Origem e contexto de emergência da noção de estrutura em Psicopatologia Fenômeno-Estrutural: Evolução do conceito, seu lugar e suas implicações nas práticas clínicas contemporâneas Jean-Marie Barthélémy 1
Resumo
Este artigo retoma um conjunto de propósitos emitidos ou publicados em diversas circunstâncias durante mais de quarenta anos, com o objetivo de apresentar as características fundamentais da noção de estrutura no campo da psicopatologia fenômeno-estrutural, partindo de seu contexto histórico de emergência e definição original e avançando até as transformações e extensões sucessivas mais recentes. Apresentando de modo lateral a convergência de surgimento com outras disciplinas contemporâneas e do seu uso comum, essa exposição visa, sobretudo, a apresentar as influências próprias dessa noção e sobretudo a sua originalidade, em psicopatologia e psicopatologia clínica, na definição de um método e de um modo de abordagem singular da organização psíquica e de suas desordens. O trabalho milita assim em reafirmar a sua atualidade, especificidade e pertinência no seio de disciplinas atualmente ameaçadas por uma diluição e absorção ou por influências inquietantes, nas quais o lugar do homem se restringe justamente onde deveria se impor no núcleo e nos princípios de um procedimento que o preservaria e ao mesmo tempo participaria de sua definição e de suas perspectivas futuras. Palavras-chave: Estrutura Mental; Psicopatologia Fenômeno-Estrutural.
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Doutor ès Lettres et Sciences Humaines. Presidente da Sociedade Internacional de Psicopatologia Fenômeno-estrutural. Professor Emérito de psicopatologia e psicologia clínica. Université de Savoie, Chambéry. Email:
[email protected] Psicopatologia Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
Origem e contexto de emergência da noção de estrutura em Psicopatologia Fenômeno-estrutural
Origin and context of the emergence of the structure notion in phenomenonstructural psychopathology: Evolution of the concept, its implications and its place in contemporary clinical practice
Abstract
This article exposes a set of ideas published in several occasions through more than forty years, showing the main characteristics of the notion of structure on phenomeno-strucutural psychopathology. It starts from its historical conditions of emergence and original definition, stretching to the contemporary transformations. The work aims the presentation the influences of this notion, as well as its originality in psychopathology and clinical psychology, as it proposes a method and a singular approach to psychic organization and its disorders. Therefore, the work supports the actuality, specificity and pertinence of the method, amidst scientific disciplines under the risk of dilution and absorption, in which the place of man is restricted. This restriction precludes the establishment of the principles of the procedures that could preserve the notion of man and take part of his definition and future perspectives. Key-words: Mental Structure; Phenomeno-Structural Psychopathology.
A exploração estrutural se impôs simultaneamente em diferentes campos das ciências humanas e segundo modalidades que, frequentemente, permaneceram antes paralelas do que concorrentes. Isso em razão das especificidades disciplinares e da distância demasiadamente grande entre os objetos de estudo. Na coleção de textos do lingüista Ferdinand de Saussure (1913/1995), na obra psicanalítica de Freud, na experiência perceptiva de Rorschach (1921) ou na obra “Der Aufbau des Organismus” do neurologista Kurt Goldstein (1934) – cujo título francês de uma tradução posterior (1951) “A estrutura do organismo” lança mão de um termo inexistente no autor –, abordagens contíguas vêm à luz sem uma referência explícita à noção de estrutura entendida no sentido que tomará com o passar do tempo. Os anos 1921-1922 constituem, em relação à abordagem estrutural no campo da psicopatologia, um momento de simultaneidade e de convergências particularmente impressionante e pouco comum, que ligará por muito tempo Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
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duas comunidades até então pouco aproximadas: a psicologia e a produção artística - e, mais amplamente, expressiva. A obra de Walter Morgenthaler, “Ein Geisteskranker als Künstler“, surgida em 1921, apresenta a primeira grande monografia pictórica de um paciente psiquiátrico, Adolf Wölfi. Ela alimentará o interesse tanto estético quanto psicopatológico por estas produções colhidas em meio asilar. Morgenthaler é também conhecido por ter apoiado desde o início e promovido a obra de um outro inventor – após a morte deste - que deixará sua marca definitiva na corrente psicopatológica, Hermann Rorschach, filho de pintor e um pouco pintor ele mesmo, autor de artigos, conhecidos de Prinzhorn, sobre a pintura de esquizofrênicos, antes mesmo do aparecimento, em 1921, de seu célebre “Psicodiagnóstico”, um instrumento de pesquisa concebido a partir de uma série de manchas de tinta oferecidas à livre interpretação. A partir do papel que ele atribui, por meio do apoio original de seu teste, à solicitação perceptiva para a captação das especificidades do indivíduo, assim como do lugar que ele concede à descrição das “disposições de talentos” das quais cada um pode ser prova, Rorschach defende o estabelecimento de relações entre as características da pessoa e a natureza de suas potencialidades criativas. Além dessa delimitação de