ROGÉRIO CARVALHO
O ARRANJO VOCAL DE CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA: VILLA-LOBOS, OS CARIOCAS E MARCOS LEITE
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Música, área de concentração: Com posição.
Orientação: Prof. Dr. MARCOS VINÍCIO CUNHA NOGUEIRA
Rio de Janeiro 2009
Esta obra é dedicada à minha amada filha Melissa. Parafraseando Beto Guedes, “O meu ”. pequeno grande amor ”.
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Esta obra é dedicada à minha amada filha Melissa. Parafraseando Beto Guedes, “O meu ”. pequeno grande amor ”.
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Agradecimentos Ao meu orientador, Prof. Dr. Marcos Nogueira, por sua competência acadêmica e profissional, pelas inúmeras horas dedicadas à leitura l eitura e discussão dos textos, pelas criteriosas observações e, sobretudo, por sua extrema gentileza e generosidade. generosidade. Ao programa de pós-graduação da Escola de Música da UFRJ, na pessoa do Prof. Dr. Marcelo Verzone, pelo suporte logístico durante os congressos. À Profa. Dra. Maria José Chevitarese, por ter aceitado o convite para participar como membro da banca em meu Exame de Qualificação. Aos Profs. Drs. José Alberto Salgado e Carlos Alberto Figueiredo, pela participação como membros da minha banca de defesa. À CAPES pelo suporte financeiro imprescindível para a realização desta obra. Aos professores do PPGM da Escola de Música da UFRJ que muito auxiliaram no levantamento e, felizmente, no esclarecimento de muitas questões. Aos meus colegas da turma de composição, Tiago Sías, André Machado e Bernardo Pellon, pelas calorosas discussões. À Escola de Música da UFRJ, que durante muitos anos foi a minha “segunda casa”. Aos meus queridos pais, Amaro e Levi, pelo total apoio e o carinho de sempre.
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RESUMO Os arranjos vocais de canção popular brasileira têm ocupado cada vez mais espaço no repertório dos nossos coros e grupos vocais. Entretanto, ainda não existe um mercado editorial que distribua e comercialize essas partituras de forma regular e profissional. As pesquisas acadêmicas sobre este tema ainda são muito escassas e o ensino do arranjo vocal de canção popular brasileira ainda é feito fora do meio acadêmico. A presente pesquisa tem como objetivo principal realizar um estudo do arranjo vocal, abordando sua história, definindo seus conceitos e terminologias, exemplificado suas práticas e analisando a elaboração de arranjos. Discutimos o conceito de arranjo sobre a perceptiva da música popular, analisamos o papel do arranjador neste gênero, e por fim, estudamos os principais conceitos envolvidos na produção dos arran jos. Tomamos como referência dois arranjos vocais, o primeiro, escrito por Villa-Lobos, revela uma importante mudança estética no gênero. Com o segundo arranjo, do grupo vocal Os Cariocas, vemos como seu idiomatismo definiu um estilo e influenciou as gerações posteriores. Dedicamos a parte final do estudo ao arranjador Marcos Leite, pedra fundamental do arranjo vocal brasileiro, com uma análise minuciosa de um dos seus arranjos mais famosos. Esperamos que esta pesquisa possa contribuir, mesmo que de forma bastante sucinta, para minimizar um pouco a escassez de estudos nesta área.
Palavras chave: Arranjo – Arranjo Vocal – Arranjador – Canção Popular Brasileira
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ABSTRACT The vocal arrangements of Brazilian popular song have occupied more space in the repertoire of our choirs and vocal groups. However, there is not still a market that distribute and market these scores on a regular and professional. The academic research on this subject are still scarce and the teaching of vocal arrangement of Brazilian popular song is still done outside of academia. This research aims at providing a study of the vocal arrangement, covering its history, its defining concepts and terminology, exemplified their practices and analyzing the development of arrangements. We discussed the concept of the perceptual arrangement of popular music, we analyzed the role of the arranger in this genre, and finally, we study the main concepts involved in the production of the arrangements. We referred two vocal arrangements, the first, written by Villa-Lobos, reveals a major shift in aesthetic genre. With the second arrangement, the vocal group Os Cariocas, as we see his idiomatic style defined and influenced later generations. We devote the final part of the study arranger Marcos Leite, the cornerstone of the Brazilian vocal arrangement, with a detailed analysis of one of his most famous arrangements. We hope that this research can contribute, even though quite briefly, to minimize rather the lack of studies in this area.
Keywords: Arrangement - Vocal Arrangement - Arranger - Brazilian Popular Song
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SUMÁRIO LISTA DE FIGURAS......................................................................................8 LISTA DE QUADROS...................................................................................11 INTRODUÇÃO .............................................................................................12 CAPÍTULO 1 – O arranjo: conceitos, práticas e terminologia.......................17 1.1 - O conceito de arranjo....................................................................18 1.2 - Da composição ao arranjo vocal – o papel do arranjador e do arranjador vocal na canção popular brasileira..............................20 1.2.1 - O arranjador vocal de canção popular brasileira.........................24 1.3 - A textura no arranjo vocal..............................................................27 1.3.1 - Texturas aplicadas a melodia principal......................................28 1.3.2 - Texturas aplicadas ao acompanhamento.....................................32 CAPÍTULO 2 – Villa-Lobos e Os Cariocas....................................................40 2.1. - Villa-Lobos e o surgimento de uma nova estética no arranjo coral brasileiro.......................................................................................41 2.1.1 - O canto orfeônico, definição, origens e características..............41 2.1.2 - Villa-lobos e o canto orfeônico..................................................44 2.1.3 - O arranjo coral de luar do sertão................................................46 2.1.4 - Os demais arranjos de Villa-Lobos............................................55 2.2 - O idiomatismo de Os Cariocas.....................................................58 2.2.1 - A Rádio Nacional e seus grupos vocais.....................................58 2.2.2 - Os Cariocas................................................................................59 2.2.3 - A discografia de Os Cariocas.....................................................63 2.2.4 - O arranjo vocal de O Último Beijo............................................63 CAPÍTULO 3 – À consolidação de um estética.............................................89 3.1 - Cozzela e Kerr...............................................................................89 3.2 - A tradição carioca dos grupos vocais............................................91 3.3 - Marcos Leite..................................................................................92 3.3.1 - Grupo vocal Garganta Profunda................................................94 3.3.2 - Discografia do Garganta Profunda.............................................95 3.4 - O arranjo vocal de Lata D'água.....................................................95 3.4.1 - O autor da canção.......................................................................95 3.4.2 - O autor da letra...........................................................................96 3.4.3 - A primeira gravação....................................................................97 vi
3.4.4 - Sobre o arranjo............................................................................98 3.4.5 - Aspectos gerais sobre a forma do arranjo...................................99 3.4.6 - Meio/extensões...........................................................................100 3.4.7 - Gravação de referência...............................................................102 3.4.8 - Harmonia....................................................................................103 3.4.9 – Textura.......................................................................................104 3.4.10 - Melodia e ritmo........................................................................114 3.4.11 - Comparações e conclusões.......................................................116 CONCLUSÃO.................................................................................................119 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................121 REFERÊNCIAS FONOGRÁFICAS................................................................124 REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES.........................................................125 ANEXO - Partituras dos arranjos analisados....................................................126 Luar do Sertão..........................................................................................127 O Último Beijo.........................................................................................130 Lata D'água...............................................................................................142
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Lista de Figuras Fig. 1 – Lua, lua, lua, lua, arranjo vocal de Marcos Leite Fig. 2 – Arranjo vocal de André Protásio para a canção Vera Cruz Fig. 3 – Arranjo de Zeca Rodrigues para Garota de Ipanema Fig. 4 – Dois trechos do arranjo de Cozzella Fig. 5 – Background melódico Fig. 6 – Contracanto em formato pergunta e reposta Fig. 7 – BG harmônico encontrado no arranjo vocal de Lua, lua, lua, lua Fig. 8 – BG harmônico presente no arranjo vocal de Rogério Carvalho para a modinha Casinha pequenina Fig. 9 – BG rítmico simples Fig. 10 - BG rítmico no estilo “Vocal Band” Fig. 11 – Primeira parte da introdução Fig. 12 – Segunda parte da introdução Fig. 13 – Introdução de Azulão, arranjo de Vieira Brandão Fig. 14 – Refrão Fig. 15 – Casinha Pequenina, arranjo de Lorenzo Fernândez Fig. 16 – Primeira frase Fig. 17 – Segunda frase Fig. 18 – Cidade Maravilhosa, arranjo de Vieira Brandão Fig. 19 – Terceira frase de B Fig. 20 – Codeta Fig. 21 - Background rítmico encontrado na Canção do Marinheiro Fig. 22 - Background rítmico encontrado na Canção do Pescador Brasileiro viii
Fig. 23 – Duas Chaves, arranjo de Anjos do Inferno Fig. 24 – Primeira parte da introdução Fig. 25 – Segunda parte da introdução Fig. 26 – Terceira parte da introdução Fig. 27 – Solo Fig. 28 – Segunda frase da seção A Fig. 29 – Terceira frase Fig. 30 – Primeira textura da quarta frase Fig. 31 – Segunda textura da quarta frase Fig. 32 – Terceira textura da quarta frase Fig. 33 – Primeira textura da quinta frase Fig. 34 – Segunda textura da quinta frase Fig. 35 – Sexta frase Fig. 36 – Sexta frase (continuação) Fig. 37 – Primeira frase do intermezzo Fig. 38 – Segunda frase do intermezzo Fig. 39 – Terceira frase do intermezzo Fig. 40 – Quarta frase do intermezzo Fig. 41 – Quinta frase do intermezzo Fig. 42 – Sexta frase do intermezzo Fig. 43 – Sétima frase do intermezzo Fig. 44 – Oitava frase do intermezzo Fig. 45 – Nona frase do intermezzo Fig. 46 – Última frase do intermezzo ix
Fig. 47 – Primeira frase da seção A´ Fig. 48 – Segunda textura da seção A´ Fig. 49 – Capa do songbook O Melhor de Garganta Profunda Fig. 50 – CD Deep Rio do Garganta Profunda Fig. 51 – Primeira parte da introdução, contraponto no estilo “pergunta e resposta” Fig. 52 – Uníssono e BG melódico em soli Fig. 53 – BG melódico em soli Fig. 54 – BG rítmico em soli Fig. 55 – BG harmônico Fig. 56 – BG rítmico em soli Fig. 57 – Soli livremente Fig. 58 – Uníssono, com exceção Fig. 59 – BG melódico e soli Fig. 60 – BG harmônico Fig. 61 – Soli Fig. 62 – BG harmônico Fig. 63 – BG melódico Fig. 64 – BG harmônico Fig. 65 – BG rítmico Fig. 66 - Soli
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Lista de Quadros Quadro 1 – Proposta de Mário de Andrade Quadro 2 – Proposta de Andrade adaptada à música popular Quadro 3 – Proposta de Delalande Quadro 4 – Proposta de Delalande adaptada à música popular Quadro 5 – Esquema proposto com a inserção do arranjador vocal Quadro 6 – Outro esquema possível Quadro 7 – Quadro de combinações texturais Quadro 8 – Forma do arranjo de Luar do Sertão Quadro 9 – Quadro das texturas encontradas no arranjo coral de Luar do Sertão Quadro 10 – Quadro da textura do arranjo de Santos Dumont Quadro 11 – Quadro da textura de Canção do Marinheiro Quadro 12 – Quadro da textura Quadro 13 – Tabela da forma Quadro 14 – Forma do arranjo vocalizados Quadro 15 – Forma do arranjo original Quadro 16 – Extensões das vozes no arranjo Quadro 17 – Quadro da textura
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INTRODUÇÃO
A partir da década de 70 os arranjos vocais de canção popular brasileira começaram a invadiram o repertório coral brasileiro de forma definitiva. Com exceção dos coros exclusivamente dedicados ao repertório erudito, atualmente é difícil encontrar um coro que não cante pelo menos um arranjo de música popular brasileira, isso, quando o repertório não é em sua totalidade formado por arranjos do gênero. O panorama do canto coral sofreu mudanças a partir de Villa-Lobos, houve um aumento significativo no número de arranjos interpretados em apresentações. Apesar de hoje existir uma prática intensa de criação e interpretação de arranjos vocais de canção popular brasileira, e essa atividade ter começado há quase 40 anos, as primeiras tentativas de sistematizar o estudo do arranjo no Brasil são bastante recentes e, com poucas exceções, o arranjo ainda é, de forma geral, um assunto estudado fora do ambiente acadêmico. O crescente interesse dos coros por esse repertório gerou uma grande produção de arranjos. Entretanto, a falta de estudos aprofundados sobre a escrita do arranjo vocal, aliada à ausência de um mercado editorial profissional que distribua e comercialize de forma regular essas partituras, gerou muitos problemas para os cantores e regentes. A professora e maestrina Maria José Chevitarese critica a baixa qualidade dos arranjos que chegam às suas mãos,
13 através de seus coralistas e da Internet. Segundo a maestrina, os arranjos não funcionam, simplesmente por serem mal escritos 1. Foram questões como esta que contribuíram para o surgimento dessa investigação. O arranjo vocal de canção popular brasileira merece um estudo aprofundado, que gere a sistematização do seu conteúdo, no intuito de se criar métodos de ensino e aprendizagem coerentes sobre o assunto. O Brasil teve e tem importantes arranjadores vocais como VillaLobos, Ismael Netto, Severino Filho, Damiano Cozzella, Samuel Kerr, Marcos Leite e outros. Contudo, poucos estudos de cunho analítico estrutural, ou mesmo pedagógicos, foram dedicados aos trabalhos desses músicos. Analisar esses arranjos é de suma relevância para o aprendizado da escrita de arranjo vocal de canção popular brasileira. O foco dessa pesquisa são os arranjos vocais criados sobre canções populares brasileiras, de cunho urbano e autoral, que se tornaram conhecidas através do mercado fonográfico. Desta forma, não serão considerados aqui os arranjos gerados a partir das canções folclóricas, tendência comum no movimento erudito nacionalista. Um dos principais objetivos dessa investigação é resgatar e valorizar, expondo de forma simples e objetiva, as idéias musicais de alguns desses grandes arranjadores, no intuito de servir como fonte de informação para outros estudos e para o entendimento da produção atual de arranjos vocais. André Protásio, arranjador atuante e pesquisador dedicado ao estudo do arranjo vocal de MPB, aponta esse conhecimento como essencial ao profissional que deseja trabalhar com canto coral. Segundo o músico: “Par a o regente de coro, saber escrever um arranjo ou no mínimo saber analisá-lo para interpretá-lo de maneira correta, tornou-se uma ferramenta básica de trabalho” (Protásio, 2006: 02). Eduardo Fernandes, arranjador e regente paulista, realizou em 2003 uma pesquisa com regentes da cidade de São Paulo e concluiu que 91% dos entrevistados escreve arranjos para os seus grupos. Segundo Fernandes essa produção vem da necessidade dos regentes de terem peças adequadas aos seus coros, seja pela formação, nível técnico, exigência do repertório, ou mesmo pelo simples desejo dos seus cantores em cantar determinada música ou gênero. Sendo assim, estudar, analisar e discutir os arranjos vocais é totalmente relevante para a formação do músico profissional que pretende trabalhar à frente de corais ou grupos vocais. Segundo nos relata Protásio (2006), é notória em eventos como oficinas, encontros e fóruns sobre canto coral, a busca dos regentes e cantores por novos e bons arranjos de canção 1
Fórum Rio a Cappella 2002, debate sobre repertório coral.
14 popular. O autor vem reforçar o que foi antes comentado pela maestrina Maria José Chevitarese: Se há falta de repertório, falta também quem escreva arranjos de boa qualidade para diferentes formações (para 3, 4 ou 5 vozes, coros femininos, masculinos, etc.), organizados em diferentes graus de dificuldade e que este repertório esteja sendo constantemente renovado. (Protásio, 2006: 2)
Durante o nosso curso de graduação em regência, realizado entre os anos 2001 e 2006, na Escola de Música da UFRJ, tivemos a oportunidade de trabalhar com diferentes coros e grupos vocais. Percebemos então, assim como os regentes paulistas relataram na pesquisa de Fernandes (2003), a grande necessidade de produzir arranjos que atendessem aos diferentes níveis e formações desses grupos. A primeira questão que surgiu foi: Quais são as características principais do arranjo vocal de canção popular brasileira? Nesta pesquisa pretendemos investigar de forma aprofundada esta questão, buscando sempre que possível um diálogo com a bibliografia específica sobre o assunto arranjo. Analisaremos arranjos vocais que consideramos significativos para a compreensão dessas características, acreditando que desta maneira poderemos contribuir para encontrar a resposta para elucidar esta e outras questões. Em busca de organizar o estudo sobre o assunto arranjo vocal de canção popular, estabelecemos três momentos de discussão nesse trabalho, que estão relacionados com os capítulos da dissertação. No primeiro capítulo discutiremos o conceito de arranjo, o papel do arranjador na linha de produção da música popular brasileira, e a terminologia essencial para a compreensão das análises dos arranjos, como: textura, homofonia, soli, background, contracanto, dentre outros. Usaremos como base para a abordagem desses temas, várias referências teóricas que nos auxiliam na discussão desses conceitos, incluindo os dicionários Grove (1988), (1994), (2000), Harvard (1999) , Oxford (1994) , Larousse (1999) , Aurélio (1986); livros sobre arranjo dos autores Guest (1996), Almada (2000), Ades (1966); estudos sobre textura de Berry (1987) e Lucas (1995); e também dissertações de mestrado defendidas por Leme (2000) e Protásio (2006). No segundo capítulo há uma breve perspectiva histórica do arranjo vocal no Brasil. Discutiremos a estética do arranjo vocal dentro de um período histórico que vai do início dos anos 30 até o final da década de 70. Mais do que relatar os fatos, iremos analisar dois arranjos significativos para compreensão da estética do arranjo vocal de canção popular brasileira. O
15 capítulo tem início com um breve histórico sobre Villa-Lobos e o canto orfeônico, e em seguida será apresentada a análise do arranjo vocal escrito pelo compositor para a toada Luar do Sertão. Para tornar mais claros os argumentos defendidos nessa análise, confrontaremos este arranjo com trechos extraídos de arranjos vocais escritos pelos compositores Lorenzo Fernândez e Vieira Brandão. A escolha desses compositores se deu pelo simples fato de ambos terem sido contemporâneos de Villa-Lobos, e com ele trabalhado no projeto nacional do canto orfeônico. Discutiremos ao longo desta análise o papel da textura na inauguração de uma nova estética no arranjo coral brasileiro. Concluída a análise, apresentaremos alguns quadros nos quais estarão resumidas as texturas de outros três arranjos vocais do compositor, com o objetivo de evidenciar o estilo de Villa-Lobos como arranjador vocal. No segundo tópico do capítulo, enfocaremos o trabalho desenvolvido pelo arranjador Ismael Netto à frente do grupo vocal Os Cariocas. Levantaremos o momento histórico conhecido como a “Era do Rádio”, enfatizando a atuação do grupo na Rádio Nacional. Após isso, apresentaremos a análise do arranjo vocal escrito por Ismael, para Os Cariocas, da canção de sua autoria em parceria com Nestor de Holanda, Último Beijo. Confrontaremos alguns aspectos desse arranjo com trechos de arranjos vocais de grupos da mesma época, como: Anjos do inferno, Quatro ases e um coringa e Namorados da lua, com o objetivo de destacar aspectos particulares que reflitam um idiomatismo próprio característico do grupo Os Cariocas. Aplicaremos o método de análise textural utilizado pelos autores Ostrander e Wilson no livro Contemporary Choral Arranging (1986), que adaptamos para esta pesquisa, com o intuito de destacar os procedimentos texturais adotados por cada um dos arranjadores. O terceiro capítulo é em grande parte dedicado a Marcos Leite. Iniciaremos este capítulo discorreremos sucintamente sobre o trabalho dos arranjadores Damiano Cozella e Samuel Kerr, levantando suas principais contribuições. Seguiremos comentando a tradição carioca dos grupos vocais, destacando alguns conjuntos importantes. Em seguida, será apresentada uma breve biografia sobre o arranjador, e abordaremos de forma sucinta sobre o seu grupo vocal mais importante, o Garganta Profunda. Finalmente, analisaremos o arranjo vocal de Marcos Leite para o samba Lata D'água, um dos seus arranjos mais conhecidos e executados. Esta análise tem o intuito de identificar os procedimentos composicionais e as principais técnicas de escrita adotadas pelo arranjador, e que serviram de base para a criação do arranjo. Buscaremos ainda traçar comparações entre o arranjo vocal de Marcos Leite e a gravação original da música, com objetivo de discutir a influência e a importância da
16 gravação no processo de criação do arranjo. Nesta análise, ao contrário das anteriores, usaremos um método analítico exposto pelo autor David Cope no seu livro New directions in music (2001), adaptado para essa investigação. A escolha desse método se justifica pelo fato dessa terceira análise ser um estudo mais global da partitura e incluir ainda dois textos sonoros. Os aspectos texturais ainda serão tratados com destaque, todavia outras discussões serão apresentadas neste capítulo, como por exemplo: extensões, re-harmonização, melodia e ritmo.
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Capítulo 1 O ARRANJO: CONCEITOS, PRÁTICAS E TERMINOLOGIA
Iniciaremos com uma discussão sobre o conceito de arranjo. Sobretudo a busca de uma delimitação coerente para o termo “arranjo” como prática cotidiana na música popula r brasileira. Para isso, consideraremos verbetes de vários dicionários como Grove (1988), (1994), (2000), Harvard (1999) , Oxford (1994) , Larousse (1999) , Aurélio (1986) e de outras referências bibliográficas relevantes. O segundo tópico deste capítulo analisa a questão prática do arranjo na MPB. Investiga de forma geral, como se relacionam os processos de composição, arranjo e interpretação neste gênero. Com esse fim, utilizaremos sistemas fornecidos por autores como Delalande (1991), Andrade (1995) e Teixeira (2007). O principal foco da discussão neste tópico é o papel do arranjador e do arranjador vocal na música popular brasileira. O capítulo encerra-se com um estudo das principais texturas encontradas nos arranjos vocais de canção popular brasileira. Salientaremos aqui a questão da estética tipicamente homofônica e instrumental, presente nesses arranjos. Para tanto, utilizaremos referenciais teóricos sobre arranjo como Ostrander e Wilson (1986), Ades (1966), Guest (1996), Almada (2000) e sobre textura como Berry (1987) e Lucas (1995). O principal objetivo desta seção é destacar e agrupar as técnicas mais utilizadas, gerando um breve conjunto de texturas referenciais para composição nesse gênero.
