Tópico I O Direito como Objeto de Conhecimento: Perfil Histórico
Tércio Sampaio Ferraz Junior IED - Prof. Juliana Monitor: Bernardo Zettel 1. Direito e conhecimento do Direito: origens
O direito das sociedades primitivas está fundamentado no princípio do parentesco, segundo o qual tudo aquilo que pode ser considerado como direito se esgota no modo de ser da própria comunidade. As regras de direito se confundem com as próprias regras da convivência dentro da comunidade parental, ou seja, não existe uma diferenciação entre o significado do Direito e as formas de convivência dentro de um determinado clã. Com isso, o direito de fundamenta nos costumes e nas práticas de cada grupo, e a ordem que ele mantém é a ordem sagrada, aquela querida pela divindade. A característica principal dessas sociedades primitivas está na baixa diferenciação social. Não existem segmentos sociais distribuídos em função de diferentes papeis que exercem na sociedade. Todos são responsáveis pela aquisição e produção de bens materiais mínimos para a sobrevivência, através da caça, da agricultura e da produção artesanal. Em virtude dessa homogeneização, é reduzida a interdependência funcional entre os membros do clã, o que também reduz as possibilidades de conflito envolvendo interesses distintos. Na verdade, essas sociedades são formadas com base em uma comunhão de valores bastante rígida e que é pautada, em última análise, na representação de uma divindade. A violação do direito é a própria violação desse conjunto de valores básicos que formam a sociedade. O agente infrator é visto como alguém que não mais está possibilitado do convívio no clã, devendo ser imediatamente expulso. A complexificação das relações sociais que é proporcional ao aumento dos fluxos econômicos de mercado gera a necessidade de novas regras para sua regulamentação. O direito formado com base no princípio do parentesco não dá conta da complexidade e dos novos conflitos sociais. O individuo passa a ganhar maior autonomia quando do surgimento das polis, verdadeiras cidadesEstado em que surge a figura do cidadão político, voltado também para a vida pública, mas que conserva liberdades fundamentais inerentes à condição de homem. O direito ganha procedimentos especializados para a tomada de decisões, superando-se a visão do direito como o bem. A distinção, pois, entre direito-objeto e direito-ciência exige que o fenômeno jurídico alcance uma abstração maios, desligando-se de relações concretas. A sociedade busca no direito um mecanismo regulativo social capaz de acolher indagações a
respeito de divergentes pretensões. Assume o direito a forma de um programa decisório, em que o resultado se torna controlável por instrumentos de decisão próprios do direito. 2. Jurisprudência Romana: o direito como diretivo para a ação
Na Antiguidade Clássica, o direito era um fenômeno de ordem sagrada. Era o exercício de uma atividade ética, a prudência, virtude moral do equilíbrio e da ponderação dos atos de julgar. O formalismo do direito pretoriano era caracterizado pelos esquemas de ação para determinados fatos-tipos e em fórmulas para a condução do processo. Somente com a influência dos jurisconsultos, corpo de juristas profissionais, que o direito romano ganhou procedimentos mais elásticos para a decisão dos casos concretos. A jurisprudência romana foi influenciada pelo pensamento grego filosófico, mas especificamente pela virtude da dialética. A dialética é a virtude do discernimento, com o qual o jurisconsulto é capaz de ponderar os argumentos que lhe são apresentados (por meios das responsas) e tomar a melhor decisão. O trabalho do jurisconsulto é testar os argumentos que são apresentados para defesa de interesses diversos no caso concreto. Esse teste envolve a indicação dos pontos positivos e negativos de cada argumento a fim de que revelem suas eventuais falhas. Buscava-se a alteridade e a identidade dos argumentos, com objetivo de verificar qual deles seria a base do direito para o caso concreto. Em primeiro lugar é apresentada uma questão ao jurisconsulto para que ele possa solucioná-la. Segue-se uma série de possibilidades de soluções organizadas em um conjunto de alternativas para as quais se busca um ponto de apoio tendo em vista uma argumentação. A jurisprudência se desenvolve na busca por regras gerais que possam regular os mais diferentes casos. É diferente da forma como o Common Law estrutura o direito, na medida em que a jurisprudência romana não busca um antecedente específico para cada caso concreto, mas sim descobrir e contrapor as razões favoráveis e desfavoráveis e ampliá-las de tal forma que possa obter uma regra geral que decide o caso e sirva para outros. O uso da dialética