um pólo de interesse, de um ângulo de abordagem dos fenômenos psíquicos, a descoberta de Rorschach instaurará a base de um método dotado de capacidades fecundas e duráveis de expansão. Originariamente algo afastado dessas aproximações entre os mundos da expressão plástica e da psicopatologia, mas ponto de referência decisivo para os desenvolvimentos ulteriores de um modelo tipológico para sua compreensão associada, o livro que Kretschmer publica em 1921, “Körperbau und Charakter”, estabelece continuidades entre os traços correntes do caráter e sua inflexão excessiva realizada pelo transtorno psiquiátrico. Fazendo isso, ele prepara à sua maneira outros rompimentos de barreiras que permitirão o pensamento conjunto de certas polaridades da vida psíquica para além de uma separação radical entre o normal e o patológico. O ano de 1922 vê o surgimento do livro de Prinzhorn “Bildnerei der Geisteskranken” (1922/1984). Na sua introdução, o autor reflete acerca deste termo pouco usual em alemão, “Bildnerei”, utilizado em seu título: dado que as obras de que tratamos assim como os problemas que elas levam a abordar não são matéria de julgamentos de valor, mas são visadas de um ponto de vista psicológico, nos parece pertinente empregar o termo riquíssimo de sentido - ainda que não muito corrente - “Bildnerei”, para um domínio quase desconhecido fora da psiquiatria. Designa-se com esta palavra Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
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tudo aquilo que os pacientes mentais produzem, no sentido artístico da palavra, em duas ou três dimensões. 2 (p. 54) Em uma nota, ele observa a “coerência de sentido” das principais derivações do verbo alemão “bilden” (formar) e se apóia sobre ela para estabelecer o que chama a “solidez” do termo “Bildnerei”. Essa feliz coincidência, sobre a qual insiste Prinzhorn, própria da língua alemã, que une a imagem ao “mundo das formas”, reflete sua clarividente intuição da unidade íntima dos fundamentos estruturais da imagem com sua “formação”. Este apontamento não é casual, pois reúne com profundidade as preocupações do psiquiatra que se condensam neste termo que forja e que é retomado ao longo da obra: a “Gestaltung”. Rememoremos como ele o define no início: por trás das aparências do processo de “Gestaltung”, que julgaremos do ponto de vista estético e cultural, existe um processo nuclear comum a todos os homens. Em sua essência, este seria o mesmo tanto no desenho mais magistral de Rembrandt quanto na mais miserável garatuja de um paralítico (ele designa aqui a síndrome deficitária demencial daquilo que se chamava à época “paralisia geral progressiva”), a saber, a expressão de fatos psíquicos.Talvez seja necessário dominar perfeitamente todos os meios estéticos e culturais de acesso a uma obra para compreender que podemos nos livrar de todo julgamento e nos entregar sem reservas a produções cujos valores se oponham a tal ponto. Pois não se deve ver na fórmula “não há diferença” uma afirmação fátua ou filistina. (Prinzhorn, 1922/1984, p.50) A posição deste princípio geral de Prinzhorn encontra assim vias concretas. Ele é conectado à totalidade das manifestações e funções psíquicas, diferenciadas e moduladas segundo um registro próprio a cada um. “A pesquisa das raízes psicológicas da pulsão de “Gestaltung” no homem”, escreve, nos faz encontrar na necessidade de expressão o centro dos impulsos de “Gestaltung” que se nutrem, no entanto, de todo o psiquismo. A partir desse centro se desenvolvem as diferentes tendências que, pela variedade de suas combinações, determinam o tipo de obra que se faz. Dá-se assim que, fundamentalmente, todo objeto formado concretiza movimentos expressivos de seu autor perceptíveis imediatamente enquanto tais, sem que 2
NT: Tradução da tradução francesa “Expressions de la folie”. Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
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intervenha alguma finalidade ou outra instância racional. (Prinzhorn, 1922/1984, p.60) Como no caso de Rorschach, a parte concedida por Prinzhorn ao processo perceptivo é, na sua própria perspectiva, determinante. Ele insiste na organização que já pressupõe e que está em relação com a especificidade individual. As modalidades de percepção dependem de uma forma pessoal que tem um papel sobre a constituição da imagem e sobre sua coloração afetiva, sendo mesmo concebida como se modelando junto com o desenvolvimento do indivíduo. Assim declara: Nós desejamos antes de tudo elucidar o processo de “Gestaltung” do ponto de vista psicológico. É-nos necessário, em primeiro lugar, atentarmos para o fato de que já na formação intuitiva do processo perceptivo entram em jogo muitos fatores que têm sua origem na personalidade do sujeito e levam sua marca. Tais fatores podem inibir ou estimular a imagem visual que está se constituindo; em todo caso, eles contribuem para sua determinação. Trata-se de forças em parte enraizadas no próprio indivíduo, de sua “marca”, como se diz, na qual as disposições afetivas se misturam ao talento expressivo em geral e a numerosas influências exercidas ao longo do desenvolvimento. (Prinzhorn, 1922/1984, p. 90) Segundo Prinzhorn (1922/1984), os componentes da “Gestaltung” são “analisáveis de um ponto de vista puramente formal” (p.86) e todos os movimentos expressivos são dele procedentes. Algumas fórmulas, que parecem ainda hoje em dia de uma acuidade e de uma atualidade fulgurantes, resumem o enraizamento da “Gestaltung” entre a experiência vivida e a formação expressiva: Toda “Gestaltung” se desdobra entre a imediatez viva e a organização formal e é unicamente sobre o grau desta tensão que pode se fundar, no fim das contas, nosso julgamento (...). O poder de “Gestaltung” se enraíza portanto em toda a vida psíquica, à medida que esta produz para fora impulsos expressivos. Ele conduz, por intermédio das imagens visuais, de qualquer necessidade de expressão rumo à obra, ou, ainda, do vivido à forma. (Prinzhorn, 1922/1984, p. 94) Assim é revelado, para Prinzhorn, o acesso ao estudo psicológico do mundo da formação da imagem, mundo aberto a todo e qualquer indivíduo, poder geral compatível com os fatores da vida pessoal, a observar notadamente – mas não exclusivamente – a partir das produções dos doentes psiquiátricos. Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
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Em seu livro, como salienta Marielène Weber na sua bela apresentação da edição francesa, “se impõe a materialidade de uma emergência, a despeito da incerteza do instrumental teórico e da precariedade das conclusões”( Prinzhorn, 1984, p. 18) É um julgamento próximo daquele dos doutores W. von Baeyer e H. Häfner, da clínica psiquiátrica da Universidade de Heidelberg, que escrevem: “A intenção de Prinzhorn foi uma concepção fenomenológica do essencial do ser, mas esta intenção pôde ser realizada apenas de modo incompleto com o método utilizado” (Bayer & Häfner, 1964). Essa ideia reproduz fielmente o ponto de vista do próprio Prinzhorn, que declarou que sua “atitude tem continuamente um caráter fenomenológico no sentido mais amplo da palavra”. Citemos, para concluir este percurso de uma emergência de métodos em parte ainda embrionários – de escuta de uma função expressiva posta a serviço de uma abordagem fenomenológica, o estudo de Karl Jaspers, em 1922, sobre Strindberg e Van Gogh. Mesmo recebendo homenagem de Prinzhorn – homenagem que se estende ao conjunto de sua obra, pela qual nutria uma profunda admiração – este estudo permanece no domínio puramente patográfico, no sentido em que Jaspers busca o transtorno na obra apenas na medida em que sirva de base para o estabelecimento ou confirmação de um diagnóstico, reputado por ele ser, nos casos, a esquizofrenia.
Voltemo-nos agora à abordagem fenômeno-estrutural propriamente dita e, mais particularmente, aos seus vínculos diretos com a análise filosófica. A pertinência do “Ensaio sobre os dados imediatos da consciência”, escrito em 1889 por Henri Bérgson, para uma adaptação à abordagem psicopatológica impressionou fortemente Minkowski; porém, esta passagem trouxe-lhe muitas dificuldades, já que sua aplicação neste domínio não era assim tão óbvia, topando com exigências práticas às quais a filosofia raramente se submete. Como atingir a realidade profunda dos transtornos psíquicos, como preservá-la o mais proximamente possível de suas experiências íntimas admitindo trabalhar apenas com suas exteriorizações? Uma das vias abre-se pela reflexão sobre o conceito de “duração”, cunhado por Bergson, para quem um tempo cronológico, mensurável, métrico, deve ser distinguido de uma “duração” concebida como qualidade pura, progresso, que não transcorre de modo mecânico – como um metrônomo ou um pêndulo de relógio – mas permanece em ligação íntima com a vida mesma, procedendo de uma inscrição fundamental na existência. Essa noção será tomada de empréstimo por Minkowski, mas somente à custa de sua libertação de uma outra ideia de Bergson que a psiquiatria não pode subscrever: a noção Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
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de que a linguagem, em razão da dimensão necessariamente espacial e fragmentada de suas atualizações, representa um obstáculo irredutível para a captura dos fenômenos essencialmente qualitativos da atividade psíquica, especialmente a duração vivida, sem a qual ela perde sua extensão, todo sentido e até mesmo sua definição. No “Tempo vivido”, publicado em 1933, Minkowski mostrará a contrario, com muita elegância e talento, que uma análise profunda e sutil da linguagem viva nos permite acessar traços específicos das organizações patológicas que se mostram particularmente sensíveis para a evocação das desordens da maneira de viver a temporalidade e sua continuidade interior. Num trabalho precedente, de 1927, sobre “A esquizofrenia”, Minkowski tinha implantado sobre o conceito de “élan vital”, forjado pelo mesmo Bergson, muito de sua compreensão deste transtorno psicótico, considerado nos planos fenomenológico e psicopatológico como uma “perda do contato vital com a realidade” (e não mais sob uma concepção mais passiva e mecanicista do tipo associacionista, como o fazia seu mestre Bleuler (Bleuler, 1911), entendendo-a como uma “ruptura de associações”). Entretanto, a sintomatologia esquizofrênica permite abordar o tempo vivido apenas para constatar sua terrível carência nesta devastação, substituído frequentemente por fatores compensatórios ao seu desmoronamento na forma de uma insistente tendência ao que Minkowski denominou de “espacialização”. Dentre todos os exemplos que cita, destaca-se aquele de um esquizofrênico que se queixa da velocidade excessiva do trem no qual viaja, não por ela alterar o deleite aprazível da paisagem, mas porque não permite que se faça o registro isolado, separado, de cada um dos elementos e de pontos de referência que a constituem, a fim de recompor-lhe o movimento. Este exemplo ilustra maravilhosa e de modo dolorosamente aplicado