psicodelia brasileira

Aline Ridol Ana Paula Canestrelli Tatiana K. de Mello Dias

Este livro é um projeto experimental do curso de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero

índice introdução | 6 ronnie von | 1 0 LiverpooL | 2 4 móduLo 1000 | 4 6 som imaginário | 6 6 spectrum | 9 2 udigrudi | 110 vimána | 162 serguei | 182 o fim da história | 210

Louco: AfetAdo por um Alto grAu de

independência

intelectuAl. Ambrose Bierce, jornalista norte-americano

P

sicodélico, psicodelia, psicodelismo. Muitas palavras para denir o indenível. Sgundo a alquimia dos signos: “Psico” – alma, espírito, princípio pensante, atividade mental – mais o elemento ”Delo” – visível, claro, maniesto, evidente. Pelo dicionário: aquilo que produz eeitos alucinógenos; diz-se de qualquer produção intelectual que se assemelha ou aquilo procura imitar as obras criadas sob o eeito de alucinógenos. A psicodelia brasileira tem um quê de inenarrável, um quê de indescritível indescritível,, um quê de mitológica – ora moribunda, ora extasiada. Mas o ser humano precisa da classicação para organizar suas idéias. Como disse Jorge Mautner, “A arrumação do cérebro é importante. Nesse caso, a denição é importantíssima por que mexe com o pensamento. A classicação é uma tentativa racional de tentar interpretar a emoção que aquele enômeno está te despertando. E na proundidade tudo está parado

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e em movimento ao mesmo tempo. E na visão intuitiva dessa arte psicodélica você já tem essa junção. Como arte”. O psicodelismo contaminou diversas ormas de expressão – na música, a brecha oi aberta pelo relâmpago tropicalista, que deixou de lado a MPB tradicional na busca por novos sons e roupagens estéticas. Como refexos da repressão política e cultural, pipocaram por todo o país pequenos grupos de jovens preocupados em azer música, arte livre e, sobretudo, em garantir liberdade mental suciente para não enlouquecer de verdade naqueles anos de chumbo. No entanto, essas bandas quase nunca conseguiram emergir e permaneceram suocadas nos subterrâneos da contracultura nacional. No Nordeste elas carregavam o sotaque arretado, os instrumentos regionais de percussão e a malandragem jagunça. No Sudeste traziam as infuências estrangeiras estrangeiras libertas pelo idioma nacional. No Sul uniam detalhes latino-americanos, latino-americanos, reerências gaudérias e costumes europeus. Em todos os cantos, representavam o grito de uma geração, que não aceitou ser amordaçada pelo sistema. “Os desbundados só acreditavam no processo individual como saída, em busca do revolucionarrevolucionar-se; se; já os guerrilheiros reprimiam reprimiam os sentimentos sentimentos pessoais, seguindo seguindo um rígido manual de de conduta que desvalorizava as questões individuais em prol do coletivo e de uma revolução social que viria. E o orgasmo cava para depois da revolução”, escreveu Lucy Dias, em “Anos 70 – enquanto corria a barca”. Extraterrestres, drogas ilícitas, cidades do interior interior,, personagens bizarras, bandas internacionais, lingeries, demônios maquiavélicos, maquiavélicos, surtos esquizorênicos esquizorênicos,, fores que alam... Tudo era motivo de inspiração. É a arte livre. A não-imposição de limites. A quebra de tabus em uma época marcada pela repressão do Estado. O modo de se vestir vestir,, de viver viver,, de compor, de mostrar a arte nas apresentações, tudo era permeado por uma sede de liberdade – representada pela estética e pelos sons psicodélicos. Enquanto Andy Warhol e sua trupe viviam desbundados criando pinturas e canções alucinadas, artistas brasileiros despejavam sua criatividade lisérgica também na produção nacional. Mas por aqui a loucura era incômoda e a maioria dos músicos envolvidos nesta ase acabou barrada em gravadoras, ou censurada na hora de lançar suas obras. A repressão, somada ao caráter conservador

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da sociedade da época, acabou relegando muitas bandas ao esquecimento.

“Vou viver bem longe, bem perto do innito Todos To dos vão dizer que saí para ugir E eu vou alar Que saí para mudar Há um novo mundo lá ora É só abrir” (Letra de “É só curtir”, A Bolha, 1970. Proibida pela censura)

Muito se alou sobre a psicodelia estrangeira. estrangeira. A era internacional do LSD trouxe à tona aces obscuras de grupos como os Beatles e os Rolling Stones e revelou nomes como The Doors, Jimi Hendrix, Pink Floyd, Steppenwol, Steppenwol, entre outros. Mas o Brasil não cou de ora do “movimento”: entre o nal dos anos 60 e o desenrolar dos 70 vivemos uma intensa produção artística, especialmente musical. musical. Apesar de extremamente rico, este é um período pouco conhecido e minimamente explorado, pelo menos até o momento. Neste livro estão reunidos alguns contos e causos dos mais importantes nomes da época. Nomes que hoje já não são mais lembrados ou que desviaram a rota de suas carreiras para outros estilos mais populares.

não é uma estrada, é uma viagem Imagine uma sociedade cinzenta. Nessa sociedade, havia um oásis colorido. Pense em paz, amor amor,, Woodstock, Monterey, Monterey, guitarras de Hendrix, tons de Joplin, Greatul Dead, The Mamas & The Papas, Ravi Shankar, Steppenwol, Steppenwol, Beatles, Rolling Stones. Adicione pitadas de excentricidade brasileira: batons vermelhos, roupas berrantes, cores. Flores. Muitas fores. Punhados de lisergia, cogumelos, peiote, LSD, maconha, jurema, ayhuasca. Cabelos compridos, barbas mal eitas, pensamentos

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indomáveis, repressão, repressão, Carlos Castañeda, ditadura, Thimoty Leary. Leary. Jeans desbotados, bordados, roupas usadas, batas indianas, vestidos e saias compridas, tecidos naturais. Cheiro de Patchouli. Misture tudo com liberdade em grandes doses. Muita liberdade. Encha a mão sem medo, pois além de dar gosto, é ela quem dita o caminho. Aproveite os tão renegados instrumentos elétricos e combine com batuques e tambores aro, sanonas, triângulos e o que mais parecer interessante da cultura tupiniquim. Embarque na levada da Tropicália Tropicália e siga sempre rumo à inovação. Contra o arroz e eijão, a macrobiótica. Plantações de inhames devem vir antes dos enlatados. Não simplique! Arranjos em quatro por quatro não são bons sinais. Ouse, invente, transgrida. Por que não um sete por três? O impossível não existe. Solos de guitarra, baixo, bateria, fauta, zabumba ou cítara que passem dos dez minutos levarão o público à loucura. O negócio não é ser pop, mas sim criar um novo jeito de tocar. Junte todas as tribos – hippies, cocotas, caretas, desbundados – este último em maior quantidade. Religiões orientais podem dar um tempero extra. Transcenda-se. Transcenda-se. Pense nisso tudo concentrado, eito em acetato e tomando orma de vinil. Deixe maturando por pelo menos trinta anos, até uma nova geração resgatar o bololô e exigir explicações para tentar entender o que saiu dali. As boas histórias são o que valem e as lembranças dessa época brilhante e colorida carão gravadas para sempre. Agora em orma de livro.

“Não. Não alcançamos a elicidade. Estávamos provavelmente mais perto dela nas décadas abertamente revolucionárias da juventude da minha geração, apesar da violência das repressões externas e internas que então caracterizavam a experiência de estar vivo. Havia um instinto saudável que exigia a transormação, que queria mudar o mundo e a vida em todos os níveis. A primeira maniestação desse instinto oi política mas, em seguida, ela alcançou o comportamento, a postura existencial e a própria própria dimensão espiritual da experiência experiência de viver.” viver.” Luís Carlos Maciel, lósoo da contracultura, no livro “De volta para o uturo”

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dAy tripper: o novo cAnt cAntAr de

ronnie von

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onnie Von era o mocinho ideal para qualquer clichê cinematográco. Lindo, moreno, cabelos lisos, olhos claros. Carreira estável, intérprete de canções românticas, bom moço, apelidado de “Pequeno Príncipe” por ninguém menos que Hebe Camargo, ele era o sonho de todas as garotas, o genro que toda mãe pediu a Deus. Mas quando tudo vai bem, assim como, de novo, nos clichês cinematográcos, a amília eliz sempre esconde um segredo cabuloso, e o monarca em questão escondia uma personalidade inquieta, inovadora, muito além do rapaz que cantava “Meu bem” ao jogar os cabelos para o lado e o charme para o público. Esta não é a história de vida de Ronnie. É a história da psicodelia, ou como preere o moço – hoje senhor, de sua surrealidade.

“Eu me perdi no dia a dia E custei a me encontrar Eu era humano e não sabia Hoje é tempo de acordar” (Trecho de “Eu era humano e não sabia”, aixa do disco Ronnie Von de 1972)

“Quem determinava o que eu devia gravar era o departamento de vendas. Você acredita numa barbaridade dessas?” dessas ?” revela Ronaldo Lindenberg Von Schilgem Cintra Nogueira, o Ronnie Von, sentado ao lado da piscina de sua casa no Morumbi, 40 anos depois de sua experiência psicodélica. Assim oi comandada sua carreira artística desde o odiado primeiro disco de 1966, que levava seu nome. Criado no seio de uma amília rica e tradicional, Ronnie passou a inância e juventude no Rio de Janeiro, onde nasceu. Divertia-se lendo as tirinhas do Flash Gordon que seu pai,

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recortava do jornal O Globo e remontava em uma pasta. Já adolescente, tornou-se aviador a viador pela concorrida Escola Preparatória de Cadetes do Ar de d e Barbacena; depois, entrou na aculdade de economia. Na música, gostava das novidades que seu pai, diplomata, lhe trazia do exterior – principalmente Beatles. Ronnie gostava de cantar; e oi descoberto por João Araújo em uma apresentação no Beco das Garraas, reduto tradicional da MPB carioca. Aos 21 anos, a nos, lançou a bomba à amília: iria a São Paulo tentar a vida como cantor. Foi um escândalo – na época, Ronnie já dirigia os negócios da amília. O pai, em desespero, chegou a dizer “por que você não vai ser jogador de utebol? O nível intelectual é o mesmo”. mes mo”. Sem lenço nem documento, Ronnie veio à São Paulo e se instalou em um hotel simples simp les na praça Júlio Mesquita. As diculdades d iculdades duraram pouco tempo: aos 22 anos, lançou dois enômenos seguidos: o disco “Meu bem”, com o hit homônimo – uma versão de “Girl” da dupla Lennon e McCartney, e o seguinte, chamado “O novo ídolo”, com a antológica “A praça”, de Carlos Imperial. Com LPs comerciais e hits sem grandes pretensões, Ronnie traçava um começo de sucesso. Em 1967, veio “O pequeno mundo de Ronnie Von”, que consolidava seu sucesso com as as garotas de oito a oitenta anos. Ele era um superstar da época, não saía nas ruas sem um pedido de autógrao. Tinha um uturo de sucesso... ou não? No mesmo ano, em novembro, oi lançado Ronnie Von 3, disco que começou, timidamente, a inovar a sonoridade e contou com a participação de Caetano Veloso e dos Mutantes, já companheiros musicais por conta de “O pequeno mundo”. Se o número três abriu caminho, o próximo disco rompeu bruscamente a trajetória do músico. Ronnie Von, lançado no nalzinho de 1968, era experimental, com letras subjetivas, reerências até então desconhecidas. Quase um Sgt. Peppers à brasileira, talvez o primeiro disco abertamente infuenciado pela psicodelia estrangeira. A capa, ultralisérgica, reúne desenhos abstratos, coloridos, e uma oto agressiva de Ronnie, de calças pretas, sem camisa. Desta vez não havia sido o departamento comercial da gravadora o autor da açanha.


Foi uma oportuna brecha no comando da gravadora Philips que possibilitou a experiência psicodélica. O novo presidente, André Midani, executivo musical internacional, estava vindo dos EUA ao Brasil, mas teve um imprevisto e demorou mais que o esperado. es perado. Ronnie tinha um contrato a cumprir e um disco para lançar e, com a idéia de azer uma coisa completamente dierente do que havia eito até ali, o incontestável ã dos Beatles resolveu ser ele mesmo. Com a oportunidade em mãos de gravar g ravar o que realmente gostaria de cantar, Ronnie convocou alguns amigos, músicos, além dos tradicionais que já o acompanhavam em seu programa na TV Record e partiu num vôo cego, uma nova empreitada, sem saber como isso seria recebido pelo público e pela crítica. O cantor havia acabado de voltar dos Estados Unidos, onde se encantou com bandas undergrounds como Frozen Frog e Strawberry Alarm Clock, totalmente desconhecidas por aqui: “aquela música me envolveu e eu já estava com problemas de auto-armação, azendo uma coisa que não queria, as pessoas imaginando que eu osse uma coisa que eu não era, eu era outra. Era desesperador. Era de não conseguir me olhar no espelho, e as pessoas ‘Não, Jovem Guarda’, ‘Não, romântico’, ‘Não, brega’; Em meio â crise existencial do Príncipe, surge então Ronnie Von, disco de 1968, o primeiro da trilogia que contaria ainda com A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre contra o Império do Nuncamais (1969) e Máquina Voadora (1970). *** ,“Olha, eu não sei de onde venho nem pra onde vou,

Ninguém me escuta, eu nem sei quem sou, Eu procurei meu caminho no vento mas ele não soprou, (...)Doa a quem doer, então eu vou cantar, Meu canto é vencer, meu canto... é pra mudar” (Trecho de “Meu novo cantar”, primeira aixa do disco Ronnie Von de 1968)

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Ronnie chegou para Arnaldo Saccomani, um músico de bar que tornou-se um de seus compositores avoritos, e disse “ó, não gosto de nada que eu tô azendo, tá uma barra, então Arnaldo, vamos azer um projeto p rojeto alternativo aí”. Foram então para a Rua Dona Veridiana, Santa Cecília, no estúdio Scatena e começaram a compor compor.. Saccomani ocupavase com as letras das canções, Damiano Cozella, maestro parceiro de Rogério Duprat – que naquela época era mentor dos tropicalistas -, cuidava dos arranjos. Os músicos aziam a sua parte em meio à loucura dos resultados. Uma verdadeira máquina psicodélica em prol de um novo homem. Apesar de não embarcar nas pirações do desbunde, o careta Sacommani oi undo nas viagens musicais e evocou super-heróis e terras inventadas e até o nonsense, com infuências da poesia concreta em suas letras. “Ás vezes não tinham muito signicado, s ignicado, era mais um jogo de palavras, e de rimas. Não queríamos ter uma historinha na letra, partimos pra ter rases ortes. Uma coisa mais estética”, e stética”, explica o letrista. O processo de seleção das músicas para o álbum começava mesmo na mansão de Ronnie, onde baldes e baldes de tas chegavam todos os dias. “Teve uma época em que ensaiávamos sempre na casa dele, mas só cávamos num quartinho para tocar e poucas vezes entramos na casa mesmo. Numa dessas, omos ouvir algumas das tas que ele recebia aos montes. Era assim que uncionava: ele escolhia as músicas, já pensando no disco, e levava para nós trabalharmos em cima disso”, lembra Viucelli Marcio de Mattos, o Marcito, baterista do grupo que acompanhava o cantor na época. Formada por músicos jovens e até adolescentes, a B-612 – cujo nome, aliás, oi inspirado no asteróide em que o Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry vivia – deu as primeiras caras e tons do LP surrealista de 68, como conta o desbundado guitarrista Zé Guilherme, ou, para os íntimos, “Crazy Joe”: “eu meti a mão naquilo lá e comecei a enar guitarra, g uitarra, porque eu era ã de Hendrix e de tudo que tava na ponta do ácido”. O resultado oram as ultradistorções do


instrumento de Zé, que também se aventurava com alguns improvisos como o uso de um plástico entre as cordas, para azer o som de banjo na gravação de “Bar Íris”. A aixa “Bar Íris”, inclusive, era o oposto do que o bom mocismo pedia. Na “Augusta, quase esquina com Jaú”, havia um bar muito aquém dos padrões ricos dos Jardins paulistanos. “Era uma coisa horrível, aqueles ovos coloridos, aquelas sardinhas com o rabo torto na vitrine, cachaça de tudo quanto é jeito, o bar todo vomitado, uma coisa pavorosa. O Damiano Cozella passou por lá e disse ‘eu vou azer um jingle disso aí, que é uma maravilha’. Quando o disco saiu, o bar já não existia mais”, lembra Ronnie. Damiano Cozzela oi o diretor das gravações g ravações e, de acordo com Von, o gênio que criou todos os arranjos do disco. Maestro Maes tro inovador, inovador, pegou o rock cru e misturou a uma orquestra, metais, alas, sons estranhos e silêncios providenciais, em um dos melhores arranjos psicodélicos da discograa nacional. Ronnie, mesmo, participou muito pouco da arregimentação e produção do disco – em algumas aixas, com a música já pronta, ele ia ao estúdio e gravava a voz. Hoje, acha que deveria ter cantado melhor. ***

“O Ontem não existe, no amanhã depois eu penso, o hoje é tudo, enm... pra você e pra mim...” (Trecho de “Chega de Tudo”, canção do disco Ronnie Von de 1968)

Depois de delicadamente preparado no Scatena, o disco “Ronnie Von” chegou às lojas em 1968 – e seu sucesso oi inversamente proporcional às horas dedicadas em estúdio.

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As milhares de ãs, que outrora tinham que ser contidas por seguranças, torceram o nariz. Aquilo tinha sido demais. Os poucos que compraram o disco eram colecionadores curiosos ou admiradores incondicionais que entenderam que “aquilo era um arroubo intelectualóide”, como Ronnie dene. Na mídia, o racasso retumbou. À época do lançamento, apenas dois jornais j ornais – “malucos”, diria o cantor - deram aval a val positivo à pérola psicodélica. O Jornal do Brasil, no Rio, com a manchete “A que veio Ronnie Von” e o Estado de S. Paulo, com duas páginas sob o título “Ronnie, esse desconhecido”. O resto “descia o pau”. “Eu me senti, assim, um ladrão da gravadora. gravadora. ‘Pegou o dinheiro e jogou ora’. Eu era proundamente perseguido por muita gente, era uma coisa sistemática. Tinha um jornalista, não me lembro o nome, que escrevia vinte notícias: dezenove de utebol e uma era sempre ‘Ronnie Von é homossexual’, ‘Ronnie Von é ladrão’, ‘Ronnie Von é não sei s ei o que’”, desabaa. E o racasso refetiu na auto-estima já abalada do não mais “Pequeno Príncipe”. A resposta veio aos poucos, em uma série de pequenos rompimentos. Ronnie já estava de cansado de ser chamado de bom moço, príncipe, lhinho de papai e outros nomes “inconessáveis” por conta de sua origem e aparência. Na época, ele usava cabelos longos e lisos, e uma enorme ranja caída na cara. Duvidoso hoje, mas então ez tanto sucesso que até os garotos do B-652 copiaram o visual, inclusive com erro de passar para dar ao cabelo o aspecto lisíssimo. Tudo o que Ronnie azia, anal, era alvo de críticas. Em uma época, o músico usava um paletó xadrez – e usava muito - até que, em uma coluna social, seu visual oi criticado: “Ele não tira o paletó xadrez”. Irritado, resolveu renovar o guarda roupa e pensou: “pereitamente, agora não vão ter o que dizer, porque vou me vestir só de preto, tudo preto, gravata preta, camisa preta, calça preta, cueca preta, tudo preto”. E oi assim, as sim, por um bom tempo, até que esquecessem de comentar os trajes do ex-Príncipe. Toda essa rejeição trouxe mudanças não só musicais, mas também comportamentais. Bom moço? Não naquele momento. “Você imagina o seguinte, um aviador, aviador, piloto de caça, excorredor de automóvel, que gosta de velocidade, que gosta de outro tipo de coisa, de


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repente passa a ser chamado de um monte de nomes, porque tinha cabelo grande... De repente não era nada daquilo, era uma pessoa normal, uma pessoa comum, um jovem como qualquer um na minha época”, relata. E a época em questão trazia o apogeu das drogas lisérgicas, Woodstock, a contracultura, repressão e tudo mais. No nal da década de 60, início da década de 70, período em que começaram e foresceram as gravações psicodélicas de Ronnie, a liberdade era o mote da juventude. Os Beatles inovaram com Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band e bradavam “Lucy in the Sky with Diamonds”, uma reerência ao LSD discutida até hoje. Tudo isso oi absorvido direta ou indiretamente pelo nosso rebelde incompreendido. *** Apesar da rebeldia ele nunca deixou de ser careta. A viagem oi mesmo só musical – pelo menos, da parte dele e de Arnaldo Saccomani. Os garotos da B-612, não – Zé Guilherme era conhecido como “Zé louco”, por suas experiências canábicas e lisérgicas. A curiosidade existia, tanto que um dia oi assistir a uma experiência eita com LSD em um amigo publicitário. Assistido por psicólogos, o cobaia teve uma bad trip homérica que Ronnie narra com pavor: “ele estava ligado ao a o Timothy Leary, Leary, achando aquilo maravilhoso, resolveu azer a experiência, conseguiu LSD, chamou vários amigos, inclusive eu, e oi azer uma viagem e eu vi o que q ue aconteceu com ele. Ninguém me contou. Ele gritava que estavam saindo morcegos da parede, que estava escorrendo sangue do teto caindo em cima dele, saía gritando, batendo com a cabeça na parede, todo mundo segurando. Uma coisa pavorosa. Ele teve depois disso fashes no meio do caminho, e me contou que uma vez teve dirigindo”. Mas nem puxava um uminho? Nada – para ele, maconha, assim como azer uma tatuagem, era “coisa de bandido”. Cocaína, então, nem conhecia. A única substância que alterava a percepção da realidade de Ronnie era mesmo o uísque, mas de leve – ele enjoava e parava de beber cedo, acudindo os amigos que permaneciam na bebedeira.

À q,     B-612


Mesmo com a reviravolta em sua carreira, Ronnie Von avisa: “Nunca ui underground”. Ele chegou a reqüentar bares e casas alternativas em Nova York, mas no Brasil, não. “Desconhecia literalmente”, como o próprio diz, as bandas banda s underground daqui, que também começavam a enveredar pela psicodelia. Ele, além de não ter tempo - era apresentador de TV e cantor -, também não conseguia sair na rua. Apesar do racasso de vendas, a gura construída por trabalhos anteriores nunca oi abalada de ato. As pessoas questionavam, mas nem por isso deixavam de persegui-lo nas ruas. As ãs não perdoavam um deslize. Por onde andava, Ronnie era aclamado por moças histéricas – mesmo vestido de preto e lançando discos estranhos. es tranhos. Durante uma turnê, em São Luís do Maranhão, Ronnie e os B-612 tocaram para seis mil pessoas. O sistema de segurança eram os guardas locais que, na metade do show, sumiram. “Nós camos de bobeira, totalmente expostos. Nem conseguimos terminar o show, de tanta gente tumultuando e tentando agarrar”, lembra o baterista Marcito. Mas o show em questão nada tinha com a apresentação das novas músicas de Ronnie. O cantor arma que nunca subiram no palco e tocaram as aixas psicodélicas. Somente “Silvia, 20 horas, domingo”, mais palatável ao gosto das massas, oi apresentada poucas vezes. Não havia turnês de lançamento – o disco era colocado no mercado com um coquetel e uma apresentação para os lojistas, apenas. Nessa ase Ronnie também já era apresentador da TV Record desde 66, onde comandava “O Pequeno Mundo de Ronnie Von”, criado para azer rente à Jovem Guarda. “Quem zesse o meu programa jamais pisaria no palco do Jovem Guarda, que era a reerência do programa de juventude da época. Então ninguém queria correr esse risco, mas tinha a Ritinha, o Sérgio e o Arnaldo”. Na alta de outras atrações, “O Pequeno Mundo de Ronnie Von” passou a receber reqüentemente o trio psicodélico, que ainda não havia estourado. “A primeira vez que ui aplaudido de pé na minha vida oi quando cantei com os Mutantes, omos ovacionados, o programa teve uma audiência monumental”, lembra o Príncipe.

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Mais tarde surgiu “Ronnie Especial”, considerado pelo apresentador o melhor de todos os seus programas. “Tínhamos uma equipe muito competente: um hoje é autor de novela, o Manoel Carlos, outro é o Tuta, dono da Joven Pan, e o outro é o Nilton Travesso, que ainda continua na área”, conta Ronnie. “Eles conseguiram me gravar dentro de um avião de 1939, eu voando mesmo e eles correndo com uma câmera de oitenta quilos, com 250 metros de cabo, no teto de uma Chevrolet Veraneio. Todos eles correndo, enquanto eu decolava, para todo mundo ver que aquilo era de verdade. Quando eu pouso tem um padre p adre correndo com toda a guarnição da aeronáutica ae ronáutica atrás dele, ‘Pega! Pega!’. O padre era o Jô Soares. Aí, eu entrava cantando ‘Help’. É surrealista? Não sei, mas ma s é muito criativo”. *** Depois de lançado Ronnie Von, em 1968, Ronnie dedicou três anos à psicodelia – diluída, gradualmente, nos sucessos que culminariam tempos depois em “Cachoeira” de mais um de seus discos homônimos, lançado em 1984, clássico da música brega nacional. Com o comando da gravadora de volta às rédeas, o momentâneo ex-Pequeno Príncipe teve que minimizar sua psicodelia. Seu experimentalismo exp erimentalismo era considerado “ora de hora”, alémTropicália, Tr opicália, mas mesmo assim a ssim relevante o suciente para não ser descartado. André Midani, o presidente da Philips, pediu para “pegar leve”. “Ele contratou um produtor pra conversar comigo, pra diminuir um pouco esse ritmo da maluquice toda e tal, e eu diminuí mais ou menos”, conta Ronnie. Em 1969 lançou A misteriosa luta do reino de Parassempre contra o império de Nuncamais. O título, inspirado na inância do músico, e a capa, uma ilustração detalhista, não negam a infuência psicodélica. Nem o título da primeira música: “De como meu herói Flash Gordon irá levar-me de volta a Ala Centauro, meu verdadeiro lar”. Mas, musicalmente, o disco veio bem mais pé no chão – “Flash Gordon” é uma música simples -, até por conta de crises de criatividade. Arnaldo Saccomani admite que houve uma certa alta de originalidade. “O primeiro LP oi a base de tudo, mas no segundo oi algo meio ‘nós temos que continuar


sendo dierentes’. Enquanto que no primeiro disco tinha sido uma necessidade musical e trabalhamos com a nossa intuição, no segundo já tentamos seguir a mesma linha, arranjando tema”. Com um visual bem menos psicodélico, em abril de 1970 Ronnie lança A máquina voadora. A capa, uma oto sexy que exalta os belos traços e olhos verdes do rapaz já escancara a volta aos braços das ãs. O disco dis co não nega as origens rockń roll, com canções como “Viva o chopp escuro”, mas se concentra nas canções românticas. Repaginadas Repa ginadas e com um toque psicodélico, claro, mas já bem dissolvidas no que viria depois. Gradativamente, Ronnie Von voltou a ser o que era, mas com “mais credibilidade e dignidade”. Se antes o astro era visto como comercial e simplório, depois do surto conceitualmente lisérgico ele oi reconhecido como popular, sim, mas também antenado

c    1968

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na vanguarda. Passaram-se os anos e o que encalhava nas prateleiras começou a ser disputado a tapa por colecionadores. Os discos da trilogia, especialmente o de 1968, são considerados relíquias da música brasileira e ganharam status de lenda – especialmente por todo o contexto em que oram produzidos. Quase quarenta anos depois de lançados, com a popularização dos downloads, houve um súbito sucesso – Ronnie passou a ser objeto de culto não só nos colecionadores antenados na psicodelia nacional, mas também, entre a molecada. Em 2007, a gravadora Universal, que herdou o acervo da Philips, aproveitou o entusiasmo para lançar um box com o disco de 1968 – inexplicavemente, com a aixa “Bar Íris” suprimida - e, para tristeza de Ronnie, com o odiado primeiro disco. No mesmo ano, Ronnie ganhou um tributo musical e oi regravado por várias bandas independentes, na coletânea virtual “Tudo de novo”, organizada pela jornalista Flávia Durante, que explica como oi o processo: “A idéia surgiu na comunidade sobre o cantor que criei no Orkut em 2004. Selecionei as bandas, cobrei a entrega dos prazos, revisei os textos, separei os contatos, procurei um servidor gratuito, implorei aos amigos por um design na brodagem... Por isso demorou tanto pra sair. O site Recie Rock oereceu a hospedagem e o belo design d esign oi eito pelo gaúcho Gabriel Von Doscht, que também participa pa rticipa do tributo com a banda Os Vilsos”. Hoje, triunante – e cansado, de tanto dar entrevistas para a mídia abruptamente interessada em sua ase psicodélica -, ele diz: “a importância desses discos é que eu consegui me vingar de todo mundo”.


POR FAVOR,

sucesso

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io de Janeiro, início da década décad a de 70. A Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, estava lotada por uma multidão em polvorosa, com todos os olhares voltados para uma única direção: um palco, de onde cinco marmanjos cabeludos, com 20 anos de idade mal completados, comandavam um verdadeiro espetáculo. O som que saía das caixas e arrebatava o público pelos ouvidos tinha uma personalidade própria – era criativo e tecnicamente rebuscado, algo entre um rock’n’roll atrevido e o tropicalismo pulsante, acompanhado por letras que cantavam sobre s obre o sucesso, lírios, planadores e impressões digitais. Autenticamente psicodélico. De repente, um delegado aparece apa rece e manda parar tudo porque ali só tinha maconheiro; a apresentação acabou sendo interrompida, apesar dos protestos do povo indignado. Cazuza estava lá e este oi o show que mudou sua vida, conorme ele mesmo teria dito ao guitarrista-base do quinteto, tempos mais tarde. “Ele alou pra mim que, quando viu a gente tocar ali, decidiu que era isso o que queria azer”, lembra hoje o músico cinqüentão, que naquela época provavelmente não tinha a menor idéia de que sua banda estava prestes a parir um novo gênero musical: o rock gaúcho.

Em alta delidade, Eu vejo você, Você nem ouviu, O meu novo LP, Estéreo, estéreo, Sou Planador, Aéreo (Trecho (Tre cho de “Planador”, do disco Por Favor Sucesso, de 1969)

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Os tais marmanjos cabeludos que deslumbraram Cazuza naquele dia eram Fughetti Luz, Pekos, Edinho Espíndola e seus primos, os irmãos Marcos e Mimi Lessa. Juntos eles ormavam o Liverpool, grupo que tinha suas raízes encravadas em Porto Alegre, mais precisamente no bairro operário do IAPI, na zona norte da cidade: “Era um bairro b airro eito pelo Getúlio Vargas, parecia uma coisa inglesa. Super dividido, arrumadinho, campo de utebol, sede de clube, árvores, tudo organizado”, lembra Mimi, o caçula, que na verdade se chama Milton. Filhos de um alaiate que adorava cantar, cantar, netos de um compositor e sobrinhos de um músico prossional que tocava cavaquinho, ele e Marcos cresceram encantados com as serenatas que rolavam na sala de casa e começaram logo cedo na música. Aos 12 anos de idade, Mimi já ganhava seu primeiro dinheiro dando aulas de píaro – um tipo de fauta – para os colegas de escola. Adolescentes, tocavam juntos na banda The Best: “Daí para azer o Liverpool oi um pulo. Houve uma passeata muito amosa em São Paulo da MPB contra a guitarra e aquilo despertou a gente. A gente tocava violão e, quando veio a guitarra, queríamos ter uma”, conta Marcos.

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Quando o The Best acabou, em meados da década de 60, Mimi oi convidado a tocar em outros dois grupos: “Um me oerecia guitarra Fender, não sei o quê, e o outro me oerecia azer o que eu queria”. Ficou com o segundo, o tal do Liverpool, mas com a condição de levar consigo o crooner Marco Antonio Luz, seu vizinho de rua. Vítima de paralisia inantil, o garoto era conhecido como Fughetti e havia acompanhado Mimi em um estival, na época em que já “metia a cara e queria estar onde havia música”, como diria, anos mais tarde, em depoimento ao livro Fughetti Luz - O rock gaúcho, de Gilmar Eitelvein. “Ele tinha diculdade de cantar numa banda porque tinha uma deciência ísica, então os caras não davam oportunidade pra ele. Ainda mais em Porto Alegre, uma cidade onde louco é muito louco e careta é muito careta”, explica Mimi, que não demorou muito para tomar o Liverpool para si: seu irmão logo entrou na brincadeira e os integrantes originais, enrascados em problemas com drogas, oram expulsos para dar lugar ao primo Edinho e ao amigo Vilmar Santana, o Pekos. *** Descobrir o rock não era tarea das mais áceis naqueles tempos e Porto Alegre, apesar de capital, ainda era provinciana. Os discos internacionais chegavam lá mais atrasados do que no Rio de Janeiro ou São Paulo, então o jeito era conhecer alguém que trouxesse os LPs direto do exterior. exterior. “A gente escutava ‘Olha, ulano de tal toca um monte de Led Zeppelin, vamos na casa dele’, e íamos na casa do cara pra ouvir o vinil do Led Zeppelin. Traziam de ora e a gente corria nas casas casa s das pessoas pra saber, ‘olha o que saiu, o Emerson Lake and Palmer, progressivo, ritmo composto’, aquilo oi enlouquecedor”, lembra o mais novo dos irmãos Lessa. Com o rock’n’roll ainda embrionário no Rio Grande do Sul, sem espaço nenhum na televisão ou no rádio, bandas como o Liverpool acabavam apresentando seus covers de Cream, The Who, Beatles, Rolling Stones e The Birds, entre outros, nos clubes e bailes da cena underground.

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Com Fughetti nos vocais, Edinho na bateria, Pekos no baixo, Mimi na guitarra e Marcos na guitarra-base, todos ainda adolescentes, o grupo mergulhou num circuito incansável de estas e domingueiras que apresentavam quatro ou cinco atrações seguidas, sendo que cada uma delas, por sua vez, passava por vários locais dierentes na mesma noite. “A cidade toda entrou num clima assim, era quase uma competição saudável entre a moçada. Tinha um mercadinho, você cava tocando, dava um dinheirinho. Isso ainda na época do sonho, achava que lá era a Caliórnia!”, conta Mimi. Para se dierenciar dos outros, o Liverpool incluiu em seu repertório canções brasileiras, principalmente as tropicalistas. No livro de Gilmar Eitelvein, Fughetti arma que gravava Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Edu Lobo direto da transmissão dos grandes estivais na televisão. No dia seguinte, já ensaiava com os companheiros as músicas na língua materna, enquanto o resto dos jovens preeria as letras em inglês: “Lutei pra cantar em brasileiro (sic) quando queriam que eu cantasse em inglês música de outros. (...) Eu procurei azer a minha parte, descobrir como se az rock’n’roll em brasileiro usando nossas gírias, nossas palavras”.

O Liverpool passou a lotar bailes e estas toda semana com arranjos próprios criados para os sucessos do tropicalismo, sempre trazendo alguma novidade para agradar ao público cada vez mais el. E oi nesse momento que a banda decolou de vez: a espontaneidade com que tocavam em cima do palco, as batidas dançantes e sua característica levada tupiniquim rapidamente garantiram a conquista de um espaço espa ço cativo na cena da contracultura gaúcha. “A ascensão do Liverpool oi meteórica, em 68 já era uma banda muito conhecida em Porto Alegre. A gente tocava na televisão num programa de sábado [o GR Show, apresentado por Glênio Reis no canal 12] e também no interior do estado”, estad o”, recorda Marcos Lessa. A primeira grande consagração dos garotos veio com a vitória no II Festival Universitário de Música Popular,, em que apresentaram “Por avor sucesso”, escrita por Carlos Hartlieb. O prêmio? Popular Participar do IV Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro.


Procurei você pelo mapa da cidade, Perguntei seu nome. E quilômetros depois eu te perdi. Por avor avo r, Estou muito assustado, Com você Ouça essa nova música, Música aaaaaa. Que será sucesso durante um mês. (Trecho de “Por avor sucesso”, do disco de mesmo nome, de 1969 ) “Foi a maior vaia que tomei na minha vida”, arma Marcos sobre o show no ginásio do Maracanãzinho, o primeiro que o Liverpool aria longe dos palcos gaúchos, já em 1969. Apesar da recepção negativa do público, a sonoridade original de “Por avor sucesso” se destacou no FIC e o grupo oi convidado pelo selo Equipe para gravar seu primeiro LP. Este oi o momento em que, motivados pela composição de Hartlieb, os meninos sentiram denitivamente a necessidade de largar os covers e azer suas próprias músicas. Com a mesma usão de infuências tropicalistas e roqueiras de antes, as pirações e viagens musicais que recheariam o disco começaram em Porto Alegre, numa casa de d e madeira alugada na perieria, no bairro Sarandi: “Era uma bagunça, uma loucura, não tinha nada lá dentro. A gente só ia lá pra p ra ensaiar, azer sacanagem com as meninas e compor nossos noss os trabalhos autorais”, conta o guitarrista, que era o principal arranjador da banda. O cantor, cantor, por sua vez, assumia também o papel de compositor e escrevia a maior parte das letras, enquanto os outros integrantes se concentravam mais na harmonia de seus instrumentos. Em geral, no entanto, as criações eram e ram resultado de um trabalho conjunto

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de todo o grupo, já em sintonia com o estilo barroco que marcou ma rcou o movimento do psicodelismo na música universal. Segundo Mimi Lessa, a ligação deles com as outras bandas psicodélicas da época estava na orma de compor as canções: da construção da introdução até as pontes, o ormato, o acabamento, tudo era pensado nos mínimos detalhes, como se ossem verdadeiras obras. Para Fughetti, as dierenças de gostos entre eles oram essenciais para a riqueza musical do repertório: “Mimi era mais MPB, eu mais ma is rock’n’roll, Edinho e Marcos mais jazzistas, (...) era uma soma”, comenta o vocalista no livro de Eitelvein. Do reúgio no Sarandi, os jovens músicos seguiram direto para os estúdios do Rio de Janeiro, nalmente saindo de baixo da barra das saias de suas mães para viverem sob as asas da gravadora, num condomínio na Barra da Tijuca: “Na época eles apadrinhavam, eram mãezona, te pagavam hospedagem, te botavam num apartamento a partamento pra você morar, morar, pagavam diária pra você comer, colocavam você nos estivais, levavam maestro”, explica Mimi. “A gente era moleque e eu nem sabia quanto era a conta da Light, porque sempre tinha um empresário que pagava. Não era o meu departamento, eu não tinha que cuidar disso. Era muito bom, muito eliz. Só música, saca, e loucura”.


