546-Rabelais, François - Gargantúa y PantagruelDescripción completa
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Obras publicadas nesta colecção: I
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Fábulas, La Fontaine Canção de Rolando Gargântua, Rabelais
A
GARGÂNTUA
RABELAIS
GARGÂNTUA
PUBLICAÇ0ES EUROPA-AMERICA
Título original:
Gargantua
Tradução de Maria Gabriela de Bragança Capa: estúdios P. E. A.
Direitos reservados por Publicações Europa-América Nenhwna parte desta publicação pode ser reprodu zida ou transmitida na presente forma por qualquer processo, electrónico, mec�nico oufotográfico, in cluindofotocópia, xerocópia ou gravação, sem au torização prévia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser inter pretada como sendo extensiva à transcrição de tex tos em recolhas antológicas ou similares donde re sulte prejuízo para o interesse pela obra. Os trans gressores são passiveis de procedimento judicial
Editor: Francisco Lyon de Castro PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA. Apartado 8 2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL Edição n.� 15/003/4444 Execução técnica: Gráfica Europam, Lda., Mira-Sintra- Mem Martins Depósito legal n.' 187W
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ÍNDICE
Pág
Prefácio de Victor Hugo . . .. . .. . .. ... . ... ..... . .. . .. . ... ... ... ..
A vida muito horrífica do grande Gargântua . . . . . . . . . . . . . . . .
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PREFÁCIO Rabelais é a Gália; e quem diz a Gália diz também a Gré cia, pois o sal ático e a graça gaulesa têm no fundo o mesmo sa bor, e se alguma coisa, à parte os edifícios, se assemelhava ao Pireu, é La Rapée. Aristófanes encontra alguém maior do que ele; Aristófanes é mau, Rabelais é bom. Rabelais defenderia Sócrates. Na ordem dos grandes génios, Rabelais segue crono logicamente Dante; depois da fisionomia severa, a face trocis ta. Rabelais é a máscara formidável da comédia antiga separa da do proscénio grego, de bronze feito carne, doravante um ros to humano e vivo, continuando enorme e vindo rir de nós entre nós e connosco. Dante e Rabelais vêm da escola dos frades franciscanos, como mais tarde Voltaire dos jesuítas; Dante é o luto, Rabelais a paródia, Voltaire a ironia; tudo isso sai da igre ja contra a igreja. Todo. o génio tem a sua invenção ou a sua descoberta; Rabelais teve este achado: o ventre. A serpente está no homem, é o intestino. Ela tenta, trai e castiga. O homem, uno como espírito e complexo como homem, tem para a sua mis são terrestre três centros: o cérebro, o coração e o ventre; cada um desses três centros é angusto por uma grande função que lhe é própria; o cérebro tem o pensamento, o coração tem o amor, o ventre tem a paternidade e a maternidade. O ventre po de ser trágico. Feri ve1ttrem, diz Agripina. Catarina Sforza, ameaçada com a morte dos seus filhos feitos reféns, desnudou -se até ao umbigo nas ameias da cidadela de Rimini, e disse ao inimigo: Aqui tenho com que fazer outros. Numa das con vulsões épicas de Paris, uma mulher do povo, de pé sobre uma barricada, levantou as saias, mostrou ao exército o ventre nu e gritou: Matai as vossas mães. Os soldados crivaram de balas este ventre. O ventre tem o seu heroísmo, e todavia é dele que de correm, na vida a corrupção, e na arte a comédia. '0 peito, onde 9
R,1BELAIS
se situa o coração, tem como extremidade a cabeça; o ventre tem o falo . Sendo o centro da matéria, o ventre é a n ossa satisfa ção e o nosso perigo ; contém o apetite, a saciedade e a podridão. As dedicações e as ternuras que através dele se apossam de n ó s estão sujeitas a morrer; substitui-as o egoísm o. Facilmente as entranhas se convertem em tripas. É tri ste que o hino possa avi nh ar-se e que a estrofe se deforme em cantoria. Isso resulta do animal que há no homem. O ventre é essencialmente esse ani mal. A degradação parece ser a sua lei. A e scala da poesia sen sual tem, ao nível mais alto, o Cântico dos Cânticos e, ao nível mais baixo, a graçola. O ventre-deus é Sileno; o ventre-impe rador é Vitélio ; o ventre-animal é o porco. U m dos horríveis Ptolomeus chamava-se o Ventre, Physcon. O ventre é para a humanidade um peso temível ; rompe a cada instante o equilí brio entre a alma e o corpo. Ench e a história. É respon sável por quase todos o s crimes. É o odre dos vícios. É ele que pela volúp tia faz o sultão, e pela embriaguez faz o czar. É ele que mostra a Tarquínio o leito de Lucrécia; é ele que acaba por fazer delibe rar sobre o molho de um rodovalho o senado que esperou Breno e deslumbrou Jugurta. É ele que acon selh a ao libertino arrui nado que era César a passagem do Rubicão. Passar o Rubicão, como isso permite pagar as dívidas, ter belas mulheres, comer bons jantare s ! E os soldados roman os entram em Roma com e s te brado : Urbani, claudite uxores; moechum calv um adduci mus. O apetite deprava a inteligência. A volúpia substitui a vontade. No princípio, como sempre, há pouca nobreza. É a or gia. Há uma diferença entre ficar toldado e bêbado. D epois a or gia degenera em comezaina. Onde estava Salomão surge Ram ponneau. O homem é uma barrica. Um dilúvio interior de ideias tenebrosas submerge o pen samento ; a con sciência afoga da já não con segue fazer sinal à alma embriagada. E stá con su mado o embrutecimento. Já n em é cínico, é vazio e estúpido. Diógene s desaparece ; só fica o tonel. Começa-se com Alcibía des e acaba-se com Trimalcião. O quadro está completo . Não há mais nada, n em dignidade, nem pudor, nem h onra, nem virtude , n em espírito ; o gozo animal nu e cru, a impureza nua e crua. O pensamento dissolve-se n a saciedade; o con sumo car nal absorve tudo ; nada subsiste da grande criatura soberana habituada pela alma; seja-nos permitida a expres são: o ventre come o homem. Estado final de todas as sociedades onde o ideal se eclipsa. E isso passa por prosperidade e ch ama-se en10
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grandecer. Às vezes até os filósofos concorrem estouvadamen te para esse abaixamento, pondo nas doutrinas o materialismo que está nas consciências. Esta redução do homem ao animal é uma grande miséria. O seu primeiro fruto é a torpeza que se tor na visível por todos os lados e até nos cumes da sociedade: no juiz venal) no padre simoníaco, no soldado condottiere. Leis, costumes e crenças são estrumeira. Totus homo fit excremen tum. No século XVI, todas as instituições do passado estão redu zidas a isso; Rabelais toma conta dessa situação, constata-a e levanta o auto desse ventre que é o mundo. A civilização não é mais que uma massa, a ciência é matéria, a religião engor dou, a feudalidade digere, a realeza está obesa. Quem é Henri que VIII? Uma pança. Roma é uma velha gorda e farta. É isso saúde? É isso doença? É talvez gordura, é talvez hidropisia. Questão a esclarecer. Rabelais, médico e cura, toma o pulso ao papado. Abana a cabeça e desata a rir. Foi porque encontrou a vida? Não, porque sentiu a morte. Com efeito, o papado expira. Enquanto Lutero reforma, Rabelais faz chacota. Qual vai mais direito ao fim? Rabelais troça do monge, do bispo, do papa; riso feito de estertor. Este guizo toca a finados. Então? Julguei que era uma patuscada e é uma agonia; uma pessoa pode enganar -se quanto ao soluço. Riamos porém. A morte está à mesa. A úl tima gota brinda com o último suspiro. Uma agonia no meio da paródia, esplêndida coisa. O cólon intestinal é rei. Todo este velho mundo festeja e rebenta. E Rabelais entroniza uma di nastia de ventres: Grandgousier, Pantagruel e Gargântua. Ra belais. é o Ésquilo da comezaina, 6 que é grande, se nos lembrar mos que comer é devorar. Há um abismo no comilão. Comei, pois, senhores, e bebei, e acabai. Viver é uma canção cujo re frão é morrer. Há quem escave sob o género humano deprava do temíveis calabouços; em matéria de subterrâneos, o grande Rabelais contenta-se com a cave. O universo que Dante punha no inferno, Rabelais mete-<> dentro dum casco. O seu livro não é outra coisa. Os sete círculos de Alighieri abarrotam e encer ram este prodigioso tonel. Olhai para dentro do monstruoso cas co, e aí os vereis. Em Rabelais chamam-se: Preguiça, Orgu lho, Inveja, Avareza, Cólera. Luxúria. Gula: e é assim que de repente vos encontrareis com o temível folgazão. E onde? Na igreja. Os sete pecados são a prédica deste cura. Rabelais é pa dre, e o correctivo bem ordenado começa por si próprio. É , pois, no clero que bate primeiro. O que é ser da casa! O papado morre 11
RABELAJS
de indigestão, Rabelais faz-lhe uma farsa. Farsa de titã. A ale gria pantagruélica não é menos grandiosa que a alegria jupite riana. Maxila contra maxila; a maxila monárquica e sacer dotal come; a maxila rabelaisiana ri. Quem tiver lido Rabe lais terá sempre diante dos olhos esta confrontação severa: a máscara da Teocracia fixamente contemplada pela máscara da Comédia. VICTOR HUGO
(Extraído de William Shakespeare)
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INTRODUÇÃ O RABELAIS NO TEMPO DE GARGÂNTUA Desde o dia de Todos-os-Santos de 1 532, Rabelais é médico -chefe do Hospital de Notre-Dame-de-Pitié de Pont du Rho qe, em Lyon : funções pouco lucrativas (40 libras por ano) mas que atestam a reputação médica de Rabelais, embora n ão fi gure no catálogo de Symph orien Champier. As suas primeiras publicações referem-se à medicina (Lettres médicales de Ma nardi, Aforismos de Hipócrates) ou à sátira humanista (pseudo testamento de Cuspidius). Mas o seu verdadeiro génio surge com Pantagruel, publicado para a primeira feira de Novembro de 1 532, desopressão pelo riso ante a estupidez humana. No ras to de Erasmo, mas de modo men os con certado e mais j ovial, Ra belais contribui para o enterro da tradição escolástica e a res tauração da idade áurea das Humanidades. Tem relaçõe s com humanistas como Hilaire Bertoul, antigo secretário de Eras mo. Antoine du Saix, culto prelado, Salmon Macrin , poeta neo latino, Clément Marot e outros. Irá ele descansar à sombra do êxito do seu romance, con sagrado pela con denação da Sorbon ne (1 533) por obscenidade? Pelo contrário, persevera e, pegando na gen ealogia do seu h erói de trás para a frente, conta as aven turas do pai deste, Gargântua, bem conhecido do público desde o aparecimento do folheto de cordel Les grandes et inestimables Cronicques de l'énorme géant Gargantua (1532).
Vida em Chion e em Roma Nem o cargo n o Hospital nem as suas diversas publicações fazem de Rabelais um sedentário; em 1532, foi revisitar a sua terra de vacas, com a Deviniêre natal e os burgos vizinhos, Gra vot, Chavigny, Cinays. Escutou as lamentações do seu velho 13
RIIBEL!11S
pai, Antoine Rabelais, em demanda com o vizinho e antigo amigo, Gaucher de Saint-Marthe, senh or de Lern é , médico da abadessa de Fontevrault. A chicana transformou em inferno o paraíso rústico. Antoine já não pode, como o bom Gran dgou sier, cozer as suas castanh a s no átrio com toda a tranquilida de. Terá Françoise posto os seus conhecimentos jurídicos ao serviço do pai? Não se sabe, mas fará melhor, poi s , no seu ro mance, o irascível Gaucher tornar-se-á o arrogante Picroco le, finalmente vencido e refugiado em Lyon, pobre j ornaleiro colérico, à espera de que as galinhas tivessem dentes. O riso consolará das maçadas do processo. Em 1 534, nova viagem, realização do sonho d� todos os hu mani stas: Rabelais acompanh a a Roma, como médico parti cular, Jean du Bell ay , bispo de Paris, enviado ao Papa por Fran cisco I, para o desligar da aliança com Carlos V. Inicia-se Ra belais, como o poeta Joachim du Bellay, nos jogos subtis da cor te rom ana? A sua epístola dedicatória da Topografia romana de Marliani, dirigida a Jean du Bellay (31 de Agosto de 1 534), é sobretudo o reflexo do seu entusiasmo pelos vestígios da An tiguidade, e da sua curiosidade científica: O que mais tenho desejado desde que possuo algum sentimento do progresso das belas-artes, é percorrer a Itália e visitar Roma, cabeça do mun do. . . Muito antes de chegarmos a Roma, e u concebera em espí rito e em pensamento uma ideia das coisas cujo desejo me atraí ra a tal cidade. Primeiro, resolvera visitar os homens dou tos ... Depois (o que já pertence à minha arte), queria ver as plantas, os animais e certos medicamentos. Enfim, prometia a mim próprio descrever o aspecto da cidade socorrendo-me da pena e do lápis . (A. Lefranc, tradução da epístola em latim.) Mais tarde, Rabelais vol tará algumas vezes a Itália, no meadamente em 1535-1536, mas as preocupações do monge em rompimento com o claustro passarão à frente das alegrias do humanista. ·
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Genealogia às avessas Se a edição colectiva de 1542 põe à cabeça o Gargântua, or dem lógica, uma vez que o seu herói é o pai de Pantagruel , de facto, a publicação do Pantagruel foi anterior à de Gargântua, pois a sua primeira edição é de 1532, ao passo que a primeira, datada, de Gargântua, é de 1535, precedida, é certo, por uma e di ção desprovida de data, e sem dúvida um ano anterior. Na or14
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dem da criação literária, o filho nasceu por conseguinte antes do pai. A. Lefranc estabeleceu esta anterioridade de maneira muito comprovativa, baseando-se nas próprias confidências de Rabelais nos dois romances: este qualifica como primeiro li vro o Pantagruel (cap. XXXIV) e, logo no primeiro capítulo do Gargântua, remete para o Pantagruel de modo a desculpar-se de não enumerar todos os antepassados do seu gigante: Remeto -vos para a grande crónica pantagruelina a fim de reconhecer des a genealogia e a antiguidade donde nos veio Gargântua.. Para aliciar o leitor, o subtítulo declara que o romance está cheio de pantagruelismo, garantindo assim o parentesco espiri tual das duas obras. Enfim, Frei Jean, o monge frascário, de goela aberta, não aparece no Pantagruel, e figura no Terceiro e Quarto Livro, posterior ao Gargântua. A interpretação do texto confirma as indicações dadas pela cronologia das edições. .
«Gargântua» e os teólogos Se a anterioridade de Gargântua é um facto adquirido, ain� da nos perdemos em hipóteses sobre o período de composição e a data da publicação: uma e outra precedem, sem dúvida, de perto o Affaire des Placards (17-18 de Outubro de 1534). No momento da condenação do Pantagruel (1533) pela Sorbonne, o governo real é favorável aos reformadores; Francisco I manda riscar de uma lista de obras proibidas o Miroir de l'âme pécheresse da sua irmã Margarida de Navarra; Beda, director do colégio de Montaigu, esse colégio de piolheira, defensor da tradição e, por isso mesmo, cabeça de turco dos teólogos humanistas, é exila do; Gérard Roussel, convertido ao Evangelismo, prega no Lou vre. Mas o conflito reacende-se: um discurso imprudente do reitor da Universidade, Nicolas Cop, suscita a repressão contra os suspeitos do luteranismo: é a vez de Gérard Roussel e os leito res do College des Trais Langues serem encarcerados. Entre tanto, Francisco I, que negoceia com os protestantes alemães, dá-lhes ordem de soltura, e durante alguns meses o Evangelis mo leva a melhor. A afixação de panfletos contra a missa (17-18 de Outubro de 1534) inverte a situação: o rei, ultrajado na sua autoridade, trata os reformadores como súbditos sedicio sos, não distinguindo os evangelistas dos luteranos: sucedem -se as detenções, os exílios, os suplícios, até Fevereiro de 1535, data em que Francisco -I começa uma reaproximação com os Es tados alemães. 15
RABELAJS
Neste imbróglio político-teológico, que papel teria Gargân tua? A sátira dos beatos, hipócritas e falsos, do culto dos santos, dos «perdõeS>> é já muito viva no Pantagruel, mas não ultrapas sa os gracejos tradicionais e os ataques dos humanistas, par ticularmente de Erasmo nos seus Colóquios e no Elogio da Lou cura. No Gargântua, a crítica às instituições humanas alar� ga-se e aprofunda-se. Reencontram-se os gracejos sobre os nomes e a influência dos santos (caps. XVII, XXVII), sobre a água benta (cap. Xllll), as relíquias e as peregrinações (cap. XLV), mas mais apoiadas e mais concertadas. No capítulo VI, Garga melle, prestes a parir, prefere ouvir tais textos do Evangelho a ouvir a vida de Santa Margarida.. . fazendo-se assim intérpre te do pensamento de Rabelais. Entre as práticas ridículas ensi nadas pelos preceptores góticos, Mestre Tubal Holofernes e Jobe lin Bridé, figuram com relevo as vinte e seis ou trinta missas quotidianas, com as ladainhas de horas e orações maquinal mente resmoneadas (cap. XXI). Em contrapartida, sob a direc ção de Ponócrates, nenhuma cerimónia na missa, mas antes a leitura matinal de alguma página das Divinas Escrituras (cap. XXIII). No capítulo XLV, exorta os peregrinos a não acredi tarem nos falsos profetas, que imaginam os santos capazes de espalhar doenças para terem depois o prazer de curá-las. As re gras monásticas e a vida dos religiosos são cruelmente escar necidas nos capítulos XXVII, XL (Porque fugiram os frades do mundo. . .) e Xll (Como o monge pôs Gargântua a dormir, e das suas Horas e Breviário). Mais ainda, alusões ao dogma da Gra ça (caps. XXIX e XL), ao bom doutor evangélico e ao bom apóstolo São Paulo testemunham uma simpatia declarada pelo regresso à simplicidade evangélica, liberta das superstições e costumes a·cumulados ao longo dos séculos. Poder-se-á imagin,ar uma tomada de posição tão manifesta em plena repressão? E presu mível que a composição do romance satírico tenha ocorrido du rante uma acalmia, em que o rei de França e o bom gigante Gargântua podiam entender-se bem. Em 1535, Rabelais aban dona bruscamente as suas funções no hospital; só lhe encontra mos o rasto passados vários meses, no séquito de Jean du Bel lay, promovido a cardeal; hábil manobra: Rabelais distancia -se da Sorbonne, mais intolerante que Roma, e obtém a sua reintegração na ordem dos beneditinos. Foi isso uma moeda de troca? A edição de 1552 de Gargântua, sem renegar as posições fundamentais, atenua as audácias verbais: os teólogos trans formam-se em sofistas, o que não engana os leitores adverti dos, mas salva a face ante os profanos. 16
GARGÂNTUA
De Chinon ao reino dos Canarres Na divertida mi scelânia das paródias aos romances de ca valaria franceses ou italianos, temas extraídos das Grandes Crónicas, recordações dos anos de convento, dos processos fa miliares, dos conflito s entre Reformadores e Tradicionalis tas, os h eróis de Rabelais, quer sej am gigantes ou simples homens, ora vivem na província natal , à beira do Loire, ora evocam terras fabulosas, Utopia e o reino dos Canarres, para lá dos mares (caps. xrn, XXI, L). Este misto de experiências e sonhos, de real e irreal, que por vezes surpreende o leitor dos nossos dias, não espantava o s contemporân eos de Rabelais. O culto da razão não banira da imagin ação popular as fadas, os magos, o s gigantes e os mon stros. Quantos acreditavam, como o Sgan arelle de Moliere, tão firmemente no lobisomem e no fra de corcunda como no diabo? Os roman ces de cavalaria forn ecem o plano geral: o nasci mento do gigante, as suas «Infân cias», a sua «Instituição>>, e enfim as suas proezas guerreiras. O s contistas italiano s intro duzem no un iverso dos gigan tes comparsas de dimen sões humanas e nomes simbólicos, processo que foi utilizado por Ra belais no Pantagruel e no Gangântua: Epi stémon representa a sabedoria, Eustenes a força, Ponocrátes o ardor intelectual, Pi crocole o bilioso arrebatado, etc. É inútil traduzir os nomes dos capitães Spadassin e Merdaille. De origem grega, italiana ou popular, esta onom ástica é j ustificada pelo comportamento das personagens. Que haverá de espantoso no facto de Gin asta, o es cudeiro de Gargântua, deixar o capitão Tripet estupefacto com um deslumbrante volteio (cap. XXXV)? As Grandes Crónicas transmitem a Rabelais a sua persona gem central , Gargântua, cuja estatura gigantesca, bulimia, bom humor e bonomia já eram familiares ao público. O nome, que evoca uma goela mon struosa, capaz de engolir seis peregri nos como caracóis numa salada (cap. XXXVIII), figura desde 1471 num Registo de Jehan Georges, cura de Hérignat, cobra dor do bispo de Limoges, como alcunha de um familiar do prela do. Era, sem dúvida, tão antigo como o do diabrete Pantagruel, minúsculo antepassado do primeiro gigante de Rabelai s. Al guns dos mais desopilantes epi sódi os derivam igualmente do livrinho popul ar: o vestuário de Gargântua (cap. Vlli), a ori gem da planície de Beauce, que seria uma floresta abatida pelo rabo da égua de Gargântua, com maior rapidez do que se fosse 17
RABELAJS
um bulldozer (cap. XVI), os sinos de Notre Dame servindo de guizos à dita égua (cap. XVll). Mas no meio desta fantasia carnavalesca, onde se confun dem lugares e tempos, a actualidade da crónica chinonesa dá o seu sabor rústico. Desde sempre os críticos notaram que a guerra picrocolina se desenrolava nas imediações próximas da Deviniere, num perímetro limi.tado por Lerné, Roche-Clermault, Vaugaudry, La Vauguyon e o vau de Veede, localidades e povoados que ain da hoje existem; é possível seguir num mapa os movimentos das tropas de Gargântua e do seu adversário. Mas seriam as re ferências à t & pografia chinonesa um artifício do contista dese joso de ilustrar a sua terra natal, tornando-a tão famosa como Tróia, Roma ou Roncesvales? Abel Lefranc e os seus discí pulos conseguiram estabelecer, graças a minuciosas inves tigações nos arquivos locais, não só que o cenário da guerra picrocolina era real mas também que esta era a transposição do processo que opôs Gaucher de Sainte-Marthe a Antoine Rabe lais e à confederação dos mercadores e transportadores flu viais. A identificação de determinados actores parece estabele cida, em particular de Ulrich Gallet,. mensageiro de Grandgou sier junto de Picrocole (cap. XXX) com Jehan Gallet, advogado do rei em Chinon, parente dos Rabelais, e defensor da confede ração no Paralamento de Paris. Marquet, o grande bastonário da confraria dos <<(ouaciers»(*) de Lerné, que, com as suas bru talidades, desencadeia as hostilidades, evoca o sogro de Gau cher. Toda a região de Chinon devia estar em ebulição, pois o diferendo opunha um conjunto de famílias e aldeias. A famí lia Sainte-Marth e reconheceu-se em Picrocole, e o seu ódio contra Rabelais por certo que não se aplacou com esta imortali zação grotesca. O panfleto de Gabriel de Puy-Herbault, religio so da abadia de Fontevrault (onde Gaucher era médico), contra o contista qualificado como ateu e epicurista (Theotim us, 1 549), não será uma remota sequela do processo e uma réplica ao Gar gântua ? Em todo o caso, Charles de Saint-Marthe, segundo fi lho de Gaucher, e aliás humanista e poeta, achou o panfleto mui to a seu gosto. A guerra picrocolina aparece, pois, como o disfarce épico da crónica chinonesa, onde a família Rabelais tivera um papel preponderante. 1 Fouace, uma csp6cic de bolacha. (N. da T.) 18
GIIRGÂNTUII
Deveremos no entanto procurar fundamentos de realidade em càda episódio, em cada personagem? Isso seria negar toda a invenção, toda a fantasia ao génio criador do romancista. Se ria o mesmo que crer que o Lutrin é a história exacta do conflito entre os cantores e as cantoras do coro da Sainte-Chapelle. Ra belais parte do real, mas engrandece, tran sforma e generaliza essa verdade de facto para lhe dar um significado simbólico de dimensões universais. Evade-se da região de Chinon para so nhar com as ilhas de além-mar, como o reino de Canarre (cap. L), ou da Utopia, o país de parte nenhuma. O humanista perante a pedagogia e a política
Entre mentirolas e obscenidades, a carta de Gargântua cap. VIII) surpreende pela sua gravidade: expri me a satisfação de Rabelais perante o progresso das luzes e a sua confiança no futuro. Mas isso é apenas um esboço. Em com pensação, o Gargântua desenvolve, se não um sistema, ao me nos uma atitude racional perante a vida. As críticas esboçadas contra o pedantismo e a ignorância no Pantagruel (cap. VII, os belos livros da livraria de São Vítor, e cap. VIII, a Carta de Gargântua) tomam forma em vários capí tulos do Gargântua, que acusam sem nenhuma ambiguidade o espírito, os programas e os métodos da escolástica (caps. XIV, XV, XXI). Sujeito aos preceptores góticos, Tubal Holofernes e Jo belin Bridé, Gargântua, não obstante as suas felizes aptidões naturais, não pode deixar de ficar louco, parvo, todo sonhador e (Pantagruel,
atoleimado.
