Titulo original: The Italian renaissance - culture andsociety in Italy © Copyright, 1999, Peter Burke 2010 - Edição em conformidade com a nova ortografia
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Burke, Peter, 1937O Renascimento Italiano / Peter Burke / Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo / Nova Alexandria, 2010. 344 páginas. ISBN 978-85-7492-244-7 1. Arte Renascentista 2. História da arte 3. Autor
CDD 709.405 709.406 709.45 índice para catalogação sistemática 027: Bibliotecas gerais Leitura . Meios de difusão da informação 028: Leitura.
Para Maria Lúcia
Para Maria Lúcia
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO O TEMA A ABORDAGEM
9 9 12
PARTE I - O PROBLEMA PROB LEMA
21
1.
As ARTES NA ITÁLIA ITÁLIA DO RENASCIMENTO RENASC IMENTO
23
2.
Os HISTORI HIS TORIADORE ADORES: S: A DESCOBERTA DA HIST HI STÓRI ÓRI A SOCIAL E CULTURAL
39
PARTE PARTE I I - A S ARTES ARTES EM SEU ME IO
55
3.
57
4.
5.
6.
7.
ARTISTAS ARTISTAS E ESCRITORES RECRUTAMENTO FORMAÇÃO A ORGANIZAÇÃO DAS ARTES
57 66 79
O status DA DAS ARTES
93
ARTISTAS COMO CO MO TRANSVIADOS TRANSVIADOS SOCIAIS PATRONOS E CLIENT CLI ENTES ES Q U E M SÃO OS PATRONOS? PATRONOS versus ARTISTAS ARQUIT ARQ UITETUR ETURA, A, MÚSICA E LITERATU LITERATURA RA O CRESCIMENTO DO MERCADO Os Usos DAS OBRAS DE ARTE RELIGIÃO RELI GIÃO E MAGIA MAGIA POLÍTICA A ESFERA ESFERA PRIVADA PRIVADA ART E POR PRAZER PRAZER GOS TO As ARTES VISUAIS MÚSICA LITERATURA VARIAÇÕES DE GOSTO ICONOGRAFIA
103 109 110
122 134 142
149 150 156 166 168 171 172 182 185 188 193
PARTE III - A SOCIE DADE EM GERAL VISÕES DE MUN DO : ALGUNS TRAÇOS DOMIN ANTES VISÕES DO COSMOS VISÕES DA SOCIEDADE VISÕES DO HOMEM PELA MECANIZAÇÃO DO QUADRO MUNDIAL 9. O QUADRO SOCIAL ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA A ESTRUTURA SOCIAL A ECONOMIA 10. TRANSFORMAÇÃO CULTURAL E SOCIAL GERAÇÕES MUDANÇAS ESTRUTURAIS 11. COMPARAÇÕES E CONCLUSÕES Os PAÍSES BAIXOS JAPÃO
209
8.
,
211 213 224 229 238 243 243 249 259 265 273 274 282 289 290 294
APÊNDICE: A ELITE CRIATIVA
299
BIBLIOGRAFIA
301
ÍNDICE ONOMÁSTICO
333
INTRODUÇÃO 5
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O TEMA o começo do século XV, a Itália não era uma unidade social, nem cultural, embora o conceito de Itália existisse, e alguns homens educados de outras regiões entendessem a língua toscana. Era sim plesmente uma expressão geográfica. Mas a geografia influencia a sociedade e a cultura. Sua geografia encorajava os italianos a dedicar ao comércio e à indústria mais atenção que seus vizinhos. A localização central da Itália na Europa e o fácil acesso ao mar permitiram que seus comerciantes se trans formassem em intermediários entre Oriente e Ocidente, uma vez que seu terreno, um quinto montanhoso e três quintos acidentado, desestimulava a agricultura. Não é de surpreender, portanto, que cidades italianas — Gênova, Veneza, Florença — tenham desempenhado papel de liderança na revolução comercial do século XIII, ou que em 1300 cerca de 23 cidades do norte e do centro da Itália tivessem populações de 20 mil ou mais habitantes cada. As cidades-repúblicas eram a forma dominante de organização política no século XII e começo do século XIII. Uma população urbana relativamente numerosa e um alto grau de autonomia urbana permitiam que o homem leigo educado assumisse uma excepcional importância. Seria difícil enten der os desenvolvimentos culturais e sociais dos séculos XV e XVI s em nos referirmos a essas précondições e tradições (Waley, 1969; Martines, 1979, caps. 1-4; Larner, 1980). No final do século XIII e começo do XIV, um bom número de cidades-estados perdeu sua independência e nos anos 1340 os italia nos, assim como outros europe*us, foram atingidos pelo colapso e pela peste. No entanto, a tradição do modo de vida urbano e a população leiga educada sobreviveram, e são o centro deste estudo. A maioria da
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O RENASCIMENTO ITALIANO
população italiana (por volta de nove ou dez milhões de pessoas) era de camponeses, vivendo em extrema pobreza, provavelmente intocados pelo Renascimento. Tinham uma cultura e valem um estudo, mas não são o assunto deste livro, que se debruçará sobre o contexto social dos novos progressos nas artes. Escrevendo em 1860, o grande historiador suíço Jacob Burckhprdt definiu o Renascimento como uma cultura moderna criada por uma socie dade moderna. Hoje, ela parece bastante arcaica. A mudança de atitude deve-se, em parte, à pesquisa acadêmica sobre a continuidade entre a Idade Média e o Renascimento, mas muito mais a transformações no conceito de "moderno". Desde 1860, a tradição clássica definhou, a tradição da arte representativa foi quebrada, e as sociedades rurais tornaram-se urbano — in dustriais numa escala que apequena as cidades dos séculos XV e XVI e suas artes. A Itália do Renascimento parece hoje "subdesenvolvida", no sentido de que a maioria da popula ção trabalhava na terra, muito s eram analfabetos e todos dependiam de representações animadas de poder. Essa perspectiva torna as inovações culturais do período ainda mais notáveis. Entender e explicar essas inovações - que vieram, ao longo do tem po, a constituir uma nova tradição —, esse é o objetivo deste livro, assim como de muitos outros estudos anteriores sobre o Renascimento. O que torna este livro um tanto distinto é a ambição de traçar não só uma história cultural, mas também uma história social do movimento, e abordar, em particular, a relação entre cultura e sociedade. Nenhum termo é fácil de definir. Por "cultura" entendo atitudes e valores essenciais e suas expressões ou manifestações em textos, artefatos e apresentações dramáticas. A cultura é o domínio do imaginár io e do simbólic o. Quanto a "sociedade", o te rmo é uma abreviação da estrutura econômica, social e política, uma estrutura invisível que se revela no padrão das relações sociais características de um determinado lugar e momento. O argumento essencial, que tentarei explicitar da melhor maneira pos sível nos capítulos que se seguem, é que não podemos entender a cultura da Itália do Re nasc iment o se olharmos apenas para as intenções conscientes do s artistas plásticos, escritores e intérpretes que produziram pinturas, poemas, tratados, peças de teatro, canções, edifícios, etc. É indispensável compreender essas intenções individuais — à medida que isso é possível hoje, limitados como somos por falta de provas e por diferenças entre nossas categorias, 10
INTRODUÇÃO
suposições e valores e os deles —, mas isso não basta para compreender o Renascimento. Existem várias razões para que essa abordagem não baste em si mesma. Embora Botticelli, por exemplo, expressasse sua individualidade em murais ou em telas com tanta clareza que não é difícil, 500 anos depois, reconhecer certos trabalhos como seus, ele não era inte iramente livre. Difer ent eme nte do que fazem os artistas contemporâneos - cuja liberdade é muitas vezes exagerada — os do Renascimento em geral faziam mais ou menos o que lhes era ordenado. Os limites a eles impostos são parte de sua história. Porém seria uma caricatura afirmar que Botticelli foi forçado a pro duzir a Primavera contra a sua vontade, assim como seria caricatural dizer que a idéia da obra lhe veio um dia espontaneamente à cabeça. Noções românticas de expressão espontânea da individualidade não estavam ao alcance dele. O papel de pin tor que ele desempenhava era definido por (ou pelo menos em) sua cultura. Em certo sentido, essa definição social de um papel é um tipo de limitação; somos todos, como gosta de afirmar o historiador francês Fe rnan d Braudel, "prisioneiros" de nossas suposições, de nossas mentalidades. Não é possível pensar todos os tipos de pensamento ao mesmo tempo, como costumava dizer outro historiador francês, Lucien Febvre. Ao mes mo t empo , existia sociedades, e a Itália do R enascimen to era uma delas, em que havia definições alternativas do papel do artista — e de muito mais. Esse pluralismo pode muito bem ter sido uma précondição para as outras conquistas do período. De qualquer forma, a metáfora de Braudel é de alguma forma enganadora. Sem experiências sociais e sem tradições culturais para nos ajudar a dar sentido a nossas experiências, seria impossível pensar ou imaginar o que quer que seja. O problema para a posteridade é que o Renascimento se transformou, assim como a Idade Média, em uma cultura alienígena ou, ao menos, "meio alienígena" (Medcalf, 1981). O que um toma por certo, outro toma por questionável, por isso os desentendimen tos freqüentes. Os artistas plásticos e escritores do período estão se to rn an do mais e mais remotos para nós — ou nós nos afastamos deles.
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O RENASCIMENTO ITALIANO
A ABORDAGEM Por essa razão o foco deste livro não estará nos indivíduos — embora alguns, Michelangelo, por exemplo, nunca nos deixam esquecer sua indivi dualidade - mas sim nas tradições. A preocupação aqui será não com aquilo que os lingüistas chamam de "mensagem", o ato particular da comunicação, mas com o "código", a linguagem, ou, em termos mais gerais, a tradição cultural que ao mesmo tempo limita o que pode ser dito e torna possível a mensagem. O tema principal será o rompimento com um código ou tradição, o do passado medieval ("alemão", "gótico", "bárbaro"), e o desenvolvimento de outr o, mo mode dela lado do na Anti güi güidade dade clássica. clássica. Essas Essas tradições em transfor mação têm alguma relação não só com o passado, mas com a história geral do tempo: booms e colapsos econômicos, crises políticas e transformações menos dramáticas e mais graduais da estrutura social. Que as artes estejam relacionadas aos acontecimentos históricos de seu tempo é bastante óbvio; o problema reside em especificar essa rela ção. ção. Meu objetivo aqui é evitar a fragilidade de duas outras abordagens do Renascimento, mais bem discutidas no Capítulo 2. A primeira é a Geistesgeschichte e a segund a, o materialismo histór ico, ta mb ém con heci do como Marxismo. Geistesgeschichte, literalmente "a história do espírito", era uma abor dagem da história que enfatizava o "espírito da época", que se exprimia em toda forma de atividade, inclusive nas artes e sobretudo na filosofia. Histo riadores que seguem essa linha, como Jacob Burckhardt, ainda hoje o maior historiador do Renascimento, colocam as idéias antes da vida cotidiana, enfatizam o consenso em detrimento dos conflitos cultural e social e vêem vagas conexões entre diferentes atividades. Os materialistas históricos, por outro lado, primeiro fincam os pés na terra da vida cotidiana, para depois ir subindo pelas idéias, enfatizando o conflito em detrimento do consenso, e tendendo a achar que a cultura, expressão de "ideologia", é determinada — direta ou indiretamente — pela "base" econômica e social. Apesar de minha admiração por Burckhardt e Huizinga, por um ou tr o, por algu ns estudiosos estudi osos marxist as, de Walt er Benj amin lado, e, de outr a Raymond Williams (cujo Culture and society de 1958 inspirou o título original), este livro busca uma terceira abordagem, não-divergente daquela 1
INTRODUÇÃO
defendida por membros da "Escola dos Anais" francesa (notadamente Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel). A preocupação com a história comparativa e com a história das mentalidades deve muito ao exemplo deles. O objetivo deste estudo é fazer uma história social aberta, que explore as conexões entre cultura e sociedade, sem concluir que o imaginário é d e terminado por forças econômicas ou sociais. Essa história social aberta faz uso de conceitos de grande número de teóricos sociais - Karl Mannheim, por exemplo, Emile Durkheim e Max Weber - sem aceitar nenhum pa cote teórico. A discussão de visões de mundo e gerações de Mannheim, as explicações sociais da consciência de si-mesmo e do comportamento competitivo de Durkheim e os conceitos de burocracia e secularização de Weber, todos são relevantes para a Itália do Renascimento e é possível ju j u nt á -l os n u m a sínt sí nt ese es e . O plano deste estudo foi trabalhar de dentro para fora, a partir de um centro. Esse centro é o que chamamos arte, humanismo, literatura e música da Itália do Renascimento, e é descrito no Capítulo 1. Trata-se, de certa forma, do problema que o resto do livro tenta resolver. Por que as artes ass umiram umi ram essas essas formas deter de termi minad nadas as nessas cidades e séculos? O Capítulo 2 fornece um breve relato das várias soluções propostas, daquele tempo até hoje. (Giorgio Vasari, escrevendo no fim do período, já tinha consciência da necessidade nec essidade de explicação para as conquistas conqui stas artísticas recentes rece ntes dos toscanos.) A segunda segund a parte d o livro livro ocupa-se do amb ien te social social imed iato das artes. Primeiro, que tipo de gente produziu as pinturas, edificações, poemas que tant t ant o admira mos? São estuda dos seiscentos seiscentos artistas plástic plásticos os e escritores mais conhecidos. Em segundo lugar, para quem essa "elite criativa" produziu seus seus textos, artefatos e fazia fazia apresentações? O que q ue os clientes esperava m em troca de seu dinheiro? Abrindo o leque a partir desses dois grupos, examino os usos que a sociedade do Renascimento fazia do que chamamos de "obras de arte" e as reações do público contemporâneo, além do gosto da época. Esses capítulos podem ser vistos como contribuições para uma história "microssocial". Algumas pessoas acham que a história social das artes tem de parar aí, mas eu acredito que isso deixa o írabalho pela metade, e por isso a terceira e última parte do livro se amplia ainda mais. Uma descrição dos padrões contemporâneos de gosto não faz sentido se não conhecermos um pouco 13
O RENASCIMENTO ITALIANO
a visão de mundo dominante no período. Os artistas e seus clientes, dois grupos sociais diferentes, precisam ser recolocados na moldura social geral se quisermos compreender seus ideais, intenções e exigências. Finalmente, existe o problema da mudança, mais exatamente a questão da relação entre mudança cultural e social. Cada capítulo discute mudanças específicas durante o período, mas os dois últimos procuram juntar essas duas linhas diversas e também lançar luz nas conquistas italianas, por meio de compa rações e contrastes com uma cultura vizinha, a dos Países Baixos-, no mesmo período, e uma cultura muito remota no tempo e no espaço, o Japão da famosa "era Genroku". Esta edição, tanto quanto sua predecessora, de 1987, difere da ori ginal em vários pontos. Sou muito agradecido aos resenhistas das edições anteriores (so bretudo bret udo a Hartfield, Hartf ield, 1973 19 73,, e Kurczewski, 1983) por suas cri ticas construtivas, algumas das quais acatei prontamente. Contudo, eu me mantenho inarredável sobre uma questão: a dos métodos quantitativos. A discussão da mudança de tema das pinturas foi fundamentada na análise de cerca de 2 mil pinturas, enquanto o capítulo sobre os artistas e os escritores foi baseado essencialmente na análise de seiscentas carreiras (facilitada pela ajuda de um computador, um ICT 1900, que sem dúvida se tornou uma antigüidade hoje). O emprego de estatísticas tocou um resenhista, que considerou "pseudocientificismo". Por outro lado, esse método de biogra fia coletiva (ou "prosopografia") tem sido utilizado em outros estudos do Renascimento na Itália (Bec, 1983; De Caprio, 1983; King, 1986). Em cantos diferentes a história quantitativa provoca tanto entusiasmo como desprezo. Essas reações sugerem que são necessárias algumas poucas palavras de esclarecimento, pelo menos sobre dois pontos. Primeiro, os historia dores implicitamente fazem afirmações quantitativas sempre que utilizam expressões como "mais" ou "menos", "ascensão" ou "queda", sem as quais teriam de fato muitas dificuldades em sua tarefa. Se tivermos de fazer afir mações quantitativas, é nossa obrigação procurar evidências quantitativas. Uma crítica comum aos métodos quantitativos (neste estudo ou em outro qualquer) tem sido a de que sempre nos dizem aquilo que já sabemos. Na verdade, algumas vezes realmente confirmam as conclusões anteriores, mas, como na descoberta de novos documentos, sempre proporcionam bases mais firmes para essas conclusões. O segundo ponto diz respeito à precisão. 14
INTRODUÇÃO
Com o anotei na primeira edição deste livro, as estatísticas são iluso ria mente precisas, porque a relação exata entre a "amostragem" analisada e o m u n d o de fora é pouco confiável. Por essa razão é inútil, e ilusório, ao menos nesse campo, apresentar dados do tipo "7,25%", por isso foram utilizados deliberadamente números redondos. Contudo, para determinar magnitudes relativas e mudanças ao longo do tempo, que são objeto deste trabalho, o cálculo de números absolutamente aproximados é, provavelmente, o método menos confiável. Em resumo, a justificativa para o método é puramente pragmática. Talvez seja preciso mais clareza sobre que tipo de história cultural se busca nas páginas que se seguem. Este livro foi originalmente planejado e escrito nos anos 1960, num tempo em que historiadores da arte, críticos literários e "simples'' historiadores não tinham muito que dizer um ao outro. Nos últimos trinta anos um interesse comum pela história social da arte e da literatura aproximou-os tanto que nem sempre é possível identificá-los separadamente. As identidades socialmente construídas do "historiador da arte" ou do "crítico literário" cada vez mais têm se tornado difíceis de manter. Agora, todos somos historiadores culturais. A medida que a história cultural se tem expandido, também se tem fragmentado. Não há consenso sobre o método desse tipo de historiografia, ou mesmo sobre seu objeto de estudo. Novas formas de história cultural se têm desenvolvido desde os anos 1960, distinguidas por definições de cu lt ur a mais abrangentes ou por visões mais sutis e complexas de sua relação com a sociedade (Baxandall, 1985; Chartier, 1988). Pode ser útil distinguir quatro abordagens sobrepostas que colocam suas ênfases respectivamente na cultura popular, na antropologia social, na política e na linguagem. A descoberta da cultura popular é parte de um movimento mais ampl o de escrever a história a partir de baixo, liderado pelos marxistas (Edward Th om ps on , por exemplo), embor a nã o se limite a eles. Nos anos 18 60 , era natu ral que Burckhardt se preocupasse com atitudes e valores de u m a minoria da população da Itália. Hoje, do mesmo modo, é natural que se perg unte o que todo o resto, mulheres e home ns, estava pens ando , se nt in do ou fazendo na época, e que se explore sua cultura. Desde que este livro foi publicado pela primeira vez, a história das mulheres veio a ser estabelecida e as mulheres criativas do Renascimento (com as patronas, as imagens e as atitudes com elas) receberam atenção séria em uma variedade de estudos 15
O RENASCIMENTO ITALIANO
recentes.1 Infelizmente, os dois conceitos básicos dessa abordagem, "popular" e "cultura", são extremamente difíceis de estabelecer. Quem é o povo? Todos, ou a não-elite? E, nesse caso, deve ser descrito em termos sociais, políticos ou culturais, como aqueles que não têm status, nem poder, nem educação? Em outras palavras, o que é cultura? A tendência recente — na esteira de teóricos sociais como Pierre Bourdieu — é estudar as atitudes codificadas na vida cotidiana ou na "prática cultural", as convenções locais de alimentação, bebida, lazer, modos de falar, doenças (ou impressão de doença) e assim por diante (Bourdieu, 1972, 1979). No caso do Renascimento, vemos um número crescente de estudos da cultura material do cotidiano. 2 Estudar a prática cultural e os valores que a sublinham é o que faz a antropologia social. A primeira vista, é um tanto estranho que especialistas no estudo dos mortos se sintam atraídos por uma disciplina centralizada no trabalho de campo entre os vivos, ou que historiadores especializados em grande parte nas artes do Ocidente resolvam ler etnografias da África central ou Indonésia. No entanto, essa atração não é cega, nem irracional. Historiadores ocidentais das práticas culturais ocidentais precisam perder a familiaridade com sua cultura a fim de não tomar muita coisa por cer ta, e a etnografia das sociedades desconhecidas fornece o meio para isso. Seu trabalho facilita o que pode ser chamado de "uma antropologia do Renascimento" (Burke, 1992b). Os chamados "antropólogos do simbólico" têm desenvolvido u m vocabulário e um méto do úteis para a análise de mitos, rituais e símbolos, colocando-os'em seu cenário social. Esse ambiente abrange a política. Ao longo de quase toda a década passada, os historiadores culturais assumiram uma posição mais política. A fórmula dos anos 1960 "cultura e sociedade" ou foi deslocada pela "política cultural", ou recebeu acréscimo dela. Os historiadores políticos estão desco brindo a cultura (a "cultura política", como a chamam às vezes), enquanto os historiadores cultu rais acharam necessário se preocup ar com o poder. O conceito de "hegemonia cultural", desenvolvido por Antônio Gramsci numa prisão fascista entr e guerras, viria a se tor nar m oe da histórica corrente co mo
1
King (1976), Kelly (1977), Greer (1979),Jardin e (1983, 198 5), Jordan (1990), Migiel e Schiesari (1991), Niccoli (1991), Benson (1992) e Jacobs (1997).
2
P.T horn ton (1991); Burke (1998a, pp.170-226) ; Findlen (1998); D. Th or nt on (1998) .
1
INTRODUÇÃO
resultado dessa tendência; assim como também o conceito de "estratégia".3 O conceito de ideologia vem sendo refinado e reformulado, para analisar as várias maneiras pelas quais o sentido ou significação "serve para susten tar relações de dominação" (Thompson, 1984, p. 131s). A história dos rituais políticos atraiu particular atenção como meio de estudar as relações entre cultura e poder, e alguns estudos importantes sobre o Renascimento florentino e veneziano foram escritos sob essa perspectiva (Trexler, 1980; Muir, 1981). Rituais são, muitas vezes, meios de persuasão, uma espécie de retó rica, uma forma de linguagem. Os historiadores culturais vêm, em tempos recentes, assumindo uma postura lingüística ou retórica. Evidentemente, a revivescéncia do interesse na retórica por parte dos críticos literários não é nada nova; mas o assunto é importante demais para que os historiadores o deixem para seus colegas. Em parte, porque é impossível usar criticamente fontes escritas sem ter consciência das convenções dos gêneros literários (car tas, testamentos, diários e decretos tanto quanto poemas e peças de teatro); como também porque falar e escrever são atividades humanas que têm sua relação própria com a sociedade (como nos relembram a etnolinguística e a sociolinguística) e história própria. A história social da linguagem está começando a ser levada a sério. Ela envolve uma preocupação não apenas com as variedades de línguas faladas por diversos grupos sociais em diferentes períodos, mas também com as variedades empregadas pelas mesmas pessoas em diferentes conte xtos sociais, com o uso da linguagem para expri mir ou criar relações sociais (deferência, intimidade, hostilidade, etc). A questão básica é "quem fala qual língua com quem e quando?". 4 Rituais e imagens pod em ser conv enie ntem ente considerados, ao menos sob algumas ci rcu ns tâncias, co mo linguagens, ou melhor •— evitando qualquer admissão da primazia da palavra —, como formas de comunicação.5
3
Sobre hegem onia, veja Williams (1977) , pp. 108-14 ; sobre estratégia, veja Bourdieu ( 19 72 ), pp . 6s, 58s, discutida no contexto da arte renascentista por Castelnuovo (1976), p. 48.
4
Fishman (1965) ; cf. Williams (1974), p.,120. Para exemplos de respostas de historiadores a essa questão, P. Burke e R. Porter (1987).
5
Para uma tentativa sistemática de estudar a cultura italiana como comunicação, veja Bu rk e (1987).
17
O RENASCIMENTO ITALIANO
Olhando novamente este livro depois de trinta anos de tê-lo escrito, fica evidente que as quatro abordagens da história que acabo de descrever já estavam esboçadas, se não de todo desenvolvidas, na primeira edição. Em primeiro lugar, os objetos diários e a cultura popular foram discutidos em mais de uma ocasião. Embora o movi mento qu e cha mam os de Renascimento envolveu apenas uma mi noria de italianos, sempre houve intercâmbio entre a cultura elevada e a popular, facilitado pelo fato de que a maioria dos principais artistas foi treinada como artesão. Novamente, a primeira edição do livro já indicava a questão da contribuição das mulheres para o Renascimento, um tema que as investigações posteriores tornariam possível explorar com mais detalhes. Em segundo lugar, o autor da versão de 1972 deste livro já mencio nava os antropólog os sociais (de Evans-Pritchard, 1940, a Bohan nan , 1961). Já estava esboçada uma antropologia histórica das imagens nas seções que falam sobre o uso de imagens para atrair chuva, para afastar o perigo e para humilhar e difamar o inimigo (cf. Trexler, 1972a; Ortalli, 1979; Edgerton, 1985). Em terceiro lugar — como nos estudos anteriores do Renascimento —, a relação entr e arte e política foi bastante discutida. N o caso da lingüística, pode-se dizer que o livro de 1972 abordou o Renascimento da Itália tendo em mente um modelo de comunicação da cultura, colocando as grandes "obras de arte" num âmbito muito mais amplo de mensagens ou "eventos comunicativos", tais como canções populares, sermões e rituais, do Casamento do Mar até o Carnaval, e distinguiu os diferentes tipos de emissores e receptores de mensagens: governantes e súditos, clero e laicato, a comunidade e as várias famílias, facções, guildas, irmandades e indivíduos que a constituem. Pode-se argumentar que as quatro novas tendências de estudo dos textos históricos, com as mudanças na cultura do século XX, que as têm motivado ou mesmo produzido, concluem que o Renascimento poderia não mais ser estudado. É costume estudá-lo como parte de uma "grande narrativa" da ascensão da moderna civilização ocidental, uma história triunfalista das elites que d enegr iu im plicitamente as conquistas de outr os grupos sociais e cultur as (Bo uwsma, 1979) . Agora qu e essa narrativa é amplamente rejeitada, a importância do estudo do Renascimento está sendo posta em questão. Por outro lado, a cultura erudita italiana dos séculos XV e XVI perdeu pouco de seu encanto. De fato, o Casamento de Vênus, a Monalisa e o Moisés de Michelangelo nunca foram tão conhecidos ou amplamente admirados como em nossa era de turismo global e reproduções em massa. 18
INTRODUÇÃO
Nesse pont o, a conclusão que se propõe é que o Renascimen to italia no poderia ser estudado a partir de uma perspectiva um tanto diferente. Seria revisto, afastado da idéia de modernidade, tão cara a Burckhardt, e estu dado de maneira "descentralizada". Por exemplo, o surgimento da cultura renascentista não precisa ser apresentado em termos de avanço, como se a construção no estilo da Roma antiga, por exemplo, fosse obviamente superior às edificações no estilo gótico ou no chinês tradicional. Essas suposições nã o são necessárias para a compreensão do movimento ou para a apreciação das conquistas individuais e coletivas no período. Outro modo de descentralizar o Renascimento poderia ser o de enfatizar o fato de que o movimento coexistiu e interagiu com outros mo vimentos e culturas, num processo de intercâmbio permanente (Farago, 1995; Burke, 1998a). O débito do humanismo italiano para com a cultura erudita de Bizâncio há muito é reconhecido (Kristeller, 1964; Geanakoplos, 1976). C on tu do , a contribuição dos estudiosos judeus para o Re nasc imen to (notadamente devido ao ressurgimento dos estudos hebraicos) e os modos como o movimento influenciou sua cultura só agora estão começando a ser feitos seriamente (Bonfil, 1984, 1990;Tiroshi-Rothschild, 1990). Mais obscuras ainda são as interações entre o Renascimento e o mundo do Islã, a despeito da publicação de estudos sobre a medicina árabe, sobre o geógrafo muçulmano Leão o Africano e sobre o intercâmbio cultural entre Veneza e o Império Otomano (Raby, 1982; Siraisi, 1987; Zhiri, 1991). Resta muito por fazer nessa área. Para a quarta edição, acrescentei mais de 120 itens à bibliografia a fim de registrar as pesquisas feitas entre 1987 e 1998. As notas de rodapé também foram atualizadas e o texto modificado para incluir as novas abordagens sobre o tema. Em essência, contudo, sou o mesmo autor (apesar dos cabelos brancos e da crescente cautela, senão prudência), e este é o mesmo livro.
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PARTE I ="5S3es35te
O PROBLEMA
1 As ARTES NA ITÁLIA DO RENASCIMENTO <=>S£5C£5*^
bjetivo deste livro é colocar, ou recolocar, a pintura, escultura, ar quitetura, música, literatura e conhecimento acadêmico da Itália do Renascimento em seu ambiente original, a sociedade daquele tempo, sua "cultura" no sentido amplo desse termo flexível. Para isso é aconselhável começar com uma breve descrição das características princi pais das artes dessa época. Nessa descrição, o que dará o tom será o ponto de vista da posteridade, mais que o dos contem porâneos. (Seu po nt o d e vista é discutido nos capítulos 5-7.) Embora eles escrevessem às vezes sobre "Renascimento", não tinham uma idéia clara e distinta do Renascimento como período. Tinham interesse em poesia e retórica, mas a nossa idéia de "literatura" lhes seria alheia, e um conceito algo parecido com o nosso "obra de arte" só começaria a emergir no final do período. Esta descrição irá enfatizar características comuns a diversas artes além daquelas que parecem ser restritas a uma delas, e procurará apr ese nta r o período como um todo (deixando a discussão das suas tendências inter nas para o Capítulo 10). Não consideraremos a unidade cultural da época (como fez, por exemplo, Jacob Burckhardt), mas ela será considerada c o m o hipótese a ser testada. 1 A visão convencional que o século XIX ti nh a das artes na Itália d o Renascimento (visão ainda hoje amplamente adotada, a despeito dos esforços dos historiadores da arte) pode ser res umida assim: as artes floresceram, e seu novo realismo, secularismo e individualismo demonstram que a Idade Média estava encerrada e que o mundo moderno havia começado. Porém,
O
1
Os prós e contras à idéia de unidade cultural da época estão concisa e elegantemente apre sent ados em Huizinga (1929) e Gombrich (1969). Para mais discussão, cf. Burke (1997b), pp. 183-212.
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O RE NAS CIME NTO ITALIANO
- PA RTE I - O PROBLEMA
essas proposições foram questionadas tanto por críticos como por historiadores. Se conseguirem sobreviver, será à custa de radicais reformulações. Dizer que as artes "floresceram" em uma determinada sociedade significa dizer, certamente, que ali se produziu um trabalho melhor do que em muitas outras sociedades, o que imediatamente nos remove do reino do empiricamente verificável. Hoje não parece mais tão óbvio quanto um dia pareceu que as artes medievais são inferiores às do Renascimento. Rafael foi considerado um grande artista e Ariosto um grande escritor desde o seu tem po até hoje, mas esse consenso não existe quando se trata de Michelangelo, Masaccio ou Josquin de Près, por maior que seja a reputação deles hoje. Da mesma forma, poucos se colocarão contra a sugestão de que a Itália do Renascimento foi uma sociedade em que as conquistas artísticas se "aglo meraram".2 Essa aglomeração é mais espetacular na pintura, de Masaccio (ou, na verdade, desde Giotto) atéTiciano; na escultura, de Donatello (ou desde Nicola Pisano, no século XIII) até Michelangelo; na arquitetura, de Brunelleschi até Palladio. A literatura é mais difícil. Depois de Dante e Petrarca, vem o que se chamou de "século sem poesia" (1375-1475), seguido das realizações de Poliziano, Ariosto e muitos outros. Os séculos XIV e XVI são grandes períodos para a prosa italiana, mas não o século XV (em parte porque os acadêmicos preferem escrever em latim). No reino das idéias, existem muitas figuras notáveis — Alberti, Leonardo, Maquiavel — e um movimento importante, o dos "humanistas", definido mais exatamente como o dos professores de "humanidades". 3 As falhas mais notáveis nesse relato das conquistas italianas vamos encontrar na música e na matemática. Embora se tenha composto bastante na Itália do Renascimento, a maior parte da boa música era obra de artistas dos Países Baixos, e só no século XVI aparecerão compositores do calibre dos Gabrieli e de Costanzo Festa. Na matemática, a famosa escola de Bolonha pertence ao final do século XVI. 4 2
O term o vem de Kroeber (1944) . Embora ele escreva como se o "crescimento cultural" pudesse ser medido como o crescimento econômico, suas comparações e contrastes continuam sendo sugestivos.
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A definição (precisa, mesmo que talvez estreita demais) é de Kristeller (19 55).
4
Não temos aqui espaço para uma discussão séria sobre matemática ; veja Rose (1975).
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As ARTES NA ITÁLIA DO RENASCIMENTO
É mais útil investigar a inovação nas artes do que o "florescimento" das artes, porque o conceito é mais preciso. Na Itália, os séculos XV e XVI foram, certamente, um período de inovação nas artes, uma época de novos gêneros, novos estilos, novas técnicas. O período é cheio de "primeiros". Foi a época da primeira pintura em óleo, da primeira gravura em madeira, da primeira gravura em metal e do primeiro livro impresso (embora essas inovações cheguem à Itália: vindas da Alemanha e dos Países Baixos). As regras da perspectiva linear são descobertas e postas em uso por artistas. A linha divisória entre novo e velho é mais difícil de traçar nos gêneros do que nas técnicas, mas as mudanças são bastante óbvias. Na escultura, vemo s a ascensão da estátua em pé, e, mais especialmente, a do mo numento eqüestre, e do retrato, o busto .5 Na pintura também, o retrato emerge como gênero independente, seguido, um tanto mais lentamente, pela paisagem e pela natureza-morta.6 Na arquitetura, o desenvolvimento, ou mesmo, talvez, a "invenção" do planejamento urbano consciente ocorreu no século XV (Westfall, 1974). Na literatura, houve a ascensão da comédia, da tragédia e da pastoral (seja drama ou romance) (Herrick, 1960, 1965). Na música, a emergência àa.frottola e do madrigal, ambos canções para diversas vozes (Einstein, 1949 ; Bridgman , 1964 , cap. 10). A teoria das artes plásticas, a teo ria literária, a teoria musical e a teoria política, todas se tor naram au tô no ma s nesse período . 7 Na educação, vemos a ascensão daquilo que hoje chamamos de "humanismo" e que era então chamado de "estudos de humanidades" {studia humanitatis), um pacote acadêmico que enfatizava cinco maté rias em particular, todas referentes à linguagem e à moral: gramática, retórica, poesia, história e ética (Kristeller, 1955, cap. 1). A inovação era consciente, embora fosse às vezes vista e apresentada co mo um a retom ada . A post ura clássica sobre a inovação das artes visuais é a formulada em meados do século XVI pelo historiador de arte Giorgio Vasari,
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Sobre escultura, veja Pope-Hennessy (1958), Seymour (1966) e Avery (1970); sobre m onu me nt o eqüestres veja Janson (1967).
6
Sobre retrato, veja Pope-Hennessy (1966) e Campbell (1990); sobre paisagem, veja Go mb ri ch (1966), pp. 107-21, Turner (1966) e Capítulo 7, p. 166; sobre natureza-morta, veja Sterling (1959) e Gombrich (1963), pp. 95-105.