e implicado a diferença estabelecida por Bergson entre um tempo espacializado, recortado em unidades artificialmente ou convencionalmente reunidas, e um tempo desdobrado em uma apropriação pessoal, no qual não se trata mais de contar, mas de experimentar. Minkowski instaura essa diferença no contraste que estabelece, para a inscrição temporal, entre a sucessão e a continuidade, entre um princípio de justaposição – obedecendo a dados quantificáveis – e um princípio de penetração – repousando sobre uma base puramente intuitiva – não apenas para lhes opor mas para mostrar como nós os alternamos e, sobretudo, os integramos nas disposições simultaneamente receptivas e ativas de nossas existências. O prolongamento da exploração minkowskiana, orientada em parte pela procura confessa de um equivalente simétrico, no campo psiquiátrico, de alterações mais objetiváveis da temporalidade, mas preservadoras do sentimento de duração vivida, colocará em ação belos estudos sobre os transtornos demenciais, observados não apenas por seu aspecto deficitário, realizados por meio de uma descrição notável da manutenção de um princípio Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
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de homogeneidade, feito de estabilidade e de continuidade, mesmo quando as referências espacio-temporais tenham desaparecido. Pode-se ver como o demente ganha surpreendentes capacidades de ampliação qualitativa da temporalidade vivida à medida que perde marcas e privações puramente métricas ou cognitivas na sua desorientação. Minkowski escreve em 1932 em uma comunicação sobre “O problema do tempo em psicopatologia”: Isso nos obriga a rever nossa concepção do que chamamos orientação no tempo e no espaço. Essa orientação parece se compor agora de elementos de duas ordens diferentes: de uma parte, de conhecimentos registrados por nossa memória, relativos aos nomes de lugares e às datas e, de outra parte, da noção fundamental de “eu-aqui-agora” que, contrariamente aos conhecimentos precedentes tem, pelo menos para o eu que age, algo de absoluto nela no que se refere ao local em que me encontro e ao momento em que vivo atualmente. (Minkowski, 1932, p. 83). Os transtornos de humor, de uma outra perspectiva e em outros contextos exteriores à esquizofrenia, mostrarão que, no caso de conservação de suas referências objetivas, como é visível nas suas formas mais graves, são visualizáveis e se tornam analisáveis “subduções”, que colorem especificamente a maneira de experimentar o decurso do tempo: paralisado pelo remorso e incapacidade de vislumbrar o porvir, na melancolia; precipitado em uma miríade de instantaneidades e dissipações, no desarranjo maníaco. Todas as observações ilustrativas desses fenômenos, recolhidas com grande paciência, repousam essencialmente sobre modalidades expressivas do contato ou sobre um exame aprofundado das características da linguagem que, longe de se apresentar nestas circunstâncias como um freio à sua restituição fiel, se revela como um dos mediadores mais fundamentais a facilitar e autorizar o acesso ao transtorno. Minkowski descobre na trama dinâmica das palavras como as maneiras de se situar no tempo e no espaço próprias a cada pessoa permitem nos aproximarmos de seus mecanismos fundamentais com seu valor inicialmente compreensivo e expressivo, antes de nos arriscarmos a qualquer empreitada explicativa. Convém-nos compreender, assim, a sua concepção de “estrutura mental”, na definição da qual intervêm tanto a unidade dos componentes espacio-temporais vividos quanto forças e pressões expressivas. Tendo se livrado do descrédito lançado por Bergson sobre uma linguagem considerada como intermediário confiável na restituição da realidade vivida, ela se reconhece por uma concordância fundamental com o princípio de que os estados psicológicos não podem ser isolados como fragmentos do eu, mas que Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
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na verdade realizam expressões deste enquanto traduzem e refletem o conjunto e a unidade da personalidade e jamais um de seus componentes. Lá onde Bergson sustentava que o pensamento discursivo, que a linguagem, se mostrava incapaz de reproduzir estes “dados imediatos da consciência”, Minkowski demonstra que se pode, pelo contrário, apoiar-se sobre ela para acessá-los; considera assim a linguagem como um dos mediadores essenciais de nossa função expressiva e executará uma fenomenologia da linguagem, permitindo atingir principalmente as alterações do tempo vivido nos seus pacientes e, mais amplamente, as grandes linhas de abordagem desta no seio de cada uma de nossas individualidades. Ele proporá um método de análise da linguagem, que qualificará mais tarde de “fenômeno-estrutural”, no qual a atenção voltada às qualidades expressivas do espaço e do tempo vividos assume um dos papéis fundamentais na apreciação das características psicopatológicas e, mais amplamente, psicológicas da personalidade. É a partir dessa concepção de um fato psiquiátrico reinserido numa pertinência psicológica mais ampla que assoma a ideia, no limite muito simples e tão capital, proposta por Minkowski, de uma diferença de natureza entre o sintoma médico e o sintoma psiquiátrico, fundada sobre o fato que o segundo é sempre mais expressivo e muito mais unitário que o primeiro. As síndromes psiquiátricas detém e manifestam um poderoso valor expressivo, incomparável com aquele das síndromes somáticas; elas parecem também emanar de uma mesma fonte