Ponócrates, pelo contrário, faz do seu aluno um poço de ciên cia, ao mesmo tempo que lhe cuida do corpo. Graças a um ho rário racional, permite-lh e abordar todos os ramos do saber, sem nunca perder o contacto com a Natureza, que é o livro su premo. Exercícios físicos metódicos completam a instrução (caps. xxnr, XXIV). Em vez do cavaleiro maciço e obtuso, forma um príncipe sábio e sensato, de corpo flexível, resistente e ágil. No primeiro romance, o rei só aparece como ch efe guerrei ro: Pantagruel vence e faz prisioneiro o seu adversário, o rei Anarche; a sorte deste é decidida em poucas páginas. O Gar gântua põe em cena três tipos de soberanos, cujo carácter e cujos actos são amplamente descritos. O irascível Picrocole é o tipo do mau rei: ambicioso, brutal, belicoso, crédulo, obedece sem reflectir às sugestões dos maus con selheiros e já se julga 19
RABELAIS
senhor do mundo (cap. XXXIII). Arrastado pela sua falta de comedimento, esquece todos os sentimentos humanos: a antiga amizade com Grandgousier, o respeito devido aos embaixado res, a obediência aos preceitos do cristianismo. O seu castigo é muito mais motivado do que o de Anarca. Grandgousier representa um velho soberano bonacheirão, consciencioso e pacífico. Está tão certo do seu direito que, a prin cípio, não quer acreditar na agressão de Picrocole; tão desejoso da paz, que propõe o seu restabelecimento, mesmo à custa de con cessões exorbitantes (caps. XXVIII, XXX, XXXl); tão apegado aos seus súbditos, que considera um dever protegê-los à custa do seu repouso: A razão assim o quer, pois o seu labor me mantém e o seu suor me alimenta, a mim, a meus filhos e à minha famí lia (cap. XXVIII). Vitorioso, manda Toucquedillon ao encontro
do seu rei com uma mensagem de paz. Toda a sua política se conforma com as lições do Evangelho: Já não estamos em tem
po de assim conquistar os reinos com prejuízo do nosso próxi mo e irmão cristão. Essa imitação dos antigos Hércules, Ale xandres, Aníbais, Cipiões, Césares e outros tais é contrária ao preceito do Evangelho, que nos manda guardar, salvar, reger e administrar cada um dos nossos países e terras, não invadir hostilmente os outros . . . (cap. XLVI).
Na força da vida, Gargântua é menos meditativo e devoto do que o seu bondoso pai. Quando Eudémon, espantado com a «honestidade•• de frei Jean, pergunta por que razão fugiram os monges do mundo, Gargântua lança uma violenta sátira con tra esses comedores de pecados, tão inúteis como os macacos:
De igual modo um monge (falo desses monges ociosos e desocu pados) não lavra como o camponês, não guarda o país como o ho mem de guerra, não cura (os enfermos) como o médico, não pre ga nem doutrina como o bom doutor evangélico e pedagogo . . .
(cap.
Chocado com esta diatribe, Grandgousier intervém: Talvez, mas. . . rezam por nós a Deus. Gargântua varre a objec ção e redobra de veemência: Nada menos. . . É verdade que mo XL).
lestam a vizinhança toda à força de tilintar as suas campai nhas. . . resmoneiam à grande lendas e salmos que não enten dem; recitam muitos padres-nossos entremeados de longas ave-marias sem pensar e sem entender nada dessas orações, e a isso chamo eu fazer troça de Deus, e não oração . . . (Ibid. ) Ma
nifestamente, Rabelais traça aqui o retrato do rei segundo os seus votos: um soberano liberto das tradições escolásticas, ca paz de exterminar os sorbonagros (cap. XX), e de encorajar o Ewmgelismo. 20
GARGÂNTUA
Este antepassado dos <> é tão hábil es tratego como rude combatente. As vitórias de Pantagruel são proezas excepcionais ou enormes farsas; as de Gargântua exi gem força (cap. XXXVI) e inteligência (cap. XLVIIT), a tal ponto que a sua táctica contra Picrocole fez supor que Rabelais fre quentara a Escola de Guerra das nossos dias! Após a vitória, mostra-se tão generoso e prudente como Grandgousier, perdoando aos vencidos, neutralizando os res ponsáveis pela guerra e preparando uma paz duradoura com uma reconciliação geral; a sua arenga aos vencidos é um belo exemplo de discurso político (L). Ainda neste ponto, o Gargân tua reflecte as ideias comuns a Erasmo, Guillaume Budé e mui tos outros humanistas sobre os deveres e as responsabilidades dos reis, sobre a guerra e a paz numa civilização cristã. Pode -se, sem cair no exagero, extrair n ão só uma pedagogia mas uma política e uma teologia destas alegres e novas crónicas. O Prólogo do autor não enganava ao garantir que a droga dentro contida tem muito mais valor do que a caixa prometia.
A arte e a vida
Mas, em Rabelais, as doutrinas nunca murcham em con ceitos; é a própria vida que impõe as suas leis e rebenta por to dos os lados em jactos sumarentos como a seiva da vinha na Primavera. Disso é testemunha a fala dos bem bebidos (cap. V), onde cada personagem actua e fala de acordo com o seu tem peramento, idade e condição. Disso é testemunha frei Jean, de goela aberta. . . avantajado de nariz, tão lesto no serviço do vi nho como no serviço divino, que, enquanto os seus confrades re citam litanias, extermina com o báculo da sua cruz os 13 622 inimigos que haviam invadido o recinto de Seuilly. Ignorante sem escrúpulos, crente sem devoção, amador de histórias bre jeiras e de boa comida, intrépido combatente, frei Jean é um compincha tão espantoso como Panúrgio, mas mais, dinâmico e mais aberto. Cabe-lhe o direito de organizar a seu gosto o anti convento de Thele nie. A abadia de Theleme é o fecho da abóbada de todo o roman ce; é o remate dos estudos renovados, a recompensa pacífica das provações sofridas durante a guerra, o sonh o de uma exis tência que concilia as alegrias naturais e os requintados praze res da sociedade. P. Villey vê nela o mito principal do Gargân tua, o mais rico em substância . . . Opõe ao sonho de ascetismo 21
RABELAJS
da Idade Média, simbolizado pelo claustro. . . o ideal novo de vi da livre, luxuosa e sábia. Theleme é seguramente o inverso da
vida monástica, pois não há outra regra além do prazer, nenhu ma clausura, nenhuma separação dos sexos, e os thelemitas, longe de pronunciar votos perpétuos, deixam a abadia para ca sarem de acordo com os seus sentimentos. Antes de Rabelais, Erasmo, nos seus Colóquios e no Elogio da Loucura, mostrara -se muito mais violento contra as regras conventuais; por seu lado, um franciscano de Avignon, François Lambert, imagi nara uma abadia mista, onde se aproximavam os sexos em vez de se separarem (Humanisme e Renaissance, tomo XI, 1 949). Mas a novidade é construir um convento que seja um palácio como os de Chantilly ou de Bonnivet, é pôr esses pseudo-religio sos e religiosas a viver como as damas e os senhores da' corte. A ausência de coacção é corrigida pelo berço, as aptidões natu rais e a educação. Mais que. uma oposição sistemática à tradi ção monástica, a abadia de Theleme é um encantador quadro
do Renascimento. . . Os luteranos e os calvinistas não teriam admitido a liberdade de Theleme (Morçay ). Do Pantagruel ao Gargântua, não só o pensamento de Rabe
lais cresceu em vigor e coesão, mas também a sua arte em ma turidade. Acabaram-se as acumulações de obscenidades gra tuitas (no cap. XV, por exemplo), ou as invenções desmesuradas (caps. XI, XII, XIII), ou as mímicas h erméticas (cap. XIX), ou as di gressões intempestivas. Sem se cingir a uma composição rígi da que não se adaptava nem ao seu temperamento nem às mo das literárias da época, Rabelais organizou os episódios do seu romance com ordem e clareza: precedida (ou pouco menos) por uma fantasia poética, Les Franfeluches antidotées (cap. II), e se guida pelo Enigme en prophetie (cap. LVIII), poema de Saint-Ge lais, a vida de Gargântua desenrola-se com relativa verosimi lhança: nascimento, educação, façanhas guerreiras, recom pensa dos vencedores. O enigma surpreende o gosto actual e dá que pensar aos críticos, mas era um jogo de espírito muito apre ciado no século XVI. Para espicaçar a curiosidade dos leitores, Rabelais imaginou duas soluções contraditórias: cada um que escolh a segundo as suas preferênci as a de Gargântua ou a de Frei Jean. Mas há muitas razões para admitir que a interpreta ção do monge é uma maneira de se furtar à condenação dos fal sos beatos depois de ter troçado deles uma última vez. Neste segundo volume, conclui Morçay, Rabelais deu o me lhor de si, um riso são, mais gaulês que ateniense, um realis mo sólido, um espírito satírico onde há sobretudo alegria, uma 22
CARCÂNTUA
arte superior de contista e de retratista, uma filosofia feita de epicurismo sorridente e moderado. Não há entremezes e os ele mentos variados que compõem esta epopeia em prosa fundem -se numa unidade perfeita. O Gargântua é a obra-prima de Rabelais.
P. MICHEL
O presente texto
Existe na Biblioteca Nacional(*) uma edição do Gargân sem data, mas provavelmente de 1 534; duas outras, publica das por Juste, em Lyon, sucederam-lhe em 1535 e 1537, depois uma quarta, em Paris, igualmente de 1537. A quinta edição, publicada em Lyon, por Juste, em 1542, foi a última revista pelo autor, pelo que, como é costume das edições críticas, nomeada mente de A. Lefranc na sua edição magistral, foi o texto que se guimos. Uma sexta edição foi publicada em Lyon em 1 542 pelo huma nista Etienne Dolet, sem ter em conta as modificações introdu zidas pelo autor e sem o seu consentimento: daí o desagrado de Rabelais e o seu rompimento com Dolet. Outras edições, derivadas quer da de Rabelais (1542) quer da de Dolet, surgiram em Lyon, Val�nce e Paris. As diferenças entre o texto de 1534-1535 e o de 1542 consis tem sobretudo em atenuações formais da sátira contra os teó logos, que se convertem em ••sofistas». São mencionadas nas variantes. Destas, apenas mantivemos as que apresentam uma ligeira diferença de sentido. Em compensação, todas as notas susceptíveis de facilitar a compreensão do texto foram não só mantidas mas assinaladas à luz dos trabalhos recentes, pois a erudição contribui para o prazer da leitura. E agora, se gundo o conselho de Mestre Alcofribas no seu Prólogo: Diverti tua,
-vos, meus amores, e alegremente lede o resto, com todo o à-vontade do corpo e vantagem para os rins!
(*)
De França. (N. da 1'.)
23
A VIDA MUITO
HORRÍFICA DOGRANDEGARGÂNTUA Pai de Pantagruel
Em tempos composta por M.
Condensador de
Alcofribas, Quinta Essência1
Livro cheio de Pantagruelisnw
AOS LEITORES Amigos leitores que l erd es este livro, Despojai-vos de toda a paixão; E, ao lê-lo, não vos escandalizeis: Não contém nem mal n e m infecção. É verdade que aqui pouca perfeição Aprendereis, a não ser para rir; Outro assunto não pode meu coração eleger, Vendo o luto que vos desgasta e consome Melhor é escrever de riso que de lágrimas, Pois rir é próprio do homem2.
25
NOTAS I Alcofribas é o mesmo nome, anagrama abreviado de François Rabe lais, que fi gurava nas edições do Pantagruel, a p arti r de 1 534. - O Condensa dor de Quinta Essência é o Alquimista. 2 Esta cél eb re máxima, que se tornou o sfmbolo do humor rabelaisiano, é extraída de Aristóteles, De part i bu s animalium, III, 1 0 : «O h ome m é o único dos seres ani mado s que sabe riz�·. e encontra-se igualmente nas obras do poe ta 9uillaume Bouchet, amigo de Rabelais.
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PRÓLOGO DO AUTOR
Beberrões ilustríssimos e vós, preciosiSSimos bexigosos - porque a vós e não a outros são dedicados os meus escritos -, Alcibíades, no diálogo de Platão intitulado O Banquete, louvan do o seu preceptor Sócrates, incontestavelmente o príncipe dos fi1ósofos, entre outras palavras o diz semelhante aos Silenos. Os Silenos eram outrora umas caixinhas, tais como as vemos hoje nas boticas, pintadas em cima com figuras alegres e frívolas, como harpiasi , sátiras, pássaros com freio, lebres carnudas, pa tas albardadas, bodes voadores, veados entre varais2 e outras que tais pinturas arremedadas para provocar o riso nas pes soas (tal foi Sileno, mestre do bom Baco); mas no seu interior conservavam-se finas drogas como o bálsamo3, o âmbar cin zento, o amamo, o almíscar, a civeta, pedrarias e outras coisas preciosas. Assim ele dizia ser Sócrates, porque, vendo-o por fo ra e apreciando-o pela aparência exterior, ninguém daria por ele uma casca de cebola, tão feio ele era de corpo e ridículo no porte, com o nariz ponti agudo, olhar de touro, o rosto.de um lou co, simples nos costumes, rústicos na vestimenta, pobre de fortu na, infortunado com as mulheres, inepto para todos os ofícios da república, sempre a rir, sempre a beber tanto como qualquer outro, sempre a troçar, sempre a dissimular o seu divino saber; mas, abrindo essa caixa, encontrar-se-ia dentro dela uma ce leste e inapreciável droga: entendimento mais que humano, virtude maravilhosa, coragem invencível, sobreidade sem par, contentamento certo, segurança perfeita, desprezo incrível por tudo o que leva os humanos a velar, correr, trabalhar, nave gar e batalhar4. , A que propósito, em vossa opinião, se destina este prelúdio? E por que, meus bons discípulos, e algun s outros ociosos, ao ler des os alegres títulos de algun s livros da nossa invenção, como
Gargântua, Pantagruel, Fessepinte, A Dignidade das Bragui lhas, Ervilhas com toucinho cum commento, etc. , julgais mui27
RllBELAJS
to facilmente que, por dentro, são tratados de graçolas, brinca deiras e intrujices, visto que a insígnia exterior (é o título), sem querer saber de mais nada, é correntemente acolhida como motivo de riso e chacota. Mas não é com tal leviandade que convém estimar as obras humanas. Pois vós mesmos di zeis que o hábito não faz o monge, e um qualquer vestido com o habito monacal não tem por dentro nada de monge, e outro usa capa à espanhola e a sua coragem não deve nada à Espanha5. Por isso é preciso abrir o livro e pesar cuidadosamente o que ne le é deduzido. Sabereis então que a droga nele contida tem mui to mais valor do que a caixa prometia, isto é, que as matérias aqui tratadas não são tão galhofeiras como o título pretendia. E, dado o acaso de encontrardes em sentido literal matérias muito alegres e correspondentes ao nome, não deveis todavia fi car por aí, como a ouvir o canto das Sereias, mas ellYmais alto sentido interpretar o que por acaso cuideis ser dito de coração alegre. Já alguma vez desrolhastes uma garrafa? Irra! Recordai a vossa atitude. Ma� vistes alguma vez um cão ao encontrar um osso com tutano? E, como diz Platão, liv. II da República, o mais filósofo dos animais deste mundo. Se já o vistes, pudestes notar com que devoção ele o espreita, com que fervor o guarda, com que prudência começa a roê-lo, com que afeição o parte, e com que diligência o chupa. Quem o induz a fazê-lo? Qual a e spe rança do seu estudo? Qu_e bem pretende alcançar? Nada mais que um pouco de tutano. E verdade que esse pouco é mais delicio so do que o muito de todas as outras coisas, porque o tutano é um alimento elaborado com perfeição da natureza, como diz Gale no, in Fac. Natur. , III, e De usu parti, XI. Segundo este exemplo, convém-vos ser sábios, para fare jar, cheirar e apreciar estes belos livros saborosos, procurá-los com ligeireza e encontrá-los com ousadia; depois, na leitura curiosa e na meditação frequente, deveis abrir o osso e chupar o substancioso tutano - ou seja, o mesmo que eu quero significar com estes símbolos pitagóricos6 - com a esperança certa de vos tomardes avisados e valorosos com a dita leitura, pois nesta encontrareis melhor gosto e doutrina mais abscôndita, a qual vos revelará altíssimos sacramentos e horríficos mistérios, tanto no que respeita à nossa religião como ao estado político e à vida económica. Acreditais que jamais Homero, ao escrever a Ilíada e a Odisseia, pensou nas alegorias com que as rechearam Plutar co7, Heráclides Pônticos, Eustácio9, Fomuto, e que Poligiano 28
G;\RGÂNTUA
lhes roubou? Se acreditais, não vos aproximais nem com os pés nem com as mãos da minha opi nião, que decreta que Homero as imaginou tão pouco como Ovídio, nas suas Metamorfoses, aos sacramen tos do Evangelhoio, como tal Frei Lubinll, verda deiro parasita, se esforçou por demonstrar, se acaso encontra va pessoas tão tolas como ele, e (como diz o provérbio), tampa digna de tal panela. Se não acre di ta is , porque n ão fareis o mesmo com estas ale gres e novas crón icas, embora ao ditá-las eu não pensasse mais nelas do q ue vós, que bebeis talvez tanto como eu? Pois, na composição deste l ivro senhori al, não perdi nem empreguei mais nem outro tempo do que o estabelecido para tomar a mi nha refe i çã o corporal , ou seja, bebendo e comendo. Chegou as sim a hora devida de escrever estas altas matérias e ciências profundas, como tã� be m sabiam fazer Homero, paradigma de todos os filólogos, e Eni o i :l , pai dos poetas latinos, conforme o tes temunha Horácio, embora u m malcriado tenha dito que os seus poemas cheiram mais a vinho que a óleo. O mesmo disse um velhaco dos meus livros; mas merda para ele! Como é mais apetitoso, risonh o, atraente, mais celeste e delicioso o odor do vin h o do que do óleo! E acharei tão glorioso que digam de mim que gastei mais em vinho do que em óleo, como Demósten es, quando lhe diziam que gastava mais em óleo do que em vinho. Para mim só é honra e glória ser dito e re putado bom compi n cha e bom companheiro, e com esse nome sou bem-vindo entre todas as boas companhias de pantagrue listas. A Demóstenes foi cen s ur ado por um espírito azedo que as suas Oraçôes cheira vam à serapi lhe i ra de um imundo e su jo azeiteiro. Interpretai, pois, todos os meus factos e ditos no que têm de perfeição; reveren ciai o cérebro caseíforme que vos dis trai com estes belos di spar ates e, se puderdes, considerai-me sempre um hom e m alegre. Pois di verti-vo s , meus amores, e alegremente lede o resto, com todo o à-vontade do corpo e com v an tagem para os rins! Mas escutai , ó estúpidos - que uma úlcera nas pernas vos dei xe coxos! - não vos es que ç a is de beber à minha saúde, e logo vos darei razão. NOTAS 1 Monstms alados mm rosto de mu lhcr c corpo de abutre. 2 Rabclais completa os m o n st n) s da mitologia com animais fantásticos, acumulando caracterizações jocosas-: pá.�8arcm com freio como os cavalos, le-
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RJ\BELAIS bres carnudas como as vacas, patas albardada.• como os burros, bodes voadores e veados entre varais atrelados c omo cavalos. Platão, no Banquete (21 5 A), ape: nas escreveu: «Digo qu e ele (Sóc rat es) é mu i to semelhante a esses Silcnos ex postos nas l oj a s dos cstatuií1'ios c qu e os arti sta s representaram ostentan do gai tas campestres c flautas. Quando se separam as duns peças qu e formam essas estatu etas, d e sco bre- s e no interior a imagem de u m deu s.» Silcno, pai nu triente de Baco, era n�prcscRtado como um bob � hilariante e grotesco. 3 Bálsamo de Mec a, suco resinoso. - Ambar cinzento, sccr<.>ção do cacha lote, a que Rabclai s chama «esperma de baleia» no Pantagruel (cap. XXN, p. 321 ). - Amomo, p la n t a odorífera dn Á sia. - Alm{scar, produto odmífcro ex traído do gato-almiscareim. - Civeta, pequ eno cnrnívoro de que se extraía um p e r fu me. - Pedrarias, os boticários mi stu ravam pedras preciosas com ex cipic ntes, como remédios «parn reparar os espíritos vi tais . . . por causn da sua luz que sim bolizn os espíritos» (Guillau me Bouchet). Estas drogns faziam realmente pm"ic da f n rm acopeia da época, bem como os remédios bizarros cita dos por M o nta i gne (Enwicm Ir, :{7). 4 Este elo gi o de Sócrates, el e acordo com os retratos dcixndos por Platão (cf. O Banq uete) c Xc nof(m tc , é insp irad o (c por vezes trnduz ido) cm Erasmo, Adágios, Silenni Alcibiadi.� (Ir r, 2, 1 ), que tamMm eleve ler s ido a fonte de Mon t ai gnc. A co m paraçüo entre Sócrates c Sileno era muito popular nos hu ma nistas. 6 Os espa nhó is eram célebres peln sun vale ntia c a sua basófia (cf. a figu ra elo Matn m ou ros cm L'Illusion Co miqu e de Corncille). 7 Os humanistns consideravam a Iilosofia ele P itágo ras como cheia de símbolos, como també m os mistél -i os de Orfeu. B At ribu ía-se a P lu ta rco um tratado sobre a vida e a poesia de Homero. 9 Alus ão ao t ra t ado De Alegoriis apu d Homerum (Alegoria.� homéricas) de um gram á ti co latino, Herô.clides do Ponto. !O Eu s t áci o, arcebispo de Tc ss alónica (séc'Ulo Xll), escrevera um comentá rio sobre Homem . Também C or n utos (Phornute), filósofo es t ói c o do século 1 da era cristã. Poliziarlü, humanista do século xv, e ditado cm Lyo n cm 1 533 por Gryphc. Pol iz i an o plagiara copi os amente os se u s antecessores. '11 A i ron i a de Rabelais rel ativa nos amadores de s ímb olos é aqui confir mada. As Meta.m.(}lj(>se.� haviam sido consideradas c omo uma antecipação alegór i ca do Evangelho pelo dominicano Walluys (século XIV). 12 Frei Lubin, sinónimo ele monge ign o rante e estúp ido (cf. Marot, Baila de de frere Lubin.), que fi!,'l.lra no Catálogo ela livraria de Séú> Vüor (p. 1 1 5) no Pantagruel: «Três livms d o Reverendo Padre Frei Lubin, padre provincial de Ba vardc li e , sobre tiras ele toucinho para t li nc ar ... 13 Énio (239-1G9 a. C.), inlmdutor do he lenismo cm Ro ma c autor de u m poema épicos, os Anai.�. Sc!,'l.lndo Horácio (Epf.�tulas r, XIX), só compunha depois de beber.
