O QUE É PSICANÁLISE? Helvécio Victor Gusmão ?? Psicanalista ?? Saiba mais sobre esta promissora profissão
www.acpc.k6.com.
RESUMO No atual estado em que o ser - humano se encontra faz-se necessária uma mudança de percepção. Ele precisa de um método que o ajude a interpretar a si mesmo e ao seu próprio absurdo. Deverá descobrir o que está oculto: seus desejos mais profundos e necessidades. A Psicanálise poderá ajudar a enxergar melhor o motivo de suas criações, o seu contato com a realidade e com o mundo do outro. PALAVRAS-CHAVE: “realidade”, “desejo”, “inconsciente”, “censura”, “ato analítico”.
INTRODUÇÃO
Toda pessoa possui inquietações com relação à maneira pela qual se relaciona consigo mesma e com o ambiente ao seu redor. Pensando nisso, é muito importante conhecermos as nossas próprias necessidades, as causas dos nossos conflitos e os fatores que condicionam a nossa vida. Para isso, é preciso um método que nos auxilie na compreensão de nosso interior e das pessoas que nos são próximas. A Psicanálise é uma alternativa para isto. Neste artigo, refletiremos um pouco sobre a condição do homem, sua dificuldade em interpretar os seus próprios desejos e como a Psicanálise pode ajudá-lo a tornar-se um ser mais consciente e ajustado. Temos por objetivo introduzir o tema da Psicanálise situando-a no contexto da problemática humana, mostrando principalmente, a necessidade do seu desenvolvimento e a atuação de seu método.
A “grande crise”
Estamos em meio a uma grande crise. Cansado de si mesmo, o serhumano está perdendo o contato com a realidade. Sua visão está anuviada e confusa na medida em que vai se tornando cada vez m ais “responsável” pelo progresso e pela técnica. A principal evidência disso é um afastamento constante da natureza. O homem não olha mais para o céu, não tem mais tempo de apreciar as paisagens, de contemplar, no sentido mais profundo da palavra. Há uma espécie de embotamento na nossa habilidade de ver as coisas em sua profundidade de sentido. Estamos perdendo nossa capacidade de maravilhamento diante do real e a grande maioria das pessoas não está ciente disso. Se, por um lado, possuímos a necessidade de construir um sistema social, sentimos, por outro, uma grande falta, ou seja, uma constante insatisfação e desajustamento. Como dizia o psicanalista Fábio Herrmann: “Ora, o problema é que nós não desejamos o que queremos, nem tampouco ficamos satisfeitos de encontrar o que desejamos” (1983, 9). Note-se, portanto, que o ser-humano não sabe bem o que deseja e, não obstante, está perdendo a confiabilidade no mundo em que ele vive, vale dizer, está perdendo o contato com a realidade. Mas por que isto acontece? Bem, neste caso é importante enfatizar o ritmo acelerado de nossos dias, o isolamento decorrente da sociedade industrial do consumo, a busca de bemestar e prazer imediato e a moral da comunidade de base narcisista. Com base em todos esses problemas e suas derivações não é difícil concluir que existe um risco de perdermos o contato com qualquer realidade mais ampla e significativa do que nós mesmos. Diga-se de passagem que a consciência do homem moderno está passando por um estado crepuscular 1 de consciência, para não dizer de
1
No estudo das patologias da consciência, o estado crepuscular é crepuscular é uma alteração transitória da percepção do mundo exterior (SANTOS, 1970,73).
obnubilação 2 . Existe algo que está impedindo o homem de perceber o universo
e a própria vida de uma forma mais completa e satisfatória e isto é, sem dúvida alguma, patológico. É chegada a hora de discutir as implicações de uma suposta normalidade, justificadora de todo tipo de comportamento irresponsável. Precisamos de uma nova maneira de experienciar o ser. E não devemos fazê-lo como uma espécie de realidade “não-extraordinária” (e isso é o mesmo que ordinária) e prática em que levamos a cabo nossas atividades cotidianas. Devemos fazê-lo de forma consciente, uma vez constatado o absurdo no qual a humanidade se encontra inserida. Ou, como dizia Paul Brockelman: É como se nossa condição normal fosse um estado entorpecido e alterado de consciência, perdido num mundo em que percebemos as coisas como triviais e insípidas, não tendo consciência de que o próprio fato de elas existirem – de “algo” ser e de haver diferen tes formas desse algo – é verdadeiramente extraordinário (BROCKELMAN, 1999,19).