Olhai, olhai, Os lírios dos campos, Olhai, olhai, Vossos lhos tombando no asalto. Olhai, olhai, A vitrina, menina dos olhos, Olhai... (Trecho (Tre cho de “Olhai os lírios do campo”, do disco Por Favor Sucesso, de 1969)

O primeiro disco do Liverpool, Por Favor Sucesso, oi lançado em 1969 pelo selo Equipe, com músicas dos amigos Carlos Hartlieb, Laís Marques e Hermes Aquino, além de criações próprias do grupo – “as mais ingênuas são as nossas”, comenta Edinho Espíndola. O jornalista, produtor musical e anático por pérolas do psicodelismo brasileiro Fernando Rosa, mais conhecido como Senhor F, escreveu na revista Show Bizz que o LP “reúne um conjunto de ótimas composições, com instrumental acima da média e letras inteligentes e expressivas do cotidiano da juventude da época. Destacam-se (...) as ultra-psicodélicas ‘Olhai os lírios do campo’, ‘Impressões digitais’ e ‘Voando’, todas com um impressionante trabalho de guitarra – com distorção no talo e harmonias rebuscadas”. Para ele, o grupo que transitava “na ronteira do tropicalismo com a psicodelia universal” contava com “um dos mais importantes e menos valorizados guitarristas do rock nacional”; infuenciado por Santana, Mimi Lessa era, na avaliação avalia ção de Senhor F, “da estirpe de Lanny Gordin e Sérgio Dias, (...) brilhante no disco e mais ainda nos memoráveis e, digamos, coloridos shows que a banda promoveu”. Terminadas as gravações, o Liverpool invadiu as noites cariocas como uma novidade incômoda para as alas mais tradicionais da MPB. “Tocamos na Sucata, na Lagoa, onde só aziam shows artistas consagrados, mas eles tinham um certo preconceito com guitarra

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e cabeludo”, conta o baterista Edinho. As ousadias sonoras de Mimi denitivamente não passavam desapercebidas naquela cena: “Os caras da MPB nos achavam uns babacas, mas eles eram caretas pra gente. Pô, o Milton Nascimento... eu me lembro dele tocando viola antes do nosso show, tomando um litro de conhaque, bêbado. bê bado. E eu que era careta. A Elis era maravilhosa, mas era uma careta, a gente não se identicava com aquilo”, explica o guitarrista. Seja como cabeludos viados ou alienados políticos, os meninos gaúchos encontraram-se imediatamente deslocados no início de suas s uas carreiras longe de casa; como diz o caçula dos irmãos Lessa, “não era ácil usar aquele cabelo”. Apesar das diculdades de se azer um rock’n’roll original no Brasil no começo dos anos 70, o Liverpool alcançaria seu auge a uge impulsionado por outros projetos que seguiram o lançamento de Por Favor Sucesso. Ainda bancados pela Equipe, eles oram os responsáveis por toda a trilha sonora do lme Marcelo Zona Sul, um cult da época. Logo depois, oram convidados a participar em Porto Alegre do Som Livre Exportação, um programa da Rede Globo que reunia artistas como Ivan Lins, Gonzaguinha, Elis Regina, Som Imaginário e César Costa Filho, entre outros. “Era a nata da música brasileira e a gente arrasou”, arma Marcos Lessa. O sucesso da apresentação no Rio Grande do Sul resultou num contrato xo, ou seja, seja , em uma exposição constante na televisão que acabou por projetar a banda num cenário nacional. No livro Fughetti Luz – O rock gaúcho, Gilmar Eitelvein escreveu sobre a atuação

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no programa: “Os músicos viajaram por todo o país, pa ís, ampliaram seu público, conviveram com grandes nomes da MPB, tornaram-se amigos íntimos dos Mutantes e desbundaram”. Em 1971, com o nome de Liverpool Sound, o quinteto trocou de gravadora e lançou um compacto simples, produzido por Nelson Motta, com as músicas “Fale” e “Hei menina”, que chegou a tocar bastante nas rádios. rádios . “O Nelsinho é um cara sedutor e conseguiu que a gente osse para a Phillips. E nessa época nós camos muito mais rebeldes”, recorda Mimi. Num momento em que a juventude reprimida pela ditadura militar e pela sociedade conservadora brasileira buscava se reugiar nos ideais libertários do movimento hippie, o que aconteceu com os cinco rapazes do IAPI não oi dierente: “A gente participava ativamente, tinha uma postura psicodélica, achava que a mudança do mundo viria por paz e amor, e nossas músicas começaram a refetir isso”, explica o guitarrista-base da banda. Para ele, um dos shows mais especiais daqueles tempos oi o Liverpool Sounds & Sons, no teatro Leopoldina, em Porto Alegre. Além de reunir recursos audiovisuais, como lmagens do quinteto em lugares da cidade onde cresceram, o espetáculo oi um dos melhores exemplos do que eles eram capazes de azer em cima de um palco, tocando com uma anidade incrível, quase que por telepatia. “A gente começava com uma levada que não tinha combinado e aquilo virava uma evolução enorme”, descreve Marcos. “Quando começou o psicodelismo mesmo, tocávamos várias versões da mesma música no mesmo show. A gente tava muito doido, queria se expressar e não importava mais nada”. Se no resto da cena underground do Brasil a banda já era disputada, na capital gaúcha era ácil car mais gente para ora das apresentações do que para dentro. Lá o Liverpool era muito querido e lotava os lugares com ãs orgulhosos, anal, eles eram os guris que representavam o Rio Grande do Sul em todo o país. “Nós tínhamos uma base amiliar muito orte”, arma Mimi Lessa. “Mas aí começamos a desbundar muito, a umar umar,, a azer experiências com drogas, LSD, coisa que no Sul a gente não azia”.

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Eu sei Tanta coisa, eu sei, Se você não sabe é melhor saber saber,, Venha me dizer (Trecho (Tre cho de “Tão longe de mim”, do disco Por Favor Sucesso, de 1969)

Este oi o começo do m para o grupo: apesar do relativo sucesso que haviam ha viam alcançado, o disco de 69 não vendeu bem e eles ainda se desentenderam com a Globo quanto aos rumos a serem seguidos no Som Livre Exportação. Acabaram perdendo o contrato com o programa e também com a Phillips. A verdade é que, jovens e ingênuos, os músicos não tinham muito controle sobre sua carreira e acabaram totalmente duros, sem a grana da gravadora para continuar vivendo em Copacabana. O jeito oi morar por alguns meses em Nova Friburgo, para tentar criar um material novo – através de um conhecido, Carlos Kohler, Kohler, a banda se mudou para um sítio onde antes existia uma comunidade hippie, que serviu de cenário para o lme Geração Bendita em 1970. Os contatos eitos no Rio de Janeiro, com pessoas e artes bem dierentes das conhecidas em Porto Alegre, haviam aberto a cabeça dos gaúchos para as viagens por meios químicos, especialmente a maconha e o ácido lisérgico. Para Marcos, pessoalmente, aquilo oi um despertar, um encontro encontro com Deus. Seu irmão concorda que as drogas permitem uma percepção para enxergar algo que não é possível ver logo de cara: “Você pode azer uma coisa incrível mas, quando passa o eeito, toda aquela cor volta a ser preto e branco. É depressivo, muitas pessoas não voltam... e nós entramos de cabeça nisso”, explica o guitarrista. “O Pekos, por exemplo, era totalmente careta, só queria as gatinhas. ‘Tô bonito, tô cheiroso, tô gostoso’, as gatas voavam em cima. Mas aí um dia ele umou um orte e entrou na viagem, mudou radicalmente. Começou a escrever, a azer uma anação dierente no violão, tocava uma gaita, pirou”.

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A rotina natureba em Friburgo consistia, basicamente, em tomar banhos de cachoeira pelados e criar música o tempo todo. “Era bem aastado, não tinha nem luz. Para ensaiar a gente ia num outro sítio, onde tínhamos um equipamento muito bom, igual ao dos Beatles, um dos melhores na época”, lembra Edinho. “Ficava tudo num celeiro, tinha que tirar o cocô de vaca, limpar, e aí azíamos o maior som”. O único meio de contato dos garotos com o mundo civilizado era uma Kombi, que os levava para as cidades próximas p róximas onde se apresentavam de vez em quando. Lá na serra, o baixista Pekos vivia numa espécie de mantra: ia para a cachoeira de manhã, voltava, pegava o violão e a gaita, cava o resto do dia tocando. “Era um processo de loucura e você ia enlouquecendo junto. Eu detestava, sou urbanóide, coca-cola. Aquilo quase me deprimia e pra banda também não oi bom”, arma Mimi. Certa noite, Pekos oi para a cachoeira e não voltou. Em seu quarto, os amigos encontraram seu baixo e todas as letras que havia escrito, junto com um bilhete explicando que tinha ido embora porque não agüentava mais. “Pegou o violão, a mochila, uma roupa, deixou toda aquela vaidade, coisa de hippie mesmo, e se mandou”, conta o guitarrista. “Voltou 45 dias depois, sem ninguém saber onde ele andava. Magro que nem um mendigo, preto de sol, sujo, e o olho lá no undo, meio maluquete. E comeu, comeu, comeu”. Nesse meio tempo, os outros quatro integrantes do Liverpool oram parar na cadeia de Nova Friburgo. O estilo de vida que se levava naquele sítio, desde a época das lmagens de Geração Bendita, incomodava a vizinhança conservadora. “Era um movimento hippie autêntico, mas eles não entendiam, achavam que a gente estava azendo a revolução. Era uma revolução cultural, criticávamos a alsa moral da sociedade em relação ao capital e a várias outras questões”, explica Marcos. Os gaúchos ga úchos oram avisados de que a polícia ia bater lá um dia, e realmente bateu: como não encontraram nada, orjaram meio quilo de maconha na casa e prenderam todo mundo. Na delegacia, zeram com que os músicos assinassem uma nota de culpa e, até os empresários lá do Sul aparecerem para ajudar, um mês se passou.


“O que me salvou oi justamente a música. Eu tocava uma fauta de bambu, tocava samba, zemos amizade, éramos os caras intocáveis”, relembra Edinho. Justamente nesse período, o baixista Pekos voltou de suas andanças e o juiz concedeu uma licença para a banda realizar dois shows que já estavam marcados, sempre com a escolta da polícia, é claro. Os garotos ainda oram a julgamento e acabaram sendo absolvidos: “Provaram nossa inocência porque o umo estava deteriorado, moado, se osse nosso não estaria assim”, explica o baterista. “Isso oi uma coisa muito louca, que nos deu uma outra visão, aí a í viemos embora para o Sul. Chega de se aventurar, aventurar, vamos voltar pra estrada, pra metrópole”.

No entanto, o retorno a Porto Alegre não oi suciente para que o Liverpool superasse o baque sorido em Nova Friburgo. O quinteto ez algumas apresentações na capital gaúcha, mas não agüentou segurar a barra b arra do desbunde em plena ditadura militar. militar. “O Pekos voltou a tocar e a ser louco de d e novo. Começou a se drogar, vendia umo, e nós meio que junto. Aí ainda prenderam os roadies com a nossa Kombi cheia de maconha, a polícia oi na casa dos meus pais e disse ‘Senhora, vaza que isso aí...’”, conta Mimi. Cabeludos e loucões, os músicos passaram a ser perseguidos o tempo todo, acusados até de corrupção de menores – “era uma loucura, porque eu era menor também!”, arma Edinho. “Foi cando muito diícil continuar tocando. A gota d’água oi a gente assim, reunidos pra ver como seriam os cartazes do show, de repente a polícia invade tua casa, casa , omos algemados a coronhadas. E pô, que loucura, só porque tô azendo música, não sou bandido”. Pela primeira vez desde que começaram a tocar juntos, os cincos garotos se separaram e cada um seguiu seu s eu caminho. *** Edinho e seus dois primos p rimos voltaram para o Rio de Janeiro, Pekos cou no Sul e Fughetti se mandou com a esposa de navio para a Europa, onde iria conerir ao vivo e a cores tudo

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aquilo que havia escutado em seu quarto quarto no IAPI. Entretanto, não demorou muito para os amigos voltarem a se aproximar a proximar,, pouco a pouco: em 1973, 1973 , Mimi e Edinho estavam em em Porto Alegre visitando a amília, quando resolveram azer uma jam session para tirar algum dinheiro. Chamaram Pekos e o guitarrista Zé Vicente Brizola, lho do político Leonel, e lotaram o Clube da Cultura, no bairro Bom Fim, como lembra Mimi: “A gente ainda tinha um nome por lá. Então peraí, vamos ganhar mais um dinheirinho, mais uma semana aí”. Junto com outro músico local, Cláudio Vera Cruz, eles passaram a se apresentar a presentar no circuito underground da capital gaúcha mostrando um rock bem dierente dos tempos temp os de Liverpool, mais progressivo, pesado e denso, com infuências como Rolling Stones, Yes e Pink Floyd; assim começava a história do Bixo da Seda.

Não espere por ninguém, Venha logo sentir o sabro de ser; Chore ou ria é com você, Isso é como teria que ser Apesar do interesse gerado no Rio Grande do Sul, a nova banda ainda era muito inconstante e Mimi resolveu voltar ao Rio de Janeiro, onde tocava com outros dois grupos. Mas não deixaram: “A mulher do nosso empresário oi me buscar porque eu tinha um contrato para cumprir,, senão ia ter problema de cumprir d e justiça”, explica o guitarrista. “Eu disse ‘meu deus, então eu vou, mas só se meu irmão or também!”. Marcos, que naquela época já criava uma lha pequena no Rio, topou a idéia e embarcou junto com o irmão num ônibus para Porto Alegre. Chegando lá, oram direto para o ensaio e depois para a casa da mãe; só tiveram tempo, porém, de tomar banho e jantar, pois quando terminaram de comer já havia um ônibus parado na porta, esperando para levá-los ao tal compromisso contratual: um estival de rock no balneário de Praia de Leste, no Paraná.


“Nesses estivais grandes, Woodstocks brasileiros, todo mundo tomava ácido á cido e umava baseado, e nessa época a Rita Lee se apresentou com o Tutti Frutti”, lembra o mais velho dos irmãos Lessa. Além A lém da ex-Mutantes, também tocaram na ocasião o Terço e o Som Nosso de Cada Dia, enquanto o Bixo da Seda estava lá para representar o Rio Grande do Sul. Segundo Mimi, o público não gostou g ostou muito das outras atrações: “A Rita e o Terço chegaram com aquelas coisas progressivas e nós chegamos com uma batida dierente. Aquilo era um rock meio dançante, pulsante, e nessa levada desbancamos todo mundo na Praia de Leste. Arrebentamos com o lugar, não teve pra mais ninguém, o povo veio abaixo quando a gente tocou!”, conta o guitarrista. Mais tarde, no quarto do hotel, os gaúchos ga úchos do Bixo ouviram elogios impressionados de todos os músicos, de Rita Lee e até da empresária dela. Mimi, que deveria voltar para pa ra o Rio de Janeiro no dia seguinte, oi conversar com seu empresário:

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- Vocês não podem acabar com essa banda de jeito nenhum! -, suplicou o homem. - Cara, vocês têm que apresentar o mínimo de condições pra gente azer isso. - O que vocês querem? - Quero uma casa na praia, pra car ensaiando até estrear em Porto Alegre! -, respondeu o guitarrista. - Fechado! Mimi oi para o Rio com o irmão, pegou seu amplicador e se despediu dos companheiros de lá. A essa altura, Fughetti já tinha voltado da Europa: “Na Praia de Leste L este ele subiu no palco com uma fauta que tinha trazido, só pra dar uma canja, não nã o era o Liverpool”, explica o guitarrista. “E nós levantamos o Bixo da Seda sem ele”; e sem Pekos também. O baixista, responsável pelo nome do novo grupo – “não é o bichinho da seda, é tipo ‘me dá a seda, pra enrolar o baseado’”, esclarece Edinho –, não havia voltado da viagem no desbunde. Mimi Lessa az uma comparação com os Rolling Stones: Fughetti era como Mick Jagger, o homem que estava na rente, compunha, cantava e cava como autor, enquanto Pekos era um tipo Brian Jones, que permanecia lá atrás, mas também compondo muito. “Era um cara que eu conhecia há anos, conava, aí ele alava pra mim: ‘Olha, encontrei Paul’ – Paul McCartney – ‘lá no m da linha’, que era um lugar que a gente chamava. Aí pô, você se assusta né, ele começou a car maluquinho”, ma luquinho”, recorda Mimi. Estabelecidos na casa de praia prometida pelo empresário, os irmãos Lessa, Edinho Espíndola e Cláudio Vera Cruz mergulharam numa rotina de ensaios e logo estavam agitando o circuito musical de todo o Rio Grande do Sul com seu Bixo da Seda. “Estávamos mais maduros e tínhamos uma ormação de músicas próprias muito orte”, arma Marcos, que assumiu o papel de baixista. “Fazíamos uns shows muito perormáticos, mandava uns caras azerem uns grates atrás, uns cenários do nada, umas selvas com árvores mortas, a gente não tinha grana e se virava”. Um artigo do jornal Zero Hora, guardado até hoje pelo baterista do grupo, descreve uma das primeiras apresentações na capital gaúcha:


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“(...) tente lembrar, na memória ou na imaginação, uma certa sexta-eira de março de 1975, quando Mimi e sua guitarra, Marcos e seu baixo, Edinho e sua bateria, Cláudio Vera Cruz e sua guitarra também, quase botaram abaixo o Teatro de Arena, no dia de estréia das Rodas de Som [shows coletivos comandados por Carlos Hartlieb]: Hartlieb]: mais de 200 pessoas se espremendo lá dentro, outras 500 berrando para entrar”. Até o nal de 75, Fughetti Luz acabou entrando para o Bixo da Seda e a gravadora Continental oi buscar os garotos em Porto Alegre, para gravarem seu primeiro disco; a história se repetia como nos tempos do Liverpool. Sem Cláudio Vera Cruz – que saiu da banda após alguns desentendimentos –, Mimi, Marcos, Edinho e Fughetti oram para o sítio do ex-Bolha Renato Ladeira, em Itaboraí, no Rio de Janeiro, para terminar de criar o material para o LP. O cantor e o guitarrista continuaram como os principais compositores: “Eles colocavam as letras na roda e a gente ia dando idéia, aí os arranjos pintavam com a banda toda tocando”, descreve o baterista. Em 1976, o Bixo da Seda se trancou nos estúdios cariocas para gravar o disco homônimo, com Ladeira introduzindo o som do órgão. Na capa, o desenho de um objeto que poderia ser tanto um alto-alante quanto um disco voador e, na parte interna, um retrato da casa dos meninos, o bairro do IAPI. Para Mimi Lessa, a gravação não traduz o que a banda realmente era em cima dos palcos: “O show do Bixo era pra arrebentar! O Fughetti tinha uma úria cantando, parecia um trem que te levava. Não era uma questão de voz, era uma loucura muito orte, tanto que ele cantava três músicas e na quarta já não agüentava mais, de tanto gritar”. O lançamento do LP levou o quinteto gaúcho a se apresentar por todo o Sul e Sudeste do país; um dos espetáculos mais memoráveis oi realizado num estival em Saquarema, no litoral fuminense, como descreve Marcos: “Foi antástico, começou a chover muito, caíam raios, a gente subiu no palco e a chuva parou. O tempo começou a abrir, com arco-íris, a gente tocando num cenário mágico, aquele clima maravilhoso... esse show merecia um disco”.


Dali até o nal dos anos 70, o Bixo da Seda continuou existindo com a mesma ormação do antigo Liverpool – exceto pela ausência de Pekos –, amiliar e íntima. “Eu como músico só tinha tocado com eles, quando toquei com outras pessoas não sentia aquela energia”, explica Edinho. “Nós tínhamos uma interação muito grande, de tocar e nem precisar se olhar. Até hoje acontece isso”. Para Mimi Lessa, o Liverpool era mais tropicalista, alegre e brasileiro. “Mais nossa inância, juventu juve ntude, de, puber puberdade dade quas quase, e, eu mal sabi sabiaa o que que era era uma uma mulhe mulherr. Era Era mais mais sonhad sonhador”, or”, desc descrev revee o guitarrista. “Já o Bixo da Seda era uma porrada, um rock enérgico, pesado, distorcido”. No livro de Gilmar Eitelvein, Fughetti também compara as duas bandas: “Entendo que o Bixo oi o estágio mais evoluído do Liverpool, estávamos chegando aonde queríamos, queríamos, viajando na composição, criando cada vez mais e melhor, trabalhando com compassos quebrados e dierentes. O Bixo era mais pesado, mais roll, mais minha praia”. O baterista Edinho lembra que, quando ele e os companheiros radicalizaram em sua segunda ormação, as pessoas chamavam aquilo até de rock tupiniquim. A realidade é que, passados quarenta anos, o Bixo da Seda é reconhecido como o principal criador do rock gaúcho, ao lado dos Brasas e dos Cleans. “Virou um estilo, ‘ah, toca tipo rock gaúcho’. Nós que levantamos essa bandeira, esse rock gaúcho quem ez omos nós!”, exclama Mimi. Apesar do nome, seu irmão Marcos acredita que o regionalismo do Sul não infuenciou a obra do grupo, mas sim que aquela oi a orma que eles encontraram para se expressarem de uma maneira brasileira, com suas próprias composições. O certo é que, tanto como Liverpool ou como Bixo da Seda, esses músicos oram os responsáveis por abrir as portas do rock para muitas gerações de rebeldes de Porto Alegre e arredores. “Lá você tinha aquela educação antiga gaúcha, aquela repressão que acaba virando uma resposta contrária, porque a gente queria arrebentar mesmo, [e grita, aaaah]! Nada como o rock para poder traduzir isso”, explica Mimi. Com a chegada da disco music no nal daquela década, o rock entrou em decadência e o Bixo da Seda oi perdendo o espaço que tinha conquistado. O cantor Fughetti, idealista e mais

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radical, não aceitava azer jingles ou trabalhos comerciais, mesmo que não tivesse dinheiro para comer. Quando os colegas conseguiram um emprego acompanhando As Frenéticas, ele retornou de vez para o Rio Grande do Sul. Mimi, Marcos e Edinho também não agüentaram por muito tempo aquela situação, anal, já eram homens crescidos, cada um com sua vida particular e amílias para sustentar. Os irmãos acabaram se estabelecendo no Rio de Janeiro, enquanto o baterista voltou a viver na capital gaúcha, onde está até hoje. O baixista Pekos, por sua vez, não agüentou o tranco do desbunde e morreu no início da década de 90. Os outros integrantes continuam mantendo contato e chegaram a se reunir como Bixo da Seda em algumas ocasiões. Em 1996, oram convidados pela preeitura de Porto Alegre para se apresentarem na inauguração de um teatro, acompanhados de uma banda marcial de colégio – “aquilo parecia um sonho, o público adorou, oi um espetáculo”, arma Mimi. “Dois anos depois, dividimos o palco com o Luis Carlini, porque o Fughetti é louco por ele, ama desde criança. E nós lotamos aquilo!”. Depois disso, o cantor preeriu não voltar mais a se apresentar com o grupo. Em 2006, os irmãos Lessa e Edinho Espíndola zeram alguns shows no Rio Grande do Sul com um substituto nos vocais, aprovado por Fughetti. “A gente tem muita história lá, existem várias músicas nossas que a galera de Porto Alegre canta e não oram gravadas até hoje, pois não coube tudo no LP”, conta Mimi. Ele, Marcos e o primo baterista ainda têm vontade de retomar o trabalho de criação para um segundo disco do Bixo da Seda – resta convencer o amigo Fughetti e algum nanciador para bancar essa viagem psicodélica no tempo.


AlquimistAs do

som

“O Módulo 1000 era único: uma mistura de peso e psicodelia com ris abundantes, guitarra guitarra distorcida, órgão com caixa Leslie, sintetizador, baixo rme e uma bateria que me lembrava Ginger Baker, do Cream... Tinha muitos eeitos. Havia também as inusitadas composições, algumas quase monossilábicas, mas cheias de truques. Tinha densidade e tensão no som da banda que, aliás, era sempre muito bem executado.” Nélio Rodrigues, ã do Módulo 1000, que acompanhou as apresentações do grupo em meados de 70.

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E

les eram cabeludos e bradavam, pra p ra quem quisesse ouvir, “como é eia uma cabeça sem cabelos”, só que em latim. Infuenciados pelo que era considerado o melhor do que havia na década de 70 em termos de rock Yes, Led Zeppelin, Cream, o Módulo 1000 começou como a maioria das da s bandas da época, é poca, sem muitas pretensões, e logo se tornou um dos maiores representantes do rock setentista brasileiro. Som pesado e apresentações perormáticas renderam aos cariocas o apelido de Black Sabbath tupiniquim. Comparações e classicações à parte, a história é simples, mas os detalhes são a alma do negócio – assim como o som.

“Ipso acto, Ipso acto Turpe est sine crine caput” (Letra de “Turpe est sine crine caput”, do disco Não Fale Com Paredes, lançado em 1971)

Daniel Romani, guitarrista carioca e então jovem desbundado, apostava todas as suas chas na carreira musical. Depois de algumas tentativas musicais em orma de bandas que levavam outras nomenclaturas, ormou Os Quem, uma homenagem ao grupo inglês The Who, com alguns companheiros ideológicos, entre eles Eduardo Leal – vizinho e parceiro de jogos de botão. Convidado para integrar Os Quem junto com Armando (bateria), ele aceitou o desao imposto pelo amigo de longa data e mergulhou nos estudos exigidos por seu novo instrumento - estava aprendendo a tocar violão; logo passou para a guitarra, mas como o próprio Daniel assumia as sumia esta responsabilidade, resolveu se aventurar por outras cordas. Descobriu o contrabaixo.

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Tudo era muito precário, anal, eram rapazes latino-americanos sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes, que embarcaram na viagem da música. Não tinham equipamento. Não tinham grana para sustentar seu próprio sonho. Fabricavam guitarras e vendiam aos clientes menos experientes. Renderam-se aos bailes e às apresentações cheias de covers com o intuito de evoluírem nanceiramente nanceiramente e assim bancar sua originalidade. Mudaram de nome. Os Quem viraram Código 20 e com a alcunha ganhando prestígio pelos clubes cariocas, incluíram mais um integrante a esta ormação: Paulo César Willcox, o Zé Bola, vibraonista. Tocavam, até então, com equipamento emprestado, bancado pelos empresários das noitadas de baile. Foi nessa época, em 1968, que participaram de um concurso para bandas amadoras da TV Globo. Estavam em jogo quatro apresentações no programa do Paulo Silvino e, o mais importante, aparelhagem e instrumentos para uma banda completa. Aproveitaram a oportunidade única e providencial, mas na hora H, um imprevisto: “Os empresários compraram os instrumentos para nós e em troca dávamos a grana dos bailes para eles. Só que chegou um ponto em que o dinheiro era muito pouco e não tinha o que repassar. Não pagávamos o que tínhamos combinado. Na véspera do estival omos ensaiar e, quando íamos começar, eles chegaram e conscaram tudo. Fomos sem ensaiar mesmo!”, lembra Eduardo Leal. Mais do que enturmados, anal, apresentavam-se com reqüência, os meninos não se deixaram abalar e seguiram para o concurso. Era a tábua de salvação. Na apresentação nal, no programa do Chacrinha, uniormizados com terninhos caretas, tocaram como se osse a última coisa a ser eita antes de morrerem. “Tequila”, dos Champs, oi a canção escolhida e no meio da apresentação, Willcox deixa o vibraone para atacar dois tímpanos de orquestra, duelando com a bateria erozmente. O inesperado uncionou e dentre milhares de jovens concorrentes acabaram levando vantagem. Como em um sonho, resolveram seu maior problema. Arrebataram o primeiro lugar, status, contatos e de quebra a carta de alorria – a aparelhagem.


“Uma pessoa é uma gura, É uma imagem, Numa moldura” (Trecho (Tre cho da letra de “Não ale com paredes”, do disco homônimo lançado em 1971 )

Cândido Souza Farias, o Candinho, assume as baquetas no lugar de Armando. Começaram então uma nova ase, investindo em técnica e prossionalismo. Amadureceram. Em 1969, graças aos contatos herdados da vitória anterior, oram contratados para vir a São Paulo tocar em uma boate chamada Catraka. “As condições eram muito boas. Teríamos casa com piscina, jardim, mulheres... o dinheiro era bom”, conta Daniel. Acharam em Luiz Paulo Simas a peça que altava para o quebra-cabeças: um tecladista. “Eles precisavam de um tecladista pra cumprir o contrato em São Paulo, eu tinha um órgão Eletrocord e estudava arquitetura, mas queria largar. Foi a deixa. Entrei para o grupo”, conta Luiz Paulo. Malas prontas e mais uma pedra no caminho: o nome, mais uma vez, teve que ser trocado. Havia na capital paulistana o Código 90, o que ez o Código 20 deixar de existir e dar a vez para o Módulo 1000, homenagem à paixão pela corrida espacial de Daniel. Deixaram a Cidade Maravilhosa rumo à Terra da Garoa, onde a banda, com nova ormação, começou sua carreira de verdade.

*** Mesmo prossionalizados, a base dos shows do Módulo 1000 ainda eram os covers. Entrava no setlist o que azia sucesso na época, como Beatles, Stones, Hair e Hendrix. Daniel, Eduardo, Luiz Paulo, Candinho e Zé Bola contavam ainda com um toque especial, a voz eminina de Mirna, irmã do guitarrista, que assumiu por um tempo o papel de crooner da banda. “Naquela época a gente azia dois tipos de som: um para os clientes da boate e, paralelamente, azíamos o nosso som, com nossas composições”, conta Eduardo. A

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sede pelos arranjos próprios distanciava o pensamento de Willcox do resto do grupo. O vibraonista percebeu que estava perdendo espaço e deixou o Módulo 1000 logo após sua participação no V Festival de MPB da Record, em 1970, onde deenderam novamente a quebradeira latina de “Tequila”, desta vez sem o uniorme careta. O mais novo quarteto da praça era um sucesso na capital paulista. Incluíam I ncluíam discretamente algumas composições próprias no repertório de baile e sentiam-se cada vez mais seguros, anal, a aceitação era boa. O espaço no mercado ia sendo conquistado aos poucos. Começaram a azer seus amosos bailes-shows de quatro horas em outros lugares. Rodaram o litoral paulistano e chegaram a tocar no Círculo Militar para uma platéia alvoroçada de mais de 5 mil pessoas. Incitados por uma jovem dupla de compositores, Sérgio Fayne e Vitor Martins, os rapazes participaram de uma audição a udição para a seleção de um novo cast da gravadora Odeon. Assinaram seu primeiro contrato em 1970 e gravaram algumas canções próprias, hoje renegadas, seguindo o conselho dos produtores responsáveis – uma coisa mais leve, com infuências da MPB. Com a conança dos gurões da Odeon ganharam mais liberdade na hora de produzir. “Ferrugem e Fuligem”, aixa do LP Posições – um compilado com outros companheiros de selo: Som Imaginário, Tribo e Equipe Mercado, trouxe uma levada mais pesada, um Led Zeppelin com batidas de jazz, explicitando de vez o gosto musical do grupo. *** A quinta edição do Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro, oi o primeiro passo para o cume na trajetória do Módulo 1000 – os shows psicodélicos e a gravação do cultuado álbum Não ale com paredes. p aredes. Convidados a interpretar a canção “Cauza”, composição dos parceiros Martins e Fayne, o grupo voltou à terra natal para deender a música no Maracanãzinho lotado. Segundo Daniel, cerca de 30 mil pessoas assistiram a apresentação. Apesar da música não ser representante do estilo almejado pela banda, eles


aceitaram o convite, zeram os arranjos e retornaram para a cidade de origem. Ficaram hospedados no Hotel Glória com tudo a que tinham direito. Não venceram, caram em sétimo lugar, mas a exposição alcançada oi suciente para deixarem a obscuridade e partirem para vôos maiores.

“Eu quero ver o outro lado da realidade, Espelho (...) Tem certeza do que está me mostrando? Espelho (...) Preciso sair desse lado, Preciso mudar de lugar” (Trecho da letra de “Espelho”, do álbum Não Fale Com Paredes de 1971)

Marinaldo Guimarães, empresário amoso na época por investir em bandas alternativas, gostou do que e viu e convidou os jovens para participarem de mais um de seus planos mirabolantes – o projeto Aberto para Obras, no Teatro de Arena da Guanabara. Espetáculo de vanguarda, a proposta era , segundo s egundo narra o jornalista Carlos Ferreira na Rolling Stone de 4 de abril de 1972, “atingir novas proposições no campo da estética e da percepção e onde aconteciam simultânea e/ou alternadamente experimentos tácteis-onéticos-visuaisauditivos-olativos-gustativos ao lado de atividades consideradas ‘não artísticas’”. Daniel Romani descreve exatamente o que se passava pelo teatro: “As pessoas entravam por um corredor.. Quando chegavam ao m, achando que estavam no palco, encontravam uma corredor cerca de arame arpado. Tinham então que subir uma escada, mas ao chegar ao topo percebiam que não tinha uma escada es cada para a descida – eles tinham que pular. Tinha mulher de salto, homem tinha que segurar segurar,, coisas assim. Seguiam para as cadeiras. Das cadeiras para o palco tinha outra cerca de arame arpado, que de vez em quando, no meio do show, vinha um cara grandão e sacudia, aterrorizando a terrorizando o público. Nas cadeiras tinham manequins

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sentados. Pelo resto do lugar tinha pintor trabalhando, tinha um cara que cava estático, sentado num vaso sanitário do lado do palco, por duas horas. No nal do show ele pegava


d q.    .; .; dl r, Lz pl, e  ch

o violão e destruía na privada. Tinha também uma menina que estourava pipoca em um ogão no palco e distribuía pra platéia. Era um happening!”. Na verdade existiam três tipos de palcos montados em orma de triângulo, com três bandas se apresentando. Além do Módulo 1000 tocaram O Terço e a Tribo. A platéia, a essa altura do campeonato, já mais doida que os músicos, divertia-se com a concretização das maluquices alheias. Por mais bizarro que osse, o show abriu muitas portas para o grupo carioca. Começaram a tocar em outros teatros espalhados pela cidade. Sempre perormáticos, movimentavam ãs e muitos curiosos para suas apresentações. Para o Teatro Teatro da Praia, em Copacabana, prepararam mais uma estripulia. Na rente do palco, uma grande tela eita por quatro

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lençóis costurados. Spots eram posicionados para que a luz osse projetada de baixo b aixo para cima, aumentando as sombras dos músicos, que tocavam atrás do tecido vestidos com casacos de pêlo, chires e coisas do gênero. Andavam de quatro, q uatro, representavam e divertiam. Colocavam caixas de som ao redor da platéia e davam um toque nal com muitas luzes coloridas, principalmente douradas, globos espelhados. “A luminosidade estava diretamente associada com o ator das viagens”, revela o guitarrista. Luiz Paulo lembra ainda que oi neste show que usaram, pela primeira vez, um sintetizador – um Synthi A produzido pela ábrica inglesa EMS. “Eu ui a primeira pessoa pe ssoa a usar um sintetizador no Brasil. Juntei dinheiro e comprei um. Era pequenininho, do tamanho de uma maleta de executivo. Nem tinha teclado, eram só os botões de eeito”, ele lembra. *** Apesar da prossionalização, os músicos não perdiam a alma de moleques. Contratados para se apresentarem no “desle de manequins” da Rhodia, reservaram para o grand nale uma penca de bananas, que jogaram, com a maior cara de pau, nos espectadores da área vip. Outra aventura, dessa vez em alto mar, oi a contratação para tocar em um navio, o “Cruzeiro Turístico Turístico ao Norte”, que seguiria rumo a Manaus. A organização havia visto a banda deender “Cauza” no FIC e pensou, erroneamente, que aquela era realmente a cara do grupo. Erraram eio e quando o show começou com “Whole Lotta Love”, do Led Zeppelin, oram convidados a descer do palco imediatamente. “Aqui a gente az a dança do limão. As pessoas dançam juntinho e essa música não é apropriada”, bradava o produtor desesperado. No nal das contas, como não se pode simplesmente deixar um navio quando dá vontade, o grupo seguiu viagem literalmente, mas os rapazes passaram do status de empregados para convidados.


