GRISELDA POLLocK * A modernidade e os espaqos da feminilidade O investimento nao é tao privilegiado nas mulheres como nos homens. Mais do que qualquer outro sentido, a visao objectiva e controla. Fixa-se a distancia e mantém essa distancia. Na nossa cultura a predominancia da visao sobre o ol facto, facto, o paladar, paladar, o tacto e a audiqao tem levado a um progresso das relaqoes corporais. A partir do momento em que o olhar domina, o corpo perde corpo perde a sua materialidade. (Luce Irigaray (!"#$% En&re'is&a em %)% +ans e G% Lapouge (eds%$ Les emmes, la pornograp-ie e& l./ro&isme, Paris, p% 01$ In&roduqao O esquema que ilus&ra a capa do ca&2logo de Alfred +% 3arr para a e4posiqao !ubism and Abstract Art (5O (5O cu6ismo e a ar&e a6s&rac&a5$ no useu de Ar&e oderna, em 7o'a Iorque, !89, / paradigm2&ico do modo como a ar&e moderna &em sido mapeada pela -is&:ria da ar&e% As pr2&icas ar&;s&icas do final do s/culo odos aqueles que foram * >radugao a par&ir do &e4&o 5oderni&y and &-e Spaces of eminini&y5, pu6licado em "isual ?uifure #eader ?uifure #eader,, 7ic-olas ir@oeff (ed%$, !!#, Rou&ledge Londres e 7o'a lorque, pp% "B)#8%
54 Género, cultura visual e performance = an&ologia cr;&ica
canoni@ados como precursores da ar&e moderna sao -omens% Ser2 que &al se de'e ao fac&o de nao &er -a'ido mul-eres en'ol'idas nos primeiros mo'imen&os da ar&e modernaC o%. Ser2 que foi porque as que e4is&iam nao conseguiram de&erminar de modo significa&i'o a forma e o car2c&er da ar&e modernaC o% Ou ser2 an&es porque a -is&:ria da ar&e moderna cele6ra uma &radiqao selec&i'a que normali@a um con=un&o de pr2&icas espec;ficas e definidas pelo g/nero como sendo o nico modernismoC Eu defenderia es&a e4plicaqao% ?onsequen&emen&e, qualquer &en&a&i'a de es&udar a ac&i'idade de mul-eres ar&is&as do per;odo inicial da -is&:ria do modernismo e4ige uma descons&ruqao dos mi&os masculinos associados ao modernismo%. 7o en&an&o, es&es mi&os sao corren&es e es&ru&uram o discurso de mui&os an&i)modernis&as, como por e4emplo sucede na -is&:ria social da ar&e% A pu6licaqao de $he %ainting o f Modern &i fe' %aris in the Art o f Manet and (is Follo)ers, por >% F% ?lar., oferece uma resen-a das relaqoes sociais en&re a emergencia de no'os pro&ocolos e cri&/rios na pin&ura H modernismo H e os mi&os da modernidade moldados na, e pela, no'a cidade de Paris, refei&a pelo capi&alismo duran&e o Segundo Imp/rio% Para al/m dos lugares comuns so6re o dese=o de ser con&emporaneo na ar&e, 5il fau& e&re de son &emps5 B, ?lar ques&iona)se so6re a es&ru&uraqao das noqoes de modernidade ineren&es a ac&i'idade de ane& e dos seus seguidores, inde4ando as pr2&icas da pin&ura impressionis&a a um comple4o con=un&o de negociaqoes rela&i'as as am6;guas e surpreenden&es formaqoes e iden&idades de classe na sociedade parisiense% A modernidade / apresen&ada como algo mais do que a noqao de 5ac&ualidade5 H e a modernidade / uma ques&ao de represen&aqoes e grandes mi&os H na a&mosfera de numa no'a Paris recrea&i'a, dedicada ao descanso e ao pra@er uma Paris onde, aos fins)de) semana, nos su6r6ios, se desfru&a'am os cen2rios na&urais onde a pros&i&u&a se &ornou Para compro'ar su6s&ancialmen&e es&e pon&o de 'is&a 'er Lea Jergine, &Autre moitié de l*avant-garde, !1)!B1, &radu@;do do i&aliano por ireille anu&&in, Paris, +es Femmes, !#% Jer 7icole Du6reuil)3londin, 5odernism and em;n;sm Some Parado4es5 em 3en=am;n +%D%, 3uc-lo- (ed%$, Modernism and Modernit, +al;fa4, 7o'a Esc:c;a, %ress of Nova cotia !ollege of Art and +esign, !#8% Jer &am6/m Lilian Ro6inson e Lisa Jogel, 5odernism and +is&ory5, Ne) &iterar (istor, !"), iii ($, pp% "")!!% 8 >% F% ?lar, he %ainting of Modern &ife' %aris in the Art of Manet and his Follo)ers, 7o'a lorque, Knopf, e Londres, >-ames # +udson, !#B% B Georges 3oas, 5II fau& e&re de son &emps5, /ournal of Aesthetics and Art !riticism, !B1, , pp% 0)90 reedi&ado em 0ingiess %egasus' A (andboo1 for !ritics, 3al&imore, Fo-ns +opins Mni'ersi&y Press, !01%