também representa um saber prático voltado para a resolução dos casos concretos e que trabalha com conceitos pré-constituídos pela própria jurisprudência. Diferente das sociedades primitivas, o pensamento prudencial possibilitava a inclusão do comportamento desviante no direito. Era considerado um ato ilícito, mas que nem por isso poderia ser afastado da esfera jurídica. Por isso, disponibilizava-se ao infrator a possibilidade de responder ao processo com base em argumentos com os mesmos valores e regras. O direito deveria ser capaz de responder aos ilícitos a fim de estabilizar as relações sociais. Na dimensão política, a autoridade ( auctoritas) estava relacionada com o passado da fundação de Roma. O jurista, mais do que por seu saber, era respeitado por sua gravitas, o que indicava estar
ele mais perto dos antepassados. A teoria jurídica romana era, nesse sentido, a manifestação autoritária dos exemplos dos feitos dos antepassados e dos costumes daí derivados. Assim, o pensamento jurisprudencial romano, embora se ligue de alguma forma à prudência e à retórica gregas, tem um sentido próprio, alheio até certo ponto ao problema da relação estanque entre teoria e práxis. A jurisprudência romana era uma confirmação do certo e do justo para o caso concreto, com objetivo de conservar a ordem social construída ao longo da história. 3. Dogmaticidade na Idade Média: o direito como dogma
O crescente poder da religião católica teve decisiva influência na teoria jurídica da Idade Média. O homem passou a ser considerado em sua qualidade intrínseca, ou seja, lhe foi conferida uma dignidade própria, a dignidade humana. Com base na ideia de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, ele havia de conformar-se à Ordem divina expressa nas leis. Segundo Tomás de Aquino, filósofo medieval, o direito é uma ordenação da razão direcionada ao bem comum, promulgada por aquele a quem incumbe o cuidado da comunidade. Percebe-se nessa definição a estreita correlação entre a ordem divina e o direito, na medida em que este último passa a ser fundamentado na própria vontade de Deus. O direito assume um caráter de sacralidade transcendente, diferente dos romanos, que era imanente. O saber prudencial estava voltado para a interpretação das leis divinas. O pensamento prudencial sofreu alterações em sua estrutura: deixou de analisar casos problemáticos com base na equidade, para analisar casos paradigmáticos, em que se buscavam os princípios transcendentais que poderiam trazer a solução. O jurista deveria buscar reconstruir harmonicamente o ordenamento com base em casos paradigmáticos. No cenário político, ocorre a divisão entre a auctoritas e a potestas. A Igreja toma para si a primeira, enquanto deixa a potestas para o poder real dos Príncipes. O pensamento jurídico assume o caráter dogmático, em que autoridade e razão se misturam para garantir a coercitividade das regras jurídicas. Ao se colocar o rei como personagem central do edifício jurídico, aparece um conceito-chave, que ira dominar a organização jurídica do poder: a noção de soberania. A problemática em torno dessa questão, cinge-se na possibilidade de fundamentação e de limitação do poder soberano. A questão era saber se o direito poderia ser um instrumento de limitação do poder político soberano, ou se estava subordinado a este poder. Na Idade Média, a soberania ainda estava limitada pela ideia de soberania divina, ou seja, de um poder político que encontrara sua fonte e seu limite em Deus. A potestas derivava-se dessa suprema auctoritas. Potestas – Igreja – fundamento divino
Auctoritas – Poder Real 4. Teoria Jurídica na Era Moderna: o direito com ordenação social
O Renascimento marca uma tentativa de resgate do pensamento grego clássico e abandono dos dogmas que estavam consagrados pelo pensamento teológico sagrado. Mas, no período do Direito Racional (1600-1800), diferentemente do pensamento grego clássico, não há a preocupação com a consagração de uma ordem natural, baseada na natureza das coisas. O direito racional se ocupa do problema da produção de ordem social a parir do uso da racionalidade humana. Os modernos pensadores não indagam mais das relações do bem na vida, mas sim de suas condições efetivas e racionais de sobrevivência. Com isso, o direito passa a ser considerado um instrumento para alcançar a harmonia entre os homens e garantir relações sociais estáveis. É a fase de tecnicização do saber jurídico. Têm-se, assim, duas características desse período: a racionalização e a formalização. O traço característico da formalização do direito tem que ver com sua sistematização. Mais que um agregado ordenado de verdades, o sistema pressupõe a correção e o rigor dedutivo em