Ficha Técnica Título: Citações e Pensamentos de Sigmund Freud Organizador: Paulo Neves da Silva Revisão: Ayala Monteiro Capa: M aria Manuel M anuel Lacerda/Ofi Lacerda/Oficina cina do Livro, Lda. ISBN: 9789724620626 CASA DAS LETRAS uma marca da Oficina do Livro – Sociedade editorial, Lda. uma empresa do grupo LeYa Rua Cidade de Córdova, n.º 2 2610-038 Alfragide – Portugal Tel. (+351) 21 427 22 00 Fax.. (+351) 21 427 22 01 Fax © Paulo Neves da Silva Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor Email:
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Ficha Técnica Título: Citações e Pensamentos de Sigmund Freud Organizador: Paulo Neves da Silva Revisão: Ayala Monteiro Capa: M aria Manuel M anuel Lacerda/Ofi Lacerda/Oficina cina do Livro, Lda. ISBN: 9789724620626 CASA DAS LETRAS uma marca da Oficina do Livro – Sociedade editorial, Lda. uma empresa do grupo LeYa Rua Cidade de Córdova, n.º 2 2610-038 Alfragide – Portugal Tel. (+351) 21 427 22 00 Fax.. (+351) 21 427 22 01 Fax © Paulo Neves da Silva Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor Email:
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INTRODUÇÃO Sigmund Freud (1856-1939) abriu a porta de acesso aos segredos mais profundos que estavam encerrados na personalidade humana. Numa busca incansável das motivações inconscientes do ser humano, dos desejos e ilusões que comandam o seu destino, Freud encontra a imagem do homem que se engana a si mesmo, ainda mais do que engana os outros, numa crise de subjetividade que continua a caracterizar a nossa modernidade. Sublinhando o mistério inerente ao nosso ser, desta feita por meios científicos, Freud tomou lugar entre os escritores e filósofos que estão na origem da nossa presente sensibilidade. E, apesar de todos os avanços e ramificações da psicanálise tal como como ela existe existe hoje em dia, a grande grande maioria dos seus conceitos continua a basear-se diretamente no seu trabalho original. Freud assentou todas as suas teorias na análise sobre a nossa Pré-História, antevendo o que posteriormente veio a provar-se acerca da formação e evolução do nosso cérebro, onde os instintos mais básicos de sobrevivência, sedimentados por milhares e milhares de anos, acompanhados pelos rituais de convívio tribais e de adoração, se mantêm solidamente implementados na base do nosso crânio, com manifestações constantes no nosso dia-a-dia. Freud ensinou que não só as situações humanas são inelutavelmente conflituais, como também que o homem é uma presa da sua infância. A necessidade que ele tem do pai durante esta transforma-se, em adulto, na necessidade de crença em algo superior e de líderes, algo muito bem explorado pelas religiões e pelas ideologias políticas, entre entre outras outras manifestações anifestações modernas de integração de um indivíduo dentro de um grupo, tais como claques e outras associações de toda a espécie, que, com menor ou maior violência, hostilizam outras do mesmo género na suprema necessidade instintiva de supremacia sobre a espécie, alimentada por milhares e milhares de anos de comportamento instintivo. Entre as obras que melhor exploram essa temática, Freud escreveu Totem e Tabu (1912Monot eísmo (1937). Desta forma, não surpreende que, aos olhos 1913), e Moisés e o Monoteísmo de Freud, a religião, tanto quanto o marxismo, apenas criou novas quimeras, constrangendo o indivíduo, e sobretudo a criança, numa escola dogmática irreal, que não permite nem a dúvida nem o livre-arbítrio, quanto ao sentido a dar a cada um dos nossos atos. Numa análise ainda mais pessoal e generalista, mas sem pretensões além de, como ele próprio o afirmou, de dizer o óbvio, escreveu os livros O Futuro de Uma Ilusão (1927) e A Civilização Civili zação e os Seus Descontentamentos (1930), onde, principalment principalmentee neste neste últim último, o, traça as linhas linhas gerais pelas quais o indivíduo pode evitar a infelicidade. Assim, a denúncia do abuso sobre a pessoa humana produzido pela
religião e pelas doutrinas coletivistas, da qual também foi vítima quando perseguido pelo nazismo, que o forçou ao exílio, tornou-se um dos traços característicos da sua vida e da sua obra, na procura da verdade doesse a quem doesse. Quando soube que, em Berlim, tinham solenemente condenado à destruição e queimado os seus livros, juntamente com os de Heine, Schnitzler, Wasserman e tantos outros, contentou-se em dizer calmamente: «Pelo menos, ardo junto das melhores companhias possíveis.» Curiosamente, Freud foi contemporâneo de Nietzsche, e ambos partilharam traços comuns: a importância que davam aos impulsos e ao inconsciente, a desconfiança relativamente às manhas da razão, a desconfiança no que toca à moralidade, a vontade de serem os químicos da vida mental, e a certeza que tinham de estar a manipular substâncias explosivas. O esforço contínuo na vida de Freud foi ser ele próprio, e isso significava que travaria uma luta constante de confronto com a realidade, desmistificando e banindo todas as ilusões, e ao chegar ao final da sua vida tinha atingido esse objetivo. Com a evolução das suas investigações, Freud estava não só consciente do caráter revolucionário dos seus trabalhos, mas era também sublime na arte de os apresentar. Falava sem apontamentos, preocupando-se sempre em explicar as coisas mais complicadas na linguagem mais acessível. Tinha alguma dificuldade em lidar com as discussões, pois rapidamente concluiu que a maioria das que eram ditas científicas tornavam-se tendenciosas e venenosas, pelo que se esquivava às mesmas, manifestando a perca de tempo que lhe causava, e que o resultado do seu trabalho acabaria por vingar por si. Independentemente de tudo isso, Freud era bastante autocrítico, progredindo com a maior cautela nas suas investigações. Para aqueles que queriam ir ainda mais longe em certas especulações, ele dizia: «Por mim, voguei sempre à tona dos lagos da minha terra. Bom proveito para aqueles que navegarem no alto-mar»; e não poupava os seus maiores críticos, dizendo: «Sempre pensei que os primeiros a lançarem-se sobre a minha doutrina seriam os porcos e os especuladores.» Com reconhecimento público tardio, tornandose reputado primeiro fora do seu país e só muito depois no seu próprio, em 1913, o fisco expressou-lhe a sua surpresa por verificar a modicidade dos seus proventos «quando todos sabem que o seu renome se estende muito para além das fronteiras da Áustria». Ao que Freud respondeu, cheio de ironia: «O professor Freud sente-se muito honrado por receber uma comunicação da parte do Governo. É a primeira vez que se vê objeto das suas atenções, facto que não pode deixar de apreciar. Há, no entanto, um ponto que contesta: o seu renome não se estende para além da Áustria, só começa a partir das suas fronteiras.» Entre os escritos de Freud ressalta a vasta correspondência, e em particular as cartas que escreveu a Martha (a mulher com quem casou) durante os quatro anos de noivado (1882-1886). Foi numa noite de abril de 1882, quando ela vinha com a sua irmã Minna visitar a família Freud, que ele reparou em Martha pela primeira vez.
Algumas semanas depois, ao dar-se conta da seriedade dos seus sentimentos, pediulhe namoro. Todos os dias lhe fazia chegar uma rosa vermelha, acompanhada de um cartão em que escrevia uma citação, em espanhol, latim, alemão ou inglês. Num dos seus primeiros cumprimentos galantes comparava Martha à princesa do conto de fadas de cuja boca se escapavam pérolas e rosas. O noivado foi marcado para dia 17 de junho, data que seria comemorada todos os meses daí em diante. No entanto, Freud só voltou a ver Martha por seis vezes durante os quatro anos e meio que durou o noivado. Uma vez que ele não tinha condições financeiras para se casar, tiveram de esperar o tempo necessário para que tal acontecesse, vivendo Martha numa pequena localidade próxima de Hamburgo, e Freud em Viena. As mil e quinhentas cartas de Freud a Martha (cada uma com uma média de doze páginas) constituem uma contribuição preciosa à mais bela literatura amorosa de todos os tempos. Deste magnífico espólio destacam-se, por ordem cronológica, desde o início do noivado ao nascimento do primeiro filho, alguns excertos carismáticos que se encontram reunidos na terceira secção deste livro. Por toda a sua vida e toda a sua obra, Freud imortalizou-se e permanece vivo entre nós pela denúncia de todos os delírios individuais e coletivos que caracterizam a nossa sociedade e que nos mantêm reféns de um conjunto de instintos básicos e préhistóricos dos quais as civilizações não se conseguem livrar, mas que são também a base da mesma, na repressão a que foram votados. O futuro da humanidade, que passa pela livre dissipação desses mesmos instintos de uma forma saudável sem que interfira no bem-estar do outro, foi o caminho que Freud desbravou identificando todos os fatores e obstáculos, representando assim a sua grande dádiva à atualidade; no entanto, esta continua de ouvidos moucos na crescente monopolização do indivíduo pelas catedrais da modernidade: o hiperconsumo o poder da macroeconomia e as novas religiões, que o deixam ainda mais vazio e egoisticamente refém de si próprio. O indivíduo continua e continuará refém dos seus instintos, concretizados na suprema (in)satisfação dos seus desejos e do controlo do outro. Aparentemente liberto das recentes grossas cadeias das religiões e ideologias políticas, que reprimiam esses mesmos instintos, um novo deserto se lhe apresenta, mantendo-se intactas as motivações básicas dos seus ancestrais pré-históricos. Por uma cultura ética e por uma civilização que permita serem todos iguais entre si, encontra-se o paradoxo da insatisfação do indivíduo, que, para conviver harmoniosamente com o seu próximo, tem de encontrar vias de dissipação ou sublimação desses mesmos instintos. Nesta compilação de citações e de textos do pai da psicanálise, incidindo menos nos aspetos técnicos das suas descobertas e mais nas suas opiniões mais genéricas sobre o ser humano e a humanidade, incluem-se também muitas declarações sobre si próprio, ilustrando a força do homem modesto e espartano que, vivendo uma vida de
reclusão, se dedicou de força e alma ao abate de todas as cadeias que o ser humano acumulou ao longo dos séculos.
Citações
AGRESSIVIDADE Que poderoso obstáculo à civilização não terá de ser a agressividade, se defendermo-nos contra ela nos torna tão infelizes como reivindicá-la. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
AJUDA Falta-me a paixão de ajudar e agora compreendo a razão disso: é porque na primeira juventude não perdi nenhum ser amado. Correspondência (1910)
ÁLCOOL O álcool torna o adulto uma autêntica criança, que sente prazer em abandonar-se ao fio dos próprios pensamentos, sem se preocupar com as imposições da lógica. A Palavra do Espírito e as Relações com o Inconsciente (1905)
AMBIÇÃO Nem sempre darei lugar a que as pessoas esqueçam o meu nome. Mas não sou muito ambicioso. Não preciso de ser reconhecido pelos outros para saber que sou alguém. Correspondência (1884)
AMIZADE Não compartilho o teu desprezo pela amizade masculina, sem dúvida porque é algo que me toca de muito perto. Como sabes, a mulher nunca substituiu na minha vida o camarada, o amigo. Correspondência (1901)
AMOR Nunca estamos tão mal protegidos contra o sofrimento como quando amamos, nunca somos tão irremediavelmente infelizes como quando perdemos a pessoa amada ou o seu amor. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) Se amo alguém, esse alguém deve ser merecedor desse amor de uma maneira ou de outra. Merecerá o meu amor se for tão semelhante a mim em aspetos importantes que eu me possa amar nele; merecê-lo-á também, se for muito mais perfeito do que eu e se eu puder amar nele o ideal do meu próprio eu. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) Eu nunca confiei no amor que rapidamente responde à primeira chamada e que descarta o direito de crescer e de se desdobrar continuamente com o tempo e a experiência. Cartas a Martha (1885) Não quero que me ames por qualidades que poderias atribuir-me, nem, de resto, por qualidade alguma: é preciso que me ames sem razão, como amam sem razão todos os que se amam, simplesmente porque eu te amo, e sem que tenhas de te envergonhar por causa disso. Correspondência (1882) A criança agarrada ao seio da mãe é o protótipo de toda a relação amorosa. Encontrar o objeto sexual não é, em última análise, mais do que reencontrá-lo. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905) O amor ou o ódio dos homens não espera, para se fixar, ter primeiro estudado e reconhecido a natureza das coisas. Os homens amam por impulso e por razões de sentimento que nada têm a ver com o conhecimento e às quais a reflexão e a meditação não podem deixar de tirar força. Um Souvenir da Infância de Leonardo da Vinci (1910) Como reconhecerá, fiz muito para demonstrar a importância do amor. Todavia, a minha experiência não confirma a sua opinião segundo a qual ele estaria na base de tudo, a menos que lhe acrescentemos o ódio; o que é psicologicamente exato. Mas é algo que confere imediatamente ao mundo um aspeto entristecedor. Correspondência (1910)
Devemos honrar uma mulher de idade, mas não casar com ela; o amor, apesar de tudo, destina-se apenas às jovens. Correspondência (1911) Quem duvida do seu amor tem o direito de duvidar, deve até duvidar de todas as outras coisas de valor inferior ao do amor. Notas sobre Um Caso de Nevrose Obsessiva (1909) Um verdadeiro amor feliz corresponde à condição primeira na qual a líbido objetal e a líbido do ego não podem ser distinguidas. Para Introduzir o Narcisismo (1914) O amor pela mulher rompe os laços coletivos criados pela raça, ergue-se acima das diferenças nacionais e das hierarquias sociais, e, fazendo-o, contribui em grande medida para os progressos da cultura. Psicologia Coletiva e Análise do Eu (1921) Ao «alargar» a conceção do amor, a psicanálise não criou nada de novo. O «Eros» de Platão apresenta, quanto às suas origens, nas suas manifestações e nas suas relações com o amor sexual, uma perfeita analogia com a energia amorosa, com a líbido da psicanálise, e quando, na sua famosa «Epístola aos Coríntios», o apóstolo Paulo gaba o amor e o põe acima de tudo o resto concebe-o sem dúvida neste mesmo sentido «alargado», donde se segue que os homens nem sempre levam a sério os seus grandes pensadores, mesmo quando aparentam admirá-los. Psicologia Coletiva e Análise do Eu (1921) É o destino do amor sensual extinguir-se quando se satisfaz; para que possa durar, desde o início tem de estar mesclado com componentes puramente afetuosos – isto é, que se acham inibidos nos seus objetivos – ou deve, ele próprio, sofrer uma transformação desse tipo. Psicologia Coletiva e Análise do Eu (1921)
ANGÚSTIA A angústia é um impulso libidinal que tem origem no inconsciente e é inibido pelo pré-consciente. A Interpretação dos Sonhos (1900)
ANIVERSÁRIO Os aniversários entram na categoria daquilo que poderíamos designar de modo apropriado por meio da palavra inglesa nuisance. A sua única desculpa é que só aparecem uma vez por ano e mesmo assim não por muito tempo. Correspondência (1932)
ANSIEDADE Quando alguém que caminha no escuro canta, nega a sua ansiedade, mas não vê mais claro por causa disso. Inibição, Sintoma e Ansiedade (1926)
ARTE A natureza generosa deu ao artista a capacidade de exprimir os seus impulsos mais secretos, desconhecidos até por ele próprio, por meio dos trabalhos que cria; e estas obras impressionam enormemente outras pessoas estranhas ao artista e que desconhecem, elas também, a origem da emoção que sentem. Um Souvenir da Infância de Leonardo da Vinci (1910) A arte é o único domínio em que a omnipotência das ideias se manteve até aos nossos dias. Só na arte acontece ainda que um homem, atormentado pelos seus desejos, faça qualquer coisa que se assemelha à satisfação; e, graças à ilusão artística, este jogo produz os mesmos efeitos afetivos que se verificariam se se tratasse de uma coisa real. Totem e Tabu (1912-1913) São justamente algumas das mais grandiosas e imponentes obras de arte que permanecem obscuras para o nosso entendimento. Admiramo-las, sentimo-nos dominados por elas, mas não saberíamos dizer o que representam para nós. O Moisés de Miguel Ângelo (1914) A meu ver, o que nos prende tão poderosamente (à obra de arte) só pode ser a intenção do artista, até onde ele conseguiu expressá-la na sua obra e fazer-nos
compreendê-la. Entendo que isso não pode ser simplesmente uma questão de compreensão intelectual; o que ele visa é despertar em nós a mesma atitude emocional, a mesma constelação mental que nele produziu o ímpeto de criar. O Moisés de Miguel Ângelo (1914) Infelizmente, a ligeira narcose em que a arte nos mergulha é fugidia; simples recuo diante das duras necessidades da vida, não é suficientemente profunda para nos fazer esquecer a nossa miséria real. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) A arte é quase sempre inofensiva e benfazeja, não pretende ser mais do que uma ilusão e não tenta nunca, exceto em certas pessoas que se acham, como se costuma dizer, «possuídas» por ela, tomar de assalto a realidade. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933)
ARTISTA Não sou – apesar de tudo o que você possa dizer – um artista, nunca seria capaz de «dar» efeitos de luz e coloridos, mas apenas desenhar a dureza dos contornos. Correspondência (1931)
ASSASSÍNIO Não é preciso proibir aquilo a que nenhuma alma humana aspira. É precisamente o modo como está formulada a proibição: «Não matarás», que é de molde a darnos a certeza de descendermos de uma série infinitamente longa de gerações de assassinos, que possuíam no sangue, talvez como nós próprios, a paixão de matar. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915)
AUTOBIOGRAFIA O seu desejo de me ver escrever uma autobiografia mais íntima quase não tem possibilidade de ser realizado. Achei já bastante duro ter tido de fazer apelo a certo número de circunstâncias pessoais (exibicionismo) para escrever A
Interpretação dos Sonhos , e não penso que alguém pudesse retirar grande coisa de uma publicação do género da que fala. Pessoalmente, nada mais peço ao mundo senão que me deixe em paz e que, em vez de a mim, consagre o seu interesse à psicanálise. Correspondência (1933)
AUTOCONHECIMENTO Se você se encontrasse numa situação de embaraço, eu não o convidava a dissecar implacavelmente os seus sentimentos, mas se, apesar de tudo, o fizesse, então veria como se acha pouco seguro de si próprio. O esplendor do universo está, de resto, ligado a esta multiplicidade das possibilidades, mas infelizmente isso não constitui terreno sólido para o nosso conhecimento de nós mesmos. Correspondência (1873) O demónio do homem é o que nele há de melhor, é o próprio homem. Não se deve empreender coisa alguma de que se não goste realmente. Correspondência (1885) Uma autoanálise deve ser indefinidamente prosseguida. Observo, no meu próprio caso, que cada nova fase dela me traz novas surpresas. Correspondência (1911) Momentaneamente só posso aconselhar esta receitazinha doméstica: cada um de nós deve ocupar-se mais ativamente da sua própria neurose do que da do próximo. Correspondência (1912) É ponto assente entre os analistas que nenhum de nós deve envergonhar-se do seu fragmento de neurose próprio. Mas quem, comportando-se anormalmente, grita sem descanso que é normal desperta a suspeita de que lhe falta a intuição da própria doença. Correspondência (1913) O indivíduo leva uma existência dupla: por um lado, é ele o seu próprio fim e, por outro lado, é o elo de uma cadeia a que se encontra submetido contra a sua vontade ou, pelo menos, sem que esta tenha podido intervir no caso.