e de uma coerência de organização interna e é sem dúvida nesta medida e por esta razão que nos tocam e nos afetam de modo diverso. Os sintomas psiquiátricos, explica Minkowski (1928), “se apóiam” entre si, repousam sobre um só transtorno inicial, constituindo uma unidade organizada, representam uma verdadeira síndrome psicológica , ou ainda, “não conseguiríamos deslocar os sintomas nem substituí-los uns pelos outros sem destruir esta impressão de conjunto, pois “uma ligação íntima os une” (Minkowski, 1966, p. 51-52).. Incontestavelmente, é no sentido forte da palavra expressão que se deve entender quando ele declara (Minkowski, 1928): “A síndrome mental não é mais para nós uma simples associação de sintomas, mas a expressão de uma modificação profunda e característica da personalidade humana inteira (Minkowski, 1928, p. 28). O principal objetivo da psicopatologia, nesta perspectiva, será o de se esforçar, a partir de uma descrição rigorosa, aprofundada, refinada e próxima das especificidades individuais – fenomenológica, portanto, no sentido entendido por Minkowski – em chegar a uma representação estrutural que dê conta das grandes linhas organizadoras e compreensivas destas especificidades, resguardando suas unidade e coerência internas. As maneiras diversificadas pelas quais cada um se harmoniza intimamente a um espaço e a um tempo vividos que lhe são próprios, abordadas graças à linguagem e mais amplamente Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
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ao conjunto das formas e forças expressivas, permitirão assim que se extraia tanto as particularidades quanto os agrupamentos de tendências, em função das inflexões que o transtorno psíquico dirigente tipologicamente lhes impõe. Cada estrutura particular, escreve Minkowski (1932), “traz a característica, em última análise, do modo como o indivíduo se situa em relação ao tempo e ao espaço vividos” (p. 91). A experiência interna do sintoma e sua abordagem metodológica exterior não surgem mais assim afastadas uma da outra, incompatíveis uma com a outra, ou até mesmo totalmente estranhas uma em relação à outra, o que seria verdadeiramente o cúmulo para uma ciência de vocação humana, mas em correspondência e convergência de fundo. A noção de estrutura, assim posta, não se apresenta como uma reconstrução abstrata, à qual se chegaria com muita dificuldade, como lhe foi censurada frequentemente e muitas vezes com razão, mas reencontra a presença encarnada de uma realidade da qual ela supostamente deve dar conta; mas, porque ela extrai sua origem da vivacidade da linguagem, de uma maneira ao mesmo tempo sentida, vivida e ativa de viver o tempo e o espaço, participa de uma definição e compreensão concreta da pessoa a partir de uma coexistência compartilhada. Para nos ocuparmos de seus princípios, é necessário sublinhar a dupla temporalidade deste método fenômeno-estrutural tal qual concebido por Minkowski: a primeira, metodológica, procede de uma observação descritiva dos fenômenos psicológicos capturados na proximidade de sua dimensão vivida e experimentada, para em seguida pretender acessar sua significação estrutural; a segunda, histórica, que, a partir dos anos 50, integrará o estudo evolutivo ao da estrutura, mais e mais concebida esta não como uma invariante, mas como unidade fundamental afetada por movimentações interiores próprias da sua gênese ou de certos de seus desenvolvimentos potenciais. É importante também salientar que, para este discípulo de Bleuler, a abordagem estrutural visa, sobretudo, à compreensão da unidade do transtorno, da doença psíquica. A ideia que se impõe, desde a descrição hierárquica da esquizofrenia, realizada pelo mestre da clínica de Burghölzli em Zurique, é que os sintomas psiquiátricos não podem ser concebidos como um agregado de elementos independentes, a serem enumerados ou superpostos, conforme aos preceitos associacionistas, mas que eles procedem de um “transtorno gerador”, segundo a expressão de Minkowski, ou seja, que possuem uma coerência na sua organização e distribuição internas. Neste sentido, o procedimento de Minkowski é, num primeiro momento, extensivo, à medida que visa a descrever conjuntos compreensivos significantes que exorbitam o quadro de uma unidade individual para se aplicar a uma larga sintomatologia. Mas, a seguir, essa prospecção tomará uma outra dimensão, Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
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simultaneamente mais extensiva e mais intensiva: mais extensiva no sentido em que Minkowski se dá conta de que seu método pode se estender à compreensão da subjetividade não-patológica; mais intensiva porque compreende que ele deve também se exercer em profundidade, portanto, de modo intensivo, na compreensão não somente do transtorno mas da singularidade da pessoa, normal ou patológica. Vejamos como ele o resume em 1933 em seu célebre livro sobre “O tempo vivido”: A necessidade de penetrar, através dos sintomas, até esta personalidade viva, de capturar em um único esforço de conhecimento toda sua maneira de ser é tão imperiosa que não saberíamos renunciar a isso, tanto no domínio do patológico quanto no domínio do normal” (Minkowski, 1933, p. 208-209, ). Não nos encontramos mais no halo associacionista que inspira Bleuler ainda em 1906, que ilustrarei com uma citação que segue válida no seu projeto concreto, se liberada de suas amarras ainda visíveis com esta corrente: Na atividade associativa se reflete o psiquismo