A modernidade e os espaqos da feminilidade g r t•
; Griselda Polloc 55
igura I H 2douard Manet 5Mm 3ar no olies)3ergere5 (##$ !ortesia de !ourtauld 3nstitute of Art. N he !ourtauld 3nstitute of Art, 4!ourtauld !ollection5, &ondres uma referencia dominan&e e a fluide@ de classes / 'is;'el nos espaqos de en&re&enimen&o mais populares% As principais referencias nes&e &erri&:rio m;&ico sao o la@er, o consumo, o espec&2culo e o din-eiro% A par&ir de ?lar, podemos recons&ruir um mapa do &erri&:rio impressionis&a, desde as no'as a'enidas a&/ La Grenouillere, 3ougi'al ou Argen&euil, seguindo as ro&as dos com6oios su6ur6anos da 6are t. &a7are. 7es&as @onas, os ar&is&as 'i'eram, &ra6al-aram e re&ra&aram)se%. ?on&udo, em dois dos 0 O i&iner2rio pode ser recons&ru;do de forma fic&;cia da seguin&e maneira um passeio pela 8oulevard des !apucines (?% one&, #"8, cidade do Kansas, 7elson A&ins useum of Ar&$, a&ra'essando a %ont de l*2urope (G% ?aille6o&&e, #"9, Gene6ra, Pe&i& Palais$, a&/ a 6are t. &a7are (one&, #"", Paris, us/e d.Orsay$, apan-ando o com6oio su6ur6ano numa 'iagem de minu&os, para dar um passeio ao longo do eine at Argenteuil (one&, #"0, Sao rancisco, useu da Ar&e oderna$ ou passear e nadar na praia do rio Sena, &a 6renouillere (A% Renoir, #9!, osco'o, useu Pus-in$, ou 9ance at 8ougival (A% Renoir, ##8, 3os&on, useum of ine Ar&s$% >i'e o pri'il/gio de ler os primeiros rascun-os do li'ro de >im ?lar in&i&ulado he %ainting of Modern &ife e foi aqui que o &erri&:rio Impressionis&a foi, pela primeira 'e@, mapeado lucidamen&e enquan&o campo de descanso e pra@er, no e;4o me&ropol;&anolsu6ur6ano% Ou&ro es&udo a &er em con&a / o de >-eodore Reff, Manet and
09 G/nero, cul&ura 'isual e performance C an&ologia cr;&ica qua&ro cap;&ulos do li'ro, ?lar ocupa)se da pro6lem2&ica da se4ualidade na 6urguesia parisiense, u&ili@ando como e4emplos as pin&uras can:nicas Ol;mpia (#98, Paris, useu do &ouvre5 e :m 8ar no Folies-8ergere (igura I$ (##)#, Londres, !ourtauld 3nstitute o f Art5. Es&e / um for&e argumen&o, em6ora fal;'el a mui&os n;'eis, so6re o qual gos&aria de me de6ru&,ar, focando so6re&udo as suas par&icularidades no que di@ respei&o a ques&ao da se4ualidade% Segundo ?lar o fac&or de&erminan&e / a classe social% A nude@ de Ol;mpia inscre'e a sua classe social e assim mina a m;&ica no&,)ao de ausencia de classe ineren&e a se4ualidade represen&ada pela cor&esa%. A sofis&icada e blasé empregada de 6ar do Folies escapa a qualquer iden&ifica&,)ao com a 6urguesia ou com o prole&ariado, em6ora par&icipe na am6iguidade de classe que cons&i&uiu o mi&o e a a&rac&,) ao do popular%. Apesar de ?lar fa@er uma alusao ao feminismo recon-ecendo que es&as pin&uras implicam um pon&o de 'is&a masculino acerca do o6ser'adorconsumidor, a forma como o fa@ assegura a normalidade des&a posit,-ao, dei4ando)a no limiar da in'es&iga&,)ao -is&:rica e da an2lise &e:rica% Para recon-ecer as condi&,oes de especificidade de g/nero des&as pin&uras 6as&a imaginar que o o6ser'ador ou produ&or des&es &ra6al-os / do se4o feminino% ?omo pode uma mul-er iden&ificar)se com as posi&,)oes de 'isionamen&o propos&as por qualquer des&as pin&urasC Pode oferecer)se a uma mul-er a posse imagin2ria de Ol;mpia ou da empregada de 6ar para pos&eriormen&e es&a l-e ser negadaC Sen&iria uma mul-er da classe de ane& alguma familiaridade com qualquer des&es espa&,os e suas dinamicas, condi&,)ao necess2ria para que a fun&,)ao disrup&i'a e de nega&,) ao da pin&ura modernis&a se pudesse concre&i@arC Poderia 3er&-e oriso& con&ac&ar com &ais espa&,)os de forma a reprodu@ir es&as &em2&icas em &elaC Poderia ela apreende)los como espa&,)os de modernidadeC Poderia ela, como mul-er, e4perienciar a modernidade den&ro dos parame&ros definidos por ?larC. Modern %aris, ?