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Sobre teoria das artes plásticas, veja Panofsky (1924) e Blunt (1940); sobre teoria literária, veja Weinberg (1961); sobre teoria política, veja Skinner (1978).
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O RENASCIMENTO ITALIANO
PARTE I - O PROBLEMA
com sua teoria do progresso em três estágios a partir da era dos "bárbaros". O mesmo orgulho pelas inovações se percebe também em sua descrição da própria obra em Ná pole s, os primeiros afrescos "pintados à maneira moder na [lavorati modernamente]". Ele faz uso freqüente de referências desd enh osas ao que chamava de "estilo grego" e "estilo alemão", em outras palavras, as artes bizantina e gótica. 8 Os músicos também afirmavam que tinha havido grandes inovações no século XV. Johannes de Tinctoris. original dos Países Baixos, vivendo na Itália, ao escrever em 1470, situou nos anos 1430 a as censão dos modernos compositores (moderní), acrescentando que "Embora pareça difícil acreditar, não existe uma única peça de música considerada digna de ser ouvida pelos entendidos que não tenha sido composta nos últimos quarenta anos". 9 Essa atitude desrespeitosa com o passado sugere a possibilidade de que uma das razões de a Itália ocupar lugar central no Renascimento seja o fato de os artistas italianos terem sido menos associados ao estilo gótico do que seus colegas da França, Aleman ha e Inglaterra. As inovações g eralmente ocorriam em regiões onde a tradição dominante anterior tinha penetrado menos profundamente do que em outros lugares. A Alemanha, por exemplo, foi menos profundamente afetada pelo Iluminismo do que a França, e isso facilitou a transição da Alemanha para o Romantismo. De forma semelhan te, pode ter sido mais fácil desenvolver um novo estilo de arquitetura em Florença no século XV do que em Paris ou mesmo Milão. No entanto, os italianos renascentistas não perderam inteiramente sua reverência pela tradição. O que eles fizeram foi repudiar tradições recentes em nome de uma mais antiga. Sua admiração pela Antigüidade clássica permitiu-lhes atacar a tradição medieval como se fosse ela própria um rompimento com a tradição. Quando, por exemplo, o arquiteto do século XV, Antônio Filarete, seíefere à arquitetura "moderna", ele quer dizer que está rejeitando o estilo gótico. 10 Sua posição não é diferente daquela dos rebeldes e reformadores da Europa do final da Idade Média e começo da Idade Moderna, que regularmente afirmavam estar retornando 8
Sobre a posição de Vasari sobre o "progresso", veja Panofsky (1955) e Gombr ich (1960 b).
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Do prefácio de De arte contrapuncti (1477), de Johan nes de Tincto ris, discutido por Lowinsky (1966).
10 Veja Antôni o Filarete, Trattato di Architettura, passim.
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As ARTES NA ITÁLIA DO RENASCIMENTO
aos "bons velhos dias", quando certos maus costumes ainda não se tinham estabelecido. De qualquer forma, o entusiasmo pela Antigüidade clássica é uma das principais características do movi men to do Renas cime nto, qu e historiadores culturais têm de tornar inteligível, quer a discutam em termos da afinidade entre as duas culturas, com o meio de legitimar a inovação em uma sociedade tradicional, quer como uma extensão das artes do fascínio político da Roma antiga. Na arquitetura, essa tendência de imitar gregos e romanos é parti cularmente óbvia. O tratado escrito pelo romano Vitrúvio era estudado, edifícios antigos eram medidos, a fim de aprender a "linguagem" clássica da arquitetura, não apenas o vocabulário (pedimentos, moldes decorativos, colunas dó rica, jônica e coríntia e assim por diant e), mas também a g ra má tica: as regras para combinar os diferentes elementos. No caso da escultura, inovações como o retrato-busto e a estátua eqüestre foram gêneros antigos revividos.11 No caso da literatura, mais uma vez é fácil ver como os escritores de comédia imitavam os romanos Terêncio e Plauto; escritores de tragédia, Sêneca; e escritores de épicos, Virgílio. A pintura e a música são casos mais intrigantes porque os modelos clássicos não estavam disponíveis (as pinturas romanas ora discutidas pelos estudiosos só foram descobertas no século XVIII ou depois). A falta de exemplos completos não impedia a imitação na base de fontes literárias. A Calúnia de Botticelli e seu Nascimento de Vênus, por exemplo, são tentativas de reconstruir os últimos trabalhos do pintor grego Apeles (Cast, 1981; Massing, 1990). A crítica literária de escritores clássicos como Aristóteles e Horá cio era levada a fornecer critérios de excelência na pintur a, p art in do do princípio de que "assim como na poesia, assim também na pintura" (Lee, 1940). As discussões sobre como devia ser a música grega eram baseadas em passagens de Platão ou em tratados clássicos como o Harmonika de Ptolomeu (Palisca, 1985). Entretanto, esse interesse pela música grega aparece mais tar de, somente no século XVI. Por isso, a idéia que ele faz de um "Renascimento" musical no século XV tem sido contestada (Owens, 1955). As descrições contemporâneas das mudanças nas artes são fontes indispensáveis para entender o que estava acontecendo, mas, assim como outras 11 Sobre arquitetura, veja Murray (1963) e Heydenreich e Lotz (1974). Sobre artes visu ais em geral, veja Dacos (1979).
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O RENASCIM ENTO ITALIANO
PARTE I - O PROBLEMA
fontes históricas, não podem ser tomadas por seu valor aparente. Os contempo râneos geralmente afirmavam estar imitando os antigos e rompendo com o passado recente, mas na prática emprestaram de ambas as tradições e não seguiram ne nhu ma das duas inteiramente. Co m o acontece com freqüência, o novo era acrescentado ao velho em vez de substituí-lo. Os deuses e deusas clássicos não expulsaram os santos medievais da arte italiana, mas coexistiram e interagiram com eles. As Vênus de Botticelli são difíceis de distinguir de suas Madonas, e Michelangelo usou um Apoio clássico como modelo para seu Cristo do Juíza Final. Os poetas Jacopo Sannazzaro e Marco Girolamo Vida escreveram épicos sobre o nascimento e a vida de Cristo à maneira da Eneida de Virgílio. 12 Um príncipe do Renascimento provavelmente leria ou ouviria tanto o romance medieval deTristão como o clássico épico de Eneias; e o Orlando Furioso, de A riosto, é um épico híbrido — um romance situado na era de Rolando e Carlos Magno. O drama pastoral Orfeo de Poliziano começa com a entrada de Mercúrio, que assume o lugar e a função do anjo que normalmente apresenta os mistérios teatrais italianos. Mais uma vez, a ascensão do humanismo não desbancou a filosofia escolástica medieval (apesar das observações depreciativas que os humanistas faziam sobre os scholastict). Na verdade, figuras exponenciais no movimento renascentista, como o neoplatônico Marsilio Ficino, eram bem lidos tanto na filosofia medieval como na filosofia clássica. Lorenzo de'Medici, gover nante de Florença, escreveu a Giovanni Bentivoglio, governante de Bolonha, pedindo que procurasse nas livrarias locais uma cópia do comentário de Jean Buridan à Ética de Aristóteles, e Leonardo da Vinci estudou a obra de Alberto da Saxônia e de Alberto o Grande (Ady, 1937). Realismo, secularismo e individualismo são três traços comumente atribuídos às artes da Itália do Renascimento. Essas três características são problemáticas. No caso do termo "realismo", há vários problemas envolvidos. Em prime iro lugar, emb ora artistas de diversas culturas ten ham proclamado que abandonaram a convenção e passaram a imitar a "natureza" ou "reali dade", mesmo assim eles fazem uso de algum sistema de convenções. 13 Em 12 Esses exemplos de "hibridi zação" renascentista são de Wi nd (19 58) . 13 A discussão clássica deste prob lema, no caso da pintu ra, está em Gom bri ch (1 960a ). Ou tros estudos importantes do realismo estão em Huizinga (1920), Auerbach (1946) e Wellek (1954, 1963).
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As ARTES NA ITÁLIA DO RENASCIMENTO
segundo lugar, uma vez que o termo "realismo" foi cunhado na França do século XIX para indicar os romances de Stendhal e as pinturas de Courbet, seu uso em discussões sobre o Renascimento leva a analogias anacrônicas entre os dois períodos. Em terceiro lugar, o termo tem significados demais, que precisam ser discriminados. Pode ser útil distinguir três tipos de realis mo: doméstico, enganador e expressivo. Realismo "doméstico" refere-se à escolha do que é cotidiano , comu m, de baixa classe, como assunto para as artes, mais do que os momentos pri vilegiados de gente privilegiada. Os quebradores de pedra de Courbet e as cenas cotidianas da vida holandesa de Pieter de Hooch são exemplos dessa "arte da descrição" (Alpers, 1983, principalmente a introdução). Realismo "enganador", por outro lado, refere-se ao estilo, por exemplo, de pinturas que produzem ou tentam produzir a ilusão de que não são pinturas. Realismo "expressivo" também se refere a estilo, mas à manipulação da realidade exter na para exprimir melhor o que há no interior, como no caso de um retrato em que a forma do rosto é modificada para revelar o caráter do retratado ou em que um gesto natural é substituído por outro, mais eloqüente. Que utilidade têm esses conceitos na abordagem das artes da Itália renascentista? O realismo expressivo não é difícil identificar na Ultima ceia de Leonardo, digamos, ou nas pinturas de Rafael e Michelangelo; a única dificuldade está em encontrar um período em que obras de arte não tenham esse traço. Mais inovador nas pinturas do Renascimento italiano (assim como na arte flamenga desse período) é o realismo doméstico no segundo plano. A Anunciação de Cario Crivelli, por exemplo, se detém amorosamente nos tapetes, almofadas bordadas, pratos, livros e todo o resto da decoração interior do quarto da Virgem. A Adoração dos pastores de Ghirlandaio mostra, como diz o historiador da arte Heinrich Wõlfflin (1898, p . 21 8), "a bagagem familiar - um a velha sela no chão, ao lado de um frasco de vinho". E importante notar que os detalhes estão lá, e também lembrar que estão meramente no fundo. Hoje, muitas vezes consideramos os detalhes como pinturas de gênero em miniatura, e os reproduzimos como tal. Os contemporâneos, por outro lado, não tinham o conceito de pintura de gênero, e podem muito bem ter visto os detalhes como simbólicos ou como ornamentos destinados a preencher um espaço vazio. É possível encontrar detalhes domésticos similares na literatura da época, nos mistérios teatrais, por exemplo. Em uma peça anônima sobre 29
O RENASC IMENTO ITALIANO
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o nascimento de Cristo, os pastores Nencio, Bobi, Randello e outros levam comida quando vão adorar o Salvador e a comem no palco (D'Ancona, 1872, pp. 197-8). Na literatura, porém, ao contrário da pintura, existem gêneros em que o realismo doméstico preenchia o primeiro plano. Havia, por exemplo, a novella, a história curta sobre a vida de pessoas comuns, um dos gêneros italianos favoritos entre Boccaccio, no século XIV, e Bandello, no XVI. A comédia podia retratar a vida camponesa, como no caso das peças em dialeto padovano escritas e representadas por Ângelo Beolco, il Ruzzante ("o bufão"). A música podi a tam bé m tentar recriar cenas de mercado ou de caçada. Mais difícil é a questão do realismo enganador. De Vasari a Ruskin e mais adiante, o Renascimento era geralmente considerado um passo im portante na ascensão de representações mais e mais acuradas da realidade. No começo deste século, porém, essa noção foi questionada, justamente na época (sem dúvida, nenhuma coincidência) do desenvolvimento da arte abstrata. Heinrich Wõlfflin, por exemplo, sugeriu que "é um erro a história da arte trabalhar com a desajeitada noção de imitação da natureza, como se ela fosse meramente um processo homogêneo de aumentar a perfeição" (Wõlfflin, 1915, p. 13), enq uan to out ro celebrado historiador da arte, Alois Riegl, escreveu ainda mais dramaticamente que "todo estilo visa a uma reprodução fiel da natureza e nada mais, mas cada um tem a sua própria concepção de natureza" (citado em Gombrich, 1960a, p. 16). Neste ponto, o leitor pode estar pensando que a descoberta renas centista da perspectiva linear é um contraexemplo, mas mesmo esse argu mento foi questionado pelos historiadores da arte Erwin Panofsky e Pierre Francastel, que afirmam que a perspectiva é uma "forma simbólica", "um conjunto de convenções como outro qualquer", dependendo da visão monocular. Essa era a razão de ser da famosa caixa de Brunelleschi, que tinha um visor, ao qual o obse rvad or podi a encos tar o olho e ver, refletido n u m espelho, um panorama do Batistério de Florença. 14
14 Sobre "forma simbólica", veja Panofsky (1 92 4-5) , um a formulação que reflete a filosofia das formas simbólicas de seu amigo Cassirer (Holly (1984), cap. 5). Sobre "convenções", veja Francastel (1950), pp. 7, 79. A caixa de Brunelleschi é descrita em Manetti (1970), p. 9, e discutida em Edgerton (1975), cap. 10.
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As ARTES NA ITÁLIA DO RENASCIMENTO
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—JL^3 vCARLO CRIVELLI: A ANUNCIAÇÃO COM.S. EMIDIUS, 1486 © Nacional Gallery, Londres
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DOMENICO GHIRLANDAIO: ADORAÇÃO DOS PASTORES S. Trinitá, Florença. Coleção Mansell/Time Inc./Katz Pictures
Se são válidos esses argumentos, falar de "realismo renascentista" é dizer uma coisa sem sentido. No entanto, a fascinante formulação de Riegl corre o risco de não ser verificável, de circularidade. A prova da concepção de natureza de um artista vem de suas pinturas, mas as pinturas são in terpretadas em termos dessa mesma concepção. Parece mais útil partir do fato empírico de que algumas sociedades, assim como alguns indivíduos, se interessam particularmente pelo mundo visível, conforme se lhes aparece, e a Itália do Renascimento era assim. Imagens de cera, muitas vezes em tamanho natural e vestidas com as roupas da pessoa que representavam, eram colocadas 2
As AKTES NA ITÁLIA DO RENAS CIME NTO
em igrejas, máscaras feitas em vida e máscaras mortuárias eram produzidas com freqüência, e alguns artistas dissecavam corpos a fim de entender a estrutura do corpo humano. 1 5 A questão não é que o realismo enganador fosse o único objetivo dos artistas da época; é fácil demonstrar que essa afirmação é falsa. Paolo Uccello, por exemplo, coloria seus cavalos segundo critérios muito diferentes. Porém Vasari criticava Uccello justamente por essa falta de verossimilhança, e as fontes literárias discutidas no Capítulo 6 sugerem que muitos observadores esperavam esse tipo de realismo e julgavam pinturas em termos da fidelidade às aparências. Outro traço marcante da cultura italiana do Renascimento é que ela foi, em relação à Idade Média, uma cultura secular. Esse contraste não deve ser exagerado. Um estudo estatístico sugere que a proporção de pinturas italianas de temática secular subiu de cerca de 5% nos anos 1420 para cerca de 20% nos anos 1520. Nesse caso, a "secularização" significa apenas que a minoria de quadros seculares cresceu um pouco mais. 16 No caso da escultura, literatura e música, é mais difícil usar métodos quantitativos, ou ir além da óbvia constatação de que os novos gêneros eram seculares: a estátua eqüestre, por exemplo, a comédia e o madrigal. Ao tentar ir além, os problemas conceituais tornam-se mais agudos, como ilustra o caso daquilo que se pode chamar de "criptossecularização". Quadros que oficialmente mostram São Jorge (digamos) ou São Jerônimo parecem dedicar cada vez menos atenção ao santo e mais ao fundo; os santos ficam menores, por exemplo. Essa tendência sugere uma possível tensão en tre o que os patronos realmente queriam e o que consideravam legítimo. A dificuldade é que os contemporâneos não faziam as distinções nítidas entre sagrado e profano que vieram a se tornar obrigatórias na Itália do final do século XVI, depois do Concilio de Trento. Segundo padrões posteriores, eles estavam continuamente santificando o profano e profanando o sagrado. Missas tinham por base as melodias de canções populares. O filósofo Marsilio Ficino gosta de chamar a si mesmo de "sacerdote das Musas" e havia uma
15 Sobre imagens de cera, veja Warb urg (196 6), p. 117s. 16 A amostra em questão é a das pinturas datadas, arroladas em Errera (1920). Os perigo s de tendenciosidade são discutidos no Capítulo 7, e os detalhes do padrão, década a década, são analisados no Capítulo 10.
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O RENASC IMEN TO ITALIANO
PARTE I - O PROBLEMA
"capela das Musas" no palácio de Urbino. Deus e seu vigário, o Papa, po diam ser mencionados como "Júpiter" ou "Apoio". Algumas pessoas, como Erasmo (que visitou Roma em 1509), ficavam escandalizadas com práticas como essas, mas elas persistiram durante todo o período, como sugerirá o Capítulo 9. Se vamos discutir o Renascimento em termos de "secularização", devemos ao menos estar conscientes de que estamos impondo categorias posteriores ao período. Uma terceira característica geralmente atribuída à cultura da Itália do Renascimento, e discutida em detalhe no famoso livro de Burckhardt sobre o assunto, é o "individualismo". Assim como "realismo", "individualismo" é um termo que veio a ter muitos significados (discutidos adiante). Aqui usaremos o termo para indicar o fato de que a obra de arte deste período (ao contrário da Idade Média) era feita em um estilo pessoal. Mas isso é realmente um "fato"? Para observadores do século XX, a pintura medieval parece menos obra de diferentes indivíduos do que as pinturas do Renascimento, mas isso pode ser uma ilusão do tipo "todos os chineses se parecem" (para os não chineses). De qualquer forma, o testemunho dos contemporâneos sugere que, nos séculos XV e XVI, t anto artistas como público estavam interessados em estilos individuais. Em seu manual técnico, Cennino Cennini aconselha pintores a "encontrar um bom estilo que seja certo para você" [pigliare una maniera própria per te]. Em sua discussão sobre o perfeito cortesão e sua compreensão das artes, Baldassare Castiglione sugeria que Mantegna, Leonardo, Rafael, Michelangelo,e Giorgione eram cada um deles "perfeitos em seu próprio estilo" [nelsuo stilo]. Francisco de Hollanda, português em visita à Itália, afirmou coisa semelhante de Leonardo, Rafael e Ticiano: "cada um pinta no próprio estilo" [cada um pinta por sua maneira}}7 Na literatura, a imitação de modelos antigos era objeto de discussão, na qual alguns protagonistas, principalmente Poliziano, atacaram o ideal de escrever como Cícero, e questionaram o vaior da autoexpressao individual.18 Havia, evidentemente, muita imitação de artistas e escritores clássicos e modernos. Na verdade, isso provavelmente era a norma. A questão do individualismo e
17 Cennini, // libro deWarte, p. 15; Castiglione, // cortegia.no- , livro 1, cap. 37, adaptado de Cícero, De oratore, livro 2, cap. 36; Hollanda, Da pintura antigua, p. 23. Uma discussão geral pode ser encontrada em Wittkower (1961). 18 Sobre esse debate, veja Fumaroli (1980), parte 1, Greene (1982) e p. 187 adiante.
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As ARTES NA ITÁLIA DO RENASCIMENTO
do secularismo não é que eram domin ante s, mas sim que eram relativamente novos, distinguindo o Renascimento da Idade Média. Deixemos de lado os traços óbvios da cultura do Renasc imento ita liano e a necessidade de descrevê-los cuidadosa mente. Ou tr as características gerais de uma arte podem merecer breve menção. Havia, por exemplo, uma tendência para maior autonomia, no sentido de que as artes estavam se tornando cada vez mais independentes de funções práticas (discutidas no Capítulo 5) e uma da outra. A música, por exemplo, estava deixando de depender das palavras. As peças instrumentais, tais como as composições para órgão de Andréa Gabrieli e de Marco Antônio Cavazzoni, começa vam a ficar mais longas e mais importantes. A escultura se tornava mais independente da arquitetura, a estátua independente do nicho. Existem até algumas esculturas, como a cena de batalha feita por Bertoldo para Lorenzo de'Medici, que não têm assunto, no sentido de que não ilustram uma história, e pelo menos algumas pinturas que parecem independentes de sentidos religiosos, filosóficos ou literários (tópico discutido no Capítulo 7). 19 Pode ser significativo que o termo fantasia seja usado igua lmente para composições pictóricas ou musicais durant e esse período, indica ndo u m a obra que o pintor ou músico criou de pura imaginação, e não ilustrando ou acompanhando um tema literário. Ou tr a característica geral da cultura italiana desse te mp o era a ru pt ur a de compartimentos, o cruzamento de disciplinas. O lapso entre teoria e prática em diversas artes e ciências se estreitou nessa época, e isso foi causa ou conseqüência de muitas e famosas inovações. Por exemplo, a caixa de Brunelleschi, que dramatizava a sua descoberta das regras da perspectiva linear, foi uma contribuição à ótica (chamada perspectiva em seu tempo) assim como uma contribuição à pintura. O humanista Leon Battista Alberti era homem de teoria, era matemático, assim como homem de prática, era arquiteto, e cada campo de estudo ajudava o outro. Suas igrejas e palácios eram construídos segundo um sistema de proporções matemáticas, e ele dizia aos acadêmicos que se podia aprender observando os artesãos trabalhando. Leonardo utilizava seus estudos de ótica e anatomia em pinturas. Alguns compo sitores, como o monge Pietro Aron, membro da capela papal na
19 Veja C. Gilbert (195 2), Gombri ch (1966), pp. 122-8, Hope (1981) e Hop e McGrath (199>6).
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O RENASCIMENTO ITALIA NO
PARTE I - O PROBLEMA
CAPELA COLLEONI EM BÉRGAMO Coleção Mansell/Time Inc./Kacz Pictures
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As ARTES NA ITÁLIA DO RENASCIMENTO
época do Papa Leão X e autor de uma série de tratados conhecidos como Toscanella, fizeram uma ponte sobre o tradicional lapso entre o teórico de música e o compositor-executante. Na história do pensamento político, Maquiavel, ocasionalmente servidor público profissional, fez a ponte entre o modo acadêmico de pensamento sobre política, exemplificado na tradi ção de tratados que lidam com as qualidades morais do governante ideal como "espelho dos príncipes", e o modo prático de pensamento, que pode ser ilustrado nos registros das reuniões de conselho e nos despachos de embaixadores. 20 Outro lapso que se fechava era entre a cultura de diferentes regiões da penínsu la, à med ida que as conquistas toscanas iam se to rn ando mod elo para o resto. A recepção do Renascimento italiano no exterior foi precedida pela recepção do Renascimento toscano em outras partes da Itália. As inova ções florentinas foram introduzidas por artistas florentinos, como Masolino em Castiglione Olona (na Lombardia), Donatello em Pádua e Nápoles, Leonardo em Milão, e assim por diante, enquanto o dialeto da Toscana ia se estabelecendo como língua literária de toda a península. Marcadas variações regionais con tinu ara m a existir ao longo de tod o o período ; a pintu ra vene ziana, por exemplo, enfatizava a cor, enqu anto a pint ura toscana enfatizava a forma (disegno), e a arquit etura lombarda enfatizava o orn ame nto, en qu an to a arquitetura toscana enfatizava a simplicidade. Porém, os centros artísticos menores, como Siena ou Emília, foram gradualmente atraídos para a órbita dos maiores. A ascensão de Roma, uma cidade que não tinha forte tradição artística, mas que se tornou o centro do patronato durante o começo do século XVI, estimulou uma arte inter-regional. Como na literatura, as artes visuais eram mais italianas em 1550 do que haviam sido cem ou duzentos anos antes. 21
20
Cf. Panofsky (1953a), p. 128, sobre a "descompartimentalização", e Chastel (1964), sobre "décloisonnement". Sobre Maquiavel, AlBertini (1955) e F. Gilbert (1957).
21 Pode-se encontrar um panorama sucinto dos estilos regionais na Encyclopaedia of WorldArt no verbete "arte italiana".
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2 Os HISTORIADORES: A DESCOBERTA DA HISTÓRIA SOCIAL E CULTURAL
A
explicação para o surgimento de tantos indivíduos criadores excep cionais nesse período — assim como no caso da antiga Grécia e de Roma — é um problema que vem preocupando historiadores desde o próprio Renascimento. O humanista Leonardo Bruni acreditava que a política era a chave do problema. Como Tácito, ele achava que o fim da República Roma na significava o declínio da cult ura roman a. "Q uand o a República ficou sujeita ao poder de uma única cabeça, aquelas mentes excepcionais desapareceram, como diz Tácit o." Cont rar iament e, ele sugere (ao menos por implicação) que as conquistas literárias dos florentinos foram resultado de sua liberdade. 1 Cem anos depois, Maquiavel observou que as letras florescem em uma sociedade só depois das armas; primeiro vêm os capitães, depois os filósofos.2 Foi Giorgio Vasari, porém, o primeiro a oferecer uma análise deta lhada do problema. Vasari é, evidentemente, a fonte mais indispensável para a história da arte do Renascimento italiano: escritor que era também artista plástico (embora tenha vivido mais no fim do período, de forma que estava tão longe de Masaccio quanto nós estamos dos Pré-Rafaelitas, e sua informação seja de segunda ou terceira mão). Nós o usamos da mesma maneira que alguns arquitetos renascentistas usavam as ruínas da antiga Roma, como mina de material bruto. Devemos, porém, lembrar que ele pró pri o era um historiador sério. Emb ora estivesse mais preoc upado co m conquistas individuais, Vasari achou espaço em suas biografias de pintores, 1
Bruni, Panegyric to the City ofFlorence, pp. 154, 174.
2
Maquiavel, Istoriefiorentine, livro 5, prólogo.
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O RE NASC IME NTO ITALIANO
- PARTE I - O PR OBLEMA
escultores e arquitetos para aquilo que poderíamos chamar de fator social. Impressionado pela aglomeração de talentos do nível de Brunelleschi, Donatello e Masaccio, ele comenta que "É costume da Natureza, quando ela cria um homem que realmente excede em alguma profissão, muitas ve zes não criá-lo sozinho, mas produzir outro ao mesmo tempo e num lugar vizinho para competir com ele". 3 Vasari dedicou-se também, em sua biografia de Perugino, a explicar a desmedida contribuiçã o de Florença às artes, colocando na boca do professor de Perugino a sugestão de que aquela cidade oferecia três incentivos que no geral faltavam em outras partes. O primeiro era o fato de muitas pessoas serem extremamente críticas (porque o ar conduzia a liberdade de pensamento), e os homens não se satisfazerem com obras medíocres... O segundo era a necessidade de ser industrioso para viver, o que significava usar a cabeça e o bom juízo todo o tempo... pois Florença não tinha uma região campestre grande ou fértil à sua volta, de forma que ali não se podia viver com poucas despesas como em outras partes. Em terceiro,... vinha o amor à honra e à glória que aquele ar gera nos homens de todas as ocupações. Leitores modernos podem achar difícil levar a sério a ênfase que ele coloca no ar como causa última, mas essa dificuldade não deve impedir de perceber que Vasari forneceu explicações que podemos chamar de econômi cas, sociais e psicológicas, em termos de desafio-e-resposta, e a necessidade de realizações. Só no século XVIII, porém, é que se tornou objeto de estudo sistemá tico aquilo que os contemporâneos chamavam de "história das maneiras", e que coincide, mais ou menos, com aquilo que descrevemos como história cultural e social. Voltaire, por exemplo, tentou desviar a atenção dos histo riadores das guerras para as artes. Seu Ensaio sobre as maneiras (1756, cap. 118) colocava — em linguagem não diferente da de Vasari — que o século
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Vasari, Life of Masaccio. Sobre Vasari como historiador, veja Gombrich (1960b), Boase (1979) e Rubin (1995).
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XVI foi um tempo em que "a natureza produziu homens extraordinários em quase todos os campos, acima de tudo na Itália". Os escritores do Iluminismo davam essencialmente duas explicações para esse fenômeno: liberdade e opulência. Lorde Shaftesbury (c. 1712, p. 129) explicava a "revivescência da pintura" com a "liberdade civil, os estados livres da Itália, como Veneza, Gênova e depois Florença". Se Gibbon tivesse escrito, como planejara, a história de Florença, é provável que a relação entre liberdade e artes tivesse sido um tema central, como o foi em seu famoso Declínio e queda do Império Romano. De qualq uer forma, o livro qu e ele deixou de escrever, ou algo semelhante a ele, foi produzido poucos anos depois pelo banqueiro de Liverpool William Roscoe (veja Hale, 1954, cap. 4). Sua Vida de Lorenzo de'Medici (1795) começa assim: Florença foi notável na história moderna pela freqüência e violên cia de suas dissensões internas, e pela predileção de seus habitantes por toda espécie de ciência e toda produção artística. Por mais discordantes que essas características possam parecer, elas não são difíceis de conciliar... Sempre se soube que a defesa da liberdade expande e fortalece a mente. O tema da liberdade foi ainda mais desenvolvido na History ofltalian Republics (1807-18), do historiador suíço J. C. L. S. de Sismondi. Uma visão comum do Iluminismo era que a liberdade encorajava o comércio, e o comércio encorajava a cultura. Como coloca Charles Burney, o historiador da música: "Todas as artes parecem ter sido companheiras, quiçá produto, do sucesso comercial; e o que se descobre, em geral, é que elas seguiram o mesmo curso... ou seja, se perguntarmos, descobriremos que assim como o comércio, elas apareceram primeiro na Itália, depois nas cidades hanseáticas, em seguida nos Países Baixos" (Burney, 1776-89, vol. 2, p. 584). Os teóricos sociais da Escócia concordam. Adam Ferguson observou que "o progresso das artes plásticas tem, em geral, desempenha do seu papel na história das nações prósperas"; John Millar, de Glasgow, apontou que Florença liderou o caminho nas "manufaturas" assim como nas artes, e Adam Smith planejava escrever um livro sobre a relação entre as artes e ciências e a sociedade em geral, no qual é provável que — assim 41
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PARTE I - O PROBLEM A
como em seu/4 riqueza das nações— as cidades-estados da Itália teriam papel proeminente. 4 Os teóricos escoceses sonhavam com uma ciência da sociedade de linhas newtonianas. N ão é injusto descrever seu modelo de mudan ça cultural como um modelo mecânico. Exatamente ao mesmo tempo, um modelo alternativo, orgân ico, estava sendo criado na Alem anha . J. J. Win ck elm ann deu um passo importante ao substituir as vidas de artistas, à maneira de Vasari, por uma History ofAncient Art (1764), na qual discutia a relação entre arte e clima, arte e sistema político, e assim por diante, a fim de fazer história da arte "sistematicamente inteligível" (Winckelmann, 1764, vol. 1, p. 285s ). J. G. Her der mu it o fez para desenvolver a história da literatura, qu e ele achava crescer naturalmente em ambientes locais particulares. Enquanto os teóricos escoceses dis cut iam as mudanç as culturais em termos do impacto do comércio, Herder via a arte e a sociedade como partes do mesmo todo. "Assim como os homens vivem e pensam, eles também constróem e habi tam." No caso da Itália, ele enfatizou o "espírito" do comércio, da indústria, da competição (Herder, 1784-91, vol. 4, livro 20). 5 Ênfase semelhante na unidade orgânica de determinada cultura pode-se encontrar em Filosofia da história (1837, parte 4, seção 2) do filósofo G. W. E Hegel, que descreveu as artes (tal como a política, lei e religião) como "objetificações" do espírito, o "espírito do tempo". Discutindo o Renascimento, Hegel sugeriu que o florescimento das artes, o reviver do apr endiz ado e a descoberta da América eram três exemplos relacionados de expansão espiritual. 6 Karl Marx também se interessou pelo lugar do Renascimento na história do mundo. Rejeitando a ênfase de Hegel na consciência ("a vida não é determinada pela consciência, mas sim a consciência pela vida"), ele voltou à preocupação setecentista com a relação entre as artes e a economia, embora demonstre mais interesse v'que Ferguson ou mesmo Adam Smith na relação precisa entre a produção material e o que chamou de "produção cultural" (geistigeProduktion). M ar xe Engels (18 46, p. 430) sugeriram que a "superestrutura" cultural era moldada pela "base" econômica, e, no caso do 4
Sobre explicações "sociológicas" setecentistas do Renascimento, veja Weisinger (19 50) .
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Sobre Herder, veja Berlin (19 76 ).
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Para uma crítica vigorosa, mesmo que um tanto exagerada, veja Gom bri ch (19 69). Cf. Podro (1982), cap. 2.
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Os HIST ORIA DORE S: A DESCOBERTA DA HIST ÓRIA SOCIAL E CULT URA L
Renascimento italiano, que "o fato de um indivíduo como Rafael conseguir desenvolver seu talento depende inteiramente da demanda, que, por sua vez, depe nde da divisão do trabal ho e das condições da cult ura hu ma na del a resultante". Uma colocação complem entar, mais sobre "forne cime nto" d o que sobre "demanda" e o papel do indivíduo na história do Renascimen to, foi feita pelo marxista russo Plekhanov (1898, p. 53) quando escreveu que: "Se... Rafael, Michelangelo e Leonardo da Vinci tivessem mo rr id o na infância, a arte italiana teria sido menos perfeita, mas a tendência geral do desenvolvimento no período do Renasciment o teria permanec ido a mes ma . Rafael, Leonardo da Vinci e Michelangelo não criaram essa tendência; eles eram simplesmente seus melhores representantes". Já deve ser óbvio agora que o famoso estudo de Jacob Burckhardt The Civilisation ofthe Renaissance in Italy, publicado em 1860 e ainda influente, pertence a uma longa tradição de tentativas de relacionar cultura e sociedade. Descobrir a Itália foi para Burckhardt, assim como para Wi nckelm ann, u m a das maiores experiências de sua vida. Ele provinha de uma família aristocrata que amava as artes, da Basiléia, que ainda era um a quase cidade-estado quan do ele nasceu em 1818. Ele próprio era uma espécie de "homem universal" que desenhava, tocava piano, e escrevia música e poesia. A Itália do Renascimento foi para ele como que uma versão idealizada do mundo de sua juventude e também uma fuga da sociedade moderna, centralizada, industrial, que ele detestava. Ele próprio, um "i ndivíduo reser vado", via o Renascimento como uma era de individualismo. Nesse sentido, sua interpretação contribuiu para o que viria a ser chamado no século XIX de "mito do Renascimento". 7 Seu "ensaio", como ele dizia, muito deve a seus predecessores. Como Voltaire e Sismondi, ele enfatizava a importância da riqueza e da liberdade das cidades do nor te da Itália para a cult ura d o Renascimento. A abordagem de Burckhardt deve também alguma coisa a Herder, Hegel e talvez a Schopenhauer, a despeito do fato de ele afirmar nã o adotar nenhuma filosofia da história, preferindo estudar o que chamava de "cortes" de uma cultura em determinados momentos do tempo. Ele parti lhava com os filósofos uma pre ocupa ção co m as polaridades de int ern o e externo, subjetivo e objetivo, consciente e inconsciente. Seu estudo da Itália 7
Sobre Jacob Burckhardt, veja Kaegi (194 7-82 ), principalmente o vol. 3. Cf. Baron (1 96 0) , Ghelardi (1991). Sobre o "mito do Renascimento", Bullen (1994).
