dade extrema, encerra em si todas as outras possibilidades. O Dasein resoluto não pode, portanto, conquistar a plena certeza da sua resolução (uma vez que a possibilidade d'a inautenticidade é igualmente constitutiva do Dasein) senão retomando-se constantemente a si mesmo e contrariando as forças caprichosas da inautenticidade, isto é, só poderá adquiH
SZ, págs. 301-304.
(“ ) Montaigne exprime a mesma ideia em termos semelhantes, o que não é de estranhar dada a sua familiaridade com Os processos da análise existencial, Diz ele: «Aqueles que censuram os horàens por anda rem sempre a olhar para as coisas futuras e nos ensinam a apreendermo-nos como bens presentes e a repousarmos neles, como tendo ainda menos ligação com o que há-de-vir do que com aquilo que já é passado, come tem o mais vulgar dos erros humanos, pois atrevem-se a chamar erro àquilo para que a própria natureza nos encaminha, com o fim de dar continua ção à sua obra, e imprimem-nos, assim, a ideia falsa de que devemos ser mais ciosos da nossa acção do que da nossa ciência. Nós nunca nos encontramos dentro de nós; estamos sempre para além de nós. O temor, o desejo, a esperança lançam-nos para o que há-de vir e ocultam-nos o sentimento e a consideração daquilo que é, deleitando-nos com aquilo que há-de ser, mesmo para lá da nossa existência». (Essais, i, iii, ed. V i l l e y , t. i, págs. 15-16).
(“ ) Wgr, pág. 100.
*
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rir essa certeza por uma antecipação constantemente renovada da sua morte. O pensamento da morte caracteriza o Dasein que se tornou transparente a si próprio. Há, portanto, uma ligação essencial entre a resolução e o ser-para-diante. Ligação essencial há também entre a resolução e o ser-sido (ser-passado), visto que a aceitação e a antecipação da morte é a aceitação da culpabilidade original, a qual impiica que o Dasein se assuma tal como foi sempre, tal como j á era quando foi arremessado-no-mundo (87)- A vida autêntica é, portanto, um «passado-futuiro» (88): simultânea e solidàriamente regresso ao passado e pro-jecção para o futuro, isto é, para a morte e para o nada. O Dasein é simul~ tâneamente futuro e passado, e só por isso a resolução pode tornar presente a situação, isto é, possuir o sentido autên tico do presente, que se define propriamente pelo instante, ou seja, o presente estabelecido e mantido na temporalidade autêntica (8B), na qual o passado e o futuro são ambos pre sentes (eo). (" ) SZ, págs. 325-326. (“ ) SZ, pág. 391. (" ) SZ, pág, 338. <—Este instante heideggeriano não corresponde exactamente ao instante de Kierkegaard. Heidegger diz (SZ, pág. 338, n. 1) que Kierkegaard analisou bem o fenómeno existentivo (ôntico) do instante, mas que não conseguiu dar-lhe uma interpretação ontológica (existencial), porque ficou demasiadamente atido à noção vulgar de tempo, determi nando o instante a partir do agora e da eternidade. Ora, escreve Heideg ger, (SZ, pág. 347), o modo do hoje é o fenómeno que mais se opõe ao verdadeiro instante, porque por ele o Dasein está em toda a parte e não está em parte nenhuma, enquanto que o instante autêntico coloca a exis tência na situação e determina o próprio estar-ai do Dasein. (m) SZ, pág. 386. — A questão, como observa J. Wa hl (Etudes kierkegaardiennes, pág. 470, n. 3), está em saber se será possível ligar estes três sentimentos, como pretende Heidegger. «Poder-se-á, tendo e«B conta esta tríplice dimensão da preocupação, que é expressão do tríplice êxtase do tempo, chegar a uma síntese do futuro, do presente e do
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Entretanto, esta interpretação ontológica da existência do Dasein corresponde a uma forma de ideal e, portanto, terá de ser encarada como um pressuposto da análise — poder-se-á objectar. E esta objecção, segundo Heidegger (01), tem plena razão de ser, porque traduz precisamente aquilo que, na realidade, se passa. O facto, que se chama ideal, não pode ser negado; deve ser tomado em conta, com o seu carácter de necessidade positiva, como objecto da investigação onto lógica. Filosofia alguma pode renegar os seus pressupostos que fazem um todo com ela, vindo ela a verificá-los através do seu próprio desenvolvimento. Foi assim que, em face dos pressupostos da pesquisa, assentámos que o Dasein autêntico é fundamentalmente preocupação e que a preocupação está essencialmente radicada na possibilidade última do ser-para-a-morte. Corresponderá, então, este sentido do ser, pergunta Heidegger, a uma construção arrojada e arbitrária? — De forma alguma. A análise mostrou-nos que não há, de facto, para o ser-no-mundo, qualquer instância superior ou ulterior à do poder morrer (B2). sado?», tal como Nietzsche, com o seu eterno retomo, pretende estabelecer um equivalente' da eternidade? (A existência resoluta permitiria, segundo Heidegger, constituir a eternidade com o auxilio do tempo). Mas, se a teo ria da existência resoluta não comporta, fundamentalmente, qualquer «fuga diante do tempo», visto que concebe o nascimento e a morte não como acontecimentos determinados mas como modos essenciais do Dasein, como poderemos nós ter ainda em conta esse mesmo tempo que Heidegger parece admitir como essência da realidade humana? Morte e nascimento, nascimento e morte tornam-se de certo modo intemporais: o tempo não é mais do que uma ilusão do Dasein; a única realidade, se assim r.os podemos exprimir, será a eternidade do nada. (" ) SZ, pág. 310. (” ) Aqui, a dificuldade é precisamente a mesma que assinalámos ao começo. A passagem da experiência singular e concreta à afirmação ontológica (e universal) corresponde ao que há de mais arbitrário e gra tuito. O que a análise mostrou é que, para Heidegger, não há instância
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3. Depois do que fica exposto, estamos agora em con dições de compreender o que é a totalidade do Dasein. A estrutura de conjunto da preocupação é que no-la descobre. Efectivamente, essa estrutura não é um ajuntamento, mas um todo orgânico, visto que os fenómenos existenciais da morte, da consciência moral e da culpabilidade são interdependentes, articulando-se entre si como membros de um único organismo. Todavia, temos ainda necessidade de considerar o eu (secun dário ou principal), que, para tantas ontologias chegou a ser tomado como um substrato (substância ou sujeito). Como vimos, a análise estabeleceu, que o Dasein só é propriamente um «eu» na e pela angústia da existência resoluta. É, por tanto, a existencialidade, como constituinte da preocupação, que fornece o sentido ontológico da ipsidade do Dasein. A estrutura da preocupação, apreendida no seu conjunto, inclui o fenómeno da ipsidade (93). Por outro lado, sabemos que a temporalidade nos dá o sentido ontológico da preocupação. Ela revela-nos, efectiva mente, a estrutura total da preocupação, explicando a anticulação interna e originál dos seus elementos constitutivos. Futuro, passado e presente são formas solidárias da preocupa ção. O Dasein é fundamentalmente temporalização. O tempo não é uma coisa: ele próprio se temporaliza sob a forma de futuro, de passado e de presente, que são os três êxtases da temporalidade (Ekstasen der Zeitlichkeit), não estendidos, nivelados e indefinidamente repetidos, como é concepção superior à do ser-para-a-morte. Mas com que direito se pode universalizar esta situação existencial e fazer dela o formal próprio da existência? É evi dente t> erro de indução. — Poderíamos ainda acrescentar que esta análise está longe de ser exaustiva. Como teremos ocasião de ver, Sartre pôs bem a claro as suas lacunas e afirmações gratuitas, insurgindo-se energica mente contra a ideia de se admitir o ser-para-a-morte como estrutura onto* lógica da realidade-humana.