A “grande crise” é, portanto, uma crise de percepção, uma dificuldade de
se perceber o falso contido na busca de prazer imediato. Tal situação impede ao homem de gozar mais profundamente de sua própria existência, de valorizar o mundo no qual se encontra inserido e de aproveitar a completude e a satisfação existentes no simples.
O caminho da Psicanálise
Mas como o trabalho humano não tem fim, acabamos por criar uma forma fabricada de viver sem, no entanto, estarmos satisfeitos. Um indício bastante forte de que estamos perdendo o contato com a realidade é o fato de termos de nos perguntar, a todo momento, diante daquilo que a mídia nos apresenta, se o que ouvimos e vemos é assim mesmo, se é uma interpretação ou se é uma tentativa de engano. É o real que está perdendo a confiança ou 2
A obnubilação é uma debilitação psíquica da consciência, com diminuição de sua clareza e enfraquecimento da atividade intelectual (id.).
serão as nossas percepções que estão ficando doentes? Diante desses questionamentos, o ser-humano começou a procurar respostas nas ciências experimentais, no mundo da técnica e da informação. i nformação. No entanto, não achando as respostas, encontrou-se novamente vazio e o seu desejo acabou por aparecer mais do que devia. O racionalismo car tesiano com o seu “inabalável” cogito: “penso, logo existo” começou a se apresentar como insustentável. O próprio Herrmann, já citado, recorda que “o real começou a ficar um tanto duvidoso e o homem a ver-se, malgrado seu, cada vez mais absurdo para si mesmo” (1983,16). Todos esses problemas não podiam ser contemplados pelo método das ciências experimentais, principalmente no que se diz respeito aos sonhos, às emoções, à loucura, às paixões etc. Era preciso um método que se preocupasse com as entrelinhas, com o efeito do significante e não somente com o pensamento, como defendia a tradição cartesiana. Assim, a inteligência humana teve de recorrer a uma forma mais “primitiva” de compreensão: a interpretação. Como o lado irracional não “dava as caras” tão facilmente, Sigmund Freud inventou um método para interpretá-lo. Descobriu que existe um lado da mente humana que obedece a regras diferentes daquelas da racionalidade. A este método ele mesmo batizou de Psicanálise – uma análise da complexidade do psiquismo humano e do seu dinamismo. Mal sabia ele que, no curso de poucas décadas, este método estava destinado a exercer enorme e sempre mais maciça influência sobre a imagem do homem, suas atividades psíquicas e seus produtos culturais. Tais foram as luzes que a Psicanálise nos trouxe que, ainda hoje, muitos a consideram “abaladora”. É como nos narram os filósofos Giovanni Reale e Dario Antiseri:
Os costumes se transformam no encontro com a teoria psicanalítica e os próprios termos fundamentais da teoria psicanalítica (complexo de Édipo, repressão, censura, sublimação, inconsciente, superego, transferência etc.) já se tornaram parte integrante da linguagem comum e, bem ou mal, com maior ou menor cautela, mais ou menos a propósito, passaram a constituir instrumentos de interpretação do desenvolvimento mais amplo da vida (REALE & ANTISERI, 1991, 918).
Podemos dizer da Psicanálise a mesma coisa que Carlos Drummond de Andrade dizia da poesia: “uma tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo” 3. Isto significa que a Psicanálise também é um método para a leitura do nosso mundo. Ela não é só um método terapêutico. Toda a sociedade pode ser entendida psicanaliticamente e, de acordo com o professor Maurício Knobel:
A agressão e a violência formam parte do ser humano que, às vezes, superegoicamente nega esta realidade e gosta de se sentir bom, generoso e cheio de amor para com o mundo todo. A realidade do cotidiano nos demonstra a falsidade desta pretensão (KNOBEL, 2000).
Sendo a Psicanálise entendida como terapia ou método filosófico, o importante é entendê-la como a análise da vida psíquica do homem, cujo objeto central é o estudo do inconsciente e cuja finalidade é a cura de neuroses e psicoses, tendo como método a interpretação (de sonhos, sintomas, lembranças, esquecimentos e chistes) e como instrumento a linguagem (seja verbal ou corporal). Freud, embora não defendesse um retorno à vida primitiva, acreditava que o homem era impulsionado, sobretudo, a satisfazer certos impulsos elementares que o obrigavam a alcançar seus fins. Descobriu isto após suas pesquisas envolvendo pacientes histéricos 4 e hipnose5. Postulou, então, a existência de uma região psíquica onde estariam alojados os conteúdos e as experiências insuportáveis à vivência consciente. Freud a chamou de inconsciente 6 e a responsabilizou pela existência de impulsos emotivos de natureza antagônica que causam desordem no psiquismo humano. Para a 3
Para maior esclarecimento, conferir a nona parte da “Antologia poética” de Drummond. In: ANDRADE, Carlos
Drummond de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009. 4
A histeria é uma estrutura neurótica caracterizada pela tradução de representações e sentimentos inconscientes em sintomas corporais diversos (LAROUSSE, 2004).
