O corpo é espetáculo: As personas e a estética contemporânea1 Julio César Sanches2 Renata Pitombo Cidreira3 Resumo: Esta comunicação apresenta algumas reflexões sobre o conceito de Barroquização do mundo contemporâneo apresentado por Michel Maffesoli, em seu livro, No fundo das aparências. A partir dos pressupostos teóricos de uma barroquização do mundo na pósmodernidade, refletiremos sobre o papel das personas e da teatralidade de um corpo social e suas implicações nas identidades culturais. A partir disso, compreendemos que os meios de comunicação de massa são agentes primordiais para a mediação e consolidação de valores hedonistas e narcisistas, sendo eles, apresentados como elementos exponenciais da aparência na contemporaneidade, que denominam o corpo num espetáculo cotidiano, atribuindo às identidades contemporâneas uma reprodutibilidade técnica corporal. Palavras-chave: estética – corpo – aparência – pós-modernidade – comunicação de massa Michel Maffesoli é um dos teóricos da contemporaneidade que apresenta o cotidiano como elemento primordial para analisar os fenômenos urbanos. O caráter holístico das considerações de Maffesoli demonstra a necessidade de se pensar as singularidades presentes nas relações sociais da atualidade. Feito isso, o autor nos apresenta conceitos que giram em torno do homem e dos seus conflitos existenciais contemporâneos. Em seus livros: No fundo das Aparências (1996) e O tempo das Tribos (1998), Maffesoli procura demonstrar como as formatações sociais contemporâneas ancoram as novas formas de socialidade do corpo. O pensamento de Maffesoli está impregnado por uma concepção fenomenológica do corpo, onde se apresentam diversas formas de existência corporal. Assim, compreendemos que o estar junto faz parte do jogo das experiências contemporâneas, e nessa ambience corpo individual e corpo social se entrelaçam. Além disso, o estar junto apresenta a dinâmica corporal dos sujeitos, que se constituem como possuidores de personas capazes de transitar em diversas esferas sociais e culturais.
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Trabalho apresentado no X Seminário Internacional da Comunicação, de 3 a 5 de Novembro de 2009, na Pontifícia Universidade Católica – PUC/RS. 2 Graduando do curso de comunicação social da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), integrante do grupo Corpo e Cultura do Centro de Artes, Humanidades e Letras da UFRB, bolsista de políticas afirmativas da PROPAAE/UFRB.
[email protected] 3 Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professora adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Autora do livro Os sentidos da moda (Annablume, 2005) e líder do grupo de pesquisa Corpo e Cultura.
[email protected]
No interior das relações sociais analisadas por Maffesoli, é possível detectar o que ele conceitua como barroquização do mundo contemporâneo. Como sabemos, o Barroco foi uma escola da arte, literatura e também esteve presente na religião, e estava pautado num conflito entre os desejos terrenos e divinos, contendo o sagrado e o profano como elemento basilar da concepção de vida. Desta forma, o Barroco estava inscrito num processo de trânsito polar, sendo o conflito existencial o principal motor de regência da vida no século XVII. Nas relações pós-modernas, o autor identifica um processo de barroquização, que se encontra na superexposição do corpo individual, mas essa superexposição está ligada a um grupo onde esse corpo individual está inserido. Consequentemente, o corpo individual estará inscrito numa lógica do corpo social – grupo, tribo ou sociedade – em que o estar junto é um dos elementos formadores da aparência e da teatralidade do corpo assumido no cotidiano. Ao que parece existe uma lógica imaginária e cultural que rege as relações socais e as formas de apresentação dos corpos nas sociedades ocidentais, já que Maffesoli objetiva a sociedade ocidental como referencial para seus estudos. Ao pensarmos o corpo como objeto de apreciação estética podemos estabelecer uma analogia com a cultura pop, já que ela exemplifica a barroquização contemporânea, assim como as teatralidades assumidas pelo corpo, no caso do comportamento Kitsch e Camp. Pensar o corpo em constantes atos performáticos é associá-lo ao fluxo de interatividade cultural presente nas sociedades da informação, em que a mediação dos meios de comunicação implica numa reprodução de valores contraditórios e demarcados como