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CAPÍTULO
I
DA GENEALOGIA E ANTIGUIDADE DE GARGÂNTUA Remeto-vos para a gTande cromca Pantagruelinal a fim de reconhecerdes a genealogia e a antiguidade de que nos veio Gargântua. Nela sabereis mais detidamente como nasceram os gigantes neste mundo e como destes, por linha directa, pro veio Gargântua, pai de PantagTuel, e não levareis a mal se por agora me abstenho de repeti-lo, embora o caso seja de tal natu reza que, quanto mais for relembrado, mais agradará a Vos sas Senhorias. Para isso tendes a autoridade de Platão, in File bo e Górgias, e de Flaco, que dizem de algumas matérias, como aquela de que vos falo, que são mais deleitáveis, quanto mais vezes forem repetidas. Prouvera a Deus que cada qual soubesse tão seguramente a sua genealogia, desde a Arca de Noé até aos nossos dias! Penso que muitos são hoje imperadores, reis, duques, príncipes e pa pas na terra e que descendem de portadores de relíquias e frio leiras, como outros, pelo contrário, são mendigos de hospício, indigentes e miseráveis, e que descendem pelo sangue e pela li nhagem de grandes reis e imperadores, devido à admirável trajectória dos reinos e impérios: dos assírios aos medos, dos medos aos persas, dos persas aos macedónios, dos macedónios aos romanos, dos romanos aos gregos, dos gregos aos franceses2. E, para vos falar de mim próprio, creio ser descendente de algum rei muito rico ou príncipe dos tempos idos, porque ja mais tereis visto homem que mais desejasse ser rei e rico do que eu, a fim de comer bem, não trabalhar, não ter cuidados, e 31
RABELAJS
enriquecer os meus amigos e todas as pessoas de bem e de sa ber. Mas o que me reconforta é que, no outro mun do, sê-lo-ei, e até maior do que no pre sen te ousaria dese jar. Reconfortai tam bém a vossa infelicidade com este ou ain da melhor pensamen to, e bebei-lhe bem, se puderdes. Voltando à vaca fria, digo-vos que por graça soberana dos céus nos foram con servadas a antiguidade e a gen ealogia de Gargân tua, mais completa s que quaisquer outras, excepto a do Messias, de quem não fa l o porque n ão me c ompete e porque o s diabos3 (que são o s caluniadores e o s falsos beatos) a isso s e opõem. E foi encon trada por Jean Audeau num prado que e l e ti nha perto de Arceau Gualeau, abaixo da Olive, para os lados de Narsay, n o qual prado, ao desen tupirem os fossos, tocaram os cavadores c om as suas e n x adas num gran de túmulo de bronze, desmesuradamente comprido, pois jamai s lh e encontraram a extremidade porque se al on gava muito para diante nas repre sas de Vienne. Ao abri-l o em certo ponto, marcado com o de senh o de um copo em volta do qual e stav a escrito em letras etrus cas4: HIC BIBITUR , encon traram n ove frascos disposto s na mesma ordem como se espetam os paus para os jogo da bola na Ga s c o n h a, entre os quais o que estava n o mei o cobria um gran de , gordo e ci n zento, bonito, peque n o e bolorento livrinho, chei rando mais mas não mel hor do que rosas. Neste se ach ou a dita geneal o gia, escri ta em l etras de ch an c e l ari a5 , não em papel, não em pergaminho, não em cera, mas em casca de olmo, e tão gastas pela vetustez que ma � se podiam decifrar três seguidas. E mbora in dign o de tal tarefa, fui ch a m ado a decifrar o tex to e, com gran de reforço de ócul os, praticando a arte de ler letras n ã o aparentes, como ensina Aristótel es6, traduzi, como podereis ver pantagruelizan do, isto é, bebendo à tripa forra e lendo as gestas h orrífi cas de Pantagruel . No fim do l ivro havia um pe que n o tratado intitulado : Les Franfeluches antidotées 1 . Os ratos e as baratas, ou (para que n ão minta) outros bichos mal ign o s, tinham roído o começo ; o re sto acrescen te i -o eu adiante, po r reverência às coisas an ·
tigas.
NOTAS I O ca pítu l o I do Pan tagruel ( 1 5a2), i ntitu l ado «Dn origem c anli gu i dadc do !,'!'an de PantagJucl .. , co m p reen de u m a lo nga ge nealogia cm que se mistu ram os gi gan t e s b1blicos, os gigantes a n t igos c os perso n age n s de romance.
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Gi\RGÂNJVA 2 Esta tra nsferên c i a do i m pério dos ass írio s
para os li·anccscs não pa re
3
cti m olo !,ri a grega,
conte m porâ neos de Rabelni s ; n ã o só os escritores (Jean Bou chct, M argarida de N a v a rr a ) co mo tam bém os j u d stas a i nvoca vam para fu n damentar as prete n s õe s de Fra nci sco I ao i m péJio - por gregos deve entender -se o império b iz a n ti no , destru ído pelos turcos cm 1 4 5a. cia
fan t asist a nos
Duplo sen tido: d i abo s
calu ni a r). 4 E ru d i çã o
c
calu n i a dores (da ·
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fa ntasista: a i nda hoje o al fabeto et ru sco n ã o est á deci frado segurança , c não t e m n a d a de comu m com o l a ti m : Hic bibitur (Aqui bebe -se). Mas será o grande tllmulo ele bronze pu ra me n te i mn!,ri mirio ou trntnr-se-á de um tú mu l o real a m p l i a do pei a i m a gi n aç ã o do ro manci sta, como o sepulcro de Geojfroy dente-gra.nde ou o dól men de Ú!. Pierre Leuée ? (cf. Panta gruel, cap. V, p. 87). 5 Letras u s a d a s n a c h a n ccl n r i n papal, cu rsivo mu itas vezes ilcgfvcl. 6 Re fe rê nc i a fantasista a Ar; stótelcs: os peda n tes rcfer;am-sc c m tu do às su ns obras. 7 B a ga telas providas de u m a n tí d o to . com
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CAP ÍTULO
II
AS BAGATELAS COM ANTÍDOTO, ENCONTRADAS NUM MONUMENTO ANTIG01 Eis chegado o grande vencedor dos Cimbros2, Passando pelo ar, por temor do orvalho. À sua chegada encheram-se os bebedouros De manteiga fresca, caindo em catadupa Da qual quando foi regado o grande mar Gritou bem alto : <> Aqueceram-no com perfume de nabo, E ficou contente por se sentar à lareira6, Contanto que dêem um novo cavalo de tiro A tantos que têm mau génio7. E falaram da cova de São Patrícios, De Gibraltar9 e de mil outras covas: 34
GARGÂNIUA
Se as pudessem reduzir a uma cicatriz De tal maneira que nunca mais tivessem tosse, Visto que a todos parecia impertinente Vê-las abrirem-se assim a cada aragem; Se acaso estivessem fechadas, Poderiam amarrá-las como reféns. Nesse passo foi o corvo depenado Por Hércules, que vinha da Líbia. <�O quê! disse Minos' o, então não sou chamado a isso? A parte eu, todos são convidados, E depois querem que me passe vontade De fornecer-lhes ostras e rãs; O diabo me carregue se me interessa Ir à sua venda de andrajos.» Para o liquidar veio Q. B. que coxeia, Ao salvo-conduto dos mimo sos estorninhos, O peneireiro, primo do grande Ciclope, Massacrou-os. Cada qual assoa o nariz ; Nesta seara poucos maricas nasceram Que não tenham sido peneirados. Correi todos e chamai às armas: E tereis mais do que tivestes antanho. Pouco depois a ave de Júpiterl l Decidiu apostar no pior, Mas vendo-os agastarem-se tanto, Receou que pusessem de rastos o império, E preferiu roubar o fogo do império celeste, Ao tronco onde se vendem arenques fumados A sujeitar aos ditos dos massoretasl 2 O ar sereno, contra o qual se conspira. Tudo concluído, foi, Apesar de Atéi 3, afiada a coxa de garçal 4, Que ali se sentou, vendo Pentasileia1 5 Que em velha vendia agriões. Todos gritavam : «Vil carvoeira Acaso te compete encontrar pelo caminho? Tu a roubaste, a romana bandeira Que haviam traçado no pergaminho!>>
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RABELAIS
Se não fosse Juno que sob o arco celestel 6 Com o seu bufol 7 caçava pássaros, Tinham-lhe pregado uma partida tão grande Que ficaria toda amachucada. Tal foi o acordo que deste bom bocado Havia de ter dois ovos de ProserpinalB E, se jamais se irritasse, A amarrariam ao monte do espinheiro. Sete meses depois - tirem-lhe vinte e dois Aquele que outrora aniquilou Cartago Cortesmente se pôs no meio deles, Pedindo-lhes a sua herança, Ou que fizessem ajusta partilha Segundo a lei de atirar o prego ao ar Distribuindo uma concha de sopa Aos seus carregadores que fizeram o contrato. Mas o ano virá, assinalado por um arco turquês, De cinco fusos e três fundos de de panela, Em que, de costas, um rei muito cortês � bexigoso, estará vestido de arminho. O, piedade! Por causa de um hipócrita Deixareis afundarem-se tantas terras? Cessai, cessai ; ninguém imita essa máscara; Retirai-vos para o irmão das serpentesl9. Passado um ano, aquele que é20 reinará Pacificamente com seus bons amigos. Nem grosseria nem ultraje então reinarão; Toda a boa-vontade terá o seu compromisso, E o prazer que então foi prometido Às gentes do céu, virá no seu campanário ; Então as coudelarias que estavam espantadas Triunfarão em reais palafréns. E durará esse tempo de passe-passe Até que Março sej a acorrentado. Depois virá outro que a todos ultrapassa, Delicioso, ameno, belo sem par. Erguei os vossos corações, vinde a esse repasto, Meus vassalos, pois morreu 36
GARGÂNIUA
Quem para grande bem não voltará Tão calmo está o tempo passado. Finalmente, o que foi de cera Estará alojado nos gonzos de Jacquemart21 E não mais será chamado: «Sire, siref» O que toca o sino e tem a chaleira, Ele, que poderia agarrar na sua espada, Em breve não haveria mais cuidados, E, com cordel, poder-se-ia Atar toda a loja dos abusos22(*). NOTAS 1 As Bagatelas são um <
gio ganhava os perdões . . . 5 Chapéu forrado usado pelos papas e pelos cónegos na Idade Média.
6 Esta caricatura do papa aquecendo-se à lareira e perfumado com essên cia de nabo (em vez de incenso) é muito mais irreverente do que a de Júlio II no Pantagruel (cap. XXX, p. 397). 7 Estas pessoas de mau génio são possivelmente os ,,falsos beatos» que atacavam os humanistas e os evangelistas. O cavalo de tiro que deseja o papa reti rado ao canto da lareira representa talvez o seu sucessor eventu al, a puxar a carroça da Igrej a.
1 É possível que não seja este o sentido de mui tos dos versos do enigma, que já mesmo em francês parece às vezes absurdo e difícil de interpretar, sobretudo pelo carácter elíptico que apresenta. (N. da T.)
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RABEIA.JS 8 A cova de São Patrlcio situa-se numa ilha do lago Derg, no condado de Donegal, na Irlanda. Passava por ser uma das entradas do Purgatório e tor nou-se um local de peregrinações. 9 Gibraltar, também chamado «cova da Sibila.. , por confusão entre Sevi lha e Sibila. 10 Minos, juiz nos Infernos. Esta mitologia fantasiosa foi sem dúvida motivada pela ideia do Purgatório evocada pela «cova de São Patrício . 1 1 A águia. 12 Comentadores hebreus da Bíblia. 1 3 Na mitologia grega,.esta deusa provocava as querelas. 14 Provável reminiscência de Marot, EpUre au Roi... (Adolescence Clé mentine, l 5 32): ..
Et si m'a fait la cuisse hérortniere, L'estomac sec, le ventre plat e vague. 1 5 Pentesüeia, rainha das amazonas, foi morta por Aquiles no cerco de Tróia. Simboliza a coragem. Cf. Pantagruel, cap. XXX, p. 399: ,J>entesileia era vendedora de agriões... A degradação burlesca das personagens mitológi cas é idêntica: Pentesileia, jovem heroína caída em combate, só pode ser ven dedora de agriões na velhice. 1 6 Arco--íris. 1 7 Grand duc, utilizado na caça como ave de altanaria. 1 8 Deusa dos Infernos. 1 9 O diabo (a serpente do paraíso terrestre). 20 Deus. 21 Personagem de ferro que dá as horas nos relógios dos campanários. 22 Esta loj a de abusos designará a Igreja? Rabelais não revelou o sentido do seu enigma. Pode pensar-se que às alusões satíricas se juntam fantasias alegres destinadas a dar que fazer aos futuros glosadores. Estas fatrasies eram muito apreciadas no século XVI.
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CAP ÍTULO III COMO GARGÂNTUA ESTEVE ONZE MESES NO VENTRE DA MÃE Grandgousier era bom companheiro no seu tempo, gostando de emborcar o seu copo até ao fundo, como tantos h omen s que en tão havia na terra, e gostava de comer coisas salgadas. Para tal , tinha geralmente uma munição de presuntos de Mayence e de Baionne, muitas línguas de vaca fumadas, grande abun dância de ch ouriços n a estação própria, e carne de vaca salga da com mostarda, grande doses de butargosl , uma provisão de sal sichas, não de Bolonha (pois tinha medo dos alimentos lom bardos2), mas de Bigorre, de Lonquaulnay, de Brene e de Rouar gue. Ao chegar à idade viril, desposou Gargamelle3, filha do rei dos Parpaillos4, rapariga bonita e de boa cara, e os dois brinca vam muitas vezes ao animal de duas costas(*), esfregando ale gremente as banhas, até que ela ficou prenha de um belo filho e o carregou até aos onze meses5. Pois tanto tempo, ou mesmo mais, podem as mulheres an dar de barriga, sobretudo quando se trata de alguma obra-pri ma e personagem que haj a de fazer grandes proezas no seu tem po, como diz Homero que o filh o com que Neptuno emprenhou a ninfa6 nasceu ao fim de um ano: foi no décimo segundo mês. Pois (como diz A. Gélio7, liv. iij), esse longo tempo convinh a à dignidade de Neptuno, de modo que a criança se formasse com perfeição. Pela mesma razão, Júpiter fez durar xlviij h oras a noite em que dormiu com Alcmenas, pois em menos tempo não poderia forj ar Hércules, que limpou o mundo de mon stro� e ti ranos. ( * ) Faziam amor. (N. da T.) 39
RABELAIS
Os senhores antigos pantagruelistas confirmaram o que di go e declararam não só possível mas legítimo o filho nascido da mulher ao décimo primeiro mês após a morte do marido : Hipócrates, lib. De alimento9, Plínio, li. v ij. cap. v, Plauto, in Cistellaria, Marcos Varrão, na sátira O Testamento, alegando a esse propósito a autoridade de Aristóteles, Censorinus, li. De die natali, . Ari stóteles, libr. vij, capi. iij e iiij, De nat. animalium, Gélio, li. iij, ca. xvj. Sérvio, in. Egl., ao expor este verso de Virgílio: Matri longa decem, etc.lO e mil outros loucos, cujo número foi aumentado pelos legistas, f{: De suis et legit., 1. Intestato, §fi., e in Autent., De restitut. et ea q ue parit in xj mensell . Muitos houve que com i sso rabisca ram a sua rodibilárdica1 2 lei ; Gallus, ff. De lib. et posthu., et l. septimo ff. De stat. homi 1 3, e outros que por agora não ouso di zer. Segundo tai s leis, as mulheres viúvas podem folgar à von tade e sem risco nenhum dois meses após a morte dos maridos. E eu vos peço, meus bons companheiros, que , se encontrar des mulheres destas que mereçam que se abra a braguilha, vin de cá e trazei-mas. Pois, se ao terceiro mês emprenharem, o seu fruto será h er deiro do defunto e, conhecida a gravidez, lá continuam elas atrevidamente, e é uma alegria, pois têm a pança cheia! Como Júlia, filha do imperador Octaviano14, que só se abandonava aos seus tocadores de tambor quando se sentia prenha, da mes ma maneira que um navio só recebe o seu piloto depois de e star calafetado e carregado. E se alguém as censurar por remen darem assim a sua gravidez, visto que as fêmeas prenhas não suportam o macho, responderão que isso são as fêmeas dos ani mais, mas que elas são mulheres, que conhecem os belos direi tos de superfetação, como outrora respondeu Popúlia, segundo narra Macróbio, li. ij. Saturnal. Se o diabo não quiser que emprenhem, terão de torcer o e spi cho, e bico calado.
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GARGÂNJUA
NOTAS 1 Butargos (do provençal boutargo), espécie de caviar, feito de ovas de di versos peixes, típico da Provença e do Languedoc. 2 Os 1ombardos passavam por ser peritos em venenos. 3 Gargamelle, como Grandgousier, significa <
intestato (Dos seus herdeiros legUimos, lei sobre o intestado); De Authenticae. De restitutionibus et ea quae parit in undecimo mese post mortem viri (lei so bre a legitimidade. Das restituições, e da mulher que dá à luz no décimo pri meiro mês após a morte do marido). 1 2 Lei de ronge-lard (rói toucinho), palavra formada por Rabclais segun
do o modelo de rodilárdico, invenção burlesca do italiano C alcnzio, cuja obra fora traduzida em 1 534 - Fantásticas batalhas dos grandes reis Rodilardus e Croacus. No Quarto Livro, cap. LXVII, Rodilardus é um gato, como mais tarde cm La Fontai ne (II, 2). 1 3 Lei Gallus. De liberis et posthumis heredibus instituendis vel exhere dandis. - Lei De statu hominum. S. Septimo mense nasci perfectum partum
jam receptum est, propter austoritatem doctissimi viro Hippocratis: Dos fi lhos, se os filhos póstumos devem ser herdeiros ou deserdados; Do estado dos homens; admite-se que a gestação pode ' terminar ao sétimo mês, graças à autoridade do sapientfssimo Hipócrates. 14 Júlia, filha de Augusto (Octávio), era célebre pelo seu desregramento, que a levou ao exílio. Macróbio, Saturnais, II, 5, 9, refere-se aos seus excessos.
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CAPÍTULO IV COMO GARGAMELLE, ESTANDO PRENHA DE GARGÂNTUA, COMEU GRANDE QUANTIDADE DE TRIPAS Tal foi a ocasião e a maneira como Gargamelle partiu, e se não acreditais, é porque vos escapa o fundamento(*)! O fundamento escapava-lhe um dia depois de j antar, n o iij dia de Fevereiro, por ter comido grandes tripas de boi, de bois engordados n a manjedoura e em prados ceifados duas vezes por ano. Destes grandes bois foram mortos trezentos e sessenta e sete mil e catorze, para serem salgados n a terça-feira gorda, de maneira que na Primavera se tivesse carne da estação p a ra, no começo das refeições, se fazer a comemoraçãol dos salga dos e melhor entrar no vinho. As tripas foram copiosas, como estais a ver, e tão saborosas que todos lambiam os dedos. Mas a dificuldade era que não po diam ser conservadas durante muito tempo, porque apodre ciam, o que pareci a in decente. Resolveu-se poi s que as come riam sem deixar nada, n o que estiveram de acordo todos os cita dinos2 de Sainnais, Suillé, La Roche Clermaud, Vaugaudray, sem deixar para trás o Coudray Montpensier, o Gué de Vede3 e outros vizinho s, todos bons bebedores, bons companheiros e bonsjogadores da malha. O bom Grandgousier refastelava-se e mandava pôr tudo nas escudelas. Mas ia dizendo à mulh er que comesse menos porque estava a chegar ao fim do seu tempo e aquelas tripas não eram carnes muito recomen dáveis: «Muita vontade tem de comer merda (dizi a ele) quem lhe come o saco.>> Apesar destas (*) Le fondement,
(N. da T.)
o
fundamento,
mas também ,
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familianncntc, o
ânus.
