UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS LINGUAGEM E IDENTIDADE
PALÁCIO RIO BRANCO: LINGUAGENS DE UMA ARQUITETURA DE PODER NO ACRE
Ana Carla Clementino de Lima
RIO BRANCO 2011
Ana Carla Clementino de Lima
PALÁCIO RIO BRANCO: LINGUAGENS DE UMA ARQUITETURA DE PODER NO ACRE
Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras: Letras : Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre, na Área de concentração em Sociedade e Cultura, sob a orientação do professor Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque.
RIO BRANCO 2011
LIMA, 2011. LIMA, Ana Clara Clementino de. Palácio Rio Branco: linguagens de uma arquitetura de poder no Acre. Rio Branco, 2011. 100 f. Dissertação (Mestrado em Letras - Linguagem e identidade) – identidade) – Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. Universidade Federal do Acre, Rio Branco.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UFAC
L732p
Lima, Ana Carla Clementino, 1976Palácio Rio Branco: linguagens de uma arquitetura de poder no Acre / Ana Clara Clementino de Lima. – Lima. – 2011. 100 f.: il.; 30 cm.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Acre, PróReitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, Curso de Mestrado em Letras Linguagem e Identidade, Área de Concentração em Sociedade e Cultura. Rio Branco, 2011. Inclui Referências bibliográficas Bibliotecária: Vivyanne Ribeiro das Mercês Neves CRB-11/600
TERMO DE APROVAÇÃO
Ana Carla Clementino de Lima
PALÁCIO RIO BRANCO: LINGUAGENS DE UMA ARQUITETURA DE PODER NO ACRE
Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras: Linguagem e Identidade, pela Universidade Federal do Acre (UFAC), na Área de concentração Sociedade e Cultura.
BANCA EXAMINADORA
Orientador:
Prof.Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque Universidade Federal do Acre Prof. Dra. Maria de Jesus Morais Universidade Federal do Acre Prof. Dra. Lindinalva Messias do Nascimento Chaves Universidade Federal do Acre Prof. Dr. José Dourado Alves de Souza
RIO BRANCO-AC, 2011
DEDICATÓRIA
Aos leitores, pesquisadores e interessados interessados pelo tema e pelo compartilhar com as reflexões realizadas nesta dissertação, bem como a todas as pessoas que se inquietam com suas responsabilidades institucionais e não se afastam do esforço de reflexão teórica sobre suas atividades, acreditando que se não podem mudar, podem ao menos pensar no desafio de proporcionar um diálogo mais aberto com as práticas culturais da sociedade em que vivem.
AGRADECIMENTOS Nesse processo de pesquisa em que me deparei, muitas vezes, com “portas fechadas”, documentos “perdidos” ou “não identificados”, com funcionário s de instituições que “não sabiam” dar informações me levando a pensar na impossibilidade de conclusão ou mesmo em um novo direcionamento da pesquisa, tive a certeza de poder contar com o apoio, direto e indireto, de pessoas e instituições necessário ao andamento de minhas reflexões propostas e, a todos estes, o meu muito OBRIGADA!!! Deixo registrado aqui os meus agradecimentos sem separar a esfera pública da privada, pois não consigo dissociar o resultado desse estudo sem considerar o meu “lugar” de sociabilidade que inclui as duas esferas. Sem considerar como cumprimento de um ritual, mas para, de fato, tornar público o papel importante que teve na construção desse estudo, agradeço imensamente ao meu estimado orientador, Gerson Rodrigues de Albuquerque, por sua percepção, questionamentos e, acima de tudo, pelos desafios lançados, os quais me levaram a certas angústias ao ter que “desaprender” alguns conceitos enraizados, mas que também me ajudaram a exercitar o meu “olhar” , contribuindo assim para o meu crescimento intelectual. À minha mãe, Neusa, e meu pai, João Farias, pela compreensão, profundo incentivo, respeito e amor que têm dedicado à minha pessoa desde que nasci. Às minhas queridas sobrinhas Blenda e Laura, pelo apoio no levantamento de dados dos visitantes do Palácio e impressões de documentos. Ao meu sobrinho de sete anos, João Víctor, pelos momentos de descontração e até mesmo pelas “broncas” quando me criticava, dizendo “a tia é preguiçosa, não faz nada! Passa o dia “olhando” para o livro e o computador !” !”
À minha irmã Iris e ao meu cunhado, Jonathas Vieira, por todo carinho e “socorros” prestados: quando o pneu do carro furava na UFAC, quando a impressora sofria danos, quando a tinta acabava, enfim, quando a ajuda era de extrema importância em momentos cruciais para a minha participação em eventos ou em conclusões de trabalhos. Às minhas amigas Aurinete Malveira, pelos diálogos sobre arquitetura, e Alessandra Dantas pelo apoio apoio nas transcrições das entrevistas.
Ao meu amigo Vinícius Cotrin Neto e a minha amiga Lucilene Almeida, pelas palavras de incentivo quando q uando estava “desanimada”. À Kellen Dantas pelos comentários comentários de algumas leituras sobre sobre identidade. À prof. Dra. Maria de Jesus Morais, pelos diálogos mantidos nos encontros em eventos, pelos valiosos empréstimos de livros sobre patrimônio histórico e pelos comentários durante o Exame de Qualificação. À prof. Dra. Lindinalva Messias Nascimento, que também compôs a Banca de Qualificação, pela leitura atenta e os valiosos e sinceros comentários críticos à forma e conteúdo do texto. Ao diretor da Sub-regional do IPHAN no Acre e amigo Deyvesson Israel Alves Gusmão. Ao Eduardo de Araújo Carneiro, pelas informações de atas e processos sobre o tombamento do Palácio Rio Branco. Ao professor e estimado AMIGO Francisco Bento da Silva, pelos livros e DVDs que muito contribuíram para entendimento e esclarecimento de processos históricos, mas principalmente, pela companhia agradável em momentos de descontração. Aos entrevistados que dispuseram de seu tempo para me atender: o expresidente da Fundação Elias Mansour Antônio Alves, o artista plástico Dalmir Ferreira, a ex-diretora da Coordenação de Patrimônio da FDRHCD Fátima Almeida, aos ex-diretores da FDRHCD João Petrolitano e Jacó Píccole, o presidente da Federação de Teatro do Acre Lenine Barbosa de Alencar e o arquiteto Jorge Mardine Sobrinho. A todos os meus colegas da Pós-Graduação que serão sempre lembrados, em especial a Raquel Alves Ishii, Patricia Redigolo, Valéria Barbosa, Guadalupe Dagaldilho, Rivanda Nogueira, Gracione Teixeira, Rozane Albuquerque, Maristela Diniz e Maria Da Luz França. À Fundação Elias Mansour, destacando a atenção no atendimento dispensado a mim por Elda Alencar. Ao Departamento de Patrimônio Histórico, fundamentalmente, a Chefe do Departamento Suely da Costa Melo e à secretária Lívia Helena Galvão. Ao Museu Universitário da UFAC (antigo CDIH), principalmente à estagiária Gercinéia Alves da Silva.
À equipe do Museu da Borracha pela acolhida nos momentos de pesquisa na biblioteca. Aos alunos do 8º período do curso de História Bacharelado, no segundo semestre letivo de 2009, pelas discussões realizadas durante meu estágio de docência: Éssio, Wellynton, Arlen, Emilania, José Capistano, Huendeson, José Welliton, Sandréia, Iolanda, Assis, Maria Zenaide, Edcleu, Aires, Carlos, Jerônimo, Adriana e Silvana. A todos os professores do mestrado, ao Coordenador Henrique Silvestre e , finalmente, agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Letras Linguagem e
Identidade e à Universidade Federal do Acre (UFAC) , pela possibilidade de chegar a esse momento de minha trajetória profissional, bem como à Capes/Programa Reuni pela bolsa e apoio à pesquisa.
RESUMO Este estudo discute a invenção de uma acreanidade forjada pela linguagem, cuja representação constitui-se de narrativas históricas, personagens, mito de origem e símbolos que foram intensamente divulgados durante o “Governo da Floresta” (1999-2006), no Estado do Acre, como referência identitária. Para tanto, lançamos mão de algumas produções acadêmicas que trazem contribuições importantes sobre a temática. Nesse processo de invenção, destacamos, na abordagem da discussão, a atuação da Fundação de Cultura Elias Mansour, do Departamento de Patrimônio Histórico do Acre e do Jornal Página 20 como agências promotoras de um discurso regionalista, em conformidade com os interesses do governo estadual, em um tempo presente, que trazia em seu discurso oficial um conceito de modernidade aliado ao de tradição, para legitimar suas intervenções por meio de um consenso através da via cultural e da ideia de “progresso”. Como materialização das abstrações desse discurso, o governo trabalhou com um projeto urbanístico de revitalização do centro histórico de Rio Branco e criação de novos lugares de memória, que nos levam a refletir sobre o patrimônio e suas articulações arti culações com o discurso oficial. Nesse contexto, o Palácio Rio Branco, construído em 1929, como símbolo do rompimento com o “atraso”, foi “revitalizado” em 2002, ressurgindo oficialmente e discursivamente como monumento-símbolo do Acre e da “acreanidade”, simbologia esta que se tornou o ponto chave de nossas reflexões, cuja pesquisa destina- se a lançar um outro “olhar” a respeito do que está posto como unidade a partir desse monumento que apresenta em suas dependências um cenário de uma versão de “história regional”, mas que traz em sua essência a contradição do discurso por sua composição esteticista, ritualística e memorial.
Palavras-Chave: Memória. História. Representações. Amazônia Acreana.
Patrimônio
Cultural.
Identidades.
ABSTRACT This study discusses the invention of an “acreanity”, that is, an Acrean identity, forged by language, whose representation is made up of historical narratives, characters, origin myth and symbols that have been heavily publicized in the "Government of the Forest" (1999-2006), in the state of Acre, as identity references. For this we engaged some academic productions that bring important contributions on the subject. In the process of invention, we highlight the role of “Elias Mansour” Cultural Foundation, the Department of Historical Patrimony of the State of Acre, and of the “Jornal Página 20”, a local newspaper. Those institutions were considered as agencies that promoted a regionalist discourse, in accordance with the interests of the state government, which brought in its official discourse the concept of modernity combined with tradition, in order to legitimize their interventions through a consensus about the culture, more specifically the idea of "progress". In doing so, the government created an urban project to revitalize the historic center of Rio Branco, the capital of the State of Acre, and also created new places of memory, which leaded us to reflect on the historical patrimony and their links to the official discourse. In this context, the “Palácio Rio Branco”, built in 1929 as a symbol of the rupture with the "retrogress", was "revived" in 2002, rising officially and discursively as a monument-symbol of the State of Acre and also the "acreanity". That symbol became the key point of our reflections, whose research is intended to launch another "view" upon this monument that had on its premises a version of "regional history", which brings a cultural contradiction in its essence, considering its aesthetics, ritual and memorial aspects.
Keywords: Memory. History. Cultural Patrimony. Identity. Representation. Acrean Amazon.
SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS........................ .............................. .......
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1.DIÁLOGOS SOBRE A “INVENÇÃO” DA ACREANIDA...................
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2.PALÁCIO RIO BRANCO: A TEATRALIZAÇÃO DA “HISTÓRIA REGIONAL” – E DA “ACREANIDADE”............................................. 3.MEMÓRIA,
MEDIAÇÃO
CULTURAL
E
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CONSTRUÇÃO
DISCURSIVA DO PASSADO-PRESENTE ........................ ................
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CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................... .............................. .......
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................... ......................
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS O estudo apresentado nesta dissertação faz parte de um caminho longo e sinuoso, percorrido durante minha trajetória profissional. Foram mais de oito anos de atividades exercidas como estagiária e em cargo de comissão por vários setores do Departamento de Patrimônio Histórico do Estado do Acre. Devo dizer que lidar com questões ligadas à cultura, memória, símbolos e representações é algo extremamente conflitante, por tratar-se de dimensões simbólicas de valores individuais e coletivos. Tais valores são ora “impostos”, ora apropriados ou inventados, criados, recriados, trazendo em sua essência elementos cruciais das relações sociais, resistências ou negociações pelos mais diversos interesses, em um “campo de batalha” contínuo que nos leva a refletir sobre a expressão romana c ui Bono, (FUNARI & PELEGRINE, 2006, p.10), ou seja, “quem se beneficia?”
Procuramos nesta dissertação, ampliar reflexões iniciadas em um estudo intitulado “Entre a memória histórica e o esquecimento: a re-invenção re -invenção do Acre (20022006)”.1 O interesse pela abordagem surgiu de inquietações pessoais no exercício de minha atividade na condição de diretora do Museu da Borracha, em 2005. Vivenciávamos um momento de “entusiasmo” no Acre, quando somente se ouvia falar de aspectos positivos desse Estado da federação, na Amazônia brasileira. A visão divulgada na mídia sacralizava uma relação dos acreanos com a floresta e com “valores tradicionais”. A intensidade das propagandas difundidas tomava significativas proporções, na medida em que ia produzindo a ideia de que o Acre vivia uma “nova fase” de “desenvolvimento” e “bem“bem -estar social”. Todos pareciam extremamente envolvidos envol vidos e satisfeitos com a “valorização” que se dava a uma ideia de “cultura”, singularizada e marcada pela lógica do grupo político que assumira o comando do poder executivo local. Frente a esse contexto, buscamos refletir acerca das dimensões simbólicas que marcaram a ideia de construção de um “Outro Acre”, pesquisando sobre os projetos governamentais que estavam em destaque na mídia: Palácio Rio Branco, Memorial dos Autonomistas, Casa dos Povos da Floresta, Praça dos Povos da Floresta, Via Chico Mendes e Mercado Municipal. 1
LIMA, Ana Carla Clementino de. Entre a memória histórica e o esquecimento: a “re-invenção” do Acre. 2007. Monografia (Pós-Graduação em Cultura, Natureza e Movimentos Sociais na Amazônia) – Amazônia) – Universidade Federal do Acre, Rio Branco, 2007.
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Dividido em três partes, aquele estudo traz algumas considerações sobre a construção de uma memória coletiva apoiada em determinados suportes sociais para seu reconhecimento. A produção dessa memória histórica concentrou-se em um conjunto conjunto de “realizações” pretéritas de governadores do Acre Território, especialmente, Hugo Carneiro (1928-1930) e Guiomard dos Santos (1946-1950), bem como no “mito fundador” da “Revolução Acreana” e em semióforos 2 antigos e recentes, a exemplo de Plácido de Castro e Chico Mendes. No Acre, naquele início de milênio, ocorria um fenômeno de reconstrução e criação de “lugares da memória” que visavam conferir legitimidade ao projeto governamental em voga. O que se evidenciava, portanto, não era uma valorização da memória social e coletiva das comunidades acreanas, mas da memória que interessava – interessava – e interessa – interessa – às elites locais, posto que, esses “lugares da memória”, no dizer de Pierre Nora, “nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres [...]” (NORA, 1993, p. 13). A criação ou recriação ou reconstrução desses “lugares da memória” concorrem para a invenção/re-invenção de tradições que, em harmonia com determinados “fatos históricos” sacralizados pelo discurso de um “Acre que se quis brasileiro”, atualizavam práticas de controle do poder público, preservando ou estabelecendo a “obediência, lealdade e cooperação” (HOBSBAWM & RANGER, 1997, p. p. 273) da “comunidade de acreanos” ou dos que “vivem no Acre com o governante que, também, procurava se legitimar. Em estreito diálogo com Nora, Hobsbawm e Ranger, observando a partir do momento presente, é possível dizer que entre os anos 2000-2008, o governo acreano desenvolveu um trabalho voltado para a “urbanização” efetiva do centro da cidade de Rio Branco e mesmo de outras cidades acreanas. Nesse processo, procurou “resgatar” elementos do passado, sob o invólucro da recuperação e manutenção do patrimônio patrimô nio histórico acreano, a partir de uma “concepção oficial de
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Para Marilena Chauí, em Brasil - mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2001, p.12, o semióforo pode ser um acontecimento, um animal, um objeto, uma pessoa ou uma instituição retirados do circuito do uso ou sem utilidade direta e imediata na vida cotidiana porque são coisas providas de significação ou valor simbólico, capazes de relacionar o visível e o invisível, seja no espaço, seja no tempo.
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cultura”3, como mecanismo para manter uma aparência de unidade social, através da política de preservação e produção de um patrimônio coletivo. Percebe-se que a política de patrimônio histórico e cultural selecionou bens culturais de cal e pedra , fixando pontos que orientam itinerários, cuja representação, compõe o que poderíamos chamar de uma “cartografia do poder” que teve início com a “reforma”, “restauração” e “revitalização” do Palácio Rio Branco, símbolo maior do poder político no Acre. Essa cartografia teve como base a produção material (monumentos) e simbólica no campo da cultura, constituindo-se de uma relação entre linguagem, história, memória e sociedade que precisam de maiores reflexões por configurar formas e conteúdos, criando representações de uma certa identidade no imaginário individual e coletivo dessa parte das Amazônias. Ampliando e mesmo superando questões esboçadas no estudo anterior, o que pretendemos, com esta dissertação, é discutir a construção de uma identidade acreana ou a “acreanidade” no contexto do “Governo da Floresta”, mais precisamente no espaço de tempo que consideramos mais significativo para os objetivos deste estudo, os anos 2002-2006. A abordagem proposta concentra-se na linha de pesquisa Cultura e Sociedade, especialmente, por levar em consideração que os significados da linguagem são produzidos na e para a sociedade por meio de práticas culturais. Nessa perspectiva, a discussão será realizada a partir dos estudos culturais, 4 campo de estudo multidisciplinar em que a cultura entrelaça todas as práticas sociais. Consciente da impossibilidade de se discutir todo o sistema de representações, o objetivo agora é, fazer uma discussão acerca das dimensões simbólicas e dos discursos que inventaram a ideia de uma “acreanidade”, tendo como suporte a política patrimonial, articulada a uma complexa rede de significados, visando criar ou legitimar uma ideia de “tradição” para a afirmação da “identidade acreana”. Ao dialogar mos mos com essa identidade, cuja representação manifesta-se
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Termo cunhado de Leite, (2001, p.13), o qual se refere a práticas orientadas e voltadas para sociedades que têm o Estado como referência institucional. 4 A preocupação dos estudos culturais está em sondar como as relações são vividas e experimentadas. É um campo do estudo que surgiu na Inglaterra em meados da década de 1950. Emergiu a partir das obras de Hichard Hoggart (As utilizações da Cultura), de Raymund Wilians (Cultura e Sociedade) e de E.P. Thompson (A formação da classe operária inglesa).
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nos “lugares de memória”, 5 questionamos a unidade cultural que foi produzida pelas representações de um discurso, cuja “linguagem molda o mundo simbólico” (BURKE & PORTER, 1993, p. 13-37). Diante da necessidade de questionamento dessa aparente unidade em t orno de uma “identidade cultural acreana”, representada nos lugares de memória, optamos por discutir o Palácio Rio Branco como estudo de caso, por ser considerado pelo discurso oficial, um símbolo de “restauração do próprio Acre” e da “acreanidade” (NEVES apud MORAIS, 2008, p. 229). A partir deste estudo de caso, propomos fazer uma leitura discursiva na contramão do que está posto, buscando romper com “exílios interiores”, 6 dialogando com as seguintes problemáticas: quais as condições de criação, no governo de Hugo Carneiro (1928-1930), daquilo que foi concluído no governo de Guiomard Santos (1946-1950) e recuperado/revitalizado no governo de Jorge Viana (20022006) em torno do Palácio Rio Branco? Sua preservação como produção simbólica e material expressa quais experiências sociais? Quais são as memórias que podemos atribuir à significação desse Palácio, na condição de monumento histórico? O Palácio Rio Branco – como patrimônio histórico e cultural – exerce sua função social de direito à cidadania? Para investigar o período dessa construção de representações simbólicas de invenção da “acreanidade”, nos lugares de memória, recorr emos recorr emos à biblioteca e à hemeroteca do Museu da Borracha. 7 Nesse museu, tive acesso ao relatório do exgovernador do Território do Acre, Hugo Ribeiro Carneiro, bem como ao acervo de jornais com as edições do Jornal “Página 20” e o Jornal “O Estado” (anos 20022002 2006). Essa documentação foi importante para analisar imagens e enunciados na produção imagético-discursiva imagético- discursiva da “acreanidade”, tendo como pano de fundo o Palácio Rio Branco, desde seu projeto inicial, em 1928.
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NORA, (1993) classifica a dinâmica de criação dos lugares da memória memóri a como “o tempo dos lugares”, momento preciso do fim de uma tradição de memória onde aparece um aprofundamento decisivo do trabalho da história, para só viver sob o olhar de uma história reconstituída. 6 GLISSANT, (2005) utiliza esse termo para explicar momentos em que o imaginário, a imaginação, ou a sensibilidade estão alheios àquilo que se passa à sua volta. 7 O Museu da Borracha foi criado através do Decreto Estadual nº 30 de 03 de abril de 1978, pelo Governador Geraldo Mesquita. Era subordinado ao Departamento de Assuntos Culturais (DAC) da Secretaria de Educação e Cultura do Acre e passou a ser vinculado à Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos da Cultura e do Desporto em 1979. Atualmente é coordenado pelo Departamento de Patrimônio Histórico da FEM.
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Percorrendo os arquivos do Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural do Estado (DPHC), tive acesso a relatórios, atas, decretos, dossiês, fotografias, processo de tombamento do Palácio e a um sistematizado arquivo digital, contendo centenas de matérias e notícias publicadas nos jornais Folha do Acre, O Acre, Renovação, O Estado, O Rio Branco, O Jornal, Diário do Acre, Gazeta, A Gazeta e A Tribuna, entre as décadas de 1920 a 1990. Esse acervo foi constituído a partir de pesquisas e sistematização realizada pelas estagiárias do DPHC para subsidiar o projeto de “revitalização” do prédio palaciano, visando seu posterior tombamento 8 como bem cultural. Parte substancial das notícias jornalísticas desse acervo refere-se ao Palácio Rio Branco como palco de comemorações cívicas: semana da pátria, sete de setembro, aniversário do Estado, aniversário da Revolução Acreana, aniversário do Tratado de Petrópolis, Dia da bandeira, entre outros. Outra parte destaca o palácio como ambiente para cerimônias e solenidades: posses de prefeitos e governadores, assinaturas de convênios, audiências especiais, recepções, almoços e jantares - em meio aos cristais e porcelanas finas - para as elites locais e visitantes oficiais. Percebe-se uma pequena mudança no teor das matérias, a partir da década de 1980, quando o Palácio passou a ser citado também como lugar de reivindicações populares. Isso pode ser indicativo não de uma mudança simbólica, mas, indício do reconhecimento de sua representação diante da sociedade acreana, ou seja, símbolo do poder executivo. No DPHC, também tive acesso ao filme “Território Federal do Acre (1949)”9, produzido no governo de Guiomard Santos. O filme é uma espécie de relatório cinematográfico de seu governo, produzido pela empresa Medeiros Filmes, do Rio de Janeiro, e constitui-se em importante fonte de pesquisa sobre sua administração. Na Fundação Elias Mansour (FEM), responsável pela criação, preservação e manutenção do Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural, e, 8
Tombamento é um ato administrativo realizado pelo Conselho Estadual de Patrimônio Histórico e ratificado pelo poder público com o objetivo de preservar, por intermédio da aplicação de legislação específica, bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, impedindo que venham a ser destruídos ou descaracterizados. 9 O original desse filme/documentário pertence ao acervo do Museu Universitário da UFAC e faz parte dos documentos doados à essa instituição por Lydia Hammes (já falecida), viúva de José Guiomard dos Santos.