Para Introduzir o Narcisismo (1914)
Admitimos efetivamente que, à medida que evolui do estado primitivo para o de civilizado, o homem vê interiorizar-se, penetrar dentro de si próprio, a sua agressão. Os conflitos interiores tornar-se-iam certamente, mais tarde, um verdadeiro equivalente das antigas lutas exteriores. Moisés e o Monoteísmo (1937)
AUTOCRÍTICA A autocrítica não é um dom agradável, mas, juntamente com a coragem, é a melhor coisa que possuo, a que ditou a escolha rigorosa das minhas publicações. Sem ela, teria podido dar três vezes mais ao mundo. É um dom que estimo tanto mais quanto a verdade é que raramente mo reconhecem. Correspondência (1910)
AUTOESTIMA A autoestima expressa o tamanho do ego; tudo o que uma pessoa possui ou realiza, todo o remanescente do sentimento primitivo de omnipotência que a sua experiência tenha confirmado, ajuda-a a aumentar sua autoestima. Para Introduzir o Narcisismo (1914) Uma pessoa apaixonada é humilde. Um indivíduo que ama priva-se, por assim dizer, de uma parte do seu narcisismo, que só pode ser substituída pelo amor de outra pessoa por ele. Sob todos esses aspetos, a autoestima parece estar relacionada com o elemento narcisista do amor. Para Introduzir o Narcisismo (1914) O amar em si, na medida em que envolva anelo e privação, reduz a autoestima, ao passo que ser amado, ser correspondido no amor, e possuir o objeto amado, eleva-a mais uma vez. Para Introduzir o Narcisismo (1914)
AUTORIDADE É inútil alongar-me demoradamente sobre a importância da autoridade. São muito poucas as pessoas civilizadas capazes de uma existência perfeitamente autónoma ou tão-só de juízo independente. Não nos é possível representar em toda a sua amplitude a necessidade de autoridade e a fraqueza interior dos seres humanos. A Técnica Psicanalítica (1910) A sociedade não terá pressa em conferir-nos autoridade. Está determinada a oferecer-nos resistência, porque adotamos em relação a ela uma atitude crítica; assinalamos-lhe que ela própria desempenha papel importante em causar neuroses. Assim como fazemos de um indivíduo nosso inimigo pela descoberta do que nele está reprimido, do mesmo modo a sociedade não pode responder com simpatia a uma implacável exposição dos seus efeitos danosos e deficientes. Porque destruímos ilusões, somos acusados de comprometer os ideais. As Perspetivas Futuras da Terapêutica Psicanalítica (1910) Sabemos que na massa humana existe uma poderosa necessidade de uma autoridade que possa ser admirada, perante quem nos curvemos, por quem sejamos dirigidos e, talvez, até maltratados. Já aprendemos com a psicologia dos indivíduos qual é a origem dessa necessidade das massas. Trata-se de um anseio pelo pai que é sentido por todos, da infância em diante. Moisés e o Monoteísmo (1937)
BIOGRAFIA Quem se faz biógrafo obriga-se à mentira, aos segredos, à hipocrisia, ao idealismo e até à dissimulação do que não compreende, porque é impossível atingir a verdade biográfica e, mesmo que a tivéssemos, seria inutilizável. A verdade não é praticável, os homens não a merecem, e, de resto, o nosso príncipe Hamlet não terá razão quando pergunta se alguém poderia escapar ao chicote, se fosse tratado segundo os seus méritos? Correspondência (1936)
CARÁTER
Eu sempre tive plena consciência da estreiteza e limitações do meu próprio ser e, por isso, sempre gostei gostei de procurar outras outras natu naturezas rezas mais mais ricas ri cas e alegres. Correspondência (1926) Não está na minha inha natureza atureza dar expressão aos meus sentim sentiment entos os ou afetos, afetos, de forma que posso parecer indiferente aos outros, mas a minha família sabe como eu sou. Correspondência (1929)
CASAMENTO Em circunstâncias sociais e materiais como aquelas que temos hoje em dia, as raparigas fazem muito bem em não casar demasiado jovens; de outra forma o seu casamento não irá durar muito. Tu sabes que a tua mãe já tinha vinte e cinco anos quando se casou. Correspondência (1908) Eu sei que, na realidade, não é mais a beleza física que decide o destino de uma rapariga, mas sim a impressão que toda a sua personalidade transmite. Correspondência (1908) A líbido de cada um de nós hesita normalmente ao longo da vida entre o objeto masculino e o objeto feminino; o celibatário abandona as suas amizades quando se casa, e regressa ao seu círculo de jog j ogoo quando quando o casam c asament entoo se deteriora. Psicogénese de Um Caso de Homossexual Homossexualidade idade Feminina (1920) A felicidade conjugal permanece insuficientemente garantida enquanto a mulher não conseguir fazer do esposo seu filho, enquanto não se comportar maternalmente para com ele. Novas Conferências sobre a Psicanálise Psicanál ise (1933)
CAUSAS Pareceu-me muitas vezes ter herdado todo o espírito insubmisso e toda a paixão graças aos quais os nossos antepassados defendiam o seu Templo, e que seria
capaz de sacrificar a minha vida com alegria por uma grande causa. E, todavia, achei-me sempre tão desprovido de meios, tão incapaz de traduzir estas paixões ardentes em palavras ou poemas! Por isso contive-me sempre e é isso, julgo eu, o que as pessoas sentem em mim. Correspondência (1886)
CERTEZA Compreende agora como é possível que a contradição e o reconhecimento possam deixá-la perfeitamente indiferente, desde que sabe possuir uma certeza real. Foi o meu caso, e foi por isso que aguentei bem o desprezo e a incredulidade sem por isso me ter tornado amargo. Correspondência (1926)
CIÊNCIA Os espíritos medíocres exigem da ciência que lhes dê uma espécie de certeza que ela nunca lhes poderá dar, uma espécie de satisfação religiosa. Só os raros espíritos verdadeiramente, realmente, científicos se mostram capazes de suportar a dúvida que se encontra ligada a todos os nossos conhecimentos. Não paro de invejar os físicos e os matemáticos que se podem dizer certos da sua obra. Por mim, plano nos ares, por assim dizer. Os factos psíquicos não parecem suscetíveis de medida, e é provável que assim continue a ser sempre. Correspondência (1900 ) A ciência parece-me cada vez mais difícil. Sinto vontade, à noite, de alguma coisa alegre e refrescante. Mas estou sempre sozinho. Correspondência (1900) Não sou nem um verdadeiro verdadeir o homem homem de ciência, nem um observador, nem um experimentador, nem um pensador. Por temperamento, sou apenas um «conquistador», um explorador, se preferires essa palavra – com toda a curiosidade, audácia e tenacidade que caracterizam tal espécie de homens. Geralmente, só se lhes reconhece valor se realmente conseguem descobrir alguma coisa; de outro modo, são esquecidos. Não se pode dizer que isso seja totalmente
injusto. Mas de momento a sorte abandonou-me; já não descubro mais nada com interesse. Correspondência (1900) Não está nas nas intenções intenções da ciência assustar assustar ou consolar. Considerações sobre o mais Comum das Limpezas da Vida Amorosa (1912) Não sou belicoso belicos o por naturez naturezaa e nem sequer compartilho compartilho a opinião tão difu di fundida ndida de que uma querela científica traga claridade ou progresso. Mas também não gosto dos compromissos coxos e não estou disposto a sacrificar seja o que for por uma uma recon rec oncili ciliação ação estéril. es téril. Correspondência (1914) Como sabe, o que me preocupa é sempre um facto isolado enquanto espero que o universal irrompa por si próprio. Correspondência (1915) É inútil que uma ciência que tenha algo a dar procure auditores e adeptos. Os seus resultados deverão falar por ela, e pode também esperar que esses resultados acabem por fazer recair sobre ela as atenções. Introdução Introduç ão à Psicanálise Psicanális e (1916-1917) Muita coisa interessante existe para ser dita sobre o assunto da originalidade científica aparente. Quando alguma ideia nova ocorre na ciência, saudada a princípio como como uma uma descoberta e, via de regra, também também discutida como como tal, a pesquisa objetiva logo revela qu que, e, afinal afinal de contas, contas, a ideia não era novidade. Geralmente a descoberta já fora efectuada e posteriormente esquecida, muitas vezes por intervalos de tempo muito longo. Ou, pelo menos, tivera precursores, e foi obscuramen o bscuramente te conjetu co njeturada rada ou incompletamente incompletamente enunciada. enunciada. Josef Popper-Lynkeus Popper- Lynkeus e a Teoria Teori a dos Sonhos (1923) A ciência não é uma revelação; passado já muito tempo desde os seus inícios, a certeza continua a faltar-lhe, bem como a imutabilidade, a infalibilidade, coisas de que o pensamento humano é tão ávido. Mas tal como é, a ciência, no entanto, é tudo o que podemos possuir. Psicanálise Psicanáli se e Medicina Medi cina (1926) Não, a nossa ciência não é uma uma ilusão. Mas seria uma uma ilusão julgar julgar que
poderíamos encontrar noutro lado aquilo que ela não nos pode dar. O Futuro de Uma Ilusão (1927) Os próprios homens são, na sua maioria, despreocupados, não exigem para a explicação das coisas mais do que um único motivo, não lhes importa que a ciência possa ser de mais longo alcance. Procuram explicações simples e gostam de ver todos os problemas resolvidos. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933)
CIÚME O ciúme é um daqueles estados emocionais, como o luto, que podem ser descritos como normais. Se alguém parece não o possuir, justifica-se a inferência de que ele experimentou severa repressão e, consequentemente, desempenha um papel ainda maior na sua vida mental inconsciente. Alguns Mecanismos Neuróticos no Ciúme, na Paranoia e na Homossexualidade (1921)
CIVILIZAÇÃO A nossa civilização repousa, falando de modo geral, sobre a supressão dos instintos. Cada indivíduo renuncia a uma parte dos seus atributos: a uma parcela do seu sentimento de omnipotência ou ainda das inclinações vingativas ou agressivas de sua personalidade. Dessas contribuições resulta o acervo cultural comum de bens materiais e ideais. A Moral Sexual Civilizada e o Mal-Estar Nervoso dos Tempos Modernos (1908) Uma certa redução da potência sexual masculina e da brutalidade que a acompanha é muito fecunda no plano civilizacional. Facilita ao homem civilizado a repressão, a conservação das virtudes que ela lhe exige, o comedimento sexual. Virtude e grande potência sexual, em termos gerais, muito dificilmente se suportam uma à outra. A Propósito de Uma Discussão sobre o Onanismo (1912) Talvez devêssemos familiarizar-nos com a ideia de que conciliar as
reivindicações da pulsão sexual com as exigências da civilização é uma coisa completamente impossível, e que a renúncia e o sofrimento, da mesma maneira que, num futuro muito longínquo, a ameaça de vermos extinguir-se o género humano, na sequência dos desenvolvimentos da civilização, não podem evitar-se. Considerações sobre o mais Comum das Limpezas da Vida Amorosa (1912) Eis a minha conclusão secreta: uma vez que não podemos considerar a nossa atual civilização – a mais evoluída de todas – senão como uma gigantesca hipocrisia, é de concluir que não fomos organicamente feitos para a civilização. Devemos abdicar, e o Grande Desconhecido, ou o Grande Manitu, que se dissimula por detrás do destino, renovará a experiência com uma raça diferente. Correspondência (1914) Dir-se-ia que basta um grande número, que milhões de homens se encontrem reunidos, para que todas as aquisições morais dos indivíduos que os compõem se desvaneçam por completo e não restem já em seu lugar senão as atitudes psíquicas mais primitivas, mais antigas, mais brutais. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915) A sociedade civilizada, que exige boa conduta e não se preocupa com a base instintiva dessa conduta, conquistou a obediência das pessoas que, para tanto, deixam de seguir as suas próprias naturezas. Estimulada por esse êxito, a sociedade permitiu-se o engano de tornar maximamente rigoroso o padrão moral, e assim forçou os seus membros a um alheamento ainda maior da sua disposição instintiva. Consequentemente, eles estão sujeitos a uma incessante supressão do instinto, e a tensão resultante disso trai-se nos mais notáveis fenómenos de reação e compensação. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915) É curioso como os homens, que tão mal sabem viver isolados, se sentem, no entanto, pesadamente oprimidos pelos sacrifícios que a civilização espera deles, a fim de lhes possibilitar que vivam em comum. O Futuro de Uma Ilusão (1927) A civilização é coisa imposta a uma maioria recalcitrante por uma minoria que descobriu como apropriar-se dos meios de poder e coação. O Futuro de Uma Ilusão (1927)
Dois dos traços humanos mais difundidos são a causa de o edifício da civilização não poder sustentar-se sem uma certa dose de constrangimento: os homens não amam espontaneamente o trabalho, e os argumentos nada podem contra as suas paixões. O Futuro de Uma Ilusão (1927) Há numerosos indivíduos civilizados que recuariam aterrados perante a ideia do assassínio ou do incesto, mas que não desdenham satisfazer a sua cupidez, a sua agressividade, as suas cobiças sexuais, que não hesitam em prejudicar os seus semelhantes por meio da mentira, do engano, da calúnia, contanto que o possam fazer com impunidade. O Futuro de Uma Ilusão (1927) Uma civilização que deixa insatisfeito um elevado número dos seus participantes e os conduz à rebelião não tem qualquer perspetiva de se conservar de modo duradouro, nem o merece. O Futuro de Uma Ilusão (1927) Com as proibições que a estabeleceram, a civilização – quem sabe há quantos milhares de anos? – começou a separar o homem da sua condição animal primordial. Para nossa surpresa, descobrimos que essas privações ainda são operantes e ainda constituem o âmago da hostilidade para com a civilização. O Futuro de Uma Ilusão (1927) Seria injusto censurar a civilização por não tentar eliminar da atividade humana a luta e a competição. Estas coisas são indubitavelmente indispensáveis, mas a oposição não é necessariamente inimizade, só que pode ser mal utilizada, abrindo caminho a ela. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
COERÊNCIA Durante os primeiros anos, as minhas conceções sofreram numerosas modificações que nunca procurei mascarar. Acusaram-me destas variações como hoje censuram a minha imutabilidade. Não é que eu tenha medo dos ataques de ontem ou dos de hoje; tenho um destino a cumprir, não posso escapar-lhe e não há por que lutar contra ele. Por isso, enquanto espero que o destino se cumpra,
continuarei a ter para com a nossa ciência a mesma atitude que tive sempre. A Propósito de Uma Discussão sobre o Onanismo (1912) Diz-se que quem modifica de tempos a tempos as suas ideias não merece qualquer confiança, porque faz supor que as suas últimas afirmações são tão erróneas como as anteriores. E, por outro lado, quem mantém as suas primeiras ideias, e não as abandona facilmente, passa por teimoso e iludido. Perante estes dois juízos opostos da crítica, há só uma opção a fazer: permanecer-se aquilo que se é, e seguir-se apenas o próprio juízo. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
CONHECIMENTO Devo dizer que considero uma forma de economia muito respeitável uma certa espécie de comunismo intelectual, em que se não controla ansiosamente o que se deu e o que se recebeu. Correspondência (1907) Quando se chega ao conhecimento, já não se pode odiar bem, nem amar bem; permanece-se para além do amor e do ódio. Entregamo-nos à investigação em lugar de amarmos. Um Souvenir da Infância de Leonardo da Vinci (1910) Nunca nos devemos vangloriar da quantidade e da qualidade do nosso conhecimento e da nossa capacidade. Estamos tão prontos agora, como o estávamos antes, a admitir as imperfeições da nossa compreensão, a aprender novas coisas e a alterar os nossos métodos de qualquer forma que os possa melhorar. Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica (1919) Podemos abandonar-nos a um raciocínio, seguir o seu desenrolar até ao limite mais extremo, e fazê-lo unicamente por curiosidade científica ou, se se preferir, como advogados do diabo, sem todavia nos entregarmos ao diabo. Além do Princípio do Prazer (1920)
CONSCIÊNCIA
Para muitas pessoas que foram educadas na filosofia, a ideia de algo psíquico que não seja também consciente é tão inconcebível que lhes parece absurda e refutável simplesmente pela lógica. Acredito que isso se deve apenas a nunca terem estudado os fenómenos pertinentes da hipnose e dos sonhos, os quais – inteiramente à parte das manifestações patológicas – tornam necessária esta visão. A sua psicologia da consciência é incapaz de solucionar os problemas dos sonhos e da hipnose. O Ego e o ID (1923) Um estado de consciência é, caracteristicamente, muito transitório; uma ideia que é consciente agora não o é mais um momento depois, embora assim possa tornarse novamente, em certas condições que são facilmente ocasionadas. No intervalo, a ideia foi… não sabemos o quê. O Ego e o ID (1923)
CONTROVÉRSIA Nunca pude convencer-me da verdade da máxima segundo a qual a controvérsia é a mãe de todas as coisas. Penso que deriva dos sofistas gregos e, como eles, peca por supervalorizar a dialética. Parece-me, pelo contrário, que aquilo que se conhece como controvérsia científica é, na totalidade, muito improdutivo, além do facto de quase sempre ser conduzido segundo motivos altamente pessoais. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
CONVICÇÃO Não tenho a intenção de impor convicções: basta-me exercer uma ação estimulante e abalar preconceitos. Introdução à Psicanálise (1916-1917) Quando, à custa de esforços penosos, conquistámos uma convicção, temos também, até certo ponto, o direito de pretendermos mantê-la perante e contra todos. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
CONVÍVIO Tu mesmo apontaste que existiam diferenças de opinião entre mim e Abraham – mas são da mesma natureza que as diferenças que um homem tem com a sua mulher e os seus filhos; só os oradores nos funerais negam esses traços da realidade; os vivos têm o direito de afirmar que essas críticas a um quadro ideal não interferem em nada na fruição da realidade. Correspondência (1926)
CRENÇA Sou obrigado a confessar que faço parte dessa categoria de homens indignos perante os quais os espíritos suspendem a sua atividade e a quem escapa o suprassensível, e assim nunca fui capaz de sentir fosse o que fosse que fizesse nascer em mim a crença em milagres. Como todos os homens, tive pressentimentos e sofri desgraças, mas nunca houve coincidência entre uns e outras, isto é, os pressentimentos nunca foram seguidos de desgraças e as desgraças nunca foram antecedidas de pressentimentos. Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901) Mesmo os espíritos fortes e que se tornaram descrentes podem dar-se conta, para sua confusão, da facilidade com que regressam por um momento à crença nos espíritos quando se encontram ao mesmo tempo amedrontados e desorientados. Delírios e Sonhos na «Gradiva» de Jensen (1907) Não existe qualquer erro, qualquer superstição humana, por assim dizer hoje extinta, cujo rasto não possamos descobrir nas camadas mais profundas dos povos civilizados e até nas mais altas esferas das sociedades civilizadas. Tudo o que um dia existiu persiste com a maior tenacidade. Por vezes, chegamos a perguntar-nos se os dragões dos tempos primitivos estarão de facto bem mortos. Análise Terminada e Análise Interminável (1937)
CRIANÇA Não compartilho do ponto de vista, que está em voga atualmente, de que as
afirmações feitas pelas crianças são invariavelmente arbitrárias e indignas de confiança. O arbitrário não tem existência na vida mental. A não-confiabilidade das afirmações das crianças é devida à predominância da sua imaginação, exatamente como a não-confiabilidade das afirmações das pessoas crescidas é devida à predominância dos seus preconceitos. Quanto ao resto, mesmo as crianças não mentem sem um motivo, e no todo são mais inclinadas para um amor da verdade do que os mais mais velhos. vel hos. O Pequeno Hans (1909) Somente alguém que possa sondar as mentes das crianças será capaz de educá-las e nós, pessoas adultas, não podemos entender as crianças porque não compreendemos a nossa própria infância. A nossa amnésia infantil prova que nos tornamos tornamos estranh e stranhos os à nossa inf i nfância. ância. O Interesse Científico da Psicanálise (1913) As crianças mais egoístas podem tornar-se cidadãos devotados no mais alto grau e capazes dos maiores sacrifícios; a maior parte dos apóstolos da piedade, dos filantropos, dos protetores dos animais deram provas, durante a infância, de inclinações sádicas e distinguiram-se pela sua crueldade para com os mesmos. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915) No seu desenvolvim de senvolviment entoo mental, ental, a criança estaria a repetir a história história da sua raça de uma forma abreviada. A Questão da Análise Análise Leiga: Lei ga: Conversações Conversaçõe s com Uma Uma Pessoa Imparcial (1926) (1926) A influência dos pais governa a criança, concedendo-lhe provas de amor e ameaçando com castigos, os quais, para a criança, são sinais de perda do amor e se farão temer por essa mesma causa. Essa ansiedade realística é a precursora da ansiedade moral subsequente. Novas Conferências sobre a Psicanálise Psicanál ise (1933)
CRIATIVIDADE Os descobridores solitários, como eu, são, em geral, atormentados pela necessidade de explicar a falta falta de simpatia simpatia ou a aversão aver são dos seus contem contemporâneos porâneos e sentem essa atitude como uma contradição angustiante à segurança das suas
próprias convicções. Contribuição para a História do Movimento Psicanalítico Psicanalí tico (1914)
Os meus próprios trabalhos, após alguns êxitos brilhantes, caíram numa obscuridade profunda; continuo-os porque não se pode ficar sem nada para fazer, mas muitas vezes sem entusiasmo e sem grande esperança de chegar à solução de problemas muito uito difíceis. An Anteriorm teriorment ente, e, a minha inha maneira de trabalhar era diferente; tinha o costume de esperar que me aparecesse uma ideia. Agora, ponhome eu a procurá-la, mas não sei se por isso conseguirei descobri-la mais depressa. Correspondência (1914) Permita-me não reivindicar senão um único atributo de superior qualidade: uma espécie de coragem que as convenções não afetam. Acrescentemos de passagem que você também pertence ao tipo produtivo e que já deve ter observado em si próprio o mecanismo ecanismo da produção: uma sequência sequência de imagin imaginações ações audaciosas e vagabundas e um sentido crítico implacavelmente realista. Correspondência (1915)
CRIMINOSO Dois traços caracterizam o criminoso, um egoísmo ilimitado e uma forte tendência para a destruição. destruição. Encont Encontram ramos, os, na base destes dois sentim sentiment entos, os, e necessária para a sua exteriorização, exteriorização, uma uma carência completa completa de vida afetiva. Dostoievskyy e o Parricídio Dostoievsk Parricí dio (1928)
CRÍTICA Todo o ser humano, umano, para escapar às próprias própri as críticas, crí ticas, tem necessidade de sofrer a influência influência de mais alguém. alguém. Correspondência (1894) A única coisa a fazer é continuar para a frente e trabalhar, não gastar muitas energias em refutações e deixar que a fertilidade das nossas ideias tenha o seu efeito na na esterilidade esteril idade da crítica crí tica daqueles que se nos opõem.
Correspondência (1907)
É muito estranha a facilidade com que as pessoas têm tendência para avaliar as outras outras isolando apenas alg al gumas umas partes pa rtes das suas personalidades. Correspondência (1910) Não me vou avaliar ava liar a mim próprio, porque todo o julgam julgament entoo qu quee fazem fazemos os a nós mesmos é muito difícil e não é feito com convicção suficiente. Correspondência (1912)
CULPA No que que toca à culpa, culpa, os seres hum humanos são sempre sempre muit muitoo generosos generosos a partilhá-la! Cartas a Martha (1885) Conquanto um homem tenha reprimido os seus maus impulsos para dentro do inconsciente e prefira dizer a si mesmo, posteriormente, que não é responsável por eles, ele, não obstante, obstante, acaba por sentir essa responsabilidade responsabili dade na form formaa de um sentimento de culpa cuja origem lhe é desconhecida. Introdução Introduç ão à Psicanálise Psicanális e (1916-1917)
DEFESA Nenh Nenhum indivídu i ndivíduoo faz uso de todos os mecanismos ecanismos de defesa possíveis. possíveis . Cada pessoa não utiliza utiliza mais mais do que uma uma seleção se leção deles, mas estes es tes fixam fixam-se -se no seu ego. ego. Tornam-se ornam-se modalidades regulares regulares de reação re ação do seu caráter, as quais são repetidas durante toda a vida, sempre que ocorre uma situação semelhante à original. Isso transforma-os em infantilismos, e partilham da sorte de tantas instituições que tentam manter-se em existência mesmo depois de a sua utilidade já ter acabado. Análise A nálise Terminada Ter minada e Análise Análise Interminável I nterminável (1937) (1937)
DESTINO O destino toma, para cada um de nós, a forma de uma mulher (ou de várias).
Correspondência (1913)
DEUS Do exame psicanalítico do indivíduo ressalta com particular evidência que o deus de cada um é uma imagem do seu pai carnal, que a atitude de cada um para com esse deus depende da sua atitude para com o pai carnal, varia e se transforma com esta atitude, e que o deus não é, no fundo, senão um pai de uma dignidade superior. Totem e Tabu (1912-1913) Quero acrescentar que o Bom Deus não me intimida de maneira alguma. Se alguma vez nos encontrarmos, serei eu a ter de censurá-lo, mais do que o contrário. Perguntar-lhe-ei porque é que ele não me dotou melhor do ponto de vista intelectual; ele não poderá acusar-me de ter usado com mesquinhez a minha liberdade. Devo dizer-lhe, com efeito, que sempre me senti insatisfeito com a minha inteligência e que sei muito precisamente quais os pontos em que ela me trai. Correspondência (1915)
DINHEIRO É natural que as pessoas com dinheiro sejam estimadas nos bancos. O aborrecido é que o mesmo acontece também fora dos bancos. Correspondência (1935)
DIREITO Comete-se um erro de avaliação ao desprezar-se o facto de o direito ter sido, na origem, a força bruta e de ainda hoje não poder dispensar o concurso da força. Correspondência entre Freud e Einstein (1933)
DOENÇA O meu velho preconceito de que a doença é supérflua – a necessidade de morrer, essa, aceito-a – reforça-se constantemente. Correspondência (1927)
EDUCAÇÃO Que, no decurso do seu crescimento, o indivíduo se desligue da autoridade dos pais é um dos efeitos mais necessários, mas também mais dolorosos, do desenvolvimento. O Romance Familiar dos Neuróticos (1909) A educação pode descrever-se como um incitamento a superar o princípio do prazer e a substituí-lo pelo princípio de realidade; pretende, portanto, acorrer em auxílio desse processo de desenvolvimento que incide sobre o eu, e serve-se para esse fim, das recompensas de amor dispensadas pelos educadores; é por isso que falha quando a criança estragada com mimos julga que possui esse amor em qualquer circunstância e que não o poderá perder em caso algum. Formulações Respeitantes aos Dois Princípios do Funcionamento Mental (1911) Para além da necessidade, o grande educador é o amor, e o homem cuja evolução permaneceu incompleta deixar-se-á levar, por amor do próximo, a ter em conta as leis da necessidade e a evitar os castigos que decorrem da violação destas últimas. Ensaios de Psicanálise Aplicada (1916)
EFÉMERO O valor do efémero é o de uma coisa extraordinária no curso do tempo. A limitação de uma possibilidade de gozo aumenta o seu valor. A Transitoriedade (1916)
EGOÍSMO O narcisismo e o egoísmo, na realidade, coincidem; a palavra narcisismo destinase apenas a ressaltar o facto de que o egoísmo é também um fenómeno libidinal; ou, expressando-o de outra maneira, o narcisismo pode ser descrito como o complemento libidinal do egoísmo. Suplemento Suplem ento Metapsicológico à Teoria dos Sonhos (1916)
EINSTEIN É alegre, seguro de si próprio e agradável. Sabe tanto de psicologia como eu de física, por isso tivemos uma conversa muito divertida. Correspondência (1927) Ele teve mais sorte e mais facilidades do que eu. Pôde dispor do apoio de uma longa série de predecessores, a começar por Newton, ao passo que eu tive de abrir um caminho sozinho e passo a passo através de uma selva emaranhada. Não é de admirar que a minha senda não seja muito larga e que eu não tenha podido ir muito longe. l onge. Correspondência (1927)
ELOGIO Em geral, quando alguém me insulta, sei defender-me, mas quando me louvam fico desarmado. Correspondência (1926)
ESCRITA Quanto mais rigorosa a censura, mais amplo será o disfarce e mais engenhoso também também será o meio meio em e mpregado para pôr o leitor lei tor no rasto do verdadeiro verdadei ro sentido. A Inter Interpretação pretação dos Sonhos (1900)
Para o escritor, a palavra «imortalidade» significa evidentemente ser amado por toda uma quantidade de gente anónima. Correspondência (1937)
ESTADO Se o Estado proíbe proí be ao indivíduo o recurso à in i njustiça, justiça, não é por querer suprimir suprimir a injustiça, mas porque a quer monopolizar como recurso, do mesmo modo que monopoliza onopoliza o sal e o tabaco. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915)
ESTUDO Tenho o hábito de estudar sempre as próprias coisas antes de procurar inform informações ações sobre elas nos livros. livr os. Contribuição para a História do Movimento Psicanalítico Psicanalí tico (1914)
ÉTICA Para voltarmos à ética, digamos à maneira de conclusão que uma parte das suas leis se explica racionalmente através da necessidade de delimitar os direitos da comunidade perante o indivíduo, os do indivíduo frente à comunidade e os dos indivíduos entre si. Mas tudo aquilo que, na ética, nos parece misterioso, sublime, misticamente evidente, ela deve-o ao seu parentesco com a religião e ao facto de ter a sua origem na vontade do pai. Moiséss e o Monoteísmo Moisé Monoteí smo (1937)
EU O ego é sempre o padrão pelo qual a pessoa mede o mundo externo; a pessoa aprende a compreendê-lo por meio de uma comparação constante consigo mesma.
O Pequeno Hans (1909)
Não esperava qu quee um psicanalista pu pudesse desse insistir tanto tanto no eu. O eu não desempenhará antes o papel que o estúpido Augusto representa no circo, lançando um pouco por toda a parte a sua pitada de sal, para que os espectadores julguem que é ele quem dirige tudo o que se está a passar? Correspondência (1911) O eu desempenha nestes casos o mesmo papel que o clown do circo, que, através dos seus gestos, tenta persuadir a assistência de que todas as transformações que se produzem na pista são efeitos da sua vontade e das suas ordens. Só que apenas consegue convencer a parte infantil da assistência. Contribuição para a História do Movimento Psicanalítico Psicanalí tico (1914)
EXEMPLO Foi propositadamente que adiantei sempre a título de exemplo a minha própria pessoa, mas mas nun nunca como como modelo modelo e ainda menos, menos, algu alguma vez, como como venerável. Correspondência (1909)
EXÍLIO Vim para Viena como uma criança de quatro anos a partir de uma pequena vila na Morávia. Depois de setenta e oito anos de trabalho assíduo tenho de deixar o meu lar, ver dissolvida a sociedade científica que fundei, as nossas instituições destruídas, a nossa imprensa tomada pelos invasores, os livros que publiquei confiscados ou reduzidos a pasta, os meus filhos expulsos das suas profissões. Correspondência (1938)
ÊXITO O homem enérgico e que vence é o que consegue transmutar em realidades as fantasias fantasias do desejo.