“Olho por olho, Dente por dente, Quanto maior o pulo, Maior a queda” (Letra de “Olho por olho, dente por dente”, do disco Não Fale Com Paredes, de 1971)

Os garotos ensaiavam diariamente por horas. Tamanho era o interesse pela música que, não bastassem partituras e melodias mais engessadas, aziam questão de experimentar, tirando proveito das mais estranhas coisas que pudessem emitir algum tipo de som – canos, caixas, tas ao contrário, entre outros. Luiz Paulo era sem dúvida o Proessor Pardal da turma e oi ele que, em uma dessas sessões experimentais acabou se tornando o mentor da criação do Mandum – hoje conhecido mundialmente como talk-box, instrumento utilizado por bandas como o Foo Fighters (na música “Generator”). “Um dia estávamos ponderando o que acontece com uma caixa de som se ela or hermeticamente echada.

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Por onde sai o som? Bom, o som não sai, né? Então colocamos um alto-alante numa caixa e ligamos o alto-alante num amplicador amplicador.. Fizemos um buraco nessa caixa e o som passou a sair do buraco. Deixávamos um microone pendurado como um pêndulo passando pelo buraco. Depois disso, colocamos uma mangueira que pegamos no quintal no buraco b uraco da caixa e levávamos à boca – aí era só abrir e echar. A primeira primeira vez que omos ouvir alguém azendo coisa semelhante oi em 1979, no disco Frampton Comes Alive, do Peter Frampton (disco ocialmente lançado em 1976).”, lembra lemb ra Romani. O Mandum rapidamente ganhou notoriedade com a curiosidade da mídia e, apoiados no total desconhecimento dos jornalistas em relação ao assunto, a invenção rendeu ao grupo boas risadas. Uma vez oram entrevistados a respeito respeito da novidade por prossionais do Globo. Quando indagados a respeito do nome da criação não titubearam: “enquanto Candinho ria exaustivamente, escondido, Daniel e seus companheir companheiros os de banda inventavam histórias psicodélicas a respeito da questão”. O jornalista tomava nota rapidamente enquanto os


moleques explicavam que Mandum era e ra um macaco que vivia escondido nas árvores na hora do rush. Do alto eles observavam os executivos saírem dos bancos. Não contentes com o absurdo, complementavam que o animal recém-inventado era comumente atacado por mendigos, que os comiam, mas que isso não era bom porque os Manduns tinham propriedades semelhantes ao mercúrio. Besteiras à parte, a experiência é autêntica, mas gera controvérsias até hoje. Uns dizem que o talk-box oi uma invenção de Bob Heil, eita em 1973. Se esta versão or a correta, os cariocas do Módulo 1000 estão à rente.

Quero medir o calor e a proundidade Temos que saber onde você quer chegar Vamos seguir... O seu Metrô Mental Paraa descobrir qual o caminho de volta Par (Letra de “Metrô Mental”, de Não Fale Com Paredes, disco de 1971)

Outra invenção tão importante e certamente mais glamourosa é novamente atribuída a Luiz Paulo – só que esta é ocial. O amoso e exaustivamente explorado “Plim-Plim” da Rede Globo é de sua autoria. Sim! Como narra Ana Maria Bahiana em seu Almanaque dos anos 70, “O som do plim-plim é criação do músico Luiz Paulo Simas, multitecladista de grande talento, superantenado nas mais recentes novidades de sintetizadores (...). Era uma medida da crescente hegemonia da Globo o uníssono acorde dos “plim-plins” que se ouvia pelas ruas das grandes cidades brasileiras, ecoando em becos e poços de ediício, entre 19h e 22h”. ***

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Ademir Lemos trabalhava na Top Tape Tape e em 1971 197 1 recebeu um espaço para gravar o que bem entendesse nas dependências da gravadora. Não pensou duas vezes, chamou o Módulo 1000 para uma tentativa de registrar o que estava azendo sucesso no circuito underground brasileiro, só que com uma condição: que o trabalho começasse a ser eito imediatamente. A maioria dos grupos não chegava a esse estágio, gravar um longplay era praticamente um artigo de luxo. Mas existia uma coisa que incomodava os roqueiros experimentais: o tempo. Depois de mais de 30 anos deste ato, o raro ponto em que dividem a mesma opinião é em relação ao tempo: eles queriam tempo pra gravar composições mais complexas. “As que gravamos eram protótipos”, lembra Daniel Romani. O material mais “bem eito” que tinham em mãos não estava sucientemente polido e, como recusar um convite desses era uma loucura até mesmo para os mais desbundados, não disseram não. Surgiu assim o cultuado disco Não ale com paredes. A essa altura do campeonato as músicas que entraram no LP não estavam mais sendo tocadas ao vivo – apesar do reconhecido sucesso que zeram. Com o estúdio da Musicdisc à disposição os garotos levaram técnicos e outros prossionais calejados à loucura. Ecos, amplicadores colocados no banheiro, guitarras gravadas ao contrário e outras estripulias lisérgico-sonoras soavam para os desavisados como sujo e terrível. São nove aixas com muito rock psicodélico brasileiro que varia, na maioria das vezes, entre o progressivo e lisérgico, quando não os dois juntos, marcados por uma bateria única, orte. As letras não eram o que mais preocupava a banda. A aixa-título, por exemplo, traz a rase “Não ale com paredes” repetida inúmeras vezes, enquanto a tão enigmática “Turpe est sine crine caput” soa como um mantra paranóico, que repete o desconhecido desconhecido sugerindo praticamente um transe transe psicodélico. Curioso é saber que as letras eram erroneamente interpretadas. A primeira era uma verdadeira aronta à ditadura, conta Daniel, que explica que “Não ale com paredes” é a mesma coisa que alar que não adianta discutir com os censores. As paredes também representavam os obstáculos que as pessoas tinham que transpor na época. Uma outra outra canção, “Olho por olho, dente por dente”, dente”, teve a letra (rase) retirada da assinatura do Maniesto Subversivo do seqüestro s eqüestro do embaixador americano no


Brasil. Mas, ironicamente, a música que mais incomodava os repressores era a cantada em latim. Turpe est sine crine caput signica: é eia uma cabeça sem cabelos. E só. Signicado não explícito que causou ao grupo grandes dores de cabeça.

“Das luzes inimigas Dos alsos amigos Das cores distorcidas Dos becos sem saída Do escuro de qualquer lugar (...) Salve-se quem puder” (Trecho da letra de “Salve-se quem puder”, do LP Não Fale Com Paredes, de 1971)

Em um show em Brasília, em 1972, tudo corria como de costume. Os garotos subiram no palco, tocaram, oram bem recebidos, até começarem os primeiros p rimeiros acordes de “Turpe est...”. Imediatamente subiram quatro homens vestidos com ternos pretos, óculos escuros, e começaram a desligar os cabos dos instrumentos no meio da apresentação. Levaram a banda para a direção de um carro. Fizeram-nos entrar. entrar. “A única coisa que eu pensei nesse momento é que iria morrer. Adeus, mamãe; adeus, papai; adeus, maninha; adeus, Zepelim – meu rato de estimação”, brinca Romani. Ficaram todos dentro de ntro de uma salinha enquanto os homens da censura perguntavam qual era a mensagem subversiva contida naquela música. Em certo ponto perceberam que os meninos diziam a verdade e que, o único ato em questão, era o de que eles acabaram de pagar um grande mico. Liberaram o Módulo 1000. Hoje, uns lembram-se do causo enquanto outros juram que ele não aconteceu. Outra letra inocente, mas que representa bem o espírito da turma é “Lem-Ed-Ecalg”, ou para os íntimos, como revela Luiz Paulo, Glacê de Mel ao contrário.

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Já era de se esperar que um disco desses, naquela época, não aria sucesso algum. Zezinho, presidente da gravadora que havia dado carta branca a Ademir, amargava o arrependimento de seu suicídio comercial. Desentendimentos vieram, mas, a essa altura, não conseguiram evitar que o discos chegassem às lojas. Fracasso de vendas, obviamente. Continuaram azendo alguns shows e produzindo muito, apesar dessa nova ase do grupo não ter sido registrada. Em 1973 tocaram no que seria o último estival a contar com a participação do Módulo 1000, o Transa-Som-Folk-Rock-Pop Transa-Som-Folk-Rock-Pop no Sertão, no Vale do Jequitinhonha. Ao lado de DJ Ademir, Rui Maurity, Maurity, Jorge Mello e Serguei, a banda tocou para uma população local que, em sua maioria, nunca tinha visto uma guitarra elétrica. Era o começo do m das maluquices da trupe.

À q,      


Os anos de convívio ininterrupto já haviam desgastado o relacionamento dos rapazes, apesar de eles jurarem j urarem de pé juntos que não chegaram a brigar. Por Por maior que osse o sucesso dos jovens cariocas, o dinheiro era escasso e em certo momento os meninos, já crescidos, viam cada vez mais a necessidade de um alavanco nanceiro presente em suas vidas. Reza lenda que uma bela morena havia causado um desentendimento entre Daniel e Luiz Paulo, mas isso não nos cabe contar contar.. Fato é que, em meados mea dos de 73, o grupo g rupo se desez.

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Luis Paulo e Candinho juntaram-se a Lulu Santos, Ritchie e Fernando Gama e ormaram o Vímana, também grupo de rock psicodélico-progressivo, porém mais unkeado que o Módulo 1000. Seguiram para uma carreira musical internacional e destilam seu veneno hoje em Nova York e Miami, respectivamente. O baixista Eduardo Leal desencantou-se pela música e, visando uma carreira estável, ingressou nos Correios e Telégraos, onde acabou pendendo para a área cultural da instituição. Mudou-se ainda na década de 70 para Brasília, onde vive até hoje. Aposentado, garante que tem mais tempo para dedicar-se à suas teorias e losoas, grandes paixões. Enquanto isso o pereccionista Daniel Romani continuou pelas tortas estradas da música no Brasil. Dá aulas de violão e está preparando um CD denitivo do Módulo 1000. Cedeu seus dotes instrumentais ao amigo Luiz Paulo, hoje conhecido como Luiz Simas, em um CD lançado em 2007, que contou com a união dos dois ex-companheiros de banda em palcos cariocas. Apesar da distância, do tempo e das dierenças, nenhum recusaria de imediato uma proposta de volta do projeto progressivo-psicodélico. Fica a sugestão suges tão e a expectativa. O disco Não Fale Com Paredes hoje vale milhares de dólares, dependendo do país e do catálago em que é anunciado, e é um dos mais bem cotados no almanaque dos colecionadores internacionais de LPs. Foi relançado ocialmente em vinil pelo pe lo selo alemão World in Sound e desperta cada vez mais apreciadores agraciados pela era digital dos downloads.


o pensAmento é

livre: A viAgem do som imAginário

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J

aneiro de 1970. Rio, Copacabana. Tavito e Zé Rodrix, músicos, companheiros de apartamento e sons, magrelos e cabeludos, tomavam sol no Posto Seis e Meio como de praxe no início da década de 70 . Foram surpreendidos por José Mynssen, que se identicou como empresário década e os convidou para participar de um show com Milton Nascimento no Teatro Opinião.

Mynssen nunca tinha empresariado nada. Acabara de vender uma sapataria e tinha um certo dinheiro sobrando. Quando surgiu a idéia para o show, procurou procurou Milton, alugou o teatro e oi garimpar os melhores músicos do Rio direto na onte, a boate Sachas e seu anexo, o bar Sachinhas. Muito tradicional, eram nessas casas do Leme que se reuniam os jovens Gonzaguinha, Joyce e Ivan Lins; e era lá também que um trio de jazz ormado por Wagner Tiso (piano), Luís Alves (contrabaixo) e Robertinho Silva (bateria) se apresentava. “Chegou um cara e alou ‘eu tô querendo montar uma banda pra acompanhar o Milton Nascimento’. Esse cara começou a contar vantagem, perguntou onde eu morava, alou que estava com pressa”, conta Robertinho Silva sobre o episódio. epis ódio. Tocar com Milton não era problema – a banda inteira já conhecia o músico. Wagner Tiso, o líder,, tocava com Milton desde os 14 anos, eram vizinhos em Três Pontas Minas Gerais. Luís líder Alves e Robertinho Silva também já haviam acompanhado Bituca em outras oportunidades. O problema mesmo era a proposta proposta de José Mynssen de incluir guitarras. “A gente não queria, éramos mais pro jazz. A gente não botava é, mas ele alou que pagava”, lembra Robertinho. Wagner Tiso reconheceu que “o mundo moderno é guitarra, rock” e oram, então, atrás de quem azia rock: Tavito Tavito e Zé Rodrix. Tavito tinha 22 anos. Nascido em Belo Horizonte, já conhecia Milton de Minas. Tinha vindo ao Rio para tentar viver de música e sobrevivia dando aulas de violão. Conheceu o explosivo

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Zé Rodrix no Sachinhas – o carioca lhe oi apresentado tocando uma valsa pop no piano e a amizade começou. Zé havia participado de um grupo vocal amoso na época, Momento 4, que também já havia trabalhado com Milton. Quando o conjunto acabou, Zé Rodrix passou uma temporada no Rio Grande do Sul, onde conheceu amigos que, mais tarde, ormariam o Liverpool. De volta ao Rio, chegou a trabalhar no Banco de Tokio. Mas não aguentou, saiu e dois dias depois já estava com Tavito num estúdio, gravando para Beth Carvalho. Com 23 anos, o convite de José Mynssen para Zé veio numa hora pereita. À turma pop e à turma jazz juntou-se Laudir de Oliveira, percussionista, importado dos EUA. Milton Nascimento voltou de Ilhéus, onde azia o lme Os Deuses e os Mortos, com Ruy Guerra. “Quando voltei me alaram que eles haviam se juntado para me acompanhar”, a companhar”, lembra. Os ensaios começaram naquele mesmo janeiro de 1970, enquanto as irmãs de Mynssen arrumavam e pintavam o teatro. Na sexta-eira da paixão daquele ano estreou Milton Nascimento. Ah! ...e o Som Imaginário. Foi um escândalo, a começar a data de estréia. “Eu me lembro das pessoas alando ‘é um absurdo! Estrear um show no dia em que Jesus morreu!’”, recorda Zé Rodrix. A ormação

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eclética uncionava no palco. O repertório do show ia de Gira Girou à Simon e Garunkel, passando por Vinícius de Moraes, Beatles e uma versão de 20 minutos de “A little help rom my riends”, de Joe Cocker. Wagner Tiso era o arranjador, mas no palco, Milton e os outros também palpitavam sobre o som. O show oi um sucesso – depois de meses no Opinião, oram para a boate Sucata e, de lá, para São Paulo, numa bem-sucedida temporada no Teatro Gazeta. Com repertório contestador,, aos poucos, o visual e a atitude da banda contestador ba nda também caram mais agressivos. Apareciam no palco sem camisa, cheios de colares, descalços e com calças coloridas. O gurino, criado pela irmã do José, Maria Mynssen, era composto de seis calças, uma de cada cor, e na barra de cada uma, um eneite com as cinco cores restantes. Quem tinha cabelo liso deixava compridão. Robertinho Silva, negro, deixou black power. E até Milton Nascimento, que vivia sério e de smoking, mudou. “Teve um momento em que o Milton psicodelizou-se”, lembra Tavito. Adotou o visual cabelão e, se já era considerado conside rado um gênio da MPB, quis mostrar que também entendia e ntendia de rock. “Foi uma ousadia isso, e oi um absoluto sucesso. O Milton azendo um negócio absolutamente inesperado. Aquela banda tinha uma coisa, um comportamento, um show!”, recorda Zé Rodrix. E chocavam. Na época, Milton já era considerado um grande nome da MPB e vê-lo naquela atitude rock’n roll abismava os setores mais conservadores da música brasileira. “As pessoas alavam ‘como é que pode? Um gênio da mpb tocando guitarras... azendo rock?”, diz Zé. Certa noite, durante a temporada no Sucata, Milton pegou o violão e disse: - Hoje az 11 anos que morreu Villa-Lobos. Esse show é uma homenagem a ele. Então, o escritor Paulo Mendes de Campos, que estava numa mesa de canto na platéia, berrou:


- Não parece! E Milton, desaador: - Não parece, mas é. Naquela noite, a banda tocou com mais gana do que nunca. Musicalmente, apesar da dierença na ormação, já havia unidade e troca de conhecimento. Robertinho Silva lembra que não conhecia nada de rock e, depois de ser apresentado a Jimi Hendrix por Tavito, virou ã. Milton também abriu os horizontes: “a gente combinava muito musicalmente e o som que azíamos trazia muitos elementos de rock, pop, blues. Foi uma realização que deu uma exata visão de que eu não tinha um gênero especíco de música, mas sim, que na minha música, cabia todo tipo de coisa”.

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Com shows lotados todas as noites, a banda agradava imprensa e público. Nelson Motta, jornalista musical e na época produtor da Philips, assim lembra do Som Imaginário: “Som Imaginário era uma banda abulosa, a-bu-lo-sa. Grandes músicos que tocavam com Milton Nascimento. O Milton acho que oi um dos artistas brasileiros que mais entrou em rock no inicio dos anos 70”. No nal do ano, Milton oi aos EUA gravar com o jazzista Wayne Shorter e a banda b anda começa a acompanhar uma temporada de Gal Costa. “Aos poucos”, lembra Wagner Tiso, “a gente oi assumindo o nome Som Imaginário como nome da banda”. *** Frederyko, o Fredera, era estudante de Letras e exímio guitarrista. g uitarrista. Veio de amília de músicos e largou a aculdade em 1968, aos 23 anos, para viver de música. Em meados de 1970, oi convidado por Wagner Tiso para integrar o Som Imaginário. “Eu senti que altava alguém pra solar solar,, porque o Tavito é um guitarrista de centro, tocava guitarra de doze cordas. Mas a música da época pedia guitarra distorcida”, justica Wagner. Para Para Milton Nascimento, junção das guitarras de Tavito e Fredera oi o ponto alto na ormação do Som Imaginário. Outro integrante que se acoplou ao time oi Naná Vasconcelos, que substituiu Laudir de Oliveira. Ainda em 1970, o Som Imaginário oi convidado pela Odeon para gravar o primeiro disco. A salada de ormações musicais da banda deu origem a um dos mais supreendentes registros sonoros do desbunde: o LP Som Imaginário, psicodélico, maluco e experimental como seus autores. A banda se dividia em dois grupos: os jazzistas ja zzistas (Wagner, Robertinho e Luís Alves) e os roqueiros, (Zé Rodrix, Tavito e agora, Fredera), que se entenderam bem musicalmente pela liberdade criativa que tinham na gravação. “Era um grupo que tinha muito talento, muita capacidade. E nós omos o único grupo no Brasil que praticou música aleatória”, dene Fredera.


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“Nosso experimentalismo era amplo. Porque a gente tinha infuência de tudo, do baião, do do bolero, do jazz, do samba canção. Era tudo jogado e azíamos um som que a época pedia”, lembra Wagner. Wagner. No processo de composição, eram Zé Rodrix e Fredera que aziam as letras – Fredera diz que a música “Sábado”, deste disco, oi psicograada. O pianista, pianis ta, Tiso, era o responsável pelos arranjos do disco. Mas, com todos os membros da banda tocando juntos e alucinados no estúdio de gravação, todo mundo acabava dando algum palpite. “O processo de criação era o mais despregado possível. Até porque as coisas eram eitas coletivamente, a gente não sabia como, se um alava ‘ah, eu tenho uma música aqui, vamos azer essa? ’ As pessoas embarcavam na brincadeira. Era uma bela e deliciosa brincadeira”, diz Zé Rodrix. A gravadora deu uma liberdade surpreendente para o time de jovens músicos. A Odeon tinha um compilado de artistas comerciais e um de alternativos. O Som Imaginário, Imaginá rio, claro, cava na segunda categoria, que interessava mais à gravadora por experimentar e dar renome, e não por vender discos. O diretor artístico era Milton Miranda, que colocava um arsenal de possibilidades sonoras nas mãos dos garotos do Som Imaginário. “Eram linguagens que a gente estava experimentando. Não havia compromisso com o ‘tem que acertar,, tem que vender, tem que ter sucesso, tem que tocar na rádio’. As gravadoras na acertar época tinham dinheiro suciente pra azer todas as experiências e ver o que ia dar certo”, explica Zé Rodrix.

“No Nepal, tudo é barato No Nepal tudo é muito barato No Nepal o pensamento é livre E os sinais da rua sempre abertos” “Nepal”, do disco Som Imaginário, de 1971


Eram experiências libertárias e de uma explosão de criatividade - se não lisérgicas, canábicas ao extremo. Durante uma gravação de metais, rolou um baseado bas eado muito, muito orte. “Foi a maior loucura da minha vida aquilo ali, dentro do estúdio. Todo mundo louco tocando... vamos gravar. Tava Tava diícil até de cantar, o bagulho era tão orte que cava todo mundo de boca seca, não vinha saliva, a gente cava com diculdade de cantar, era uma zoeira”, lembra Fredera. Na gravação da aixa “Nepal”, que começa com dois minutos de barulhos, gritaria e sons estranhos, o guitarrista diz que dá para ouvir “nego tossindo, todo mundo louco pra caralho”. Wagner dene o som do grupo como “uma música louca, servida pelo hippismo, pela psicodelia e pelas drogas da época”.

*** Nessa época, Zé Rodrix e Tavito moravam juntos, em uma espécie de comunidade com o guitarrista Marco Antônio Araújo. O trio constituía a “Família Matadouro”, devido à enorme quantidade de mocinhas arrebatadas por eles. Funcionavam como um relógio: os músicos dormiam das 6h às 10h da manhã, iam à praia, em Copacabana; voltavam da praia, normalmente com uma garota, e dormiam até as 18h. Acordavam, tomavam banho e iam para os shows, e depois seguiam para o Sachinhas, de onde só saíam às 6h da manhã. Em casa, só andavam nus. Para ter algum controle, penduravam avisos como “nesta cama é proibido trepar”. Às vezes, doidões, passavam o dia todo desenhando. E sempre esqueciam de pagar a conta de luz. Um dia, tomaram um ácido e a luz oi cortada; acenderam um lampião e cou a amília toda viajando ao som de The Band. Em outra ocasião, oram azer turnê em BH por uma semana. Na volta, quando eles chegaram no hall do apartamento, deram de cara com uma desagradável surpresa. “Quando a gente olha, tinha vermes saindo pela porta. Uma trilha que ia até a geladeira. Tinha acabado a luz e na geladeira apodreceu bie, carne”, lembra Zé Rodrix.


“Sábado vou à esta numa nuvem de algodão E entre estrelas vou abrir meu coração E vou encher de vagalumes meu cabelo e respirar o ar do céu, vou Eu quero o céu e vou com guizos nos sapatos, minha roupa em arrapos coloridos vou passar” “Sábado”, do disco Som Imaginário, de 1970

Um dia, Tavito e Zé se deram conta que Marco Antônio tinha sumido. “Sumiu, sumiu, camos três dias sem saber dele, começou a dar aquele medo, por mais despreocupados que ôssemos. Então quando descobriram, de scobriram, ele tinha ido pro Jardim Botânico, cou três dias, achando a vida um espetáculo, aquela coisa”, lembra Tavito. No Som Imaginário, todos tomaram ácido. Wagner Tiso diz que era uma coisa mais para os shows, que não usava a droga para compor. Já Fredera assume que psicograou algumas músicas, especialmente por estar com o lado direito do cérebro aberto – no caso dele, d ele, mais pela Cannabis do que pelo LSD. Zé Rodrix tomou duas vezes, e diz que “era do bom”: “vinha da Caliórnia. Era uma coisinha, parecia um gratezinho sextavado sex tavado cor de laranja, e dava doze horas de viagem”. No contexto do Som Imaginário, as drogas eram usadas como indutoras de pensamento. “Era uma coisa muito limpa, muito pura. A gente g ente era psicodélico ao vestir, e era psicodélico ao pensar, era um estado de espírito”, dene Tavito. Os músicos acreditavam que podiam mudar o mundo – e, à maneira deles, a expansão de pensamento, os trejeitos, o som e as conversas eram as maneiras de azer isso. Milton Nascimento diz que o grupo tinha liberdade de pensamento político “sob o eeito de alguma magia, com tendência à rebeldia”. “Nós éramos psicodélicos por opção, por crença. Era um refexo de d e nossa atitude perante o que acontecia no Brasil e no mundo”, sintetiza.


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O desbunde das gravações e dos shows era o mesmo da vida. Para eles, após o que Zé Rodrix chama de “a grande derrota do poder jovem”, no ano de 1968, a saída oi a criatividade, a expansão de consciência. E tinham a percepção de que estavam vivendo uma nova sociedade, sem deni-la como contracultura. Pelo contrário, o lance deles era assimilar as culturas, sem pré-julgamento, conversando e losoando muito. “É incrível esse negócio. Você acreditava piamente em paz e amor, mesmo. A gente vivia dessa maneira”, resume Tavito. *** Nos palcos, o Som Imaginário alcançava seu esplendor psicodélico. A começar, porque era ali que Wagner Tiso entrava na onda de seus companheiros mais doidões. Depois, porque era um espaço aberto para experimentações, sempre com uma platéia de hippies alucinados pronta para desbundar. Quase sempre, os shows começavam com minutos e minutos de experimentações, que iam convergendo até tornarem-se uma música do grupo. Para Wagner, Wagner, o grupo se comportava “meio mal nos shows”: “se comportar era um pouco desaante. Aquele público esperando uma música que ouviu no disco e a gente azia uma coisa dierente, a gente azia sons que incomodavam a platéia”. No palco Robertinho azia eeitos na bateria, b ateria, Luís entrava com harmônicos no baixo, Zé Rodrix azendo barulhinhos com a fauta e Fredera, barulho com a guitarra. A introdução, programada para durar 30 segundos, se estendia e stendia para cinco minutos. “Ia começando aquele som completamente maluco, piano aleatório e órgão, aquelas ondas. De repente, lá no meio a gente se olhava, e um começava a puxar uma música”, lembra o guitarrista. Então, umavam um baseado e começava um som, com todos doidões. “O arranjo inexistia. Alguém começava a tocar uma nota, alguém azia uma coisa em torno, outra nota surgia, a bateria tocava livre, e ia assim até se tornar uma musica”, recorda Wagner.


“Feira Moderna, um convite sensual Oh teleonista se a distância já morreu, o meu coração é velho O meu coração é morto E eu nem li o jornal Nessa caverna o convite é igual Oh teleonista a palavra já morreu Independência ou morte Descansa em berço orte, A paz na terra, Amém.” “Feira moderna”, do disco Som Imaginário, 1970

No V Festival da Canção, em outubro de 1970, a banda participou com “Feira Moderna”, música de Fernando Brant, Beto Guedes e Lô Borges gravada no primeiro LP. LP. Foram classicados, mas nas quartas-de-nal a banda resolve adotar uma postura mais malcriada: “a gente não tocou a música. A gente cou azendo um acorde só. Um acorde e duas batidas de baixo”, conta Wagner. Terminaram Terminaram classicados em 8º lugar. Logo após o nal da turnê com Milton, a banda oi acompanhar Gal Costa na temporada do show Deixa Sangrar Sangrar,, no Teatro Opinião. Além de ser considerado um marco na carreira da cantora, o show também projetou o Som Imaginário e levou a banda para seguidas temporadas pelo país. Mais psicodélicos do que nunca, os músicos apostavam nos gurinos e atitudes bizarras. Em uma temporada no Teatro Vereda, que cava no centro de São Paulo, Fredera entrou um dia vestido de menina estudante. No outro, o guitarrista obrigou Robertinho Silva a entrar no palco vestido de noiva. “Ele alugou com véu, grinalda e tudo. E ui descalço”, lembra o baterista. Zé Rodrix se divertia com uma máquina de escrever e screver que não uncionava. E oi nesta temporada, temp orada, durante a turnê com a Gal em Goiânia, que Zé Rodrix e Tavito compuseram “Casa no campo”.


Em um sábado – dia em que Robertinho Silva não gostava de azer shows porque “quem não tinha nada a ver acabava indo no show, enchia de madame” a banda entrou no palco vestida com um terno cinza brilhante. O gurino era o mesmo da antiga banda de Robertinho e Fredera, Impacto 8, mas a perormance não. “Tocávamos alto pra cacete, as madames colocavam a mão no ouvido. As pessoas não sabiam se riam ou o quê”, conta Robertinho.

“Você só precisava da taça de ouro Que você só viu por detrás das vitrines Você precisava beber nessa taça Que você pagou com o sangue que nela derreteu” “Hey man”, do disco Som Imaginário, 1970

O Som Imaginário também participou do Festival de Guarapari, o amoso Woodstock brasileiro. Os desbundados de todo o país se alvoroçaram para assistir ao encontro das bandas que aziam rock no país – mas, pela orte ação de repressão da polícia ederal, o público oi pequeno. Mesmo assim, para a banda, oi uma maravilha. “Era uma sensação estar azendo aquilo. Para nós, era como se estivéssemos tocando em Woodstock”, diz Tavito. Na época, o grupo trabalhou com o empresário Marinaldo Guimarães, ícone das bandas bicho-grilo. Marinaldo oi o responsável por shows malucos e cenograas insólitas, como em uma série no Teatro da Praia, cujo cenário eram armações de andaime anda ime espalhadas. O empresário também criou um circuito alternativo de shows nas perierias cariocas, para um público que não entendia nada. “Tinha um abismo entre a gente e o público. A perieria já estava indo num som mais crioulo”, lembra Zé Rodrix. Mas o circuito criado por Marinaldo não oi em vão: mais tarde, oram naqueles palcos que começou a cena do unk carioca.


O empresário também era conhecido por “dar chapéu”. Zé Rodrix conta que o grupo começou a azer muitos shows e não receber receber.. O truque era o seguinte: Marinaldo pagava p agava os shows com cheques sem undo. Mas o banco do empresário era Bradesco, mesma agência de Zé, e em um dia, quando oi avisado pelo caixa que a conta de Marinaldo não tinha undo pra descontar o cheque, Zé Rodrix disse: - Pelo amor de Deus, me az um avor? Esse cara não tem undo porque não tem nada? - Não tem undo suciente. É um cheque de 120 mil cruzeiros, estão altando oito mil. – respondeu o caixa. E Zé Rodrix, muito espertinho, mandou: - Deposita oito mil cruzeiros na conta dele então. O caixa obedeceu. E Zé: - Agora, ele tem undo? Me paga o cheque dele então. Quando descobriu, conta Zé, Marinaldo entrou em parauso. E perguntou: p erguntou: - Como você recebeu? - Ué, você me deu o cheque, cheguei lá e o cara me pagou. – respondeu Zé, se azendo de mané. - Mas é que... - Mas é que o que, Marinaldo? Eu não tô entendendo o seu nervosismo. O que aconteceu, o dinheiro não era seu? Eu to achando uma coisa estranha, Marinaldo. E Zé, que preeria perder oito a 120 mil, nunca mais oi empresariado por Marinaldo.

Muita loucura, muito desbunde. Mas era 1970, o presidente do Brasil era Emílio Garrastazu Médici, e estava em curso a época mais tensa da ditadura. Os integrantes do Som Imaginário oram censurados e chados – para pa ra poderem trabalhar, trabalhar, tinham que apresentar a carteirinha da censura.


O episódio mais dramático oi na rodoviária de Belo Horizonte. Foram todos em cana, segundo Tavito, por causa das roupas que usavam. Robertinho levou a pior: ele estava com as erragens e os equipamentos da bateria. “Porque ele era pretinho, pequeno, todo mundo achava que aquilo era coisa roubada”, lembra Tavito. Apesar da repressão, o grupo oi conquistando espaço na mídia. Em geral, a crítica de música odiava. O temido Ezequiel Neves, crítico de rock do JT na época, odiou. Classica o Som Imaginário como “bad trip”. Já Nelson Motta amou, e até convidou o grupo g rupo para participar do Som Livre Exportação, programa da Globo dedicado ded icado aos novos talentos. Para Zé Rodrix, as pessoas gostavam porque “não conseguiam resistir ao som”. Wagner Tiso lembra que a imprensa, em geral, gostava da atitude do grupo tocando – mas havia uma certa resistência, até pelo ecletismo e, talvez, pela alta de identidade do grupo. Em 1971, o Som Imaginário Imag inário voltou a tocar com Milton Nascimento, mais loucos do que nunca. Nélio Rodrigues, carioca e acompanhante da cena musical da época, assistiu um show no começo do ano. Era a gravação do programa “É Onda”, da TV Tupi. O palco oi montado na Urca, perto da sede da TV, e uma pequena platéia de cabeludos se aglomerou na praia para ver a apresentação gratuita. Milton começou cantando “A elicidade”. No meio da apresentação, um grupo começou a jogar areia uns nos outros, criando um tumulto na platéia. Milton abandonou o show urioso. Nélio viu tudo, e ao seu lado, estava Ronnie Von indignado com o comportamento da platéia. O show oi transerido para um estúdio da TV. Nélio lembra que, com Milton, tocaram “Para Lennon e McCartney” e outra música, mas não se recorda qual. Do próprio Som Imaginário, tocaram “Feira Moderna” e “Sábado”, com Fredera vestindo uma túnica indiana. “Achei o máximo. ‘Sábado eu vou a uma esta numa nuvem de algodão’... talvez tenha sido numa nuvem de maconha mesmo”, lembra o ã, que viu só um pedaço do show, mas saiu satiseitíssimo.



“Você tem que saber Da coisa que passei Do som da curtição Do som daquele comercial Senão você vive ora do ar, ar, só vive ora do ar” Treho Tre ho de “Você tem que saber”, do disco Som Imaginário, de 1971

O ano de 1971 não nã o era o melhor momento para acompanhar Milton Nascimento. O músico passava por uma ase diícil e as brigas eram constantes. Milton estava bebendo muito, passando por um processo autodestrutivo, e os companheiros concordam que acompanhálo não era uma tarea ácil. “Havia uma grande ligação, mas essa ligação logo se deteriorou por problemas de relacionamento”, dene Fredera. Um dia, depois de uma briga antes de um show, Zé Rodrix pegou as coisas, enou numa mala vermelha e saiu do d o grupo. “Você tinha o show pra azer e de repente você olhava pra cara dele e ele estava completamente bêbado, e aí o show não acontecia. Isso oi indo, até que chegou uma hora que eu não agüentava mais”, lembra Zé. Tavito concorda que a vida de acompanhante do Milton “não era mole”, apesar de toda a infuência musical que ele exercia sobre todos os músicos. “A gente nunca conseguiu trabalhar com o Milton, assim, com o padrão prossional de cair na estrada juntos. Era um show aqui, outro ali, e cada um era um acontecimento na vida dele”, diz Fredera. Depois da saída de Zé Rodrix, o grupo entrou em estúdio para gravar o segundo disco. Desta vez, o processo criativo oi dierente: houve uma clara liderança e preponderância de


Fredera sobre os outros compositores. Para Tavito, o Som Imaginário, com o hibridismo e ecletismo característicos, termina quando o companheiro sai. “O Zé é um pivô, um coringa. Porque ele pegou todo o talento do Wagner, o talento de todos nós, e canalizou cana lizou numa coisa híbrida. Depois, isso acabou. Porque tinha dois indivíduos ortes que eram o Fredera e o Wagner, que queriam colocar as suas composições. Eu passei passe i por isso e sei exatamente como uncionou”. Som Imaginário saiu em 1971 e tem a cara de Fredera, que compôs quase todas as músicas. “O primeiro disco era mais uma coisa de rock do momento. O segundo teve uma infuência maior de rock sinônico, de rock progressivo da época”, dene Wagner Tiso. O segundo disco abre com “Cenouras”, composição de Fredera com letra absolutamente psicodélica:

“Eu hoje tenho um assunto delicado pra alar com você Eu muito tenho meditado sobre a vida que você esqueceu Você está com a cabeça virada para o nada E não procura nem saber o que eu penso e o que aço Eu acredito que você ainda tem uma pequena chance E eu encontrei a solução pro seu caso e vou propor um tratamento pra você melhorar: Eu vou plantar cenouras... Na sua cabeça” “Cenouras”, do disco Som Imaginário, de 1971

“Cenouras é muito boa. Se você olha aquela usão, aquela unção literária ali, ela é completamente paranóica, doida varrida”, dene Tavito. “Você tem que saber”, “Gogó (O Alívio Rococó)”, “Ascenso”, “Salvação pela macrobiótica” (que ala sobre um jantar animado - em uma música lenta, em tom dramático, com uma parte que declama a ojeriza aos enlatados e semelhantes), “Ué”, “Xmas blues” e “A nova estrela” também compõem o repertório do disco.


Em 1972, o clima no Som Imaginário estava pesado. Durante as gravações do terceiro álbum, Matança do Porco, surgiram os desentendimentos entre Wagner Tiso e Fredera. “O que eu queria mesmo era militância política através da cultura, e isso o Wagner não queria. O Wagner queria dinheiro e ama... e mulheres”, alneta o guitarrista, que acabou sendo expulso do grupo antes mesmo do lançamento. O terceiro disco acabou saindo com a cara do Wagner Tiso. Instrumental, puxa para um progressivo, ora leve, ora pesadão, com instrumentos trabalhados e arranjos complexos, músicas viajantes e longuíssimas. Há uma música composta coletivamente; as outras são de Wagner. O arranjador diz que optou por azer um disco instrumental porque era a hora da banda “se mostrar como instrumentista”. “Era um grupo extremamente e xtremamente bom. A gente tinha que mostrar isso, porque a gente tinha acomodado. A música com letra le tra te leva à acomodação, porque o principal é o que q ue você tá dizendo. Eu quis mostrar que não, que principal é o que se está tocando”.