GARGÂNJUA
recomendações, ela comeu dezasseis muiz, dois bussars e seis tupins4. Ó bela matéria fecal que nela devia inchar! Depois de j antar, foram todos à Saulsaie5, e ali, na relva, dançaram ao som de alegres flautas e doces gaitas, tão alegre mente que era um celeste passatempo vê-los folgar assim. NOTAS I Inspirado na liturgia: a comemoração é uma prece invocativa de um santo que não é o santo do dia. A comparação com os salgados produz um efei to cómico. 2 Irónico, pois trata-se de aldeões. 3 Cinais (Sainnais), Seuilly (Suillé), La Roch�lermault, Vaugaudry, o castelo de Coudray-Montpensier, Le Gué de Vede são aldeias ou castelos vi zinhos de La Deviniere, terra natal de Rabelais, nos arredores de Chino n. 4 O muid continha cerca de 270 litros, o bussard é um barril equivalente a três qu artos do muid; o tupin é um vaso de terra. 5 Pradaria de salgueiros perto de La Deviniere.
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CAPÍTULO V A FALA DOS BEM BEBIDOS D epois puseram-se a merendar no próprio local. E eram garrafas a andar, presuntos a trotar, copos a voar, j arros a tilin tar: - Puxa! - Dá cá! - Vira! - Mistura com água! - Deita-me sem água; assim, meu amigo. - Esvazia-me valentemente esse copo. - Manda-me clarete, um copo bem cheio. - Abaixo a sede! - Ah! , febre traidora, não te queres ir embora? - Juro-lhe, comadre, que não posso meter-me na pinga. - Está triste, minha amiga? - Se calhar. - Por São Quenetl ! Falemos da pinga. - Só bebo a certas horas, como a mula do papa2. - E eu só bebo no meu breviárioJ, como um bom pai-da-guarda4. - Quem apareceu primeiro, a sede .ou a bebeduras? - A sede, pois quem beberia sem ter sede no tempo da inocência6? - A bebedeira, pois privatio presuponit habitum 1 , e eu sou es crevente. Foecundi calices quem non fecere disertums. - E nós, inocentes, só bebemos sem ter sede. - Não eu, pecador, sem sede, e se não é sede presente, pelo menos futura, pen sem o que quiserem. Bebo para que a sede ve44
GARGÂNTUA
nha. Bebo eternamente. É uma eternidade de bebedura e uma bebedura de eternidade. - Cantemos, bebamos e entoemos em motete! - Onde está o meu funil9? - O quê! Só bebo por procuraçãoio! - Molha-se para secar ou seca-se para molhar? - Não entendo a teoria, mas socorro-me da prática. - Força! - Eu molho, sorvo e bebo, e tudo por medo de morrer. - Continuai a beber que não morrereis. - Se não bebo, fico a ·s eco e morro. A minha alma fugirá para algum buraco de rãs. A alma nunca habita o secon . - Escanções, ó criador de novas formas12, de não bebedor fa zei-me bebedor. - Eternidade de irrigação para estas entranhas nervosas e secas! - Por nada bebe quem não se sente. - Este entra nas veias, a bexiga não receberá nada. - Não me importava de lavar as tripas do vitelo que ainda esta manhã vesti . - Carreguei bem o estómago. - Se o papel das minhas cédulas bebesse tão bem como eu, os meus credores ficavam bem arranjados quando tivessem de mostrar as minhas dívidas 1 a . - Essa mão sempre no ar põe-vos o nariz vermelho. - Quantos outros entrarão antes que este saia! - Beber num ribeiro tão pequeno dá cabo do peitol 4. - Que 'diferença há entre uma garrafa e um frasco? - Muito grande, pois a garrafa fecha-se com uma rolha e o frasco com um parafuso(*). - Lindas coisas! - Os nossos pais beberam-lhe bem e esvaziaram os copos. - Muito lindo ! Bebamos! - Não quereis confiar nada ao rio? Aquele vai lá lavar as tripas. - Não bebo mais que uma esponja. - E eu como um templário. - E eu tanq uam sponsus1s .
- E eu sicut terra sine aqual B. - Um sinónimo de presunto?
(*) Vis ou viz, membro viriL (N. da T.) 45
RABELAIS
- É uma compulsória de bebidast7; é uma escada. Pela esca da desce o vinho à cave; pelo presunto ao estômago. - Tragam de beber, tragam de beber. A carga não está com pleta. Respice personam; pone pro duos; bus non est in usui B. - Se eu subisse tão bem como emborco, há muito tempo que estava nos ares. - Assim se fez rico Jacques Cueurl 9. - Assim aproveitam os bosques por cultivar. - Assim conquistou Baco a India. - Assim a ciência conquistou Melindezo. - Chuva pequena abate grande vento. Grandes bebeduras rasgam o trovão. - Mas, se os meus colhões mijassem essa urina, quere riam vocês chupá-la? - Eu retenho depois. - Deita-me vinho, ó pajem! Inscrevo-me para a minha vez de beber. - Serve, Guillot! Ainda há um copo. - Recorro . contra a condenação à sede como abusiva. Pajem, toma nota do meu apelo segundo as regras. - São restos! - Eu dantes bebia tudo, agora não deixo nada. - Não nos apressemos e apanhemos tudo. - Aqui tendes as ricas tripas daquele boi castanho. Oh, por Deus, esfolemo-lo bem para proveito da casa. - Bebei, ou eu vos . . . . - Não, não ! - Bebei, peço-vos. - Os preguiçosos só comem quando lhes batem na cauda, e eu só bebo se me lisonjarem. - Lagona edatera21 ! Não há toca de coelho onde este vinho não expulse a sede como um furão. - Este bem ma açoita. - Este há-de banir-ma completamente . - Gritemos a o s o m d a corneta, a o s o m d e frascos e garrafas, que quem tiver perdido a sede não venha procurá-la aqui : uns bons clisteres de bebida desalojaram-na de casa. - Deus fez o planeta e nós limpamos os pratos(*). - Tenho na boca a palavra de Deus: Sitio22.
(*) <
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GARGÂNTUA
- A pedra chamada ãpecnoç23 não é mais inextinguível que a sede da minha Paternidade. - O apetite vem ao comer, dizia Angest on Mans24, e a sede vai-se ao beber. - Qual é o remédio contra a sede? - E o contrário do remédio contra as mordeduras dos cães: correi sempre atrás do cão, e nunca vos morderá; bebei sempre antes da sede, e nunca vos assaltará. - Apanho-vos a dormir e acordo-vos. Escanção eterno, li vra-nos do sono. Argus tinha cem olh o s para ver, mas um es canção precisa de cem mãos, como tinha Briareu25, para estar sempre a deitar vinho. - Molhemos o bico, que está quase seco. - Vinho branco ! Deita tudo, deita, pelo diabo! Deita cá i sso bem cheio, que tenho a língua a pelar. - J?rinda, companheiro ! - A tua, companheiro ! Com muito gosto! - Isso é que é comer. - Q lachryma Christi2B! - E de La Deviniere27, é vinho branco ! - Oh, que rico vinho branco! - E, pela salvação da minha alma, é um vinho que mais parece veludo. - Sim, sim, de boa fazenda, boa lã. - Coragem, companheiros! - Não precisaremos dela para este j ogo, pois já levantei o copo. - Ex hoc in hoc2B. Não há nenhum encanto; cada um de vós o viu, sou mestre nisso. - I:Ium, hum, SOJ:l o padre Macé(*). - O bebedores! O alterai-os! - :pajem, meu amigo, enche bem o copo, é o que te peço. - A Cardeal29! - Natura abhorret vacuum3o. - Diríei s que uma mosca bebeu daqui31 ? - À moda da Bretanha32 ! - Engoli , que são ervas33 !
(*) Não se sabe o que Rabclais quer dizer com isto. (N. da T.) 47
RABELAJS
NOTAS 1 Santo imaginário, que Rabelais invoca frequentemente. 2 Jogo de palavras sobre a mula que transporta o papa e a sua pantufa (mu le). Rabelais (Pantagruel, cap. VII) cita uma faceciosa Apologia... contra os que dizem que a mula do papa só come a certas horas. Na réplica seguinte, também a palavra horas é tomada no sentido de Livro de Horas (breviário). 3 Certos frascos tinham o aspecto exterior de um breviário. 4 Superior de um convento de franciscanos. 5 Exemplo de questão a debater entre os escolásticos, como as discussões sobre a anterioridade do ovo ou da galinha. 6 Sem dúvida antes do pecado original. 7 <<Â. privação supõe a posse», máxima jurídica galhofeiramente aplica da ao beber: a sede supõe a bebedura. 8 Citação de Horácio (Eptstolas, I, 5, v. 1 9): <<Â. quem não tornaram elo quentes as taças bem cheias?» Com um jogo de palavras: o cálice é o vaso sa grado da missa. 9 Entonnoir: jogo de palavras sobre entonner (entoar) um cântico e mettre en tonneau (meter no tonel). 1 0 Protesto do juiz . 11 Gracejo eclesiástico extraído do pseudo-Santo Agostinho (Quaestiones veteris et novi Testamenti, xxm): «a alma. . . não pode habitar em seco», o que justificava os que bebem teologalmente. 1 2 Brincadeira metafísica: os escanções procedem a uma mudança da «forma•• graças à «Substância>• do vinho. 1 3 Brincadeira jurídica: os meus credores ficariam atrapalhados, pois, como o papel bebera tudo, ficariam sem o texto relativo às minhas dívidas. 1 4 Comparação com o cavalo, que rompe o peito ao debruçar-se para che gar à água muito b aixa. O bêbado queixa-se de ter o copo qu ase vazio. 1 5 E eu como um noivo, expressão bíblica que dá azo a u m jogo de palavras em volta de sponsus (noivo) e spongia (esponja). 16 E eu como terra sem água, outra comparação bíblica (Salmos, CXLII, 6). 1 7 Termo do direito, para dizer que chama à bebida. 1 8 Vê a quem deitas vinho, e deita por dois; trocadilho em volta de bus, pre térito passado do verbo beber, e bus, desinência plural do ablativo latino de
duo.
1 9 Grande ourives de Carlos VII (1 395-1 456). 20 O reino de Melinde figura nas navegações de Pantagruel (cap. XXN, p. 325); simboliza as riquezas fabulosas do Extremo Oriente. 21 «Traz de beber, companheiro !», em basco. 22 «Tenho sede», uma das últimas palavras de Jesus no Calvário. Na Ida de Média e no século XV1 não eram chocantes as adaptações cómicas dos textos sagrados; eram frequentes nos <
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GARGÂNTUA 27 Quinta onde nasceu Rabelais. Aplicação burlesca do salmo LXXIV: Deus oferece um cálice de vinho misturado com fel ora a um pecador ora a outro : «Disto para aquilo, como: <•, como se canta entre os vinhateiros. 2 9 Até o copo ficar vermelho como o chapéu de um cardeal. 30 A natureza tem horror ao vazio, princípio da Física antiga. 31 Por ser pouco. 32 Os Bretões tinham fama de beber a seco (como os Suíços e os Ale mães) . . . 3 3 Medicinais. 28
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CAPÍTULO VI
COMO GARGÂNTUA NASCEU DE MANEIRA MUITO ESTRANHA Enquanto mantinham estas conversas acerca da bebida, Gargamelle começou a sentir dores nas partes inferiores, e Grandgousier levantou-se da relva e reconfortou-a honesta mente, pen sando que fossem dores de parto, e dizendo-lhe que ela estava na relva, na Saulsaye, e que em breve lhe cresce riam pés novosl , por isso convinha-lhe ganhar coragem para o aparecimento do seu pequerrucho e, mesmo que a dor a impor tun asse, h avia de ser breve, e logo a felicidade a aliviaria daquele incómodo, de tal maneira que nem a recordação lhe fi caria2. ,,coragem (dizia ele), despachai-vos deste e depressa fare mos outro.>> «Ah ! (disse ela), é com essa facilidade que vós homens fa lai s ! Mas, por Deus, hei-de esforçar-me, se assim vos apraz. Mas tomara que o cortásseis!» «Ü quê?», diz Grandgousier. «Ah ! (diz ela). Que prenda me saís! Bem sabeis!» «Ü meu membro? (diz ele). Sangue de cabra ! S e é isso que querei s, mandai vir uma faca.•• «Ah ! (diz ela) Deus em perdoe ! Não é isso que eu quero e , pa lavra de honra, não o façais. Mas terei hoje muitos trabalhos, se Deus não me ajudar, e tudo por causa do vosso membro, que manejais habilmente.» «Coragem, coragem! (diz ele). Não vos preocupeis e deixai andar. Ainda vou beber un s cópazios, e se entretanto vos acudir alguma dor, estarei por perto. Ch amai com as mãos em conch a que virei ter convosco.» Pouco depoi s, começou ela a suspirar, a queixar-se e a gri tar. De repente apareceram muitas parteiras de todos os lados 50
GARGÂNTUA
e, apalpando-lhe os fundos, encontraram umas peles de muito mau gosto e pen saram que era a criança; mas era o fundamen to(*) que lhe escapava, pelo afrouxamento do recto derivado de ter comido tripas de mais, conforme acima se declarou. Uma velha imunda do grupo, que tinha fama de ser grande médica e que viera de Brizepaille, perto de Sainct Gen ou, ses senta ano s antes, fez-lhe um adstringente tão h orrível que lhe pôs os esfíncteres tão opilados e apertados que só a muito custo, com os dentes, se poderiam alargar, o que é coisa terrível de pensar: assim o diabo, ao e screver a conversa de duas tagare las na missa de São Martinho, esticou o seu pergaminho com os dentes3. Por este conveniente se relaxaram em cima os cotilédones da matriz, através dos quais saltou a criança, que entrou na veia cava e, subindo pelo diafragma até aos ombros (onde a di ta veia se abre em duas), virou à esquerda, e saiu pela orelh a do mesmo lado. Assim que nasceu, não gritou como as outras crianças: «Mies! mies!», mas em voz alta berrava : <>, como se convidasse toda a gente a beber, de tal modo que foi ouvido por toda a região de Beusse e de Bibaroys4. Suspeito que não acreditais firmemente nesta estranha na tividade. Não m e importa que não acrediteis, mas um h omem de bem, um homem de bom sen so, acredita sempre no que lhe di zem e no que vê escrito. Acaso é contra a nossa lei, a n ossa fé, contra a razão, contra as Sagradas Escrituras? Quanto a mim, não encontro nada escrito na Santa Bíblia que seja contra isso. Mas, se fosse essa a vontade de Deus, acaso diríeis que não o po deria fazer? Ah, por piedade, não atrapalheis o vosso espírito com esses vãos pensamentos, pois eu vos digo que a Deus nada é impossível e, se Ele quisesse, doravante as mulheres teriam filhos pelos ouvidos. Baco não foi gerado pela coxa de Júpiter? Rocquetaillade não nasceu do calcanhar da mãe5? Minerva não nasceu do cérebro pela orelha de Júpiter? Adónis da casca de uma árvore de mirra6? Castor e Pólux da casca dum ovo, posto e chocado por Leda7? Mas ainda ficaríeis mais espantados se passasse a expor-vo s todo o capítulo de Plínio onde se fala dos partos estranhos e contra a natureza; e todavia não sou tão confirmadamente (*) O ânus. (N. da T.)
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RABELAIS
mentiroso como ele foi. Lede o sétimo capítulo da sua História Natural, capi. iij . , e não me deis cabo do juízo. NOTAS 1 Como os cavalos soltos nos campos verdes, aos quais voltam a crescer os cascos. 2 Alusão a uma passagem do Evangelho de S. João segundo a qu af a mu lher esquece a angústia que sentiu no momento de dar à luz. 3 Alusão a uma lenda narrada no Mistério da Vida de S. Martinho: en quanto o santo celebra a missa, o diabo vai anotando num pergaminho a ta garelice de du as comadres. Como o seu rolo é muito curto para registar tudo, puxa o pergaminho com os dentes para o esticar, mas este rasga-se e o diabo cai, indo bater numa coluna. 4 Tanto Beusse, perto de Loudun, como o Vivarais (Bibarais), evocam o verbo boire (beber). 5 As lendas de Roquetaillade e de Croquemouche não foram identifica das, mas a sua vizinhança com os deu ses da mitologia produz um efeito bur lesco. 6 Adónis era filho de Mirra e do próprio pai da princesa. Quando se desco briu o incesto, Mirra foi metamorfoseada na árvore do mesmo nome. 7 Jú piter, sob a fonna de um cisne, amou Leda, que pôs dois ovos: um, do marido Tfndaro, deu origem a Castor e a Clitemnestra; do outro, fecundado por Júpiter, nasceram Helena e Pó lux.
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CAPÍTULO VII
COMO FOI DADO O NOME A GARGÂNTUAl , E COMO GOSTAVA DA PINGA O bom Grandgousier, que bebia e folgava com os outros, ou viu o grito horrível que deu o seu filho ao vir a este mundo, quando bramia pedindo: <
RABELAJS
trariado, se batia com os pés, chorava ou gritava, traziam-lhe de beber e ele voltava à sua natureza, pondo-se de repente quie to e alegre. Uma das suas governantas contou-me e jurou-me que esta va tão habituado a isto que só de ouvir o som das pintas(*) e das garrafas entrava em êxtase, como se saboreasse as alegrias do paraíso. De m odo que, considerando e sta compleição divina e para o pôr alegre, logo pela manhã mandavam bater nos copos com uma faca diante dele, ou em frascos com a própria rolha, ou em pintas com a tampa, e ele alegrava-se com esse som, sobressaltava-se e embalava-se a si mesmo, abanando a ca beça, monocordizando(**) com dos dedos e bariton ando com o cu. NOTAS I O nome de Gargântua, como o dos seus pais Grandgousier e Gargamel le, significa <> (as goelas). 3 O nome da criança não era determinado pelas primeiras palavras do pai, mas por uma circustância correlativa ao nascimento . 4 Pontille e Bréhémont são nomes de localidades reais, e é desta co nstan te mistura de elementos da realidade e da ficção (como a quantidade incrível de vacas necessárias para amamentar Gargântua) que resulta a graça do
Gargântua. 5 Discípulos de Duns E scoto , franciscano do século XIII, que Rabelais con
sidera como o símbolo das trevas escolásticas. 6 Nome muito corrente na região de Chinon. 7 Vinho. Cf. Pantagruel, cap. I, p. 53: <
(*) Antiga medida para líquidos (0,93 1). (N. da T.) (**) Tocando «monocórdio», uma espécie de cravo. (N. da T.)
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CAP ÍTULO VIII
COMO VESTIRAM GARGÂNTUA Chegando ele a esta idade, o seu pai ordenou que lhe confec cionassem o vestuário de acordo com a sua libré(*), que era branca e azul. E logo trataram disso e o fizeram, cortaram e coseram segundo a moda da época. Segundo os antigos l etrei ros que estão na Câmara de Contas em Montsoreaul , verifico que o vestiram do seguinte modo: Para a camisa, cortaram-se novecentas varas de fazenda de Chasteleraud2, e duzentas para os sovacos, em forma de qua drados, que lhe puseram debaixo dos braços. E não era muito franzida, pois o franzido das camisas só foi inventado quando, tendo partido a ponta da agulh a, as costureiras começaram a costurar com o cu. Para o gibão cortaram-se oitocentas e treze varas de cetim branco, e para os cordões(*), mil e quinhentas e nove e meia pe les de cão. Começaram então a coser os calções ao gibão, e não o gibão aos calções, pois i sso é contra a n atureza, conforme decla rou Olkam3 sobre os Exponíveis de M. Haltechaussade. Para os calções cortaram-se mil cento e cinco varas e um terço de estamenh a branca. E recortaram-n as em forma de colunas, estriadas e caneladas n a parte de trás, a fim de aque cer os rins. E o calção enfunava como devia ser nos recortes de damasco azul. E notai que tinha belas pernas e bem proporcio nadas com o resto da estatura. Para a braguilha cortaram-se dezasseis varas e um quarto do mesmo tecido. E foi feita em forma de arcobotante, bem pre-
(*) Anti gamente eram as vestes com as cores das armas de u m rei ou de u m senhor usadas pelo seu séquito. (N. da T.) 55
RABELAIS
so e alegremente a dois agrafos de esmalte, cada um dos quais tinha enconstoada uma grande e smeralda do tamanho duma laranja4. Pois (como diz Orpheus, libro De Lapidibus5 e Plínio, libro ultimo6), tem a virtude erectiva e confortativa do membro natural. A saliência da braguilha era do tamanho duma vara7, recortada como os calções, de damasco azul a flutuar co mo aqueles. Mas, ao verdes o lindo bordado a canotilhoB e os ai rosos entrelaçados de ourivesaria, guarnecidos de finos dia mantes, finos rubis, finas turquesas, finas e smeraldas e uniões pérsicas9, tê-la-íeis comparado a um belo corno da abundância, tal como vedes nos monumento s antigos, e como a que Reia deu às duas ninfas Adrasteia e Ida, amas de Júpitert o - sempre galante, suculenta, sempre verdejante, sempre flo rescente, sempre frutificante, cheia de humores, cheia de flo res, cheia de frutos, cheia de todas as delícias. Juro por Deus que era um prazer para a vista! Mas melhor vos falarei dela no livro que escrevi Da dignidade das braguilhasu . Digo-vos po rém que, sendo comprida e ampla, era bem guarnecida por den tro e bem abastecida, em nada se assemelhando às hipócritas braguilhas dos peralvilhos, que estão cheias de vento, para mal do sexo feminino. Para os sapatos cortaram-se quatrocentas e seis varas de veludo azul carmesim. E recortaram-se mimosamente em li nhas paralelas unidas em cilindros uniformest 2. Para a sola, empregaram-se mil e cem peles de vaca parda, cortadas em feitio de rabo de bacalhau. Para o saio cortaram-se mil e oitocentas varas de veludo azul , tingido de escarlate, bordado com belas vinhetas e, no meio, com taças de prata em canotilho, entrelaçadas com ver gast a de ouro, com muitas pérolas, para mostrar que ele seria um grande bebedor no seu tempo. O cinto foi de trezentas vacas e meia de sarja de seda, meio branca e meio azul (ou estarei muito enganado). Não foi valencianat 4 a sua espada, nem saragoço o seu pu nhal, pois o seu pai detestava todos esses fidalgos borrachos e marranost5, como diabos; mas teve uma bonita espada de ma deira e um punhal de couro, pintados e dourados como todos gos tariam de ter. A sua bol sa foi feita com o colhão dum elefante que lhe deu Her Pracontal , procônsul da Libiat s. (*) Para unir os calções ao gibão. (N. da 7'.)
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Para o vestido cortaram-se nove mil e seiscentas varas me nos dois terços de veludo azul, tudo fiado a ouro em figura dia gonal, o que , por justa perspectiva, dava uma cor indescritível tal como a que se vê no colo das rolas e que regala maravilhosa mente os olhos dos espectadores. Para o barrete cortaram-se trezentas e duas varas e um quarto de veludo branco. E a sua forma foi larga e redonda como a cabeça, pois o seu pai dizia que os barretes à m ourisca, feitos como a crosta dum pastel, haviam de causar desgraças aos seus donos. Para o penacho, uma grande e bonita pluma azul provenien te de um pelicano do país de Hircânia1 7 a selvagem, mimosa mente pendente sobre a orelha direita. Para a imageml B, tinha, numa placa de ouro pesando ses senta e oito marcos19, uma figura de e smalte representando um corpo humano com duas cabeças, uma virada para a outra, qua tros braços, quatro pés e dois cus, como diz Platão, in Sympo sio2o, que era a natureza humana no seu começo místico, e em volta estava escrito em letras jónicas: AiAITH OY ZHTEI TA EAYTJID!l .
