O Mambembe é uma burleta em três atos, divididos em 12 quadros, ornada de música original de Assis Pacheco. Trata-se de um enredo simples, em que Arthur Azevedo coloca todo seu amor pelo teatro criticando o desamparo em que a arte cênica, e seus artistas, são deixados pelas autoridades. Uma sátira aos costumes interioranos e até mesmo ao próprio teatro. O ator Frazão organiza um Mambembe, mas luta com dificuldade, não dispondo de uma primeira-dama para a excursão. Lembra-se de atrair para a sua companhia uma amadora de prestígio nos palcos das sociedades particulares do Rio de Janeiro, e
efetivamente dirige-se a Laudelina, afilhada de Dona Rita e filha da senhora Gayoso com um mineiro que passara pela corte nos anos de 1879, no tempo em que a cantora Cesano tinha voz e era moça. Laudelina deixa-se fascinar pela proposta do ator Frazão; Dona Rita tenta desviá-la de seu intento, mas só consegue persuadi-la a servirlhe de companhia durante a excursão artística. Essa jovem tem um apaixonado, o também amador Eduardo, que com ela representava a “Morgadinha de Val Flor” em Catumbi. O rapaz fica desorientado quando sabe da próxima partida de Laudelina e, para acompanhá-la, obtém de seus patrões uma licença de três meses e engaja-se, sem vencimentos, no mambembe do Frazão. Disposto inclusive a pagá-lo para fazer parte da trupe. Os incidentes que precedem a formação do grupo são interessantes e passam-se nos fundos de uma venda muito conhecida na Capital Federal, onde reúnem-se os artistas sob a proteção platônica do proprietário do negócio, um português, homem dado à literatura teatral. O segundo ato se passa na cidade de Tocos, onde chega o Mambembe depois de um mês de peregrinação. O dono do hotel, antigo cômico, não os quer receber fiado, pois ali estivera um outro Mambembe de caloteiros.
Dessa forma, as dificuldades tornam-se quase insuperáveis: os artistas estão acampados no meio de um largo, sem casa, sem crédito e com fome, além dos credores que perseguem o empresário, uma vez que até o momento não tiveram sucesso com a empreitada em que se meteram. Felizmente é dia do aniversário natalício do tenente-coronel Pantaleão, presidente da Câmara Municipal, grão-mestre da Maçonaria, comandante superior da Guarda Nacional, e dramaturgo, autor de Passagem do Mar Amarelo, drama em 12 atos e 21 quadros. Arranja-se uma manifestação, com música e foguetes, e o homem, enternecido pelos encantos de Laudelina, abre as portas de sua casa ao Mambembe, oferecendo-lhe seu drama para ser ali montado. Tenta ele, ao mesmo tempo, seduzir a jovem. Após o fiasco da peça, percebendo o interesse do coronel por sua amada, Eduardo esmurra Pantaleão e é preso em flagrante pelo subdelegado. Porém, após a intervenção do empresário da companhia acaba por ser solto. A situação do empresário começa a se agravar com a perseguição mais amiúde de seus credores, dando lugar a interessantes cenas descritas com muita graça.
Salva-se a situação inesperadamente pelo convite que o capitão Irineu dirige ao chefe do Mambembe, para que realize três representações em Pito Aceso, cidade próxima de Tocos, por ocasião da Festa do Divino Espírito Santo, e isso com bastante dinheiro, adiantado por ele. O terceiro ato se passa já em Pito Aceso, onde acontece a procissão do Divino com o coronel fazendo o papel de Imperador da cerimônia e sua esposa (uma madame francesa, antiga dançarina do cabaré Alcazar), o acompanhando sob o pálio branco da comemoração. Chega à cidade Pantaleão que quer a qualquer custo amar Laudelina e fazer representar seu drama, oferecendo-lhe dois contos numa carta. Frazão, ao saber da tramóia de Pantaleão, disfarça-se em Laudelina e, numa cena impagável, apanha o dinheiro oferecido pelo coronel à suposta jovem. Enquanto isso, o grupo realiza a representação teatral durante a Festa do Divino, vista por todo o povo do local (e pelos atores/espectadores também). Ela acontece num palco montado sobre barricas, tendo como resultado o seu desabamento durante a representação. Seguem-se muitos incidentes cômicos, até que chega o momento da partida dos artistas para o Rio de Janeiro. O
bom Chico Inácio dá seu cartão a Dona Rita e esta descobre que ele é o Batata, pai de Laudelina. O Sr. Eduardo casa-se com ela, madame aceita a filha, o coronel fica contentíssimo e quando a jovem atriz mostra escrúpulos em abandonar a arte, Frazão, que é digno, acaba com eles e parte para seu vício: arranjar outro mambembe.