Cinco Lições sobre a Psicanálise (1910)
Sempre me pareceu que o autoritarismo e uma confiança em si inteiramente natural são a condição indispensável daquilo a que chamamos grandeza quando admiramos um êxito, e julgo também que é necessário distinguir entre a grandeza de caráter de uma personagem e a grandeza das suas realizações. Correspondência (1912) Tudo se passa como se o principal, no êxito, fosse irmos mais longe do que o nosso pai, e como se fosse sempre proibido ultrapassá-lo. Correspondência (1936) Quando se foi sem contradição o filho predileto da mãe, conserva-se para toda a vida esse sentimento conquistador, essa certeza no êxito que, na realidade, só raramente deixa de o provocar. Um Souvenir da Infância dentro da «Ficção e Verdade» de Goethe (1917)
FAMA Eu nunca me tinha apercebido de que quanto mais idade temos mais coisas há para fazer. A ideia de uma velhice calma e pacífica parece ser tanto um mito como a juventude feliz. A maioria do meu tempo é gasta em recusas e envio de informação para todos os cantos do mundo; toda a gente quer ser analisada por mim. Correspondência (1921) A minha vida mudou muito nestes últimos quinze anos. Estou aliviado de preocupações materiais, mas rodeado de popularidade, o que considero muito desagradável, e envolvido em projetos que me roubam todo o tempo, pelo que não me resta nenhum para o lazer e para o trabalho científico tranquilo. Correspondência (1922) A minha impressão geral é de que o mundo adquiriu algum respeito pelo meu trabalho. Mas, quanto à psicanálise, esta só tem sido aceite pelos analistas clínicos. A minha esposa, que é uma pessoa bastante ambiciosa, tem-se mostrado muito satisfeita com tudo isto. Anna (minha filha), por outro lado, partilha o meu
sentimento de que é muito embaraçoso estar tão publicamente exposto aos louvores. Correspondência (1926) Eu não quero ser coroado com um Prémio Nobel, nem quero ser falado em todos os jornais. Correspondência (1930) Eu não tenho sido estragado por honras públicas, e por isso já estou habituado a passar sem elas. Não posso negar, contudo, que o Prémio Goethe concedido pela Cidade de Frankfurt deu-me um imenso prazer. Correspondência (1930) (Sobre o Prémio Goethe) Por outro lado, nesta altura da minha vida acho que um reconhecimento deste tipo não tem nem muito valor prático nem qualquer significado emocional. Para uma reconciliação com os meus contemporâneos é já demasiado tarde; e que a psicanálise vai vingar por muito tempo depois da minha morte é algo de que eu nunca duvidei. Correspondência (1930)
FATALIDADE Há pessoas em cujas vidas se repetem indefinidamente as mesmas reações nãocorrigidas, em prejuízo delas próprias, assim como há outras que parecem perseguidas por um destino implacável, embora uma investigação mais atenta nos mostre que tais pessoas, sem se aperceberem, causam a si mesmas esse destino. Em tais casos, atribuímos um caráter «demoníaco» à compulsão à repetição. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933)
FELICIDADE Percebes que toda a felicidade está cercada por uma série de limitações, e que basta começar a pensar nelas para começar a sentirmo-nos infelizes? Cartas a Martha (1885) A felicidade é a realização de um desejo pré-histórico da infância. É por isso que
a riqueza contribui em tão pequena medida para ela. O dinheiro não é objeto de um desejo infantil. Correspondência (1898) A felicidade é um problema de economia libidinal individual. Não há aqui conselho válido para todos, cada um tem de procurar por si próprio o modo como poderá vir a ser feliz. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) Do mesmo modo que o comerciante avisado evitará colocar todo o seu capital num único negócio, assim a prudência aconselharia talvez que não se espere inteira satisfação de um lado só. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) Os homens esforçam-se por obter a felicidade, querem ser felizes e permanecerem assim. Há dois lados nesta luta, um positivo e um negativo; um lado aponta para a eliminação da dor e do mal-estar e o outro para a experiência de prazeres intensos. No seu sentido mais restrito, a palavra felicidade só diz respeito a este último lado. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) Aquilo a que se chama felicidade no seu sentido mais restrito vem da satisfação – frequentemente instantânea – de necessidades reprimidas que atingiram uma grande intensidade, e que, pela sua natureza, só podem ser uma experiência transitória. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) Se um homem se julga feliz, fugiu simplesmente à infelicidade ou a dificuldades. Em geral, a tarefa de evitar o sofrimento atira para segundo plano a de obter a felicidade. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) A sensação de felicidade produzida pela satisfação de um desejo selvagem e indomável é incomparavelmente mais intensa do que a satisfação de um desejo refreado. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) Quem é sensível à influência da arte não sabe o quão importante ela é como fonte de felicidade e consolo na vida. Contudo, a arte só nos afeta como um narcótico
suave e não pode fornecer mais do que um refúgio temporário às dificuldades da vida; a sua influência não é suficientemente forte para nos fazer esquecer a miséria real. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) O objetivo para o qual o princípio do prazer nos impele – o de nos tornarmos felizes – não é atingível; contudo, não podemos – ou melhor, não temos o direito – de desistir do esforço da sua realização. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) (Em termos da procura da felicidade) O homem que é predominantemente erótico irá escolher em primeiro lugar relações emocionais com os outros; o tipo narcisista, que é mais autossuficiente, procurará a sua satisfação essencial no trabalho interior da sua alma; o homem de ação nunca abandonará o mundo externo, no qual pode experimentar o seu poder. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) A família não desiste do individual. Quanto maior é a união entre os seus membros, maior é a tendência para se manterem afastados dos outros (fora do núcleo familiar), e mais difícil é para eles entrarem no vasto círculo do mundo em geral. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
FÉRIAS Descobri em mim uma inesgotável vontade de não fazer nada, temperada por duas horas de leitura de coisas novas, e não quero pensar que o começo do próximo mês me vai trazer de novo as agruras do trabalho. Mas vinte e cinco anos de prática não são ainda um período suficiente de servidão. Talvez sejam precisos quarenta, talvez o melhor seja «morrer a trabalhar duramente». Correspondência (1911)
FESTA A festa é um excesso permitido, ou melhor, a rutura solene de uma proibição. Não é que os homens cometam os excessos porque se sentem felizes em consequência
de alguma injunção que receberam. O caso é que o excesso faz parte da essência da festa; o sentimento festivo é produzido pela liberdade de fazer o que via de regra é proibido. Totem e Tabu (1912-1913)
FILOSOFIA Não aspirei, durante os meus anos de juventude, a outra coisa senão ao conhecimento filosófico e estou agora prestes a realizar essa aspiração, passando da medicina para a psicologia. Foi contra vontade que me fiz terapeuta. Correspondência (1896) Receio que sejas um filósofo e que tenhas a tendência monística de reduzir todas as belas diferenças da natureza em favor de uma tentadora unidade. Mas isso ajuda a eliminar as diferenças? Correspondência (1917) Provavelmente não imagina como me são estranhas todas essas cogitações filosóficas. A única satisfação que delas tiro é a de saber que não participo em tão lamentável desperdício de forças intelectuais. Os filósofos julgam, sem dúvida, que contribuirão com esses estudos para o desenvolvimento do pensamento humano, mas há um problema psicológico ou mesmo psicopatológico por detrás de cada um dos seus temas. Correspondência (1928) Mas a filosofia não exerce qualquer influência sobre as massas e interessa apenas um número ínfimo de pessoas, mesmo entre as que formam o pequeno clã dos intelectuais. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933) A filosofia não se opõe à ciência; comportando-se ela própria como uma ciência, a esta toma por vezes de empréstimo os seus métodos, mas afasta-se dela por se agarrar a quimeras, pretendendo oferecer um quadro coerente e sem lacunas do universo, pretensão cuja inanidade cada novo progresso do conhecimento nos permite comprovar. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933)
FORÇA Vermo-nos reduzidos às próprias forças já é alguma coisa. Aprendemos então a servirmo-nos delas como convém. O Futuro de Uma Ilusão (1927)
FOTOGRAFIA Incluir a fotografia de um autor parece-me um mau hábito, «uma coisa desagradável», uma concessão ao mau gosto do público. A aparência do autor não diz respeito ao leitor. Se este quiser dar-lhe um rosto, poderá, nos seus fantasmas, dotá-lo com a beleza mais ideal, sem se ver contrariado. Correspondência (1928)
FUTURO Ainda continua a ser surpreendente para mim o quanto pouco os seres humanos conseguem antecipar ou prever o futuro. Correspondência (1939)
GENIALIDADE Tenho de me haver, como você bem sabe, com todos os demónios largados contra o «inovador»; um deles, e não o mais dócil, é o da obrigação de surgir perante os meus próprios partidários como um caturra ou um fanático, incorrigível e dominado pela ideia de ter perpetuamente razão, coisa que, na verdade, não sou de maneira alguma. Correspondência (1906)
GRANDIOSIDADE Pessoalmente, não estou nada interessado nos grandes homens que mencionaste.
Nem tenho tido muito interesse na humanidade. Sempre me pareceu que a crueldade e a arrogante autoconfiança constituem as condições indispensáveis para, quando bem-sucedidas, se apresentarem sob uma auréola de grandiosidade; e penso ainda que deveríamos diferenciar entre grandiosidade de ações e grandiosidade de personalidade. Correspondência (1912)
GUERRA As guerras jamais podem cessar enquanto as nações viverem sob condições tão amplamente diferentes, enquanto o valor da vida individual for tão diversamente apreciado entre elas, e enquanto as animosidades que as dividem representarem forças motrizes tão poderosas na mente. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915)
HIPOCRISIA Existem infinitamente mais homens que aceitam a civilização como hipócritas do que homens verdadeiramente e realmente civilizados, e é lícito até perguntarmonos se um certo grau de hipocrisia não será necessário à manutenção e à conservação da civilização, dado o reduzido número de homens nos quais a tendência para a vida civilizada se tornou uma propriedade orgânica. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915)
HOMEM O homem tornou-se, por assim dizer, uma espécie de «deus protético», deus por certo admirável quando se reveste de todos os seus órgãos auxiliares, embora estes, como não cresceram com ele, o façam com frequência sofrer muito. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) O homem não é certamente esse ser pacífico, com o coração sequioso de amor, do qual foi dito que se defende quando atacado, mas sim um ser que, pelo contrário, deve trazer no conjunto dos seus dados instintivos uma boa carga de
agressividade. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
HUMANIDADE Há lugar para toda a gente no planeta, e é permitido a cada um, que disso se sinta capaz, mover-se livremente pela Terra; mas é impossível continuarmos a habitar debaixo do mesmo teto quando nos deixamos de compreender e de suportar mutuamente. Contribuição para a História do Movimento Psicanalítico (1914) Sempre me impressionou vivamente a baixeza dos homens, incluindo os analistas; mas porque haviam os homens e as mulheres analisados de ser melhores? A análise permite uma certa unidade da personalidade, mas não torna um indivíduo bom em si e para si; e eu não creio, ao contrário de Sócrates e de Putnam, que todos os defeitos do caráter provenham de uma espécie de confusão e de ignorância. Correspondência (1915) Não quebro muitas vezes a cabeça a propósito da questão do bem e do mal, mas, em média, descobri muito pouco «bem» entre os homens. Segundo o que deles sei, são na maioria escumalha, quer se reclamem da ética desta ou daquela doutrina, quer de nenhuma. Correspondência (1918) Eu reverenciava-te como um artista e como um apóstolo do amor pela humanidade muito antes de te ter conhecido. Eu próprio sempre defendi o amor pela humanidade, não por uma questão de sentimentalismo ou idealismo, mas por razões económicas: porque, em face dos nossos impulsos instintivos, e do mundo tal como se nos apresenta, sou obrigado a considerar que o amor é indispensável à preservação da espécie humana, tão importante como, por exemplo, a tecnologia. Correspondência (1926) Um dos raros espetáculos nobres e exaltantes que os homens são capazes de darnos é o de os vermos, perante uma catástrofe devida aos elementos, esquecerem
as suas dissensões, as querelas e as animosidades que os dividem, e recordarem a sua grande tarefa comum: a conservação da humanidade em presença das forças superiores da natureza. O Futuro de Uma Ilusão (1927) Então o que podemos fazer para melhorar a vida? Eu acredito que temos de ter muita paciência e de aceitar o facto de que ainda há um longo caminho a percorrer. Entretanto cada um deve aplicar as suas energias para aquela que for a sua vocação; deve combater tanto a ignorância como os preconceitos dogmáticos, assim como lutar contra o controlo cada vez maior do homem sobre a natureza, etc. Correspondência (1928) Uma conceção ética pretenderia ver na disposição ao amor universal pela humanidade e pelo mundo a atitude mais elevada que o ser humano pode adotar. Mas já acerca deste ponto gostaríamos de não manter escondidas duas reservas de capital importância: em primeiro lugar, um amor que não escolhe parece-nos perder uma parte do seu próprio valor, na medida em que se revela injusto para com o seu objeto; em segundo lugar, nem todos os seres humanos são dignos de ser amados. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) A humanidade nunca vive inteiramente no presente. O passado, a tradição da raça e do povo, subsiste nas ideologias do superego e só lentamente cede às influências do presente, no sentido de mudanças; e, enquanto opera através do superego, desempenha um poderoso papel na vida do homem, independentemente das condições económicas. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933) Se considerarmos a humanidade como um todo e a colocarmos no lugar do indivíduo isolado, descobriremos que também ela desenvolveu delírios inacessíveis à crítica lógica e em contradição com a realidade. Se estes podem, apesar disso, exercer um enorme império sobre os homens, a investigação levanos à mesma conclusão a que chegamos perante o indivíduo. O seu poder provém do seu conteúdo de «verdade histórica», verdade que foram buscar ao recalcamento de tempos originários esquecidos. Construções em Análise (1937)
HUMILDADE É preciso ser-se humilde e porem-se de lado simpatias e antipatias, se se quiser descobrir o que é real neste mundo. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
IDADE Que nos importa afinal uma vida longa, se ela nos acabrunha com tantas dores, se é tão pobre de alegrias e tão rica de sofrimentos que chegamos a saudar a morte como uma libertação feliz? A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
IDEAL Há sempre uma sensação de triunfo quando algo no ego coincide com o ideal do ego. E o sentimento de culpa (bem como o de inferioridade) também pode ser entendido como uma expressão da tensão entre o ego e o ideal do ego. Psicologia Coletiva e Análise do Eu (1921)
IDEIA Os homens são fortes enquanto representam uma ideia forte. Contribuição para a História do Movimento Psicanalítico (1914)
IMPRENSA Sempre me questionei muitas vezes, confusamente, se é absolutamente necessário aos jornais contarem tantas mentiras com tamanha regularidade e sem restrições. Correspondência (1938)
INDIVIDUALIDADE Cada indivíduo é uma parte componente de numerosos grupos, acha-se ligado por vínculos de identificação em muitos sentidos e construiu o seu ideal do ego segundo os modelos mais variados. Cada indivíduo, portanto, partilha de numerosas mentes grupais – as da sua raça, classe, credo, nacionalidade, etc. –, podendo também elevar-se sobre elas, na medida em que possui um fragmento de independência e originalidade. Psicologia Coletiva e Análise do Eu (1921)
INFÂNCIA Quando o adulto relembra a sua infância, esta parece-lhe como tendo sido uma época feliz, na qual se gozava o momento e se encarava o futuro sem nenhum desejo; é por essa razão que ele inveja as crianças. No entanto, se as próprias crianças nos pudessem contar a sua história nessa época, elas provavelmente fariam-no de modo diferente. Parece que a infância não é bem esse idílio bemaventurado que retrospetivamente distorcemos; pelo contrário, as crianças, durante toda a sua infância, sentem-se fustigadas pelo desejo de crescer e de fazer o que fazem os grandes. Um Souvenir da Infância de Leonardo da Vinci (1910) O que os poetas e os estudiosos da natureza humana sempre tinham assegurado veio a confirmar-se ser verdade: as impressões do período inicial de vida, embora estejam, na sua maior parte, enterradas na amnésia, deixam vestígios indeléveis no crescimento do indivíduo e, em particular, fundamentaram a disposição para qualquer distúrbio nervoso que venha a revelar-se. Estudo Autobiográfico (1925)
INIMIGO Há um ditado corrente segundo o qual nós deveríamos aprender com os nossos inimigos. Confesso que nunca consegui fazer isso. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933)
INOVAÇÃO Os seres humanos possuem uma tendência natural para repelir inovações intelectuais. Uma das formas pelas quais se manifesta esta tendência é a imediata redução da novidade às suas menores proporções, comprimindo-a, se possível, num simples verbete. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
INSTINTO Nos seres humanos, pode acontecer que as exigências dos instintos sexuais, cujo alcance se estende muito além do indivíduo, pareçam, ao ego, constituir um perigo que ameaça a sua autopreservação ou a sua autoestima. O ego assume então a defensiva, nega aos instintos sexuais a satisfação que almejam e força-os pelos caminhos estreitos da satisfação substitutiva, que se tornam manifestos como sintomas nervosos. Uma Dificuldade no Caminho da Psicanálise (1917) A alegria de satisfazer um instinto que permaneceu selvagem, não domesticado pelo eu, é incomparavelmente mais intensa do que a de saciar um instinto domado. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
INTELIGÊNCIA Pense-se no contraste entristecedor que existe entre a inteligência radiante de uma criança saudável e a fraqueza mental de um adulto médio. O Futuro de Uma Ilusão (1927)
INTENÇÃO Sob a máscara do esquecimento e do equívoco, invocando como justificação a ausência de más intenções, os homens expressam sentimentos e paixões cuja realidade seria bem melhor, tanto para eles próprios como para os outros, que
confessassem a partir do momento em que não estão à altura de os dominar. Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901) Descobrimos que mesmo pessoas normais são movidas por motivos contraditórios com muito maior frequência do que seria de esperar. O número de ocorrências que podem ser descritas como «acidentais» é consideravelmente pequeno. (...) Os nossos enganos são, muitas vezes, um disfarce para as nossas intenções secretas. Mas – o que é mais importante – acidentes sérios que de outro modo teríamos atribuído inteiramente ao acaso revelam, quando analisados, a participação da própria volição do sujeito, embora sem ser claramente admitida por ele. O Interesse Científico da Psicanálise (1913)
INTOLERÂNCIA Coisa estranha, a intolerância racial manifesta-se mais facilmente a propósito das pequenas diferenças do que das divergências fundamentais. Moisés e o Monoteísmo (1937)
INVESTIGAÇÃO Tal como sabes, o caráter de um investigador requer duas qualidades básicas: otimismo e crítica no trabalho que faz. Cartas a Martha (1884) As minhas boas ideias ocorrem em ciclos de sete anos: em 1891, comecei a trabalhar na afasia; em 1898/9, na interpretação dos sonhos; em 1904/5, na inteligência e na sua relação com o inconsciente; em 1911/12, nos tótemes e tabus – pelo que atualmente devo estar na fase minguante e não devo conseguir nada de importante até 1918/19 (contando que a corrente de ciclos não se quebre antes...) Correspondência (1913) Sei que, ao trabalhar, produzo artificialmente a escuridão à minha volta para concentrar toda a luz sobre o ponto obscuro, renunciando à coerência, à harmonia, à elevação e a tudo aquilo a que você chama o simbólico, receando, na sequência de uma experiência apenas, que todas as pretensões nesse sentido tragam consigo
o perigo de vermos distorcidamente o que se trata de reconhecer, embora a distorção possa ser para melhor. Correspondência (1916) Eu teria-me sentido muito mais seguro durante a minha vida se a minha produção tivesse sido previsível durante todo o tempo e em todas as condições. Infelizmente tal nunca foi o caso. Houve sempre dias em que tudo se recusava a funcionar e em que estive na iminência de perder as minhas capacidades de trabalho e de luta, devido a algumas flutuações do meu estado de espírito e da minha saúde. A constituição mais inadequada para um homem que não é um artista nem pretende vir a sê-lo. Correspondência (1916)
IRRITAÇÃO Como sou incapaz de moderar artificialmente a minha irritação, de a expor de maneira agradável e comunicativa, calo-me. Nunca seria capaz de lhe fazer descer a temperatura. Correspondência (1910)
JOGO O contrário do jogo não é a seriedade, mas a realidade. Ensaios de Psicanálise Aplicada (1908)
JULGAMENTO Verificam-se factos análogos na vida social quando pessoas antipáticas ou que pertencem a minorias malvistas cometem uma falta. O seu castigo é aumentado pela má vontade latente que toma então livre curso. Os juízes são injustos, mas não têm consciência desse facto, tão grande é a sua satisfação por se verem livres de uma longa repressão interior. A Interpretação dos Sonhos (1900)
LEITURA Sei muitíssimo bem que cada auditor ou leitor compõe no seu pensamento o tema que lhe é exposto, abrevia a exposição, simplifica-a e dela extrai o que deseja conservar. Introdução à Psicanálise (1916-1917) É a predisposição do leitor que altera a leitura e introduz no texto algo que corresponde às suas expectativas ou àquilo que o está a ocupar. Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901)
LIBERDADE Por nenhum meio parece possível levar o homem a trocar a sua natureza pela de uma formiga; ele tenderá sempre a defender o seu direito à liberdade individual contra a vontade da massa. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
LITERATURA Os poetas e os romancistas são aliados preciosos, e o seu testemunho merece a mais alta consideração, porque eles conhecem, entre o céu e a terra, muitas coisas que a nossa sabedoria escolar nem sequer sonha ainda. São, no conhecimento da alma, nossos mestres, que somos homens vulgares, pois bebem de fontes que não se tornaram ainda acessíveis à ciência. Delírios e Sonhos na «Gradiva» de Jensen (1907) A psicanálise tem infelizmente que depor as armas perante o problema constituído pela criação literária. Dostoievsky e o Parricídio (1928)
LOUCURA
Em todos os tempos, aqueles que tinham alguma coisa a dizer, mas que não podiam dizê-la sem perigo, se cobriram com o barrete dos loucos. A Interpretação dos Sonhos (1900) Todos nós temos os nossos complexos, parece-me inegável, mas devemos evitar chamar neuróticos a toda a gente. Correspondência (1912) Poderia dizer-se que cada um de nós, neste ou naquele ponto, se comporta como um paranoico, corrige por meio de sonhos os elementos do mundo que lhe são intoleráveis, e depois insere essas quimeras na realidade. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
LUTO Eu sempre considerei de particular mau gosto os exageros nos elogios que são proferidos na hora da morte, e sempre tive o cuidado de os evitar. Correspondência (1925) Sinto que quem acaba de sofrer uma perda cruel tem o direito de ser deixado em paz. Deveríamos mesmo permitir que se prolongasse esse período de tréguas, se o temor de parecermos esquecidos da amizade não nos levasse por fim à manifestação da nossa simpatia. Aliás, para quem chora, tudo o que possamos dizer não passará de ruídos vãos. O seu «trabalho de luto» é um processo íntimo que não admite ingerências. Correspondência (1926)
MÃE Só as relações entre mãe e filho são capazes de dar à mãe uma plenitude de satisfação, porque, de todas as relações humanas, são as mais perfeitas e as mais despidas de ambivalência. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933)
MASTURBAÇÃO Acabei por convencer-me de que a masturbação era o único grande hábito, a «necessidade primitiva», e que as outras necessidades, como as do álcool, da morfina, do tabaco, não passam de seus substitutos, produtos de substituição. Correspondência (1897)
MATURIDADE Quando a criança cresceu e abandonou os seus jogos, quando, durante anos, se esforçou psiquicamente por agarrar as realidades da vida com a seriedade desejada, pode acontecer que um dia se encontre de novo numa disposição psíquica que volta a apagar esta oposição entre o jogo e a realidade. O homem adulto lembra-se da grande seriedade com que se entregava aos jogos infantis e acaba por comparar as suas ocupações por assim dizer graves com esses jogos dos tempos da infância: liberta-se então da opressão demasiado pesada da vida e conquista a fruição superior do humor. Ensaios de Psicanálise Aplicada (1908) A observação da vida quotidiana das pessoas mostra-nos que a maioria conseguiu orientar uma boa parte das forças resultantes do instinto sexual para a sua atividade profissional. O instinto sexual presta-se bem a isso, já que é dotado de uma capacidade de sublimação: isto é, tem a faculdade de substituir o seu objetivo imediato por outros desprovidos de caráter sexual e que possam ser mais altamente valorizados. Um Souvenir da Infância de Leonardo da Vinci (1910)
MÉDICO A profissão de médico certamente que não nos imuniza do sofrimento humano, nem deveria, mas torna-nos menos vulneráveis, se tivermos felicidade na nossa própria vida. Cartas a Martha (1883) Cheguei à conclusão de que o trabalho de um médico e o seu rendimento são duas
coisas muito diferentes. Por vezes, fazemos dinheiro sem levantar um dedo, e outras vezes trabalhamos que nem uns escravos sem qualquer recompensa. Cartas a Martha (1886)
MEDIOCRIDADE As pessoas que não receiam nada a não ser a mediocridade, dizes tu, estão salvas. Salvas do quê, pergunto eu? Não será a questão principal saber se esse receio faz sentido? Admitindo que intelectos mais poderosos estão também presos por dúvidas acerca de si próprios; conclui-se daí que qualquer um que duvide das suas virtudes é de intelecto poderoso? No intelecto, ele pode ser um fraco, mas, ao mesmo tempo, um homem honesto pela educação, hábito, ou mesmo pela crítica a si próprio. Correspondência (1873)
MELANCOLIA Quem nasceu melancólico realça a tristeza em tudo o que acontece. Correspondência (1873) Na melancolia, bem como noutros distúrbios narcísicos, emerge, com acento especial, um traço particular na vida emocional do paciente – aquilo a que nos acostumamos a descrever como «ambivalência». Com isso queremos significar que estão a ser dirigidos à mesma pessoa sentimentos contrários – amorosos e hostis. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
MENTE Enquanto lidarmos apenas com recordações e ideias, permaneceremos na superfície. Só os sentimentos têm valor na vida mental. Nenhuma força mental é significativa se não possuir a característica de despertar sentimentos. As ideias só são reprimidas porque estão associadas à libertação de sentimentos que devem ser evitados. Seria mais correto dizer que a repressão age sobre sentimentos, mas
só nos apercebemos destes através de sua associação com as ideias. Delírios e Sonhos na «Gradiva» de Jansen (1907) Os senhores acalentam a ilusão de haver uma coisa como liberdade psíquica e não querem desistir dela. Lamento dizer que discordo categoricamente dos senhores a este respeito. Introdução à Psicanálise (1916-1917) As nossas atividades mentais perseguem um objetivo útil ou um rendimento imediato de prazer. No primeiro caso, aquilo com que estamos a lidar são juízos intelectuais, preparações para a ação ou a transmissão de informações a outras pessoas. No último, descrevemos essas atividades como jogo ou fantasia. O que é útil é (como é bem sabido), em si mesmo, apenas um caminho tortuoso até a satisfação prazerosa. Algumas Notas Adicionais sobre a Interpretação de Sonhos como Um Todo (1925)
MENTIRA É natural que as crianças mintam quando, fazendo-o, imitam as mentiras dos adultos. Duas Mentiras de Crianças (1913)
MILITARES Os militares são umas pobres criaturas: cada um deles inveja o que lhe é igual, tiraniza o que lhe está subordinado e teme o seu superior, e, depois, quanto mais graduado é mais medo tem. A ideia de trazer no colarinho uma avaliação dos meus méritos, como se eu fosse a amostra de uma mercadoria qualquer, enche-me de horror. E apesar de tudo, o sistema tem as suas lacunas. O general comandante da região de Brünn esteve cá recentemente, dirigiu-se à escola de natação e foi aí que descobri que os fatos de banho não têm qualquer «signo distintivo». Correspondência (1886)
MORAL É muito raro a complexidade de um caráter humano, impelida de um lado para outro por forças dinâmicas, submeter-se a uma escolha entre alternativas simples, como levaria a crer, a nossa doutrina moral antiquada. A Interpretação dos Sonhos (1900) Enquanto a arte da medicina não tiver progredido mais na arte de nos proporcionar uma vida mais segura e, enquanto as instituições sociais não a tiverem tornado mais agradável, será impossível abafar em nós a voz que se insurge contra as prescrições da moral. A Palavra do Espírito e as Relações com o Inconsciente (1905) O que os ditos do espírito sussurram em voz baixa pode ser enunciado em voz alta, a saber: que os desejos e as aspirações dos homens têm o direito de se afirmar perante a moral exigente que os ignora, e nos nossos dias já tem sido dito em termos enérgicos e surpreendentes que essa moral não passa do ditame egoísta de sujeitos ricos e poderosos, que, no que a eles mesmos diz respeito, podem sempre e sem dilações obter a satisfação de todos os seus desejos. A Palavra do Espírito e as Relações com o Inconsciente (1905) Se não nos contentamos em dizer: «Be moral and philosophical», é porque se trata de uma posição demasiado fácil e porque isso já foi dito muitas vezes sem o menor efeito. A arte consiste em dar às pessoas a «possibilidade» de serem morais e de dominarem as suas pulsões filosoficamente. Correspondência (1911) Num grande número de casos, as pulsões dos nossos pacientes são desproporcionadas em relação às suas possibilidades, geralmente medíocres. Eles gostariam de ser melhores do que são, mas esse querer convulsivo não lhes é da menor utilidade, nem para eles, nem para a sociedade. É por isso que é mais humano fixar o princípio: «Sê tão moral quanto honestamente te for possível, e não aspires a uma perfeição ética para a qual não te encontras destinado.» Correspondência (1911) Considero-me um homem eminentemente moral, que poderia subscrever a excelente máxima de Th. Vischer: o que é moral é sempre evidente em si mesmo.