18 1.1 O CONCEITO DE ARRANJO
Para melhor desenvolvimento dessa pesquisa, fez-se necessário, logo de início, uma delimitação apropriada para o termo “arranjo”, visto que esta palavra pode ser interpretada de diversas formas, provocando assim certa indefinição conceitual. Segundo as definições recolhidas do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1986) , da Grande Enciclopédia Larousse Cultural (1998) e do Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa (1999) , o termo arranjo está associado à “ordenação”, “organização”, “boa disposição”, “arrumação”, “alinho” etc. Entretanto, no que tange ao arranjo musical essas mesmas obras de referência são unânimes em defini-lo como a adaptação de uma peça, criada para uma determinada formação, para outra diferente da original. No Dicionário Musical Brasileiro (1989), Mário de Andrade concorda com essas definições quando conceitua arranjo da seguinte forma: “... e scritura de uma música para destinação instrumental ou vocal diversa da que foi escrita” (A ndrade, 1989: 25). Essas definições trazem consigo várias limitações, pois pensar o arranjo dessa forma é, simplesmente, entendê-lo apenas como uma “adaptação” ou “transcrição” de uma obra com o propósito de torná-la acessível à outra categoria de executantes. Assim sendo, a palavra “a rranjo” certamente se confundirá com outros termos como “redução” (quando, por exemplo, faz-se a redução de uma ópera de Rossini para piano e vozes) ou “orquestração” (no caso, por exemplo, da peça para piano “Quadros de uma Exposição”, composta por Mussorgsky e po steriormente transcrita para orquestra, por Ravel). No Dictionary Oxford of Music (1994) o conceito de arranjo é definido da seguinte forma: Adaptação de uma peça para um meio musical diferente daquele para que tinha sido originalmente composto. Por vezes transcrição significa reescrever a obra para o mesmo meio, mas num estilo de execução simplificado. Por vezes usa-se o termo “arranjo” para um tratamento livre do material e o termo transcrição para um tratamento mais fiel. No Jazz “arranjo” tende a significar “orquestração”. (Kennedy, 1994: 41)
Como podemos observar, este verbete se inicia tratando o termo “arranjo” como sin ônimo de “transcrição”. Ele reforça o que já foi dito até aqui pelos outros verbetes, acresce ntando outros usos como o de adaptação facilitada da obra para executantes de outros níveis. Entretanto, esse verbete ainda nos traz novas perspectivas para a compreensão do conceito de arranjo, quando explana sobre a possibilidade de o arranjo possuir um tratamento mais livre
19 do material original enquanto que a transcrição tem um caráter mais fiel de manipulação da obra original. Na edição de 2000 do The New Grove Dictionary of Music and Musicians, o termo arranjo é definido de forma geral como a reelaboração de uma composição, normalmente para um meio diferente do original. O Grove completa fazendo uma observação importante: o arranjo seria uma elaboração de uma idéia original, mas normalmente com algum nível de recomposição envolvido. O The Harvard Concise Dictionary of Music and Musicians (1999) define o arranjo na música popular como sendo uma versão específica da composição. Tratando também do arranjo na música popular, o The New Grove Dicitonary of Jazz (1988) define arranjo como sendo uma reelaboração ou recomposição de uma obra musical ou parte dela, resultando uma nova versão da peça. O Grove of Jazz conclui que a prática do arranjo na música popular co bre uma ampla gama de possibilidades, que vão desde criar um simples acompanhamento de uma melodia cantada até a mais inventiva re-composição da idéia original. Samuel Adler, no seu The Study of Orchestration (1989), define arranjo da seguinte forma: O arranjo envolve em maior grau um processo composicional, pois o material pré-existente pode vir a ser apenas uma melodia, ou mesmo parte de uma, para qual o arranjador tem que criar uma harmonia, contraponto, e muitas vezes até o ritmo, antes mesmo de pensar na orquestração. (Adler, 1989: 512)
A definição de Adler para o arranjo destaca o aspecto composicional do processo criativo do músico que trabalha com uma obra pré-existente. O autor prossegue dizendo que a palavra arranjo deve ser empregada para caracterizar o processo recomposicional de uma peça original. Beatriz Paes Leme, na sua dissertação de mestrado intitulada Guerra Peixe e as 14 canções do Guia Prático de Villa Lobos – Reflexões acerca da prática da transcrição (2000) concorda com Adler e completa: Fazer um arranjo pode envolver tarefas como concepção da forma, harmonização, composição de partes auxiliares – introduções, intermezzos, coda – criação de contracantos, etc, além, é claro da instrumentação e da feitura de uma partitura, se isso se faz necessário. O arranjador, portanto, absorve grande parte do trabalho que, no contexto erudito, costuma ser atribuição do compositor – e desse ponto de vista não é exagerado dizer que ele, muitas vezes, complementa o trabalho de composição. (Leme, 1999: 23)
20 Paulo Aragão, discutindo a prática do arranjo na música popular na sua dissertação de mestrado intitulada Pixinguinha e a gênese do arranjo musical brasileiro (2001), expõe alguns aspectos importantes dessa questão. Segundo ele, o reconhecimento de uma “instância de representação do original” é muito complicado, simplesmente porque, na prática, ao co ntrário da música erudita, não há “a partitura” e muito menos uma definição e xata acerca dos elementos que constituem o “original” de uma obra. Aragão completa afirmando que a ausê ncia desse documento original tornou o arranjo uma prática fundamental para a veiculação das composições. “Desta forma temos uma compreensão da prática d o arranjo como uma forma de estruturação de uma obra popular” (Aragão, 2001: 17). Podemos concluir então que o arranjo é criado a partir de um material pré-existente, ou seja: a composição original (Boyd, 2000). O arranjador possui liberdade no tratamento do material original, trabalhando-o do ponto vista recomposicional (Schuller, 1988). Esse “pr ocesso composicional” (Adler, 1989) tende a gerar uma nova versão específica, derivada da obra original. Resumindo de forma simples e objetiva tudo que discutimos até aqui sobre o conceito de arranjo, o regente e arranjador Samuel Kerr vem concluir a nossa discussão com a seguinte frase: “Quando você faz um arranjo, você compõe!” (Kerr apud Souza, 2003: 158).
1.2 DA COMPOSIÇÃO AO ARRANJO VOCAL - O PAPEL DO ARRANJADOR E DO ARRANJADOR VOCAL NA CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA
Ao iniciarmos uma discussão sobre a função do arranjo na música popular brasileira, algumas questões surgem sobre a relação existente entre composição e arranjo, como por exemplo: Qual é o limite entre uma composição “original” e a nova obra derivada com intervenção de um arranjador? Segundo a Lei dos Direitos Autorais: “São obras intelectuais as adaptações, traduções e outras transformações de obras originárias, desde que, previamente autorizadas e não lhes causando dano, se apresentarem como criação intelectual nova” (LDA, artigo sexto). O artigo oitavo desta mesma lei ressalva: “É titular de direitos de autor quem adapta, traduz, arranja ou orquestra obra caída no domínio público; todavia não pode, quem assim age, opor-se a outra adaptação, arranjo, orquestração ou tradução, salvo se for cópia da sua” (LDA, artigo oitavo).
21 Mário de Andrade no seu livro Introdução à Estética Musical (1995) entende a música como o encadeamento de quatro instâncias. Segundo o autor seriam elas: (1) criador, (2) obra de arte, (3) intérprete, (4) ouvinte. Observemos a tabela abaixo:
Instâncias primeira
segunda
terceira
quarta
criador
obra de arte (texto escrito)
intérprete (texto sonoro)
ouvinte
Quadro 1 – Proposta de Mário de Andrade
Devemos ressalvar que Andrade está se referindo à realidade musical erudita 2 , ambiente no qual foi desenvolvido o trabalho do autor. Todavia, na música popular 3 esta relação se dá de forma diferente. Segundo Neil Teixeira na sua dissertação de mestrado intitulada Os Cariocas - repertório do período entre 1946 e 1956 : “enquanto, em geral, no meio erudito a obra de arte já sai pronta para o intérprete, no meio popular a presença de uma quinta instância é necessária para algumas obras, a do a rranjador” (Teixeira, 2007: 139). É inegável que uma obra como o Prélude à l'après-midi d'un Faune de Debussy, se interpretada por orquestras distintas, ou mesmo se executada pelo mesmo grupo conduzido por regentes diferentes, apresentará resultados ímpares. Podemos citar como exemplo a interpretação da Sagração da Primavera de Stravinsky pela Filarmônica de Berlim, sob a direção do maestro Herbert Von Karajan. Nota-se em alguns trechos da obra a presença de uma pulsação rápida, intensa e enérgica, como no movimento presto Jeu du rapt. Ao compararmos com a execução de Pierre Boulez à frente da Orquestra da Rádio Nacional Francesa, é notável a diferença de andamento e caráter, pois o mesmo trecho aparece aqui mais lento e menos enérgico. De qualquer forma, nenhuma das duas interpretações compromete o reconhecimento da obra em questão pelo ouvinte. Flávio Barbeitas, em um artigo escrito para o periódico Permusi, intitulado Reflexões sobre a transcrição musical: as suas relações com a interpretação na música e na poesia, define a relação entre obra e autor na música popular da seguinte forma: “A contribuição do autor cessa com o nascimento da obra. Permanecem, porém, a 2
O termo “música erudita” será encarado aqui tal como o de “música escrita”, ou seja, definitivamente aquela concebida no ato da escrita. Diferentemente de outras práticas escriturais, que empregam alguns recursos de notação apenas para transmissão e registro. 3 A expressão “música popular” será utilizada neste trabalho para se referir as canções populares autorais, que se tornaram conhecidas através do lançamento no mercado fonográfico. Obtendo ou não exito comercial.
22 flexibilidade e a multiplicidade desta, em razão da infinidade das leituras e interpretações que será sempre capaz de despertar” (Barbeitas, 2000: 93). Segundo nos relata Teixeira (2007), quando a dupla de compositores Haroldo Barbosa e Geraldo Jacques criaram a música Tim tim por tim tim, sucesso na interpretação de Os Cariocas, o fizeram de forma sucinta, pensando da seguinte maneira: “a música começa aqui, termina ali, os acordes são esses, a letra é assim, e é em ritmo de samba”. Geralmente é assim que acontece na música popular, o autor escreve a letra, cria a melodia, escolhe um gênero e, às vezes, organiza a harmonia do acompanhamento. Esta é, em essência, a sua obra de arte, e será sua independentemente de adaptações que sejam feitas posteriormente. Ao ouvirmos o arranjo vocal que Ismael Netto produziu do samba Tim tim por tim tim para Os Cariocas, percebemos a presença de uma introdução, segundo Teixeira, obviamente anterior à primeira nota dada pela dupla de autores: “É um corte profundo na obra. O início foi modificado” (Teixeira, 2007: 140). Quando ouvimos uma interpretação qualquer do movimento intitulado Vênus da suíte orquestral Os Planetas de Gustav Holst, independentemente da orquestra que esteja executando a obra, vamos ouvir a entrada em piano do naipe de trompas, para em seguida ouvir o contraponto que se estabelece entre este naipe e as flautas. No entanto, ao ouvirmos de Barbosa e Jacques a canção Adeus América na interpretação da cantora Leny Andrade, ouviremos a introdução composta pelo seu trio, o B3, e não a introdução presente no arranjo criado por Ismael Netto para Os Cariocas. Isso vem demonstrar que na música popular brasileira diferentes interpretações da mesma canção inspiram novos arranjos. Ao ouvirmos uma nova interpretação de uma obra erudita já conhecida, não teremos grandes surpresas com relação a aspectos como, textura, harmonia e forma. As surpresas serão de outra espécie, como interpretação, solistas etc. Em vez disso na música popular a expectativa que se nutre é praticamente inversa. Aspira-se, a cada interpretação, a uma releitura, uma versão nova, ou seja, a um novo arranjo. Se analisarmos a sugestão proposta anteriormente por Mário de Andrade, buscando adaptá-la à realidade da música popular brasileira, teríamos que acrescentar, de acordo com Teixeira (2007), mais uma instância, a do arranjador. Contudo, nesse momento surgem outras questões, dentre as quais destacamos a seguinte: Em que momento da cadeia de produção seria inserido o arranjador? Excetuando-se os casos onde o próprio compositor seja o responsável pelo arranjo, e o tenha criado concomitantemente a obra (aproximando-se assim, da prática erudita), a posição
23 mais plausível para a inserção do arranjador dentro da proposta andradeana seria entre a obra e o intérprete, ficando as instâncias dispostas da seguinte maneira:
Instâncias primeira
Segunda
terceira
quarta
quinta
sexta
criador
obra de arte
arranjador
obra de arte
intérprete
ouvinte
(texto escrito)
(texto sonoro)
(texto sonoro)
Quadro 2 – Proposta Proposta de Andrade adaptada à música popular
Dessa forma, percebemos que o papel do arranjador na música popular está bastante voltado para a performance a performance.. Este músico é, junto aos intérpretes, co-responsável pela criação de uma nova identidade para a obra. Como vimos, o arranjo é essencial para a vinculação das canções populares no mercado fonográfico. Vejamos agora um esquema proposto por François Delalande (1991). A tabela abaixo ilustrará a proposta do autor:
Instâncias compositor
partitura
Intérprete
(texto escrito)
performance
ouvinte
(texto sonoro)
Quadro 3 – Proposta Proposta de Delalande
Como podemos observar o esquema proposto por Delalande se assemelha muito ao de Andrade, e é perfeitamente aplicável ao meio de produção da música erudita. Se adaptarmos este esquema ao processo de produção da música popular brasileira, como fizemos em Andrade, devemos lembrar que, no caso da música popular, o compositor em geral apresenta uma gravação (um texto sonoro) sonoro) de sua criação, quando não a apresenta em performance pessoal. Já o arranjador geralmente escreve o arranjo, ou seja, a partitura só é opcional se o arranjo for exclusivamente mecânico (eletrônico) ou se o próprio arranjador o executar em gravação. Neste caso ele se transforma num intérprete, mais do que qualquer outra coisa. Contudo, é mais usual, mas não é regra, que o arranjador produza uma partitura (mais ou
24 menos completa) como resultado do seu trabalho, ou seja, um texto escrito. escrito. Os executantes sonoro, que pode ou não ser gravado. Vejamos produzem a partir disso um segundo texto sonoro, agora a tabela:
Instâncias compositor
primeiro texto sonoro
arranjador
primeiro texto escrito
intérprete
segundo texto sonoro sonoro
ouvinte
Fig. 4 – Proposta Proposta de Delalande adaptada à música popular
1.2.1 O Arranjador vocal de canção popular brasileira
Na música coral o arranjo é fundamental para a execução das canções populares pelos coros ou grupos vocais. Ricardo Szpilman chama a atenção, em sua dissertação de mestrado intitulada Repertório para Corais Iniciantes Iniciantes (2005), para a distinção entre dois tipos de arranjos vocais baseados em canções populares brasileiras. O primeiro, segundo ele, apresenta aspectos muito próximos a um “material original”, que na maioria das vezes é uma gravação que se tornou famosa. É o caso, por exemplo, do arranjo vocal de Marcos Leite para o samba Lata D’água
da dupla Luis Antonio e Jota Junior. Leite escreveu este arranjo inspirado em
uma gravação feita pela cantora Marlene, em 1951 (Carvalho, 2007). O segundo tipo busca fugir do modelo original, apenas respeitando, o máximo possível, a melodia principal, muito embora possa até vir a modificá-la em alguns aspectos. Um bom exemplo desse tipo de arranjo vocal é o de Alguém Cantando, Cantando, arranjada também por Marcos Leite. Neste arranjo, Leite transforma a canção “intimista” de Caetano Veloso Veloso em um quase madrigal renascentista inglês, com o uso intenso do contraponto. Segundo Szpilman, os arranjos vocais de música popular brasileira tendem à descaracterização, descaracterização, quando fogem demais da proposta original da canção concebida pelo compositor. O próprio Marcos Leite reconheceu isso, ao abandonar essa estética utilizada em Alguém em Alguém Cantando em seus arranjos posteriores. Ao inserir o arranjador vocal no esquema de produção da música popular brasileira, vamos considerar o primeiro tipo de arranjo citado por Szpilman (2005). De acordo com o que nos relata André Protásio na sua dissertação de mestrado intitulada Arranjo vocal de música popular brasileira para coro a capella (2006):
25 [...] o I e II Curso de Grupos Vocais Vocais promovido pelo Rio pelo Rio a Cappella (Janeiro Cappella (Janeiro de 2002 e junho de 2004) reuniu 6 arranjadores que produziram para o evento doze arranjos vocais inéditos (dois para cada arranjador). Tive [Protásio] a honra de ser um dos arranjadores convidados entre outros talentosos colegas: Maurício Maestro, Zeca Rodrigues, Fernando Ariani, Eduardo Lakschevitz e Deco Fiori. Além da preparação e execução pública deste arranjos, o curso contava com palestras dos arranjadores intituladas: o intituladas: o arranjador e sua obra. Foi interessante notar que todos os arranjadores citavam na palestra ou no ensaios, uma gravação de referência. (Protásio, 2006: 38)
O arranjo original, presente na gravação de referência, muitas vezes está marcado por idéias musicais relevantes, que podem influenciar de forma significativa o processo de recriação da obra pelo arranjador vocal. Seguindo a cadeia, o coro ou grupo vocal interpreta a partitura vocal, resultando ou não em uma gravação deste arranjo. Independentemente Independentemente do meio, seja ele gravação ou performance ao vivo, chamaremos esta instância de terceiro texto sonoro, e é na recepção deste que o ouvinte fecha o ciclo. Ficam dispostas as instâncias da seguinte maneira:
Instâncias autor
primeiro texto sonoro
arranjador
primeiro texto escrito
intérprete
segundo texto sonoro
arranjador vocal
segundo coro ou terceiro texto escrito grupo vocal texto sonoro
ouvinte
Quadro 5 – Esquema Esquema proposto com a inserção do arranjador vocal
Gostaríamos de enfatizar que esta é uma das possibilidades que se apresentam. Optamos por este esquema por considerarmos que representa uma prática bastante recorrente entre os arranjadores vocais da atualidade. As interpolações entre as instâncias podem acontecer de diversas formas, e outros esquemas podem ser pensados. Na música popular brasileira podemos encontrar situações em que o compositor acumula mais de uma função, como era o caso de Dorival Caymmi, que era compositor e intérprete de sua própria obra. Ou de Tom Jobim, que muitas vezes acumulava as funções de compositor, arranjador e intérprete de suas canções. Nestes casos, os esquemas podem mudar sensivelmente, pois concentram mais de uma instância em um único sujeito. Tomemos como exemplo o CD Serenade do músico mineiro Toninho Horta. Neste registro gravado ao vivo na Coréia, Toninho canta suas canções acompanhado apenas por seu violão. Aqui, o músico é compositor, arranjador e intérprete, ao mesmo tempo. Mantendo coerência com o que foi apresentado antes,
26 consideramos o resultado desta interpretação do violonista como segundo texto sonoro, tendo em vista que as músicas já haviam sido gravadas anteriormente pelo próprio Toninho Horta em outros discos, e que estas versões “acústicas” se estabelecem como arranjos das gravações anteriores. Vejamos abaixo como se organiza este esquema com a entrada do arranjador vocal:
compositor, segundo arranjador e texto sonoro intérprete
arranjador vocal
Instâncias segundo coro ou gru- terceiro texto texto escrito po vocal sonoro
ouvinte
Quadro 6 – Outro esquema possível
Marcos Leite cita também a possibilidade de o arranjador vocal aproveitar idéias provindas de gravações diferentes da mesma música (Leite apud Carvalho, 2007). Zeca Rodrigues, arranjador vocal atuante no cenário carioca, concorda com Leite, e comenta que ouvir várias versões (gravações) da mesma música antes de fazer o arranjo é um hábito 4. Protásio (2006) partilha da opinião de Leite e Rodrigues, e cita como exemplo o arranjo coral de Damiano Cozzella para a Suíte dos Pescadores de Dorival Caymmi. Segundo o autor, na época em que Cozzella escreveu este arranjo existiam três gravações da obra . Protásio afirma ter encontrado idéias musicais provindas destas gravações, durante a análise da partitura coral de Cozzella. Podemos concluir com base no que foi apresentado, que o papel do arranjador na música popular brasileira é de suma importância, considerando que esse músico é o responsável pela criação da “versão final”, ou seja, do arranjo com o qual a canção se tornará pública através do mercado fonográfico. É por sobre esse arranjo que o arranjador vocal irá retrabalhar a canção, ao compor um novo arranjo derivado do primeiro, porém, inserido em um novo meio. Tendo compreendido como se dá a prática do arranjador na MPB, seguiremos discutindo outros tantos conceitos essenciais à compreensão das análises dos arranjos vocais, conceitos estes ligados diretamente a elaboração das peças. Iremos discutir esses conceitos enfatizando sua importância no contexto da pesquisa e justificaremos a delimitação funcional que estamos dando a estes termos. Salientaremos a questão da estética tipicamente 4
Comunicação pessoal, fevereiro de 2008.
27 homofônica e instrumental aplicada ao arranjo vocal de MPB, identificada em arranjos como Luar do Sertão, Último Beijo e Lata d’água.
1.3 A TEXTURA NO ARRANJO VOCAL
Iniciaremos este último tópico do capitulo precisando o conceito de textura. Segundo o Dicionário Grove de Música (1994), textura é o termo usado para se referir ao aspecto vertical de uma estrutura musical, geralmente em relação à maneira como partes ou vozes isoladas são combinadas. Wallace Berry no seu livro “ Structural Functions in Music” (1987) complementa a definição encontrada no Grove. Segundo o autor: Textura é concebida como aquele elemento da estrutura musical, determinado pela voz ou número de vozes e demais componentes que projetam os materiais musicais no meio sonoro e (quando há dois ou mais componentes), pelas inter-relações e interações entre eles. (Berry, 1987: 191)
A definição apresentada por Berry irá nortear o conceito de textura utilizado ao longo dessa dissertação. Como veremos em breve nas análises propostas, a textura homofônica é uma das principais características do arranjo vocal de MPB. Marcos Lucas na sua dissertação de mestrado intitulada “Textura na Música do Século XX” (1995) define homofonia da seguinte maneira: O termo “homofonia” denota a condição textural onde as diversas vozes ou partes mantém entre si uma relação de extrema interdependência. Porém, sua conotação mais habitual é a de uma textura na qual uma voz principal se destaca (melodia) acompanhada por um grupo de dois ou mais sons (díades, tríades etc.) subordinados, e que mantém entre si relativa interdependência. Este acompanhamento pode ou não interagir com a melodia principal, e, da mesma forma o grau de coesão entre seus componentes pode variar, sendo este fator certamente um traço característico na distinção de diferentes gêneros e estilos. (Lucas, 1995: 59)
O autor cita na textura homofônica a presença de dois extratos: a voz principal, que a partir de agora chamaremos de melodia principal, e o acompanhamento. Destacando ainda a
28 relação de interdependência entre as partes, ao comentar o caráter de subordinação, onde a “melodia se destaca” do acompanhamento, fator característico dessa textura. Sendo assim estudaremos as técnicas de arranjo divididas em duas categorias: as técnicas aplicáveis a melodia principal, e as aplicadas ao acompanhamento.
1.3.1 Texturas aplicadas à melodia principal
A melodia principal pode aparecer no arranjo vocal de três formas: solo, uníssono, ou harmonizada em bloco. O solo acontece quando apenas uma voz (ou naipe) canta a melodia principal. Um bom exemplo dessa textura pode ser observado no início do arranjo vocal de Marcos Leite para canção Lua, lua, lua, lua de Caetano Veloso. Neste exemplo o naipe de sopranos canta a melodia principal em solo, enquanto as outras vozes fazem o acompanhamento.
Fig.1 – Lua, lua, lua, lua, arranjo vocal de Marcos Leite
Já o uníssono acontece quando duas ou mais vozes cantam a melodia principal. O uníssono tem uso bastante recorrente quando se quer enfatizar um determinado trecho do texto, ou quando se deseja obter contrastes texturais com trechos da melodia harmonizados em bloco. Zeca Rodrigues, discorrendo sobre o uso do uníssono no arranjo vocal, vem reforçar o que foi comentado:
29 Ele [o uníssono], além de ser super importante em termos de unificação e maturidade no som de um grupo vocal, também pode ser usado para contrastar com as partes “abertas” do arranjo ou mesmo estar presente onde não haja necessidade de harmonia. Uma das utilizações mais comuns é nos anacruses das melodias. Nada melhor para um arranjo à capella do que começar em uníssono. (Rodrigues, 2008: 19)
Vejamos um trecho do arranjo de André Protásio para a canção Vera Cruz de Milton Nascimento e Márcio Borges. Neste exemplo o arranjador demonstra que está de acordo com as idéias de Rodrigues, quando inicia seu arranjo com todas as vozes cantando a melodia principal em uníssono.