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do Renascimento se parece com a discussão de Hegel sobre a Grécia antiga, pela ênfase que coloca no crescimento do individualismo e na consciência do estado como "obra de arte". Assim como Herder e Hegel, Burckhardt acreditava que certos períodos, pelo menos, deviam ser considerados como blocos, e em suas Reflections on World History (1906, veja cap. 3 em parti cular) ele analisava as sociedades em termos da interação recíproca de três "poderes": o estado, a cul tur a e a religião. Ao fazê-lo, explici tou seu mé to do em The Civilisation ofthe Renaissance in Italy. Não é preciso ser marxista para notar a ausência em ambos os es tudos de um quarto "poder": a economia. O próprio Burckhardt admitia isso. Escreveu a um amigo mais jovem, 14 anos depois da publicação de seu Renaissance in Italy, que "suas idéias sobre o primeiro desenvolvimento financeiro da Itália co mo funda mento [Grundlage] do Renascimento são extremamente importantes e fecundas. Foi o que sempre faltou às minhas pesquisas". 8 O que faltava a esse estudo, e que seu autor também admite, era uma discussão séria sobre a arte do Renascimento. Burckhardt vin ha colec ionando material sobre os preços das pint uras, e sobre a patrona gem , e esses e outr os papéis foram encontrados depois de sua morte com instruções para que não fossem editados. Seus executores conseguiram imprimir três ensaios tardios sobre o colecionador de arte, o altar e o retrato. Mas esses ensaios, por mais fascinantes que sejam, não preenchem o lapso, 9 assim como também não o preenche o volume sobre á arquite tura da Itália do Rena sci men to (Burckhardt, 1867), apesar de suas observações ocasionais sobre as funções dos edifícios. É possível que o lapso tenha sido deliberado. Embora estivesse interessado na relação entre esses três "poderes", cada um moldando e, por sua vez, sendo moldado pelos outros três, Burckhardt acreditava também que "a conexão da arte com a cultura geral deve ser entendida como solta e ligeira. A arte tem vida própria e história". Esta última observação foi feita por Burckhardt em conversa com seu pupilo Heinrich Wõlfflin, que foi, em certo sentido, seu herdeiro inte lectual. Wõlfflin é quase sempre descrito como partidário de uma história 8
Cart a a Bernhard Kugler, 21 de agosto de 1874.
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Os ensaios foram publicados em Burckhardt (18 98); os manuscrito s inéditos são discutidos na introdução.
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Os HIST ORIAD ORES : A DESCOBERTA DA HIS TÓRI A SOCIAL E CULTU RAL
da arte autônoma (até mesmo isolacionista), mas sua abordagem era mais sutil e um tanto ambivalente. Ele distinguia duas abordagens à inovação nas artes; a abordagem "internalista", com a qual ele é geralmente associado, e a abordagem "externalista", segundo a qual "explicar um estilo... pode significar nada mais que colocá-lo em seu contexto histórico geral e veri ficar se ele fala em ha rm on ia c om os outros órgãos do período" (Wõlfflin, 1888, p. 79). 10 As observações esclarecedoras sobre o contexto histórico que Wõlfflin às vezes produzia (tais como as observações sobre a história social do gesto, adiante, p. 283) são o bastante para que lamentemos a limitação com que ele geralmente restringia suas observações sobre estilo a termos intrínsecos. Como resultado, a herança intelectual de Burckhardt passou não para Wõlfflin, mas para Aby Warburg. A vida de Aby Warburg lembra mais a de um personagem dos ro mances de seu contemporâneo Thomas Mann. Filho mais velho de um banqueiro de Hamburgo, ele rejeitou o mundo dos negócios em prol do mundo acadêmico. Não é de surpreender que fosse fascinado pelos Mediei. Warbu rg não era aluno de Burckhardt, mas em 1892 entregou ao ancião u m ensaio sobre Botticelli, e os generosos comentários sobre esse "belo trabalho" sugerem que Burckhardt achou que esse estudo a respeito dos contatos de um pintor com poetas e humanistas não divergia essencialmente do seu. Era um testemunho, Burckhardt escreveu, do "aprofundamento e multipli cidade" que a pesquisa sobre o Renascimento havia ati ngi do. " Warbur g e ra efetivamente multifacccado. Ele tratava a história da arte como uma parte da história geral da cultura, e não gostava de nenhum tipo de "controle de fronteira" intelectual, conforme dizia. Por outro lado, era fiel à máxima de que Deus é encontrado nos detalhes ("Der Liebe Gottsteckt in Detail"). Para interpretar as pinturas de Botticelli, por exemplo, ele foi aos poemas de Poliziano e à filosofia de Ficino. Os interesses de Warburg estendiam-se à história social e econômica; em sua obra, o conceito da "bourgeoisie" de Florença desempenha papel considerável, e seu amigo, o historiador da
10 Sobre Wõlfflin, veja Antoni (194 0), cap. 5; Podro (198 2), cap. 6, e Holly (19 84). 11 Citado em Kaegi (1933), p. 285. Sobre Warburg, veja especialmente Doren (1931), Bing (196 5); Gombrich (1970), Podro (1982), cap. 7, Maikuma (1985), Bredekamp (1991) e Galitz (1995).
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PARTE I - O PROBLEMA
economia Alfred Doren, dedicou-lhe um estudo sobre a indústria de roupas florentina (Doren, 1901). u A preocupação central de Warburg, no entanto, era com a persistência e transformação da tradição clássica. Para uma história completa e detalhada da arte do Renascimento, foi necessário esperar por Martin Wackernagel. Wackernagel, um historiador de arte da Basiléia, fez um estudo sobre a Florença do período de 1420-1530 e que se concentrou na organização das artes: nos estúdios, nos patronos e no mercado de arte. Em outras palavras, ele focalizou o que (numa escolha de termo bastante infeliz para um livro publicado em 1938) chamou de Lebensraum do artista, o seu mei o, definido como "todo o complexo de material econômico assim como circunstâncias e condições socioculturais". Embora este livro seja um estudo sobre o co nhecimento, a literatura e a música, além das artes visuais e da Itália como um todo, mais do que sobre Florença apenas, é grande a sua dívida para com Wackernagel. ' 3 Nos anos 1930, foi feita outra tentativa para preencher o lapso entre a história social e cultural do Renascimento. Onde Wackernagel fornecia uma história social detalhada ou "sociografia", Alfred von Martin (aluno do marxista húngaro Karl Mannheim) oferecia uma sociologia. Seu ensaio con ciso, elegante, soa como uma mistura de Marx e Burckhardt, com um traço de Ma nn he im e do sociólogo alemão Geo rg Simm el. Co mo Burckha rdt, von Martin preocupa-se com os temas do individualismo e com as origens da modernidade, mas ele coloca muito mais ênfase do que Burckhardt na base econômica do Renascimento e em sua "curva de desenvolvimento" no tempo. O Renascimento de Alfred Von Martin é uma "revolução burguesa". Na primeira parte de seu ensaio, ele mapeia a ascensão do capitalista, que substitui o nobre e o clérigo como líder da sociedade. E a mudança social que sublinha a ascensão da mentalidade racional calculista. Nas partes dois e três, porém, vemos o burguês tornar-se tímido e conservador, e o ideal individualista do entrepeneur ser subs tit uído pelo ideal conform ista do cortesão. 12 Sobre sua amizade com Warburg, veja Doren (19 31) . 13 Sobre Wackernagel, veja a introdução de Alison Luchs para sua tradução do livro de 1938. Para uma monografia sobre o hu ma nism o florentino em linhas semelhant es às de Wackernagel, veja Martines (1963).
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Os HISTORIADO RES: A DESCOBERTA DA HISTÓRIA SOCIAL E CUL TURA L
É fácil criticar esse ensaio po r seu uso decidido de termo s gerais c o m o "homem do Renascimento" (ou mesmo "burguês") ou por suas especulações sobre "a analogia do dinheiro e do intelectualismo" (duas forças poderosas que podem ser aplicadas a qualquer fim) ou entre a democracia e a represen tação de figuras nuas na arte (partindo da idéia de que a nudez é igualitária). Seus defeitos são, em parte, os defeitos do pioneirismo, não contando c o m estudos suficientes da história social da cultura em que basear generalizações. The Sociology ofthe Renaissance (1932) continua, mesmo assim, a ser uma valiosa atualização e complemento a Burckhardt. 14 Outro estudo do Renascimento na tradição de Marx e Mannheim — apesar do fato de seu autor haver estudado com Wõlfflin - é Florentine PaintinganditsSocialBackground (1947) de Frederick Antal. O livro co me ça com u m vivido contras te entre duas Mad onas penduradas lado a lado na National Gallery, em Londres, ambas pintadas entre 1425 e 1426, uma por Masaccio e a outra por Gentile da Fabriano. A de Masaccio é descrita como "direta, sóbria e nítida", enqu anto a de Gentile é "ornamentada", "decora tiva" e "hierática". Antal explica as diferenças pelo fato de as obras serem destinadas a "setores diferentes do público", mais exatamente diferentes classes sociais, com visões de mu ndo diferentes. A "alta classe média", cuja visão de mundo era sóbria, racional e "progressista", preferia as pinturas de Masaccio, enquanto as de Gentile tinham mais apelo para a aristocracia "feudal" conservadora. Antal conclui que o aparecimento de Masaccio n o cenário florentino reflete a ascensão da classe média alta, e qu e ele não teve seguidores porque essa classe foi assimilada à aristocracia. 15 E difícil não admirar essa brilhante aplicação da teoria marxista à história da arte. Com grande economia intelectual, algumas idéias centrais de Mar x são utilizadas para gerar interpretações de arte e sociedade em u m meio específico, assim como em plano geral. Mas Antal fica aberto a duas sérias acusações. A primeira é a de anacronismo, de aplicar à Florença d o século XV termos modernos como "progressista" ou mesmo "classe", sem expressar nenhuma consciência dos problemas envolvidos (alguns dos quais serão discutidos no Capítulo 9). A segunda acusação - pela qual Von Martin 14 A introd ução de W; K. Ferguson à edição de 1963 de The Sociology ofthe Renaissance oferece uma avaliação equilibrada do livro. 15 Para comentários à obra de Antal, veja Meiss (1948) e Renouard (1950).
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deve também ser condenado - é a de circularidade. Como An tal sabe muito bem, um dos patronos de Gentile da Fabriano, Palia Strozzi, era sogro de um dos patronos de Masaccio, Felice Brancacci. Esses dois homens per tenciam a classes sociais diferentes? Antal modifica sua tese argumentando que a classe média alta continha um setor menos progressista que tomava de empréstimo a ideologia da aristocracia. Como distinguimos o setor mais progressista da alta classe média de todo o resto? Olhando as pinturas que eles encomendavam. A crítica mais poderosa à abordagem marxista veio de sir Ernst Gombrich no que era originalmente a resenha de uma história social da arte de Arnold Hauser (1951) (como Antal, ele também um refugiado húnga ro). Gombrich (1963) distingue dois sentidos na expressão "história social da arte". O primeiro sentido ele define como o estudo da arte "enquanto instituição" ou como "relato da transformação das condições materiais em que as obras de arte foram encomendadas e criadas". O segundo sentido de história social da arte, Gombrich o descreve como história social refletida na arte, e dispensada. 16 É realmente perigoso achar que a arte "reflete" a sociedade de maneira direta, mas a frase "arte enquanto instituição" também é ambígua. Pode referir-se ao Lebensraum de Wackernagel; em outra s palavras, ao m undo do ateliê e do patrono, ao que os sociólogos chamam de abordagem "microssocial". Muitos trabalhos de valor sobre a história social da arte do Rena scim ento foram feitos nessa' linha, desde Wackernagel até o próp rio estudo de Gombrich (1966) sobre o patronato dos Mediei, e o estudo de artistas, de Margot e Rudolf Wittk ower (1963) . A história social da literatura italiana foi abordada em linhas semelhantes, seguindo o estudo pioneiro de Cario Dionisotti sobre escritores do Renascimento (1967). Resta um problema: saber se "a mudança das condições materiais em que a arte era encomendada ou criada" deve se limitar ao meio imediato ou estender-se à sociedade como um todo. Evidentemente é esclarecedor considerar a relação entre as pinturas e o patronato do período, mas muitos historiadores gost ariam de ir além e colocar o que os sociólogos cha mam de 16 Recentes abordagens marxistas do Renascimento incluem Bak htin (1978) e Heller (1979) . Abordagens marxistas ou quase marxistas mais sutis da história da arte compreendem Clark (1973) eBarrell (1980).
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O s HISTORIADORES: A DESCOBERTA DA HISTÓRIA SOCIAL E CULTURAL
GENTILE DA FABRIANO: ADORAÇÃO DOS PASTORES (DETALHE)
Galleria Uffizi, Florença. Coleção Mansell/Time Inc./Katz Pictures
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O RENAS CIME NTO ITALIANO
PARTE I - O PROBLEMA
questões "macrossociais" sobre a relação entre o patronato artístico e outras instituições sociais e o estado da economia. Alguns historiadores fizeram efetivamente esse tipo de pergunta sobre o Renascimento italiano e chegaram a respostas bastante diferentes, alguns frisando fatores econômicos, como Robert Lopez, outros frisando a política, como Hans Baron. Lopez, cujo interesse particular é a história econômica de Gênova (sua cidade natal), afirma que os séculos XIV e XV foram um período de recessão econômica na Europa em geral e na Itália em particular. Ele tem plena consciência das dificuldades que essa teoria da recessão cria para uma visão convencional das precondições econômicas do Renascimento. A "superestrutura" parece ficar defasada com a "base". Ele rejeita com fir meza qualquer tentativa de explicar a discrepância sugerindo que a cultura fica atrás da economia. "Atrasos culturais, como todos sabem, são recursos engenhosos e flexíveis para juntar eventos que não podem ser juntados por nenhum outro meio... Pessoalmente, duvido da paternidade de filhos que nasceram duzentos anos depois da morte dos pais ... o Renascimento ... foi condicionada por sua própria economia e não pela economia do passado." O que Lopez faz é virar de ponta-cabeça a posição convencional e propor uma teoria de "tempos difíceis e investimento na cultura". Surpreso com o fato de a Itália medieval ter uma eco nomia florescente e igrejas pequen as, enquanto a França medieval tem grandes catedrais e uma economia menos bem-sucedida, ele formula a hipótese de que as catedrais con sumiam capital e mão de obra que podiam ser'usados no crescimento econômico. Ao con trário, os comerciantes do Renascimento podem ter tido mais tempo para gastar em atividades culturais porque eram menos ocupados no escritório. O valor da cultura "subiu no mesmo momento em que o valor da terra caiu. Seus lucros subiram quando as taxas de interesse comercial declinaram". Não fica claro o quão seriamente, o quão literalmente devemos tomar a noção de "investimento" aqui, e voltaremos ao problema no Capítulo 4. Fica claro, porém, que a teoria da prosperidade da cultura tem agora um sério competidor (Lopez, 1952, 1953). 17 Um a explicação mais política do Renascimento foi formulada po r Hans Baron, estudioso que cresceu durante a República de Weimar e
17 Para críticas a essa teoria, veja Cipolla (1963 -4) e Burke (1978a ). o
Os HISTO RIADO RES: A DESCOBERTA DA HISTÓR IA SOCIAL E CULTURAL
continuou comprometido com os valores republicanos. Seu estudo de Florença e da "crise" dos primeiros tempos do Renascimento italiano (Baron, 1955) observa as importantes mudanças de idéias que ocorreram nos anos em torno de 1400. "Nessa época, a sociedade civil das cidades-estados italianas já existia havia várias gerações e provavelmente tinha já passado o seu auge", eliminando assim qualquer explicação social simples para a mudança econômica. Em vez disso, ele oferece uma explicação política, voltando ao tema tradicional da liberdade, tão caro a Shaftesbury, Roscoe e Sismondi, mas colocando menos ênfase na autoconsciência e oferecen do uma análise íntima de eventos políticos-chave. Baron afirma que, por volta do ano 1400, os florentinos repentinamente tomaram consciência de sua identidade coletiva e das características únicas de sua sociedade. Essa consciência levou-os a se identificar com as grandes repúblicas do mundo antigo, Atenas e Roma, e essa identificação com a Antigüidade levou, por sua vez, a grandes mudanças em sua cultura. Baron explica a ascensão da autoconsciência florentina como uma reação à ameaça à liberdade da ci dade representada pelo governante de Milão, Giangaleazzo Visconti, que fez uma tentativa malsucedida de incorporar Florença ao seu império. Não existe nada melhor para se tomar consciência dos próprios ideais do que ter de lutar por eles. O valor da abordagem de Baron, assim como da de Lopez, está no fato de ela ter se atido à bagagem comum em vez de descartar todos os relatos prévios do Renascimento. A ênfase de Baron nos eventos políticos, por exemplo, não faz nenhum sentido sem algumas considerações das estruturas subjacentes. Por que, por exemplo, Florença resiste a Milão quando outras cidades-estados capitularam? Em um plano mais geral, as abordagens microssocial e macrossocial devem ser consideradas como complementares mais do que contraditórias. Cada uma tem seus próprios perigos e defeitos. A abordagem macrossocial corre o risco daquilo que foi chamado de "Grande Teoria" — muito pouca informação, interpretação demais, enquadramento muito rígido. Essa abor dagem tende a dar a impressão de que "forças sociais" (que assumem vida própria) agem sobre a "cultura" de maneira grosseiramente direta. A a borda gem microssocial, por outro lado, torre o perigo oposto, de hiperempirismo — descrição mais do que análise, fatos excessivos, pouca interpretação (cf. Mills, 1959, caps. 1-3). 51
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Esse parece ser caso para uma abordagem pluralista que tente experi mentar teorias mais amplas, velhas e novas, e entretecer estudos empíricos em uma síntese geral. Fazer isso, e particularmente juntar as abordagens microssocial e macrossocial, é, na verdade, o objetivo deste livro. Sua preo cupação não é, como na sociologia da arte, com generalizações de culturas cruzadas (a não ser as comparações e contrastes oferecidos nas últimas pá ginas). Nem tem um foco tão fechado no particular quanto tendem a ter as monografias históricas. Este livro lida essencialmente com estilos, atitudes, hábitos e estruturas que eram típicos de uma sociedade particular ao longo de algumas gerações — a Itália do século XV e come ço d o século XV I. Varia ções regionais, discutidas no próximo capítulo, ficarão como pano de fundo. A realização cultural veneziana do período, por exemplo, há muito recebe consideravelmente menos atenção do que lhe é devido, em parte por razões acidentais. No século XVI, um veneziano (talvez o aristocrata Marcantonio Michiel) coletou material sobre ávida de pintores, mas esse Vasari venezia no não completou sua empresa, muito menos a publicou, roubando assim posteridade do material necessário para refutar a tendenciosidade toscana de Vasari. U m equivalente ao livro de Wack erna gel sobre Florença, plane jado no começo deste século, também ficou inédito e incompleto. Só recente mente estudos da história social das artes em Veneza sobre esse período começaram a aparecer em número suficiente para possibilitar comparações sérias e contrastes com Florença.18 Tentei evitar atribuir aos ftorentinos mais notoriedade do que mere cem; na verdade, apenas um quarto dos artistas e escritores discutidos no próximo capítulo é da Toscana. 19 O objetivo primordial deste livro, porém, não é tanto compensar qualquer desequilíbrio regional ou mesmo explorar as diferenças culturais ent re partes da Itália, mas sim apresentar um pa no ra ma geral em relação ao qual se possa avaliar a variação regional. De maneira se melhante, a discussão da mudança interna do período (dentro de cada seção e no Capítulo 10) foi relativamente abreviada, a fim de liberar o máximo
18 Veja Wyrobisz (196 5), Logan (19 72), Howard (197 5), Sereis (197 8), Rosand (1982 ), Foscari eTaíuri (1983), Tafuri (1985), Goffen (1986), Humfrey e MacKenney (1986), King (1986), Huse e Wolters (1990) e Feldman (1995). 19 Os artistas estudados foram rerirados, como se explica no Apêndice, da lisra organizada po r região sobre o Renascimento italiano, encontrada na Encyclopitfdia of "WorldAn.
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Os HIS TORI ADO RES: A DESCOBERTA DA HIS TÓRI A SOCIAL E CULTURAL
de espaço para a descrição e análise de estruturas, para explicar como aquilo que pode ser chamado de "sistema de arte" funcionava e de quais maneiras isso estava relacionado a outras atividades na sociedade. Em outras palavras, pluralista como é, este estudo não pretende oferecer todas as interpretações sociais possíveis do Renascimento. De qualquer forma, a abordagem social é apenas uma entre a variedade de trilhas possíveis para as artes.
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PARTE II AS ARTES EM SEU MEIO
3 ARTISTAS E ESCRITORES =*as3eC55to
RECRUTAMENTO
amos começar presumindo que a habilidade artística e outras aptidões criativas são distribuídas ao acaso entre a população. Em condições de oportunidade perfeita, uma elite cultural, isto é, as pessoas cujas habilidades criativas foram reconhecidas pela sociedade, constituiria sob todos os outros aspectos uma amostra ao acaso da população. Na prática, isso nunca acontece. Toda sociedade erige obstáculos à expressão da cria tividade de alguns grupos, e a Itália do Renascimento não foi exceção. Os 600 pintores, escultores, arquitetos, humanistas, escritores, "compositores" e "cientistas" estudados neste capítulo (e descritos, por questão de simplici dade como "artistas", "escritores" ou "elite criativa") são de muitas maneiras atípicos na população italiana.' Comecemos com o mais espetacular exemplo de tendenciosidade. Uma "variável" na lista de artistas e escritores narece ter sido quase invariá vel: seu sexo. Apenas três dos 600 são mulheres: Vittoria Colonna, Verônica Gambara e Tullia d'Aragona. Todas são poetas, e do fim do período. Essa
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Para a composição deste gru po, veja o Apêndice. Sobre os problemas do mét odo prosopogr áfico, Burke (1993). A escolha dos 600 é necessariamente bastante arbitrária, embora não mais arbi trária do que a escolha dos indivíduos citados em outros estudos do Renascimento. Os termos "arquiteto", "composi tor" e "cientista" são convenientes, mas problem ático s. A emergência do arquiteto, em oposição ao mestre construtor, estava ocorrendo nesse exato período (Ettlinger, 1977). Embora a palavra compositore existisse nesse período, homens que chamamos de "compo sitores" eram mais comumente descritos como "músicos". O termo "cientista" é um conveniente anacronismo para evitar a circunlocução "escritor de física, medicina, etc". Quanto a artista, embora Michelangelo use o termo no sentido moderno, no começo do século XV ele significava um estudante universitário das sete artes liberais (p. 70 adiante). N ão serão fornecidas referências para informações sobre artistas provenientes de Thieme-Becker (1907-50), sobre humanistas de Cosenza (1952) ou sobre músicos de Groves (1980). Não serão dados os números de página de Vasari, uma vez que as biografias são curtas e as edições muitas.
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tendência, evidentemente, não é só italiana ou confinada a esse período, quer seja explicada psicologicamente (criatividade masculina como substituto para inabilidade de gerar filhos) quer sociologicamente (habilidades femi ninas suprimidas numa sociedade dominada por homens). É interessante descobrir que quando os obstáculos sociais são um pouco menos pesados que o usual aparecem mulheres artistas e escritoras. Por exemplo, as filhas de artistas pintam às vezes. A filha de Tintoretto, Marietta, é conhecida como retratista, embora nenhuma obra seguramente dela tenha sobrevi vido. 2 Vasari nos conta que Uccello tinha uma irmã, Antonia, que "sabia desenhar" e torno u-s e freira carmelita. As freiras às vezes trabalhavam co mo miniaturistas, como Caterina da Bolonha, mais conhecida como santa. Havia também uma escultora ativa em Bolonha, Properzia de Rossi, cuja vida foi escrita por Vasari, com apropriadas referências a dotadas mulheres da Antigüidade, como Camilla e Safo. 3 Somente no final do século XYI pintoras (particularmente Sofonisba Anguissciola e Lavinia Fontana) tor nam-se mais visíveis, quando ficaram mais independentes. No caso de mulheres escritoras, é fácil estender a lista para incluir as poetas Gaspara Stampa, Laura Terracina e Laura Battiferri. Todas seis mulheres floresceram no final de nosso per íodo, por volta da me ta de d o século XYI. Sua emergência pode muito bem ser resultado do aumento de import ânci a da literat ura italiana (em oposição à latina) e da aber tura de sociedades literárias. Pesquisa recente revelou também um pequeno grupo de mulheres interessadas no humanismo. As mais importantes dessas mulhe res cultas eram Laura Cer eta, Cassandra Fedele, Isotta Nogaro la e Alessandra delia Scala. Elas atraíram alguma atenção em seu tempo, mas tiveram tam bém de enfrentar a ridicularização dos homens e, seja porque se casaram, seja porque se tornaram freiras, em geral seus estudos foram encerrados pre mat ura men te (Pesenti, 1925; King , 1976; Jardi ne, 19 83, 1985 ). Mesmo entre homens adultos, porém, a elite criativa está longe de ser uma amostra ao acaso. Ela é, por exemplo, tendenciosa geograficamente. Se dividirmos a Itália em sete regiões, descobriremos que cerca de 26% da elite vinha da Toscana, 23% da Vêneto, 18% dos Estados da Igreja, 11% 2
Tietze- Conrat (1934) tenta algumas identificações.
3
King (19 76) , Kelly (1977 ), Greer (1979), Jardine (19 83, 198 5), Jordan (1990), MigieleSchies ari (1991), Niccoli (1991), Benson (1992) ejacobs (1997).
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ARTISTAS E ESCRITORES
da Lombardia, 7% do sul da Itália, 1,5% do Piemontee 1% da Ligaria. Outros 7 % vinham de fora da Itália (deixando 5,5% desconhecidos). Se compararmos esses números com aqueles das populações dessas sete regiões, descobrimos que quatro regiões (Toscana, Vêneto, Estados da Igreja e Lombardia, nessa ordem) produziram mais que a sua quota de artistas e escritores, enquanto outras três, do Piemonte à Sicília, eram culturalmente subdesenvolvidas.4 Esses critérios revelam também que a Toscana fica bem à frente das outras. Outra variação regional marcante diz respeito à proporção da elite que praticava as artes visuais. Na Toscana, no Vêneto, na Lombardia, as artes visuais são dominantes, enquanto em Gênova e no sul da Itália, os escritores são mais importantes.5 Em outras palavras, a região em que nasce um indivíduo (h om em , ocasionalmente mulher) parece afetar não só as oportunidades de o indivíduo entrar para a elite criativa, mas também a parte dela em que ele entra. As chances de se tornar um artista ou escritor de sucesso (ou, pelo menos, de entrar para a seleção dos 600) eram também afetadas pelo ta manho da comunidade em que um indivíduo nascia. Cerca de 13% dos italianos que viviam em cidades de 10. 000 habitantes ou mais formavam o reservatório do qual saía pelo menos 60% da elite. A pobreza da contribuição de Roma merece ênfase. Apenas quatro de nossos artistas e escritores nasceram em Roma: o humanista Lorenzo Valia, o arquiteto-pintor Giulio Pippi ("Giulio Romano"), o escultor Gian Cris to foro Roma no e o pin tor Antoniazzo Rom ano . É verdade que Ro m a não passava da oitava cidade da Itália nesse período, mas Ferrara, que era menor, produziu 15 membros da elite, e mesmo a minúscula Urbino pro duziu sete.6 A importância de Roma no Renascimento é como centro de patronato que atraía indivíduos criativos de outras partes da Itália.
4
AToscana tinha 10 % da população e 26 % da elite; o Vêneto, 20 % e 23%; os Estados da Igreja, 15%e 18%; a Lombardia, 10% e 1 1 % . Por outro lado, o sul da Itália tinha 30% da população e 7% da elite; o Piemonte, 10% e 1,5%; a Ligúria, 5% e 1%. Para estatísticas só de escritores, veja Bec (1983), p. 247.
5
Toscana, 60 % visual (95 para 62); Vêneto, 55% (75 para 62); Lombardia, 70 % (45 para 19) ; sul da Itália, 58% não visual (24 para 17); enquanto os genoveses tinham quatro humanistas para um artista. #
6
Urbino tinha uma população de menos de 5.000 habitantes, mas que incluía o historiador Polidore Vergil, o matemático Co mmandi no, os compositores M. A. Cavazzoni e seu filho Girolamo, e os pintores Genga, Santi e Rafael. O arquiteto Bramante nasceu perto.
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Não é de se estranhar que escultores e arquitetos tendessem a vir de regiões em que a pedra era abundante e adequada à escultura e à constru ção. Na Toscana, Isaia da Pisa vinha realmente de Pisa, que ficava perto das minas de mármore branco da costa ocidental, enquanto quatro importan tes escultores (Desiderio da Settignano, Antônio e Bernardo Rossellino, e Bartolommeo Ammannati), todos nasceram em Settignano, uma aldeia perto de Florença, que tinha importantes pedreiras. Michelangelo foi mandado para lá para ser cuidado pela esposa de um cortador de pedra, e mais tarde fazia piada dizendo que havia mamado seu amor pela escultura no peito da ama de leite. A Lombardia, com 10% da elite, tinha 22% de escultores e 25% de arquitetos, assim como boa parte da melhor pedra. Domenico Gaggini e Pietro Lombardo, fundadores de dinastias inteiras de escultores e arquitetos, vinham ambos da área em torno do lago Lugano. Uma terceira região rica em escultores e arquitetos, bem como em pedras, era a Dalmácia, fora da fronteira da Itália, mas não distante e com laços econômicos com Veneza em particular. Luciano Laurana, arquiteto, e Francesco Laurana, escultor, vinham ambos, muito provavelmente, da cidade dalmácia La Vrana, enquanto o famoso escultor Ivan Duknovic (Giovanni Dalmata) vinha de Trogir e o arquiteto-escultor Juraj Dalmatinac era de Sibenik. Esses dalmácios são um importante lembrete da significação dos ar tistas estrangeiros e escritores que trabalharam na Itália, 41 deles no total. Vinte e um músicos, a maioria flamenga como Guillaume Dufay, Josquin des Près, Heinrich Isaak e Adriaan Willaert (Bridgman, 1964, cap. 7). Havia alguns humanistas gregos, principalmente Janos Argyropoulos, Georgios Gemistos Plethon e o cardeal Bessarion. Havia poucos espanhóis, como o poeta Benedetto Gareth de Barcelona, o pintor Jacomart Baçó de Valência, e o compositor Ramos de Pareja. Alguns dos mais significativas artistas e escritores da Itália eram "es trangeiros" em algum sentido; isto é, nascidos fora da cidade em que reali zaram a maior parte de sua obra. O hum an ist a Leonar do Bruni, famoso p or seu elogio da cidade de Florença, era de Arezzo; o filósofo Ficino, de Figline sobre o Valdarno; Leonardo da Vinci, de Vinci, uma aldeia da Toscana; o humanista Poliziano, de Montepulciano. Giorgio Merula, Giorgio Valia e Marcantonio Sabellico eram três humanistas não-venezianos que passaram tempo considerável em Veneza. Os famosos pintores venezianos não eram de fato de Veneza em si; Giorgione nasceu na pequena cidade de Castelfranco, 0
ARTISTAS E ESCRITORES
Ticiano em Pieve di Cadore. É possível que, como forasteiros, eles fossem mais livres das pressões das tradições culturais locais e, por isso, achassem mais fácil inovar. A elite criativa parece ter sido influenciada tanto social como geogra ficamente. É preciso ser cauteloso, por que a ocu pação do pai é des con hecida em 57% do grupo. Da mesma forma, os restantes 43% tendem a vir de um meio social bastante restrito. A maior parte da popu lação italiana dessa épo ca era composta de camponeses ou trabalhadores agrícolas, mas apenas sete membros da elite tinham, sabidamente, pais dessa classe: dois humanistas, Bartolommeo delia Scala e Giovanni Campano; um engenheiro-escultor, Mariano Taccola; e quatro pintores: Fra Angélico, Andréa dei Castagno, And réa Sansovino e Domen ico Beccafumi. Dos artistas e escritores restantes, 114 eram filhos de artesãos e donos de ateliês, 84 eram nobres, e 48 filhos de comerciantes e homens de profissão. De fato, os artistas tendiam a ser filhos de artesãos e donos de ateliês, enquanto os escritores tendiam a ser filhos de nobres e profissionais liberais; o contraste é dramático. 7 Uma vez que 96 artistas vinham de famílias de artesãos ou donos de ateliê, pode valer a pena tentar subdividir esse grupo. Resulta que quanto mais próxima é uma atividade da pintura ou da escultura, maior a chance de o filho desse artesão se tornar um artista. Em 26 casos não havia conexão com as artes; o pai era alfaiate, por exemplo, ou vendedor de carne de aves. Em 34 casos, havia uma conexão indireta com as artes; o pai era carpinteiro, pedreiro, cortador de pedra e assim por diante. Em 36 casos, o artista era filho de artista, como Rafael, por exemplo. É claro que as artes ficavam nas famílias. A família Bellini de Veneza incluía o pai, Jacopo; seus filhos mais famosos, Gentile e Giovanni; e o genro, Mantegna. A dinastia Lombardo já foi mencionada; o fundador, Pietro , seus filhos TuUio 1 e Antônio I, e seus descendentes. No caso dos Solari, escultores em Milão e outras partes, havia pelo menos cinco gerações de artistas, inclusive quatro membros da elite criativa.
7
Os pais conhe cidos de pintores, escultores, e arquit etos com preend em 96 artesões e dono s de ateliês, comparados a 40 nobres, profissionais liberais ou comerciantes. Os pais conhecidos de escritores, humanistas e cientistas incluem sete artesãos e donos de ateliê comparados a 95 nobres, profissionais liberais e comerciantes. Cf. Bec (1983), pp. 248-9.
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As ARTES EM SEU M E I O
O mero número dessas famílias de artistas merece ênfase. Pense em um artista do Renascimento italiano; as chances são quase 50% de ele ter parentes praticando as artes. 8 Masaccio, por exemplo: seu irmão Giovanni era pintor, e Giovanni teve dois filhos, um neto e um bisneto que eram também pintores. Ticiano tinha um irmão e um filho artistas. Tintoretto tinha dois filhos artistas, além da filha, Marietta. Qual é o significado dessas dinastias artísticas? O cientista vitoriano Francis Galton (1869) cita alguns exemplos para fundamentar sua posição sobre a importância do "gênio hereditário". Porém uma explicação socioló gica é pelo menos tão plausível quanto uma explicação biológica. Na Itália do Renascimento, a pintura e a escultura eram negócios de família, assim como uma quitanda ou uma tecelagem. Há provas a sugerir que alguns pais de artistas esperavam que seus filhos seguissem sua carreira; pelo menos dois deles colocaram em seus filhos nomes de artistas famosos da Antigüidade. O pintor Sodoma chamou seu filho de "Apeles"; o menino morreu cedo. O arquiteto Vincenzo Seregni, também esperançoso, chamou seu filho de "Vitrúvio"; o menino sobreviveu e veio a ser arquiteto como o pai. Os regulamentos das guildas encorajavam os negócios de família reduzindo as taxas de adesão para os parentes dos mestres. Os estatutos da guilda dos pintores de Pádua, por exemplo, determinavam que um aprendiz devia pagar duas liras para entrar para a guilda, a menos que fosse filho, irmão, sobrinho ou neto de um mestre, em cujo caso o preço caía para a metade. Ao mestre era também permitido tomar um parente como aprendiz, sem pagar taxa. (Gaye, 1839-40, vol. 2, p. 43s). O contraste entre as artes visuais de um lado e a literatura e o conhecimento de outro sustenta uma explicação mais sociológica do que biológica para as dinastias artísticas. Sabe-se que quase metade dos artistas da elite criativa tinha parentes artistas. No caso da literatura e do conhecimentxvporém, que não era organizado em linhas familiares, a proporção cai para pouco mais de um quarto. 9 A diferença entre os dois grupos indica o poder das forças sociais. A importância desses dados sobre as origens geográfica e social dos artistas e escritores é que eles ajudam a explicar por qu e as artes floresceram
8
Cerca de 48 % dos artistas da elite criativa tin ham , sabi damen te, parentes artistas.
