XXXVI Lembro-me de que um dia, quando era pequeno, fui ver o sino grande de ossa Senhora. Eu estava já aturdido por ter subido a escura escada de caracol, por ter percorrido a fraca galeria, que une as duas torres e por ter tido Paris debaixo dos pés, quando penetrei na torre de pedra e madeira, donde pende o sino, cuj o badalo pesa m il arráteis. Avancei tremendo por sobre as tábuas mal unidas, olhando a distância para esse sino tão famoso entre as crianças e o povo de Paris, e notei, não sem terror, que os anteparos de ardósia, que cercam a torre, um tanto inclinados, estavam ao nível dos meus pés. Nos intervalos via eu quase em linha reta a praça do adro de ossa Senhora e a gente que ia passando, do tam anho de form igas. De repente o enorme sino soou; uma profunda vibração moveu o ar e fez oscilar a pesada torre. O soalho de vigas ressaltou e a bulha quase me deitou ao chão. Cambaleei e quase ia rolando pelos inclinados anteparos de ardósia. Cheio de medo deitei-me sobre as tábuas, abraçando-me com elas sem dizer palavra, sem respirar, com o formidável som nos ouvidos e diante dos olhos o precipício, a profunda praça por onde passava tanta gente pacífica e invej ada. Parece-me que hoje estou novamente na torre do sino grande. Sinto ao mesmo tempo atordoamento e tortura; parece que o som dum sino abala os íntimos recessos do meu cérebro e em volta de m im j á não distingo essa vida chã e tranquila, que deixei e por onde outros homens caminham afastados, por entre as fendas dum abismo.