Fig. 2 – Arranjo vocal de André Protásio para a canção Vera Cruz
A última técnica possível de ser empregada na melodia principal é a harmonização em bloco, que de agora em diante, chamaremos de soli, termo de origem italiana que significa o plural de solo, ou seja, solos. Acontece quando duas ou mais vozes “solam” com a melodia principal, entretanto, diferentemente do uníssono, mantendo relações intervalares diferenciadas. Esta é uma técnica de escrita muito comum nos arranjos vocais da canção popular brasileira. Segundo Ian Guest (1996), no seu manual de arranjo, os termos soli ou bloco podem ser empregados quando duas ou mais vozes executam melodias diferentes em ritmo igual. Carlos Almada também aborda essa técnica no seu livro sobre arranjo (2000). Segundo este autor:
30 A técnica de Soli (também conhecida por “escrita em bloco”) é, sem dúvida, a mais bem documentada de todo o estudo do arranjo. Apesar de, ao menos em tese, poder ser aplicada a naipes de quaisquer classes de instrumentos, é muito mais apropriada aos sopros. [...] O arranjo para vozes humanas também utiliza freqüentemente o Soli como um excelente meio expressivo, como podemos constatar nos trabalhos de grupos como os americanos The Swingle Singers L.A Voices e The Manhattan Transfers. (Almada, 2000: 133)
Sobre o soli na música popular, Almada considera que:
[...] a total transformação naquilo que hoje conhecemos por soli só aconteceria mesmo nas orquestras de jazz norte-americanas, nas quais a escrita coral para sopros – já consagrada na música do Romantismo (século XIX) e ensinada nas classes de composição – foi adaptada, desta vez ao ritmo sincopado, à harmonia e à melodia peculiares do estilo. Foi a partir daí que surgiu a, digamos assim, “regulamentação” desta técnica. (Almada, 2000: 133)
Existem muitas maneiras de se harmonizar uma melodia em soli 5 . Um estudo aprofundado desta técnica não será possível neste trabalho, pois desviaria o foco principal desta etapa da pesquisa, que é o de investigar as principais técnicas de arranjo presentes no arranjo vocal da canção popular brasileira. Contundo, podemos destacar dois tipos mais comuns de soli na escrita dos arranjadores vocais brasileiros. O primeiro tipo seria o soli com predomínio do movimento direto entre as vozes. Protásio (2006) comenta que essa textura destaca a melodia e dá leveza ao arranjo. O autor completa relatando que esse tipo de soli é encontrado com mais frequência nos arranjos vocais mais modernos. Discordamos do autor, pois como será observado nas análises que virão essa textura já é encontrada nos arranjos vocais de Os Cariocas, mostrando-se até mesmo uma característica do idioma do grupo. Ao aprofundarmos a questão, observamos que de Cozzella para cá os arranjadores vocais provinham de dois ambientes diferentes. O primeiro grupo, de formação erudita, como Samuel Kerr e Yara Campos, devido ao intenso contato com a tradição coral erudita, de textura tipicamente polifônica, desenvolveram uma escrita que privilegia a independência das vozes, caracterizado pelo movimento contrário e oblíquo entre as vozes. O próprio Kerr admite isso: 5
Para um estudo mais aprofundado da técnica de soli, recomendo as seguintes publicações: ALMADA, Carlos. Arranjo. Campinas: Ed. Unicamp, 2000. GUEST, Ian. Arranjo: volumes 1,2 e 3. Rio de Janeiro. Ed. Lumiar, 1996.
31 Quando eu era regente a Santa Casa, um dia resolvi que precisava escolher uma música popular e experimentar fazer um arranjo, pois eu tinha muito “escrúpulo”, achava que não sabia nada de música popular, e que transcreveria para coro o espirito a música popular. Eu acho isso até hoje: acho que fico fazendo “Palestrina”, “Lassus”, sei lá... (Kerr apud Souza, 2003: 158)
Já o outro grupo, de arranjadores de formação popular, como Marcos Leite e Vicente Ribeiro, possuem preferência pela movimentação direta entre as vozes, por essa, estar mais próxima da realização textural de arranjos instrumentais de canção popular. Sandra de Souza, na sua dissertação de mestrado intitulada O arranjo coral de música popular brasileira e sua utilização como elemento de educação musical (2003) concorda conosco. Segundo a autora:
No caso de Kerr e Campos, suas opções por determinados procedimentos de escrita, como a preferência pelo contraponto, por exemplo, se justifica pela experiência musical de ambos, ligada ao canto coral de tradição polifônica. Por outro lado, a homofonia e o uso da harmonia em bloco se fazem presentes nos procedimentos escolhidos pelos arranjadores que tiveram sua formação musical ligada a musica popular. (Souza, 2003: 67)
Vejamos um trecho da canção Garota de Ipanema de Tom e Vinícius, arranjada por Zeca Rodrigues. Aqui as vozes se movimentam paralelamente à melodia principal, que se encontra no naipe de sopranos.
Fig. 3 – Arranjo de Zeca Rodrigues para Garota de Ipanema
O segundo tipo de soli, como já deve ter ficado subentendido durante a discussão anterior, é aquele que emprega predominantemente movimentos indiretos, ou seja, contrários
32 e oblíquos. Observemos dois trechos do arranjo de Cozzella para o samba de Ary Barroso Prá Machucar meu Coração. Este é um bom exemplo de arranjador, assim como Kerr e Yara, que também foi influenciado pela música coral erudita.
Fig. 4 – Dois trechos do arranjo de Cozzella
1.3.2 Texturas aplicadas ao acompanhamento
Passemos agora a discussão das técnicas aplicadas ao acompanhamento. Almada (2000) usa o termo background ou BG para se referir ao extrato da textura que acompanha a melodia principal. O autor define background da seguinte forma:
O termo background (em inglês, “segundo plano”) é muito empregado no jargão musical para designar, a grosso modo, tudo aquilo que, numa determinada peça, ocorre entre o Solista (o foco principal, ou primeiro plano) e a base rítmica (que seria então o terceiro plano). Poderíamos também chamar de acompanhamento, embora este termo seja por demais abrangente, podendo designar, como sabemos, até o que fazem os próprios instrumentos de base. (Almada, 2000: 281)
Ian Guest (1996) não adota o termo background. Para o autor o que não é melodia principal, na textura, é contracanto. Guest define contracanto da seguinte maneira: “Contracanto ou contraponto é uma melodia que soa bem (combina) com um canto dado” (Guest, 1996: 95). Nas análises preferimos adotar a terminologia utilizada por Almada, no que se referir ao acompanhamento. Essa escolha se justifica por estarmos trabalhando com uma textura predominantemente homofônica, e nesse caso o conceito de background nos
33 parece mais coerente, já que o termo contracanto empregado por Guest suscitaria texturas polifônicas. De acordo com Almada, existem três tipos de backgrounds: melódico, harmônico, e rítmico. Essa definição do autor vai ao encontro à de Guest, quando este comenta que são três os tipos de contracantos. Para o autor, existem os contracantos ativos, passivos, e percussivos. Almada comenta que o background melódico pode ser definido como aquele em que a melodia principal é acompanhada por outra que lhe é subordinada nos aspectos intervalar, rítmico e motívico. Guest denomina essa textura de contracanto ativo. Segundo o autor:
O contracanto normalmente é livre, com idéias rítmicas independentes do canto, podendo se movimentar quando o canto está parado ou passivo, ou reforçar os ataques do canto ou, ainda, reforçar ataques rítmicos onde o canto não o faz. Há contracantos que, na memória popular, se tornam parte inseparável na melodia principal. (Guest, 1996: 110)
Como vimos, Guest e Almada discorrem sobre as mesmas estruturas, entretanto, fazem uso de terminologias diferentes. Já Protásio (2006) usa uma terminologia próxima a de Guest, o autor define contracanto livre da seguinte forma:
[...] é um contracanto que caminha junto com a melodia mas não “briga” com ela. Normalmente é escrito num ritmo contrastante, ou seja, se a melodia tem um ritmo muito ativo, o contracanto tem notas longas, e viceversa. É preferível usar notas guias e tensões neste tipo de contracanto. (Protásio, 2006: 27)
Vejamos agora um exemplo de background melódico, encontrado no arranjo vocal de Vera Cruz escrito por André Protásio. Neste trecho os tenores cantam a melodia principal, enquanto as sopranos executam o BG melódico.
Fig. 5 – Background melódico
34 Protásio ainda discorrendo sobre o contracanto completa: “O contracanto é uma ferramenta poderosa nos arranjos vocais. Com ela podemos dar uma nova cara à música. É a partir desta técnica que o arranjador começa a criar melodias que podem definir a forma geral do arranjo” (Protásio, 2006: 27). O autor aborda vários tipos de contracantos e ressalta que os principais seriam o contracanto livre e o contracanto em forma de pergunta e resposta. Protásio define este último da seguinte forma:
[…] como o próprio nome diz, responde a melodia principal. Este contracanto repousa onde a melodia principal está mais ativa e vice-versa. Pode imitar a melodia ou invertê-la mas o mais importante é que o contracanto se estabeleça, que seja tão regular quanto à melodia principal. (Protásio, 2006b: 27)
Vejamos agora um exemplo de contracanto em formato pergunta e resposta, presente na introdução do arranjo vocal de André Protásio para a canção de Lenine Que baque é esse? Neste trecho do arranjo as vozes femininas em uníssono cantam uma figuração, sendo respondidas pelas vozes masculinas também em uníssono. Esta técnica também é muito útil em finais de frase, onde a melodia principal repousa e o acompanhamento executa o contracanto auxiliando na manutenção do fluxo da musical.
Fig. 6 – Contracanto em formato pergunta e resposta
Seguiremos agora comentando o background harmônico. Este é normalmente constituído por acordes sustentados por notas longas, se presta muito bem para acompanhar naipes ou vozes solistas e é usado, grosso modo, em andamentos lentos e moderados. Protásio (2006) chama esta técnica de “cama harmônica”. O autor na sua apostila de arranjo vocal
35 discorre sobre essa textura. Segundo ele: “Se o interesse é acompanhar uma melodia, o mais importante é dar uma boa estrutura harmônica, sendo o mais discreto possível. [...] esta é a textura que talvez melhor represente o movimento oblíquo entre as vozes.” (Protásio, 2006b: 25). Almada concorda com Protásio e reforça o que já expomos: “Não é regra, mas de uma forma geral, trata-se quase sempre de um acompanhamento essencialmente harmônico, em notas longas, espaçamento aberto, próprio para andamentos medianos e lentos” (Almada, 2000: 289). Segundo Almada, nem sempre o background harmônico precisa estar abaixo do solista: dependendo da tessitura deste último, o acompanhamento pode envolvê-lo ou mesmo posicionar-se numa região mais aguda. O autor completa : “Dificilmente os BG's harmônicos são escritos em soli [...]. Tem mais a ver com a linguagem linhas que, embora formem os acordes quando combinadas, possuam certa independência melódica em relação às outras” (Almada, 2000: 289). O autor reforça o argumento: “Embora temos visto que BG's melódicos podem também aparecer em soli, caracteriza-se como BG harmônico todo aquele constituído pelo que se costuma chamar de acordes de sustentação (no jargão musical, esse tipo de BG é conhecido por cama)” (Ibid: 289). Para Guest (1996) essa técnica chama -se contracanto passivo harmonizado em bloco. Segundo o autor:
Ouvimos falar freqüentemente de uma “cortina harmônica” por trás da melodia principal. Mas conduzir por si só não basta. A boa cortina harmônica é um contracanto passivo harmonizado em bloco. Primeiro, criase um contracanto melodioso; depois, esse contracanto deve ser elaborado em bloco. O fato de o contracanto ser passivo ou de pouca mobilidade não diminui sua força melódica. Sua elaboração em bloco resulta em “cortina harmônica” forte e vigorosa, por ser encabeçada por uma melodia previamente criada. (Guest, 1996: 119)
Como vimos Guest pensa diferentemente de Almada quando desconsidera um acompanhamento essencialmente harmônico, construído com linhas independentes. Para o autor o BG harmônico deve basear-se em um contracanto passivo, ou seja, de pouca movimentação rítmica, harmonizado em soli. Acreditamos que ambas as possibilidades são empregáveis, todavia, na atualidade, encontramos com maior freqüência o BG harmônico nos moldes citados por Guest. Vejamos abaixo dois exemplos. O primeiro é um BG harmônico no formato citado por Almada. O segundo, um BG harmônico como descrito por Guest.
36
Fig. 7 - BG harmônico encontrado no arranjo vocal de Lua, Lua, Lua, Lua
Fig. 8 – BG harmônico presente no arranjo de Rogério Carvalho para Casinha Pequenina
Vamos comentar agora o background rítmico, uma textura muito usual no arranjo vocal de canção popular brasileira, tendo em vista a sua excelente aplicação devido à riqueza rítmica da nossa música popular. Almada (2000) considera: “É aquele usado quando se deseja dar à melodia principal um acompanhamento mais movimentado, percussivo, quase sempre enfatizando ritmicamente o estilo musical e o caráter da passagem” (Almada, 2000: 291). Protásio aborda esta técnica de forma aprofundada na sua apostila de arranjo vocal, na qual denomina essa textura de “Estruturas Rítmicas”. Segundo o autor:
37 Muitos grupos vocais americanos trabalham como “vocal band”, imitando instrumentos e quase que transcrevendo os arranjos instrumentais para o vocal. Em determinadas músicas, esse tipo de textura, um solo acompanhado por “instrumentos”, mantém a leveza e o swingue e faz com que a música vocal fique mais próxima da música popular original. É claro que alguns arranjadores brasileiros, aproveitando da riqueza rítmica da nossa MPB, já escreveram vários arranjos com esta textura e hoje temos bom repertório de sambas, maxixes, frevos, afoxés etc. (Protásio, 2006b: 24)
Já Guest denomina esta textura de fundo percussivo. Segundo o autor: “...é uma especie de ostinato (=obstinado, do italiano) rítmico ou frase rítmica que se repete “obstinadamente”, enriquecendo a pulsação natural da melodia” (Guest, 1996: 122). Ele completa: “Para obter peso e o ataque necessários ao som percussivo, os instrumentos (vozes) trabalham em uníssono ou em bloco” (Ibid, 1996: 122). Vejamos agora um exemplo extraído do arranjo vocal de Marcos Leite para a canção Asa Branca de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Neste trecho as vozes masculinas executam uma célula rítmica característica do gênero Baião, enquanto as vozes femininas cantam a melodia principal em uníssono.
Fig. 9 – BG rítmico simples
Aqui fica ilustrado um uso simples da técnica de BG rítmico, nos moldes descritos por Guest. Observemos outro exemplo desta textura, desta vez no estilo “vocal band” , descrito anteriormente por Protásio (2006). O arranjo é de Zeca Rodrigues para a canção Vamos Fugir de Gilberto Gil. Neste arranjo o aspecto instrumental é bastante valorizado. O naipe de baixos canta uma linha melódica, inspirado no “ groove” característico do contrabaixo elétrico no gênero reggae, enquanto as vozes femininas articulam uma célula rítmica que simula a “levada” de uma guitarra neste mesmo gênero africano. A melodia principal encontra-se com
38 os tenores. Segundo o próprio Rodrigues (2008) neste tipo de acompanhamento de “intenção instrumental”, o canto tradicional se torna menos importante, e dá lugar a um trabalho de pesquisa de timbres e imitação de instrumentos típicos de cada gênero.
Fig. 10 – BG rítmico no estilo “Vocal Band”.
Os autores Rodrigues e Protásio concordam que para se escrever arranjos vocais utilizando-se desta técnica, fazem-se necessárias pesquisas que levantem dados característicos sobre cada gênero musical que se deseje arranjar e seus conteúdos de linguagem. Segundo Rodrigues: “Não se pode escrever um arranjo de um samba sem se conhecer sam ba, e como atuam esses instrumentos dentro dessa música” (Rodrigues, 2008: 11). Protásio (2006) enfatiza a importância de ouvir o arranjo instrumental e “dissecá -lo” a ponto de se entender a função rítmica de cada instrumento dentro do arranjo. O autor acrescenta e finaliza a discussão sobre essa textura:
Existem várias maneiras de fazer uma estrutura rítmica (BG rítmico). Uma delas, e talvez a mais usada, é separar esta “base vocal”e duas funções rítmicas diferentes: o naipe dos baixos fica com um função similar ao baixo instrumental e as outras vozes (S, C e T) fazem uma outra sessão rítmica. [...] Uma boa dica é definir a linha do baixo, analisar a melodia e preencher a harmonia com um soli a três ou duas vozes nos naipes que estão fazendo o acompanhamento. (Protásio, 2006b: 37)
Com intuito de resumir e ilustrar as texturas mais encontradas no arranjo vocal de canção popular brasileira, apresentamos a tabela abaixo com as principais combinações entre melodia principal e background . Devemos acrescentar que qualquer um dos uníssonos
39 também pode ser um solo, tendo em vista, é claro, o devido cuidado em equilibrar os naipes na hora da escrita, com o uso de dinâmicas diferenciadas de acordo com o grau de importância e função de cada naipe ou extrato da textura.
M elodia prin cipal
BG (background)
Uníssono Soli Uníssono
uníssono (melódico ou rítmico) uníssono (melódico ou rítmico) soli (melódico, harmônico ou rítmico)
Soli
soli (melódico, harmônico ou rítmico) Quadro 7 – Quadro de combinações texturais
Tendo em vista a revisão terminológica empreendida, bem como a apresentação dos conceitos tais como serão entendidos no presente estudo, podemos passar à apreciação do processo de constituição de uma estética do arranjo de canção popular brasileira, a partir do que serão enfocados e analisados alguns dos arranjos vocais que julgamos mais representativos para essa pesquisa. Algumas técnicas específicas de escrita para vozes que não foram enfocadas neste capítulo serão discutidas e conceitualizadas quando das análises dos trechos em questão. Optamos por não incluí-las aqui por julgarmos pouco recorrentes, sendo consideradas características singulares de cada arranjador, mais do que um aspecto comum do arranjo de canção popular brasileira, como acontece com as outras técnicas acima abordadas. Neste capítulo definimos o conceito de arranjo a ser adotado no presente trabalho. Examinamos como se dá a prática do arranjador na música popular brasileira e estudamos a textura como ferramenta analítica e composicional na escrita dos arranjos vocais de canção popular brasileira. A partir desses conhecimentos e ferramentas, poderemos dar início ao estudo que se segue.
40
Capítulo 2 VILLA-LOBOS E OS CARIOCAS
Este capítulo pretende destacar dois momentos que julgamos de suma importância na trajetória do arranjo vocal de canção popular no Brasil, são eles.
início, nos anos 1930, com o compositor Villa-Lobos e os primeiros arranjos corais de canção popular brasileira. Década de 50, a “Era do Rádio”, a Rádio Nacional e os s eus grupos vocais, com destaque para o trabalho do arranjador Ismael Netto junto ao conjunto Os Cariocas.
O principal objetivo aqui será o de investigar as principais contribuições estéticas que o arranjo vocal de canção popular recebeu nesses dois momentos. Para tanto, serão analisados arranjos de Villa-Lobos e de Os Cariocas. Aplicaremos a esse repertório o método de análise textural apresentado pelos autores Ostrander e Wilson, no livro Contemporary Choral Arranging (1986), que adaptamos para esta pesquisa, no intuito de destacar os procedimentos texturais adotados por cada um dos arranjadores.
41 2.1 VILLA-LOBOS E O SURGIMENTO DE UMA NOVA ESTÉTICA NO ARRANJO CORAL BRASILEIRO
2.1.1 O canto orfeônico, definição, origens e características
O canto orfeônico teve sua origem na França em meados do século XIX, como uma modalidade específica de canto coletivo que se diferenciava do canto coral tradicional da época. Segundo nos relata Alessandra Lisboa, em sua dissertação de mestrado “ Villa-Lobos e o canto orfeônico: música, nacionalismo e ideal civilizador” (2005), o canto coral francês privilegiava um repertório que exigia dos cantores um alto nível técnico e, como isso, estaria direcionado à formação de músicos profissionais, ao exigir conhecimento apurado de técnica vocal e teoria musical. Já o canto orfeônico surge com o objetivo de reunir pessoas com pouca ou nenhuma formação musical, em grupos de número variável e sem classificação de vozes. De acordo com Lisboa, a principal característica do canto orfeônico, ao contrário do canto coral ensinado nos conservatórios franceses, seria:
[...] sua função seria de alfabetização musical, tarefa a ser realizada nas escolas regulares, ao contrário do ensino musical profissional, realizado em conservatórios. Uma vez implantado na escola regular, seria possibilitada uma popularização da prática e do conhecimento musical, que passariam a atingir diversos setores sociais. (Lisboa, 2005: 58)
Em 1833, o orientador do ensino de canto nas escolas parisienses, BouquillonWilhem, utilizou pela primeira vez o termo “orfeão” ( orpheón) ao se referir a grupos de alunos das escolas regulares que se reuniam para cantar em audições e apresentações públicas. Na mitologia grega, o termo refere-se ao deus músico Orfeu e está associado à origem mítica da música e à sua capacidade de gerar comoção naqueles que a ouvem. Segundo Lisboa (2005) essa associação mitológica foi utilizada pelo canto orfeônico com o intuito de despertar os aspectos integrativo e afetivo dos alunos, ao conquistar sua dedicação e paixão pela música. Por outro lado, Orfeu também era simbolizado pelo canto acompanhado pela lira. Essa associação mitológica tem referência na relação música – poesia, sendo utilizada pelo canto orfeônico para a transmissão de valores morais e padrões de comportamento através das letras das canções. Renato Gilioli (2003) na sua dissertação de
42 mestrado intitulada “Civilizando pela música: a pedagogia do canto orfeônico na escola paulista da Primeira República (1910-1920)” (2003) argumenta:
O canto orfeônico, dessa forma, teria sido usado com a função de elevar o nível moral e artístico da população, ou “civilizar”grande contingentes da massa popular, o que seria permitido por estar inserido no sistema público de educação. (Gilioli, 2003: 55)
De acordo com o autor, o canto orfeônico tentou implantar padrões de comportamento aos seus praticantes e, através destes, procurou divulgar mensagens aos espectadores, acabando por se tornar uma espécie de instrumento de divulgação e propagação de ideais sociais e políticos, de acordo com o contexto ideológico que a França então vivia. Percebemos desta forma, agregadas ao canto orfeônico, os ideais de integração social e unidade coletiva, que seriam alcançados por meio da comoção propiciada pela música juntamente com a transmissão de valores morais contidos nos textos das canções. Segundo Lisboa (2005) a função desses aspectos propiciou ao canto orfeônico assumir um caráter cívico e patriótico, em consonância com as diretrizes ideológicas nacionalistas que subjaziam ao papel do Estado na educação pública. Sobre nacionalismo a autora considera que:
O termo “nacionalismo”consiste em uma ideologia e em um princípio político que surgiu em fins do século XVIII, com a Revolução Francesa, e que fundamentou a coesão dos Estados Modernos surgidos desde então. Trouxe a idéia de “nação” como Estado soberano que agregaria seus membros em um território delimitado coerentemente, unidos pela história, cultura, composição étnica e língua comuns. (Lisboa, 2005: 59)
A revolução francesa foi marcada pela luta da classe burguesa, até aquele momento excluída das decisões políticas, contra a tradicional monarquia, regida pela divisão hierárquica de poderes e definida por aspectos de hereditariedade e pela manutenção de privilégios aos possuidores de titulação nobre. A burguesia implementou as bases para a transformação da França em uma nação soberana, liberal, moderna, progressista, republicana e democrática. Acabando por se tornar um modela de Estado nacional e moderno, a ser seguindo por outros países.