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consequentemente, consequentemente, pelos espaços administrados diretamente por este órgão, como o Palácio Rio Branco, Museu da Borracha, Memorial dos Autonomistas, Casa dos Povos da Floresta, Sala Memória de Porto Acre, Museu do Xapurys, Museu de Sena Madureira e outros, tive acesso a documentos oficiais como Leis e Decretos. Porém, esses registros não foram suficientes para analisar a atuação dessa instituição no processo proce sso de invenção da “acreanidade”. Tal situação me levou a recorrer às entrevistas para a coleta de depoimentos de ex-diretores-presidentes das duas fundações de cultura criadas no Estado, ou seja, a Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos e do Desporto (FDRHCD) e a Fundação Elias Mansour (FEM). Nessa mesma direção, realizei entrevistas com artistas que possuem vínculos com a história das fundações de cultura. Percorri ainda os arquivos do Museu Universitário da Universidade Federal do Acre, que congrega um amplo e importante conjunto de fontes documentais, num acervo que vem sendo constituído desde o ano de 1976, quando aquele centro foi criado, com a finalidade de coletar e organizar documentos referentes à história da Amazônia, particularmente a do Acre, visando à produção científica. O acervo documental desse museu é bastante diversificado e, dentre suas coleções, está a de Guiomard Santos, composta por milhares de documentos referentes à trajetória pessoal, política e profissional desse homem público. 10 Nessa coleção, procurei mais especificamente documentos relativos ao período em que Guiomard Santos foi governador do Território do Acre. Os tipos recorrentes de documentos acessados foram cartas, telegramas, ofícios, agendas e fotografias. Esses documentos, embora não constem das referências, citadas diretamente no corpo do texto, foram de grande importância para a compreensão do imaginário que se construía a respeito do “construtor do Acre”. Percorri ainda as dependências do Museu Palácio Rio Branco, observando as exposições e, consequentemente, fazendo uma leitura. Nesse Museu, tive acesso aos livros de registros de visitantes no período que compreende os anos de 2005 a 2008. Também realizei entrevista com o arquiteto responsável pelo projeto de revitalização do Palácio Rio Branco, Jorge Mardine Sobrinho.
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José Guiomard dos Santos, mineiro nascido em 23 de março de 1907, na cidade de Perdigão em Minas Gerais. Militar nomeado para ser Governador Delegado da União no Território Federal do Acre em 1946, pelo presidente da República Eurico Gaspar Dutra.
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A pesquisa foi fascinante e ao mesmo tempo árdua, provocando em alguns momentos entusiasmos e, em outros, frustrações, diante do que não se podia prever. Seu ritmo impôs, muitas vezes, sentimentos de dúvidas e de impotência frente aos problemas que iam surgindo e me envolvendo a tal ponto que, não conseguindo me desvencilhar de suas teias, “mergulhei” no imprevisível, no emaranhado de informações adquiridas e até mesmo na ausência ou silêncios das mesmas. Diante dos entraves e ansiedades, tentei manter o controle necessário para a produção de minhas reflexões e, para superar esses problemas, tomei como referência de incentivo o provérbio que diz: “quem observa o vento, nunca semeará; o que olha as nuvens, n uvens, nunca segará” (Eclesiastes 11:4). Com espírito, procurei esquecer as dificuldades e foquei somente na conclusão deste estudo. No percurso da escrita, pude contar com ideias que surgiram em momentos inspiradores, geralmente, durante as madrugadas. Em uma dessas ocasiões, recordei-me de uma discussão feita durante a disciplina Linguagens, sociedade e diversidade amazônica , no Mestrado em Letras da UFAC, sobre a “coruja de
minerva” que, na visão hegeliana, somente alça vôo ao anoitecer. Essa metáfora, utilizada para pontuar que o conhecimento surge após o acontecido ou às experiências vivenciadas, ajudou-me a melhor compreender o processo de elaboração do conhecimento, bem como o “fazer “fazer -se” de minhas atividades intelectuais. Tudo Isso me veio à cabeça, neste momento, como que para realçar os momentos de inspirações súbitas e os pulos da cama para fazer as anotações madrugadas adentro, que se constituiu de fundamental importância para o desenvolvimento das reflexões que compõem a pesquisa que ora apresento. A partir destas considerações, a presente dissertação está dividida em três capítulos: No primeiro, intitulado Diálogos sobre a “invenção” da acreanidade, destaco alguns lugares de memória, que foram estrategicamente criados e “revitalizados” para compor as representações do discurso sobre a “acreanidade”, em um (re)ordenamento, no centro centro da capital acreana,
como estratégia para
produzir expectativas, subjetividades e formas de identificação social com o projeto político em vigor. Procuro, ainda, dialogar com produções acadêmicas, as quais foram motivadas, direta ou indiretamente, pela discussão sobre a invenção da “acreanidade”. Inicio, portanto, minhas reflexões dialogando/problematizando com estudos recentes que considero de significativa relevância para o debate sobre a
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realidade social da Amazônia acreana e para as questões de natureza metodológicas, tais como: “„Acreanidade‟: invenção e reinvenção da identidade acreanidade”, “A construção discursiva da florestania: comunicação, identidade e política no Acre”, “O discurso fundador do Acre: heroísmo e patriotismo no último Oeste”, “As raízes ”do autoritarismo no executivo acreano (1921 -1964)”. 1964)”. Também defino o caminho teórico-medotológico pelo qual percorri. No Capítulo II, Palácio Rio Branco: a teatra lização da “história regional”
– e da “acreanidade” , procuro discutir o Palácio na condição de museu e monumento histórico, que foi oficialmente reconhecido como bem patrimonial, compondo, assim, uma discursividade em torno de uma exposição musográfica para apresentar uma “história regional”, bem como de símbolo da “acreanidade”. Nessa teatralização, pontuo certas contradições dos discursos sobre um “novo” Acre e sobre “acreanidade” atribuídos discursivamente e oficialmente pelo governo do Estado. No Capítulo III, Memória, mediação cultural e construção discursiva do
passado-presente, destaco a participação no processo de mediação cultural na invenção da “acreanidade” de órgãos estaduais como a Fundação de Cultura Elias Mansour, o Departamento de Patrimônio Histórico do Acre e do Jornal Página 20 como agências promotoras de um discurso regionalista em conformidade com os interesses do governo estadual, em um tempo presente, que trazia em seu discurso oficial um conceito de modernidade aliado ao de tradição. Discuto, ainda, sobre as práticas de subjetivações que são postas em ação, cujo teor simbólico vem atuando como armadilha, no sentido de construir uma imagem do governo e de uma representação histórica em harmonia, divulgadas nos jornais Página 20 e O Estado em um jogo simbólico eficaz.
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1.DIÁLOGOS SOBRE A “INVENÇÃO” DA ACREANIDADE Com a inauguração do Memorial dos Autonomistas “José Guiomard dos Santos” (2002) e Casa dos Povos da Floresta (2003), bem como a re -inauguração do Palácio Rio Branco (2002) e Mercado Velho (2006), instaurou-se instaurou- se no Acre “o tempo dos lugares”. Expressão esta, esta , que tomo por empréstimo de Pierra Nora para falar do “momento preciso” em que se finaliza “uma tradição de memória [e] onde aparece um aprofundamento decisivo do trabalho da história, para só viver sob o olhar de uma história reconstituída” (NORA, 1993, p. 12). Esses “lugares de memória” compuseram um “novo” ordenamento, em especial, no centro de Rio Branco, a capital do estado. Ali, o “Memorial dos Autonomistas”, talvez, seja um dos “monumentos” mais emblemáticos emblemátic os de uma “ordem” que silencia vozes dissonantes no “coração da cidade”. Edificado ao lado do Palácio Rio Branco, o memorial surgiu sobre as “ruínas” de outra memória, tendo em vista que, nesse local, funcionava a nteriormente a “Casa do Seringueiro”. De acordo com o arquiteto Jorge Mardine Sobrinho, responsável pelo projeto de “revitalização” do Palácio Rio Branco e criação do Memorial dos Autonomistas, este último foi pensado com “a mesma estrutura de restauro, resgate e revitalização” do primeiro.11 O prédio, construído em uma escala menor do que a do Palácio Rio Branco, trouxe em sua composição elementos de uma arquitetura modernocontemporânea, cuja linguagem é, também, intimidante. As paredes de vidros ao seu r edor edor determinam uma relação de distanciamento, criando uma “vitrine” de contemplação para os transeuntes visualizarem suas partes interiores, sem necessariamente entrar nas dependências do mesmo. Na solenidade de inauguração do prédio, em setembro de 2002, os corpos do casal Guiomard Santos e Lydia Hammes, transladados do Cemitério “São João Batista”, no Rio de Janeiro, foram sepultados em local reservado no memorial para servir de mausoléu ao “Pai do Acre”. Esse novo “lugar de memória” não trouxe de volta a memória dos seringueiros representados anteriormente naquele espaço, antes, surgiu para referendar e reverenciar a memória da classe dominante, na figura do político Guiomard Santos. Na ocasião, a cerimônia fúnebre com benção e sepultamento aconteceu com todos os aparatos cívicos: honras militares com o ritual 11
Parte do depoimento do Arquiteto Jorge Mardine, em entrevista realizada pela autora, em 24 de fevereiro de 2011.
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de hasteamento da bandeira do Acre, ao som do hino acreano. Esses símbolos são sempre instrumentalizados para compor o mítico de uma comunidade harmônica e imune às diferenças sociais. Todo esse aparato discursivo passou a exercer papel de grande relevância na estratégia do “Governo da Floresta” 12 para dar corpo à representação da “acreanidade”. No momento solene de inauguração do edifício, o governador, Jorge Viana, proferiu um discurso emocionado que seria retratado pela escrita oficiosa do Jornal Página 20 : Eu costumo dizer que acreano não é quem nasce no Acre. Acreano é quem ama o Acre. Aqui nós estamos diante dos restos mortais de dois grandes acreanos- nascido em Minas Gerais e outro no Rio. Foram pessoas que deram demonstração de amor à nossa terra e a nossa gente. É por isso que eu acho que essas homenagens além de justas, representam o desejo de Guiomard e de dona Lydia. Eles serão para sempre guardados pelo povo a quem eles amaram tanto (Jornal Página 20 , 20 de setembro de 2002, p. 24).
Os esforços propagandísticos de Guiomard Santos, quando governador do Território Federal, e, depois, político com diversos mandatos pelo Estado do Acre, ganhavam nova embalagem na apologia ao “outro” e a si m esmo do governador Jorge Viana. Os corpos de Guiomard e Lydia Hammes, sua esposa, que andavam, falavam, gesticulavam, movimentavam-se na arena política da cidade, agora eram transformados em corpos simbólicos de um discurso identitário que encontra “descanso” no “sepulcro” 13 do discurso político. As palavras emotivas de “amor à nossa terra e a nossa gente” são introduzidas na narrativa, como exemplo e demonstração do que é ser um acreano “legítimo”, ou seja, ter “amor ao Acre” e lutar em favor de uma causa. A figura de Guiomard, apropriada pelo discurso como exemplo de luta por uma causa, é, também, uma maneira de associar as ações desse ex-governador às ações do governador do presente. Toda essa simbologia que atravessou, à maneira de um
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“Governo da Floresta” foi o período de governo de Jorge Viana (1999-2006) (19 99-2006) que se autodenominou como sendo um “governo da floresta”. “Esse governo desenvolveu uma política econômica baseada no discurso de exploração „„racional” da flor esta esta sob a justificativa de um “desenvolvimento sustentável”, que acabou incorporando a floresta na lógica do capital. 13 Sepulcro, lugar que esconde, túmulo ou máscara, é aqui usado no sentido figurativo.
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pathos político, nas cerimônias de inauguração do memorial ganhou espaço em
outras inaugurações Em 2003 foi inaugurada a Casa dos Povos da Floresta, que buscava representar as tradições e os modos de vida dos diferentes homens e mulheres da Amazônia acreana, sintetizados nos estereotipados rótulos “populações tradicionais” ou “povos da floresta”. Rótulos esses que articulam uma noção de cultura essencializante e idealizada, principalmente, no tocante à relação homem-natureza. Localizada no Parque da Maternidade, 14 um dos pontos turísticos mais conhecidos de Rio Branco, e inspirada nas malocas indígenas, a casa é toda em madeira – madeira – contrastando com a “modernidade” do concreto armado e do asfalto – , e coberta de palha. Em seu interior, consta um significativo acervo de objetos, em sua maioria indígenas, que são expostos, permanentemente, de forma lúdica, composto por painéis e bonecos que “retratam” histórias de “lendas regionais”. Tais “lendas” são o equivalente folclórico das práticas sociais que a visão civilizadora nunca reconhece como cultura. No evento de inauguração da Casa, o governador fez menção à luta pelo reconhecimento da presença indígena, na década de 1970, como um dos motivos de inspiração da política de esquerda. Como mea culpa das discriminações sofridas pelos indígenas, o governo se coloca como porta- voz num “processo de reparação” r eparação” aos diferentes grupos que ali vivem no Acre. Tal manifestação seria reforçada pela, então, ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, ao ressaltar que: essa atitude é uma demonstração de que os acreanos estão aprendendo a mostrar sua identidade e estão perdendo a vergonha de dizer que são índios, ribeirinhos, seringueiros [...] estamos fazendo um processo de reparação, mostrando o quanto a nossa cultura é boa. O mais importante importante é fazer realizações bem intencionadas, como a criação de espaços que proporcionem o acontecimento dessas culturas (Jornal Página 20 . 15 de abril de 2003, p. 10).
O que se evidencia na argumentação dos “herdeiros” dos movimentos sociais das décadas de 1970-80, notadamente, de seringueiros e indígenas, é um 14
Inaugurado no dia 28 de setembro de 2002, o Parque da Maternidade corta a parte central da cidade com uma extensão com mais de 06km. Possui quadras de esportes, restaurantes, bares, ciclovia, pista de skate , pista de cooper . Trata-se de um lugar de uso coletivo, destinado à prática de esportes, lazer e turismo.
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recorrente enunciar sobre a “identidade” e a “cultura” do Acre. “Cultura” essa que, inspirada num passado próximo, se materializava em determinados espaços físicos, os “lugares de memória” em que não apenas a his tória, mas a condição humana era reificada. Para Marina Silva, ser acreano seria uma tradição e a valorização de uma “identidade regional” feita pelo discurso de reconhecimento dos modos de vida de índios, ribeirinhos e seringueiros. Por essa lógica discursiva, processava-se processava-se uma alquimia que colocava no mesmo panteão de “produtores” da idílica „identidade acreana‟, os opressores e os oprimidos, como se nada os diferenciasse. Seguindo a agenda do “novo” ordenamento acreano, em seis de agosto de 2006, seria (re)inaugurado o Mercado Municipal. A “reinauguração” do edifício fez parte da programação promovida pelo governo estadual que celebrava, naquele ano, os 104 anos do início da chamada “Revolução Acreana”. O prédio construído e inaugurado durante o governo de Hugo Carneiro tornou-se símbolo dos conceitos de higiene e sanitarismo, implantado no governo de Hugo Carneiro, no Acre Território Federal, em fins da década de 1920. Entre os anos 1960-80, ocorreu toda uma mutação no espaço do mercado, que foi sendo re-ocupado por infinidade de atividades comerciais. A área de seu entorno, conhecida como “Praça da Bandeira” foi “devorada” por diferentes grupos de pessoas e atividades, dando origem a becos e labirintos de “um rico e variado comércio de corpos, alimentos, vestuário, confecções e dezenas de outros produtos vendidos no varejo”. 15 A intervenção, realizada a partir de 2005, visando à “revitalização” do Mercado Municipal, ocasionou a expulsão de centenas de pessoas, abrindo caminho para uma nova concepção e uso do espaço, posto que a paisagem do comércio informal era vista como obstáculo para a contemplação das estruturas arquitetônicas e da praça do mercado, monumento da “modernização” do Acre, agora re -surgido com uma nova nova roupagem, e voltado para o lazer e o turismo. As atividades de “revitalização” do “Mercado Velho” alcançaram, também, seu entorno, com a Praça da Bandeira e a Avenida Epaminondas Jácome, surgindo com “ambientes inovadores, envoltos por cores, calçadas e iluminação planejada pela arquiteta e especialista em iluminação de ambientes, Ester Stiller. O Mercado 15
No artigo Representações sobre a capital do Aquiry e a cidade “moderna” em C arlos arlos Drummond de Andrade , Albuquerque e Silvestre (2010) discutem parte dessas transformações urbanas.
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passou a ser mais um ponto de referência do discurso de uma “tradição” que renascia. A revitalização beneficia diretamente dezenas de pontos comerciais, sendo que 16 deles dentro do prédio mais antigo e 12 no segundo prédio: são pensões, lojas de armarinhos, bancas de ervas e plantas medicinais e muitos outros estabelecimentos que estão ali há décadas. Cada um desses comércios tem uma história para contar – contar – e, agora com o Novo Mercado Velho, para recontar [...] (Jornal Página 20, 08 de agosto de 2006, p.5).
A nova roupagem criou um ambiente alegre para consumo e lazer com bazares, cafés e bares, visando atrair mais clientes e consumidores desse “bem cultural” dos acreanos. Acompanhada de um espaço contemplativo para passeios, a “revitalização” do mercado trouxe novos significados de uso e função, demonstrando
a
força
“onipresente”
do
Estado,
com
sua
capacidade
intervencionista justificada pela política de valorização histórica posta em aç ão. O que se pode perceber, no bojo desta análise, é que esse “lugar de memória”, concebido como espaço de identidade cultural e histórica, mostrou -se excludente, pois as medidas de “preservação” adotadas em sua revitalização não levaram em consideração as necessidades e significados da população que tirava seu sustento e assegurava sua sobrevivência a partir das atividades ali desenvolvidas. Indiferente a tudo e a todos, os mentores e executores do projeto de “revitalização” do centro de Rio Branco não se deram conta, no dizer de Uriart, que o respeito ao patrimônio não pode passar por cima do respeito às pessoas (URIARTE, 2003, p.73-92). O que foi ficando evidente é que o engajamento do projeto “modernizador” associado à política de “valorização cultural” tomou conta do centro da cidade, estabelecendo medidas autoritárias, elitistas e segregadoras, justificadas pela preservação de determinados bens patrimoniais de cal e pedra. No projeto urbanístico emergente, a (re)vitalização do centro histórico da capital transformou-se transformou-se no símbolo do discurso governamental de “modernização”, “modernização”, que buscou na produção material da cidade unir o “velho” e o “novo”. Nessa lógica, a ação da política patrimonial de preservação arquitetônica e valorização cultural participou do “engrandecimento”, “embelezamento” e “fortalecimento” da ideia que
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se criava de uma “cidade ideal”, sob o discurso de “modernidade”, reinventando centralidades em locais estratégicos, como estratégia para produzir expectativas, subjetividades e formas de identificação social com o projeto político em vigor. A paisagem desse (re)ordenamento urbano de valorização simbólica, com suas áreas e prédios, constituíram representações e leituras idealizadas do Acre e do “ser acreano”, a partir daquilo que Walter Benjamin classificou como “reificação dos fatos” históricos – de um passado distante e próximo –, –, como pano de fundo do discurso identitário, que objetivava ganhar forma e conteúdo nas abstrações coletivas. No ápice desse re-ordenamento, o Palácio Rio Branco constituiu-se como marco central de uma série de (re)inaugurações marcadas pela política de valorização cultural do discurso da “acreanidade”. Surgindo como monumento e museu de um “patrimônio cultural de todos os acreanos”, naquele específico contexto, o Palácio tornou-se a materialização do discurso oficial, tomando por assalto uma versão de história e memória para legitimação dessa identidade. Nesse processo, rearticularam-se narrativas, atribuindo-lhes significados num presente em que um sistema simbólico eficaz condensava espaços, tempos e práticas culturais diversificadas, numa mesma lógica identitária. Sistema esse que passou a assediar a todos, diuturnamente, com base numa intensa e bem elaborada campanha publicitária que visava alcançar “as mentes e os corações” de diferentes grupos sociais. Mesmo muitos daqueles que se propuseram a analisar criticamente essa construção discursiva, tornaram-se reféns de suas teias. Ressalto esse aspecto, para enfatizar que a discussão crítica acerca da “construção identitária” da “acreanidade” recente, recente , manifestou-se no ambiente acadêmico a partir de estudos que partem de diferentes e interessantes abordagens, abordagens, refletindo os olhares e experiências de seus autores em diversas áreas do conhecimento. Desse modo, inicio minhas reflexões, dialogando/problematizando com estudos recentes que considero de significativa relevância para o debate sobre a realidade social da Amazônia acreana e para as questões de natureza metodológicas que apresento neste estudo. Em “„Acreanidade‟: invenção e reinvenção da identidade acreanidade”, Tese de Doutorado defendida junto à Universidade Federal Fluminense, em 2008, Maria de Jesus Morais analisa a “construção da acreanidade” pelo “viés geográfico” da
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identidade territorial, entendida como aquela aqu ela “construída em sua relação com o território”. Notamos que, no primeiro capítulo, a autora estabelece um diálogo teórico em torno dos conceitos de “território, memória e identidade”, por ela considerados como conceitos importantes para o debate sobre a invenção e reinvenção da “identidade acreana”. Em sua abordagem, a ênfase maior é dada ao conceito de território em dimensões que vão desde a relacionada ao estado-nação – território enquanto espaço delimitado e controlado em que se exerce poder estatal –, –, até a perspectiva de estruturador de identidades, ou seja, enquanto “lugar fundador das identidades locais”. Pela leitura atenta de seu texto, foi possível perceber que Morais concentra maior atenção nesta última proposição (MORAIS, 2008, p. 25-37). A autora analisa e discute processos que englobam, por um lado, uma dimensão histórica, ancorada na memória histórica da “Revolução Acreana” , movimento autonomista e o movimento de índios e seringueiros, e, por outro lado, uma dimensão geográfica, ancorada nos espaços de referência identitária tanto do passado quanto do presente (MORAIS, 2008, p. 36-54). Nessa vertente, define como espaços de referência as cidades de Xapuri e Porto Acre, pautando-se na justificativa de que, no presente, essas cidades tornam-se espaços para a materialização do discurso oficial. Os elementos de mediação, utilizados pela autora, para tal conclusão é a construção e representação de espaços de memória, tais como a criação do Museu dos Xapurys e Casa Chico Mendes, em Xapuri; e a Sala Memória de Porto Acre e a “restauração” do Chalé do Seringal Bom Destino, em Porto Acre. A autora se apega a essas duas cidades, como referências de um passado idealizado pela historiografia oficial que impregnou sua análise: “Porto Acre – antiga Puerto Alonso – foi o local do „último‟ combate da „Revolução acreana‟ e assim constitui-se constitui-se na cidade histórica mais importante do Estado do Acre”; e Xapuri por “ser revestida de uma „áurea de resistência‟ contra a ocupação boliviana, sendo também berço do líder sindical líder sindical Chico Mendes” (MORAIS, 2008. p. 252 -255). A escolha teórica de Morais demonstra sua ligação com os debates mais recentes no terreno da geografia humanista, na qual a dimensão material-concreta (política e econômica) do território é permeada por uma dimensão subjetiva e/ou simbólica, engendrada pelas e nas relações sociais. Seguindo a linha teórica de Rogério Hasbaert, a autora realiza uma ampla “descrição” histórica, tentando
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demonstrar quais foram os processos que possibilitaram a invenção e reinvenção da identidade acreana, protagonizada pelo “Governo da Floresta”, no período de 1999 a 2006. Logo no primeiro capítulo de sua tese, afirma que “a questão da defesa dos territórios, no caso a „conquista territorial‟, é mito fundador de todos os acreanos” e que “o acreano enquanto povo foi inventado a partir da chamada „Revolução Acreana‟” que é “constantemente realimentada em determinados momentos para justificar reivindicações políticas da classe dominante e política do Acre” (MORAIS, 2008, p. 28-87). Ao explicar tais afirmativas, a autora assume, no entanto, o caminho de uma descrição linear de determinados “acontecimentos”, tomados como coisas dadas e intocáveis, numa clara identificação com a historiografia historicista ao não se dar conta que “os acontecimentos do passado ou seus fragmentos só ascendem a uma legibilidade em um espaço e um tempo determinados e não necessariamente no instante que os viu nascer” (MATTOS, 1992, p. 151). Na reflexão geo-histórica de Maria de Jesus Morais, o território é o estruturador de três “eventos históricos” acionados na invenção da acreanidade: i) na “Revolução acreana”, o território significa um recurso econômico e também desempenha um papel simbólico na construção do acreano; ii) no Movimento autonomista, o território terri tório é “abandonado” pelo governo federal e é o estruturador em torno do qual se constrói o discurso acreanista; iii) no movimento social de índios e seringueiros, o território passa a ser defendido contra os “paulistas”, momento em que constitui um discurso de defesa da floresta (MORAIS, 2008, p. 25). Para a autora, esses “eventos” passaram a ser re -significados pelo discurso governamental, desde o início do governo da “frente popular”. 16 Por esse discurso, a “identidade acreana” estruturava-se estruturava -se em torno de dois “eventos históricos”, ressaltando o papel de protagonistas da elite local: a “Revolução Acreana” (organizada e dirigida por seringalistas e comerciantes) e o Movimento Autonomista (organizado e dirigido por seringalistas, comerciantes e funcionários públicos). Este “movimento autonomista” seria responsável pela formulação de um manifesto em defesa do “acreanismo” que, segundo Morais, seria seu “discurso identitário” em prol 16
A autora refere-se literalmente à articulação político-eleitoral político-eleitoral denominada “Frente Popular do Acre (FPA)”, surgida no ano de 1999 e composta pelos seguintes se guintes partidos políticos: PCB, PC do B, PDT, PPS, PSB, PT e o PV.