coerência interna indispensável (Christian Wolf). O ordenamento jurídico deve ser visto como um organismo com proposições logicamente relacionadas e um princípio comum que ligas as partes numa totalidade. O sistema é um complexo de regras aplicáveis por dedução. Quando se pensa o direito como um sistema de regras evidencia-se o seu caráter lógico-demonstrativo e a sua estrutura fechada. A teoria jurídica arquiteta uma concatenação de proposições jurídicas que podem ser testadas dentro do sistema, ou seja, que possuem relação entre si e respeitam os princípios do direito natural. Pufendorf é expoente de um momento de transição no desenvolvimento do pensamento jurídico do século XVII. Acentuou o caráter sistemático do processo de secularização do Direito Natural, iniciado com Grotius e Hobbes. Para Pufendorf, o direito possui uma função imperativa e uma função indicativa. Conforme a função indicativa, a norma jurídica apenas mostra o conteúdo da prescrição, mas somente aufere força vinculante pelo seu caráter imperativo. É a necessidade de viver em sociedade que leva o homem a observar o conteúdo do Direito Natural ( socialitas). No entanto, o caráter imperativo do Direito não se confunde com o conteúdo do Direito Natural. É a sanção divina que confere imperatividade à norma jurídica. Com isso, percebe-se na teoria do direito natural de Pufendorf, a conjugação da dedução racional com a observação empírica, ou seja, uma tentativa de relacionar as leis naturais com a realidade social. O sistema do direito natural possui normas absolutas e relativas. As primeiras obrigam independentemente das instituições estabelecidas pelo próprio homem, enquanto as segundas as pressupõem. Com isso, revela-se uma flexibilização do conteúdo do direito natural a partir de um pensamento sistêmico que busca apreender a própria realidade social através de mecanismos empíricos.
O caráter dogmático do direito não é abandonado, mas lhe é conferido uma qualidade de sistema que se constrói a partir de premissas cuja validade repousa na generalidade racional. Com isso, a teoria jurídica passa a ser um instrumento de crítica da realidade e do direito, em nome de princípios éticos reconhecidos pela razão. A teoria jurídica consegue transformar o conjunto de regras que compõem o direito em regras técnicas controláveis na comparação das situações vigentes com as situações idealmente desejadas. O direito passa a ser interpretado a partir de sua funcionalidade. Nesse sentido, a reconstrução racional do direito, que passa a ser entendido como um conjunto, um sistema de enunciados respaldados na razão, adquirindo validade por meio de uma posição divina, põe-se a serviço de um processo de conexão entre dominium e societas, a unidade do Estado e a sociedade, que ocorre entre os séculos XVI e XVII. O domínio do direito legitimado na ideia de razão humana organiza a ameaça da violência e o uso do poder em favor da sociedade política. Contexto político: centralização e burocratização dos modernos aparelhos estatais entre os séculos XVII e XVII. A reconstrução racional do direito, que passa a ser entendido como um conjunto, um sistema de enunciados respaldados na razão, permite que seja fundamentada em bases mais sólidas a obrigatoriedade da obediência. O domínio jusnaturalisticamente legitimado organiza a ameaça da violência e o uso do poder em favor da sociedade política. Nesse ponto, o Estado de Natureza serve como um parâmetro para analisar e compreender o homem civilizado. O entendimento é de que a razão humana é capaz de alcançar por si só alguns princípios naturais para a orientação das condutas dos indivíduos em sociedade. São leis naturais básicas que asseguram as liberdades e a segurança em um meio social. É desenvolvido o constructo do Estado de Natureza, como um estado pré-social, em que os homens ainda não são capazes de agir racionalmente e, portanto, não há mesmo sequer possibilidade de falar sobre ação orientada por certos fins. No Estado de Natureza, segundo Hobbes, há uma constante tensão entre os homens, é a guerra de todos contra todos. Surge, portanto, a necessidade de ordem. Ordem social que somente pode ser obtida por meio do agir racional, por meio da organização da sociedade com base em leis naturais. O direito natural substitui o fundamento ético e bíblico pela ideia natural de Estado de Natureza, de onde se retira os padrões para analisar e compreender o homem civilizado. Elimina o pensamento jurisprudencial como uma busca pelo certo e pelo justo, para conceber o pensamento sistemático como técnica racional de convivência. A razão supera a prudência romana com base em conceitos e valores pré-definidos a partir da avaliação do Estado de Natureza.