exponenciais no processo de constituição das identidades culturais contemporâneas. A performação é um exemplo que está no cotidiano dos sujeitos através das personas, que são representadas, incorporadas e apresentadas num corpo individual ou social, consagrando assim, a barroquização contemporânea do corpo e da aparência, sendo estas, as características do ‘corporeísmo’ como afirma Maffesoli. Nesse sentido, é possível considerar a existência de um deslocamento do corpo material para uma virtualidade massificada pelos meios de comunicação de massa, inseridos no que se cunhou como Indústria cultural. O trabalho de Walter Benjamin (2000) apresenta a concepção de reprodutibilidade técnica da arte através dos meios de comunicação de massa. Pensar numa reprodutibilidade técnica corporal é compreender o corpo e a aparência como meios de libertação das barreiras dos espaços sociais para além do espaço/tempo, além de
vislumbrar que as identidades culturais fazem parte de uma teatralização da vida contemporânea. O corpo e as personas A ambiência do corpo na interação cultural e social é constantemente transformada pela aparência. Os aparatos tecnológicos, culturais e estéticos desenvolvem no corpo um dos elementos primordiais do sujeito: o comportamento. Assim, o comportamento assegurado ao corpo é representado e apresentado pelos valores simbólicos compartilhados entre os sujeitos formadores de núcleos do corpo social. Entende-se como corpo social um grupo de pessoas que compartilham de valores, representações e subjetividades que criam laços afetivos entre si. Desse modo, um corpo social está inserido numa relação dialética com os corpos individuais e assim as identidades ganham o caráter de efemeridade, tornando-se fragmentárias e fluidas. O corpo individual contemporâneo ao ser confrontado com o processo de socialidade compõe seu valor simbólico e material através da identificação e do grau de pertencimento a determinados grupos ou tribos.
A pessoa (persona) representa papéis, tanto dentro de sua atividade profissional quanto no seio de diversas tribos de que participa. Mudando seu figurino, ela vai, de acordo com seus gostos (sexuais, culturais, religiosos, amicais) assumir seu lugar, a cada dia, nas diversas peças do theatrum mundi (MAFFESOLI, 1998, p.108).
O corpo individual engrossa a massa formadora do corpo social a que ele pertence, atribuindo o caráter de comunhão entre indivíduo e grupo. Maffesoli acredita que a aparência na contemporaneidade está pautada na exibição do corpo, porém, esse corpo quer estar inscrito num grupo que o reconheça. O autor ainda ressalta que a aparência corporal está inserida numa relação dialética, que marca os corpos individuais através da teatralidade para que esses sujeitos façam parte de uma lógica tribal. Dessa forma, a composição corporal individual é encoberta pela massificação do comportamento do grupo ou tribo que ele pertence, onde existe a “aparição do próprio corpo e desaparecimento no corpo coletivo” (MAFFESOLI, 1996, p.180). A barroquização do corpo contemporâneo é pautada no conflito do corpo individual mostrado como detentor de singularidade, forma e estética única, além da presença da massificação dos valores – moda que aglutinam os corpos individuais num corpo coletivo, que só tem sentido num estar junto. Então, a barroquização pode ser entendida como um processo ambivalente do sujeito e da aparência, sendo o corpo
individual objeto de desejo e glorificação do sujeito, mas a necessidade de reconhecimento e adesão pelos pares surge como contraponto, estabelecendo certos elos que configuram uma tribo. Esse processo de aparição e desaparecimento representa a barroquização do mundo contemporâneo, e é apresentado pelo autor como componente presente no decorrer do processo histórico formador das sociedades ocidentais. É desse modo, que as formatações do corpo social contemporâneo reproduzem lógicas que foram utilizadas no percurso da história da humanidade. A barroquização traz à tona as implicações do corpo e as múltiplas personas, que são utilizadas para sedimentar e dinamizar as relações sociais, e a partir disso, é possível acionar a ideia de estar junto. Ela deve ser compreendida como uma constante variável. Constante por ser a força motivadora das relações e junções comunitárias ou tribais, e é variável por não possuir um direcionamento assegurado aos sujeitos, assim a barroquização necessita de um estar junto dos corpos.