Para trazer ao pescoço, uma corrente de ouro pesando vinte e cinco mil sessenta e três marcos de ouro, em feitio de grãos, entre os quais se haviam engastado grandes jaspes verdes gra vados e talhados em forma de dragões todos cercados de raios e de chispas, como outrora os usava o rei Necepsos22, e descia até à boca do alto-ventre, que toda a vida beneficiou disso, como sa bem os médicos gregos23. Para as luvas usaram-se dezasseis peles de duendes e três de lobisomem24 para o bordado, e de tal matéria lhe foram feitas por ordem dos cabali stas de Sainlouand25. Para os anéis (que o seu pai quis que usasse para renovar o antigo sinal de nobreza) teve n o dedo indicador da mão esquer da um escarbúnculo do tamanho dum ovo de avestruz, mimosa mente encastoado em ouro de seraph26. No dedo anular, um anel feito de quatro metais ligados da maneira mais m aravi lhosa que jamai s se viu, sem que o aço riscasse o ouro, sem que a prata riscasse o cobre ; tudo isso foi feito pelo capitão Chap puys27 e Alcofribas, seu homem de mão. No dedo anular da mão direita teve um anel em forma de espiral, no qual estavam en castoados um rubi, um diamante em ponta e uma esmeralda de Physon2s, de preço inestimável, pois Hans Carvel29, grande la57
RABELAIS
pidário do rei de Melinde, atribuía-lhes um valor de sessenta e nove milhões oitocentos e n oventa e quatro mil e dezoito carnei ros de farta lã30 , e pelo mesmo preço os avaliaram os Fourques de Auxbourg31 . NOTAS 1 Pequena cidade na confluência do Vienne e do Loire, que Rabelais co nheceu bem, mas onde nunca houve nenhuma Câmara de Contas. 2 Châtellerault (Vienne) tinha fazendas célebres nos séculos XVI e XVII. 3 Ockam, franciscano inglês do século XIV, chefe da escola nominalista. Rabelais troça tanto dele como do seu adversário Duns Escoto. Os Expon!ueis eram uma parte da lógica formal. M. Haultechaussade é um nome inven tado. 4 Esta braguilha é tão extraordinária como o gigante a quem pertence. Rabelais já troçou desta moda no Pantagruel (cap. XVIII, p. 269): ,J>anurge colo cara na ponta da sua comprida braguilha uma linda borla de seda, vermelha, branca, verde e azul, e metera-lhe dentro um bela laranj a.>> 5 Das pedras, falsamente atribuído a Orfeu. 6 O último livro da História Natural de Plínio fala das esmeraldas, mas nenhum destes dois livros menciona a virtude erectiua da esmeralda; os trata dos médicos do século XVI pretendem, pelo contrário, que acalmava os ardores amorosos. 7 <>, medida equivalente a cerca de 1 ,80 m. 8 Bordado a fio de ouro ou prata enrolado em espiral . 9 Pérolas pescadas no golfo Pérsico. 1 0 Para o subtrair à voracidade de Saturno, Reia, mãe de Zeus, confiou-o às ninfas Ida e Adrasteia, que o alimentaram com o leite da cabra Amalteia, no monte Ida, situ ado na Grécia . Tendo-se partido um corno da cabra, enche ram-no de frutos e de flores, e assim se tornou um corno da abundância. 1 1 Cf. <
GARGÂNTUA 2 3 Rabelais alude ao tratado atribuído a Galeno, em que se atribuem pro priedades curativas aojaspe. 24 A pele do duende pass ava por ser impenetrável às balas. No século XVI acreditava-se muito na existência dos lobisomens. 25 Os cab alistas são os intérpretes da Biblia. A expressão tem um sentido pejorativo e designa os monges de Saint-Louand, aldeia um pouco acima de Chion. 26 Ouro puro . O seraph é uma moeda egípcia ou persa. 27 Amigo de Rabelais, embora não se possa identificá-lo seguramente com o capitão de navio Michel Chappius; Alcofribas, anagrama de Rabelais (cf. os frontespícios do Pantagruel). 28 Rio do Paraíso Terrestre. 29 Hans Carvel reaparece com o mesmo título no Terceiro Livro, cap. XXVIII. 30 Nome das moedas de ouro representando o agnus dei. 31 Os Fugger, célebres banqueiros de Augsburgo, enriquecidos com o co mércio, a usura e a importação de pedras preciosas vindas das Índias . Condes do Império e mecenas, constituíam uma verdadeira dinastia de fama mun dial.
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CAP ÍTULO IX
AS CORES E A LffiRÉ DE GARGÂNTUA As cores de Gargântua foram o branco e o azul , como acima pudestes ler, e com estas pretendia o seu pai dar a entender que ele era uma alegria celeste, pois o branco significava alegria, prazer, delícias e júbilo, e o azul coisas celestes. Receio que, ao dizer estas palavras, façais troça do velho be berrão e considereis a exposição das cores grosseira e impró pria, e digais que o branco significa fé e o azul firmeza! . Mas, sem vos moverdes, irritardes, sem vos aquecerdes nem alterar des (pois o tempo é perigoso), respondei-me, se assim vos aprou ver. Nem vos obrigarei a outra coisa, sej a qual for: apenas vos direi uma palavra. Quem vos move? Quem vos diz que o branco significa fé e o azul firmeza? Um (dizeis vós) livro mesquinho que é vendido pelos mercadores ambulantes com o título de: O Brasão das Co res2. Quem o faz? Seja quem for, foi prudente não lhe pondo o seu nome. Mas, de resto, não sei o que devo admirar primeiro: se a sua presunção, se a sua estupidez: a sua presunção que, sem razão, sem causa e sem aparên cia, ousou descrever por sua autoridade privada as coisas que seri am denotadas pelas cores, o que é costume dos tiranos que querem substituir o seu arbítrio à razão, não dos sábios, que por razões manifestas contestam os leitores; a sua estupidez que, sem outras demon strações e argumen tos válidos, pensou que o mundo regeria as suas divisas pelas suas designações tolas. De facto (como diz o provérbio : «Em cu de cagão sempre abunda merda>>), encontrou alguns tolos do tempo dos barretes altos3, os quais acreditaram nos seus escritos e de acordo com eles talharam as suas sentenças e ditados, ajaezaram as suas mulas, vestiram os seus pajens, cortaram os seus calções, bor60
GARGÂNTUA
daram as suas luvas, franjaram os seus leitos, pintaram as suas insígnias, compuseram can ções, e (o que é pior) fizeram imposturas e partidas cobardes e clandestinas entre as pudicas matronas4. Nessas trevas se incluem os gloriosos da corte e portadores de nomes, os quais, querendo que as suas divisas significas sem esperança, mandam desenhar uma esferas, penas de pás saros para as penas da alma, a ancólia para a melancolia6, a lua b icorne para viver em crescente, um banco roto para a ban carrota, não e uma armadura para non durhabit7, um leito sem dossel para um licenciados, que são homónimos tão ineptos, tão chochos, tão rústicos e bárbaros que se havia de prender um ra bo de raposa ao colarinho e pôr uma máscara duma bosta de va ca a cada um dos que doravante as quisesse usar em França, após a restituição das letras9. Pelas mesmas razões (se acaso são razões e não cismas), mandaria eu pintar um cestolO a mostrar que me fizeram pe nar; e um pote de mostarda, que é o meu coração ao qual muy tardau ; penico que é um oficiall 2 : e os fundilhos dos meus cal ções que são um vaso de peidosl 3 ; e a minha braguilha é uma lança em riste(*). Diversamente faziam outrora os sábios do Egipto quando e screviam com letras chamadas hieróglifos, que ninguém en tendia se não soubesse e só entendia quem soubesse a virtude, propriedade e natureza das coisas nelas figuradas ; com elas compôs Orus Apollon dois livros em grego, e Polífilo, no Sonho de Amores, ainda mais se alongoul 4. Tendes em França frag mento s delas na divisa do Senhor Almirantets, primitivamen te usada por Octaviano Augusto. Mas mais adiante não velejará o meu esquife entre esses abismos e vaus desagradáveis : volto a fazer escal a no porto de onde arribei. Mas tenh o esperanças de um dia me alongar a es se respeito, e mostrar, tanto por razões filosóficas como por auto ridades recebidas e aprovadas de grande antiguidade, quais e quantas cores existem n a natureza, e o que pode ser designado por cada uma delas.
(*) É evidente que, em casos co mo estes, a tradução parece não fazer sentido e empobrece necessariamente o texto, pelo que conv6m que o leitor se remeta às notas . (N. da T.)
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RABELAIS
NOTAS Era, com efeito, o sentido atribuído pelos heráldicos a estas cores.
2 O Brasão das cores em armas, librés e divisas. . . , opúsculo redigido em
1458 por Sicília, arauto do rei de Aragão, e várias vezes traduzido em francês a partir de 1 528. 3 Les hauts bonnets, chapéus do século precedente, que tinham passado de
moda e simbolizavam os outros tempos. 4 Usando as suas cores sem autorização. 5 Esperança (espoir) e esfera (sphere) pronunciavam-se esper e espere. 6 Ancólia, flor azul ou arroxeada. 7 Um dur habit, uma veste dura. B
9 1o 11 12 bacio.
Um lit sans ciel e um licencié.
O Renascimento . Panier (em Paris, o a pronunciava-se e: penier).
Moult tarde. Officier, oficial dos tribunais eclesiásticos mas também vaso de noite,
1 3 Vaisseau de paix (vaso de paz, navio mercante) e vase de pets. 1 4 Um gramático, Orus Apollon, tinha composto uma recolha intitulada Hierogliphica; o Sonho de Amores é um romance alegórico de Francesco Co
lonna em que figuravam incrições em grego, em hebreu e em hieróglifos. Foi traduzido por Jean Martin (1 546) sob o título Hypnérotomachie ou discours du
songe de Poliphile. 1 5 Guillaume de Bonnivet, almirante de França, que foi morto em Pavia (1 525). A sua divisa, copiada do imperador Augusto (Festina lente: apressa-te
lentamente), está gravado na sua sepultura e numa abóbada do castelo de Bon nivet . Era representada simbolicamente por um gol finho a simbolizar a velo cidade (festina) e uma âncora, a imobilidade (lente). Era também a marca do célebre editor veneziano Aldo que, precisamente, publicara a Hypnérotoma·
chie.
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CAPÍTULO X DO SIGNIFICADO DAS CORES BRANCA E AZUL O branco significa, por con seguinte, alegria, con solação e júbilo, e não erradamente mas de direito e com razão, o que po dereis verificar se, apartando-vos dos vossos preconceitos, qui serdes entender o que agora vos explicarei. Diz Aristóteles que, supondo duas coisas contrárias em espé cie , como o bem e o mal, a virtude e o vício, o frio e o quente e assim por diante, se as juntardes de tal maneira que o contrá rio de uma espécie convenha racionalmente ao con trário da ou tra, resulta que o outro contrário coincide com o outro resíduo. Exemplo: virtude e vício são contrários numa espécie, como também bem e mal; se um dos contrários da primeira espécie convém ao da segunda, como virtude e bem, pois sabe-se que a virtude é boa, o mesmo farão os dois resíduos que são mal e ví cio, pois o vício é mau. Entendida esta regra lógica, considerai estes dois contrá rios: alegria e tristeza, depois estes outros doi s: branco e preto, pois são contrários por natureza. Por conseguinte , se o negro significa luto, o branco significa alegria. E este significado não foi instituído por imposição humana, mas recebido por consentimento de todo o mundo, que os filóso fos chamam jus gentiumi , direito universal, válido em todos os países. C omo por demai s sabeis que todos os povos, todas as nações - excepto os antigos siracusanos e certos argivos que ti nham a alma às avessas2 -, todas as línguas, quando querem demons trar exteriormente a sua tristeza, põem vestes negras, e todo o luto é feito de negro. E este con senso universal não se faz sem que a natureza lhe dê algum argumento e razão, a qual todos po dem compreender por si sem que n inguém os in strua - e ch a mamos-lhe direito natural . 63
RABEI.AJS
Por branco, pelos mesmos sentimento s naturais, toda a gen te entende alegria, júbilo, consolação, prazer e deleite. Nos tempos passados, os trácios e cretas assinalavam os dias fastos e alegres com pedras brancas, e os tristes e nefastos com pedras negras. , Pois não é a noite funesta, triste e melancólica? E n egra e escura por privação. A claridade não alegra toda a natureza. E é mais branca que todas as coisas. Para o provar, poder-vos -ia remeter para o livro de Laurens Valle contra Bartole3, mas o testemunho evangélico vos bastará: Mat., xvj, diz-se que, na Transfiguração de Nosso Senhor, vestimenta ejus {acta sunt al ba sicut lux4, as suas vestes tornaram-se brancas como a luz, e essa brancura luminosa era para dar a entender aos seus três apóstolos a ideia e figura das alegrias eternas. E com essa cla ridade todos os humano s se regozijam, como uma velha que não tinha dentes na boca mesmo assim dizia: Bona Lux5. E To bias (cap. v), quando perdeu a vista, respondeu à saudação de Rafael: «Que alegria poderei eu ter se não vejo a luz do céu?» Com essa cor testemunham os anjos a alegria de todo o univer so no momento da Ressurreição do Salvador (Joan. xx) e da sua Ascensão (Act. j). Com igual adorno viu S. João Evangelis ta (Apocal. iij e vi}) vestidos os fiéis na celeste e bem-aventura da Jerusalém. Lede as histórias antigas, tanto gregas como romanas. Ve reis que a cidade de Alba (primeiro patrono de Roma) foi cons truída e baptizada por causa de uma porca branca6. Vereis que, se após ter vencido os inimigos, decretassem a alguém que entrasse triunfante em Roma, entrava numa car ruagem puxada por cavalos brancos; o mesmo fazia o que entra va em ovação7, pois não havia sinal nem cor que mais certa mente pudesse exprimir a alegria da sua vinda que o branco. Vereis que Péricles, duques dos atenienses, quis que os seus soldados a quem tinham calhado favas brancas passassem to do o dia em alegria, consolo e repouso, enquanto o s outros bata lhariam9. E poder-vos-ia citar mil outros exemplos a este res peito, mas não é este o lugar de fazê-lo. Graças a este saber podeis resolver um problema que Ale xandre AfrodísiolO considerou absurdo: «Por que motivo o leão, que só com o seu grito e rugido apavora todos os animais, só te me e venera o galo branco?>> Pois (assim o diz Proclo, lib. De Sacrifício et Magial l ) é porque a presença da virtude do Sol, que é o órgão e o receptáculo de toda a luz terrestre e sideral, é sim bolizada e pertence mais ao galo branco, tanto por esta cor como 64
GARGÂNJUA
pela sua propriedade e ordem e specífica, do que ao leão. E tam bém se diz que muitas vezes apareceram diabos com forma leo nina, os quais desapareceram subitamente ao verem um galo branco. É por esse motivo que os Galli (que são os franceses, assim chamados por serem naturalmente brancos como o leite, que os gregos designavam por ruwl2) gostam de usar penas brancas nos chapéus, pois são por natureza alegres, cândidos, graciosos e bem-amados, e escolheram como símbolo e insígnia a flor mais branca de todas, e que é o lírio. S e perguntai s como é que a natureza nos leva a entender pe la cor branca a alegria e júbilo, respondo-vos que a analogia e conformidade é a seguinte: como o branco divide e dispersa ex teriormente a vista, dissolvendo manifestamente os espíritos visuais, segundo a opinião de Aristóteles nos seus Problemasl3 e dos perspectivos (e vós o vedes por experiência quando passais por montes cobertos de neve, de modo que tendes pena de não po der ver bem, como Xenofonte escreve que aconteceu aos seus sol dadosl4, e como Galeno amplamente expõe, lib. x, De usu par tium15) também assim o coração é interiormente dispersado por uma alegria excelente e sofre uma di ssolução manifesta dos espíritos visuais, a qual não pode ser grande, pois o coração ficaria espoliado do seu sustento e por conseguinte a vida extin guir-se-ia com este excesso de alegria, como diz Galeno, lib. xj, Metho. 16, li. v, De locis affectis, e li. ij, De symptomaton cau sis, e como aconteceu no passado testemunham Marco Túlio, li. j Quoestio. Tuscul., Vérrio1 7, Aristóteles, Tito Lívio, após a batalha de Canas, Plínio, lib. vij, c. xxij e liij, A Gellius, li iij, xv., e outros, a Diágoras Rodiano, Cilo, Sófocles, Dionísio, tirano da Sicília, Filípidas, Filémon, Policrata, Filiston, M. Juventi e outros que morreram de alegrials, e como diz Avice na1 9 (in ij canone et lib. De Virib us cordis) do açafrão, o qual é tão apreciado pelo coração que o despoja da vida, se for tomado em dose excessiva, por dispersão e dilatação supérflua. Aqui ve de Alex. Afrodisianozo, lib. primo Problematum, c. xix. E com razão21 . Mas o quê! Alongo-me mais nesta matéria do que estabe leci no começo. Calarei, pois, aqui as minhas velas, remetendo o resto para o livro completamente acabado nesta matéria22, e direi numa palavra que o azul significa certamente o céu e as coisas celestes, pelos mesmos símbolos que o branco significa alegria e prazer. -
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NOTAS O consenso universal, que se tornou o direito das gentes. 2 Segundo Plutarco, os siracusanos e os argivos usavam o branco em si
nal de luto. 3 O humanista Laurent Valia atacara o jurista Bartole (1 31 4-1 357) nu ma epístola latina, Ad candidum Decembrem (Ao Dezembro branco). Afirma va ele que a cor mais nobre era a do ouro e não o branco. 4 Rabelais não segue o texto da Vulgata: <
da Gália. 1 3 Comentário livre aos Problemas de Aristóteles. 1 4 NoAnabase. 1 5 Galeno, livro x, Do uso das partes. 16 Galeno , De Methode Mendendi (Método de curar). O livro Xll trata das síncopes. 1 7 Gramático latino citado por Plínio o Antigo. 1 8 Todos estes exemplos de mortos de alegria encontravam-se reunidos no O((u:ina, compilação de Ravisius Textor. 1 9 Filósofo e médico árabe (980-1 037). 20 Alexandre de Afrodisias, autor da obra Dos Problemas. 21 Et pour cause, fórmula conclusiva na linguagem jurídica. 22 Trata-se provavelmente de um projecto imaginário.
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CAP ÍTULO XI
DA ADOLESCÊNCIA DE GARGÂNTUA Dos três aos cinco anos, Gargântua foi alimentado e in struí do com toda a disciplina que convinha, por ordem do seu pai, e passou esse tempo como as crianças do país, ou seja, a beber, comer e dormir, a comer, dormir e beber, a dormir, beber e comer. C on stantemente rebolava na lama, mascarrava o nariz, lambuzava a cara, rompia os sapatos, bocejava às moscas, e cor ria atrás das borboletas, cuj o império pertencia ao seu pai. Mi java em cima dos sapatos, borrava a camisa, assoava-se às mangas, deixava cair o ranho na sopa e chafurdava por toda a parte, e bebia da pantufa, e gostava de esfregar a barriga com um cesto. Aguçava os dentes num tamanco, lavava as mãos na sopa, pintava-se com um copo, sentava-se entre duas cadeiras de cu no chão, cobria-se com um saco molhado, bebia enquanto comia a sopa, comia biscoitos sem pão, mordia a rir, ria a mor der, cuspia para dentro da bacia, rebentava de gordo, mijava para o sol, e para fugir da chuva, escondia-se dentro de água, malhava o ferro quando estava friol , fazia castelos no ar, fazia -se bonzinho, vomitava as tripas, resmungava para dentro, voltava à vaca fria, fazia tudo ao contrário, batia no cão à fren te do leão2, punha a carroça à frente dos bois, coçava-se onde não tinha comichão, tirava macacos do nariz, tinha mais olhos que barriga, comia os bolos antes do pão, ferrava cigarras3, fa zia cócegas a si próprio para rir, comia muito bem na cozinha, dava palha aos deuses4, mandava cantar o Magnificat de ma nhã e achava-o muito a propósitos, comia couves e cagava acel gas, via o que entrava pelos olhos adentro, arrancava as patas às moscas, arranhava o papel e lambuzava o pergaminho, da va às de vila-diogo, bebi a como um odre, ia à caça de mãos a aban ar, j ulgava que as nuvens eram sertãs e que as bexigas 67
RABELAIS
eram lanternas, matava dois coelhos com uma caj adada, fazia -se burro para conseguir o que queria, e do punho fazia um ma lho, queria que grão a grão enchesse a galinha o papo, olhava sempre o dente a cavalo dado, misturava alhos com bugalhos, dava uma no cravo outra na ferradura, se as nuvens estavam baixas contava apanhar andorinhas, fazia da necessidade vir tude, fazia sopas de qualquer pão, e tanto se lhe dava como se lhe deu, todas as manhãs vomitava as tripas. Os cãezinhos do seu pai comiam na sua e scudela, e ele também comia com eles. Mordia-lhes as orelhas, e eles arranhavam-lhe o nariz; sopra va-lhes para o cu, e eles lambiam-lhe os beiços. E sabeis o quê, meus filhos? Que a bebedeira dê cabo de vós ! Este malandro estava sempre a apalpar as governantas, de ci ma para baixo e de trás para a frente - arre burrinho! - e já co meçava a exercitar a braguilha, que todos os dias as governan tas enfeitavam com lindos raminhos, lindas fitas, flores e bor las, e passavam o tempo a passar-lhe a mão por cima e depois desatavam a rir quando ela levantava as orelhas, como se gos tassem da brincadeira. Uma chamava-lh e meu espichozinho, a outra meu alfine te, a outra meu ramo de coral, a outra meu gatinho , minha ro lha, minh a pua, meu berloque, meu passatempo duro e baixo, minh!l linguiça vermelha, meu colhãozinho. <> E para folgar como os meninos do país, fizeram-lhe um ca tavento com as asas de um moinho de vento de Myrebalays. NOTAS 1 Segue-se uma série .de ditados populares, a que Rabelais se diverte a in verter o sentido. 2 Reprovar um inferior diante do seu superior, para que este aplique a lição à su a própria pessoa. 3 Fazer uma coisa impossível, como «capar grilos». 4 Enganava os deuses, dando-lhes uma palha em vez de trigo. 5 O Magn.ificat canta-se nas vésperas, ofício da tarde, e não nas mati nas, prece da manhã.