Fundamento de validade do Direito: Direito Romano
ordem divina ligada à fundação da cidade de Roma
Direito Medieval Direito Racional
ordem divina transcendental razão humana capaz de distinguir leis naturais para a ordem social
5. Positivação do Direito a partir do século XIX: o Direito como norma posta
No plano político, verifica-se o fortalecimento dos Estados nacionais e o princípio da separação dos poderes. No plano técnico-jurídico, a lei assume o caráter privilegiado de principal fonte do direito e se desenvolve a concepção direito como normas postas. A ideia de soberania nacional demanda um Poder Judiciário independente, sendo-lhe vedada qualquer forma de atuação legislativa. Com isso, quer-se neutralizar o judiciário de toda influência política, dentro dos quadros ideológicos do Estado de Direito. A partir da separação entre política e direito, se dão aparecimento de uma nova forma de saber jurídico: a ciência do direito do século XIX. Importante mudança de paradigma para o pensamento jurídico é representada pela concepção da lei como principal fonte do direito. O direito sempre fora percebido como algo estável, fundamentado na tradição (para os romanos), na revelação divina (na Idade Média) e na razão (na Era Moderna). Ao focalizar a lei no centro das estruturas jurídicas, como fonte máxima de qualquer regulação normativa, o positivismo trouxe para o direito seu caráter mutável. O sentido filosófico de positivação designa o ato de positivar, isto é, de estabelecer o direito por um ato de vontade. O direito é um conjunto de normas que valem por serem postas pela autoridade competente. A positivação requer que todas as decisões valorativas sobre regras e expectativas de comportamento na sociedade sejam filtradas através de procedimentos decisórios antes de adquirir validade jurídica. Escola Histórica: o direito é visto como um fenômeno histórico. Para Savigny, o jurista deve se ocupar do chamado “espírito do povo”. As relações vitais, típicas e concretas que são estabelecidas nos diversos institutos sociais (ex. família, mercado, escola etc.), que são concebidos como totalidades orgânicas, um conjunto vivo de elementos em constante desenvolvimento. As regras jurídicas que são construídas nesses institutos de direito devem ser objeto de análise do jurista, e não as leis abstratamente idealizadas pelo legislador. Importante destacara que o conceito de História é definido como um processo derivado exclusivamente da realização humana, ou seja, da experiência humana que possui um começo, um meio e um fim. Esse processo deveria ser captado pelo historiador a partir de suas regras de formação, de forma objetiva. Do mesmo modo, o direito, como um fenômeno histórico, deveria ser captado pelo jurista. O direito feito, ao cabo desse processo, é o direito vigente.