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Os números exatos são 48% e 27%, respectivamente.
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na Itália. É pouco provável que forças sociais possam produzir grandes ar tistas, mas é plausível sugerir que obstáculos sociais possam atrapalhá-los. Se for esse o caso, conclui-se que a arte e a literatura florescem nos lugares e períodos em que home ns e mulheres capazes são menos frustrados. N a Europa do começo do modernismo, incluindo a Itália, homens talentosos enfrentavam dois grandes obstáculos, colocados em pontas opostas da escala social e respectivamente discriminantes contra os filhos capazes de nobres e camponeses. Em primeiro lugar, um filho talentoso, mas bem-nascido, podia ser impedido de se tornar pintor ou escultor porque seus pais consideravam essas ocupações manuais ou "mecânicas" indignas dele. Em suas vidas de artistas, Vasari conta diversas histórias de oposição paterna. Por exemplo, diz que quando o pai de Brunelleschi descobriu que o jovem Filippo tinha inclinações artísticas, ficou "muito insatisfeito" porque desejava que o me nino se tornasse ou um notário como ele próprio ou um médico como seu bisavô. 10 Descobrimos também que a família de Baldovinetti desde muito tempo era de comerciantes e que o jovem Alesso interessou-se por arte "mais ou menos contra a von tade do pai, que gostaria que ele tivesse entra do para o negócio". No caso de Michelangelo, filho de um aristocrata, Vasari comenta que o pai "provavelmente" achava que o interesse de seu filho por arte era indigno de uma família antiga; mas outro aluno de Michelangelo dizia que o pai e os tios detestavam arte e achavam vergonhoso que seu menino a praticasse (Condivi, 1964, p. 24). No outro extremo da escala social, era difícil para os filhos de cam poneses se tornar artistas e escritores porque não tinham facilidades para adquirir o treino necessário, se é que realmente sabiam que tais ocupações existiam. Scala, o humanista, era filho de um moleiro, mas moleiros eram relativamente abastados. O pintor Fra Angélico e o humanista Giovanni Antônio Campano galgaram a tradicional escada para os filhos de pobres: entraram para a Igreja.11 De quatro filhos de camponeses que se tornaram artistas, contam-se histórias que soam como folclore. Ficamos sabendo que o grande pintor 10 No en tanto, a vida de Brunelleschi atribuída a Manet ti e escrita cerca de 60 anos mais perto d o s fatos registra que o pai de Filippo não fez objeção, "pois era um homem de discernimento". 11 Sobre Campa no, veja D'Am ico (1983), pp. 14-15.
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do século XIV, Giotto, colocado a cuidar de carneiros, desenhava com uma pedra numa rocha, quando foi descoberto pelo artista Cimabue, que pas sava ali por acaso. 12 No caso de Andréa dei Castagno, conta-se que "ele foi tirado do pastoreio por um cidadão florentino que o encontrou desenhando uma ovelha numa rocha, e o levou para Florença" (Frey, 1892, pp. 21-2). Vasari acrescenta - talvez para agradar ao próprio patrono Mediei - que esse cidadão era membro da família Mediei. Ele conta história similar sobre Domenico Beccafumi, que foi visto por um dono de terra "desenhando com um bastão na areia de um riacho enquanto cuidava das ovelhas" e levado para Siena, e conta também de Andréa Sansovino, que "cuidava de animais como Giotto, desenhando na areia e no chão os animais de que cuidava", até ser também descoberto e levado para Florença para receber treinamento. Essas reelaborações do velho mito do nascimento e infância do herói não precisam ser tomadas muito literalmente. O que elas ilus tram são percepções contemporâneas do menino pobre com talento. 13 No entanto, algo quase tão dramático deve ter ocorrido com esses meninos para se tornarem artistas, e no caso do arquiteto Palladio, a vida parece ter imitado a arte. Existem provas documentais de que seu pai, um homem pobre, colocou o filho como aprendiz de um cortador de pedra em Pádua. O menino fugiu para Vicenza, onde seus dons foram notados pelo nobre humanista Gian Giorgio Trissino, em cuja casa estava trabalhando (Puppi, 1975, cap. 1). Ao contrário dos filhos dos nobres e camponeses, os filhos de artesãos não corriam risco tão alto de desencorajamento e frustração, e muitos deles estariam acostumados a pensar de maneira plástica desde a infância, tendo observado seus pais trabalhar. Parece impossível escapar da conclusão de que, para as artes visuais florescerem nesse período, era preciso uma concentração de artesãos, em outras palavras,,-'um ambiente urbano. Nos séculos XV e XVI, as regiões mais altamente urbanizadas da Europa estavam na Itália e nos Países Baixos, e essas foram de fato as regiões de onde veio a maioria dos artistas (sobre os Países Baixos, veja o Capítulo 10).
12 A história é conta da por Ghibe rti (19 47), p. 32 , repetida por Vasari. 13 Para uma boa análise desse tipo de história, veja Kris e Kurz (193 4), cap. 2. Cf. Barolsky (1991).
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ARTISTAS E ESCRITORES
UM BUSTO DE FILIPPO BRUNELLESCHI, CATEDRAL DE FLORENÇA Coleção Mansell/Time Inc./Katz Piaures
O ambiente mais favorável para que artistas crescessem parece ter sido uma cidade orientada para a produção artesã-industrial, como Florença, mais do que para o comércio ou serviços, como Nápoles e Roma. Só quando Veneza passou do comércio para a indústria, no final do século XV, foi que a arte veneziana alcançou a de Florença. A predominância de filhos de nobres e profissionais na literatura, no humanismo e na ciência não é difícil explicar. Uma educação universitári a era muito mais cara do que ser colocado como aprendiz. Parece que era tão difícil para um filho de artesão tornar-se escritor, humanista ou cientista
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quanto para um filho de camponês tornar-se artista. Existem cinco casos conhecidos. O humanista Guarino de Verona era filho de um ferreiro; o médico Michele Savonarola (pai do frade mais famoso) era filho de um tecelão; o poeta Burchiello, filho de um carpinteiro; enquanto os escritores profissionais Pietro Are tin o e Antonfra ncesc o Do ni eram filhos de u m fabricante de sapatos e de um fabricante de tesouras, respectivamente. Em outras palavras, do ponto de vista social a elite criativa não era um grupo, mas dois, um grupo visual recrutado na maioria entre artesãos e um grupo literário recrutado nas classes superiores (os compositores, cujas origens sociais raramente são conhecidas, eram, de qualquer forma, quase sempre estrangeiros). No e nt an to, os maiores inovadores das artes visuais eram muitas vezes atípicos do grupo em relação à sua origem social. Brunelleschi, Masaccio e Leonardo eram todos filhos de notários, enquanto Michelangelo era filho de um aristocrata. Socialmente, assim como geograficamente, eram os forasteiros, aqueles com menos razão para se identificar com as tradições locais de determinada atividade, que fizeram as maiores contribuições às novas tendências. FORMAÇÃO A formação, assim como o recrutamento, sugere que artistas e escritores pertenciam a duas diferentes culturas, a cultura do ateliê e a da universidade. O pintor Cario da Milano é descrito em um documento como "doutor em artes", enquanto outro pintor, Giulio Campagnola, era pajem na corte de Ferrara; mas na esmagadora maioria de casos, pintores e escultores eram treinados, assim como outros artesãos, como aprendizes. No início de nosso período, o processo de aprendizado era descrito assim: Começar como menino de ateliê, estudando por um ano, para adquirir prática no desenho em painel pequeno; depois, servir no ateliê sob orientação de algum mestre, aprender como trabalhar em todos os ramos que pertencem à nossa profissão; e ali ficar e começar o trabalho de cores; e aprender a ferver as colas, e moer os gessos [o pó branco usado em pintura]; e obter experiência gessando anconas [painéis com moldes], e modelar e raspar as 66
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moldagens; dourar e estampar; durante o espaço de bons seis anos. Depois ganhar experiência em pintura, embelezamento com mordentes, fazer tecidos de ouro, ganhar prática no trabalho na parede, durante mais seis anos, desenhando todo o tempo, nunca saindo, seja em feriados seja em dias de trabalho. M Treze anos de trei namento é um longo tempo, e o conselho visa, prova velment e, à perfeição. O s estatutos da guilda de pintores de Veneza exigiam um aprendizado mínimo de apenas cinco anos, seguidos de dois anos como jornaleiro, antes de o candidato poder submeter sua "obra-prima" e torna r-se mestre pintor com direito a abrir seu próprio ateliê. Dos pintores se exigia que desempenhassem ampla variedade de tarefas em uma variedade de meios (painéis de madeira, telas, pergaminho, gesso, e até mesmo tecido, vidro e ferro), e não é surpreendente descobrir que quase sempre começavam cedo. Andréa dei Sarto tinha sete anos quando foi ser aprendiz. Ticiano tinha nove, Mantegna e Sodoma dez. Paolo Uccello já era um dos meninos do ateliê de Ghiberti quando tinha 11. Michelangelo tinha 13 anos quando foi ser aprendiz de Ghirlandai o, e Palladio tinha a mesma idade qua ndo co me ço u a trabalhar como escultor de pedra. O trabalho infantil era bastante comum na Europa do começo da Idade Moderna. De um ponto de vista contem porâneo, Botticelli e Leonardo começaram um pouco tarde, pois Botticelli ainda estava na escola com 13 anos, enquanto Leonardo só foi ser aprendiz de Verrocchio com 14 ou 15 anos. Artistas não tinham tempo para passar mui tos anos na escola e a maioria deles provavelmente não apr endeu ma is do que um pouco de leitura e escrita. A aritmética, ensinada na chamada "escola do ábaco" (Goldthwaite, 1972), era considerada matéria avançada que levava a uma carreira comercial. Brunelleschi, Luca delia Robbia, Bramant e e Leonardo eram provavelme nte excepcionais entre os artistas por terem freqüentado escolas desse tipo. Os aprendizes geralmente faziam parte da família do mestre. As ve zes, o mestre era pago para fornecer alimentação, alojamento e instrução; o pai de Sodoma pagou a considerável soma de 50 ducados por sete anos de aprendizado (sobre o valor de compra do ducado, veja p. 260-1, adiante). 14 Cennin i, // libro delTarte, p. 65. Cf. Cole (1983), especialmente cap. 2; sobre Florença, veja Wackernagel (1938), cap. 12, e A. Thomas (1995); sobre Veneza, vejaTietze (1939).
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Em outros exemplos, porém, era o mestre quem pagava ao aprendiz, quantias mais altas à medida que o menino ia ficando mais capacitado. O contrato de Michelangelo com o ateliê de Ghirlandaio estipulava que ele devia receber seis florins no primeiro ano, oito no segundo e dez no terceiro. O fato de aprendizes às vezes tomarem o nome do mestre, como no Japão do século XVIII, era um lembrete da importância do mestre que formou o artista. Jacopo Sansovino e Domenico Campagnola eram não filhos, mas alunos de Andréa Sansovino e Giulio Campagnola. Piero di Cosimo assumiu o nome de seu mestre Cosimo Rosselli. De fato, é possível identificar cadeias inteiras de artistas, cada um aluno do anterior. Bicci di Lorenzo, por exemplo, ensinou seu filho Neri di Bicci, que ensinou Cosimo Rosselli, que ensinou Piero di Cosimo, que ensinou Andréa dei Sarto, que ensinou Pontormo, que ensinou Bronzino. As diferenças de estilo individual nesses exemplos de mo ns tr a que o sistema florentino de transmissão cultural estava longe de produzir uma arte tradicional. Gentile da Fabriano ensinou Jacopo Bellini, que ensinou seus filhos Gentile (batizado em honra de seu velho mestre) e Giovanni (que tinha um grande número de alunos, dentre os quais tradicionalmente se inclui Giorgione e Ticiano). Uns poucos ateliês parecem ter sido de central importância para a arte do período: o de Lorenzo Ghiberti, por exemplo, entre cujos alunos se encontram Donatello, Michelozzo, Uccello, Antônio Pollaiuolo, e pos sivelmente Masolino, e o de Verrocchio, que incluía não apenas Leonardo da Vinci, mas também Botticinl, Domenico Ghirlandaio, Lorenzo di Credi e Perugino. Mas o ateliê mais importante de todo o período era provavel mente o de Rafael, no qual entre alunos e assistentes se encontravam Giulio Romano, Gianfrancesco Penni, Polidoro da Caravaggio, Perino dei Vaga, e Lorenzo Lotti (não confundir com Lorenzo Lotto). Parte importante do treinarnento dos pintores era o estudo e a cópia da coleção de desenhos do ateliê, que servia para dar unidade ao estilo do ateliê e manter suas tradições. Um humanista descreveu o processo no começo do século XV: "Quando os aprendizes vão ser instruídos pelo mestre... os pintores seguem a prática de lhes dar um certo número de bons desenhos e quadros como modelos para sua arte." 15 Esses desenhos faziam 15 Gasparin o Barzizza, citado por Baxandall (1965) , p. 183n. Os desenhos do período foram estudados por Ames-Lewis (1981, cap. 4) e Ames-Lewis e Wright (1983).
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parte importante do capital de um pintor e poderiam receber menção especial em testamentos, como aconteceu no de Cosimo Tura, de Ferrara, em 1471. Os desenhos podiam ser identificados em código, porque eram considerados segredo da profissão, como no caso de um caderno do estúdio de Ghiberti (Prager e Scaglia, 1970, p. 65s). E possível que, à medida que um individualismo de estilo deliberado foi sendo mais valorizado (veja acima, p. 34), os desenhos do ateliê tenham perdido importância. Vasari nos conta que o mestre de Beccafumi o ensinou por meio de "desenhos de alguns grandes pintores que ele tinha para seu uso, como é prática de alguns mestres não habilidosos no desenho", comentário que sugere que a prática estava morrendo. Para humanistas e cientistas (e em menor medida, para escritores, pois "escritor" era papel desempenhado por amadores), o equivalente ao aprendizado era a educação universitária. Havia 13 universidades na Itália no começo do século XV: Bolonha, Ferrara, Florença, Nápoles, Pádua, Pavia, Perúgia, Piacenza, Pisa, Roma, Salerno, Siena e Turim. Dessas universida des, a mais impo rt ante nesse períod o era a de Pádua, on de se edu caram 52 membros da elite, 17 deles entre 1500 e 1520. O crescimento da universi dade foi estimulado pelo governo veneziano, em cujo território fica Pádua. Eles aumentaram os salários dos professores, proibiram os venezianos de freqüentar outras universidades, e tornaram um período de estudo em Pádua requisito para cargos públicos. Era conveniente ter uma universidade fora da capital. As acomodações eram baratas, e a prosperidade que os estudantes traziam com eles ajudava a assegurar a lealdade de uma cidade sujeitada. Pádua atraía também estudantes de outras regiões; dos 52 humanistas e escritores que freqüentaram a universidade, cerca da metade havia nascido fora do Vêneto. Est uda ntes de matérias científicas ("filosofia natural ", co mo era chama da, e medicina) eram particu larment e atraídos por Pádu a. De 53 "cientistas" da elite criativa, pelo menos 18 estudaram lá. 16 A segunda universidade mais popular entre a elite era a de Bolonha, com 26 estudantes. Universidade mais antiga da Itália, Bolonha passara por
16 Desde que este livro foi publica do pela primeira vez, houve algo como um boom na história das universidades na Itália e em outros países, coma obra de Verde (1973-7), Schmitt (1975), Denley (1981, 1983) e Kagan (1986). Sobre Pádua, veja o ensaio de Desroussilles em Arnaldi e Pastore Stocchi (1981) e Giard (1983-5).
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um declínio, mas estava renascendo no século XV, Em seguida, vinha a de Ferrara, com 12 membros da elite. Era famosa internacionalmente por seus preços baixos; um estudante alemão do século XVI escreveu que Ferrara era normalmente conhecida como "refúgio do homem pobre [miserorum refugium]" (Rashdall, 1936, vol. 2, p. 54). Pavia (que servia o estado de Mil ão assim como Pádua servia Veneza), Pisa (que servia Florença), Siena, Perúgia e Roma, cada uma delas responde por cerca de meia dúzia de membros da elite. E um prazer acrescentar que dois deles (John Hothby e Paul de Veneza) eram homens de Oxford. Não se sabe o que estudaram. Os estudantes tendiam a ir para a universidade mais jovens do que hoje; o historiador Francesco Guicciardini é um caso bastante típico, foi para Ferrara quando tinha 16 anos. Eles começavam a estudar "artes", isto é, as sete artes liberais, divididas nas mais elementares: gramática, lógica e retórica (o trivium), e nas mais avançadas: arit mética, geometri a, músic a e astronomia (o quadriviuni), e prosseguiam para um dos três níveis mais altos: teologia, lei ou medicina. O currículo era o tradicional da Idade Média, e oficialmente nada mudou durante o período. Porém, é bem sabido que o que era ensinado na universidade — e muito menos o que era estudado — nem sempre corresponde ao que está no currículo. Recentes pesquisas nas universidades britânicas dos séculos XVI e XVII, baseadas em notas toma das pelos estudantes, demonstraram que certo número de matérias novas, inclusive história, havia sido introduzido extraoficialmente (Kearney, 1970). Nenhum estudo equivalente foíainda feito nas universidades italianas, mas pode-se suspeitar que história, poesia e ética (três das "humanidades" que estavam entre as sete artes liberais) eram ao menos tão importantes na prática quanto qualquer parte do quadrivium (Denley, 1983 ). Sob certos aspectos, os estudantes universitários pareciam aprendizes. O debate por meio do qual o formando se tornava "mestre em artes" era equivalente à "obra-prima" do artesão. Um mestre em artes tinha o direito de ensinar a matéria, o que era algo parecido com estabelecer o próprio estúdio. Porém, o ensinar e o aprender, oralmente assim como por escrito, eram feitos em latim, símbolo de uma cultura apartada. Espias (lupi ou "lobos") asseguravam que os estudantes falassem latim mesmo entre eles, e os que quebravam a regra eram multados. Outra diferença óbvia entre aprendizes e estudantes universitários era a despesa com o treinamento. Calcula-se que na Toscana, no começo do século XV, custava cerca de 20 0
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0ES3XCT: EDUCAÇÃO HUMANÍSTICA NA UNIVERSIDADE, DE C. LANDINO: FORMULAIO DI LETTERE E DI ORATIONI VOLGARI CON. IA PREPOSTA, FLORENÇA Com permissão da British Library
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florins por ano manter um menino na universidade, fora de casa, soma que seria suficiente para manter dois criados (Martines, 1963, p. 117). Além disso, esperava-se que um novo recruta ao doutorado oferecesse um caro banquete a seus colegas. O doutorado em legislação civil em Pisa, tomado por Guicciardini em 1505, custou-lhe 26 florins. Mesmo o "refugio do homem pobre", Ferrara, era realmente uma alternativa para os não tão mal de vida assim. Arquitetos e compositores devem ser considerados separadamente do resto. A arquitetura não era reconhecida como atividade independente, de forma que não havia guilda de arquitetos (ao contrário dos pedreiros) e não existia também sistema de ensino. Consequentemente, os homens que desenhavam edifícios durante esse período tinham uma curiosa característica em comum: haviam sido treinados para fazer outra coisa. Brunelleschi, por exemplo, foi treinado como ourives, Michelozzo e Palladio como escultores ou entalhadores de pedra, e Antônio da Sangallo o velho, treinado como carpinteiro, enquanto Leon Battista Alberti era homem da universidade e humanista. Havia, porém, oportunidades para treinamento informal. O estúdio de Bramante em Roma foi onde Antônio da Sangallo o moço, Giulio Romano, Peruzzi e Rafael aprenderam a desenhar edifícios; sua importância na história da arquitetura é algo como a do estúdio de Ghiberti em Florença cem anos antes. Alguns arquit etos famosos, co mo Tullio Lom bar do e Michele Sammicheli, aprenderam sua ocupação com parentes. 17 Compositores, como chamamos, eram treinados como intérpretes. Um grande número deles freqüentou escolas corais nos Países Baixos; Josquin des Près, por exem plo, foi me ni no de coro em St. Qu en ti n. O inglês Hothby ensinava música, além de gramática e aritmética, em uma escola anexa à catedral de Lucca, que apa ren tem ent e servia meni nos de coro. Música (significando teoria da música) fazia parte do curso de artes das universidades, e diversos compositores da elite tinham diplomas; Guillaume Dufay era bacharel em lei canônica, e johannes de Tinctoris doutor em lei e teologia. Não havia treinamento formal em composição, mas informal mente o círculo de Joannes Ockeghem, nos Países Baixos, era equivalente aos estúdios de Ghiberti e Bramante. Dentre os alunos de Ockeghem —
17 Sobre o tre ina men to de arqui teto s, veja Acker man (1 954 ).
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CO N ORATIA ET PRIVILEGIO Delia Uluftrifsima iignoria di Ver.etta, & di tuttili Prcncipi. Chriftiani, come nc i loro priuile gi jippare.
InVcnetiaapprr/TodjAutunia Ganiam), i 5 5 9-
XILOGRAVURA DE ADRIAN WILLAERT, DE MUSICA NOVA, 1559
Coleção Mansell/Time Inc./Katz Pictures 73
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para mencionar apenas alguns que trabalharam na Itália - estão Alexander Agricola, Antoine Brumel, Loyset Compère, Gaspaer van Weerbecke e pro vavelmente também Josquin des Près. Com Josquin começa uma espécie de sucessão apostólica de relações mestre-aluno ligando os grandes dos Países Baixos aos compositores italianos do século XVI e os italianos aos principais alemães do século XVII. Josquin ensinou Jean Mouton que ensinou Adriaan Willaert, nascido nos Países Baixos e que foi para Veneza e ensinou Andréa Gabrieli que, no final de nosso período, ensinou seu sobrinho Giovanni Gabrieli que ensinou Heinrich Schütz. 18 Res umi ndo. N a Itália dessa época, havia duas culturas e dois sistemas de treinamento: manual e intelectual, italiano e latino, baseado no estúdio ou baseado na universidade. Mesmo nos casos de arquitetura e música não é difícil identificar a escada que subia um indivíduo em particular. A existência desse sistema duplo levanta certos problemas para historiado res do Renascimento. Se os artistas paravam de estudar tão cedo, como adquiriam a familiaridade com a Antigüidade clássica revelada em suas pinturas, esculturas e edifícios? E será que o famoso "homem universal" do Renascimento teve existência fora da vivida imaginação dos historiadores do século XIX? Contemporâneos que escreveram sobre as artes têm plena consciên cia da relevância de uma educação superior. Ghiberti, por exemplo, queria que pintores e escultores estudassem gramática, geometria, aritmética, astronomia, filosofia, história, medicina, anatomia, perspectiva e "dese nho teórico". 19 Alberti queria que os pintores estudassem as artes liberais, especialmente geometria, e também as humanidades, principalmente retó rica, poesia e história. 20 O arquiteto Antônio Averlino, que assumiu o nome grego Filarete ("amante da virtude") queria que os arquitetos estudassem música e astrologia, "pois qu an do Jèle ordena e constró i uma coisa, deve cuidar para que comece sob bom planeta e constelação. Ele também precisa da música para saber como harmonizar os membros com as partes de um
18 Sobre educação musical, veja Bridgman (1 964 ), cap. 4. 19 Ghiberti , / commentari, p. 2. 20 Alberti, On Painting and Sculpture, livro 3, p. 94s.
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"ACADEMIA" DE BACCIO BANDINELLI EM ROMA, GRAVURA DE AGOSTINO V E N E Z I A N O Ashmolean Museum, University of Oxford
edifício".21 O escultor ideal, segundo Pomponio Gaurico, que escreveu um tratado sobre escultura, além de praticar a arte, devia ser "bem lido" {literatus), além de hábil em aritmética, música e geometria.22 Será que os artistas reais se adequavam a esse ideal? Antigamente, achava-se que a educação que faltava a muitos deles, por terem deixado a escola muito cedo, era provida por instituições chamadas "academias" (nos moldes das sociedades cultas de humanistas e da Academia de Platão em. Atenas), principalmente em Florença, centralizada no escultor Bertoldo; em Milão, em torno de Leonardo da Vinci; e em Roma, no círculo do escultor 21
Filarete, Treatise on Architecture, \ivro 15, p. 198.
22
Gauricus, De sculptura, p. 52s.
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florentino Baccio Bandinelli, cujos alunos foram ret ratados est udando à luz de vela. No entanto, não há nenhuma prova concreta de treinamento formal desses artistas em instituições desse tipo até a fundação da Accademia de Disegno em Florença em 1563, que servirá de modelo para o sistema acadêmico estabelecido na França no século XVII, na Inglaterra do século XVIII e em outros países. 23 Porém não se deve conclu ir que os estúdios de artistas do Renascimen to eram vazios de cultura literária ou humanista. Houve uma tradição de que Brunelleschi era "perito na sagrada escritura" e "muito lido nas obras de Dante" (Frey, 1892, p. 31). Alguns artistas eram conhecidos por possuírem livros; os irmãos Benedetto e Giuliano da Maiano, por exemplo, esculto res florentinos, ti nham 20 livros em 1 49 8. Mais da metade dos livros era religiosa: entre eles uma Bíblia, uma vida de São Jerônimo, e um livro dos milagres de Nossa Senhora. Dentre os livros seculares, havia dois favoritos florentinos, Da nt e e Bocca ccio, além de um a história an ôn im a de Florença. A Antigüid ade clássica estava representada por u ma vida de Alexandre e pela história de Roma de Lívio (Cendali, 1926, p. 182s). Os interesses intelectuais dos irmãos revelados por essa coleção, de orientação tradicional, mas com algumas cores de um novo saber, não são diferentes dos demonstrados pelos comerciantes florentinos do começo do século (Bec, 1967 ; cf. Bec, 1984). Artistas que tinham livros como esses estavam claramente interessados no passado clássico, e não apenas em sua arte, embora esse tipo de interesse possa também ser documentado em inventários. Ao tempo de sua morte, em 1500, o pintor de Siena Neroccio de Landi possuía diversas peças anti gas de escultura em mármore, além de 43 moldes de gesso de fragmentos (Coor, 1961, p. 107). A ausência mais conspícua na biblioteca de Benedetto e Giuliano da Maiano é a mitologia clássica. Não há exemplar das Metamorfoses de Ovídio, nem da Genealogia dos deuses de Boccaccio. Artistas co m biblioteca como a deles estariam mais à vontade com pinturas e esculturas religiosas do que com as pinturas mitológicas encomendadas por certos clientes. E de se pensar se Botticelli, que era da mesma geração, cidade e origem social que os da Maiano, tinha uma coleção de livros muito diferente da deles. Se 23
Pevs ner(194 0), cap. 1, fornece a posição tradiciona l. O famoso relato de Vasari sobre a academia de Bertoldo foi questionado por Chastel (1961), p. 19s.
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não, então o papel do cliente ou de seu conselheiro deve ter sido crucial na criação de pinturas como o Nascimento de Vênus ou a chamada Primavera, e conversas devem ter desempenhado parte importante na formação de um artista (cf. p. 132, adiante). O pequeno volume dessa coleção de livros deve ser considerado em seu contexto. Em 1498, a imprensa já estava estabelecida na Itália fazia uma geração. É improvável que um artista conseguisse juntar 20 manuscritos no começo do século XV. Por outr o lado, no século seguinte grandes bibliotecas não são incomuns. Leonardo da Vinci, desdenhado em sua época como "homem sem conhecimento" (uomo senza letterè), acabou possuindo 116 livros em determinado momento, inclusive três gramáticas latinas, alguns patriarcas da Igreja (Agostinho, Ambrósio), um pouco de literatura italia na moderna (os poemas cômicos de Burchiello e Luigi Pulei, os contos de Masuccio Salernitano), e tratados de anatomia, astrologia, cosmografia e matemática (Reti, 1968, p. 81s). Seria tolice tomar Leonardo como típico de qualquer coisa, mas existe uma boa quantidade de provas da cultura literária em artistas do século XVI. O estudo de sua caligrafia oferece algumas pistas. No século XV, eles tendiam a escrever à maneira dos comerciantes, um estilo que era provavelmente ensinado na escola de ábaco. No século XVI, porém, Rafael, Michelangelo e outros escreviam no novo estilo itálico. 24 Poucos deles, inclusive Michelangelo , Pontorm o e Paris Bordon e, freq üentaram comprovadamente a escola de gramática. O pintor Giulio Campagnola e o arquiteto fra Giovanni Giocondo ambos sabiam grego, além de latim. 25 Uns poucos artistas adquiriram reputação também como escritores. Os poemas de Michelangelo são famosos, enquanto Bramante, Bronzino e Rafael, todos tentaram seus versos. Cennini, Ghiberti, Filarete, Palladio e o arqui teto bolonhês Sebastiano Serlio, todos escreveram tratados sobre as artes. Cellini e Bandinelli escreveram autobiografias, e Vasari é mais conhecido por suas vidas de artistas do que por sua pintura, escultura e arquitetura. Vale a pena acrescentar que Vasari foi capaz de fazer uma ponte entre duas culturas pela feliz casualidade de um patronato poderoso que lhe permitiu
24
Sobre caligrafia, Petrucci (198 6).
25
Cf. Rossi (1980), e sobre o final do século XVI, Dempsey (1980).
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dupla educação, um treinamento em humanidades com Pierio Valeriano, além de treinamento artístico no círculo de Andréa dei Sarto (Boase, 1979; P. L. Rubin, 1995, pp. 72-3). Esses exemplos são impressionantes, mas vale a pena subli nhar o fato de que eles não incluem todos os artistas importa nte s. Tici ano, por exem plo, está ausente da lista. É improvável que ele soubesse latim. De qual quer forma, os exemplos não levam ao "homem universal" do Renascimento. Isso era fato ou ficção? O ideal de universalidade era de fato contemporâneo. Um dos personagens no diálogo Da vida civils do humanista florentino do século XV Matte o Palmieri, observa que "Um ho me m é capaz de apre nder muit as coisas e se fazer universal em muitas artes excelentes [farsi universale di piu arti excellenti]." 26 Outro humanista florentino, Ângelo Poliziano, escreveu um breve tratado sobre a totalidade do conhecimento, o Panepistemon, no qual pintura, escultura, arquitetura e música tinham seu lugar. 27 A exposição mais famosa dessa idéia está no famoso Cortesão (1528) de Baldassare Casti glione , no qual o narrador espera que o perfeito cortesão seja capaz de lutar e dançar, pintar e cantar, escrever poemas e aconselhar seu príncipe. Essa teoria tem alguma relação com a prática? As carreiras de Alberti (humanista, arquiteto, matemático e até atleta), Leonardo e Michelangelo são incríveis testemu nho s da existência do homem universal, e outros 15 membros da elite praticavam três artes ou mais, entre eles Brunelleschi, Ghiberti e Vasari. 28 O humanista Paolo dal Pozzo Toscanelli (amigo de Alberti e de Brunelleschi) també m merece lugar nessa companhia, uma vez que seus interesses compreendiam matemática, geografia e astronomia (de Santillana, 1966). Cerca de metade desses 18 homens universais era de toscanos; aproxi madamente a metade era filha de nobres, profissionais ou comerciantes; e não menos de 15 deles eram, entre outras coisas, arquitetos. O u a arq uitetur a era atraente aos hom ens universais ou os encorajava. N en hu ma possibilidade
26
Palmieri, La vita civile, livro 1, p. 43.
27
Uma das poucas discussões sobre o Panepistemon encontra-se em Summers (1981), cap. 17.
28
Distingo apenas sete artes: pintor, escultor, arquiteto , escritor, humanista, cientista e compositor, uma classificação que tende a ficar aquém da multiplicidade da elite, em vez de exagerá-la. Os 18 homens que praticavam três artes ou mais são Alberti, Silvestro Aquiiano, Bramante, Brunelleschi, Filarete, Ghiberti, Giovanni Giocondo, Francesco di Giorgio, Leonardo, Piero Ligorio, Guido Mazzoni, Michelangelo, Alessandro Piccolomini, Serlio, Tebaldeo, Vasari, Vecchietta, Zenale.