Parece-me que no que se refere ao sentido de justiça e à consideração do próximo, à repugnância em fazer sofrer os outros ou abusar deles, posso rivalizar com os melhores homens que conheci. Para dizer a verdade, nunca cometi uma ação baixa ou má e nunca descobri em mim próprio a tentação de agir desse modo. Não sinto qualquer orgulho por tudo isto. Correspondência (1915) Podemos dizer sem contemplações à sociedade que aquilo a que ela chama a sua moral custa mais sacrifícios do que o que vale, e que os seus modos de proceder são falhos tanto de sinceridade, como de sabedoria. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
MORTE Não queremos morrer nem demasiado cedo, nem por completo. Correspondência (1894) O certo é que nos é absolutamente impossível representarmos a nossa própria morte, e sempre que o tentamos, damo-nos conta de que assistimos a essa morte como espectadores. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915) No fundo, ninguém acredita na sua própria morte ou, o que vem a dar no mesmo, no seu inconsciente cada um de nós está persuadido de ser imortal. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915) É, com efeito, de uma excessiva tristeza sabermos que a vida se parece com um jogo de xadrez em que uma única jogada em falso pode obrigar-nos a renunciar à partida, com a agravante de que, na vida, não podemos contar sequer com uma outra partida para a desforra. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915) O respeito pelo morto, respeito do qual ele, todavia, já não precisa, parece-nos uma coisa superior à verdade e, para muitos de nós, é até superior à consideração que devemos aos vivos. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915)
Se durante a nossa própria vida assistimos a uma irreversível degradação corporal, a brevidade da nossa existência apenas a torna mais excitante. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915) Preparei-me durante anos para a perda dos meus filhos, e agora foi a minha filha quem morreu; como sou profundamente descrente, não tenho ninguém a quem acusar e sei que não existe lugar algum onde possa depor a minha queixa. «A hora eternamente invariável do dever» e «o doce hábito da vida» farão o resto que é necessário para que tudo continue como de costume. No mais profundo do meu ser, sinto desvelado o sentimento de uma ferida narcísica irreparável. Correspondência (1920) Como fatalista e descrente, só posso deixar cair os braços perante os terrores da morte. Correspondência (1928)
MULHER Uma mulher forte, capaz, em caso de necessidade, de pôr ela própria na rua o marido e os criados, não foi nunca o meu ideal; por muito grande que seja o valor, numa mulher, de uma saúde perfeita, nunca me senti atraído senão por criaturas delicadas de quem me seja possível cuidar. S. Freud, cit. por Ernest Jones «A Vida e Obra de Freud» As mulheres, tal como as autoridades militares, pretendem que tudo o que se lhes refere deve ser subtraído ao esquecimento e professam assim a opinião segundo a qual o esquecimento não é permitido senão nas coisas sem importância, enquanto se trata, para as importantes, de uma prova de que pretendemos tratar essas coisas como insignificantes, ou seja, recusar-lhes todo o valor. Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901) Segundo a maneira habitual que elas têm de viver as suas experiências, a realidade encontra-se demasiado próxima das mulheres para que elas possam acreditar no fantasma. Correspondência (1907) Segundo o que a experiência psicanalítica nos ensina, as mulheres consideram ter
sofrido na infância mais recuada uma grave perda da qual não foram responsáveis, uma mutilação parcial, ficando assim lesadas. A razão do facto de tantas filhas quererem mal às mães tem por raiz última esta acusação dirigida contra a mãe, que as fez nascer mulheres em vez de homens. Ensaios de Psicanálise Aplicada (1916) Sabe-se com que facilidade as relações afetivas de natureza amigável, assentes no reconhecimento e na admiração, se transformam, sobretudo nas mulheres, em desejos eróticos: tais são as relações entre professores e alunas, entre artistas e admiradoras entusiastas. Psicologia Coletiva e Análise do Eu (1921) Na mulher, a necessidade de ser amada é maior do que a de amar. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933) Se quiserem saber mais acerca da feminilidade, interroguem a vossa própria experiência, dirijam-se aos poetas ou então terão de esperar que a ciência esteja em condições de vos dar informações mais aprofundadas e mais coordenadas. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933 )
MUNDO É assim que, a julgar pelos nossos desejos e anseios inconscientes, nós próprios não somos mais do que um bando de assassinos. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915) A unidade deste mundo parece-me ser evidente por si mesma e não valer a pena mencioná-la. O que me interessa é a separação e a organização do que, de outro modo, se perderia num caldo originário. Em suma, sou, de modo perfeitamente declarado, um analista e penso que a síntese deixa de apresentar a menor dificuldade a partir do momento em que nos encontrarmos na posse da análise. Correspondência (1915)
NARCISISMO Um sólido egoísmo preserva-nos da doença, mas no fim temos de nos pôr a amar
para não cairmos doentes, e ficamos doentes quando não podemos amar, em consequência de uma frustração. Para Introduzir o Narcisismo (1919) O encanto da criança assenta em boa parte no seu narcisismo, no facto de ela se bastar a si própria, na sua inacessibilidade; o mesmo acontece com o encanto de certos animais, que parecem não se preocupar connosco, como os gatos e os grandes predadores; e até o criminoso confesso e o humorista captam o nosso interesse, quando a poesia os representa, graças também a esse narcisismo consequente que exibem, mantendo à distância do seu eu tudo o que possa diminuí-los. Para Introduzir o Narcisismo (1914) O amor dos pais, tão tocante e, no fundo, tão infantil, não é mais do que o seu narcisismo a renascer e que, apesar da sua metamorfose em amor de objeto, manifesta sem engano possível a sua natureza antiga. Para Introduzir o Narcisismo (1914)
NATUREZA Não desprezemos por completo o que há de animal na nossa natureza. O nosso ideal de civilização não exige que se renuncie à satisfação do indivíduo. Cinco Lições sobre a Psicanálise (1910) A essência mais profunda da natureza humana consiste em impulsos instintivos de natureza elementar, semelhantes em todos os homens e que visam à satisfação de certas necessidades primitivas. Em si mesmos, esses impulsos não são nem bons, nem maus. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915)
NECESSIDADE A grande maioria dos homens não trabalha senão sob a coação da necessidade, e desta aversão ao trabalho nascem os problemas sociais mais árduos. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
NEUROSE Por um lado, as neuroses apresentam analogias impressionantes e profundas com as grandes produções sociais da arte, da religião e da filosofia; por outro lado, surgem-nos como deformações destas últimas. Quase poderia dizer-se que uma histeria é uma obra de arte deformada, uma neurose obsessiva é uma religião deformada, e um delírio paranoico, um sistema filosófico deformado. Totem e Tabu (1912-1913) A neurose é caracterizada pelo facto de dar à realidade psíquica prioridade sobre a realidade efetiva, de reagir à ação das ideias com a mesma seriedade com que os seres normais reagem perante as realidades. Totem e Tabu (1912-1913) Há casos em que o próprio médico é obrigado a concordar em que a neurose constitui a solução mais inofensiva e, do ponto de vista social, mais vantajosa, de um conflito. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
NOBEL Por isso, não deixe que a quimera do Nobel lhe dê volta à cabeça. É demasiado certo que não serei eu a receber o prémio. A análise tem muito bons inimigos entre as personalidades oficiais de quem a atribuição depende, e ninguém pode esperar de mim que eu dure até que eles se convertam ou morram. Correspondência (1938)
NORMALIDADE Na verdade, toda a pessoa normal é apenas normal na média. O seu ego aproximase do ego do psicótico numa área ou noutra e em maior ou menor extensão. Análise Terminada e Análise Interminável (1937)
OPINIÃO Senti-me desgostoso por você ter pensado que eu consideraria sem sentido os seus pontos de vista idealistas, pela simples razão de eles se afastarem dos meus. Não tenho o coração tão seco que pretenda erigir em lei uma lacuna dos meus dons. Não experimento de maneira alguma a necessidade de uma recompensa moral mais alta, do mesmo modo que não tenho ouvido para a música, estando bem longe de me atribuir por essas razões uma constituição mais perfeita. Correspondência (1910) A natureza humana está feita de tal modo que somos levados a considerar como falso o que nos desagrada; depois, é fácil descobrirmos argumentos que justifiquem a aversão. Introdução à Psicanálise (1916-1917) A voz do intelecto é baixa, mas não se detém por não ser escutada. E depois de receber respostas tortas repetidas vezes sem conta acaba, apesar de tudo, por ser ouvida. O Futuro de Uma Ilusão (1927)
OPRESSÃO O homem sente-se tentado a satisfazer a sua necessidade de agressão a expensas do próximo, a explorar o trabalho de outrem sem contrapartidas, a utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, a apropriar-se dos bens dele, a humilhá-lo, a infligir-lhe sofrimentos, a martirizá-lo e a matá-lo. Homo homini lupus : quem teria a coragem, perante todos os ensinamentos da vida e da história, de contestar este adágio? A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
OTIMISMO Não posso ser otimista e distingo-me dos pessimistas unicamente porque o mal, a estupidez e a loucura não me põem fora de mim, pela simples razão de que os aceitei antecipadamente como fazendo parte da estrutura do mundo.
Correspondência (1915)
OS OUTROS Podemos afirmar em termos gerais que cada um de nós se entrega constantemente à análise psíquica dos que lhe estão próximos, acabando assim por conhecê-los melhor do que se conhece a si próprio. Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901)
PAIS É verdade que o excesso de ternura por parte dos pais torna-se pernicioso, na medida em que acelera a maturidade sexual e também, «mimando» a criança, torna-a incapaz de renunciar temporariamente ao amor em épocas posteriores da vida, ou de se contentar com menor dose dele. Um dos melhores prenúncios de neurose posterior é quando a criança se mostra insaciável em sua demanda de ternura dos pais. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905)
PAIXÃO Que o fogo interior, dentro de si, aqueça as suas ambições em lugar de a consumir. Não há nada mais poderoso do que uma paixão dominada e que se faz derivar. Correspondência (1914)
PALAVRA Não desprezemos a palavra. Afinal de contas, ela é um instrumento poderoso; é o meio pelo qual transmitimos os nossos sentimentos a outros, o nosso método de influenciar outras pessoas. As palavras podem fazer um bem indizível e causar terríveis feridas. Sem dúvida, «no começo foi a ação» e a palavra veio depois; em
certas circunstâncias ela significou um progresso da civilização quando os atos foram amaciados em palavras. Mas originalmente a palavra foi magia – um ato mágico; e conservou muito do seu antigo poder. A Questão da Análise Leiga: Conversações com Uma Pessoa Imparcial (1926)
PÂNICO Quando o indivíduo, invadido pelo pânico, começa a pensar apenas em si próprio, comprova por isso mesmo a rutura dos laços afetivos que até então haviam atenuado o perigo, aos seus olhos. Psicologia Coletiva e Análise do Eu (1921)
PASSADO As épocas longínquas exercem sobre a imaginação uma atração misteriosa e viva. Quando os homens se sentem insatisfeitos com o presente, o que acontece com muita frequência, viram-se para o passado e esperam, uma vez mais, reencontrar o sonho nunca esquecido de uma idade de ouro. Moisés e o Monoteísmo (1937)
PATOLOGIA Tem razão ao supor que no fundo eu não gosto de Dostoievsky, apesar de toda a minha admiração pela sua intensidade e pela sua superioridade de dons. Isso é resultado do facto de a análise ter esgotado a minha paciência com os temperamentos patológicos. Na arte e na vida, sou intolerante a esse respeito. Correspondência (1929)
PECADO O homem a quem o arrependimento, após o pecado, impõe grandes exigências
morais, expõe-se à acusação de ter tornado a sua tarefa demasiado fácil. Não praticou o que é essencial na moral, a renúncia; com efeito, o comportamento moral ao longo da vida é exigido em função dos interesses práticos da humanidade. O homem citado recorda-nos os bárbaros das grandes ondas migratórias, que matavam e depois faziam penitência, e para os quais essa penitência acabou por se tornar uma técnica facilitadora do assassínio. Dostoievsky e o Parricídio (1928)
PENSAMENTO Acresce a isto um facto que não ignoram e que me torna particularmente incapaz de exercer as funções de um censor despótico e sempre vigilante. Não me é fácil entrar nas operações do pensamento dos outros; em geral, tenho de proceder primeiro à minha ligação a elas, seguindo os meandros dos meus caminhos próprios. Se, portanto, sempre que tiverem uma ideia nova, se decidirem a esperar pelo momento da minha aprovação, correm o risco de até lá se tornarem velhos. Correspondência (1924)
PERSEVERANÇA O que tentamos muitas vezes e não paramos de querer, um dia acabamos por conseguir obtê-lo. Correspondência (1884) Sermos caluniados e tostados pelo fogo do amor com que trabalhamos, são esses os riscos do nosso ofício, riscos que certamente não nos hão de fazer abandonálo. Correspondência (1909)
PERSONALIDADE Não devemos procurar extirpar os nossos complexos, mas conciliarmo-nos com eles. Eles são as forças que legitimamente guiam o nosso comportamento no
mundo. Correspondência (1911)
PERVERSÃO Os perversos são pobres diabos que expiam muito duramente a satisfação que têm tanta dificuldade em obter. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
POBREZA Ensinaram-me na minha juventude que, entre os cavalos selvagens das pampas, os que alguma vez tivessem sido apanhados com o laço ficavam com medo para o resto da vida. Assim, tendo eu conhecido já a pobreza sem esperança, continuo a temê-la. Correspondência (1899)
POESIA Se tudo o que resta do passado são as incompletas e enevoadas lembranças que chamamos de tradição, isso oferece ao artista uma atração peculiar, pois, nesse caso, ele fica livre para preencher as lacunas da memória de acordo com os desejos da sua imaginação e para retratar o período que quer reproduzir segundo as suas intenções. Quase se poderia dizer que, quanto mais vaga uma tradição, mais útil ela se torna para um poeta. Moisés e o Monoteísmo (1937)
POLÍTICA Quem não é suficientemente cego nem duro para tomar parte em experiências políticas realizadas com massas humanas não deve esforçar-se por agir neste campo. Provavelmente, também é bom que existam tais homens, homens sem
escrúpulos e que não se deixam deter pela compaixão. Mas é igualmente provável que as tentativas deles estejam destinadas a causar-nos sobretudo deceções. Correspondência (1928)
POSSE Mesmo entre a maioria das chamadas pessoas «decentes» é fácil observar sinais de um comportamento dividido no que concerne ao dinheiro e à propriedade. Talvez seja universal que a avidez primitiva do lactente, que quer apossar-se de todos os objetos (para levá-los à boca), só tenha sido superada de maneira incompleta pela cultura e pela educação. Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901) Ganhar algo novo traz muito maior prazer do que possuir. Correspondência (1927)
POSTERIDADE A sua suposição de que após a minha reforma os meus erros poderão vir a ser venerados como relíquias divertiu-me bastante, mas não encontrou em mim terreno favorável à crença. Penso que, pelo contrário, os novos se hão de apressar a demolir tudo o que não estiver bem pregado e não for sólido na minha herança. Correspondência (1909) Lançando um olhar retrospetivo à parte de trabalho que me foi dada realizar durante a minha vida, posso dizer que abri muitos caminhos e que impulsionei muitas coisas que poderão levar a algo mais no futuro. Mas não posso saber, eu próprio, se isso virá a ser muito ou pouco. Psicanálise e Medicina (1926) A minha obra encontra-se ainda por detrás de mim, como você mesmo diz. Ninguém pode saber de antemão como a julgará a posteridade. Eu próprio não me encontro muito seguro; a dúvida, como sabe, é inseparável da investigação e sem dúvida apenas se descobre uma pequena parcela da verdade. O futuro imediato parece sombrio, e para a minha psicanálise também. Correspondência (1937)
PRECONCEITO Contra os preconceitos não há nada a fazer. É preciso esperar e deixar o tempo encarregar-se de os tornar caducos. Chega um dia em que os mesmos homens pensam sobre as mesmas coisas diferentemente da véspera. Mas porque não pensavam na véspera como pensam hoje? Isso é tanto para nós como para eles um mistério obscuro e impenetrável. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
PRESENTE Os homens vivem em geral o presente de um modo por assim dizer ingénuo, e são incapazes de apreciar o que este lhes dá; o presente tem de adquirir recuo, quer dizer, tornar-se passado, antes de poder oferecer os pontos de apoio nos quais se fundamenta um juízo relativo ao futuro. O Futuro de Uma Ilusão (1927)
PRINCÍPIOS Não posso imaginar-me a estudar, com todos os pormenores, o mecanismo psíquico de uma histeria num sujeito que me parecesse desprezível e repugnante e que, uma vez mais bem conhecido, se verificasse ser incapaz de inspirar qualquer simpatia humana. Poderia, pelo contrário, tratar qualquer diabético, doente reumático, independentemente de qualquer consideração sobre a sua personalidade. Estudos sobre a Histeria (1895)
PROBABILIDADE Probabilidade nem sempre significa verdade. Correspondência (1923)
Uma probabilidade, por sedutora que seja, não poderá proteger-nos contra o erro,
ainda que todos os dados do problema pareçam ajustar-se tão bem como as peças de um puzzle . Devemos lembrar que o verosímil nem sempre é verdadeiro e que o verdadeiro nem sempre é verosímil. Por fim, não é nada tentador vermo-nos classificados entre os escolásticos e os talmudistas, que se contentam em exercer o seu engenho, sem se preocupar com o grau de verdade das suas asserções. Moisés e o Monoteísmo (1937)
PROFETA Por isso, não tenho coragem para me erigir em profeta diante dos meus irmãos; e inclino-me perante a acusação de não estar à altura de lhes proporcionar qualquer consolo. Porque é isso que todos eles ardentemente desejam, dos revolucionários mais selvagens aos mais sinceros pietistas. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
PROGRESSO É realmente muito útil que as pessoas sejam advertidas de que grande parte do que era considerado «evidente» ou «disparatado» por gerações anteriores é hoje por nós julgado, inversamente, «disparatado» e «evidente». Colaborações para «Neue Freie Presse» Ao crescer, o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o que constitui um dos mais necessários, ainda que mais dolorosos, resultados do curso do seu desenvolvimento. Tal libertação é primordial e presume-se que todos os que atingiram a normalidade lograram-na pelo menos em parte. Na verdade, todo o progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre as gerações sucessivas. O Romance Familiar dos Neuróticos (1909)
PSICANÁLISE Quando me impus a tarefa de trazer à luz do dia tudo o que os homens escondem, sem utilizar para isso a coação da hipnose e servindo-me simplesmente do que eles dizem e deixam entrever, julgava esta tarefa mais difícil do que realmente é.