-icago, Mn;'ers;&y of ?-icago Press, !#% 9 ?lar, op% ci&%, p% B9% " I6id%, p% 08% # Ace;&ando)se que pin&uras como +fimpia e :m bar no Folies-8ergére ad'em de uma &rad;gao que in'oca um o6ser'ador masculino, / necess2rio recon-ecer a forma como um o6ser'ador feminino es&2 implicado nes&as pin&uras% ?er&amen&e, par&e do c-oque e da &ransgressao pro'ocados por +fimpia nos seus primeiros o6ser'adores no Salao de Paris, foi a presenga daquele ol-ar 5desa'ergon-ado5, por/m descon&ra;do, da mul-er 6ranca dei&ada na cama e ser'ida por uma
A modernidade e os espaqos da feminilidade C Griselda Polloc 0" sem d'ida um fac&o ineg2'el que mui&os dos &ra6al-os canoni@ados como fundadores da ar&e moderna focam precisamen&e a 2rea da se4ualidade, so6re&udo enquan&o 6em comercial% Poder;amos referir inmeras cenas de 6ordel, incluindo As Meninas de Avinhao de Picasso e a&/ o sof2 do ar&is&a% Es&es encon&ros represen&ados e imaginados ocorriam en&re -omens que &in-am a li6erdade de assumir os seus pra@eres em '2rios espaqos ur6anos e mul-eres de uma classe a eles su6ordinada, que &in-am de &ra6al-ar nesses locais, mui&as 'e@es 'endendo o seu corpo a clien&es ou a ar&is&as% Indu6i&a'elmen&e, es&as &rocas sao es&ru&uradas por relaqoes de classe, que por sua 'e@ sao de&erminadas pelo g/nero e pelas ineren&es relaqoes de poder% o podem ser separadas nem ordenadas numa -ierarquia% Sao simul&aneidades -is&:ricas que se inflec&em Por isso, de'emos ques&ionar por que ra@ao o &erri&:rio do modernismo / &ao frequen&emen&e uma forma de lidar com a se4ualidade masculina e com os corpos das mul-eres H porque a nude@, o 6ordel, o 6ar" Qual / a relaqao en&re se4ualidade, modernidade e modernismo" Se / normal as pin&uras de corpos femininos serem um &erri&:rio a&ra'/s do qual os ar&is&as pos&ulam a sua modernidade e compe&em pela lideranqa da 'anguarda, poderemos esperar redesco6rir pin&uras fei&as por mul-eres nas quais es&as se confron&em com a sua se4ualidade a&ra'/s da represen&aqao do nu masculino" ?om cer&e@a que nao a pr:pria suges&ao parece rid;cula% as porque" Porque e4is&e uma assime&ria -is&:rica H uma diferenqa social, econ:mica e su6=ec&i'a en&re mu&uamen&e% criada de raga negra, num espago onde se presumia que mul-eres, ou para ser -is&oricamen&e precisa sen-oras 6urguesas, pudessem es&ar presen&es% Aquele ol-ar, &rocado e4plici&amen&e en&re uma 'endedora de um corpo feminino e um clien&e(o6ser'ador, / sin:nimo das &rocas comerciais e se4uais espec;ficas a uma par&e do dom;nio p6lico que nao de'eria es&ar 'is;'el para as sen-oras% Para al/m disso, a ausencia des&e con-ecimen&o es&ru&ura'a a sua iden&idade enquan&o sen-oras de respei&o% Em alguns dos seus ar&igos, >% F% ?lar discu&e correc&amen&e os significados do signo mul-er no s/c% oda'ia, parece que a e4;6;gao de +limpia confunde essa dis&ancia social e ideol:gica en&re dois p:los imagin2rios, le'ando um a confron&ar o ou&ro naquele espago do dom;nio p6lico frequen&ado pelas sen-oras H ainda que den&ro das fron&eiras da feminilidade% A presenga des&a pin&ura no Salao H nao por ser