Agora, cada vez mais, nos damos conta de que mais vale considerar a sincronia ou a sinergia das forças que agem na vida social. Isso posto, redescobrimos que o sujeito não pode existir isolado, mas que ele está ligado, pela cultura, pela comunicação, pelo lazer, e pela moda, a uma comunidade, que pode não ter as mesmas qualidades daquelas da idade média, mas que nem por isso deixa de ser uma comunidade (MAFFESOLI, 1998, p.114).
Portanto, as relações sociais construídas no corpo coletivo têm potencial de gerar o estar junto, em que o corpo se configura na necessidade sensível de se enlaçar nas diversas formas de pertencimento. Consequentemente, surgem as distinções entre sujeito-pessoa, sendo o sujeito entendido como unidade interior, capacitado a expressar sentimentos, e a pessoa como objeto exterior, exposto às circunstâncias sociais. Os sujeitos na visão de Maffesoli são arquétipos que fomentam as criações coletivas, enquanto a pessoa é participante das encenações sociais que integram a sociedade. É a partir daí que as personas se constituem como agentes da representação imagética dos corpos coletivos, ou seja, dos grupos, tribos ou comunidades contemporâneas. Tais representações buscam nas máscaras os meios de apresentar sentimentos, afetos e formas que são parte de conhecimentos e valores tribais sempre impregnados de uma carga simbólica significativa.
Esses fatores formam a relação dialética do corpo individual/corpo social, ambos pertencentes aos modelos de barroquização do mundo. Sendo eles percebidos e reconhecidos numa relação intrínseca e mutante, por comungar de desejos ambíguos e escorregadios. Podemos afirmar que:
É nesse sentido que a linguagem do corpo que se mostra, que se veste, e a moda vestimentária, de linguajar, costumeira, que lhe servem de vetor, não tem nada de frívolo. Ou, mais exatamente, pode-se dizer que essa frivolidade é o indício mais claro de uma nova lógica de estar – junto que está se colocando no lugar (MAFFESOLI, 1996, p181).
Assim sendo, a barroquização é um processo que a contemporaneidade vive através do culto ao corpo e à aparência, numa lógica hedonista da moda como agente fundamental do sentido da vida. Nesse contexto, o estar junto se conforma com o abandono de ideais individualistas em prol de uma coletividade de sentidos e valores, apresentados como paradoxais para a cultura de consumo global. Assim, é na aparência que os processos de uma barroquização do mundo se exprimem, onde “o primeiro constituinte da aparência tem relação com as modalidades simbólicas de organização sob a égide do pertencimento social e cultural do ator” (BRETON, 2007, p.77). A contemporaneidade sendo marcada pela efemeridade da aparência torna a moda um dos elementos primordiais do processo de reconhecimento dos grupos e, as representações desses corpos passam a ser indissociadas da relação corpo – aparência – moda. Os grupos ao adotarem os modelos de exacerbação dos valores de corpo coletivo, vivem da teatralidade que adquirem a partir da dinâmica proposta pela moda, instaurando assim, o que Maffesoli chama de ‘narcisismo coletivo’. O narcisismo coletivo pode ser pensado como a representação dos valores constituintes do corpo – aparência – moda que nas grandes cidades é detectado com facilidade, já que os meios de comunicação de massa são fortes agentes propagadores dos valores capitalistas da sociedade de consumo. Maffesoli refina suas análises ao detectar a necessidade de estudar o cotidiano como um ponto interessante da comunicação corporal apresentada por essas socialidades do corpo. Para o autor, a forma corporal torna-se objeto de valorização do narcisismo de grupo, dando forma ao ‘corporeísmo’ adorado pelo corpo coletivo. As configurações contemporâneas da aparência demonstram diversos aspectos que evidenciam as análises de Maffesoli, exemplo disso é a cultura pop com seus apelos à
exacerbação da aparência barroca e a sua midiatização que proporciona uma supervalorização do corpo.