(“) SZ, págs. 316-323.
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corrente, mas imbricados entre eles na unidade fundamental da sua estrutura ontológica. Por eles, o Dasein aparece colo cado diante de um horizonte (ou esquema horizontal), que é a forma total dos três êxtases, irredutíveis e exteriores entre si, mas necessariamente dados em conjunto, como pluralidade interiormente articulada. A temporalidade é uma dialéctica viva, uma tensão contínua entre a unidade e a pluralidade. A vitória da unidade aboliria o tempo a favor de uma pura presença imóvel, sem qualquer ritmo interno capaz de dar medida da sua espessura indivisível. Da mesma forma, a vitória da pluralidade aboliria também o tempo, separando inteiramente os elementos da sua estrutura. A condição existencial-temporal da possibilidade do mundo, isto é, o mundo como transcendência, (ou como realidade exterior), implica, portanto, que a temporalidade, como unidade extática, possua aquilo que denominamos um horizonte (Horizont) . Vê-se assim como se pode dizer com verdade que é pelo facto de o Dasein se temporalizar que há também um mundo. S e nenhum Dasein existisse, não haveria mundo (94). (**) SZ, pág. 365. — Heidegger estabelece (SZ, pág. 366) que, pelo próprio facto de o Dasein ser fundamentalmente extático, o mundo já existe «ali de fora», como nunca pode existir um objecto. O problema da transcendência (ou da realidade objectiva do mundo exterior) não deve formular-se assim. «Como é que um sujeito poderá mostrar qual quer comportamento para oom um objecto fora de si», se a totalidade dos objectos se encontra identificada com a ideia de mundo? A questão como deve ser posta é assim: «como é ontològicamente possível que o existente possa ser tomado como intramundano e, como tal, ser objectivado?». Só recorrendo à transcendência extática horizontal do mundo se poderá encontrar resposta para esta pergunta. Se se apreende ontològicamente o «sujeito» como um Dasein existente, cujo ser é fundado na temporalidade, dir-se-á: o mundo é «subjectivo». Mas este mundo «subjectivo» passa então a ser, desde que é temporalmente transcendente, mais «objectivo» que qualquer objecto. — Estas explicações dificilmente poderão satisfazer. Conduzem-nos, efectivamente e com toda a evidência, a uma concepção
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A finitude do tempo resulta da preocupação como ser-para-a-morte. O Dasein existe como finito. O futuro, que temporaliza em primeiro lugar a existência e dá sentido à existência resoluta, revela-se, desta forma, como finito. Mas, não é verdade que o tempo continua apesar do desmorona mento do meu Dasein no nada? Certamente. Isso, porém, não se opõe à finitude da temporalidade original, que não é interessada pelos acontecimentos do mundo. A finitude do tempo original não significa uma cessação (como na concepção quotidiana), mas constitui o carácter essencial da têmporalização, da mesma forma que o futuro autêntico só pode existir como possibilidade insuperável de aniquilação (B5).
de «objectividade», tipicamente kantiana, que não passa de uma outra forma de subjectividade, visto que se reduz a uma simples «objectividade-para-mim». O mundo é dado ao Dasein como um «objecto»; mas isso não constitui prova da sua «transcendência». É certo que Heidegger, como se viu, eximindo-se a essa «prova», se justifica dizendo que a transcen dência se encontra na estrutura do Dasein como sendo sempre-já dada. Neste caso, porém, poderemos dizer que ela tem ünicamente valor empí rico, tomando, assim, Heidegger uma posição muito próxima do realismo ingénuo. E só pelo simples e puro idealismo é que Heidegger consegue escapar-se a este terrível extremo (se é que ele se chega a escapar — pois, a maior parte das vezes, o idealismo não passa de uma forma do realismo ingénuo). Se, efectivamente, o Dasein só se constitui enquanto constitui o mundo, a «transcendência» deste é interior ao próprio Dasein. Pouco importa, aqui, que o Dasein não possa ser apreendido senão num mundo que deverá ser considerado como sempre-já constituído, porque isso, quando muito, poderá explicar e (explicará?) a ilusão do Dasein quanto à transcendência do mundo, mas nunca poderá fazer dessa transcendência uma realidade. (” ) SZ, págs. 323-331.
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VII Temporalidade e historicidade
1. O Dasein, dizíamos, é essencialmente um ser-para-a-morte. A morte é, portanto, o «termo» do Dasein. Rigoro samente, ela não é senão o fim que devora a tofcailidade do Dasein. Há ainda outro «termo», que é o começo, o nasci~ mento. O existente desdobra-se ou estende-se, de certo modo, entre o nascimento e a morte, e esta extensão, desde que constitui sucessão contínua de dias, dá à temporalidade o carácter de historicidade (Geschichtlichkeit) . Toda a exis tência do Dasein, entre estes dois termos extremos, é uma duração e uma história (98). Ora esta história nunca deverá ser compreendida como preenchimento de uma duração exterior ao Dasein. Efectiva mente, ela é em si mesma exclusiva consequência do facto fundamental de o Dasein se temporalizar através dos três êxtases da temporalidade. A historicidade do Dasein não é mais do que o desenrolamento do próprio Dasein, e este desenrolamento ou extensão não pode ser concebido como abandono do passado e posse do que ainda não é. O Dasein, de facto, existe quando nasce e é também quando nasce que ele morre, na sua qualidade de ser-para-a-morte. Os dois «termos» e o intervalo entre eles, que é a preocupação do Dasein, existem conjuntamente, durante o tempo em que o Dasein, de facto, existe (97). A possibilidade da historicidade resulta, portanto, de o existente ser temporal, não no sentido de existir «na história»,
C) O
SZ, págs. 372-373. SZ , pág. 374.