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é surpreendente, uma vez que a arquitetura era a ponte entre ciência (visto que o arquiteto tinha de conhecer as leis da mecânica), a escultura (visto que ele trabalhava com pedr a) e hum an is mo (visto que ele precisava conhecer o vocabulário clássico da arquit etur a). Exceto Alberti, esses hom ens multifa cetados pertencem mais à tradição dos artesãos não-especializados do que à do amador dotado. A teoria e a prática do homem universal parecem ter coexistido sem muito contato. O maior de todos, Michelangelo, não acreditava na universalidade. Na época em que estava pintando a Capela Sistina, ele escreveu ao pai, reclamando que a pintura não era o seu trabalho [non esser miaprofessione). Ele criava obras-primas em pintura, arquitetur a e poesia, sempre protestando que era apenas escultor. A ORGANIZAÇÃO DAS ARTES Para pintores e escultores, a unidade fundamental era o estúdio, a bottega, um pequeno grupo de homens produzindo uma ampla variedade de objetos em colaboração, um grande contraste para o artista especializado, individualista, dos tempos modernos (Cole, 1983;Thomas, 1995; Welch, 1997, pp. 79-101). Embora às vezes fosse feita distinção entre os pintores de painéis e de afrescos de um lado, e pintores de mobília de outro, ainda se encontra Botticelli pintando cassoni (baús de casamento) e faixas; Cosimo Tura, de Ferrara, pintava adornos para cavalos e mobília; e o veneziano Vincenzo Catena pintava armários e guardas de cama. Até no século XVI, Bronzino pintou uma capa de cravo para o duque de Urbino. Para lidar com essa variedade de encomendas, os mestres geralmente empregavam assistentes, além de aprendizes, particularmente se trabalhavam em larga escala ou estavam muito em voga, como Ghirlandaio, Perugino ou Rafael. E quase certo que Giovanni Bellini empregou pelo menos 16 assistentes no decorrer de sua prolongada vida profissional (c. 1460-1516), e pode ter usado muitos mais. Alguns desses "meninos" (garzoní) como eram cha mados — indepen dente da idade — eram contr atado s para ajudar em u m a encomenda específica, e o cliente podia ter de garantir sua manutenção, co mo o du qu e de Ferrara pro meteu a Tura, em 1460, ao contratá-lo pa ra pintar uma capela (cf. Chambers, 1970b, n°7, 11, 15). Outros trabalhavam para o mestre permanentemente, e podiam especializar-se. No estúdio de Rafael, por exemplo, que podia ser mais bem descrito como "Empresas
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G I O V A N N I A U D I N E : R E L E V O E M STUCCO ( D E T A L H E ) , N A LOGGIA
MOST RA OFI CIN A DE RAFAEL D O VATI CANO
Musei Vaticani
Rafael", Giovanni da Udine concentrava-se em animais e figuras grotescas (Marabottini, 1968; Burke (1979). O estúdio era geralmente negócio de família. Um pai, como Jacopo Bellini, treinava os filhos na atividade. Os garzoni eram provavelmente tra tados como membros da família, e podiam casar-se com a filha do mestre, como Mantegna e outros fizeram. Quando Jacopo morreu, deixou seus cadernos de esboços e encomendas inacabadas para seu filho mais velho, Gentile, que assumiu o estúdio. Giovanni Bellini sucedeu seu irmão Gentile, e foi sucedido, por sua vez, pelo sobrinho Vittore Belliniano.29 A assinatura das pinturas costumava ser considerada uma marca do "individualismo do 29 Sobre a persistência do estúdio familiar em Veneza, veja Rosand (1982), p. 7s. 0
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Renascimento". Porém discute-se se o fato de uma pintura ser assinada pelo chefe de um estúdio significa que ele a pintou com sua própria mão. Pode ser até o contrário; a questão podia ser uma declaração de que a pintura estava de acordo com os padrões do estúdio (Tietze, 1939). Nem todos os mestres pintores tinham condições de manter um estú dio próprio. Como muitos outros pequenos mestres (tintureiros, por exem plo), os pintores às vezes repartiam as despesas de aluguel e equipamento. Geralmente, embora nem sempre, agiam como uma companhia comercial e faziam um pool de despesas e recibos (Procacci, 1960). Giorgione, por exemplo, era sócio de Vincenzo Catena. Uma associação desse tipo tinha a vantagem de oferecer uma espécie de seguro contra doenças c falta de clientes. Pode ter havido também uma divisão de trabalho no estúdio. Esses hábitos de colaboração tornam mais fácil entender como artistas bem conhecidos podiam trabalhar numa mesma pintura, juntos ou um de pois do outro. Na Capela Ovetari, em Pádua, por exemplo, quatro artistas trabalharam em pares nos afrescos: Pizzolo com Mantegna, e Antônio da Murano com Giovanni d'Allemagna. Pisanello terminou um quadro de São João Batista começado por Gentile da Fabriano. Essa prática continuou até o século XVI. Pontormo fez duas pinturas a partir de esboços de Michelangelo, e Michelangelo concordou em terminar uma estátua de São Francisco de Pietro Torrigiani. Esse sistema de colaboração evidentemente militava con tra o individualismo deliberado de estilo, e ajuda a explicar por que esse individualismo só emergiu muito lentamente. Os estúdios de escultores eram organizados de maneira semelhante à dos estúdios de pintores. Donatello tinha uma sociedade com Michelozzo, e as dinastias Gaggini e Solari fornecem exemplos óbvios de negócios fa miliares. Os assistentes eram ainda mais necessários, visto que se leva mais tempo para fazer estátuas e que o chefe do estúdio podia ter de arranjar a mineração do mármore para realizar determinada encomenda, e se ele viesse ruim, como Michelangelo reclama em suas cartas, centenas de ducados podiam ser desperdiçados e seria difícil provar ao cliente que o gasto fora necessário ou mesmo que ocorrera.30 No estúdio de Bernardo Rossellino 30
Sobre a associação de escultores, veja Caplow (1974). Sobre as pedreiras de Carrara, veja KlapischZuber (196 9). Cf. Chambers (1970b) , n° 2, sobre os problemas de Jacopo delia Quercia, en tr e os quais se incluía ter de pagar impostos sobre a pedra da lstria.
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O ARQUITETO FlLARETE ORIENTANDO SEUS APRENDIZES Portas de S. Pedro, Roma. Fabbrica di San Pictro, no Vaticano
havia considerável divisão de trabalho, em linhas "aparentemente arbitrárias" (Schutz, 1 977 , p. 11; Cf. Caplow, 1974, e Sheard e Paoletti, 197 8). A arquitetura era, evidentemente, organizada em larga escala com uma divisão de trabalho mais elaborada. Mesmo um palácio relativamente pequeno como o Ca D'Oro, ainda existente no Grande Canal de Veneza, tinha 27 profissionais trabalhando nele em 1427. Havia carpinteiros, dois tipos principais de pedreiros, respectivamente ocupados com o corte e com o assentamento de pedras; operários não-qualificados, para transportar ma terial; e talvez capatazes. A coordenação era, po rt an to , um p rob lema. Como diz Filarete, um projeto de edifício é como uma dança; todo mundo tem de trabalhar junto no ritmo. O homem que garantia a coordenação era às vezes chamado de architetto, às vezes de protomaestro ou chefe dos mestres pedreiros. É provável que os dois nomes reflitam duas concepções diferentes do papel, a velha idéia de um artesão maduro e a nova idéia de um designer. De qualquer forma, havia um considerável trabalho administrativo. Além de desenhar a construção, alguém tinha de distribuir e pagar os trabalhadores, e providenciar o fornecimento de cal, tijolo, pedra, madeira, cordas, etc. Todo esse trabalho podia ser organizado de diversas maneiras. Em Veneza, as empresas construtoras eram pequenas porque os mestres construtores não tinham permissão para contratar mais do que três aprendizes cada um. Para construir um grande edifício, era comum um organizador {padroné) pegar a empreitada do trabalho todo e depois distribuir partes da obra a diferentes 82
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estúdios.31 No outro extremo, na construção de São Pedro, nos anos 1 520 e 1530, havia apenas um estúdio com grande número de funcionários, inclusive um contador (computista), dois agrimensores {mensuratorí) e um administrador-chefe {segretario), além de pedreiros e outros trabalhadores. Filarete recomenda um agente (commissario) como intermediário entre o arqu itet o e os operários. Alberti parece ter seguido esse sistema e em pregado ao menos três artistas dessa forma; Matteo deTasti como seu agente em Rimini, Bernardo Rossellino como seu agente em Roma, e Luca Fancelli como seu agente em Mantua e Florença. Essa divisão de trab alho criou problemas para os historiadores da arte e também, sem dúv ida, para os agentes. Já é bastante difícil avaliar a respon sabilidade individual de pinturas e estátuas particulares, mais difícil ainda é saber, no caso de um edifício, se cliente, arquiteto, agente, mestre-const rut or ou construtor são responsáveis por um determinado detalhe. A dificuldade é acrescida pelo fato de que não era ainda costume um arquiteto dar a seus homens desenhos com medidas a partir dos quais pudessem trabalhar. Muitas das instruções eram dadas a bocca, de boca (Manetti, 1970, p. 77). Se sabemos alguma coisa das intenções de Alberti é porque ele não ficou em Rimini enquanto a igreja de São Francisco estava sendo construída, mas sim a projetou por correspondência, parte da qual sobreviveu. Em um a ocasião, o agente Mat teo deT asti estava, apar entemente , pen san do em alterar a propor ção de algumas pilastras, mas Alberti escreveu para imp edi r. Uma carta de Matteo ao cliente, Sigismondo Malatesta, explica que Alberti
31
Sobre Veneza, veja Wyrobisz (1965 ); sobre Florença, veja Gold thwaite (1980), parte 2.
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havia enviado um desenho da fachada e de um capitei, que fora mostrado "a todos os mestres e engenheiros". O problema era que o desenho não estava inteiramente coerente com o modelo de madeira do edifício que Alberti havia fornecido. "Espero em Deus que sua senhoria chegue a tempo, e veja as coisas com seus próprios olhos." Mais tarde, outro profissional que tra balhava na igreja escreveu a Sigismondo pedindo permissão para ir a Roma e conversar com Alberti sobre a abóbada. 32 O fato de a arquitetura ser uma empresa tão cooperativa deve ter funcionado como um freio à inovação. Como os artesãos eram treinados por outros artesãos, eles aprendiam a fidelidade à tradição, além das técnicas. Ao executar um desenho que rompia com a tradição, eles muito provavelmente, se não fossem supervisionados de perto, iriam "normalizá-lo", ou, em outras palavras, assimilá-lo à tradição da qual o projetista estava deliberadamente se afastando. O projeto de Michelozzo para um Banco Mediei em Milão foi executado por artesãos lombardos em estilo local (um fragmento desse edifício ainda pode ser visto no museu do Castello Sforzesco). Um detalhe pequeno, mas significativo, é a diferença de proporções entre os capiteis feitos por arte sãos florentinos para Brunell eschi qua ndo ele estava no local, e um outro feito em 1430 quando ele não estava presente (Saalman, 1958). Parece haver uma relação entre o desenvolvimento de um novo estilo arquitetônico e a ascensão de um novo tipo de projetista, o arquiteto que, como Alberti, não tinha recebido treinamento de construtor. Um paralelo com a construção de navios pode ser esclarecedor. Na Veneza do século XV, os navios eram projetados por carpinteiros náuticos experientes, equi valentes aos mestres construtores. No século XVI, ele foram desafiados por um amador. O papel de Alberti foi desempenhado pelo humanista Vettor Fausto, que projetou um navio (lançado ao mar em 1529) à maneira dos antigos quinquerremes (Lane, 1934; Concina, 1984, p.l08s). A unidade máxima de organização para pintores, escultores e cons trutores, mas não para arquitetos, era a guilda. As guildas tinham várias funções. Regulavam os padrões de qualidade, e as relações entre clientes, mestres, jornaleiros e aprendizes. Elas coletavam o dinheiro de subscrições 32
Ricci (1924), p. 588s; cf. Wittkowe r (1949), p. 29s. A carta de Alberti a Matt eo está traduzida para o inglês em Chambers (1970b), pp. 181-3.
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e doações, e emprestavam ou davam uma parte dele a membros necessita dos. Organizavam festivais em honra do patrono da guilda, com serviços religiosos e procissões. Em alguma cidades, como Milão (Motta, 1895), os pintores tinham uma guilda própria, da qual geralmente o patrono era São Lucas, que se dizia ter pintado um retrato da Virgem. Em outros lugares, eles faziam parte de uma guilda maior, como a dos fabricantes de papel em Bolonha ou a dos médicos e farmacêuticos em Florença (embora os pintores florentinos tivessem efetivamente u ma guilda social própri a, a Co mpanhia de São Lucas). Para termos uma impressão mais vivida das atividades de uma guilda, podemos dar uma olhada nos estatutos de uma delas, do século XV, uma "irmandade" ou fraglia de pintores de Pádua (Gaye, 1839-4 0, vol. 2, p. 43s). A guilda tinha funcionários: um tesoureiro, dois administradores, um notário e um deão. Havia diversas atividades sociais e religiosas em que a participação era compulsória. Em certos dias do ano a guilda marchava em procissão com "nosso estandarte", e as ausências eram multadas. Havia um roteiro de visita aos membros doentes para encorajá-los a confessar e comungar, e as ausências em funerais eram multadas. Davam-se esmolas aos pobres e aos leprosos. Havia também arranjos para ajudar os membros necessitados. Um mestre pobre tinha o direito de vender uma obra de arte para a guilda, que o tesoureiro tentaria vender pelo "melhor preço possível" (ut melius poterii). Out ras guildas emprestavam dinheiro; Botticelli, po r exemplo, recebeu u m emprést imo da Comp an hi a de São Lucas em Florença. Os estatutos padovanos exigiam também que os mestres mantivessem apren dizes po r um pe ríodo de pelo menos três anos e pro ibi am que se fizessem propostas a aprendizes de outros mestres "com presentes ou lisonjas" {donis vel blandimentis). Havia regras para manter os padrões: aspirantes a mes tre eram examinados da maneira usual, e as casas eram inspecionadas para ver se o trabalho não estava sendo "falsificado" {sifalsificeturaliquodlaborerium nostreartis). Ou tr a mane ira de man ter os padrões e os preços justos era co n vocar artistas para avaliar a obra de outros — avaliação artística pelos pr óprios pares — nos casos de desentendimentos com um cliente.33 Finalmente, havi a o lado restritivo das atividades da guilda. Os estatutos de Pádu a proibi am os
33
Isso era novidade no século XV; veja Conti (1 979) , p. 151s.
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sócios de dar ou vender a não-sócios qualquer coisa pertencente à profissão. Estabeleciam que nenhuma obra podia ser trazida de outro distrito para ser vendida em Pádua, e dava-se um prazo de apenas três dias para que uma obra "estrangeira" passasse pelo território da guilda. Em Veneza também a guilda ou arte parece ter tido um forte domínio territorial. Quando Albrecht Dürer visitou Veneza em 1506, ele fez co mentários sobre a desconfiança ou suscetibilidade dos pintores de lá: "Três vezes eles me convocaram perante os magistrados, e tive de pagar quatro fio rins para sua guilda." 34 Já se disse que, quando o pintor toscano Andréa dei Castagno estava trabalhando em Veneza, em meados do século XV, ele teve de ser supervisionado por um artista menos dotado, Giambono, sim plesmente porque este último era veneziano (Muraro, 1961). Em Florença, porém, as guildas não tinham tanto poder. O governo florentino não permitia que obrigassem todos os artesãos a se filiar a elas. Alguns artistas, como Botticelli, só entraram para a guilda no final da car reira. Em resultado, os "estrangeiros" podiam trabalhar em Florença. Essa política mais liberal, que expunha a tradição local a estímulos externos, pode ajudar a explicar a liderança cultural de Florença. Escritores, humanistas, cientistas e músicos não tinham guildas nem ateliês. A coisa mais próxima de uma guilda em seu mundo era a univer sidade (termo que significa simplesmente "associação", e que era às vezes usado na época para se referir às guildas de pintores). Porém a analogia entre estudantes e aprendizes, por mais tentadora que seja sob certos aspectos, é também enganosa. A maioria dos estudantes não ia à universidade para aprender a ser professor, mas sim em busca de carreiras na Igreja e no Estado. Os estudantes tinham mais poder nas universidades italianas do que os aprendizes nas guildas. Foi graças a uma petição dos estudantes da universidade de Pisa, por exemplo, que um de seus professores, o cientista Bernardo Torni, teve um aumento de salário. A universidade não era voltada para a produção de livros por seus luminares. Sua função era ensinar, e seus livros eram produto secundário. Humanistas e cientistas tinham suas universidades, mas os escrito res não tinham nenhuma forma de organização. Escrever era algo que um
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Dürer, Schrijilicher NachUss, vol. 1, p. 4ls.
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homem fazia mais ou menos em suas horas vagas, enquanto soldado, diplo mata ou bispo era aquilo que ele realmente era. Por isso era um pouco mais fácil uma mulher se tornar escritora do que pintora ou escultora. Havia, porém, poetas de tempo integral que ganhavam a vida com sua ocupação. Hesito utilizar um termo tão moderno quanto "profissional' , porque esses cantores de histórias ou cantastorie, improvisadores de poesia épica, como Cris to foro Altissimo (que mor reu por volta de 1515 ), o u Bernardo Accolti (1458-1535), que vagavam de corte em corte na Itália do Renascimento, eram sobreviventes de uma cultura que tendemos a associar com as eras heróicas, como a Grécia de Homero. 3 5 Em outras palavras, a produção de literatura ainda não era uma indústria na Itália do século XV, embora já estivesse chegando a isso em meados do século XVI, conforme ocorreria na França e na Inglaterra do século XVIII. A reprodução de literatura, por outro lado, certamente já era industrializada. Evidentemente, algumas pessoas que necessitavam deter minados livros simplesmente os copiavam à mão, enquanto outros pediam para alguém que lhes copiasse (como Coluccio Salutati, o chanceler de Florença, pediu ao jovem humanista Poggio Bracciolini), e nesse caso não havia necessidade de nenhuma organização formal de produção. Entretanto, a produção de manuscr itos na Itália do século XV tornara-se comercial e padronizada. Ficava nas mãos dos stationarii, palavra de que deriva o term o inglês contemporâneo stationer [papeleiro, papelaria], título que nessa época indicava tanto vendedores de livros como organizadores de scriptoria, ateliês para a produção de manuscritos. O termo stationarius tinha dois sentidos, porque a mesma pessoa tendia a desempenhar as duas funções, editando e vendendo no varejo. O stationarius mais famoso do Renascimento é o florentino Vespasiano da Bisticci, que se imortalizou escrevendo biografias de seus fregueses. Essas biografias dão a impressão de um sistema de cópias de manuscritos altamente organizado, reminiscente da Roma de Cícero e de seu amigo, o "editor" Atticus. Por exemplo, Vespasiano explica como const ituiu um a biblioteca para Cosimo deMedici contratando 45 escribas que conseguiram completar 200 volumes em 22 meses. O que impressiona nesse caso não
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Sobre os cantores de histórias, veja Lord (1960), Burke (1992a, 1998b).
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é a velocidade de cada copista individual (uma vez que cinco meses por volume parece bastante lento, a menos que os volumes fossem grandes, nem a quantidade é excepcionalmente alta), mas o fato de que um homem (ou, de qualquer forma, Cosimo, o governante não coroado de Florença) pudesse ir até um livreiro e encomendar 200 volumes para serem entregues em dois anos. Pode-se imaginar como era organizada essa escritura; se as obras mais solicitadas eram copiadas por 10 ou 20 escribas, que escreviam a partir de um ditado, ou se toda a indústria era organizada com base em "encomendas": cada escriba apareceria na casa do livreiro em intervalos de meses para buscar suprimentos de pergaminho e o volume a ser copiado, voltando a sua casa para escrever. Este último método parece provável, uma vez que a atividade de escriba era de meio período, remunerada por trabalho realizado (por quintern). Vespasiano empregava co mo escribas home ns que tinham sido notários ou padres. 36 A partir de meados do século XV, esse sistema de cópia teve de competir com a produção em massa de livros "escritos" mecanicamente (assim se descreviam às vezes os primeiros livros impressos). Em 1465, dois clérigos alemães chamados Sweynheym e Pannartz chegaram ao mosteiro beneditino de Subiaco, poucos quilômetros a leste de Roma, e ali fundaram uma imprensa, a primeira da Itália. Dois anos depois, mudaram para Roma propriamente dita. Estima-se que em cinco anos tenham produzido 12 mil volumes, número que para ser igualado no mesmo período, Vespasiano teria de contratar mil escribas. Evidentemente, a nova máquina era um concor rente formidável. Por volta do final do século, cerca de 150 imprensas já haviam sido fundadas na Itália. Não é de surpreender que Vespasiano, que sentia pelo novo método o mesmo desprezo que o cocheiro tem pelo carro sem cavalos, tenha abandonado, desgostoso, o negócio de livreiro, retiran do-se para sua propriedade no campo para relembrar o passado. Outros escribas se adaptaram com muito mais facilidade. Alguns se transformaram em impressores, como Domenico de'Lapi eTaddeo Crivelli,
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Veja Vespasiano, Vite di uomini illustri, principalmente a vida de Cosimo de'Medici. Sobre ele, veja de La Maré (1965), que observa que, embora um ou dois iluministas trabalhassem no estúdio de Vespasiano, a instalação era pequena demais para ser um scriptorium propriamente dito, e que as cartas de Vespasiano aos escribas revelam que os manuscritos eram copiados para ele em outros lugares. Cf. Martini (1956) e Petrucci (1983a).
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que produziram o famoso Ptolomeu de Bolonha em 1477. Os primeiros livros impressos parecem muito com manuscritos, até nas iniciais de ilumi nura. Da mesma forma, os impressores, uma nova ocupação, ocuparam o lugar dos stationarii. Assim co mo seus predecessores, os impressores te ndia m a conjugar papéis que no século XX tendemos a separar, como os de fabricar e vender livros. Logo acrescentaram a esses um terceiro, o de "editores", o u seja, um indivíduo que lança como impressão sua e assume responsabilidade por livros que foram, na verdade, impressos por outros. Por exemplo, o colofão da edição ilustrada das Metamorfoses de Ovídio, produzida em Veneza em 1497, declara que foi impresso por Zoare Rosso (também conhecido como Giovanni Rúbeo) "a pedido de Lucantonio Giunti. Os impressores às vezes exerciam um quarto papel também, o de comerciantes de outros produtos que não livros. Afinal, quem podia ter certeza de que o novo produto não sairia de moda? 37 Os efeitos da invenção da imprensa na organização da literatura foram tão variados quanto perturbadores. Em primeiro lugar, foi um desastre para escribas e stationarii, que não estavam preparados para se ada pta r e começar uma nova carreira. Em segundo lugar, a expansão da produção de livros levou à criação de novas ocupações que ajudaram a sustentar escritores criativos. À medida que as bibliotecas cresciam, havia maior necessidade de biblio tecários. Muitos membros da elite criativa foram efetivamente empregados dessa forma. O gramático Giovanni Tortelli foi o primeiro bibliotecário do Vaticano (para Nicolau V, chamado "o papa humanista"), e o posto foi depois ocupado pelo humanista Ba rtolommeo Platina. O poe ta e acadêmic o Ângelo Poliziano foi bibliotecário dos Mediei (Branco, 1983). O poeta e historiador veneziano Andréa Navagero foi bibliotecário da Marciana, e o filósofo Agostino Steuco foi bibliotecário dos cardeais venezianos Marino e Domenico Grimani. 38 Outra ocupação nova, dependente do crescimento da imprensa, foi a de revisor para a gráfica, uma útil ocupação parcial para um escritor ou estudioso. Platina trabalhou como revisor para Sweynheym e Pannartz em 37
Isso ainda era uma preocupação corrente no fim do século XVI. Veja em Tenenti (1957) u m estudo sobre o jovem Lucantonio Giun ti. Sobre o século XV, veja Lowry (1979), pri ncipalmente cap. 1.
38
Sobre bibliotecas públicas e privadas, veja Petrucci (1983b).
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Roma, e o humanista Giorgio Merula foi revisor da primeira imprensa a se estabelecer em Veneza, a gráfica de Johan e Windelin Speyer. Por volta do século XVI, impressores e editores já haviam começado a solicitar que escritores editassem livros, traduzissem e até escrevessem obras específicas, uma nova forma de patronato literário que levou à ascensão do poligrafo ou escritor profissional em Veneza por volta de meados do século XVI. O mais famoso desse grupo de profissionais foi Pietro Aretino, que tornou vendáveis até as suas cartas particulares (Larivaille, 1980). Em torno do sol Aretino orbitavam planetas menores (para não dizer escrevinhadores), tais como o seu secretário Niccolò Franco; seu amigo de um dia e depois inimigo Anton Francesco Don i; Giusep pe Betussi; Lodovico Dolce; Ludovico Dom eni chi ; Girolamo Ruscelli; e Francesco Sansovino, filho do pintor Jacopo. 39 A firma de Giolito em Veneza, que se concentrava em livros populares em vez de eruditos numa época em que isso ainda não era usual, parece ter sido pioneira no uso de escritores profissionais. Betussi e Dolce estavam ambos a serviço de Giolito, editando, traduzindo, escrevendo e (conforme apontam os críticos hostis) plagiando (Quondam, 1977). Mesmo no fim de nosso período, porém, o escritor profissional estava apenas começando a emergir. A música se assemelhava à literatura à medida que a reprodução era organizada, mas a produção não era. As igrejas tinham seus coros, as cidades seus tamboreiros e flautistas, as cortes tinham ambos, mas o papel do com positor era pouco reconhecido. Embora a palavra compositora ocorra algumas vezes, o termo mais comum é musico, muito mais vago, que às vezes não faz distinção entre alguém que inventa uma melodia e alguém que a toca (Bridgman, 1964, cap. 2). Nessa época, todos os 49 compositores da elite criativa eram considerados escritores de teoria da música, ou cantores, ou instrumentistas, como podem sugerir alguns de seus nomes, como Alfonso delia Viola e Antônio degli Organi. Um traço importante da organização das artes em diferentes lugares e momentos é a relativa oportunidade (ou necessidade) de mobilidade. Sa be-se que 25 % da elite criativa viajava mui to . Alguns se deslocavam por que eram bem-sucedidos e recebiam convites de fora, como o pintor Jacopo
39 Sobre Franco e Doni, veja Grendl er (1969a); sobre Sansovino, veja Grendier (1969 b).
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de'Barbari, que trabalhou em Nurember g, Nau mbu ig, Wittenbe rg, Weimar, Frankfurt-am-Oder e Malines. Outros, ao contrário, parecem ter viajado porque tinham pouco sucesso em qualquer lugar, como Lorenzo Lotto, que trabalhou em Veneza, Treviso, Bérgamo, Roma, Ancona e Loreto. Arquitetos quase nunca eram sedentários. Humanistas e compositores tendiam a ser mais móveis do que pintores e escultores, provavelmente por que seu serviço tinha de ser realizado em pessoa, enquanto pintores e escultores podiam sempre despachar seu trabalho para outras partes e continuar em casa. Um bom exemplo de humanista "móvel" é Pomponio Leto, cuja carreira o levou não apenas a Salerno, Roma e Veneza, mas também à Alemanha e até à Moscóvia. Mas ele é facilmente suplantado por Francesco Filelfo, que visitou Alemanha, Hungria, Polônia e Constantinopla e, quando na Itália, trabalhou em Pádua, Veneza, Vicenza, Bolonha, Siena, Milão, Pavia, Florença e Roma. 40 O tema do acadêmico andarilho, muitas vezes enfatizado, provocou uma reação cética. "Pode-se facilmente demonstrar", escreve um historiador, "que cada humanista itinerante como Aurispa, Panormita, ou o jovem Valia, tem sua contrapartida doméstica em humanistas como Andréa Giuliano, Francesco Bárbaro e Cario Marsuppini." (Martines, 1963, p. 97). No que diz respeito à elite criativa, no entanto, a balança pende para os itinerantes: 58 contra 43. 4 1 Os impressores também viajavam bastante, como Simon Bevilacqua, que trabalhou em Veneza, Saluzzo, Cuneo, Novi Ligure, Savona e Lyons durante as décadas de 1506-15. Se humanistas e impressores muitas vezes punham o pé na estrada de ano em ano, atores, cantores de histórias e mas cates de livros (sem falar de estudantes em férias) viajavam todos os dias. Pode também haver alguns artistas nessa classe, pois o pintor do século XV Dario da Udine é descrito em um documento como pictor vagabundus. Outro aspecto importante da organização das artes é saber até que ponto elas eram ocupações de tempo integral ou parcial, amadora ou pro fissional. Já se sugeriu que a pint ur a, a escultura e a música eram geralmente 40
Sobre humanistas estrangeiros em Veneza, veja King (1986), p. 220s .
41
Dos 103 humanistas da elite, classifico 14 como totalmente sedentários; 29 como m edi ana men te sedentários; 12 como bastante itinerantes; 46 como bastante itinerantes, e dois indivíduos não podem ser classificados por falta de informações.
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ocupações profissionais de tempo integral e a importância da "ascensão do artista profissional no Renascimento Italiano" tem sido enfatizada tanto em estudos anteriores, como em estudos mais recentes (Wittkower, 1961, 1963; Kempers, 1987). Por outr o lado, a escritura era em geral amador a e de te mp o parcial; ao passo que os arquitetos geralmente praticavam alguma outra arte além da arqu itetura. O que aqui ch am o de "cientista" era um ho mem cuja descrição profissional seria normalmente a de "professor" ou de "médico" (22 entre 53, inclusive Giovanni Marliani, mais notável em física do que em medicina). Os acadêmicos eram geralmente professores profissionais, e pelo menos 45 dos 178 escritores da elite ensinavam nas universidades ou escolas, ou eram contratados como tutores particulares (Poliziano foi tutor de Piero de'Medici, Matteo Bandello dos Gonzaga). Porém, é possível apontar amadores (ou pelo menos não-acadêmicos), como o funcionário público Leonardo Br uni; o comerciante Ciríaco de Ancona; o impressor Aldo Manuzio; o estadista Lorenzo de'Medici; e os nobres Giovanni Pico delia Mirandola e Pietro Bembo. Essas exceções são numerosas e importantes a ponto de tornar ligeiramente incômoda a famosa definição de Paul Kristeller de que o humanista é um professor de humanidades. 4 2 Deve-se acrescentar que, se alguns humanistas, notadamente Vittorino da Feltre e Guarino de Verona, tratavam o ensino como vocação, outros consideravam a educação um destino amaldiçoado. "Eu, que até há pouco gostava da amizade de príncipes", escreveu um deles, tristemente, em 1480, "devido à minha má estrela, abri agora uma escola."43 ' A Igreja continuou sendo sempre uma fonte importante de emprego em tempo parcial para escritores (22 membros da elite), humanistas (22) e compositores (20), sem falar de sete cientistas (como Paulo de Veneza), seis pintores (dos quais os mais famosos são Fra Angélico e Fra Bartolommeo), e um arquiteto (Fra Giovanni Giocondo de Verona). 44 Outro emprego comum entre escritores e humanistas era o de secre tário; suas habilidades retóricas eram muito procuradas. Leonardo Bruni, Poggio Bracciolini e Bartolommeo delia Scala tornaram-se chanceleres de 42
Veja Kristeller (195 5), cap. 1, um a saudável reação contra alguns conceicos ext rema mente vagos de humanista.
43
Acciarini para Poliziano, citado em Usmiani (19 57) , p. 19.
AA Existe uma impo rtante discussão sobre escritores clericais do século XVI em Dion isotti (1967) .
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Florença devido à sua capacidade de escrever cartas persuasivas; os huma nistas Ant ôni o Loschi Loschi e Pier Pier Cân did o De cembr io des empenhar am serviços serviços semelhant seme lhant es ao Visconde de Milão; e os poetas Benede tto Chariteo Charit eo (Gareth) (Gare th) e Giovanni Pontano foram secretários de Estado em Nápoles. Outros escri tores eram mais exatamente secretários particulares: Masuccio Salernitano, mais conhecido por sua prosa de ficção, era secretário do príncipe Roberto Sanseverino, enquanto o poeta Annibale Caro serviu diversos membros da família Farnese.45 Em alguns poucos casos, artistas e escritores tinham ocupações um tanto surpreendentes, para não dizer bizarras. O pintor Mariotto Albertinelli foi, durante uma época, estalajadeiro (assim como Jan Steen, na Leiden do século XVII). O pintor Niccolò dell'Abbate, assim como os humanistas Platina e Calcagnini, foi soldado. Outro pintor, Giorgio Schiavone, vendia sal e queijo. O sócio de Giorgione, Catena, parece ter sido vendedor de drogas e especiarias, e Giovanni Caroto de Verona possuía uma farmácia; essa combinação de arte e drogas pode ser explicada pelo fato de algumas farmácias venderem materiais artísticos. Os irmãos Fogolino combinavam seu trabalho de pintores com o de espiões para os venezianos em Trento. Antônio Squarcialupi tinha um açougue além de tocar órgão e ser compo sitor. Domenico Burchiello era barbeiro além de poeta cômico. Mariano Taccola era era notário além de escultor escultor e engenheiro. engenhe iro. Os dramat urgos Gio van ni Maria Cecchi e Anton Francesco Grazzini eram respectivamente comer ciante de lã e farmacêutico. 46 Essas ocupações são um alerta para que não atribuamos uma condição social elevada demais aos artistas e escritores do Renascimento. O STATUS D A S A R T E S
A condição social associada aos papéis do artista e do escritor era problemático. A questão era o aspecto especial da dificuldade mais geral de acomodar na estrutura social, à medida que progredia a divisão de trabalho, todos os papéis que não eram os de padre, cavaleiro e camponês
45
Sobre os huma nistas nis tas em cargos cargos de secretário em Veneza, veja King (1986), p. 294s. 294 s.
46
Plaisance (1974), p. 82n , questiona o feto feto de Grazzini ter sido realmente farmacêutico.
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- os que rezavam, lutavam e trabalhavam — as "três ordens" reconhecidas oficialmente na Idade Média (Duby, 1979; Niccoli, 1979). Se a condição socia sociall de artista era ambígu amb ígua, a, també ta mbé m o era a de comerci ante . E assim co mo os italianos, pelo menos em algumas regiões, progrediram na aceitação so cial do comerciante mais do que outros europeus, também é na Itália que a condição social do artista parece ter atingido seu ápice. Na discussão que se segue, a evidência da elevada condição social vem em primeiro lugar, seguida da evidência evidê ncia de desprezo e, fina finalm lmen ente te,, há uma tentat ten tativa iva de chegar chega r a uma conclusão equilibrada. Os artistas declaram regularmente que tinham ou deviam ter uma elevada elevada condiçã cond içãoo social. Cenn Ce nnin ini, i, no começo come ço do período perí odo,, e Leonardo Leon ardo,, no fim, fim, ambos comparam o pintor com o poeta, dizendo que tanto o pintor como o poeta usam a imaginação, sua fantasia. Ou t ro pon to a favor favor do alto status da pintura, e que revela algo dos preceitos ou mentalidade renascentistas, era que o pintor podia usar boas roupas enquanto trabalhava. Como diz Cennini: "Saiba que pintar um painel é trabalho de cavalheiro, pois você pode fazer o que quiser com veludo nas costas". E Leonardo: "O pintor senta-se à vontade diante de sua obra, vestido como quer, e mexe seu leve pincel com belas belas cores... muitas veze vezess ac ompa om panh nhad adoo por músicos ou leitores 47 de várias obras belas". Em seu tratado sobre pintura, Alberti desenvolve vários outros argumentos que são recorrentes nesse período, tais como o de que os pintores precisam estudar diversas artes liberais, como a retórica e a matemática, e um outro vindo'da Antigüidade — que na época romana as obras de arte atingiam preço elevado, e que cidadãos romanos importantes faziam com que seus filhos aprendessem pintura, e que Alexandre o Grande admirava o pintor Apeles. Algumas pessoas que não eram artistas parecem ter aceitado a proposta de que os pintores não eram artesãos comuns. O humanista Guarino da Verona escreveu um poema em honra de Pisanello, e o poeta da corte de Ferrara Ferrara dedicou um a elegia em latim a Cosi mo Tura, e Ariosto elogia Ticia no em seu Orlando Furioso (mais exatamente, ele inseriu o elogio a Ticiano na edição de 1532 de seu poema). Santo Antonino, arcebispo de Florença, observou que, embora em quase todas as ocupações o preço justo de uma libro deli arte, vol. 2; Leonardo da Vinci, Literary Works, ed. J. P. 47 Cennin i, // libro P. Richter. Oxford Oxf ord,, 1939.