um nu, mas porque desloca o -26i&o ou o epis:dio mi&ol:gico a&ra'/s do qual a pros&;&u;gao / represen&ada por uma cor&esa H &ransgride os limi&es da grel-a que cons&ru; a par&ir do &e4&o de 3audela;re, nao s: ;n&rodu@;ndo a modernidade como forma de pin&ar um &ema con&emporaneo premen&e, mas &am6/m le'ando os espagos da modernidade a en&rar em &erri&:rio social 6urgues, o Salao, onde 'er &al imagem se &orna mui&o c-ocan&e por causa da presenga de esposas, irmas e fil-as% + en&endimen&o des&e c-oque depende da nossa re;n&rodugao do o6ser'ador feminino no seu lugar -is&:rico e social%
an&ologia cr;&ica ser mul-er e ser -omem, em Paris, nos finais do s/c%
O pintor da vida moderna
Mm &e4&o em par&icular enquadra es&a in&eracqao en&re classe e g/nero% Em l#98, ?-arles 3audelaire pu6licou em Le Figaro o ensaio in&i&ulado 5O Pin&or da Jida oderna5% 7es&e ensaio, a figura do flaneur é modificada para se &ransformar no ar&is&a moderno% Simul&aneamen&e, o mesmo ela6ora um mapeamen&o da cidade de Paris demarcando os locais'is&as para o flaneurar&is&a% O ensaio foca deli6eradamen&e o &ra6al-o de um ilus&rador menor, ?ons&an&in Guys, pois o ilus&rador / apenas pre&e4&o para 3audelaire &ecer uma ela6orada e imposs;'el imagem do seu ar&is&a ideal, o qual seria um aman&e apai4onado das mul&idoes e um inc:gni&o -omem do mundo% A multidao / o seu dom;nio, tal como o ar / o dom;nio do pgnito. + amante da vida fa7 do mundo a sua fam;lia (%%%$%. 5 O &e4&o / es&ru&urado por uma oposiqao en&re o lar, o dom;nio in&erior da personalidade con-ecida e con&ida, e o e4&erior, o espaqo da li6erdade, onde / poss;'el ol-ar sem ser 'is&o ou a&/ recon-ecido no ac&o de ol-ar% ! ?-arles 3audela;re, 5O Pin&or da Jida oderna5, em he Pain&er of odern &ife and O&-er Essays, &radu@ido e edi&ado por Fona&-an ayne, O4ford, P-aidon Press, !9B, p% !% 1 ?;&agao de acordo com a &radugao de >eresa ?ru@ de 5O Pin&or da Jida oderna5, ed% Jega, !!8 (%. ed;gao$, pp% " e #%
A modernidade e os espaqos da feminilidade C Griselda Polloc 0! a li6erdade imaginada do voeur. + flaneurlar&is&a sen&e)se em casa na mul&idao% Assim, o flaneurlar&is&a define)se de acordo com a duplicidade ideol:gica da sociedade 6urguesa moderna a di'isao de espaqo p6lico e pri'ado H que implica uma dupla li6erdade para o -omem no espaqo p6lico H e a preponderancia de um ol-ar o6ser'ador emocionalmen&e dis&an&e, cu$o poder, posse e papel fundador da -ierarquia se4ual nao sao ques&ionados% Segundo Fane& olff, nao -2 um equi'alen&e feminino da figura masculina por e4celencia, o flaneur= nao -2 nem poderia -a'er uma mulher flaneuse. As mul-eres nao usufru;ram da li6erdade de es&arem inc:gni&as na mul&idao% 7unca se posicionaram como ocupan&es do dom;nio p6lico% o &in-am o direi&o de ol-ar, fi&ar, e4aminar ou o6ser'ar% ?omo o &e4&o de 3audelaire 'isa demons&rar, as mul-eres nao ol-am% Elas sao en&endidas como obj ecto do ol-ar do flaneur. (%%%$ A mulher, numa palavra, nao é apenas para o artista em geral, e para o senhor G% em particular, a femea do homem. ? antes uma divindade, que preside a todas as concepqoes do cérebro macho= é um re flexo de todas as graqas da nature7a condensados num s: ser= é o objecto da admiraqao e da qualidade mais viva que o quadro da vida pode o ferecer ao contemplador. ? uma espécie de ;dolo est@pido, talve7, mas esplendoroso, encantador, que detém os destinos e vontades suspensos pelo seu olhar. 7a 'erdade, a mul-er / s: um signo, uma ficqao, uma configuraqao de significados e fan&asias% A feminilidade nao / a condiqao na&ural das pessoas do se4o feminino% uma cons&ruqao ideol:gica -is&oricamen&e 'ari2'el de significados corresponden&es a um signo .M.L.