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mas no de não existir nem poder existir senão historicamente, visto que é temporal no próprio fundo do seu ser (9S). Não poderemos, portanto, aceitar a concepção vulgar do histórico. Segundo ela, o histórico é, antes de tudo, o passado e, no próprio «presente», é tudo aquilo que tem relação com o passado, aquilo que é objecto de interesse «histórico». Assim, conservam-se nos museus objectos que pertenceram a homens célebres, não pela sua utilidade, mas unicamente porque serviram personagens que já não existem. Esta defi nição do histórico em função do passado dá lugar a sérias dificuldades ( " ) . Se se assenta, efectivamente, em classifi car como históricos os factos passados que tiveram impor tância para a civilização, por que não qualificar da mesma forma os factos presentes que devem determinar a história «futura»? Aliás, é isso o que acontece correntemente e os próprios jornais são os primeiros a anunciar que tal aconte cimento contemporâneo ou próximo-futuro virá a ser um «acontecimento histórico». Pretende-se, assim, dizer que esse acontecimento, uma vez chegado, se deverá tornar, logo que se tenha desenrolado e passado, um facto «histórico». Toda via, esta explicação é insuficiente, porque nada prova que tal ou tal outro facto, que se nos afigura sem importância, não venha também a ter importância digna de ser perpetuada. Na realidade, todos os factos, ainda os menos «importantes » têm história. O histórico engloba todos os acontecimentos, passados, presentes ou futuros, da vida humana. A este respeito, devemos ainda notar que o carácter da historicidade só se pode aplicar com propriedade aos aconte cimentos relacionados com o homem. A primazia do histórico
D
SZ , págs. 375-377.
10
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(“”) Cf. a definição dê J.-P. Sartre (Z/êíre et le nèant, pág. 581): «Se as sociedades humanas são históricas, não é só porque têm um pas sado, mas sim porque o retomam a título de monumentos,
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cabe ao Dasein. Só secundariamente é que se poderão dizer históricos os objectos intramundanos, quer se traíte de %tensilios, no sentido mais amplo da palavra, quer da própria natureza, considerada como «o campo da história» (10°). ' Resta-nos, agora, saber até que ponto e em que condições ontológicas a historicidade pertence à subjectividade do sujeito «histórico» (101). Podemos admitir, imediatamente, que a historicidade terá de se apresentar a cada Dasein segundo o modo autêntico ou inautêntico da sua temporalidade. Definiu-se a existência autêntica como sendo aquela que aceita resolutamente a situa ção, isto é, aquela que aceita as possibilidades de facto da existência e, à frente delas, a que as engloba a todas — a morte. Em determinado sentido, esta fatalidade da morte evita ao Dasein os «golpes da sorte», de que o «se» se chora continuamente. Para o Dasein não há fatalidade ou destino visto que ele mesmo é destino e fatalidade; a sua liberdade é a própria forma dessa fatalidade. Esta fatalidade essencial converte o Dasein num ser futuro, pois obriga-o a antecipar constantemente um porvir que é a queda no nada da morte. Mas isto mesmo implica a aceitação da culpabilidade original da finitude: só um existente que, originalmente, tenha sido como futuro pode assumir e aceitar a herança da sua própria derrelicção, e ser presente para o «seu tempo» (102). O Dasein autêntico não só se considera herdeiro do seu passado como assume ainda a responsabilidade de todas as possibilidades que, de facto, realizou na existência, mesmo daquelas que lhe são impostas. A autenticidade é fundamentalmente o acfo peto qual o Dasein assume o encargo de uma herança (Erbe) e só perdura enquanto durar esse acto que a consltitui. (,w) SZ, pág. 381. (1B) SZ, págs. 378-382. (’“ ) SZ , pág. 385.
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Daqui se vê que é propriamente a temporalidade, enqfanto finita, que torna possivel a historicidade, visto que implica a unidade estrutural dos itrês êxtases pelos quais a exterioridade se constitui, ou seja, a unidade estrutural de uma exisitência sucessiva, cujas fases são interiormente con cordantes e interiormente se encontram também unificadas. 2. Acabamos de mostrar que a existência resoluta assume o encargo de todo o seu passado. Não é necessário, porém, que ela o faça expressamente. Mas se o faz, devere mos considerar essa expressa tomada de encargo, segundo diz Heidegger (usando, com outro sentido, o termo de Kierkegaard) como repetição (Wiederholung), isto é, como reto mada das possibilidades do Dasein passado - e no passado do Dasein da existência resoluta se inscreve tudo o que nele houve de grande na história, isito é, no ser. Como se faz esta repetição? Não admitimos evidentemente que ela possa ter feição mecânica. Ela só pode ser invenção, isto é, retomada pessoal, com tudo o que a situação presente exige, dos exemplos que o passado nos fornece, ou, então, imitação original dos heróis da vida autêntica. Na realidade, a repetição corresponde a uma réplica das possibilidades da existência passada, ou então a um chamamento àquilo que, do passado, age sobre o presente. É que o passado, incluindo o meu próprio, está constantemente em prorrogação. Veremos mais adiante, ao estudar a maneira como o Dasein se pode historicizar, que «a história» só existe sob a forma de interpretação e que, em si mesma, é uma espécie de refracção dos fins do Dasein.. Deste modo, a história é engendrada pelo futuro. Ao mesmo tempo, porém, está sempre sujeita a ser retomada e trans formada. segundo as mudanças que podem afectar os fins do Dasein. Está essencialmente «em prorrogação» — e, para que assim não sucedesse, seria necessário que «a história» se
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desenrolasse num mundo finito e fechado, onde aos acon tecimentos fosse imprimido sentido imutável e definitivd! Só no fim do mundo poderá haver «história». Ora o próprio passado do Dasein confirma tudo isto: ao mesmo tempo que incessantemente vai criando esse pas sado vai pro-jectando as suas possibilidades. O passado que o Dasein assume e «reduplica» é, portanto, uma forma do seu pro-jecto. E se o passado, pela repetição, actua sobre o presente, como réplica das possibilidades da existência ou como apelo àquilo que se manteve eficaz, isso é devido ao coeficiente de realidade e ao significado que lhe são transmi tidos pelo Dasein. Não resta, portanto, dúvida que é pela repetição, conclui Heidegger, que o Dasein manifesta a sua própria história e exprime o poder fundamental de escolher os seus heróis (103). A tese da historicidade do Dasein não implica que o carácter histórico pertença ao sujeito, considerado em si mesmo e desligado do mundo: o Dasein existe como «ser-no-mundo» e esse facto é essencialmente histórico. Qual quer acontecimento da história é acontecimento do ser-no("*) SZ, págs. 385-386. — J. Wahl (Etudes kierkegaardiennes, págs. 232-233), diz que a «repetição» heideggeriana implica, logicamente, que «o que está inscrito no ser permaneça imperecível». Entretanto, como sabemos, para Heidegger, «só há ser em relação ao homem, o qual é perecível por essência». Deixará, todavia, de haver contradição admitindo que o que foi é susceptível de ser transmitido, não no aspecto singular e único (e que como tal já não é), mas no seu valor (relativo ao homem, claro está). Mas, sob este ponto de vista, não poderemos levantar a questão da eternidade dos valores (relativos ao homem), tal como, paradoxalmente, a levanta, por exemplo, Nicolai Hartmann, admitindo como valores eter nos os valores desprovidos de qualquer substrato ontológico e que são «revelados» pelo homem no seu quotidiano esforço de civilização. Se os valores são, como o homem, vitalícios, poder^se-ão ainda considerar valo res? Valores que subsistem, sem qualquer apoio no ser, numa eternidade puramente formal, de forma alguma são inteligíveis.