Cultura da aparência e tribos pós-modernas A contemporaneidade é marcada pela ascensão da cultura de consumo. Os meios de comunicação são agentes primordiais para a mediação e consolidação de valores que refletem os estágios das relações sociais. Com isso, os arranjos sociais possuem dinâmicas que em muitos casos podem ser consideradas contraditórias (ou até mesmo, barrocas). A cultura como ponto de reconhecimento e identificação do sujeito torna-se um ambiente propício para uma avalanche de personas, e estas, são as principais ferramentas para a fluidez das identidades e de suas representações. Stuart Hall (2006), em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade, indica o processo de globalização como elemento primordial para o surgimento de novas formas de cimentos sociais, já que as identidades foram deslocadas pelas circunstâncias e descobertas científicas. Assim, os fenômenos atuais podem ser avaliados a partir de deslocamentos ocorridos nos campos simbólicos, lingüísticos, representativos e imaginários do contexto sociocultural. Deste modo, é possível considerar a existência de uma fragmentação das concepções de identidade devido à multiplicidade de valores – e personas como diz Maffesoli –, que indicam intersecções nas identificações dos sujeitos. Assim sendo, a atualidade é capaz de demonstrar com mais ênfase a dança das personas em torno da identidade cultural e de suas representações ancoradas no imaginário coletivo.
Em entrevista ao jornalista Juremir Machado da Silva, Maffesoli comentou a relação entre imaginário e cultura. Para o autor “O imaginário é uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável (...) não se reduz à cultura. Tem certa autonomia” (SILVA, 2001, p.75). Ao abordar o imaginário coletivo, Maffesoli demonstra os mecanismos que determinam as construções afetivas das pessoas na contemporaneidade. Já o papel da cultura é o de determinar descrições dos fenômenos sociais. Disse Maffesoli:
A cultura pode ser identificada de forma precisa, seja por meio das grandes obras da cultura, no sentido restrito do termo, teatro, literatura, música, ou, no sentido amplo, antropológico, os fatos da
vida cotidiano, as formas de organização de uma sociedade, os costumes, as maneiras de vestir-se, de produzir, etc. (idem, p.75).
Portanto, a fragmentação das identidades detectada por Hall pode ser avaliada como o processo de mudanças no imaginário coletivo que desenvolve alterações perceptíveis nas manifestações e representações culturais. O imaginário, ao que parece, faz parte das construções sociais que formam e desenvolvem relações capazes de agregar as pessoas em afinidades e identificações. Consequentemente, o imaginário não pode ser compreendido como elemento individual, mas sim coletivo. Assim, o imaginário ganha relevância no cotidiano. Como ressalta Maffesoli “O imaginário é o estado de espírito de um grupo, de um país, de um Estadonação, de uma comunidade, etc. O imaginário estabelece vínculo. É cimento social. Logo, se o imaginário liga, une numa mesma atmosfera, não pode ser individual” (SILVA, 2001, p.76).
No decorrer do século XX vimos uma explosão de artefatos, bens culturais e produções da emergente cultura de consumo. Os meios de comunicação nas décadas de 50 e 60 demonstram as novas concepções de arte e comportamento apresentados por muitos artistas da época que estavam embebidos dos movimentos de contracultura. Surgem os movimentos hippies, punks e etc. Esses grupos marcam a ascensão de uma estetização da vida que sinaliza novos comportamentos e uma crescente exacerbação de valores hedonistas e narcisistas fundando o tribalismo contemporâneo. Esses movimentos atrelados ao fenômeno cultural da moda4 desenvolvem a produção de significados que ancoram ainda mais o imaginário nas relações dos grupos. A moda torna-se o elemento primordial para a aquisição dos valores da tribo, grupo ou comunidade na qual os sujeitos se identificam. O papel de ligação afetiva dos sujeitos encontra na aparência um campo de aglutinação dos corpos individuais num corpo coletivo, que é capaz de agregar os sentidos estéticos do imaginário e as normas da cultura.
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Ver CIDREIRA. Renata Pitombo. Estilo, Moda e Consumo (por uma poética do precário?) trabalho apresentado no V ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, nos dias 27, 28 e 29 de maio de 2009. Faculdade de Comunicação/UFBA. Salvador – Bahia – Brasil. Disponível em: http://www.cult.ufba.br/enecult2009/19637-4.pdf acessado em 21 de setembro de 2009.