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da transformação do Acre, Território Federal, em Acre, estado autônomo da federação brasileira. Seguindo a pena de Morais, o “Governo da Floresta”, acrescentaria um terceiro “evento” aos dois anteriores. Esse “evento” seria o “movimento de índios e seringueiros”, no qual aparece o semióforo Chico Mendes. Com ele, prossegue Morais, o “Governo da Floresta” e seus propagandistas, pontuando ou dando representatividade aos interesses simbólicos dos “de baixo”, em contraste com o “acreanismo” das elites locais, produziu o termo “acreanidade”, re -significando a “identidade acreana”, agora ancorada an corada na trajetória de índios e seringueiros do Acre, mas, sem negar os signos identitários do “acreanismo”. Esse era o ponto crucial no qual Morais poderia ter feito uma guinada em direção contrária aos “fatos” sacralizados pelo historicismo amazonialist a, não somente porque a “acreanidade” do “Governo da Floresta” foi tecida com as mesmas cores do “acreanismo” das elites, que dizia combater, mas, fundamentalmente, porque os articuladores da “acreanidade” mantiveram e reforçaram os mesmos “fatos” ou “eventos históricos” constituintes da “epopéia do Acre brasileiro”. “Epopéia” essa, marcada por toda a sorte de violências e exploração contra milhares de seringueiros e indígenas, perpetradas por seringalistas, comerciantes e políticos ou, no dizer de Walter Benjamin, os dominadores do passado, com os quais têm profunda empatia os dominadores do presente (BENJAMIN, 1993, p. 225). No título da tese de Maria de Jesus Morais, podemos depreender que sua principal preocupação era discutir a “identidade acreana” enquanto “invenção” e “reinvenção”. Partindo dessa concepção, a “identidade” foi discutida como uma “construção histórica e social na relação com o outro”, formulando diferenças no seu caráter contrastivo 17 e performático,18 estando sempre “sujeita ao jogo da h istória, da cultura
e
do
poder”,
aberta
a
múltiplas
reconstruções.
Todavia,
a
invenção/reinvenção não é discutida de maneira clara nos processos históricos que a autora afirma ser “discursivos” e, embora tente mostrar algumas contradições nas formas como o “Governo da Floresta” aciona os significados desses processos, 17
Por caráter contrastivo, a autora entende que a identidade é construída de oposição com vistas à afirmação individual ou grupal. 18 Para Morais, a construção performática diz respeito aos enunciados que “orientam” um pensamento não se limitando em descrever um estado de coisas, mas fazem com que alguma coisa aconteça, e, a eficácia dos enunciados performativos ligados à identidade depende de sua incessante repetição, diante do Outro e de sua assimilação, tanto internamente quanto pelo Outro.
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acaba contribuindo para a afirmação do discurso governamental, pois trata a “Revolução Acreana”, o Movimento autonomista e o movimento de índios e seringueiros como coisas dadas e não como construções discursivas, conforme seus próprios enunciados. Verificando as fontes consultadas por Morais, percebe-se que foram substancialmente diversificadas: discursos, manifestos, artigos, relatórios, material de campanha eleitoral, matérias jornalísticas, resoluções e entrevistas. No entanto, durante a leitura de sua tese, constatei que tais fontes não foram submetidas ao escrutínio da interrogação problematizadora de sua condição histórica, das vozes, sujeitos e projetos que, por intermédio delas, se manifestam, mas como suportes para a afirmação da descrição histórica, da abordagem e das escolhas da autora. Em, “O mito fundador do Acre e dos acreanos”, segundo capítulo de sua tese, Morais afirma que o mito fundador do Acre é a “Revolução acreana”, ancorando-se ancorando-se em Marilena Chauí, que conceitua tal mito como “um momento passado imaginário” e Durval Muniz de Albuquerque, como uma “invenção do presente”. Porém, em seguida, se contradiz ao relatar todos os combates travados pela conquista das terras acreanas c omo “fatos” e não como mais uma construção discursiva de tal mito fundador e do ideário da “acreanidade”. No capítulo intitulado, “A re-significação re-significação da identidade acreana: o movimento social de índios e seringueiros como símbolo da „defesa da floresta‟”, não constatei uma discussão sobre essa “re“re -significação”, mas uma leitura descritiva de certos acontecimentos que, “progressiva e linearmente”, culminam com a criação da “Aliança dos Povos da Floresta”, como se isso, em si e por si, tivesse a capacidade de explicar a “re“re-significação” que a autora anuncia e não analisa ou explicita. Mais adiante, no quarto capítulo, Morais anuncia que vai colocar em discussão a forma como: O movimento indígena e seringueiro é acionado pelo Governo da Floresta para implementação do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre, e como símbolos da acreanidade (MORAIS, 2008, p.159).
No entanto, se detém em situar a formação do Partido dos Trabalhadores e em esclarecer o que significa o conceito de “desenvolvimento sustentável”, preocupando-se mais em mostrar quais foram as primeiras iniciativas e programas
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do que, realmente, em “discutir de que forma o movimento indígena e seringueiro é acionado pelo Governo da Floresta para implementação do Programa de Desenvolvimento Sustentável Su stentável do Acre”. No conjunto, a forma como a tese está estruturada dificulta o entendimento de sua proposta, em especial, nos capítulos acima destacados. A preocupação em “comprovar” a relação do território com a “identidade acreana” levou a autora ao caminho metodológico de uma história de continuidade e linearidade dos “fatos”, o que corrobora com a ideia do discurso oficial dos grandes “eventos” e “personalidades”, acionados pelo discurso da acreanidade. Minha perspectiva e abordagem caminham em direção contrária à de Morais, ao não propor reafirmar “fatos” ou “eventos” históricos sacralizados, mas apresentá-los como construções mentais, pois, concordando com W alter Benjamin: “nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios (BENJAMIN, 1993, p. 232).
Forjados e significados no terreno da linguagem, “fatos históricos” são narrativas produzidas por determinados sujeitos sociais, em determinados contextos e situações. Nessa perspectiva, com a qual compartilho – sob direta influência de Edward Thompsom, Raymond Williams, Stuart Hall e Edward Said –, –, não estão imunes aos valores e percepções de quem escolheu e lhes c onferiu sentidos. Não se pode deixar de ressaltar, no entanto, que o texto de Morais é oportuno por nos possibilitar uma leitura sobre a formação do Partido dos Trabalhadores no Acre, bem como a apropriação discursiva dos ideais do movimento de trabalhadores rurais na construção da auto- imagem do ”Governo da Floresta”. Um governo que se autoauto -proclamou “realizador dos ideais de Chico Mendes”, objetivando assim, assim , justificar sua política estadual que lançou a floresta como eixo de “desenvolvimento” econômico e “sustentável” para o Estado do Acre. Nesse sentido, considero mérito da autora as questões e apontamentos que faz sobre as ambiguidades e tensões, que estão latentes na implementação do programa de “desenvolvimento sustentável”, tendo por base o manejo fl orestal madeireiro.
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Outro estudo, com o qual mantive diálogo foi “A construção discursiva da florestania: comunicação, identidade e política no Acre”, de Isac Guimarães Júnior, dissertação de mestrado defendida no ano de 2008, junto ao Curso de Mestrado em Comunicação e Mediação, da Universidade Federal Fluminense. Partindo da escolha do título de sua dissertação, antevi que a preocupação principal de sua análise seria discutir como se deu a construção do discurso que gerou o conceito de Florestania. 19 Porém, na leitura do texto, percebe-se que sua maior preocupação foi mostrar a participação dos meios de comunicação, e da cultura midiática, na produção e reprodução de bens em produtos de consumo, minimizando a problematização com a lógica da construção de tal conceito. Para ele: é na vigência do predomínio do consumo da imagem que ele busca compreender as articulações entre comunicação, política, ambientalismo e movimentos sociais, tal como se configuram no Acre nas políticas implementadas pelos governos do PT a partir de 1999. (GUIMARÃES Jr., 2008, p.16).
Em sua perspectiva e abordagem, esse autor procura:
identificar no discurso oficial do Governo da Floresta, manifesto num conjunto visões e princípios sintetizados no conceito de florestania, a constituição, para o conjunto da população acreana, sobretudo através de difusões midiáticas, de um modelo de identidade capaz de gerar engajamentos e consensos nos vários estratos sociais, assegurando, assim, a direção moral e cultural indispensável à hegemonia do bloco político liderado pelo Partido dos Trabalhadores a partir de 1999 (GUIMARÃES Jr., 2008, p.11).
Sua análise parte, portanto, de difusões midiáticas realizadas em jornais, revistas, mídia eletrônica, material publicitário do governo e do Partido dos Trabalhadores. De acordo com Guimarães Júnior, o discurso do grupo político do PT e de alguns setores da mídia local passou a integrar a: 19
Segundo o autor (p.22), o termo Florestania foi cunhado no final da década de 1990, por intelectuais ideólogos do PT acreano e membros de governos municipais e estaduais petistas. Remetendo-se a um modelo de cidadania e de relações socioambientais, socioeconômicas e socioculturais, adaptadas a uma vida na floresta amazônica, tendo como fundamento os modos de vida, as práticas produtivas e os valores culturais das populações da floresta.
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construção de uma imagem do Acre, a partir das experiências extrativistas, como uma „comunidade‟ amplamente qualificada a se colocar para os „de fora‟ como referência de sociabilidade e equilíbrio ecológico. (GUIMARÃES Jr., 2008, p.91).
Para o autor, é essa imagem que alimentará a formação discursiva em torno do discurso da florestania, conceito este que parece assumir, em suas palavras: a função de (re)ordenador de uma história e de uma memória acreana ligadas sobretudo à acontecimentos considerados decisivos da história do estado, criteriosamente selecionados na composição dos materiais que integrariam o discurso oficializado [...] os momentos/eventos mobilizados na operação discursiva posta em atividade seriam os seguintes: I) as batalhas pela incorporação do território acreano à Federação Brasileira, no início do século XX, e os atos apontados como eventos fundadores da história local, como assinatura do Tratado de Petrópolis, em novembro de 1903; II) o movimento pela autonomia político administrativa, entre 1957 e 1962; III) o movimento extrativista de seringueiros, nas décadas de 1970 e 1980, como marco da luta pela terra contra a expansão das atividades agropecuárias e pela afirmação da causa ambientalista (GUIMARÃES Jr., 2008, p.22).
Nesse sentido, Guimarães Jr. considera os “efeitos positivos resultantes desse tipo de reorganização da história e da memória em termos de fortalecimento de vínculos identitários com o lugar e com seus símbolos” (GUIMARÃES Jr., 2008, p.22). Partindo de uma outra perspectiva, não pretendo afirmar seus efeitos “positivos”, mas pontuar que são invenções constituintes do discurso de “acreanidade”, “acreanidade”, que procura sua “essência” a partir de uma versão idealizada do passado. O autor acredita que uma análise cuidadosa das operações simbólicas pode revelar indícios de que a sistematização constituída no discurso do “Governo da Floresta”, em torno torno da noção de florestania, seria mais adequadamente classificada como uma identidade legitimadora do que de resistência. 20 Ele constrói sua narrativa apoiado no esquema teórico de Castells, mostrando a participação da imprensa na 20
Para Guimar ães ães Jr., “a identidade Legitimadora consiste naquela produzida e alimentada pelas instituições da sociedade no intuito de fortalecer o controle sobre os atores sociais e gerar conformidades em torno de interesses específicos”.
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construção de representações identitárias, especificamente, no capítulo intitulado “Cultura e representação política: velhas e novas imagens da acreanidade”. Nesse capítulo, o autor faz uma narrativa linear e corrobora com as representações do discurso da acreanidade, ao tratar os diferentes movimentos de índios e seringueiros como “um acontecido tal qual” ou um “fato histórico naturalizado”, bem ao gosto da perspectiva linear e historicista presente no espectro da historiografia amazonialista. Não se pode deixar de ressaltar, no entanto, que a discussão, feita pelo autor, sobre a relação da mídia com a política local, é extremamente relevante ao destacar as articulações e negociações entre as empresas publicitárias, os setores sociais e as elites dominantes. Nas leituras dos textos de Morais e Guimarães Jr., de um modo geral, percebe-se um certo tom de denúncia a uma “acreanidade” que se torna o discurso governamental de motivação e adesão ao modelo de política econômica adotado no Estado. Política essa em que a floresta deixa de ser um conjunto de mundos de trabalhos,
produção
cultural
e
intercâmbios
homem-natureza,
para
ser
mercantilizada, com a ampla e agressiva retirada e comercialização de madeira que está no âmago do modelo de “desenvolvimento” “sustentável” “sustentável” do governo acreano .21 Nota-se, também, que os referidos autores não colocaram sob o crivo da análise e da interrogação a perspectiva histórica do discurso da acreanidade, mas, ao contrário, caíram nas malhas das representações forjadas por esse discurso. Suas abordagens, fundamentadas a partir das áreas da comunicação e da geografia, respectivamente, percorreram metodologicamente metodologicamente o que Benjamim (1985, p.159) classificaria como “história do progresso”, como se o discurso da acreanidade e a construção do conceito de florestania fossem resultados de um processo linear e automático, gerado por uma cadeia de acontecimentos, e não uma construção discursiva do “tempo presente”, das cores, preferências e projetos político ideológicos desse “tempo presente”. Em “O discurso fundador do Acre: heroísmo e patriotismo no último Oeste”, dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras: linguagem e identidade da Universidade Federal do Acre, no ano de 2008, Eduardo Carneiro, também, aborda a questão da acreanidade. Nesse estudo, em que busca “compreender tão somente a formação do Discurso Fundador do Acre”, o 21
Interessantes reflexões críticas a esse modelo podem ser encontradas em Elder Andrade de Paula, (Des)envolvimento insustentável na Amazônia ocidental, 2005.
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autor faz um recorte que o permite explorar os elementos centrais constituidores do discurso fundador do Acre, especialmente, aqueles que emergiram durante o processo de “anexação do Acre ao Brasil” (CARNEIRO, 2008, p.12). Com tal recorte, Carneiro procura mostrar a historicidade do sentido “glorioso” e “ufanista”, dados como elementos “naturais” e inaugurais de uma “comunidade acreana” que se alicerça no mito do heroísmo e do patriotismo. Para esse autor, a ideia do “patriótico” “povo do Acre” (CARNEIRO, 2008, p. 76 -81), está presente nos discursos de José de Carvalho 22, Galvez23 e Plácido de Castro. 24 Para tal análise, o autor optou pelo instrumental teórico da Análise do Discurso (AD),25 cuja escolha deveu-se, segundo ele, ao fato desse referencial assegurar um diálogo com a natureza tridimensional do discurso: o histórico, o linguístico e o ideológico. A partir de sua perspectiva: o discurso é a língua posta em funcionamento por sujeitos que produzem sentidos numa dada sociedade. Sua produção acontece na história por meio da linguagem, que é uma das instâncias por onde a ideologia se materializa (CARNEIRO, 2008, p.27).
Contextualizando o surgimento e os fundamentos desse campo de estudo, Carneiro procura uma forma de explicar o surgimento do discurso fundador “nas malhas da análise do discurso”, pois em seguida, apoiado em Foucault, Maingueneau e Orlandi, discute como foi pensado o conceito de discurso fundador, sintetizando-o como uma: dispersão de textos que age sobre o universo discursivo tanto para nomear o sem-sentido, quanto para re-nomear um sentido já existente, de modo que essa re-nomeação regra a formação de outros discursos, estabelecendo,
22
Ver Carneiro, 2008, p. 75. José de Carvalho era advogado formado em Pernambuco, foi quem primeiro mobilizou os seringalistas a apoiarem um movimento contrário ao governo boliviano na região acreana. 23 Luiz Galvez Rodríguez de Arias foi um dos primeiros personagens homenageados pelo governo como um dos fundadores dos ideais do Estado acreano. 24 José Plácido de Castro, gaúcho nascido em São Gabriel em 1873. Formou-se na escola militar, trabalhou como agrimensor e foi contratado para comandar seringueiros para lutarem contra os bolivianos. Foi transformado pela historiografia acreana em um “herói” e foi homenageado pelo governo durante durante a comemoração do centenário da “Revolução Acreana”. 25 A Análise do Discurso é um campo de estudo fundado na França em fins dos nos de 1960. Tem como objeto de análise o discurso enquanto produção de sentidos.
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com isso, um eterno retorno si próprio e um constante vir a ser (CARNEIRO, 2008, p.51).
Tal síntese limita a análise do discurso, enquanto efeito de sentido, na medida em que o define apenas como “dispersão de textos” e apresenta o “mito fundador” somente a partir parti r de um fragmento de texto literário não enfatizando a força que o discurso tem ao se materializar de diversas formas, nas mais variadas espécies de linguagens produzidas culturalmente. A opção pela categoria do discurso fundador é utilizada pelo autor para “provar que o começo da comunidade acreana é puramente convencional e que a valoração positiva de sua fundação tem uma história” (CARNEIRO, 2008, p.108). Carneiro optou, então, por discutir o Acre enquanto comunidade imaginada, afirmando que “o Acre é invenção discursiva” (CARNEIRO, 2008, p. 53). Com esse argumento, o autor procura evidenciar o caráter não-natural da identidade acreana a partir da representação narrativa da “Revolução acreana” posta em circulação pelo governo do Estado. Carneiro, também, recorreu a “acontecimentos históricos” para mostrar que a formação do que hoje é o Acre, somente teve caráter de unidade na imaginação, pois “a „questão acreana‟ foi sustentada por múltiplos interesses” (CARNEIRO, 2008, p. 65) e conflitos – conflitos – “Primeira Insurreição Acreana”, com José de Carvalho, passando pela proclamação do “Estado Independente do Acre”, com Luiz Galvez, a “Expedição dos Poetas”, com sua “desarticulação” e Plácido de Castro, com sua dificuldade em arregimentar “voluntários” – e não por sentimentos patrióticos. Sob essa lógica, para ele, a “unidade foi uma construção póstuma”, sendo que trata a “Revolução Acreana” como um “fato histórico” inalterado, contribuindo, com isso , para o fortalecimento/legitimação das representações do discurso de invenção da “acreanidade”. Para o autor, “a memória da gênese do Acre foi estabilizada pelo discurso fundador materializado nos livros de história” (CARNEIRO, 2008, p. 102), contribuindo na formação do imaginário local. “As primeiras manifestações literárias dessa comunidade foram fundamentais para o estabelecimento ou „afirmação‟ da identidade pautada nos paradigmas de patriotismo e heroísmo” (CARNEIRO, 2008, p. 95), que se materializam no discurso do centenário da “Revolução Acreana” por
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meio do discurso fundador do Acre que, em sua narrativa, estaria classificado da seguinte forma: a) consagra a existência do povo; b) mostra que o povo só é capaz de fazer algo por meio da liderança do herói, no caso Plácido de Castro; c) a conquista foi positiva, pois foi gloriosa e, por isso, enriqueceu a história recente do país; d) o Acre (no caso o Estado) tem na bravura o sentimento original constituinte; e) para finalizar, reforça o discurso liberal que fundou essa discursividade: O povo fez a Revolução Acreana (CARNEIRO, 2008, p. 102).
Em sua análise, ao tratar da discursividade da historiografia acreana, por meio do arquivo de textos que tematizou o Acre, Carneiro parece dar mais ênfase à questão econômica, inclusive afirmando que “o Acre é na prática, uma função do capital internacional e das reservas naturais de hevea brasiliense ” (CARNEIRO, 2008, p. 66), ao invés de problematizar os discursos que criaram esse Acre “imaginado”. Nessa direção, não apenas “joga fora” a perspectiva foucaultiana que anuncia em seu texto, como se deixa levar pelas narrativas dos historiadores economicistas e de “linha marxista”, cujas abordagens ancoram -se na linearidade histórica, na ideia de progresso e de continuidade histórica. Tal perspectiva, assumida por Carneiro, em sua ânsia de combate à idealizada “acreanidade” e ao “mito fundador do Acre”, o distanciou de Foucault, para quem, a história somente será “efetiva” no momento em que destruir todas as formas e artimanhas de reconhecimentos e quando “reintroduzir o descontínuo em nosso nosso próprio ser”. Essa história: não deixará nada abaixo de si que teria a tranqüilidade asseguradora da vida ou da natureza; ela não se deixará levar por nenhuma obstinação muda em direção a um fim milenar. Ela aprofundará aquilo sobre o que se gosta de fazê-la repousar e se obstinará contra sua pretensa continuidade. É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar (FOUCAULT, 1999, p. 27-28).
Em “As raízes ”do autoritarismo no executivo acreano (1921 -1964)”, dissertação de mestrado apresentada junto ao Mestrado Interinstitucional em História, UFAC/Universidade Federal de Pernambuco, no ano de 2002, Francisco
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Bento da Silva, desenvolve uma análise sobre “a história política acreana”, perpassando pela questão do “autoritarismo”, que é di scutido na perspectiva teórica: em que são chamados de autoritários os regimes que privilegiam a autoridade governamental e declinam em gradações diferenciadas o consenso, mantendo o poder político nas mãos de uma só pessoa, de um órgão ou de um grupo específico, colocando em posição secundária as instituições representativas e exacerbando de maneira significativa o predomínio do poder executivo (SILVA, 2002, p. 07).