5
A hipnose é caracterizada por uma diminuição do estado de vigília, provocada por sugestão, em que o hipnotizado encontra-se susceptível apenas à influência do hipnotizador (id.).
6
O inconsciente é uma instância psíquica autônoma em relação à consciência, constituída por pulsões e desejos recalcados e regida pelo princípio de prazer (id.).
professora Marilena Chauí, o contato com pacientes histéricos fez com que Freud criasse o que ele chamou de análise da vida psíquica ou psicanálise: psicanálise:
Freud descobriu, finalmente, que os sintomas histéricos tinham três finalidades: 1. contar indiretamente aos outros e a si mesmo os sentimentos inconscientes; 2. punir-se por ter tais sentimentos; 3. realizar, pela doença e pelo sofrimento, um desejo inconsciente intolerável (CHAUÍ, 1995,167).
Estas três finalidades seriam uma estratégia do inconsciente para expressar, disfarçadamente e em linguagem própria, sentimentos que são considerados proibidos pela sociedade e/ou pela própria pessoa. Existe, pois, no inconsciente, uma espécie de censura 7 que privilegia alguns desejos e proíbe outros. Como estes desejos existem, mas são impedidos de se expressarem livremente, o inconsciente cria meios indiretos de representá-los. A censura bloqueia a passagem às tendências que parecem contrárias aos desejos conscientes do indivíduo. Freud também observou que a maioria destas tendências era de conotação sexual e que os instintos, recalcados pela atividade da censura, continuavam a viver no inconsciente e, por não poderem satisfazer-se, exprimiam-se sob formas simbólicas ou, nos casos graves, provocavam desordens psíquicas mais ou menos profundas.
O método terapêutico
O sentimento de culpa e o constante conflito são os principais sintomas deste mecanismo de recalque que pode levar ao sofrimento e até mesmo a doenças gravíssimas. Estes sintomas são, na realidade, r ealidade, a realização do desejo que foi recalcado. Por isso, a preocupação da Psicanálise é procurar a cura através da fala. O método psicanalítico é aquele que visa uma liberação que consiste, justamente, em fazer subir de novo à consciência a lembrança 7
Por censura entendemos aquele termo que serve para designar o conjunto das lembranças, idéias, desejos, sentimentos, que inibem outros golpes de idéias, sentimentos e lembranças (JOLIVET, 1967).
dolorosa, que é uma recordação inconsciente. Vale também lembrar que nem sempre o recalque versa sobre a sexualidade e que sempre haverá resistência no processo de liberação. O ato analítico consiste numa investigação onde o analista pede para que a pessoa lhe fale tudo o que vier à cabeça, sem fazer nenhum tipo de censura ou escolha das idéias a serem comunicadas. Este é o método de investigação da Psicanálise, também chamado de “associação livre”. A pessoa não tem que se esforçar por ser lógica, coerente e precisa. Deve somente se sentir à vontade e falar sem por “frei os na língua". O analista estará ouvindo e procurando por manifestações inconscientes e as suas respectivas causas. Ele fará as devidas intervenções quando achar que o paciente deva conscientizarse de algo importante ou que deva deslocar o seu desejo para outra direção. Para os psicanalistas Oscar Cesarotto e Márcio Peter de Souza Leite, a intervenção do analista no discurso do analisando deverá criar novas cadeias associativas que provoquem uma mudança subjetiva na mente do paciente. De acordo com eles: A questão central do ato analítico consiste na modificação subjetiva que se produz quando o analisando, que no começo desconhecia o porquê do seu sintoma, e sofria por isso, a partir da interpretação do desejo, passa a reconhecê-lo como parte constitutiva de si, com todas as conseqüências conseqüências que isto i sto implica na sua v ida (CESAROTTO & LEITE, 1984, 77).