+.E.R que / produ@ido por, e para, um ou&ro grupo social cu=a iden&idade e superioridade imaginada &em origem na produqao do espec&ro desse fan&2s&ico Ou&ro% M:&(2# / &an&o um ;dolo como nada mais que uma pala'ra% Assim, quando lemos o cap;&ulo do ensaio de 3audelaire in&i&ulado 5ul-eres e Pros&i&u&as5, no qual o au&or &raqa um percurso para o flaneurl ar&is&a a&ra'/s de Paris e onde as mul-eres apenas surgem como o6$ec&os inesperadamen&e 'is;'eis, / necess2rio recon-ecer que o pr:prio &e4&o I6idem, p% B"%
91 G/nero, cul&ura 'isual e performance C an&ologia cr;&ica cons&r:i uma noqao de M:&(2# a&ra'/s de um mapa fic&;cio de espaqos ur6anos H os espaqos da modernidade% O flaneurar&is&a comeqa o seu percurso no audi&:rio onde mul-eres =o'ens, da mais requin&ada sociedade, 'es&idas de 6ranco imaculado, ocupam os seus camaro&es no &ea&ro% Seguidamen&e, o6ser'a fam;lias elegan&es passeando)se num =ardim p6lico, esposas complacen&emen&e apoiadas nos 6raqos dos seus maridos enquan&o meninas magrin-as 6rincam as 'isi&as sociais, imi&ando os pais% Pos&eriormen&e passa para o mundo &ea&ral mais o6scuro, onde 6ailarinas fr2geis e delgadas aparecem no esplendor das lu@es da ri6al&a, admiradas por 6urgueses gordos% A por&a do ca fé encon&ramos um =ano&a, enquan&o l2 den&ro es&2 a sua aman&e, denominada no &e4&o como 5mul-er de mau por&e5, a quem pra&icamen&e nada fal&a para ser uma grande sen-ora e4cep&o que esse pra&icamen&e nada H &er classe ou ser dis&in&a H / pra&icamen&e &udo% ais a fren&e, en&ramos no "alentino, no %rado ou no !asino, onde, con&ra um fundo de lu@ infernal, encon&ramos a imagem 'ol'el da 6ele@a li6er&ina, a cor&esa, 5a imagem perfei&a da sel'a=aria que se esconde no ;n&imo da ci'ili@aqao5% inalmen&e, 3audelaire classifica as mul-eres por graus de pri'aqao, desde as =o'ens pros&i&u&as de sucesso com um ar aris&ocra&a a&/ as po6res escra'as dos 6ord/is imundos% >en&ar fa@er corresponder os es6oqos de Guys a es&e e4&raordin2rio espec&2culo ser2 uma desilusao% De forma alguma os desen-os sao &ao ';'idos, pois o seu pro=ec&o /, no seu &odo, menos ideol:gico e mais mundano, como era moda na al&ura% ?on&udo, o seu in&eresse reside na re'elaqao do quao diferen&e podem ser as formas de represen&aqao das figuras femininas, de acordo com a sua locali@aqao% 7os parques, as mul-eres respei&2'eis, acompan-adas por damas de compan-ia ou pelos seus maridos, passeiam descorpori@adas, fundindo)se com as suas roupas, pois a indumen&2ria define a sua classe e significado social% Em espaqos iden&ificados com o consumo se4ual, 'isual e efec&i'o, os corpos e'idenciam)se, e4pos&os e e4i6indo)se ao ol-ar, enquan&o os adornos ser'em para re'elar uma ana&omia se4uali@ada% ?ons&r:i um percurso se4uali@ado que pode ser iden&ificado com a pr2&ica impressionis&a% ?lar fa@ um mapa da pin&ura impressionis&a seguindo as &ra=ec&:rias de la@er dos com6oios su6ur6anos, desde o cen&ro da cidade a&/ aos su6r6ios% Quero propor uma ou&ra dimensao desse mapa que O ensaio de 3audelaire re&ra&a Paris como a cidade das mul-eres%