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-mundo, e a historicidade do Dasein é a própria historicidade do mundo, a qual resulta da temporalização do Dasein e da exterioridade ou horizontalidade que é, por sua vez, afec tada pelos três êxtases da temporalidade. Existindo, o Dasein situa-se num meio intramundano, e é esta sua imersão no seio do mundo que dá origem à história do mundo. Todos os objectos, instrumentos e obras, livros e instituições, etc., são, por este motivo, também «históricos», ligados como estão à existência do Dasein e à sua historicidade. O Dasein inautêntico inverte esta relação e supõe que a sua própria historicidade deriva da historicidade do mundo. Pela mesma razão, o seu ser reveste para ele a aparência de coisa arrastada numa corrente que lhe é exterior. Vive dis perso na multitude «do que se passa» em cada dia e que para ele toma o aspecto de «destino» — de um destino que o domina e lhe impõe a própria forma de vida. A sua exis tência torna-se, assim, descontínua, constituída por pontos, ficando éle sem saber o que é que entrelaça e dá unidade à existência, quando não chega até a desconhecer que existe esse princípio de unidade. Tem como carácter próprio per der-se constantemente no aqui e no agora e só compreende o «passado» pelo que conserva de «real» no «presente». O esquecimento constitui o fundo do seu ser (104). 3. Tudo o que fica exposto é de molde a ajudar-nos a' compreender a origem existencial da história (Historie) como ciência, a partir da hisltoricidade do Dasein. O problema, agora, cifra-se em saber exactamente qual é, no seu aspecto mais formal, o objecto próprio da história. As condições da (104) SZ, págs. 387-3 92.— Cf. P a s c a l , Pensées, n.° 406. «Não tendo podido desfazer-se da morte, da miséria e da ignorância, os homens, na mira de se tomarem felizes, determinaram não pensar em nenhuma dessas coisas».
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temporalização do Dasein, c da historicidade que ela funda menta, levam-nos a pensar que o único objecto possível da ciência histórica terá de ser constituído pelas possibilidades do Dasein, as que ele escolheu e que, como tais, poderão vir a ser susceptíveis de repetição, não no que tiveram de sin gular, mas naquilo que, nesse mesmo singular, tem valor uni versal. Quando a história descobre o Dasein passado, na sua possibilidade, manifesta simultaneamente o «universal» no único, Será, portanto, colocar mal a questão pretender saber se o objecto da história será constituído por factos «indivi duais» ou por «leis gerais». A história só pode ter como objecto aquilo que constitui o princípio da historicidade, isto é, a escolha existencial que o Dasein fez das suas possibili dades e que o historiador considera susceptível de repetição. O próprio historiador é também histórico: «historiciza-se» precisamente no acto em que interpreta a «história» à luz das suas próprias ideias e dos seus pontos de vista políticos, sociais, económicos, culturais, isto é, à luz dos seus próprios projectos. Dever-se-á, portanto, dizer, que a história se inicia não a partir do presente, ou do real do «hoje», donde ela se poderia voltar para o passado volvido, mas sim a partir do futuro, e, com mais precisão ainda, a partir do futuro do pró prio historiador e da sua preocupação essencial e fundamen tal (105). O historiador materializa e revela simultaneamente os fins que pro-jecta e que a si mesmo o constituem (106). ("*)■ SZ, págs. 392-397. Ê um dos sentidos que se pode dar ao Processo de Kafka. (“*) Unia lacuna singular apresenta este estudo sobre o Dasein. Sem sombra de paradoxo, poderemos dizer que nele se nota sobretudo a falta do indivíduo (ou da pessoa) — o que é particularmente grave num contexto existencialista. O indivíduo não poderia, efectivamente, afir mar-se nem compreender-se na banalidade da existência quotidiana. O «se» é inteiramente contrário à personalidade: o eu dissolve-se no anonimato
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VIII A transcendência do Dasein
1. Transcender, para Heidegger, é ultrapassar (107). É transcendente o que realiza esse acto de «ultrapassar», isto é, o existente é que transcende. Designa-se também corrente mente como «transcendente» a coisa a atingir pelo acto de ultrapassar. Todavia, esta última noção é equívoca, uma colectivo. A individualidade fica sendo o privilégio da vida autêntica, que tem como apoios a morte e a vaidade e o nada da acção. É este, de facto, o ponto de vista de Heidegger. Entretanto, como poderemos ter em conta o indivíduo autêntico de Heidegger se ele parece ser incapaz de qualquer comunicação verdadeira com os outros existentes? É certo que o «discurso» é uma das estruturas do Dasein, mas, com efeito, ele só se explicita ao nível da inautenticidade, sob a forma do tagarelar quo tidiano. Nunca é diálogo, troca de impressões e expressão de união e amizade. O autêntico é silêncio. —■Por isso mesmo, e como consequên cia lógica (porque o conflito é uma forma da comunicação), o indivíduo autêntico de Heidegger está liberto de qualquer espécie de conflito com outras pessoas, igualmente autênticas. Todavia, não há dúvida que este conflito de liberdades, esta oposição entre pessoas, constitui um dos ele mentos essenciais da individualidade. Não parece possível reduzi-lo a um puro e simples modo de ser da quotidianidade, porque, ao contrário, é uma das expressões da autenticidade. Por fim, Heidegger diz que o autêntico Dasein se define melhor pela historicidade do que pela indivi dualidade ou, então, a individualidade toma para ele a forma linear uma vida sem drama, a não ser interior, a aparência de uma existência concentrada sobre si mesma e que desconhece os outros individualmente, olhando-os em conjunto com os objectos intramundanos. Perante isto. podemos evocar o «Karma» do budismo birmano. Assim falava Gaudama (Buda) : «Cada ser tem seu acto próprio; cada qual é o fruto do seu pró prio acto e cada um tem como senhor o seu próprio acto. São os actos próprios que distinguem os homens». Na vida autêntica, os homens possuem a magnífica solitude da divindade.
(1(n) Wgr, pág. 62.