inteiro, passado e presente, com suas experiências e suas tendências. Ela se torna um índice de todos os processos psíquicos e devemos apenas decifrála para conhecer o homem inteiro (...). Cada processo psíquico, cada movimento tal qual exatamente efetuado, são possíveis somente por um sujeito dado, com seu passado determinado. Cada ação particular representa o homem inteiro. Desejar tomas conclusões sobre a personalidade inteira a partir da escrita, da fisionomia, da forma da mão, do estilo ou mesmo do desgaste dos sapatos não é uma tendência desprovida de fundamento. (Bleuler, 1906) Encorajada por Bleuler para a investigação genealógica da presença de doenças mentais em terreno familiar predisponente, Françoise Minkowska (1882-1950) vai descobrir, em paralelo com Minkowski, uma constelação de fatores da personalidade que a orienta rumo a uma mesma via estrutural. Ela descobre assim um estilo de relação ao real, ao outro e à existência que determina um conjunto de comportamentos organizados entre si segundo dados convergentes, o qual Minkowska tentará circunscrever em suas grandes linhas sob os termos sucessivos de “epileptoidia”, de “ gliscroidia” e, enfim, de “sensorialidade”, como ela o chamará mais tarde para se livrar com razão de uma referência limitante ou ambígua em relação ao transtorno. Essa confluência de fatores permite-nos compreender certas particularidades da epilepsia, nos informando também, para além da doença, sobre uma organização da personalidade definida, no essencial, por uma bipolaridade levando da Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
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adesividade à explosividade afetivas e por um contato colado com a realidade,
realidade que lhe opõe fundamentalmente à esquizoidia e à esquizofrenia que Minkowski havia estudado primordialmente. Já no momento em que pôde dar uma primeira versão sintética de suas pesquisas genealógicas, em um livro publicado em 1937, Françoise Minkowska antecipou o acesso ao que chamava um “mundo de formas”. Ela fornece neste grande artigo uma definição de estrutura mental à qual Minkowski dará adesão total sem jamais retificá-la, onde se vê que a abordagem do transtorno psíquico surge apenas em última instância, como um caso particular de um desenho bem mais extenso e ambicioso: a estrutura é um princípio formativo que constitui algo de primitivo em relação a todas as formas da existência viva e que, deste modo, se manifesta de uma maneira unívoca tanto nas particularidades biológicas e caracterológicas quanto naquelas ligadas à atividade espiritual e criativa. Nós a encontramos igualmente na base dos transtornos mentais correspondentes. (Minkowski, 1966, p. 580) Ela precisa ainda que “a análise estrutural não concebe esta forma como imóvel, mas procura, pelo contrário, apreendê-la na sua mobilidade, em seu dinamismo vivo” (Minkowska, 1937). Após seus estudos genealógicos, Minkowska reencontrará essas tendências na análise de elementos biográficos, caracterológicos, patológicos e criativos do pintor Vincent Van Gogh, o que a conduzirá a uma compreensão da rede de afinidades íntimas e interativas que se tece entre os diferentes campos de expressão da personalidade e em todas as suas formas de ação e de realização. A partir de 1938, Françoise Minkowska descobre como, no Rorschach, a análise aprofundada da linguagem permite restituir com muita proximidade e com fidelidade a vida, a dinâmica e a verdadeira marca individual das imagens e da visão de mundo que elas sustentam e as ativa. Minkowska propõe sua análise não como uma total inversão da perspectiva tomada pelo inventor inspirado deste instrumento mas, em concordância com o espírito no qual o autor o havia vislumbrado, como um desenvolvimento natural de um método aberto convocado por ele mesmo em primeiro lugar a se enriquecer desde seu interior. Cuidando de seguir, com o Rorschach, a mesma exploração das particularidades individuais que Minkowski havia desenvolvido em outras bases, ela irá, desde então, se ocupar em descrever as suas vias metodológicas, Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
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que passam inicialmente por uma compilação dos protocolos respeitando com minúcia as formulações verbais próprias de cada indivíduo para compor sua fonte de análise. A riqueza com a qual se elaboram as palavras nas respostas conta muito mais para ela do que uma análise do protocolo estabelecida sobre constantes estatísticas. As palavras do Rorschach não são apreendidas por Minkowska nem em função de um conteúdo concreto, que elas atualizariam de maneira explícita, nem em relação a uma significação simbólica latente, indireta, à qual elas supostamente remeteriam, mas, antes, consideradas “em função de situações vitais às quais eles se referem”, como comenta Minkowski, que explica que “se trata, no fundo, da colocação dos fundamentos de uma “semântica”” (Minkowska, O Rorschach em busca do mundo das formas 1978, p. 33). Não é, portanto, um mosaico de significações disseminadas, parciais ou isoladas, devendo ser reunidas, que este método visa a atingir, mas, inicialmente, a unidade de sentido própria de uma pessoa que a particulariza em sua individualidade ao mesmo tempo em que a vincula a um “sistema de referências suscetível de nos informar sobre a estrutura mesma da vida e de nossa existência” (Minkowski, 1966, p.32-33). Em pleno acordo com Gaston Bachelard, Françoise Minkowska se coloca ao lado de uma concepção e de uma análise da