A modernidade e os espaqos da feminilidade C Griselda Polloc 9 liga a pr2&ica impressionis&a aos &erri&:rios er:&icos da modernidade% Ela6orei uma grel-a, u&ili@ando as ca&egori@aqoes de 3audelaire, e inclu; nes&e esquema &ra6al-os de ane& e Degas, en&re ou&ros%5 >ea&ro (?amaro&e$ de6u&an&es =o'ens mul-eres da sociedade elegan&e ?assa& Renoir ma&ronas, maes, crianqas, familias elegan&es ane& ?assa& oriso& parque >ea&ro (3as&idores$ 3AILARI7AS Degas aman&es e concu6inas ane& Renoir Degas caf/s A ?OR>ESA ane& 5imagem 'ol'el de 6ele@a Degas li6er&ina5 Guys folies 6ord/is 5escra'as po6res de 6ord/is ane& Guys imundos5 Da s/rie O !amarote, de Renoir (re&ra&ando mul-eres que possi'elmen&e nao eram da classe social mais ele'ada$ a&/ a M@sica nas ulherias, de ane&, passando pelas cenas de parque de one&, en&re ou&ros, &odas es&as o6ras a6rangem o &erreno onde -omens e mul-eres da 6urguesia se As pin&uras a in&egrar no esquema incluiriam os seguin&es e4emplos A% Renoir, O !amarote, #"B (Londres, ?our&auld lns&i&u&e Galeries$ E% ane&, M@sica nas ulherias, #9 (Londres, 7a&ional Gallery$ E% Degas, 8astidores das 8ailarinas, c. #" (as-ing&on, 7a&ional Gallery of Ar&$ E% Degas, A Familia !ardinal, c. ##1, uma s/rie de mono&ipos para llus&ragao do li'ro de Ludo'ic +al/'y so6re os 6as&idores das 6ailarinas e os seus 5admiradores5 do Focey ?lu6
E% Degas, :m !afé em Montmartre, #"" (Paris, us/e d. Orsay$ E% ane&, !afé, %lace du héatre Franr,ais, ## (Glasgo, ?i&y Ar& useum$ E% ane&, Nana, #"" (+am6urgo, Kuns&-alle$ E% ane&, +limpia, #98 (Paris, us/e du Lou're
%$ 9 G/nero, cul&ura 'isual e performance = an&ologia cr;&ica di'er&em% as depois, quando nos deslocamos para os 6as&idores, encon&ramos no'os mundos, ainda de -omens e mul-eres, mas diferen&emen&e posicionados em &ermos de classe% Sao famosas as imagens de 6ailarinas, no palco e nos ensaios, re&ra&adas por Degas% enos con-ecidas sao as suas represen&a&,)oes dos 6as&idores da Tpera, onde mem6ros do Focey !lub negoceiam o seu di'er&imen&o noc&urno com as =o'ens ac&ri@es% >an&o Degas como ane& represen&aram as mul-eres que assom6ra'am os caf/s e &al como >-eresa Ann Gron6erg demons&rou, es&as eram mul-eres da classe &ra6al-adora que procura'am clien&es enquan&o pros&i&u&as clandes&inas%5 Da; conseguirmos encon&rar e4emplos locali@ados &an&o no Folies e nos caf/s)concer&o como nos aposen&os da cor&esa% esmo que +l;mpia nao possa ser si&uada num local recon-ec;'el, na cr;&ica da /poca foi fei&a referencia ao caf/ de Paul 7ique&, poiso -a6i&ual das mul-eres que ser'iam os carregadores de &es (alles e, para o cr;&ico, um sinal de &o&al e degradada de'assidao%. B As mul-eres e o concei&o p6lico de moderno As mul-eres nes&e grupo de ar&is&as ocupa'am um lugar parcial no mapa acima referenciado% Podem efec&i'amen&e ser iden&ificadas, mas em espat,-os acima de uma lin-a decisi'a% &dia no eatro, #"! e + !amarote, ##, si&uam)nos no &ea&ro com as =o'ens elegan&es, mas es&as pin&uras nao poderiam ser mais diferen&es daquelas produ@idas por Renoir so6re o mesmo &ema, como por e4emplo, A %rimeira a;da, #"9 (Londres, 7a&ional Gallery of Ar&$% As poses r;gidas e formais das duas =o'ens na o6ra de ?assa&& foram calculadas com precisao, como o demons&ram os desen-os prepara&:rios reali@ados no am6i&o des&a pin&ura% A sua pos&ura erec&a, uma segurando cuidadosamen&e um ramo desem6rul-ado, a ou&ra escondida a&r2s de um grande leque, cria um efei&o re'elador de en&usiasmo reprimido e e4&remo cons&rangimen&o em lugares p6licos, sendo que as =o'ens, e4pos&as e aperal&adas, se sen&em e4i6idas% Es&ao enquadradas num angulo o6l;quo, de forma a nao serem con&idas pelas margens, 8 >-eresa Ann Gron6erg, 5Les emmes de 3rasser;e5, Ar& +;s&ory, !#B, (8$% B Jer ?lar, op% ci&%, p% !9, n% BB% O cr;&ico era Fean Ra'enal, cola6orador do =ornal &*2poc;ue, Fun-o, #90%
A modernidade e os espaqos da feminilidade ~
Griselda Polloc 6
igura II H Mar !assat, 57a Tpera5 (#"#)#"!$ Fotografia N 1 Museum of Fine Arts, 4(aden !ollcction5, 8oston nem emolduradas numa composiqao 56oni&a5, como acon&ece com O !amarote, de Renoir, no qual a &ea&ralidade em que a cena se insere e o espec&2culo que a pr:pria mul-er oferece se fundem aos ol-os do espec&ador an:nimo mas presum;'el masculino% Em A %rimeira a;da,