“Os homens sabidos, os sabedores Garantem que surgiu uma nova estrela É o tempo da nova estrela (...) A estrela dita um novo tempo E convoca pensadores a tecer um novo tempo” “A nova estrela”, do disco Som Imaginário, 1971

Apesar de ter participado como solista no terceiro disco, Fredera odeia a criação: “o Som Imaginário, é na verdade, os dois primeiros discos. O resto é merda”. Para Wagner, oi o exato contrário. O arranjador acredita que o terceiro disco, e suas decorrências, oram o ponto alto da banda. Antes, diz ele, a banda azia shows como acompanhante, e não como Som Imaginário. “A partir de Matança do Porco o grupo existiu de verdade. Foi o momento que o grupo se soltou”, dene. À q: W W t   úl úl fç  s iá iá


Logo depois do lançamento do disco, Tavito Tavito sai da banda band a e muda para São Paulo. Robertinho Silva também sai e se muda para os EUA, para acompanhar Milton Nascimento. Nas cimento. Wagner Tiso chama os companheiros Toninho Horta, guitarrista, e Nivaldo Ornellas para os instrumentos de sopro. Com essa ormação, o grupo gravou o disco Milagre dos Peixes com Milton Nascimento, a partir de uma apresentação ao vivo em 1973. Depois, não houve mais gravações; só shows “maluquíssimos”, como dene Wagner Tiso. Em 1975, o grupo ez seu show derradeiro no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Algumas pessoas da platéia gravaram a apresentação, que Wagner lembra com carinho. “O show é louquíssimo, mas tem uma beleza e uma coragem muito grande. Corajosamente, tocando pra ora mesmo, criando ao vivo”. Em 1976, Wagner Tiso muda para os Estados Unidos e coloca, de vez, um ponto nal no Som Imaginário. *** Depois de sair do Som Imaginário, Zé Rodrix oi contratado pela mesma mes ma gravadora, Odeon. Em 1972, “Casa no campo” oi imortalizada na voz de Elis Regina, e virou hino bicho-grilo e ícone de uma época. Depois, se lança no trio Sá, Rodrix e Guarabyra e vira estradeiro. Em 1976, lança seu maior sucesso, o disco Sou latino-americano. Tavito veio para São Paulo e vivia gravando com seu violão de 12 cordas. Fez sucesso com “Rua Ramalhete”. Recém casado, sua mulher não aguentou a vida paulistana e ez o casal voltar para o Rio. Lá, Tavito criou sua bem-sucedida empresa de jingles em que trabalha até hoje. Depois de sair do Som Imaginário, Fredera teve que ugir do Rio de Janeiro por ter abrigado uma guerrilheira. Ficou escondido em Belo Horizonte até 1973, 197 3, quando volta ao Rio a


convite de Wagner para acompanhar um roqueiro então iniciante, Raul Seixas. Seixa s. Fredera era chamado por Raul de “Fredirico” e já estava enlouquecido na cocaína, como seus companheiros Wagner e o resto da banda. Antes dos shows, cheiravam no camarote e sempre escondiam de Raul. Um dia, numa temporada no Teatro Tereza Tereza Raquel, no Rio, resolveram mostrar. Estavam Fredera, Wagner, Luís Carlos, o bateirista, e o baixista Milton Brotero cheirando no minúsculo camarote. Normalmente, Raul cava sozinho em um camarote maior. Neste dia, bateu na porta do camarote da banda. - Fredirico? Luís estava esticando as leiras. - E aí? – respondeu Fredera. E Raul, olhando para a droga: - Que que é isso? Luís olhou pra ele e alou: - Co-ca-í-na. - Como é que az isso? - A gente cheira. - Mas vocês vão tocar? E Fredera: - Ué, toda noite a gente toca... tá am? - Tô. Fredera ensinou como se az e botou no nariz de Raul. “Botei a primeira na minha carteira de músico, que eu tenho aí até hoje, e o Raul cheirou e morreu disso. E eu estou aqui”. Robertinho Silva, depois de gravar Matança do Porco, oi para os EUA gravar com Milton, Wagner e Wayne Shorter. Depois, voltou ao Brasil e retornou aos EUA para p ara azer carreira.


Ficou quatro anos, mas não se adaptou a daptou ao sistema americano e voltou. Em 78 começou a carreira solo. Hoje, tem seis discos gravados e uma escola de música. Ficou mais 28 anos tocando com Milton Nascimento. Wagner Tiso começou uma longa carreira musical. Fez arranjos para Gonzaguinha, Johnny Al e para o próprio Milton, com quem toca até hoje. Em 2007, lançou o especial “Wagner Tiso 60 anos: um Som Imaginário”. O show começa com o Som Imaginário (apenas com aixas do terceiro disco), e conta com a participação dos ex-companheiros Robertinho Silva e Luiz Alves, além de Nivaldo Ornellas, Toninho Horta e do próprio Milton Nascimento. Naná Vasconcelos conquistou sólida carreira internacional como percussionista. Gravou 28 discos. Luís Alves oi para os EUA, e na volta ao Brasil, se dedicou ao jazz. Chegou a acompanhar Tom Jobim, Gal Costa, Chico Buarque e Sivuca. Quase quarenta anos depois, a visão que eles têm da banda é diretamente proporcional à experiência que tiveram nela. A turma do rock – Zé Rodrix, Tavito e Fredera – acham que, depois que saíram, a banda acabou. Ainda guardam uma certa mágoa de Wagner Tiso, que “se tornou dono do nome Som Imaginário”. “Ele está contando a história do Som Imaginário exatamente como ela não oi”, desabaa Zé Rodrix. “Ele está azendo uma bobagem, que é dispensar a raiz do que oi realmente o Som Imaginário”, completa Tavito. Fredera acredita que a banda, ao lado la do de Os Mutantes, oi a única realmente psicodélica no país. E tem mais, o mérito é ainda maior porque não contou com a ajuda de Rogério Duprat nas maluquices. Mas põe uma dúvida na importância desse período, hoje, em sua vida. “A gente podia brincar de mil maneiras, curtir de mil maneiras, inventar mil loucuras, e a gente pensava que isso era evolução cultural. Não era. Isso Is so era um desvão, um viés. Não cou praticamente coisa alguma, dessa ase, de consistente”. Em relação a Milton Nascimento, apesar dos d os percalços, todos concordam sobre a


importância do músico na composição da banda. “Milton é um homem que tem um grande alcance musical. Ele vivia essa verticalidade da criação. Ele era um improvisador. O Milton oi músico, contrabaixista, é outra coisa. O resto não. Havia a tirania semi-oculta, subliminar, subliminar, no sentido de abricar o produto dentro do ormato que interesse à gravadora e ao mercado”, dene Fredera. Para ele, o Som Imaginário só existiu porque Milton orneceu essa possibilidade. Hoje, o núcleo roqueiro do Som Imaginário tem pouco ou nenhum contato com Milton Nascimento. Tavito e Zé Rodrix vivem em São Paulo e são amigos até hoje. Não vêem muito Fredera, que vive em Alenas, no sul de Minas Gerais. Levando uma vida tranqüila ao lado de sua esposa atual, o guitarrista largou o rock há tempos e hoje, revendo o psicodelismo de sua época de Som Imaginário, acredita que tudo não passou “de um golpe genial para abortar uma tomada da consciência mundial”: “quais são as diversas ormas de intervir em alguma coisa? Em primeiro lugar, corrompendo. A psicodelia oi uma iniciativa concebida dentro do sistema de segurança do império, pra azer rente ao avanço de uma tomada de consciência mundial em relação ao imperialismo, sob todos os aspectos. Há vinte e um anos eu soube de tudo, me deram um insight. Mas o pessoal que sabe disso, uma ínma minoria, não pode abrir a boca, porque se abrir dança, e dança correndo risco de eliminação pessoal, etc”. Apesar do pouco contato, Tavito se declara louco pelo antigo companheiro de banda: “ele nem sabe o quanto eu gosto das coisas que ele escreve”.

A pAz, O amor, VOcê “I like to see The rain or sunshine To be ree like the birds” (”Thank you my God”, do disco Geração Bendita, de 1971)


O

O ano era 1968. Carlos Koller era um hippie que já tinha rodado o mundo e resolveu se instalar na pacata pa cata Nova Friburgo. Encravada na região serrana do estado do Rio de Janeiro, a cidade oi undada em 1818, quando o Rei D. João VI mandou para lá algumas centenas de amílias suíças. Friburgo recebeu levas Rei de imigrantes europeus e, em meados daquela década de 60, já contava com um parque industrial, uma economia próspera e noventa mil habitantes. O Colégio Anchieta, jesuíta e rigoroso, era onde a nova geração de garotos g arotos riburguenses de boa amília se ormava – até aparecerem os hippies e o rockń roll.

“I like to see The rain or sunshine To be ree like the birds” ”Thank you my God”, do disco Geração Bendita, de 1971

O colégio uncionava em um conjunto monumental de prédios. Ali, só estudavam garotos – em internato, para ormação de padres, ou em externato. Os meninos de boa amília contrastavam com os malucos do Colégio Nova Friburgo, da Fundação Getúlio Vargas. Para a “Fundação”, iam os lhos renegados de amílias abastadas: “Quando o cara se constituía em problema, em persona non grata para sua amília, a Fundação era o seu destino”, lembra José Caetano, estudante certinho do Anchieta. Os alunos da “Fundação” eram quase sempre os responsáveis pelas bagunças e problemas que aconteciam em Nova Friburgo. Os dois colégios competiam em tudo – esporte, notas e até música, pois cada um tinha a sua banda de baile, que concorriam para tocar nos clubes e nas estas.

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A banda do Colégio Anchieta chamava-se 2000 Volts. Era ormada pelos irmãos Fernando, baterista, e Ramon, contrabaixista, além dos amigos Caetano, na guitarra-solo, e Nando, na guitarra base. “Ocorreu, então, que num dos ensaios e nsaios o Ramon, que usava um aparelho para correção dentária, levou um tremendo choque elétrico junto ao microone”, lembra Caetano. O garoto ainda exclamou: “Parece que eu levei um choque de mais de 2000 Volts!”, e assim oi batizado o grupo, que ensaiava na casa da Dona Gilda e do Fernando, os pais dos irmãos. O repertório consistia, basicamente, em Beatles e Jovem Guarda – Renato e seus Blue Caps, Ronnie Von, Golden Boys, Roberto e Erasmo Carlos.


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Conorme os ensaios oram cando mais reqüentes, os garotos resolveram procurar um lugar para tocar dentro do colégio. É claro que, de cara, os jesuítas responsáveis pela administração conservadora declinaram o pedido. Entretanto, o “Coordenador Spencer” simpatizou com a causa e resolveu ajudá-los. Seu primeiro “show” aconteceu em uma esta de aniversário onde, ainda envergonhados, esboçavam algum rockń roll com instrumentos emprestados. Aos poucos, oram pintando mais e mais convites para animar estas e bailes e a banda oi criando conança, movida a cuba libre e hi-. ***

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Enquanto os garotos certinhos do Anchieta agitavam as a s noites com o 2000 Volts, Nova Friburgo virou um campo de atração de malucos. Carlos Kohler undou em seu sítio a comunidade Quiabo’s, que disputava com a Abóbora’s para se tornar o maior destino de hippies do Brasil inteiro. Um recorte de jornal da época, guardado por Caetano, assim conta a história: “Depois de rodar o mundo, Carlinhos Kohler resolveu, em 68, plantar pla ntar rosas num sítio em Friburgo. Abriu uma loja de fores, echou logo depois: achava que não se deviam vender rosas; não eram produto para comércio. Resolveu ir morar no sítio, abriu uma vendinha de roça, onde oerecia produtos da lavoura, ‘coisas para comer’. Apareceu um amigo que azia artesanato a rtesanato no Rio, outros oram chegando, distribuindo-se pelas duas casas do sítio, que tem 52 mil metros quadrados. Casas de roça, eitas de pau a pique e telha, sem orro, uma com cinco e outra com dois quartos, a bomba de água do lado de ora, manual. Um rio corta o sítio, a cachoeira ca mais embaixo. emba ixo. Começaram a trabalhar com couro e cobre, que vendiam na eira de Friburgo. Faziam pequenas exposições, reproduzindo pinturas antigas do Egito e da Grécia, que às vezes demoravam até cinco meses para carem prontas. Carlinhos diz que q ue oi a ase mais bonita do sítio. - Havia muita harmonia, os amigos apareciam para visitar a gente, todo mundo sem grilos. No nal dos anos 60, brasileiros de vários cantos do país, e estrangeiros, constituíram um grupo de 68 pessoas que se estabeleceram nos arredores da cidade de Nova Friburgo, com o propósito de vivenciar um sistema baseado na natureza e no trabalho com o artesanato”. Os hippies moravam aastados, mas ma s iam ao centro de Friburgo vender artesanato e fores. Aos poucos, os garotos certinhos do Anchieta – já cansados das missas em latim e do conservadorismo extremo – oram oram se encantando por aquele universo. “Vinham grupos de hippies do Rio, se alojavam lá, tocavam música ate tarde. Eu achava aquilo legal, cada um azia o que queria, existia uma liberdade, dormíamos tarde depois de tocar”, lembra Sérgio


Regly, que azia parte da turminha. No começo, o que era só diversão esparsa Regly, esp arsa acabou virando rotina. Os meninos iam à comunidade, dormiam por lá, acordavam, iam almoçar com os pais na cidade e, no m da tarde, voltavam à Quiabo’s de jipe. As amílias, é claro, achavam tudo muito estranho. Os pais de Sérgio e Caetano eram amigos e discutiam entre si o que é que aqueles meninos crescidos a pão-de-ló estavam aprontando. “Eles criticavam: ‘isso é da juventude, isso é meio perigoso, vocês estão deixando o estudo de lado, estão estragando a saúde’, e a gente ‘não tem problema não’. Sempre se preocupavam”. Com os cabelos mais compridos, novas idéias e um universo musical inexplorado pela rente, o 2000 Volts virou coisa do passado. *** Não era ácil para uma cidade como Nova Friburgo abraçar aqueles malucos – mesmo que ossem dos mais tradicionais lhos da cidade. Os garotos viviam na pindaíba. Tiravam os sons em uma vitrola portátil. “Ouvíamos numa monoone, m onoone, era sacriício, para ouvir a pronuncia do inglês a gente tinha quase que entrar no disco”, lembra Sérgio. Com muito esorço, conseguiram comprar instrumentos de segunda mão e amplicadores pequenos. Os pais de Caetano cavam responsáveis pela avalização dos nanciamentos. Apesar de azerem muitos shows, quase não viam a cor do dinheiro. Ganhavam sobre a portaria nos clubes, e a maioria da platéia era sócia e não pagava para entrar. Ainda assim, os garotos esorçados e bem ensaiadinhos oram buscando apereiçoamento. Fernando saiu da banda; pelo posto de baterista então passou Tiãozinho, irmão de Caetano, que acabou indo aculdade no Rio de Janeiro e abandonou a unção. Finalmente, Serginho entrou já para a ormação denitiva. “Foi um grande acréscimo à banda naquele momento, devido à crescente habilidade exigida por conta do apereiçoamento dos repertórios. O Serginho representou um grande avanço no trabalho vocal e nos arranjos e interpretações, cada vez mais elaborados”, lembra Caetano. Houve, mais tarde, outra substituição – dessa vez, no posto de baixista. Por problemas de saúde, Ramon deu lugar a um amigo da turma, Tobi.

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“Pelo caminho do amor eu andei Pelo caminho do amor procurei A Paz, o Amor, Amor, Você ... Pelo caminho eu quero encontrar (Liberdade) Pelo caminho eu quero abraçar (Liberdade) Gente da vida que vive a cantar (Liberdade) Gente que esquece que a vida é má (Liberdade) Pelo, pelo, pelo caminho do Amor (Liberdade) Pelo, pelo, pelo caminho da Paz (Liberdade) Liberdade, Liberdade, Liberdade” (“A paz, o amor, você”, do disco Geração Bendita, 1971)

Enquanto os cabelos cresciam e os hábitos se liberalizavam, o repertório oi tornando-se cada vez mais contestador. A Jovem Guarda deu lugar a Cream, Stones, Led Zeppelin, Simon & Garunkel, Steppenwol, Santana. Nos shows havia poucas músicas brasileiras – “a não ser para agradar estudantes”, ri Sérgio. Os garotos, que antes a ntes concorriam com as outras bandas de baile, acabaram se dierenciando e se posicionando muito à rente dos conterrâneos. Com o amadurecimento do grupo, os integrantes sentiram a necessidade de mudar o nome 2000 Volts, encarado encarado como uma ase inanto-juvenil. Foi um proessor de Física que abriu os olhos dos músicos ao espectro solar, solar, com as sete cores, e os reportou às sete notas musicais primárias. Com imaginação e, segundo Caetano, “considerando até a sonoridade e a universalização do termo”, cou denido que eles agora se chamariam Spectrum. ***

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Nas comunidades Quiabo´s e Abóbora´s, tudo corria na mais santa paz. Tão bem que surgiu a idéia de produzir um lme para documentar e divulgar o modo de vida hippie. Carlos Bini, um dos moradores, apareceu com uma câmera e com a idéia na cabeça. Chegaram a gravar alguns curtas em 16mm, até que Carlos Kohler deu a idéia de lmar um longa. “A gente sempre az aquilo que sente, pode ser melhor ou pior, não importa. Nessa época, estava acontecendo Woodstock, e nós ormávamos a única comunidade ‘hippie’ do Brasil”, disse o rapaz a um jornal local de Friburgo, no mesmo recorte não-identicado guardado por Caetano. Segundo a reportagem, a idéia inicial era mostrar uma “sociedade decadente”. “Mas isso não uncionaria. A sociedade não está decadente, ela sempre oi. Começou a ser a partir do momento em que deixou de ser humana. Preerimos apresentar a tentativa da comunidade”, explicou Kohler, na mesma entrevista. Ele e Carlos Bini echaram o roteiro: um advogado, em meio aos papéis dos processos, tem um surto e se muda para a comunidade. Vira hippie e passa a azer parte da rotina do local, até que uma garota, lha da sociedade tradicional, se apaixona por ele e os dois vivem uma história de amor. Na época, doze pessoas moravam na comunidade. Todo Todo mundo parou o que estava azendo – echaram a venda, largaram o artesanato – para se dedicar inteiramente à produção do lme. Os garotos do Spectrum, responsáveis responsáveis pela trilha sonora, também abandonaram os shows e a rotina, já que nalmente poderiam gravar e ganhariam uma boa projeção no cinema. “Geração Bendita”, o título escolhido, começou começou a ser rodado em agosto de 1970. Os equipamentos oram oerecidos oerecidos por uma empresa e o orçamento para a execução oi pío. Normalmente, um lme era eito com 25 a 30 latas; “Geração Bendita” consumiu apenas 11. Visual completo para o guitarrista da banda O Spectrum já tinha um bom material pronto para a trilha sonora e ainda compuseram mais algumas canções. David, lho de ingleses, se juntou à turma e colaborou nas composições, especialmente nas em inglês. inglês . Kohler e Bini alugaram os estúdios Todamérica, na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, e despacharam a moçada para gravar. Com equipamentos


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medianos e arranjos de um maestro, o resultado nal oi um disco espetacular de 29 minutos. À primeira audição, o Spectrum se passaria acilmente por uma banda de rock estrangeira – com belas melodias, guitarra ultradistorcida e agressiva, além de arranjos vocais bem trabalhados. Um ouvinte mais atento, em seguida, repara nas letras:

“Caminhando, caminhando vou No Quiabo’s vou chegar Lá encontro, lá encontro Em verdade o meu lugar Gente pura prá se amar Muita Paz, vou meditar Não importa, não importa Sexo, cor ou idade No Quiabo’s, no Quiabo’s Você tem Liberdade O astro intensidade A for tem vaidade” (“Quiabo´s”, do disco Geração Bendita, de 1971)

“Quiabo´s”, “15 years old”, “Trilha antiga”, “Thank you my God” e “Pingo é letra”, são rock ‘n’ roll, já pendendo para pa ra o hard rock, com guitarras distorcidas e vocais ortes. “Concerto do Pântano” é instrumental, com wah-wah e eeitos estranhos, leve, totalmente psicodélica. Gravadas com viola caipira, as baladas balada s “Mother Nature”, “May you are”, “Tema “Tema de amor” e “Maria Imaculada” são belas bela s melodias. E a última aixa do disco, “A paz, p az, o amor, você” lembra um luau, com violão e bongôs, no melhor estilo hippie. ***


É claro que toda essa arra não passaria desapercebida. A sociedade de Nova Friburgo já não gostava daquela invasão hiponga. Documentar aquilo, então, oi demais. O grupo era sistematicamente perseguido pela polícia local. “Para pronunciar ‘maconha’, tinha que alar baixinho”, lembra Sérgio. O delegado da cidade, Amil Nei Richard, era o inimigo número um dos hippies. Vestia-se impecavelmente, de terno branco e chapéu de palha. Quando encontrava os hippies reunidos em rente à padaria Normandie, azia questão de demonstrar sua autoridade.

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Em meio à produção de “Geração Bendita”, Nei Richard prendeu todos os atores e a equipe técnica do lme. O jornal “O dia”, de 27 de novembro de 1970, narrou: “Ontem, aproveitando-se de uma cena mais audaciosa, onde os artistas apareciam num jipe psicodélico, de cores berrantes e desenhos avançadíssimos, o delegado entrou em cena e bradou: - Corta! Está todo mundo em cana. Ninguém sai de cena. As representações serão, agora, no xadrez, mas com artistas carecas e todos de banho tomado, asseados e limpos. Houve protestos e correrias. O povo vaiou, mas as ordens do delegado oram integralmente cumpridas”. Nei Richard trocou as batas indianas por vestimentas normais e tratou de raspar as cabeleiras e as vastas vastas barbas dos hippies. “Fãs dos artistas ‘hippies’ reuniram-se diante da delegacia e zeram protesto coletivo contra a prisão. Alguns, inconormados com a desguração sionômica dos astros e estrelas, chegaram a ameaçar de depredação a delegacia, sendo contidos a muito custo pelos policiais. (...) As jovens estrelas do lme todas lindas, de plástica invejável e linhas aerodinâmicas mostraram-se indignadas com a atitude policial”, narrou o mesmo jornal. Segundo a reportagem, as atrizes aerodinâmicas disseram que o delegado oi “quadrado, retrógrado e abusou de sua autoridade”. Ouvido pela reportagem, justicou sua atitude dizendo que a “operação tosquia” aconteceu porque a presença dos cabeludos “causou “causou uma série de problemas para a cidade”. Nei Richard temia que os hippies ossem responsáveis por aliciamento de menores e, além de cortar os cabelos, deu um prazo de cinco dias para os que eram de ora de Friburgo deixarem o local. O diretor Carlos Bini, segundo a reportagem, entrou com uma ação de perdas e danos contra o abuso de autoridade do delegado.


A moçada oi liberada, mas os problemas não terminaram. Depois de concluídas as lmagens, “Geração Bendita” oi proibido pela censura, com várias cenas cortadas. Carlos Bini teve que reagrupar toda a equipe para regravar algumas dessas partes. O nome “Geração Bendita”, censurado, deu lugar à “É isso aí, bicho”. O resultado nal oi lançado em 1972 e anunciado como “O primeiro lme hippie brasileiro”, “eito em uma comunidade hippie autêntica”. Entretanto, só é válido pelas histórias de bastidores.

”O homem tingiu vermelho a terra O branco, a Paz, perdeu há muito a guerra Gente, eu vou me embora (vou sair por aí) Vou procurar um mundo melhor Prá quem sabe ler um pingo é letra Gente, eu vou me embora (vou sair por aí) Vou procurar um mundo melhor ...One day a man called John talked about this” (“Pingo é letra”, do disco Geração Bendita, de 1971)

A película é uma preciosidade, mas não cinematográca – os atores amadores têm uma interpretação risível, a dublagem é maleita, há vários erros de seqüência e cenas clichês. Vale destaque para a cena em que o advogado Carlos, interpretado pelo próprio Bini, surta: ele levanta de sua mesa, em seu escritório, e sai gritando “Tô maluco! Tô louco”. Enquanto corre, ao undo, começa a tocar “Aleluia, aleluia”. Outra cena bizarra é a perseguição hippie a um porco indeeso. Depois de aprisionado, Carlos dá uma marretada na cabeça do rágil leitão e o grupo come o bicho com as mãos, se lambuzando na carne tenra e engordurada. Isso ora os banhos coletivos com todos nus e as estas, em que a música nunca é sincronizada com a imagem. O lme, mesmo depois de liberado pela censura, oi um asco. Para pagar os Cr$ 300.000 que gastou, Bini teve que colocar a venda os sítio Quiabo’s e Abóbora’s.


Mesmo após o asco, “Geração Bendita – É isso aí, bicho” tem um enorme valor. A trilha sonora é espetacular e até chamou a atenção do amoso DJ carioca Big Boy, mas sem chegar a tocar no rádio. Aos poucos, os músicos oram desestimulados. Depois da gravação do disco, a banda não voltou a se apresentar. “Aquilo oi desanimando”, lembra Sérgio. Eles chegaram a atuar em outro lme de Carlos Bini, “Guru das sete cidades”, mas logo depois acabaram. O dinheiro continuava não entrando e ainda havia prestações de instrumentos para pagar. “Cada um começou a se denir para o seu lado prossional, e aí a música oi sendo esquecida e o grupo parou”, diz o baterista.

”Viemos cansados Por uma estrada tão antiga Somos jovens velhos Inância perdida Mocidade violada Inância perdida” (“Trilha Antiga”, do disco Geração Bendita, de 1971)

Cada um dos integrantes oi para o seu lado. Caetano virou uncionário público, Sérgio projetista industrial, Fernando trabalha com inormática no Rio e David tornou-se pecuarista. Tobi morreu em um acidente de carro, na década de 90. Os ex-integrantes casaram-se, tiveram lhos, e como a maioria ainda mora na mesma cidade, mantêm algum contato. No início do século XXI, os pacatos p acatos cidadãos riburguenses oram surpreendidos por um teleonema: um selo alemão chamado Psychedelic Music estava interessado no já esquecido trabalho. “O que havia restado para o uncionário público aposentado apos entado José Luiz Caetano, 49 anos, era apenas uma ta cassete, que ele ouvia em suas viagens de carro pela serra. ‘Chorava de alegria e tristeza. Sentia um arrepio ao ver a amplitude do d o trabalho que tínhamos eito. E tudo se perdera no vento, jogado em alguma prateleira’”, diz José Luiz em

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reportagem de Silvio Essinger, no Jornal do Brasil de 14 de evereiro de 2002. Na década de 90, o disco do Spectrum havia sido descoberto pelo pesquisador musical Luiz Antônio Torge, que mantém o site “Rato Laser”. Torge enviou a ta a Thomas Hartlage, do selo Psychedelic Music, que arregalou os olhos. “’Fiquei tão impressionado com o som e com as composições que passei um ano tentando comprar o LP original. Por m, consegui uma cópia no Brasil, pela qual paguei US$ 1.500’, diz Hartlage. E a ama de Geração bendita se espalhou. ‘Ele é uma jóia da música psicodélica’, elogia Hans Pokora, autor da série de livros Record collector dreams, que compila capas de raridades roqueiras do mundo inteiro. ‘Além de ser ótimo, ele é raro também, o que torna a obra ainda mais cultuada’, acrescenta Luiz Antônio Torge. Torge. ‘E o ato de as músicas não serem covers de bandas ba ndas da Europa ou Estados Unidos deixa os colecionadores loucos’”, narra a reportagem de Silvio Essinger. Caetano era o único dos músicos que acessava a cessava reqüentemente a internet. Um dia, entrou em um site de música psicodélica e qual não oi a sua surpresa quando se deparou com a capa de “Geração Bendita”. O site era o “Rato Laser”. Torge apresentou o músico para o pessoal do Psychedelic Music, que se oereceu para relançar o disco, remasterizado. Caetano e os outros integrantes começaram então uma encruzilhada para promover p romover o relançamento. A bolacha, de 180 gramas, oi relançada em edição limitada e oi disputada pelos colecionadores. Segundo a reportagem de Essinger Essinger,, toda a tiragem de 410 cópias oi vendida em uma semana. O sucesso internacional era tão grande que o original, de 1971, chegou a sair por US$ 2,5 mil dólares nos Estados Unidos. Sérgio Regle conta que, depois que se aposentou, comprou equipamentos – dessa vez, amplicadores Marshall, microones, instrumentos, pedaleira, tudo de ponta. Mas a empreitada não deu certo: “O pessoal já está meio desanimado, cada um curtindo seu lado amiliar de pai, de avô”, conta. Tudo o que sobrou oi um violão, em que o músico continua tocando o que gostava na adolescência.

sexo, drogAs e cAboclos juremAdos


N

o meio do sertão pernambucano, em Brejo da Madre de Deus, cidadezinha a 180 km de Recie, ergue-se uma monumental construção eita para simular a terra em que Jesus nasceu. Em Nova Jerusalém, todos os anos, é apresentada uma simulação da Paixão de Cristo de dimensões colossais, que anos, chega a envolver 500 atores. Pois bem: oi nesse mesmo local, em 1972, que o estado de Pernambuco viu aforar a geração mais maluca de sua história. Assim como no resto do país, a brecha para o surgimento do desbunde oi aberta alguns anos antes pelo tropicalismo – em Pernambuco, capitaneado pelas guras de Aristides Guimarães, Celso Marconi e Jomard Muniz de Britto. A expressão máxima do tropicalismo reciense oi o LSE, Laboratório de Sons Estranhos. Como o nome já diz, tratava-se de um espetáculo musical anárquico conduzido por Aristides, Geraldo Amaral Ama ral e Robertinho do Recie – este último, conhecido como “Jimi Hendrix de Pernambuco”, dava um show na guitarra e na cítara. O jornalista José Teles compara a perormance do grupo a que o Velvet Underground azia exatamente na mesma época, ép oca, em Nova York. Em 1972, Recie era uma cidade pequena, com hábitos provincianos, marcada por uma prounda desigualdade social. A sociedade de lá era ainda mais conservadora do que a do Rio de Janeiro e a de São Paulo. Drogas? Se um pai mais arretado descobrisse que o lho estava umando maconha, era capaz de mandá-lo direto para o hospício. Em meio às condições adversas, surgia em Recie uma turma preocupada com a arte e com o espírito, que se reunia para cantar e tocar violão, ormando e desormando bandas para se apresentar no bar-símbolo daqueles tempos, a Drugstore Beco do Barato. Localizado no centro de Recie, o bar era tão moderninho que até o jornal underground Rolling Stone, carioca da gema, o estampou em suas páginas, em agosto de 72: “Quem or

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ao Recie não deve deixar de procurar o Beco do Barato, um barzinho muito gostoso, com música ao vivo, que vende discos importados e tas cassete”. No Beco do Barato não havia preconceito de classe, de sexo ou de raça. Os lhos da aristocracia a ristocracia pernambucana – que quase sempre já tinham desbundado em intercâmbios no exterior – conviviam em harmonia com bancários, desempregados e hippies que se alimentavam de luz e arte. Um desses reqüentadores era Lula Côrtes. Nascido na Base Aérea de Recie, desenhista desde que nasceu, Lula na inância tinha que ugir do avô que, quando bebia, o obrigava a mostrar o dote artístico para os amigos. Por causa do trabalho do pai militar já havia morado no Rio de Janeiro e em Minas, mas voltou à cidade natal ainda adolescente. Por sua aproximação com pilotos americanos, tinha inormações privilegiadas sobre os acontecimentos musicais estrangeiros – gostava de Rolling Stones e Bob Dylan, e cou sabendo de Jimi Hendrix bem antes de seus conterrâneos. Mesmo provindo de amília abastada, resolveu largar tudo quando ainda era moleque, virou Beatnik e oi morar na rua. Nessa época, trabalhava como desenhista e conheceu a descolada estudante de arquitetura Kátia Mesel, companheira de desbundes e utura produtora literária, artística e musical da cena pernambucana. Laílson de Holanda Cavalcanti também pertencia à classe mais abastada de Recie. Adolescente, ez intercâmbio nos EUA, em Arkansas, Arkansa s, onde terminou o high school e apereiçoou seus dotes de desenhista. Assim como Lula, Laílson também atuava na música – na temporada norte-americana, chegou a montar uma banda cover de Jimi Hendrix e Creedence. De volta ao Recie, se enturmou tão bem b em entre os descolados que oi convidado pelo pessoal do DCE da Universidade Federal de Pernambuco para ser o coordenador musical de uma empreitada ousada nos anos de chumbo: um estival de música ao ar livre. Em Nova Jerusalém.


Cercaram de cimento janelas, portas e metais O rio onde nadavam meus peixes azuis Levaram embora o som e deixaram as naves espaciais Nos programas e gibis pra me enganar Mas voei em meu cavalo de ugas Pra onde quer que osse o pássaro Louco em meu coração (“Vacas Roxas”, da banda Phetus, sem gravação, de 1973)

o sl  1968: à q, ih  à , al  ol

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A I Feira Experimental de Música do Nordeste, que aconteceu em onze de novembro de 1972, reuniu a “juventude prarentex” de Recie. O “Woodstock cabra da peste” não nã o deixou nada a dever para o original caliorniano: lendas dão conta que a platéia divertia-se tomando ácido dissolvido em baldes ba ldes de Q-suco. Foi entre aquele “pôr e nascer do sol” que subiu ao palco uma recém-ormada banda, ainda sem nome, composta por jovens músicos da perieria do Recie. *** Marco Polo Guimarães nasceu para escrever. escrever. Assim como seus companheiros Laílson Laíls on e Lula Côrtes, embarcou na viagem de sua vida desde cedo. Em 1966, aos 18 anos, lançou seu primeiro livro de poesias. Em 1969, começou no jornalismo no Diário da Noite, em Recie. Depois, de carona, oi ao Rio de d e Janeiro. Sem conseguir emprego lá, partiu para pa ra São Paulo, onde teve mais sorte: conheceu o conterrâneo Fernando Portela, editor de Cidades do Jornal da Tarde, que lhe oereceu uma vaga no jornal e um lugar para morar. morar. Marco sentia alta do mar e sempre que podia, escapava para passar o nal de semana no Rio. Acabou voltando para a capital fuminense, onde vivia de trabalhos reelance para a editora Bloch e curtia umas com os companheiros desbundados desbunda dos Paulo Vilaça e Ezequiel Neves, que havia conhecido na redação do JT. Nessa temporada no sudeste, Marco Polo escreveu e compôs muito. Quando retornou a Recie, no nal de 1972, encontrou uma cena musical eervescente, cheia de músicos criativos e talentosos, prontos para despejar energia em suas composições. Uma banda da época, Os Selvagens, era ormada por jovens de classe média baixa – entre eles, o estudante de engenharia magricela Almir de Oliveira, o percussionista Agrício Noya e o talentoso guitarrista guitarrista Ivson Wanderley, Wanderley, o Ivinho. Anos antes, Almir já havia sido apresentado a Marco Polo por Rafes, amigo que era e ra “tipo um imã, agregava todos ao redor dele”, como lembra o jornalista. Enquanto este estava no Rio e em São Paulo, a turma de Almir se aproximou de Laílson – mas Marco voltou e houve uma debandada em sua direção. “A gente cou entre os dois. Pela questão de identicação musical, começamos a azer o


trabalho com o Marco, mas demos um suporte a Lailson”, lembra Almir. A aproximação oi inevitável e logo oi criada uma banda, ainda sem nome, cuja estréia seria na esperada Feira Experimental de Música. A turma oi à Nova Jerusalém de ônibus, na sexta, dia anterior ao estival, para ajudar nos preparativos. Passaram a noite toda trabalhando e azendo arra – quando amanheceu, estavam todos cansadíssimos, não haviam dormido. O único que tinha conseguido pegar no sono era Ivinho – que, na manhã de sábado, acordou com um dos olhos vermelho-sangue, por causa de um inoportuno derrame na vista. O show de estréia da recém-ormada banda estava marcado para as 3h da madrugada. Almir de Oliveira mal se agüentava de sono e pediu que Laílson, o organizador, mudasse o horário para meia-noite. O pedido oi negado. “Eu sei que, quando deu uma, duas horas da manhã, eu arriei, ui dormir. E aí, quando deu três horas, acordei com Laílson e Ivinho me chamando”, lembra o baixista. A banda subiu ao palco com ele bêbado de sono e Ivinho tocando de costas para a platéia, de óculos escuros, por causa dos olhos sensibilizados. Apesar do suoco, oi ali que o grupo ganhou orma e nome: Tamarineira Village. Tamarineira era o nome de um hospício amoso na época em Recie, e o Village (que é pronunciado “Világe”) azia reerência à vila de comerciários da cidade, de onde vinham a maioria dos integrantes. Rafes, Marco Polo, Agrício Noya, Almir de Oliveira, Ivinho e Israel Semente começaram a ensaiar. Um mês depois da estréia em Nova Jerusalém, a banda deu o primeiro passo para o sucesso na capital pernambucana: um show no Beco do Barato, em 17 de dezembro de 72. No nal dessa apresentação, as meninas voaram para cima dos músicos: “Eram todas garotas da zona sul, de amílias burguesas ou classe média-alta, que andavam em carros último tipo e que, até então, não tomavam conhecimento da gente (éramos pobres p obres e só andávamos de ônibus). Ficamos ali, parados, sem querer q uerer acreditar, acreditar, enquanto éramos abraçados, beliscados, e amolegados. Dali em diante, nossa vida sexual tornou-se um

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paraíso”, lembra Marco Polo no livro Memorial. O som embrionário do Tamarineira Village era uma oportuna mistura de Rolling Stones com baião, Beatles com Jackson do Pandeiro, chiclete com banana. Como em Recie os discos demoravam ainda mais a chegar do que no sudeste brasileiro, os garotos iam ouvir rock nos puteiros. Era lá que os marinheiros recém-chegados da América, repletos de novidades musicais, iam se divertir. Além da energia juvenil do rock’n’roll, a ormação musical dos garotos ga rotos passava, obrigatoriamente, por Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Capiba, e a raiz cabocla do maracatu. Lula Côrtes, inclusive, diz que a raiz da psicodelia nordestina está ali: nos caboclos juremados, que criavam sob infuência da jurema, planta alucinógena, e de cachaça com pólvora, o “azougue”.