Quem tenha olhos para ver e ouvidos para ouvir verifica que os mortais não conseguem esconder nenhum segredo. Aquele que se cala com os lábios é eloquente com as pontas dos dedos e trai-se por todos os poros. É por isso que a tarefa de tornar conscientes as partes mais dissimuladas da alma é perfeitamente realizável. Fragmento de Uma Análise da Histeria (1905) Toda a cura psicanalítica é uma tentativa de libertar o amor recalcado, amor recalcado que descobriu no sintoma, à laia de estreita porta de saída, um compromisso. Fragmento de Uma Análise da Histeria (1905) A discrição é incompatível com uma boa exposição da análise; não devemos ter escrúpulos, temos de nos expor, tornar pasto da má-língua, trairmo-nos, comportarmo-nos como um artista que compra cores com o dinheiro da casa e queima os móveis para aquecer o seu modelo. Sem alguma destas ações criminosas, não se pode fazer nada bem feito. Correspondência (1910) Sinto-me cada vez mais convencido do valor cultural da psicanálise e ficaria extremamente agradecido ao espírito claro que dela retirasse as consequências mais adequadas no que se refere à filosofia e à sociedade. Correspondência (1910) Na verdade, não há nada para que o homem, pela sua organização, esteja menos capacitado do que para a psicanálise. Correspondência (1911) Todo aquele que espera aprender o nobre jogo de xadrez nos livros, cedo descobrirá que somente as aberturas e os finais de jogos admitem uma apresentação sistemática exaustiva e que a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a abertura desafia qualquer descrição desse tipo. Esta lacuna na instrução só pode ser preenchida por um estudo diligente dos jogos travados pelos mestres. As regras que podem ser estabelecidas para o exercício do tratamento psicanalítico acham-se sujeitas a limitações semelhantes. Novas Recomendações sobre a Técnica da Psicanálise (1913) Que a psicanálise não tenha tornado melhores, mais dignos, os próprios analistas;
que não tenha contribuído para a formação do seu caráter – continua para mim a ser uma deceção. Provavelmente, errei ao esperá-lo. Correspondência (1913) A psicanálise não hesita em atribuir aos processos emocionais a primazia na vida mental, e revela nas pessoas normais uma inesperada quantidade de perturbações afetivas e de ofuscamento do intelecto numa frequência que não é inferior à verificada em pessoas doentes. O Interesse Científico da Psicanálise (1913) Quanto aos analistas, encontram-se muito distantes do ideal que lhes exige. A partir do momento em que se encontram investidos da tarefa de guiar o paciente no sentido da sublimação, apressam-se a abandonar os deveres árduos da psicanálise para retomar as funções muito mais confortáveis e satisfatórias de professor e modelo de virtude. Correspondência (1914) Perdoe-me por reincidir na psicanálise, mas não sei fazer outra coisa. Sei apenas que a psicanálise não é um meio de nos fazermos amar. Correspondência (1922) O trabalho psicanalítico é delicado e difícil; é impossível servirmo-nos dele à maneira de uns óculos que pomos para ler e tiramos quando vamos passear. Em geral, o médico pertence efetivamente ou não pertence de todo à psicanálise. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933) A psicanálise parece ser a terceira dessas profissões «impossíveis», em que antecipadamente podemos ter a certeza de falhar, sendo as outras duas, conhecidas há muito mais tempo, a arte de educar os homens e a arte de governar. Análise Terminada e Análise Interminável (1937) A análise é como uma mulher que deseja ser conquistada, mas que sabe que será tida em pouca estima se não opuser alguma resistência. Correspondência (1938)
PUDOR
O pudor, virtude que passa por ser especificamente feminina e que é, na realidade, muito mais convencional do que poderia julgar-se, teve por fim primitivo, pensamos nós, dissimular o caráter defeituoso dos órgãos genitais femininos. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933)
RAZÃO Porque nos priva de múltiplas possibilidades de prazer, a razão torna-se uma inimiga a cujo jugo nos arrancamos com alegria, pelo menos temporariamente, abandonando-nos às seduções da desrazão. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933)
RECONHECIMENTO Cheguei à conclusão de que poderia gastar a maior parte da minha vida à espera de reconhecimento, e que entretanto ninguém levantaria um dedo em meu nome. Correspondência (1902) Eu trocaria de bom grado cinco elogios relativos ao meu trabalho por um caso decente de tratamento médico contínuo. Correspondência (1902)
RELAÇÕES HUMANAS Penso que foi uma grande infelicidade para mim a natureza não me ter dado esse não-sei-quê que atrai as pessoas. Quando penso no meu passado, não me faltou muita coisa mais para poder ver tudo cor-de-rosa na minha vida. Precisei de muito tempo para fazer amigos, fui obrigado a lutar longamente para conquistar a minha bem-amada e, sempre que conheço alguém, observo desde o início no recém-chegado uma tendência que ele próprio não procura analisar minimamente e que o leva a subestimar-me. Correspondência (1886)
As provas da psicanálise demonstram que quase toda a relação emocional íntima entre duas pessoas que perdura por certo tempo – casamento, amizade, as relações entre pais e filhos – contém um sedimento de sentimentos de aversão e hostilidade, o qual só escapa à perceção em consequência da repressão. Isso acha-se menos disfarçado nas altercações comuns entre sócios comerciais ou nos resmungos de um subordinado em relação ao seu superior. A mesma coisa acontece quando os homens se reúnem em unidades maiores. Psicologia Coletiva e Análise do Eu (1921)
RELIGIÃO Ocorreu-me que a razão última da necessidade de religião é o «desamparo» infantil, muito maior no homem do que nos animais. A partir dessa situação inicial, o homem deixa de poder representar-se no mundo sem pais, e outorga-se um Deus justo e uma natureza boa, as duas piores falsificações antropomórficas da imagem do universo de que poderia tornar-se culpado. Correspondência (1910) A religiosidade encontra-se biologicamente relacionada com o prolongado despojamento e a contínua necessidade de proteção do ser humano durante a infância; quando, mais tarde, o adulto reconhece o seu abandono real e a sua fraqueza perante as grandes forças da vida, reencontra-se numa situação semelhante à da infância e procura então desmentir essa situação sem esperança, ressuscitando, pela via da regressão, as potências que o protegiam em pequeno. Um Souvenir da Infância dentro da «Ficção e Verdade» de Goethe (1917) A infelicidade humana permanece e com ela a nostalgia do pai e dos deuses. Os deuses conservam a sua tripla tarefa a realizar: exorcizar as forças da natureza, reconciliar-nos com a crueldade do destino, tal como se manifesta em particular na morte, e compensar-nos dos sofrimentos e das privações que a vida em comum dos homens civilizados impõe aos indivíduos. O Futuro de Uma Ilusão (1927) Quando se trata de religião, os homens tornam-se culpados de todas as espécies de falta de sinceridade e de baixeza intelectual. O Futuro de Uma Ilusão (1927)
É publicamente notório que os padres só conseguiram manter a sujeição das massas à religião à custa de grandes concessões aos instintos dos homens. E por aí as coisas foram ficando; só Deus é forte e bom, o homem é fraco e pecador. Desde sempre que a imoralidade encontra tanto apoio na religião como a moralidade. O Futuro de Uma Ilusão (1927) O efeito das consolações que a religião traz ao homem pode ser colocado em paralelo com o dos narcóticos: o que se passa atualmente na América ilustra-o muito vivamente. Aí querem privar os seres humanos – evidentemente sob a influência do reinado das mulheres – de todos os excitantes, de todas as bebidas inebriantes e, em troca, abarrotam-nos de piedade. Trata-se de mais uma experiência cujo resultado não nos pode deixar dúvidas. O Futuro de Uma Ilusão (1927) É duvidoso que os homens tenham sido em geral mais felizes na época em que as doutrinas religiosas dispunham de uma influência irrestrita; mais morais certamente não foram. Sempre souberam como externalizar os preceitos da religião e anular assim as suas intenções. O Futuro de Uma Ilusão (1927) Transformar seres humanos em deuses e o mundo num paraíso nunca seria um objetivo meu. Isso soa muito a um vieux jeu, nem será viável. Nós, seres humanos, estamos enraizados na nossa natureza animal e nunca nos podemos tornar sequer parecidos com deuses. A Terra é um pequeno planeta, inadequado para se tornar um paraíso. Não podemos prometer àqueles que queiram seguir as nossas ideias (psicanálise) alguma compensação relativamente ao que irão abandonar (a crença na religião). Correspondência (1928) Uma palavra ainda: não sou cético. Tenho a certeza absoluta de uma coisa, a de que existem, sem dúvida, certos factos que atualmente não podemos conhecer. Correspondência (1930) Não nos devemos enganar, se concluirmos que a ideia de atribuir um objetivo à vida existe apenas em função do sistema religioso. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) Fixando à força os seus adeptos a um infantilismo psíquico e fazendo-os partilhar
de um delírio coletivo, a religião consegue poupar a numerosos seres humanos uma neurose individual, mas pouco mais do que isso faz. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) A religião, quando tentamos determinar o seu lugar na história da evolução humana, não nos surge como uma aquisição duradoura, mas como a vertente da neurose pela qual o homem tem inevitavelmente de passar ao longo do caminho que o conduz da infância à maturidade. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933) A religião é um poder imenso que tem ao seu serviço as mais fortes emoções dos seres humanos. Sabe-se muito bem que, em períodos anteriores, abrangia tudo o que desempenhava um papel intelectual na vida do homem, que assumia o lugar da ciência ali onde mal havia algo semelhante à ciência, que ela construía uma sabedoria de vida coerente e autossuficiente num grau sem paralelo e que, embora profundamente abalada, persiste na atualidade. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933)
RENÚNCIA Para dizer a verdade, não sabemos renunciar a coisa alguma, mas apenas trocar uma coisa por outra. Ensaios de Psicanálise Aplicada (1908)
RISO O riso é o produto de um processo automático tornado possível apenas pelo descarte da nossa atenção consciente. Os Chistes e a Sua Relação com o Inconsciente (1905)
SAÚDE Se está interessado na minha saúde pessoal, encontro-me muito bem e ainda completamente inapto para o trabalho intelectual, incapaz de um só pensamento. O
bem-estar corporal e a atividade intelectual, de resto, em mim são sempre divergentes. Correspondência (1910) O vazio de uma existência consagrada a cuidar de um ventre entupido torna-se insuportável. Correspondência (1911)
SEXO A necessidade sexual é impotente para unir os homens, à semelhança do que, pelo contrário, acontece com as exigências da conversa; a satisfação sexual é, antes do mais, um assunto privado, individual. Totem e Tabu (1912-1913) É incontestável que o amor sexual desempenha na vida um papel imenso e que a conjunção, nas alegrias do amor, de satisfações físicas e psíquicas constitui um dos pontos culminantes desta fruição. À exceção de alguns loucos fanáticos, todos os seres humanos o sabem e conformam a sua vida a esta ideia. Só a ciência sente ainda escrúpulos em o confessar. A Técnica Psicanalítica (1914) A moralidade sexual, tal como a sociedade – e sobretudo a sociedade americana [puritana] – a definiu, parece-me extremamente desprezível. Sou partidário de uma vida sexual muito mais livre, embora pela minha parte só muito pouco tenha usado de semelhante liberdade; só a aproveitei na medida em que estava certo do que me era permitido nesse domínio. Correspondência (1915) A vida sexual do homem civilizado é gravemente deficiente, digamos o que dissermos; dá por vezes a impressão de ser uma função num processo de atrofiamento, semelhante ao que parecem estar passar órgãos como os dentes e o cabelo. Estamos provavelmente certos em supor que a importância da sexualidade como fonte de sensações de prazer, isto é, como processo para cumprir os objetivos da vida, decresceu visivelmente. Por vezes, imaginamos, percebemos, que não é só a opressão da cultura, mas a natureza da própria função, que nos nega o prazer completo e nos empurra noutras direções.
A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
SIGILO É muito mais fácil divulgar os segredos mais íntimos do paciente do que os factos mais inocentes e triviais a respeito dele: enquanto os primeiros não esclarecem a sua identidade, os outros, pelos quais ele é geralmente reconhecido, torná-la-iam óbvia a qualquer um. Notas sobre Um Caso de Neurose Obsessiva (1909)
SIMPATIA Os tempos actuais tornaram-nos tão tímidos e desconfiados que já ninguém pode tomar a simpatia dos outros como garantida. Por isso, a aprecio cada vez mais. Correspondência (1923)
SOCIEDADE A justiça social significa que nos recusamos muitas coisas, a fim de que também os outros, por sua vez, renunciem a elas ou, o que vem a dar no mesmo, não possam exigi-las. Psicologia Coletiva e Análise do Eu (1921) As duas bases da cultura humana são o domínio das forças naturais e a repressão dos nossos instintos. O trono da soberania é sustentado por escravos presos por correntes: de entre todos estes elementos instintivos domesticados, os impulsos sexuais, no sentido estrito, dominam pela sua força e violência. Tirem-se-lhes as cadeias, e o trono cairá, a soberana será espezinhada. A sociedade, porque o sabe, não quer que se fale disso. Resistências à Psicanálise (1925) A sociedade sustenta uma condição de «hipocrisia cultural», fadada a ser acompanhada de um sentimento de insegurança e de uma necessidade de preservar aquilo que é uma situação inegavelmente precária, proibindo a crítica e a
discussão. Essa linha de pensamento aplica-se a todos os impulsos instintivos, incluindo, portanto, os egoístas. Resistências à Psicanálise (1925) A psicanálise revelou as fragilidades desse sistema (da sociedade) e recomendou que ele fosse alterado. Propôs uma redução no rigor com que os instintos são reprimidos, e que correspondentemente se desse maior desempenho à veracidade. Uma quantidade maior de satisfação deveria ser facultada a certos impulsos instintivos em cuja supressão a sociedade excedeu um tanto; no caso de alguns outros, o método ineficiente de suprimi-los mediante a repressão deveria ser substituído por algum procedimento melhor e mais seguro. Resistências à Psicanálise (1925) É sempre possível formar uma massa cada vez maior de homens ligados uns aos outros pelos elos do amor, sob a condição única de ficarem alguns de fora para sofrerem os seus golpes. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) Chegamos quase a ter a impressão de que a criação de uma grande comunidade humana seria mais bem-sucedida, se não tivéssemos de nos preocupar com a felicidade do indivíduo. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) Como um planeta gira em torno do seu eixo ao mesmo tempo que evolui à volta do astro central, também o homem isolado participa no desenvolvimento da humanidade enquanto segue o caminho próprio da sua vida. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
SONHO O sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (suprimido ou recalcado). A Interpretação dos Sonhos (1900) Os sonhos nunca dizem respeito a trivialidades: não permitimos que o nosso sono seja perturbado por tolices. Os sonhos aparentemente inocentes revelam ser justamente o inverso quando nos damos ao trabalho de analisá-los. São, se é que posso dizê-lo, lobos na pele do cordeiro.
A Interpretação dos Sonhos (1900)
O sonho parece ser uma reação a tudo o que está simultaneamente presente na mente adormecida como material correntemente ativo. A Interpretação dos Sonhos (1900) Todos os sonhos são inteiramente egoístas: o ego amado aparece em todos eles, muito embora possa estar disfarçado. Os desejos que neles se realizam são invariavelmente desejos do ego, e, quando um sonho parece ter sido provocado por um interesse altruísta, estamos apenas a ser enganados pelas aparências. A Interpretação dos Sonhos (1900) A antiga crença de que os sonhos preveem o futuro não é inteiramente desprovida de verdade. Afinal, ao retratarem os nossos desejos como realizados, os sonhos transportam-nos para o futuro. Mas esse futuro, que o sonhador representa como presente, foi moldado pelo seu desejo indestrutível à imagem e semelhança do passado. A Interpretação dos Sonhos (1900) Os sonhos levam em conta a ligação que inegavelmente existe entre todas as partes dos pensamentos oníricos, combinando a totalidade do material numa única situação. Reproduzem o encadeamento lógico pela proximidade no tempo e no espaço, assim como um pintor representa todos os poetas num único grupo num quadro do Parnaso. Sobre os Sonhos (1901) Em homens jovens, as fantasias ambiciosas são as mais proeminentes; nas mulheres, cuja ambição se dirige ao êxito no amor, as fantasias amorosas é que o são. Também nos homens, contudo, as necessidades eróticas estão muito frequentemente presentes nos bastidores: todos os seus feitos heroicos e os seus êxitos parecem ter como único alvo a admiração e o favor das mulheres. Introdução à Psicanálise (1916-1917) Quando um sonho lida com um problema da vida concreta, soluciona-o à maneira de um desejo irracional, e não ao modo de uma reflexão razoável. Algumas Notas Adicionais sobre a Interpretação de Sonhos como Um Todo (1925) O sonho é uma confidência, mas uma confidência feita em termos impróprios.
Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933)
SONO Somaticamente, o sono é uma reativação da existência intrauterina, na medida em que atende às condições de repouso, calor e exclusão do estímulo; na realidade, durante o sono muitas pessoas retomam a posição fetal. Suplemento Metapsicológico à Teoria dos Sonhos (1916)
TALENTO As minhas capacidades ou os meus talentos são muito limitados. Zero em ciências naturais; zero em matemática; zero em tudo quanto seja quantitativo. No entanto, o pouco que possuo, e que se reduz a pouca coisa, foi provavelmente muito intenso. Correspondência (1926)
TEMPO Parece uma invenção do diabo que o sofrimento pareça fazer prolongar o tempo, e a alegria encurtá-lo. Cartas a Martha (1884)
TEORIA Não há teorias perfeitas que caiam do céu e devemos desconfiar por maioria de razão do homem que, desde o início das suas observações, nos apresente uma teoria sem lacunas e completamente acabada. Semelhante teoria só poderá ser um produto da especulação e não o fruto de um estudo, sem ideias preconcebidas, da própria realidade. Cinco Lições sobre a Psicanálise (1910) Devemos rejeitar impiedosamente as teorias que se encontram em contradição
com a mais elementar análise da observação, e isto embora sabendo que a teoria que nós próprios professamos só pode aspirar a uma exatidão provisória. Além do Princípio do Prazer (1920)
TOLERÂNCIA Com certeza que me impus sempre o princípio de ser tolerante e de me abster do exercício de qualquer autoridade, mas isso é, na realidade, uma coisa que não funciona. O mesmo acontece com os carros e os peões. Quando ando o dia inteiro de carruagem, fico irritado com a imprudência dos peões, como na véspera me irritara com a dos cocheiros. Correspondência (1911)
TRABALHO Conheces a chave da minha existência, sabes que só sou capaz de trabalhar aguilhoado por grandes esperanças e sobre temas que me apaixonem. Correspondência (1884) Todo o trabalho sistemático é incompatível com os meus dons e as minhas tendências. Todos os meus estímulos resultam das impressões que recebo em contacto com os meus doentes. Correspondência (1910) Sei de há muito que me é impossível trabalhar quando passo bem; tenho necessidade, pelo contrário, de um certo grau de mal-estar, a partir do qual me esforço, tentando desembaraçar-me dele. Correspondência (1911) A resposta à sua pergunta, a saber, como faço eu para conseguir escrever, para além de me consagrar à prática analítica, é simples: preciso de repousar da psicanálise trabalhando, sem o que não a poderia aguentar. Correspondência (1912)
VALOR Não podemos defender-nos contra a impressão de que os homens se enganam de um modo geral nas suas apreciações. Enquanto se esforçam por adquirir em benefício próprio o prazer, o êxito ou a riqueza, ou enquanto admiram essas coisas nos outros, subestimam, pelo contrário, os verdadeiros valores da vida. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) Um ser humano é mesmo muito miserável quando o seu único objetivo de vida é manter-se vivo. Cartas a Martha (1885)
VELHICE Tendo agora uma idade mais avançada, parece que estou a desenvolver uma grande quantidade de talento para desfrutar melhor a vida. Na realidade, deve ser apenas a calma que antecede a tempestade. Correspondência (1908) Foi grande a agitação destes últimos tempos, eu não sabia que quanto mais velho se é mais se tem para fazer. A ideia de uma velhice pacífica parece-me tão lendária como a de uma juventude feliz. Correspondência (1920) Se não fosse o aborrecimento de ficar talvez sem poder continuar a trabalhar, acharia que sou um homem com uma sorte invejável. Viver até tão velho, descobrir tanto afeto caloroso junto da família e dos amigos, tanta esperança de êxito, senão já o próprio êxito, num empreendimento extremamente aventuroso – quem mais terá recebido tanto? Correspondência (1926) Faz algum sentido a um homem da minha idade tentar encher mais a sua biblioteca? Só se for para a deixar aos seus herdeiros. A vida já pesa demasiado nos meus ombros, e não sinto privilégio algum de ter chegado a uma determinada idade que só alguns conseguem atingir. Continuo a trabalhar, em parte porque preciso, mas a matéria-prima já não se molda em sistemas coerentes, e deixou de se submeter a ideias que costumavam surgir do nada.
Correspondência (1928)
Das três formas de degradação de entre as quais a natureza escolhe para cada caso individual – a destruição simultânea do corpo e da alma, a ruína psíquica precoce acompanhada de um bom estado de conservação física e a sobrevivência da vida intelectual a par da fragilidade somática –, coube-me a mim esta última, talvez a mais clemente. Correspondência (1930) Só possuímos, na velhice, uma coluna arqueada que se inclina perante os factos novos quando nos mantivemos curvados ao longo da vida de modo a evitar os choques dolorosos com a realidade. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933) É verdade, recebi a carta e o poema da criação e não respondi. Porquê, no fundo? E, no entanto, a carta tinha-me agradado muito. Talvez tenha sido justamente por isso. A descrição da primavera deixou-me triste, invejoso. Há ainda tanta capacidade de fruição em mim – e por isso tanta insatisfação perante a resignação forçada. Correspondência (1935) Não espere alguma coisa inteligente da minha parte. Não sei se sou ainda capaz de fazer seja o que for – penso que não –, mas, de qualquer forma, agora não o conseguiria, de tal modo a minha saúde me absorve. Quanto a esta última, acontece visivelmente como com os livros sibilinos: quanto menos há, mais caros são. Correspondência (1935) A vida na minha idade não é fácil, mas a primavera está magnífica, e o amor é como ela. Correspondência (1936) Estamos doentes quando nos interrogamos sobre o sentido e o valor da vida, porque nem um nem outro existem objetivamente; confessamos assim simplesmente possuir uma reserva libidinal insatisfeita, a que qualquer coisa terá acontecido, levando a uma espécie de fermentação conducente à depressão e à tristeza. Estas explicações que lhe mando não são, evidentemente, famosas. Talvez eu próprio seja demasiado pessimista. Um advertisement [anúncio] saltita-me na cabeça e considero-o o mais audacioso e o mais conseguido dos
anúncios americanos: «Why live, if you can be buried for ten dollars?» Correspondência (1937) Posso responder-te imediatamente, pois não tenho quase nada para fazer. Terminei o «Moisés 2» ( Moisés e o Monoteísmo) há dois dias, e a melhor forma de esquecer males menores é trocar ideias com os meus amigos. Correspondência (1937) Novas ideias nunca ocorrem facilmente a um homem idoso; não lhe resta mais nada do que seja repetir-se a si próprio. Correspondência (1938) Nada do que eu poderia contar-lhe a meu respeito seria conforme os seus desejos. Mas atualmente tenho mais de oitenta e três anos e, por conseguinte, estou com prorrogação de prazo e não me resta de facto fazer outra coisa a não ser o que o seu poema aconselha: «Esperar, esperar.» Correspondência (1939)
VERDADE Ficamos espantados ao verificar que a inclinação para a verdade é muito mais forte do que seríamos levados a crer. Talvez se deva ver uma consequência das minhas ocupações psicanalíticas no facto de eu me ter tornado quase incapaz de mentir. Sempre que tento deformar um facto, cometo um erro ou um ato falhado que revela a minha falta de sinceridade. Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901) Sejam quais forem os sentimentos e os interesses humanos, o intelecto é, também ele, uma força. Esta não consegue prevalecer imediatamente, mas por fim os seus efeitos revelam-se ainda mais perentórios. A verdade que mais fere acaba sempre por ser notada e por se impor, assim que os interesses que lesa e as emoções que suscita tenham esgotado a sua virulência. A Técnica Psicanalítica (1910) Dizemos que quem soube, depois de lutar consigo próprio, erguer-se à altura da verdade, se encontra ao abrigo de todo o perigo de imoralidade e que pode permitir-se ter uma escala de valores morais um tanto diferente da que se pratica
na sociedade. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
Ao contrário de si, não posso contar com o amor de muita gente. Não tenho sido em geral para as pessoas uma fonte de alegria, de consolação, de edificação. Não eram essas, de modo algum as minhas intenções, queria apenas explorar, resolver problemas, descobrir uma parcela de verdade. Isto pode ter aborrecido um grande número de pessoas, ter prestado serviço a algumas outras, mas não me sinto responsável, nem para o bem nem para o mal, por nenhum destes resultados. Correspondência (1926) A verdade não pode ser tolerante, não deve admitir nem compromissos, nem restrições. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933) O vulgo não conhece senão uma verdade no sentido corrente da palavra. É-lhe impossível conceber uma outra mais alta, mais sublime. Aos seus olhos, a verdade, como acontece com a morte, não parece suscetível de elevação, e vemolo incapaz de dar o passo que separa o belo do verdadeiro. Talvez pensem, como eu, que com razão. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933) É escusado dizer, eu não gosto de ofender a minha própria gente. Mas o que posso fazer? Eu gastei toda a minha vida a lutar por aquilo que considerava ser a verdade científica, mesmo que esta mostrasse resultados desconfortáveis e desagradáveis aos meus semelhantes. Correspondência (1938)
VIDA Tal como nos é imposta, a nossa vida é de um peso excessivo, inflige-nos demasiadas dores, deceções, tarefas insolúveis. Para a suportarmos, não podemos dispensar alguns sedativos. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930) Podemos sentir-nos tentados a dizer que não entrou de maneira alguma no plano da «Criação» que o homem seja «feliz».