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vez que o «transcendente», assim concebido, seria parte essencial do acto de ultrapassar. Seria, como diria Sartre, um «transcendente-transcendido». Neste estudo há, segundo Heidegger ( lHK), três pontos que convém focar: o acto de ultrapassar que é acontecimento próprio de qualquer exis tente; este acto de ultrapassar mostra-se-nos, sob o ponto de vista formal, como uma relação que vai «de» qualquer coisa «para» qualquer coisa; finalmente, no acto de ultrapassar, há sempre «qualquer coisa» que é ultrapassada. O Dasein é o existente que realiza o acto de transcender. A transcendência pertence-lhe com toda a propriedade; é uma estrutura fundamental da subjectividade, isto é, não é um modo de ser do Dasein como tantos outros, mas sim ele mento constitutivo do próprio Dasein e, sob este aspecto, anterior a qualquer comportamento. Por isto mesmo não podemos utilizar aqui a noção de «sujeito puro» que existe, em sentido idealista, antes do objecto, fazendo da transcen dência uma relação entre sujeito e objecto. O que na reali dade se verifica é que o Dasein é, em si, transcendente, isto é, só existe e só pode existir ultrapassando. E, agora, é a altura de perguntar: pelo acto dé ultra passar, próprio do Dasein, que é que é ultrapassado? Terá de ser, precisa e unicamente, o próprio existente . Por «exis tente», devemos entender aqui o «existente em bruto», isto é, tudo aquilo que se encontra reduzido à pura existência (a «natu reza» ou a «terra»), sem ter ainda sido afectada pelo carácter cto ser e da inteligibilidade. É o Dasein, como vimos, que constitui os existentes como seres inteligíveis e o acto de transcender consiste nesta mesma constituição: o Dasein ultrapassa os existentes no sentido do ser inteligível de cada um deles. Por esse acto de transcendência, o próprio Dasein emerge da existência bruta e situa-se no ser. O Dasein trans(10#) Wgr, pág. 63.
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cende-se, portanto, a si mesmo, e transeende-se necessaria mente. Esta transcendência constitui a sua ipsidade (10B). •
2. Como se produz esta transcendência? Produz-se em totalidade. Não existe como facto contingente, que tanto poderá realizar-se como deixar de se realizar. Também não poderá ser tomada como contemplação puramente teórica de objectos já existentes, sobre os quais o Dasein, tomando-os como alvo da sua intuição ou do seu pensamento, neles viesse a projectar a inteligibilidade do ser. « A transcendência é fun damental e essencialmente pro-jecto das possibilidades do Dasein » (110): os existentes só são inteligíveis em função dessas possibilidades. Assim, pelo facto de existir, o Dasein já é transcendente e já se transcendeu a si mesmo, consti tuindo-se em ipsidade. Mas, sendo assim, como se poderá dizer que a trans cendência implica um sentido para qualquer coisa, uma direc ção? A implicação facilmente se compreende desde que se admita que a transcendência do Dasein se verifica no sentido do próprio mundo, considerado este como unidade e totali dade. É assim que o acto de transcender, próprio do Dasein, encontra a sua verdadeira significação: o acto de ultrapassar é criação do mundo como tal — criação, não dos existentes brutos, que estão para lá do ser e do pensamento, mas dos seres cujo conjunto organizado constitui o mundo e que ape nas são inteligíveis e verdadeiros em função desse mundo (1M). Afirmar que o Dasein transcende equivale portanto a dizer: (íog) W gr, pág. 64. — A. de Waelhens (loc. cit., pág. 253) não vê contradição entre esta asserção e a anteriormente formulada (SZ, pág. 323) que dava a preocupação como fundamento da ipsidade do Dasein. A preo cupação é o ser do Dasein, mas esse set constitui-se na transcendência. D SZ. págs. 57, 99, 102. (U1) W gr, pág. 65.
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na essência do seu ser, o Dasein é organizador de um mundo (112), devendo definir-se o acto da transcendência como sendo aquele pelo qual o Dasein se constitui como ser-no-mundo (11S). Mas, então, que se deverá entender por «mundo» e que relação haverá entre o Dasein e o mundo? Em primeiro lugar, devemos observar que o mundo não pode ser con cebido como o encadeamento empírico dos existentes. Pelo contrário, terá de ser compreendido, à maneira de Kant, designando a totalidade transcendental (ou ontológica) dós existentes: a totalidade terá de estar sempre implicada, quais quer que sejam as mudanças que afectem a sua posição interna. É a esta compreensão antecipante em relação à tota lidade que chamamos transcendência-para~o~mundo (114). O mundo, como totalidade, não é, portanto, propria mente falando, um existente. Ele é aquilo a partir do qual o Dasein anuncia não só os existentes com os quais pode entrar em relação, mas ainda como é que essas relações podem ser formadas (115). Tal é o aspecto mais verdadeiro do mundo — mais verdadeiro que o aspecto iteórico — pelo qual o con junto dos existentes é sempre acessível ao Dasein, exprimindo para ele a totalidade das suas possibilidades (116). O mundo é aquilo que o Dasein pro-jecta à sua frente, vindo a ser o conjunto das relações que pode ter com os existentes, entre (”! ) Wgr, pág. 90. (ms) W gr, pág. 65. — Perante estes pontos de vista de Heidegger poder-se-á pensar, objecta Sartre (Uêtre et le néant, pág. 503), que a configuração do mundo é determinada estàticamente pelo Dasein ao pro jectar as suas possibilidades ou ao ultrapassar os existentes no sentido do seu ser. Mas isso seria olvidar que esse mesmo pro-jecto e acto de ultra passar mudam a cada instante a própria figuração do mundo. (,M) W gr, págs. 81, 85, 87. (1M) W gr, pág. 88 . 4?M) W gr, págs. 89-90, 100.
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os quais existe. Mas pro-jectar assim o mundo é pro-jectar-se e transcender-se a si mesmo. Esta antecipação e transcen dência, que constitui, como vimos, a ipsidade do Dasein, corresponde ao acto pelo qual o Dasein constitui o mundo. Eis a razão por que se torna necessário dizer que o mundo é essencialmente relativo ao Dasein (117). Disto mesmo se conclui que o Dasein, como pro-jectante, está já no meio do existente e por ele se sente investido. A transcendência corresponde ao pro-jecto e esboço do mundo, mas de sorte que o pro-jectante seja comandado pelo reino desse existente que ele transcende (118). Pro-jecto do mundo e investimento do Dasein pelo existente são , portanto, contemporâneos: pertencem a uma única temporalidade, visto que ambos constituem a temporalização (119). E, por isso mesmo e da mesma forma, o Dasein se reconhece limitado (m) W gr, págs. 88-90. — É a esta capacidade, que o Dasein possui de constituir o mundo em função de si mesmo e de se constituir assim como ipsidade, que Heidegger chama liberdade. O acto de ultrapassar no sentido do mundo corresponde, portanto, à própria liberdade. Esta liber dade não poderá ser tomada como uma escolha, nem como simples espon taneidade (espécie de causalidade), pois que a espontaneidade e a escolha já pressupõem a transcendência e a ipsidade do Dasein. A liberdade tem uma origem mais profunda, visto que corresponde àquilo por que há um mundo, e, por consequência, àquilo por que o Dasein existe como ipsidade. Portanto, ela é propriamente o acto pelo qual o Dasein se constitui a si mesmo, ou seja, a origem e o princípio de qualquer fundamento e, por isso mesmo, de qualquer inteligibilidade e de qualquer vedor (Wgr, págs. 97-98). Assim se explica que o Dasein, na essência do seu existir, seja um ipse livre e responsável de si (Wgr, pág. 96), passando a ficar ligado ao mundo que constitui. A liberdade revelasse assim como o que torna possível criar e que, ao mesmo tempo, permite sofrer constrangi mentos e obrigações (Wgr, pág. 96). Daqui se infere, como observa A. de Waelhens (loc. cit., pág. 265), que a liberdade terá de assumir, neste contexto, a forma de uma necessidade compreendida. (11S) W gr, pág. 99. (ns) W gr, pág. 100.