Dividido em três capítulos, o autor aborda características de cunho estrutural e conjuntural na formação de um poder autoritário e personalista no Acre. Para analisar as características mais gerais das adoções de medidas políticas de cunho autoritário, Silva centraliza sua análise no período que engloba a organização burocrática e administrativa do Acre (1921-1964), (1921- 1964), em que “predominava o esquema de conexões políticas em detrimento à competência, ao título e ao saber” (SILVA, 2002, p.67), procurando identificar os interesses e as principais forças e atores políticos que engendraram práticas de procedimentos autoritários e clientelistas, nesta região, impedindo a formação de uma relação baseada em estatutos universais entre o governante e os governados. Ao discutir esse período, o autor remonta de forma sucinta à história política acreana desde sua formação e organização na fase embrionária do regime de departamentos, 26 identificando o que chama de “as raízes do autoritarismo”, com a exacerbada centralização do poder nas mãos do executivo. Ao dialogar com suas fontes de pesquisa: jornais, entrevistas, depoimentos e documentos dos arquivos do Centro de Documentação e Informação Histórica da UFAC e do Museu da Borracha, Silva (2002) utiliza como principal base de análise os relatos jornalísticos. Ele foi o primeiro pesquisador a falar sobre o autoritarismo 26
De acordo com Silva, (2002, p. 21-28), depois de ser resolvida a questão litigiosa do território do Acre entre o Brasil e a Bolívia, através do Tratado de Petrópolis (1903), o governo Federal institui um modelo político-administrativo estranho a Constituição republicana de 1891. Inspirado nos Estados Unidos criou o Território Federal do Acre (1904). Como o poder executivo era descentralizado, o território foi dividido em três e, posteriormente, em quatro Departamentos. Eram estes administrados pelos prefeitos departamentais nomeados pelo presidente da República que centralizava e mantinha sob seu controle dos cargos administrativos e do recolhimento dos impostos advindos da produção de borracha. Após a unificação do Território os governadores territoriais (de origem militar) e os membros do corpo judiciário continuaram sendo indicados pelo governo federal.
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no executivo acreano, contribuindo de forma significativa para a compreensão de certas práticas políticas presentes na estrutura do aparelho de estado no Acre. Seu estudo não aborda a problemática da construção da “identidade acreana”, mas traz questões q uestões que põem em dúvida toda a aparência de unidade em torno do discurso sobre o “Movimento Autonomista” Autonomista ”, propagado como ideologia na incorporação do discurso da acreanidade. A partir de algumas considerações de Silva, é possível compreender a complexidade dos vários movimentos que surgiram na região acreana, posteriomente, rotulados como “Movimento Autonomista”. No segundo capítulo de sua dissertação, o autor faz uma abordagem das várias fases do movimento pela autonomia acreana, evidenciando os conflitos e divergências entre os grupos políticos e econômicos dos vales do Acre, do Purus e do Juruá. Neste último, ocorreram as mais fortes tentativas de contraposição à unificação departamental e de projetos/ações separatistas. De acordo com Silva: Em princípio, não havia um movimento unificado e sim vários focos autonomistas que foram surgindo ao longo dos anos: nos seus primórdios são movimentos dispersos e inconsistentes, em alguns momentos exacerbados em revoltas. (...) Excetuando a oposição mais ferrenha dos membros do Partido Autonomista do Juruá – Juruá – PAJ, na verdade, a elevação do Acre a Estado era algo que todos concordavam. Mas esta era obstaculizada por interesses pessoais e de grupos: os comerciantes e seringalistas devido o medo de sentirem no próprio bolso uma sensível avaria nos seus lucros e uma mudança em torno das relações de trabalho que se encontravam baseadas em um certo tradicionalismo; a turma do PTB liderada por Oscar Passos, porque se opor opor ao PSD e a Guiomard Santos significava acima de tudo sobrevivência política e a manutenção de um aura de confronto perante parte da população. Assim, as oposições estavam pautadas em interesses imediatistas e pragmáticos, jamais ideológicos (SILVA, 2002, p. 48-64).
Acompanhando a interpretação de Silva, é possível refutar a ideia de harmonia e consenso no conflituoso processo de luta pela autonomia política do Acre. Porém, sua análise não se diferencia da representação do discurso oficial de que esses movimentos significavam o desejo de todos. Essa ideia de uma “unidade harmônica” entre diferentes processos, recorrentemente, utilizada na construção da
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“acreanidade”, é ratificada por Silva, ao afirmar que a “elevação do Acre a Estado era algo que todos concordavam” (SILVA, 2002, p.64). As visões e percepções de Morais, Guimarães Júnior, Carneiro, e Silva, partindo de suas fontes e áreas de estudo, são abordagens importantes para a produção do conhecimento, mas a ideia de “acontecimento” ou “fato” histórico petrificado e ancorado em uma perspectiva de tempo linear, funcionou como uma espécie de grilhão que não lhes permitiu romper com aquilo que estava posto pela concepção histórica que sustentou e fez avançar o discurso da invenção da “acreanidade” no “Governo da Floresta”. Suas narrativas trazem à tona as versões históricas das representações discursivas que foram selecionadas no referido governo para criar uma identidade “essencial”, ou melhor, regional. Nesse aspecto, procurei colocar minha análise em um terreno diferenciado daquele que foi trilhado por esses autores. Para efeito de análise neste estudo, a construção da “acreanidade” será discutida no campo da linguagem, enquanto discurso político articulado ao patrimônio histórico e aos interesses de um tempo presente. Desse modo, a história passa a ser concebida não como uma narrativa de “progresso”, percurso inquestionável, característico daquilo que Vilela (2001) identifica como “história sedentária”, mas, um tipo de fazer histórico que estabeleça como perspectiva central, a necessidade de “recuperar o acontecimento como objeto do pensamento”. Perspectiva essa que possibilita outras aberturas e formas de encarar o passado e as ações humanas, não meramente como “escolha teórica”, mas como uma “sensibilidade política” (VILELA, 2001, p.235). A noção de memória como trabalho do presente é uma evidência na reelaboração do passado. Ela está viva e atuante entre nós. Para tratar da memória concernente às narrativas de “invenção da acreanidade”, encontrei inspiração em Beatriz Sarlo (2007). Essa intelectual, ao discutir os testemunhos como base probatória de julgamentos e condenações do terrorismo de Estado na Argentina, questiona os usos públicos destes testemunhos como ícone da verdade sobre as “visões do passado”. Ao tratar desses testemunhos como narração d a experiência, ela declara que esta: inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas de sua lembrança. A narração também funda uma
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temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar (SARLO, 2007, p.25).
A memória, nesse caso é uma visão do passado que não deve ficar confinada a cristalizações, porque “a questão do passado pode ser pensada de muitos modos” (SARLO, 2007, p. 21). Essa discussão levou-me a considerar a memória como um campo aberto, não cristalizado em versões únicas. Em conformidade com os objetivos desta dissertação, a identidade no sistema de representação será discutida sob a luz dos estudos culturais, onde o sujeito social não tem uma identidade fixa, essencial e permanente, porém, construída nas práticas culturais, no seu “fazer “fazer -se” enquanto sujeito da história e pela representação do sistema social no qual está inserido. Nessa linha de raciocínio, “a identidade é um lugar que se assume, uma costura de posição e contexto e não uma essência ou substância a ser examinada” (HALL, 2003, p. 15). Na companhia de Stuart Hall, procuro ressaltar que as identidades não são naturais: são produções simbólicas e discursivas, concebidas culturalmente pelos sujeitos nas relações sociais que forjam suas representações. Essas representações, com suas formas e conteúdos, produtores de sentidos, são oriundas da linguagem, detentora do poder de classificar, nomear e definir os aspectos que se querem como culturais de uma identidade. Posto que o poder da linguagem leva o “leitor” ou o “observador” a ler, a ver e acreditar nas representações como algo real, sem dar-se conta de que as estruturas do mundo social não são um dado objectivo, tal como o não são as categorias intelectuais e psicológicas: todas elas são historicamente produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) que constroem as suas figuras (CHARTIER, 1990, p.27).
Nesse aspecto, torna-se relevante uma análise das práticas sociais que se articulam com a dimensão política, possibilitando a discussão da cultura 27 como “formas de luta”, “campo de batalha”, conforme afirma Hall, para quem:
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Para Hall a cultura está perpassada por todas as práticas sociais e constitui a soma do interrelacionamento das mesmas.
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há uma luta contínua, por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar a cultura popular, onde há pontos de resistência e também momentos de superação transformando o campo da cultura em uma espécie de campo de batalha permanente, onde não se obtêm vitórias definitivas, mas onde há sempre
posições estratégicas a serem
conquistadas ou perdidas (HALL, 2003, p.239).
No que concerne a essas estratégias, a política patrimonial pode ser um dos mecanismos usados, principalmente, por sua capacidade em desencadear operações de ritualização cultural, visando vis ando a “coesão social”. social”. A prática política de utilização do patrimônio, como mecanismo para assegurar tal “coesão”, tem sua gênese na formação dos estados-modernos nacionais. No caso do Brasil, com a formação do estado republicano, buscou-se um conceito de nação, cujo patrimônio histórico seria transformado em conteúdo para a unidade nacional e em expressão ideológica do nacionalismo. Ao refletir sobre esse processo histórico, Chuva, ressalta que na experiência do Brasil, no contexto do projeto de unidade nacional, ter uma cultura autenticamente brasileira significava, ao mesmo tempo, construir fisicamente um patrimônio, dando-lhe uma feição homogeneizada que fosse reconhecida por toda a comunidade nacional imaginada e que se tornasse natural e inquestionável, além de articular as redes de relações pessoais engajadas na “causa” da defesa do patrimônio, submetidas a alianças e trocas (CHUVA, 2009. p.31).
As nações, em Benedict Anderson, não são somente entidades políticas, elas são imaginadas, “não há, portanto, „comunidades verdadeiras‟, pois qualquer uma é sempre imaginada [...] o que as distingue é o „estilo‟ como são imaginadas e os recursos de que lançam mão” (ANDERSON, 2008, p. 12). No processo de “imaginação” da nação, em suas diferentes faces, a definição de patrimônio e identidade nacional tinha a pretensão de ser o reflexo fiel de uma essência nacional. Essência essa que, no dizer de Canclini, não se “inculca” apenas pelos conteúdos, programas ou planos nacionais de ensino e educação, mas, constituem-se como motivo de celebrações [...] daí que sua principal atuação dramática seja a comemoração em massa: festas cívicas e religiosas, comemorações
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patrióticas
e,
nas
sociedades
ditatoriais,
sobretudo
restaurações
(CANCLINI, 2008, p. 163 e 165).
Desse Desse modo, a “preservação” do “patrimônio nacional, regional e local” tornou-se tornou-se tão “natural” que suas motivações históricas passam a ser inquestionáveis. Mas, por mais que o “patrimônio sirva para unificar cada nação, as desigualdades em sua formação e apropriação exigem estudá-lo também como espaço de luta material e simbólica entre as classes, as etnias e os grupos” (CANCLINI, 2008, p.195), pois, falar de patrimônio cultural é falar de valores e, não podemos esquecer de que estes estão sendo tratados no campo da cultura. É preciso sublinhar que esses valores são sempre atribuídos, daí serem sempre historicamente marcados pela rede de interação por intermédio dos quais são produzidos, armazenados, consumidos, reciclados ou descartados (MENEZES, 1992, p. 189).
No raio de abrangência deste estudo, portanto, contextualizar historicamente os efeitos políticos e culturais dos símbolos passou a ser uma questão de vital importância, porque, articulando as instigantes reflexões de Stuart Hall, como fonte de inspir ação ação para a análise durante toda a pesquisa, “o significado de um símbolo cultural é atribuído em parte pelo campo social ao qual está incorporado e pelas práticas às quais se articula e é chamado a ressoar” (HALL, 2003, p.241).
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2.PALÁCIO RIO BRANCO: A TEATRALIZAÇÃO DA “HISTÓRIA REGIONAL” – E DA “ACREANIDADE “ ACREANIDADE”” Como ação da política de patrimônio histórico, o Palácio Rio Branco foi o primeiro monumento a ser tombado pelo Estado do Acre, na condição de bem patrimonial. A primeira medida, nessa direção, ocorreu com a publicação do Decreto28 de tombamento em 1999, pelo governo do estado. Porém, sua inscrição no Livro de Tombo Histórico somente ocorreu em 16 de março de 2006. Atualmente, esse monumento encontra-se inserido na Zona de Preservação Histórico-Cultural (ZPHC), do Plano Diretor (PD) do Município de Rio Branco, 29 elaborado pela Prefeitura Municipal de Rio Branco (PMRB), em 2006. O Palácio Rio Branco faz parte de um complexo de edifícios que compõem o “centro histórico” da cidade de Rio Branco, a o lado dos prédios da Assembléia Legislativa, Palácio da Justiça, Palácio das Secretarias, Memorial dos Autonomistas, Praça dos Povos da Floresta, Praça dos Seringueiros e Catedral Nossa Senhora de Nazaré. A visão panorâmica desse monumento exerce papel representativo diante de todos os outros edifícios, por sua imponente arquitetura, importância funcional e simbólica. Projetado pelo arquiteto alemão Alberto O. Massler na década de 1920, o Palácio Rio Branco foi inspirado na arquitetura eclética, 30 trazendo elementos do grego e do romano e formando um mix de estilo grave e majestoso de ordem jônica. Sua linguagem arquitetônica imprime, de maneira inequívoca, a intenção de destacá-lo como elemento forte e marcante. Qualquer visitante que se dirija ao prédio do palácio, se deparará com sua Placa de (Re)Inauguração, na qual se lê: “O governo do Estado sente uma grande alegria ao recuperar este símbolo do Acre e da acreanidade que é o Palácio Rio Branco (ACRE, 2002)”. Esse enunciado indica quais os significados a tribuídos pelo 28
Decreto nº 680 de 11 de maio de 1999. O governo do Estado decreta o tombamento do imóvel para o Patrimônio Histórico do estado e deixa a cargo do Departamento de Patrimônio Histórico da Fundação Elias Mansour a inscrição no livro de tombo. 29 O Plano Diretor do Município de Rio Branco foi aprovado através da Lei 1.611/2006, objetivando estabelecer normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como, do equilíbrio ambiental. 30 SZAJKOWSK, 2000, p. 15. O termo “arquite “arquitetura tura eclética” refere-se a um movimento arquitetônico predominante desde meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Propõe a justaposição num mesmo edifício de referências de diferentes origens.
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governo à “revitalização” do edifício, que estão sintetizados em torno da ideia de representar simbolicamente simbolicamente a “recuperação” do Estado do Acre e da “acreanidade”. Essa representação foi uma produção intencional do governador. Não por acaso, em depoimento a Bousquet Viana, o então governador acreano diz ter feito cursos preparatórios de planejamento em gestão, fazendo questão de destacar que “uma coisa que o gestor tem de bom a fazer é que quando está tudo por ser feito é mexer naquilo que representa representa símbolo” (VIANA, 2011, p. 83). 31 Após ter sido abandonado por sucessivos governos, passando por um período de degradação em sua estrutura física, o prédio do Palácio Rio Branco passou por um processo de “restauração” que durou, aproximadamente, tr ês tr ês anos. O projeto de “revitalização” do edifício ficou sob a responsabilidade do arquiteto e especialista em restauração de monumentos e sítios históricos, Jorge Mardine Sobrinho.32 Reinaugurado e aberto ao público no dia 15 de junho de 2002 33, em comemoração cívica ao 40º aniversário do Estado do Acre, o Palácio Rio Branco foi apresentado à sociedade com uma nova concepção de espaço em sua estrutura interna, caracterizado pela encenação de objetos, símbolos e imagens usados para representar a ideia de “cultura” e “identidade” regional homogênea, resultado da fusão de diferentes grupos humanos. A solenidade de reinauguração fez parte, também, da vasta programação de celebração do centenário do mito da “Revolução Acreana”, programação essa que teve início na cidade de Xapuri e término na esplanada do Palácio, com o hasteamento das bandeiras do Brasil e do Acre. A cerimônia aconteceu ao som do hino acreano, tocado pela Banda da Polícia Militar. Projetado em fins da década de 1920 para ser a sede do governo territorial, o palácio funcionou durante alguns anos, também, como residência oficial do governador. Em meados dos anos 1970, passou a funcionar somente como sede 31
Palácio Rio Branco: o palácio que virou museu. Dissertação de mestrado apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil – Brasil – CPDOC, Rio de Janeiro, 2011. 32 O arquiteto Jorge Mardine foi contratado pelo governo para trabalhar com dedicação exclusiva na reforma do Palácio. Na época em que foi contratado, o arquiteto morava no Rio Grande do Sul e tinha se especializado recentemente em restauração de monumentos e sítios históricos, curso realizado na Bahia, na Universidade Federal do Centro de Estudos Avançados de Arquitetura, financiado pela Unesco. Informações adquiridas em entrevista à autora no dia 24 fevereiro de 2011. 33 O Palácio Rio Branco foi aberto ao público no dia 15 de junho 2002, porém, na publicação no Jornal Página 20 o convite é feito para o dia 13 de junho, no entanto, neste dia houve uma solenidade interna de re-inauguração reservada somente para convidados do governo.
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administrativa do executivo acreano. No projeto original, o palácio estava pensado para funcionar da seguinte forma: no pavimento térreo estariam os gabinetes e as seções da chefatura de polícia, das diretorias de obras, instrução e da saúde, o arquivo, a pagadoria e o corpo da guarda; no pavimento superior funcionaria o gabinete do governador, a sala de audiências, o salão de honra, a biblioteca, o gabinete do secretário geral, as salas de diretorias de contabilidade e do interior, e a sala dos oficiais de gabinete e assistente militar (CARNEIRO, 1929, p. 76). Ao longo dos anos, essa estrutura funcional foi sendo alterada, em diferentes momentos históricos que não estão no foco da presente pesquisa. Interessa-nos, Interessa-nos, no entanto, o fato de que após a “revitalização”, em 2002, a funcionalidade do prédio foi alterada, passando a se constituir como museu, com temáticas selecionadas e rigorosa orientação de guias, previamente instruídos para “relatar os fatos históricos” que o museu do palácio passara a abrigar. Em estudo recente, Viana (2011), destaca que percorreu as dependências do palácio, com o objetivo de conhecer os atores envolvidos no projeto de concepção de seu acervo, especialmente, por entender que o processo de criação de um museu é sempre anterior à data de sua inauguração. Nessa direção, ela apresenta relatos do principal idealizador desse projeto, o governador Jorge Viana, e as opiniões contrárias à sua criação. Para a autora, em se tratando da exposição museográfica, “a comunicação narrada neste museu não é uniforme”, e “não encontramos nele um discurso isento e neutro” (VIANA, 2011, p. 77). No processo de diálogo com o depoimento do engenheiro responsável pela “revitalização” do prédio, foi possível compreender que, a partir de 2002, o Palácio monumento, em seu térreo, passou a servir de palco para a “encenação” de uma “história regional”. Essa concepção de espaço museal foi pensada como componente do projeto de revitalização, como destaca Mardine Sobrinho, ao enfatizar que: foi feliz também a decisão do governador, ao deixar também uma parte de museu de história que é a parte térrea. A parte de cima continua sendo um prédio de uso público, com o fim de servir ao governo do Estado, como sede do governo.34
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Mardine Sobrinho, entrevista realizada em 24 fevereiro de 2011.
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Devidamente projetado, o prédio palaciano foi transformado em um museu, composto por seis salas temáticas, porém, continuou servindo como espaço de solenidades oficiais: Aquilo era o Palácio que servia pra administração do governo, a sede da administração do governo e também residência. Então, a parte da residência ficou Museu, a gente deixou a parte do térreo todo como museu e a parte de cima continua sendo, pelo menos continuava sendo utilizada como atos oficiais do governo do Estado pra fazer uma chancela, uma reunião, assinar um documento, toda parte de cima foi reservada para os atos do governo.35
O ritual de exposição e de visitação do prédio, instituído oficialmente como Museu Palácio Rio Branco, no ano de 2008, 36 com o ordenamento e o direcionamento do olhar do visitante, o transformou em um texto a “ser lido”, compreendido, internalizado, “normalizado”, para utilizar uma expressão de Foucault. Ali, sob as condições, as luzes e cores do presente, os “fatos” do passado passaram a ganhar um novo significado, constituindo-se como forte amparo ao “acreanismo” do “Governo da Floresta”. Nessa perspectiva, de construção do “novo” Acre, é possív el afirmar, acompanhando as reflexões de Nestor Canclini, que: a solenidade dos edifícios, as complexidades das mensagens que transmitem e as dificuldades para entendê-los obrigam a atuar neles como quem representa docilmente um texto dramático, que prescreve a maneira pela qual o visitante deve mover-se, falar e, sobretudo, calar, se quiser que sua ação tenha sentido (CANCLINI, 2008, p. 175).
No caso do Palácio Rio Branco, a distribuição espacial e funcional foi projetada dentro de uma dimensão estética e ritual, que selecionou “conteúdos” para “orientar” os visitantes, através de um itinerário “histórico”, com o devido acompanhamento de guias que os conduzem a contemplar os suportes que pretendem representar a “memória coletiva” dos “acreanos”. Não se p ode deixar de
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Mardine Sobrinho, entrevista citada, 24 fevereiro de 2011. Decreto nº 3.083, de 13 de junho de 2008 institui oficialmente sua criação.
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ressaltar, no entanto, que essa tem sido a tônica do trabalho dos museus, em escala mais geral, posto que, no interior desses espaços se estabelece um trabalho de sedução do público, que busca conduzi-lo a conclusões, apresentando-lhe um discurso elaborado pela instituição. Este pode ser lido por meio da disposição dos itens materiais, com relação às informações que o observador traz até aos objetos selecionados para figurar o evento, construindo dessa forma um discurso que deve se transformar em memória histórica (CERVEIRA & SILVA, 2009, p. 4).
Porém, o surgimento do “museu do palácio”, em meio ao processo de construção discursiva da “acreanidade” e do “novo Acre”, conferiu ao Palácio Rio Branco uma maior força simbólica. Os altos investimentos do Estado, em suas instalações, com a contratação de profissionais de reconhecido prestígio em escala nacional colocam isso em evidência. O cenário expositivo, para se ter uma ideia, ficou sob a responsabilidade da arquiteta e cenógrafa Bia Lessa, 37 que transformou o prédio em sede de cerimonial, palco-vitrine de um sistema ritualizado de ação social e, acima de tudo, política. Ao entrar no prédio palaciano, o impacto é imediato. O luxo e o requinte são as marcas mais visíveis de ostentação do poder e riqueza de um Estado que, paradoxalmente, é um dos mais pobres e carentes da federação brasileira. Os lustres são de cristais e o mármore é importado da Grécia. O material usado na restauração - processo que resgata os elementos construtivos da obra física – foi escolhido com a mesma perspectiva de sua construção: Como é um material muito bom, durável e refletia a expectativa que a gente tinha de fazer o melhor, porque era essa expectativa; era o Palácio do povo acreano, e não pode ser uma casinha de sapê. Tinha que ter essa referência porque quando ele foi feito, foi feito com o melhor material. Então, a gente tinha que resgatar essa história.38
Pela interpretação que Mardine desenvolve, ao relembrar o processo de “revitalização” do palácio, o que se apreende é que a “reprodução” material do 37
Beatriz Ferreira Lessa, conhecida como Bia Lessa é cenógrafa e diretora cinematográfica. Atuou como atriz, realiza curadorias e cenografias para grandes espetáculos e para museus. 38 Mardine Sobrinho, entrevista citada, 24 fevereiro de 2011.