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Por estarem envolvidos nessa salada de infuências, ninguém queria ser classicado. “Tanto azia ser samba, como rock, como baião, como valsa. A gente não tinha essa preocupação”, arma Marco Polo. Almir concorda, dizendo que usão musical era espontânea: “Deixamos que essa ormação musical que a gente tinha se liquidicasse dentro de nós. Quer dizer, aquilo que estava saindo, não era que a gente estava pensando ‘vamos misturar isso com aquilo’, não, já saía misturado. Anal de contas, o nosso próprio corpo já nasceu de uma mistura”. *** Durante a Feira Experimental de Música, Laílson conheceu – e se encantou – com Lula Côrtes. Como ambos eram artistas plásticos e também se aventuravam na música, tiveram anidade imediata. Lula havia acabado de voltar de uma temporada no Marrocos, de onde trouxera um tricórdio, uma espécie típica de cítara. Começaram encontros reqüentes na

c     sw

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casa de Lula, onde os dois viajavam tocando o novo instrumento e um violão de 12 cordas. Laílson cava na base com a viola e Lula improvisava por cima com o tricórdio. “Juntamos dois hemisérios planetários, o som do Oriente, o som do Nordeste e o som que tinha infuência do blues, cultura aricana. Nós teorizamos: ‘você usa uma escala que eu não nã o uso, no entanto encontramos um equilíbrio dentro disso, juntando dois universos dierentes, juntando dois sons e criamos um terceiro’”, dene Laílson. A dupla chegou a gravar alguns improvisos em ta de rolo, no estúdio que q ue Lula tinha em casa. Kátia Mesel, esposa de Lula na época, sugeriu aos dois que zessem um disco “de verdade”. Procuraram a Rozemblit, gravadora reciense que tinha tido seus tempos áureos com o revo, mas naqueles anos amargava uma grave crise nanceira. Laílson pegou as economias que estava juntando para pa ra voltar aos EUA, Lula completou com o que tinha e a dupla alugou o estúdio. As diculdades técnicas eram enormes: “O “O disco tem um ‘ake stereo’, na verdade a aixa mono é reproduzida nos dois canais. Se ôssemos azer um playback, não podíamos car muito longe da mesa de som, senão dava delay!”, lembra Laílson. No nal, deu certo. Em pouco mais de duas semanas, varando noites seguidas – e deitando e rolando nos equipamentos e no parque gráco à disposição – a dupla de artistas nalizou o trabalho. Totalmente experimental, a produção musical e artística do disco cou por conta do trio Lula, Laílson e Kátia. Satwa oi lançado logo no início de d e 1973. Inspirado na losoa hindu, o nome “é o terceiro aspecto da realidade, o intermediário, a harmonia, a interace entre o espírito e a mente, dentro de um conceito brâmane”, explica Laílson. No disco, instrumental, há viagens musicais pré-construídas – como “Blue de um cachorro muito louco”, cujo solo de guitarra (eito por Robertinho do Recie) se estende por quase cinco minutos e mistura-se com o som metálico do tricórdio. Em Satwa há também improvisos eitos na hora, como “I can be satwa”, cuja viola remete às origens nordestinas da dupla. “Fizemos todos os tipos de experimentação, como uma letra em que cada silaba é uma nota”, lembra Laílson.


O público pernambucano achou aquilo tudo muito estranho. “Aqui em Recie, na época em que a gente ez, a maioria das letras era muito engajada no problema político. Não que nós não ôssemos, mas orçadamente eles viviam com aquela sombra da Bossa Nova, da orma de cantar o protesto bem em cima dos ídolos da d a época, como Chico Buarque. A gente começou, por causa do psicodelismo, a dar esse recado num outro nível”, dene Lula Côrtes. Para Laílson, o disco é “uma contravenção completa dentro do sistema repressivo”. O conronto com o sistema era mais subjetivo – sem letras, o som psicodélico e os títulos das músicas eram as erramentas para passar a mensagem de contestação. Nomes como “Valsa dos Cogumelos” e o próprio “Blue do cachorro muito louco” representam bem o espírito da dupla. “Todo mundo alava ‘Lula Côrtes e Lailson são doidos’, sabe?”, lembra Lula. Depois da incursão no estúdio, a dupla seguiu caminhos dierentes. Laílson queria azer shows e reaver o dinheiro que havia investido na gravação – mas o amigo resolveu se dedicar às artes plásticas. “Foi uma coisa que me deixou surpreso, investi toda minha grana no disco”, diz Laílson. Naquele início de 1973, sem dinheiro e desiludido, Laílson oi convidado para tocar no Beco do Barato. Acabou chamando dois amigos e, dessa vez, nada de olk psicodélico: o negócio era rock medieval. *** Paulo Raael era um garoto de 17 anos que usava óculos undo de garraa e estava conhecendo o pessoal do Beco do d o Barato. O primeiro da turma que se aproximou dele oi Laílson, artista mais velho que lhe rendia um misto de estranheza es tranheza e admiração. “O cara passava na rente da minha casa com uma cara de louco, ele e o Robertinho do Recie, que eram os caras que tinham vindo da América, e era meio mito. Tinham cabelão, nem aí, andando na rua meio passeando, meio futuando”, conta Paulo Raael, que na época tocava em uma bandinha de colégio “ruim pra caramba”, mas que ao menos tinha equipamentos,

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ph  pá  s p, rf

coisa rara em Recie. Ele conseguiu levar o companheiro Laílson para o conjunto e, como conta, aos poucos os dois oram tomando a banda para si. “Fomos cando com os equipamentos e botando os músicos pra ora”, ri Paulo. Para o show no Beco do Barato, Laílson ainda chamou o colega de conservatór conservatório io José Vasconcelos de Oliveira, uturo Zé da Flauta, também com 17 anos. Declaradamente infuenciados por Jethro Tull, surgiu a idéia: “porra, bicho, vamos azer rock medieval”, lembra Paulo Raael. Estava criado o Phetus. O primeiro passo para a construção do tal clima medieval oi a mudança de nomes: Laílson, que tocava craviola de 12 cordas, passou a ser Laylson; Paulo Raael virou Paulus Paulus Raphael, encarregado da viola de dez cordas; e Zé, na fauta doce, tornou-se Jhosé. De rock medieval mesmo, só tinham a intenção. Como não


possuiam instrumentos, oram oram obrigados a criar a banda de rock totalmente acústica. A sonoridade tinha ortes infuências progressivas, que se misturavam a ritmos nordestinos, trazidos por Paulo Raael, originário originário de Caruaru, e Zé da Flauta, ligado nas bandas de píano. Desde o dia da estréia, o Phetus só tocava depois da meia noite. Além das músicas malucas – tinha uma com letra em tupi-guarani -, uma apresentação do grupo era cheia de eeitos e eitos especiais. Laílson azia projeções p rojeções de slides com otograas estranhas, preparava eeitos com gelo seco, azia os gurinos baseados em camponeses medievais. O clima era ainda mais estranho porque toda a carga pesada e gótica contrastava com o som acústico da banda. ba nda. Hoje, Paulo Raael diverte-se com a história. “Zé da d a Flauta com aquela fautinha doce, não tinha o menor impacto. Para tentar chocar, ele colocava a fauta no nariz, ele tem um ventão. Era um olclore danado”. Enquanto o Phetus azia sucesso no Beco do Barato, a Rozemblit percebia que alugar os estúdios para aqueles doidões podia ser uma maneira de sair do vermelho. No comecinho de 73, capitaneada por p or Marconi Notaro, a turma psicodélica nordestina se reunia para gravar um dos maiores registros da cena: Marconi Notaro no Subreino dos Metazoários. Em “Do revo ao manguebeat”, o jornalista José Teles diz que Marconi já havia tentado ser músico, poeta, escritor, produtor produtor de discos e até criador de porcos, numa granja chamada Sítio Ação. Quando surgiu a idéia de gravar o disco, procurou Lula Côrtes e Kátia Mesel e lançou a idéia, abraçada naquele mesmo instante. A Marconi e Lula juntaram-se outros personagens da cena - Robertinho do Recie, Israel Semente, Agrício Noya, Zé da Flauta e um paraibano recém-chegado à cidade, Zé Ramalho. A turma se internou no estúdio da Rozemblit, em dias anárquicos de criação e gravação. A maioria das músicas saiu na hora, de improviso. O disco tem uma salada musical que passeia entre o samba de “Desmantelado”, a sonoridade e as letras lisérgicas de “Antropológica”, o improviso sentimental de “Não tenho imaginação pra mudar de mulher”, aixa só com viola

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e voz, e “Maracatu”, que levou os tais tambores tamb ores caboclos para dentro do estúdio. *** Naqueles idos de 1973, o Tamarineira Village era a maior banda de Recie. Shows lotados, ãclube, mocinhas histéricas, turnês pelo nordeste - mas o sucesso não tirou os músicos do aperto nanceiro. Marco Polo, Almir, Ivinho, Israel, Rafes e Agrício eram todos de origem humilde;


dentro do Tamarineira sobrava talento, mas altava prossionalismo para azer a banda gerar dinheiro. O aperto era tanto que, para tocar ora, os músicos tinham que pegar carona na estrada. No início daquele ano, oram passar uma temporada em Salvador, onde alugaram uma casinha e sobreviveram à base de shows, até que estes caram mais escassos. Sem dinheiro e no perrengue, arrancaram as portas da casa e zeram ogueiras para cozinhar. Depois, largaram o imóvel depenado e se mandaram para Recie. De volta à terra natal, Marco Polo capitaneou uma mudança estrutural no Tamarineira: era hora de se prossionalizar. Buscando melhorar o quadro técnico da banda, o primeiro passo oi demitir Rafes, que uncionava bem como mentor intelectual e agitador, mas não como músico. Paulo Raael, que ainda era do Phetus e acompanhava a turma do Tamarineira nas andanças e cantorias pelas ruas de Recie e Olinda, oi então convidado a entrar na banda. A idéia inicial era que tocasse baixo no lugar de Almir, mas o garoto acabou trocando de instrumento por insistência de Ivinho, que sentia alta de uma guitarra-base. Quando o convite oi aceito, Laílson e Zé da Flauta caram chateados. E Paulo Raael, do alto de seus 17 anos, sem saber direito como, se viu dentro da banda mais transada da cidade. “Eu não azia muito o perl deles, eu era muito mais lhinho de mamãe, cheio de rescurinha. E eles já tinham vindo de Salvador, de Sergipe, pedindo dinheiro na rua, os caras já estavam com uma casca grossa. Eu era caé com leite”, conta ele. Claro que o garoto tinha que ouvir sarro de todos os outros integrantes da banda, mas mesmo sendo mais novo e bem dierente do resto, sua entrada oi undamental para a trajetória do grupo dali em diante. “Quando eu entrei, o troço mudou. Como se osse transormar em uma coisa menos esquisita do que era, menos sorida. A história para trás tinha sido muito batalhada, muito cheia de diculdades”, dene. A mudança começou pelo nome da banda. Foi uma cigana do interior da Paraíba quem deu a sugestão: dali em diante, eles seriam o Ave Sangria. Depois de quase dois anos como Tamarineira Village, a banda havia juntado um repertório

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considerável. Além de ensaiar e dar novas roupagens às músicas antigas, essa era a hora de considerável. compor, compor, compor. As mudanças injetaram ôlego criativo em todos os integrantes e seus encontros, antes espaçados e desorganizados, tornaram-se mais reqüentes, tanto em ensaios ormais ou em andanças pelo centro de Recie, onde tocavam violão, cantavam e criavam em conjunto. “Em composição a gente interagia muito. Era comum, quando azíamos uma música, mostrar pros outros. Então a música de um servia de reerência para o outro. Quando o Marco mostrava uma música, eu pensava ‘eu tenho que azer algo desse nível pra rente’. Quer dizer, o que a gente tinha era esse estímulo para que a criação osse cada vez melhor. Era como se osse um jogo de basquete em que a bola, o tempo todo, estivesse correndo de mão em mão, tanto em música, como em arranjo”, lembra Almir de Oliveira.

Primeiro as pernas voaram De borracha, de nada Ou músculo leve Salto livre O suciente pra planar E o corpo todo oi atrás Em cima, embaixo dos lados, no meio Centro do mundo E os violões brilharam sobre a noite Enquanto as lâmpadas de mercúrio Iluminaram a praça Caracóis, pedras e lesmas Pernas roçam de leve o chão


E os olhos abertos E o sorriso De quem se liga no mar (“Momento na Praça”, do disco Ave Sangria, de 1974)

Em uma das inúmeras andanças musicais por Recie, o grupo parou numa praça, em Casa Forte, onde havia uma eira hippie. Todos sentaram sob o luar, tomaram um ácido e passaram a madrugada alucinados, tão doidões que não conseguiam nem alar uns com os outros. “A gente tava vendo lesma caindo e tinha tinha uma lâmpada orte que parecia que era dia”, lembra o guitarrista Paulo Raael. Foi naquela noite catártica que compuseram, coletivamente, “Momento na praça”. Entretanto, esta canção oi uma explosão única, literalmente psicodélica. Não era tão ácil assim conseguir um ácido e as criações da banda não estavam diretamente atreladas às experiências lisérgicas. No máximo às canábicas, especialmente à amosa espécie nordestina manga rosa. Mas não há como negar a infuência do psicodelismo nas criações do Ave Sangria, mesmo que não ligadas diretamente ao LSD. “Quando você abre alguns portais portais da mente para absorver e para expressar as inormações que recebe, você passa a dizer coisas de uma orma que nem sempre é aquela que as pessoas estão acostumadas”, dene Almir de Oliveira. Marco Polo, o principal letrista, considera-se infuenciado pela linguagem descontínua e pelo surrealismo. Para ele, “Geórgia, a Carniceira”, “Corpo em Chamas” e “Momento na Praça” “traduzem a questão do psicodelismo no sentido de não ter um sentido óbvio. São viagens, são coisas para além da realidade”. A banda, cada vez mais anada, acompanhava o ritmo lisérgico das criações. “Geórgia, a Carniceira”, tem guitarras distorcidas, um batuque violento e um ritmo renético, que acompanha a letra de Marco Polo em desespero:

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Geórgia, a carniceira dos pântanos rios Das noites do Deus satã Jogando boliche com as cabeças cabeças das moças mortas de cio No levantar das manhãs de abril (“Geórgia, a carniceira”, do disco Ave Sangria, de 1974)

“É tocada de uma maneira nevrálgica, cheia de nervuras. Muito estranha. Acho que ela é uma música que sintetiza a banda”, dene o vocalista. “Corpo em chamas” é bem rockń roll, com cada guitarra indo para um lado, um baixo marcante e palmas; muito dançante, a pegada contrasta com a letra dramática de Marco Polo, que remete a um nal de relacionamento: “‘Corpo em chamas’ é psicodélica na música, que é descontínua, cheia de mudanças de andamento, anda mento, refetindo a ragmentação do discurso poético psicodélico”, sintetiza o autor autor..

Quando eu botar ogo na roupa você vai se arrepender do que me ez, Você vai ver meu corpo em chamas pelas ruas, oh yeah, E o povo todo horrorizado Iluminado pelo meu ulgor mortal Eu vou dançar Girando o corpo incendiado Até cair no chão chão O grito agudo da sirene Dos bombeiros


Alertando a multidão Alguém alando que era um louco No céu negro, a lua cheia a brilhar Segure a mão de uma criança A mão gelada E a mãe gritando: “Não e não!” E eu tão eliz Girando colorido Sob as chamas do luar (...) A presença selvagem De um clarão vermelho Rodopiando pelo chão Esse sou eu Dorido, dolorido Colorido e sem razão Ou não... (“Corpo em chamas”, do disco Ave Sangria, de 1974)

Bem dierente de “Corpo em Chamas” e “Geórgia, a Carniceira”, “Seu Valdir” é leve, malandra, e – talvez até por sua simplicidade – polêmica. A letra é uma declaração de amor a um tal de “Seu Valdir”. Na voz de Marco Polo, era recebida com escândalo na conservadora Recie. Originalmente, o cantor havia eito a composição no Rio de Janeiro

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para ser cantada com uma pegada peg ada caona por uma mulher, Marília Pêra, na peça A Vida Escrachada de Baby Stomponato, de Bráulio Pedroso. A música acabou não sendo aproveitada no teatro, mas oi muito bem usada usad a pelo Ave Sangria, que a transormou em um samba malandro com guitarras. *** Só a sonoridade e as a s letras do repertório do grupo já bastariam ba stariam para chocar a conservadora sociedade nordestina, mas os cabeludos chegaram ao auge nos inúmeros shows que zeram ao longo de 1973 e 1974. Enquanto o rockń roll malandro corria solto no palco, ensaiadíssimo e repleto de improvisos e novos arranjos, os músicos dançavam, passavam batom... e se beijavam. “A gente sempre dava beijo na boca um do outro, e isso provocava provocava reações contraríssimas”, ri o vocalista. Até Paulo Raael, o caé-com-leite, entrava na onda. “Eu ia junto. Se eu não osse, pô, tava expulso da banda!”, lembra. A platéia, provavelmente mais louca do que os próprios artistas, ia ao delírio. “Rapaz, o público curtia muito, gostava muito, pulava, dançava, sabia sa bia a letra”, lembra Almir. “A gente criou um mito na cidade, era uma banda, que se a gente dissesse ‘a gente vai tocar um sonzinho ali no bar’, enchia de gente”, diz Paulo Raael. O Ave Sangria tinha o dom de reunir,, sob o mesmo teto, as patricinhas de Boa Viagem reunir Viage m e os malandros mais pobres do Recie. E mulheres, muitas mulheres. “Muita menininha, classe A, que nunca seria pro nosso bico, porque a gente sempre oi de classe média pro chão, e a gente crau, crau, crau, crau, crau”, brinca Marco Polo. No Concerto Marginal, estival que parou Recie em 29 de setembro de 1973, Almir lembra que dois marginais – “realmente marginais” – se aproximaram e deram os parabéns para a banda após a apresentação. “A gente se surpreendeu de ver que eram duas guras assim. E, realmente, eles não zeram nada com ninguém, oram assistir o show”, conta o baixista.


Junto com esses “marginais”, assistiam ao espetáculo o tropicalista Celso Marconi e toda a intelectualidade de Recie. Naquele ano, o Ave Sangria tocou em tudo quanto era era estival, em todo o nordeste: nordeste: com Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Zé Ramalho, Novos Baianos, em Natal, Aracaju, Caruaru. Mas mesmo com o sucesso, a alta de grana era uma constante. Primeiro, eles não tinham grande parte do equipamento: Almir não tinha contrabaixo, Marco Polo não tinha microone, Israel não tinha bateria. Ivinho tinha a guitarra, mas não o amplicador. A sorte deles é que um cara chamado chama do Maristone, produtor musical da cena de Recie, era muito gente na. Ele conhecia todo mundo, havia produzido bandas de baile e vivia de consertar e alugar equipamentos musicais. Quando surgiu o Tamarineira, Tamarineira, era ele quem emprestava tudo. “Ele era nossa ada madrinha”, dene Almir de Oliveira. O produtor dava uma orça danada não só para o pessoal do Ave Sangria, mas para toda a insurgente cena de Pernambuco. “Ele azia todo o trabalho de palco pra gente, montava tudo. Ia lá, passava o som, tudo. E azia isso com um amor do caramba, como se a gente osse super estrela”, lembra Lula Côrtes. “Uma vez, o Maristone ia emprestar o equipamento para a gente. A caminho do show, urou o pneu da Kombi dele. Só que o macaco da Kombi, quando chegava no ponto de trocar o pneu, começou a ceder. A gente tinha que segurar a Kombi para ele trocar o pneu. Segurar a Kombi para não arriar, para trocar o pneu, para levar pro show”, recorda Almir, rindo do perrengue. A produção dos shows do Ave Sangria era toda baseada no aça-você-mesmo. Eles pediam dinheiro emprestado, saíam nas ruas pregando os cartazes e distribuíam os panfetos. Paulo Raael, por ser o caé-com-leite, era o responsável pela parte burocrática. Era ele quem tinha que levar os cartazes para pa ra aprovação na censura. “Os caras morriam de medo de irir,, porque achavam que já estavam chados”, lembra. Alugar o teatro e assinar os pagamentos também eram tareas do novato: “Como eu era menor, se desse uma merda e a gente não

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pagasse, não ia acontecer nada”. Mas não altaram suocos para o garoto. Na primeira p rimeira vez que Paulo Raael se apresentou com o Ave Sangria ora de Recie, oi obrigado a aprender a se virar do jeito j eito dos mais velhos. “Aparentemente tava tudo organizado, tinha passagem de ônibus, tinha um hotel”, lembra. Fizeram o show – com Zé Ramalho e Marconi Notaro – e caram muito doidos. Não conseguiam dormir. No dia seguinte, quando Paulo se deu conta, viu que só ele tinha sobrado na cidade. “Todo mundo debandou”, conta. “Eu era o menor. Tinha 17, 18 anos. E os caras... já tinham mil anos de estrada, oram pedindo carona”. A sorte do caçula oi conhecer uma “hippinha” que oi com a sua cara: “Eu disse pô, tô indo para Recie. A gente oi pedir dinheiro na rua, vendendo pulseirinha. p ulseirinha. Aí quando eu cheguei, voltei puto, que banda da porra. Aí os caras disseram ‘pô, bicho, na hora do desespero é cada um por si’”. Falta de pagamento, mesmo, Marco Polo garante que não houve. Mas a banda não conseguia ganhar dinheiro. Todo mundo continuava pobre – Israel Semente Proibida morava em um pardieiro no centro da cidade, sem grana para nada. “Eu levava ele em casa para comer,, se não ele ia morrer de ome”, lembra Paulo Raael, o único que ainda morava com comer os pais. Eles iam e voltavam dos ensaios a pé, carregando amplicadores nas costas. Raras eram as vezes que tomavam um ônibus. As pressões sobre a banda aumentavam – da amília, dos amigos e deles mesmos. Era a hora de azer o negócio nalmente dar certo. *** No início da década de 70, o Quinteto Violado colocou Pernambuco no mapa musical brasileiro. Na mesma época - entre o nal de 1973 e o início de 74 - a MPB estremeceu quando surgiram, como relâmpagos hippies-roqueiros, os Novos Baianos e os Secos e Molhados. As gravadoras descobriram que os jovens desbundados também podiam vender e gerar dinheiro. A m de descobrirem d escobrirem a nova sensação musical brasileira, a Continental e a RCA mandaram olheiros para Recie e deram de cara com o uracão Ave Sangria. A


Continental acabou levando a melhor e contratou os rapazes para gravarem um disco, no Rio de Janeiro. Já echada no sexteto Marco Polo, Almir, Ivinho, Paulo Raael, Israel e Agrício, a banda ensaiou exaustivamente entre janeiro e abril de 1974. Depois de quase dois anos azendo shows, tinham quase cem músicas prontas – todas na cabeça, porque ninguém tinha gravador. Só existia um problema: eles nunca haviam entrado em um estúdio. Ainda em Recie, antes de embarcar, Almir pediu a um produtor da gravadora um maestro e pelo menos um mês para a gravação. Mas chegando no estúdio Havaí, no Rio de Janeiro, a realidade era outra: não havia instrumentos, só bateria. Maestro? Nem em sonho. E eles só teriam uma semana para gravar e nalizar as músicas. O baixista tentou argumentar, pedindo para que a hospedagem e as passagens ossem convertidas em horas de estúdio, mas nada eito. Para piorar, piorar, o produtor designado designad o pela Continental para acompanhar a gravação era Marcio “Vip” Antonucci, da dupla de iê-iê-iê Os Vips. Não que ele osse um produtor ruim, mas sua ormação Jovem Guarda denitivamente não tinha muito a ver com os malucos de Recie. O conteúdo do disco já estava praticamente decidido, antes mesmo de entrarem no estúdio – gravariam as canções mais queridas do público nos shows. Mas Marcio – “que vivia em um mundo dos sonhos”, como Paulo Raael dene – torceu o nariz para os sons estranhos es tranhos e as quebradas de ritmo das músicas. Quando ouviu “Momento na praça”, o produtor tentou argumentar com Almir: – Rapaz, pô, grava outra coisa, essa música é muito esquisita! Mas o repertório oi mesmo a própria banda quem escolheu e, elizmente, “Momento na praça” entrou. Naquela correria, ninguém podia errar: “Eu gravava a primeira e Marcio Vip Antonucci dizia ‘morreu, venha escutar a merda que tu zeste’, aí eu dizia ‘porra, do

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c     a s

caralho, tá bom’”, conta o vocalista. Em uma das aixas cou conservado um baixo errado de Almir de Oliveira. Somadas as diculdades nanceiras e técnicas ao estilo conservador de Marcio Vip, muitas maluquices das músicas do Ave Sangria não oram registradas na gravação. Paulo Raael acha que o disco não retratou a alma do grupo. “Nem nós, nem o produtor, produtor, conseguimos expressar o que éramos ao vivo. No estúdio cou um negócio rio, meio duro, esquisito”. Mas Lula Côrtes, que viu uma apresentação dos garotos antes de irem para o Rio de Janeiro, avalia que o som s om do Ave Sangria “deu uma amadurecida” amad urecida” depois da gravação. Disco nalizado, era hora de começar a divulgação. Laílson oi designado para desenhar a capa: ez uma “ave-mulher pousando numa caatinga psicodélica onde a luz da lua colocava tons de prata”, já no tamanho da arte-nal, em guache e tinta prateada. Mas, no nal, a gravadora Continental não quis lhe pagar os direitos pela ilustração e chamou um artista


para recriá-la, sem nem devolver os originais para Laílson. “Colocaram na contracapa a rase ‘Layout Laílson de Holanda Cavalcanti’ e ponto nal. Muita cara de pau, né não?”, conta o cartunista. O resultado nal acabou cando cando “um papagaio drag queen”, como brincam brincam os ex-integrantes da banda. Para azer a divulgação do LP, LP, o Ave Sangria escolheu uma oto que chocou a sociedade: pegaram uma garota menor de idade – segundo Almir, da classe alta pernambucana – e a colocaram nua, deitada de costas, no meio dos marmanjos cabeludos. Até hoje, a identidade da menina é mantida em segredo. *** Depois da gravação, a banda band a voltou à Recie. Assim como os outros artistas da cidade, viviam na casa de Lula Côrtes, onde havia um grande gramado e vários cômodos malucos. “Todos “T odos tocamos lá. O quintal dele era o Jardim do Éden, onde conversávamos sobre tudo e umávamos muita maconha”, lembra Zé da Flauta, um dos assíduos reqüentadores. “Era uma ligação de jovens de uma época que não estavam satiseitos com a vida existindo”, dene Marco Polo. Além da maconha e do eventual LSD, a psicodelia nordestina na gura do Ave Sangria, Lula Côrtes e companhia era ruto do chá de cogumelo, lisérgico e gratuito. Apesar de todo o sistema repressivo, era muito ácil conseguir qualquer droga. O Ave Sangria chegou a receber,, pelo correio, um charuto de maconha. “A gente receber g ente era muito louco. A disposição para pular de abismo era “Bora? Bora”. Vai todo mundo. Ninguém tinha medo de correr risco”, lembra Paulo Raael.

“Hei! man Voce precisa correr correr mais riscos do que eu Hei! man Pobre de quem não percebeu

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Hei! man Voce precisa correr tanto risco quanto eu Hei! man Pobree de quem não se perdeu” Pobr (“Hey man”, do disco Ave Sangria, de 1974)

O sucesso tão esperado pelos garotos do Ave Sangria não era apenas para ganhar dinheiro: “A gente sabia que tudo o que estava em volta era um lixo, novela, televisão. Alguma coisa interna dizia que o que azíamos era uma saída, tínhamos uma certeza muito absoluta. A gente estava procurando um meio de continuar a se s e sustentar, mas o plano era uma coisa para continuar a vida, para a gente car tocando junto, curtindo”, dene o caçula do grupo. O disco Ave Sangria oi lançado em julho de 1974. Vinte dias depois, entrou na lista dos mais vendidos. O hit era “Seu Valdir”, que entre 19 e 26 de agosto cou na 11ª posição na “Super Parada Global”, da Rádio Globo. O pai de Almir, que morava no Rio, ligou para o lho para contar que a música estava tocando muito por lá. Os músicos chegaram a receber uma carta de um garoto de Manaus, Mana us, que virou ã depois de ouvir “Seu Valdir” no rádio. As vendas do LP também iam muito bem. Segundo estimativa da banda – a Continental não lhes passou o número ocial – chegaram a ser vendidas de 15 a 20 mil cópias. O “Big ben” Waldir Serrão, gura olclórica no rock baiano, radialista e apresentador de TV TV,, disse a Almir que o álbum estava vendendo muito por lá.

“Seu Valdir, o senhor Magoou meu coração Fazer isso comigo, Seu Valdir


Isso não se az, não Eu trago dentro do peito Um coração apaixonado Batendo pelo senhor O senhor tem que dar um jeito Se não eu vou cometer um suicídio Nos dentes de um oídio vou morrer Estou alando isso Pois sei que o senhor Está gamadão em mim Eu quero ser o seu brinquedo avorito Seu apito, sua camisa de cetim Mas o senhor precisa ser mais decidido E demonstrar que corresponde ao meu amor Pode crer Se não eu vou chorar muito, Seu Seu Valdir Pensando que vou lhe perder Seu Valdir, Valdir, meu amor” (“Seu Valdir”, do disco Ave Sangria, de 1974)

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Na imprensa, a recepção não oi das da s melhores. Todo mundo cou contra eles – à exceção, segundo Marco Polo, de Celso Marconi. Ana Maria Bahiana, jornalista musical do Rio, classicou o som do Ave Ave Sangria como “um mero mero déjà vu”. José Ramos Tinhorão, histórico pesquisador e crítico de MPB, também não poupou os pernambucanos. “O grandioso Tinhorão, que é culto, mas preconceituoso pra caramba, disse ‘esses rapazes do Ave Sangria deveriam deixar a música, pegar uma enxada e ir pro roçado, azer uma coisa mais útil’”, lembra Marco Polo. Mas as críticas não os abateram a bateram muito e Marco Polo até incitava a polêmica. Certo dia, chegou para um dos integrantes da Banda Band a de Pau e Corda, que tocava música nordestina tradicional, e disse: – Vamos azer o seguinte, eu escrevo um artigo esculhambando com vocês e vocês escrevem um artigo esculhambando com a gente, a gente cria a maior polêmica. O rapaz negou. “Ficaram apavorados. Mas era isso. A gente era assim... Era o lixo”, dene Marco. Havia um apresentador de TV que começou a pegar pe gar no pé do vocalista por conta de “Seu Valdir”. A música tocava todos os dias e o homem bradava na telinha: – Isso é uma vergonha, isso é um insulto, é um atentado moral a sociedade pernambucana! A gente precisa de uma atitude em relação a isso! *** O lançamento do disco do Ave Sangria concentrou as atenções da repressão em cima daqueles malucos desbundados. Antes daquilo eles já eram submetidos à censura, quando Paulo Raael levava o material para aprovação, em encontros sempre muito tensos. Houve uma canção do grupo que quase lhes rendeu uma prisão, “Sunday”, em um dia que todos


oram levados à delegacia. “Era uma música de cunho psicodélico, cheia de imagens, de coisas assim, eles cismaram que ali tinha alguma mensagem mensa gem subversiva”, lembra Almir. O baixista negou e o policial retrucou: – Mas o povo vai achar que tem alguma coisa subversiva e pode azer alguma coisa, promover alguma coisa contrária ao regime. E Almir: – Rapaz, olha, vocês que são os censores não estão enxergando isso, imagine o povo, que só sabe mesmo é passar ome. O policial, urioso, olhou para Almir e disse: – Olhe. Se repetir repetir,, ca. E passaram a tarde em uma salinha na delegacia. Para o artista Lula Côrtes, o mais grave era que os censores eram garotos do interior que se alistavam e não tinham o menor embasamento cultural para classicar nada. “Você ia preso por causa de palavras como desbunde, isso é palavra que existe no dicionário, mas acho que ele relacionou com bunda ou com alguma coisa pornográca”, lembra. Marco Polo chegou a se aproximar de uma censora, censora, que não entendia as tiradas do letrista: “Era uma senhora até assim simpática, gente na, cou minha amiga e tudo. E ela não percebia que eu estava curtindo com a cara dela de tão imbecil que ela era”. Uma vez, os integrantes do Ave Sangria oram todos presos, acusados de estarem com drogas. Naquele dia, porém, não tinham nada – mesmo assim, só conseguiram sair da delegacia de madrugada. Uma noite, durante um show no elegante elega nte Teatro Teatro Santa Isabel, Marco Polo pediu à platéia “alguém tem um cigarro aí?”. Lula Côrtes, sentado na beira do palco, atendeu ao pedido. O vocalista tragou com gosto, e a platéia oi abaixo, pensando que era maconha. Marco tranqüilizou: “é palha”. No dia seguinte, oi acordado pela Polícia Federal em sua casa. O policial:

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– Marco Polo, vá lá contar que você estava incitando a juventude a umar maconha. – Como é que é, bicho? Marco oi à delegacia e tentou se explicar: – Não, é o seguinte, estava Lula Côrtes lá, eu pedi um cigarro, ele me deu um cigarro de palha. Tudo bem. Já saindo, Marco desaou: – Mas eu já umei maconha. – Epa, espera aí, como é que é? – Fumei maconha em São Paulo, quando era jornalista do Jornal da Tarde. Um major da Polícia Militar levou maconha pra gente conhecer o cheiro –, caçoou. E oi embora. A patrulha ideológica em Recie era tão orte que Almir de Oliveira ia armado à aculdade de engenharia, onde estudavam muitos militares que cavam caçoando do hippie cabeludo. Um dia, juntou-se um grupo: “hoje é dia de cortar o cabelo e dar um banho no hippie!”. Almir tirou o “canhão”, como chama, da bolsa: “Os militares disseram ‘não, não, a gente está brincando’, eu disse ‘mas eu não estou, não’”. Almir acabou largando a aculdade naquele período.

“Lá ora é esse sol aberto Lá ora é essa árvore E o silêncio costurado Na boca de um guarda E o silêncio costurado Na boca de um guarda” (“Lá ora”, do disco Ave Sangria, de 1974)


Ll cô,   j   l q  

Toda aquela geração produtiva pernambucana oi oi atingida pela repressão. Desde os tempos da Feira Experimental de Música, Lula Côrtes rmou-se como um guru da cena. Foi parar na cadeia inúmeras vezes. Em uma noite, em um show na Paraíba, o produtor garantiu a Lula que os policiais presentes “eram legais”. No camarim, o artista bateu as leiras de cocaína em uma bandeja e oi tomar banho. Dali a pouco, entra o policial. Lula acabou preso em fagrante, nu, segurando a bandeja ba ndeja de pó. Numa outra vez, oi detido e, enquanto esperava o camburão, acabou bêbado, de algemas, tomando cerveja com os policiais que o prenderam. Bem menos divertido oi o período em que passou vinte dias em um quartel, preso por visitar um amigo guerrilheiro. A polícia ederal ede ral o levou de sua casa, encapuzado. Nos primeiros três dias de prisão, oi torturado. Depois, cou mais de duas semanas em uma solitária, escura, ouvindo choros e gritos. Estava enlouquecendo sem alar com ninguém. Um dia, passou um rapaz em rente à cela.

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E Lula: – Arranja uma coisa para eu ler, pode ser Pato Donald, Recruta Zero, qualquer coisa! E o menino: – Tu sabe porque que está aqui? – Não. – É porque tu leu demais. Naquele período, o músico pensou que seria morto, convencido pela tortura psicológica dos policiais. Até que oi jogado com os outros prisioneiros, todos encapuzados, no camburão. Rodaram por horas no calor. Sem saber o que estava acontecendo direito e sem enxergar enxergar,, Lula lembra que o carro ia parando e os presos iam sendo colocados para ora, um a um, às porradas: “Batia no cara, o cara gritava, eles atiravam, depois diziam ‘vamos embora’”. E os que iam sobrando no camburão cavam apavorados, chorando, pedindo clemência. Chegou a vez de Lula: deram-lhe uma porrada na testa e o largaram, encapuzado e desmaiado, na rente de sua casa. “Eu acordei de madrugada com o povo em volta de mim alando, ‘o que é isso?’, ‘deve ser comunista’”, lembra lemb ra o artista, que cou estirado no chão, sem enxergar enxergar,, até que um dos presentes sugeriu que lhe tirassem o saco da cabeça. “Esse oi o dia mais torturoso, o dia mais comprido da minha vida. Você ca descompensado depois”.