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e finito. A transcendência, sob o duplo aspecto de pro-jecto e de investimento, é simultâneamente voo e privação: o pro je cto do mundo só se torna real pela privação, uma vez que as possibilidades do Dasein nunca podem ser todas realiza das simultâneamente. E este será o testemunho claro da finitude inerente à liberdade do ser humano, a confirmação evidente da essência finita da liberdade do homem (120). Às duas maneiras de «fundar» (pro-jecto do mundo e investimento do Dasein pelo existente) que acabámos de analisar, devemos juntar uma terceira, que é actualizada pelas duas primeiras e cuja essência consiste em «motivar», isto é, tomando a palavra na acepção original, em tornar possível o «porquê?» como tal. O motivar, neste sentido, recai, portanto, sobre a possibilidade transcendental do «porquê» em geral. Ora, só a transcendência, tal como foi determinada pelas duas maneiras de fundar, é que pode responder propriamente a esse «porquê?». Só ela mostra, com efeito, como o pro-jecto do mundo, determinando um voo do possível no próprio seio do existente que investe e comprime de todos os lados o Dasein, faz surgir o «porquê», que assim se torna uma neces sidade ontológica absoluta (121). Este «porquê» pode assumir formas diversas, mas as principais são as seguintes: «Porque é que isto é assim e não de outro modo?» — «porque é que há qualquer coisa antes do nada?». Estes porquês, porém, implicam já uma certa compreensão preconceitual do ser e do nada: a noção trans cendental do ser é que torna possível o porquê. Ela já con tém em si, com efeito, a resposta original, a resposta abso lutamente primeira e última a qualquer possível pergunta. Fornece, por consequência, a motivação ou o fundamento último de qualquer interrogação. Precisamente porque o ser (“ ) ('” )
W gr, pág. 101. W gr, págs. 102-103.
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e a sua situação se encontram a descoberto nessa noção é que a transcendência, isto é, a estrutura da realidade humana, corresponde à origem e princípio de toda e qualquer verdade ontológica (122). Não se poderá, no entanto, ir ainda mais longe e per guntar «porque» é que o Dasein possui uma tal estrutura? Heidegger declara que este porquê já não é legítimo porque não corresponde precisamente a nada. Efectivamente, não é possível ir além do Dasein, tal como existe. Ele é tal como é, e na análise da sua estrutura ontológica se encerra toda a res posta possível. Pretender fundar como tal o próprio Dasein seria tão contraditório como querer sobrevoar-se a si mesmo ou conhecer-se antes de ser. O recurso à transcendência transcendente do Dasein reveste carácter tão basilar em todas as relações com o existente que só à luz da compreensão do ser, emanada por essa transcendência, o existente pode ser manifestado nele mesmo, isto é, como existente que é e tal como é (12S). Mostrámos assim que a tríplice derivação do acto de fundar se radica na transcendência do Dasein e, por conse quência, na própria liberdade. A liberdade é, portanto, a ori gem do princípio de razão e, como tal, o fundamento do fun damento. Eis por que ela é o abismo da realidade humana, o fundamento que é impossível ultrapassar: apreender o carácter abissal do seu ser é para o Dasein o termo absoluto e intrans ponível de toda e qualquer investigação dialéctica ou psicoló gica. A liberdade-para-fundar é a razão última, em si mesma sem razão, porque, desde que se apreende como liberdade-para-fundar, o Dasein já se encontra arremessado na existên cia, já é o sujeito da sua derrelicção e finitude essenciais (iai). (“ ) W gr, págs. 103-105. (***) W gr, pág. 104. (“ ) W gr, págs. 109-111.
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Finalmente, teremos de renunciar à pretensão dc chegar a uma verdade absoluta. Esta, se é que a palavra tem sen tido, é e nada mais pode ser do que abismo e silêncio. Estará Heidegger disposto a ultrapassar este ponto, que ele supõe ser o escolho inexorável e impeditivo de qualquer averigua ção sobre o ser? O próprio facto de ter renunciado, ao que parece, a publicar a segunda parte de O ser e o tempo poderá ser considerado sinal suficientemente claro desse desígnio, e como confissão tácita da impossibilidade de descobrir um meio de escapar à imanência e à finitude, que caracterizam o Dasein, de lobrigar aquele caminho que conduz, finalmente, a esse Absoluto que não cessa de solicitar as aspirações tanto intelectuais como morais do homem e sem o qual nem ele nem o mundo teriam sentido. Nenhuma análise ou doutrina, por mais engenhosas que sejam, poderão convencer o homem a entronizar como absoluto, conforme pretende Heidegger, o nada e o absurdo (12S). (“’) A partir da conferência inédita sobre a Origem da obra de arte (Vom Ursprting des Kuntswerkes, 1936), cujo resumo é apresen tado por A. de Waelhens (loc. cit., págs. 283-292), Heidegger dá a impressão que caminha para «uma filosofia de inspiração nietzschiana», procurando na imersão no seio da Terra, isto é, num absoluto de tipo dionisíaco, «um remédio para uma finitude que, apesar de tudo, é insus tentável» (pág. 365). Deste modo, perante o Dasein, seria restaurado um ahsoluto, mas que ficaria, se assim se pode dizer, debaixo dele. Os únicos deuses seriam então os deuses ctónicos e a comunicação com esse mundo subterrâneo da existência bruta poderia ser conseguida, ainda que rara mente e a titulo de privilégio, e sempre parcialmente, por meio da obra de arte. — Se, nas conversas particulares, Heidegger, segundo se diz, pro testa contra o qualificativo de «existencialismo ateu» dado à sua filosofia, teremos de convir que o Deus, ao qual, no fim de contas, viria a conduzir a sua doutrina, deverá ser esse «abismo de nada», esse abismo de indeter minação que já Jacob Boehme invocava. Como se poderá, então, consi derar, sem grave equívoco, como teísta a filosofia de Heidegger? (Ver, no final, Notas complementares — 1).