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edifício procurou “resgatar” e “refletir” a mesma compreensão e objetivos que estavam presentes em sua construção, na década de 1920: ser luxuoso e mostrar a materialidade representativa do discurso do que é ser “moderno”. Esta é uma das contradições mais frequentes no ideal de “modernização” do “novo Acre”, ao qual a maior parte dos críticos do “Governo da Floresta” preferiu não dar atenção. O tempo evolutivo e linear foi rompido, posto que, se em Hugo Carneiro, a construção do Palácio Rio Branco era sinônimo de “modernidade” e de “modernização”, de que maneira, passados oitenta anos, “restaurar” ou “revitalizar” um certo monumento poderia ser sinônimo de “modernizar”? A materialidade do Palácio Rio Branco, sua construção nos anos 1920 e sua “restauração” ou “revitalização” nos anos 2000, sob o mesmo invólucro do discurso da “modernidade”, denunciam que o tempo histórico, o tempo secular dos homens , não obedece a nenhuma sequência linear e que, no dizer de Benjamin, a ideia de “progresso da humanidade na história é inseparável da id eia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo” e a crítica da ideia de progresso, nesse caso, de evolução histórica, a partir de um dado acontecimento do passado, implica obrigator iamente iamente em “crítica da ideia dessa marcha” (BENJAMIN, 1993, p. 229). A questão central é que na “revitalização” desse edifício não estava, necessariamente, em discussão, a “restauração” de sua estrutura física, porém, de sua representação simbólica. Isso implica dizer que, na busca de legitimidade para a ordem política do “novo Acre” os “modernos” do presente lançaram seu “salto de tigre em direção ao passado” (BENJAMIN, 1993, p. 230), mas, não para (re)apresentá-lo (re)apresentá-lo como ele “de fato foi”, e sim como construção de um “agora” em que teciam suas estratégias de poder. A empatia dos governantes acreanos, auto-rotulados auto- rotulados de “Governo da Floresta” era com as elites e os poderosos do passado e não com os “oprimidos”, os “seringueiros”, os “indígenas” que dizem representar. rep resentar. Talvez, essa seja a única ligação perene no continuum da história. Isso pode ajudar na compreensão de todo esse esforço para consagrar o Palácio Rio Branco, como monumento e patrimônio “legítimo” de “todos os acreanos”. O esforço no sentido de “normalizar” a construção discursiva está na etnografia física e simbólica do palácio. Na primeira Sala, denominada Do seringal ao Palácio, encontram-se objetos e utensílios usados pelos seringueiros na coleta
do látex e produção da borracha, bem como, fotos que idealizam os “tempos áureos”
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da produção gumífera. Constam ainda imagens da primeira sede do governo, toda em madeira, seguida de outras referentes ao processo de construção do Palácio, todo em alvenaria e concreto, símbolo da “modernidade” na década de 1920 e, principalmente, década de 1940, momento em que o governo de Guiomard dos Santos, o concluiu e re-inaugurou. Na segunda sala, as paredes são cobertas por imagens do prédio deteriorado, lembranças dos anos de “desgoverno” e “abandono”, levando o visitante-leitor visitante-leitor a comparar o antes e o depois da “revitalização”. As vitrines são ornamentadas com material de construção: pregos, britas e areia. Dentre os objetos expostos nessa sala, o destaque está na imagem de Dom Pedro I, 39 busto doado pelo governo federal aos Estados membros da federação, em 1973, por ocasião da Comemoração do Sesquicentenário da Independência do Brasil. Naquele contexto dos “anos de chumbo”, governava o país, o General Emílio Garrastazu Medici (1969- 1974), considerado o mais duro e repressivo do período de ditadura militar.
Na terceira sala, História e Povoamento, encontram-se imagens de sítios arqueológicos, sobrepostos nas paredes por tecidos transparentes, possibilitando a visualização das urnas e dos “vasos caretas” que estão por trás dessas imagens. Acoplada a esta seção encontra-se a sala denominada Povoamento Indígena, contendo adornos, plumárias, instrumentos musicais, armas, vestimentas, cestarias e fotografias de diferentes grupos indígenas do Acre. No entanto, na exposição, os referenciais da cultura material indígena são expostos sem apresentar as diferenças intrínsecas a cada um desses grupos étnicos. Logo em seguida, encontra-se a sala denominada Uma Terra de Muitos Povos. Nesta, as paredes são cobertas por imagens de migrantes, e contam com a
disposição de fones de ouvido que possibilitam a escuta de narrativas, previamente selecionadas, de migrantes árabes e “nordestinos”. Na sala seguinte, Em defesa da Floresta, há uma variedade de manchetes de jornais, nacionais e internacionais, int ernacionais, estampados em uma parede, com “notícias” sobre as lutas dos movimentos sociais, enfatizando como principal agente, o líder sindical Chico Mendes. Em outras duas paredes há uma imagem de José Plácido de Castro, em combate contra os bolivianos, pela posse das terras acreanas e uma imagem do sindicalista Wilson Pinheiro, ao lado de homens armados. Nessa seção 39
D. Pedro de Bragança e Bourbon, fundador do Império Brasileiro, foi consagrado imperador e defensor perpétuo do Brasil.
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há um forte apelo para as representações dos discursos de luta pelas terras acreanas. Numa parte da sala foi colocado um painel, com o segui nte texto: “O povo acreano, formado por tantas e diferentes raças, construiu sua singular identidade a partir das diversas lutas que teve que travar ao longo do tempo pela conquista dos seus direitos mais essenciais”. A partir dessa “fantasia histórica” ar ticula-se ar ticula-se a versão da história que compõe o discurso da “acreanidade”, mas, o destaque da exposição é para as idealizadas imagens de Plácido de Castro e Chico Mendes. Na última sala, consta uma exposição sobre o Tratado de Petrópolis, 40 enfatizando a atuação do diplomata Barão do Rio Branco, na resolução da questão das terras acreanas, disputadas com a Bolívia. Em vitrines encontram-se o sabre pertencente a Plácido de Castro e a bandeira do Estado Independente do Acre, produzida em 1899, por Luiz Galvez. 41 Chama a atenção, nessa sala, que a mensagem transmitida passa por uma série de recursos visuais, nos quais a linguagem museográfica cria representações para dar a ideia da comunidade imaginada, possuidora de origem e heróis, apagando a memória de outros sujeitos e outras histórias conflitantes ou distintas do que é apresentado como “acontecimentos” fundadores de uma unidade social. No Palácio Rio Branco, os objetos e temas apresentados congregam o esforço em construir uma memória histórica que repousa em valores cristalizados 42, cujo arranjo expositivo não está fora do âmbito político e ideológico de apelo regionalista, visando provocar sentimentos de orgulho, civismo e pertencimento que, em certa medida, a linguagem museográfica parece alcançar, como se observa na leitura de Cabral: Contemplar aquela Bandeira, me fez pensar em quando ela foi costurada, quem a costurou, o que estava sentindo ao fazer isso, a emoção que sentiam aqueles que estavam presentes no seu hasteamento, os ideais que aquela bandeira representava, os sentimentos daquelas pessoas que 40
O Tratado de Petrópolis foi firmado no dia 17 de novembro de 1903, em Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro. Através de negociações diplomáticas, feitas pelo Barão do Rio Branco, concedendo ao território brasileiro a incorporação de quase 200.000 km² de extensão de terra. 41 Narrativa de Emilania Cabral, estudante do 8º período do curso de História Bacharelado da Universidade Federal do Acre, referente ao relatório de visitação ao Palácio Rio Branco apresentado pela estudante como atividade da disciplina Patrimônio Histórico e Cultural, em 09 de outubro de 2009. 42 Costa (1993, p. 20) O museu clássico repousa em valores cristalizados, no entanto, o museu contemporâneo ajuda a pesquisar valores proporcionando informações accessíveis para oferecer outras possibilidades de interpretação, estimulando o diálogo e o questionamento.
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sobrevivem através desta bandeira. Ao menos para mim, muito mais que um valor histórico, há em tais objetos um valor espiritual, uma forma de conservar vivas a pessoas e fatos aos quais ela representa, nos dando a possibilidade de tecer uma nova história sobre tais fatos e pessoas (CABRAL, 2009, p.2 ).
Esse relato demonstra a incrível capacidade que os símbolos possuem em seduzir o púbico, ao ponto de vislumbrar uma imagem que só existe no campo da imaginação de um passado não vivido pelo espectador, mas incorporado mentalmente, pela eficácia que a linguagem museográfica tem ao transmitir crenças e valores. A exposição alusiva ao Tratado de Petrópolis é, portanto, um desses recursos discursivos que servem para transmitir mensagens de coesão grupal por meio de um amálgama de elementos cívicos evocados por apelos emocionais. Assim, os visitantes são assediados por recursos simbólicos que conferem benefícios “espirituais” para compreender ou assimilar os consensos que a simulação de um social múltiplo produz. Toda narração funda uma temporalidade, afirma Beatriz Sarlo, nas narrativas: as visões de passado são construções e sua irrupção no presente é compreensível na medida em que seja organizado por procedimentos de narrativa [...] nem sempre o retorno do passado é um momento libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente. (SARLO, 2007, p. 9 e 12).
Na seleção dos conteúdos daquilo daquilo que deve ser mostrado e exibido exibido como possibilidade única de uma história passada, a funcionalidade museográfica possui uma interpretação que foi montada por um grupo de “especialistas” que delimitara, classificara e ordenara os temas, as imagens, os sons e as cores. Nas exposições do palácio, o visitante é levado a assimilar as representações dos temas escolhidos e apresentados em diversas linguagens, como “verdadeira cultura” regional. O problema, que não se deve esquecer, é que as “representações culturais, desde os relatos populares até os museus, nunca apresentam fatos , nem cotidianos nem transcendentais; são sempre re-apresentações, teatro, simulacro (CANCLINI, 2008, p. 201).
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O que interessa é perceber as técnicas utilizadas como convenções imagético-discursivas incitando questões positivas, gloriosas, harmônicas e singulares, servindo como propaganda para atender a finalidades políticas que compõem a retórica de invenção de uma “identidade acreana” que, muitos incorporam, porque suas subjetividades estão impregnadas de datas e fatos históricos que foram “naturalizados” e içados à condição de verdade objetiva e inquestionável. É necessário destacar que uma ação cultural realmente democrática não se reduz à ação e decisão de especialistas, pois, se a memória social constitui objeto de trabalho, é com a sociedade que se deve dialogar, retirando das mãos dos “especialistas” e cenógrafos o poder de dar a última palavra sobre o que é importante preservar (CUNHA, 1992, p.11). Em entrevista ao jornal Página 20, na ocasião em que o Palácio participou de um concurso, promovido pela Revista Caras, para ser reconhecido como uma das Sete Maravilhas Nacionais, a coordenadora Mirla Cristina Aranha fez a seguinte declaração: “desde a inauguração do Palácio Rio Branco, 256.880 visitantes já passaram por aqui. É um lugar bonito e requintado, além de atraente pela sua história. Não há um dia sequer que o palácio não seja visitado”. 43 Pesquisando no livro de registro de visitantes, no período que compreende o mês de março de 2005 a dezembro de 2008, foi possível constatar, em primeiro lugar, que a maioria dos visitantes são acreanos e estão identificados como estudantes; em segundo lugar, estão os visitantes de outros estados, identificados como profissionais das diversas áreas. Esses dados corroboram com a informação a seguir de Renata Brasileiro, Bras ileiro, publicada no artigo “As sete maravilhas brasileiras”: Moradores de Rio Branco, portanto, são os que menos conhecem o palácio por dentro, segundo a coordenadora. A arquitetura cheia de pompa por fora pode ser um motivo inibidor para que isso aconteça. Da capital acreana, os maiores grupos de visitantes estão ligados à classe estudantil. Geralmente seus integrantes visitam o espaço acompanhados de um professor de História (Jornal Página 20 , 14 de nov. de 2007).
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http://pagina20.uol.com.br/14112007/especial.htm
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Avaliando esses dados dados podemos concluir que a maioria da população população de Rio Branco não tem uma relação de proximidade com o Palácio Rio Branco como patrimônio histórico acreano, a qual deveria apreendê-lo como objeto de pertencimento, posto que “sem o envolvimento compreensivo e afetivo” da população este Palácio fica desprovido da significação que lhe foi atribuída (Costa, 1993, p. 29). Embora tenha um número relevante de visitação, a maioria dos acreanos são estudantes da rede estadual acompanhados por um professor. Isto quer dizer que se dirigem ao local como parte de suas obrigações escolares e não movidos por um sentimento de pertencimento aquele “lugar de memória”. Em outras palavras, o que ali está representado, não é a memória social dos diferentes grupos humanos que vivem no Acre. Em relação aos ambientes, a lógica de acesso desvela as contradições do discurso de unidade das relações sociais, dentro do próprio monumento histórico, pois, esse símbolo da “identidade acreana” define os lugares sociais dentro do próprio edifício. No primeiro piso, o acesso é permitido a todos os visitantes; no segundo, os visitantes têm acesso à visitação aos salões “nobres”. O acesso é proporcionado por duas escadas, revestidas de tapetes vermelhos, peça ornamental utilizada nos palácios que remonta ao cerimonial indicativo de riqueza e poder, usados para impressionar os súditos dos reis. Além do Salão Nobre, onde o governo recebe “pessoas ilustres”, nos eventos oficiais, existem as salas reservadas para o governador e o vice-governador. Entre público e a porta de entrada dessas salas os visitantes se deparam com balizadores que fazem separação entre o espaço público, permitido a todos, e o espaço dos que detém o poder de mando no estado, traduzindo o lugar de posição das classes sociais. Então, nessa parte residencial ficou uma parte mais pra museu, e a parte de uso, que era o Salão Nobre e os outros salões, e, o gabinete do governador ficou intacto, inclusive, o gabinete hoje que é o que o governador despacha pra alguns eventos era o mesmo local do gabinete de todos os outros governadores, quer dizer, a gente manteve essa identidade. 44
A identidade destacada pelo arquiteto Jorge Mardine não é a dos acreanos, a identidade que ele se refere é a do poder executivo que permanece atuando em 44
Mardine Sobrinho, entrevista citada, 24 fevereiro de 2011.
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sua “casa”. Na opinião de Jorge Viana, o “significado dessa obra traduz a recuperação da nossa história. Eu estou proporcionando, acompanhando e vivendo esse momento” (Jornal Página 20 , 13 de junho de 2002). A fala é de quem autoreconhece suas qualidades e créditos e, por conseguinte, espera o reconhecimento de todos. A ritualização de uma versão do passado é movida movida pelo impulso não de lutar contra o esquecimento das memórias, que os suportes incitam em representar, mas de lutar por um significado no presente, onde o apelo ao passado vem à cena numa interpretação enaltecida tanto pelo discurso do governante e seus escribas, que procuram inventar uma “tradição”, quanto pelo significado celebrativo do prédio do palácio reinaugurado. No diálogo com essa “invenção”, compartilho das observações de Canclini, ao afirmar que, em relação ao patrimônio ele existe como força política na medida em que é teatralizado: em comemorações para renovar a solidariedade afetiva, nos monumentos e museus [...] sendo essa teatralização o esforço para simular que há uma origem, uma substância fundadora, em relação à qual deveríamos atuar hoje. (CANCLINI, 2008, p. 162).
A busca da rememoração de um passado é feita para ser assimilada positivamente em relação com o presente. Nesse sentido, o Palácio Rio Branco transformado em Museu histórico apresenta, em sua composição museográfica, todo um suporte simbólico como estratégias de persuasão para se pensar em uma história regional harmônica e gloriosa, de modo que fica relegada ao esquecimento toda a dinâmica dos conflitos sociais dos processos históricos e da própria história de construção desse monumento. A tendência de se buscar uma unidade ocorre porque a harmonia social impede a percepção de outras alternativas, inclusive a de se questionar a legitimidade da dominação. Manter vínculos coletivos é uma estratégia que opera com lembranças, memórias, mas também, com o esquecimento. A importância do monumento histórico se dá por sua essência e papel memorial. Os monumentos históricos são importantes portadores de mensagens e são usados pelos atores sociais para produzir significados. Em Choay, o
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monumento, no sentido original, “denota o poder, a grandeza, a beleza: cabe -lhe, explicitamente, afirmar os grandes desígnios públicos, promover estilos, falar à sensibilidade sensibilidade estética” (CHOAY, 2006, p.19). Para Canclini “os monumentos são quase sempre as obras com que o poder político consagra as pessoas e os acontecimentos fundadores do Estado” (CANCLINI, 2008, p. 302). Também discutindo questões desse porte, Le Goff ressalta r essalta que a palavra monumentum remete para a raiz indo-européia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo monere significa “fazer recordar” [...] Atendendo às suas origens filosóficas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação (LE GOFF, 1985, p.95).
O patrimônio nessa condição é usado como uma imagem congelada do passado, para atestar que há uma herança. Sendo assim, situado em um lugar público, o Palácio-Monumento, aberto à dinâmica urbana da cidade nos estimula a ler outras histórias enquanto parte de uma “cultura memorial”, pois no que se refere aos discursos do passado “é mais importante entender do que lembrar, embora para entender também seja preciso lembrar” (SONT AG, (SONT AG, apud SARLO, 2007, p. 22). Procurando não os pontos de junção, mas de disjunção, no dizer de Thompson, que articulam a dinâmica simbólica do Palácio Rio Branco, inspirei-me nas discussões de Rodrigo Vidal Rojas, sobre a diversidade de papeis e de funções atribuídas, implícita ou explicitamente, ao território, em diferentes experiências de ordenamento urbano, na cidade de Santiago do Chile. Para ele, “entender a lógica do ordenamento urbano contribui para a compreensão da dinâmica da mudança social” (ROJAS, (ROJAS, 1981. p.190). É preciso destacar que o Palácio Rio Branco foi projetado e erguido em um contexto histórico que nada tem a ver com o da invenção da “acreanidade”. A “história” do Palácio teve início no segundo aniversário de governo de Hugo Ribeiro Carneiro, em 15 de junho de 1929, quando aquele engenheiro, que governava o Território Federal do Acre, lançou em ato solene a pedra fundamental da obra que substituiria a antiga sede do governo. Parcialmente acabado, o palácio seria inaugurado em 15 de junho de 1930. Dezoito anos depois, no governo de José Guiomard dos Santos, a construção do mesmo seria concluída. O Acre território de fins dos anos 1940 vivia uma “febre
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modernizadora”, marcada por uma série de construções em alvenaria, numa perspectiva de reformas urbano-paisagísticas das principais cidades. Dentre as obras construídas, naquele momento, destacam-se: um conjunto residencial para funcionários públicos, internatos para escola normal, um hotel, maternidade e clínica de mulheres Bárbara Heliodora, diversas escolas e um aeroporto. A retórica que embasava a materialização dessas obras fazia ressoar os apelos de uma “modernidade” representada na “superação do infortúnio de uma imagem que precisava erradicar as barracas da paisagem urbana”. Realimentan do o ideal civilizatório, sob uma prospecção cosmopolita, ergueram-se cenários para esconder a “cidade floresta”, exigindo que se colocassem abaixo as antigas construções em madeira e palha. Essas “primitivas construções” seriam substituídas por “modernas” obras em alvenaria, condizentes com os novos valores em voga. Tal perspectiva calou fundo no imaginário de muitos que, a exemplo de Maria José Bezerra, chegaram a acreditar que o Acre vivia uma fase de “luzes na selva”. Nessa fase, predominou a vontade de Guiomard Santos, que, articulando imaginação e ação dialeticamente através da formulação e materialização de um projeto de mudança, com base na concepção instituída do Acre como selva, como um espaço que necessitava ser dominado e exorcizado dos seus demônios, de suas mazelas para que o progresso vencesse as trevas do atraso (BEZERRA, 2002, p. 15).
Na aparente crítica de Bezerra, o discurso de “progresso” para a região rejeitava a floresta com o programa de modernização de Guiomard operando em mudanças econômicas, sociais e culturais (BEZERRA, 2002, p.16). Isso representava o rompimento com a paisagem e costumes tradicionais da região, vistos como atrasados e incompatíveis com a “modernidade”. Essa incompatibilidade entre o “tradicional” e o “moderno”, também ta mbém estava presente nos discursos do governador Hugo Carneiro, como pode ser destacado em seu “Relatório de Governo”, apresentado ao Ministro Augusto de Vianna do Castello. A conclusão das obras do Palácio Rio Branco, ocorrida na década de 1940, estava integrada integrada ao discurso de “modernização” da cidade. Sua linguagem
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arquitetônica, influenciada pela arquitetura do Renascimento, 45 incorporou alguns elementos voltados para a questão do urbanismo, como podemos observar a partir da leitura da Figura – Figura – 1 a seguir.
Figura 1 - Vista frontal do Palácio Rio Branco – Branco – Década, 1950.
Fonte: Acervo digital do Dept° de Patrimônio Histórico e Cultural - FEM
O espaço aberto à frente do prédio com a praça, o obelisco e a fonte luminosa jorrando jatos d‟ água multicor, intencionava in tencionava promover um espaço de sociabilidade ligado ao urbanismo. Embora concebendo um ambiente de relação mais próxima entre a população e o poder executivo, por meio da criação de um espaço para passeios, atraindo a população para a frente do Palácio, a conformação arquitetônica gerada, com um ambiente amplo na frente do edifício e a abertura de escadas nas laterais do prédio, têm a intenção de direcionar a população para se colocar naquele local e, assim, visualizar o prédio a partir de um ângulo que lhe confere mais suntuosidade. A monumentalidade conferia maior legitimidade à “casa do governo”. Sobre essa questão, observa Mardine Sobrinho: Quando a renascença faz o renascimento dos elementos gregos ela inclui mais uma questão importante, o quê que é? O urbanismo que fica na frente
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A arquitetura renascentista, influenciada pelo espírito de valorização do ser humano, representou uma nova forma de entender o espaço como algo universal, compreensível e controlável através da razão do homem. Uma das principais marcas desta arquitetura é a distribuição espacial matemática das edificações, contribuindo assim com as formas de urbanização das cidades, onde as edificações são dispostas de modo que as pessoas entendam a lei que as regem e estruturam.
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do prédio. A questão dos elementos da arquitetura grega, ela não tinha essa preocupação com o urbano, a parte aberta. A renascença, você vê a capela de São Pedro no Vaticano, tem a Basílica de São Pedro. Você tem a basílica no fundo e tem na entrada da Basílica uma grande praça que tem uma coluna em volta pra formar um elemento de transição e de perspectiva pra visualizar aquela grandeza. Então nada podia atrapalhar! De fato, quando a arquitetura eclética aqui no Brasil retoma esses elementos, aquele espaço aberto tipo o obelisco, a fonte, as escadas e aquela conformação do espaço grande na frente é para a população se colocar e visualizar o elemento com uma certa perspectiva pra ficar ainda maior.46
A construção de obras impactantes, portanto, é carregada de subjetividades e intenções, fundamentalmente, porque a linguagem arquitetônica se constituiu como importante forma de impor sentidos, reordenar os espaços urbanos, criar formas, percepções e sentimentos e, ainda, exercer o poder disciplinar sobre os habitantes da cidade. Avaliado na época de sua construção, em “mil e quinhentos contos de réis” (Jornal o Acre, 15 de junho de 1930, p.3), a construção do Palácio Rio Branco foi realizada pelos esforços de soldados que pertenciam à Força Publica do Território do Acre (F.P.T.A.), sob o direção inicial do Comandante da Força Policial, Major Djalma Dias Ribeiro e, posteriormente, do Sr. 1º Tenente Manoel Barbosa de Araújo (Jornal o Acre, 8 de dezembro de 1935, p. 3). Por ocasião da cerimônia inaugural do prédio, o governador, Hugo Ribeiro Carneiro, declarou inaugurado o novo Palácio do Governo do Território, sob a denominação de Palácio Rio Branco, em homenagem ao Barão do Rio Branco”. 47 Porém, o reconhecimento oficial da sede do governo do Acre, com o nome de “Palácio Rio Branco”, Branco” , somente ocorreu em setembro de 1943, na comemoração da “Semana da Pátria”, durante o governo do Coronel Silvestre Coelho, através do Decreto nº 192 (jornal O Acre, 12 de setembro de 1943, p. 1). Ao observador desatento ou por demais envolvidos no clima de emoções que a exposição do Palácio-Museu desperta, em processo de invenção da “acreanidade”, todos esses processos históricos passam despercebidos. A dinâmica , própria das práticas sociais, em diferentes tempos históricos, mais que apontar para 46
Mardine Sobrinho, entrevista citada, 24 fevereiro de 2011. José Maria da Silva Paranhos Júnior, Barão do Rio Branco, foi professor, político, jornalista, diplomata, historiador e biógrafo. Nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 20 de abril de 1845, e faleceu na mesma cidade, em 10 de fevereiro de 1912. Foi escolhido pelo Presidente da Republica Rodrigues Alves para exercer o posto da diplomacia em 1902. 47
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a ideia de continuidade, evidenciam o descontínuo da história, como enfatizam Benjamin (1993) e Foucault (1999). Se forem acrescentados ao processo inicial de “fundação” do palácio, sob a égide do governo de Hugo Carneiro, todos os processos anteriores, da fase das prefeituras departamentais, a ruptura, como marca característica da história se acentua sobremaneira. Porém, não se pode esquecer que aquele “modernoso” prédio em alvenaria foi construído no mesmo local em que estava instalada a antiga sede – em madeira – do Departamento do Alto Acre. 48 Sede essa, construída na margem esquerda do rio Acre, na quadra central (área mais alta) do arruamento diante do porto de Penápolis,49 para que ficasse visível desde a margem desse porto. Visibilidade essa que, para o Prefeito Departamental, Gabino Besouro, deveria se dar, também, desde o outro lado do rio, lugar onde foi instalada a primeira sede provisória do Departamento em 1904, pelo prefeito departamental Cel. Raphael Augusto da Cunha Mattos,50, na margem direita do mesmo rio, numa povoação com pouco mais de 200 habitantes, chamada “Volta da Empreza”. Para Gabino Besouro, a margem esquerda foi escolhida para ser a sede da capital do Departamento, depois de verificadas e devidamente analisadas uma série de questões que conferiam reconhecimento àquele local como em ótimas condições “para o desenvolvimento de uma cidade: salubre, bom porto e terreno enxuto” (BESOURO, 1908, p. 78). Nessa retórica, é preciso destacar, fazia parte do projeto de reformas urbanas que, desde a Europa de meados do século XIX, atravessava atr avessava os mares, impondo modelos, reconhecidamente, “civilizados” de urbanização. O mapa a seguir mostra a primeira divisão de lotes e arruamento feito na margem esquerda do rio Acre, nas terras do seringal Empreza, local onde foi construída a “sede definitiva” do executivo acreano, e onde, décadas mais tarde seria construído o Palácio Rio Branco.