Uma peça de teatro sobre o teatro, metalinguagem para fazer pensar. A organização da companhia, os tipos que a compõem, o estranhamento do público, as crises financeiras, os problemas com as autoridades locais, com a burocracia, com o repertório, com as condições técnicas dos locais de representação, tudo é examinado e, como resultado final, há uma celebração do trabalho dos artistas e do próprio teatro. Sua estrutura segue as convenções do teatro antigo, com galãs, damas, ingênuas e cômicos. Assim é essa história de Arthur Azevedo. O texto e a montagem Apesar de Arthur Azevedo ser um dos maiores dramaturgos brasileiros, tendo escrito aproximadamente 200 peças de teatro, ele não era valorizado junto a classe teatral, e ao público brasileiro, durante o final dos anos 50. Na verdade, como já foi abordado, as montagens que aconteciam nas cidades de São
Paulo e Rio de Janeiro, pólos do desenvolvimento teatral, eram de textos de autores estrangeiros. Isso começou a se modificar, como já foi dito, com o lançamento de Jorge Andrade como autor por Gianni Ratto, gerando conseqüências positivas para a dramaturgia nacional. Aliado ao momento político por que passava o país, alguns grupos se aventuraram na montagem de textos de autores nacionais, como foi o caso do Teatro de Arena, que no ano anterior, 1958, havia montado Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri e que neste ano de 1959 apresentava A Revolução da América do Sul, de Augusto Boal. Seria também, neste ano a montagem de outra peça de Gianfracesco Guarnieri, Gimba, Presidente dos Valentes, pelo Teatro Popular de Arte, de Maria Della Costa. Não obstante o resgate do autor nacional, Arthur Azevedo ia na contramão dos textos encenados. Uma peça de muitos atores, que previa muitos cenários, além das partes musicadas, com necessária contratação de músicos para sua execução era difícil de ser imaginada. Além do mais, a peça já havia sido montada alguns meses antes, resultando num enorme fracasso. Uma nova fase, porém estava
se iniciando. Era a criação do Teatro dos Sete, e o grupo buscava um texto que marcasse sua estréia como Companhia. Ao ler o texto de Arthur Azevedo, Gianni Ratto acreditou ter encontrado a peça ideal para este momento, afinal O Mambembe é a história de uma companhia itinerante que tenta sobrevier de qualquer maneira às dificuldades para fazer teatro, o que era a realidade pela qual passavam. Sobre a escolha do texto Gianni Ratto nos conta em seu livro A Mochila do Mascate: “Quando li a peça, entre tantas outras disponíveis, ela me chamou a atenção não só por suas qualidades dramatúrgicas indiscutíveis mas também – e este foi um fator fundamental para a escolha – por ser ela um atualíssimo retrato da condição de quem, naquele momento, estava fazendo teatro: dificuldades para formar companhias, vedetismos incipientes, necessidade de perambular constantemente para encontrar uma sede de trabalho, mambembar para sobreviver, nenhuma, ou pouca, consideração para com a condição do artista (naquele período, e ainda durante bastante tempo, as atrizes eram obrigadas a ter uma carteira que as equiparava às
prostitutas, tendo a obrigação, durante qualquer viagem de trabalho, de se apresentar às delegacias de polícia locais). A peça, aparentemente singela, encerrava, e até hoje encerra, uma carga poética e um amor pelo teatro que, aliados a uma hábil carpintaria, garantiam um êxito quase indiscutível”. A produção era ousada, pois havia necessidade de diversos cenários, inúmeros figurinos, além de grande elenco e técnicos envolvidos no projeto. E tudo isso para um grupo que estava começando e não tinha capital necessário para uma grande montagem como esta. Mas mesmo assim eles acreditavam no trabalho de Gianni Ratto, na sua capacidade como diretor e comungavam com ele a encenação de grandes autores, de bons textos. Sérgio Britto lembra que a idéia de fazer o espetáculo foi do próprio Gianni Ratto: “Foi o Ratto que nos convenceu a fazer o Mambembe. Era a idéia de um espetáculo musical que nunca se tinha feito no Brasil. Eram oitenta e quatro pessoas em cena, cantando, dançando e representando. Nós éramos tantos que quando nós saímos do Municipal, onde ficamos quinze dias, fomos pro Copacabana nos reduzimos a sessenta, porque não cabiam dentro dos camarins os oitenta e quatro”.