Artigo
II
y.-P. SARTRE
A Náusea
1. A experiência fundamental de que parte Sartre e aquela que tem para ele maior valor como revelação existen cial é a do tédio ou aborrecimento. Numa conferência sobre «a natureza da metafísica», Heidegger declarava que «o abor recimento intenso, pairando como nevoeiro silencioso sobre os abismos da realidade humana, congraça homens e coisas, incluindo-nos a nós mesmos, numa surpreendente indiferenciação» e revela o existente na sua totalidade {'). No romance intitulado La Nausée, Sartre disserta copiosamente sobre essa experiência privilegiada e fundamental do aborrecimento. Procuremos, portanto, compreendê-la primeiramente e apreen der-lhe o seu significado (2). O ponto de vista que Sartre foca sempre em primeiro plano na sua obra é o da «liberdade». O seu objectivo con (’) (’ )
WM„ ed. C o r b i n , pág. 29.
Sobre esta análise, cf. o excelente estudo de Claude-Edmonde M a g n y , Sartre ou la duplicité de l’être, em Les Sandales d'Empédcde, ■ Ed. de la Bâconlère, Neuchâtel, 1945, págs. 105-172.
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siste em desacreditar a ideia de uma necessidade, exterior a nós, derivando de uma estabilidade das coisas ou de uma ordem moral objectiva. Os indivíduos já não são tributários de um «carácter» determinado ou de uma «essência» defi nida, donde resultariam todas as suas propriedades e todos os seus actos, nem dos constrangimentos que lhes vêm de fora, ou seja da Sociedade ou de Deus. O princípio primeiro da existência concreta dos indivíduos tem de se situar numa opção profunda, absolutamente gratuita, pela qual eles se escolhem absolutamente. É esta «liberdade» — que, aliás, nada tem de comum com a liberdade de indiferença — que singulariza as personagens de Sartre, especialmente Antoine Roquentin, em La Nausée. Duas atitudes se tornam possíveis: resistir àquelas impressões, tendências ou impulsos que os chamados «normais» julgam estar obrigados a repelir (censurando-se interiormente de o não fazerem) — ou, então, entregar-se totalmente a esses impulsos, tendências ou impressões, não por mera passivi dade, mas na firme decisão de se fazer coincidir com eles. É esta última atitude que escolhem as personagens de Sartre, na esperança de chegarem assim a uma verdade que o homem normal não pode atingir. Esta atitude, designa-a Sartre por «trapaça» (tricherie), pelo que encerra de voluntário e de resoluto e, por isso mesmo, de inquietante e de suspeito aos olhos do «normal»; as regras comuns são contestadas e rene gadas. Os trapaceiros, procurando mergulhar a fundo na náusea, distinguem-se assim dos outros indivíduos, ditos nor mais, que não trapaceiam, e que são os fariseus e conformis tas, os devotos da ordem e da «moral», os embrutecidos por uma existência mecanizada e intermutável — fantoches pro duzidos em série. A todos eles engloba Sartre na designação de «nojentos» (3). (’) Cf.
La NausH, pág. 167.
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Os nojentos dispõem de três meios para exòrcizar a náu sea: a ciência, a magia e a loucura (a Realidade, o Valor e a Transcendência). A ciência leva, efectivamente, a admitir a realidade da lei da mudança, pela qual, como mostrava Meyerson, o contingente se encontra racionalizado e o múl tiplo reduzido à unidade. Entretanto, este mundo da ciência é arbitrário: é construído pelo homem unicamente para esca par ao desânimo provocado por um devir estruturalmente gratuito, sem lei e sem finalidade. «— A magia decide e esta belece pura e simplesmente que há coisas estáveis e essên cias fixas, normas absolutas e invariáveis, imaginando que elas se produzem pelo facto de serem instituídas. — A lou cura, depois de admitir a absurdidade da existência, volta-se para o mundo da magia, apelando para uma «metafísica» que edifica voluntlàriamente um mundo superior, divino além, terra e céu novos, destinado a encobrir o nada vestiginoso de tudo o que é. Destes artifícios é que os trapaceiros se querem desfazer, perante o escândalo dos «normais» que só vêem (com razão, aliás) possibilidade de segurança na submissão âs regras de pensamento e de vida elaboradas pela «sabedoria secular» dos homens. 2. Que condições exige a trapaça? Em primeiro lugar, teremos de renunciar à nossa «personalidade», isto é, à cons ciência clara, que só turva a espontaneidade da existência e a sua livre expansão, renunciando também a essa «vontade», apregoada pelos filósofos do dever, que apenas tem por efeito impor aos nossos pensamentos e sentimentos uma ordem arti ficial e um constrangimento arbitrário (e, de facto, exterior). O eu deve ser, todo ele, abandonado à sua própria lógica, não se devendo, portanto, dizer: «Eu» ou «Eu penso», mas sim «Qualquer coisa pensa em mim». «Quanto mais eu pensava, menos me parecia ser eu», declara uma personagem de Le Sift»
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sis (4). O resultado desta «despersonalização» (ou «descristalização») será eliminar do pensamento tudo o que, nele, houver de ponderado ou represente construção social, obe diência a imperativos estranhos; tudo o que revele influência familiar e profissional ou reflicta formas cristalizadas da tra dição. Fica, assim, eliminada a cortina que , nos esconde o nada e nos protege da Náusea. A segunda condição da trapaça (ligada, aliás, à desper sonalização e à dessocialização) consiste em renunciar ao pas sado. «Ser sem odor e sem sombra, sem passado, nada mais ser do que invisivel desenraizamento de si em direcção ao futuro», declara Daniel Sereno, em L'Age de raison (5). O passado é o meu «eu» solidificado, objectivado, a minha «facticidade»: tenho que o arrastar atrás de mim como uma coisa morta. Para agir, os nojentos supõem que é necessário voltarem-se para ele e, por assim dizer, consultarem-no. Vivem voltados para trás e não para a frente. Avançam recuando. Quando contam o seu passado, pretendem torná-lo numa sucessão de aventuras interessantes: transformam-se a si mesmos num mito. De facto, o passado não pode ser senão uma massa de acontecimentos gratuitos, à maneira de pontos dispersos, privados de qualquer espécie de sentido (6). (4) Le Sursis, pág. 320. f ) Pág. 179. (*) Cf. em Le Sursis (pág. 349) os propósitos de Mathieu Delarue: «E que farei eu da minha própria vida? Nada mais simples: havia em Paris, na Rua Huyghens, um aposento à espera dele, com duas divisões, aquecimento central, água, gás, electricidade, duas poltronas verdes e um caranguejo de bronze sobre a mesa. Ele voltaria a sua casa, introduziria a chave na fechadura; retomaria a sua cadeira no liceu Buffon. E nada se teria passado. Absolutamente nada. A sua vida, a vida habitual, espe rava-o; tinha-a deixado no seu escritório, no quarto de dormir: retomá-la-ia sem reconstituir histórias — ninguém reconstituiria histórias... num mês tudo estaria esquecido — sòmente ficaria uma pequena e invisível cicatriz
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Estas duas condições da trapaça são puramente nega tivas. Têm como fim tornar possível a revelação, essencial à trapaça e, segundo a qual, o mundo é apreendido sob um aspecto absolutamente inacessível aos «nojentos». Esta revela ção ontológica, que assinala o ponto culminante da experiên cia existencial, consiste numa brusca descoberta da existên cia: «as coisas podem ser de qualquer modo» e não mostram estabilidade alguma: se, aparentemente, não mudam, isso deve-se exclusivamente à sua própria indolência ou à nossa. De um instante para outro, os objectos mais vulgares per dem a sua consistência e a sua identidade, a linguagem já não encobre as coisas que, «libertadas dos seus nomes, se mostram, então, disformes, obstinadas, monstruosas na sua materialidade indeterminada e absurda. Na realidade, nada há de estável na existência a não ser aquilo que nós lhe con ferimos. Esta revelação impõe-nos a ideia ou o sentimento de que tudo é possível, que não há nem regras nem normas , nem quadros fixos e invariáveis, que o espaço e o tempo não são rígidos mas elásticos. Por efeito deste deslizamento ou deste esvaimento do mundo quotidiano, nós caímos a pique na Náusea (7). Já se não deve, portanto, falar em «coisas». As coisas e o mundo das coisas sou eu quem os constrói ao falar nelas ou ao olhá-las. Esse mundo não tem qualquer realidade a não ser a dos conceitos e das palavras pelas quais eu coagulo o seu derramamento e atribuo sentido à sua absurdidade (8).