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Esse Departamento surgiu após a anexação do Território do Acre ao Brasil, quando o Território foi dividido em Departamentos: Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá. 49 Penápolis foi o nome escolhido pelo Prefeito Departamental do Alto Acre, Gabino Besouro (1908), em homenagem ao Presidente da República Afonso Pena. 50 Cel. Rhaphael Augusto da Cunha Matos foi nomeado prefeito do Departamento do Alto Acre de 1904 a 1905.
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ur bano de Rio Branco Figura 2 - Croqui do 1º arruamento do núcleo urbano
Fonte: Prefeitura Municipal de Rio Branco
Essa configuração territorial direcionava o local de existência da “futura cidade”, uma estratégia de organização da base territorial urbana, início de uma projeção que intencionava intencionava fazer fazer separação entre o “urbano” e o “rural”. “rural”. A questão do território e todos os conflitos culturais a ele subjacentes, já estava colocada desde o início da formação da cidade. Para Rojas (1981), todo processo de mudança social e todo esforço para controlar essa mudança sempre possui uma projeção no tempo e uma base territorial, t erritorial, posto que: o território é um espaço construído por um ator individual ou coletivo em função de certos objetivos e a partir de uma representação do espaço terrestre [...] a representação coletiva do território não é a soma de representações individuais, nem tampouco a expressão de uma unanimidade, mas o resultado de uma seleção-exclusão de interesses dominantes ou majoritários a partir de uma diversidade de interesses (ROJAS, 1981, p.184-185).
Essa reflexão ganha relevância, quando se discute o papel do patrimônio histórico, no reordenamento de espaços, principalmente quando está em jogo a luta pela memória, que é uma luta de poder (LE GOFF, 1992, p.426). No processo de pesquisa, para investigar o período histórico da construção das representações simbólicas em torno do Palácio Rio Branco, mantive intenso diálogo e problematização com o Relatório de Governo de Hugo Carneiro. Apresentado ao
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Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Augusto de Vianna do Castello, esse relatório dava conta de um período compreendido entre os anos 1928 a 1929. Sabemos que os documentos não surgem espontaneamente e nem destituídos de significados. Sua existência ou inexistência derivam de ações humanas de produção ou exclusão. Isso significa que são baseados em valores, interesses, concepções de classes e instituições. Em Le Goff (1985) o documento não é qualquer coisa que fica f ica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. 51 Nessa direção, compreendemos que o documento não tem pleno significado sozinho, constituindo, assim, uma fonte de interpretação com suas linguagens li nguagens e sentidos históricos. De acordo com o governador, sua intenção ao produzir esse documento era a de “fazer uma resenha dos atos de sua gestão” (CARNEIRO, 1929, p.15). Metodicamente elaborado, na modalidade de uma linguagem escrita em que a voz do narrador predomina, o relatório descreve a visão que Hugo Carneiro tinha do território acreano e, cria com sua narrativa, as representações sobre o Acre, sua população e seu governo. As expressões que irradiam das páginas são sempre de um lugar isolado, insalubre, com uma população de maus hábitos, atrasado, desprovido do mais elementar material de construção, construç ão, onde “tudo era preciso improvisar” (CARNEIRO, 1929, p. 68). Essas expressões refletem um “olhar” de ordem “civilizatória” do autor do relatório, que não aceitava os modos dos que viviam numa região, onde o cenário composto por uma arquitetura predominante da época, feita em sua maioria de madeira com cobertura de telha de barro ou palha era, para Hugo Carneiro, uma “visão desconsoladora”, um “montão de ruínas” (CARNEIRO, 1929, p.67). Para ele, a situação do “velho barracão de madeira”, como se referia à antiga sede do governo, espelhava, ao vivo, a situação material de todo o Território. Situação essa marcada pela visão de alguém que a tudo traduzia como “velhos” e “desalentadores” “barracões de madeira” ou um desconfortável pardieiro [...] símbolo, terrivelmente expressivo, da desordem em que se alastrava pela administração toda. Ninguém, ao de longe, poderia fazer a idéia exacta do descalabro em que definhava a opulenta
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Enciclopédia: Memória-História, sobre o documento-monumento. p. 102
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terra acreana, fallida, a principiar pela propria instalação de sua casa de governo (CARNEIRO, 1929, p. 56-67).
Nesse recorte da narrativa do relatório, a sede administrativa do governo aparece como representação material de todo Território acreano, completamente, desqualificada e refletindo uma cultura regional vista como atrasada. A partir dessa visão desqualificadora das práticas culturais e dos modos de viver na Amazônia, Hugo Carneiro produziu uma narrativa do “progresso” e da “modernização” da região. Nessa narrativa, colocava-se como o responsável pelo melhoramento material de todo todo um mundo em que “o problema principal”, para ele, era o “hygienico”: Sempre entendi constituir principal dever do administrador no Brasil, e muito especialmente no Acre, devido ao seu clima tropical, dispensar a maior attenção aos problemas attinentes ao saneamento do solo e, de certo modo, à eugenia da raça (CARNEIRO, 1929, p. 52).
Sob a justificativa de que a salubridade do ambiente propiciaria o “desenvolvimento” físico e moral da população (CARNEIRO, pp. 52, 58), Hugo Carneiro pôs em ação todo um aparato repressivo para impor uma lógica “civilizatória”, dando a entender em seu relato que estava prestando assistência necessária ao “agricultor pobre”, ao “seringueiro paup érrimo” e “ao proletariado desprotegido”, como se referia aos habitantes da regi ão (CARNEIRO, 1929, p. 53). Os termos “melhoramento” e “saneamento” saíram dos relatórios técnicos para o discurso oficial. Com base no discurso de ordem pública do saber técnico e científico, impôs restrições, visando dificultar a construção de casas em madeira consideradas sinônimo de “atraso”, bem como normas de “hygiene” e “assepsia” por meio de um instrumento jurídico chamado Código de Posturas, para intervir no cotidiano dos habitantes. De acordo com Bezerra, esse documento extenso, detalhado e composto por 319 artigos regulava toda a vida econômica, social, política e cultural da cidade de Rio Branco. Autoritário e coercitivo impunha multas e prisões aos que ousassem não cumpri-lo (BEZERRA, 2002, p. 31).
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Como ação intervencionista, sob o ideal de assepsia, Hugo Carneiro diz ter criado a Diretoria de Higiene 52. Dirigida pelo Dr. Amaro Theodoro Junior, com o auxilio da polícia, essa Diretoria, segundo consta no documento, fiscalizava todas as habitações particulares e coletivas, incluindo o Leprosário, casario construído em lugar distante e conveniente para o isolamento dos indesejados (CARNEIRO, 1929, p.53). Dessa forma, o espaço público era fiscalizado, a vigilância do poder estatal interferia, legislava, proibia e reprimia os costumes contrários ao estabelecimento da ordem “civilizatória”, para uma outra concepção de sociedade que não tinha o “tradicional” como referência do “progresso” e da “modernidade”. Sobre “modernização” no Acre, em Fábulas da Modernidade no Acre: a utopia modernista de Hugo Carneiro na década de 20 , Souza (2001), discute a
constituição do espaço urbano da cidade de Rio Branco - durante a administração do governador Hugo Ribeiro Carneiro (1927-1930) - enquanto signo de “intervenção técnico/políticas”. Souza dialoga sobre o projet o modernista, pensando como este visava anular os diferentes territórios e constituir uma concepção homogênea de espaço e comportamento comportamento com suas atitudes e medidas medidas centralizadoras. Para ele, a proposição que se tentava impregnar na população, era da necessidade de deixar o passado e suas ruínas para trás, e pensar na construção de um futuro a partir de uma visão progressista da sociedade, ou seja, tudo deveria “iniciar do começo”, o Acre deveria ser reinventado (SOUZA, 2001, p. 48).
Sob essa ótica, Hugo Carneiro deu início a um projeto de intervenção urbana na capital do Território, local “onde apenas existiam duas modestas e inacabadas construcções em alvenaria”, com o intuito de fazer de Rio Branco a cidade -modelo para todo o Território (CARNEIRO, 1929, p.68). Com a retórica de transformar o Acre em “um Acre redivivo, ressurgindo das ruínas do seu passado”, iniciou a construção de prédios públicos em alvenaria para espelhar a imagem de um futuro desejável (CARNEIRO, 1929, p. 75). Para isso, construiu o Mercado Público, o Quartel da Força Policial, o prédio da primeira agência do Banco do Brasil e, indubitavelmente, um novo Palácio do governo. Para 52
De acordo com o relatório, a Diretoria de Higiene foi a responsável pela organização sanitária, assistência publica, serviço medico-legal, serviço demographo-sanitário, serviço sanitário fluvial, assistência medico-escolar, assistência dentário-escolar, fiscalização do meretrício e consumo de medicamentos (CARNEIRO. pp. 58-211).
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Hugo Carneiro, as construções eram avaliadas positivamente, como descreve no trecho de seu relatório: [...] se formos avaliar o ingente sacrifício que essas obras exigem e nos têm custado, pela carência de artífices, pela distancia formidável que nos isola, pelas difficudades do transporte, pelo preço exaggerado da mão de obra e do material; pela escassez de meios, pela falta de tudo; é muito, si considerarmos que, às custas de economias às vezes dolorosas, estamos a construir um Acre definitivo, um Acre em alvenaria [...] (CARNEIRO, 1929, p. 75).
Em conformidade com Souza, “esta postura pode ser entendida com o uma recusa em conviver com símbolos que representavam o espaço da floresta, tendo em vista que as casas construídas em madeira constituíam-se no principal padrão arquitetônico dos seringais” (SOUZA, 2001, p. 49). Numa localidade em que a maioria das casas era de madeira, a presença e a complexidade arquitetônica do novo Palácio do governo era algo impactante e desproporcional para a realidade da região na época.
Figura 3 - Palácio Rio Branco em construção
Cultural – FEM Fonte: Acervo digital do Dept° de Patrimônio Histórico e Cultural –
O prédio com arquitetura grandiosa e com aspecto de um templo sagrado transmitia a mensagem de sofisticação do ecletismo, movimento historicista que se remetia à antiguidade para dizer: nós não somos simples. simples.
A fotografia acima
possibilita visualizar visualizar uma imagem fantasmagórica, no dizer dizer de Hardman (1988), (1988),
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erguendo-se em meio à terra devassada: o que importava era a chegada da “modernidade”. Essa construção, portanto, materializava o discurso do que significava ser “moderno”, repr esentado esentado no edifício construído em alvenaria, contrapondo-se contrapondo-se aos “barracões” de madeira. Nesse caso, a apropriação-transformação do espaço não é fruto da representação cultural coletiva desse espaço, mas sim o resultado de uma representação elaborada por alguns membros influentes da coletividade. Deste ponto de vista, o território aparece como uma desculturação e como desnaturalização (ou redução) da complexidade social (ROJAS, 1981, p. 191).
A concepção de cidade e a linguagem arquitetônica implantada não apresentavam vínculo com o estilo predominante na região, antes, era um rompimento, uma mudança. Toda essa gama de experiências e mesmo de tensões pelo poder foi silenciada no processo de “revitalização” material e simbólica do Palácio Rio Branco, como mecanismo de construção e afirmação da “identidade cultural acreana” e do ideal de “acreanidade” do “Governo da Floresta”. Chama atenção, no entanto, que a restauração do edifício em 2002, além de renovar o prédio, trouxe, também, a renovação dos elementos arquitetônicos que compunham sua ambiência no governo de Guiomard Santos, formando um conjunto arquitetônico que silenciava Hugo Carneiro e rendia claras homenagens ao autor do Projeto de Lei do Acre Estado.
Figura 4 - Vista aérea do Palácio Rio Branco - março de 2009.
Fonte: AFC Foto Clube
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Pela leitura da imagem, percebemos que a Fonte Luminosa, 53 retirada no governo Wanderley Dantas, voltou ao seu lugar de origem. O obelisco, construído em 1937 - em homenagem aos “heróis da Revolução” -, sofreu alteração em seu tamanho tornando-se maior. Em sua revitalização foi instalada uma colunata de palmeiras imperiais para causar a impressão de uma maior grandiosidade ao prédio do palácio e aos elementos em seu entorno. Pela lógica desse “urbanismo modernizador ”, ”, Guiomard e Viana se encontravam na formulação de uma “acreanidade” repleta de “glória” e apego ao poder. Na estrutura visual do prédio do palácio, sempre esteve em evidência a monumentalidade. Durante a “revitalização”, os acréscimos para destacá -la foram intencionalmente executados para diminuir a escala do humano diante de sua grandiosidade, provocando ante o olhar uma sensação de impotência e reverência ao monumental e, principalmente, ao que representa. Para além do imediato prazer visual, a imagem gera um sentimento de temor e respeito. Tal intervenção nos leva a considerar que toda prática política se traduz numa produção territorial [...] Assim, territorializar o espaço terrestre significa apropriar-se dele concreta ou abstratamente, transformá-lo em função de um sistema cultural e de objetivos bem precisos (ROJAS, 1981, p. 184-185).
O termo “Palácio” é sugestivo para se pensar no significado que a obra pode traduzir. Na antiguidade, palácio era um edifício suntuoso destinado à habitação da corte real, lembra, portanto, a grandeza dos reis, soberania, poder e domínio. O termo é indicativo de tudo o que esse Palácio-monumento pode expressar em sua historicidade, ou seja, o poder. A preocupação em consagrar um monumento como patrimônio de todos os acreanos apagou marcas importantes da experiência social. No entanto, acompanhando as significativas reflexões de Paoli, acredito que pensar numa produção cultural que incida sobre a questão da cidadania é “fazer com que experiências silenciadas, suprimidas ou privatizadas da população se reencontrem 53
A fonte foi inaugurada no dia 07 de julho de 1948, no governo Guiomard Santos, em homenagem ao primeiro bispo do Acre D. Júlio Matiolli. A fonte foi instalada na praça Eurico Gaspar Dutra e foi retirada no governo de Wanderley Dantas (1971 a 1975) em 1973, para a praça Plácido de Castro, onde ficou instalada até o momento em que retornou ao local de sua primeira instalação .
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com a dimensão histórica” (PAOLI, 1992, p.27). Esse encontro, somente poderá ocorrer, no caso do Acre, quando formos capazes de romper com a sacralização que envolve, discursivamente, os signos e semióforos fu ndadores da “acreanidade” que transforma as vidas e as trajetórias tr ajetórias de milhares de sujeitos em coisas ou objetos reificados pela história regional.
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3.MEMÓRIA, MEDIAÇÃO CULTURAL E CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO PASSADO-PRESENTE A memória e tudo o que ela implica em termos de tensões e disputas, nunca foi tão invocada, no âmbito dos discursos e intervenções políticas, no estado do Acre, quanto nos anos 2002-2006. 2002- 2006. Tal apelo fez parte do “impressionante” esforço governamental para criar a criar a imagem de um “novo Acre”. O apelo ao regionalismo foi o procedimento adotado para forjar os símbolos que repercutiam nas diversas formas de linguagens manifestas em comemorações cívicas, propagandas televisivas e radiofônicas, placas, outdoors , exposições, publicação de livros e “lugares de memória” específicos para as representações da ideia de “identidade regional”. No referido contexto, a política adotada pelo governo do estado trazia em seu discurso um forte apelo ao passado. A rememoração desse passado tomou conta dos museus, memoriais, avenidas e praças com representações compatíveis com os discursos da política emergente que dizia pautar-se em valores “tradicionais”. Valores esses que passaram a articular diferentes grupos humanos, projetos e práticas culturais em uma mesma, e única ideia de “acreanidade”. Nesse contexto, instituições governamentais e não-governamentais desenvolveram um intenso trabalho na produção dessa imagem regionalista. Essa iniciativa tomou proporção com a criação da Fundação de Cultura e Comunicação “Elias Mansour” (FEM) e do Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural (DPHC) do Estado do Acre, em 1999. As ações dos dois órgãos públicos foram desenvolvidas numa perspectiva de “resgate” e valorização do patrimônio histórico e da “história regional”. Nesse processo, tornaram-se tornaram- se usuais, termos como “restauração”, “revitalização” e “comemoração”, indicando a forma de como se processou a política que tomou impulso nesse período de invenção de uma “acreanidade”. Os termos remetem à busca de identificação com um passado remoto ou uma certa ideia de ancestralidade. Apontam, portanto, para uma tentativa de promover a recuperação de um passado (restauração) dando nova vida (revitalizando), por meio de cerimônias realizadas em memória de um acontecimento (comemoração). (comemoração). Para compreender a problemática dessa política adotada, deve-se levar em conta as articulações entre o discurso de unidade e identidade regional e as práticas
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desses órgãos vinculados ao governo e, inevitavelmente, às co ncepções ideológicas do grupo político que tornara-se tornara- se “hegemônico” no controle do aparelho estatal. A Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansour (FEM) foi criada em 1999, para substituir a Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos da Cultura e do Desporto (FDRHCD). Nessa ocasião, também foi criado o Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural do Estado, que substituiria a Coordenadoria de Patrimônio da FDRHCD. O diretor-presidente, nomeado pelo governo para gerir a administração dessa nova Fundação, foi o militante político, jornalista, poeta e ensaísta, Antônio Alves. 54 Em conjunto com ele, foram nomeados outros dois diretores: Jorge Henrique e Simoni D‟Ávila. Sua ascensão ao cargo de diretor-presidente da Fundação de Cultura, no primeiro mandato do governo da coligação intitulada “Frente Popular do Acre (FPA), causou entusiasmo e esperança para intelectuais e artistas, que se deslumbravam com a possibilidade de maior participação da classe artística e da comunidade em geral, na produção cultural do Estado. Um dos mais antigos militantes no campo das artes acreanas, o artista plástico Dalmir Ferreira, expressa um pouco do entusiasmo vivenciado nesse período: A minha relação com a velha Fundação e a nova Elias Mansour se dá num a transição, num momento em que de repente nós da cultura estávamos super-entusiasmados [...] porque todo mundo da cultura na época tinha votado no PT. Eu fui um dos que votei, e tem uma coisa, na época da transição do último governo que não era do PT para o PT reuniu-se quase todo mundo, nós fizemos reuniões, isso e aquilo, esperávamos muito, esperávamos muito.55
A nova Fundação Cultural - (FEM) ( FEM) - viria então substituir a antiga Fundação de Desenvolvimento da Cultura e do Desporto 56 que, criada em 1979, tinha como objetivo incentivar o fazer artístico-cultural do homem acreano, em todas as formas de expressão. Idealizada e fundada por Elias Mansour Simão Filho, a FDRHCD 54
Antônio Alves participou, nas décadas de 1970 e 1980, de movimentos sociais e da criação do partido dos Trabalhadores no Acre. 55 Dalmir Ferreira, entrevista realizada em 11 de novembro de 2010. 56 Diário Oficial do Estado do Acre, em 7 de junho de 1979. O Poder Executivo autoriza a instituir a Fundação de Desenvolvimento de Recursos humanos da Cultura e do Desporto através da Lei Nº 667 de 23 de maio de 1979.