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CAPÍTULO XII
DOS CAVALOS FICTÍCIOS DE GARGÂNTUA D epoi s, para que fosse toda a vida bom cavaleiro, fizeram -lh e um cavalo de pau, bonito e grande, e ele punha-o a saltar, a fazer cabriolas e a dançar ao mesmo tempo, a andar a passo, a trote, a furta-passo, a galope, a passo travado, a trotar como o camelo ou como o onagro, e fazia-o mudar de pêlo (como os monges mudam de dalmáticas segundo as festas) ; tornava-o baio, alazão, cinzento, pêlo de rato, cor de veado, cor de vaca, sa rapintado, furta-cores, pigarço e branco. Ele mesmo fez de uma zorra um cavalo para a caça, e outro de um fuso para todos os dias, e duma corrente uma mula com a almofada do quarto. E teve dez ou doze de muda e sete para a pos ta. E fazia-os dormirem todos ao pé dele. Um dia o senhor de Painen sac vi sitou com grande aparato o seu pai, e nesse dia também o tinham vindo visitar o duque de Francrepas e o conde de Mouilleventl . E juro que os alojamen tos foram apertados para tanta gente, e sobretudo as estre barias; e assim, o mordomo e o despenseiro do dito senhor de Painen sac, para saberem se havia mais estrebarias vazias na casa, dirigiram-se a Gargântua, ainda rapazinho, e pergunta ram-lhe em segredo onde eram as estrebarias dos caval os de batalha, pensando que facilmente as crianças contam tudo. Então ele levou-os pelas e scadarias do castel o, passando pelo segundo salão, até um a gran de galeria pela qual entra ram num grande torre e, subindo outras escadas, disse o pelei ro ao lacaio: <> << É que compreen destes mal (disse o lacaio), poi s conheço lu- . gares em Lyon, em La Basmettre, em Chaisnon e noutras ter ras, onde as estrebarias ficam na parte mais alta das casas; e 69
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assim talvez haja uma saída lá em cima. Mas perguntá-lo--ei mais seguramente.>> E então perguntou a Gargântua: <> <<À estrebaria (disse ele) dos meus cavalos de batalha. Esta mos quase a chegar, é só subir a escada.>> Depois, passando por outra grande sala, levou--os ao seu quarto e, empurrando a porta: <> E, carregando--os com uma grande tranca: <> ••Que é isso?>>, disseram eles. ••São cinco paus (disse ele) para vos fazer um açaime.>> <> ••Assim creio (disse ele); mas então vós sereis borboleta3, e este rico papagaio será um papa-jantares.>> «Talvez, talvez>>, disse o peleiro. ••Mas (disse Gargântua) adivinhai quantos pontos levou a camisa de minha mãe.>> <>, disse o peleiro. ••Não dizeis verdade (disse Gargântua), pois há a parte da frente e a de trás, e contastes muito mal.>> ••Quando?>>, disse o peleiro. ••Quando (disse Gargântua) vos fizeram do nariz um espi cho para tirar um alqueire de merda, e da garganta um funil para a pôr noutro navio, pois tinha o fundo roto.>> <
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Senhor tagarela, Deus vos livre do mal, que tendes a língua solta!>> Assim descendo a toda a pressa, à entrada da escada deixa ram cair a grande tranca com que ele os carregara e Gargân tua disse: «Que maus cavaleiros vós sois! Falta-vos a montada quan do precisais dela. Se tivésseis de ir daqui a Cahusac, que prefe ríeis, cavalgar um pássaro ou levar uma porca pela trela?,, <>, disse o peleiro. E dizendo isto, entraram na sala baixa onde estava a com panhia e, contando-lhes esta nova história, fizeram-nos rir como uns macacos. NOTAS 1 Pain-en-sac (pão-no-saco: o avarento), Francrepas (comida de bor la) e Mouillevent (molha vento): nomes de fantasia designando parasitas. 2 Cavalo criado na Frise (Países Baixos). 3 Papillon, insecto, mas também papa pequeno ou partidário do papa; pa pcguay, papagaio e pape gai (papa alegre); papclard: papa-jantares, parasita e hipócrita.
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CAPÍTULO XIII COMO GRANDGOUSIER CONHECEU O ESPÍRITO MARAVILHOSO DE GARGÂNTUA GRAÇAS À INVENÇÃO DUMA MANEIRA DE LIMPAR O CU
No fim do quinto ano, de regresso da derrota dos canarria nosl , Grandgousier visitou o seu filho Gargântua. Alegrou-se como um pai podia alegrar-se ao ver tal filho e, beijando-o e abraçando-o, interrogava-o com perguntas pueris de vários géneros. E fez-lhe companhia a ele e às suas governantas, às quais perguntava com grande cuidado se entre outras coisas o mantinham bem limpinho. Ao que Gargântua respondeu que resolvera o caso de tal maneira que não havi a em todo o país ra paz mais limpo. «Çomo é isso?>>, disse Grandgousier. «E que (respondeu Gargântua) com longa e curiosa expe riência inventei uma maneira de limpar o cu mais senhorial, mais excelente, mais expediente do que jamais se viu. «E qual é?>>, disse Grandgousier. «Uma vez limpei-me com um cachiné de veludo duma don zela e pareceu-me bom, pois a suavidade da seda causava-me uma grande volúpia no traseiro; >>doutra vez foi com um capucho, e aconteceu o mesmo; >>doutra vez um lenço de pescoço; >>doutra vez umas orelheiras de cetim carmesim, mas o dou rado de um monte de esferas de merda que tinha arranhou-me o traseiro todo, que o fogo de Santo António queime o recto do ou rives que as fez e a donzela que as usava! >>Passou-me o mal limpando-me ao gorro dum pajem, em plumado à maneira dos suíços. >>Depois, cagando atrás dum arbusto, encontrei um gato e limpei-me a ele, mas as suas garras ulceraram-me o perí neo. 72
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>>No dia seguinte me curei, limpando-me às luvas de mi nha mãe, perfumadas de maljoint2. >>Depois limpei-me com salva, funcho, manjerona, rosas, folhas de abóbora, couves, pâmpano, malvas, verbasco (que tem o cu escarlate), com alface e folhas de espinafre - e tudo i sso me fez muito bem à perna -, com mercurial, persicária, urti gas, consolda, mas fiquei de vareta, e curei-me limpando-me à braguilha. >>Depois limpei-me aos lençóis, à coberta, às cortinas, a uma almofada, a um tapete, a um pano, a um guardanapo, a um lenço, a um penteador. E em tudo encontrei mais prazer do que têm os leprosos quando lhes os esfregam.>> «Talvez, mas (disse Grandousier) que maneira de limpar o cu te pareceu melhor?>> <> <
RABELAJS
<> «Quero>>, respondeu Grandgousier. «Pois seja>>, disse Gargântua: RONDÓ
Anteontem ao cagar senti O imposto que devo ao meu cu; O cheiro não foi o que eu esperava, Fiquei todo empestado. Oh, se alguém consentisse Trazer-me a que espero Ao cagar! Pois eu lhe taparia O buraco da urina à minha maneira saloia; Enquanto ela com os dedos Me garantisse o buraco da merda Ao cagar!(*) «Ora dizei que não sei rim ar! Pelà mãe de Deus, não fui eu que os fiz mas, ouvindo-os recitar à grande dama que aqui ve des, fixei-os no gibão da minha memória. «Voltemos (disse Grandgousier) à nossa conversa.>> «Qual? (disse Gargântua). Cagar?>> «Não (disse Grandgousier). Limpar o cu.>> «Mas (disse Gargântua), quereis pagar-me uma barrica de vinho bretão se eu não vos atrapalhar nessa matéria?>> «Sim, decerto>>, disse Grandgousier. «Não é preciso (di sse Gargântua) limpar o cu, senão quan do está sujo e só pode estar sujo quando se cagou, portanto é preciso cagar antes de limpar o cu.>> «Oh! (disse Grandgousier), que bom senso o teu! Um destes dias faço-te doutor em gaia sabedoria5, por Deus!, pois tens ra zão de mais para a tua idade. Prossegue agora o teu discurso so bre as maneiras de limpar o cu. E, pela minha barba!, em vez duma barrica receberás sessenta pipas de bom vinho bretão, o qual não cresce na Bretanha mas no bom país de Verron6_,, «Depois limpei-me (disse Gargântua) a um barrete, a uma (*) O ptou -se nestes casos por urna tradução o mais literal possível , em bora em completo detrimento da rima, p ara não alterar o sentido do texto.
(N. da T.) 74
GARGÂNTUA
almofada, a uma pantufa, a um gibão, a um cesto - ó desagra dável limpa-cu! - e depois a um chapéu. E notai que há cha péus rasos, chapéus com pêlo, chapéus aveludados, de tafetá e de cetim. O melhor de todos é o de pêlo, pois apanha bem a matéria fecal. >>Depois limpei-me a uma galinha, a um galo, a um fran go, à pele dum vitelo, duma lebre, dum pombo, duma gaivota, a um saco de advogado, a um capucho, a uma coifa, a um pássaro fingido(*). >>Mas concluindo, digo e mantenho que não há nada me lhor para limpar o cu que uma ave cheia de penas, desde que lhe metamos a cabeça entre as pernas. E podeis acreditar-me. Pois sente-se no buraco do cu uma volúpia mirífica, tanto pela suavidade das penas como pelo calor temperado da ave, o qual facilmente é comunicado ao recto, até chegar à região- do cora ção e do cérebro. E não penseis que a beatitude dos heróis e dos semideuses que estão nos Campos Elísios está no asfódelo ou na ambrosia, ou néctar como dizem estas velhas. Mas está (na minha opinião) no facto de limparem o cu a uma ave, e é essa a opinião de Mestre J ehan d'Escosse7. NOTAS 1 Os h abitantes do reino de Canarre (as Canárias).
2 Trocadilho obsceno : as luvas não são perfumadas de benjoi m (benjoin, bien joint) mas de maljoint (mal ju nto, o sexo feminino). 3 Expressão tirada do serviço religioso: após cada lição das Escrituras, o versículo Tu autem, Domine é repetido em coro. A locução significa: Tudo sa bereis até ao fim. 4 Trocadilho: rimer (fazer rimas, rimar) e enrhumer (consti par-se). 5 O título de doutor em gaia sabedoria era atribuído pela Academia dos Jo gos Florais de Toulouse. 6 Regi ão situ ada na confluência do Loire e do Vienne. 7 Outra alusão a Duns Escoto.
(*) Pássaro de couro para atriar o falcão. (N. da T.)
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CAPÍTULO XIV COMO GARGÂNTUA FOI INSTRUÍDO POR UM SOFISTA EM LETRAS LATINAS
Ouvidos estes dizeres, o bom Grandgousier ficou encanta do, considerando a alta inteligência e o grande entendimento do seu filho Gargântua. E disse às suas governantas: <>Mas digo-vos que por estas simples palavras que troquei diante de vós com o meu filho Gargântua, reconheço que o seu entendimento participa de alguma divindade, tão agudo, sub til, profundo e sereno o vejo, e se ele for bem ensinado alcança rá um grau soberano de sapiência. Portanto quero confiá-lo a algum sábio para que o doutrine segundo as suas capacidades, e nada quero poupar para esse efeito.>> De facto, indicaram-lhe um grande doutor sofista chama do Mestre Tubal Holofernesl que lhe ensinou o alfabeto tão bem que o dizia de cor de trás para a frente, e levou cinco anos e três meses. Depois leu-lhe o Donat, o Facet, Theodolet e Alanus in Parabolis2 e levou treze anos seis meses e duas semanas. Mas notai que ao mesmo tempo aprendia a escrever gotica76
GARGÂNTUA
mente3 e escrevia todos os seus livros, pois a arte da impressão ainda não era usada. E costumava trazer um grande escritório que pesava mais de sete mil quintais, e cujo estoj o era tão grande como os gran de pilares de Enay4 e o tinteiro estava pendurado numas gros sas correntes de ferro com a capacidade de um tonel de merca doria. Depois leu De modis significandi5 com os comentários6 de Hurtebize, Fasquin, Tropditeulx, Gualehaul, Jean le Veau, Bil lonio, Brelinguandus, e muitos outros, e levou mais de dezoito anos e onze meses. E soube-os tão bem que, nas provas, os reci tava de trás para a frente e provava à sua mãe que de modis sig nificandi non erat scientia1. Depois leu o CompostB,
e levou dezasseis anos e dois meses, quando lhe morreu o preceptor, e foi no ano mil quatrocentos e vinte, dumas bexigas que teve. Depois deram-lhe outro velho catarroso, chamado Mestre Jobelin Bridé9, que lhe deu Hugutioto, Hebrard Grecismel l, o Doutrinal12, Les Pars, o Quid est, o Supplementum, Marmotret De moribus in mensa servandis13, Séneca De quator virtutibus cardinalibus14, Passavantus cum Commentol 5, e Dormi secu re16 para as festas, e outros do mesmo género. E com tal leitura tornou-se tão sábio como jamais produzimos algum. NOTAS 1 Tuba! Holofernes associa dois nomes bíblicos: Tuba!, descendente de Caim, inventor da metalurgia, e Holofernes, general de Nabucodonosor, mor to por Judite. 2 Obras escolares do tempo: Donat, gramática latina redigida por Dona tus (século rv); Facet, tratado de civilidade; Theodolet, tratado atribuído a Theodolus, bispo da Síria (século v), que opunha a verdade das Sagradas Escrituras às ficções da mitologia; as Parábolas de Alaru s eram conselhos morais compostos em quadras. As Fábulas de Esopo completavam geralmente estas obras. 3 Em caracteres góticos. A escrita italiana foi adoptada durante o Renas cimento . 4 A igreja de Saint-Martin d'Ainay é a mais antiga de Lyon ; a cú pula era sustentada por quatro colunas de granito, provenientes do templo dedicado a Roma e a Augusto. 5 Manual de gramática atribuído ora a S. Tomás de Aquino ora a Duns Escoto. Muito espalhado na Idade Média, é citado por Erasmo como uma das obras que embrutecem os jovens (De Utilitate Colloquiorum). 6 Os comentários (Com mens) seguintes são iventados, como os seu s auto res de nomes ridículos: Faquin, carregador; Trop diteux: gente sem impor-
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RABElAIS tância; Gualehaul, personagem do romance Lancelot du Lac; B illon, moeda de pouco valor; Brelinguand, o sexo feminino. 7 Que os modos de significar não eram ciência. 8 Calendário. 9 Sinónimo de estupidez, como Jean le Veau (o vitelo). 10 Vocabulário latino, Liber derivationum, composto por Hugutio de Pisa (século XIII), e que Erasmo põe a ridículo. 11 Léxico cujo começo era consagrado às palavras latinas de raiz grega, composto por Everard de Béthunc (século XIII ), ainda usada no século xv. 1 2 O Doctrinale puerorum, de Alexandre de Villedieu (século xm), é u m tratado d e gramática criticado pelos humanistas d o século xv. O De octo parti bus oratinis (Das oito partes do discurso), obra teórica. O Quid est?, manual es colar apresentado sob a forma de perguntas e respostas. O Supplementum não foi identificado. Comentário da Bíblia cujo título, Mamotrectus, é maliciosa mente comparado com marmot (garoto, mas originalmente: macaco), objecto de troça para Erasmo, é citado no Catálogo da livraria de São Vftor (Panta gruel, cap. VII). 1 3 <>, manual de civilidade de Sulpizio de Veroli, apresentado em dísticos e muito conhecido no século XVI. 1 4 Das quatro virtudes cardeais, obra moral composta pelo bispo S. Marti nho de Braga (século VI) sob o pseudónimo de Séneca. 1 5 O «Espelho da verdadeira penitênciiD> com comentários, obra do mon ge florentino Passavanti (século XIV). 1 6 O <> é uma recolha de sermões estereotipados utilizada pelos pregadores do século XVI.
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CAPÍTULO XV COMO SE DERAM OUTROS PEDAGOGOS A GARGÂNTUA
Então o seu pai compreendeu que, de facto, ele estudava mui to bem e a isso dedicava todo o seu tempo, embora não aprovei tasse nada e, o que é pior, ficasse doido, parvo, sonhador e atolei mado. E disso se queixou a Dom Filipe des Marays, vice-rei de Pa peligosse, entendendo que mai s valia não aprender nada do que tais livros com tais preceptores, pois o seu saber mais não era do que tolice, e a sua sapiência bagatelas, abastardando os bons e nobres espíritos e corrompendo a flor da juventude. «Se assim é••, disse ele, «ide buscar um jovem dos nossos tempos que apenas tenha estudado dois anos. Se acaso não tiver mais juízo, e melhores palavras que o vosso filho, e melhor compostura e honestidade entre os homens, considerai-me pa ra sempre um fanfarrão da Brenel,,, O que muito aprouve a GratJ.dgousier, que mandou que assim se fizesse. A noite, durante a ceia, o dito Marays mandou chamar um seu jovem pajem de Villegongys2, chamado Eudémon3, tão bem penteado, tão bem arranjado e desempoeirado e tão honesto de compostura que mais parecia um anj inho do que um homem. Em seguida disse a Grandgousier: «Vedes este menino? Ainda não tem doze anos. Vejamos, se vos aprouver, de acordo, que diferença há entre o saber dos vossos sonhadores mateológicos4 dos velhos tempos e os jovens de agora.» O discurso agradou a Grandgousier, que mandou o pajem discorrer. Então Eudémon, pedindo licença ao dito vice-rei, seu amo, de gorro na mão, cara aberta, boca vermelha, olhos fir mes e o olhar posto em Gargântua com modéstia juvenil, pôs -se em pé e começou a louvar e a enaltecer primeiro as suas vir79
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tudes e os seus bons costumes, segundo o seu saber, terceiro a sua nobreza, quarto a sua beleza corporal, e em quinto lugar exortava-o mansamente a venerar seu pai com toda a obediên cia, o qual tanto se esforçava por instruí-lo, e enfim pedia-lhe que o aceitasse como o mais ínfimo dos seus servos, pois nada mais rogava por enquanto aos céus, a não ser a graça de lhe agradar com algum serviço aprazível. E tudo proferiu com ges tos tão asseados, pronúncia tão distinta, voz tão eloquente e lin guagem tão arrebicada e em bom latim, que mais parecia um Graco5, um Cícero ou um Emílio6 dos tempos passados que um donzel deste século. Mas Gargântua pôs-se a chorar como um bezerro, escon dendo a cara com o gorro, e não foi possível arrancar-lhe mais uma palavra que um peido a um asno morto. Tão irado ficou o pai que quis matar Mestre Jobelin, mas o dito Marays impediu-o com a bela repreensão que lhe fez, de tal modo que a sua ira se aplacou. Em seguida mandou que lhe pagassem, que lhe dessem de beber sofisticamente, e que depois fosse para o diabo. <
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CAPÍTULO XVI COMO GARGÂNTUA FOI ENVIADO PARA PARIS, E DA ENORME ÉGUA QUE LEVOU, E COMO ELA DESFEZ AS MOSCAS BOVINAS DE BEAUCE
Nessa mesma, estação, Fayolesl , quarto rei da Numídia, en viou do país da Africa a Grandgousier uma égua mais enorme e maior, do que jamais se viu, e a mais monstruosa (como sa beis, a Africa dá sempre algo de novo2), pois era do tamanho de seis elefantes, e tinha os pés rachados como o cavalo de Júlio Cé sar3, as orelhas caídas como as cabras do Languegot4, e um cor nozinho no cu. De resto, tinha pêlo alazão tostado e malhado de cinzento. Mas tinha sobretudo uma cauda horrível, pois era mais ou menos do tamanho da torre de Saint-Marss, perto de Langes, e também era quadrada, com os ramos tão entrança dos como as espigas de trigo. S e isto vos maravilha, maravilhai-vos ainda mais com a cauda dos carneiros da Sítias, que pesava mais de trinta libras, e dos carneiros da Súria7, aos quais (se TenaudB diz a verdade) é preciso amarrar uma carroça ao cu para a transportar, tão comprida e pesada ela é9. Caudas destas não as tendes vós, pe dintes dos países baixos. E foi trazida por mar, em três barcos genoveses e um ber gantim, até ao porto de Olorne no Talmondaisl O . Quando Grandgousier a viu, disse: «Aqui está o que é preci so para levar o meu filho a Paris. Agora, por Deus, tudo irá cor rer bem. Será um grande letrado no futuro. Se não fossem os animais, viveríamos como letradosll ., No dia seguinte, depois de beber (claro está), puseram-se a caminho Gargântua, o seu preceptor Ponócrates, e os seus acom panhantes, entre os quais Eudémon, o jovem pajem. E como o tempo estava sereno e temperado, o seu pai mandou-lhe fazer 81
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umas botas avennelhadas, dessas que Babin12 chama borze guins. Assim percorreram alegremente o seu longo caminho, e sempre com boa comida, até acima de Orléans. Neste lugar ha via uma grande floresta com um comprimento de trinta e cinco léguas e uma largura de dezassete, ou aproximadamente. Era ela horrivelmente fértil e copiosa em moscas bovinas e zân gãos, de modo que era um verdadeiro assalto às pobres éguas, burros, e cavalos. Mas a égua de Gargântua vingou honesta mente todos os ultrajes nela perpretados nos bichos da sua espé cie com uma partida de que não estavam à espera. Pois, logo que entraram na dita floresta e que os zângãos a assaltaram, levantou a cauda e tão bem se escaramuçou que enxotou as mos cas e abateu o bosque inteiro. Para a direita e para a esquerda, para aqui e para ali, para cima e para baixo, abatia os bosques como um ceifador corta as ervas, de tal maneira que não houve nem bosques nem zângãos, e aquela terra ficou toda reduzida a um terreno de cultura. Vendo isto, Gargântua ficou todo satisfeito mas não se ga bou, e disse à sua gente: <> (J e trouve beau ce), pelo que depois se chamou àquela região a Beauce. Mas todo o almoço foi dado, e em memória disso os gentil-homens de Beauce ainda hoje almoçam de dádivas, e dão-se muito bem com isso, e ainda escarram melhor. Finalmente chegaram a Paris, e nesse lugar se refres caram dois ou três dias, levando boa vida com as gentes, e per guntando que sábios havia então na cidade e que vinho ali se bebia. NOTAS 1 Possível alusão a Françoise de Fayolles, capitão de Coulonges les Ro yaux, aparentado aos Estissac. 2 Ditado lati no reproduzido por Erasmo nos Adágios. ..Novo» tem aqui o sentido de «extraordinário». 3 Particularidade a pontada por Plínio o Antigo, Hist. nat. VIII, 42. 4 Languedoc; etimolo gi a fantasiosa: langue des goths (língua dos go dos) em vez de langue doe (língua de oc, por oposição a oü ). 5 Torre qu adran1,ru lar de tijolos situ ada perto da aldeia de Saint-Mars, nas proximidades de Chinon. 6 Geografia aproxi mada: o Tibete. 7 Síria. 8 Jean Thenaud, mestre em artes e teólogo, publicara u m livro de via gens, Le voyage et itineraire de oultre mer, a que Rabelais se refere. 82
GARGÂN'fUA 9 Thenaud declara ter recebido co mo presente, no C airo, uns <), 1 0 As Sablcs--
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CAPÍTULO XVII COMO GARGÂNTUA RETRffiUIU AS BOAS-VINDAS AOS PARISIENSES E COMO ROUBOU OS GRANDES SINOS DA IGREJA DE NOTRE-DAME
Alguns dias depois de se terem refrescado, visitou a cidade, e a todos causou grande admiração, pois o povo de Paris é tão to lo, tão saloio e tão inepto de natureza que um saltimbanco, um carregador de relíquias, uma mula com os seus tímbalos, um velho no meio dum cruzamento, juntará mais gente do que fa ria um bom pregador evangélicol . E tão importunamente o perseguiram que foi obrigado a re pousar nas torres da igrej a de Notre-Dame. Estando neste lu gar, e vendo tanta gente à sua volta, disse claramente : «Creio que estes marotos querem que eu lhes pague aqui as minhas boas-vindas e o meu proficiat2. Está certo. Vou dar -lhes o vinho, mas será só para rir.» Então, sorrindo, abriu a sua bonita braguilha, e, deitando a gaita de fora, mijou-os tão copiosamente que afogou duzentos e sessenta mil quatrocentos e dezoito, sem as mulheres e as crianças. Alguns deles fugiram a correr desta grande mijadela, e, quando chegaram ao cimo da Universidade3, suando, tossindo, escarrando e esbaforidos, começaram a praguejar, uns de cóle ra, outros a rir: «Carymary, carymara! Pela Santa Mãezinha, mijámo-nos a rir!>> (par rys). Pelo que se deu à cidade o nome de Paris, a qual dantes se chamava Leucece, como diz Strabo, lib. iij4, ou seja, em grego, Branquinha, por causa das brancas coxas das damas desse lugar. E com esta nova imposição do no me, todos os assistentes também juram pelos santos da sua paró quia, que são muitos e de muitas espécies, e por natureza bon s juradores e bons juristas, e um pouco presunçosos, conforme 84
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afirma Joaninus de Barranco5, libro De copiositate reverentia que são chamados paresianos6 em grego, isto é, orgulho sos na fala. Feito isto, considerou os grandes sinos que estavam nas tais torres, e pô-los a tocar muito harmoniosamente. E ao fazê -lo, lembrou-se de que lhe serviriam de campainhas ao pesco ço da sua égua, que ele queria mandar ao seu pai carregada de queijos de Brye7 e de arenques frescos. E, de facto, levou-os pa ra casa. Entretanto veio um comendador presunteiro de Santo Antó nioB para fazer o seu peditório de suilla, o qual, para se fazer ou vir ao longe e pôr o toucinho a tremer na salgadeira, quis levá -los à socapa, mas deixou-os por honestidade, não por estarem muito quentes mas porque eram pesados de mais. E não foi o de Bourg, pois esse é meu amigo9. Toda a cidade se levantou, pois sabeis que são tão dados a is so que as nações estrangeiras se espantam com a paciência dos reis de França, os quais não os refreiam doutra maneira por boa justiça, dados os inconvenientes que daí resultam todos os dias. Tomara eu conhecer a oficina onde se forjam esses cis mas e conluios, para os pôr em evidência nas confrarias da mi nha paróquia! Acreditai que o lugar onde se reuniu o povo todo desnortea do foi Neslelo, onde ficava e agora já não fica o oráculo de Luce ce. Ali se expôs o caso e se demonstrou os inconvenientes dos si nos transportados. Depois de se discutirem os prós e os contras, concluiu-se em Baraliptonll que se enviaria a Gargântua o mais velho e talentoso da Faculdade, para lhe demonstrar o hor rível inconveniente da perda dos tais sinos e, apesar da oposi ção de alguns de alguns da Universidade, que alegavam que essa tarefa mais competia a um orador12 do que a um sofista, es colheu-se para o caso o nosso mestrel3 Janotus de Bragmar do14. rum,
NOTAS 1 Rabelais opõe a superstição interesseira dos carregadores de relíquias à pregação sincera do Evangelho. 2 Dádiva de boas--vindas concedida aos bispos ao chegarem à su a dio cese . 3 Neste Dilúvio dum novo género, algu ns sobreviventes refugiam-se na montanha Sainte-Genevicve (hoje Place du Panthéon), ponto culminante do Quartier-Latin ou da Universidade.