Na influência mútua da aparência, a figura do estar junto surge a partir do conceito de ‘aparência’ dada aos sujeitos integrantes do grupo, em que a identificação da estética corporal delimita/expande o campo de ação da identidade tribal, assim, a aparência torna-se a principal ferramenta da identificação das (nas) tribos. O estar junto se configura na necessidade de convivência dos pares, onde as tribos e os seus membros tornam-se comuns uns aos outros. É nesse convívio tribal que nasce uma ética da estética. “A aparência social seria, assim, objetividade habitada por subjetividades em constante interação” (MAFFESOLI, 1996, p.177). As relações tribais partem de uma configuração representacional, que demonstra as relações imaginárias e culturais desembocando numa estetização, que consagra a barroquização do mundo contemporâneo. Desse modo, podemos pontuar que a cultura contemporânea passa por alguns processos dinâmicos que exaltam a imagem dos corpos nos meios de comunicação. “A imagem serve de pólo de agregação às diversas tribos que formigam nas megalópoles contemporâneas” (VILAÇA, 2007, p.148). As figuras midiáticas são participantes ou fundadoras de tribos pós-modernas, exemplo disso, são as personalidades midiáticas que surgem a partir de um diferencial em relação aos outros; essa diferença se configura na aparência, seja considerada inovadora, exótica ou até mesmo esdrúxula. O mecanismo de aproximação dos corpos na aparência se concretiza no olhar e na identificação, que enlaça os corpos, compactando-os em tribos e grupos, assim, o corpo é objeto de preocupação estética, moral e até mesmo sexual5. No julgamento da aparência David Le Breton diz:
O homem mantém com o corpo, visto como seu melhor trunfo, uma relação de terna proteção, extremamente material, da qual retira um benefício ao mesmo tempo narcíseo e social, pois sabe que, em certos meios, é a partir dele que são estabelecidos os julgamentos dos outros (BRETON, 2007, p.78).
Desse modo, o relacionamento das personas com o corpo é abertamente efêmero, pois a aparência ganha o caráter mutante. Assim, a metamorfose cultural da moda transfere para o corpo o caráter de uma aparência frívola, mas essa mutação não é superficial, pois o momento caracteriza o uso dos signos do grupo a partir de 5
Aqui, me refiro às marcas corporais como inscrições de gênero e sexualidade. Ver LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e Teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. Sobre estética e comportamento subversivo ver SANCHES, Julio César. Corpos (des) feitos e identidades (des) construídas: a estética e o comportamento não heteronormativo. In: cadernos de programação e resumos do I Seminário Enlaçando Sexualidades. Salvador: EDUNEB, 2009.
determinados lugares que estão enraizados na cultura e no imaginário coletivo. Como disse Maffesoli: “(...) o neotribalismo é caracterizado pela fluidez, pelos ajustamentos pontuais e pela dispersão. E é assim que podemos descrever o espetáculo da rua nas megalópoles modernas. (...) Através de sucessivas sedimentações constitui-se a ambiência estética da qual falamos” (MAFFESOLI, 1998, p.107). A reprodutibilidade técnica do corpo Ao tratarmos de contemporaneidade estamos envoltos na presença marcante dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural que constitui o modus vivendi da sociedade de consumo. A avalanche de imagens propagadas na mídia torna o corpo objeto de reprodução através dos canais midiáticos, dessa forma, existe uma banalização da imagem do corpo. Como indica Nízia Villaça
A velocidade da circulação das imagens, contemporâneo, provoca uma discussão sobre a crise da representação, perda dos fundamentos, e se valoriza novamente o corpo e seu modo de apresentar-se na busca de uma identidade social num momento de comunicação mundial (VILLAÇA, 2007, p.137).
A crise da ideia de representação evidencia o fenômeno das personas na vida cotidiana. E, os meios de comunicação mediam as socialidades das tribos contemporâneas, onde o corpo busca o apresentar-se e o representar-se mesmo que de forma efêmera e inconstante como é o caso da aparência barroca pós-moderna. Stuart Hall (2006) diz que “a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (p.13). Assim, as identidades não conseguem dar conta das epifanias teatrais proporcionadas pelas personas, ou seja, os corpos ao serem reproduzidos nos meios de comunicação passam por uma reprodutibilidade técnica Benjaminiana associada às personas. Fotografias, vídeos, clips, outdoors, moda e produtos personalizados, tudo isso leva a uma massificação de personagens presentes na cultura tribal pós-moderna. Walter Benjamim (2000) ao falar da reprodutibilidade técnica utiliza a arte como objeto de argumentação. O autor acredita que os meios de comunicação de massa ao reproduzirem objetos, artefatos, telas e técnicas de arte retiram a aura canônica que sempre esteve envolta ao universo artístico. A partir daí, os meios de comunicação popularizam certos valores que sempre estiveram atrelados à ideologia burguesa, fazendo com que essa aura canônica da arte seja desintegrada e resignificada em diversos aspectos e espaços sociais.