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passou por mudanças em sua estrutura organizacional e permaneceu funcionando, oficialmente, até a criação criaç ão da Fundação de Cultura e Comunicação “Elias Mansour”. A criação da FEM ocorreu num processo em que ocorria o desmembramento de alguns setores, até então, vinculados à fundação cultural, que passaram a se constituir como secretarias autônomas: Secretaria do Esporte, Secretaria da Juventude, Secretaria de Assuntos Indígenas e Secretaria de Comunicação, e, esta, segundo Alves, “passou a gerenciar, na prática, aqui lo que juridicamente pertencia à Fundação, como a rede de comunicação de rádio e televisão”. 57 Conhecida como Fundação Cultural, a FDRHCD, quando criada, na década de 1970, no governo de Joaquim Falcão Macedo, tinha em sua estrutura interna, basicamente, além dos setores administrativos: uma Coordenadoria de Recursos Humanos, uma de Ação Cultural, uma de Esportes e uma Diretoria da Biblioteca Pública. A gerência da FDRHCD era subordinada ao Gabinete Civil e seu primeiro diretor-presidente foi Elias Mansour, que passou a acumular os cargos de diretorpresidente e o de chefe da Casa Civil do governo de Joaquim Macedo, tio de Jorge Viana.58 Em 1985, na gestão do diretor-presidente Jacó Cesar Píccole, 59 a FDRHCD foi reformulada com a ampliação de sua estrutura organizacional, que passou a incorporar outras coordenadorias e, dentre elas, a de Patrimônio Histórico. Os trabalhos da coordenadoria de Patrimônio Histórico, durante essa e outras administrações, ficaram restritos a algumas produções literárias, audiovisuais e à preservação de três espaços de memória: Sala Memória de Porto Acre, Museu da Borracha60 e Casa do Seringueiro. 61 Por alguns anos a FDRHCD atuou como um organismo forte, e manteve certa independência do governo, graças à arrecadação de recursos financeiros, via ministração de cursos de formação, hospedagem de alojamentos, cobrança no uso de ginásios esportivos, vendas de artesanato e produtos gastronômicos em seu 57
Entrevista com o ex-diretor da FEM Antônio Alves, realizada em 2 de dezembro de 2010. Os elementos que constituem parte dessa retrospectiva histórica foram produzidos a partir da entrevista com o ex-diretor da FDRHCD, Jacó Píccole, realizada em 09 de setembro de 2010. 59 Antropólogo indicado a Diretor-Presidente (1983 a 1987) da FDRHCD pela Assembléia Popular constituída por um Fórum para indicação de nomes que ocupariam pastas do governo Nabor Júnior. 60 Informações adquiridas com o depoimento do ex-diretor presidente da FDHHCD, Jacó Pícole (em 09/11/2010) e da ex-coordenadora de Patrimônio Histórico Fátima Almeida (em 19/11/2010). 61 A Casa do Seringueiro foi criada pela Fundação Cultural do Acre, no governo de Flaviano Melo, em 1989, localizava-se na Av. Brasil, Brasil, 216 - Centro. A casa visava representar os modos de vida dos seringueiros. 58
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restaurante. Essa dinâmica funcionou a contento até meados da década de 1980, na gestão de Francisco Gregório da Silva Filho, 62 período em que houve uma certa ebulição de atividades culturais no estado. Porém, tal dinâmica foi desaparecendo, pouco a pouco, ao longo dos anos, levando a FDRHCD a desenvolver apenas ações eventuais.63 Observa-se que a estruturação das políticas culturais é produzida dentro de um campo atravessado por dependências, ficando, na maioria das vezes, a mercê das flutuantes “prioridades” governamentais. A partir do depoimento de outro ex presidente da FDRHCD, João Petrolitano, essa percepção parece ganhar mais força: Quando eu fui nomeado, o governador me colocou assim: Nós queremos revigorar a cultura e a história do estado. Então naquela ocasião se elaborou um projeto que visava exatamente fazer um resgate histórico, compilar tudo que nós temos, cadastrar, e, não só nessa área, na área dos elementos de referências históricas, mas na área do desporto a gente pensava
em trazer o resgate da história do desporto, como ele tem
acontecido e, fortalecer aqueles movimentos culturais, inclusive, os nossos movimentos teatrais e por aí afora. Havia isso. Aí por que, que isso não aconteceu? É que os governos priorizam priorizam ou não priorizam. Não é suficiente dizer que vai fazer, tem que priorizar. E naquela ocasião, não sei por quais motivos, quatro meses depois deixou de ser prioridade.64
Com a inércia da Fundação Cultural do Estado, a proposta de criação de uma nova fundação fez brotar esperança para muitos artistas, que acreditavam na possibilidade de manter um diálogo maior com a instituição, posto que, em alguns governos, conforme nos explica Lenine: não existia uma forma de estabelecer o diálogo sobre qualquer aspecto [...] a gente tinha o problema que era relacionado a todos os projetos que a
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Francisco Gregório da Silva Filho, acreano que saiu para estudar no Rio de Janeiro. Servidor público federal do quadro da Fundação Biblioteca Nacional, vinculada ao Ministério da Cultura. Veio assumir a gestão da FDRHC no governo de Flaviano Melo (1986-1990). 63 Entrevista com Antônio Alves, realizada em 27 de dezembro de 2010. 64 Entrevista com João Petrolitano, realizada em 11 de novembro de 2010.
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gente tentava dialogar. Porque o grande problema do poder público era o problema do diálogo [...] e esse permanece até hoje.65
Para Antônio Antônio Alves, a proposta de uma nova Fundação era “para trabalhar com a cultura num sentido mais amplo, sem ter que se restringir à função de apoio às artes”.66 Nessa direção, a Fundação Elias Mansour seria uma espécie de “renovação” de uma velha Fundação que havia sido sucateada: A Fundação velha e a nova permaneceram convivendo. Acho que a Fundação Elias Mansour passou a ser quase um organismo gerenciador da velha Fundação Cultural, porque os dirigentes pertenciam a FEM, e os funcionários a FDRHCD. Então, ela foi como um organismo que revitaliza as funções da Fundação Cultural. Acho que no final das contas a FDRHCD passou a ser uma espécie de cavalo e a FEM o cavaleiro.67
A metáfora usada no depoimento de Alves é elucidativa de que a criação da FEM não foi suficiente para promover as mudanças desejadas, na área da cultura no Acre. A Fundação Elias Mansour, segundo ele, “retornou às funções básicas anteriores, que eram de apoio às artes e realização de eventos artísticos, principalmente”.68 O apoio às artes parece não ter atingido as expectativas de trilhar novos caminhos. Em sua reflexão sobre o passado recente, o artista plástico Dalmir Ferreira faz a seguinte observação: Todo o primeiro mandato não foi feito absolutamente nada, que, inclusive, depois eu falando com o Jorge, eu disse: Jorge a cultura ficou de fora do teu governo. - Ele disse: Sim, nós tínhamos outras prioridades, mas nesse segundo mandato (Isso foi quando ele foi candidato para o segundo mandato) e, ele disse: Nesse segundo mandato nós vamos fazer tudo, tudo que nós deixamos de fazer. E, Infelizmente, hoje o Binho está entregando, e, justamente por isso a gente tá brigando ainda, porque p orque as poucas coisas que fizeram foi aprovar leis que a gente estava perseguindo; que nos asseguraria o funcionamento legal das instituições e que esse, aliás, tem sido o grande 65
Depoimento de Lenine Barbosa de Alencar, Presidente da Federação de Teatro do Acre (FETAC), realizado em 17 de novembro de 2010. 66 Depoimento de Antônio Alves a autora, realizado no dia 27 de dezembro de 2010. 67 Depoimento de Antônio Alves a autora, realizado no dia 27 de dezembro de 2010. 68 Entrevista com Antônio Alves, realizada no dia 27 de dezembro de 2010.
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problema das instituições de cultura no Acre. Elas não têm uma sustentação legal e fica fácil pra qualquer um desses transeuntes do poder, que chegam ao cargo de governador e diz: não, não, isso não presta. Aí manda fechar e acabou. E como como as coisas não têm uma estrutura, um alicerce jurídico, não tem algo que sustente, normalmente são fechadas e descartadas.69
A necessidade de uma estrutura jurídica regularizada para assegurar a manutenção do patrimônio cultural passou a se constituir como uma questão importante. Com a criação da FEM e do DPHC, a Lei 1.145 70 de 1994, que dispõe sobre o tombamento de Bens Culturais, no Estado do Acre, foi reformulada abrindo espaço para o surgimento de uma nova Lei Estadual, em setembro de 1999 (Lei nº 1294), que instituiu o Conselho de Patrimônio Histórico e o Fundo de Pesquisa e Preservação. Fundo este que até hoje não foi repassado, “porque nunca foi regulamentada a arrecadação regular, que deveria ser um tanto percentual do orçamento do Estado repassado regularmente”. 71 O fundo que deveria subsidiar ações culturais ficou sobrevivendo de repasses do gabinete para atender aos eventos de comemoração dos centenários, como explica Alves, o governo então mantinha repasses, principalmente, pelo interesse que o governo tinha na época na comemoração dos centenários que aconteceram naquele período: Centenário da Revolução Acreana, Centenário do Tratado de Petrópolis. Tinha toda uma série de eventos que estavam completando cem anos [...] 72
Acompanhando as injunções de diferentes grupos em atuação na arena cultural acreana, é possível perceber a inegável insuficiência e dependência orçamentária, fator que corrobora para que as ações da área cultural permaneçam restritas aos interesses governamentais. Nas reflexões de muitos dos entrevistados, que, também, traduzem suas participações no campo do fazer cultural, o patrimônio se encontra sob a custódia legal do estado, tornando evidente que muitas ações da instituição, incluindo a museologia, não ficam fora do âmbito político e ideológico. Ao contrário, o Estado é quem dita às orientações que devem ser seguidas. 69
Dalmir Ferreira, entrevista realizada em 11 de novembro de 2010. Lei nº 1.145, de 21 de novembro de 1994. Institui o Conselho de Patrimônio Cultural e cria o Fundo de Amparo, Preservação e Restauração dos Bens Culturais do Estado do Acre. 71 Entrevista com Antônio Alves, realizada em 27 de dezembro de 2010. 72 Entrevista com Antônio Alves, realizada no dia 27 de dezembro de 2010. 70
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No caso da Fundação Elias Mansour, que deveria gerenciar e ser responsável direto pela promoção de debates e outras ações relativas a datas celebrativas, por exemplo, torna emblemático perceber que, nos anos de construção do mito da “acreanidade”, a mesma foi reduzida à condição de órgão executor e pagador dos interesses do Gabinete Civil que, por sua vez, ficou responsável pela direção das programações dos eventos. Na avaliação de Antonio Alves, o governo deu bastante importância a esses eventos, na comemoração deles, na simbologia desses eventos, e o órgão que deveria gerenciar as promoções relativas a esses centenários seria a Fundação Cultural, a Fundação Elias Mansour, o seu Departamento de Patrimônio Histórico e o Conselho de Patrimônio Histórico. Mas, a importância política, digamos assim, desses centenários fez com que o governo passasse boa parte do gerenciamento dos eventos para o gabinete civil, e a fundação ficou mais como, enfim, um executor das coisas e um organismo pagador das coisas, mas a definição do que deveria ser feito ficou bastante influenciado pelo interesse do gabinete, no assunto. Acho que é um interesse legítimo e que deveria realmente existir, e foi um acerto do Jorge Viana dar importância a essas datas e investir nelas e todo prestígio do governo, a atenção do governo, mas acho também que muitas outras iniciativas poderiam ter sido tomadas pela Fundação especificamente, e que muitas vezes por falta de recursos e porque os recursos estavam prioritariamente destinados aos eventos não definidos diretamente pela fundação e o pessoal da fundação estava destacado para trabalhar nessas coisas, muitas vezes a gente deixou de realizar coisas importantes, mas enfim acho que isso também não foi um prejuízo grande e deu pra fazer um trabalho que eu acho satisfatório.73
Antonio Alves já não fala do lugar em que se encontrava quando diretorpresidente da FEM. Nesse sentido, sua interpretação, sob o peso do presente, desnuda o quanto aquela fundação de cultura passou a ser mera agência promotora de um discurso regionalista. Tal discurso acionou uma reelaboração do passado para projetar uma versão de história regional. Sob um princípio teleológico, 74 a versão histórica selecionada deu origem e estímulo à retórica da “acreanidade”, conduzindo a uma interpretação de unidade sobre as descontinuidades em um 73 74
Entrevista com Antônio Alves, realizada no dia 27 de dezembro de 2010. Esse princípio organizador se baseia na origem e causalidade.
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trajeto de “acontecimentos”, onde as narrativas passar am passar am a ser a expressão do “real” e cristalizadoras de uma determinada memória. O ponto culminante desse condicionamento foi durante a programação do centenário da “Revolução Acreana” ou da “Guerra do Acre”, como preferem historiadores bolivianos. Para contribuir com os sentidos de unidade em torno desse cristalizado “acontecimento”, vários artigos foram publicados em revistas produzidas e organizadas pela FEM, e no Jornal Página 20, fundamentalmente, na coluna “O Acre é Cem”, de autoria do chefe do Departamento Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural, entre os anos 1999-2004, Marcos Vinícius Neves. Na proporção em que essa discursividade ia ganhando novas formas, com suas representações e construções, o discurso da “acreanidade” passou a ser assimilado como “natural”, e não como uma representação social, “um produto social, mutável e irregular” (BURKE & PORTER, 1997, p. 240). Os temas escolhidos para caracterizar um tipo regional foram massivamente divulgados e seus efeitos persuasivos tiveram vários suportes: publicação de revistas e livros, realização de eventos e exposições, criação de museus, memoriais e salas memórias. A visão síntese do passado de glória, narrado pelo recorte de uma determinada versão histórica, elegeu, em primeiro lugar, o mito da “Revoluçã o Acreana” como argumento discursivo para justificar a coesão imaginária da sociedade acreana. O mito fundador conceituado por Chauí “é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo” (CHAUÍ, 2001. p.9). O mito da “Revolução Acreana” passou a ser amplamente divulgado, principalmente, durante o período de celebrações dos diversos centenários que o rodearam: 1999, Estado Independente do Acre; 2000, Brasil 500 anos; 2002, “Revolução Acreana” e 2003, Tratado de Petrópolis. Essas datas foram marcadas por uma intensa propaganda oficial, pasteurizando um passado idealizado pelas consagrações e projetos políticos do presente. Em todas elas, a ideia ide ia de “Revolução Acreana”, segundo os apologistas da “acreanidade”, marco de “nascimento do Acre brasileiro”, permeou por todas as celebrações. Acontecimento Acontecimento orquestrado pelo tom pastel do “Governo da Floresta”, essa “revolução” mitificada passou a funcionar como uma metáfora para outras
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histórias e memórias que foram sendo produzidas no presente por uma ideologia ufanista de valorização de “heróis”, personagens e símbolos. Para Walter Benjamin, em célebre passagem de suas Teses sobre a história, articular historicamente o passado não significa conhecê-lo conhecê-lo „como ele de fato foi‟. Significa apropriar -se -se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo (BENJAMIN, 1993, p.224).
Partindo dessa premissa, ressalvo, mais uma vez, que toda narrativa do passado acontece em um tempo presente e, uma vez que essa construção é feita no presente, trata-se trata-se de uma visão de quem relata, e não dos “fatos” como aconteceram. Isso significa dizer que foi escolhida uma determinada dizibilidade que selecionou seus signos, personagens, imagens, enunciados e mito de origem, criando através das diversas linguagens elos e conexões de sua criativa discursividade totalizadora, marcadamente ideológica. 75 A “identidade acreana” que se inventava era a do homem que “amava e lutava por sua terra”, reconhecendo a floresta como seu “lugar de viver”, razão pela qual era necessário preservar suas tradições. A produção dessa “identidade”, numa visão romântica de apego à natureza, foi gestada pela re-atualização de uma visão histórica seriada, servindo para fornecer uma sugestiva conexão no sentido de se projetar uma ideia de “história em progresso”, cujo viés triunfalista impede de se pensar em outras alternativas. O encadeamento das versões apresentadas não foi uma produção inocente e, sim, impregnada de intenções e subjetividades, articulando temporalidades e manifestando-se a partir de limites codificados pelos interesses do governo estadual. Sob o verniz do incolor e do inodoro, a narrativa da “ epopéia do acre brasileiro” suavizava os conflitos entre seringueiros, indígenas e patrões para ressaltar a bravura, determinação, coragem e “amor a terra”. No entanto, no panteão do discurso midiático, o “Governo da Floresta” elegeu, como personagens desses desses atos “heróicos” – de bravura, determinação, coragem e “amor a terra” –, – , as figuras de Plácido de Castro, Guiomard dos Santos e Chico Mendes, que, agora, 75
Para Chauí (2006, p.21), o termo ideologia aqui utilizado significa sistema abstrato de representações, normas, valores e crenças dominantes que invertem a realidade, produzindo uma universalidade e uma unidade ilusória, que ocultam a divisão social de classes.
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apareciam como protagonistas do mesmo projeto político do qual Jorge Viana se apresentava como o legítimo herdeiro. No corredor dessa “linha de evolução” de “personagens” e “fatos” históricos reificados, o governador do “novo Acre” se apresentava como o único capaz de dar continuidade ao processo de “Revolução Acreana”, iniciada cem anos antes. Projetando-se Projetando-se como “herdeiro” de todos os que já venceram, Jorge Viana, reafirmava o quanto a “identificação com o vencedor”, sempre concorre para beneficiar aquela pessoa ou grupos de pessoas que, em determinado contexto histórico, se torna “detentor do poder” (BENJAMIM, (B ENJAMIM, 1993, p. 157). Não obstante, o caminho traçado pelo governo pretendeu conciliar o discurso da “tradição” com o discurso da “modernidade”. Por ele, o Acre deveria se “modernizar” sem perder seu caráter regional. Na apresentação de uma das revistas publicadas pela FEM, com o título “ Galvez e a República do Acre” , o governo anunciava o tipo de projeto que pretendia pr etendia por em ação no Estado: Nosso projeto é mostrar que é possível viver na floresta sem destruí-la, aproveitar seus recursos com sabedoria, apontando o caminho do novo tipo de desenvolvimento que a humanidade procura. Uma sociedade da floresta, juntando a tradição e a modernidade, o passado e o futuro, eis o que podemos ser.76
Essa conciliação da “tradição” com o discurso de “modernidade” prete ndia criar uma valorização cultural para legitimar as intervenções do poder público. A política recorria à construção de um imaginário para o consentimento e adesão da população, pela via cultural, na construção de uma auto-imagem do Acre e dos acreanos. Foi essa a construção discursiva que regeu o conjunto de intervenções urbanas, no Acre dos anos 1999-2006. 1999- 2006. O discurso da “identidade acreana” nomeou, marcou e projetou suas representações com intensa força na paisagem urbana que, serviu como o mais eficaz instrumento i nstrumento de “normalização” do discurso da “acreanidade”. Naquela conjuntura de início de uma “nova era”, a retórica do “desenvolvimento”, “progresso”, “bem“bem -estar” e “modernidade” retornou à cena 76
Trecho da apresentação da Revista do 1º Centenário do Estado Independente do Acre- “Galvez e a Rep ública ública do Acre” , assinada pelo governador Jorge Viana.
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política do Acre, como cimento inquestionável para provoca r “consensos”. Reacendendo a chama dos “fatos” históricos idealizados, o governo estadual tratou de desenhar a “cidade ideal”, impondo padrões estéticos de caráter monumental e de embelezamento, para apresentar uma imagem de cidade “moderna”. Era essa, a tônica presente nas obras que foram executadas ou projetadas para alterar a paisagem do centro de Rio Branco. Não por acaso, o cenário criado era composto por grandes avenidas, palmeiras imperiais, parques, pontes, praças; fachadas coloridas e forte ilumin ação a irradiar uma aparência estimulante de cidade “ideal” e atraente. O Acre parecia ressurgir como um sonho, um “lugar nobre”. Nesse mesmo diapasão foram criados ou recriados os “lugares de memória”, dos quais o Palácio Rio Branco encontra sua expressão máxima. Nesse re-ordenamento a política de patrimônio histórico e cultural do Acre fez conhecer uma de suas faces, mostrando que os significados sociais do patrimônio cultural exercem grande eficácia simbólica na construção social dos lugares. O elemento elemento de mediação de toda a “febre desenvolvimentista” do “novo Acre” e do mito da “acreanidade”, “ acreanidade”, foi a imprensa im prensa escrita, eletrônica e televisiva, que exerceu significativo papel na difusão de representações que passaram a fabricar e a ampliar sentidos. Não era, simplesmente, uma questão do formato dos enunciados, mas das condições culturais e políticas de produção das representações e estratégias de “normalização” dos produtos veiculados por imagens, palavras e sons. Nesse sentido, a imprensa é uma fonte poderosa e inesgotável de produção e reprodução de subjetividades, evidenciando sua sofisticada inserção na rede de poderes que criam as sujeições do presente. 77 No que se refere à produção de ideais identitários, no contexto temporal abrangido por esta pesquisa, o trabalho t rabalho realizado pelos grupos que se manifestavam por intermédio da mídia, procurou cumprir com eficácia a função de massificar generalizações para a integração social dos indivíduos à “comunidade imaginada” dos “nascidos no Acre” e dos que “vivem no Acre”.
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GREGOLIN (2007). A autora faz uso de Foucault para dizer que a subjetividade diz respeito às práticas, às técnicas, por meio das quais o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de “verdade”.
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A produção de textos e imagens trabalhou na difusão dos referenciais de uma memória histórica, em que a linguagem construiu as narrativas e os discursos para viabilizar a adesão emocional das pessoas às coisas que elas precisavam aceitar, como consumidores em um supermercado. Nesse aspecto, em se tratando da produção de representações midiáticas, escolhi desenvolver uma reflexão a partir de dois jornais locais: o Página 20 e o O Estado do Acre. O Jornal Página 20, foi criado por Antônio Stélio e depois adquirido por pessoas ligadas ao Partido dos Trabalhadores. Começou a circular semanalmente a partir do dia 05 de março de 1995. Sem possuir assinantes, a primeira tiragem de 1.000 exemplares, foi toda vendida. Na época a tiragem dos exemplares era pequena, porém, em 1996 - declarado oposição ao governo de Orleir Cameli (MDB) –, –, o jornal obteve maior visibilidade, passando a ser publicado diariamente. Observando a trajetória desse jornal, percebe-se que, por seu caráter oposicionista ao governo de Orleir Cameli, o Página 20 foi auto-nomeado, por seus editores, como o “galinho bom de briga”. Com o lema “Um jornal para pessoas inteligentes que sabem e gostam de ler” sua editoração se propôs a trabalhar com um perfil mais cultural e político. Sem explorar desastres e acidentes, embora tenha feito cobertura nas delegacias durante algum tempo, o jornal Página 20 não possuía página policial. Quando divulgava notícias oriundas dessas delegacias, publicava-as somente nas capas, como forma de denúncia e não como suítes, 78 ou seja, não explorava as tramas policiais. Em formato de tablóide, o Página 20, oriundo da iniciativa privada, visando fins lucrativos tem como maiores clientes, a Prefeitura Municipal de Rio Branco e o Governo do Estado, prestando, ainda, serviços ao Governo Federal. A tiragem diária do jornal era, em média, de 1.500 exemplares semanais e 3.000 exemplares aos fins de semana. A venda desses exemplares era realizada em todos os municípios acreanos. Atualmente, sua difusão via internet tem contribuído para a redução da produção de exemplares impressos. Em junho de 2002, em várias edições, foram veiculadas notícias em pequenas notas, sobre a restauração e (re)inauguração do prédio do Palácio Rio Branco, até o dia do evento evento de sua reinauguração. Depois as notícias tomaram conta da primeira página. As chamadas de capa e os espaços privilegiados, dados 78
O termo suíte significa seqüencia de um mesmo assunto visando sua exploração junto aos leitores.
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às matérias e propagandas oriundas da Secretaria de Comunicação Social do Governo, que passou a controlar tudo o que era veiculado nesse e em outros órgãos de imprensa, dão uma dimensão do quanto “ganhar a guerra da mídia” passou a fazer parte das prioridades do governo. Nesse caso, de identificar os membros da sociedade acreana ao “novo lugar de memória”, ao seu governante e à política de valorização de “resgate” de uma história acreana.
Figura 5 - Manchete do Jornal Página 20, 13 de junho de 2002
Fonte: Museu da Borracha
A divulgação da matéria, sobre a re-inauguração do Palácio Rio Branco, publicada no dia 13 de junho de 2002, é sugestiva para se pensar em dois acontecimentos: O primeiro primeiro,, “É hoje 13” , direciona-se para a ação de um tempo presente que nos leva a pensar de onde emana o poder que realiza a ação de “entregar” à população o Palácio Rio Branco. A data do dia 13 é indicativa do número do Partido dos Trabalhadores (PT). A imagem f otográfica do prédio tem uma posição privilegiada, com o ângulo de baixo para cima a imagem destaca a grandiosidade dessa obra arquitetônica, possibilitando uma visão grandiosa desse monumento como objeto-símbolo da “recuperação” do patrimônio histórico acreano.
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O segundo direciona-se para um tempo passado, identificado por referenciais de exaltação cívica, pois a (re)inaguração faz parte da comemoração do centenário da “Revolução Acreana” (2002-2003) (2002 -2003) e da programação do 40º aniversário do Estado. Os jogos simbólicos usados pela imprensa não são ingênuos, e, assim, elementos dispersos se coordenam e vão traduzindo outros significados, como a exemplo do convite feito à população, divulgado no jornal Página 20 .
Figura 6 - Jornal Página 20, 12 de junho de 2002
Fonte: Museu da Borracha
O convite faz referência a diversos signos que nos permitem fazer uma leitura associativa entre representações de momentos distintos que se articulam para criar uma imagem do que deve ser valorizado no momento em que se (re)inaugura o palácio do governo. Em primeiro plano aparece com traços fortes e marcantes o desenho do palácio acompanhado de uma marcação temporal (1929 – 2002). Esses são os marcos de “construção” e “revitalização” da obra que podem ser “lidos” como dois momentos de “renovação” do Acre e empreendimento, característico das intenções “modernas” de Hugo Carneiro (1929) 79 e de Jorge Viana (2002)80. A justaposição de momentos históricos distintos, porém, unidos em um discurso do presente é uma tentativa de projetar no imaginário coletivo a ideia de 79
Hugo Ribeiro Carneiro foi nomeado para se o governador do Território do Acre pelo Presidente da República, através do Decreto de 13 de abril de 1927. 80 Jorge Viana foi eleito governador do Estado do Acre (1999-2002) e re-eleito em 2003.