Eu sempre andei sozinho A mão esquerda vazia A mão direita echada Sem medo por garantia De encontrar quem me ama na hora que me odeia (“Punhal de Prata”, Alceu Valença, do disco Molhado de Suor, de 1974)


Quando o disco do Ave Sangria oi lançado, lançad o, o som que era restrito aos malucos da cidade caiu no mainstream. A mãe de Paulo Raael dizia que tinha medo das músicas da banda do lho. A sociedade conservadora viu pela primeira vez o que aqueles garotos estavam azendo. Dizem que a mulher de um general se horrorizou e pediu para que o marido tomasse uma atitude em relação à “Seu Valdir”. Lendas à parte, o ato é que, três meses depois do lançamento, o disco oi proibido. Os rapazes já previam que a censura podia lhes cortar as asas, mas o baque oi orte demais. Com o Ave Sangria na mira da repressão, não havia mais a possibilidade da Continental bancar o lançamento do segundo disco, já previsto no contrato. “Eu acho que Marco Polo levou uma porrada. Eu levei, pelo menos. Todo mundo levou”, diz Paulo Raael. A banda continuou a azer shows no mesmo esquema punk de antes, pregando cartazes, azendo a divulgação, pendurando aixas na rua. Mas, agora, já não tinham o mesmo gás. “O disco ia ser a tábua de salvação. Quando aconteceu este desastre, a gente oi caindo na real”, dene o guitarrista. Para tentar ganhar algum troco, arriscaram até azer publicidade, como anos antes Os Mutantes e o Módulo 1000 tinham eito. “Tentamos “T entamos arrumar um cara de agência de publicidade pra ver se ele comprava a idéia de uma banda conceito, para vender produto”, conta Paulo. Mas não deu d eu certo.

Não deixes a vela apagar nem o mastro cair Nem a corda prender Só deixes o vento que sopra sopra seus cabelos espelhos dos meus Te soprar e soprar em mim Pra depois deslizar em ti (“Dois navegantes”, do disco Ave Sangria, de 1974)

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al, Z rlh, aí, aí, Z  Fl, pl pl rfl  ih

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Naquele nal de 1974, surgiu um anúncio do Festival Abertura, organizado pela Rede Globo. O Ave Sangria tentou inscrever uma canção, mas nenhum dos músicos sabia escrever partitura nem tinha dinheiro para contratar um maestro, então desistiram. Em dezembro daquele ano, a banda preparou o seu derradeiro show: Perumes Y Baratchos, no Teatro Teatro Santa Isabel, em Recie. Laílson oi convidado para azer o cartaz, desta vez, sem intervenções: uma águia-mulher pousando, agressiva, e a rase “Prepare-se que seu coração vai sangrar”, tudo em vermelho. Lula Côrtes e Kátia Mesel oram os responsáveis pelo cenário e o resultado oi espetacular. espetacular. Era uma mistura de “castelo medieval com macumba”, como conta Paulo Raael. O guitarrista Ivinho, que era espírita, esp írita, por pouco não se recusou a tocar no meio das velas. A apresentação entupiu o espaço es paço projetado para mil e duzentas pessoas, onde se aglomeraram mais de duas mil e quinhentas. Muita gente, mesmo com convite, cou de ora. O grupo incluiu no repertório sucessos do d o disco e caprichou em novas roupagens para as músicas. Marco Polo atingiu seu auge como cantor. cantor. Foi o espetáculo derradeiro – depois daquilo, o próprio Teatro Teatro Santa Isabel echou suas portas para shows de rock. Naquele momento, Recie estava desolada. Almir de Oliveira diz que até a Zona da cidade echou. Os rapazes do Ave Sangria – e também os outros da turma – estavam es tavam sem trabalho, sem perspectivas, sem motivação. Eis que pinta Alceu Valença, precisando de músicos para o acompanharam em São Paulo, no Festival Abertura. Paulo Raael já havia visto Alceu na televisão, em uma propaganda do disco Molhado de Suor, e o encontrara um dia na porta do colégio, onde trocaram uma idéia rápida – “você toca, eu também, que legal, vamos tocar um dia”, e cou por aquilo mesmo. Ivinho, Agrício Noya e Israel Semente oram convidados pelo músico para o Festival. Além do quarteto, participaram também Zé Ramalho, Zé da Flauta – que ganhou o “da Flauta” neste show, para não ser conundido com Ramalho – e o percussionista Wilsinho. A banda recém-ormada se preparava na casa de Lula Côrtes e oi num desses encontros que pintou


o convite para Paulo Raael também ir, no lugar de Robertinho do Recie. Ensaiadíssimo, o grupo apresentou no Teatro Municipal de São Paulo uma leitura explosiva de “Vou danado pra Catende”, composição de Alceu do álbum Molhado de Suor. “Foi um impacto, oi uma porrada, porque era a soma de todas as orças, de Lula Côrtes, da viagem do Ave Sangria, do Phetus. Toda aquela pressão que tinha sido guardada um tempão juntou com a pressão do Alceu, que era muito orte também. Bicho, era uma coisa, uma porrada, quando tocou o público veio abaixo, era um negócio de d e doido!”, recorda Paulo Raael.

Ai Telminha Veja a enrascada Que ui me meter Por aqui Tudo corre tão depressa As motocicletas se movimentando Os dedos da moça Datilograando Numa engrenagem De pernas pro ar (“Vou danado pra Catende”, Alceu Valença, do disco Molhado de Suor, de 1974)

Depois daquilo, acabaram sendo convidados para azer o acompanhamento ocial de Alceu Valença – isso signicava morar no Rio e dar um adeus denitivo aos companheiros do Ave Sangria. Paulo Raael oi: “Eu ia me virar, mas eu ia ter um trabalho, porra, aí eu quei: vou ou volto? Disse vamos embora, bicho”. Enquanto isso, em Recie, Marco Polo e Almir de Oliveira desconsideravam a possibilidade de volta da banda. “Todo mundo era muito classe

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média, alguns já tinham lhos, precisavam ganhar dinheiro, e Alceu tinha oerecido a grana para eles trabalharem”, conta o vocalista. “Depois disso tudo, voltar à estaca zero seria muito complicado. A gente comentava ‘rapaz, vai ser diícil o Ave voltar com os meninos tocando e ganhando dinheiro’. Como é que eles iam azer? Iam voltar a tocar com a gente, azer o Ave Sangria sem perspectiva?”, refete o baixista. Um dia, a Rede Globo G lobo entrou em contato com os rapazes remanescentes, em Recie, solicitando que ossem ao Rio de d e Janeiro para gravar como Ave Sangria. O recado havia sido dado pela mãe mã e de Ivinho. Surpreso, Almir de Oliveira juntou a turma e oram, às custas da Rede Globo, ao Rio. Mas, chegando lá, oram avisados que eram para ter ido apenas os acompanhantes de Alceu. A Globo reclamou e pediu que a Continental arcasse com as despesas. A gravadora aceitou, mas como condição, queria que osse eito um quadro com o Ave Sangria. E oi mesmo: no comecinho de 1975, a banda b anda gravou um clipe para o Fantástico. Entretanto, separaram-se antes que o especial osse ao ar.

Não se iluda Minha calma Não tem nada a ver Sou bandido Sou sem alma E minto Minha casa é o reino do mal O meu pai é um animal Minha mãe há muito que enlouqueceu Só resta eu Com a minha aca e a minha nau


Sou pirata Solitário Sem mais nada Sem bandeira Sem espada E o mar pra viver Sangue e vinho derramados no no convés Sons de gaitas, violões e pés Quando, de repente, surgem dez canhões Era o Barba Negra Com a sua turma e suas canções Não me ame Eu não quero Ver você assim Vá se embora E eu não choro Sei cuidar de mim Eu não tenho todas essas ilusões E apesar de ter tantos corações Minha guerra nunca, nunca vai ter m Sim, sim, eu sei Faço o meu sorriso, aço minha lei (“O pirata”, do disco Ave Sangria, de 1974)

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Z rlh


No Rio de Janeiro, morando em uma quitinete, a vida de Paulo Raael não era uma maravilha total. Os shows não eram muito reqüentes e o músico diz que “comeu o pão pã o que o diabo amassou” por três anos. Quando voltava a Recie para visitar a amília no Natal, estava “magro, chupado, com os dentes cheios de tártaro”. Marco Polo voltou ao jornalismo, Almir de Oliveira à engenharia. Israel Semente aundava-se na bebida, Agrício continuou tocando na capital pernambucana e Ivinho rmou-se como um grande guitarrista. *** Lula Côrtes se dividia entre sua casa em Casa Forte, no subúrbio de Recie, e sua azenda na Lagoa do Carmo, no agreste pernambucano. Eram duzentos e cinqüenta hectares de terra, cortados por uma estrada, em que o artista ez questão de azer aze r uma “reorma agrária”, assentando as amílias da região: “Eu pegava as amílias, quem tinha lhos homens que podiam trabalhar, quantos lhos tinham e ia registrar”. Uma vez, batizou uma amília que não tinha sobrenome de “Cobra” – Severino Cobra, Antônio Cobra. A partir de então, era chamado pelos amigos de “Seu Cobra” e seu inseparável tricódio virou a “tripinha”. Quando tinha acabado de azer aze r Satwa, Lula conheceu Zé da Paraíba, garoto que tinha um vozeirão e era talentoso talentoso na viola. Zé – que depois substituiu “da “da Paraíba” por Ramalho – tocava em bandas de iê-iê-iê em João Pessoa e Campina Grande e se mudou para Pernambuco no comecinho do movimento. O dois se aproximaram a proximaram mesmo durante os ensaios da banda de Alceu para o Festival Abertura, que aconteciam na casa de Lula. Ficaram tão amigos que Zé Ramalho praticamente passou a morar com o companheiro. Em uma das intermináveis conversas, tiveram a idéia de viajar para pa ra o sítio arqueológico de Ingá do Bacamarte, no sertão se rtão da Paraíba. Lá conheceram a misteriosa Pedra do Ingá, com escritos rupestres creditados a Sumé, um eiticeiro de outro planeta que teria vindo à Terra Terra passar conhecimento para os índios. Os amigos se encantaram e começaram a “otograar e viajar naquela energia”, como conta Lula.

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Um cacique de pele colorida Conquistou docilmente o rmamento Num cavalo voou no esquecimento Dos saberes eternos de um druida Pela terra cavou sua jazida Com as tábuas da arca de noé Como lendas que vêm do abaeté E como espadas de luz eneitiçada Nas paredes da pedra encantada Os segredos talhados por Sumé (“Os segredos talhados por Sumé”, Lula Côrtes e Zé Ramalho, do disco Paêbiru, de 1975)

Surgiu então a idéia de azerem um disco místico, inspirado nas experiências que tiveram naquele local. “Começamos a colher lendas do lugar. Construímos essa mística pegando os sons mais primitivos, mais nativos, e processando eles”, conta Lula Côrtes. O projeto oi batizado de Paêbiru: o Caminho da Montanha do Sol, nome inspirado numa lenda inca. Para começar a trabalhar, a dupla dividiu o disco em quatro elementos: terra, ogo, água e ar. A escolha dos músicos que participariam oi baseada base ada nesse critério. “As pessoas que tinham um espírito mais ar, a gente chamava para aquela parte, os instrumentos que tinham mais a ver, as fautas doces, as harpas. Aí a terra, percussão pesada e o pessoal que era mais terra”, exemplica Lula. Para gravar, gravar, oram chamados praticamente todos os artistas da cena de Recie. A Rozemblit comprou a idéia e deixou o estúdio – com equipamentos melhores do que na época de Satwa – à disposição da d a turma, ormada por Agrício Noya, Israel Semente Seme nte Proibida,


Robertinho do Recie, Marconi Notaro, Alceu Valença, Zé da Flauta e Laílson, além alé m de Lula e Zé Ramalho. A gravação dividia-se pelos “elementos”: reuniam-se no estúdio os músicos correspondentes a cada tema, tomavam chá de cogumelo – e o que mais pintasse – deniam o conceito e criavam sem limites, numa verdadeira experiência mística. “Às vezes, a gente preparava o estúdio como se osse uma sala de umbanda para receber entidades”, conta Lula Côrtes. “Era uma viagem cada dia, o estúdio da Rozemblit se enchia de malucos e muita doidera”, lembra Zé da Flauta. A gravação era ao vivo, em dois canais; oram usados todos os tipos de recursos sonoros, além dos instrumentos tradicionais e do tricórdio de Lula Côrtes. “Agrício Noya tinha um circo de objetos sonoros, que eram a percussão dele. Tinha uma churrasqueira elétrica antiga que, quando rodava, tinha um som de motor do caralho. Eram sons que você ouve e parecem coisas eletrônicas, mas eram e ram completamente artesanais”, lembra Lula. Em uma das músicas, há um som de um regato correndo, gravado por ele em Ingá de Bacamarte: “A gravação era uma viagem muito louca. Ninguém pode imaginar”, arma. Em Paêbiru, o resultado nal oram onze aixas completamente malucas, marcadas por sons estranhos, barulhos da natureza e o indeectível tricórdio marroquino. O disco é imprevisível – cada música vai para um lado e a combinação de instrumentos e sons deixa claro a qual elemento a música pertence. A seqüência “ar” é leve, marcada por sons da natureza. “Fogo” é mais rockń roll, com guitarras, baixo, teclados e bateria. b ateria. Os batuques e instrumentos típicos marcam a seqüência “terra”. A série “água”, além dos eeitos especiais de corredeiras, tem uma pegada de orró, rápida e alegre, com viola.

Não se escuta da terra quem or santo Não se cobre um só rosto com dois mantos Nem se cura do mal quem só tem pranto Nenhum canto é mais triste que o nal. (“Não existe molhado igual ao pranto”, Lula Côrtes e Zé Ramalho, do disco Paêbiru, de 1975)

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“O disco é o mais maluco que já se ez no país, porque o pessoal caprichava no cogumelo, na maconha, ácido, e tinha um estúdio à disposição praticamente o dia inteiro, coisa que nenhum músico do Brasil tinha em 1975”, 1975 ”, arma o jornalista José Teles. Paêbiru oi lançado em álbum duplo, coisa rara na época. Lula Côrtes e Zé Ramalho aziam alguns shows, sempre com Zé ao microone. Para Lula, era legal tocar com Zé ao vivo “por causa da orça que ele colocava no negócio”. “Às vezes, você pode estar se sentindo meio inseguro, mas a segurança da pessoa que está azendo o vocal é tudo, segura a banda toda, a certeza com que você está dizendo o negócio”, dene o músico. Entre 17 e 18 de julho de 1975, logo depois da gravação do disco, uma enchente assolou Recie. Mais de 80% da cidade cou submersa, deixando 350 mil pessoas desabrigadas; 107 pessoas morreram. A gravadora Rozemblit cava em um dos bairros mais atingidos, “Aogados”, e suas instalações oram devastadas, junto com todo seu acervo onográco. Foram prensados cerca de mil LPs Paêbiru – quase todos destruídos. Sobraram apenas as trezentas cópias que Kátia Mesel havia levado para casa.

*** Poucos sobreviveram para contar a história daquela cena pernambucana. Não que q ue tenham todos morrido; parte dos vivos, porém, tem transtornos decorrentes do uso abusivo de drogas, e outra parte não gosta g osta de lembrar ou alar sobre a época. Do Ave Sangria, restaram três “sobreviventes”: Marco Polo, Almir de Oliveira e Paulo Raael. O vocalista dedicou a vida às letras: jornalismo e poesia. Publicou sete livros de poesias, contos e memórias. Apesar de ter abandonado a música, ainda tem planos de gravar um disco. À beira dos sessenta anos, é pai de uma garotinha de três.


Eu sou da cidade Mas nasci no mar Tudo que eu quero é cantar Por enquanto (“Por que”, do disco Ave Sangria, de 1974)

Almir de Oliveira é ormado e pós-graduado pós -graduado em engenharia civil. Tem uma banda, onde o neto toca bateria. É casado há mais de trinta anos, tem quatro lhas e três netos. Recentemente, oi tirar sangue e a enermeira lhe disse, olhando para os nódulos em seu braço: – Você já carregou muito peso, não oi, meu lho? – Foi, minha lha, carreguei amplicador... Paulo Raael é o único integrante do Ave Sangria que mora ora da capital pernambucana. Desde a década de 70, permanece no Rio. É produtor musical e também planeja gravar um disco solo. O guitarrista acompanha Alceu Valença até hoje. “Ele criou quase um vício, uma doença mental”, ri. O outro guitarrista do Ave Sangria, Ivinho, I vinho, ainda toca em Recie, mas, segundo Marco Polo, “tem perturbações mentais provocadas pelo excesso excess o de drogas”. Ivinho gravou muito com a turma de Recie e chegou a tocar no Festival de Montreux em 1978, junto com Gilberto Gil e o conjunto A Cor do Som. Segundo Marco, ele era tão bom que “comia” Robertinho do Recie, músico mais amoso, em um duelo de guitarras. O percussionista Agrício Noya tem problemas com o alcoolismo e hoje vive recluso. Israel Semente, o baterista, suicidou-se na década d écada de 90. “Ele era e ra alcoólatra. Era um cara diícil de entender”, diz Paulo Raael. “Mas oi bom pra gente ge nte manter o punk rock”, brinca. À ,  a a s


As borboletas estão voando voando A dança louca das borboletas As borboletas estão girando girando Estão virando sua cabeça As borboletas estão invadindo invadindo Os apartamentos, cinemas e bares Esgotos e rios e lagos e mares Em um rodopio de arrepiar Derrubam janelas e portas de vidro Escadas rolantes e das chaminés Mergulham e giram num véu de umaça E é como um arco-iris no centro do céu (“Dança das borboletas”, Alceu Valença Valença e Zé Ramalho, do disco Espelho Cristalino, de 1978)

Trinta e tantos anos depois Trinta dep ois do uracão, Marco Polo considera o período do Ave Sangria um “momento muito legal”: “A banda me levou a descobrir o trabalho em conjunto com outras pessoas, me abriu um horizonte que q ue eu não conhecia. Alargou meus espaços esp aços como artista e como pessoa”. Paulo Raael conta que demorou anos para perceber o quanto era especial a maneira de Marco cantar. cantar. “Eu levei muito tempo para entender isso. É um jeito de interpretar que é tão peculiar, peculiar, que até hoje quando eu ouço assim eu digo: ‘cara, como é lindo’. Era uma banda sensacional. Tinha muito talento, muitas idéias, as pessoas tinham muito pique, tem musicas maravilhosas. As letras eram acima da média. A primeira vez que eu ouvi uma música, pensei, ‘isso é uma coisa nova’”, refete o ex-guitarrista, que nunca mais teve a mesma sensação ao ouvir outro som. Laílson dedicou sua vida às artes plásticas e durante muitos anos oi chargista político. p olítico. Desde 1977, quando oi premiado p remiado no

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Salão Internacional de Humor de Piracicaba, publica suas charges diariamente do Diário de Pernambuco. Na década de 90, voltou a tocar com amigos numa banda de blues e rock, a Laílson Blues Band, com a qual hoje se apresenta esporadicamente. Lula Côrtes continua morando em uma casa que está sempre de portas abertas. Foi casado “um monte de vezes” e é amigo de todas as ex. Tem seis lhos. Vive seus cinqüenta e sete anos de idade pela p ela música, pelas artes plásticas e também pela literatura. Tocou Tocou guitarra no primeiro trabalho solo de Zé Ramalho, Avohai. Em 1980, gravou Rosa de Sangue, álbum em que assumiu os microones pela primeira vez, numa mistura de rock, xaxado e sons orientais, com muita guitarra e o inconundível tricórdio, letras hippies e viagens místicas. O disco nunca chegou às lojas por conta de uma disputa com a Rozemblit, já em processo de alência. Outros três trabalhos de Lula, “O gosto novo da vida”, “A mística do dinheiro” e “O pirata” também nunca oram lançados. Já na década de 90, gravou um disco com a banda Má Companhia, com quem se apresenta esporadicamente até hoje. Lula não usa mais drogas e diz que consegue abrir os portais da mente sem aditivos. Hoje, ca chateado com o estigma es tigma de “louco”: “Eu aço três horas de rockń roll de cara, aí as pessoas pensam que eu estou doido mesmo. Eu aço a loucura que eu quero, eu sou o doido que eu quero agora. Aí, parece que está mais doido ainda”. O artista conta que estava trabalhando no Rio, na mesma época em que Elba Ramalho regravaria “Chão de giz”. Na versão original a guitarra era de Lula, mas Elba não quis que o músico participasse porque era “muito louco”. Robertinho do Recie acabou azendo a guitarra – e não mudou em nada a rase musical original de Lula.

Dos inimigos Temos medo ou revolta De quem nos ama Temos todo coração


Dos que se perdem Temos pena ou remorso Dos que se encontram Vemos a satisação Dos que se negam Vemos marcas no seu rosto De quem não ama Como é triste o seu viver De quem não vê Vejo a alta que ele sente Inutilmente Nós sentimos o seu sorer Do acusado Já se sente a solidão De quem não pensa Vejo gestos tão conusos De quem não ama Como é triste o seu viver De quem não vê Vejo a alta que ele sente Inutilmente Nós sentimos o seu sorer (“Dos inimigos”, Lula côrtes, do disco Rosa de Sangue, de 1980)

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Com o tempo, a extensa produção musical daquela turma virou cult. Em 1990, o selo Phonodisc relançou o disco do Ave Sangria. Mais para rente, o selo americano Timelag desenterrou Satwa e, segundo Laílson, existe até uma banda cover deles no estado americano do Maine. Marconi Notaro no Subreino dos Metazoários e Paêbiru disputam o primeiro lugar no posto de vinil mais caro do país. A obra de Lula Côrtes e Zé Ramalho oi relançada em CD por um obscuro selo alemão alem ão chamado Shadocks. “Outro dia, um cara me alou ‘seu som está tocando na Anutérpia’, eu alei ‘onde é Antuérpia?’, ‘pô, o paraíso dos diamantes’, eu alei ‘Paêbiru virou um diamante’”, conta Lula. “O udigrudi acabou de morte natural. A maioria dos músicos oi cando mais velho, casando, precisaram ganhar a vida. O mais importante do udigrudi daqui é que os músicos não se limitaram a copiar os modelos ingleses e americanos, mas zeram uma mistura de ritmos nordestinos com guitarras, e acabaram com uma música bem original”, dene o jornalista José Teles.

Qualquer dia desses A gente se encontra encontra Pra bater um papo calmo Um papo calmo E calmamente conversar Conversar Bater na porta da alma Longe da loucura Longe da loucura E do barulho Dessa cidade (“Balada da Calma”, Lula Côrtes, do disco Rosa de Sangue, de 1980)


Os sobreviventes são amigos até hoje. 35 anos depois de Nova Jerusalém, reunido com Marco Polo e Almir de Oliveira em sua casa, Lula Côrtes losoa: – Agora é agora, o tempo não espera por ninguém, não pára. E Marco: – Essa está no grupo de rases antásticas: o tempo não espera por ninguém, o tempo não pára. – Não espera mesmo, nem retroage. O máximo que a gente pode ter são boas lembranças. Eu ui andando com tudo que veio atrás, está acumulado de tudo aquilo, é impossível você olhar a mesma árvore, porque ela não ranze... –, losoa o artista. – Você não olha nunca a mesma árvore. á rvore. É outra árvore – diz Marco. – É outra? – Não tem jeito –, responde o jornalista, rindo. – Nada, nada previsível – dene Lula, dando risada. E Marco Polo, abraçando o velho companheiro, às gargalhadas: – Eu gosto desse doido, para caramba. Eu amo esse homem.

À , Ll cô cô

quAse

Famosos


E

les eram os típicos nerds – ritmados. Estudavam música por horas, eram instrumentistas virtuosos e buscavam a pereição constante. Uns juram que eles estavam mais pro p ro unk que para o lisérgico. Outros os classicavam como insuportavelmente progressivos. A verdade é que esta oi uma banda de ases como com sons bem dierentes. Enm, rótulos não explicam a história surpreendente desses músicos que estiveram a um passo do sucesso internacional, que chamaram a atenção de empresários do Led Zeppelin e zeram com que o tecladista suíço Patrick Moraz – substituto de ninguém menos que Rick Wakeman numa das maiores bandas de rock progressivo do mundo, o Yes – desembarcasse no Brasil, instituindo um regime semi-escravo de trabalho com o intuito de dominar o mercado onográco como a maior banda de todos os tempos, que ainda estava por vir e oi decapitada pelo punk. Dali saíram astros pop como Lulu Santos e Ritchie, além do inimigo número um do sistema, Lobão. Assim começa a história da “carruagem dos deuses”, ou para os que preerem, o Vímana.

“O Vímana era mesmo uma banda impressionante - o que não quer dizer necessariamente boa. Seus aplicados músicos eram precisos e virtuosos. Não pertenciam à corrente, corrente, então deendida pelos Mutantes, que emulava emulava os rococós do Yes, Yes, porque tinham maior inventividade - em seus shows de três horas de duração, entre um solo de guitarra de vinte minutos e um de bateria de quinze, sempre era possível encaixar encaixar um dueto de violões com Lobão e Fernando, que resvalava no chorinho. Pesquisavam olclore brasileiro, assim como o Jethro Tull pesquisava suas raízes celtas. Por outro lado destacava-se da corrente do “rock-pauleira” “rock-pauleir a” de grupos como o Made In Brazil porque era menos tosco e preconceituoso, mais sosticado e culto.” Ricardo Alexandre, Alexandre, jornalista, no livro “Dias de luta”

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O inglês Richard David Court já se aventurava em experiências hippongas pelas bandas de sua terra natal, em meados de 60. Participara de um projeto chamado Everyone Involved, que gravou num único LP distribuído gratuitamente, como orma de protesto contra os planos de modicação do Picadilly Circus, em Londres. Foi lá que conheceu os então Mutantes Liminha e Rita Lee, que prontamente o convidaram para participar da comunidade bicho-grilo que ormariam na Serra da Cantareira. Nada como umaças nunca antes umadas para alegrar sua vida. O convite oi aceito, e cá está desde então. O inglês loirinho virou reerência para a hipalhada paulistana – lendas revelam que era ele quem garantia o abastecimento de ácidos em São Paulo, trazendo, de uma só vez, uma caixa de sapato lotada com os coloridos sunshines da Europa. Sob a alcunha de Ritchie, passou por grupos como Scaladácia, Soma e A Barca do Sol até ser descoberto por Lulu Santos – naquela época, Luiz Maurício. Luiz Maurício Pragana dos Santos era ã incondicional de Sérgio Dias, guitarrista mutante. Não há quem tenha conhecido o jovem rapaz na época, que hoje não comente que um dos maiores popstars do país carregava instrumentos, ligava e estava sempre perto de seu mestre valvulado. Tiete seria a palavra mais apropriada. Quando não estava sendo chato ou puxa saco, Lulu, que também reqüentava a comunidade na Cantareira (óbvio), arriscava alguns ris em sua banda, banda , o Veludo Elétrico. Com sua saída do Veludo, a alma artística de Lulu agonizava – e não podia car longe dos holootes. Não há relatos exatos de como surgiu o Vímana. Os próprios integrantes do grupo não se lembram ao certo da ocasião. Sabe-se que na mesma época em que acabou o Veludo Elétrico, grupo de Fernando Gama e Lulu Santos, também se aposentavam os garotos do Módulo 1000, de Luiz Paulo Simas e Candinho. O baterista Candinho conta que o Vímana começou no dia em que terminou o Módulo 1000. “Estávamos num estival em Pedra Azul (cidade no norte mineiro, encravada no Vale do Jequitinhonha), e resolveram que era nosso último show. Eu e o Luiz Paulo tínhamos uma sala lá que a gente cava tocando, e apareceu


o Fernando Gama. A gente se encontrou azendo música na hora”. Convidaram Lulu Santos para assumir as guitarras do novo grupo e voilá: estava criado o embrião do Vímana. Fizeram duas grandes apresentações com esta ormação. Ensaiavam muito, mas os shows eram raríssimos. Esta oi a ase mais psicodélica do grupo, acredita Luiz Paulo. “Essa primeira ase era a mais experimental, mas já indo mais pro rock progressivo, com músicas elaboradas... Se bem que a gente elaborava muito, tínhamos poucas músicas e alongávamos elas pra azer um show”, lembra lembra o tecladista. Estrearam em 1974, quando oram convidados para tocar no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. Os cariocas aceitaram prontamente o convite para a apresentação, que aconteceria junto com outros grupos já conhecidos pelo público desbundado: O Terço, Terço, Mutantes e Peso. Peso. “Só tocamos quatro músicas, que prolongamos pelo show inteiro”, conta Luiz Paulo. Entretanto, as poucas composições já revelavam o potencial do quarteto que, em seguida, subiria no palco da primeira edição do estival Hollywood Rock, iniciativa de Nelson Motta, que aconteceu em 1975. O evento oi uma grande catástroe, conorme relatam os que estavam es tavam presentes. Problemas no áudio comprometeram diversas apresentações, inclusive a dos garotos do Vímana, que ao começarem a tocar os primeiros acordes de “Perguntas” caram na mão da aparelhagem. Na precária gravação em vídeo do show, é possível ver a pereição dos teclados de Luiz Paulo, alguns passinhos ensaiados e nsaiados por Luiz Maurício e o gurino eito de de algum tipo de tecido brilhante, bordado com lantejoulas – cada integrante vestindo uma cor. Porém, o que aparentemente seria uma banda entrosada nas entranhas escondia hormônios eervescentes. Fernando Gama lembra que as brigas eram constantes e que uma vez, se não lhe alha a memória, me mória, numa audição no Cinema Bruni, o quarteto discutia erozmente no camarim. Eis que surge o jornalista Ezequiel Neves, desesperado, pedindo o m da discussão. Os microones estavam ligados e a platéia acompanhava o arranca rabo de camarote.

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Queimo e perco em menos que segundos, s egundos, Jogo tudo pra batalha, eu pago pago pra curtir Um prazer já não dura tanto tempo, Quando vai passar tua onda, continua aqui (Trecho (Tre cho de “Zebra”, do compacto homônimo, 1977)

Logo após o Hollywood Rock, Candinho, que reqüentemente saía do Rio de Janeiro rumo à terra da garoa, distanciou-se do grupo, até que resolveu abandonar as baquetas de vez. Lulu Santos revelou, em entrevista a Pedro Alexandre Sanchez na Folha de S.Paulo, 1997, que o baterista desistiu d esistiu da carreira por motivos de crença; “virou discípulo do guru Maharaji”. Candinho rebate e diz que, sendo líder natural do grupo por sua musicalidade, oi praticamente retirado da banda: “O Lulu entrou (no Vímana) e era o trampolim pra ele se dar bem. Ele cou conhecendo o Ezequiel, o Nelson Motta e oi trabalhar na Globo”. Brigas à parte, as lembranças desta época caram para sempre em sua vida. Em homenagem à banda, batizou sua lha de Vymana, que signica disco voador em sânscrito, ou ainda carruagem dos deuses, na cosmogonia hindu. E o grupo cara desalcado, anal, como diria o próprio Lobão, uma das coisas mais impressionantes na banda era a bateria de Candinho. *** Lulu Santos, então líder do Vímana, sentia alta de alguém que dividisse os vocais com ele. Lembrou do inglês que conhecera em São Paulo. Luiz Paulo também já o conhecia de um show do King Crimson realizado em Londres, onde se encontraram em 1972. Richtie já morava no Rio e estava saindo da Barca do Sol. Não pensaram duas vezes: Lulu levou-lhe uma Maria Mole como oerenda, ez o pedido ocial e... sim! Conseguiu Conseg uiu convencê-lo a entrar para o grupo.


João Luiz Woenderberg Filho era um garoto de alma rebelde. Carioca, conta que aos três anos de idade já tocava bateria. Aos 17, em 1974, sonhava em seguir carreira erudita. Cansara de bumbos e pratos. Queria Queria tocar violão. Repetiu o ano no Colégio São São Vicente de Paula. Achava-se mais esperto que os colegas de turma, mais novos, que quando perguntavam o que João Luizinho queria ser quando crescesse, cavam embasbacados com a resposta: músico. Mergulhado em sua realidade paralela e nos estudos do violão clássico, ele conheceu o que viria ser se r seu mentor e grande responsável pela sua entrada no Vímana: Inácio, o presidente do Grêmio Estudantil. “Ele vinha todo dia com discos de rock progressivo e eu tava numa ase que eu renegava tudo. Eu tava renegando o rock”, lembra. Mas o ritmo, que anos depois de pois viria a se tornar a maior arma de protesto do músico, incansavelmente contraventor, contraventor, caiu no seu gosto quase que por osmose. Um belo dia, Inácio o levou, a contragosto, a um show do Vímana. Não teve mais volta. “Eu menosprezava a banda, mas quando vi achei sensacional. O cara que eu achei mais sensacional oi o Candinho. Eu já tinha visto o Módulo 1000 no Teatro da Praia e eu os achava meio o Black Sabbath brasileiro. O Candinho sempre me chamou a atenção, porra, ele toca pra caralho, alto nível”, lembra. Poucos meses depois veio a notícia do desligamento de Candinho. Inácio continuava sua missão de catequizar Lobão e azê-lo esquecer a carreira erudita. Um dia, já sabendo do desalque, encontrou Lulu Santos numa galeria. Apresentou-se e comentou que tinha um amigo baterista que gostaria que conhecesse. Só havia um problema – Lobão era menor de idade. Lulu torceu o nariz, pensou um pouco e marcou uma audição para a mesma semana, no teatro Casagrande, onde o grupo ensaiava o espetáculo A Feiticeira, com Marília Pêra. No dia do encontro, Inácio chegou no colégio e comentou sua açanha com o amigo. Ao contrário do que pensava, Lobão odiou a idéia e recusou-se a ir. Há mais de seis meses sem se m tocar, tocar, o garoto não se julgava julga va apto a substituir aquele que considerava o maior baterista do Brasil. Como em um grito de misericórdia, Inácio insistiu e deu sua cartada nal: a bateria do adolescente resmungão já estava montada no teatro.

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Era só ir e tocar. Lobão não contava com a astúcia de Inácio e viu-se impossibilitado de continuar recusando. Fechou a cara e oi para a jam session. Com cara de mau, encontrou os integrantes de sua utura banda e começou a disparar: “Odeio rock”. Ritchie assustou-se. Luiz Paulo já não curtia a idéia de ter um menor de idade na banda. Tudo parecia sinalizar que, antes mesmo de começar, a tentativa seria rustrada. Lobão sentou-se atrás de sua bateria com idéias mirabolantes na cabeça. Decidiu, oensivamente, tocar de uma orma inacompanhável para descartar logo de cara a sua entrada no grupo. Mas, para sua surpresa, ao surrar o instrumento em um ritmo louco, a la escola de samba, oi seguido pelos outros músicos em uma jam session que durou mais de quatro horas. Depois do transe, questões práticas ainda martelavam a cabeça dos integrantes do Vímana – Lobão era menor de idade e isso daria uma bela dor de cabeça. O veredicto veio da boca de Lulu Santos: “Quero esse cavalo holandês tocando com a gente”. Palavra nal dada, Nelson Motta acabou tornando-se tutor do jovem j ovem João Luiz e Ritchie assumiu a representação da tutela ocial. O Vímana estava pronto para alçar vôos maiores. ***

“O universo do rock nos anos 70 era algo tão marginal (não apenas no sentido estético, mas no social mesmo) que era impossível que todo mundo que reqüentava os shows não se conhecesse conhecesse e, vez por outra, outra, tocasse junto. ‘A sensação que eu tinha era a de que, no Rio de Janeiro, havia quinhentas quinhentas pessoas que gostavam de som’, lembra Lulu Santos. ‘Tinha sessão à meia noite do ‘The song remains the same’? Apareciam Apareciam as quinhentas pessoas. Tinha Tinha show do Terço Terço no Tereza Tereza Raquel? Tava lá aquele povo’. E, nesse microcosmo, o Vímana acabou reinando soberano. soberano. Apesar de praticamente desconhecido ora do estado do Rio, o grupo chegou a tocar em estivais como o Som, Sol e Sur, Sur, em Saquarema, no

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verão de 1976. Mantinha curtas temporadas em teatros da capital carioca, na Ilha do Governador e no Campo dos Aonsos, e em outras cidades, como Niterói e Petrópolis. Petróp olis. Era, tudo considerado, uma superbanda do undergroun underground d da época.” (Ricardo Alexandre, Dias de Luta)

Com a ormação completa, o Vímana desembestou a produzir. Lobão caiu de cabeça numa crise de identidade e encontrou apoio nos colegas de banda – que, ao contrário do que pensava, eram pessoas sérias, praticamente anti-roqueiras, muitas vezes até avessas ao estereótipo desbundado. Existia o lado sexo, drogas e rock ‘n’ roll, mas tudo de orma muito bem organizada. Logo após sua entrada na banda eles vieram para São Paulo, onde realizariam algumas apresentações. Hospedaram-se num apartamento montado por Nelson Motta, em Higienópolis. Foi lá que caiu na real: “Eu era um cara super protegido, virgem, não tinha umado maconha e estava quase com 18 anos. Aí pensei: vou entrar nessa banda e vou ter muitas mulheres, e aconteceu que o processo de entrada oi muito doloroso. Minha mãe cou puta, disse que não ia querer eu com aqueles maconheiros e me expulsou de casa”, lembra. Lobão havia parado de comer carne e numa paranóia erudita compôs “As Vaquianas”, música de completa compaixão pelas bovinas. Quando não estava tocando, passava a tarde em rente à televisão, assistindo seriados de cção cientíca e montando aviõezinhos. Tinha que ser assistido diariamente por problemas de saúde – soria de disritmia. Toda noite, Ritchie lhe trazia seus compridos, para que não nã o deixasse de tomar. Eram praticamente uma amília. “Lulu, assim como a minha mãe, me chamava de João Luizinho”, diverte-se. Recém introduzido na maioridade, aos poucos começou a ingressar na vida real. De volta ao Rio, sem casa, comida e roupa lavada, dormia na praia, até ser convidado para morar com Luiz Paulo “numa casa na Rua Teresópolis, caindo aos pedaços”. Ensaiavam até 10 horas por dia e, nos tempos livres, mergulhavam em leituras complexas. A vida dos integrantes da banda era, praticamente, 100% voltada à música; o que não osse exatamente ritmado À q,  ví ví  t t J c, c,  r  J J


acabava, de alguma orma ou outra, infuenciando acordes e ris. “Quando a gente morava junto, o Luiz Paulo saía pelado do banheiro com a toalha na boca, compondo, olhando pra cima... tocando teclado no braço com a mão direita”, diz. ***

“Luiz Paulo, é sem dúvida, um dos melhores tecladistas eletrônicos que temos. Seu equipamento é complexo e muito bem usado. Foi um dos pioneiros do sintetizador no Brasil. Usa piano acústico com captador Hellpinsteel, um Fender Rhodes 88, órgão Hammond L-102, Sintetizador Mini-Moog e Max-Korg, Clavinet Hohner D6 e uma mesa Peavey de 8 entradas, onde combina todos os teclados e manda para um amp Sunn de 120W. O guitarrista Lulu é um músico de estúdio muito versátil e com ótimo desempenho no palco. Está usando uma Stratocaster Fender, Fender, uma Rickenbacker 366 de 12 cordas, uma pedaleira e um amp Twin Reverb Fender. Fender. Na bateria Tama Imperial, um modelo semelhante a Octaplus Ludwig, com 8 peles anadas, senta-se Lobão, um garoto garoto de 18 anos que estudou seis de violão clássico, mas optou pela vibração e o balanço da bateria. Richard Court, o Ritchie, é um inglês que está a quatro anos no Brasil. Ainda não tem pronúncia de “native speaker”, o sotaque carioca, mas isso não não chega a preocupar na na sua mise-em scene: Ritchie é certamente um dos mais expressivos expressivos cantores em potencial.” potencial.” (Revista Música, texto de Paulo de Castro, 1976)

Os shows do Vímana eram marcantes e sempre lotados. Inspirados na perormática Genesis, os garotos eram enérgicos e Ritchie, o ront man, dava um show à parte – já j á havia sido mágico e usava esta experiência para incrementar suas interpretações. Entretanto, apesar da platéia adorar, o clima era cada vez mais tenso no reino da babilônia, ou melhor, na banda

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do inglês. “A petulância, que é comum entre jovens, ez com que as nossas perormances mais parecessem brigas de galo, com todo mundo tentando solar ao mesmo tempo, até mesmo nas horas das partes cantadas. O resultado era um caos semi-controlado. s emi-controlado. O público, por sua vez, aparentemente adorava, ou cava em estado de choque, dependendo de seu grau de iniciação como ouvinte”, lembra Ritchie.