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obra dependesse essencialmente do tempo e dos materiais empregados, "os pintores alegam, com mais ou menos razão, que o salário por sua arte deve ser pago não segund seg und o a quant qu ant idade id ade de trabalho, mas sim na pro por ção de sua dedicação e maior domínio de seus meios". 48 Quando o governante de Mântua deu uma casa para Giulio Romano, a escritura de doação abria com uma firme declaração da honra devida à pintura: "Dentre as artes famo sas de homens mortais sempre nos pareceu que a pintura é a mais gloriosa [praeclarissimus]... Notamos que Alexandre da Macedônia considerava-a de não pequena dignidade, visto que desejava ser pintado por um certo Apeles." (Hartt, 1958, doe. 69). Uns poucos pintores atingiram elevada condição social pelos critérios da época, recebendo sobretudo títulos de cavaleiros ou de nobres da parte de seus patronos. Gentile Bellini foi feito conde pelo imperador Frederico III, Mante gna tornou -se nobr e pela pelass mãos de Inocêncio Inocêncio VIII, eTici ano pel o imperador Carlos V. O pintor veneziano Cario Crivelli foi feito cavaleiro pelo príncipe Ferdinando de Cápua; Sodoma pelo papa Leão X; Giovanni da Pordenone pelo rei da Hungria. Para o patrono era uma maneira barata de recompensar os serviços, mas para o artista a honraria era verdadeira. Alguns pintores tinham postos administrativos que conferiam status além de rendimentos. Giulio Romano era funcionário da corte de Mântua, e os pinto res Giov anni da Udin e e Sebastiano dei Piomb Pi omb o eram eram funcioná func ioná rios da Igreja. Igreja. (O ( O apelid ape lidoo de Sebasti Seb astiano ano,, lacre, lacre, era referênci referênciaa à sua função d e Zelador do Selo.) Outros pintores rinham altos postos civis. Luca Signorelli era um dos priores de Cortona; Perugino, um dos priores de Perúgia; Jacopo Bassano, cônsul de Bassano; Piero delia delia Francesca, Francesca, conselheiro u rb ano d o Borgo San Sepolcro. Além disso, sabe-se de poucos pintores que tenham ficado ricos. Pisanello herdou uma fortuna, mas Mantegna, Perugino, Cosimo Tura, Rafael, Ticiano, Vincenzo Catena de Veneza e Bernardino Zenale de Treviso, parece que todos ficaram ricos com sua pintura. A riqueza lhes deu status, e os preços que cobravam demonstra que a pintura não era barata. O testemunho de Albrecht Dürer tem peso considerável. Em sua visita a Veneza, ele ficou impressionado com o fato de o status dos artistas
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Citado e discutido em C. Gilberc Gilberc (1959 ).
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ser mais alto do que em sua nativa Nuremberg, e escreveu para seu amigo, o humanista patrício Willibald Pirckheimer: "Aqui sou um cavalheiro, em casa um parasita [Hie bin ich ein Herr, doheim ein Schmarotzerf '.49 N o famoso diálogo de Castiglione, um dos interlocutores, Conde Ludovico da Canossa, declara que o cortesão ideal deve saber desenhar e pintar. Uns poucos patrícios venezianos do século XVI efetivamente o faziam, como Daniele Bárbaro.50 Provas de status semelhante se enco ntram entre escultores e arquitetos . O programa de estudos de Ghiberti para escultores, e de Alberti para ar quitetos, indica que essas atividades estão no mesmo nível das artes liberais. Alberti aconselhava os arquitetos a construir somente para homens de bem, "porque sua obra perde dignidade se for feita para pessoas de pouco valor". 51 A patente requerida por Federigo di Montefeltre em 1468, o governante de Urbino, em nome de Luciano Laurana, declara que a arquitetura é "uma arte de grande ciência e engenhosidade", e que "se baseia nas artes da aritmética e da geometria, que são as principais das sete artes liberais" (Chambers, 1970b, n° 104). Um decreto papal de 1540, liberando os escultores de pertencer às guildas dos "artesãos mecânicos", observava que os escultores "eram muito valorizados pelos antigos", que os chamavam de "homens de conhecimento e ciência" (yiristudiosietscientificí) (Ste inma nn, 190 5, vol. 2, p. 754). Alguns escultores, como Andréa il Riccio de Pádua, por exemplo, tinham poemas feitos em sua homenagem. Alguns eram feitos nobres. O rei da Hungri a, Ma tth ias Corvinus-, não só fez de Giovan ni Da lm at a u m nobr e como lhe deu também um castelo. Carlos V sagrou Leone Leoni e Baccio Bandinelli cavaleiros de Santiago. A obra de Ghiberti o enriqueceu o sufi ciente para poder comprar uma propriedade completa, com mansão, fosso e ponte levadiça. Outros prósperos escultores e arquitetos são Brunelleschi, os irmãos da Mai an o, B ernar do Rossellino, Simone il Cro nac a de Florença, Giovanni Amadeo de Pavia, e, dentre os mais ricos de todos, Ticiano.
49
Dürer, Carta a Pirckheimer, 13 de outub ro de 1506, Scbriftlicher Nachlass, vol. 1, p. 4ls.
50 Castiglione, II cortegiano, livro 1, cap. 49; sobre Barbero, veja Dolce,An'tino,
p. 106s.
51 Ghiberti, I commentari, 2, sugere que o escultor deveria estudar dez disciplinas, que ele de no mina "artes liberais": gramática, geometria, filosofia, medicina, astrologia, perspectiva, história, anatomia, desenho e aritmética.
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TICIANO: RETRATO DE GIULIO ROMANO Coleção Particular
As casas d os artistas eram sinal d e sua condição social ascendente; em parti cular os palácios de Mantegna e Giulio Romano em Mântua, e o de Rafael em Roma (cf. Conti, 1979 , p. 206s). Os compositores d o período às vezes se comparam ao s poetas. Johannes de Tinctoris, que possuía impecáveis credenciais como teórico 97
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acadêmico de música, dedicou seu tratado sobre modos a dois executantes, Ockeghem e Busnois, coisa nada usual, uma vez que a posição convencio nal era de que a teoria era senhora e a prática (tanto a composição como a interpretação) meramente servidora. Grande número de compositores era tratado com honra na Itália dessa época, embora não seja fácil decidir se isso era tributo a suas composições ou a suas interpretações (se é que essa distinção era, de fato, levada a sério). Os humanistas Guarino de Verona e Filippo Beroaldo escreveram epigramas em honra do alaudista Piero Bono, e foram lançadas medalhas em sua honra. Ficino e Poliziano escreveram elegias quando da morte do organista Squarcialupi, e Lorenzo de'Medici compôs-lhe um epitáfio e mandou erigir um monumento em sua honra na catedral de Florença. O papa Leão X, filho de Lorenzo, concedeu título de conde ao alaudista Gian Maria Giudeo, e Filipe o Belo, da Borgonha, fez o mesmo com o cantor-compositor italiano Mambriano da Orto. As elaboradas preparações para receber Jakob Obr ec ht em Ferrara de mon str am o quanto ele era estimado pelo duque Ercole d'Este. Na corte de Mântua, na época da filha de Ercole, Isabella, Marchetto Cara e Bartolommeo Tromboncino foram membros honrados de um círculo musical. Em Veneza, Willaert, mestre da capela de San Marco, morreu rico, e Gioseffe Zarlino, outro mestre de San Marco, teve medalhas lançadas em sua homenagem pela República, e terminou seus dias como bispo (Anthon, 1946; Bridgman, 1964, cap. 2; Lowinsky, 1966). Um bom número de humanistas também atingiu elevada condição social. No caso de Florença, discute-se que os humanistas pertenciam a 10% das famílias florentinas mais importante s. Leonardo Brun i, Poggio Bracciolini, Cario Marsuppini, Giannozzo Manetti e Matteo Palmieri, por exemplo, eram homens ricos. Bruno, Poggio e Marsuppini, todos tinham o alto cargo de chanceler de Florença, enquanto Palmieri teve postos civis pelo menos 63 vezes e Manetti fez distinta carreira como diplomata e magistrado. Desses cinco, três eram nascidos na classe alta, e Bruni (filho de um comer ciante de cereais) e Poggio (filho de um pobre farmacêutico) chegaram à alta classe por seus esforços. Todos cinco fizeram bons casamentos. Finalmente, Bruni, Marsuppini e Palmieri receberam esplêndidos funerais oficiais. 52
52 Martines (196 3), um estudo sobre 45 humanistas do período entre 1390 e 1460.
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No caso de Florença não ser típica, talvez seja útil darmos uma olha da em 25 humanistas nascidos fora da Toscana e ativos no século XV e no começo do século XVI. 53 Desses 25, pelo menos 14 tinham pais da classe alta, e apenas três eram definitivamente de origem humilde (Gua rino , Vi tt orino e Platina). Dois receberam títulos de nobreza: Filelfo do rei Alfonso de Aragão, Nifo do papa Leão X e de Carlos V Três eram famosos professores universitários: o advogado Andréa Alciato, o filósofo Pietro Po mponazzi e o crítico literário Sperone Speroni. Os venezianos Ermolao Bárbaro e Andréa Navagero tinham notáveis carreiras políticas como senadores e embaixadores. Ângelo Decembrio, Antônio Loschi, Mario Equicola e Giovanni Pontano tinham altos postos administrativos ou diplomáticos nas cortes de Milão, Mântua e Nápoles. Segundo padrões mundanos, todos eles parecem ter tido carreiras bem-sucedidas. Mas existe out ro lado nesse pan ora ma. Artistas e escritores não eram respeitados po r todos. Alguns mem bro s da elite cujas obras fora m reconhecidas pela posteridade tiveram momentos difíceis em sua época. Três preconceitos sociais contra artistas foram fortes nesse período. Os artistas eram considerados ignóbeis porque seu trabalho envolvia traba lho man ual , porq ue envolvia venda no varejo e por que eles não t i nh am aprendizado. Us a nd o um a classificação do sécul o XII ai nd a co rr en te no Renascimento, a pintura, a escultura e a arquitetura não eram artes "libe rais", mas artes "mecânicas". Eram também sujas: um nobre não gostaria de sujar as mãos manipulando tintas. O argumento originado na Anti güi dade, que Alberti usou em defesa dos artistas, era, de fato, um a faca de dois gumes, uma vez que Aristóteles excluíra do artesão a condição de
53 A primeira edição deste livro arrolava 32, inclui ndo alguns gregos. Estes 25 são os segui ntes: Andréa Alciato, de Alzate, na Lombardia; Ermolao Bárbaro, de Veneza; Filippo Beroaldo, de Bolonha; Flavio Biondo, de Forli, nos Estados Papais; Ângelo Decembrio, da Lombardia; Mario Equicola, de Caserta; Bartolommeo Fazio, de La Spezia, na Ligúria; Francesco Filelfo, de Tolentino, perto de Ancona; Guarino Veronese; Pomponio Leto, de Lucânia; Antônio Loschi, de Vicenza; Pietro Marcire d'Anghiera, da Lombardia; Andréa Navagero, de Veneza; Agostino Nifo, da Calábria; Antônio Panormita, de Palermo; Giovanni Pico, de Mirândola; Bart olo mmeo Platina, de Cremona; Pietro Pomponazzi, de Mântua; Giovanni Pontano, de Ponte na Umbria; Sperone Speroni, de Pádua; Giorgio Valia, de Piacenza; Lorenzo Valia, de Roma; Maffeo Vegio , de Lodi; Pietro Paolo Vergerio o pai, de Capodistria; Vittorino da Feltre, de Vêneto.
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cidadão, porque seu trabalho era mecânico, e Plutarco declarara em sua biografia de Péricles que nenhum homem de boa família haveria de querer ser escultor como Fídias (Mondolfo, 1954). É bem conhecido o violento protesto de Leonardo contra essas posições: "Você coloca a pintura entre as artes mecânicas!... Se você a chama de mecânica porque é por meio do trabalho manual que as mãos representam aquilo que a imaginação cria, também seus escritores registram o que se origina na mente por trabalho manual com a pena". Ele podia ter acrescentado o exemplo de lutar com a espada na mão. Mas até mesmo Leonardo compartilhava o preconceito contra os escultores: "O escultor produz sua obra pelo... trabalho mecânico, geralmente acompanhado de suor que se mistura ao pó e se transforma em lama, de forma que seu rosto fica branco e ele fica parecendo um padeiro" 54 A segunda coisa que se dizia comumente contra artistas é que ganha vam a vida vendendo no varejo, de forma que mereciam o mesmo baixo status de mascates e verdureiros. Nobres , por out ro lado, ti nham vergonha de aceitar dinheiro por seu trabalho. Giovanni Boltraffio, um nobre e humanista lombardo que também pintava, geralmente trabalhava em pequena escala, talvez porque pretendesse fazer de seus quadros presentes para amigos, e seu epitáfio frisava bem sua condição de amador. Leonardo lançou também esta acusação no rosto dos humanistas: "Se você chama de mecânico porque é feito por dinheiro, quem cai nesse erro... além de vocês mesmos? Se você ensina em escolas, não vai aonde lhe pagam melhor?". 55 Na prática, quas<= sempre se fazia uma distinção entre estar na folha de pagamentos de um príncipe, o que podia acontecer com as melhores pessoas, e manter um ateliê. Michelangelo insistia muito nessa distinção: "Nunca fui pintor e escultor desses que abrem um est údio com essa finalidade. Sem pre me impe di de fazer uma coisa dessas por respeito a meu pai e irmãos". 56 De maneira se melhante, Vasari, depois de anos a serviço dos Mediei, podia, em sua vida de Perino dei Vaga, referir-se com desdém a um pintor menor como "um
54 Adapta do de Leonar do da Vinci, Literary Works, ed. J. P. Richter, Ox ford, 1939. 55 Ibid., p. 91 . 56 Michelangelo, Carta de 2 de maio de 1548, Carteggio: tradução para o inglês de Ramsden.
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daqueles que tem ateliê aberto e fica lá em público, trabalhando em todo tipo de tarefas mecânicas". O terceiro preconceito contra as artes visuais era de que os artistas eram "ignorantes"; em outras palavras, que lhes faltava um certo tipo de treinamento (em teologia e nos clássicos, por exemplo), que gozavam de estima mais alta do que o treinamento que eles tinham recebido e seus críticos não. Quando o cardeal Soderini tentou desculpar a fuga de Michelangelo de Roma (adiante, p. 131), disse ao papa que o artista "errou por ignorância. Os pintores são assim tanto em sua arte como fora dela". E um prazer declarar que Júlio não concordava com esse preconceito. Ele disse abertamente a Soderini: "Você é o ignorante, não ele!" (Condivi, 1964, p. 45). Emb ora alguns artistas, já mencionados, tenham enriquecido por meio de sua arte, muitos continuaram pobres. Sua pobreza era, provavelmente, tanto causa como resultado dos preconceitos contra as artes. O pintor sienense Benvenuto di Giovanni declarou em 1488 que "Os ganhos em nossa profissão são parcos e limitados, porque po uco se produ z e menos se recebe" (Coor, 1961, p. 10). Vasari afirmou coisa semelhante: "O artista hoje luta para evitar a fome em vez de conquistar fama, e isso esmaga e sepulta seu talento e obscurece seu nome". O comentário de Vasari poderia ser descar tado como inconsistente e contraditório com aquilo que ele diz em outras ocasiões (sem falar de sua própria riqueza). As observações de Benvenuto, por outro lado, provêm dos impostos que devia pagar, e que sabia que seriam inspecionados. O mesmo vale para Verrocchio, cuja declaração de 1457 diz que não está ganhando o suficiente para "manter as calças" de sua firma [rion guadagniamo le chalze) (Mather, 1948). Botticelli e Neroccio de'Landi foram devedores. Lotto uma vez viu-se reduzido a tentar rifar trinta quadros, e só foi capaz de se livrar de sete deles. Os huma nistas nem sempre faziam fortuna e não eram invariavelmen te respeitados. Conta-se que o acadêmico grego Janos Argyropoulos ficou tão pobre em determinado momento que foi forçado a vender seus livros. Bartolo mme o Fazio tin ha uma carreira de altos e baixos, nu m mo mento professor em escola de Veneza e de Gênova, em outro notário em Lucca, antes de chegar a um emprego seguro e bem pago como secretário de Alfonso de Aragão. Bartolommeo Platina trabalhou em uma variedade de ocupações — soldado, professor particular, corretor de imprensa, secretário - antes de se 101
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tornar bibliotecário do Vaticano. Ângelo Decembrio foi professor em Milão, Pomponio Leto o foi em Veneza e Francesco Filelfo em diversas cidades. Jacopo Aconcio foi notário, depois secretário do governador de Milão, e em outra ocasião tentou a sorte na Inglaterra. Esses foram os humanistas que tiveram algum destaque. Para calcular o status do grupo como um todo, é também necessário considerar os menos importantes. Idealmente, se as provas permitirem, dever-se-ia fazer um estudo das carreiras de todos os estudantes de humanidades. E até que esse estudo seja publicado, é difícil fazer mais que adivinhações sobre o status dos humanistas. Meu palpite seria de que havia uma distância considerável entre as poucas estrelas e a maioria menos bem-sucedida, mesmo que um professor de cidade pequena ou um empobrecido revisor de imprensa pu dessem gozar de status superior ao de um bem-sucedido, mas "ignorante", artista. Os músicos, cujo baixo status foi lamentado por Alberti, parecem ter posição semelhante. Para cada alaudista recompensado por um patrono tão generoso quanto Leão X, deviam existir muitos que eram pobres, uma vez que havia poucas cortes italianas e ainda men os posições honro sas fora delas. Resum ind o, é tenta dor escolher a saída mais fácil e concluir com uma nota de "por um lado... por outro lado". No entanto, é possível estabelecer alguns pontos mais precisos, três ao menos. Assim como no caso do treina mento, também em relação à condição social, a elite formava duas culturas, com a literatura, o humanismoe a ciência gozando de mais respeito do que as artes visuais e a música. Mesmo assim, escolher as humanidades como carreira significava assumir risco considerável. Muitos eram treinados, mas poucos eram eleitos. Em segundo lugar, os artistas do Renascimento eram um exemplo do que os sociólogos chamam de "dissonância de status" '. Alguns atingiam elevada condição social, outros não. Segundo alguns crité rios, os artistas mereciam honrarias; segundo outros, eram apenas artesãos. Os artistas eram, de fato, respeitados por alguns nobres e poderosos, mas eram desprezados por outros. A insegurança social que disso resultava pode bem explicar a suscetibilidade de certos indivíduos, como Michelangelo e Cellini. Em terceiro lugar, o status tanto de artistas como de escritores era provavelmente mais alto na Itália do que em outras partes da Europa; mais alto em Florença do que em outras partes da Itália; e mais alto no século XVI do que havia sido no XV. Em meados do século XVI, não era mais 10
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incomum que artistas tivessem algum conhecimento das humanidades; a distinção entre as duas culturas estava se rompendo. 57 A mobilidade social de pintores e escultores é simbolizada, se não confirmada, pelo apa rec ime nto do termo "artista" mais ou menos com seu sentido moderno. ARTISTAS C O M O TRA NSV IAD OS
SOCI AIS
Se um artista não era um artesão comum, o que era ele? Ele podia, se quisesse, imitar o estilo de vida de um nobre, modelo adequado para aqueles dotados de fortuna, autoconfiança e habilidade de se comportar de forma algo semelhante ao Cortesão de Castiglione. Um bom número de artistas, sobretudo do século XVI, é descrito nesses termos no Vidas, de Vasari. Um exemplo óbvio é Rafael, que era na verdade um dos amigos de Castiglione. Outros exemplos do artista como cavalheiro são Giorgione; Ticiano; o parente de Vasari, Signorelli; Filippino Lippi, descrito como "afável, cortês e um cavalheiro"; o escultor Gian Cristoforo Romano (que faz uma aparição em O cortesão); e um pequeno número de outros, inclusive, claro, o próprio Vasari. Mesmo assim, o artista que adotava esse papel ainda tin ha de enfrentar o preconceito social contr a o trabalho ma nua l, com o foi descrito acima. Para aqueles que não estavam mais contentes com a posição de artesãos comuns, mas que não tinham a educação e a pose suficientes para se fazer passar por cavalheiros, desenvolveu-se um terceiro mo de lo nesse período (é difícil dizer até que ponto esse terceiro modelo era consciente): o papel de excêntrico ou de desajustado social. E preciso fazer algumas distinções neste ponto. Vasari e outros re gistraram uma série de histórias altamente dramáticas sobre artistas do período que mataram ou feriram homens em brigas (Cellini, Leone Leoni e Francesco "Torbido" de Veneza) ou cometeram suicídio (Rosso, Torrigiani). Outros são descritos pelos contemporâneos como "sodomitas" (Leonardo, "Sodoma"). É difícil avaliar a significação dessas histórias. Não há provas suficientes para determinar se esses artistas eram o que se diz deles, e mesmo que o fossem, não podemos concluir de uns poucos casos que os artistas
57 Sobre a educação recebida pelo artista no final do século XVI, veja Dempscy (1980) , Rossi (1980).
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eram mais propensos do que outros grupos sociais a matar outros ou a si mesmos ou a ama r pessoas do mes mo sexo (Wittkower, 196 3). Há uma veia muito mais rica de comentários contemporâneos sobre um tipo mais significativo de excentricidade associada a artistas: os hábitos de trabalho irregulares. Em uma das histórias de Matteo Bandello, que estava em posição de o saber, há uma vivida descrição da maneira como Leonardo trabalhava, que enfatiza seu "capricho" {capriccio, ghiribizzò).58 Vasari faz comentários semelhantes a respeito de Leonardo, e conta uma história em que o artista, para justificar para o duque de Milão suas longas pausas, usa o seguinte argumento: "Homens de gênio às vezes conseguem mais quando trabalham menos; pois estão pensando em projetos [inventioní]". O conceito-chave aqui é relativamente novo, é o de "gênio" (gênio), que transformou de limitação em vantagem a excentricidade do artista). 59 Os patronos tiveram de aprender a lidar com isso. Em certa ocasião, o marquês de Mântua, explicando à duquesa por que Mantegna não havia produzido uma determinada obra no prazo, fez a conformada observação: "esses pinto res sempre têm um toque de fantástico" [hanno deifantasticho] (Chambers, 1970b, n° 61). Outros clientes eram menos tolerantes. Do pintor Jacopo Pontormo, Vasari observa que "O que mais incomodava os outros é que ele só trabalhava quando e para quem queria e do jeito que queria". Os com positores - ou seus patronos — tinham problemas semelhantes. Quando o duque de Ferrara quis contratar um músico, mandou um de seus agentes ver — e ouvir — He inri ch Isaak é Josqu in des Près. O agente declarou que "é verdade que Josquin compõe melhor, mas só quando tem vontade, não quando lhe pedem". Isaak é que foi contratado (van der Straeten, 1882, p. 87; veja adiante p. 135). No caso de outros artistas, sua excentricidade assumia a forma de trabalhar demais e não de menos, e de negligenciar tudo que não fosse sua arte. Vasari conta uma série de histórias assim. Masaccio, por exemplo, era distraído (persona astratissimd); "Havendo fixado sua mente e vontade inteiramente nas questões da arte, pouco se importava consigo mesmo e menos ainda com os outros... sob circunstância alguma ele pensaria nos
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Bandello, AfozW/ir (1 554) , novela 58, dedicatória.
59
Sobre a idéia de gênio, veja Zilsel (1926). Cf. Klibansky et ai. (19 64) .
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PALMA VECCHIO: RETRATO DE UM POETA © National Gallery, Londres
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cuidados e preocupações deste mundo, nem mesmo as próprias roupas, e não tinha o hábito de ir receber dinheiro das pessoas que lhe deviam". Paolo Uccello era tão fascinado com sua "doce" perspectiva que "vivia recluso em casa, quase como um eremita, durante semanas e meses, sem saber de muita coisa que acontecia no mundo e sem se mostrar". 60 Vasari traça também um vivido relato da "estranheza" de Piero di Cosimo, que era distraído, adorava a solidão, não permitia que varressem seu quarto, e não tolerava crianças chorando, homens tossindo, sinos tocando ou frades cantando (será que essa maneira de se preservar da distração é realmente tão "estranha"?). O fato de Masaccio, na Florença do começo do século XV, ser mos trado como desinteressado em dinheiro é um traço que merece ênfase. Desprezo ainda mais conspícuo pela riqueza é demonstrado por Donatello, de quem "dizem aqueles que o conheceram que guardava todo seu dinheiro em um cesto, pendurado do teto de seu estúdio, de forma que qualquer podia pegar o que quisesse, quando quisesse".61 Isso muito se assemelha a um a rejeição con sci ent e do s valores fundamentais da sociedade florentina. O porquê de Donatello rejeitar esses valores surge em outra história de Vasari, sobre um busto feito pelo escultor para um comerciante genovês, que disse ter sido exp lorado, porque o preço chegava a mais de meio florim por dia de trabalho. Donatello considerou-se violentamente ofendido por essa obser vação, voltou-se furioso para o comerciante, e disse que ele era o tipo de homem capaz de arruinar o fruto de um ano de trabalho no último instante; e com isso atirou o busto no meio da rua, onde se partiu em pedaços, e acrescentou que o comerciante estava mais acostumado a barganhar feijões do que bronzes.
60
Masaccio morreu em 1428, Uccello em 1475. Vasari pod e ter descoberto essas coisas sobre eles por intermédio da tradição oral de Florença, mas no caso de Masaccio isso teria ocorrido mais de cem anos depois. Os leitores podem fazer sua própria avaliação da veracidade das informações transmitidas ao longo de tanto tempo.
61
A história é mais bem conh ecida na versão de Vasari, mas cito uma versão corrente 50 anos mais próxima da época de Donatello, constante em Gauricus, Desculptura, p. 53.
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Não importa se o argumento é de Donatello ou de Vasari, a moral é clara: obras de arte não são produtos comuns e os artistas não são trabalha dores comuns pagos por dia. Isso relembra o que o Procurador-Geral disse a Whistler sobre seu Nocturne, e o que o pintor respondeu: "Entã o você cobra 20 0 gui néus pelo trabalho de dois dias?". "Não: cobro isso pelo conhecimento de uma vida inteira." Em 18~8 esse argumento ainda precisava ser usado. Porém, a questão estava já muito viva na Itália do Renascimento. O arcebispo de Florença reconheceu, como vimos (p. 94), que os artistas tinham certa razão em preten der ser considerados diferentes de trabalhado res co mu ns . Francisco de Holland a, um português do círculo de Michel angelo , arg um en to u aind a com mais eloqüência que "obras de arte não devem ser julgadas pela quan tidade de trabalho inútil despendido nelas, mas pelo valor da habilidade e domínio de seu criador [Io merecimento do saber e da mão que as faz]".62 A mesma idéia, que o artista não é um tra bal had or c om um, po de muito bem frisar o comportamento de Pontormo (sempre segundo Vasari) quando rejeitou uma boa encomenda e em seguida fez alguma coisa "por um preço miserável". Ele estava demonstrando a seu cliente que era um homem livre. A excentricidade artística trazia uma mensagem social.
62 De Holland a, D~pirmra antigtut, 59 (terceiro diálogo).
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4 PATRONOS E CLIENTES í s
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Por que pensa que havia tantos homens capazes no passado, a não ser porque eram bem tratados e honrados pelos príncipes? Filarete, Trattato di Architettura Não consigo viver sob pressão de patronos, quanto mais pintar. Michelangelo, Oarteggio
s sistemas de patronato diferem. Pode ser útil distinguir cinco tipos principais. Primeiro, o sistema doméstico: um ho me m rico recebe u m artista ou escritor em sua casa durante alguns anos, dá-lhe alojamento, alimentação e presentes, e espera com isso ter atendidas suas necessidades artísticas e literárias. Segundo, o sistema sob medida: também uma relação pessoal entre o artista ou escritor e seu patrono ("cliente" po de ser um me lh or termo neste caso), mas uma relação temporária, que dura apenas até a pintura ou o poema ser entregue. Terceiro, o sistema de mercado, no qual o artista ou escritor apresenta algo "já pronto" e tenta vender, seja diretamente ao pú blico seja através de um comerciante. Esse terceiro sistema estava emergindo na Itália do período, embora os dois primeiros tipos fossem dominantes. Os quarto e quinto tipos não existiam ainda: o sistema da academia (controle governamental por meio de uma organização formada por artista e escritores confiáveis) e o sistema de subvenção (no qual uma fundação mantém os indivíduos criativos, sem se apossar do que produzem). 1 Este capítulo se ocupa de dois problemas: o primeiro é descobrir que tipo de pessoa encomendava trabalhos a artistas, e por que o faziam, e o segundo é avaliar até que ponto o patrono ou cliente, em vez do artista ou escritor,
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Edwards (1968) distingue qua tro tipos; eu subdividi seu sistema "personalizado" em dois .
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determinava a forma e o conteúdo do trabalho. Ao fundo paira a questão mais fugidia mencionada nas epígrafes acima. O sistema de patronato era animador ou desanimador para artistas e escritores? Em outras palavras, o Renas cimento aconteceu na Itália por causa desse sistema ou apesar dele? 2 Q U E M S ÃO O S P A T R O N O S ?
Os patronos podem ser classificados de diversas maneiras. A divisão em eclesiásticos e leigos é simples e útil, pelo menos à primeira vista, fazen do um contraste entre os monges de San Pietro de Perugia (digamos), para qu em Perugino pint ou u m altar da Ascensão, com Lorenzo Pierfrancesco de'Medici (não o famoso Lorenzo, mas seu primo), para quem Botticelli pintou a Primavera. A Igreja era, trad icionalmen te, o gran de pa tron o das artes, e essa é a razão óbvia para a predominância de pinturas religiosas na Europa durante um longo período (do século IV mais ou menos até o XVII). Na Itália do Renascimento porém é possível que a maior parte das pinturas religiosas fosse encomendada por leigos. Eles podiam encomendar a pintu ra de uma igreja (uma capela familiar, por exemplo); Palia Strozzi pediu a Gentile da Fabriano que pintasse sua Adoração dos magos para depe ndu rar na capela Strozzi na igreja de Santa Trinità, em Florença. Pessoas leigas podiam também encomendar pinturas religiosas para pendurar em suas casas. Os Mediei faziam isso, por exemplo, como sabemos pelo inventário de seus palácios (Müntz, 1888). Assim como os leigos enc omenda vam obras religio sas, o clero encomendava pinturas com assuntos seculares, como o Parnaso que Rafael pintou para Júlio II no Vaticano. Seria interessante saber se os leigos encomendavam mais obras seculares ou se a gradual secularização da pintura refletia a secularização do patronato, mas as provas são fragmentárias demais para que se possa responder a tal pergunta. Uma segunda maneira de classificar os patronos é distinguir entre público e privado. O patronato das guildas no começo do século XV em
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Sobre o patr onat o nas artes, veja Burckhar dt (18 98); Wackernagel (1938), part e 2; Cha mbers (1970b) ; Baxandall (1972) , pp. 3-14; Logan (19 72), cap. 8; Settis (1978, 1981); Gundersheimer (1981); Goffen (198 6); Kent e Simons (1987); levantamentos gerais em Hollingsworth (1993) e Welch (1997), pp. 103-29. Sobre música, Bridgman (1964), cap. 1, Fenlon (1980), e Feldman (1995), pp. 3-82
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Pi T t O M S E U II NI ES
Florença é particularmente bem conhecido. A guilda da lã, a Arte delia Lana, era responsável pela ma nut enç ão da catedral, o que impli cava nova s encomendas; uma para Donatello de uma estátua do profeta Jeremias, outra para Michelangelo para o seu Davi. A guilda de tecidos, a Calimala, era responsável pelo Batistério, e por isso foi essa guilda que encomendou a Ghiberti as suas famosas portas. Tanto as guildas menores como as maio res colocaram estátuas na fachada da igreja de Orsanmichele; o São Jorge de Donatello por exemplo, foi encomendado pelos armadores. As guildas se interessavam tanto por pintura como por escultura. Em 1433, a guilda do linho encomendou a Fra Angélico a pintura de uma Madona para o seu saião. 3 Outro tipo de patrono corporativo, ainda mais importante, ao se levar em conta todo o período e toda a história da Itália, era a irmandade religiosa (discutida no Capítulo 9). A irmandade era de fato um clube social e religioso, geralmente ligado a uma igreja determinada, que podia efetuar obras de caridade e também funcionar como banco. O patronato das irmandades venezianas, conhecidas como scuoíe, era partic ularment e generoso. O s imensos quadr os de Santa Ürsula que Vittore Carpaccio pin to u em 14 90 eram destinados ao salão da guilda dedicado à santa, uma guilda pequena com sociedade mista de homens e mulheres, nobres e plebeus (M ol me nt i e Ludwig, 1903). 4 Ainda mais importante era o patronato das seis scuole grande, inclusive a S. Giovanni Evangelista, para a qual Gentile Bellini pintou muitos quadros grandes, e a San Rocco, cujos Tintcrettos ainda podem ser vistos no salão da irmandade. Na verdade, o valor que gastavam em construção e festivais era tão grande que chegou a provocar críticas dos contemporâneos, que achavam que todo esse gasto era feito à custa da caridade com os pobres, que era o propósito original dessas organizações (Pullan, 1971, p. 119s). O patronato das irmandades era importante não só em Veneza, mas por toda a Itália, como nos lembram as pinturas de Vecchietta e Battista Dossi. A Virgem das rochas de Leonardo foi enc ome ndad a por uma i rm an dade, a da Conceição da Virgem da igreja de San Francesco de Milão. Foi 3
Baron (1938) reforça a importância do patronato civil fiorentino. Sobre Veneza, veja Humf re y e Mackenney (1986). Os documentos 20-30 de Chambers (1970b) tratam das guildas.
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Sobre as scuole, de modo mais abrangente, veja Pullan (1971, 1981).