43 De acordo com que nos relata Lisboa (2005), nesse modelo de nação, o indivíduo passa a ser valorado e a sua participação é desejada nas decisões sobre que caminhos devem ser seguidos pelo país, podendo participar da elaboração das leis por meio de seus representantes. O Estado ficaria encarregado da formação desse cidadão, que passaria a possuir direitos e deveres6. Seria também de responsabilidade do Estado, como instituição suprema, a promoção de ações para impor e manter a ordem nacional, em consonância com os ideais de nação instituídos pela ideologia nacionalista. Eric Hobsbawan no seu livro “A era das revoluções” (1981), concorda que esse modelo de
Estado advindo da Revolução Francesa
tornou-se um padrão a ser difundido pelo mundo. Segundo o autor:
A França forneceu o vocabulário e os temas da política liberal e radicaldemocrática para a maior parte do mundo. A França deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o vocabulário do nacionalismo (...). A ideologia do mundo moderno atingiu as antigas civilizações que tinham até então resistido ás idéias européias inicialmente através da influência francesa. Esta foi a obra da Revolução Francesa. (Hobsbawm, 1981: 71-72)
A educação pública, como dever e responsabilidade do Estado, representou segundo Lisboa (2005) a ferramenta máxima pela qual seria promovida a formação republicana do cidadão. Segundo a autora, é nesse contexto que passou a predominar um novo modelo de educação, muito influenciado pelas idéias de pedagogos como Jean Jacques Rousseau e Johann Heinrich Pestalozzi, ambos considerados precursores do movimento conhecido como “Escola Nova”. Esse movimento propunha um método pedagógico no qual respeita -se o desenvolvimento psicológico infantil, compreendendo a existência de diferenças individuais, adequando o processo educacional às etapas de desenvolvimento naturais da criança e valorizando os interesses e experiências próprias à cada uma. De acordo com Lisboa, esse modelo de escola nova trouxe consigo a idéia da importância fundamental da educação como elemento formativo do cidadão e, por conseqüente, da sociedade como um todo, elemento este que deveria ser de total responsabilidade do Estado. A autora completa: “Além disso, o modelo educacional proposto trouxe a inclusão da música, que era vista como elemento influente na formação do caráter do cidadão, nos currículos das escolas públicas, por meio da presença de canções no repertório escolar” (Lisboa, 2005: 60).
6
Podemos destacar aqui a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, promulgada em 1789.
44 O canto orfeônico surgiu cercado por um universo mítico e simbólico, inserido em um novo modelo de educação repleto de ideais nacionalistas, originados pela Revolução Francesa, caracterizando-se pelos aspectos cívico e patriótico que adquiriu. A fusão desses aspectos trouxe consigo também o sentido de “civilizar” a s massas populares, ao inserir a transmissão de valores morais e culturais, cultivando o apreço por um repertório específico, em detrimento de outros. Segundo Lisboa: “Com essas diretrizes, o movimento tomou grandes dimensões e estabeleceu até uma imprensa orfeônica especializada na França, além de difundir-se para outros países tais como Alemanha, Espanha, Inglaterra, países do Leste Europeu, Estados Unidos e Brasil” (Lisboa, 2005: 61). Gilioli (2003) ressalta:
[...] de acordo com os postulados do orfeonismo, parte-se do envolvimento integrativo-afetivo dos cantantes com a música [...], passa-se pela idéia de “civilização” dos costumes e harmonização social e chega-se, finalmente, ao culto da Nação e de seu representante, o Estado, salientado o caráter apolíneo dos orfeões. (Gilioli, 2003: 55)
O canto orfeônico foi utilizado na França com o objetivo de civilizar o povo, ao impor padrões de escuta e de conduta. Essa breve exposição, em linhas gerais, da origem, definição e características do canto orfeônico tornou-se necessária e importante na medida em que, além de permitir maior compreensão da gênese do próprio movimento, auxiliará no entendimento a respeito do seu desenvolvimento no Brasil.
2.1.2 VILLA-LOBOS
E O CANTO ORFEÔNICO
Ao contrário do que muitos acreditam o canto orfeônico no Brasil não se inicia com Villa-Lobos (Lisboa, 2005). Segundo Gilioli (2003), a partir de meados do século XIX já se pode constatar a presença da música nos currículos escolares. Entretanto, o autor ressalva que até o início do século XX a prática da música nas escolas públicas tinha caráter recreativo, ocupando os intervalos entre as demais disciplinas, e estava longe de se constituir como uma disciplina autônoma. Lisboa concorda com Gilioli e acrescenta que:
Foi durante as décadas de 1910 e 1920 que puderam ser notadas no Brasil as primeiras manifestações de um ensino caracterizado como canto orfeônico
45 que, de acordo com as diretrizes com as quais se desenvolveu e se caracterizou desde o seu surgimento na Europa, foi utilizado com o objetivo de atuar na escola pública com a função de pedagogização e de popularização do saber musical, por meio da alfabetização musical da população inserida no sistema público de educação. (Lisboa, 2005: 68)
Essas primeiras atividades orfeônicas se manifestaram de início, no estado de São Paulo. Na década de 1910, o regente paulista Fabiano Lozano criaria no município de Piracicaba o que viria a ser o primeiro orfeão brasileiro. O Orfeão Piracicabano conquistou na década seguinte a admiração do público e de pessoas ilustres como Mário de Andrade, que a ele dedicou entusiasmado artigo de jornal. No início dos anos 1930, o maestro Lozano apresentou à Diretoria Geral de Ensino do Estado de São Paulo o seu projeto de ensino de canto orfeônico, a ser aplicado nas escolas do estado. Após a revolução de 1930, Getúlio Vargas ascende ao poder e apóia a implantação do canto orfeônico nas escolas de diversos estados, dentre eles São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco. A fusão da política Vargas com o projeto de nacionalização das elites intelectuais introduziu, em 1931, a obrigatoriedade do ensino de música em todos os níveis escolares. Sandra Souza, na sua dissertação de mestrado intitulada “ O arranjo coral de música popular brasileira e sua utilização como elemento de educação musical ”, comenta este fato: “Extrapolando as funções estéticas e pedagógicas, a inclusão da música na reforma de ensino se tornou possível pelo reconhecimento por parte dos poderes oficiais de sua importância na formação de uma “consciência nacional” por meio da educação” (Souza, 2003: 14). Todavia, a autora argumenta: Em suma, a relação música nacionalista – Estado é bastante complexa, não sendo possível resumi-la a uma mera posição e/ou imposição ideológica do Estado em relação à arte, sendo muito mais a combinação de diversos outros fatores sociológicos que tornaram possível a congruência de idéias entre arte – no caso a música – e política. (Ibid., p.15)
Com o advento da obrigatoriedade do ensino da música na rede escolar, surgem inúmeros projetos, propostas e modelos para este fim. Entre eles, o projeto pedagógico de Heitor Villa-Lobos. Nele, o compositor defendia a instituição de um programa de educação musical que agregasse todos os níveis escolares e abrangesse todo o território nacional. VillaLobos já havia tornado público, em solenidade organizada pela Universidade do Brasil, atual UFRJ, o seu projeto cultural e educacional. Em abril de 1931, Villa-Lobos é nomeado Diretor
46 de Educação Musical do Distrito Federal. Estava fundada a instituição que iria ditar as regras e os procedimentos para implantação do canto orfeônico em todo o país, a SEMA (Superintendência de Educação Musical e Artística da Prefeitura do Distrito Federal). O ensino do canto orfeônico permaneceu nas escolas até os anos 1960, quando então foi substituído pela Educação Musical. Segundo Souza, a LDBEN Nº. 5692, promulgada em 1971, extinguiu a disciplina do sistema educacional brasileiro.
2.1.3 O ARRANJO CORAL DE LUAR DO SERTÃO
Com a implantação do canto orfeônico em nível nacional, Villa-lobos se viu na responsabilidade de criar e organizar o material didático a ser utilizado no projeto. Daí surgiram os Cadernos de Canto Orfeônico - volumes 1 e 2, o Guia Prático que, segundo Souza, teve seis volumes planejados, dos quais apenas o primeiro foi editado, e algumas partituras que foram publicadas de forma avulsa. Examinamos esse material em busca de arranjos corais baseados na música popular urbana, foco principal dessa pesquisa. Encontramos no Caderno de Canto Orfeônico – Volume 2 três arranjos de canções de sucesso, todas lançadas no mercado fonográfico da época. São elas: Santos Dumont , de Eduardo das Neves; Canção do Pescador Brasileiro, de Bastos Tigre e Eduardo das Neves; e Canção do Marinheiro, de Benidito Xavier de Macedo e Antônio M. Espírito Santo. Esta última veio mais tarde a se tornar o Hino da Marinha, também conhecido como Cisne Branco, emprego que tem até hoje. Além dos arranjos citados, encontramos no acervo do Museu Villa-Lobos um arranjo para coro misto a cappella da toada Luar do Sertão, que não chegou a ser editado. Beatriz Leme, na sua dissertação de mestrado intitulada “ Guerra-Peixe e as 14 canções do Guia Prático de Villa-Lobos – Reflexões acerca da prática da transcrição” (2000), comenta que este é um dos primeiros arranjos corais de música popular brasileira de que se tem registro, e foi escrito por Villa-Lobos no início dos anos 30. Luar do Sertão, com música de João Pernambuco e letra de Catulo da Paixão Cearense, foi lançada em 1914, na interpretação de Almirante. Alcançou enorme sucesso na época, tornando-se, a partir de 1939, o prefixo musical da Rádio Nacional, sendo bastante conhecida até hoje. Segundo Severiano e Mello:
47 [...] É um dos maiores sucessos de nossa música popular em todos os tempos. Fácil de cantar, está na memória de cada brasileiro, até dos que não se interessam por música. Como a maioria das canções que fazem apologia da vida campestre, encanta principalmente pela ingenuidade dos versos e simplicidade da melodia. (Severiano e Mello, 1997: 39)
Por essas razões, escolhemos este arranjo como objeto da nossa análise. Tivemos acesso, no Museu Villa-Lobos, a três versões dessa partitura, todas mimeografadas. Em uma delas encontramos a referência ao Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. Nas demais, não foram encontradas referências quanto à procedência. As partituras são idênticas do ponto de vista da escrita, diferenciando-se apenas na diagramação. Escrito para cinco vozes, coro misto (soprano, mezzo-soprano, contralto, tenor e barítono), com os sopranos dividindo a mesma pauta com os mezzo-sopranos, este arranjo foi provavelmente composto para o orfeão dos professores, grupo que segundo nos relata Alexand ra Lisboa na sua dissertação “Villa Lobos e o canto orfeônico: música, nacionalismo e ideal civilizador” (2005), era formado por professores do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, que cantava um repertório variado, composto de peças eruditas e arranjos de música folclórica. Com relação à forma do arranjo, Villa-lobos mantém a original da canção, acrescentando apenas uma introdução e uma codeta. A forma final apresenta-se no esquema demonstrado a seguir:
I ntr odução
Seção A
Seção B
Seção A
Codeta
c. 01 ao 08
c. 09 ao 12
c.13 ao 25
c.26 ao 31
c.32 ao 36
Quadro 8 – Forma do arranjo de Luar do Sertão
Lisboa (2005) afirma ser bastante recorrente nos arranjos corais escritos por VillaLobos para o canto orfeônico a forma A-B-A, precedida de pequenas introduções que, em muitos casos, utilizam onomatopéias como “lá, lá”, “nan, nan” ou ainda, como no caso deste arranjo, “tum, tum” e “um”. A introdução pode ser dividida em duas partes. A primeira compreende os quatro compassos iniciais, e se faz sobre a cadência I-V-I do tom de Dó Maior, tom principal do arranjo. Os naipes de contralto, tenor e barítono vocalizam acordes sustentados com a sílaba
48 “tum”. André Protásio, na sua dissertação de mestrado intitulada “ Arranjo vocal de música popular brasileira para coro a capella”
(2006), chama esses fonemas de “prosódias neutras”,
entretanto, percebendo um equívoco aqui, preferimos utilizar o termo “fonética neutra”, pois estes são fonemas que não constituem, propriamente, palavras, são empregados ora com função onomatopaica, ora para dar caráter instrumental às vozes. Protásio comenta que, nesses casos, quando a intenção é de apenas sustentar a harmonia, a articulação deve se dar com vogais “a”, “u” ou “o”. Aqui o compositor utiliza as consoantes “t” para articular o ritmo e “m” para auxiliar na ressonância, causando um efeito sonoro muito próximo da boca chiusa.
Fig. 11 – Primeira parte da introdução
A segunda parte da introdução tem início no c.05 e termina no c.08. Este trecho apresenta um pouco mais de movimentação rítmica das vozes de tenor e baixo, mantendo os acordes sustentados sobre a progressão VI-VII-V-I-V.
49
Fig. 12 – Segunda parte da introdução
Façamos agora uma breve comparação da textura apresentada nesta introdução com a que encontramos na introdução do arranjo para vozes femininas de Vieira Brandão para a canção Azulão, música de Jayme Ovalle, com letra de Manuel Bandeira. A textura apresentada pela introdução do arranjo de Vieira Brandão é predominantemente polifônica, apresentando motivos rítmicos que se completam, soando como pergunta e resposta. Protásio (2006) denomina a textura presente no arranjo de Vieira Brandão de polifonia rítmica, e completa afirmando que esta se caracteriza por melodias que se complementam, com funções diferentes para cada linha. Podemos notar a acentuada diferença textural apresentada por cada uma das introduções. Enquanto Villa-Lobos opta pela progressão de acordes sustentados, Vieira Brandão prefere a polifonia, e faz uso de motivos rítmicos em contraponto.
Fig. 13 – Introdução de Azulão, arranjo de Vieira Brandão
50 Na seção A encontramos apenas uma frase, que tem início anacrústico no compasso 09 e termina no compasso 12. Este trecho é o famoso refrão da canção, no qual é exposta a textura homofônica que vai prevalecer por todo o arranjo. Podemos perceber que Villa-Lobos teve o intuito de destacar a melodia principal gerando dois planos bem distintos, inclusive no que tange a importância de cada um deles. Por esse motivo, acreditamos que o conceito de melodia com background seja o mais adequado para definir essa textura. Neste trecho o fluxo do acompanhamento é interrompido apenas no compasso 12, onde a melodia principal finaliza a frase e as vozes masculinas fazem um contracanto em soli utilizando um padrão rítmico já exposto pelas vozes masculinas na introdução. Segundo Protásio (2006), contracantos apenas preenchendo espaços da melodia e a mesma harmonizada em bloco são elementos texturais que demonstram uma valorização da melodia principal e uma busca da simplicidade na condução das vozes.
Fig. 14 – Refrão
Observemos agora uma frase do arranjo escrito para coro misto por Lorenzo Fernândez para a modinha Casinha Pequenina. Está presente aqui, como também foi visto em Vieira Brandão, o predomínio da textura polifônica, textura esta reforçada pela presença do texto escrito para todas as vozes. Segundo Protásio (2006), esta textura polifônica, somada à presença da letra da canção em todos os naipes, podem gerar problemas no entendimento da melodia principal. Almada (2000) discorrendo no seu livro sobre a textura polifônica na música popular considera que: “[...] na música popular são raras as texturas polifônicas reais. Ela (a música popular) é essencialmente homofônica.” Almada (2000: 327).
51
Fig. 15 – Casinha pequenina arranjo de Lorenzo Fernândez
Apesar de a melodia principal estar no soprano, este arranjo de Lorenzo Fernândez não apresenta uma textura que gere planos e destaque a melodia principal em relação às outras linhas melódicas, como acontece claramente no arranjo de Villa-Lobos. A escrita sugere que todas as vozes têm o mesmo grau de importância, como é típico em texturas polifônicas tradicionais. A seção B do arranjo de Luar do Sertão pode ser dividida em quatro frases. A primeira frase tem início na anacruse do compasso 13 e termina no compasso 17. Neste trecho o soli dos sopranos com as meio-sopranos se mantém paralelo, mas agora alternando terças e sextas. O naipe de tenores apresenta um pouco mais de movimentação rítmica, articulando semínimas, ao invés de mínimas. A progressão harmônica desta frase é: VI-VII-V-I. Segundo Guest (1996), no Soli a duas vozes, a alternância entre terças e sextas resolve o problema das notas indesejáveis na harmonia e diminui a monotonia da mesmice dos intervalos.
52
Fig. 16 – Primeira frase
A segunda frase da seção B começa na anacruse do c. 18 e termina no c. 21. Nesta frase o soli passa a ser feito pelo naipe de sopranos juntamente com o de contraltos, ainda alternando sextas e terças, sempre em movimento paralelo. Os mezzo-sopranos se unem às vozes masculinas para compor o background harmônico com notas longas. A harmonia deste trecho é uma cadência I-V-I. A textura gerada por Villa-Lobos, com uso do soli na melodia principal, e a mesma sendo acompanhada por um background harmônico, indicam a preocupação do compositor em aproximar o arranjo coral da estética característica da música popular.
Fig. 17 – Segunda frase
53 Vejamos agora um trecho da introdução do arranjo coral escrito por Vieira Brandão para a marchinha carnavalesca Cidade Maravilhosa, de autoria de André Filho. Podemos observar uma textura polifônica, baseada no contraponto imitativo. Nesse caso, as vozes movimentam-se com independência, sendo ligadas pelo princípio condutor da imitação. Esta é uma textura distante da música popular e próxima da música coral sacra.
Fig. 18 – Cidade Maravilhosa, arranjo de Vieira Brandão
A terceira frase da seção B do arranjo de Villa-Lobos começa na anacruse do c. 22 e finaliza no c. 25. Esta frase apresenta o único contraste do arranjo, apesar de não interferir na textura predominante. Neste trecho, acontece a inversão dos papéis atribuídos a cada naipe. O naipe de soprano, que até aqui ficou responsável por cantar a melodia principal, deixa de fazê-lo, passando o naipe de tenor a assumir este papel. As vozes masculinas passam a fazer o bloco que antes vinha sendo feito pelos naipes de soprano e contralto, mantendo sempre o paralelismo de sextas e terças. As vozes femininas, por sua vez, passam a cumprir a função de acompanhamento, antes feita pelas vozes de tenor e baixo. Esta frase se estrutura sobre uma cadência I-V-I.
54
Fig. 19 – Terceira frase de B
A quarta frase da seção B é exatamente igual a terceira, apresentando mudanças apenas quanto a letra da canção. Após está frase acontece a repetição da seção A (refrão) sem alterações e, ao término desta, encontramos a codeta, que tem início no c. 32 e termina no c. 36. Do ponto de vista da textura, essa codeta se assemelha à introdução do arranjo, com os seus acordes sustentados. Todavia, ao contrário da seção inicial, a codeta possui a presença dos naipes de sopranos e meio-soprano sustentando notas pedais, enquanto as outras vozes articulam os acodes de I e VI graus, vocalizando a sílaba “tum” até o último acorde, onde soa a sílaba “um”.
Fig. 20 – Codeta
55 Além da importância histórica deste arranjo, podemos notar durante a análise que esta peça inaugura uma nova estética na escrita coral, apresentando uma textura predominantemente homofônica, bastante simples e transparente, caracterizada pelo soli paralelo de terças e sextas, que valoriza e destaca a melodia principal, sobre um acompanhamento de acordes sustentados ( Background harmônico). Marcos Leite, ao comentar o pioneirismo de Villa-Lobos, diz o seguinte:
Do Villa-Lobos para cá tem uma historinha no canto coral brasileiro. Acho que ele é o cara mais importante, no sentido de utilizar a música folclórica numa estrutura de música européia. Pegar uma técnica de escrita de coro européia (S, C, T e B) e escrever ponto de macumba, escrever ciranda, maracatu, estas coisas. Ele foi o primeiro cara que fez isso. Se não o primeiro, foi o primeiro a ser reconhecido a nível nacional e tal... Acho que ele foi fundamental, genial. (Leite apud Afonzo, 2004: 213).
A tabela abaixo traz um resumo das texturas encontradas no arranjo de Luar do Sertão.
Seções
I ntr odução
Seção A
Seção B
Seção A
Codeta
compassos
c. 01 ao 08
c. 09 ao 12
c.13 ao 25
c.26 ao 31
c.32 ao 3
-
Soli a duas vozes
Soli a duas vozes
Soli a duas vozes
-
(soprano e mezzo)
(soprano e contralto)
(tenor e barítono)
Melodia principal
BG har môni co BG har môni co BG har môni co BG har môni co BG har môni co Acompanha- mento
(contralto, tenor e barítono)
(contralto, tenor e barítono)
(mezzo, tenor e barítono)
(soprano, mezzo e contralto)
(todos)
Quadro 9 – Quadro das texturas encontradas no arranjo coral de Luar do Sertão
2.1.4 OS DEMAIS ARRANJOS DE VILLA-LOBOS
Faremos agora uma breve exposição das texturas encontradas nos outros três arranjos corais citados no início deste tópico. Trata-se de arranjos escritos por Villa-Lobos para as canções populares urbanas Santos Dumont, Canção do Marinheiro e Canção do Pescador
56 Brasileiro. Serão ignoradas as repetições integrais de seções que resultarem do uso de ritornelo e D.C .
Santos Dumont Seções
I ntr odução
Seção A
Seção B
compassos
01 ao 16
17 ao 24
25 ao 39
M elódia pr inci pal
Soli a duas vozes
Soli a duas e tr ês vozes
Soli a tr ês vozes
Quadro 10 – Quadro da textura do arranjo de Santos Dumont
Can ção do M ar inheir o Seções
I ntrodução
Seção A
I ntermezzo
Seção B
compassos
01 ao 19
20 ao 52
53 ao 56
57 ao 88
Uníssono,
Uníssono
M elodia pri ncipal
soli a duas vozes
Soli a duas vozes
Acompanhamento
x
X
X Back gr oun d r ít-
Back gr oun d r ít-
mico
mico
Quadro 11 – Quadro da textura de Canção do marinheiro
Fig. 21 – Background rítmico encontrado na Canção do Marinheiro
57 Can ção do Pescador Brasileir o Seções
Seção A
I nter mezzo
Seção B
compassos
01 ao 12
13 ao 20
21 ao 28
M elodi a pr inci pal
Soli a tr ês vozes
Uníssono
Uníssono
Acompanhamento
x
X
Backgr ound r ítmi co
Quadro 12 – Quadro da textura
Fig. 35 – Background rítmico encontrado na Canção do Pescador Brasileiro
Podemos concluir que a textura predominantemente homofônica apresentada por Villa-Lobos no arranjo de Luar do Sertão, e nos demais arranjos aqui expostos resumidamente, inaugura uma nova estética no arranjo coral brasileiro, influenciando assim o que viria a seguir.