O texto de Arthur Azevedo para a montagem do grupo teve uma leve adaptação, recebendo um prólogo e um epílogo especialmente encomendado a Cláudio de Mello e Souza. A partir daí, o trabalho de pesquisa foi iniciado. Gianni Ratto percorreu vários imóveis do Rio de Janeiro, para se inspirar na concepção do cenário. Eram freqüentes também suas visitas à Biblioteca Nacional em busca de antigos jornais, entrando também em contato com Aluísio de Azevedo, sobrinho de Arthur, bem como com Raimundo Magalhães, que o auxiliou na busca documentária. Obteve auxílio da parte musical com o famoso compositor Almirante, colecionador de textos e músicas populares, como também de Dona Oneida Alvarenga, folclorista conhecedora de modinhas, cantigas de roda, danças populares que Mário de Andrade, seu amigo, havia recolhido em coleções antológicas, enviando a Gianni, de presente, dois volumes da obra de Mário de Andrade nos quais música e arte popular estavam registradas cuidadosa, magistral e copiosamente. Até mesmo o cateretê, dança folclórica mencionada no texto, praticada no interior do Brasil e difícil de ser
encontrada a forma como era executada, foi descoberta por Renato Consorte, um dos atores da peça, através de um manual em que estavam compiladas, graficamente diversas danças folclóricas brasileiras, entre elas o mencionado cateretê. Por fim, o Theatro Municipal, em virtude da comemoração de seu cinqüentenário, além de ceder os figurinos solicitados pelo grupo, executou também os desenhos de Napoleão Moniz Freire, bem como os catorze cenários desenhados por Gianni Ratto. A formação do elenco foi o que deu mais trabalho, pois o texto pedia aproximadamente setenta atores. Como conseguiram atribuir a alguns atores mais de um papel, o número necessário caiu para cinqüenta, o que, ainda assim, era um elenco bastante numeroso. Muitos dos atores que faltavam vieram da Casa de Repouso dos Artistas. Assim, tiveram a sorte de descobrir pessoas que tinham sido representativas em épocas anteriores na arte brasileira, e que demonstravam uma vivacidade e uma lucidez mental que muitos dos jovens não possuíam. Tratava-se realmente de uma superprodução nunca antes vista. A estréia foi um retumbante sucesso. A direção de Gianni Ratto mais uma vez contagiou o público, como nos conta Sérgio Britto
em seu depoimento: “Não, foi uma direção, olha, memorável. Quando o Mambembe acabou, pra você ter uma idéia mais ou menos o Mambembe começou às nove horas e acabou quinze pra meia-noite. Duas hora e quarenta e cinco minutos, porque ele também não cortava peça. Nós ficamos no teatro até as três horas da manhã, porque quando acabou o espetáculo nós não tínhamos chegado aos nossos camarins e o público já estava no palco, praticamente metade da platéia desceu pro palco. Agora, metade da platéia do Municipal são mil pessoas. Todo mundo querendo saber, todo mundo querendo aprender as músicas, ver o cenário, ver os detalhes. Era uma coisa quase que absurda.”