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4 Quem designa Paris desta maneira é Juliano (Misopognon), do grego
M:-Üxo, branco.
5 Personagem desconhecida, sem dúvida inventada, como a sua obra e a série de etimologias fantasiosas . 6 Em grego nappT]m!l significa franqueza, e, por extensão, liberdade de palavra. 7 Os grandes queijos brancos de Brie ainda hoje são famosos. 8 Não é um título inventado : os frades de Saint-Antoine-du-Dauphiné tinham o privilégio de deixar os seus porcos à solta, mesmo nas cidades. Em troca da renúncia a este direito, recebiam toucinho e presuntos durante o pedi tório do porco (suilla, em latim). A alcunha <
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CAPÍTULO XVIII COMO JANOTUS DE BRAGMARDO FOI ENVIADO PARA REAVER DE GARGÂNTUA OS GRANDES SINOS
Mestre Janotus, tonsurado à cesarinal , vestido com o seu li ripipião2 à antiga, e com o estômago bem fornecido de geleia de marmelo e água-benta da cave, transportou-se à casa de Gar gântua, espicaçando os seus três bedéis3 de focinho encarnado, e arrastando com ele cinco ou seis mestres inertes4, todos ense bados. À entrada encontrou-os Ponócrates, e assustou-se, vendo -os assim disfarçados, e pensou que fossem mascarados. De pois perguntou a um dos ditos mestres inertes do grupo que brin cadeira era aquela, ao que este lhe respondeu que vinham pedir que lhe devolvessem os sinos. Logo que ouviu estas palavras, Ponócrates correu a contar as novas a Gargântua, a fim de que procurasse a resposta e deli berasse o que havia de fazer. Avisado do caso, Gargântua cha mou à parte Ponócrates, seu preceptor, Filotomias, seu mordo mo, Ginasta, seu escudeiros, e Eudémon, e conferenciou suma riamente com eles, tanto sobre o que havia de fazer como sobre o que devia responder. Todos concordaram em os levarem à despensa, onde os fariam beber à farta, e, para que aquele catar roso não se vangloriasse de ter reavido os sinos, mandaram, enquanto molhava o bico, chamar o preboste da cidade, o reitor da Universidade, o vigário da igreja, aos quais, antes que o so fista explicasse a sua missão, entregariam os sinos. Só depois, na presença deles, ouviram o seu belo discurso. Assim se fez e, quando eles chegaram, o sofista foi introduzido na sala e come çou como se segue, tossicando.
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NOTAS À maneira de Júlio Cesar. . . que era careca.
2 Capucho usado pelos doutores em teologia, conforme precisavam as edi
ções anteriores: «Son lyripipion theologal». 3 Vedeau também significa vitelo, e daí o gracejo em tomo de vedeaulx, que são os bedéis, mas também os bois espicaçados por mestre J anotus. 4 Outro jogo de palavras sobre o titulo dos mestres em artes, magistri in artibus, e inertes. 5 Os companheiros de Gargântua têm nomes relacionados com os seus ofícios: Filotomias, que gosta de cortar (do grego qnÃ.ioo, gostar, e tÉJ.1VOO, cor tar); Ginasta: mestre de ginástica.
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CAPÍTULO XIX A ARENGA DE MESTRE JANOTUS DE BRAGMARDO FEITA A GARGÂNTUA PARA REAVER OS SINOS
«Hã, hã, hã! 'ns dias, senhor, 'ns dias, senhores. Seria mui to bom que nos devolvêsseis os nossos sinos, pois fazem-nos muita falta. Hã, hã, hasch! Já os tínhamos recusado uma vez por bom dinheiro aos de Londres em Cahors, e também aos de Bordéus em Bryel , que os queriam comprar pela substanciosa qualidade da compleição elementar entronizada na terrestri dade da sua natureza quiditativa2 para extranizar os halos e as turbinas3 das nossas vinhas, que na verdade não são nossas, mas daqui perto; pois, se perdemos o vinho, perdemos tudo, tan to o sentido como a lei. »Se os devolverdes como vos peço, ganharei seis palmos de salsichas e um rico par de calções que me farão muito bem às pernas, ou eles não cumprissem a promessa. Ó, por Deus, Domi ne, uns calções é bom, et vir sapiens non abhorrebit eam4. Ah! ah! Não tem calções quem quer, eu sei por mim! Pensai, Domi ne; há dezoito dias que ando a matutar nesta bela arenga: Red dite que sunt Cesaris Cesari, et que sunt Dei Deo5. lbi jacet le pus6. >>Por minha fé, Domine, se quiserdes cear comigo in came ra, pelo corpo de Deus! charitatis7, nos faciem us bonum cheru binB. Ego occidi unum porcum, et ego habet bon vino9. Mas com
bom vinho não se pode fazer mau latim t o . >>Üra, de parte Dei, date nobis clochas nostrasl l . Dou-vos pela Faculdade um Sermones de Utinol 2 se, utinam, nos devol verdes os nossos sinos. Vultis etiam pardonos ? Per diem, vos habe�itis et nihil poyabitisl3. >>Ü Senhor Domine, clochidonnaminorl 4 nobis! Dea, est bo num urbisl5, Todos se servem deles. Se a sua égua gosta deles, 89
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também a nossa Faculdade gosta, que comparata est jumentis insipientibus et similis {acta est eis, psalmo nescio quol6 . . Se bem anotei nos meus papéis, et est unum bonum Achillesl 1 . .
Hem, hem, hem, hasch! »Pronto! Eu vos provo que mos deveis dar. Ego sic argumen
tator: >>Omnis clocha clochabilis, in clocherio clochando, clo chans clochativo clochare facit clochabiliter clochantes. Pari sius habet clochas. Ergo glucls. >>Ah, ah, ah, bem dito! Está in tertio prime, em Dariil 9, ou
noutro sítio. Pela minha alma, já houve tempo em que fazia maravilhas de argumentação, mas agora n ão faço mais que so nhar, e só quero é bom vinho, boa cama, costas quentes, barriga cheia e uma escudela bem funda. >>Ai, Domine, peço-vos, in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti, amen, que nos devolvais os nossos sinos, e Deus vos guarde do Mal, e Nossa Senhora da Saúde, qui vivit et regnat per omnia secula seculorum, amen. Hem, hasch, hasch, gre nhenhasch! >>Verum enim vero, quando quindem, dubio procul, edepol, quoniam, ita certe, meus Deus fidus2o, uma cidade sem sinos é
como um cego sem bengala, um asno sem retranca, e uma vaca sem chocalho. Enquanto os não devolverdes, não cessaremos de gritar atrás de vós como um cego que perdeu a bengala, ou de zurrar como um asno sem retranca, e de mugir como uma vaca sem chocalho. >>Um quidam latinizador, que morava junto do Hospital, disse uma vez, alegando a autoridade dum Taponnus - erro, era Pontanus21 , poeta secular - que desejava que fossem de pe nas, e o batente22 feito de um rabo de raposa, para que lhe geras sem crónicas23 às tripas do cérebro quando compunha os seus versos carminiformes24. Mas nac petitin petetac, tique, torche, lorne25, foi declarado herético, e nós os fazemos a rodos. E mais não disse o réu. Valete et plaudite. Calepinus recensui26.,, NOTAS 1 Duplo efeito cómico, pois existe uma aldeia de Londres no Quercy, e um Bordéus junto de Meaux; mas o leitor pensa num lapso do catarroso. 2 Paródia da gíria escolástica: terrestridade é a qualidade terrestre, a na tureza quiditativa, a essência; extranizar, afastar. 3 Os halos da Lua e os turbilhões: Janotus quer proteger as vinhas e, a seu ver, é essa a principal utilidade dos sinos. 90
GARGÂNTUA 4 «E um homem sábio não os rejeitará>>, adaptação burlesca de uma reco mendação do Eclesiastes relativa aos medicamentos (XXXVIII , 4). 5 <> (São Lucas, XX, 25.) 6 «Af está a lebre.» Após as palavras do Evangelho, uma locução escolar banal, que significa: «Ai é que está a dificuldade.>> 7 O «quarto da caridade>> é o refeitório para os hóspedes do convento. 8 «Comeremos bem», gíria dos letrados, que joga com chere (comida) e chérubin, espírito celeste. 9 > 1 0 O que não impediu Janotus de ter cometido dois erros grosseiros (habet em vez de habeo; vino por vinum) e de misturar o francês com o latim. 11 «Por Deus, dai-nos os nossos sinos.>> 1 2 Jogo de palavras sobre os Sermões do pregador Mattei d'Udine e a con jugação latina Utinam, Deus queira. 1 3 Mais latim macarrónico: «Também quereis perdões? Por Deus, tê-los -eis e nada pagareis!» Rabelais não perde uma oportunidade para atacar a venda das indulgências. 1 4 Palavra composta de carácter burlesco, sem dúvida por afinidade de sons entre Domine e donnaminor. 1 5 «Sim, é na verdade o bem da cidade.» 1 6 <>: utilização burlesca do Sal mo 48, em que o rico, cego com a prosperidade, é comparado a uma besta de carga. 1 7 ,<]; é um bom Aquiles.>> Na gíria escolar, Aquiles é o símbolo do argu mento invencível. 1 8 <> Ergo gluc é uma fórmula conclusiva absurda, em gíria estudantil. 1 9 <>, termo mnemónico do silogismo. 20 Acumulação de termos retóricos: <> 21 Pantana, humanista italiano (1 426--1 503), que detestava os sinos, mas por outras razões. 22 Esta passagem seria extraída da Nave dos Loucos de Sébastian Brandt, editado por Juste, em Lyon, 1 530. 23 Lapso do bêbado em vez de «cólicas>>. 24 Pleonasmo: «Versos em forma de versos>>. 25 Onomatopeias burlescas como <>. 26 Série de asneiras: <>, fórmula final da comédia lati na; <>, fórmula final do copista e do comenta dor. Calepino é um monge de Bérgamo, autor de um dicionário (século XVI).
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CAPÍTULO XX COMO O SOFISTA LEVOU A SUA FAZENDA, E COMO TEVE UMA DEMANDA COM OS OUTROS MESTRES
Ainda o sofista não tinha terminado, já Ponócrates e Eudé mon desatavam a rir tão profundamente que julgaram entre gar a alma ao Criador, tal e qual como Crasso ao ver um burro medroso a comer cardosl , e como Filémon, ao ver um burro a co mer os figos que tinham sido preparados para o jantar, morreu de tanto rir2. Com eles também começou a rir Mestre Janotus, e riram à porfia, enquanto lhes vinham as lágrimas aos olhos pe la veemente agitação da substância do cérebro, à qual foram ex primidas estas humidades lacrimais e escorridas dos nervos ópticos. No que eram por eles representados Demócrito heracli tizando e Heraclito democratizando3. Acalmados estes risos, Gargântua aconselhou-se com a sua gente sobre o que havia de fazer. Ponócrates achou que deviam dar mais bebida ao belo orador e, visto que lhes tinha dado um passatempo e os havia feito rir mais do que o faria Son gecreux4, deviam dar-lhe os dez palmos de salsichas mencio nadas na alegre arenga, mais um par de calções, trezentas achas de lenha, vinte e cinco muitz de vinho, uma cama com três colchões de penas de pato, e uma escudela muito capaz e fun da, as quais dizia necessárias à sua velhice. Tudo se fez como fora deliberado, excepto que Gargântua, re ceando que não se encontrassem logo uns calções cómodos pa ra as suas pernas, e não sabendo de que maneira conviriam melhor ao dito orador, ou à «martingalle,, que é uma ponte le vadiça do cus, para cagar mais facilmente, ou à marinheira6 para melhor aliviar os rins, ou à suíça para manter a pança quente7, ou à rabo-de-bacalhaus para não aquecer de mais os rins, mandou que lhe dessem sete varas de fazenda preta, e três 92
GARGÂNFUA
de fazenda branca para o forro. A lenha foi levada pelos carre gadores; os mestres em artes levaram as salsichas e as escude las; Mestre Janot quis levar a fazenda. Um dos ditos mestres, chamado Mestre Jousse Bandouille 9 , mostrava-lhe que isso não era nem honesto nem decente, e que devia entregá-la a um deles. «.Ap ! (disse Janotus), seu asno, não concluis in modo et figu raio. E para isso que servem as suposições e parva logicalia. Pa nus pro quo supponitl l ?>> <
«Não te pergunto (disse Janotus), seu asno, quo modo suppo E por isso a leva
nit, mas pro quol 3; é, seu asno, pro tibiis meisl 4. rei egomet, sicut suppositum portar adpositum.>>
Assim a levou à socapa, como Patelin à sua fazendaI s . O melhor foi quando o catarroso, gloriosamente, em pleno acto nos maturinos, pediu os seus calções e as suas salsichas, pois peremptoriamente lhe foram negados16 porque os recebera de Gargântua, segundo as informações sobre esses factos. De monstrou-lhes que fora gratis e graças à sua liberalidade, pe la qual não estavam absolvidos das suas promessas. Não obs tante isso, responderam-lhe que se contentasse com razões e que não teria mais nada. «Razões (disse Janotus) é coisa que não usamos aqui. Trai dores infelizes, não ' valeis nada; não há no mundo criaturas mais maldosas que vós, bem sei. Não sejais hipócritas: eu exer ci a maldade convosco. Pelo baço de Deus! Contarei ao rei os enormes abusos que aqui se forjam, por vossas mãos e pelas vossas intrigas, e que eu seja leproso se ele não vos mandará queimar como maricas, traidores, herejes e sedutores1 7, inimi gos de Deus e da virtude!>> Ao ouvirem estas palavras, redigiram uma acusação con tra ele; e ele, por outro lado, citou-os para comparecer. Em suma, o processo foi arquivado pelo tribunal, e ainda lá está. Neste passo, os mestres fizeram voto de não se lavaremlB; Mes tre Janot, com os seus adeptos, fez voto de não se assoar, até que lho ordenassem por sentença definitiva. Por causa destes votos mantiveram-se até agora sebentos e ranhosos, pois o tribunal ainda não esmiuçou todas as actas; a sentença será emitida nas próximas calendas gregas, ou seja nunca, pois bem sabeis que eles fazem mais que a natureza e contra os seus próprios artigos. Os artigos de Paris cantam que só Deus pode fazer coisas infinitas. A natureza não faz nada de imortal, pois põe fim a todas as coisas que produz, porque om93
RABEl.AIS
etc., mas estes madrugadores2o fazem os pro cessos pendentes e infinitos e imortais. E fazendo isso, deram origem e verificaram o dito de Chilon2t , Lacedemónio, consa grado em Delfos, dizendo que a Miséria é a companheira de Proces e os que andam em demandas são miseráveis, pois mais depressa vêem o fim da sua vida do que do seu pretenso di reito. nia orta caduntl9,
NOTAS 1 Crasso passava por só ter rido uma vez na vida; cf. Plínio o Antigo (Hist. Nat., vn, 1 9) e Erasmo (Adágios, r, x, 71 ). 2 Esta anedota, extraída de Valéria Máximo (IX,l2) ou de Luciano (Macro bitas, 25), já mencionada no cap. X, sê-lo-á de novo no Quarto Livro, cap. XVII.
3 Heraclito (576--480 a. C.) passava por chorar da estupidez humana, ao passo que Demócrito (nascido por volta de 460 a. C.) se ria dela. Montaigne consagrou-lhes o ensaio L do livro I, preferindo o humor de Demócrito, <> são uma secção da pequena Lógica (parva logicalia). «A quem se refere a peça de fazenda?>> 1 2 «Confusamente e sem designação de pessoa.>> 1 3 «Não te pergunto como se refere mas ao que se referem.>> 1 4 «É para as minhas pernas. E é por isso que eu próprio a levarei, assim como a substância leva o acidente.» (Janotus está cioso da sua fazenda e tem medo que lha tirem.) 1 5 Na farsa, o fabricante de tecidos quer levar a fazenda comprada por Patelin, «por delicadeza>>, mas este faz questão de levá-la pessoalmente. 1 6 Janotus é acusado de se deixar comprar por Gargântua. 1 7 No sentido próprio: «que desviam do bom caminho>>. 1 8 Sempre a acusação da sujidade. 1 9 «Todas as coisas nascidas perecem>>, evocação de Salústio, De bello ju gurthino, II, 3. 20 «Ces avaleurs de frimas» (comedores de nevoeiro) - são os juízes e ad vogados, que se levantam de madrugada para irem ao Palácio da Justiça. Cf. Racine, Les Plaideurs. 2 1 Evocação de Plínio o Antigo, Hist. Nat., VII , 32.
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CAPÍTULO XXI O ESTUDO DE GARGÂNTUA, SEGUNDO A DISCIPLINA DOS SEUS PRECEPTORES SOFISTAS
Assim passados os primeiros dias e repostos os sinos no seu lugar, os cidadãos de Paris, em sinal de reconhecimento por es ta honestidade, ofereceram-se para abrigar e alimentar a sua égua enquanto ele quisesse - o que muito agradou a Gargân tua -, e mandaram-na viver na floresta de Bierel . Creio que já lá não está neste momento. Feito isto, Gargântua quis estudar com todo o sentido à des crição de Ponócrates; mas este, para começar, ordenou que se faria à sua maneira habitual, a fim de verificar de que modo, durante tanto tempo, os seus antigos preceptores o haviam torna do tão fátuo, tolo e ignorante. Repartia, pois, o seu tempo de tal forma que, habitualmente, acordava entre as oito e as nove horas, quer fosse dia quer não; assim lho haviam ordenado os seus antigos regentes, alegando estas palavras de David: Vanum est uobis ante lucem surgere2.