Benjamim acredita numa revolução cultural que crie novas auras – essas sendo utilizadas de formas libertadoras e dinâmicas –, capazes de propagar novos olhares sobre a arte e a sua relação com a sociedade de massa. A teoria Benjaminiana na década de 1960 já decretava a ruptura de certos paradigmas relacionados aos meios de comunicação. Para o autor, esses meios são agentes primordiais para a consolidação e propagação de ideologias que demarcariam mudanças históricas nas concepções da comunicação e da estética. Figuras como Marilyn Monroe, Elvis Presley e Michel Jackson, além de estrelas do cinema hollywoodiano vivem no cotidiano das grandes cidades como referências de vida e comportamento. Esse fenômeno pode ser considerado como o início de uma reprodutibilidade técnica do corpo que se ancora no estar junto, já que esses personagens estão presentes em diversas representações da cultura contemporânea. Além disso, como ressalta Cidreira (2005), principalmente entre os jovens, observa-se uma certa tranquilidade em acolher, adorar e abandonar certos objetos-signos ou mesmo certos stars-signos. Se o que importa acima de tudo é estar-junto, partilhar certos gostos, hábitos, comportamentos, estes podem ser atribuídos a um objeto ou pop-star que atuará, funcionará, a sua maneira, como vetor de agregação, uma vez que conservará em si a mesma estrutura formal capaz de atrair adeptos (p.129).
A partir dessa concepção de uma reprodutibilidade técnica, capaz de mudar o imaginário e a cultura, iniciaremos o debate sobre corpo e as formas como ele está sendo reproduzido e resemantizado na mídia contemporânea. Gilles Lipovetsky (1989) ao falar da cultura na atualidade destaca o papel dos meios de comunicação de massa como agentes socializadores dos sujeitos. Para ele, a cultura vive abastecida de valores da moda-mídia, que consagram personagens e representações como figuras exponenciais da cultura. Ou seja, a cultura contemporânea cria ídolos para certa adoração e veneração dos comportamentos, aparências e dos valores que regem o imaginário e as relações sociais que se constituem. A cultura de consumo, como indicou Lipovetsky, é uma construção do artifício onde o corpo é palco do estrelismo e protagonismo da aparência – moda. Lipovetsky acredita que a cultura contemporânea pode sacralizar o ‘pseudo – indivíduo’ por estar inscrita num modelo de instantaneidade dos sentidos e dos prazeres. Para o autor a indústria cultural pode ou não massificar modelos de vida que estão inseridos nos moldes da uma lógica de consumo exacerbada, assim, o corpo – aparência – moda
estaria imerso pela ideologia do capitalismo. As reflexões de Lipovetsky são interessantes para associarmos o papel dos sujeitos nessa lógica da aparência contemporânea, e, inserirmos a cultura como representação do corpo individual fazendo parte de um corpo coletivo que dissemina valores – moda. Mas, seguindo o pensamento de Maffesoli a cultura de massa desencadearia o vaie-vem de valores e possibilidades das personas, ocorrendo assim, o travelling (mudanças das máscaras, concepções e valores de forma rápida, instantânea) entre tribos e grupos. A cultura contemporânea é a representação da aparência do corpo que Maffesoli tanto exemplifica. O cotidiano apresentado pelo pop, seja na arte, na música ou na literatura, ressalta a vivência do aqui e agora, onde o momento é o grande ápice do ‘presenteísmo’ e que esse período jamais estará desligado da presença inquietante do corpo. Consequentemente, a aparência é fundamental para a propagação dos valores do corpo coletivo, e assim, os corpos individuais tornam-se estandartes da valorização da forma corporal e da glorificação do prazer. A particularidade desse hedonismo é que, tendenciosamente, ele é coletivo: o corpo que se mostra é, nas suas diversas modulações um corpo coletivo. Corpo que come e que toca junto, corpo que canta e dança em coro, corpo que se ornamenta para as festas coletivas, corpo, enfim, que se epifaniza em telas de televisão (MAFFESOLI, 1996, p.184) (grifo do autor).