Portanto, a Escola Histórica desenvolve o processo de sistematização da experiência jurídica, descambando já ao final do século XIX, para o positivismo legal, preocupado com o estudo da lei positiva. Ciência Dogmática do Direito: características do sistema do direito: I) trata-se de um sistema fechado, que não apresenta lacunas. O direito constitui uma totalidade que se manifesta no sistema de conceitos e proposições jurídicas em íntima conexão. As lacunas são apenas aparentes, e devem ser preenchidas por meio de uma atividade interpretativa, e não pela criação de nova lei especial. Obs: Jurisprudência dos Conceitos: escola do Direito que se desenvolve em meio ao processo de sistematização do direito acima referido, e que tem o sistema jurídico como manifestação de uma unidade imanente e acabada. A pirâmide dos conceitos enfatiza o caráter lógico-dedutivo do sistema jurídico, enquanto desdobramento de conceitos e normas abstratas da generalidade para a singularidade. II) é tido como um método para aplicação do direito. Mais especificamente, é o método de subsunção: estabelecimento de uma premissa maior, a qual conteria a diretiva geral genérica, e da premissa menor, que expressaria o caso concreto; a conclusão final é a manifestação do juízo ou decisão. Tópico II Positivismo Científico e Positivismo Jurídico
O Positivismo Científico apresentou um novo modelo de conhecimento para as Ciências Sociais, transpondo para esta os métodos típicos das Ciências Naturais. Nesse sentido, o paradigma dominante, isto é, os métodos aplicados para a produção dos conhecimento deveriam ser objetivos e neutros. Kelsen: o positivismo jurídico normativista O objeto de estudo da Teoria Pura é o direito positivo, isolado de acordo com o modelo proposto pelo paradigma dominante nas Ciências Sociais. Kelsen delimita o fenômeno estritamente normativo, que deve ser o objeto da Ciência do Direito, e se preocupa em descrevê-lo cientificamente a partir da metodologia própria proposta pelo paradigma dominante. O direito possui uma dimensão ou uma parcela situada na dimensão da natureza, ou seja, possui uma interface natural que se revela pela manifestação externa da conduta humana ou por um fato que possui conseqüências naturais (ex. um indivíduo pronuncia um discurso na frente de outro indivíduo que se encontra de pé a sua frente – o processo exterior significa juridicamente que foi prolatada uma sentença). Possui também uma dimensão jurídica relacionada com o significado jurídico de cada ato ou fato.
A norma: o fato externo que possui um significado jurídico é um evento sensorialmente perceptível determinado pela lei da causalidade que rege a natureza. O que transforma esse fato em um fato jurídico não é sua faticidade, mas o sentido objetivo que lhe é concedido por uma norma. A norma fornece significação jurídica para um elemento da natureza, para um fato natural, e o transforma num ato que é objeto do conhecimento estritamente jurídico. O Direito constitui-se como ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regula o comportamento humano. Com o termo norma se quer significar que algo deve ser ou acontecer, busca-se prescrever uma conduta. A norma pode conter um comando diretamente direcionado para uma conduta individual, determinando o comportamento humano singular, assim como pode conferir a outrem o poder de estabelecer normas. O dever é um ato intencional dirigido à conduta de outrem. A norma pode não só comandar, mas também permitir e conferir competência. Norma é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou facultada no sentido de atribuída à competência de alguém. Por isso, a norma se diferencia do ato de vontade, na medida em que ela representa um dever ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser. “A distinção entre ser e dever ser (...). Ninguém pode negar que o enunciado: tal coisa é – ou seja, o enunciado através do qual descrevemos um ser fático – se distingue essencialmente do enunciado: algo deve ser – com o qual descrevemos uma norma – e que da circunstância de algo
ser não se segue que algo deva ser, assim como da circunstância de que algo deva ser não se segue que algo seja.” (p.6) “A conduta estatuída na
norma como devida (como devendo ser), e que constitui o conteúdo da norma, pode ser comparada com a conduta de fato e, portanto, pode ser julgada como correspondente ou não à norma.” (p.7) Sentido objetivo e subjetivo do dever ser: o primeiro expressa que um ato de vontade se tornou conteúdo de uma norma, fornecendo significação a um fato, de modo a torná-lo objetivamente reconhecido como válido. A conduta devida passa a ser obrigatória não apenas do ponto de vista do indivíduo que manifestou sua vontade, mas também para terceiros. O sentido subjetivo diz respeito a todo ato de vontade que intencionalmente se dirige à conduta de outrem. Somente quando tal ato tem também objetivamente o sentido de dever ser é que o designamos como norma. A norma válida, portanto, é aquela em que o ato intencional de vontade que constitui seu sentido subjetivo obteve um sentido objetivo, tornando-se obrigatório independentemente da própria vontade de seu criador. Vigência: é a existência específica de uma norma, expressa quando descrevemos o sentido objetivo ou o significado de um ato de vontade (com o qual uma conduta é preceituada) como válido. A existência de uma norma é diferente da existência do ato de vontade de que ela é o sentido objetivo. A norma pode valer quando o ato de vontade já não existe.