na continuidade da sua vida, uma
pequena beliscadura: a lembrança de uma noite em que se convenceu de que partia para a guerra». (’) Esta descrição poder-se-á comparar à do mundo caótico da existência bruta, de Heidegger, tanto mais que também ele toca, como se viu, o caso da «náusea». (8) Aqui poder-se-ia evocar Bergson, convidando-nos a ir ao encontro do real, mediante um esforço violento de renúncia aos quadros feitos da inteligência conceituai, debruçada sobre a acção e fabricando as
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A experiência da trapaça [az deslizar no seu nada esse mundo confeccionado geomètricamente. Todavia, diante da existên cia reconduzida a si mesma, diamte desse «derramamento pastoso», eu experimento, ao mesmo tempo, um profundo desânimo. Nada mais há do que a existência, ou seja, qual quer coisa que é absolutamente contingente e gratuita; que está ai sem se saber porquê, sem nada que lhe exija ou expli que o aparecimento; qualquer coisa que é essencialmente absurda (9), que «existe preguiçosamente, indolentemente, numa espécie de frouxidão, como aquilo que não pode impe dir-se de existir»; qualquer coisa que é demais para a eter nidade (10). O desânimo transforma-se em pavor, quando essa visão do mundo nos revela não só a total ausência de necessidade, que é o fundo último da existência, mas ainda esse poder de proliferação indefinida que a caracteriza, semelhante à proli feração de um tecido canceroso, que não tem outra razão ou lei que não seja a do impulso primeiro C11). No seu próprio «coisas». Entretanto, esta ascese bergsoniana, ao lado da de Sartre, não passa de simples divertimento de salão em dias de chuva! De resto, Bergson não apresenta o seu método como meio de mergulhar no nada, mas como meio de atingir o ser e de alcançar o absoluto. (') Cf. La Nausée, pág. 167: «Nenhum ser pode explicar a exis tência. A contingência não é aparência enganadora que se posia desnudar; é o absoluto e, por consequência, a perfeita gratuidade. Tudo é gratuito; esta cidade, este jardim, eu próprio. Se damos conta disso, logo entramos dentro de nós mesmos e tudo começa a flutuar... é a Náusea; eis o que os Nojentos... tentam encobrir com a sua ideia de direito. Mas que grande mentira: ninguém tem direito; eles são inteiramente gratuitos como os outros homens; eles não chegam a sentir-se demais...» — Ibid., pág. 193: «Os existentes nascem sem razão, prolongam-se por fraqueza e morrem por embate». (”) La Nausée, pág. 113. (u) Métalnikoff {Immoríaliíé et rajeiinissement dans la biologie moderne, Flammarion, 1924) diz que um infusório microscópico poderia em quatro meses dar origem a um volume de matéria viva ultrapassando
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movimento, a existência, que não pode impedir-se de existir, tende a invadir tudo e a tudo ocupar (1Z). 3. A experiência da Náusea, diz Sartre, tem valor metafísico. Revela-nos o fundo do ser e, como tal, deve conduzir-nos a uma nova visão do mundo das coisas e do homem (13). Heidegger delineou, nas suas obras, o quadro a do globo, se essa proliferação não fosse coibida por causas externas. «Isto dá bem ideia da força extraordinária que possui a microscópica célula viva que assimila e edifica o seu protoplasma com tão maravilhosa energia e celeridade». Pois é exactamente esta «maravilha» que a Sartre provoca a náusea. (“ ) Cl. Edmonde Magny (loc. cit.) faz notar que toda esta descri ção da Náusea dimana de um preconceito evidente. Trata-se, seguramente, como Sartre pretende, de uma escolha. Mas esta escolha precisa de ser justificada, a fim de valer como experiência cósmica. Ora, não se pode deixar de verificar que a justificação não passa de simples trocadilho de palavras, que já no plano literário se evidencia bem perante o abuso com que Sartre emprega, por exemplo, o termo «obsceno», aplicando-o a objectos que os «normais» de forma alguma consideram obscenos (a mão, as feições do rosto) e ainda perante os epítetos de que ele se serve, como «pastoso», «viscoso», para qualificar coisas e gentes. Por outro lado, Sar tre encara os actos humanos como sendo despidos de qualquer espécie de sentido, absolutamente vazios de intenção racional. A impressão de estra nheza e de absurdidade que dimana dos seus escritos é semelhante à for necida por uma fotografia que tivesse fixado apenas os movimentos das pernas de um grupo de homens a caminhar: esses movimentos obstinados, estereotipados, sem finalidade aparente, dos membros inferiores, deverão afigurar-se monstruosamente inúteis e estúpidos. Assim é a humanidade que nos apresenta J.-P.-Sartre: os homens são desumanizados; agitam-se estèrilmente no vácuo absoluto, sem outra justificação que não seja a de estarem condenados a essa agitação. Mas o que, aqui, também é evidente é que os dados estão falseados e que nós nos encontramos em pleno arbitrário. (u) Aqui, basta apenas recordar a objecção, várias vezes leva»* tada, durante o nosso estudo sobre Heidegger: a experiência da náusea (supondo-a efectiva) só pode ter valor individual. Corresponde à expe riência de J.-P. Sartre e nada mais. O seu «valor metafísico» nSo paSSb