Para isto, exige-se uma postura adequada do próprio analista na hora de ouvir e na hora de intervir, para que o paciente produza as suas próprias verdades e se admire com elas. Ele suporta tudo o que ouve, mas sem demonstrar, opinar ou sugerir. Estará mais preocupado com as entrelinhas, com as manifestações do inconsciente.
CONCLUSÃO
O importante a considerar, por agora, é que quando uma pessoa procura um analista, estando com a vida atravancada por uma série de fatores, procura, na verdade, por “respostas”. Descobrirá, porém, que nem o analista (nem ninguém neste mundo) possui as respostas que procura e que somente ela, no meio da “grande crise”, pode encontrar caminho na medida em que vai se tornando um ser cada vez mais consciente. Deverá estar consciente, inclusive, daqueles momentos em que foi má, mas deveria ser boa. Deverá estar ciente de seus próprios conflitos. Não está, no entanto, sozinha neste caminho. A Psicanálise a ajudará a trazer à tona aquilo que estava obscuro. Nisto as intervenções do analista atuam como luz e ajudam a colocar em ordem as coisas. Ou talvez, simplesmente, ajude a pessoa a confessar o que ela sempre soube, mas nunca quis aceitar. Quando uma pessoa percebe que algo a está fazendo sofrer e toma conhecimento íntimo de que precisa ser “curada” e de que “precisa de ajuda” está no início de seu processo terapêutico. Deverá admitir, humildemente, que ainda não sabe o que deseja ou que ainda não tem isto muito claro para si. Precisa, assim, de novas ferramentas para interpretar a própria história, descobrir o que realmente deseja e sair de seu “estado crepuscular de consciência”. Necessita, enfim, retomar o contato com a realidade para lev ar uma vida mais ajustada. O método terapêutico da Psicanálise a ajudará a assumir os conflitos que estão instalados no seu psiquismo e a reconhecer que a chave para as suas “respostas” é a sua própria história. Quem faz todo o processo, então, é o paciente e não o analista. O analista é um profissional treinado para dar as condições para que o paciente conheça a si mesmo. De acordo com Cesarotto & Leite, já citados, “quem faz a análise, então, é o analisando” (1984). O paciente, até então ignorante da causa de seus próprios conflitos, reconhece os seus desejos como parte de si, desiste da idéia de buscar “respostas” e começa a “se ter nas mãos”, testemunhando para si mesmo uma mudança subjetiva e admitindo a falsidade das próprias pretensões.
Estando consciente de seu próprio desajustamento, da impossibilidade de mudar o seu próprio passado e do absurdo de culpar as pessoas e as circunstâncias que o oprimiram, poderá o homem fazer, mais livremente, uma opção por contemplar a vida de forma mais profunda e tornar-se responsável pelo sentido que dá às coisas presentes e futuras. A Psicanálise se tornou um instrumento valioso de interpretação da vida e da sociedade. Ajuda o homem a descobrir o seu próprio desejo e ver que este desejo cria o que ele quer e também o que ele não quer. O narcisismo de nossa sociedade é um belo exemplo disso. Sua missão é fazer com que o homem consiga enxergar o seu próprio absurdo, admitir que este absurdo é parte integrante de sua natureza e, vendo-se na impossibilidade de anulá-lo, reconciliar-se com ele, corrigindo a direção de seu desejo.
Curitiba, PR, 21 de junho de 2010. Helvécio Victor Gusmão é filósofo e psicanalista em formação.
?? Psicanalista ?? Saiba mais sobre esta promissora profissão
www.acpc.k6.com.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009. BROCKELMAN, Paul. Cosmologia e criação – A importância espiritual da cosmologia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 1999. CESAROTTO, Oscar; LEITE, Márcio Peter de Souza. O que é Psicanálise. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 1995. HERRMANN, Fábio. O que é Psicanálise. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. JOLIVET, Régis. Tratado de Filosofia – Psicologia. Rio de Janeiro: Editora Agir, 1967. KNOBEL, Maurício. O que é a Psicanálise: Psicanálise: a interpretação dos sonhos – 100 anos. Atualizado em: 10/10/2000. Disponível em: em: . ique06.htm>. Acesso em: 22/06/2010. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia – Do Romantismo até os nossos dias, v.III. v.I II. São Paulo: Edições Paulinas, 1991. RODRIGUES, Diego et alii. Laurousse ilustrado da língua portuguesa. São Paulo: RR Donnelley América Latina, 2004. SANTOS, Theobaldo Miranda. Manual de Filosofia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970.