9B G/nero, cul&ura 'isual e performance C an&ologia cr;&ica de Renoir, a escol-a de um perfil alarga o campo de 'isao do o6ser'ador ao audi&:rio e con'ida)oa a imaginar que eleela par&il-a o en&usiasmo da figura cen&ral enquan&o es&a parece nao &er consciencia de es&ar a oferecer um espec&2culo &ao encan&ador% A ausencia de au&oconsciencia /, o6'iamen&e, planeada para que o o6ser'ador possa desfru&ar da 'isao da =o'em% A principal diferenqa en&re as pin&uras de Renoir e de ?assa& / que es&a l&ima recusa uma cumplicidade ineren&e a forma como a pro&agonis&a / re&ra&ada% 7uma pin&ura pos&erior, Na Bpera, #"! (igura II$, / represen&ada uma mul-er 'es&ida de lu&o (&ra=e de dia$ num camaro&e de &ea&ro, com o ol-ar des'iado do espec&ador e focado a dis&ancia, numa direcqao que a&ra'essa o plano da pin&ura% as quando o o6ser'ador segue a direcqao do ol-ar des&a mul-er, depara)se com um ou&ro ol-ar fi4o na figura des&a mesma mul-er% Assim, a imagem =us&apoe dois ol-ares, dando prioridade ao da mul-er que es&2, indu6i&a'elmen&e, represen&ada a ol-ar ac&i'amen&e% Ela nao re&ri6ui o ol-ar do o6ser'ador, uma con'enqao que confirma o direi&o do o6ser'ador de ol-ar e a'aliar% O que depreendemos / que o o6ser'ador e4&erior a imagem / e'ocado como se fosse, por assim di@er, a imagem reflec&ida do o6ser'ador re&ra&ado na pin&ura% Es&a si&uaqao /, a&/ cer&o pon&o, o &ema da pin&ura H a pro6lem2&ica das mul-eres es&arem, em p6lico, 'ulner2'eis a um ol-ar em6araqoso% O =ogo ardiloso de fa@er o o6ser'ador fora da pin&ura corresponder ao que es&2 re&ra&ado nela nao de'eria disfarqar o seu significado mais s/rio, is&o /, o fac&o de os espaqos sociais serem policiados por -omens que o6ser'am mul-eres e o posicionamen&o do o6ser'ador fora da pin&ura em relaqao ao -omem den&ro dela indica que o o6ser'ador &am6/m par&icipa no =ogo% O fac&o de a mul-er ser represen&ada ol-ando ac&i'amen&e, assinalado so6re&udo pelo fac&o de os seus ol-os es&arem co6er&os pelos 6in:culos, impede que ela se=a represen&ada como o6=ec&o, surgindo como su=ei&o do seu pr:prio ol-ar% ?assa& e oriso& pin&aram imagens de mul-eres em espaqos p6licos, mas &odas elas es&ao acima da lin-a no esquema que conce6i a par&ir do &e4&o de 3audelaire% O ou&ro mundo das mul-eres era)l-es inacess;'el, em6ora es&i'esse comple&amen&e ao dispor dos -omens do grupo, que o represen&a'am cons&an&emen&e como o seu pr:prio &erri&:rio de comprome&imen&o com a modernidade% +2 pro'as de que as mul-eres da 6urguesia realmen&e frequen&a'am caf/s)concer&o, fac&o rela&ado como
A modernidade e os espaqos da feminilidade C Griselda Polloc 90 um ac&o lamen&2'el e um sin&oma do decl;nio moderno%5 ?omo ?lar salien&a, os guias &ur;s&icos de Paris, como o Murras, &en&am claramen&e e'i&ar &al promiscuidade, comen&ando que pessoas respei&2'eis nao 'isi&am esses locais% 7os seus di2rios, arie 3as-ir&seff recorda uma ida com amigos a um 6aile de m2scaras, onde, por de&r2s de um disfarce, as =o'ens da aris&ocracia podiam 'i'er perigosamen&e, =ogando com a li6erdade se4ual que l-es era 'edada pela sua classe e g/nero% as, dada a posiqao social d6ia de 3as-ir&seff e a sua condenaqao do padrao de moralidade e da regulaqao da se4ualidade das mul-eres, a sua a'en&ura apenas confirma a regra%5 En&rar em &ais espaqos como o 6aile de m2scaras ou o caf/)concer&o, cons&i&u;a uma s/ria ameaqa a repu&aqao de uma mul-er 6urguesa e, por&an&o, a sua feminilidade% A