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continuidade de um projeto “modernizador” inspirado nas ações do ex -governador Hugo Carneiro. A “revitalização” do Palácio, em 2002, acrescida de sua nova função, como com o referencial de uma “cultura acreana”, demonstra o quanto esse monumento foi discursivamente produzido no imaginário social como símbolo de poder e ruptura com o “atraso” e em prol do “progresso”. Ele foi (re)significado, (re)significado, ressurgindo no ano de comemoração comemoração do centenário de uma “Revolução “ Revolução Acreana”, moldada ao gosto das leituras e representações do presente, para construir um forte sentimento de patriotismo em grupos de pessoas que, nos diferentes tempos históricos, não tinham nenhuma relação. “Ressurgia, “Res surgia, também, também, como símbolo de uma “nova fase” para o Acre, de uma “nova revolução”, de uma “nova história”, como podemos depreender da seguinte fala: “A obra de restauração do Palácio é o mais importante da nova história do Acre que se inicia neste século” (Jornal (Jorna l Página 20 , 14 de junho de 2002, p. 12). O que se evidenciou, ao longo da pesquisa, é que o discurso político de uma “nova história” para o Acre foi constituindo o cenário para classificação e valorização de bens culturais, proporcionando uma visão de como a sociedade pode se apropriar de uma história do passado, e, fundamentalmente, do presente, através de um patrimônio comum à “comunidade acreana”. O patrimônio passa a ser usado como força política, como lugar de produção e reprodução de subjetividades que cria as sujeições necessárias para controle e manutenção do poder vigente. Para cumprir essa função, como forma de assegurar seu reconhecimento como tal, foi necessária uma divulgação maciça de imagens e textos. Nisso, o Página 20 exerceu significativo papel. As técnicas utilizadas pela imprensa confabularam para a criação simbólica da “identidade acreana”, como indica o enunciado a seguir: A sede do governo acreano tem uma peculiaridade que a torna singular entre as demais. Ela não se constitui apenas de um prédio governamental onde são tomadas as resoluções que definem os rumos do Estado, ela faz parte da vida de um povo, da infância de uma gente. É a identidade do povo acreano (Jornal Página 20 , 14 de junho de 2002, p. 15)
Desse modo, a linguagem, mediante o enunciado propicia uma representação na qual o Palácio Rio Branco passa a ser interpretado como palco e
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depósito de uma tradição, pretendendo estabelecer uma relação natural entre esse
monumento e a suposta identidade, evocada pelo discurso. Nesse processo de fabulação para a formação de um imaginário, não somente o Página 20 , mas, a quase totalidade dos jornais locais foram primordiais em suas articulações discursivas, reorganizando os signos sob a espetacular visão de uma vida cotidiana em que o “patrimônio recuperado” funcionava como recurso para configuração de valores tradicionais e associados com as imagens dos monumentos:
Figura 7 - Jornal Página 20, 14 de junho de 2002
Fonte: Museu da Borracha
Os dispositivos utilizados no jornal contribuem para a construção de uma visão enraizada na ideia de uma “cultura local”, apresentando em primeira escala a bandeira do Acre, ao lado da chamada da matéria “ O palácio é do Povo ”. Essa afirmação é acompanhada de uma “vontade “ vontade de verdade” , no dizer de Michel Foucault,
pretendendo
estabelecer
uma
filiação
harmônica
entre
poder
governamental e o “povo”. Esse vocábulo busca criar uma identificação coletiva, inserindo os sujeitos em uma “comunidade imaginada”. A bandeira do Estado do Acre aparece como símbolo de valorização cívica; o Palácio Rio Branco, como
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símbolo do governo e da recuperação do patrimônio; a Fonte Luminosa, como recuperação do patrimônio histórico e o retorno de uma fase de caráter “ moderno” e moderno” e de “desenvolvimento” “desenvolvimento” urbanista, diretamente vinculada ao período do governo de Guiomard dos Santos, pois a imagem compõem elementos arquitetônicos também desse governo. A imagem revela os signos utilizados para, supostamente, criar as conformidades necessárias às pretensas representações identitárias. Nessa direção, o discurso continua associando à ideia de unidade e de continuidade da nação ao patrimônio. Isto porque sua representação alude a uma origem e essência, aparecendo como algo que sempre existiu, e não como produto de uma seleção feita com objetivos políticos e estéticos específicos. Essa re-atualização permite-nos apreciar determinados desdobramentos do jogo simbólico que pretende indicar a direção interpretativa entre o passado “glorioso” e o presente, que se quer “revolucionário”. Nessa direção interpretativa, determinados elementos acompanham a confecção da imagem do Acre como se o mesmo vivesse um processo revolucionário, proporcionado pelas ações do governo da Frente Popular. 81
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A Frente Popular do Acre é formada pela integração do PT, PCB, PC do B, PDT e PV, liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT).
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Figura 8 - Jornal Página 20, 06 de agosto de 2002
Fonte: Museu da Borracha
Na manchete o “Acre é 100, acreanos comemoram Centenário do início da Revolução”, o Palácio Rio Branco e o Obelisco, são usados na linguagem visual com a função de reunir algo que possa aludir a uma origem. As imagens são incorporadas como representação de uma “nova fase” que pode ser interpretada com a intenção de levar o receptor a pensar em uma “fase moderna”, com a recuperação do Palácio, e “revolucionária”, com a presença do Obelisco da “Revolução”. O apelo ao rito foi marca constante nas representações públicas do “Governo da Floresta”. Sua utilização conferia força ao ideal que a publicidade do governo queria massificar. Nessa direção, são interessantes as palavras de Canclini, para quem, é raro que um ritual aluda de forma aberta aos conflitos entre etnias, classes e grupos. A história de todas as sociedades mostra os ritos como dispositivos para neutralizar a heterogeneidade, reproduzir autoritariamente a ordem e as diferenças sociais (CANCLINI, 2008, p. 192).
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A comemoração do centenário do início da “Revolução” serve como apelo para renovar a solidariedade afetiva, dissimulando com seu rito de comemoração as contradições da sociedade. O rito faz parte de uma rede de encenações imaginárias que determina o que deve ser lembrado e valorizado e, nesse sentido, o patrimônio torna-se ator principal, por sua capacidade de gerar representações que possam ser apropriadas pela sociedade, motivo que o leva à cena em atos comemorativos, indicando assim, sua opção pontual e não aleatória por aqueles que o chamam a ressoar em um dado momento. Outro jornal impresso, escolhido para análise, é O Estado do Acre . Chama a atenção que a própria denominação oficial desse jornal, que sugere uma conotação de território nacional, gerenciado política e administrativamente por um governo, já é indicativa de onde emanam as decisões de sua produção, bem como seu engajamento político. Não obstante ser editado pela Assessoria de Imprensa do governo, O Estado do Acre, passou a ser publicado, semanalmente, desde o mês de janeiro de 2001, segundo ano ano do primeiro mandato do governador governador Jorge Viana. Coordenado pelo jornalista Oli Duarte, nos anos de 2002 a 2006, o jornal funcionou como órgão oficial de divulgação das ações do governo, com vistas a “prestar contas com a população local” das ações do mesmo. Mais que “prestação de contas”, o jornal procurava dar evidência às ações do governo para conferir -lhe conferir -lhe maior legitimidade diante da sociedade. Sem compromisso comercial e com tiragem semanal de 20.000 exemplares, esse jornal era distribuído gratuitamente para órgãos públicos de todo o Estado: escolas, postos de saúde, bibliotecas e outros. Em Cruzeiro do Sul, sua distribuição era feita pelo escritório de governo. Nos demais municípios, em locais de referência como a Rádio Difusora, farmácias e comércios. O esquema de distribuição e sua gratuidade demonstram o interesse do governo em atingir o maior número possível de pessoas para consolidar sua imagem de governante empreendedor. Com setenta e cinco edições publicadas, incluindo as edições especiais, o jornal passou por quatro modificações em seu layout , objetivando criar um formato capaz de atrair ainda mais o público leitor. Seu projeto gráfico foi pensado para estimular a leitura com textos curtos e linguagem atrativa, valorizando, sobretudo, as imagens.
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Em sua edição de nº 63, a imagem utilizada pela equipe editorial na diagramação da primeira página, nos oferece um arquivo sensível de imagens carregadas de códigos importantes, falam implicitamente por meio de um jogo de linguagem tão sedutor quanto as palavras. Com cara de revista, a montagem da cena decide o que é importante e o que merece atenção.
Figura 9 - Jornal O Estado do Acre , 17 a 23 de junho de 2002
Fonte: Museu da Borracha
A evocação subliminar, sob o título “Resgate da dignidade de um povo, o maior monumento da história acreana, símbolo do amor e orgulho pela nossa terra, é entregue de volta à população numa festa que reuniu mais de três mil” ( O Estado do Acre , 2002, p. 01), além de pretender estabelecer uma relação do prédio
monumental com as administrações de governos anteriores, colaborando com a ideia de que sua depredação significava o descaso por parte daqueles com o Estado, destina-se à produção e difusão de sentimentos cívicos, honra e triunfo acionados pelo discurso de “resgate”. Observa-se na imagem que a fotografia noturna ganha fundamental relevância. A iluminação na imagem do prédio, rodeada de fogos de artifícios,
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realça a arquitetura imponente demonstrando força, poder e brilhantismo. As pessoas que comemoram e aplaudem, parecem completamente desvinculadas da cena, demonstrando a montagem da imagem, porque o que se quer afirmar é a aceitação e adesão entusiástica da população frente à política adotada pelo governo. Nessa direção, tanto a imagem visual agradável, colorida, emotiva, espetacular, bem como os símbolos constituem técnicas, assim, “os textos da mídia são verdadeiros dispositivos por meio dos quais instalam-se instalam- se representações” (GREGOLIM, 2008 ). A construção imagética atende a intenção de espalhar uma carga emotiva de modo que atinja o público receptor levando-o a um estado de aceitação e satisfação que impossibilite reações críticas. Na encenação desse tipo de espetáculo, tratando-se de patrimônio histórico acreano, o Palácio Rio Branco passou a ser a matéria-prima na produção discursiva de uma identidade acreana propagada pela imprensa jornalística: Depois de anos de depredação e abandono, temos de volta o nosso palácio. Símbolo maior do que fomos e do que somos. Os símbolos são vitais para os seres humanos. Sem eles, não encontramos nossa identidade [...] o palácio dos acreanos simboliza o recomeço da reconstrução da nossa alma de filhos desse chão (Jornal O Estado do Acre , 17 a 23 junho de 2002, p. 2).
O enunciado acima estabelece uma relação direta entre a “revitalização” do palácio e a valorização de uma “identidade”. Reside aqui um esforço conjunto de homogeneização do discurso, com intenção de deslocar uma ideia de identidade do plano abstrato para o real espelhado no monumento. O trabalho desenvolvido pelo jornal, procurava cumprir a função de produzir práticas de subjetivação que são postas em ação, cujo teor simbólico vai atuando como armadilha, no sentido de construir uma imagem do governo e de uma representação histórica em harmonia, de maneira que “todos” pudessem se identificar com “acontecimentos” do passado e do presente, simulados na visão excepcional do governador como homem público, líder que condensa o passado do Estado, encarna o presente e traduz consigo os traços t raços do futuro. A imagem do dirigente político empreendedor e preocupado com o patrimônio dos acreanos estava sendo construída com os traços que os
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caracterizava nas matérias divulgadas: “Jorge Viana recupera o patrimônio”, “a restauração do Palácio é mais um marco na resposta de comprometimento do atual governo com a história de seu povo”, “o Acre pode se orgulhar hoje não somente porque está agora no caminho certo, rumo ao desenvolvimento desenvolvimento e à modernidade. O Acre pode e deve se orgulhar porque hoje tem um verdadeiro líder” (Jornal O Estado do Acre , 20 a 26 maio. 2002, p. 2).
A expressão da última frase: “O Acre pode e deve se orgulhar porque hoje tem um verdadeiro líder”, encontrada no editorial do jornal O Estado, evidencia o esforço de criação da imagem do homem excepcional, fadado ao triunfo, o “verdadeiro líder”. Na obra O Estado Espetáculo, Schwartzenberg discute o papel desempenhado pelos dirigentes do estado como empresa de espetáculos, onde a política se faz pela encenação: A política, tal como o espetáculo, tem os seus maquinistas. Para plantar cenários e ajustar as trucanagens. Pertencem esses técnicos a um ramo em pleno desenvolvimento: à indústria da persuasão. Para não dizer à indústria do espetáculo político (SCHWARTZENBERG, (SCHW ARTZENBERG, 1978, p. 215).
A partir dessas considerações, considerações, é possível dizer que, que, não por acaso, o Pagina 20 e O Estado do Acre foram utilizados como instrumentos de mediação, divulgando
ações demonstrativas das atividades realizadas pelo governo, articulando e conferindo nova roupagem às narrativas de “eventos passados”. Nesse processo, articularam lugares e símbolos, para conferir maior poder de persuasão e formular a ilusão participativa, através da exploração de sensações e emoções eficazes no envolver da população na crença de aspectos singulares capazes de identificá-la na “comunidade de acreanos” que estava sendo inventada. As construções do discurso identitário, o jogo de significados e a coerência de cada texto concorreram para a formação disc ursiva de uma “identidade acreana” singular e amplamente divulgada na mídia local. Nessa direção, Guimarães pontua uma questão que pode explicar o porquê da atuação das empresas de comunicação na produção de representações r epresentações::
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como é comum nas empresas de comunicação do Norte e Nordeste do país, os grupos de mídia do Acre, em sua maioria, propriedades de políticos da região ou de empresários com fortes vínculos com o Estado e com os mandatários de cargos eleitorais. Em alguns casos, o estabelecimento desses vínculos segue um rito inicial de hostilidade ao governo até a subseqüente inclusão da empresa na distribuição dos recursos de publicidade governamental (2008, p. 37).
A necessidade de sobrevivência financeira dessas empresas de comunicação subjuga, portanto, a imprensa local aos interesses dos governos, quando assumem a função de divulgar em suas matérias os projetos, discursos e imagens da agenda governamental. As representações, afirma Chartier, “são sempre determinadas pelos interesses de grupos que as forjam” (1990, p.17). Evidenciar as articulações entre as práticas discursivas e a produção dos sentidos, difundidos pela imprensa, no âmbito de um jogo de relações, implica em dizer que as noções, os conceitos, os temas e as imagens foram sistematizados pelos “enunciadores”. Segundo Gregolim (2003), estes “controlam, delimitam, classificam, ordenam e distribuem” os símbolos, os signos e as falas para dar sentido ao discurso de uma coletividade, operando assim configurações que inventam subjetivações para a conformação dos sujeitos, na tentativa de inseri-los em uma “comunidade imaginada” através do “estilo” e dos “recursos utilizados” (ANDERSON, 2008, p.12). Como construtora de imagens simbólicas, a imprensa local participou ativamente na consolidação do imaginário i maginário da “acreanidade”. O discurso dessa “coletividade
imaginada”
adquiriu
visibilidade
por
intermédio
do
papel
desempenhado pelos jornais, nas subjetividades de muitas parcelas da população. Foram fatores externos, portanto, que produzidos, divulgados e interiorizados pelas diversas performances da linguagem, com seus dispositivos e capacidade de dar forma ao pensamento, projetaram construções mentais que circularam e circulam na “sociedade acreana”.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Refletir sobre a invenção de d e uma “acreanidade”, inventada durante os anos de “Governo da Floresta”, especialmente, 2002 -2006, me permitiu penetrar em um mundo de representações forjadas pela linguagem e materializada em idealizadas narrativas históricas e “lugares de memória”. Nesse processo de invenção os temas históricos foram, criteriosamente, selecionados e postos em circulação por meio de diversos suportes que procuravam criar uma ideia de “evolução” no tempo, sem abandonar “tradições” de um Acre “como antigamente”. A representação desse passado construído, para ser cultuado, teve como referência um mito de origem, intencionando com isso provocar sentimentos cívicos e criar uma ideia de unidade social. Para isso, o governo contou com a contribuição de diversas instituições que concorreram na produção e divulgação de seus ideais. Naquele contexto dos anos 2002-2006, a Fundação Elias Mansour e o Departamento de Patrimônio Histórico do estado, desenvolveram uma política de “resgate histórico” e valorização patrimonial de um passado e m comum, exerceram papel de destaque no âmbito do projeto estatal e das lógicas do poder em curso. Essa política de patrimônio histórico teve uma atenção sem parâmetros em gestões anteriores, produzindo uma efervescente onda “preservacionista” em relação a o “resgate histórico” que foi intimamente int imamente articulado à produção da “acreanidade”. Além de divulgar as versões atualizadas de “narrativas históricas” em revistas, artigos, exposições e eventos, a FEM e o DPHC criaram e revitalizaram “lugares de memória” que qu e apresentam objetos, imagens e signos compatíveis com as representações dos temas escolhidos para se pensar em um tipo de homem regional, possuidor de uma “tradição” de lutas e conquistas, tendo como referencial uma relação de harmonia com a floresta. f loresta. Em meio a toda “febre neoneo -modernista”, em curso naquele momento, o Palácio Rio Branco, “revitalizado” como símbolo do Acre e da “acreanidade”, passou a se constituir como espaço de cerimônias cívicas e das demais liturgias autoconsagradoras do poder da Frente Popular do Acre (FPA), tendo frente o engenheiro florestal Jorge Viana. O palácio, símbolo do poder executivo, passou a ressoar um discurso regionalista acoplado à ideia de “modernidade”, em pauta na retórica governamental e em destaque na mídia.
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O edif ício ício passou a ser palco de teatralização de uma “história regional”, projetada pelos governantes e apresentada em uma composição museográfica – por reconhecidos profissionais –, –, com narrativas e cenários repletos de sentidos, subjetividades e projetos políticos polí ticos afinados com a “nova” ordem acreana. A valorização de uma “cultura regional” não estava alheia ao discurso político. Muito pelo contrário, estava diretamente ligada aos interesses do governo estadual que dizia apontar um novo tipo de “desenvolvimento” fundindo o “tradicional” ao “moderno” numa alquimia que condensava diferentes tempos, espaços e culturas numa mesma “comunidade de destino”. Durante a pesquisa, foi ganhando cada vez mais evidência que o reconhecimento oficial do palácio-monumento, co mo símbolo de uma “acreanidade”, inventada e projetada desde o presente, nada tinha de continuidade com as múltiplas práticas culturais e as tradições amazônicas, como insistiam em anunciar os porta-vozes oficiais. Não obstante, o próprio edifício do Palácio Rio Branco, erguido em fins da década de 1920, durante o governo de Hugo Carneiro, expressa ruptura com tudo o que a antiga sede do governo – feita em madeira – madeira – representava. Ao fazer uma leitura acerca dos períodos de construção, conclusão e “revitalização” do prédio do palácio, palácio , percebe-se que ele se encontrava inserido em contextos históricos de governos que trabalharam na perspectiva de transformar a capital acreana em uma metrópole, onde as construções monumentais foram, sem dúvida, priorizadas. Porém, a representação simbólica desse monumento está investida implicitamente dos discursos sobre “modernidade” e, nesse sentido, podemos dizer que ele está imbuído de contradições, demonstrando a movência do discurso dos que ditam o que é ser “moderno” para as sociedades regionais. O próprio termo “Palácio” é sugestivo para se pensar no significado que a obra arquitetônica, em sua produção material, pode traduzir. Na antiguidade palácio era um edifício suntuoso destinado à habitação das realezas, lembrando, portanto, a grandeza dos reis, soberania, poder e domínio. O termo é indicativo de tudo o que esse Palácio-monumento pode expressar, ou seja, o poder e distanciamento das amplas camadas populares. Enquanto monumento histórico que tem como objetivo fazer recordar o passado, o Palácio Rio Branco, transformado em palácio-museu, silencia sobre a memória de sua fundação, posto que foi erguido com base em um discurso que tratava as culturas ou os modos de vida dos habitantes da região como repugnantes.
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Esse discurso excludente era – era – e é – é – entoado pelo dirigente do Poder Executivo, que regulava, fiscalizava e reprimia em nome da “ordem pública”. A inspiração para sua “revitalização” fazia ecoar, portanto, não as diferenciadas e ricas tradições das Amazônias acreanas, acreanas, mas, os ranços desse discurso de “modernização regional”. Para um observador mais atento, ao visitar o palácio-museu, fica evidente que em meio à aparente polifonia, presente em sua atual exposição museográfica, o Palácio representa muito mais a história de projetos políticos das elites e classes dominantes do que as histórias e tradições de nossas Amazônias. Não pode ser considerado, portanto, um símbolo de uma memória afetiva, indispensável para constituir-se patrimônio de todos, mesmo que isso fosse algo possível, algo realizável. Trata-se única e exclusivamente, de algo historicamente determinado e, mais que isso, uma demonstração de forças, na qual o poder público manifesta de forma concreta o quanto a memória é um campo de lutas e de tensões, como afirmou Le Goff, e manter seu controle é sinônimo de dominação (1992, p. 426). Durante anos o Palácio foi designado para ser, exclusivamente, um lugar de atuação do Poder Executivo, que mantinha certa relação de distanciamento com a população. Relação essa, regida por regras de atendimento, com dias e horários marcados para audiências públicas. Transformá-lo Transformá- lo em um museu, “recuperado” e aberto à visitação pública, consistiu numa tentativa de criar uma ideia de proximidade do Poder Executivo com a “sociedade acreana”. No entanto, abrir as portas do palácio, reordenar a função f unção dos espaços internos do edifício e montar uma exposição que traz em si elementos para motivação e assimilação do discurso de uma “identidade regional”, não eliminou o distanciamento qu e existia, posto que o “povo” continua sem entrar naquele “espaço de poder” e a utilizar o prédio apenas como paisagem para passeios e fotografias aos finais de semana, como foi possível perceber no processo da pesquisa. Observa-se que a política de preser vação vação do “patrimônio histórico” faz parte de uma complexa rede de formação discursiva de construção de uma “identidade acreana”, perante a qual as narrativas históricas e a memória, previamente selecionadas e re-significadas, são elementos constitutivos do discurso oficial, expressando o poder da linguagem em forjar representações coletivas e em manter a “ordem”, o “controle” e o “poder”. A atuação dos órgãos de “gestão da cultura” e do “patrimônio histórico” revela o papel que o patrimônio desempenha no interior dos mecanismos de poder,
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especialmente, por atuarem como instrumentos de legitimação de grupos que se revezam no controle do aparelho estatal. No caso em análise, o discurso regionalista, erigindo, no plano simbólico, representações de uma comunidade imaginada, a ação do Estado Estado configurou-se como como estratégia de controle social, pois o discurso de valorização de uma “tradição” e de uma “identidade acreana” teve por objetivo ocupar os espaços vazios de uma prática política que não foi capaz de atender às necessidades e interesses das coletividades locais. A preocupação em consagrar um monumento como patrimônio de todos os acreanos apagou marcas importantes das múltiplas experiências sociais. Ao apresentar essas questões, no presente estudo, o que se busca é lançar outro “olhar” para essa temática. Um olhar que não seja o do interesse governamental, ainda, dominante, mas, não hegemônico; um olhar que propicie o suscitar de um debate que nos permita entender patrimônio histórico como prática social e cultural de diversos e múltiplos agentes; e que o exercício da cidadania esteja ancorado em uma memória capaz de afirmar a alteridade e o conflito como dimensões constituintes da história e da linguagem humana.
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