Fernanda comenta do numeroso elenco do espetáculo: “O Mambembe, ao todo tinha perto de oitenta participantes, entre a parte administrativa, entre maquinistas, entre o grupo de cateretê , o grupo de não sei que, mais um elenco enorme enfim, mais as camareiras,mais....”81
A crítica consagrou definitivamente a montagem do diretor. A sua repercussão na imprensa foi excepcional, fora de qualquer padrão. A escritora e jornalista Zora Seljan, que mantinha uma coluna no jornal O Globo publicou como homenagem ao espetáculo, uma história em quadrinhos da peça. Em sua coluna ela dizia: “O que aconteceu no final pode ser comparado com os grandes intérpretes musicais: a platéia aplaudindo, uns rindo, outros com lágrimas, entre alegres e comovidas, sem querer deixar o lugar, só fazendo questão de continuar a aplaudir, numa demonstração de entusiasmo que as platéias de teatro não costumam ter.”82 Fundamental o depoimento da crítica Bárbara Heliodora que presenciou esse momento mágico da estréia do espetáculo: “O Mambembe foi inesquecível, eu me lembro do Mambembe como se estivesse passando na minha frente, ao vivo e a cores. Porque foi o uma coisa inacreditável. Eram 14 cenários. Cada cenário que aparecia o teatro vinha abaixo de aplausos, porque era uma coisa inacreditável, o primeiro era o fundo do armazém, onde eles se encontravam, era maravilhoso... Tinha réstia de cebolas, tinha isso, tinha aquilo tinha caixote,
e............Tudo pintado, pura cenografia italiana. Mas no final tinha a Festa do Divino com o “coiso” de bambu, o coreto. Era uma coisa maravilhosa. Tinha tudo, e tinha o bonde que vinha de Santa Tereza que o Ítalo... o bonde saía correndo e o Ítalo ia atrás para pegar o trem, e andava... E a minha impressão da estréia do Mambembe é que foi uma coisa tão extraordinária de alegria, de olha que coisa linda que eu sempre digo que as pessoas se encontravam no intervalo se encontravam e diziam “Como vai você? Você está bem? (sempre rindo) Porque era contagiante a alegria do espetáculo. E o espetáculo acabou... o que? Umas onze e meia, ou algo assim e eu me lembro que só saímos para jantar, porque eu saí com eles, do teatro, já passava de duas horas. O que tinha de gente pra cumprimentá-los era uma loucura. Foi um marco. Só sinto que não haja o DVD do espetáculo, porque era uma aula do que deveria ser feito para montar o Arthur Azevedo. Era realmente, figurino, cenário, interpretação, tudo, tudo, tudo. Era uma coisa maravilhosa, e foi ...O Ratto é quem dizia: Mas era nosso cartão de visitas, a
primeira coisa do Teatro dos Sete. Então tinha que agradar. Então foi! Mas que cartão de visitas! Foi sensacional!”83
Para finalizar essa digressão sobre a referida montagem de O Mambembe, vale transcrever as palavras de Sérgio Britto, citando também o crítico Sábato Magaldi, em seu livro auto-biográfico, a respeito da direção de Gianni Ratto: “Sábato Magaldi no seu Panorama do Teatro Brasileiro afirma que O Mambembe é dos mais completos espetáculos já realizados no Brasil. É aí o momento de falar de Ratto e de sua extraordinária direção, na medida justa, popular e requintada, dominando o humor bem carioca dos tipos de Arthur, com a brejeirice afrancesada da partitura musical, sem falar da sua cenografia, puro teatro de revista, com telões subindo e descendo. A locomotiva que levava a companhia dos mambembeiros na sua viagem para o interior do Brasil era inesquecível, desses momentos de teatro que ficam na memória. Eduard, meu personagem, chegava atrasado e pegava o trem andando. A ilusão era perfeita.”
O Mambembe tinha em seu elenco os seguintes atores: Fernanda Montenegro, Grace Moema, Ítalo Rossi, Sergio Britto, Renato Consorte, Waldir Maia, Iara Cortez, Iolanda Cardoso, Zilka Salaberry, Aldo de maio, Alan Lima, Armando Nascimento, Cavaca, Labanca, Milton Carneiro, Napoleão Moniz Freire, Tarcísio Zanotta, entre muitos outros.