Backstage the bearded lady, Looks behind to see yesterday, Hope rise in the painted eyes, And the show goes on (Trecho (Tre cho de “Masquerade “Masquerade”, ”, do compacto Zebra, 1977)

Como disse o cantor, as apresentações do grupo eram marcadas pelos solos intermináveis. Quinze minutos de guitarra, seguidos por vinte de bateria. Pausa. Lobão saía da bateria ba teria e, junto com Fernando Gama, sentava-se na rente do palco e tocava violão clássico clás sico Villa-Lobos. Luiz Paulo abandonava momentaneamente o progressivo e seus amosos sintetizadores e desembestava num chorinho. “Soremos com a ditadura de nós mesmos. Muita briga para pouca música. Era um inerno musical, um som catártico”, completa Ritchie. Pareciam querer, querer, de qualquer orma, mostrar ao público um pouco de todas suas infuências. E elas eram muitas. Fernando Gama era muito na dele. “Uma vez, ensaiando no teatro Casagrande, estou eu e u lá, tocando bateria e vendo a banda inteira. De repente, o Lulu começou a peitar o Fernando, muito burburinho. Daqui a pouco parou todo mundo e eu só vejo o Lulu, com aquela boca enorme, alando sem parar. Então veio o Fernando e eu comecei a prestar p restar atenção:


-Lulu, me deixa só alar uma coisa. -Não, você não tem razão, não vai alar nada. - É que você tá com bao de merda, por avor, pára de alar... Aí Lulu esmoreceu, saiu rágil, chorando, oendidíssimo. A gente ria, e o Fernando tentando explicar.. Depois de um tempo ele volta, olha pra todo mundo teatralmente, encara todos, explicar pega uma craviola e toca uma música linda, muito canastrona, ‘Amanhã, eu prometo, eu vou ser outra pessoa, espere até amanhã’”, lembra Lobão. E as discussões eram sempre assim, entre egos estelares e almas de moleques. *** O uturo do Vímana parecia estar traçado. Seguindo a ordem natural dos atos, depois de ensaiarem horas e mais horas por dia, d ia, lotarem casas de espetáculo, carregarem junto em suas apresentações legiões de ãs, conseguiram, enm, o que altava: um disco. Luiz Paulo era secretário de Nelson Motta e, como já havia criado o amigerado “plim plim” da d a TV Globo, tinha certa infuência no mercado onográco. Eis que surge o primeiro estúdio com 24 canais no Rio de Janeiro e, servindo na verdade como cobaias, os meninos descolaram um espaço no moderníssimo Level, em Botaogo, para registrarem suas loucuras. Com o engenheiro de som americano Don Lewis e o produtor carioca Guto Graça Mello, gravaram uma demo tape que seria logo em seguida aceita por uma grande gravadora – resquício das infuências de Luiz Paulo. Em termos tecnológicos, o Vímana era um grupo anos à rente de sua época. “Eu não entendia porra nenhuma, e no meio dessa dess a gravação tinha o técnico que era meio que um hippie velho, que adorava Janis Joplin, e eles cavam se drogando, alando inglês, alando de canal e eu não entendia nada. A minha sensação era que eles eram muito inteligentes e eu era burro, porque o Vímana era de uma tecnologia de ponta, tinha um puta equipamento. Fui, aos poucos, aprendendo a trabalhar”, recorda o caçula.

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Com a demo em mãos, mã os, Luiz Paulo apresentou-a às pessoas certas na Som Livre. “Durante poucas sessões em meados de 1976, seu grupo pôde registrar todo o repertório, de peças de intrincada estrutura melódica, suítes enormes e temas bizarros, composto ao longo de dois anos de carreira, parte em português p ortuguês (como ‘Zebra’, ‘Palavras’ ou ‘O mistério’), parte em inglês (como ‘The secret garden’ ou o unk dissonante ‘On the rocks’). Das sessões de gravação, duas músicas, ‘Zebra’ e ‘Masquerade’, oram pinçadas e lançadas em compacto da Som Livre no início de 1977. ‘Zebra’ era a primeira tentativa do quarteto de soar pop, conciso, ‘enxuto’, como deendia Lulu. ‘Masquerade’ ainda era um progressivo clássico, mas tinha menos de dez minutos, uma raridade no repertório do grupo”, escreve es creve Ricardo Alexandre, em Dias de Luta. No entanto, o que parecia uma maravilha não nã o cheirava a fores, como a maioria pensa. pens a. O compacto Zebra estava pronto e oi o máximo que a banda conseguiu - um LP de verdade nunca chegou às lojas. A rase clássica quando o por quê é questionado aos membros do grupo é: a gravadora disse que não havia público para o rock. Eles lotavam suas apresentações, tinham até ã clube e não havia compradores para um álbum completo? Lobão tem outra versão para os atos: “O compacto já estava nas lojas, a gente tinha contrato com a Som Livre, e a ordem natural natural da coisa era o LP sair. Mas aí o Patrick Moraz veio e alou ‘Vocês precisam rescindir rescindir o contrato e não podem dizer, dizer, é ultra-secreto, pra Som Livre que é uma grande coisa, tem que mentir’. Então cada um inventou uma desculpa esarrapada pra contar pro cara da gravadora, Guto Graça Mello. Um disse que queria ser proessor, proessor, outro ia estudar macrobiótica... Mas o Guto já sabia e tivemos que alar que tínhamos abortado por causa do Patrick, e como era tudo uma ta teste, devem ter apagado”. Como lembrou o baterista, ninguém guardou as gravações eitas no Level e, por mais estranho que pareça, ninguém sabe onde oram parar. ***


Festival de Saquarema marcado e o Vímana com uma baixa – Fernando Gama, que estava com hepatite. Entretanto, a doença do baixista não impediu a participação dos garotos que, não podendo tocar sem o colega, oram trabalhar como roadies. Lá conheceram Patrick Moraz, tecladista suíço que entrara no Yes Yes para substituir Rick Wakeman. Acompanhado de de sua bela esposa, a modelo Liane Monteiro, grávida, empolgou-se com os garotos. Acabou entrando para o Vímana, que ele mesmo queria transormar na Patrick Moraz’s Band. O início do m da trajetória do grupo. O gringo, nada bobo, prometeu mundos e undos aos rapazes cariocas. Parecia um conto de adas. Eles acabariam se tornando a maior banda de rock progressivo do mundo, o momento era aquele, simbora ensaiar! “Eu lembro, era uma época que morávamos num

d q.    ., ., F g, Lb, Lz s, Ll s  rh

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sítio em Itatiaia, que tava com os Mutantes, mas como eles oram pra Itália, a gente cou com o sítio. E nós lá pensando, porra, vamos pra Europa, uma aventura, banda concorrente do Yes. Tudo isso ensaiando, umando um baseado no meio da nossa horta de inhames, super macrobiótico, uma coisa ultra-hippie”, lembra Lobão. Mas com mais um ego gigantesco e suíço adicionado à banda, nada mais óbvio do que as brigas voltarem a atormentar a linearidade da carreira do Vímana. Lulu Santos e sua usual implicância com Fernando Gama deram o pontapé inicial. Um belo dia, pensando alto à beira do riacho: “Eu sou o Vimana. Quando chegar na Europa vou trocar o Fernando pelo Alphonso Johnson, eu quero o melhor baixista do mundo”. Lobão de tocaia, prestando atenção na egotrip de Luiz Maurício, cou inconormado, saiu correndo e oi logo avisar Moraz. O novo líder do grupo achou aquilo um absurdo e, como já não simpatizava com Lulu e tinha planos de também substituí-lo na Europa, expulsou-o da banda. “E nós camos de certa orma satiseitos, porque ele tava enchendo o saco”, lembra o baterista ooqueiro.

Como as pessoas ogem da raia, Na hora da barra, Como elas te deixam na mão Volto meus sentidos pro que paira no ar, Nesse momento o que recebo de volta? – Nada O coração aberto resolve, A dierença entre entre o bem e o mal (Trecho de “Perguntas” da ta demo gravada em 1976)

Problema resolvido e a paz oi nalmente instaurada no Vímana? “Não. Tinha muita pressão


do lance do Patrick, e ele era uma pessoa caótica. Tinha essa coisa de misturar Mangueira com rock progressivo. Era tudo muito pirotécnico”, conta Lobão. A vida de curtição desapareceu e a música virou praticamente um ardo carregado pelos garotos cariocas. Viviam sob um ritmo enlouquecido de ensaios, ensa ios, impostos por Patrick, que chegavam a durar d urar até 12 horas. Os meninos eram explorados até a última última gota. Tinham que tirar partituras dos maiores nomes da música mundial, tocar em compassos complicadíssimos. Mas aquela exigência toda tinha seus motivos: Patrick Moraz convidava empresários e produtores de superbandas para assistirem aos ensaios do Vimana. “Chegava o Peter Grant, empresário do Led Zeppelin, cheio de caveira. Vinha o Quincy Jones...”, cita Lobão. Em matéria publicada na revista gringa Circus Magazine, em 8 de dezembro de 1977, sob o título “Moraz Gets Jazzy: ExEx-Y Yes Keyboardist Catches Latin Fever”, o tecladista revela suas idéias de dominação do mercado onográco. “Ano que vem, entretanto, seus planos o trazem de volta aos EUA, na maior parte do tempo. Seus planos coincidem com seu terceiro disco (solo) e uma grande turnê, provavelmente em março, 1978. Ele está montando uma banda ‘antástica’, com cinco músicos, incluindo ele mesmo, Ritchie Court, um inglês fautista e compositor, que também canta, e um segundo tecladista, Louis Paulo (sic). O grupo viajará sob a logo de Patrick Moraz Band e terá um núcleo opcional de dois a cinco percussionistas brasileiros e alguns backing vocals. ’Minha nova música vai azer as pessoas dançar.. É mágico, você imagina, quando as pessoas escutam. Nos divertimos ensaiando dançar no Rio. Tem um paralelo entre a selva de pedras de Nova York e a verdadeira selva em que estamos, no Brasil’”. Mas o sucesso dos ensaios e a arta perspectiva não signicavam dinheiro no bolso. Depois de voltarem ao Rio de Janeiro, os garotos ensaiavam todos os dias na casa de Patrick, na Estrada do Juá, onde havia sido recém-montado um estúdio. Lobão era hippie – assim como seus outros companheiros de banda, não se importava com salário e ia todos os dias, de Botaogo até o local marcado, pedalando em sua bicicleta de três marchas. Tocava

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insanamente e voltava. Depois de algum tempo nesse vai e vem, não só ele, mas como os outros integrantes, estavam surpreendentemente magros, denhando. Eis que entra na história a protagonista de uma das lendas mais mal contadas do rock brasileiro – a top model Liane Monteiro, esposa de Moraz. Liane era linda, 12 anos mais velha que o caçula do Vímana, e havia acabado de parir mais um herdeiro de Patrick. Conhecia o tecladista há tempos e sabia que, no undo, ele se aproveitava da boa vontade e do sonho louco dos garotos. Também assustada com a magreza de seus novos amigos, amigos , começou a cozinhar para eles durante os ensaios. ensa ios. Durante todo o ano, por problemas de visto, Patrick volta e meia saía do país por três meses. Ela cava sozinha com os lhos e os recém adotados músicos. Numa dessas idas de Moraz, começou a fertar com Lobão. O papo começou quando ela oi alertar o menino sobre seus direitos. Eles deveriam exigir de seu marido um salário – coisa que não passava por sua cabeça. A paquera seguia e Patrick começou a desconar. desconar. Ficou muito amigo de Fernando Gama e passou a elogiar Lobão de orma exagerada. Desconado, oi passar três meses na Inglaterra e, quando voltou, tinha uma triste surpresa. “Ele sempre voltava muito conante, apesar da gente não ver o dinheiro, via a movimentação... A partir daí ele veio com umas sacolinhas, com ar meio patético. Abriu e tinha milhares de coisas, mas que oi a primeira vez que eu acho que eu morri e que pensei que depois dali não tinha mais salvação, que eu não ia sobreviver. E ele dizia: olha, acabou, cara. Não tem mais rock progressivo na Inglaterra, olha só: agora é punk, Sex Pistols, Elvis Costello, Buzzcocks, Clash... E a gente viu que não tinha mais nada na da a ver”, recorda Lobão. Triste, Patrick deixou mais uma vez do país. Segundo o baterista, Liane Triste, L iane aproveitou a deixa, teleonou para o garoto e o convidou para sair. Foram para um motel na Urca e depois para a casa dela. De lá, João Luiz só saiu quatro anos depois, quase que ugido. Virou dona de casa, não era autorizado pela mulher a ir até a esquina, criava seus lhos e, entre leituras complexas e conversas com intelectuais, pensava em 1001 maneiras de escapar –


d q.    ,, pk mz   ví

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que logo se transormaram em ormas de cometer suicídio, tamanha era a depressão e o cabresto imposto pela musa. O garoto ga roto rágil e superprotegido não esboçava orças para sair daquela situação. Amava a modelo mas, ainda jovem, sentia alta de viver sua vida independentemente. Em uma tentativa rustrada de acabar com a própria vida, tomou uma cartela de antidepressivo com meio litro de vodka. Recebeu um teleonema de Arnaldo Baptista convidando-o para ensaiar um de seus novos projetos: um trio com ele e Arnaldo Brandão. Quando os Arnaldos chegaram na casa de Lobão, o garoto sentou no banco de sua bateria, levantou as baquetas e caiu para trás. Foi levado para o hospital por Arnaldo Baptista. Lobão cou em coma e internado por um mês e o mutante voltou para casa em estado paranóico – oi internado e se jogou da janela. A relação esgotou-se de vez: “Não oi uma aventura. Eu tenho o maior respeito por ele (Patrick). O que aconteceu com o Patrick aconteceu também com o meu melhor amigo Julio Barroso. Eu acabei cando com a mulher do Julio também. E não tem nada de vingança, a gente aprendeu coisa pra caramba. É isso aí, as coisas acontecem”, justica. E como cou o marido traído? Puto, óbvio, mas agiu de orma especialmente civilizada, segundo Lobão. Ponto nal. Com o surgimento do punk o Vímana realmente perdeu espaço. “The dream is over” e cada integrante seguiu seu próprio caminho. Lulu Santos tornou-se uma das da s maiores estrelas do pop nacional. Ritchie estourou nas paradas de sucesso com o hit oitentista “Menina Veneno”. Lobão integrou a Blitz e logo depois seguiu em uma muito bem sucedida carreira solo. Luiz Paulo atua como tecladista desde então em Nova York, York, onde mora, e Fernando Gama ez sucesso no Boca Livre; e continua sua carreira musical no Rio de Janeiro, onde vive. É o m da epopéia.

sempre

rAinHA “O Serguei é a reencarnação do rock’n’roll em seu pleno ato de mosh” João Henrique Schiller, Schiller, diretor de TV e autor de “Serguei, o Anjo Maldito” (CZA Editora, 1997)

“É impossível contar a história do rock sem envolver a gura de Serguei” Luiz Calanca, dono do selo musical Baratos & Ans

“O Serguei era uma gura olclórica do underground da época. Ele não se notabiliza artisticamente, mas sim pela loucura” Luis Carlos Maciel, ex-editor da revista Rolling Stone

“O Serguei é um outsider do outsider do outsider” Fernando Rosa, o Senhor F, jornalista


A

época eram os anos 60, e o sentimento era de transgressão, contra a sociedade, contra os valores morais, contra o governo, contra o que estava estabelecido. Enquanto a juventude que habitava o cenário da contracultura brasileira caía no desbunde através de experiências tura ex periências sonoras, escritas ou visuais, estimuladas pelas convidativas portas da percepção que as drogas escancararam, o então jovem Serguei preeriu incorporar todas essas ormas de expressão em e m uma só: ele mesmo. Longos cabelos emendados, tingidos de amarelo e eneitados por fores, os olhos carregados de maquiagem e iluminados por lentes de contato azuis, um sol dourado desenhado no rosto, batom na boca, unhas pintadas de preto – assim é a gura desse carioca, uma verdadeira personicação ambulante do psicodelismo, que está nesse mundo há 74 anos vivendo seu maior sonho: o rock’n’roll. Músico, cantor, cantor, perormer, ã; acima de tudo, Serguei é o rock. “Ele representa isso em sua orma de viver, de se vestir, de adoração, como um culto”, acredita o diretor de TV João Henrique Schiller, Schiller, que na década de 90 escreveu a biograa Serguei, o anjo a njo maldito. Não é raro encontrar na mídia reerências que o apontam como um dinossauro do gênero. “Com certeza não, ele é anterior a isso!”, brinca João. A verdade é que Serguei atravessou gerações: ele estava lá quando q uando Beatles, Stones e tantos outros aconteceram, viu Woodstock e os grandes estivais hippies de d e perto, bateu de rente com a ditadura no Brasil e oi para os Estados Unidos viver entre as estrelas, mas acabou tendo no Rio de Janeiro seu momento de glória maior, uma verdadeira noite de astro, já praticamente na terceira idade. “E está aí até hoje”, resume João. “Percebemos isso, mas sem entender o porquê. E essa mesma coisa que az a gente não entender Serguei é o que az a gente não esquecer Serguei”.

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“Poucos no Brasil incorporam incorporam tão bem o espírito dos anos 50, 60 e 70 como esta síntese paranormal de Iggy Iggy Pop, Rod Rod Stewart, Steve Tyler Tyler,, Mick Jagger, Jagger, Klaus Kinski, Bela Lugosi e Dercy Gonçalves – ele é tudo o que qualquer outsider tentou ser ser,, mas teve medo de desbundar” Arthur Veríssimo, repórter gonzo, em matéria na revista Trip 107

Serguei vive em Saquarema, no litoral do Rio de Janeiro, desde a década de 80. Ao invés de “Lar, doce lar”, nos dizeres acima da cerca branca de seu jardim lê-se “Templo do Rock”. Sua casa é um verdadeiro museu, que mistura a história do gênero com a dele própria. Por todos os cantos estão espalhados ícones como Rolling Stones, The Doors, Led Zeppelin, Beatles, Nirvana e Jimi Hendrix, entre e ntre outros. A cantora Janis Joplin, amor da vida de d e Serguei, tem seu próprio altar. Na espaçosa sala principal, de linhas retas e pé direito alto, assim como no corredor que leva ao quarto e ao a o banheiro, as paredes são cobertas por pôsteres, capas de discos, otograas e matérias de jornais, com títulos como “Setentão psicodélico”, p sicodélico”, “Roqueiro diz que MPB é música de corno” e até “Serguei contra a CIA”. “O rock’n’roll é música, é gênero musical, mas também é atitude e estilo de vida”, ensina ele. Subindo as escadas encontra-se mais um espaço abarrotado de reerências, praticamente uma vitrine dos anos 60 e 70, com um colchão no lugar onde deveria haver um soá. “As pessoas sentavam no chão, nas almoadas, umavam maconha deitadas na cama. Botavam os incensos, rasgavam os jeans cada vez mais e deitavam os cabelos, só porque todo mundo dizia ‘não vai cortar o cabelo, cabe lo, menino?’. Aí os caras desciam os cabelos pra contrariar o que estava estabelecido estabele cido pela sociedade”, lembra Serguei, que decorou o Templo Templo


do Rock sozinho, com inspirações lisérgicas de sua própria cabeça. Segundo ele, tudo pelo desespero de poder mostrar aos outros a grandiosidade de uma época. Em seu quarto não existe um armário, mas sim uma arara com as roupas penduradas à mostra – “é muito artística, lembra o teatro, os hippies”, arma –, enquanto o banheiro mais parece um camarim, com várias imagens coladas desordenadamente no espelho iluminado, entre elas a do ator Henri Castelli, a do comediante Charles Chaplin e uma outra de Janis, desta vez tascando um beijo na boca de Serguei. “Agora você vai ver um quarto psicodélico”, avisa o roqueiro, abrindo uma porta no corredor corredor.. Dentro do cômodo quadrado

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sem janelas, a única onte de iluminação é uma lâmpada de luz negra, que extrai tons lisérgicos das fores brancas penduradas em seu o, das almoadas coloridas jogadas no chão, das paredes rabiscadas e do rosto de Bob Marley, que se destaca entre outros pôsteres. “A psicodelia é uma coisa universal, é o que está nesse quarto”, explica. “São os discos, as revistas, os espelhos com fores, as luzes, as cores, os incensos, um arrumado meio que desarrumado. É todo o retrato de uma época, não sei denir, eu participei daquilo”. Segundo ele, quase 20 mil pessoas já passaram pelo Templo do Rock neste século. O imóvel que atualmente abriga Serguei, suas relíquias históricas e seus seis cachorros vira-latas oi presente de um amigo gringo e é considerado ponto turístico em Saquarema, com placas de homenagens da preeitura e tudo o mais. Os visitantes aparecem a qualquer hora do dia, batendo palmas e dando gritos da calçada, querendo entrar; se o dono da casa não responder com a receptividade de costume, é possível que esteja escondido nos undos, esperando para poder sair e almoçar em paz. *** Mais de 50 anos antes de se tornar celebridade na pacata Saquarema, Serguei cresceu na zona norte do Rio de Janeiro como lho único de pais super caretas. Sérgio Augusto Bustamante de nascimento, ganhou o apelido pelo qual é conhecido até hoje de um amigo russo – “só botei o U pra neguinho não dizer Sergei”, conta. E em que momento um se tornou o outro? “Eu acho que o Sérgio já nasceu Serguei”, arma o biógrao João. “Já nasceu psicodélico, já saiu da mãe dele com a corda, a roupa indiana, cantando rock’n’roll, azendo sinais, trejeitos e gestos”. Foi ouvindo rádio e discos trazidos por amigos de ora do Brasil que ele descobriu o rock, isso na época em que as gangues cariocas circulavam pelas ruas de lambreta e gel ainda era Gumex – “eu passava no cabelo e cava horas no espelho para azer um topete que nem o do Elvis, que era lindíssimo. Depois vieram os quatro rapazes de Liverpool, que são a maior obra literário-musical do planeta em todos os tempos, e os Roll


ing Stones, super punks, quebrando tudo. E vinha com eles a gura mais psicodélica: Brian Jones, com os chapéus e as peles”, lembra hoje o roqueiro. Segundo João, o Serguei adolescente já queria aparecer, era o mais alante da turma e se vestia completamente dierente dos outros, que saíam para beber bebe r enquanto ele cava em casa costurando suas roupas. Com Copacabana como palco e praticamente público nenhum, esse precursor do psicodelismo no Brasil ncou suas raízes nos subterrâneos da sociedade fuminense e logo se tornou uma das guras mais olclóricas do então recém-nascido movimento de contracultura nacional, dando início a uma vida de espetáculos em busca do que considerava mais importante para o homem: a liberdade de ser, pensar e alar. alar. Apresentando-se em monumentos e praças públicas com as roupas rasgadas e abraçado à bandeira dos Estados Unidos – país que ele considera o melhor do mundo para morar – Serguei chocava com sua posição andrógena anos antes de Ney Matogrosso surgir com os Secos e Molhados. “Hoje se ala muito em Marylin Manson. Eu já era Marylin Manson antes de Marylin Manson existir!”, e xistir!”, compara, azendo questão de lembrar que oi um dos primeiros a usar interlace (técnica de d e entrelaçamento de os para xar perucas) no país e que adotou de vez as fores como acessórios quando Rita Lee um dia as colocou em seus cabelos. “Fica tão bem em você”, disse na ocasião a vocalista dos Mutantes, grupo “altamente psicodélico”, segundo ele. “Rita Lee é a rainha do rock no Brasil. Pode gravar até disco music, não tem problema, coração. Ela tem um toque de Midas do rock’n’roll, onde bota o dedo vira rock”, derrete-se. Serguei até que tentou ser uma pessoa normal. Arranjou emprego num banco e lá pelos 20 anos de idade idad e trabalhava como comissário de bordo, primeiro pela Pan Air, Air, depois pela Varig. Mas corriam os anos 50, Hollywood despontava e a prossão era puro glamour. O então comissário Sérgio viajou o mundo echado num terno rígido, com o uniorme cheio de pompa; entretanto, bastava entrar no hotel de d e qualquer grande cidade européia para transormar-se num ser cabeludo e colorido, antasiado com roupas extravagantes, ex travagantes, e sair escondido pela porta dos undos para se jogar na noite. Certa vez, encontrou em Madrid a

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atriz italiana Gina Lollobrigida e juntos se esbaldaram, enchendo a cara de sangria. Relatos da noitada acabaram chegando aos ouvidos de seus superiores e o comissário oi demitido. No Brasil, as atitudes e o estilo de vida de Serguei obviamente lhe renderam problemas com a ditadura militar. Ele ainda tem guardada no Templo do Rock a primeira revista de televisão que saiu por aqui, chamada Intervalo, onde oi publicada em 1967 uma oto sua na Avenida Rio Branco, vestindo uma jaqueta de Mao Tse Tung e protestando descalço. “Dá pra tirar uma conclusão do que eu sori, censuradíssimo, e ainda levei umas borrachadas. Fui muito perseguido, boicotaram muitos shows meus na TV e voltei para a América”, arma o cantor, cantor, que naquela época já vivia entre o Brasil e os Estados Unidos, onde havia concluído o high school, alternando os dois países de meses em meses. E oi morando com a avó materna em Long Island, Nova York, que o jovem acabou se impressionando com os blues dos negros e


caiu de amores pelo american way o lie: “Ele gosta da dignidade, dos salários, da liberdade de imprensa que tem lá. Aqui ele viu os amigos dele sendo presos e o pessoal de cultura sendo achincalhado, então cou ainda mais apaixonado pelos Estados Unidos, porque lá não tinha nada disso, as pessoas eram livres”, explica João Schiller. Além disso, não se pode esquecer que a terra de Tio Sam oi o berço do rock’n’roll; para Serguei, o rock tem que ser cantado em inglês e no volume máximo, sem medo de estourar os tímpanos. Seu biógrao, porém, avisa que é preciso prestar atenção para não se conundir com o personagem: “O Sérgio é extremamente culto, bem viajado, viaja do, lê muito e se preocupa em estar por dentro dos acontecimentos da política”. O setentão s etentão gosta de contar que o Rio de Janeiro daquela época era uma pedra preciosa, que brilhava junto com Paris, Londres e Nova York: York: “Tinha a magia, a beleza e tudo. Tom Jobim em Ipanema, Vinicius de Moraes, a bossa nova, os blocos de carnaval em que iam mais de dez mil pessoas, com a banda na rente, pulando carnaval. E os cariocas saíam do trabalho, das las de ônibus, as mulheres jogavam as bolsas e saíam sambando, samba ndo, dançando. Aquela coisa maravilhosa chamada Rio de Janeiro, com os morros lindos caindo atrás a trás dos prédios”. Hoje, contudo, seu sentimento pela terra natal é de prounda p rounda decepção. “O Brasil é um país maravilhoso, lindo, rico, mas como nação é podre, porque não chega a existir. Eu não sinto orgulho de nada disso aqui. O meu coração é americano, não é brasileiro”, declara Serguei, em alto e bom som para pa ra quem quiser ouvir. “Outro “Outro dia o Bush disse uma coisa na televisão que eu tive que levantar do chão para aplaudir: ‘We are the United States o America. We are an organized country and a country with laws’. E ele está certo, ele pode, nós é que não podemos. ‘Nós somos os Estados Unidos da América. Nós somos um país organizado e um país de leis’. Já pensou se o Brasil osse isso?”. No Templo do Rock, sua divisão pelos dois lares está marcada em duas otos, colocadas lado a lado dentro de uma moldura vermelha à esquerda, Serguei está sentado nos degraus de algum lugar da Big Apple, no ano de 1977, usando “sapatos iguais aos do Kiss, da mesma

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loja que eles compravam lá”; à direita, aparece sorridente só de sunga na praia de Copacabana, já em 1982 – “Um garotão passou, olhou pra mim, bateu a oto e saiu. Aí depois dei meu endereço e ele me entregou a oto”, lembra. Talvez seus tempos de comissário de bordo internacional tenham sido parcialmente responsáveis por alimentar a paixão pelos Estados Unidos; a verdade é que, nas palavras de João Schiller, Schiller, “as estrelas da bandeira bande ira americana sempre brilharam mais para Serguei”.

A velocidade encontra a emoção emoção A única maneira de ter a sensação sensação De uma liberdade, que há muito se oi Nas ruas da cidade, buscando o depois Não posso parar, não posso parar Não posso parar, de correr Trecho Tre cho da letra de “Hell’s Angels do Rio”, do compacto lançado em 1983

d q.    ., ., s  n Y Yk, k,  cb   J


Os anos em que morou nos Estados Unidos oram provavelmente os mais elizes da vida do roqueiro carioca. Mas, ao invés de se contentar em assistir da primeira la ao desenrolar dos tempos de ouro do rock, Serguei escalou o palco e viveu a história ao lado de seus maiores ídolos. Emblema da transgressão em pessoa, ele perseguiu todos os grandes shows e concertos que marcaram a época, como o amoso Festival de Música e Artes de Woodstock, que o encantou em 1969. Quatro anos mais tarde, trocou gurinhas com o badalado artista a rtista Andy Warhol na inauguração da lendária casa noturna nova-iorquina CBGB, que pouco depois lançaria a carreira dos punks Ramones, Ram ones, seus vizinhos. “Chatos pra caramba, cavam na garagem ensaiando e minha avó dizia: ‘Essa banda de rock é insuportável, não tocam nada, só sabem azer barulho’. Mas eu me dava com eles, principalmente com o cantor, o Joey Ramone. Quando cheguei no Brasil eles começaram a car amosos, mas pra mim eram os meus vizinhos, não sabia que tinham chegado até aqui”, lembra o brasileiro. Outro contato importante realizado nos Estados Unidos oi com o mítico grupo g rupo de motociclistas Hell’s Angels. Sujos, descabelados descab elados e transgressores, não demorou muito para se identicarem com a gura alucinadamente deslocada de Serguei. A união, é claro, oi selada pelo rock: os Hell’s Angels sempre tiveram um relacionamento estreito com Mick Jagger e os Rolling Stones, para quem diversas vezes trabalharam como seguranças em grandes shows. Portanto, se onde havia Hell’s Angels Ang els havia roqueiros, e onde havia roqueiros havia Hell’s Angels, não é diícil adivinhar que Serguei também estava lá no meio. Certa vez na Caliórnia, andando na garupa de um dos motoqueiros, o carioca caiu e bateu ortemente com a cabeça no chão, acidente a cidente que lhe rendeu um coágulo no cérebro e seqüelas seq üelas até os dias de hoje: “Tenho epilepsia motora, mas não está es tá tão ruim, o tique só piora quando q uando co nervoso”, explica. Este oi, no entanto, apenas o início de uma grande amizade, que continuaria se ortalecendo no Brasil durante as décadas década s seguintes. Em 1968, aos 30 e poucos anos de idade, Serguei estava curtindo um estival de rock num parque em Long Island quando encontrou seu amigo Laudir de Oliveira, que na época toca-

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va percussão por lá e depois viria a integrar o psicodélico Som Imaginário, no Rio de Janeiro. Mas Laudir não estava sozinho: trazia consigo a cantora Janis Joplin e na hora apresentou os dois, detonando o grande Big Bang da vida de Serguei. O roqueiro se apaixonou instantaneamente pela estrela americana e com ela teve um louco caso de amor que se transormou em lenda, pelo menos nos anais da história his tória do rock underground brasileiro. Diícil dizer o que mais impressionava na visão do par bizarro: a silhueta esguia e rebolante do tresloucado showman com a língua de ora, que a qualquer momento poderia ricochetear pelos cantos num grito euórico de “rock’n’roll!”, ou a deormada gura da hippie desvairada, que aos 25 anos vivia o auge de sua carreira musical e mergulhava de cabeça nas drogas. Serguei viajou com Janis para a Caliórnia, onde passou um mês pulando de esta em esta, desbundando como nunca junto com seus maiores heróis: “Conheci Jim Morrison em Los Angeles, quando ela me levou numa reunião no apartamento dele. Fiquei o tempo todo olhando para o cara, mas ele quase não alava, o povo cava muito em cima e não deixava ele em paz. Kris Kristoerson também estava lá”. Jimi Hendrix e sua guitarra psicodélica eram outros que vira e mexe batiam na porta de Janis. Depois disso, Serguei reencontraria


sua musa no Rio de Janeiro, em 1970, quando ela viajou para o Brasil. Nesse verão, o jornalista Luis Carlos Maciel ainda escrevia para os jornais O Pasquim e Última Hora, antes de de se tornar editor da versão brasileira da revista Rolling Stone: “Vi a Janis Joplin na entrevista coletiva que ela deu para a imprensa, na piscina do Copacabana Copa cabana Palace. Ela já era super star star,, mas aqui quem conhecia eram os ãs, quem não era ligado nem sabia quem era”. A americana era tão anônima por aqui que chegou a ser barrada num bar em Copacabana, como conta Maciel: “Ela chegou num bar perto da praia loucaça, toda suja de d e areia, molhada do mar, e os porteiros disseram: ‘A senhora não vai entrar nessas condições!’. Aí Ronaldo Bôscoli oi alar com o dono e o cara não sabia quem era, mas acabou entrando ela e o Serguei. Imagina os dois sujos de areia e molhados... uma coisa dantesca né? O porteiro, coitado, se assustou”. As aventuras e peripécias da dupla pelo Rio de Janeiro caram amosas, tanto que, quando a edição número 81 da revista Trip desenterrou otos de Janis azendo topless e enchendo a cara nas praias cariocas, Serguei oi convidado a dar seu depoimento: “(...) eu caminhava pela calçada em rente ao Copacabana Palace - naquela época a gente podia andar na Avenida Atlântica sem ser assaltado - quando vejo um casal bem dierente: um loiro alto, bonito, interessante e uma mulher com turbante e saia cigana. Puta que pariu! ‘Janis!’, gritei, e logo nos beijamos na boca. Nessa época, eu cantava num buraco chamado New Holliday, Holliday, no porão 73 do Leme, Copa. Cantava coisas como ‘Satisaction’ e ‘Tropicália’, ‘Tropicália’, abria o show da Darlene Glória. Quis levar a Janis lá. O gerente, um português, barrou-a na porta: ‘Esta mendiga imunda não pode entrar aqui’. Imagine, num bar de putas a Janis oi barrada! Briguei com o português e ela acabou entrando. Alcione estava cantando ‘Upa neguinho’. A Janis logo sentou e pediu vodca - sabe, quando você toma metadona dá muita vontade de beber vodca, e ela azia tratamento com metadona, na época, pra sair ora da heroína. Tinha uma bandinha tocando, subi no palco e alei ‘com vocês, a maior cantora de todos os tempos’. Pedi para os caras a acompanharem, mas eles não sacavam a música, caram nervosos.