linguagem portadora de imagens, movimentos, sensações e élans afetivos, em razão de seus recursos relacionais e de suas propensões expressivas; em uma palavra, de uma linguagem tomada e compreendida em sua importância metafórica. Nesta perspectiva, Minkowska procede ao que ela chama um “exame minucioso, palavra por palavra” dos protocolos a fim de revelar as “expressões de base ” que determinam os dominantes e as especificidades da personalidade. O exame dos epiléticos e sensoriais, por meio do Rorschach, lhe demonstrará a importância, nessas pessoas, do que ela chamará “ a visão em imagens”, a capacidade e facilidade que possuem os sensoriais em imaginar espontaneamente e vigorosamente o conjunto de seus conteúdos psíquicos em função de disposições internas provocadas por estimulações provenientes do mundo exterior. Não apenas essas imagens se impõem pela sua presença e vitalidade, mas ainda parecem dotadas de poder de persistência e de continuidade na duração, o que revela sua tendência à perseveração . Graças a suas investigações genealógicas, Minkowska já havia anteriormente descoberto certas características estruturais de organização da personalidade normal e patológica; mas é apenas o Rorschach e, principalmente, a análise da linguagem como seu intermediário, que vai conduzi-la ao encontro daquilo que chamará desde então de “ mecanismos essenciais”; a prática deste método lhe trará a revelação inédita da inscrição Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
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tangível – no coração mesmo da expressão pela linguagem – de mecanismos psicológicos até então apenas inferidos da prática clínica. Sua surpresa é grande quando ouve termos ou fórmulas verbais que anunciam ostensivamente uma “ligação” ou um “corte”, traduzindo em profundidade as características prevalentes nos pacientes de suas relações com o mundo, com o outro e consigo mesmos. A Spaltung, descrita por Bleuler como sintoma principal da esquizofrenia, é retomada por Minkowska, a partir da análise da linguagem no Rorschach, como um mecanismo psicológico com uma extensão muito mais vasta, exercendo-se para muito além dos dados estritamente psiquiátricos. No plano estrutural, aparece claramente como os mecanismos apresentam-se de um modo contrastado, o que não quer dizer que se possa contentar de lhes opor simetricamente para atingir uma classificação binária ou com esta se contentar; essas tendências, que valem como referências tipológicas, obedecem a maneiras divergentes de perceber, experimentar, exteriorizar a sensação, as emoções e a vida afetiva. Obedecem também a um princípio de desenvolvimento que mostra que a criança é, de modo geral, mais sensorial que o adulto. Ligação e corte são, segundo Minkowska, “ mecanismos essenciais ”,
particularmente visíveis e agindo em certos transtornos psíquicos nos quais repercutem com suas modalidades próprias de espaço e tempo vividos; mas transbordam largamente os limites do transtorno para relacionar-se também com cada uma de nossas personalidades individuais, em suas características constitutivas e evolutivas. Aplicado inicialmente na análise sincrônica da estrutura das grandes desordens psíquicas, o método vai se estender à análise estrutural e evolutiva da personalidade. A própria Minkowska tomará essa via rumo à exploração do mundo de formas plásticas com um estudo comparado das obras e personalidades de Vincent Van Gogh e Georges Seurat, que lhe servirá de base para a concepção de um modo de abordagem dos desenhos infantis. A noção de estrutura mental se impõe assim progressivamente a Minkowski e a Minkowska como definidora deste agrupamento estável e significante de fatores convergentes dos quais eles vão descrever os caminhos de acesso a seus princípios de organização interna e a suas modalidades de exteriorização. A estrutura da personalidade se desvela e se realiza através dessas disposições expressivas, em particular – mas não somente – da linguagem. Aliada ao exame minucioso das maneiras específicas de se harmonizar com o tempo e espaço vividos, sua análise constitui um ponto de partida para a descoberta de mecanismos essenciais de ligação e de corte, assim como de compensações fenomenológicas , que fazem revelar certas chaves compreensivas, permitem capturar a unidade dos processos patológicos e Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
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psicológicos e conduzirão mais tarde à evidenciação dos princípios que regem a sua evolução. Após a morte de Minkowska, em 1950, seus alunos partirão para a conquista do mundo de formas na perspectiva por ela estabelecida, aplicando-a a novos campos do domínio da expressão. Os estudos de Zéna Helman e de sua escola de psicopatologia fenômeno-estrutural confirmarão o caráter relativamente móvel e plástico da estrutura mental sob o efeito dos processos de maturação em diferentes etapas do desenvolvimento psicológico – da infância à adolescência e desta à idade madura e no curso do período involutivo -, sob a influência do transtorno mental e dos tratamentos psicobiológicos ou psicoterapêuticos que buscam remediá-lo. Eles mostrarão, em todos os registros, a importância e sensibilidade da “visão em imagens” na particularização dos traços psíquicos dominantes e no seguimento de suas transformações quando estes perturbam-se pelas manifestações delirantes ou alucinatórias, através do fenômeno da “imagem que não se sustenta ”, revelador de uma realidade tornada instável