58 2.2 O IDIOMATISMO DE OS CARIOCAS
2.2.1 A RÁDIO NACIONAL E SEUS GRUPOS VOCAIS
Era festa particular promovida pela Rádio Nacional em homenagem ao maestro Villa-Lobos e uma grande orquestra foi posicionada no palco para a ocasião, palco inclusive ampliado para acolher um número de músicos maior que o usual. Peças de Villa-Lobos foram executadas e o contraste sonoro que ocorreria causava apreensão aos membros do grupo, pois entrariam com violão e violão tenor, após a atuação de dezenas de instrumentistas. Ao término da apresentação desta canção ouviu-se o tradicional aceno de Bravo da platéia, e, de pé, estava Villa-Lobos a aplaudir o conjunto. (Teixeira, 2007: 146)
O fato descrito acima ocorreu em 1947, com o grupo Os Cariocas, e foi relatado pelos membros do grupo, Severino, Badeco e Quartera, em entrevista concedida a Neil Teixeira, em 2007. A chamada “Era do Rádio” se caracterizou pela chegada das grandes gravadoras multinacionais ao Brasil e pela enorme popularidade alcançada por esse que seria o primeiro meio de comunicação de massa do século. Na década de 1930, instala-se um mercado fonográfico em ascensão e as rádios passam a desempenhar um papel social de enorme importância. Segundo Ruy Castro, no seu livro Chega de Saudade – história e histórias da bossa nova (1990), o rádio era tão ou até mais importante que a televisão dos nossos dias. É nesta fase que surgem os primeiros grupos vocais contratados pelas rádios e também pelos cassinos. Estes grupos eram, em sua maioria, formados apenas por homens. Um dos primeiros grupos vocais de que se tem registro foi formado em meados de 1928 com o nome de Flor do Tempo, e em 1929 passaria a se chamar O Bando dos Tangarás. Este grupo segundo nos relata Souza (2003) tinha entre os seus integrantes três músicos que mais tarde se tornariam estrelas da MPB: Braguinha, Noel Rosa e Almirante. Entretanto, o grupo vocal de maior destaque deste período foi o Bando da Lua. Formado em 1929, o conjunto fez muito sucesso gravando marchinhas de carnaval. Em 1939, o grupo inicia carreira internacional acompanhando a cantora Carmem Miranda em excursões pela Argentina e Estados Unidos, tendo também participado de alguns de seus filmes. A partir de 1944, o Bando da Lua passa a dar maior ênfase a um repertório que mescla músicas norteamericanas e versões, acompanhando a política de países aliados firmada entre Brasil e
59 Estados Unidos. Segundo Souza (2003) o Bando da Lua foi o primeiro grupo vocal a construir harmonizações vocais, à moda americana da época. O estilo americano ao qual a autora se refere tinha como característica principal as “ close harmonies”, técnica onde a melodia principal é harmonizada por blocos de acordes em posição fechada. Ricardo Cravo Albin, comparando o Bando da Lua aos grupos vocais norteamericanos, comenta que embora os arranjos vocais do grupo não se equiparassem em complexidade aos arranjos dos grupos estrangeiros, eles refletiam uma brasilidade própria, sendo pioneiros do gênero no Brasil. O autor completa comentando que o grupo marcou época no cenário musical brasileiro. Segundo Souza (2003), o Bando da Lua tornou-se uma referência para a nova geração de grupos vocais que surgiria no país ao longo das décadas seguintes, principalmente no Rio de Janeiro. A lista de grupos surgidos posteriormente ao Bando da Lua é grande, contudo podemos destacar alguns dos mais importantes desta fase. São eles: Anjos do Inferno, Quatro ases e um coringa, Namorados da Lua, Demônios da Garoa e aquele que se segundo Souza (2003) tornaria-se o mais importante e conhecido de todos os grupos vocais até os anos 60: Os Cariocas.
2.2.2 OS CARIOCAS
Segundo nos relata Neil Teixeira, atual baixista e vocalista de Os Cariocas e autor da dissertação de mestrado intitulada “Os Cariocas. Repertório do período entre 1946 a 1956” (2007) , o grupo se formou em 1942, tendo como líder Ismael Netto, responsável pelo nome do grupo e, principalmente, criador da concepção de arranjo que foi e é até hoje característica principal de Os Cariocas. Segundo Teixeira, Ismael não tinha formação musical formal, e suas principais influências foram os grupos vocais norte-americanos The Pied Pipers, conjunto ligado à big band de Tommy Dorsey, e o The Modernaires, grupo que trabalhou por anos com Glenn Miller e sua orquestra. Os arranjos desenvolvidos por esses grupos vocais estrangeiros tinham como principal característica a harmonização em bloco (soli), técnica largamente utilizada na escrita para sopros. Como os mesmos arranjadores escreviam tanto para as big bands quanto para os grupos vocais que as acompanhavam, acreditamos que a técnica de soli tenha migrado de forma natural para a escrita vocal. Carlos Braga, profundo conhecedor da história dos grupos
60 vocais e responsável pelo conteúdo do blog CB Vocal Groups, dedicado exclusivamente a esses grupos, vem endossar o que dissemos. Segundo Braga:
(...) os grandes conjuntos “vintage” vinculados às big-bands (Modernaires, Pied Pipers, Mel-Tones), (...) sofriam o diabo pra cantar os arranjos que lhes eram impostos pelos “band -leaders”, uma vez que nada mais eram do que a reprodução dos blocos orquestrais dos naipes de saxofones de cada orquestra. Não é preciso ser vocalista pra imaginar que é muito difícil reproduzir com a voz os “saltos” atribuídos a instrumentos. (Braga, 2008)
Teixeira comenta que Ismael e seus amigos ouviam esses grupos numa jukebox instalada na esquina da Rua Haddock Lobo com a Av. Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro, onde Ismael, empunhando um violão, conseguia, “de ouvido”, i dentificar cada uma das vozes que saíam da máquina de música, e em seguida transmitia aos colegas: sua voz é esta, a sua é esta, a minha é assim, vamos cantar (Teixeira, 2007). Existia uma grande diferença na sonoridade de Os Cariocas em relação aos Pied Pipers e aos Modernaires, pois esses grupos estrangeiros tinham na primeira voz uma mulher, enquanto Os Cariocas tinham, e têm até hoje, uma voz masculina em falsete cantando a primeira voz. Essa sonoridade característica passou a ser uma das marcas do grupo. Em 1946, o conjunto é contratado pela mais poderosa de todas as rádios daquele tempo. Segundo Castro (1990): “A Rádio Nacional era uma das poucas coisas absolutamente profissionais num país que insistia em ser amador (...) era tão lucrativa que podia permitir-se todas as extravagâncias” (Castro, 1990: 60). Souza (2003) descreve resumidamente a estrutura da rádio. Segundo a autora:
A Rádio Nacional possuía um elenco fixo e contratado de cerca de 160 instrumentistas, noventa cantores e quinze maestros, entre eles Radamés Gnatalli, Leo Peracchi e Lyrio Panicalli; seu departamento musical possuía uma excelente infra-estrutura: sete estúdios e um auditório, famoso por possuir um palco sobre molas. Quase toda a música era gerada ao vivo. (Souza, 2003: 27)
A Rádio Nacional foi fundada em 1936 e, segundo Souza (2003), sua programação, apesar de conter muita música brasileira, apresentava música internacional em maior quantidade. As versões faziam muito sucesso, e a autora relata que estas eram produzidas em larga escala na época. Cita o compositor Haroldo Barbosa como autor de mais de 600
61 versões, entre os anos 1937 e 1943. Teixeira (2007) descreve em detalhes como era o dia-adia de Os Cariocas na Rádio Nacional. Segundo o autor, a rotina obedecia ao seguinte padrão: (1) uma música era indicada para a interpretação do grupo; (2) Ismael concebia o arranjo vocal; (3) iniciavam os ensaios; (4) Ismael com a harmonia e a forma concebida mostrava a Radamés ou outro maestro responsável pela música; (5) um ensaio geral era marcado onde o instrumental e o vocal se encontravam. (Teixeira, 2007: 40)
O autor comenta que essa rotina só era quebrada quando a música a ser interpretada era desconhecida dos membros do grupo. Neste caso, a orientação era se dirigirem à imensa discoteca da Rádio Nacional, onde poderiam ouvir uma ou várias gravações da música em questão, para apreensão da harmonia e melodia. Na seqüência, caminhavam para algum estúdio dentro da própria Rádio para ensaiar o vocal. A rotina de ensaios e apresentações exigia a rápida memorização de melodias, formas e arranjos, o que segundo nos relata Teixeira (2007), era para os cinco “analfabetos” em teoria musical, um trabalho intenso. Por sugestão de companheiros músicos, iniciaram estudos de solfejo e percepção musical com Aída Gnattali, pianista e irmã do maestro Radamés Gnattali. O maior conhecimento dos signos contidos nas partituras, aliado à rotina na Rádio, facilitou um pouco o trabalho de Ismael. Todavia, apenas Severino seguiu com os estudos musicais. Estudou harmonia, contraponto e orquestração com o maestro alemão Hans-Joachin Koellreutter. Segundo Teixeira (2007), Severino era o menos boêmio entre os integrantes do grupo, e tinha o costume de aproveitar as horas de folga para estudar em algum piano da Rádio as suas lições. Foram também alunos de Koellreutter, nesta mesma época, Damiano Cozzella e Samuel Kerr, dois músicos que se tornariam importantes arranjadores corais. Discorreremos sobre ambos mais adiante. Teixeira também comenta como foi importante a participação de Radamés Gnattali na história de Os Cariocas. Segundo o autor: “Como colega da Rádio Nacional, Radamés, já consagrado em 1946, demonstrou generosidade e humildade ao se deparar com um grupo de vocalistas que não tinham instrução musical; orien tou, ensinou e ouviu” (Teixeira, 2007: 46). Badeco, em entrevista concedida ao autor, descreve como era o trabalho entre Ismael e Radamés. Teixeira resume as palavras de Badeco:
62 Muitas vezes Ismael, no início, com receio, sugeriu melodias à orquestração, sempre aceitas por Radamés, que de bom grado, já escrevendo em partitura, respondia: “você está facilitando o meu trabalho”. Não opunha sua grandeza de arranjador e seu prestígio às idéias de Ismael, pelo contrário, para Badeco um dia disse, se referindo ao contato com Ismael: “não deixe que ele estude música, está ótimo assim”. (Badeco apud Teixeira, 2007: 41)
Os Cariocas também tiveram um papel importante e desfrutaram de grande prestígio e popularidade com o surgimento da Bossa Nova, na década de 1950. Segundo Souza (2003), o grupo inovava com a maneira com que interpretava o gênero. Albin (2006) concorda com Souza e enfatiza a relevância do grupo para o movimento: “Participou (o grupo) de inúmeros espetáculos de Bossa Nova, sendo o conjunto mais represe ntativo desse gênero” (Albin, 2006: 154). O autor conclui: “[...] já com o repertório prioritariamente voltado para a Bossa Nova [...] se fizeram astros de primeira grandeza” (Albin, 2003: 178). João Gilberto assim declarou a sua admiração pelo conjunto: “ Eu conheço e admiro Os Cariocas há muitos anos. Eles estão entre os pioneiros da música brasileira moderna e estou muito feliz por vê-los apresentados a este país” (Gilberto apud Teixeira, 2007: 25). Quincy Jones, responsável pelo lançamento, nos EUA, do LP Introducing The Cariocas, também aprecia o trabalho do grupo. Segundo o músico norte- americano: “Os Cariocas, um novo som do Brasil – o primeiro quarteto vocal que mistura ritmo de bossa nova, melodias e harmonias modernas de jazz” (Jones apud Teixeira, 2007: 25). Ismael Netto permaneceu como líder e arranjador de Os Cariocas até a sua prematura morte, aos 30 anos de idade. Segundo Teixeira: “Ismael, em seus últimos anos, demonstrava cansaço, os problemas de saúde decorrentes de sua vida desregrada surgiam, problemas estes que o acompanhariam até o seu falecimento, em 31 de janeiro de 1956” (Teixeira, 2007: 20). Após a morte de Ismael o seu irmão mais novo, Severino Filho, também fundador de Os Cariocas, assume a liderança e torna-se o arranjador do grupo. Com Severino, o conjunto se manteve em atividade até 1961, quando divergências internas desgastaram o relacionamento entre os membros do grupo e acabaram por causar um recesso de duas décadas (Teixeira, 2007). Em 1988, Os Cariocas retomaram as atividades e são, hoje, segundo o Guinness Book, o grupo vocal de música popular mais antigo em atividade no mundo.
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2.2.3 A DISCOGRAFIA DE OS CARIOCAS
1957 – Os Cariocas a Ismael Netto – Columbia Brasil (LP) 1958 – O Melhor de Os Cariocas – Columbia Brasil (LP) 1962 – A Bossa dos Cariocas – Philips Brasil (LP) 1963 – Mais Bossa com Os Cariocas – Philips Brasil (LP) 1964 – A Grande Bossa dos Cariocas – Philips Brasil (LP) 1965 – Os Cariocas de Quatrocentas Bossas – Philips Brasil (LP) 1966 – Arte & Vozes – Philips Brasil 1966 – Passaporte – Philips/ Polydor Brasil 1990 – Minha Namorada – SomLivre (LP/CD) 1992 – Reconquistar – WEA Brasil (LP/CD) 1996 – Tim Maia & Os Cariocas - Amigos do Rei – Vitoria-Regia/ Music Brasil (CD) 1997 - A Bossa Brasileira – Paradoxx Music Brasil (CD) 1998 – Os Clássicos Cariocas – Albatroz (CD) 2003 – Os Cariocas.com.bossa – Albatroz (CD) 2004 – Bossa Carioca – Columbia/ Sony Music (CD) 2005 – Os Cariocas ao Vivo – Universal (DVD)
2.2.4. O ARRANJO VOCAL DE O ÚLTIMO BEIJO
Além da dissertação de mestrado escrita por Neil Teixeira, não foi por nós encontrada nenhuma outra obra que tratasse exclusivamente de Os Cariocas. O mesmo acontece com partituras de arranjos vocais do grupo. Não existe um “songbook” de Os Cariocas. Teixeira (2007) corrobora conosco. Segundo o autor:
64 Não há publicação de partituras de Os Cariocas. Encontram-se com Severino Filho, atual líder do conjunto, alguns arranjos escritos por ele de 1988 até a presente data, incluindo algumas canções do período bossa nova, que foram reescritas quando o grupo retornou às atividades em 1988. Algumas partes estão também com os músicos que integraram o grupo a partir desta data (1988). São esses os únicos registros em partituras da obra de Os Cariocas. (Teixeira, 2007: 01)
Ainda sobre as partituras originais dos arranjos vocais, o autor completa:
Os arranjos, a partir da época em que o conjunto teve Severino como arranjador, foram quase todos registrados em partitura. Na ocasião da parada do conjunto em 1967 todas, ou quase todas as partituras se perderam e na volta do conjunto em 1988, quando decididas as músicas que reintegrariam o repertório, Severino reescreveu apenas algumas. (Teixeira, 2007: 47)
Antes disso, com Ismael como arranjador do grupo, não foram feitos registros em partitura, pelo simples fato, já mencionado anteriormente, do total desconhecimento de Ismael acerca da notação musical. Felizmente, Teixeira na sua dissertação de mestrado, dedicada exclusivamente a Os Cariocas, transcreveu sete arranjos vocais da fase Ismael Netto (1946 a 1956). A partir da audição dos fonogramas cada uma das vozes foi registrada em partitura. Este trabalho, de caráter inédito, vem preencher uma enorme lacuna na história dos grupos vocais brasileiros, por nós confirmada ao levantarmos o material para esta pesquisa. Encontramos apenas três publicações contendo exclusivamente partituras de grupos vocais brasileiros: O Melhor de Garganta Profunda, O Melhor de 14 Bis, ambas editadas pela Irmãos Vitale, e SongBoca (Boca Livre), publicação já esgotada da editora Velas. Portanto, continuam inéditas partituras de arranjos vocais de grupos como: Céu da Boca, Quarteto em Cy, MPB-4, Tamba Trio, O Quarteto, Garotos da Lua, Os Namorados, Grupo X , Anjos do Inferno, Quatro Ases e um Coringa, Namorados da Lua, O Grupo, Demônios da Garoa, Bando da Lua, só para citar alguns. Esses registros são fundamentais para o resgate da história dos grupos vocais no Brasil. Teixeira (2007) relata que recebeu grande ajuda do maestro Severino Filho durante todo o processo de transcrição. Todavia, o autor declara: “A edição dos arranjos de Ismael é trabalho inédito (...). O resultado deste trabalho será uma aproximação do original, já que algumas gravações comprometem, pela qualidade, uma perfeita audição de cada linha” (Teixeir a, 2007: 05). Através deste material,
65 iniciamos a investigação para selecionar qual arranjo seria analisado no presente trabalho. Foi escolhido por sugestão do próprio Neil Teixeira o arranjo vocal de Último Beijo. Segundo o autor, é o de maior riqueza textural dentre todos os arranjos transcritos por ele, informação comprovada por nós ao examinarmos toda a coleção. Último Beijo, cuja música e letra foram compostas pela parceria Ismael Netto e Nestor de Holanda, com arranjo vocal de Ismael, foi gravada duas vezes por Os Cariocas. O primeiro registro tem a participação de Ismael e é de 1953, em disco 78 rpm. O segundo registro foi feito no LP póstumo intitulado Os Cariocas a Ismael Netto, em 1957. Neste disco, Hortênsia, a irmã caçula dos irmãos Ismael e Severino, canta a primeira voz que era feita por Ismael em falsete. Em 1959, com a saída de Hortênsia, Os Cariocas tornaram-se, definitivamente, um quarteto vocal, formação que persiste até hoje. O arranjo vocal de Último Beijo foi escrito para cinco vozes masculinas, divididas em primeira, segunda, terceira, quarta e quinta vozes. Essa formação já era um diferencial se comparada a outros grupos da época, como Namorados da Lua, Anjos do Inferno e Quatro Ases e um Coringa. Alguns desses grupos também eram quintetos como na versão original de Os Cariocas, entretanto, as vozes eram divididas em duas, três e muito esporadicamente quatro, em alguns casos de acordes dominantes com sétima e acordes maiores com sexta (Teixeira, 2007). Abaixo está transcrito um trecho do arranjo vocal de Anjos do Inferno para a música Duas Chaves, onde podemos observar o que foi descrito:
Fig. 23 - Duas Chaves, arranjo de Anjos do Inferno
66 O quadro abaixo ilustra a forma do arranjo de Último Beijo:
I ntrodução
Seção A
I ntermezzo
Seção A'
01 ao 12
13 ao 48
48 ao 96
97 ao 102
Quadro 13 – Quadro da forma
Não nos ateremos a analisar a harmonia deste arranjo, pois o enfoque central da presente pesquisa é o aspecto textural. As cifras acima dos trechos apresentados indicam a harmonia do acompanhamento instrumental. Onde não constarem cifras, significa que o trecho está sendo cantado a capella. Podemos dividir a introdução do arranjo em três frases. A primeira compreende os quatro primeiros compassos, e cantada a capella apresenta uma melodia em vocalize na primeira voz, acompanhada por um background harmônico de notas longas nas outras vozes. Sobre o background, Ades ressalta:
Este tipo de acompanhamento que pode ser ou homofônico ou contrapontístico oferece uma ampla variação de dinâmica através do uso de vários sons neutros - “MM, OO(Ô), AH”, etc. Com isto, é possível alcançar um bom crescendo começando com “hum”, abrindo gradualmente pra um “OO”, então um “OH”, e finalmente um “AH”. (Ades, 1983: 82)
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Fig. 24 – Primeira parte da introdução
A segunda frase da introdução tem início no c. 05 e termina no c. 08. Neste trecho a textura muda para um soli nos dois primeiros compassos , onde a primeira voz mantém o vocalize, enquanto as demais vozes harmonizam em bloco a melodia principal. Nos dois últimos compassos temos um uníssono entre as cinco vozes. Segundo Teixeira (2007), diferentemente de outros grupos vocais do mesmo período, como Namorados da Lua, Anjos do Inferno e Quatro Ases e um Coringa, que em soli apresentavam a melodia principal em uma voz intermediária, normalmente a segunda, ou na voz mais grave, em Os Cariocas a melodia está sempre na primeira voz, cantada em falsete por Ismael na época, e hoje por Severino. Com exceção dos solos, que eram cantados pela voz mais grave.
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Fig. 25 – Segunda parte da introdução
A terceira e última frase da introdução, que inicia no c. 09 e finaliza no c. 12, mantém a textura de soli a cinco vozes como no início da frase anterior, com a melodia na primeira voz como vimos, característica marcante de Os Cariocas. Importante observar nessa introdução o uso que Ismael faz da fonética neutra. O arranjador usa a fonética neutra para enriquecer o “texto” musical. Na primeira frase, o arranjador faz uso da discreta vogal “O”, que auxilia a sustentar as notas longas do background harmônico. Como a primeira voz está com a melodia principal, e esta tem mais movimento rítmico, Ismael usa a sílaba “LO”. A consoante “L” é usada para evidenciar o ritmo, enquanto a vogal “O” ajuda a sustentar as notas e traz uniformidade ao todo. O primeiro compasso da segunda frase tem mais movimentação rítmica. Aqui, o arranjador usou as sílabas “JU” e “RU”. A frase ascendente é enfatizada no c. 6 pela gradual abertura das vogais, “O”, “I”, e finalmente o clímax da introdução com “A”. Do c. 07 ao fim da introdução o arranjador usa as sílabas “DU”, “RU” e “DIU”. A vogal “U”, por ser a mais escura das prosódias neutras, confere a esse trecho final da introdução um caráter velado, reforçado pela pouca movimentação rítmica e harmônica. A nosso ver, essa mudança de caráter no final da introdução tem como intenção preparar a entrada do solista.
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Fig. 26 – Terceira parte da introdução
Vamos dividir a seção A em seis frases. A primeira frase da seção A começa na anacruse do c. 13 e termina no c. 21. Neste arranjo a quinta voz canta a melodia principal como solista, só deixando de fazê-lo nos momentos de soli, onde, como já foi mencionada antes, a melodia passa para a primeira voz. Os quatro primeiros compassos apresentam um solo, com acompanhamento instrumental, sem a presença das outras vozes.
Fig. 27 – Solo (primeira frase)
O background tem início no c. 17, e neste caso encontramos um BG melódico em uníssono. Como vimos anteriormente, esta é uma organização textural muito utilizada, ou seja, BG em uníssono acompanhando a melodia em uníssono. Neste caso, o solo substitui o uníssono.
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Fig. 28 – Segunda frase da seção A
Na anacruse do c. 22 tem início a terceira frase, que se estende até o c. 25. Aqui, a textura se mantém a mesma da frase anterior, ou seja, apresenta um background melódico, com a melodia principal em solo na quinta voz, sendo acompanhada por um contracanto livre em uníssono nas outras vozes. Guest discorre sobre o contracanto livre, que denomina contracanto ativo. Segundo o autor:
O contracanto normalmente é livre, com idéias rítmicas independentes do canto, podendo se movimentar quando o canto está parado ou passivo, ou reforçar os ataques do canto ou, ainda, reforçar ataques rítmicos onde o canto não o faz. Há contracantos que, na memória popular, se tornam parte inseparável da melodia principal. (Guest, 1996: 110)
Podemos citar aqui, a título de curiosidade, alguns contracantos criados por arranjadores que se tornaram famosos e que, como relatou Guest, se tornaram parte essencial da canção, como o contracanto escrito por Pixinguinha para a canção Carinhoso, de sua autoria. Vale ressaltar que Pixinguinha foi um importante arranjador do início do século XX e grande criador de contracantos (Aragão, 2001). Outro contracanto famoso é o escrito por Radamés Gnattali para o samba Aquarela do Brasil, de autoria de Ari Barroso.
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Fig. 29 – Terceira frase
A partir do c. 26 tem início a quarta frase da seção A, que termina no c. 33. Este trecho apresenta três tipos de texturas, a primeira entre os c. 26 e 29. Protásio (2006b), no capítulo da sua apostila intitulada “Outras Texturas”, discorre sobre essa textura que denomina como 2 X 2. Segundo o autor:
É quando temos dois naipes em paralelo “contra” outros dois também em paralelo. Funciona muito bem a formação de uma estrutura rítmica com baixo e tenor que complementa, dialogue com uma outra estrutura de contralto e soprano. Para escrever esta textura, um bom caminho é pensar em dois solis paralelos. Um outro caminho é pensar em um soli paralelo de soprano e contralto e num acompanhamento rítmico a duas vozes. (Protásio, 2006: 39)
No caso deste trecho do arranjo de Ismael, o acompanhamento da quinta voz solista é feito por dois backgrounds simultâneos. A primeira e segunda vozes apresentam um BG harmônico, caracterizado por notas longas, enquanto a terceira e quarta vozes apresentam um BG melódico, inicialmente em uníssono, e depois harmonizado.