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a irmandade de Corpus Christi de Urbino que encomendou a Instituição da Eucaristia, de Justus de Ghe nt, assim co mo a Profanação da hóstia, de Uccello. A importância de organizações como essas na história da arte é que possibilitou a participação patronal de pessoas que não tinham dinheiro para encomendar obras individualmente. Seria maravilhoso saber as discussões que aconteciam para se escolher um determinado artista ou assunto. E intrigante descobrir que, em 1433, a Junta de Trabalhadores da Catedral (a Operai dei Duomo) de Florença delegou auto rida de a um ho me m para definir os detalhes de uma encomenda a Donatello. Será que foi porque a Junta não conseguia chegar a um acordo? Será que grupos tendiam a ter gostos mais conservadores do que indivíduos, como ocorre no geral nestes últimos séculos, ou será anacrônica essa suposição? Outro tipo de patrono corporativo era o Estado, seja república seja principado. Foi a Signoria, o governo de Florença, que en co mendou a Batalha de Anghiari, de Leo nardo , e seu par a Batalha de Cascina, de Michelangelo. Em Veneza, existia uma posição oficial de Protho, ou arquiteto da República (ocupada por Jacopo Sansovino, entre outros), e uma posição quase oficial de pintor da República (oferecida a Dürer em determinada ocasião, e ocu pada por Giov anni Bellini e por Tic ian o) (Logan, 1972, p. 18 ls; Howa rd, 1975; Hope, 1980, p. 98). Porém um único pintor não podia dar conta de todas as encomendas do Estado. Em 1495, havia nove pintores, inclusive Gio van ni Bellini e Alvise Vivarini, trabalhando em'cenas de batalha para decorar o Salão do Grande Conselho do Palácio dos Doges. Os problemas do patronato por comitê aparecem claramente nos documentos referentes à cena de batalha feita por Ticiano nesse mesmo palácio. Em 1513, o pintor fez uma petição ao Conselho dos Dez pedindo permissão para pintá-la com a ajuda de dois assistentes. Sua oferta foi aceita (10 votos contra 6); Bellini protestou. Em março de 1514, o decreto foi revogado (14 votos a 1) e os assistentes foram cortados da folha de pagamento; Ticiano protestou. Em novembro, a revo gação foi revogada (9 votos a 4), e os assistentes reapareceram na folha de pagamento. Constatou-se depois que havia sido gasto o triplo da quantia devida, e todo o arranjo foi cancelado. Ticiano concordou em ficar com um assistente apenas e sua oferta foi aceita em 1516, mas a cena de batalha ainda estava inacabada em 1537 (Lorenzi, 1868, pp. 157-65; Chambers, 1970b, n° 42-3). 112
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No caso dos príncipes é sempre difícil decidir se o patronato é público ou privado, ou, de fato, se o próprio patrono encomendou pessoalmente todas as obras de arte executadas para ele. O que fica claro é que o estilo de patronato principesco era muito diferente do das guildas, irmandades e comitês. Não eram os atrasos, mas geralmente a impaciência dos patronos que perturbava os artistas que trabalhavam para um príncipe. "Queremos que trabalhe em algumas pinturas que gostaríamos que fossem feitas, e gostaríamos que você, assim que receber esta menssagem, largasse tudo, montasse em seu cavalo e viesse até aqui", escreveu o duque de Milão ao pintor lombardo Vicenzo Foppa. O mesmo governante orde nou que os pintores trabalhassem dia e noite para decorar o Castello Sforzesco, e uma crônica contemporânea conta a his tória de uma sala pintada em "uma única noite". Seu sucessor era igualmente exigente e em uma ocasião resolveu, como ele próprio diz, "mandar pintar com histórias nosso salão de baile em Milão, na maior velocidade possível" (Malaguzzi-Valeri, 1902; Chambers, 1970b, n° 96-100). Alfonso d'Este de Ferrara era homem da mesma cepa. Quando Rafael o deixou esperando, Alfonso mandou-lhe um recado: "Cuide de não provocar nossa ira". Quando Ticiano deixou de produzir uma pintura no prazo, em 1519, Alfonso instruiu seu agente: "Dizer a ele que estamos surpresos de
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No caso dos príncipes é sempre difícil decidir se o patronato é público ou privado, ou, de fato, se o próprio patrono encomendou pessoalmente todas as obras de arte executadas para ele. O que fica claro é que o estilo de patronato principesco era muito diferente do das guildas, irmandades e comitês. Não eram os atrasos, mas geralmente a impaciência dos patronos que perturbava os artistas que trabalhavam para um príncipe. "Queremos que trabalhe em algumas pinturas que gostaríamos que fossem feitas, e gostaríamos que você, assim que receber esta menssagem, largasse tudo, montasse em seu cavalo e viesse até aqui", escreveu o duque de Milão ao pintor lombardo Vicenzo Foppa. O mesmo governante orde nou que os pintores trabalhassem dia e noite para decorar o Castello Sforzesco, e uma crônica contemporânea conta a his tória de uma sala pintada em "uma única noite". Seu sucessor era igualmente exigente e em uma ocasião resolveu, como ele próprio diz, "mandar pintar com histórias nosso salão de baile em Milão, na maior velocidade possível" (Malaguzzi-Valeri, 1902; Chambers, 1970b, n° 96-100). Alfonso d'Este de Ferrara era homem da mesma cepa. Quando Rafael o deixou esperando, Alfonso mandou-lhe um recado: "Cuide de não provocar nossa ira". Quando Ticiano deixou de produzir uma pintura no prazo, em 1519, Alfonso instruiu seu agente: "Dizer a ele que estamos surpresos de não haver terminado nosso quadro; que deve terminá-lo, aconteça o que acontecer, ou incorrerá em nossa insatisfação; e que poderá ser levado a sentir que está fazendo algo errado com alguém em posição de ressentir-se com isso". 5 Outro patrono impaciente era Federico II, marquês de Mântua. Por exemplo, ele escreveu a Tic ian o, em 1531 , pe di ndo um q uadro de Santa Maria Madalena, "e acima de tudo, que o faça rápido". (Ticiano o mandou em menos de um mês.) Quando Giulio Romano e seus assistentes não de coraram o Palazzo dei Te na veldtidade desejada, o marquês escreveu que "Não estamos satisfeitos com o fato de ter mais uma vez deixado passar tantas datas em que se havia comprometido a terminar". Giulio respondeu obsequiosamente que "A minha maior dor é quando Sua Excelência se zanga... se lhe for agradável, mande prender-me naquela sala até que esteja pronta". Isso parece bastante distante da comparação que Federico fez de
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Adaptad o da tradu ção inglesa em Crowe e Cavalcaselle (18 81), pp. 183- 4.
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BATTISTA DOSSI: MADONA COM SANTOS E A CONFRATERNIZAÇÃO
Galleria Estense, Modena 115
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seu pintor com Apeles (acima, p. 94), a menos que Alexandre o Grande tratasse seus pintores da mesma forma (Hartt, 1958, vol. 1, pp. 74-5; texto original em D Arco, 1842, apêndice). Talvez a distinção mais importante seja a apresentada no início deste capítulo: entre patronos, geralmente príncipes, que tomavam artistas a seu serviço de modo mais ou menos permanente (Leonardo em Milão, Mantegna em Mântua, e assim por diante) e clientes, que apenas encomen davam u ma única obra. D o pont o de vista do artista, à medida qu e é possível reconstruir os sistemas, cada um deles tinha suas vantagens e desvantagens. O serviço permanente na corte dava ao artista uma posição relativamente elevada, evitando a mác ula social de man te r u m ateliê. Significava ta mb ém relativa segurança econômica; alojamento e alimentação e presentes, como roupas, dinheiro e terras. Quando um príncipe morria, porém, o artista podia perder tudo. Quando o duque de Florença, Alessandra de'Medici, foi assassinado em 1537, Giorgio Vasari, que estava a serviço do duque, viu suas esperanças "levadas pelo vento". Outra desvantagem do sistema era a sua servidão. Na corte de Mântua, Mantegna tinha de pedir licença para viajar ou aceitar encomendas de fora. Não era possível evitar as exigências dos patronos com a mesma facilidade com que se evitava a dos clientes temporários. O grande perigo para um artista da corte (do ponto de vista da posteridade, m es mo q ue não do dele) era o de se tornar u m glorificado faz-tudo. Dois exemplos devem esclarecer esse perigo. Quando Cosimo Tura entrou para o serviço de Borso d'Este, duque de Ferrara, ele ganhava salário regular não só por seus quadros, mas para pintar mobília, dourar cestos e arreios de cavalos, e estampar encostos de cadeiras, cortinas de portas, colchas de cama, toalhas de mesa, costumes de torneios, etc. Na corte de Lodovico Sforza, em Milão, Leonardo também se ocupava de projetos mis tos. Ele pintou o retrato da amante do duque, Cecília Gallerani; decorou o interior do Castello Sforzesco; trab alho u "no cavalo", um mo nu m e nt o eqüestre ao pai do duque; desenhou costumes e cenários para os festivais da corte; e foi empregado como engenheiro militar. Pode-se dizer, pelo rascunho da carta que sobreviveu, que ele, ao menos, foi para Milão com os olhos abertos; ali ele escreve ao duque e pede para ser empregado a seu serviço, enumera que era capaz de fazer projetos de pontes, morteiros e carruagens, diz "em décimo lugar" que podia pintar e esculpir. Ao mesmo 116
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ANDRÉA DEL CASTÁGNO: O JOVEM DAVI, TEMPERA EM COURO SOBRE MADEIRA, C. 1 4 5 0 Coleção Widener. Fotografia © Board of Trustees, National Gallery of Art, Washington
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tempo, pode-se julgar Lodovico pelo fato de ainda hoje sabermos da estada de Leonardo em Milão por dois trabalhos, nenhum desses para o duque (embora ele possa ter arranjado a primeira encomenda); a Ultima ceia pintada para um mosteiro, e a Virgem das rochas para uma irmandade (Kemp, 1981, p. 78s). As desvantagens da corte como ambiente para artistas não devem ser exageradas. As Repúblicas também e ncom enda vam decorações temporári as em ocasiões festivas, e lamentar isso talvez seja apenas preconceito desta nossa era de museus em favor do permanente. Ao mesmo tempo, resta a impressão de que artistas da corte tendiam, mais do que os outros, a dissipar suas energias com o transitório e o trivial, como os matemáticos da corte da Versalhes do século XVII, preocupados com a hidráulica de fontes ou com os resultados prováveis do jogo de cartas do rei. Quando um artista mantinha ateliê, por outro lado, ele tinha menor segurança econômica e posição social mais baixa, mas era mais fácil escapar de encomendas que não desejava, como Giovanni Bellini parece ter feito no caso de um pedido de Isabella d'Este (adiante, p. 131). Os clientes também podiam oferecer aos artistas uma variedade de trabalhos avulsos, mas alguns estúdios eram tão organizados que podia ter membros especializados. E difícil dizer o quanto essa liberdade de trabalho era impo rt ant e para os artistas, mas pode ser significativo o fato de Mantegna, tendo sido nomeado pintor da corte em Mântua, em 1459, ter-se demorado em Pádua, como se a decisão de partir fosse difícil tomar (Chambers, 1970b, n° 59-60). Independente de os artistas pessoalmente valorizarem ou não sua liberdade, a diferença das condições de trabalho parece se refletir naquilo que era produzido. As grandes inovações do período ocorreram em Florença e Veneza, Repúblicas de donos de ateliê e não de empregados de cortes. Outra distinção entre os-patronos é a de pobres e ricos. Qual era a abrangência do hábito de contratar artistas? A arquitetura e a escultura eram caras, mas a possibilidade de pessoas com ganhos modestos encomendar pinturas não pode ser descartada. Os documentos se ocupavam quase exclu sivamente do patronato da classe alta, mas esses são os documentos mais prováveis de sobreviver. Em Vasari encontram-se referências ocasionais a clientes artesãos, como um comerciante de tecidos e um marceneiro que encomendaram Madonas a Andréa dei Sarto, e um alfaiate que encomen dou a Pontormo seu primeiro trabalho documentado. O que não sabemos 1 8
PATRONOS E CLIENTES
é se essa situação era comum, como veio a ser na República holandesa no século XVII. 6 Pode ser útil distinguir três motivos principais para o patronato às artes nesse período: piedade, prestígio e prazer (veja também o Capítulo 5). Suge riu-se a existência de u m quarto, mas esse é provavelmente anacrônico: inves timento. Se o investimento em obras de arte significa comprá-las achando que valerão mais no futuro, então é difícil encontrar provas disso antes ao século XVIII. 7 O "amor a Deus", por out ro lado, é mencionado freqü entemen te em contratos com artistas; e se a piedade não fosse um motivo importante e socialmente aceitável para os patronos, seria difícil explicar a predominân cia de pinturas e esculturas religiosas no período. Prestígio era também um motivo socialmente aceitável, principalmente em Florença, mencionado com freqüência em contratos. Quando a Operai dei Duomo de Florença encomendou os doze apóstolos a Michelangelo, por exemplo, a entidade fez referência à "fama de toda a cidade" e à sua "honra e glória". Quando Giovanni Tornabuoni enco mend ou afrescos para a capela de suà família em Santa Maria Novella, ele mencionou abertamente a "exaltação desta casa e desta família", e certificou-se de que o brasão de armas ficasse em posição de destaque (Chambers, 1970b, n° 107). O exemplo mais extraordinário de desejo de prestígio, porém, é sem dúvida o tabernáculo encomendado por Piero de'Medici para a igreja de Annunziata em Florença, com a ins crição "só o mármore custou 4.000 florins" [Costo fior. 4 mila ei manno solo] (Wackernagel, 19 38, p. 23 9n ). Esse exemplo clássico de exibicionismo novo rico faz pensar que — como parece ter sido o caso na Veneza do século XVIII — as famílias emergentes viam o patronato às artes como uma fo rm a de mostrar ao mundo que haviam chegado ao topo, e que eram patronos mais ativos do que as famílias já estabelecidas (Haskell, 1963, p. 249s). O prestígio adquirido pelo patronato às artes podia ter valor político para um governante. Filarete, que tinha evidentemente interesses para de fender, ou melhor, um palácio para construir, questionou esse caso e tentou refutar o argumento econômico de que edifícios eram muito caros:
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Wackernagel (193 8), p. 6, observa a existência de clientes artesãos.
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Veja Lopez (1953); e comp are com Burke (1978 ). Sobre argumentos econômicos da arte com o investimento, veja Goldthwaite (1980), p. 397s. Cf. Goldthwaite (1987, 1993).
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Grandes príncipes magnânimos, e repúblicas também, não deviam impedir-se de construir grandes e belos edifícios por causa do custo. Nenhum país jamais se empobreceu nem ninguém morreu por causa da construção de edifícios... Quando um grande edifício é completado não existe nem mais nem menos dinheiro no país, mas o edifício permanece no país ou na cidade ao lado de sua reputação e sua honra. 8 Maquiavel também percebia o uso político do patronato artístico e sugeriu que "um príncipe deve mostrar-se amigo da habilidade, dando emprego a homens capazes e honrando aqueles que se destacam em um campo particular". 9 O terceiro motivo para o patronato é o "prazer", uma fruição mais ou menos discriminatória de pinturas, estátuas, etc, quer como objetos em seu pleno direito, quer como uma forma de decoração de interiores. Muitas vezes já se sugeriu que esse mot ivo era mais impo rtan te, e t ambém mais consciente na Itália do Renascimento do que em qualquer outro lugar da Europa em mil anos (Alsop, 1982). Isso é bastante provável, embora não se possa medir quanto; tudo que se pode fazer é citar exemplos dessa tendência. Filarete, por exemplo, enfatizou o prazer de construir por si só, "um prazer voluptuoso igual a quando um homem se apaixona". Quanto mais o patrono vê o edifício, mais quer vê-lo, e adora conversar com todo mundo sobre ele — comportamento típico do apaixonado. Os nomes de algumas construções tipo villa do período sugerem que eram objetos de brinquedo: Schifanoia (Evita Tédio) em Ferrara; Casa Zoiosa (Casa Alegre) em Mântua. Segundo o livreiro Vespasiano da Bisticci, que não se esforçava muito para elogiar as artes visuais, dois de seus clientes mais importantes, Federigo de Urbino e Co si mo de' Medici , fruíam marcante prazer pessoal com a escultura e a arquitetura. Ouvindo Federigo falar com um escultor, "pensar-se-ia que era a sua ocupação", enquanto Cosimo tinha tanto interesse em arquite tura que seus conselhos eram procurados por quem tencionava construir. A correspondência de Isabella d'Este deixa a impressão de que a razão de
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Filarete, Treatise on Architecture, p. 106.
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Maquiavel, O príncipe, cap. 21 .
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PATRONOS E CLIENT ES
LEONARDO DA VINCI: ISABELLA
D'ESTE
Louvre, clichê do Musées Nationaux , Paris
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ela encomendar pinturas era simplesmente possuí-las. E não era a única patrona a pensar assim. Isabella deixou de adquirir dois Giorgiones porque tinham sido encomendados por dois patrícios venezianos "para seu prazer". (Chambers, 1970b, n° 91). Parece ter havido um círculo de colecionadores patrícios em Veneza nessa época, inclusive Taddeo Contarini e Gabriele Vendramin, um muito conhecido amante das artes em cuja casa se podia ver a famosa Tempestade, em 1530 (Settis, 1978, p. 129s). Esse desejo de adquirir obras de arte po r seu valor em si é enc ont rado sobretudo em indivíduos que têm algo mais em comum: uma educação humanista. Depois que Gianfrancesco Gonzaga, marquês de Mântua, contratou Vittorino da Feltre para ensinar seus filhos, eles cresceram para se tornar patronos das artes, assim como Federigo de Urbino, que também estudou com Vittorino. De maneira semelhante, os filhos da casa governan te de Este em Ferrara se tornaram patronos das artes depois de terem sido educados por Guarino da Verona. Quando criança, Lorenzo de'Medici teve um tutor humanista, Gentile Becchi. Gabriele Vendramin mudou-se para um círculo social que incluía humanistas do calibre de Ermolao Bárbaro e Bernardo Bembo (Logan, 1972, p. 157). Embora os humanistas nem sempre respeitassem os artistas, o estudo de humanidades parece ter estimulado um gosto por pinturas e estátuas. 10 P A T R O N O S VERSUS A R T I S T A S
Esta parte trata das relações entre patronos e artistas; da cooperação e do conflito, das expectativas de um grupo em relação ao outro, e, acima de tudo, do problema da extensão da influência do patrono, ou da influên cia do conselheiro do patrono, em particular no que se refere a pinturas, estátuas, etc. Co mo os artistas conseguiam pa tronos ou clientes, e como os patr onos conseguiam artistas? Quando ficavam sabendo que havia projetos no ar, eles podiam aproximar-se de um patrono diretamente ou através de um inter mediário. Por exemplo, em 1438, o pintor Domenico Veneziano escreveu a Piero de'Medici: "ouvi dizer que Cosimo [pai de Piero] resolveu mandar
10 Cf. Baxandall (1965)> e a discussão do conselheiro human ista abaixo (p. 132).
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PATRONOS E CLIENTES
pintar um altar, e quer um trabalho magnífico. Isso muito me agrada, e me agradaria ainda mais se me fosse possível pintá-lo, por seu intermédio [per vostra megianita]" (Gaye, 1839, vol. 1, p. 136; Cha mbers, 197 0b, n° 46). Em 1474, correu por Milão a notícia de que o duque queria mandar pintar uma capela em Pavia. O agente do duque reclamou que "todos os pintores de Milão, bons e ruins, pediram para pintá-la, e muito me incomodaram por isso" (Ffoulkes e Maiocchi, 1909, p. 300s). Também em 1488, Alvise Vivarini endereçou uma petição ao doge para que lhe permitisse pintar alguma coisa no Salão do Grande Conselho em Veneza, como os Bellini estavam fazendo, e em 1515, conforme vimos, Ticiano fez pedido semelhante (Chambers, 1970b, n° 41-2). Nesses casos, como em muitas outras questões, amizades, entre iguais ou desiguais, contavam muito. O patronato às artes fazia parte de um sistema patrono-cliente muito mais amplo, discutido no Capítulo 9. A importância dos amigos e dos relacionamentos pode ser ilustrado com as carreiras de dois artistas toscanos do século XVI, Giorgio Vasari e Baccio Bandinelli. Vasari veio a trabalhar para Ippolito e Alessandra de'Medici porque era parente distante do guardião deles, o cardeal Silvio Passerini. Quan do suas esperanças se "dissiparam no vento", como vimos, com a morte do duque Alessandro, Vasari conseguiu entrar para o serviço permanente de seu sucessor, Cosimo. Bandinelli também tinha ligações familiares com os Mediei no sentido de que seu pai havia trabalhado para eles antes de sua expulsão de Florença em 14 94 . Depois da restauração em 1513, Baccio se apresentou aos irmãos Giovanni (que logo se tornaria o papa Leão X) e Giuliano, ofereceu-lhes um presente, e recebeu uma encomenda em troca. Bandinelli também trabalhou para Giulio de'Medici, que se tornou o papa Clemente VII. Ele esperava receber a encomenda para fazer as tumbas dos dois papas Mediei e tantas vezes visitou o cardeal Salviati para arranjar isso que acabou sendo tomado por um espião e quase foi assassinado (Boase, 1979: Vasari, vida de Bandinelli). Não é tão fácil descobrir como os patronos escolhiam um artista. Os meno s entendi dos às vezes pediam conselho de outros, como Co si mo de'Medici (como já vimos) e seu neto Lorenzo o Magnífico. Foi Lorenzo, por exemplo, que recomendou o escultor Giuliano da Maiano ao príncipe Alfonso da Calábria. Alguns patronos parecem ter escolhido entre ofertas rivais po r ques tões financeiras, outros por razões estilísticas. O ag en te do duque de Milão, no caso da capela citada acima, escolheu os artistas 123
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ÂNGELO BROXZINO: UCOLINO
MARTELLI
Gemãldegalerie StaatlJcie Museen Preussischer Kulturbesirz, Berlin que se ofereceram para fazer o trabalho por 150 e não por 200 ducados. Um memorando de vinte anos mais tarde, encontrado entre os papéis do novo duque de Milão, Lodovico Sforza, tentava distinguir entre Botticelli, Filippino Lippi, Perugino e Ghirlandaio com base no estilo (Chambers, 1970b, n° 95, cf. pp. 171-2 adiante). 124
PATRONOS E CLIENTES
Algumas vezes ocorriam também competições formais por deter minadas encomendas, principalmente em Florença e Veneza, coisa que se pode bem esperar de repúblicas de comerciantes. As mais famosas dessas competições são certamente a das portas do Batistério em Florença em 1400 (na qual Ghiberti derrotou Brunelleschi) e a da cúpula da Catedral de Florença (quando foi a vez de Brunelleschi vencer), mas existem outros exemplos. Em 1477, por exemplo, Verrocchio derrotou Piero Pollaiuolo para a encomenda da tumba do cardeal Forteguerri (Gaye, 1839, vol. 1, p. 256; Chambers, 1970b, n° 51). Em 1491, houve uma competição de projetos para a fachada da catedral de Florença. Em 1508, Benedetto Diana venceu e Vittore Carpaccio perdeu uma encomenda da Scuola delia Carità veneziana. Em Veneza, aliás, até os organistas de San Marco eram nomeados só depois de um concurso. Uma vez que o patrono e o artista foram apresentados um ao outro, podemo s considerar a influência de suas relações no pro du to final. O testemu nh o de contemp orâ neo s sugere qu e a influência do patron o era considerável. O termo "fez" (fecit) continuava sendo usado pelos patronos, como o fora na Idade Média. Filarete descreve o patrono como o pai de um edifício, o arquiteto como a mãe. Ticiano disse a Alfonso, duque de Ferrara, que ele estava: convencido de que a grandeza da arte entre os antigos devia-se à assistência que recebiam dos grandes príncipes, contentes em deixar ao pintor o crédito e o renome derivados de sua própria engenhosidade em encomendar quadros... Devo, afinal, fazer nada mais do que dar forma àquilo que recebeu seu espírito — a parte mais essencial — de Vossa Excelência (Crowe e Cavalcaselle, 1881, p. 181). Ele estava, evidentemente, lisonjeando o duque, mas as diferentes formas assumidas pela lisonja em diversas épocas fornecem valiosas provas para o historiador social. Provas mais concretas da importância das relações entre patronos e artistas e das expectativas de ambas as .partes são fornecidas pelas pilhas de contratos que sobreviveram e que se concentram em seis itens. Em primeiro lugar vêm os materiais, uma questão importante por causa da despesa com 125
O RENASCIME NTO ITALIANO - PARTE II - AS ARTES EM SEU M E I O
ouro e lápis-lazúli usados nas pinturas, ou com bronze e mármore para a escultura. Às vezes, o patrono é que fornecia os materiais, às vezes o artista. Os contratos muitas vezes especificavam que os materiais empregados de viam ser de alta qualidade. Andréa dei Sarto prometeu usar pelo menos 5 florins no azul da Virgem Maria, enquanto Michelangelo prometeu que o mármore para a sua famosa Pietà, iniciada em 1501, devia ser "novo, puro e branco, sem veios" (Shearm an, 1965, doe. 30) . A ênfase nos materiais é uma pista para o que o cliente pensava quando estava comprando. O con trato de Leonardo para fazer a Virgem das rochas dá dez anos de garantia; se alguma coisa precisasse ser repintada nesse período, seria por conta do artista. Pode-se imaginar se Leonardo deu a mesma garantia no caso de sua descascada Ultima ceia. Em segundo lugar, havia a questão do preço, inclusive a moeda (grande ducado, ducado papal, e assim por diante). Às vezes, o dinheiro era pago na entrega, às vezes em prestações enquanto a obra estava em progresso. Podia acontecer também de o preço não ser fixado com antecedência; ou o artista declarava estar pronto a aceitar o que o patrono quisesse oferecer, ou a obra seria avaliada por outros artistas, como em casos de disputa (Chambers, 1970b, n° 123-7). Pagamentos em espécie às vezes eram efetuados. O con trato de Signorelli para os afrescos na catedral de Orvieto lhe deu direito a uma soma em dinheiro, a ouro e lápis-lazúli, a alimentação e a uma cama. Depois das negociações, ele subiu o preço para duas camas. Eui terceiro lugar, havia a questão da data de entrega, vaga ou precisa, com ou sem sanções, se o arti sta não mantivesse a palavra. Um a en co me nda do estado veneziano a Giovanni Bellini determinava que as pinturas deviam ser concluídas "o mais rápido possível". Em 1529, Beccafumi obteve o pra zo de "um ano, ou dezoito meses, no máximo" para terminar um quadro. Outros clientes eram menos precisos, ou mais exigentes. Em 1460, Fra Lippo Lippi prometeu uma pintura para setembro desse ano, e se não a aprontasse, o cliente teria o direito de pedir que outra pessoa a terminasse. Em 25 de abril de 1483, Leonardo prometeu entregar a Virgem das rochas em 8 de dezembro. Em 1501, o contrato de Michelangelo para confeccionar 15 estátuas determinava que ele não devia assumir nenhum outro contrato que pudesse atrasar a execução desse. (Talvez seja surpreendente editores acadêmicos não estipularem essas coisas hoje em dia.) Rafael teve dois anos para pintar um altar, com uma alta multa (40 ducados, mais da metade do 126
PATRONOS E CLIENTES
preço) se não cumprisse o prazo. O contrato com Andréa dei Sarto feito em 1515 para pintar um altar dentro de um ano trazia a cláusula de que "se ele não terminar a citada pintura dentro do citado tempo, as citadas freiras terão o direito de entregar a citada encomenda a outra pessoa" [dictam tabulam alicui locare]. Em quarto lugar, havia a questão do tamanho. Surpreendentemente, isto é muitas vezes deixado sem especificações, o que talvez seja indício da vagueza do século XVI na questão de medidas, embora em muitos casos o fato de um afresco ser pintado em uma parede determinada, ou de uma estátua ser feita com o bloco de mármore fornecido pelo cliente ou para caber em determinado nicho tornasse desnecessária a precisão. No entanto, em 1514, Michelangelo prometeu fazer seu Cristo carregando a cruz em "tamanho natural". Andréa dei Sarto concordou em fazer seu altar de 1515 com pelo menos 3 braccia de largura e ÒV2 de altura. Isabella d'Este, que queria um par de quadros para seu escritório, incluiu um pedaço de fio em sua carta de encomenda a Perugino para que ele tivesse a medida certa. Em quinto lugar, a questão dos assistentes. Alguns contratos eram feitos com grupos de artistas e não com indivíduos. Outros mencionam assistentes,-geralmente para especificar a responsabilidade pelo pagamento deles. Alguns especificam que o artista que está assinando o contrato deve produzir toda ou parte da obra de próprio punho. Rafael, por exemplo, prometeu pintar com a própria mão as figuras do altar da coroação da Virgem. Perugino e Signorelli, porém, prometeram pintar apenas as figuras "da cintura para cima", em seus afrescos na Catedral de Orvieto. A questão final, crucial para a posteridade, referente àquilo que efeti vamente entrava no quadro foi deixada por último porque não aparece com freqüência nos próprios contratos. Às vezes, o assunto é especificado com todas as letras, às vezes em detalhe, mas em outras ocasiões de maneira bastante breve. Giovanni Torn ab uon i estabeleceu detalhes elaborados para Domeni co Ghirlandaio para os afrescos de Santa Maria Novella, já foram mencionados. Domenico e os outros deviam pintar a parede da direita da capela com sete cenas especificadas da vida da Virgem. Os pintores prometeram também "em todas as histórias acima mencionadas... pintar figuras, edifícios, castelos, cida des, montanhas, colinas, planícies, rochas, roupas, animais, pássaros e feras... como quer o patrono, se o preço dos materiais não for proibitivo" [secundum tamen taxationem colorum] (Chambers, 1970b, n° 107). 127
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PARTE II - A s ARTES EM SEU ME IO
Uma fórmula mais comum de contratos era dar uma descrição bas tante breve da essência iconográfica. Era algumas ocasiões até a descrição dessa essência em latim legal parece ser em grande parte feita pelo notário, e o documento de repente cai no italiano. Os afrescos de Ghirlandaio deviam ser, "como dizem em vernáculo, pintados a fresco" [ut vulgariter dicitur, postiinjrescho]. U m cont rato de 1429 para um a igreja em Loreto ped e um a Virgem "com o filho no colo, conforme o costume [secondo l'usanza], pedido explícito bastante interessante para que o pintor seguisse a tradição. £ sem pre mais fácil referir-se a um esboço, simples ou colorido, ou a um modelo (Chambers, 1970b, n° 5, 68, 86, 101, 113, 137 etc). Quando a capela do duque de Milão estava sendo pintada em 1474, seu agente mandou-lhe dois projetos para que escolhesse, "com querubins ou sem" (os querubins teriam custo extra), e pediu os projetos de volta "quando o trabalho estiver terminado, para ver se o azul de lápis-lazúli é tão bom quanto o prometido" (Chambers, 1970b, n° 99). O cliente podia também mandar o esboço para o artista (como Isabella d'Este ao fazer uma encomenda a Perugino), ou pedir algo na mesma linha de uma pintura de outro artista que tivesse chamado a atenção do cliente. Um contrato para a pintura de uma crucificação, entre um pintor chamado Babagelata e a Confraria de Santa Brígida era Gênova (1485), exigia que as figuras fossem pintadas da mesma maneira e com a mesma qualidade "daquelas que foram pintadas no altar de São Domingos para o falecido Battista Spinola na igreja do dito São Domingos, feitas e pintadas pelo mestre Vicente de Milão [Vicenzo Foppa]" (Ffoulkes eMaiocchi, 1909). Além dessas descrições e desenhos, pode haver referências mais ou menos precisas à iniciativa do artista ou, mais freqüentemente, aos desejos do patrono. Tura fez um contrato com o duque de Ferrara para pintar a capela de Belriguardo "com as histórias que mais agradam a sua Excelência". Quando os monges de San Pietro em Perúgia contrataram Perugino para um altar, a predella devia ser "pintada e adorn ada co m histórias segun do o desejo do atual abade". Isabella deixou a Perugino uma área restrita de liberdade: "pode eliminar algumas coisas, se quiser, mas não deve acres centar nada de sua cabeça" (Chambers, 1970b, n° 76). Michelangelo, por outro lado, no final do período, mas ainda excepcionalmente, parece quase sempre conseguir o que queria. O contrato para o Cristo carregando a cruz diz simplesmente que a pose da figura deve estar "na atitude que parecer 1 8
PATRONOS E CLIENTES
AMOR E PlETRO PERUGINO: BATALHA ENTRE AMOR Louvre, clichê do Musées Nationaux, Paris
CASTIDADE
boa ao citado Michelangelo", enquanto a encomenda para uma obra que nunca foi acabada, e em determinada altura era Hércules e Cacus, em ou tras Sansão e um filisteu, descreve a transferência de um bloco de mármore par a o escultor esculto r "que deve faze fazerr com ele ele um a fig figur uraa junt ju nt a ou conju con junt nt a c o m outra, conforme aprazer ao citado Michelangelo" (Tolnay, 1954, vol. 3, p. 112). Por mais valiosos que sejam os contratos por seu testemunho das re lações entr e artistas e clientes, eles eles não con tam ta m a história históri a inteira. Ofe rec em prova de intenções, e os historiadores, por mais interessantes que conside rem as intenções, querem também saber se as coisas saíram de acordo com os planos. Em alguns casos, podemos ter certeza de que não. No caso da 129
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Madona das harpias de Andréa dei Sarto, por exemplo, tanto o contrato quanto a pintura sobreviveram, mas existem sérias discrepâncias entre eles. O contrato refere-se a dois anjos; eles não aparecem na pintura acabada. O con tra to refere-se refere-se a São Joã o Evangelista: na pint ur a ele se tra nsf ormo u em São Francisco. Tais alterações podem muito bem ter sido negociadas com o cliente; não sabemos. Mesmo assim, são um alerta a não tomar um tipo de prova com excessiva seriedade (Shearman, 1965, doe. 30 e pp. 47-51). A maneira eficaz de descobrir o verdadeiro equilíbrio de poder entre artistas e clientes nesse período é, sem dúvida, estudar os conflitos abertos entre eles, conflitos que tornaram manifestas as tensões inerentes à relação. Embora as provas desses conflitos sejam fragmentárias, um quadro coerente parece delas emergir. Havia duas razões principais para conflitos entre artistas e patronos nessa época. A primeira, na qual não precisamos nos deter, era dinheiro. Isso era uma parte do problema geral de fazer os clientes de alto status pagar suas suas contas con tas . Mante Man tegn gna, a, Poliziano e Josqui Jos quinn des Près Près foram levados a relembrar seus clientes de suas obrigações em relação à pintura, à literatura e à música, respectivamente. A segunda razão para conflito, que revela muito mais sobre a relação entre cultura e sociedade nesse período, diz respeito às próprias obras. O que acontecia quando o artista não gostava do projeto do cliente, ou o patrono ficava insatisfeito com o resultado? Vejamos alguns exemplos. Em 1436, a Operai dei Duomo'de Florença en co me ndo u a Paolo Uccello um retrato eqüestre de sir John Hawkwood na parede da catedral, mas um mês depois ordenaram que a pintura fosse destruída "porque não foi pintada como deveria" [quia non est pictus ut decet]. Pode-se imaginar as experiências em perspectiva que Uccello podia estar fazendo (Poggi, 1909). Piero de'Medici protestou contra , certos pequenos serafins em um afresco de Benozzo Gozzoli, que escreveu em resposta que "farei o que o senhor ordenar; duas pequenas nuvens os removerão" (Gaye, 1839, vol. 1, p. 191; Chambers, 1970b, n°49). E m outros ou tros casos, o conflito parece chegar a um beco sem saída. Vasari Vasari conta uma história de quando Piero di Cosimo pintava um quadro para o Hospital dos Enjeitados em Florença. O cliente, que era diretor do hospital, pediu para ver o quadr o antes de de estar te rmi nad o; Piero recusou. O clien te ameaçou não pagar; o artista ameaçou destruir o quadro. Júlio II, a força
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irresistível, irresistível, e Mich elangel elan gelo, o, o objeto objet o inamovível, entr aram ara m em conflito a respeito do teto da Sistina. Antes de terminado o trabalho, Michelangelo deixou Roma em segredo e voltou para Florença. A explicação de Vasari para a fuga de Michelangelo é "que o papa ficou furioso com ele por não permitir que seu trabalho fosse visto; Michelangelo não confiava em seus homens e suspeitava que o papa... se disfarçava para ver o que estava sendo feito". Por que Piero e Michelangelo não queriam que seu trabalho fosse visto antes de acabado? Alguns artistas hoje são sensíveis a que leigos olhem por cima de seus ombros; mas naqueles casos devia haver algo mais do que isso. Imagine se um artista não quisesse tratar um assunto da maneira desejada pelo cliente! Uma tática possível seria esconder a pintura dele até que estivesse acabada, esperando que aceitasse um fait accompli e não pedisse outra versão. O papa teria de esperar bastante por outro teto para a Sistina. Gio van ni Bellini era outro ou tro pi nto r que não se se submetia subm etia facilmente à vontade dos outros. O humanista Pietro Bembo o descreveu como alguém "cujo prazer é que não se estabeleçam limites muito definidos ao seu estilo, propenso, como diz, a vagar à vontade na pintura [vagare a sua voglia nelle pitture]". Isabel Isabella la d'Este pediu-lhe um quadr o mitológico. Apa ren tem ent e; ele não queria nem pintar um quadro desses, nem perder a encomenda, portanto usou táticas de protelação, enquanto insinuava, por meio de agentes usados por Isabella em seus negócios, que outro assunto podia não demorar tanto. Conforme disse a ela um dos agentes "caso se digne a dar a ele liberdade de fazer o que quiser, tenho absoluta certeza de que Sua Alteza será muito mais bem servida". Isabella sabia quando ceder com graça e respondeu "Se Giovanni Bellini reluta tanto quanto me diz em pintar sua história, ficaremos contentes de deixar a ele a escolha do assunto, contanto que pinte alguma história ou fábula antiga". Na verdade, Bellini conseguiu enrolar enrola r ainda mais e no fim fim ela ela aceitou uma Nativi dade dad e (Cha mbers, mbe rs, 19 70 b, n° 64-72). Nesse caso, a históri hist óriaa dos eventos nos leva leva à história hist ória das estrut est rut uras. ura s. O fato de Bellini manter um estúdio, e de estar em Veneza enquanto Isabella estava em Mântua, provavelmente o ajudou a conseguir o que queria. Se ele estivesse ligado à corte, o resultado do conflito provavelmente teria sido diferente. difere nte. Isabella Isabella parece ter apr end ido essa essa lição, e logo depois t o m o u Lorenzo Costa a seu serviço permanente. 131
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Esses exemplos de conflitos são alguns dos mais celebrados e bem documentados. Não constituem base suficiente para generalização. Exis tem, no entanto, outras provas que sugerem que o equilíbrio de poder entre patrono e artista estava mudando nesse período, em favor do artista, permitindo maior individualismo de estilo. A medida que crescia o status do artista, os clientes faziam menos exigências. Para Leonardo, Isabella fez concessões desde o começo: "Deixaremos o assunto e o prazo por sua conta" (Chambers, 1970b, n° 85-90). Uma famosa carta do poeta Annibale Caro para Vasari reconhece a liberdade do artista comparando os dois papéis: "Quanto ao assunto [invenzione] col oco -me em suas mãos, lembrando... que tanto o poeta como o pintor executam suas próprias idéias e seus próprios projetos com mais amor e mais diligência do que o fazem cem os projetos alheios". E triste constatar que logo depois desse cumprimento ele passou instruções precisas para um Adonis de roupa roxa, abraçado por Yênus. Caro elaborou também um programa detalhado para a decoração do palácio da família Farnese em Caprarola (G omb ric h, 197 2, pp. 9-1 1, 23 -5; cf Robertson, 1982). Ele era, em outras palavras, um hum ani sta conselheiro, um intermediário intelectual entre pat ron o e cliente. A hipótese de um con selheiro humanista — Poliziano neste caso — foi aventada por Aby Warburg (1966, pp. 36,43) ao discutir as pinturas mitológicas de Botticelli. Como os artistas, conforme vimos, geralmente não tinham educação clássica, devem ter necessitado de conselhos quando lhes solicitavam que pintassem cenas de história ou mitologia antigas. De fato, há provas de algumas ocasiões em que foram dados conselhos desse tipo. No caso mais antigo que se conhece, o assunto não era clássico, mas bí blico: em 1424, a guilda Calimala de Florença pediu ao hum anist a Leonardo Bruni que elaborasse um prograrria para "Os portões do paraíso", a terceira porta dupla do Batistério de Florença. Bruni escolheu 20 histórias do Antigo Testamento. No entanto, o escultor Ghiberti alega, em suas memórias, que teve liberdade e que o programa de Bruni não foi obedecido, pois as portas ilustram apenas dez histórias (Krautheimer e Krautheimer-Hess, 1956, p. I69s; Chambers, 1970b, n° 24). Em Ferrara, em meados do século XV, o humanista Guarino da Verona sugeriu ao marquês Leonello d'Este um programa para pintar as musas (Baxandall, 1965). Mais adiante no século, o bibliotecário da corte 132
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Pellegrino Prisciani ficou preocupado com o programa dos famosos afrescos astrológicos no Palazzo Schifanoia em Ferrara, pintados por Francesco dei Cossa (Warburg, 1932, pp. 249-69; 1966, pp. 242-72). No círculo dos Mediei, no final do século XV, existem provas mais indiretas dos conselhos de dois humanistas, o poeta e filólogo Ângelo Poliziano e o filósofo Marsilio Ficino, sobre o programa da Primavera de Botticelli, cujo significado ainda divide os estudiosos." Segundo seu aluno Condivi, o jovem Michelangelo Tez o relevo Batalha dos centauros por sugestão de Poliziano, "que explicou todo o mito para ele, do começo ao fim" [dicbiarandogli a parte per parte tutta lafavola] (Con divi , 1964, pp. 28- 9). Outro ambiente em que há fortes evidências de conselheiros humanis tas é a corte de Mântua no começo do século XVI. Quando Isabella d'Este planejou um a série de "fantasias" pagas para seu escritório e sua gruta, foi aos humanistas Pietro Bembo e Paride da Ceresara que ela se voltou em busca de conselhos. Foi Paride quem providenciou o programa para a Batalha do Amor e da Castidade que Isabella, conforme vimos, encomendou a Perugino (Chambers, 1970b, n° 76, 80). Não seria difícil acrescentar outros exemplos, principalmente no século XVI. Pode-se pensar no bispo humanista Paolo Giovio planejando a decoração da villa Mediei em Poggio a Caian o (Zi mm ermann , 1976), ou no poeta Annibale Caro fazendo o mesmo, como vimos acima, para os Farnese de Caprarola. Quer fossem convocados por artistas ou por patronos, quer seus conselhos fossem levados a sério ou não, eruditos e, mais raramente, teólogos, foram convocados para participar da elaboração de programas de pin tura e de escultura. Eles ajudaram os artistas a lidar com a súbita de ma nd a de mitologia clássica e história antiga, nas quais a tradição dos estúdios não havia treinado os artistas.12
11 Alem de Warburg, veja Gom bri ch (1972J; Dempsey (1992); Snow-Sm ith (19 93). 12 Para uma visão mais cética da importância do conselheiro humani sta, veja Hope ( 19 81 ); Robertson (1982); e Hope e McGrath (1996).