e, consequentemente, inconstante e inconsistente. Outros instrumentos, como a Figura de Rey, o Psicodiagnóstico de Mira y Lopez, o Sonho Desperto de Desoille ou o Teste da Aldeia de Mabille serão integrados ao método em função das diversas circunstâncias ou particularidades da pesquisa, sempre analisados em relação ao Rorschach e em uma perspectiva que leva em consideração suas relações metodológicas passíveis de transposição. No coração de todas essas pesquisas, em continuidade metodológica com toda a história da psicologia a partir do momento no qual seu princípio se instalou e foi implantado, o conceito de evolução e o tipo de procedimento e de atitude que ele pressupõe não cessou de enriquecer um método para o qual ele contribuiu fecundando-o incansavelmente e sem esmorecimentos. O risco de vê-lo degradado pela esquematização tornou-se tão maior hoje em dia - tendo como consequência não apenas um enfraquecimento generalizado da abordagem clínica em psicopatologia, mas também um descrédito total da psicologia com seus procedimentos, práticas e ensinamentos que participaram de seu reconhecimento e difusão no seio das ciências humanas – que a recordação de certos princípios de base parece indispensável no momento de abordar as concepções do método fenômeno-estrutural transposto ao domínio das aplicações terapêuticas. Nossos estudos não são centrados, como é freqüente na nossa época, na aplicação ou em resultados imediatos, não porque eles os desdenhem, mas porque visam inicialmente à compreensão lenta e progressiva de uma pessoa ou das singularidades sintomatológicas que nela se inscrevem. Como sintetiza com perfeição Minkowski:
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A fenomenologia nos convida a ‘demorarmo-nos’ nos fenômenos, a fim de precisar suas características fundamentais. Antes de conhecer sua origem, nós queremos saber o que eles são, quais são os elementos por eles aportados, cada um em sua especificidade, à textura geral da existência. A fenomenologia se coloca, assim, de partida, além da perspectiva causal e nos coloca ao mesmo tempo ao abrigo dos riscos de um psicologismo excessivo. (Minkowski, 1966, p. 456) As conseqüências concretas dessa posição se mostram decisivas, vastas nas suas capacidades de aplicação e includentes nas suas modalidades de exercício, em particular em uma relação de ajuda que eu sempre resisti em designar como “psicoterapêutica”, de uma parte em razão da posição pretensiosa e de superioridade que o técnico se autoatribui implicitamente com a denominação, mas sobretudo em função de uma atitude de aproximação do outro que não parece compatível com o pensamento minkowskiano. O método fenômeno-estrutural não aborda o outro com o objetivo de tratá-lo e ainda menos de curá-lo, mas inicialmente enquanto este surge como uma alteridade próxima de si ou a ser aproximada de si por meio do contato relacional. Como já escrevi em uma fórmula abreviada para a qual não encontrei melhor substituta até agora: o encontro clínico surge antes de tudo como oportunidade de relacionamento com outra subjetividade, convivida como intermediária e reveladora da natureza do contato que a pessoa mantém com a realidade e com sua própria vida psíquica, através das suas aspirações e atitudes na aproximação interpessoal na diferença e interhumana na semelhança. (Barthélémy, 2000) Todas as práticas com pretensão psicológica que visam a reduzir os sintomas – assim como na matemática fala-se em reduzir uma fração a uma forma mais simples ou em traumatologia em reduzir uma fratura a fim de recolocar no lugar os ossos deslocados – toda veleidade de erradicá-los por uma simplificação elementarista remetendo-os às unidades mais simples possíveis a serem tratadas separadamente ou sucessivamente se expõem ao perigo de serem improdutivas, senão estéreis, pois elas negligenciam ou negam a relação interna fundamental que os une, os dirige e lhes dá sentido no seio de uma subjetividade a ser respeitada. Portanto, nada, na perspectiva fenômeno-estrutural, poderá ser abordado em capítulos ou rubricas, nada poderá permanecer isolado, decomposto ou tratado de modo circunscrito, tanto no espaço quanto no tempo. Não existe localização na estrutura, tampouco evolução por setores. O impacto Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 2012, 1 (1), 88-105
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de uma modificação de aparência circunscrita repercute sempre no conjunto de todas as suas associações; ela exerce suas implicações em ressonâncias para muito além de seu território. Essa extensão corresponde também a um alargamento e flexibilização da noção de evolução, que não visa mais a designar somente, como em Ribot e posteriormente no modelo da psicologia dita “genética”, uma mudança gradual de etapas hierarquizadas, mas vem a “compreender”, nas duas acepções do verbo, todo processo interno ou externo de transformação profunda da personalidade. Afastada e desconfiada das atuais tendências restritivas, ela se situa em um amplo quadro teórico e metodológico com a preocupação constante de apreciar os efeitos duradouros e os limites dos diferentes eventos, circunstâncias ou procedimentos, sobre a estrutura da personalidade, por meio de uma compreensão coerente dos mecanismos psicológicos subjacentes que lhe dirigem e lhe dão sentido, a fim de que a avaliação não se reduza jamais a uma forma desvalorizada de evolução.
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Tradução: Guilherme Messas
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