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Fig. 30 – Primeira textura da quarta frase
Entre os c. 30 e 32 está a segunda textura presente nesta quarta frase. Trata-se de um soli entre as cinco vozes, com a melodia principal na voz mais aguda.
Fig. 31 – Segunda textura da quarta frase
A última textura presente nesta quarta frase é um uníssono entre todas as cinco vozes, que tem início na anacruse do c. 33 e finaliza neste mesmo compasso.
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Fig. 32 – Terceira textura da quarta frase
A quinta frase da seção A está entre os c. 34 e 40. Esta frase apresenta duas texturas diferentes. A primeira textura é um solo da quinta voz, com um background melódico apenas na primeira voz. Esse acompanhamento se caracteriza por um contracanto em estilo pergunta e resposta. Protásio (2006) descreve esse tipo de contracanto da seguinte forma:
Como o próprio nome diz, responde a melodia. Este contracanto repousa onde a melodia principal está mais ativa e vice-versa. Pode imitar a melodia ou invertê-la mas o mais importante é que o contracanto se estabeleça, que seja tão regular quanto a melodia principal. (Protásio, 2006: 27)
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Fig. 33 – Primeira textura da quinta frase
A segunda textura apresentada pela quinta frase encontra-se entre os c. 39 e 40. Aqui a textura se apresenta com a melodia principal em solo na quinta voz, com um background melódico harmonizado em bloco.
Fig. 34 – Segunda textura da quinta frase
75 A sexta e última frase da seção A tem início no c. 41 e finaliza no c. 48. Esta frase apresenta uma única textura, onde a melodia principal encontra-se na quinta voz solista, sendo acompanhada pelas demais vozes em background harmônico. Como já vimos, Guest (1996) define esta textura como canto com contracanto em bloco. Almada (2000) comenta o que difere o BG melódico harmonizado do BG harmônico. Segundo o autor: “O BG melódico não precisa ser necessariamente uma linha melódica “pura”: ele pode se tornar a ponta de um soli (que como sabemos, apesar de ser constituído por acordes, é antes de tudo, um recurso essencialmente melódico)” (Almada, 2000: 282).
Fig. 35 – Sexta frase
Fig. 36 – Sexta frase (continuação)
76 Concomitantemente ao fim da seção A no c. 48, tem início o intermezzo. Esta seção não pode ser considerada a seção B da canção, pois não possui letra, apenas prosódias neutras. Preferimos denomina-lá de intermezzo, tendo em vista também a função que cumpre esta seção na forma geral do arranjo, separando a seção A da sua breve reexposição. Vamos dividir essa seção em 10 Frases. A primeira frase termina no c. 51, onde é retomada a idéia inicial apresentada na introdução. A textura também é a mesma, ou seja, melodia na voz mais aguda acompanhada por um background harmônico.
Fig. 37 – Primeira frase do intermezzo
A segunda frase do intermezzo tem início no c. 52 e termina no c. 58. O c. 52 mantém a mesma textura da frase anterior, todavia, no c. 53 surge a textura que irá predominar por quase todo o trecho, com exceção dos c. 57 e 58, onde surge um uníssono entre as cinco vozes. Aqui encontramos a textura característica de Os Cariocas, ou seja, o soli a cinco vozes. Segundo Teixeira (2007), uma das maiores contribuições do conjunto para os grupos vocais posteriores está relacionada principalmente as harmonizações a quatro e cinco vozes com a melodia principal na primeira voz. O autor completa explanando sobre as harmonias típicas do grupo: “Os acordes, para comportarem cinco ou quat ro sons, utilizavam além da tônica, terça, quintas, as sétimas maiores e menores, nonas, décimas terceiras, décimas primeiras, ou seja, as tensões cabíveis aos acordes, as escalas de cada função harmônica” (Teixeira, 2007: 150).
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Fig. 38 – Segunda frase do intermezzo
A terceira frase começa na anacruse do c. 59 e termina no c. 61. Neste trecho a primeira voz inicia a sua linha anacrusticamente para em seguida sustentar uma nota longa por dois compassos, enquanto as outras vozes acompanham a melodia principal com um background melódico em uníssono. Protásio (2006) discorre sobre o BG melódico que, como já vimos, o autor chama de contracanto. Segundo o autor:
[…] é uma textura que pode alinhavar o arranjo todo e imprimir o lado pessoal e criativo do arranjador na canção escolhida. Como o objetivo não é a sustentação rítmica nem harmônica da música, esta textura muitas vezes funciona como um elemento dentro do arranjo e não como uma estrutura geral. Um arranjo com melodia e contracantos normalmente necessita de um acompanhamento rítmico e/ou harmônico que poderá ser feito pelas vozes ou por algum instrumento. (Protásio, 2006: 38)
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Fig. 39 - Terceira textura do intermezzo
A partir do c. 62 surge o momento de maior contraste textural do arranjo. Neste trecho a nossa concepção de background não tem uso, pois não existe uma melodia principal em primeiro plano a ser acompanhada por um BG em segundo plano. O que existe aqui é um contraponto a duas vozes, onde ambas as vozes têm a mesma importância dentro da textura. A disposição das vozes é a seguinte: a primeira e quinta vozes cantam uma linha em oitava e a segunda, terceira e quarta vozes cantam outra linha em uníssono. Esta polifonia é interrompida apenas nos três últimos compassos do trecho, onde aparece o soli das cinco vozes. Teixeira (2007) afirma ser essa textura inexistente em outros grupos vocais da mesma época. Segundo o autor: “Não foi encontrado por este pesquisador (Teixeira), em repertório do gênero música vocal popular brasileira, a utilização de tal recurso até esta gravação de Os Cariocas em 1953” (Teixeira, 2007: 157).
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Fig. 40 – Quarta frase do intermezzo
No c. 69 começa a quinta frase do intermezzo, que finaliza no c. 76. Esta frase possui a mesma estrutura da frase anterior, inclusive no que se refere a textura. Inicia com o contraponto a duas vozes, apresentando a mesma disposição das linhas em relação as vozes vista anteriormente, e termina com o soli a cinco vozes, sempre com o canto na primeira voz. Badeco, em entrevista a Teixeira (2007), comentou detalhes de uma conversa que teve com Ismael. Segundo Badeco, o arranjador brincou, supostamente assim, ao comentar sobre o arranjo: “Eles dizem que nossos arranjos são enrolados e complicados. O que dirão agora?” (Badeco apud Teixeira, 2007: 159).
Fig. 41 – Quinta frase do intermezzo
80 A partir da anacruse do c. 77 tem início a sexta frase desta seção central, que se encerra no c. 80. Após o uníssono inicial entre a segunda, terceira e quarta vozes, a textura se estabelece como no final da frase anterior, ou seja, com o soli a cinco vozes. Teixeira (2007) relata ter encontrado, em outros arranjos de Os Cariocas, trechos de s oli a duas e três vozes, entretanto ressalva que esse tipo de harmonização estava sempre relacionado a preservação das características de gêneros musicais brasileiros. O autor cita como exemplo o arranjo de Ismael para a canção Rancho da Saudade, de Humberto Teixeira e Carlos Barroso. Segundo Teixeira, neste típico baião nordestino, o arranjador mantém o estilo tradicional de canto a duas vozes, em terças paralelas. O autor completa dizendo que características de estilos musicais brasileiros eram preservadas por Ismael, ainda que houvesse distanciamento do padrão de harmonia vocal a quatro ou cinco vozes característico de Os Cariocas. Teixeira também chama atenção para a irreverência do arranjo de Ismael, que coloca Waldir e Quartera em uma conversa de “compadres”, num determinado trecho da letra que aponta para um diálogo entre dois personagens.
Fig. 42 – Sexta frase do intermezzo
No c. 81 encontramos uma pausa geral. A próxima frase tem início no c. 82 e se prolonga até o c. 86. Esta sétima frase do intermezzo apresenta um uníssono que abre para uma harmonia a cinco vozes no C. 84. Como já havia comentado Rodrigues (2008), o uso do uníssono entre trechos “abertos” do arranjo gera contraste textural. Como acontece neste
81 trecho final, onde existe quase a total predominância do soli a cinco vozes, o surgimento do uníssono varia e enriquece a textura.
Fig. 43 – Sétima frase do Intermezzo
A oitava frase do intermezzo vai do c.85 ao c. 87. Nessa frase a textura se caracteriza pelo soli a cinco vozes. Guest (1996) comenta no seu livro de arranjo que são duas as principais possibilidades para a confecção de tétrades a cinco vozes. Segundo o autor, a primeira seria o dobramento da melodia principal oitava abaixo. Como vimos no decorrer da análise, este não é um procedimento adotado por Ismael pois, mesmo quando surgem harmonias a quatro partes, encontramos dobramentos de notas do acorde, mas não o dobramento integral da melodia. A segunda possibilidade, segundo Guest, é a substituição do dobramento da melodia por nota de tensão. Esta era a prática empregada por Ismael. Teixeira (2007) corrobora conosco ao comentar as inéditas harmonias vocais do arranjador. Segundo o autor: Para preencher a harmonia construída pelas cinco vozes do conjunto, Ismael utilizou notas, que analisadas verticalmente, revelaram tensões, dissonâncias, que até então (1946), não eram utilizadas em acordes vocais pelos grupos pesquisados, escolhidos por serem grupos vocais de grande destaque nas rádios cariocas antes de 1946. (Teixeira, 2007: 174)
82 O autor completa comentando: “Outros recursos musicais como contraponto a duas vozes e cromatismo em bloco, também foram, por esse pesquisador, considerados inéditos na forma de cantar dos grupos vocais da MPB pré-1946” (Teixeira, 2007: 174).
Fig. 44 – Oitava frase do intermezzo
A nona frase do intermezzo está compreendida entre os compassos 88 e 92. Do ponto de vista da textura, foco principal desta análise, este trecho mantém a mesma textura da frase anterior. Como vimos à frase anterior se caracteriza texturalmente pelo emprego do soli a cinco vozes. Almada (2000), comentando o soli a cinco partes reais diz o seguinte: “O uso de uma quinta parte tornaria a sonoridade demasiadamente (e, na maioria das situações, desnecessariamente), densa, carregada, o que acabaria por prejudicar a clareza da percepção, não só das linhas internas como da própria melodia principal” (Almada, 2000: 171). Não concordamos com o autor em alguns pontos do seu comentário. Primeiro, o autor se refere ao soli a cinco vozes como denso e carregado, entretanto, devemos lembrar que o autor está se referindo a blocos instrumentais e não a blocos vocais. Almada confirma isso ao comentar que a instrumentação mais apropriada para o soli a 5 é a seção de saxofones de uma big band. Durante as audições das duas únicas gravações deste arranjo, em momento algum da nossa escuta a textura a cinco partes soou demasiadamente densa ou carregada. Em segundo lugar, o autor comenta a perda de clareza das linhas internas, todavia, numa textura de soli a quatro ou cinco partes o mais importante é a clareza e o destaque da melodia principal, pois as outras vozes apen as “engrossarão” a textura com as notas da harmonia, não
83 sendo necessária clareza na percepção dessas linhas secundárias. Exceto na técnica de arranjo linear 7, que deixaremos para discutir em trabalhos futuros. Por último, a melodia principal na ponta do bloco, no caso de Os Cariocas na primeira voz, por si só já confere destaque e clareza ao soli a cinco partes. Almada em outro momento considera que, embora em algumas circunstâncias, principalmente em pontos harmônicos, o soli a cinco partes pode ser aplicado com propriedade, e cita os finais de frase como exemplos do emprego dessa escrita. Ao se aprofundar na questão, o autor aproxima-se do uso feito por Os Cariocas do soli a5. Segundo Almada, essa textura pode ser também utilizada para caracterizar um estilo de música que apresenta harmonias mais complexas. O autor complementa dizendo que nestes casos é comum a ampla aplicação desse tipo de textura. É o caso de Os Cariocas, onde esta textura tornou-se uma característica idiomática do grupo. Teixeira (2007) comenta a influência exercida pelo idiomatismo de Os Cariocas em grupos vocais posteriores. Segundo o autor:
Dois grupos vocais que surgiram pós-1946 utilizavam a mesma forma de arranjo de Ismael: Os Namorados, do qual fez parte João Donato, e Os Garotos da Lua, do qual integrou João Gilberto. Seguiam, possivelmente, caminho aberto por Os Cariocas. Harmonias a quatro e cinco vozes e melodia em falsete por voz masculina. (Teixeira, 2007: 166)
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Para interessados no estudo da técnica de arranjo linear recomendamos a dissertação: OLIVEIRA, J. B de. Arranjo Linear – um alternativa às técnicas tradicionais de arranjo em bloco. 2003. Dissertação de mestrado – instituto de Artes, UNICAMP, Campinas.
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Fig. 45 – Nona frase do intermezzo
A décima e última frase do intermezzo mantém a textura das frases anteriores, ou seja, o soli a cinco vozes que, como temos visto, constitui característica idiomática de Os Cariocas. Teixeira (2007) comenta, entre outras particularidades encontradas pelo autor em arranjos do conjunto, o uso de cromatismos a cinco partes, e cita como exemplo o arranjo de Nova Ilusão, onde um acorde de A7(9)(13) ascende por semitons até alcançar o acorde de C7(9)(13), ou seja, um terça menor acima. Guest (1996) denomina esse técnica de “acordes em es trutura constante”, textura que abordaremos mais adiante, ao enfocarmos o trabalho do arranjador Marcos Leite.
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Fig. 46 – Última frase do intermezzo
A reexposição da primeira seção se faz de forma bastante resumida, pois Ismael utiliza apenas uma única frase da seção A. Este trecho inicia no c. 97 e encerra o arranjo no c. 102. Esta frase apresenta duas texturas. A primeira é apresentada entre os c. 97 e 100. Aqui o texto da canção retorna com um uníssono entre todas as cinco vozes. A segunda textura vai da anacruse do c. 101 até o fim do arranjo, e contrasta com a primeira por apresentar a melodia principal na quinta voz solista com o acompanhamento das outras vozes em background harmônico. Apesar de as vozes do BG articularem colcheias, este fato não impõe ao acompanhamento um ritmo que o caracterize como um BG rítmico. Teixeira (2007) comenta texturas como essa, encontradas em arranjos de Os Cariocas. Segundo o autor: “Quando Waldir solava, Ismael tinha a sua disposição quatro vozes para contrapontear á vontade com a voz do solista, com tétrades” (Teixeira, 2007: 152). O autor cita as primeiras influências que Ismael sofreu de outros grupos vocais brasileiros. Segundo o autor:
Em análise para as primeiras atuações do conjunto à frente de temas nacionais, notou-se influência da forma de vocalizar, de grupos como Quatro Ases e um Coringa, Os Anjos do Inferno, Namorados da Lua. Por exemplo, em presença de uma voz solo, no caso Waldir Viviani, quando Ismael criava fundo a quatro vozes para o acompanhamento, o fazia nos moldes daqueles grupos, utilizando síncopes soltas contraponteando com a melodia. (Teixeira, 2007: 165)
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Fig. 47 – Primeira textura da seção A'
Fig. 48 – Segunda textura da seção A'
Tivemos a oportunidade de observar, no decorrer da análise do arranjo vocal de Ismael Netto para a canção Último Beijo, a recorrência de texturas que caracterizam o idiomatismo do grupo vocal Os Cariocas. Entre elas, podemos destacar as seguintes: Uníssono entre todas as vozes, soli a cinco e quatro vozes e solista acompanhado por background. Com relação aos backgrounds, encontramos BGs harmônicos e melódicos. Não
87 foram encontrados neste arranjo BGs rítmicos. Os BGs melódicos presentes neste arranjo se caracterizam por dois tipos: Os BGs melódicos em uníssono entre as vozes do acompanhamento e os BGs melódicos em soli. soli. Teixeira (2007) traça comentários relevantes para entendermos entendermos a figura do arranjador arranjador Ismael Netto. Segundo Segundo o autor: autor:
Ismael, que representava bem o músico popular tradicional, usando a intuição e um parco conhecimento violonístico para enveredar pela música, deixou legado, representado por seus arranjos, que chamou a atenção de seus colegas da Nacional, dos colegas pré-bossa-novistas e revelou linguagem nova, moderna para os parâmetros dos grupos vocais, dele contemporâneos. (Teixeira, (Teixeira, 2007: 172)
O autor completa:
Ismael intuitivamente, sem estudo formal, concebeu arranjos para as vozes do conjunto. Mesclou em sua arte a bossa intuitiva popular e, prática adquirida por imitação, para conduzir cinco vozes em harmonia. Por imitação dos conjuntos vocais americanos? Inicialmente sim. Formulou posteriormente sua própria teoria para em seus arranjos distribuir melodias aos integrantes de Os Cariocas por perceber ali beleza e arte. Neste percurso encontrou uma linguagem híbrida, com cor popular e erudição nos arranjos vocais. (Teixeira, 2007: 172)
Rui Castro no seu livro Chega de Saudade, destaca: “A importância de Ismael para a música popular brasileira, como harmonizador, ainda está por ser conhecida, mas, em seu tempo, ele era um prodígio” (Castro, 2002: 91). Kátia Lemos, integrante do grupo vocal Garganta Profunda desde sua fundação, nos relata a admiração que o arranjador e regente Marcos Leite exprimia pelo grupo Os Cariocas. Segundo a vocalista:
[...] ele (Marcos Leite) fez uma série de arranjos em homenagem, transcreveu arranjos de Os Cariocas, coisas que eles não tinham nem mais escrito, arranjos lindos. Dois arranjos que a gente faz até hoje: “O samba da minha terra” e um outro que Os Cariocas nem cantavam mais, e a gente chamou pra eles verem, mas já tem um tempo. (Lemos apud Borborema, 2005: 184)
88 Teixeira (2007) confirma essa informação, e nos dá maiores detalhes sobre essas transcrições de Marcos Leite. Segundo o autor:
Marcos Leite, ex-integrante e arranjador do conjunto Garganta Profunda, na década de noventa transcreveu para interpretação de seu grupo, também por audição, dois arranjos de Severino Filho para Os Cariocas, O amor em paz de Tom Jobim e Vinícius de Moraes do LP “A Bossa dos Cariocas” de 1962 e Samba da minha terra de Dorival Caymmi, gravada no LP “Arte Vozes” de 1965. Está última versão foi lançada no CD do grupo Garganta Profunda intitulado “Cantando a História” sob os auspícios do Curso Positivo. (Teixeira, (Teixeira, 2007: 05)
Este tópico enfocou o trabalho do arranjador carioca Ismael Netto a frente do grupo vocal Os Cariocas. Ismael, violonista, vocalista e compositor, que por poucos dez anos (1946 a 1956) participou intensamente da vida musical brasileira deixou, em nossa visão, um importante legado à Música Popular Brasileira e ao idiomatismo dos nossos grupos vocais. Os Cariocas foi um dos grupos responsáveis, junto a João Donato, Tom Jobim, Johnny Alf, Radamés Gnattali, entre outros, pelo surgimento dessa música híbrida, que trafega entre a música popular intuitiva e a música que beira a erudição. Sempre humilde Ismael conviveu com reverência e aprendeu “de ouvido” com eruditos como Radamés Gnattali, Léo Peracchi, Lírio Panicalli e Garoto. Como bom boêmio que era, encontrou na noite carioca parceiros para suas canções e, como nos relata Teixeira, fundou com liderança e musicalidade o idiomatismo que até hoje é característico do grupo Os Cariocas.
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Capítulo 3 A CONSOLIDAÇÃO DE UMA ESTÉTICA
3.1. COZZELLA E KERR
Damiano Cozzella foi um dos principais responsáveis pela introdução mais efetiva da chamada música popular brasileira no canto coral, por meio de uma vasta produção de arranjos corais (Souza, 2003). Segundo Protásio (2006), compositores como Cozzella e Rogério Duprat tinham como ideal a quebra das barreiras entre a música erudita e a música popular. popular. A história da produção de arranjos corais de Cozzella se confunde com a história do Coral da USP. Em entrevista sobre os 35 anos do Coral da USP, o maestro Benito Juarez comenta a importância de Cozzella na inserção da música popular brasileira no repertório do grupo. Segundo o maestro: Evidentemente, a música popular tem uma abordagem e elaboração diferentes, mas tem um fio condutor, tem um ponto de convergência e foi o que nós buscamos. Liszt, Villa-Lobos, Bela Bartók são compositores eruditos que sempre incorporaram esse material de natureza popular. Com importantes compositores, principalmente o Damiano Cozzella, que foi um mestre e talvez tenha sido o músico de maior densidade no arranjo de música popular para coro a capela, incorporamos a música popular urbana, a música panfletária, e não só música folclórica. (Juarez apud Protásio, 2006: 25)
90 Desde a fundação do Coral da USP na década de 60, Cozzella escreve para esse grupo arranjos corais para as mais variadas formações e sobre composições dos mais variados gêneros. Protásio (2006), ao analisar o catálogo de arranjos fornecido pela Biblioteca do Coral USP, contabilizou cerca de 235 arranjos, sendo que algumas músicas como por exemplo Maria, Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant, apresentam mais de um arranjo. Eduardo Fernandes na sua dissertação de mestrado intitulada O arranjo vocal de música popular em São Paulo e Buenos Aires (2003) relata que os arranjos escritos por Cozzella para o Coral USP são em sua maioria destinados a formação SATB, mas que também podem ser encontrados na coleção arranjos para duas vozes, para coro feminino, para coro e piano, para coro e percussão, entre outras formações. O autor completa afirmando que os gêneros dos arranjos são diversificados, mas que há uma predominância de arranjos baseados em canções da MPB. Segundo Protásio, um dos arranjos mais importantes e famosos de Cozzella foi escrito no início da década de setenta e pode ser considerado um “clássico” do repertório coral brasileiro. O arranjo de Suíte dos Pescadores, música de Dorival Caymmi, foi um dos primeiros escritos por Cozzella para o Coral da USP. Marcos Leite considera este arranjo um “divisor de águas”, no sentido de trazer para o canto coral uma sonoridade brasileira conectada à música popular urbana. Segundo Leite: “O arranjo de música popular para coral no Brasil pode ser definido em antes e depois de Damiano Cozzella e de seu arranjo para a Suíte dos Pescadores de Dorival Caymmi” (Leite apud Protásio, 2006: 18). Segundo Fernandes (2003), entrevistas realizadas com regentes paulistas apontam Cozzella como o arranjador preferido e o mais executado pelos corais de São Paulo. Damiano Cozzella começou a escrever arranjos corais em 1967, para o Coral da USP, atividade que exerce até os dias atuais. Outro arranjador coral de suma importância é Samuel Kerr. Iniciou a sua formação musical na Igreja Presbiteriana e foi aluno nos Seminários de Música da Pró-Arte, onde estudou o repertório coral erudito, principalmente a música do período renascentista. Todavia, foi a frente do Coral da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, grupo que dirigiu durante 10 anos (1964 a 1974), que o arranjador pôde empreender mudanças significativas no canto coral. Segundo Souza (2003), Kerr ao trabalhar a música coral erudita, principalmente com coros leigos, percebeu que este repertório mostrava-se, muitas vezes, inadequado à realidade coral brasileira. A partir daí, passou a elaborar um nova linguagem
91 coral, utilizando-se principalmente do lúdico e do espontâneo como processo de criação musical. Ficou conhecido pelo seu trabalho com o Coral da Santa Casa, para o qual escreveu arranjos de música popular brasileira que exploravam recursos cênicos. O trabalho de Kerr se caracteriza pela informalidade, aliada a utilização de recursos teatrais e cenográficos. Através deste, Kerr se tornou um dos grandes responsáveis pela criação de uma nova concepção de canto coral que influenciou muitos arranjadores e regentes e, entre eles, Marcos Leite.