O ‘narcisismo de grupo’ assinalado por Maffesoli faz do corpo o que Jean Baudrillard chamou de corpo narcísico, em que o corpo e a aparência “são inseparáveis e estabelecem por si sós a nova ética da relação ao corpo” (BAUDRILLARD, 2007, p. 139). Desse modo, existiria para Maffesoli uma ‘ética da estética’, que conduz os caminhos do corpo – aparência – moda para um hedonismo momentâneo e sacralizador de valores do corpo social em diversos espaços constituidores da sociedade de consumo. Baudrillard afirma que o maior objeto de consumo da contemporaneidade é o corpo. “O corpo não é a própria evidência? Parece que não: o estatuto do corpo é um fato de cultura. (...) o modo de organização da relação ao corpo reflete o modo de organização da relação às coisas e das relações sociais” (p.136). Baudrillard, assim como Maffesoli, corrobora a ideia de que o corpo ao ser socializado ou resignificado pela dinâmica cultural contemporânea se transmuta a partir de objetos e artefatos.
A reprodutibilidade de um corpo, associado aos valores-moda da cultura midiática contemporânea marcam os pensamentos de Maffesoli, Baudrillard e Lipovestsky. Porém, somente em Maffesoli, encontramos o papel do imaginário na construção das relações sociais e dos corpos. Diferentemente dos outros teóricos da pósmodernidade, Maffesoli coloca o cotidiano e suas facetas como elementos primordiais para a compreensão do imaginário e das relações estéticas apresentadas pela transmutação e reprodução dos corpos. Os valores apresentados na mídia para Maffesoli não ganham o papel imperativo e normativo, para ele, os sujeitos são protagonistas de suas autoconstruções corporais, imagéticas, identitárias e sexuais. A barroquização do mundo surge como necessidade de convivência e identificação, onde o individualismo não tem existência e autosustentação. Desta forma, a cultura da reprodutibilidade triunfa sobre pensamentos conspiratórios e normativos em relação ao corpo e a aparência.
Lady Gaga – No fundo das aparências É no corpo e através do corpo que as marcas culturais sem inscrevem como formas de poder e teatralidade. Um exemplo que ilustra a teatralidade contemporânea é a música pop, sendo ela marcadamente reconhecida pela estetização das cantoras, que são consagradas pela sociedade de consumo. No ano de 2008 uma cantora estadunidense denominada Lady Gaga surgiu no rol da música pop internacional; suas canções são embaladas por toques eletrônicos e tornaram-se grandes sucessos. A fama da cantora foi tamanha que em 2009 ela foi consagrada com 9 indicações e 3 premiações no Vídeo Music Awards – VMA oferecido pelo canal de televisão Music Television MTV.
(Foto de Lady Gaga – Roupas exóticas e look diferente. Fonte: Site Oficial da cantora).
Irreverência, sensualidade, teatralidade e aparência exótica – muitas vezes considerada Kitsch ou até mesmo Camp –, essas são algumas das características da persona da cantora pop Lady Gaga. Ao relacionarmos a aparência da cantora com o termo Kitsch estamos associando os aspectos visuais que causam a prefiguração do efeito que Marcelo Coelho indica ao referenciar o texto “vanguarda e Kitsch” de Clement Greenberg. “O kitsch, portanto, já traz em si as interpretações, as conclusões, as mensagens a serem absorvidas pelo espectador. Oferece-as prontas; de algum modo, prescreve e orienta as reações do público” (COELHO, 2006, p.163-164).
(foto do clip Poker Face do álbum The Fame em 2008. Fonte: Site oficial da cantora). O termo Camp comumente está relacionado à teoria queer6como indica Denílson Lopes. Essa terminologia mesmo inclusa na cultura brasileira é de difícil tradução. O autor ao utilizar esse conceito o relaciona com a estetização da vida, ou seja, o Camp vê o mundo com um teatro em que suas representações são cotidianas e, são sempre relacionadas ao exagero de características estéticas que consagram o corpo e a aparência como modus vivendi. Assim, o Camp pode ser relacionado ao uso constante de personas que demonstrem de forma exacerbada o caráter de artificialidade e efemeridade do corpo. Para o Camp “a aparência do vestuário faz do próprio corpo algo indeterminado, indefinido, fluido” (LOPES, 2002, p.95).