A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
A vida é demasiado dura para nós, implica demasiada dor, demasiadas desilusões, tarefas impossíveis. Não conseguimos vivê-la sem uns paliativos. (...) Há talvez três destes recursos: fortes distrações de interesse, que nos levam a não nos preocuparmos com a nossa miséria; satisfação substitutiva, que a atenua; e substâncias inebriantes, que nos tornam insensíveis a ela. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
VIRTUDE Enquanto a virtude não for recompensada neste mundo, a ética, estou convencido, pregará no deserto. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
Reflexões e pensamentos
ADOLESCÊNCIA A desilusão dos adolescentes Na segunda metade da infância, dá-se uma mudança na relação do menino com o pai. Do seu quarto de criança, o menino começa a vislumbrar o mundo exterior e não pode deixar de fazer descobertas que alteram a alta opinião original que tinha sobre o pai, e que apressam a rutura com o seu primeiro ideal. Descobre que o pai não é o mais poderoso, sábio e rico dos seres; fica insatisfeito com ele, aprende a criticá-lo, a avaliar o seu lugar na sociedade; e então, em regra, faz com que ele pague pesadamente pelo desapontamento que lhe causou. Tudo o que há de admirável e de indesejável na nova geração é determinado por esse desligamento do pai. Algumas Reflexões sobre a Psicologia Escolar (1914)
AMOR O amor como fator civilizador Cada vez que duas famílias se vinculam por matrimónio, cada uma delas julga-se superior ou de melhor nascimento do que a outra. De duas cidades vizinhas, cada uma é a mais ciumenta rival da outra; cada pequeno cantão encara os outros com desprezo. Raças estreitamente aparentadas mantêm-se a certa distância uma da outra: o Alemão do Sul não pode suportar o Alemão Setentrional, o Inglês lança todo tipo de calúnias sobre o Escocês, o Espanhol despreza o Português. Não ficamos mais espantados que diferenças maiores conduzam a uma repugnância quase insuperável, tal como a que o povo gaulês sente pelo Alemão, o Ariano pelo Semita. Quando essa hostilidade se dirige contra pessoas que de outra maneira são amadas, descrevemo-la como ambivalência de sentimentos e explicamos o facto, provavelmente de maneira demasiadamente racional, por meio das numerosas ocasiões para conflitos de interesse que surgem precisamente em tais relações mais próximas. Nas antipatias e aversões indisfarçadas que as pessoas sentem por estranhos com quem têm de tratar, podemos identificar a expressão do amor a si mesmo, do narcisismo. Esse amor a si mesmo trabalha para a preservação do indivíduo e comporta-se como se a ocorrência de qualquer divergência das suas próprias linhas específicas de desenvolvimento envolvesse uma crítica delas e uma exigência da sua alteração. Não sabemos porque tal sensitividade deva dirigir-se exatamente a esses pormenores de diferenciação, mas é inequívoco que, em relação a
tudo isso, os homens dão provas de uma presteza a odiar, de uma agressividade cuja fonte é desconhecida, e à qual se fica tentado a atribuir um caráter elementar. Mas quando um grupo se forma, a totalidade dessa intolerância desvanece-se, temporária ou permanentemente, dentro do grupo. Enquanto uma formação de grupo persiste ou até onde ela se estende, os indivíduos do grupo comportam-se como se fossem uniformes, toleram as peculiaridades dos seus outros membros, igualam-se-lhes e não sentem aversão por eles. Uma tal limitação do narcisismo, de acordo com nossas conceções teóricas, só pode ser produzida por um determinado fator, um laço libidinal com as outras pessoas. O amor por si mesmo só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos. Levantar-se-á imediatamente a questão de saber se a comunidade de interesses em si própria, sem qualquer adição de líbido, não deve necessariamente conduzir à tolerância das outras pessoas e à consideração para com elas. Essa objeção pode ser enfrentada pela resposta de que, não obstante, nenhuma limitação duradoura do narcisismo é efetuada dessa maneira, visto que essa tolerância não persiste por mais tempo do que o lucro imediato obtido pela colaboração de outras pessoas. Contudo, a importância prática desse debate é menor do que se poderia supor, porque a experiência demonstrou que, nos casos de colaboração, se formam regularmente laços libidinais entre os companheiros de trabalho, laços que prolongam e solidificam a relação entre eles até um ponto além do que é simplesmente lucrativo. A mesma coisa ocorre nas relações sociais dos homens, como se tornou familiar à pesquisa psicanalítica no decurso do desenvolvimento da líbido individual. A líbido liga-se à satisfação das grandes necessidades vitais e escolhe como seus primeiros objetos as pessoas que têm uma parte nesse processo. E, no desenvolvimento da humanidade como um todo, do mesmo modo que nos indivíduos, só o amor atua como fator civilizador, no sentido de ocasionar a modificação do egoísmo em altruísmo. E isso é verdade tanto quanto ao amor sexual pelas mulheres, com todas as obrigações que envolve de não causar dano às coisas que a estas são caras, quanto do amor dessexualizado e sublimado, por outros homens, que se origina do trabalho em comum. Psicologia Coletiva e a Análise do Eu (1921)
ARTE A representação dos desejos A maioria dos problemas de criação e apreciação artística espera novos estudos, que lançarão a luz do conhecimento analítico sobre eles, designando-lhes um lugar na
complexa estrutura apresentada pela compensação dos desejos humanos. A arte é uma realidade convencionalmente aceite, na qual, graças à ilusão artística, os símbolos e os substitutos são capazes de provocar emoções reais. Assim, a arte constitui um meio caminho entre uma realidade que frustra os desejos e o mundo de desejos realizados da imaginação – uma região em que, por assim dizer, os esforços de omnipotência do homem primitivo ainda se acham em pleno vigor. O Interesse Científico da Psicanálise (1913)
Sentir as obras de arte As obras de arte produzem em mim uma forte impressão, em particular as literárias e as plásticas, embora os quadros mais raramente. Fui assim levado, em certas ocasiões favoráveis, a contemplá-las longamente para as compreender à minha maneira, quer dizer, para descobrir por onde produzem elas os seus efeitos em mim. Quando não tenho a possibilidade de agir deste modo, como acontece, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de fruição. Há em mim uma disposição racionalista, ou talvez analítica, que se opõe à emoção quando não consigo saber porque estou emocionado nem o que me afeta desse modo. O Moisés de Miguel Ângelo (1914)
Psicanálise e arte As criações, obras de arte, são imaginárias satisfações de desejos inconscientes, do mesmo modo que os sonhos, e tanto como eles, são, no fundo, compromissos, dado que se veem forçadas a evitar um conflito aberto com as forças de repressão. Todavia, diferem dos conteúdos narcisistas, associais, dos sonhos, na medida em que, destinadas a despertar o interesse noutras pessoas, são capazes de evocar e satisfazer os mesmos desejos que nelas se encontram inconscientes. À parte isto, fazem uso do prazer percetivo da beleza formal, aquilo a que chamei um prémio-estímulo. Aquilo que a psicanálise foi capaz de fazer consistiu em captar as relações entre as impressões da vida do artista, as suas experiências causais e as suas obras e, a partir delas, reconstruir a sua constituição e os impulsos que se movem dentro dele. Não se deve julgar que o salaz que procura uma obra de arte se anule pelo conhecimento obtido pela análise. A este respeito é possível que o profano espere acaso demasiado da análise, mas deve advertir-se que ela não esclarece os dois problemas que são, provavelmente, os mais interessantes para ele: não clarifica quanto à natureza dos dotes do artista, nem pode explicar os meios de que este se serve para trabalhar a técnica artística. O Pensamento Vivo de Freud
ARTISTA O segredo do artista Na origem, o artista é um homem que, não podendo acomodar-se com a renúncia à satisfação pulsional que a realidade começa por exigir, se desvia desta última e dá livre curso no plano da vida fantasmática aos seus desejos eróticos e ambiciosos. Mas consegue ao mesmo tempo descobrir o caminho que reconduz desse mundo do fantasma ao da realidade: graças aos seus dons particulares, ele dá forma aos seus fantasmas para os transformar em realidades de uma outra espécie, que circulam depois entre os homens como imagens preciosíssimas da realidade. É assim que, de certo modo, o artista se torna realmente o herói, o rei, o criador, o bem-amado que queria ser, sem ter de passar pelo enorme desvio que consiste em transformar realmente o mundo exterior. Formulações Respeitantes aos Dois Princípios do Funcionamento Mental (1911)
A neurose do artista Um artista é, certamente, em princípio um introvertido, alguém não muito distante da neurose. É uma pessoa oprimida por necessidades primárias demasiado intensas. Deseja conquistar honras, poder, riqueza, fama e o amor das mulheres, mas faltam-lhe os meios de conquistar essas satisfações. Consequentemente, assim como qualquer outro homem insatisfeito, afasta-se da realidade e transfere todo o seu interesse, e também toda a sua líbido, para as construções, plenas de desejos, da sua vida de fantasia, donde o caminho pode levar à neurose. Sem dúvida, deve haver uma convergência de todos os tipos de coisas, para que tal não se torne o resultado completo da sua evolução; na verdade, sabe-se muito bem com quanta frequência os artistas, em especial, sofrem de uma inibição parcial de sua eficiência devido à neurose. A sua constituição provavelmente conta com uma intensa capacidade de sublimação e com determinado grau de frouxidão nas repressões, o que é decisivo para um conflito. Um artista encontra, porém, o caminho de retorno à realidade da maneira expressa a seguir. A dizer a verdade, ele não é o único que leva uma vida de fantasia. O acesso à região equidistante da fantasia e da realidade é permitido pelo consentimento universal da humanidade, e todo aquele que sofre privação espera obter dela alívio e consolo. Entretanto, para aqueles que não são artistas, é muito limitada a produção de prazer que se deriva das fontes da fantasia. A crueldade das suas repressões força-os a contentarem-se com esses estéreis devaneios aos quais é permitido o acesso à consciência. Um homem que é um verdadeiro artista tem mais
coisas à sua disposição. Em primeiro lugar, sabe como dar forma aos seus devaneios de modo tal que estes perdem aquilo que neles é excessivamente pessoal e que afasta as demais pessoas, possibilitando que os outros compartilhem do prazer obtido nesses devaneios. Também sabe como abrandá-los de modo a que não traiam sua origem em fontes proscritas. Ademais, possui o misterioso poder de moldar determinado material até que se torne imagem fiel da sua fantasia; e sabe, principalmente, pôr em conexão uma tão vasta produção de prazer com essa representação da sua fantasia inconsciente que, pelo menos no momento considerado, as repressões são sobrepujadas e suspensas. Se o artista é capaz de realizar tudo isso, possibilita a outras pessoas, novamente, obter consolo e alívio a partir das próprias fontes de prazer no seu inconsciente, que para elas se tornaram inacessíveis; granjeia a gratidão e a admiração delas, e, dessa forma, através da sua fantasia conseguiu o que originalmente alcançara apenas nessa fantasia – honras, poder e o amor das mulheres. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
AUTOBIOGRAFIA O valor das autobiografias Uma confissão psicologicamente completa e sincera da minha vida exigiria também – tanto da minha parte como da dos outros – tantas indiscrições sobre a minha família, os meus amigos, os meus adversários, a maior parte de toda esta gente ainda viva, que se acha absolutamente fora de questão. O que retira a todas as autobiografias o seu valor é o facto de mentirem. Digamos, entre parêntesis, que o teu editor dá provas de uma ingenuidade americana ao pensar que um homem até hoje honesto iria cumprir um ato tão desprezível por cinco mil dólares. A tentação poderia começar a partir de cem vezes o total dessa soma, mas mesmo assim eu renunciaria à proposta ao fim de meia hora de reflexão. Correspondência (1929)
AUTOCONHECIMENTO Refletir ou observar-se a si próprio Todo o estado de espírito de um homem que esteja a refletir é inteiramente
diferente do de um homem que apenas observe os seus próprios processos psíquicos. Na reflexão, coloca-se em funcionamento uma atividade psíquica a mais do que na mais atenta auto-observação, e isso é demonstrado, entre outras coisas, pelos olhares tensos e o cenho franzido da pessoa que esteja a acompanhar as suas reflexões, em contraste com a expressão repousada de um auto-observador. Em ambos os casos, a atenção deve ser concentrada, mas o homem que está a refletir exerce também a sua faculdade crítica; isso leva-o a rejeitar algumas das ideias que lhe ocorrem após percebê-las, a interromper outras abruptamente, sem seguir os fluxos de pensamento que elas lhe desvendariam, e a comportar-se de tal forma em relação a mais outras que elas nunca chegam a tornar-se conscientes e, por conseguinte, são suprimidas antes de percebidas. O auto-observador, por outro lado, só precisa de se dar ao trabalho de suprimir a sua faculdade crítica. Se tiver êxito nisso, virão à sua consciência inúmeras ideias que, de outro modo, ele jamais conseguiria captar. A Interpretação dos Sonhos (1900)
AUTORIDADE A importância da autoridade Não necessito de vos dizer muito sobre a importância da autoridade. Poucas pessoas civilizadas são capazes de existir sem confiar noutras ou, até mesmo, de vir a ter uma opinião independente. Os senhores não podem exagerar a intensidade de carência interior de decisão das pessoas e de exigência de autoridade. O aumento extraordinário das neuroses desde que decaiu o poder das religiões pode dar-lhes uma medida disso. O empobrecimento do ego devido ao grande dispêndio de energia, na repressão, exigido a cada indivíduo pela civilização pode ser uma das principais causas desse estado de coisas. As Perspetivas Futuras da Terapêutica Psicanalítica (1910)
CARÁTER Raramente um ser humano é totalmente bom ou mau Raramente um ser humano é totalmente bom ou mau; por via de regra, ele é «bom» em relação a determinada coisa e «mau» em relação a outra, ou «bom» em certas
circunstâncias externas e noutras indiscutivelmente «mau». É interessante verificar que, na primeira infância, a preexistência de fortes impulsos «maus» constitui muitas vezes a condição para uma inequívoca inclinação no sentido do «bom» no adulto. Aqueles que, enquanto crianças, foram os mais pronunciados egoístas, podem muito bem tornar-se os mais prestimosos e abnegados membros da comunidade; a maioria dos sentimentalistas, amigos da humanidade e protetores de animais, evoluíram de pequenos sádicos e atormentadores de animais. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915)
CIÊNCIA Nem sequer somos donos de nós próprios No decorrer dos séculos, a ciência infligiu ao egoísmo ingénuo da humanidade dois graves desmentidos. O primeiro, quando mostrou que a Terra, longe de ser o centro do universo, forma apenas uma parcela insignificante do sistema cósmico, cuja grandeza mal podemos imaginar. Esta primeira demonstração está ligada para nós ao nome de Copérnico, embora a ciência alexandrina já tivesse anunciado algo de semelhante. O segundo desmentido foi infligido à humanidade pela investigação biológica, quando esta reduziu a nada as pretensões do homem a um lugar privilegiado na ordem da criação, fixando a sua descendência no reino animal e provando a indestrutibilidade da sua natureza animal. Esta última revolução realizouse no nosso tempo, no seguimento dos trabalhos de Charles Darwin, de Wallace e dos seus predecessores, os quais provocaram a mais encarniçada resistência entre os seus contemporâneos. Um terceiro desmentido será infligido à megalomania humana através da investigação psicológica dos nossos dias, que se propõe demonstrar ao «eu» que este não é sequer senhor na sua própria casa, que se encontra reduzido a contentar-se com informações raras e fragmentárias do que se passa, para além da consciência, na sua vida psíquica. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
Não se deve recuar perante a novidade Em assuntos científicos não deveria haver lugar para recuar-se ante a novidade. A ciência, na sua perpétua falta de compleição e insuficiência, é impelida a esperar a sua salvação em novas descobertas e novas maneiras de olhar para as coisas. A fim de não ser enganada, ela procede bem em armar-se de ceticismo e não aceitar nada
novo, a menos que tenha sofrido o mais estrito exame. Às vezes, porém, esse ceticismo apresenta dois aspetos inesperados; ele pode dirigir-se nitidamente contra o que é novo, enquanto poupa o que é familiar e aceite, e pode contentar-se com rejeitar as coisas antes de as ter examinado. Comportando-se assim, ele, contudo, revela-se como um prolongamento da reação primitiva contra o que é novo e como um disfarce para a retenção dessa reação. É do conhecimento comum, com quanta frequência na história da pesquisa científica aconteceu, que inovações tenham defrontado com resistência intensa e obstinada, ao passo que eventos subsequentes demonstraram que a resistência era injustificada, e a novidade, valiosa e importante. O que provocou a resistência foram, via de regra, certos fatores no assunto geral da novidade, ao mesmo tempo que, por outro lado, diversos fatores devem ter-se combinado para tornar possível a irrupção da reação primitiva. Uma receção particularmente desfavorável foi concedida à psicanálise. Resistências à Psicanálise (1925)
CIVILIZAÇÃO O compromisso da civilização A civilização foi alcançada através da renúncia à satisfação instintiva, exigindo ela, por sua vez, a mesma renúncia de cada recém-chegado. No decorrer da vida de um indivíduo, há uma substituição constante da compulsão externa pela interna. (...) Os que nascem hoje trazem comigo, como organização herdada, certo grau de tendência para a transformação dos instintos egoístas em sociais, sendo essa disposição facilmente estimulada a provocar esse resultado. Outra parte dessa transformação instintiva tem de ser realizada durante a vida do próprio indivíduo. Assim, o ser humano está sujeito não só à pressão de seu ambiente cultural imediato, mas também à influência da história cultural dos seus ancestrais. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915)
A avaliação de uma civilização Quando já se viveu por muito tempo numa civilização específica e com frequência se tentou descobrir quais foram as suas origens e ao longo de que caminho ela se desenvolveu, fica-se às vezes tentado a voltar o olhar para outra direção e indagar qual o destino que a espera e quais as transformações que está fadada a experimentar. Logo, porém, se descobre que, desde o início, o valor de uma indagação desse tipo é
diminuído por diversos fatores, sobretudo pelo facto de apenas poucas pessoas poderem abranger a atividade humana em toda a sua amplitude. A maioria das pessoas foi obrigada a restringir-se a somente um ou a alguns dos seus campos. Entretanto, quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do presente, mais inseguro terá de mostrar-se o seu juízo sobre o futuro. E há ainda uma outra dificuldade: a de que precisamente num juízo desse tipo as expectativas subjetivas do indivíduo desempenham um papel difícil de avaliar, mostrando ser dependentes de fatores puramente pessoais da sua própria experiência, do maior ou menor otimismo da sua atitude para com a vida, tal como lhe foi ditada pelo seu temperamento ou pelo seu sucesso ou fracasso. Finalmente, faz-se sentir o facto curioso de que, em geral, as pessoas experimentam o seu presente de forma ingénua, por assim dizer, sem serem capazes de fazer uma estimativa sobre o seu conteúdo; têm primeiro de se colocar a uma certa distância dele: isto é, o presente precisa de se tornar o passado para que possa produzir pontos de observação a partir dos quais elas julguem o futuro. O Futuro de Uma Ilusão (1927)
Civilização racional O nosso conhecimento do valor histórico de certas doutrinas religiosas aumenta o nosso respeito por elas, mas não invalida a nossa posição, segundo a qual devem deixar de ser apresentadas como os motivos para os preceitos da civilização. Pelo contrário! Esses resíduos históricos auxiliaram-nos a encarar os ensinamentos religiosos como relíquias neuróticas, por assim dizer, e agora podemos arguir que provavelmente chegou a hora, tal como acontece num tratamento analítico, de substituir os efeitos da repressão pelos resultados da operação racional do intelecto. Podemos prever, mas dificilmente lamentar, que tal processo de remodelação não se deterá na renúncia à transfiguração solene dos preceitos culturais, mas que a sua revisão geral resultará em que muitos deles sejam eliminados. Desse modo, a nossa tarefa de reconciliar os homens com a civilização estará, até um grande ponto, realizada. Não precisamos de deplorar a renúncia à verdade histórica quando apresentamos fundamentos racionais para os preceitos da civilização. As verdades contidas nas doutrinas religiosas são, afinal de contas, tão deformadas e sistematicamente disfarçadas, que a massa da humanidade não pode identificá-las como verdade. O caso é semelhante ao que acontece quando dizemos a uma criança que os recém-nascidos são trazidos pela cegonha. Aqui, também estamos a contar a verdade sob uma roupagem simbólica, pois sabemos o que essa ave significa. A criança, porém, não sabe. Escuta apenas a parte deformada do que dizemos e sente que foi enganada; sabemos com que frequência a sua desconfiança em relação aos adultos e a sua rebeldia têm realmente começo nessa impressão.