3.2 A TRADIÇÃO CARIOCA DOS GRUPOS VOCAIS
Dando continuidade a tradição dos grupos vocais cariocas, surge no início da década de 60 o MPB-4. Segundo Souza (2003), o MPB-4 era acompanhante habitual e um dos principais intérpretes de Chico Buarque. O grupo participou da “Era dos Festivais” e continua em atividade até hoje. Outro grupo vocal que surgiu nesta mesma época foi o Quarteto em Cy, quarteto vocal feminino que, segundo Souza, apesar de formado por quatro irmãs nascidas na Bahia, também pode ser considerado fruto da tradição carioca dos grupos vocais, considerando-se a carreira de sucesso que desenvolveram no Rio de Janeiro. Apesar do sucesso alcançado por esses dois grupos, nenhum deles chegou a acrescentar novidades á escrita vocal. O final da década de 70 foi marcado pela revogação do AI-5 e pela anistia. Com o afrouxamento da censura, a MPB ganhou novamente impulso, incorporando atitudes menos rígidas, o que segundo Souza (2003) proporcionaria renovações significativas no canto coral. Neste período surgem dois importantes grupos, o mineiro 14 Bis, que mesmo não sendo um grupo essencialmente vocal, possui um relevante trabalho vocal, e o quarteto vocal masculino Boca Livre, que lançou o seu primeiro disco de forma independente em 1979, que por sua vez alcançou a marca de mais de cem mil cópias vendidas e se tornou o disco independente mais vendido no Brasil, fato inédito até então. As canções desse disco, como Toada e Quem tem a viola, se tornaram grandes sucessos ao atingirem o grande público. Os arranjos de Maurício Maestro para o Boca Livre merecem destaque, pois o arranjador foi um dos primeiros no Brasil a adotar a técnica de arranjo linear, desenvolvida por Duke Ellington. Essa textura é a principal responsável pela sonoridade característica do Boca Livre.
92 O sucesso alcançado pelo Boca Livre trouxe á tona nos anos 80 uma nova geração de grupos vocais cariocas, e entre eles podemos destacar como um dos mais importantes o Céu da Boca. Grupo formado por ex-membros do Coral da Pró-Arte, gravou apenas dois discos. Entretanto, participou da gravação de discos de nomes importantes da MPB, como Wagner Tiso, Joyce, Cesar Camargo Mariano, Chico Buarque e Edu Lobo. Segundo Souza (2003), o grupo foi e leito em 1983 o “Melhor Conjunto Vocal do ano”, prêmio concedido pela Associação dos Críticos de Arte de São Paulo. A autora nos relata que, além da qualidade musical das performances do Céu da Boca, o grupo acrescentava ao espetáculo uma produção visual, que se caracterizava pelo figurino de roupas coloridas e descontraídas, e pelo uso de elementos teatrais e coreográficos. Souza comenta que tais aspectos eram responsáveis por atrair o público jovem às apresentações do Céu da Boca. O Rio de Janeiro ainda mantém viva a tradição dos grupos vocais. Mesmo sem o apoio da grande mídia, a cidade possui um número bastante considerável de pequenos grupos dedicados a música vocal. Apesar das diferenças estilísticas presentes entre esses grupos vocais e a maioria dos coros existentes no país, podemos constatar a influência que esses grupos exercem sobre a linguagem coral como um todo. Tendo em vista que boa parte dos integrantes de grupos vocais são músicos profissionais, que atuam como regentes corais, ou preparadores vocais e ou arranjadores, que escrevem para os seus próprios grupos. Isso faz com que boa parte do repertório escrito para estes grupos vocais possa ser também executado por um coro sem maiores problemas.
3.3 MARCOS LEITE
Nos anos 60 e 70, a Música Popular Brasileira sofreria inúmeras transformações no âmbito postural e estético, em grande parte, por influência do rock internacional e, principalmente, dos The Beatles. Certamente, a música coral não escaparia também a estas transformações e influências, segundo observou Roberto Gnattali (Leite: 1997). As principais mudanças se deram em três âmbitos: (1) na escolha do repertório a ser cantado, privilegiando a Música Popular Brasileira urbana; (2) na forma de cantar, buscando um timbre próximo ao canto po-
93 pular; (3) e, por fim, na escrita coral, com arranjos que aproximavam a estética da música popular à composição tradicional para vozes. O canto coral no Brasil emancipou-se, em poucos anos, da postura ortodoxa pela qual era vinculada ao canto lírico e à música erudita, tornando-se um importante meio sócio-cultural de integrar pessoas e fazê-las se expressarem através da música em conjunto, de forma simples e gratificante. É nesse contexto histórico que, em meados da década de 70, Marcos Leite (1953 – 2002) monta o seu primeiro coral, o Coro da Cultura Inglesa, grupo vocal que viria a projetálo como uma das maiores referências do gênero no Brasil - posição consolidada ao longo das décadas de 80 e 90 com o grupo vocal Garganta Profunda. Marcos Leite nos narra o objetivo do seu trabalho com o grupo:
Era um trabalho superexperimental. Era um trabalho coral. Eu nunca fui cantor de coro, então eu não tinha nem uma referência de canto coral tradicional. Era uma coisa de usar aquela estética vocal pra mexer com a minha música. Sem nenhuma pré-determinação. Era um trabalho experimental, início de carreira, como se fosse um coro independente, embora tivesse um vínculo com a Cultura Inglesa. A Cultura me dava completa liberdade para trabalhar. Então na verdade a coisa funcionava como coro independente.” (Leite apud Afonzo, 2004: 227)
Seus quase quatrocentos arranjos vocais, realizados em grande parte a partir da Música Popular Brasileira, possuem o mérito de terem se tornado peças freqüentes no repertório de inúmeros corais e grupos vocais por todo o país, e também no exterior. A obra de Marcos Leite tem influenciado e estimulado o surgimento de um número expressivo de arranjadores e regentes corais dedicados à MPB, cujo trabalho tem sido o de estender a prática musical à comunidade, através de corais amadores, como os de empresas, escolas, igrejas e obras sociais. Marcos Leal Leite nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 25 de março de 1953. Pianista, arranjador e regente coral, foi aluno da Escola de Música da UFRJ, onde estudou com posição e regência, entretanto, não concluiu a sua graduação. Em 1976, época em que o canto coral no Brasil sofreu relevantes transformações, Marcos Leite fundou o Coral da Cultura Inglesa, mais tarde renomeado de Cobra Coral . Esse grupo possuía um perfil bastante inovador, desvencilhando-se de velhos paradigmas consolidados pela música coral erudita européia, como, por exemplo, o timbre característico do canto lírico e a postura sempre estática, séria e polida dos regentes e cantores nas apresentações. Em 1981, o Cobra Coral grava o seu primeiro e único disco intitulado Ao(s) Vivo(s), registro ao vivo do grupo sobre a regência de
94 Marcos Leite. O LP já revela, no seu título, o tom irônico, e, no seu conteúdo, traços estilísticos da escrita do músico em arranjos que se tornariam famosos, como: Lua, lua, lua, lua e Alguém Cantando, de Caetano Veloso, e She´s Leaving Home, dos Beatles. Em mais de três décadas de trabalho com música vocal, Marcos Leite deixou uma obra bastante significativa de arranjos para as mais variadas formações vocais, abrangendo talvez quase todas as fases da Música Popular Brasileira. Este repertório possui desde temas folclóricos, até canções do rock nacional, passando por choros, sambas, bossas novas, músicas da Tropicália e da Jovem Guarda. Seus arranjos refletem particular atenção às características vocais do cantor brasileiro, em especial do cantor amador. Marcos Leite sempre esteve atento a prover o repertório coral com arranjos que atendessem aos diversos níveis de proficiências dos coros. Além do seu conjunto principal de obras, composto de canções brasileiras, Marcos Leite escreveu curiosos arranjos vocais sem letra, como o da marchinha carnavalesca Vassourinhas - peça baseada em sons onomatopaicos e sem nenhum tipo de texto. Podemos destacar como importante obra conceitual, o conjunto de arranjos vocais escritos sobre músicas dos Beatles e gravado no disco Garganta Canta Beatles ao Vivo, de 1993. Muitos de seus arranjos originalmente escritos para quartetos, como é o caso dos destinados ao grupo vocal Garganta Profunda, são freqüentemente cantados por corais, revelando a sua versatilidade e abordagem flexível da realização musical. O músico faleceu prematuramente aos 48 anos, no Rio de Janeiro, em janeiro de 2002.
3.3.1 GRUPO VOCAL GARGANTA PROFUNDA Fundado por Marcos Leite na capital carioca em 1984 e com o nome inicial de Orquestra de Vozes Garganta Profunda, o grupo contava, na época de sua formação, com 23 integrantes. O grupo vocal Garganta Profunda foi o meio pelo qual Marcos Leite pôde se consolidar como uma referência dentro do gênero, difundindo suas idéias inovadoras por todo o Brasil e também no exterior. Com a formação inicial, em 1986, lançou seu primeiro disco homônimo. No ano seguinte, com o número de integrantes já bastante reduzido e adotando o nome pelo qual é conhecido até hoje, o grupo gravou o seu segundo disco, Yes, nós temos Braguinha . Aliando recursos cênicos, técnica vocal apurada e arranjos modernos, o grupo tornou-se bastante conhecido e respeitado. Mesmo após a morte de Marcos Leite, o Garganta Profunda tem manti-
95 do uma atividade expressiva, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, apresentando-se regularmente em importantes encontros sobre música vocal/coral e divulgando os arranjos de Marcos Leite ao longo de duas décadas e oito CDs gravados.
3.3.2 DISCOGRAFIA DO GRUPO VOCAL GARGANTA PROFUNDA
1986 - Orquestra de Vozes A Garganta Profunda - Selo Arco e Flecha - LP 1987 - Yes, nós temos Braguinha: 80 anos -Funarte - LP e CD 1991 - Isto é Que é MPB – CID - CD 1993 - Garganta Canta Beatles: Ao vivo – CID - CD 1995 - Vida, Paixão e Banana: Garganta Profunda Canta Tropicália - Albatroz - CD 1998 - Deep Rio - Independente - CD 2000 - Chico & Noel em Revista - Independente - CD 2003 - Cantando a História - Positivo - CD
3.4. O ARRANJO VOCAL DE MARCO LEITE PARA O SAMBA LATA D’ÁGUA 3.4.1 O autor da canção O autor da música de Lata D’água ficou conhecido como Luis Antonio, mas o seu verdadeiro nome era Antonio de Pádua Vieira da Costa. Foi compositor de sucessos do carnaval carioca como, por exemplo, Saçaricando, tendo também atuado muitas vezes como letrista. Começou a compor a partir de 1944, quando deixou a Escola Militar de Realengo como aspirante. Freqüentou também o Colégio Militar do Rio de Janeiro, onde compôs inúmeras músicas que eram cantadas nas solenidades desta instituição, tendo criado ainda o Hino da Escola Militar , até hoje cantado como hino oficial da escola. Construiu uma carreira militar paralela a de compositor popular, tendo estado em combate na Segunda Guerra Mundial como te-
96 nente na campanha da FEB. Nos últimos anos de sua vida, trabalhou como funcionário público no Museu do Carnaval, na Praça da Apoteose. 3.4.2 O autor da letra O autor da letra de Lata D’água foi Jota Júnior, cujo nome completo era Candeias Jota Júnior. Começou a compor no início dos anos 50, com o pseudônimo de Jota Jr. e chegou a um impressionante número de quase duzentas obras gravadas por diversos cantores. Suas composições ficaram bastante conhecidas em boa parte do Brasil, dentre as quais podemos citar: Sapato de Pobre é Tamanco, Confeti - Pedacinho Colorido de Saudade, Favela Amarela, Garota de Saint Tropez e inúmeras outras. Pesquisando sobre a parceria de Jota Jr. com Luiz Antonio, chegamos à história da marchinha Saçaricando, escrita no final de 1951 sob encomenda da atriz Virginia Lane para o carnaval de 1952. A canção foi apresentada, pela primeira vez, no Teatro Recreio, onde Walter Pinto montava peças de grande sucesso todos os anos. A marchinha agradou muito aos presentes e, poucas semanas após o lançamento do registro fonográfico, alcançou enorme sucesso em todo o país, motivo pelo qual Walter Pinto não hesitou em incluir a música na sua peça teatral, trocando o título original de Jabaculê de Penacho para Eu Quero Saçaricar . A letra de Lata D’água
Lata d’água na cabeça
Lá vai Maria Lá vai Maria Sobe o morro e não se cansa, Pela mão leva a criança... Lá vai Maria! Maria lava a roupa lá no alto Lutando pelo pão de cada dia Sonhando com a vida do asfalto Que acaba onde o morro principia.
97
3.4.3 A primeira gravação O primeiro registro fonográfico do samba Lata D’água do qual que se tem conhecimento é da gravadora Columbia, em disco de 78 rpm feito em 1951 e lançado no ano seguinte pela cantora Marlene, com arranjos de Radamés Gnattali, que também acompanha a cantora na gravação, com a sua orquestra. Esse samba tornou-se logo um enorme sucesso no carnaval daquele mesmo ano e inúmeras regravações a partir dele foram feitas. Entre as mais famosas estão as de Jair Rodrigues e a do grupo vocal MPB-4. Severino e Mello nos relatam o enorme sucesso que fazia a dupla de compositores na época: “Uma das raras duplas de talento form adas nos anos 50 para se dedicar ao repertório carnavalesco, Luis Antonio e Jota Junior, já tinham feito sucesso no ano anterior com o samba Sapato de Pobre ”. (Severino e Mello, 1997: 292). Sucesso este, também cantado por Marlene. Comentando a história do samba, Severino e Mello nos trazem um breve relato do que inspirou os parceiros a escreverem o samba: Na ocasião, capitães do Exército, servindo na Escola Especializada da Academia Militar, os dois passavam diariamente por um morro ao pé do qual uma bica servia aos moradores. A inspiração nasceria ao verem a cena que descreveram na composição: uma negra equilibrando uma lata na cabeça, enquanto levava uma criança pelo braço”.(Severino e Mello, 1997: 292)
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3.4.4 Sobre o arranjo No prefácio do livro O Melhor de Garganta Profunda, Marcos Leite nos relata que este arranjo foi escrito para o coral Brasileirão, grupo que ele dirigia no Conservatório de MPB de Curitiba.
Fig. 49 - Capa do songbook O melhor de Garganta Profunda
Pela não disponibilidade da gravação feita pela Brasileirão, baseamos a nossa escuta no registro feito pelo grupo vocal Garganta Profunda. A gravação deste arranjo encontra-se no CD Deep Rio, lançado em 1998; já a partitura, no livro O Melhor de Garganta Profunda . Em linhas gerais, o arranjo se assemelha muito a outros escritos por Marcos Leite para o Gar ganta Profunda, nos quais o elemento recorrente seria o estilo vocal-band , muito utilizado pelos grupos vocais, como Swingle Singers e Take Six. Esta técnica de escrita vocal seria, grosso modo, a adaptação para vozes do arranjo instrumental de uma canção popular, mas sem deixar de aproveitar os recursos que são peculiares à escrita para vozes. No caso de Marcos Leite, somou-se ainda a influência de grupos vocais brasileiros surgidos a partir da primeira metade do século XX, tais como: Anjos do Inferno, Quatro Ases e um Coringa, Bando da Lua, Os Cariocas, Demônios da Garoa etc. Grupos que Marcos Leite admirava e estudava, segundo Kátia Lemos em entrevista concedida a Denise Borborema:
99 Uma coisa que a gente também fez bastante no início foi estudar grupos vocais, ele estudava, e a gente estudava também, por conta disso a gente fez uma série de arranjos antigos, do Bando da Lua, Quatro Ases e um Coringa. Ele tinha esse prazer, especialmente com o Bando da Lua e Demônios da Garoa, de São Paulo, [...]. (Lemos apud Borborema, 2005: 183)
Figura 50 - Cd Deep Rio do Garganta Profunda
3.4.5 ASPECTOS GERAIS SOBRE A FORMA DO ARRANJO A canção possui uma forma binária (A-B). Existe uma introdução que é cantada duas vezes e segue para a seção A, que é repetida uma vez, fixando assim a idéia principal ou refrão do samba. Logo após, temos a seção B e, em seguida, o retorno à introdução, que é usada como intermezzo para se repetir toda a canção. Ao término das repetições, reaparece a introdução - neste momento sendo usada como uma codeta . A forma total do arranjo se estabelece no seguinte esquema:
I ntr odução
Seção A
Seção B
I ntermezzo (Intro)
Seção A
Seção B
Codeta (Intro)
2 vezes
2 vezes
1 vez
2 vezes
2 vezes
1 vez
1 vez
Quadro 14 – Forma do arranjo vocal
100 Transcrevemos agora a forma encontrada na gravação original:
Introdu- Seção A Seção B Seção A ção
1 vez
2 vezes
1 vez
2 vezes
I ntermezzo I nstr u- Seção A Seção B Seção A Codeta mental (seção B (intro) transposta)
1 vez
2 vezes 2 vezes
1 vez
1 vez
Quadro 15 – Forma do arranjo original
A forma apresentada por Lata D’água era bastante recorrente nas marchinhas carnavalescos da época. Dentre outras marchinhas das décadas de 40 e 50 que apresentam a mesma forma temos: Cabeleira do Zezé, Bandeira Branca, Chiquita Bacana e muitos outros. É importante enfatizar que, com exceção do intermezzo modulante, a forma original foi mantida pelo arranjo vocal. 3.4.6 Meio/extensões Esse arranjo foi escrito para uma formação coral “quase” tradicional, ou seja, coro misto a quatro vozes. “Quase” tradicional porque a configuração Standard seria SCTB, dis posta desta forma: soprano, contralto, tenor e baixo. Entretanto, Marcos Leite substitui este último por um registro de barítono. Damos a voz ao próprio Marcos Leite que nos justifica o porquê dessa escolha: “Nós não temos baixos, e sim barítonos. As melodias escritas com n otas abaixo do lá1 não soam muito bem nos nossos corais” (Leite, 1995: 05). Tratemos agora das extensões utilizadas para cada naipe. Para o soprano, foi utilizada a extensão que vai do lá2 ao mi4, que é um registro relativamente grave para essa voz. Leite, mais uma vez, vem nos explicar este procedimento, apontando, como justificativa para esta tessitura, o problema da articulação do texto. Concordamos com Protásio (2006) quando comenta esta posição de Leite e acrescenta que existe também uma problemática estilística. Segundo Protásio: “Melodias com letra, cantadas pelo soprano em uma região muito ag uda, se distanciam das referências de canto popular brasileiro e se aproximam do canto erudito”. (Protásio, 2006: 135). Isso explica porque a extensão do soprano é reduzida (lá2 ao dó4), quando este naipe está com a melodia, e se expande para o agudo nos contracantos (mi3 ao mi4). Marcos Leite, conhecendo o pouco brilho e volume que o soprano possui na região grave, usa o Contralto em uníssono com este sempre que o soprano atinge notas mais graves, como nos compassos 15 e 37.
101 A extensão total 8 do naipe de contralto é a própria extensão da melodia da música, ou seja, do lá2 ao dó4. Marcos Leite usa, neste naipe, o mesmo procedimento adotado no soprano: nos compassos 27 e 35, quando o contralto atinge as notas mais agudas, o naipe está em uníssono com o soprano. A extensão do contralto nos contracantos é reduzida a uma oitava, limitando-se à tessitura, que vai do lá2 ao lá3. O tenor equipara-se em extensão com o soprano, do mi2 ao fá3, excetuando assim o fato de que a região grave do naipe não é usada em momento algum do arranjo e que, como o soprano, não tem muito brilho. Quando o tenor está com a melodia principal, a sua tessitura se reduz a uma sexta menor, do mi2 ao dó3, enquanto, nos backgrounds, o naipe faz uso de sua extensão total. O fá3 - nota mais aguda para o tenor neste arranjo - aparece apenas nos compassos 55 e 56. O naipe de barítono tem a sua extensão total compreendida entre o lá1 e o mi3. Esta é a mesma tessitura usada pelo naipe para cantar os BGs. Contudo, quando o barítono está com a melodia principal, a sua extensão se reduz um pouco, ficando entre o lá2 e o dó3. Se confrontarmos as extensões de todos os naipes neste arranjo, chegaremos a algumas conclusões como, por exemplo, a existência de um faixa única para os uníssonos entre as vozes femininas, que vai do lá2 ao dó4, e para as vozes masculinas, compreendida entre o mí2 e o dó3. Se ordenarmos as extensões totais por tamanho, encontraremos o naipe de soprano e de barítono sendo possuidores da maior extensão entre todas as vozes, ou seja, uma oitava + uma quinta justa. Em seguida, o contralto com a segunda maior extensão, uma oitava + uma terça menor. E, por último, o tenor, como a menor extensão de todas, uma oitava. Podemos concluir afirmando que as tessituras usadas neste arranjo, confirmam o que o próprio Marcos Leite propõe em sua apostila de arranjo vocal.
8
A expressão “Extensão total” se refere ao âmbito compreendido entre a nota mais aguda e a mais grave alca nçada por cada naipe no arranjo.
102 Vozes
M elodia prin cipal
Backgr ound
Ex tensão total
Soprano
Lá2 ao Dó4
Mi3 ao Mi4
Lá2 ao Mi4
contralto
Lá2 ao Dó4
Lá2 ao Lá3
Lá2 ao Dó4
Tenor
Mi2 ao Dó3
Mi2 ao Mi3
Mi2 ao Mi3
Bar ítono
Lá1 ao Dó3
Lá1 ao Mi3
Lá1 ao Mi3
Quadro 16 - Extensões das vozes no arranjo
3.4.8 Gravação de referência Vamos analisar os procedimentos composicionais desse arranjo através de três instâncias de representação relacionadas à obra. São elas: uma gravação feita em 1951 pela Marlene, lançada em disco de 78 rpm No.16509 pela gravadora Columbia no ano 1952, com arran jo e acompanhamento de Radamés Gnattali e sua orquestra; a partitura do arranjo vocal de Marcos Leite; e a gravação deste arranjo pelo grupo vocal Garganta Profunda presente no CD Deep Rio, lançado em 1998. Tentaremos relacionar os processos composicionais adotados pelo arranjador com o registro lançado em 1952 e, em seguida, confrontar a partitura com resultado estético alcançado pela execução do Garganta Profunda. Sabemos que existem inúmeros registros sonoros feitos a partir deste samba, contudo, ouvindo boa parte dessas gravações, podemos supor que este registro da cantora Marlene, de 1952, em especial, tenha servido de referência para o arranjo vocal de Marcos Leite devido à tamanha similaridade de idéias encontradas em ambos. O próprio Marcos Leite recomenda, na sua apostila de arranjo vocal, que se estimule o processo de criação pesquisando diferentes versões gravadas da mesma música a ser arranjada.