Obs: Kelsen admite um mínimo de eficácia para necessário para a existência de uma norma, como condição mesmo de sua vigência. Importante destacar que essa ressalva representa um rompimento parcial com a ideia de isolamento e neutralização do direito. Ao vincular a existência da norma a um mínimo de eficácia, Kelsen promove uma aproximação entre direito e sociedade, na medida em que condiciona a normatividade à faticidade (aos efeitos da norma no mundo social). Norma e valor: juízo de valor e juízo de realidade Quando a norma estatui uma determinada conduta como devida (no sentido de “prescrita”), a
conduta real (fática) pode corresponder à norma ou contrariá-la. Corresponde a norma quando é tal como deve ser segundo a norma; e contraria a norma quando não é tal como deve ser, por significar uma conduta contrária àquela da norma. Nesse sentido, a norma representa o fundamento para o juízo de validade. Na medida em que as normas são estabelecidas por atos de uma vontade humana, os valores através dela constituídos são arbitrários. Aqui Kelsen completa a relação entre o sentido objetivo e o sentido subjetivo do dever ser, ressaltando que a norma é composta por u ato de vontade arbitrário, ou seja, que é capaz de vincular qualquer ordem sem ter que obedecer a qualquer tipo de valor préestabelecido. O primeiro é um juízo que verifica se uma conduta real corresponde a uma norma considerada como objetivamente válida; o segundo não faz qualquer referência a uma norma objetivamente válida, mas enuncia que algo é ou como algo é. A conduta real a que se refere o juízo de valor e que constitui objeto de valoração (tem um valor positivo ou negativo) é um fato da ordem do ser, existente no tempo e no espaço. A vigência de uma norma que prescreva uma conduta como obrigatória, bem como o valor por ela constituído, não exclui a possibilidade de vigência de uma oura norma que prescreva a conduta oposta e constitua um valor oposto (ex. N1 protege o valor vida quando proíbe o homicídio; N2 excepciona N1 em circunstâncias de legítima defesa ou de estado de necessidade). As normas criadas pelos homens são arbitrárias e apenas possuem valore relativo. Isso significa que o valor que constitui a norma não é determinante de sua vigência, não é condição para sua validade normativa, mesmo porque é arbitrário (deriva de uma escolha feita pelo homem). Ordem social: ordem normativa que regula a conduta humana na medida em que ela está imediata ou mediatamente em relação com outras pessoas. Sua função é obter uma determinada conduta por parte daquele a que esta ordem está subordinado ou obter a omissão de uma conduta que é considerada socialmente prejudicial. O fator motivador para obter essa ação ou omissão é a própria norma, a partir da sanção por ela prevista para o caso de seu descumprimento. As ordens sociais podem ser distinguidas conforme o modo como as ações humanas são prescritas ou proibidas. A ordem jurídica prescreve uma determinada conduta precisamente pelo
fato de ligar a uma conduta oposta algum tipo de desvantagem, ou seja, uma pena no sentido mais amplo da palavra. Uma determinada conduta somente pode ser considerada como prescrita quando a conduta oposta é pressuposto de uma sanção. O ser-devida da sanção contém o serproibida da conduta que é o seu pressuposto específico e o ser-prescrita da conduta oposta. A ordem jurídica: o direito é uma ordem coativa porque reage contra as situações perniciosas (condutas ilícitas) com um ato de coação que assume o caráter de sanção. O direito exige uma determinada conduta como devida na medida em que atribui para a conduta oposta uma sanção. O princípio da imputabilidade: a sanção é o elemento distintivo do direito enquanto ordem social. É aquilo que se imputa enquanto conseqüência jurídica de uma conduta proibida. Está na ordem do dever ser – é aquilo que é devido na estrutura normativa. É a ordem jurídica que regula taxativamente as condições sob as quais a coação será exercida e por quais órgãos deverá ser aplicada. Garante um mínimo de liberdade, ou seja, o direito regula a conduta humana não somente no sentido positivo – quando prescreve uma determinada conduta ao ligar um ato de coação à conduta oposta – mas também no sentido negativo – nos casos em que não liga um ato de coerção a uma conduta, isto é, quando não proíbe esta conduta e nem prescreve a conduta oposta (é a conduta juridicamente permitida).