respei&a6ilidade pro&egida da sen-ora poderia ser maculada pelo mero con&ac&o 'isual, pois o ol-ar es&a'a direc&amen&e ligado ao con-ecimen&o% Es&e ou&ro mundo de encon&ros en&re -omens da 6urguesia e mul-eres de ou&ra classe era um lugar in&erdi&o a mul-eres 6urguesas% o local onde a se4ualidade feminina, ou mel-or, os corpos das mul-eres sao comprados e 'endidos, onde a mul-er se &orna &an&o um 6em comercial como uma 'endedora de carne, en&rando na esfera da economia a&ra'/s do seu in&ercam6io direc&o com os -omens% Aqui, a di'isao en&re o p6lico e o pri'ado, delineada como a separaqao en&re o masculino e o feminino, / corrompida pelo din-eiro, o regen&e do dom;nio p6lico, e precisamen&e o que / 6anido do lar% A feminilidade, nas formas espec;ficas da classe, / man&ida pela polaridade 'irgempros&i&u&a, o que / uma represen&aqao mis&ificadora das &rocas econ:micas no sis&ema pa&riarcal de paren&esco% 7as ideologias 6urguesas de feminilidade, o din-eiro e as relaqoes de propriedade que legal e economicamen&e pau&am o casamen&o 6urgues sao eliminadas pela mis&ificaqao de uma compra unila&eral dos direi&os a um corpo e aos seus produ&os como efei&o do amor que de'e ser man&ido por de'er 0 Jer ?lar, op% ci&%, p% 1!% 9 A escapadela em #"# foi apagada da 'ersao censurada dos di2rios pu6licados em #!1% Para discussao do e'en&o, 'er a pu6licagao com as par&es cor&adas em ?ole&&e ?osnier, Marie 8ash1irfseff :n porfraif sans re&ouc-es, Paris, Pierre +oray, !#0, pp% 9B)90% Jer &am6/m Linda 7oc-lin, 5A >-oroug-ly odern ased 3all5, Arf in America= 7o'em6ro !#8, " (1$% Em Karl 3aedecer, Guide &o Paris, ###, os 6ailes de m2scaras sao descri&os, em6ora se aconsel-e que os 5'isi&an&es acompan-ados de sen-oras de'em op&ar por um camaro&e5 (p%8B$ e 3aedecer comen&a as mais mundanas salles de danse (saloes de danga$, 57em / preciso di@er que as sen-oras nao podem frequen&ar es&es saloes%5
99 G/nero, cul&ura 'isual e performance = an&ologia cr;&ica e de'oqao% Assim, a feminilidade de'e ser en&endida, nao como uma condiqao da mul-er, mas como uma forma ideol:gica da regulaqao da se4ualidade feminina den&ro de uma esfera dom/s&ica, -e&erosse4ual e familiar, que /, em l&ima an2lise, definida pela lei% Os espaqos de feminilidade H ideol:gicos e pic&:ricos H dificilmen&e ar&iculam as se4ualidades femininas% o se &ra&a aqui de acei&ar as noqoes do s/c%
A modernidade e os espaqos da feminilidade C Griselda Polloc 9" para al/m des&e limi&e, re'ela como no'as classes do mundo 6urgues rees&ru&uraram as relaqoes de g/nero, nao s: en&re -omens e mul-eres, mas &am6/m en&re mul-eres de diferen&es classes%5 ! Posso &er e4agerado no que di@ respei&o a se4ualidade das mul-eres da 6urguesia% Defendo que a mesma nao poderia ser ar&iculada den&ro des&es espagos% A lu@ de recen&es es&udos feminis&as da psicologia psico)se4ual da ma&ernidade, seria poss;'el 'er pin&uras de mae)fil-o reali@adas por mul-eres de uma forma mui&o mais comple4a, como lugar para a ar&;culagao das se4ualidades femininas% Al/m disso, nas pin&uras de oriso&, por e4emplo da sua fil-a adolescen&e, podemos discernir a represen&agao de um momen&o de se4ualidade feminina, salien&ando a emergencia de uma se4ualidade adul&a la&en&e an&es da sua regulagao no am6i&o dos limi&es impos&os pelo casamen&o e pela domes&icidade% Al/m do mais, seria pruden&e &er em a&engao o es&udo da -is&oriadora ?arroll Smi&-) Rosen6erg so6re a impor&ancia da ami@ade feminina% Ela frisa que do nosso pon&o de 'is&a p:s)freudiano / mui&o dif;cil ler as in&imidades das mul-eres do s/culo
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