Depois pulava, saltava e rebolava-se na cama algum tempo para melhor espairecer os seus espíritos animais3, e vestia-se de acordo com a estação, mas gostava de usar um amplo e com prido vestido de lã grossa forrado de raposa; depois penteava -se com o pente de Almain4, que eram os quatro dedos e o po legar, pois os seus preceptores diziam que pentear-se doutra maneira, lavar-se e limpar-se era uma perda de tempo neste mundo. Depoi s cagava, mijava, vomitava, arrotava, peidava-se, bo cejava, escarrava, tossia, soluçava, espirrava e assoava-se à arcediago\ e almoçava para abater o orvalho e o mau ar: belas 95
RABELAJS
tripas fritas, ricas carnes grelhadas, belos presuntos, boas ca britadas e muitas sopas de pão6. Ponócrates fazia-lhe ver que não devia comer logo que se levantava da cama, sem ter feito primeiro algum exercício. Gargântua respondeu-lhe: «O quê? Não fiz exercício suficiente? Rebolei-me seis ou se te vezes na cama antes de me levantar. Não chega? O papa Ale xandre era o que fazia, a conselho do seu médico judeu7, e viveu até à morte, apesar dos invejosos. Os meus primeiros mestres habituaram-me a isso, dizendo que o almoço dava boa me mória, e portanto eram os primeiros a beber-lhe. Dou-me mui to bem com isso, e ainda janto melhor. E dizia-me Mestre Tu bal (que foi o primeiro na sua licenciatura em Paris) que o mais importante não é correr logo cedinho mas partir cedo, e também a saúde total da nossa humanidade não está em beber muito, muito, como as patas, mas sim em beber de manhã, un
de versus:
Madrugar não é bom, O melhor é beber de manhãs ... Depois de almoçar bem, ia à igreja, e levava dentro dum grande cesto um grande breviário empantufado, pesado, tanto de sebo9 como de fechos e pergaminho, mais ou menos onze quintais e seis libras. Ali ouvia vinte e seis ou trinta mis sinhas. Entretanto vinha o seu capelão, embrulhado no capote como uma poupa, e, bem imunizado, o seu hálito tresandava a vinho à força de tanto <>; e com ele resmoneava todas es sas ladainhas, e tão curiosamente as desfiava que não caía nem uma conta no chão. Ao sair da igreja traziam-lhe numa carroça de bois um monte de padre-nossos de São Cláudiolo do tamanho duma cabe ça, e, passeando pelos claustros, pelas galerias ou pelo jardim, ia rezando mais que dezasseis eremitas. Depois estudava uma meia-horinha, com os olhos pregados no livro; mas (como diz o cómicoll ), a sua alma estava era na cozinha. Então, depois de mijar copiosamente, sentava-se à mesa e, como era naturalmente fleumático, começava o repasto com umas dúzias de presuntos, línguas de vaca fumadas, butar gos12, chouriços, e outros chamarizes do vinho. Entretanto quatro dos seus homens metiam-lhe continua mente na boca, uma atrás da outra, umas pazadas de mostar96
GARGÂNTUA
da. Depois bebia um horrífico gole de vinho branco para ali viar os rins. Depois comia, segundo a estação, as carnes que lhe apeteciam, e só parava de comer quando tinha a barriga cheia. Para beber não tinha cânones, pois dizia que as metas e os limites do beber eram quando, estando uma pessoa a beber, a cortiça das suas pantufas inchava meio pé na parte de cima. NOTAS 1 Florestas de Fontainebleau. 2 Fragmento do Salmo CXXVI, 2: ·<É inútil que vos levanteis antes da luZ.>> Citar o começo deste versículo era um gracejo tradicional no clero. 3 Termo médico: fluido que comunica as ordens do coração e do cérebro às diversas partes do corpo. Esta concepção ainda perdura do século xvn; cf. Descartes (Discurso do Método, 5.� parte): «São como um vento muito sub til...>> 4 Jacques Almain, doutor da Universidade de Paris, autor de um tratado lógico, no começo do século XVI . 5 «Assoava-se copiosamente e de maneira pouco asseada>>, expressão po pular. 6 Sopas que se comiam nos conventos depois das orações matinais. 7 Alexandre VI (1 492-1 503). O seu médico era Bonnet de Lotes, judeu con vertido e autor de um tratado sobre astrologia. Sabe-se que Rabelais despreza esta falsa ciência. 8 Ditado corrente no século XVI. 9 O sebo deixado pelos dedos; a expressão lembra o termo dos talhos: «tan to em sebo como em carne e osso». 1 0 Terços muitas vezes muito ornamentados. Ainda hoje se fazem em Saint-Claude (Jura) objectos de madeira trabalhada, nomeadamente cachim bos. 1 1 Terêncio (Eunuco, IV, 8). 1 2 Uma espécie de caviar que se consome no Mi di (vide cap. III).
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CAPÍTULO XXII OS JOGOS DE GARGÂNTUA
Depois, mastigando pesadamente as graçasl, lavava as mãos com vinho fresco2, palitava os dentes com um pé de porco e conversava prazenteiramente com os seus homens. Depois, aberto o tapete verde, estendiam-se muitas cartas, dados e tabu leiros. E ali jogava3: Ao fluxo4 � prima A rapada (uole) Aos cunhos (pille) Ao triunfo À picardia Ao centos
Aos casamentos �o gay (alegre) As opiniões
A quem faz um faz o outro
À sequência
Às luettes6 Ao tarot A coquinbert,
�o espinay A infeliz (malheureuse) Ao fourby
quem ganha perde Ao beliné (ao enganado) Ao tormento À ronfie (ressona)
(ao espertalhão?) Ao passa--dez Ao trinta e um Ao par e sequência Aos três centos Ao infeliz (malheureux) À condenada À carta virada Ao descontente Ao lansquené (ao trinta e um?) Ao cornudo
�o glic As honras À mourre7
Ao xadrez À raposa8
Às marelles9 Às vacas
À branca À sorte Aos três dados Às mesas
A quem fala sozinho Apille, nade, jocque, {ore
À nicnocque
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GARGÂNJUA
Aos figos de Marselha Ao archer tru A vomitar Ao apanha Ao croc madame A vender aveia A soprar o carvão Aos responsos Ao juiz vivo juiz morto A tirar os ferros do forno Ao fault villain (falso vilão) Ao cailleteaux (falador?) Ao marreco aulicano Ao Santo Achado
Ao lourche À renette Ao barignin Ao trictrac
A todas as mesas Ao reniguebieu l o �o forçado As damas À babou À primus secundus Ao pied du cousteau À chave Ao franc du carreau Ao par ou não A cruzes ou cunhosll Ao martres 1 2 � pingres13 A bola14 Ao remendão Ao mocho Ao dorelot du lievre À tirelitantaine �o porquinho vai à frente As pegas Ao corno Ao boi gordo À corujinha
�pinse morille
A pereira Ao pimpompet Ao triori Ao círculo À porca }:... barriga contra barriga As ravinas (combes) À escovinha À chapinha Aoj'en suis
Ao Foucquet Ao chinquilho
Aje te pinse sans rire
(belisco-te sem rir) A picote r (motejar?) A desferrar o burro Ao laiau tru Ao bourry, bourryzou �oje m 'assis (sento-me) A barba de oribus15
Ao rapeau
À bola chata Ao virotão Ao picqu'à Rome À rouchemerde À Angenart À bola curta }:... griesche A recoq uillette Ao cassepot (parte o pote) Ao meu talento À pirueta Às juncadas Ao pau curto Ao pyrevollet
À bousquine
A tire la broche (puxa o espeto?) À boutte foyre Ao compadre,
empreste-me o seu saco
Ao colhão de carneiro16
A boute hors
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RABELAIS
À clinemuzete
� cabra--cega
Aos centos À branquinha Ao furão
A myrelimofle
Ao queix:inhas Ao crapault
À seguette
À croça
Ao castelinho � rengée (fila?)
Ao piston
Ao bille boucquet (sempre-em-pé)
Afoussette
(pequeno fosso?)
�o roynes
� profissões
Ao ronflart À trombeta
A teste à teste bechevel
Ao mongel 7
Ao pinot (vinho) Ao macho morto Aos croquinolles
Ao tenebry
Ao espantado À bêbada
A la ver le coiffe Madame
À navette Ao fessart À vassoura A São Cosme, venho adorar-telB A escharbot le brun Aje vous prens sans verd A bien et beau s'en va Quaresme
Ao belusteau A semear a aveia A briffault
Ao molinete A defendo
À virevouste À bacule
Ao lavrador
À cheveche Às escoublette enraigées
Ao carvalho bifurcado Ao cavalo ... Ao rabo de lobo Ao peido na boca A Gillemin baillie
Ao bicho morto Ao sobe, sobe
as escadinhas
Ao pourceau mory Ao cu salgado
, my lance A brandelle
Ao pigonnet Ao tiers À bourré
(urze pequena?) Ao treseau À bétula À mosca
Ao salto do arbusto A cruzar Às escondidas
� migne, migne beuf
À maille, bourse en cul Ao nid de la bondrée
As falas
Às nove mãos
Ao passavante �o figo � peidorradas
Ao chapifou Ao pontz cheuz (pontes .. ) A Colin bridé À grolle Ao cocquantin .
Apille moustarde A cambos 1 00
GARGÂNTUA
À taille coup Ao nazardes
À recaída Ao picandeau
Às cotovias Aos tabefes(*).
À croqueteste l).grolle A grue
Depois de bem jogar, peneirar, passar e joeirar o tempo, con vinha beber qualquer coisinha - eram onze peguadzl 9 para um homem -, e logo depois se banquetear, estendia-se num belo banco ou numa bela cama e dormia duas ou três horas, sem mal pensar nem mal dizer. Ao acordar, abanava as orelhas. Entretanto traziam-lhe vi nho fresco; e então bebia melhor que nunca. Ponócrates mostrava-lhe que era má dieta beber assim de pois de dormir. «Mas é (respondia Gargântua) a verdadeira vida dos padres, pois por natureza durmo salgado, e o dormir valeu-me outros tantos presuntos.>> Depois começava a estudar um pouco; lá iam os padre-nos sos à frente, e, para melhor os expedir, montava numa velha mula que já servira nove reis. Assim resmoneando com a boca e balançando a cabeça, ia ver apan har algum coelho nas redes. A volta ia até à cozinha para ver que assado havia no es peto. E ceava muito bem, pela minha consciência! E gostava de convidar alguns vizinhos beberrões, com os quais, bebendo à farta, contavam dos velhos até aos novos. Entre outros tinha co mo domésticos2o os senhores du Fou, de Gourville, de Grignault e de Marigny2 1 . Depois da ceia traziam-se os belos Evangelhos de madeira, ou seja tabuleiros que se abriam como livros, ou o belo jogo de cartas Um, dois, três, ou Arriscando tudo por tudo para abre viar, ou então iam ver as garças22 das redondezas, e pelo meio eram pequenos banquetes, colações e mais colações. Depois dor mia dum sono só até às oito horas do dia seguinte.
(*) Não se tendo encontrado o equivalente português para muitos dos no mes de jogos, porventura até inventados e certamente caídos cm desu so, pre feriu-se deixá-los cm francês, a fi m de não empobrecer o texto eli mi nando -os pura e simplesmente . (N. da T.)
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NOTAS Gargântua despacha-se a dar graças depois de ter comido . 2 Bebia derramando vinho nas mãos. 3 A enumeração dos 21 7 jogos usados no tempo de Rabelais foi estudada por Michel Psichari, Revue des Etudes rabelaisiennes, tomo I. Poder-se-ia consultar igualmente a grande edicão de Abel Lefranc. Os primeiros jogos até à mourre são jogos de cartas; depois vêm os jogos de mesa, do xadrez até ao primus secundus; depois os jogos de perícia, até ao par ou não, em seguida vêm jogos variados de apanhar ou de figuras cómicas, muitas vezes ao ar li vre. No cap. XVIII do Pantagruel, Panúrgio joga alguns destes jogos com os pa jens. 4 Jogo de cartas muito em voga no século XVI. 5 Jogo actual do piquet. 6 Jogo de tarots espalhado no Sudoeste pelos marinheiros espanhóis. 7 Jogo de adivinhas. 8 Variedade do jogo das damas. 9 Jogo de mesa; não se trata da macaca . 1 0 Jogo cujo nome vem da blasfémia: renego Deus (je renie Dieu). 1 1 A par ou ímpar, a cara ou coroa. 12 Aos ossinhos. 1 3 Igualmente «aos ossinhos>>. 1 4 Ao croquet. 1 5 Cf. <>. 1 6 À bola. 1 7 Ao pião. 1 8 Este jogo é descrito no Jeu de Robin et de Marion (século XIII), de Adam de la Halle. 1 9 Medida meridional equivalente a 8 sesteiros. 20 Fidalgos afectos à casa. 21 Personagens reais: Jacques du Fou foi mordomo de Francisco I; os Gourville eram uma família de Angoulême; um dos Grignault foi camareiro de Carlos VIII; os Marigny eram poitevinos. 22 Garça: mulher leviana, mas aqui não tem este sentido pejorativo.
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CAPÍTULO XXIII COMO GARGÂNTUA FOI INSTRUÍDO POR PONÓCRATES COM TAL DISCIPLINA QUE NÃO PERDIA UMA HORA DO DIA
Quando Ponócrates conheceu a viciosa maneira de viver de Gargântua, resolveu instruí-lo nas letras de outra maneira, mas durante os primeiros dias tolerou-a, considerando que a Natureza não suporta as mutações súbitas sem grande violên cia! . Para melhor começar a sua obra, suplicou a um sábio médi co daquele tempo, chamado Mestre Teodoro, que con siderasse se era possível pôr Gargântua em melhor caminho, o qual o pur gou canonicamente2 com heléboro de Anticira e com este medi camento lhe limpou toda a alteração e hábito perverso do cére bro. Também deste modo Ponócrates o fez esquecer quanto aprendera com os seus antigos preceptores, como fazia Timó teo3 aos seus discípulos que haviam sido instruídos por outros músicos. Para melhor o fazer, introduzia-o na companhia dos ho mens sábios que ali havia, em emulação dos quais lhe cresceu o espírito e o desejo de estudar melhor e de se fazer valer. Depois pô-lo em ritmo de estudo que não perdia uma hora do dia, consumindo todo o seu tempo nas letras e em honesto sa ber. Acordava, pois, Gargântua por volta das quatro horas da manhã. Enquanto o esfregavam, liam-lh e uma página das di vinas Escrituras em voz alta e clara4, com pronúncia adequa da à matéria, e disto se encarregava um jovem pajem, nativo de Basché5, chamado Anagnostes6. Segundo as palavras e o ar gumento desta lição, Gargântua punha-se muitas vezes a cis mar, adorar, orar e suplicar ao bom Deus, do qual a leitura mos trava a majestade e os maravilhosos desígnios. 1 03
RABEI.AJS
Depois ia a lugares secretos fazer a excreção das digestões naturais. Ali, o seu preceptor repetia-lhe o que fora lido, expon do-lhe os pontos mais obscuros e difíceis. À volta, consideravam o estado do céu para ver se estava como o haviam notado na noite precedente, e em que signos en travam o Sol e a Lua nesse dia. feito isto, vestiam-no, penteavam-no, arranjavam-no e perfumavam-no, e enquanto o faziam repetiam-lhe as lições do dia anterior. Ele próprio as dizia de cor, fundando nelas al guns casos práticos e relativos ao estado humano, e estendiam -nos algumas vezes por duas ou três horas, mas geralmente ter minavam quando estava completamente vestido. Depois faziam-lhe leitÚras durante três boas horas. Feito isto, saíam à rua, sempre conferenciando acerca dos temas da leitura, e divertiam-se em Bracque7 ou nos prados, e jogavam à bola, à pela, à pille trigones, exercitando galante mente o corpo como primeiro haviam exercitado as almas. E jogavam com toda a liberdade, pois largavam a partida quando lhes aprazia e, geralmente, faziam-no quando sua vam do corpo ou se sentiam cansados. Então eram muito bem limpos e esfregados9, mudavam de camisa e, passeando calma mente, iam ver se o jantar estava pronto. E enquanto espera vam, recitavam clara e eloquentemente algumas sentenças que haviam retido da lição. Entretanto vinha o Senhor Apetite, e oportunamente se sen tavam à mesa. No começo da refeição lia-se alguma história engraçada sobre antigas proezas até que Gargântua tomasse o seu vinholo. Então (se lhes convinha) continuavam a leitura, ou começa vam a dialogar alegremente uns com os outros, falando, nos primeiros meses, da virtude, propriedade, eficácia e natureza de tudo o que lhes era servido à mesa: do pão, do vinho, da água, do sal, das carnes, peixes, fruta, ervas, raízes, e da respectiva preparação. Deste modo aprendeu ele em pouco tempo todas as passagens que com isso se relacionavam, de Plínio, Ateneu, Dioscóridas, Júlio, Pólux, Galeno, Porfírio, Opiano, Pohbio, Heliodoro, Aristóteles, Aeliano e outrosll . Depois de conversa rem sobre esses assuntos, mandavam muitas vezes trazer para a mesa os referidos livros, para melhor se certificarem. E tão bem reteve na memória as coisas ditas que não havia na época nenhum médico que soubesse metade do que ele sabia. Em seguida, falavam das lições lidas de manhã e, arrema tando a refeição com marmelada, palitava os dentes com um 104
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raminho de lentisco, lavava as mãos e os olhos com água fres ca12, e davam graças a Deus com belos cânticos em louvor da munificência e bondade divinas13. Feito isto, traziam-lhes car tas, não para jogar, mas para aprenderem mil graças e inven ções novas, todas provenientes da aritmética. Deste modo aprendeu a amar essa ciência numérica, e todos os dias, depois do jantar e da ceia, passava o tempo tão agradavelmente como costumava fazer, jogando os dados e as cartas. De tal modo que soube a teoria e a prática dessa ciência, tão bem que Tunstal14, o inglês, que muito escrevera sobre essa matéria, confessou que na verdade, em comparação com ele, só sabia o alto alemão15. E não soube apenas esta ciência mas também outras ciên cias matemáticas como a geometria, a astronomia e a música, pois, durante a digestão do repasto, faziam mil alegres instru mentos e figuras geométricas e também praticavam os câno nes astronómicos. Depois entretinham-se a cantar musicalmente a quatro ou cinco partes, ou sobre um tema agradável à garganta. Quanto aos instrumentos de música, aprendeu a tocar alaú de, espineta, flauta alemã e com nove buracos, viola e trom bone. Assim empregada essa hora e terminada a digestão, purga va-se dos excrementos naturais, e depois voltava ao seu estudo principal durante três horas ou mais, tanto repetindo a lição matinal como continuando o livro começado, e também escre vendo, bem traçando e formando as antigas e romanas letras. Feito isso, saíam de casa, e levavam com eles um jovem gentil-homem da Touraine, chamado escudeiro Ginasta, o qual lhe mostrava a arte da cavalaria. Mudando, pois, de trajo, montava um corcel, um cavalo de carga, um ginete, um cavalo árabe, um cavalo ligeiro, e dava -lhe cem carreiras, fazia-o voltear no ar, transpor o fosso, sal tar a paliçada, andar em círculo apertado, tanto à direita como à esquerda. E ali não dava cabo da lança, pois não há maior toleima que dizer: <
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Quanto a fazer fanfarras(*) e assobios em cima do cavalo, ninguém fazia melhor. O volteador de Ferrarel6 não passava de um macaco em comparação com ele. Aprendia a saltar rapi damente de um cavalo para o outro sem cair ao chão - e chama vam-se a esses cavalos <> -, e dos dois lados, de lan ça em punho, aprendia a montar sem estribos e, sem freio, a guiar o cavalo à sua vontade, pois estas coisas servem para a disciplina militar. Outro dia exercitava-se com o machado, e tão bem o fazia es corregar, tão asperamente dava golpadas, tão agilmente o ma nejava que se fez cavaleiro de armas em campanha e em todas as provas. Depois brandia o chuço, manejava a espada com as duas mãos: a espada bastardal 7, a espanholais, a adagal9 e o punhal, armado, não armado, com escudo, com capa, ou com guarda re donda. Caçava o veado, o cabrito-montês, o urso, o gamo, o javali, a lebre, a perdiz, o faisão, a abetarda. Jogava à bola e fazia-a saltar no ar tanto com o pé como com a mão. Lutava, corria e saltava, não com três passos, de impulso, não ao pé-coxinho, não ao salto alemão - pois (dizia Ginasta) tais saltos são inú teis e de nada servem na guerra -, mas dum salto transpunha um fosso, voava por cima duma sebe, subia seis passos de uma muralha e trepava dessa maneira a uma janela da altura du ma lança. Nadava em águas profundas, a direito, ao contrário, de la do, com o corpo todo, só com os pés, com a mão no ar, na qual levava um livro, e atravessava todo o rio Sena sem o molhar, e puxando a capa com os dentes, como fazia Júlio César2o. Depois, com uma mão, entrava no barco e deste se atirava de repente à água, de cabeça, sondava o fundo, cavava os rochedos e mergu lhava nos abismos. Depois virava o barco, dirigia-o, domina va-o em plena represa, guiava-o com uma mão e com a outra esgrimia com um grande remo, soltava as velas, subia ao mas tro pelos cordames, corria em cima das vergas, acertava a bús sola, virava as bolinas contra o vento, e segurava o leme. Ao sair da água, escalava a montanha e descia por ela abai xo com a mesma ligeireza; trepava às árvores como um gato, saltava duma para a outra como um esquilo, abatia os ramos maiores como um Milo21 . Com dois punhais aguçados e dois es(*) Isto é, ensinar o cavalo a andar ao som da mú sica. (N. da T.)
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peques subia ao cimo duma casa como um rato, e depois descia de alto a baixo com uma tal composição de membros que não se magoava com a queda. Lançava o dardo, a barra, a pedra, o dardo, o chuço, a ala barda, tendia o arco, retesava nos rins as fortes arbaletas de passe22, visava sem apoiar o arcabuz23, afustava o canhão, atira va ao alvo e ao papagaio24, de baixo para cima, de cima para ba:l xo, de frente, de lado, de trás como os partos25. Amarravam-lhe numa torre alta um cabo que chegava ao chão, e subia por ele acima com as duas mãos, e depois descia mais seguramente do que se poderia fazer num prado. Punham-lhe uma grande vara apoiada em duas árvores e pendurava-se nela pelas mãos e andava dum lado para o outro sem tocar com os pés em nada e tão depressa que ninguém o con seguiria apanhar. E para exercitar o tórax e os pulmões, gritava como os dia bos todos juntos. Ouvi-o uma vez a chamar Eudémon desde a Porta São Vítor26 até Montmartre; jamais Stentor teve tal voz na batalha de Tróia. E para fortalecer os nervos, tinham-lhe feito dois grande lingotes de chumbo, pesando cada um oito mil e setecentos quin tais e chamava-lhes halteres: içava-os do chão com as mãos e levantava-os no ar acima da cabeça, e mantinha-os assim, sem se mexer, durante três quartos de hora ou mais, o que é uma força inimitável. Jogava à barra com os mais fortes e, chegada a altura, fir mava-se nos pés com tanta força que desafiava os mais auda ciosos a fazerem-no mover-se do lugar, como outrora fazia Mi lo 2 7, em imitação do qual também segurava uma romã e a dava a quem ousasse tirar-lha. Assim empregue o tempo, esfregado, limpo e vestido de fres co, voltava tranquilamente e, ao passar por prados e outros luga res arborizados, visitavam as árvores e as plantas, comparan do-as com os livros antigos que sobre elas escreveram, como Teofrasto 28, Dioscóridas2 9, Marino, Plínio, Nicander, Macer e Galeno, e levavam-nas às mancheias para casa, onde cuidava delas um jovem pajem chamado Rizótomoao, mais as enxadas, as picaretas, os sachos, as pás, os trinchos e outros instrumen tos necessários para arborizar. Ao chegarem a casa, e enquanto se preparava a ceia, repe tiam algumas passagens do que haviam lido e sentavam-se à mesa. Notai que o seu j antar era sóbrio e frugal, pois apenas 1 07