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ARQUITETURA, MÚSICA E LITERATURA A arquitetura tem de ser examinada à parte, porque os arquitetos não trabalhavam com as mãos. Eles não forneciam nada a não ser o programa, de forma que, nos casos em que o patrono se interessava ativamente, seu papel ficava diminuído. O tratado de Filarete apresenta um quadro, sem dúvida imaginário, de um príncipe que aceita os planos do arquiteto com entusias mo. Na prática, porém, os patronos muitas vezes queriam interferir ou pelo menos intervir no processo de construção. Alguns estudavam os tratados de arquitetura. Alfonso de Aragão, por exemplo, pediu um exemplar de Vitrúvio quando estavam discutindo o projeto de um arco do triunfo em Nápoles. Federigo de Urbino tinha um exemplar do tratado de arquitetu ra de Francesco di Gio rgi o, presen teado pelo autor (He yden reic h, 1967; Clough, 1973). Ercole d'Este emprestou de Lorenzo de'Medici o tratado de arquitetura de Alberti antes de se decidir a reconstruir seu palácio. Um panegírico a Cosimo de'Medici descreve a maneira como ele queria cons truir uma igreja e uma casa à sua maneira {more suo) (A. Brown, 1961; cf. Gom bric h, 1966; Jenk ins, 1970). Qu an to ao neto de Cos imo , Lorenzo, ele foi tão longe como arquiteto amador que chegou a apresentar um projeto na competição para a fachada da Catedral de Florença, em 1491. Os juizes não conseguiram escolher nem o projeto do real governante de Florença, nem o de qualquer outro concorrente e a fachada não foi construída. No caso da músic a, os' intérpr etes é que era m agraciad os com o patronato, e de modo permanente, justamente porque suas apresentações eram efêmeras. Havia três tipos principais de patronos: a Igreja, a cidade e a corte (Bridgman, 1964, cap. 2). A igreja era o grande patrono dos cantores, embora não fosse es pecialmente generosa. Eles eram necessários para missas e outros ritos litúrgicos, e necessários todo o tempo, como os organistas. Dentre os mestres de coro havia homens que hoje conhecemos como compositores, como Giovanni Spataro, mestre de coro da igreja de San Petronio em Bolonha, de 1512 a 1541. As cidades também tomavam músicos em seu serviço permanente. Os corneteiros eram necessários, por exemplo, para os eventos públicos, como visitas de estado, e para os grandes festivais religiosos. Os melhores postos cívicos eram.em Veneza. A igreja de San Marco era a capela do doge, de 134
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forma que seu mestre de coro ocupava um cargo civil (em outras palavras, político). O posto foi criado em 1491 por um francês, Pierre de Fossis. Quando ele morreu, o impositivo doge Andréa Gritti forçou a contratação de um estrangeiro, o holandês Adriaan Willaert, enfrentando considerável oposição. E possível que a importância musical da Veneza do século XVI deva algo à relativa generosidade de seu patronato civil. O patronato da corte era o menos seguro dos três tipos principais, mas oferecia a possibilidade de recompensas maiores. Alguns príncipes tinham grande interesse em suas capelas: Galeazzo Maria Sforza de Milão, por exemplo, Ercole d'Este de Ferrara e o papa Leão X. Quando o duque de Milão decidiu, em 1472, fundar um coro, não poupou esforços para fazê-lo bom. Escreveu a seu embaixador em Nápoles com instruções para convencer alguns cantores a se mudar para Milão. Ele devia falar com eles e fazer promessas de "bons benefícios e bons salários", mas em seu próprio nome, não em nome do duque; "acima de tudo, tome todo cuidado para que nem sua majestade real nem outros possam imaginar que somos a causa de esses cantores serem levados embora". E de se supor que se isso fosse descoberto haveria um incidente diplomático. Em 1474, o duque havia conseguido um certo "Josquino", talvez Josquin des Près. Ele continuava mu it o interessado no coro de sua capela, que tinha de acompanhá -lo até Pavia, Vigevano e mesmo fora do ducado. Já Alfonso de Aragão, levava seu coro consigo até quando ia caçar! (Motta, 1887). Isabella d'Este interessava-se por música além de pintura, e dois importantes compositores àcfrottole (canções para diversas vozes) estavam em atividade em sua corte, Marchetto Cara e Bartolommeo Tromboncino (Fenlon, 1980, p. 15s). O papa Leão X tinha um interesse ainda maior em música. Ele próprio tocava e compunha (um cânon composto por ele ainda existe). Seu entusiasmo era bem conhecido, e quando correu a notícia de que Leão fora eleito papa, muitos dos cantores do marquês de Mântua partiram para Roma. Os compositores mais importantes a serviço de Leão eram Elzéar Genet, encarregado musical da capela do papa; Costan zo Festa, famoso por seus madrigais; e o organista Marco Antônio Cavazzoni. As anedotas contemporâneas sobre a generosidade de Leão com seus músicos são confirmadas pela contabilidade papal. Ele tinha mais de 15 músicos a seu serviço particular em 1520. Pagava 23 ducados por mês ao famoso alaudista Gian Maria Giudeo, e ainda o fez conde. 135
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Um quarto tipo de patronato não pode ser esquecido. Os músicos tinham a possibilidade de fazer carreira a serviço de particulares. Willaert, por exemplo, organizava concertos para uma dama veneziana, PoUissena Pecorina, e um nobre, Marco Trivisano (Einstein, 1958, pp. 39-49). O organista Cavazzoni esteve, em certo momento, a serviço do humanista Pietro Bembo. Em todos esses casos, é difícil dizer se os músicos eram contratados porque sabiam cantar ou tocar bem ou porque podiam compor e inventar. Existem poucas provas de interesse na atividade de invenção. Algumas composições eram dedicadas a indivíduos ou escritas em sua homenagem. Por exemplo, um certo Cristoforo da Feltre compôs um moteto na eleição de Francesco Foscari como doge de Veneza, em 1423. Heinrich Isaak, que passou a década de 1484-94 em Florença, compôs uma peça instrumental, Palie, palie, ap ar ente me nte para os Medi ei, u ma vez que se refere ao seu grito de guerra e à sua arma, e também musicou o lamento de Poliziano pela morte de Lorenzo o Magnífico. Os festivais de corte exigiam novas composições; Costanzo Festa, por exemplo, compôs a música para o casamento de Cosimo de'Medici, duque de Toscana, com Eleonora de Toledo, em 1539. Uma carta de Ercole d'Este, duque de Ferrara, escrita por um de seus agentes por volta de 1500, revela com vivacidade o que os patronos queriam de seus músicos. O du qu e estava ten tan do decidir qual candid ato contratar , Heinrich Isaak ou Josquin des Près. Isaak, o cantor... é extremamente rápido na arte da composição, e além disso é homem... que pode ser manejado como se quer... e parece extremamente adequado para servir a sua senhoria, mais do que Josquin, porque se dá melhor com seus colegas, e faria coisas novas com mais freqüência; é verdade que Josquin compõe melhor, mas o faz quando quer, não quando lhe pedem; e ele pede 200 ducados, enquanto Isaak se satisfará com 120. (van der Straeten, 1882, p. 87) Em outras palavras, o fato de Josquin "compor melhor" é reconhecido, mas não é a consideração mais importante. O historiador social não poderia desejar do cu me nt o mai s revelador do que esse sobre o funci ona mento do patronato. 136
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RAFAEL: LEÃO X Galleria Pitti, Florença. Coleção Mansell/Time Inc./Katz Pictures
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No caso da literatura e do ensino, o patronato era menos necessário, porque muitos escritores eram amadores, com recursos pessoais, e muitos estudiosos eram acadêmicos. O patronato era mais necessário quando me nos provável, como no caso de um escritor pobre, jovem e desconhecido, e que quisesse estudar. Em alguns casos, havia ajuda. Lorenzo de'Medici, por exemplo, possibilitou que Poliziano estudasse; Landino foi financiado por um notário, e Guarino por um nobre veneziano. O cardeal grego Bessarion, ge neroso e sagaz patrono de estudiosos como Flavio Biondo, Poggio Bracciolini e Bartolommeo Platina, também financiou os estudos de seu compatriota Janos Lascaris. Se Alfonso I de Aragão conhecia meninos pobres, mas capazes (assim nos informa seu biógrafo oficial, o humanista Antônio Panormita), ele pagava por sua educação. Em Ferrara, o duque Borso d'Este pagava pela vestimenta e alimentação de estudantes pobres da universidade. Porém esses exemplos não são muitos e é possível imaginar quantas carreiras promissoras se frustraram por falta de patrocínio desse tipo. Para os humanistas, era possível fazer carreira a serviço da Igreja ou do Estado. Isso se deve, em parte, ao fato de determinados papas (Nicolau V, por exemplo, ou Leão X) e príncipes (como Alfonso I) apreciarem suas atividades, e em parte porque suas habilidades, principalmente a arte de escrever uma elegante e convincente carta em latim, eram necessárias à administração. As chancelarias de Roma e Florença, particularmente, tinham humanistas como funcionários. 13 Para escritores já estabelecidos, o patronato da corte era sempre bem-vindo, porque os príncipes interessavam-se pela fama e achavam que os poetas tinham isso como dom. Mas deve ser preciso ter também um dom para a intriga, além da liter atura , para vencer candida tos rivais a um determi nado posto. Só por intermédio de Mecenas era possível chegar a Augusto, confor me Horácio e Virgílio deviam saber, e às vezes, na Itália do Renascimento, só se podia chegar aos mecenas através de intermediários, os "Mecenatuli", como Panormita os chama com desdém. Sua busca de patronato o levou a diversos becos sem saída antes de obter sucesso (Sabbadini, 1916; cf. Ryder, 1976b). Ele tentou Florença, dedicando um poema a Cosimo de'Medici já em 1425; tentou Mântua, para descobrir que possuíam Vittorino da Feltre
13 Sobre Roma, veja DA mi co (19 83) , p. 29s; sobre Florença, veja Garin (19 59) .
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e não precisavam de mais nenhum humanista; tentou Verona, via Guarino, com resultados semelhantes. Finalmente, graças ao auxílio do arcebispo, conseguiu o posto de poeta da corte em Milão. Para um poeta da corte aspirante ou já estabelecido, um lance óbvio — seguindo o antecedente de Virgílio — era escrever um poema épico sobre o príncipe. Assim, o humanista Francesco Filelfo escreveu uma Sforziada para celebrar a casa governante de Milão. Federigo de Urbino tinha a sua Feltria, e Borso d'Este a sua Borsias, primeiro de uma série de épicos em homenagem à casa governante que se tornou patrona de Boiardo, Ariosto eTasso. Ariosto fez seu herói e heroína, Ruggiero e Bradamenta, ancestrais da casa de Este. No terceiro canto, moldado no livro sexto da Eneida de Virgílio, Merlino profetiza que a idade de ouro iria retornar durante o rei nado do patrono de Ariosto, Alfonso I. Os historiadores da corte também eram solicitados e por razões seme lhantes. Alfonso de Aragão enc ome ndo u obras de história para os human istas rivais Lorenzo Valia e Bartolommeo Fazio (veja Soria, 1956). Lodovico Sforza encomendou uma história de Milão a um nobre, Bernardino Corio. 14 A História de Florença de Maquiavel foi encomendada pelo papa Mediei Clemente VII e dedicada ao papa por seu "humilde servo". As Repúblicas também conheciam o valor da história oficial. O governo veneziano, por exemplo, encomendou histórias ao humanista Marcantonio Sabellico e aos patrícios And réa Navagero e Pietro Bembo (Cozzi, 1963; Gilbert, 1970 ). Os governantes podiam também agir como patronos da ciência natural por razões práticas. Leonardo da Vinci foi para a corte de Milão, como vimos, na qualidade de engenheiro militar e não de artista. Pando lfo Petrucci, senhor de Siena, foi patrono do engenheiro Vannoccio Biringuccio. Fra Luca Pacioli, que escreveu sobre matemática, atraiu o patronato dos duque s de Milão e Urbin o (Rose, 1975). Como frade, porém, não depe ndi a de patronos. Como a maior parte dos "cientistas" ganhava a vida ensinando na universidade ou praticando a medicina, eles tam bém não depend iam de patronos. Obras de utilidade menos direta podiam também ser encomendadas por patronos que tinham gosto por literatura ou apreciavam um deter-
14 A história de Cor io, Storia di Milano, foi reeditada em 1978.
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minado autor. Cosimo de'Medici deu ao filósofo Marsilio Ficino uma fazenda na zona rural da Toscana, em Careggi, e estimulou-o a traduzir Platão e outros autores antigos. Poliziano escreveu um poema para celebrar a famosa justa de que participou Giuliano de'Medici, irmão de Lorenzo o Magnífico. Assim como os pintores e músicos, os poetas podiam ter de ajudar no entretenimento de festivais. Quando Poliziano estave a serviço da casa de Mântua, escreveu sob encomenda o famoso drama Orfeo para um casamento. Escreveu também poemas de súplica a Lorenzo de'Medici, descrevendo o quanto estavam gastas as suas roupas. O pedido em versos era um gênero literário convencional, mas sua existência é um lembrete da importância do patronato para a cultura da época e para a vida do escritor pessoalmente. Assim como no caso de pintores, o patronato da corte proporcionava status ao escritor. Oferecia também proteção, que podia ser muito necessária. O poeta Serafino de Aquila, por exemplo, deixou o serviço do cardeal Ascanio Sforza para viver em Roma sem patrono. No entanto, seus versos satíricos provocaram uma tentativa de assassinato contra ele. Quando se recuperou, "considerando que ficar sem protetor era arriscado e vergonhoso", Serafino voltou para o cardeal.15 Apesar dos exemplos de historiadores oficiais de Veneza, não havia virtualmente patronato civil para escritores. Sua escolha limitava-se à Igreja, à corte e a um o u out ro indi vídu o, como o patrício Alvise Co rn ar o de Pádua , que estimulou o dramaturgo Ângelo Beolco, " il Ruzzante" ', a escrever suas peças, e tê-las coletadas e publicadas (Mortier, 1930, pp. 5-19; Logan 1972, p. 111). Alguns patrícios venezianos, como Francesco Bárbaro e Bernardo Bembo (pai de Pietro Bembo, e ele próprio um distinto escritor), viam o patronato de estudiosos como um dever (King, 1986, p. 54s). A Igreja proporcionava a maior segurança,^ por isso encontramos escritores como Alberti, Poliziano e Ariosto, difíceis de ver como clérigos de carreira, ten tando obter benefícios (Dionisotti, 1967). Castiglione, o rematado cortesão, terminou a vida como bispo, e seu amigo Pietro Bembo como cardeal. A dificuldade de depender do patronato para viver pode ser ilustrada na carreira de Aretino, que começou a vida como filho de sapateiro. Ele 15 Cf. a vida de Serafino escrita por Calmeta, apresentada na edição de seus poemas, de 1505 : Serafino delPAquiia, Opere. Veneza.
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TICIANO, PIETKO ARETINO © The Frick Collection, New York
chamou atenção primeiro do rico e cultivado banqueiro Agostino Chigi, depois d o cardeal Giulio de'Medici, e mais tarde de Federico Gonzaga, marquês de Mântua, e d o condottiere Giovanni de'Medici. Multiplicando seus patronos, Aretino ampliava su a liberdade, mas aumentava o risco de 141
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perder favor. Então Aretino mudou de estratégia. Em 1527, mudou-se para Veneza, onde, apesar de aceitar a proteção do doge Andréa Gritti e presentes de diversos nobres, era mais ou menos dono do próprio nariz (Larivaille, 1980). O fato de ele ser capaz disso deve-se não apenas ao seu notável talento de escritor e autopromotor, mas também ao crescimento do mercado. O CRE SCI MEN TO DO
MER CA DO
A longo prazo, a invenção da imprensa levou ao declínio do patrono literário, e a sua substituição pelo editor e pelo público leitor anônimo. Nesse período, porém, o novo sistema coexistiu com o velho e interagiu com ele. Ê possível encontrar exemplos de comercialização do patronato (a dedicação de um livro na esperança de imediata recompensa em dinheiro) e mesmo de dedicatória múltipla. Matteo Bandello dedicava cada história de sua coleção a um indivíduo, e embora alguns dos homenageados fos sem amigos dele, na maioria dos casos eram membros de famílias nobres como os Farnese, os Gonzaga, e os Sforza, dos quais, sem dúvida, esperava recompensa. Os impressores também procuravam patronos. Quando Aldo Manuzio publicou sua famosa edição em oitavo de Virgílio, em 1501, mandou imprimir diversos exemplares em pergaminho, como se fossem manuscritos, e os distribuiu entre pessoas importantes como — mais uma vez — Isabella d'Este. Com o crescimento do mercado da literatura, é possível encontrar exemplos de bem-sucedidos negociantes-impressores, como as famílias Giolito e Giunti. 16 O livro impresso, visto originalmente como um manus crito "escrito" com máquina, veio a ser visto como um artigo com preço e tamanho padronizados. O catálogo lançado pelo impressor veneziano Aldo Manuzio e m 1498 é o primeiro a trazer preços, e o catálogo Aldine de 1541 é o primeiro a usar os termos "folio", "quarto", etc. (Mosher, 1978). As vendas do novo produto eram aumentadas por meio de propaganda, em prosa e verso, colocada pelo editor no final de um volume para recomen dar ao leitor que fosse ao seu estabelecimento em busca de outro livro. O
16 Sobre os Gioliti, veja Qu on da m (1977); sobre Giu nt i, vejaTen enti (195 7).
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Orlando Furioso de Ariosto, por exemplo, continha o anúncio: "Q ue m quiser comprar um Furioso ou outra obra do mesmo autor, que vá à imprensa dos gêmeos Bindo ni, os irmãos Benedetto e Agostino" (Venezian, 1921, p. 121). Enco ntram-se impressores, como Gabriele Giolito, que empregavam autores profissionais, como Lodovico Dolce, para escrever, traduzir e editar para eles. Foi assim que a "Rua dos Garatujas", travessa do Grande Canal, veio a surgir em meados do século XVI (veja antes, p. 90; cf. Quondam, 1977). E exatamente nessa época, cresceu o uso do comunicado comercial, ou avviso, que floresceu particularmente em Roma, e do "teatro profissional" (tradução literal do famoso termo commedia delVarti). Nas artes visuais encontramos também um crescimento do siste ma de mercado, no qual os consumidores compravam obras "já feitas", às vezes das mãos de um intermediário. O mercado de arte coexistia com os sistemas personalizados mais importantes e mais bem conhe cidos de patronos e clientes. Exemplos da venda de obras de arte não encomendadas podem ser encontrados já no século XIV. A demanda por Virgens, Crucificações ou Sãos Joões Batistas era suficientemente grande para que os estúdios pudessem produzi-los sem ter em mente um cliente em particular, embora essas obras pudessem ser deixadas inacabadas para depois acomodar exigências especiais. Alguns comer ciantes tratavam obras de arte como qualquer outro artigo: o "mercador de Prato", Francesco Datini, por exemplo. 1 7 Reproduções baratas de esculturas famosas já estavam sendo manufaturadas em Florença no século XIV No século XV, encontram-se indícios de que obras já prontas esta vam se tornan do mais comuns. Alguns comerciantes, como o florentino Bartolommeo Serragli, especializavam-se na venda desses artigos. Serragli procurou estátuas de mármore antigas em Roma para os Mediei; mandou fazer tecidos em Florença para Alfonso de Aragão; empregou Donatello, Fra Lippo Lippi e Desiderio da Settignano; comercializou manuscritos com iluminuras e madonas de cerâmica, jogos de xadrez e espelhos (Co rti e Hartt, 1962). Vespasiano da Bisticci, cujas atividades como livreiro já foram
17 Veja Origo (1957), p. 4l s. Uma visão geral é dada em Lerner-Lehm kuhl (1936) e A. Th om as (1995).
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discutidas, era ta mbé m o intermediário qu e providenciava iluministas c om o Attavante degli Attavanti para trabalhar para clientes que aqueles nem co nheciam, como Federigo, duque de Urbino, e Matthias, rei da Hungria. O mercado de reproduções também cresceu de importância nessa época. Xilogravuras de imagens devocionais começaram a ser produzidas pouco antes da invenção da imprensa. Em fins do século XV, a elas se jun taram gravuras sobre eventos temporais, como o encontro do papa com o imperador em 1468. Depois da invenção da imprensa, as ilustrações de livros passaram a ser importantes. Aldo Manuzio produziu famosas edições ilustradas de Dante, Petrarca, Boccaccio e assim por diante. Por volta de 1470, o estúdio Delia Robbia em Florença produzia esculturas coloridas de cerâmica, como as réplicas em miniatura da Madona de Impruneta, que eram baratas e padronizadas e, portanto, aparentemente não encomenda das. Outro desenvolvimento do século XV foi o crescimento da majólica, em outras palavras, dos jarros e pratos de cerâmica pintados e esmaltados produzidos em Bolonha, Urbino, Faenza e outras cidades. As peças eram suficientemente baratas para serem compradas por modestos artesãos (Goldthvvaite, 1980, p. 402). No século XVI, o mercado de arte ficou ainda mais importante. Isabella d'Este, por exemplo, estava disposta a comprar pinturas e estátuas de segunda mão. Quando Giorgione morreu em 1510, ela escreveu a um comerciante de Veneza que fomos informadas de que entre os pertences e posses do pintor Zorzo de Castelfranco existe um quadro de uma noite [una nocte], muito bonito e singular; se assim for, desejamos possuí-lo e para isso pedimos que, em companhia de Lorenzo da Pavia e de qualquer outro que tenha julgamento e compreensão, veja se é realmente uma coisa boa, e se assim o considerar, que se empenhe ... em obter o quadro para mim, definindo o preço e informando-me a respeito. A resposta, porém, foi de que dois quadros desse tipo haviam sido encontrados no estúdio de Giorgione, pintados sob encomenda, e que os clientes não estavam dispostos a desistir deles. Aqui, como em outras coisas também, Isabella estava um pouco adiante de seu tempo. 144
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Um ano depois, em 1511, foi um artista que tomou a iniciativa de vender uma obra não encomendada para os Gonzaga. Vittore Carpaccio escreveu ao marido de Isabella, Gianfrancesco II, marquês de Mântua, que possuía uma aquarela de Jerusalém pela qual uma pessoa desconhecida, talvez da corte de Mântua, havia feito uma oferta. "E por isso ocorreu-me escrever esta carta a Sua Sublime Alteza a fim de chamar atenção para o meu nome e minha obra." O preâmbulo apologético sugere que vender quadros desse jeito ainda não era muito adequado (Chambers, 1970b, n° 63). Porém, em 1535, Federico, filho de Gianfrancesco, comprou 120 pinturas flamengas de segunda mão. Os agentes de Isabella, que ela empregava para arranjar encomendas, assim como para fazer ofertas para pinturas já feitas, não eram comerciantes de arte especializados trabalhando em tempo integral. Um deles era um fabricante de clavicórdios. Em Florença, porém, um patrício, Giovanni Battista delia Palia, foi descrito como "um comerciante de arte no sentido mais completo e verdadeiro, ou seja, comprador sistemático de obras de arte tanto contem porâneas com o antigas" (Wackernagel, 1938, p. 283 ). Ele é mais famoso por suas atividades em nome de Francisco I, rei da França, para quem comprou, entre outras coisas, uma estátua de Hércules feita por Michelangelo, uma estátua de Mercúrio de Bandinelli, um São Sebastião de Fra Bartclommeo e um Despertar de Lázaro de Pontormo. Foi em busca de outras obras deste último artista que — segun do Vasari, em sua vida de Po ntormo — Palia acabou na casa de um certo Borgherini, sendo expulso pela esposa de Borgherini, que o chamou de "baixo comerciante de segunda mão, mascate de quatro tostões" [vilissimo rigattiere, mercantatuzzo di quatto danari]. Sem dúvida valia a pena levar uma corrida, uma vez que muito se lucrava vendendo para o rei da França. Vasari nos conta que "os comerciantes" receberam de Francisco quatro vezes mais do que haviam pagado a Andréa dei Sarto. Havia outros casos de venda de obras não encomendadas na Florença do século XVI. Ottaviano de'Medici, um dedicado colecionador, comprou duas pinturas de Andréa dei Sarto que haviam sido feitas para outra pessoa. Vasari também faz referência à exposição pública de pinturas, uma forma de propaganda talvez relacionada ao aumento de mercado. Bandinelli, por exemplo, pintou uma Deposição'de Cristo e a "expôs" [Io messe a mostra] no estabelecimento de um ourives (cf. Koch, 1967). Em Veneza também existem provas de um mercado de arte. Para voltar à Natividade de Bellini, em 145
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determinado momento, quando as negociações com Isabella d'Este estavam a ponto de se romper, o artista a informou de que tinha encontrado alguém que queria comprar a pintura. O primeiro caso de um retrato de Ticiano compra do por outrem que não o retratado é uma compra efetuada pelo duque de Urbino em 1536. Um certo Zuan ou Giovanni Ram, catalão residente em Veneza, parece ter sido ativo comerciante de arte no começo do século XVI. Na feira da Semana da Ascensão em Veneza, foram expostas pinturas — Lotto e os Bassano estavam entre os expositores - e o mesmo aconteceu na feira de Santo Antônio em Pádua (Francastel, 1960; Koch, 1967). Gravuras em madeira e em metal, feitas para vender a um público desconhecido, ficaram mais comuns no século XVI. Alguns artistas esta vam começando a se especializar nesse novo meio: Giulio e Domenico Campagnola, por exemplo, que se dedicavam a paisagens, e Marcantonio Raimondi, que produzia gravuras com versões de pinturas de Leonardo e Rafael, tornando-os assim mais conhecidos. A era da obra de arte mecanica mente reproduzida, lamentada por críticos como Walter Benjamin (1936), vem de mais longe do se ad mi te em geral (cf; H ind, 1930). Em meados no século XVI, o sistema de mercado ainda estava muito longe de ter igualado, e muito menos destronado, o sistema de patronato pessoal. Para exemplos de dominação do novo sistema, teremos de esperar até o século XVII, até o surgimento dos teatros de ópera comerciais de Veneza e do mercado de arte da República Holandesa. E impossível resolver si o florescimento das artes na Itália do Renascimento se deve aos patronos, como sugere Filarete na epígrafe deste capítulo, ou se ocorreu apesar deles, como sugere Michelangelo. O que se pode discutir, no ent anto, é a relação bastante compli cada entre o patron ato e a distribuição desigual do progresso artístico em diferentes partes da Itália. No capítulo anterior, sugeriu-se que a arte floresceu em Florença e Veneza em particular, porque essas cidades produziram muitos de seus próprios artistas. Mas isso não esgota a história toda. Havia também cida des que atraíam artistas e escritores de outras partes. Roma é o exemplo óbvio, e o patronato dos papas (principalmente Nicolau V e Leão X) e dos cardeais também é uma explicação óbvia. 18 Urbino, Mântua e Ferrara são 18 O patro nato de Leão, muit as vezes exagerado, foi reduzido ao devido tamanho por Gnoli (1938).
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outros exemplos de cidades com poucos artistas famosos nativos, e que mesmo assim se tornaram importantes centros culturais. Em todos os três casos, o estímul o vinha do pat ro no , do gove rnant e ou de sua mul her . E m Urbino, foi Federigo da Montefeltre que tornou as artes importantes, atraindo Luciano Laurana da Dalmácia, Piero delia Francesca de Borgo San Sepolcr o, Just us de Gh en t, Fran cesco di Gior gio de Siena. Em Mâ nt ua, Isabella d'Este e seu marido faziam encomendas, como vimos, a Bellini, Carpaccio, Giorgione, Leonardo, Mantegna, Perugino, Ticiano e outros não-mantovanos. Seu único pintor mantovano era um mestre menor, Lorenzo Leombruno. Nessas pequenas cortes, parece que o patrono fazia brotar arte onde antes não existia nenhuma. Porém não se devem perder de vista dois pontos dessa tese. O primeiro é que tal patronato foi parasitário da arte dos centros maiores como Florença e Veneza, no sentido de que teria sido impossível sem esses centros. O segundo é que as conquistas dos patronos principescos raramente sobreviviam a eles. Alfonso de Aragão, por exemplo, foi um patrono efetivo em muitos campos. Ele tomou cinco humanistas a seu serviço permanente (Panormita, Fazio, Valia e os irmãos Decembrio). Construiu uma capela de 22 cantores e pagava ao organista a soma excep cionalmente alta de 200 ducados por ano. Ele convidou o pintor Pisanello para viver em sua corte em Nápoles e encomendou obras aos principais escultores, como Mino da Fiesole e Francesco Laurana. Co mp ro u tap eça rias flamengas e vidro veneziano. Quando o rei morreu, toda essa atividade foi interrompida. Os artistas e escritores vinham de fora de seu reino e os nobres napolitanos não seguiram o exemplo de Alfonso, não manifestaram interesse no patronato. Ao contrário de Alfonso, Lorenzo de'Medici tinha tudo a seu favor como patrono. Vivendo em Florença, tinha acesso imediato a grandes artistas e não precisava se dar ao trabalho de atraí-los de longe. Não era pat ron o de um só, mas de mui tos , grandes e pequenos. A importânc ia d e seu patronato foi exagerada no passado (Chastel, 1961; cf. Elam, 1978; Alsop, 1982, cap. 12). A questão aqui, porém, não é sua extensão, mas sua facilidade. O patronato era estruturado; mais fácil em certas partes da Itália, mais difícil em outras. * Qu a nt o ao cresci mento do mer cado , é provável que tenha dado a artistas maior liberdade ao preço de maior insegurança. Envolvia também 147