3.4.9 Harmonia Vamos analisar a harmonia do arranjo de Marcos Leite e compará-la à harmonia da gravação de 1952. Apesar de na gravação original encontrarmos uma orquestração que envol-
103 ve um grande número de instrumentos de sopro, a harmonia é bastante simples, e se repete sem variações. O acorde de Am6 que permeia os cinco primeiros compassos da introdução (mais de 50% desta parte, já que ela possui nove compassos), dá a esse trecho inicial um sabor bastante modal (Lá Dórico), que se torna ainda mais evidente com a progressão Am6 / F#m(b5) / Am6, encontrada nos compassos seguintes. O uso do acorde Am6 permeia todo o arranjo, fazendo com que a harmonia pareça sempre meio híbrida, meio tonal, meio modal. Tal procedimento harmônico está presente também no arranjo de Radamés Gnattali, o que nos leva a supor que a idéia foi aproveitada por Marcos Leite no seu arranjo vocal. Vamos agora nos deter um pouco em Radamés Gnattali. Ele era um compositor erudito que, esteticamente, pertencia ao movimento nacionalista e, como sabemos, os compositores do nacionalismo faziam largo uso do sistema modal, pois o considerava mais próximo da música brasileira do que o sistema tonal, tendo em vista que boa parte do folclore brasileiro é modal. É bem possível que Radamés quisesse estabelecer este “clima” harmônico melódico brasileiro antes de entrar com a parte cantada. Prosseguindo a análise e a comparação entre as harmonizações, encontramos no arran jo de Marcos Leite alguns acordes com função dominante secundária. Nos compassos 16, 22, 32 e 38 temos o acorde de F7 funcionando como um dominante da dominante principal, neste caso um acorde tipo Sub V, que resolve por aproximação cromática descendente com o acorde dominante seguinte (E7). Nesses mesmos lugares, nós encontramos o acorde Bm7(b5), II do tom principal no arranjo de Radamés. Ainda tratando do acorde dominantes secundário, há um outro caso no compasso 46 e 47, onde o acorde A7(b9) depois A7/C# é o dominante do IV grau (Ré menor). No arranjo original também é possível achar este dominante, entretanto, sem a dissonância b9 e no estado fundamental. Existe também, no arranjo de Marcos Leite, grande uso dos acordes invertidos, como nos compassos 13, 20, 47 e 49, resultando, com isso, numa boa condução da linha do barítono. Tais inversões não se encontram no arranjo de Radamés. Nos compassos 35 e 56, Marcos Leite substitui o V grau pelo VII. No arranjo original, nesses trechos, temos apenas o acorde de I grau (Lá menor). Concluindo, além de tudo que já foi dito, devemos ressaltar que Marcos Leite adicionou 6, 7, 7M, b9 e 11 aos acordes que, no arranjo de Radamés, era apenas tríades. Dessa forma, podemos dizer que houve um trabalho de re-harmonização do arranjador vocal. De modo geral, nos parece que as mudanças aconteceram motivadas por dois aspectos: primeiro, a intenção de tornar as linhas melódicas bastante cantáveis, e, segundo, para dar ao
104 arranjo vocal um caráter moderno, mediante a exploração de uma harmonia mais próxima da atual Música Popular Brasileira.
3.4.10 Textura
Com relação ao aspecto textural deste arranjo vocal, podemos dizer que o arranjador se preocupou em trabalhar com texturas variadas dentro da homofonia, tendo sempre em vista à clareza formal da peça, e o destaque a melodia principal. Como se trata de uma canção, a riqueza textural traz mais fluidez às linhas vocais do arranjo. Na introdução deste, encontramos um motivo rítmico em soli quase totalmente paralelo nas vozes femininas, sendo respondido com outro motivo, também rítmico, em uníssono pelas vozes masculinas. Esse esquema estabelece um contraponto no estilo “pergunta e resposta”. Nos três últimos compassos da introdução, as quatro vozes entram em um soli livre para encerrar o trecho.
Fig. 51 – Primeira parte da introdução, contraponto no estilo “pergunta e resposta”.
105
Fig. 52 – Segunda parte da introdução, soli livre
Na seção A, as vozes masculinas iniciam a melodia principal em uníssono, sendo respondidas pelas vozes femininas com um BG melódico em soli, com o motivo rítmico que era das vozes masculinas na introdução.
Fig. 52 - Uníssono e BG melódico em soli
Em seguida, o barítono segue com um fragmento da melodia, sendo agora respondido pelas três vozes - soprano, contralto e tenor – ainda em BG melódico em soli.
106
Fig. 53 – BG melódico em soli
Após isso, as vozes femininas assumem a melodia, que é cantada quase que totalmente em uníssono, tendo por acompanhamento as vozes masculinas em BG rítmico com motivos rítmicos provenientes da introdução em soli.
Fig. 54 - BG rítmico em soli
O tenor segue com a melodia e é acompanhado pelas outras vozes com um BG harmônico. Após isso, as vozes femininas respondem utilizando-se de motivos rítmicos da introdução.
107
Fig. 55 – BG harmônico
Em seguida a melodia passa para o barítono, sendo acompanhado pelas três vozes com um BG rítmico em soli , cantando motivos rítmicos variados da introdução.
Fig. 56 – BG rítmico em soli
Em seqüência, todas as vozes se unem em soli livre para encerrar a primeira exposição da seção A.
108
Fig. 57 – Soli
Em linhas gerais, esta seção pode ser entendida como possuidora de uma textura predominantemente homofônica, isto é, apresentando sempre uma melodia principal que, em algum momento, foi cantada por uma das vozes e sendo, por fim, cantada por todos os naipes. A variedade textural está na forma como o acompanhamento se relaciona com a melodia principal. Nesta seção, o acompanhamento é feito em grande parte por backgrounds rítmicos e melódicos formados motivos rítmicos oriundos integralmente da introdução ou variados destes. O contraponto no estilo “pergunta e resposta” é usado para preencher os espaços da melodia. Encontramos nesta seção, também como na introdução, o uso do tutti em soli para encerrar o trecho. O arranjador usa o uníssono entre as quatro vozes para iniciar a repetição da seção A, com exceção apenas para o tenor que está em terças paralelas na anacruse.
109
Fig. 58 – Uníssono, com exceção do tenor
Segue aqui o BG melódico entre as vozes, as vozes femininas em uníssono são respondidas pelas vozes masculinas, até o soli da palavra “María”.
Fig. 59 – BG melódico e soli
Em seguida, as vozes femininas seguem com a melodia em uníssono, sendo acompanhadas por um background harmônico nas vozes masculinas.
110
Fig. 60 – BG harmônico
Mais uma vez, encontramos o soli a quatro vozes para encerrar a reexposição da seção A.
Fig. 61 - Soli
Se compararmos a primeira exposição da seção A com a sua repetição, concluiremos que houve uma variação textural, pois na primeira exposição encontramos uma recorrência dos acompanhamentos em forma de BGs rítmicos e melódicos, na repetição, notas longas nos acompanhamentos caracterizam os BGs harmônicos.
111 Na seção B, encontramos um misto dos procedimentos presentes nas seções anteriores. A seção B inicia-se com o contralto cantando a melodia, sob o acompanhamento das outras vozes em BG harmônico.
Fig. 62 - BG hamônico
No intervalo da melodia, encontramos as vozes masculinas fazendo um BG melódico com os motivos já conhecidos.
Fig. 63 – BG melódico
Em seguida, o soprano canta a melodia e o acompanhamento de notas longas mantém o BG harmônico nas outras vozes.
112
Fig. 64 – BG harmônico
Neste momento, o barítono assume a melodia, sendo acompanhado pelas outros naipes com os motivos rítmicos em soli, caracterizando um BG rítmico harmonizado em bloco.
Fig. 65 – BG rítmico
A seção B se encerra como as outras, com todas as vozes cantando a melodia em soli quase totalmente em paralelo. Este momento nos parece o clímax do arranjo, quando o movimento ascendente das vozes leva o tenor e o barítono a atingirem suas notas mais agudas, respectivamente fá3 e mi3.
113
Fig. 66 – Soli
Concluímos então que as principais características texturais deste arranjo são: homofonia (melodia acompanhada); contracantos (pergunta e resposta), sendo usados para preencher espaços da melodia; BGs harmônicos; BG rítmicos (no estilo vocal-band), que caracterizam o gênero samba; a melodia, que “passeia” pelos naipes em um estilo que lembra as orquestrações de Glenn Miller; e o uso das variações entre uníssono, soli a duas, três e quatro vozes. O quadro a seguir resume a textura do arranjo vocal.
114 Seções I ntr odução
A
Compassos
F rases
Compassos
Texturas
s1
01 ao 04
Soli a2 Uníssono
s2
05 ao 08
Soli a4
a1
09 ao 16
Uníssono Soli a2 BG melódico
01 ao 08
09 ao 23 a2
25 ao 32
Uníssono Soli a2 e 4 BG melódico
33 ao 39
Uníssono Soli a2 e 4 BG har môni co
40 ao 43
Soli a2 BG har môni co
44 ao 47
Soli a3 BGs melódico e harmônico
b3
48 a0 51
Soli a3 BG Rítmico
b4
52 ao 55
Soli a4
a'1 A'
25 ao 39 a'2
b1 B
17 ao 24
Soli a3 e 4 Uníssono B Gs har môni co e rít- mico
40 ao 55 b2
Quadro 17 - Quadro da Textura
3.4.11 MELODIA E RITMO Como já vimos anteriormente nos outros tópicos, em certos momentos o arranjador fez uso de dobramentos em uníssono com a intenção de dar reforço à melodia principal ou os BGs. Encontramos uníssonos entre as vozes masculinas nos compassos 2, 4, 11 e 27; e, entre as vozes femininas, nos compassos 15, 20, 26, 27, 29, 30, e do 34 ao 37. Nos compassos 26 e 27, encontramos um uníssono entre soprano, contralto e barítono, oitava abaixo das
115 vozes femininas. O uníssono entre as quatro vozes foi achado apenas uma vez em todo o arranjo, no inicio da seção A’. Existe, neste arranjo vocal, uma tendência à condução paralela entre as vozes. Esta técnica de escrita em blocos harmônicos ( soli) nos remete aos arranjos de grupos vocais, tais como: Bando da Lua, Os Cariocas, Demônios da Garoa etc. Marcos Leite conhecia bem esse tipo de escrita, pois transcreveu arranjos vocais de gravações de vários desses grupos e os inseriu nas apresentações do grupo Garganta Profunda. Como já foi visto antes, um dos principais momentos de paralelismo do arranjo são os cinco últimos compassos, quando as quatro vozes mantêm o movimento em toda a frase final. O Soli, surgiu primeiro na escrita para instrumentos de sopro e depois foi introduzida na escrita vocal. Tal técnica foi amplamente utilizada na escrita instrumental por compositores como: Debussy, Ravel, De Falla, Respighi etc. Comentando o soli paralelo, Ian Guest diz que este movimento ressalta a melodia e traz leveza ao arranjo, sem sacrificar a harmonia (Guest, 1996: 112). Hawley Ades concorda com Guest na questão de que a movimentação paralela traz fluidez e leveza ao arranjo vocal, mas acrescenta que, no entanto, o movimento contrário torna a harmonia mais clara, e conclui dizendo que a alternância dos movimentos é sempre bem-vinda (Ades, 1986: 53). Podemos assim concluir que Marcos Leite utilizou o soli paralelo em trechos do arranjo para ressaltar a melodia e proporcionar leveza e fluidez ao todo. O arranjador trabalha a melodia principal de diversas formas e com grande liberdade, evitando assim a pura e simples repetição. É o que acontece na sessão B, onde o contralto canta a primeira frase; o soprano, a segunda; o barítono, a terceira; e a seção se encerra com todos cantado a frase final. Esta, por sua vez, é ressaltada com os acordes em movimento paralelo, enriquecidos pela re-harmonização do arranjo. Com relação ao ritmo, devemos aqui analisá-lo tendo em vista o uso que Marcos Leite fez dele nos BGs que acompanham e respondem à melodia principal. Quando as vozes não estão cantando o texto, o arranjador faz uso de apenas dois tipos de fonemas . Os BGs harmônicos caracterizados pelas notas longas (semínimas e mínimas) são vocalizados com a vogal “o” - nesses casos, como já foi dito, as linhas cumprem a função de sustentar os acordes de acompanhamento que, em geral, são escritos utilizando duas (c. 34 a 38, vozes masculinas) e três vozes (c.46 a 49, contralto, tenor e barítono) que encontram-se harmonizadas em intervalos de terças ou sextas, com quase total predominância do movimento paralelo entre as vozes. Nos BGs rítmicos estão presentes as notas curtas (colcheias e semicolcheias), o arranjador fez
116 uso das sílabas “pa – ra”, onde a consoante de explosão “p” é usada para proporcionar prec isão rítmica aos motivos e a consoante “r” tem a função de proporcionar um efeito percussivo ao ritmo; já a vogal “a”, define a altura das notas e ajuda a sustentá -las. Como já dissemos antes, estes motivos rítmicos que acompanham e/ou respondem a melodia principal foram extraídos da introdução, onde alguns aparecem inalterados (compassos 12 e 14 nas vozes femininas) e outros variados (compassos 16 e 17 nas vozes masculinas). A mudança mais radical dos motivos da introdução encontra-se nos compassos 50 a 53, onde houve uma mudança de acentuação dos motivos. Protásio (2006) comentando esse momento do arranjo, relata: “O ritmo desse trecho se assemelha muito com o ritmo de um tamborim no samba”. (Protásio, 2006: 109). Existe neste arranjo uma grande recorrência desses motivos rítmicos, que funcionam nos contracantos dialogando com a melodia principal e também nos BGs rítmicos a acompanhando de forma eficiente, trazendo unidade e fluência ao arranjo. Estes motivos rítmicos extraídos do instrumental do samba, como observou Protásio, auxiliam a sustentação e a condução rítmica e, sobretudo, caracterizam o gênero samba em um arranjo vocal a cappella , um meio de execução muito diferente do original. É interessante observar como Marcos Leite varia os backgrounds sempre subordinado ao caráter da melodia principal que, se está ritmicamente mais ativa, conduz por si só a rítmica do samba. Nesses casos, o acompanhamento se faz com BGs harmônicos. Quando a melodia se encontra menos ativa, em silêncio, ou sustentando longas notas, o arranjador escreve BGs rítmicos ou melódicos com motivos rítmicos, o que mantém o fluxo constante do ritmo de samba no arranjo.
3.4.12 Comparações e conclusões Neste momento, retomaremos as nossas comparações entre a gravação que adotamos como referencial para o arranjador vocal, ou seja, a datada de 1952, cantada por Marlene, com arranjo e acompanhamento de Radamés Gnattali e sua orquestra. Confrontaremos esse registro com as informações encontradas na partitura do arranjo de Marcos Leite e, por fim, faremos comparações entre a partitura e a gravação feita em 1998 desse arranjo pelo grupo vocal Garganta Profunda no Cd Deep Rio. A primeira observação que faremos se encontra já no início da gravação, onde um gru po de sopros expõe toda a introdução, totalmente transcrita para vozes e aproveitada por Mar-
117 cos Leite em seu arranjo. Os motivos expostos por Radamés, nesse momento, permeiam todo o samba, seja respondendo à melodia principal, preenchendo espaços desta, ou conduzindo o ritmo. Na gravação original, pode ser ouvida também uma seção de instrumentos de percussão que acompanha toda a obra, proporcionando o fluxo rítmico do samba, reforçado em muitos momentos pela intervenção dos sopros. Como vimos anteriormente, todas estas idéias de aproveitar fragmentos rítmicos da i ntrodução no decorrer da peça foram, de alguma forma, aproveitadas por Marcos Leite no seu arranjo vocal. Outra similaridade do arranjo original com o vocal é a forma como foram dis postas as partes da melodia, divididas entre a cantora solista e o coro (sempre em uníssono) no arranjo original. No arranjo de Radamés, os tuttis se encontram nos finais das frases e no início da reexposição da seção A, exatamente como no arranjo de Marcos Leite. Na seção B, a melodia principal é toda da cantora solista, excetuando o tutti no final da frase. Essa mesma conformação está presente também no arranjo vocal, sendo a melodia apenas partilhada entre os naipes. Podemos concluir, então, o quanto foi fundamental para a construção do arranjo vocal a audição de referida gravação. Aspectos essenciais do arranjo vocal foram oriundos da gravação. Acreditamos que, com isso, o arranjador tenha conseguido trazer para o arranjo vocal toda a estética da gravação original do samba. Tratando agora da execução da partitura pelo grupo vocal Garganta Profunda, já de início percebemos uma seção que precede a introdução. Esta seção não está representada na partitura porque se trata de um improviso, onde os membros masculinos do grupo simulam vocalmente, em entradas sucessivas, os instrumentos de percussão encontrados no samba. Este trecho nos remete à sonoridade de um pequeno bloco carnavalesco. O barítono inicia a seção imitando um surdo; em seguida, entra o tenor simulando um tamborim; em seqüência, surge uma voz masculina imitando um chocalho; e, por fim, outra voz sugere uma caixa clara. Devemos supor aqui que houve uma sobreposição das vozes masculinas, já que, na época desta gravação, o grupo contava apenas com cinco integrantes, incluindo o próprio Marcos Leite. Essa pré-introdução, se escrita, compreenderia oito compassos. Nos compassos 8 e 9 as pautas estão vazias, o arranjador escreve, em cima do sistema, a seguinte sugestão: “Solo v ocal livre, sugerindo ritmo de samba”. Aqui temos os “instrumentos” da introdução improvis ada solando livremente. Acreditamos que a idéia do improviso no início da gravação provenha das interessantes soluções que o grupo tenha encontrado para este trecho.
118 Tratando agora das recorrências desses eventos ao longo da gravação, podemos dizer que o surdo vocal do barítono permeia toda a execução, seguido pela caixa - esta substituída apenas na Seção B por um chocalho e, vez por outra, aparece uma voz imitando um pandeiro. Na repetição da peça, surge uma voz masculina que improvisa frases com sabor jazzístico, imitando o que nos parece um instrumento de sopro. Temos a impressão de que se trata de um tipo de pastiche, ou seja, uma referência irônica ás primeiras influências do Jazz norteamericano sobre os sambas gravados na Brasil a partir da década de trinta. Nesta análise foi impossível ignorar essas gravações, pois elas trouxeram a compreensão sobre inúmeros aspectos do fazer criativo do arranjo e de sua execução. Esperamos que este estudo analítico tenha, de alguma forma, exemplificado os processos que permeiam o trabalho do arranjador vocal e que, de algum modo, sejam compreendidos e absorvidos pelo regente coral que pretende uma execução estilisticamente correta desses gêneros de música popular, aproximando-a da realidade que ela pretende caracterizar, evitando, assim, uma execução equivocada de arranjos como este, que foram escritos para soar como Música Popular Brasileira, e não como peças de concerto. Uma última observação pode ser feita: como o arranjo vocal de MPB busca “soar” como música popular, utilizar elementos oriundos de uma ou mais gravações é uma opção, como demonstrou aqui Marcos Leite. Além disso, enfatizamos a enorme importância de se aprofundar as informações sobre o compositor popular e sua obra, incluindo a sua história e o contexto no qual a canção foi composta, de ouvir diferentes gravações da mesma música e procurar ter o conhecimento técnico e estilístico dos gêneros sobre os quais se pretende arran jar.
119
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao iniciarmos a escrita dessa dissertação, já havíamos feito o levantamento bibliográfico. Dessa forma, já tínhamos o conhecimento conhecimento sobre a escassez de trabalhos realizados sobre o assunto e que as questões aqui estudadas seriam bastante significativas para gerar conhecimento conhecimento a respeito do tema. Segundo Segundo pesquisas recentes, recentes, a escrita de arranjos vocais tem se tornado uma prática comum no dia-a-dia de muitos regentes corais. Todavia, a falta de estudos e publicações especificas sobre o assunto tem centralizado o conhecimento desse fazer nas mãos de alguns poucos arranjadores, que em sua grande maioria atuam fora do ambiente acadêmico. Então surgiu em nós o interesse de estudar e sistematizar esses conteúdos, e de alguma forma torná-los mais disseminados. Acreditamos que o primeiro capitulo desta pesquisa tenha contribuído para esclarecer vários aspectos teóricos a respeito do arranjo. O primeiro deles foi a busca de uma delimitação coerente para o termo arranjo, sob a ótica da música popular. O segundo aspecto esmiuçado, foi o papel despenhado despenhado pelo arranjador na música popular brasileira. Vimos como se dá inter-relação inter-relação entre obra “original”, arranjador e arranjo. Vislumbramos também a importância fundamental do arranjador na cadeia de produção da música popular brasileira. Por fim, investigamos os principais termos aplicados a prática do arranjo do ponto de vista textural e composicional. Buscamos sempre confortar ás técnicas encontradas na prática cotidiana do arranjo, através das analises, com o que encontramos nos referencias teóricos sobre o tema. Com intuito de estabelecer uma terminologia objetiva, prática e totalmente
120 afinada com a “realidade” atual da escrita vocal para canções populares brasileiras. Talvez essa tenha sido umas das maiores contribuições desta pesquisa. Em seguida, no segundo capitulo trouxe contribuições a respeito da trajetória estética e histórica do arranjo vocal de canção popular brasileira. Destacamos dois pontos relevantes dessa trajetória. O primeiro deles foi o levantamento do primeiro arranjo de música popular Sertão, escrito por Heitor Villaurbana de que se tem registro. O arranjo vocal de Luar do Sertão, escrito Lobos na década de 30, já traz consigo o germe de uma mudança de estética significativa. Até então os arranjos eram escritos tendo como base a música folclórica, e eram predominantemente predominantemente polifônicos. Já J á no arranjo de Luar do Sertão, Villa-Lobos apresenta uma textura totalmente homofônica, que valoriza e destaca a melodia principal, e que por sua vez, aproxima o arranjo da estética da música popular, e o distancia da música vocal erudita. O segundo ponto destacado é o trabalho realizado por Ismael Neto como arranjador do grupo vocal “Os Cariocas”. A análise do arranjo vocal de Último Beijo demonstra Beijo demonstra características muito particulares da escrita do arranjador, como por exemplo, as harmonias a 4 e 5 vozes, inéditas para na época. Podemos dizer qu e o idiomatismo do grupo “Os Cariocas” foi fundamental para consolidar o formato que os arranjos vocais de canção popular têm hoje. Na parte final do trabalho o foco principal é o arranjador Marcos Leite. Iniciamos comentando a tradição dos grupos vocais cariocas, de onde surgiu o músico e o seu grupo vocal mais conhecido, o “Garganta Profunda”. Analisamos um dos seus arranjos mais cantados, de Lata de Lata D'água, D'água , onde vimos como uma gravação de referência se tornou essencial para gerar idéias e sugestões durante todo o processo processo de composição composição do arranjo. arranjo. O fato significativo de existir pouca bibliografia consistente relacionada ao arranjo vocal de canção popular brasileira exigiu que dialogássemos com a bibliografia tendo em vista a prática dos arranjadores e a nossa própria. Acreditamos que o confronto entre a prática estabelecida nos arranjos e os conceitos e a terminologia encontrados nos referencias teóricos, produz um relatório bastante bastante original, até mesmo mesmo inédito em alguns alguns pontos. A continuidade de estudos e análises deste repertório se faz necessária, e certamente fará parte de nossas pesquisas futuras, futuras, onde pretendemos pretendemos gerar métodos de ensino ensino sistematizado destes destes conteúdos. conteúdos. Infelizmente não tivemos condições de aprofundar os estudos sobre o Cobral Coral, e investigar como a proposta cênica do grupo se articulava com a escrita dos arranjos. Entendemos que a presente pesquisa alcançou os objetivos propostos momentaneamente, mas muito ainda há de se pesquisar sobre o assunto em questão. Desejamos sinceramente que este
121 trabalho possa instigar outros pesquisadores a aprofundar as pesquisas neste campo específico do fazer composicional.
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ANEXO
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