Tornamo-nos convencidos de que é melhor evitar esses disfarces simbólicos da verdade no que contamos às crianças, e não afastar delas um conhecimento do verdadeiro estado de coisas, comensurado a seu nível intelectual. O Futuro de Uma Ilusão (1927)
É indispensável o controlo das massas por uma minoria É tão impossível passar sem o controlo das massas por uma minoria, quanto dispensar a coerção no trabalho da civilização, já que aquelas são preguiçosas e pouco inteligentes; não têm amor à renúncia instintual e não podem ser convencidas pelo argumento de sua inevitabilidade; os indivíduos que as compõem apoiam-se uns aos outros em dar rédea livre a sua indisciplina. Só através da influência de indivíduos que possam fornecer um exemplo e a quem reconheçam como líderes, as massas podem ser induzidas a efetuar o trabalho e a suportar as renúncias de que a existência depende. Tudo correrá bem se esses líderes forem pessoas com uma compreensão interna superior das necessidades da vida, e que se tenham erguido à altura de dominar os seus próprios desejos instintuais. Há, porém, o perigo de que, a fim de não perderem a sua influência, possam ceder à massa mais do que esta a eles; por conseguinte, parece necessário que sejam independentes dela pela posse dos meios de poder à sua disposição. Expressando-o de modo sucinto, existem duas características humanas muito difundidas, responsáveis pelo facto de os regulamentos da civilização só poderem ser mantidos através de certo grau de coerção, a saber, que os homens não são espontaneamente amantes do trabalho e que os argumentos não têm valia alguma contra as suas paixões. Conheço as objeções que serão levantadas contra essas afirmações. Dir-se-á que a característica das massas humanas aqui retratada, a qual se supõe provar que a coerção não pode ser dispensada no trabalho da civilização, constitui, ela própria, apenas o resultado de defeitos nos regulamentos culturais, falhas devido às quais os homens se tornaram amargurados, vingativos e inacessíveis. Gerações novas, que forem educadas com bondade, ensinadas a ter uma opinião elevada da razão, e que experimentem os benefícios da civilização numa idade precoce, terão atitude diferente para com ela. Senti-la-ão como posse sua e estarão prontas, em seu benefício, a efetuar os sacrifícios referentes ao trabalho e à satisfação instintual que forem necessários para a sua preservação. Estarão aptas a fazê-lo sem coerção e pouco diferirão dos seus líderes. Se até agora nenhuma cultura produziu massas humanas de tal qualidade, isso deve-se ao facto de cultura alguma haver ainda imaginado regulamentos que assim influenciem os homens, particularmente a partir da infância. O Futuro de Uma Ilusão (1927)
Civilização e religião condicionam-se uma à outra Quando a civilização formulou o mandamento de que o homem não deve matar o próximo a quem odeia, que se acha no seu caminho ou cuja propriedade cobiça, isso foi claramente efetuado no interesse comunal do homem, que, de outro modo, não seria praticável, pois o assassino atrairia para si a vingança dos parentes do morto e a inveja de outros, que, dentro de si mesmos, se sentem tão inclinados quanto ele a tais atos de violência. Assim, não desfrutaria da sua vingança ou do seu roubo por muito tempo, mas teria toda a possibilidade de ele próprio em breve ser morto. Mesmo que se protegesse contra os seus inimigos isolados através de uma força ou cautela extraordinárias, estaria fadado a sucumbir a uma combinação de homens mais fracos. Se uma combinação desse tipo não se efetuasse, o homicídio continuaria a ser praticado de modo infindável e o resultado final seria que os homens se exterminariam mutuamente. Chegaríamos, entre os indivíduos, ao mesmo estado de coisas que ainda persiste entre famílias na Córsega, embora, noutros lugares, apenas entre nações. A insegurança da vida, que constitui um perigo igual para todos, une hoje os homens numa sociedade que proíbe ao indivíduo matar, e reserva para si o direito à morte comunal de quem quer que viole a proibição. Aqui, então, temos justiça e castigo. Contudo, não damos publicidade a essa explicação racional da proibição do homicídio. Asseveramos que ela foi emitida por Deus. Assim, assumimos a responsabilidade de adivinhar as Suas intenções e descobrimos que Ele também não gosta de que os homens se exterminem uns aos outros. Comportando-nos dessa maneira, revestimos a proibição cultural de uma solenidade muito especial, mas, ao mesmo tempo, arriscamo-nos a tornar a sua observância dependente da crença em Deus. Se voltarmos atrás, ou seja, se não mais atribuirmos a Deus o que é a nossa própria vontade, e nos contentarmos em fornecer a razão social, então, é verdade, teremos renunciado à transfiguração da proibição cultural, mas também evitado o seu risco. Contudo, ganhamos algo mais. Através de certo tipo de difusão ou infeção, o caráter de santidade e inviolabilidade – de pertencer a outro mundo, poderia dizer-se – espalhou-se de certas poucas proibições de vulto para todas as outras regulamentações, leis e ordenações culturais. Nestas, entretanto, a auréola com frequência não parece cair bem; não apenas se invalidam umas às outras por fornecerem decisões contrárias em épocas e lugares diferentes, como também, à parte isso, apresentam todos os sinais de inadequação humana. É fácil identificar nelas coisas que só podem ser produto de uma compreensão míope, de uma expressão de interesses egoisticamente restritos, ou de uma conclusão baseada em premissas insuficientes. A crítica que não podemos deixar de lhes dirigir também diminui a um
grau muito pouco favorável o nosso respeito por outras exigências culturais mais justificáveis. Visto ser tarefa difícil isolar aquilo que o próprio Deus exigiu daquilo que pode ter a sua origem remontada à autoridade de um parlamento todo-poderoso ou de um alto magistrado, constituiria vantagem indubitável que abandonássemos Deus inteiramente e admitíssemos com honestidade a origem puramente humana de todas as regulamentações e preceitos da civilização. Junto com sua pretensa santidade, esses mandamentos e leis perderiam também a sua rigidez e imutabilidade. As pessoas compreenderiam que são elaborados não tanto para dominá-las, mas, pelo contrário, para servir os seus interesses, e adotariam uma atitude mais amistosa para com eles e, em vez de visarem à sua abolição, procurariam unicamente a sua melhoria. Isso constituiria um importante avanço no caminho que leva à reconciliação com o fardo da civilização. O Futuro de Uma Ilusão (1927)
CONVÍVIO A psicologia de grupo O indivíduo num grupo está sujeito, através da influência deste, ao que com frequência constitui uma profunda alteração na sua atividade mental. A sua submissão à emoção torna-se extraordinariamente intensificada, enquanto a sua capacidade intelectual é acentuadamente reduzida, com ambos os processos evidentemente dirigindo-se para uma aproximação com os outros indivíduos do grupo; e esse resultado só pode ser alcançado pela remoção daquelas inibições aos instintos que são peculiares a cada indivíduo, e pela resignação deste àquelas expressões de inclinações que são especialmente suas. Aprendemos que essas consequências, amiúde importunas, são, até certo ponto, pelo menos, evitadas por uma «organização» superior do grupo, mas isto não contradiz o facto fundamental da psicologia de grupo: as duas teses relativas à intensificação das emoções e à inibição do intelecto nos grupos primitivos. Psicologia Coletiva e a Análise do Eu (1921)
CRENÇA A necessidade da crença em Deus
A mesma pessoa, à qual a criança deveu a sua existência, o pai (ou, mais corretamente, sem dúvida, a instância parental composta pelo pai e a mãe), também protegeu e cuidou dela na sua debilidade e desamparo, exposta como estava a todos os perigos que a esperavam no mundo externo; sob a proteção do pai, a criança sentiu-se segura. Quando um ser humano se torna adulto, ele sabe, na verdade, que possui uma força maior, mas a sua compreensão interna ( insight ) dos perigos da vida também se tornou maior, e com razão conclui que fundamentalmente ainda permanece tão desamparado e desprotegido como era na infância; ele sabe que, na sua confrontação com o mundo, ainda é uma criança. Mesmo agora, portanto, não pode prescindir da proteção que usufruía na infância. Também reconheceu, desde então, que o seu pai é um ser que possui um poder muito limitado e não está dotado de todas as virtudes. Por esse motivo, retorna à imagem mnêmica do pai, a quem, na infância, tanto supervalorizava. Exalta a imagem transformando-a em divindade, e torna-a contemporânea e real. A força afetiva dessa imagem mnêmica e a persistência da sua necessidade de proteção conjuntamente sustentam a sua crença em Deus. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933)
DEFESA Os medos dos adultos O ego do adulto, com a sua força aumentada, continua a defender-se dos perigos que, na realidade, não existem mais; na verdade, vê-se compelido a buscar as situações que possam servir como substituto aproximado ao perigo original, de modo a poder justificar, em relação àquelas, o facto de manter as suas modalidades habituais de reação. Assim, podemos facilmente entender como os mecanismos defensivos, por ocasionarem uma alienação cada vez mais ampla quanto ao mundo exterior e um permanente enfraquecimento do ego, preparam o caminho para o desencadeamento da neurose e o incentivam. Análise Terminada e Análise Interminável (1937)
EDUCAÇÃO A supressão dos instintos
Até agora, a educação só estabeleceu para si a tarefa de controlar, ou, seria muitas vezes mais próprio dizer-se, de suprimir, os instintos. Os resultados não têm sido, de modo algum, gratificantes, e onde o processo foi bem-sucedido foi somente para o benefício de um pequeno número de indivíduos favorecidos, a quem não se exigiu que suprimissem os seus instintos. Ninguém também inquiriu por que meios e a que custo a supressão dos instintos inconvenientes foi conseguida. Suponha-se agora que substituímos outra tarefa por essa e que visamos, em vez disso, fazer o indivíduo capaz de se tornar um membro civilizado e útil à sociedade com o mínimo de sacrifício possível da sua própria atividade; nesse caso a informação obtida pela psicanálise sobre a origem dos complexos patogénicos e sobre o núcleo de qualquer afeção nervosa pode reclamar, com justiça, que merece ser encarada por educadores como um guia inestimável na sua conduta em relação às crianças. Que conclusões práticas podem resultar disso e até que ponto a experiência justificará a aplicação dessas conclusões no nosso sistema social atual, são assuntos que deixo para o exame e a decisão de outros. O Pequeno Hans (1909)
EGO O princípio da realidade O ego descobre que lhe é inevitável renunciar à satisfação imediata, adiar a obtenção de prazer, suportar um pequeno desprazer e abandonar inteiramente determinadas fontes de prazer. Um ego educado dessa maneira tornou-se «racional», não se deixa governar pelo «princípio do prazer», mas obedece ao «princípio da realidade» que, no fundo, também busca obter prazer, mas daquele que se assegura levando em conta essa realidade, ainda que seja adiado ou diminuído. A transição do «princípio do prazer» para o «princípio da realidade» é um dos mais importantes passos na direção do desenvolvimento do ego. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
ESPETADOR A importância dos espetáculos
Ser espetador participante do jogo dramático (assistindo a uma peça de teatro, por exemplo) significa, para o adulto, o que representa o brincar para a criança, que assim gratifica as suas expectativas hesitantes de se igualar aos adultos. O espetador vivencia muito pouco, sentindo-se como «um pobre coitado a quem não acontece nada»; já há algum tempo que amorteceu o seu orgulho, que situava o seu eu no centro da fábrica do universo, ou, melhor dizendo, viu-se obrigado a deslocá-lo: anseia por sentir, agir e criar tudo a seu bel-prazer – em suma, por ser um herói. E o autor-ator do drama possibilita-lhe isso, permitindo-lhe a identificação com um herói. Ao fazêlo, poupa-o também de algo, pois o espetador sabe que essa promoção da sua pessoa ao heroísmo seria impossível sem dores, sofrimentos e graves tribulações, que quase anulariam o gozo. Ele sabe perfeitamente que tem apenas uma vida, e que poderia perdê-la num único desses combates contra a adversidade. Por conseguinte, o seu gozo tem por premissa a ilusão, ou seja, o seu sofrimento é mitigado pela certeza de que, em primeiro lugar, é um outro que está ali a atuar e a sofrer no palco, e, em segundo, trata-se apenas de um jogo teatral, que não ameaça a sua segurança pessoal com qualquer perigo. Nessas circunstâncias, ele pode deleitar-se como um «grande homem», entregar-se sem temor aos seus impulsos sufocados, como a ânsia de liberdade nos âmbitos religioso, político, social e sexual, e desabafar em todos os sentidos em cada uma das cenas grandiosas da vida representadas no palco. Mas essas precondições de gozo são comuns a diversas outras formas de criação literária. A poesia lírica presta-se sobretudo a dar vazão a uma sensibilidade intensa e variada, como acontece também com a dança; a poesia épica visa principalmente a possibilitar o gozo do grande personagem heroico no seu momento de triunfo, enquanto o drama explora a fundo as possibilidades afetivas, modela em gozo até os próprios presságios de infortúnio e, por isso, retrata o herói derrotado na sua luta, com uma satisfação quase masoquista. Poderia caracterizar-se o drama por essa relação com o sofrimento e o infortúnio, quer apenas a inquietação seja despertada e depois aplacada, como na comédia, quer o sofrimento realmente se concretize, como na tragédia. Personagens Psicopáticos no Palco (1905)
ESQUECIMENTO O que contribui para o esquecimento Supomos que o esquecimento é um processo espontâneo ao qual se pode atribuir o requisito de um certo decurso de tempo. Enfatizamos que no esquecimento se produz
uma certa seleção entre as impressões que nos são oferecidas, o mesmo acontecendo entre os detalhes da cada impressão ou experiência. Conhecemos algumas das condições para a preservação na memória e para a renovação daquilo que, de outro modo, seria esquecido. Não obstante, em inúmeras ocasiões da vida quotidiana podemos observar quão incompleto e insatisfatório é o nosso conhecimento dessas condições. Basta ouvir duas pessoas que tenham recebido as mesmas impressões externas – que tenham feito uma viagem juntas, por exemplo – trocando lembranças algum tempo depois. O que permanece firme na memória de uma delas frequentemente foi esquecido pela outra, como se nunca tivesse acontecido; e isso sucede mesmo quando não há razão para supor que a impressão tenha sido psiquicamente mais significativa para uma do que para a outra. É óbvio que um grande número dos fatores que determinam a escolha daquilo que será lembrado ainda escapa ao nosso entendimento. Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901)
Esquecimento conveniente O esquecimento no tocante às intenções não pode ter a pretensão de ser considerado um fenómeno elementar irredutível, mas autoriza a conclusão de que existem motivos inconfessados. Refiro-me, por exemplo, às relações amorosas e à disciplina militar. Um amante que falta a um encontro sabe que é inútil desculpar-se dizendo à sua amada que, infelizmente, esqueceu-o por completo. Ela não deixará de responder: «Há um ano não te terias esquecido. É que já não te importas comigo.» Mesmo que ele se agarrasse à explicação psicológica e quisesse desculpar-se do seu esquecimento, alegando uma acumulação de trabalho, só conseguiria fazer com que a amada – já agora tão perspicaz quanto o médico na psicanálise – lhe respondesse: «Curioso, essas perturbações do trabalho nunca apareceram antes!» É claro que a amada não pretende negar a possibilidade do esquecimento, ela apenas acredita, e não sem justificação, que se pode tirar praticamente a mesma conclusão – a existência de uma certa relutância – do esquecimento involuntário e do pretexto consciente. Similarmente, na situação do serviço militar, despreza-se, por uma questão de princípio e com pleno direito, a diferença entre o descumprimento de ordens por esquecimento e aquele que é deliberado. Um soldado não deve esquecer aquilo que lhe ordena o serviço militar. Quando de facto esquece, apesar de conhecer a ordem, é porque outros motivos, contrários aos que o levam a cumprir a ordem militar, se opõem a estes. Um voluntário por um ano que, diante de uma inspeção, tente dar a desculpa de que se esqueceu de polir os seus botões, com certeza será punido. Mas essa punição é insignificante em comparação com aquela a que ele se exporia se admitisse para si mesmo e para os seus superiores o motivo de sua omissão: «Estou
enojado desse trabalho deplorável de limpeza.» Para se poupar a esse castigo – por questões de economia, por assim dizer –, ele serve-se do esquecimento como desculpa. Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901)
Esquecimento por menosprezo Há pessoas que todos sabem ser geralmente distraídas e que por isso são desculpadas, tal como acontece com o míope que não nos cumprimenta na rua. Essas pessoas esquecem todas as suas pequenas promessas e não executam qualquer das incumbências recebidas. Assim, mostram-se indignas de confiança nas pequenas coisas e exigem que não levemos a mal essas falhas insignificantes – ou seja, que não as expliquemos pelo seu caráter, mas que as atribuamos a alguma particularidade orgânica. Eu mesmo não sou uma dessas pessoas, e não tive oportunidade de analisar as ações de uma delas, de tal modo que, examinando a escolha dos esquecimentos, pudesse descobrir a sua motivação. Entretanto, não posso deixar de presumir, por analogia, que o motivo aqui é um grau incomumente grande de menosprezo inconfessado pelas outras pessoas, que explora o fator constitucional para os seus próprios fins. Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901)
Não há esquecimento que não se repita Existe um provérbio que revela o conhecimento popular de que o esquecimento das intenções não é casual: «Quando se esquece de fazer uma coisa uma vez, ainda se há de esquecê-la muitas mais.» De facto, às vezes não podemos furtar-nos à impressão de que tudo o que se pode dizer sobre o esquecimento e os atos falhados já é conhecido de todos como algo evidente. É mesmo de admirar que, ainda assim, seja necessário apresentar à sua consciência coisas tão conhecidas. Quantas vezes ouvi dizerem: «Não me peça que faça isto, tenho a certeza de que me vou esquecer!» A realização dessa profecia, portanto, decerto nada tem de místico: quem assim fala sente em si a intenção de não executar o pedido e apenas se recusa a confessá-lo a si mesmo. Além disso, o esquecimento das intenções é muito bem ilustrado pelo que se pode chamar de «formação de falsas intenções». Certa vez prometi a um jovem autor que escreveria uma resenha sobre a sua pequena obra; entretanto, por causa de resistências internas que não me eram desconhecidas, fui adiando isso, até que um dia cedi à insistência dele e prometi fazê-lo naquela mesma noite. Eu tinha realmente a firme intenção de fazê-lo, mas esqueci-me de que tinha reservado a noite para preparar um parecer inadiável. Depois de haver assim percebido que a minha
intenção era falsa, desisti da luta contra as minhas resistências e recusei o pedido do autor. Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901)
FANTASIA Todo o desejo tende a afigurar-se na sua própria realização Todo o desejo tende, em pouco tempo, a afigurar-se na sua própria realização; não há dúvida de que ficar a devanear sobre imaginárias realizações de desejos traz satisfação, embora não interfira com o conhecimento de que se trata de algo não-real. Desse modo, na atividade da fantasia, os seres humanos continuam a gozar da sensação de serem livres da compulsão externa, à qual, na realidade, há muito tempo renunciaram. Idearam uma forma de alternar entre permanecer um animal que busca o prazer e ser, igualmente, uma criatura dotada de razão. Na verdade, os homens não podem subsistir com a escassa satisfação que podem obter da realidade. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
FELICIDADE Diferentes caminhos para uma felicidade sempre insuficiente O objetivo para o qual o princípio do prazer nos impele – o de nos tornarmos felizes – não é atingível; contudo, não podemos – ou melhor, não temos o direito – de desistir do esforço da sua realização de uma maneira ou de outra. Caminhos muito diferentes podem ser seguidos para isso; alguns dedicam-se ao aspeto positivo do objetivo, atingir o prazer; outros o negativo, evitar a dor. Por nenhum destes caminhos conseguimos alcançar tudo o que desejamos. Naquele sentido modificado em que vimos que era atingível, a felicidade é um problema de gestão da líbido em cada indivíduo. Não há uma receita soberana nesta matéria que sirva para todos; cada um deve descobrir por si qual o método através do qual poderá alcançar a felicidade. Toda a espécie de fatores irá influenciar a sua escolha. Depende da quantidade de satisfação real que ele irá encontrar no mundo externo, e até onde acha necessário tornar-se independente dele. Por fim, na confiança que tem em si próprio no seu poder de modificar algo conforme os seus desejos. Mesmo nesta fase, a constituição mental do indivíduo tem um papel decisivo, para além de quaisquer considerações
externas. O homem que é predominantemente erótico irá escolher em primeiro lugar as relações emocionais com os outros; o tipo narcisista, que é mais autossuficiente, procurará a sua satisfação essencial no trabalho interior da sua alma; o homem de ação nunca abandonará o mundo externo no qual pode experimentar o seu poder. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
As nossas possibilidades de felicidade É simplesmente o princípio do prazer que traça o programa do objetivo da vida. Este princípio domina a operação do aparelho mental desde o princípio; não pode haver dúvidas quanto à sua eficiência e, no entanto, o seu programa está em conflito com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo como com o microcosmo. Não pode simplesmente ser executado porque toda a constituição das coisas está contra ele; poderíamos dizer que a intenção de que o homem fosse feliz não estava incluída no esquema da Criação. Aquilo a que se chama felicidade no seu sentido mais restrito vem da satisfação – frequentemente instantânea – de necessidades reprimidas que atingiram uma grande intensidade, e que, pela sua natureza, só podem ser uma experiência transitória. Quando uma condição desejada pelo princípio do prazer é protelada, tem como resultado uma sensação de consolo moderado; somos constituídos de tal forma que conseguirmos ter prazer intenso em contrastes, e muito menos nos próprios estados intensos. As nossas possibilidades de felicidade são assim limitadas desde o princípio pela nossa formação. É muito mais fácil ser infeliz. O sofrimento tem três procedências: o nosso corpo, que está destinado à decadência e à dissolução, e nem sequer pode passar sem a ansiedade e a dor como sinais de perigo; o mundo externo, que se pode enfurecer contra nós com as mais poderosas e implacáveis forças de destruição; e, por fim, a relação com os outros homens. A infelicidade que esta última origina é talvez a mais dolorosa de todas; temos tendência para a considerar mais ou menos um suplemento gratuito, embora não possa ser uma fatalidade menos inevitável do que o sofrimento que provém das outras fontes. Não é de admirar que, debaixo da pressão destas possibilidades de sofrimento, a humanidade esteja habituada a reduzir as suas exigências de felicidade, nem que o próprio princípio do prazer se modifique para um princípio da realidade mais acomodado sob a influência do ambiente externo. Se um homem se julga feliz, fugiu simplesmente à infelicidade ou a dificuldades. Em geral, a tarefa de evitar o sofrimento atira para segundo plano a de obter a felicidade. A reflexão mostra que há várias formas de tentar cumprir esta tarefa e todas estas formas foram recomendadas por várias escolas de sabedoria na arte da vida e postas em prática pelos homens. A satisfação desenfreada de todos os desejos impõe-se em primeiro plano como o mais
atrativo princípio orientador da vida, mas implica preferir o gozo à prudência e penaliza-se depois de uma curta satisfação. Os outros métodos, nos quais evitar o sofrimento é o principal motivo, distinguem-se segundo a fonte de sofrimento contra a qual estão dirigidos. Algumas destas medidas são extremas e outras moderadas, algumas são unilaterais e outras tratam vários aspetos do assunto ao mesmo tempo. A solidão voluntária, o isolamento dos outros, é a salvaguarda mais rápida contra a infelicidade que possa surgir das relações humanas. Sabemos o que isto significa: a felicidade encontrada neste caminho é a da paz. Podemos defender-nos contra o temido mundo externo, voltando-nos simplesmente para uma outra direção, se a dificuldade tiver de ser resolvida sem ajuda. Há, na realidade, um outro caminho melhor: o de cooperar com o resto da comunidade humana e aceitar o ataque à natureza, forçando-a a obedecer à vontade humana. Trabalha-se então com todos para o bem de todos. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1920)
A felicidade pessoal e a felicidade da humanidade O processo de desenvolvimento dos indivíduos tem características especiais, que não se repetem na evolução cultural da humanidade, e os dois processos só coincidem necessariamente porque o primeiro também inclui o objetivo da incorporação na comunidade. Assim como um planeta roda em volta de um corpo central, enquanto ao mesmo tempo gira também em volta do seu eixo, também o homem individual toma parte no curso do desenvolvimento da humanidade enquanto segue o seu caminho através da vida. Mas para o nosso olhar embrutecido, o jogo de forças no céu parecer estar colocado num esquema que não varia, enquanto na vida orgânica conseguimos ver como essas forças lutam umas com as outras e como o resultado desse conflito varia de dia para dia. Por isso, em cada indivíduo as duas tendências, uma para a felicidade pessoal e a outra para a unidade com o resto da humanidade, têm de entrar em conflito uma com a outra; da mesma forma, tanto o desenvolvimento da cultura como o do indivíduo opõem-se um ao outro e têm de lutar pelo seu terreno. A luta entre o indivíduo e a sociedade, contudo, não resulta do antagonismo dos instintos primitivos, Eros e morte, que possivelmente são irreconciliáveis, é uma discórdia no campo da própria líbido, comparável à competição entre o ego e os seus objetos para partilharem a líbido; e admite eventualmente uma solução nos indivíduos, como esperamos que também isso aconteça no futuro da civilização – por muito que possa oprimir as vidas dos indivíduos atualmente. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
FIDELIDADE Como ser fiel É um facto da experiência quotidiana que a fidelidade, especialmente naquele grau que é exigido pelo matrimónio, só se mantém em face de tentações contínuas. Qualquer pessoa que negue essas tentações em si própria sentirá, não obstante, a sua pressão tão fortemente que ficará contente em utilizar um mecanismo inconsciente para mitigar essa situação. Pode obter esse alívio – e, na verdade, a absolvição de sua consciência –, se projetar os seus próprios impulsos à infidelidade no companheiro a quem deve fidelidade. Esse forte motivo pode então fazer uso do material percetivo que revela os impulsos inconscientes do mesmo tipo no companheiro, e o sujeito pode justificar-se com a reflexão de que o outro provavelmente não ser bem melhor do que ele próprio. Alguns Mecanismos Neuróticos no Ciúme, na Paranoia e na Homossexualidade (1921)
A habituação e a fidelidade Pense-se, por exemplo, na relação que existe entre o bebedor e o vinho. Não é verdade que o vinho oferece sempre ao bebedor a mesma satisfação tóxica, que a poesia tem comparado com frequência à satisfação erótica – comparação, de resto, aceitável do ponto de vista científico? Já alguma vez se ouviu dizer que o bebedor fosse obrigado a mudar sem descanso de bebida porque se cansaria rapidamente por ingerir sempre a mesma? Pelo contrário, a habituação estreita cada vez mais o laço entre o homem e a espécie de vinho que ele bebe. Existirá no bebedor uma necessidade de partir para um país onde o vinho seja mais caro ou o seu consumo proibido, a fim de estimular por meio de semelhantes obstáculos a sua satisfação decrescente? De modo nenhum. Basta escutarmos o que dizem os nossos grandes alcoólicos, como Bócklin, da sua relação com o vinho: evocam a harmonia mais pura e como que um modelo de casamento feliz. Porque será a relação do amante com o seu objeto sexual tão diferente? Contribuições à Psicologia da Vida Amorosa (1912)
GENIALIDADE Não sou excecionalmente dotado
Achas realmente que eu tenho um ar assim tão simpático? Duvido muito, vê lá tu. Penso que as pessoas veem em mim alguma coisa que as desconcerta e isso, em última análise, porque, na minha juventude, não fui jovem, e agora, quando começa a idade madura, não consigo envelhecer. Houve um tempo em que todo eu era apenas desejo de aprender e ambição, e em que, dia após dia, lamentava amargamente que a natureza não tivesse, por um capricho feliz, marcado a minha fronte com o sinal do génio, mas hoje não compreendo sequer como terei desejado alguma vez ser um génio. Não sou sequer excecionalmente dotado; toda a minha capacidade de trabalho se deve provavelmente ao meu caráter e à ausência de fraquezas intelectuais graves. Correspondência (1886)
GRUPO A necessidade de um chefe Em muitos indivíduos, a separação entre o ego e o ideal do ego não se acha muito avançada e os dois ainda coincidem facilmente; o ego amiúde preservou a sua primitiva autocomplacência narcisista. A seleção do líder é muitíssimo facilitada por essa circunstância. Com frequência precisa apenas de possuir as qualidades típicas dos indivíduos interessados sob uma forma pura, clara e particularmente acentuada, necessitando apenas de fornecer uma impressão de maior força e de mais liberdade de líbido. Nesse caso, a exigência de um chefe forte frequentemente o encontrará a meio caminho, e o investirá de uma predominância que, de outro modo, talvez não pudesse reivindicar. Os outros membros do grupo, cujo ideal do ego, salvo isso, não se haveria corporificado nas suas pessoas sem alguma correção, são então arrastados com os demais por «sugestão», isto é, por meio da identificação. Psicologia Coletiva e Análise do Eu (1921)