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Para compreender o termo queer ver COLLING, Leandro. Teoria queer (Verbete). In: Mais definições em trânsito. Salvador: FACOM/UFBA, 2007. CD-ROM. Para ter acesso os pressupostos teóricos dessa abordagem MISKOLCI, Richard. A teoria queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Revista Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan/jun, 2009, p.150-182.
(Capa da Revista Rolling Stone U.S.A de junho de 2009. Fonte: Site oficial da Revista). A reprodutibilidade técnica do corpo de Lady Gaga está completamente fixada na sua aparência – muitas vezes queer, no uso mais enfático do termo –, que adquire o caráter de estranheza para padrões culturais de beleza vigentes. Ao conhecermos a aparência da cantora Lady Gaga percebemos a ação de valores estéticos e poéticos presentes em seu look. A participação do sujeito na constituição do look é assinalada por Renata Pitombo Cidreira:
A personalização que assistimos hoje no universo da moda advém justamente da descoberta da possibilidade de ‘modelização’ do produto. Podemos afirmar que tal possibilidade é, na verdade, a radicalização da potencialidade que reveste todo “ato de vestir”. O próprio fato de que a adoção de uma vestimenta se dá num corpo, de que esta presença corporal reveste a veste e que o corpo modela a forma que a roupa assume, exibe a dinâmica performativa do “ato de vestir” (CIDREIRA, 2008, p.11-12).
Assim, a aparência demanda de processos formativos (e até performativos) que revelam a autonomia (e em alguns casos submissão) das personas em sua construção. Desse modo, podemos pontuar que a persona Lady Gaga está inclusa no sistema dialético da moda, que consagra uma estilização e estetização do corpo. Os aspectos teóricos aqui levantados a partir do pensamento de Maffesoli demonstram o envolvimento dos corpos nas relações de vinculo afetivo e emocional e,
se sustentam numa lógica da aparência tribal. O corpo de Lady Gaga ao ser reproduzido na mídia divulga valores estéticos do estar junto proferido. Nos videoclipes das músicas Poker Face, Paparazzi e Just Dance ambas do álbum The Fame do ano de 2008, Lady Gaga e seus dançarinos apresentam reiterações da aparência das tribos pós-modernas. A vestimenta nessas obras ganha o caráter de identificação e barroquização, já que em certos momentos dos vídeos, os corpos individuais parecem comungar de valores tão poderosos que não é possível dissecá-los. A dança e o ritmo musical nos impõem sensações capazes de compreender o envolvimento dos corpos no que Michel Maffesoli apontou como nebulosa afetual, que é: (...) Uma tendência orgiástica, ou como já assinalei dionisíaca. As explosões orgiásticas, os cultos de possessão, as situações fusionais existiriam desde sempre. Mas às vezes eles assumem aspectos endêmicos e tornam-se preeminentes na consciência coletiva. (...) o que nos parece ser uma opinião individual é, de fato, a opinião de tal ou qual grupo ao qual pertencemos (MAFFESOLI, 1998, p.106). Portanto, é possível compreender que a cultura pop está impregnada de valores da barroquização do mundo contemporâneo, onde o corpo que se mostra é um corpo coletivo, que é reproduzido através dos meios de comunicação de massa, sendo esses utilizados para divulgar estilos de vida baseados numa estetização hedonista e na maioria dos casos narcisista. No fundo das aparências pós-modernas é possível detectar a consolidação de sentimentos, valores e modos de vida que unem os corpos numa dança frenética pelo desejo de estar junto, onde é possível compreender a metáfora que diz: “ninguém é uma ilha”, logo, as redes sociais se fortalecem de sentidos e sentimentos que regem o imaginário e a cultura contemporânea. Os fenômenos que ocorrem na atualidade ganham o caráter estético já que Maffesoli compreende o termo como “a faculdade comum de sentir, experimentar” (ibidem, p.103).
Experimentações, sentimentos e
convivências, esses são os elementos que constituem o cimento social das tribos pósmodernas, em que o corpo é o grande agenciador do espetáculo.
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