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Então ela soltou a voz e cantou ‘Ball and chain’. Meu Deus (Serguei emociona-se, chora)... O canto dela era sublime! A boate b oate toda se levantou. Alcione gritou desvairada. Tony Tornado, Tornado, que também se apresentava ali, tremia todo, sem camisa. O português se ajoelhou aos meus pés e pediu: ‘Puta que pariu! Como ui barrar essa maluca? Dá na minha cara, que eu mereço!’. Logo em seguida, ela cantou ‘What I’d I’ d say’, do Ray Charles. Foi lindo, a

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glória, uma loucura total. A boate inteira nos mandava bebida. Saí de lá, alcancei ela com o David Niehaus, o tal holandês holandê s loiro, já na praia. Uma lua cheia… Você sabe, né, sou um sem-vergonha por natureza: transamos nós três até de manhã. Na verdade, eu estava mais ligado no holandês, aquela bunda branca ao luar, não tinha muita atração nela porque pra mim a Janis era algo inatingível, um ídolo, sensualidade e protesto, tudo. Ela era tudo o que eu queria ser. Mesmo que a gente estivesse próximo, transando, pra mim ela era um ponto de luz perdido no espaço.” Oito meses depois, a cantora oi encontrada morta num motel em Los Angeles por causa de uma overdose de heroína. No Templo do Rock, lembranças dos tempos com Janis estão por toda parte: otos enquadradas, pôsteres, um par de botas que Serguei ganhou de sua musa e até uma camiseta, que de vez em quando ele usa em suas perormances, estampada com a rase “Eu comi a Janis Joplin”. “Comeu nada!”, garante o biógrao João. “Comeu o holandês. Ele brincou bastante com a Janis, na areia de Copacabana. Ela e o holandês rolavam na praia doidaços, aí o Serguei pegava ele. Já tinha uma quedinha por homens, mas era curiosidade na verdade”.

Vocês gostam de Wanderléa? Nãããooo! Vocês gostam do Rei Roberto Carlos? Nãããooo! Vocês gostam de Serguei? [Cric, cric, cric – silêncio…] Então eu vou cantar as minhas alucinações! Trecho da letra de “As Alucinações de Serguei”, do compacto lançado em 1966

Quando apurou material para o livro Serguei, o anjo maldito, o diretor de TV João Schiller conseguiu comprovar muitas das histórias malucas que ouviu do roqueiro. Serguei real


mente chegou a assumir o lugar de Janis Joplin logo após a sua morte, se apresentando com sua banda algumas poucas vezes. Em outra ocasião, encontrou com ninguém menos que Mick Jagger em plena praia de Saquarema; o rock star estava sentado na igreja local, anônimo, bem no meio do caminho do passeio matinal do carioca, com quem acabou azendo amizade. “Se tem uma coisa que o Serguei não az é antasiar a vida dele. Ele ala exatamente o que é, não tem essa tendência a aumentar nada. Então ele diz que, na verdade, não namorou a Janis Joplin. Ele deu um beijo nela, mas estava querendo o holandês, namorado dela”, arma o biógrao. É praticamente impossível encontrar alguém que nos últimos 50 anos tenha passado, ainda que por um breve momento, pela cena da contracultura brasileira e não conheça o roqueiro. Como uma anomalia deslocada em seu próprio ambiente, ele acabava sendo assimilado de uma maneira natural pelos outros e encontrava seu caminho dentro das turmas mais improváveis, seguindo onipresente. São muitos e variados os sentimentos que a loucura e a lisergia dessa personagem cativante podem provocar nas pessoas, mas em um ponto todos concordam: Serguei não az mal a ninguém. Certo dia, em 1975, o perormer invadiu a redação da revista Rolling Stone, no Rio de Janeiro, e deu de presente para os jornalistas um pôster autograado. Um dos que trabalhavam lá (e o mais louco, por sinal) era Ezequiel Neves, o “Zeca Jagger”, que q ue há muito tempo perdeu o contato com o amigo. “Eu acho que nem ele lembra disso”, conta hoje o aposentado, tirando de dentro de um canudo a relíquia que ainda guarda com carinho em sua casa. Na oto, o cabeludo psicodélico aparece sorridente e coberto por plumas; logo abaixo, a dedicatória manuscrita a Ezequiel, “Lulu Maciel” (o editor) e companhia: compa nhia: “Um beijo da rainha do pop e mãe da Tr Tropicália. opicália. Sempre rainha, Serguei”. *** À ,  ô ô q Z J       hj


O mais incrível de tudo, no entanto, é que Serguei é careta. “Um amigo meu, quando me conheceu, alava que eu devia tomar todas toda s as drogas do mundo, porque era muito louco. Achava até que eu mentia pra ele quando dizia que não tomava nada!”, conta o desbundado. Mesmo depois de viver entre os coloridos Sunshines que Jim Morrison enava nas línguas alheias, respirar as nuvens de THC que envolviam os hippies e se apaixonar por Janis Joplin em seu primor junkie, o setentão jura que nunca experimentou droga alguma; apenas observava as viagens dos outros e, quando o eeito passava, aquelas “rebordosas horrorosas”. Para ele, os meios químicos de expansão da consciência são apenas uma maneira de matar suas emoções e, conseqüentemente, sua vida: “Não vou chorar, rir ou gozar quimicamente. Eu quero rir! [e desata a gargalhar] Eu quero chorar! [e imita um choro escandaloso] Eu quero sorrir, eu quero sentir, sentir, eu quero ver. É um absurdo abs urdo essa coisa de d e car tomando droga, tomar Viagra. A única vez em que quei broxa eu tinha 18 anos e estava de caso com um garotão por quem era apaixonado. Eu queria me matar, quei broxa durante um mês, mas depois voltei à ativa e estou assim até hoje!”. Como já saiu dizendo por aí, “é graças ao rock” que Serguei vive de pau duro. Toda sua lisergia, portanto, seria algo que já nasceu dentro d entro dele, 74 anos atrás. Os delírios da época que tanto ama são expressos em sua arte, em seu comportamento, em seus requebros, em seus olhos pintados, em seus cabelos cheios de fores. Na conclusão de João Schiller,, que não viu nada além de água mineral do outro lado da mesa durante os quatro Schiller meses de entrevistas em que se abasteceu de chopp, Serguei oi abduzido pelo rock’n’roll como um ET: “E sendo careta ele mesmo não entende o que aconteceu. Porque musicalmente, na verdade, ele queria ser Dalva de Oliveira, mas como não tinha condição nenhuma de cantar como ela, preeriu ser um astro a stro louco com aquela voz rouca. Talvez seja até por isso que ele não tenha sido um grande nome musicalmente, porque era careta na época”. De ato, a qualidade técnica da produção musical de Serguei é bem discutível. Mas até aí, desde quando rock’n’roll se resume a isso? A verdadeira obra de Serguei está em seu

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espírito, em suas atitudes, em suas transgressões, em sua loucura, em seu visual psicodélico e, acima de tudo, em suas perormances ao vivo. Os eventuais trabalhos em estúdios resultaram em cerca de dez compactos, lançados entre as décadas de 60 e 80, que tentam registrar um pouco de tudo isso. O primeiro surgiu em 1966, quando oram gravadas as músicas “As alucinações de Serguei” e “Eu não volto mais”. “Fui convidado porque achavam que eu era muito interessante no palco, tinha muita movimentação, mas que não era um cantor e minha carreira seria meteórica”, explica o roqueiro, mais de 41 anos depois, ainda na ativa. “As alucinações de Serguei”, na verdade, era uma versão de “Les hallucinations d’Édouard”, ou “As alucinações de Eduardo”, um cantor rancês muito louco que usava o cabelo na altura da bunda e bermudas foridas. Depois disso, o carioca desbundado passaria a aterrorizar na televisão: cou 45 minutos no ar em sua primeira aparição num programa de Silvio Santos, era sempre achincalhado por Chacrinha e conquistou o título de “Pior disco da semana” durante toda a existência do programa de Flavio Cavalcanti. Sucesso de audiência na época, o apresentador azia questão de ter Serguei como convidado apenas para poder xingá-lo, quebrar seu disco e expulsá-lo no nal. Ainda na década de 60, 60 , o roqueiro escandalizou São Paulo e o Brasil quando participou do “Quem tem medo da d a verdade”, de Carlos Manga, na TV Record. O programa consistia, basicamente, num tribunal onde os convidados eram acusados, deendidos e julgados por p or um júri sempre agressivo, que adorava promover ataques pessoais. p essoais. “Era eu, Roberto, Agnaldo Timóteo, oi um terror. O grupo de balé que azia minha deesa vinha dançando, a banda caída no chão dando acordes de Aquarius, aí levantou tocando, e eu cantando. Foi maravilhoso, sensacional!”, lembra Serguei, que após ser s er chamado de hippie sujo obviamente acabou condenado. Logo depois, em 1970, tentou um contrato com a gravadora CBS, cujo produtor na época era Raul Seixas: “Ele estava conversando com umas pessoas, veio me atender e me olhou assim, de cima a baixo. Era um cara baixinho, branco, cheio de espinhas, cabelo cortado de


soldado, muito sério, muito compenetrado. Aí eu disse: ‘Pô, prazer, Raulzito’”. Depois de alguma conversa: – Passa daqui uns quinze dias e vem me procurar, que eu vou ver se produzo o disco do Serguei. – Ainda bem que você alou meu nome, porque eu já estava preocupado! Quinze dias depois, a resposta: “Serguei, ele disse que não vai gravar você não, porque você é muito louco. Não tem nada a ver, você não tem nada, só é muito louco”. No mesmo ano, uma das aixas de seu compacto produzido por Nelson Motta oi censurada e o cantor chegou a ser preso. Aparentemente, na visão dos censores, o bicho estranho e nojento noj ento de “Ouriço” representava a polícia e a música acabou virando trilha sonora de lme pornô. Em outra ocasião, o psicodélico chegou a ser proibido de se apresentar num estival no estádio Caio Martins, em Niterói, organizado em sua própria homenagem para marcar a volta de uma temporada nos Estados Unidos. Mas Serguei, sempre transgressor, transgressor, não se abalava com a repressão: “Em Minas Gerais, na Universidade Federal, os policiais também tentaram me impedir de tocar. Mas eu conversei com eles e aí só iam me deixar azer cinco músicas. Acabei tocando dez e eles ainda vieram me cumprimentar depois do show, adoraram”. Ainda na década de 70, o roqueiro estava um dia parado num ponto de ônibus, no Rio de Janeiro, quando começou a puxar conversa com um garotão sursta, que q ue tinha umas tatuagens pelo corpo. “O que me atraiu oi a águia com uma serpente que ele tinha no braço direito. Começamos a trocar idéia e aí lembrei le mbrei que era o Serguei, já tinha visto na televisão, ele era meio que um estereótipo de Mick Jagger à brasileira”, recorda o hoje tatuador Tyes Tattoo. A amizade acabou cando e o rapaz se tornou ninguém menos que um dos sócios undadores do Hell’s Angels do Rio de Janeiro. Reorçada a relação próxima que já tinha com os motociclistas americanos, Serguei caiu de vez nas graças do clube e passou a ser considerado algo como seu artista ocial. Tyes, atualmente membro do Hell’s Angels Nomads Brasil,

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o l “s,  j l”. n , s   Hll’ al’ ty t t

é responsável pelo desenho de d e duas rosas que até hoje marcam um dos braços do roqueiro, que também tem uma bandeira dos Estados Unidos rasgando sua pele, eita por um outro artista da mesma loja. Em 1983, Serguei resolveu azer uma homenagem aos amigos e lançou um compacto com a música “Hell’s Angels do Rio”, acompanhado da banda Cerebelo e com letras de Marcelo Xavier.. Segundo Luiz Calanca, dono do selo Xavier se lo musical Baratos & Ans, este talvez tenha sido o primeiro heavy metal eito no Brasil; na capa, um carimbo onde se lê: “Aprovado pelos Hell’s Angels”. O clube acabou azendo seu primeiro serviço de segurança no país nesse mesmo ano, como lembra Tyes: “Foi no Sesc da Tijuca, tocaram Serguei, Robertinho do Recie e outras bandas. O backstage num show dele é sempre maneiríssimo, ele é o grande idealista do rock’n’roll, o verdadeiro entusiasta”.


E se Serguei realmente deu sua vida pelo rock, é nos palcos que ele se entrega com toda sua paixão, de corpo e alma, numa espécie de redenção. Seu repertório sempre contou, em grande parte, com covers de clássicos cláss icos do gênero, como “Born to be wild”, de d e Steppenwol, “Satisaction” “Satisaction” e “Sympathy or the devil”, dos Rolling Stones, e “Help”, dos Beatles. Nas paredes do Templo do Rock podem ser vistas muitas lembranças desses espetáculos, de qualquer década ou lugar; o setentão pára e aponta para a oto de um homem durante uma apresentação realizada em Vitória, no Espírito Santo, sabe-se lá quando:

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– Serguei, quero te dar um beijo depois d epois do show -, teria dito o desconhecido. – Tudo bem, mas primeiro mostra os dentes -, pediu o perormer perormer.. Sorriso Colgate estampado na cara, Serguei respondeu: – Agora pode. Homossexual, heterossexual, bissexual? Apesar de não gostar de rótulos, Serguei costuma dizer que é pansexual, inclusive por serem amosas suas histórias envolvendo árvores, samambaias e até um robalo. Isso, é claro, sem contar pelo menos metade da população viva nas décadas de 60 e 70, auge de seu desbunde. “Eu não sou gay. Eu não sou straight. Não sou nada disso, mesmo porque tal coisa não existe. Tudo depende do conhaque, da dose de uísque, do cigarrinho de maconha, ou não. Depende do que rola no clima”, explica o carioca. A verdade é que, aos olhos dele, o homem, o macho, o ser masculino em si sempre pareceu mais bonito. Quando começou a se travestir com roupas psicodélicas, seu visual não tinha a conotação sexual que pode ter hoje, anal, cabelões eram a moda da contracultura. “Esse papo de rotular começou por causa do nome dele. O triste é que, na época, não era preciso explicar”, arma João Schiller. “Aí oi criada a expressão gay, então Serguei passou a ser viado. Começaram a questionar e, como ele é transgressor de regras, acho que tomou isso como ‘Ah, quer saber, sou mesmo, e aí?’. É bem a cara dele, de le, transgressão, rock’n’roll. Ser viado é rock’n’roll!”.

One o these mornings You’re gonna rise, rise up singing, You’re gonna spread your wings, Child, and take, take to the sky, Lord, the sky Trecho Trec ho da letra de “Summertime”, de George Gershwin (1935), imortalizada na voz de Janis Joplin


“Serguei: nalmente o show de sua vida”. Este era o título de um artigo sobre a segunda edição do estival Rock in Rio, publicado no Jornal do Brasil de 24 de janeiro de 1991. O texto começava da seguinte maneira: “Vocês não têm idéia da importância do dia de hoje para Serguei, que vai cantar logo após a apresentação da Orquestra Sinônica Brasileira”. Sim, depois de passar mais de duas décadas jogado no limbo da cena musical nacional, o veterano psicodélico nalmente alcançou o reconhecimento que tanto buscava, aos 57 anos de idade. “Eu cava puto porque idolatravam uma porrada de gente e queriam deixar ele de ora. Ele, a lenda viva do rock! Ele oi o pioneiro, o verdadeiro guerreiro do rock, viveu isso na época em que todo mundo recriminava”, conta o amigo Tyes, indignado. “O Serguei sempre acreditou no sonho dele, e ainda aind a por cima tem um carisma do caralho. Foi um puta respeito por parte dos organizadores convidarem ele para o Rock in Rio II”. Naquela noite de quinta-eira, em pleno estádio do Maracanã, Serguei ez mais de 50 mil pessoas sentarem no gramado para ouvi-lo cantar “Summertime”, segundo a versão blues rock de Janis Joplin. “Eu pedi, sentaram a bunda no chão, desci sozinho e cantei no meio de todos. Foi bonito pra caramba, um show inesquecível para mim”, lembra o super star. Sucesso entre o público e elogiadíssima pela crítica, a surpreendente apresentação lhe rendeu um convite para gravar o primeiro e único LP de sua carreira, que nunca chegaria a ser lançado em CD. Além dos covers de sempre, oram incluídas no álbum algumas músicas originais, com destaque para “Rolava Bethânia”, uma paródia de “Roll Over Beethoven”, de Chuck Berry. Berry. A homenagem a Janis, aliás, é uma das marcas registradas de suas perormancp erormances ao vivo: “O show está no maior clima de rock e, de repente, ele pede pra galera sentar e car tranqüila. É uma vibe muito boa, o público entra numa viagem, ca meio dormindo, meio acordado”, descreve o Hell’s Angel Tyes. Desde então, o roqueiro nunca mais gravou em estúdio. Em 2002, no entanto, a Baratos & Ans resolveu assumir a responsabilidade de preservar decentemente seu legado e reuniu

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treze de suas mais alucinógenas criações na coletânea Serguei; segundo Calanca, a preocupação na hora de selecionar as a s músicas oi a de incluir “só as coisas rockers”. O jornalista e produtor musical Fernando Rosa, conhecido na blogosera como Senhor F, avaliou que a compilação dá, “pela primeira vez, a real dimensão da importância da obra de Serguei. Além do ‘olclore’ em torno de sua gura, a seleção musical de Calanca mostra um repertório de clássicos da psicodelia nacional, com instrumental típico (com muita uzz-guitar) e letras doidonas”.

“Serguei se compara a um ponto luminoso qualquer perdido no tempo e no es paço, sem saber direito de onde onde ou para o que veio” Luiz Calanca, dono do selo musical Baratos & Ans

Quando passam a apagar setenta e tantas velinhas a cada bolo de aniversário, pessoas normais costumam estar aposentadas, mimando netos, gastando a herança dos lhos, tomando cuidado para não cair no banheiro, ou apenas aguardando melancolicamente a hora de bater as botas. Mas Serguei não é uma pessoa normal. Aos 74 anos de idade, o carioca continua tão duro e inocente como aos dezoito: “Eu vivo de atitude, de rock’n’roll e dos meus shows”. Em 2007, participou do programa da mãe do lho de Mick Jagger, Luciana Gimenez, e ez duas aparições no Programa do Jô, onde já é da casa, sendo uma ao lado da veterana banda Made in Brazil e outra com Xandra Joplin, cover de Janis. Sua última grande apresentação, no entanto, oi durante a terceira edição da Virada Cultural, que agitou o centro de São Paulo no começo de maio. “Nós temos uma surpresa pra vocês: uma lenda viva do rock, o divino, Serguei!”, anunciaram no palco da Barão de Itapetininga. Ao som dos primeiros acordes de “Rolava Bethânia”, o setentão psicodélico entrou em cena de jeans e camiseta rasgados e começou a pular sem parar,, rebolando loucamente entre caras, bocas e poses, parar p oses, com a voz rouca tentando encontrar ôlego em algum momento. A guitarra do trio paulista The Rose Blues Band parou


de uncionar por um instante, mas o público nem percebeu, de tão impressionado com a perormance surreal que estava acontecendo diante de seus olhos. E mesmo com cada centímetro da rua lotado por homens, mulheres, crianças, idosos idos os e Hell’s Angels, o roqueiro ainda encontrou espaço para pular do palco e cantar no meio de todos. Luiz Calanca estava lá: “Ele alou ‘Eu vou aí!’, pediu pras pessoas sentarem e desceu. Eu estava bem no gargalo e ele pediu um viva pra Baratos & Ans, quei emocionado”. Em pé entre a multidão sentada à sua s ua volta, Serguei cantou “Love o my lie”, do Queen, acompanhado apenas pelo som da guitarra e pelas vozes da platéia. Ao nal do espetáculo, histeria, e todos correram em direção à grade para tentar tocar no rock star. star. “Ele não tem banda xa, então é tudo sem ensaio. Aquele show oi uma das coisas mais bacanas da Virada”, arma Calanca. Quando sobe no palco, Serguei parece capaz de sair dando um duplo mortal twist carpado em parauso e ainda levantar vôo no nal, tamanha é sua energia. “Ele dá cada salto que parece que vai desmontar em dez e, se toma alguma coisa, é remédio pra pressão”, comenta João Schiller. “É estranha a disposição que ele tem nessa idade; talvez essa seja uma das provas de que ele não use qualquer tipo de droga, como se pressupõe que ele tenha usado a vida inteira”. Na realidade, é provável que esse eterno vi gor juvenil do roqueiro se deva de ato a seu espírito, que denitivamente não acompanhou sua evolução biológica desde o longínquo ano de 1933. Anal, está muito claro que hoje Serguei vive a idade de sua mente, e não a de seu corpinho; vaidoso, além de tudo, ele gosta de mostrar que não tem rugas, pelancas ou manchas senis, e de quebra ainda pergunta: “Você não me acha sexy?”. “Ele continua o mesmo garoto transviado e psicodélico, usando as roupas que quer usar, alando o que quer alar, coçando o pé no soá do Jô Soares”, diz o biógrao João. Respirando a lisergia de tempos passados, o desbundado vive numa casa como o Templo do Rock porque este é seu habitat natural. Fora dele, é encarado como um ser estranho saído de

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uma outra dimensão, de um universo paralelo. Já a seus olhos, oi o mundo que perdeu o brilho e o glamour. Enquanto a maioria das pessoas de sua idade se recolhe em asilos, Serguei está na rua azendo rock’n’roll, vivendo seu sonho eternamente. Nunca o veremos tirar a maquiagem, cortar o cabelo, colocar uma gravata, usar sapato e sair por aí de mãos dadas com alguma senhora de respeito: “Diriam ‘Olha, ele tomou jeito’. Tomei o seu jeito, não o meu. Eu prero estar rasgado, descabelado, sair e dar um beijo na boca do irmão da minha garota!”. Em sua velhice Serguei está mais vivo do d o que nunca, sempre rainha, orever young.

A

viagem não tem m. Embora muitas bandas estejam extintas, permanecem os sons, as músicas e, em muitos casos, os cabelos compridos. Da época em que embarcaram, pouco sobrou. Documentos, otos e registros perderam-se no tempo. A memória alha. otos alha . O rosto é coberto por rugas, o corpo já não é tão magricela. Comparados às raras otograas, os olhos são levemente caídos – mas conservam o mesmo brilho e o olhar atrevido. Quem se deixa conectar ao universo – pelas artes, pela música ou por outros caminhos – nunca volta igual. Os registros musicais daquelas viagens estão por aí até hoje, ainda que raros e caros. A democracia virtual permite que todo o universo daquela época seja explorado por quem nem pensava em nascer em meados de 70, e por quem está nascendo agora. Embora a psicodelia esteja ligada a um contexto musical, artístico e político, ela pode ser criada e recriada em um ciclo innito. Esta é uma história que não tem m.

“Eu z pior (...) parei de tomar droga e ui ui azer retiro.. Eu z pior Saltei como no circo cada armadilha Muito pior É só por isso que meu nome ainda brilha”. “Eu z pior”, Lula Côrtes, do disco A Vida Não é Sopa, de 1998

Em 1996, o estado de Alagoas estremeceu quando surgiu, como um relâmpago amolegado, o Mopho. Fundado em Arapiraca, cidade do interior amosa por sua produção de umo legal

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e ilegal, pelos colegas João Paulo e Júnior Bocão, a ormação esteve completa com o baterista Hélio Pisca e o tecladista Leonardo, já em Maceió. Totalmente infuenciados pela ase mais louca da carreira de Beatles e ans, os garotos esqueceram que a moda do momento era o manguebeat e entraram de cabeça no universo psicodélico. Mergulharam undo em cogumelo – na época de sara – e num bom uminho, e criaram hits que, para um ouvido inocente, remetem aos conns da década de 70. “Naturalmente a experiência musical vinha sempre acompanhada de alguns aditivos”, conta o ex-baixista da banda, Bocão. “Algumas pessoas nos rotulavam de psicodélicos por causa do visual da banda no palco, pelo som viajado, pelo ato de sempre ter havido nuvens de umaça por onde andássemos. Para muita gente estávamos vivendo o auge dos anos 60 em plena década de 90. Eu estou começando a acreditar que éramos loucos ou ainda somos”, diz.


A neo-psicodelia alagoana não constrangeu – pelo contrário, a explosão ora-de-época arrastou multidões, até que uma briga entre e ntre Hélio Pisca e João Paulo, que saíram na porrada p orrada no meio de um show, acabou com o rockń´roll. “O ato de sermos uma banda com uma proposta tão dierente na época nos atrapalhou mais que avoreceu. A banda tem este nome por causa disto, enquanto todo mundo alava em manguebeat nós tocávamos um som moado”, explica Bocão. Ele e Pisca moram hoje em São Paulo, em um apartamento a partamento simples e antigo. Os dois mantêm outra banda, Casa Flutuante, que não nega suas raízes setentistas – o disco A Terra é Nossa Casa Flutuante oi produzido pelo mutante Sérgio Dias. Em 2005, João Paulo admitiu outros músicos e, além de animar estanças e bailes em Maceió, promove reqüentes reqüentes shows lotados com o Mopho em nova ormação. O público continua cantando em coro, alucinado e se jogando no chão – como se os anos que separam o século XXI da sonoridade original não tivessem passado.

“Uma leitura mineral incrível Ratos são cristais nessa prateleira Da secura na boca um diamante De repente você Num quarto escuro Peixes hidráulicos e som Na rua nua A nossa paranóia Uma leitura mineral incrível Tire os sapatos e a sua máscara Enquanto o mundo gira Relaxe a sua mente” (“Uma leitura mineral incrível”, Mopho, primeira demo, de 1996)


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“Na verdade, o psicodelismo dos anos a nos 60 oi espargindo um pólen que ruticou com mais orça no século XXI. Embora muitos continuem a considerá-lo incômodo e torçam para enterrá-lo, o psicodelismo se impõe cada vez mais nas novas gerações”, dene Alberto Marsicano, citarista discípulo de Ravi Shankar, que anima multidões ao som de rockń´roll indiano ou trance. Marsicano diz que seu pai era proessor catedrático de medicina na Universidade de São Paulo e diretor do Serviço de Toxicologia do Instituto Médico Legal. O que isso signica? “Ele tinha a sua disposição caixas e caixas de LSD puro”, conta o músico, armando que aos 13 anos, época em que “empunhava uma guitarra Gibson”, tomou uma ampola de “LSD 25 puro do laboratório Sandoz”. “Jamais retornei dessa viagem”, conta, sem o menor arrependimento. Marsicano já tocou com Arnaldo Baptista, Lobão e Lula Côrtes – este último, considerado por ele “o verdadeiro mentor de Chico Science”. O artista orgulha-se de ter introduzido a cítara clássica indiana no Brasil e, nos últimos anos, permanece embrenhado no universo psicodélico – desta de sta vez, no trance das raves e estivais.

“Eu nada posso prometer Eu só tenho uma garraa e um doce no meu bolso Mas, sei que você também quer Entrar numas de se desligar O amor é eito de plástico Não tenho medo Já cruzei a linha de chegada, oh darling Saiba que é no m onde tudo começa” (“O amor é eito de plástico”, Mopho, do disco Sine Diabolo Nullus Deus, de 2004 )

Fato é que a psicodelia não tem época. A sonoridade e as reerências podem remeter a certo momento – mas datadas, elas não são. O carioca Rogério Tolomei Tolomei Teixeira, o Rogério Skylab, diz que seus discos oram, gradualmente, “abrindo as ronteiras da percepção”.


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Classicado por especialistas como “Art Rocker”, costuma fertar com a música eletrônica, mas bebe da mesma onte psicodélica que brotou pela primeira vez nos anos 60. Declaradamente infuenciado por Frank Zappa, Arrigo Barnabé, Syd Barret e o maluco hippie Daminhão Experiença, Skylab acha que a recepção que as platéias têm de seu trabalho “não deve ser dierente da reação que os primeiros psicodelistas tiveram que enrentar”. O artista ainda critica os olhares voltados ao passado. “Em razão de um anacronismo histórico, você encontra alguns jornalistas valorizando Ronnie Von, Mutantes, Mutantes, Som Imaginário, Vímana, mesmo sabendo no que vieram a dar, e esquecem quem atualiza hoje o movimento”, diz. Justiça seja eita: se as portas oram abertas pela geração setentista, ainda há um universo gigantesco a ser explorado pela nova prole embrenhada no psicodelismo.

O rock, o unk, o samba, Tudo no meio do caos, O acaso e o lance de dados, A natureza te chama. “A Natureza”, Rogério Skylab, do disco Skylab V, de 2003

Hoje, os ares são de democracia, os tempos são libertários, o sistema já não é tão descaradamente repressivo. Que sentido há, então, na contracultura? “Há 35 anos, até cabelo comprido era subversivo, uma ameaça. As bandas hoje não estão contra, que sentido haveria nisso?”, questiona Fábio Goletti, vocalista da banda Violeta de Outono, ormada em 1984 e ortemente infuenciada pela estética e os sons setentistas. Fábio considera sua banda psicodélica: “Quem estava a m de ‘viajar’ para lugares estranhos, distantes, interiores, surrealistas, se identicava com nosso som”. Em 1975, aos 15 anos de idade, Fábio teve sorte e conseguiu pegar o nalzinho do Som Imaginário e dos Mutantes. Como uma cápsula do tempo, diz que compõe inspirando-se em seus mestres musicais, em imagens, visualizações, mandalas, poesia oriental e histórias em quadrinhos.


A grande questão da psicodelia, brasileira ou estrangeira, é sua atemporalidade. “É a musica das eseras, do universo, sem conexões nem pré-concepções, mas também sem a pretensão de ser denitiva”, losoa o músico e produtor Apollo Nove. Francisco Nogueira de Carvalho na certidão de nascimento, ele não esconde sua admiração pela sonoridade das décadas de 60 e 70. Quando perguntado se seu som é psicodélico, responde enático: sim. E continua divagando sobre o tema: “Música é essa arte que permite momentos de grande viagem interior,, com os olhos echados, tão sua como respirar, interior respirar, e marca a sua vida por isso, porque não dá pra contar pra ninguém, não dá pra transormar em palavras. É essa coisa abstrata, sem moldura, é essa xação na memória, como a lembrança olativa ou da sensação de amor que a az a mais innita e transcendental das artes. Não sei se eu consigo atingir isso

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com a minha música, mas esse é o meu objetivo!”. Apollo Nove não se enquadra no neo-psicodelismo que assume os mesmos moldes do ritmo original. Ele é da turma dos espiritualmente psicodélicos, admiradores dos conceitos e distorções que aproveitam para criar algo dierente e, apesar ap esar de não lembrarem em nada nad a os bolachões de 70, mesmo assim podem ser considerados lisérgicos.

“Senti meu corpo derretendo, futuou minha mente compreendendo alei com minha sombra, tem vida própria própria sim abrindo as tortas e as cucas Gentilmente sentei na pedra, tornei-me parte desta pedra ninguém me compreendia, nem nada que eu azia os passarinhos me acalmaram!!!! Uhh aaaaahhh Uhh aaaaahhh Uhhhhhh Uhhhhhh abrindo as tortas e as cucas Foi quando então eu percebi eu tava no meu guarda-roupa em posição etal, achando tão normal, rolando um fash Back maternal


Uhh aaaaahhh Uhh aaaaahhh Uhhhhhh Uhhhhhh abrindo as tortas e as cucas” (“As tortas e as cucas”, Júpiter Maçã, do disco A sétima eervescência, de 1996)

O gaúcho Flávio Basso já oi Júpiter Maçã e Woody Apple. Atualmente demora, mas responde pela usão Júpiter Apple. Membro da geração de 1980 do d o rock gaúcho, começou tocando nas bandas TNT e Cascavellettes. Sozinho, embarcou undo na psicodelia sem medo do desconhecido, nem de parecer anacrônico. Seu álbum A Sétima Eervescência já oi considerado o melhor da história do rock gaúcho – e Júpiter não parece se importar muito com isso, embora cite o próprio trabalho ao ser questionado sobre que disco psicodélico brasileiro admira. “Eu não estava brincando de psicodelia por infuência de outras bandas, eu estava realmente vivendo uma ase lisérgica, mas não sou mais assim, é um dia depois do outro e o mundo continua girando”, dene. Para ele, música psicodélica é a “expansão das barreiras imaginárias, consciência e inconsciência através da música e poemas”. Em plena atividade depois de passar pela bossa nova e pela música eletrônica, Júpiter arma que hoje voltou ao rock’n’roll. Em 2006, dividiu com Novos Baianos, Arnaldo Baptista, Rita Lee, Tom Zé, Flu, Matheus Valter e Mopho a trilha sonora do longa Wood & Stock, animação sobre sob re os antológicos hippies de Angeli. Ang eli. Melhor dizendo, suas músicas representam tão bem o espírito do lme que ocupam quase metade da coletânea.


“O timbre do Caetano é super bacana Não pense que eu estou copiando, que eu sou banana Peguei emprestado pras artes da semana Abrindo as portas da percepção percepção Um tal de Aldous Huxley de cara cou doidão Tomando To mando toda a solução. Doidão é apelido para a paranóia Toda jibóia, toda bóia, toda clarabóia Querida, que tal baixar o televisor? Deitado no divã com Woody Allen Eu tive um sonho com aquele estranho, velho alien Que era cabeça Bob Dylan, barba Ginsberg, Allen” (“A marchinha psicótica do Dr. Dr. Soup”, Júpiter Maçã, Wood & Stock, de 2006)

*** Em 2001, alguns garotos curitibanos na aixa dos 20 anos, ligados nos mesmos sons que seus pais ouviam quando jovens, resolveram organizar um estival. Como a sonoridade setentista não encontrava muito espaço para prolierar na cena de rock paranaense, a solução oi alugar um sítio – um pouco longe, em Angra dos Reis – e levar a turma toda para lá. O Angrastock marcou o início de um estival que acontece anualmente desde então, mas com outro nome: Psicodália. Os idealizadores desse movimento armam procurar “uma nova era na música, na arte em geral e na sociedade. Buscamos nos eventos realizados pelo movimento abrir espaço para uma arte livre, com qualidade e ideologia, buscando unir essa luta a modelos de vida À q, Jú al al


que acreditamos serem vitais para a humanização das relações entre pessoas. Pacismo, respeito, diversão, alegria, consciência ambiental e ecológica, liberdade de expressão e de ‘ser’ azem parte dessa empreitada por um mundo melhor”. O Psicodália já conseguiu angariar um número considerável de seguidores, dierentes dos neo-hippies que reqüentam estivais de música eletrônica. O negócio ali é o rock’n’roll, e o rock psicodélico mesmo, que completa o clima retrô da proposta do estival. Alexandre Osiecki nasceu em 1980, lho de um beatlemaníaco, e organiza o Psicodália desde 2001. Ele, entretanto, reuta o conceito de passado: “A nossa idéia é dar uma continuidade”, dene, explicando que a ideologia passa de pai para lho, de geração ge ração para geração. “Tem “Tem muitos grupos que estão tentando azer algumas coisas pela natureza, pela arte, buscando ajudar a sociedade, com essa idéia de tentar construir uma coisa melhor. Não é um resgate”, losoa. Alexandre toca numa banda, tem cabelo comprido, vende artesanato e dirige uma Kombi modelo 1960 pintada a caráter. Anacrônico? Talvez Talvez seja apenas mais um que embarcou nessa viagem sem m.


AgrAdecimentos Esse trabalho só oi possível porque muita gente boa doou tempo, conhecimento e suor para nos ajudar. Nossos elizes e sinceros agradecimentos para... Nelson Motta, Luiz Carlos Maciel, Ezequiel Neves, Fernando Rosa, Welington Andrade, Luiz Calanca, Amarílis Gibeli, Jaques Kaleidoscópio, Piky, Alexandre Matias, Rodrigo Carneiro, Clemente, Adriana Amaral, Vinicius Camargo, Ronnie Von, Arnaldo Saccomani, Maurício Guedes, Flávia Durante, Fábio Peraçoli, José Teles, S. Quimas, Rodrigo Araújo, Natália Mestre, Saulo, Bruno Firmino, Rogério Ratner, Wagner Notaro, Zé Guilherme, Marcito, João Schiller Schiller,, Tiez Tattoo, Jorge Mautner, Faby, Daniela - Agência Produtora, Luiz Simas, Daniel Romani, Eduardo Leal, Mautner, Candinho, Serguei, Fredera, Milton Nascimento, Zé Rodrix, Tavito, Wagner Tiso, Fernado Gama, Ritchie, Lobão, Luiz Caetano, Sérgio Regly, Laílson, Robertinho Silva, Zé da Flauta, Marco Polo, Lula Côrtes, Almir de Oliveira, Mimi Lessa, Marcos Lessa, Edinho Espíndola, Massari, Fábio Goletti, Pedro Alexandre Sanches, Okky de Souza, Luis Mauro, Rogério Ratner, Apollo Nove, Paulo Raael, Júnior Bocão, Hélio Pisca, Júpiter Apple, Ratner, A pple, Marsicano, Alexandre Osiecki, Skylab, Thiago Silvestrini, armacêuticos responsáveis pela Valeriana e pelos forais, que tentaram nos deixar no eixo, garçons dos arredores da Paulista 900 que ouviram nossas mágoas... aos nossos amigos, colegas, chees, terapeutas, pais e namorados, a Deus, Santo Expedito, Jah, Shiva e Buda. Quem quiser conerir os bastidores da apuração deste des te livro, acesse o blog http://psicodeliabrasileira.wordpress.com


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pArA ouvir 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21.

Meu novo cantar (Ronnie Von) Olhai os lírios do campo (Liverpool) Já brilhou (Bixo da Seda) Não ale com paredes (Módulo 1000) Espelho (Módulo 1000) Morse (Som Imaginário) Make believe watz (Som Imaginário) Quiabo’s (Spectrum) Geórgia, a carniceira (Ave Sangria) Momento na praça (Ave Sangria) Trilha Tr ilha de Sumé (Lula Côrtes e Zé Ramalho) Balada da calma (Lula Côrtes) On the rocks (Vímana) Masquerade (Vímana) Eu sou psicodélico (Serguei) Vamos curtir um barato (Mopho) None-Cherry Blossom (Marsicano) Euconervoso (Rogério Skylab) Inexplicata (Apollo Nove) A marchinha psicótica de Dr Dr.. Soup (Júpiter Maçã) Faces (Violeta de Outono)

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