HUMANIDADE Uma vida passada a destruir ilusões Uma grande parte da minha vida de trabalho foi despendida a destruir ilusões, tanto de mim próprio, como da humanidade. Mas se ao menos esta minha esperança pudesse ser parcialmente realizada, pois, se no curso da evolução não aprendermos a
desviar os nossos instintos de destruir a nossa própria espécie, se continuarmos a odiar-nos por diferenças insignificantes e nos matarmos uns aos outros por ganhos irrisórios, se continuarmos a explorar os nossos recursos naturais de forma descontrolada até à destruição mútua, que tipo de futuro teremos? É certamente uma tarefa muito dura assegurar a perpetuação da nossa espécie no conflito entre a nossa natureza instintiva e as exigências que nos são feitas pela civilização. Correspondência (1923)
Os homens, com raras exceções, são desprezíveis Estou a trabalhar em algo, e hoje escrevi o último parágrafo, que – tanto quanto possível sem ter uma biblioteca – acaba este meu trabalho ( A Civilização e os Seus Descontentamentos ). Tem a ver com a civilização, com o sentimento de culpa, com a felicidade e com outros assuntos exaltantes relacionados; e fico surpreendido, sem dúvida com razão, por verificar quanto superficial este meu trabalho é comparado com outros que nasceram de uma necessidade interior. Mas o que posso fazer? Não posso passar o dia a fumar e a jogar às cartas; já não consigo dar grandes caminhadas, e a maior parte do meu tempo é passada a ler coisas que já não me interessam. Assim, escrevo, e desta forma o tempo passa de forma muito agradável. Enquanto estava a fazer este trabalho, descobri as verdades mais banais. (...) As minhas piores qualidades, entre elas uma certa indiferença perante o mundo, provavelmente tiveram tanta influência no resultado final como as boas – por exemplo, uma coragem desafiadora na apologia da verdade. No fundo do meu coração consigo ficar convencido do que os meus queridos amigos homens, com raras exceções, são desprezíveis. Correspondência (1929)
IDEAL A eleição narcísica dos ideais dos povos As pessoas estarão sempre prontamente inclinadas a incluir entre os predicados psíquicos de uma cultura os seus ideais, ou seja, as suas estimativas a respeito de que realizações são mais elevadas e em relação às quais se devem fazer esforços por atingi-las. Parece, a princípio, que esses ideais determinam as realizações da unidade cultural, contudo, o curso real dos acontecimentos parece indicar que os ideais baseiam-se nas primeiras realizações que foram tornadas possíveis por uma
combinação entre os dotes internos da cultura e as circunstâncias externas, e que essas primeiras realizações são então erigidas pelo ideal como algo a ser levado avante. A satisfação que o ideal oferece aos participantes da cultura é, portanto, de natureza narcísica; repousa no seu orgulho pelo que já foi alcançado com êxito. Tornar essa satisfação completa exige uma comparação com outras culturas que visaram realizações diferentes e desenvolveram ideais distintos. É a partir da intensidade dessas diferenças que toda a cultura reivindica o direito de olhar com desdém para o resto. Desse modo, os ideais culturais tornam-se fonte de discórdia e inimizades entre unidades culturais diferentes, tal como se pode constatar claramente no caso das nações. O Futuro de Uma Ilusão (1927)
IGUALDADE A origem da desigualdade Quem na sua própria juventude provou as misérias da pobreza e experimentou a insensibilidade e o orgulho dos ricos, encontra-se certamente ao abrigo da suspeita de incompreensão e de falta de boa vontade ante os esforços tentados para combater a desigualdade das riquezas e tudo quanto dela decorre. Na verdade, se esta luta invocar o princípio abstrato, e baseado na justiça, da igualdade de todos os homens entre si, será demasiado fácil objetar que a natureza foi a primeira, através da soberana desigualdade das capacidades físicas e mentais repartidas pelos seres humanos, a cometer injustiças contra as quais não há remédio. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
INSTINTO A consciência do instinto A destruição do caráter civilizado pelos impulsos instintivos libertados da repressão é um desfecho temido, mas absolutamente impossível. É que este temor não leva em conta o que a nossa experiência nos ensinou com toda a segurança: que o poder mental e somático de um desejo, desde que se baldou a respetiva repressão, se manifesta com muito mais força quando inconsciente do que quando consciente; indo para a consciência, só se pode enfraquecer. O desejo inconsciente escapa a qualquer
influência, é independente das tendências contrárias, ao passo que o consciente é atalhado por tudo quando, igualmente consciente, se lhe opuser. Cinco Lições sobre a Psicanálise (1910)
INTENÇÃO Intenções esquecidas e atos não premeditados Intenções são esquecidas e numerosos outros atos não premeditados tornam-se percetíveis se estamos distraídos – isto é, propriamente falando, se estamos concentrados em alguma coisa. Um conhecido exemplo de tal distração é o professor em Fliegende Blätter , que perde o seu guarda-chuva e pega no chapéu errado porque está a pensar nos problemas que terá de abordar no livro seguinte. Todos nós podemos recordar, da nossa própria experiência, exemplos em como nos é possível esquecer intenções que tivemos e promessas que fizemos, por termos nesse entremeio passado por alguma experiência absorvente. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
INVESTIGAÇÃO Investigação solitária Que tu tenhas sido ou que serás sortudo ou azarado não te sei dizer; mas eu gostaria de estar contigo neste preciso momento para nunca mais me sentir sozinho, e de te dizer, no caso de necessitares de algum encorajamento, dos muitos anos de honorável, mas doloroso, isolamento assim que eu tive o meu primeiro vislumbre neste novo mundo (da psicanálise); da falta de interesse e compreensão dos meus amigos; dos períodos de ansiedade em que eu próprio acreditei que estava enganado e me perguntava como poderia transformar uma vida estragada em alguma vantagem para a minha família; da minha convicção gradualmente crescente na minha teoria da interpretação dos sonhos, e da garantia da calma que finalmente tomou conta de mim e me pediu que esperasse até que uma voz do desconhecido responda à minha. Correspondência (1907)
ISOLAMENTO O delírio pelo isolamento e pelo convívio O eremita volta as costas a este mundo, não quer ter nada a ver com ele. Mas podemos fazer mais do que isso, é possível tentar recriá-lo, procurar construir um outro em vez dele, no qual os componentes mais insuportáveis são eliminados e substituídos por outros que correspondam aos nossos desejos. Quem por desespero ou desafio parte por este caminho, por norma não chegará muito longe; a realidade será demasiado forte para ele. Torna-se louco e normalmente não encontra ninguém que o ajude a levar a cabo o seu delírio. Diz-se, contudo, que todos nós nos comportamos em alguns aspetos como paranoicos, substituindo pela satisfação de um desejo alguns aspetos do mundo que nos são insuportáveis, transportando o nosso delírio para a realidade. Quando um grande número de pessoas faz esta tentativa em conjunto e tenta obter a garantia de felicidade e proteção do sofrimento através de uma transformação ilusória da realidade, adquire um significado especial. Também as religiões devem ser classificadas como delírios em massa deste género. Escusado será dizer que ninguém que participa num delírio o reconhece como tal. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
LAPSO Lapsos com sentido A deformação que constitui um lapso tem um sentido. O que compreendemos por estas palavras: tem um sentido? Que o efeito do lapso talvez tenha o direito de ser considerado como um ato psíquico completo com objetivo definido, como uma manifestação que tem o seu conteúdo e significado próprios. (...) Quando falamos do sentido de um processo psíquico, esse sentido não é para nós nada além da intenção à qual serve e do lugar que ocupa na série psíquica. Poderíamos até, na maioria das nossas pesquisas, substituir o termo sentido pelos termos intenção ou tendência. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
LEI
O excesso de decretos prejudica a lei Penso que um excesso de decretos e de interditos prejudica a autoridade da lei. Podemos observá-lo: onde existem poucas proibições, estas são obedecidas; onde a cada passo se tropeça em coisas proibidas, sente-se rapidamente a tentação de as infringir. Além disso, não é preciso ser-se anarquista para se ver que as leis e os decretos, do ponto de vista da sua origem, não gozam de qualquer caráter sagrado ou invulnerável. Por vezes, são pobres de conteúdo, insuficientes, ofensivos do nosso sentido da justiça, ou nisso se tornam com o tempo, e então, dada a inércia geral dos dirigentes, não resta outro meio de corrigir essas leis caducas senão infringi-las de boa vontade! Para mais, é prudente, quando se pretende manter o respeito por leis e decretos, promulgar apenas aqueles cuja observação ou infração possam ser facilmente controladas. Psicanálise e Medicina (1926)
LITERATURA Dez bons livros Pedem-me que faça uma relação de «dez bons livros» sem a tal acrescentarem maiores explicações. Cabe-me assim não somente a escolha dos livros, mas também a interpretação do pedido. Como estou acostumado a dar atenção a pequenos sinais, devo basear-me na forma como esse enigmático pedido foi expresso. Não me solicitaram «os dez mais esplêndidos livros (da literatura mundial)», quando eu seria obrigado a responder, como tantos outros: Homero, as tragédias de Sófocles, o Fausto, de Goethe, o Hamlet e o Macbeth, de Shakespeare, etc. Nem me pediram «os dez livros mais significativos», entre os quais teriam de ser incluídas as realizações científicas de Copérnico, do velho médico Johann Weier sobre a crença nas bruxas, a Descendência do Homem, de Darwin, e outros. Nem falaram em «livros favoritos», entre os quais eu não teria esquecido O Paraíso Perdido, de Milton, e o Lázaro, de Heine. Parece-me pairar uma ênfase especial sobre o adjetivo «bons», na vossa frase, e com isso pretenderem os senhores designar aqueles livros que se assemelham a «bons» amigos, aos quais devemos uma parcela do nosso conhecimento da vida e da nossa visão do mundo – livros que nos deram prazer e que recomendamos de bom grado a outros, mas que não nos despertam uma particular e tímida reverência, nem uma sensação de pequenez diante de sua grandiosidade. Indicarei, portanto, dez «bons» livros que me vieram à mente sem muita reflexão:
Multatuli, Cartas e Obras Kipling, Jungle Book Anatole France, Sur la pierre blanche Zola, Fécondité Merezhkovsky, Leonardo da Vinci G. Keller, Leute von Seldwyla C. F. Meyer, Huttens letzte Tage Macaulay, Essays Gomperz, Griechische Denker Mark Twain, Sketches Não sei o que pretendem fazer com essa lista. Até mesmo a mim ela parece estranha, e não posso enviá-la sem algumas observações. Não me deterei nas razões desses livros e não de outros igualmente «bons». Só desejo examinar a relação entre o autor e a sua obra. Esse elo não é sempre tão firme como, por exemplo, no caso do Jungle Book, de Kipling. Na maior parte das vezes, eu poderia ter escolhido outro livro do mesmo autor – como, no caso de Zola, o Docteur Pascal –, e assim por diante. Com frequência o mesmo homem que nos ofereceu um bom livro produziu outras boas obras. No caso de Multatuli hesitei entre escolher as Cartas de Amor , em detrimento das cartas particulares, e rejeitar as primeiras a favor das segundas, e assim escrevi: Cartas e Obras. Excluí dessa lista obras realmente criativas de valor puramente poético, porque não parece ser este exatamente o objetivo da vossa solicitação: bons livros. Quanto a Hutten, de C. F. Meyer, coloco a sua condição de «bom» bem acima das suas qualidades formais; nele procuramos «edificação» acima de prazer estético. Com esse pedido de «dez bons livros», os senhores levantaram uma questão que poderia ser estendida indefinidamente. E aqui concluo, para não me tornar em demasia informativo. Resposta a um questionário sobre leitura (1906)
MASTURBAÇÃO A masturbação corrompe o caráter A masturbação não corresponde de modo algum às exigências ideais da moral sexual civilizada e arrasta os jovens para os mesmos conflitos com o ideal que a educação suscita, conflitos a que gostariam de furtar-se por meio da abstinência. Em seguida, corrompe o caráter através de maus hábitos, em primeiro lugar ensinando o
sujeito a obter fins importantes sem fadiga, de modo agradável, em vez de o conseguir através de uma vigorosa tensão de energia, quer dizer, segundo o princípio do «protótipo sexual», e, em segundo lugar, nos fantasmas que acompanham a satisfação, erguendo o objeto sexual a um grau de excelência que não é fácil redescobrir na realidade. Um escritor de muito espírito (Karl Kraus, no jornal vienense Fackel ) pôde mesmo, invertendo o argumento, expressar cinicamente esta verdade nos termos seguintes: «O coito não passa do sucedâneo insuficiente da masturbação.» A Moral Sexual Civilizada e o Mal-Estar Nervoso dos Tempos Modernos (1908)
MEDICINA Nunca fui um médico propriamente dito Depois de quarenta e um anos de prática médica, o meu sentido crítico a meu respeito faz-me dizer que realmente nunca fui um médico propriamente dito. Cheguei à medicina forçado, e quando me afastava dos meus primitivos projetos, e o êxito da minha vida reside no facto de, após uma longa viagem tortuosa, me ter sido dado reencontrar o meu primeiro caminho. Não creio haver experimentado na minha infância um desejo imperioso de auxiliar a humanidade sofredora. As minhas tendências sádicas constitucionais não eram, sem dúvida, suficientemente fortes para me levarem à necessidade de desenvolver semelhante desejo, ou outros seus derivados. Também nunca brinquei «aos médicos»: a minha curiosidade infantil, com toda a evidência, escolheu vias diferentes. Durante a juventude, senti uma necessidade muito poderosa de compreender alguma coisa dos enigmas do mundo em que vivemos e, talvez, de contribuir de certo modo para a sua solução. P sicanálise e Medicina – Suplemento (1927)
MILAGRE A explicação para os milagres Seria conveniente, mas um grande equívoco, recusar simplesmente crédito a essas curas milagrosas e pretender explicar os relatos feitos sobre elas através de uma combinação de engodo devoto e observação inexata. Por mais que essa tentativa de explicação possa amiúde justificar-se, ainda assim não tem o poder de descartar por
completo o facto das curas miraculosas. Elas realmente ocorrem, deram-se em todas as épocas e dizem respeito não só às doenças de origem anímica, ou seja, àquelas que se fundamentam na «imaginação» e podem justamente ser afetadas de maneira especial pelas circunstâncias da romaria, mas também aos estados patológicos fundamentados no «orgânico» e até então resistentes a todos os esforços médicos. Mas não há necessidade alguma de recorrer a outra coisa senão aos poderes anímicos para esclarecer as curas milagrosas. Nem mesmo nessas condições se manifestam efeitos que possamos considerar inconcebíveis para a nossa cognição. Tudo se passa naturalmente; de facto, o poder da fé religiosa recebe aí um reforço de muitas forças pulsionais tipicamente humanas. A crença religiosa de cada um é intensificada pelo entusiasmo da multidão por meio da qual ele costuma aproximar-se do local sagrado. Todas as moções anímicas de cada ser humano podem ser imensamente ampliadas por esse efeito das massas. Quando alguém vai sozinho em busca da cura no lugar miraculoso, são a fama e o prestígio do local que substituem a influência da multidão e, portanto, mais uma vez, é apenas o poder desta que exerce o seu efeito. Essa influência também se faz sentir de mais outra maneira. Sabe-se que a misericórdia divina mostra-se apenas a alguns dentre os muitos que a ela recorrem, e cada qual gostaria de estar entre os distinguidos e eleitos; a ambição que dormita em cada um vem em socorro da fé religiosa. Quando tantas forças poderosas colaboram, não nos deve surpreender que, uma vez por outra, a meta seja realmente alcançada. Tratamento Psíquico (ou Anímico) (1905)
MUDANÇA As minhas capacidades de interesse esgotam-se muito depressa Naturalmente, fico contente quando me fala com entusiasmo, como na sua última carta, da minha juventude e da minha atividade, mas, quando me viro para o princípio de realidade, sei que não é verdade e não me surpreende que não seja. As minhas capacidades de interesse esgotam-se muito depressa: quero dizer que os meus interesses se desviam muito facilmente do presente, tomando outras direções. Há qualquer coisa em mim que se revolta contra o facto de ter de continuar a ganhar um dinheiro que nunca chega, e a utilizar sempre os mesmos procedimentos psicológicos que durante trinta anos me permitiram permanecer equitativo a despeito do meu desprezo pelas pessoas e por este mundo detestável. Sinto em mim estranhos impulsos secretos – pelo Oriente, pelo Mediterrâneo e por uma vida de género completamente diferente: desejos que datam do fim da minha infância, que nunca
serão cumpridos, que não se conformam com a realidade como que para aludirem ao afrouxamento dos nossos laços que nos unem a ela. Correspondência (1922)
MULHER As qualidades delicadas da mulher É possível que uma educação nova consiga abafar todas as qualidades delicadas da mulher, a sua necessidade de proteção, que de modo algum obsta às suas vitórias, de tal forma que ela venha a poder, como os homens, ganhar a vida independentemente. É em termos gerais possível que, nesse caso, seja um erro deplorar o desaparecimento da coisa mais deliciosa que o mundo tem para nos oferecer: o nosso ideal de feminilidade. Creio que todas as reformas legislativas e educativas hão de falhar pelo facto de, muito antes da idade com a qual um homem pode conquistar uma situação na nossa sociedade, a natureza já decidiu do destino da mulher, concedendolhe beleza, encanto e bondade. Correspondência (1883)
NARCISISMO Beleza narcísica Instala-se, em particular no caso de um desenvolvimento conducente à beleza, um estado em que a mulher se basta a si própria, o que a compensa da liberdade de escolha de objeto que a sociedade lhe contesta. Nestes casos, essas mulheres, falando em termos estritos, apenas se amam a si mesmas, quase tão intensamente como o homem as ama. A sua necessidade não leva a fazê-las amar, elas tendem, sim, a ser amadas, e agrada-lhes o homem que preencha esta condição. Não poderíamos exagerar a importância deste tipo de mulheres para a vida amorosa do ser humano. Elas exercem, com efeito, o maior dos encantos sobre os homens. Para Introduzir o Narcisismo (1914)
O narcisismo dos pais Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos, temos de
reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução do seu próprio narcisismo, que há muito abandonaram. O indicador digno de confiança, constituído pela supervalorização, que já reconhecemos como um estigma narcisista no caso da escolha objetal, domina, como todos nós sabemos, a sua atitude emocional. Assim eles acham-se sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho – o que uma observação sóbria não permitiria – e de ocultar e esquecer todas as deficiências dele. (Incidentalmente, a negação da sexualidade nas crianças está relacionada com isso.) Além do mais, sentem-se inclinados a suspender, em favor da criança, o funcionamento de todas as aquisições culturais que o seu próprio narcisismo foi forçado a respeitar, e a renovar em nome dela as reivindicações aos privilégios de há muito por eles próprios abandonados. A criança terá mais divertimentos do que os seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram como supremas na vida. A doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação – «Sua Majestade o Bebé», como outrora nós mesmos nos imaginávamos. A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram – o menino tornar-seá um grande homem e um herói em lugar do pai, e a menina casar-se-á com um príncipe como compensação para a sua mãe. No ponto mais sensível do sistema narcisista, a imortalidade do ego, tão oprimida pela realidade, a segurança é alcançada por meio do refúgio na criança. O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela a sua natureza anterior. Para Introduzir o Narcisismo (1914)
NOVIDADE O dispêndio psíquico da novidade A criança pequena, nos braços da ama, que se volta a chorar ao ver um rosto estranho; o crente que inaugura com uma oração cada novo dia e saúda com uma bênção as primícias do ano; o camponês que se recusa a comprar uma foice diferente da que usaram os seus pais; eis outras tantas situações cuja variedade salta aos olhos e a que parece legítimo associarmos motivações diferentes. Seria injusto, no entanto, desconhecermos o seu caráter comum. Nos três casos, trata-se do mesmo mal-estar: a criança expressa-o de um modo elementar, o crente apazigua-o engenhosamente, o camponês torna-o o motivo da sua decisão. Mas a origem deste mal-estar é o
dispêndio psíquico que o «novo» exige sempre da vida mental e a incerteza, levada até à expectativa ansiosa, que o acompanha. Resistências à Psicanálise (1925)
OS OUTROS A benevolência com os outros Quando me pergunto porque me esforcei sempre honestamente por ter respeito e, se possível, benevolência para com os outros, e porque não renunciei a isso quando me dei conta de que nos prejudicamos com esse tipo de comportamento e de que nos tornamos assim o bombo da festa, porque os outros são brutais e não podemos confiar neles, não consigo descobrir, de facto, qualquer resposta. Não se trata, por certo, de um comportamento razoável. Também nunca senti uma inclinação ética particular ao longo da juventude. E quando me julgo melhor do que outrem, não extraio disso qualquer satisfação significativa. Você é provavelmente a primeira pessoa perante a qual me vanglorio destas coisas. Correspondência (1915)
PERSONALIDADE São raros os homens capazes de manter a polidez A observação prova que são raros os homens capazes de manter a polidez ou, pelo menos, a objetividade no decurso de uma discussão científica, e eu não podia pensar sem horror nas querelas desse género. Esta atitude que julguei dever adotar foi, sem dúvida, mal interpretada; julgaram que eu era tão bonacheirão ou que me intimidava com tal facilidade que não se podia contar comigo nesse campo. Foi um erro, porque sou suscetível de me encolerizar e de proferir injúrias como qualquer outra pessoa, mas repugna-me dar expressão literária a esses sentimentos que se agitam no fundo de mim e prefiro conservar, por isso, uma atitude de completa abstenção. Correspondência (1914)
PERVERSÃO
Todos transgredimos Na vida sexual de cada um de nós, ora aqui, ora ali, todos transgredimos um pouco os estreitos limites do que se considera normal. As perversões não são bestialidades nem degenerações no sentido patético dessas palavras. São o desenvolvimento de germes contidos, na sua totalidade, na disposição sexual indiferenciada da criança, e cuja supressão ou redirecionamento para objetivos assexuais mais elevados – a sua «sublimação» – destina-se a fornecer a energia para um grande número das nossas realizações culturais. Portanto, quando alguém se torna grosseira e manifestamente pervertido, seria mais correto dizer que permaneceu como tal, pois exemplifica um estágio de inibição do desenvolvimento. Fragmentos de Uma Análise da Histeria (1905)
POESIA O mecanismo da poesia O mecanismo da poesia (em termos de criação literária) é o mesmo das fantasias histéricas. Para compor o seu Werther , Goethe combinou a sua própria experiência (o seu amor por Lotte Kästner) e algo que tinha ouvido (o destino do jovem Jerusalém, que se suicidou). Provavelmente, Goethe estava a brincar com a ideia de se matar; encontrou nisso um ponto de contacto e identificou-se com Jerusalém, de quem tomou emprestado o motivo para a sua própria história de amor. Por meio dessa fantasia, protegeu-se das consequências da sua experiência. De modo que Shakespeare tinha razão ao justapor a poesia e a loucura ( fine frenzy ). Correspondência (1936)
POPULARIDADE A homenagem A visita de Thomas Mann, os cumprimentos que me dirigiu e a conferência pública que fez por ocasião da festa foram coisas impressionantes e que me encheram de regozijo. Os meus colegas de Viena também me festejaram, traindo na ocasião, através de indícios de toda a ordem, como isso lhes era penoso. O ministro da Educação expressou-me educadamente as suas felicitações, segundo as devidas
fórmulas, e a seguir os jornais foram proibidos, sob pena de apreensão, de darem a conhecer ao país o seu gesto de participação na homenagem. Numerosos artigos publicados na imprensa local e estrangeira expressaram também bastante claramente a rejeição e o ódio. Podemos assim verificar com satisfação que a franqueza ainda não desapareceu totalmente da superfície da Terra. Correspondência (1936)
POSTERIDADE O valor do meu trabalho Sou menos insensível à compreensão do que às censuras. No que diz respeito ao valor do meu trabalho e à sua influência sobre a evolução futura da ciência, é-me muito difícil formar pessoalmente opinião. Umas vezes, acredito, outras duvido. Penso que não é possível prever nada; talvez o próprio Deus nada saiba ainda do caso. De qualquer maneira, o trabalho tem para nós atualmente certo valor – e eu sinto-me profundamente feliz por já não me achar isolado. Se não viver por muito tempo mais, nada recolherei para mim, mas não é, sem dúvida, em vista de qualquer recompensa ou de qualquer espécie de renome que trabalho; perante a inevitável ingratidão humana, nada espero, e também não espero nada para os meus filhos. Correspondência (1910)
POVO A psicologia do homem comum Toda a nossa maneira de viver subentende o facto de estarmos ao abrigo da completa miséria, a possibilidade que nos foi dada de nos acharmos protegidos contra todos os males engendrados pela sociedade. O povo, os pobres, pelo seu lado, não poderiam sobreviver se a sua pele não fosse mais dura e se não fosse a sua despreocupação. Porque haviam assim de atribuir muito valor às suas aspirações, se todas as desgraças que a natureza e a sociedade têm de reserva se abatem sobre os entes que amam? Porque haviam de desprezar os prazeres efémeros, uma vez que não podem esperar ter outros? Os pobres são demasiado impotentes, encontram-se demasiado expostos, para poderem agir como nós. Quando vejo os desgraçados
entregarem-se sem reflexão aos seus prazeres, nunca deixo de pensar que encontram nisso alguma compensação pelo facto de serem presa de todos os tributos, de todas as epidemias, de todas as doenças, de todos os inconvenientes das realizações sociais. Não tenciono aprofundar mais este tema, mas era possível mostrar que o «povo» julga, crê, espera e trabalha de modo completamente diferente de nós. Existe uma psicologia do homem comum que se afasta razoavelmente da nossa. Têm, aliás, mais do que nós, o sentido da comunidade, só entre eles existe a ideia de que a vida de um continua a vida do outro, enquanto, para cada um de nós, o mundo se extingue com a nossa morte. Correspondência (1883)
PRIVAÇÃO A razão da privação Privamo-nos para mantermos a nossa integridade, poupamos a nossa saúde, a nossa capacidade de gozar a vida, as nossas emoções, guardamo-nos para alguma coisa sem sequer sabermos o que essa coisa é. E este hábito de reprimirmos constantemente as nossas pulsões naturais é que faz de nós seres tão refinados. Porque não nos embriagamos? Porque a vergonha e os transtornos das dores de cabeça fazem nascer um desprazer mais importante do que o prazer da embriaguez. Porque não nos apaixonamos todos os meses de novo? Porque, por altura de cada separação, uma parte dos nossos corações fica desfeita. Assim, esforçamo-nos mais por evitar o sofrimento do que na busca do prazer. Correspondência (1883)
PSICANÁLISE As tendências perversas existem em todas as pessoas Tornou-se-nos familiar a ideia de que em qualquer pessoa civilizada devem encontrar-se, mais ou menos recalcadas, tendências perversas, erotismo anal, homossexualidade, etc., bem como um pouco de complexo de pai, um pouco de complexo de mãe e um pouco de outros complexos ainda. Do mesmo modo, através da análise química elementar de um corpo orgânico, temos a certeza de descobrir carbono, água, oxigénio, azoto e também um pouco de enxofre. O que diferencia os
corpos orgânicos uns dos outros é a proporção destes diferentes elementos e a estrutura das ligações em que se combinam. Por isso, não se trata tanto de saber se certos conflitos e certos complexos existem no neurótico e no homem normal, mas de descobrir se se tornaram patogénicos e, se for esse o caso, por meio de que mecanismo. A Propósito de Uma Discussão sobre o Onanismo (1912)
A futilidade das discussões científicas Tendo em vista a peculiaridade da controvérsia sobre a psicanálise, pareceu-me bem pouco provável que o debate público ou por escrito levasse a alguma coisa; já sabia o caminho a ser seguido pela maioria em congressos e reuniões e nunca fiz muita fé na razoabilidade e educação dos cavalheiros que a mim se opunham. A experiência demonstra que apenas pouquíssimas pessoas conseguem manter a linha – para não falar na objetividade – numa discussão científica, e a impressão que me causam essas brigas científicas sempre foi odiosa. Essa minha atitude talvez tenha sido mal interpretada; talvez me tenham julgado de tão boa natureza ou tão facilmente intimidável que não havia necessidade de terem consideração por mim. Isso era um engano; posso insultar e enfurecer-me tanto quanto qualquer um, mas não tenho a arte de expressar essas emoções subjacentes de forma publicável e, por isso, prefiro abster-me por completo. Contribuição para a História do Movimento Psicanalítico (1914)
RELAÇÕES HUMANAS A interpretação dos atos Os atos realizados de maneira inadvertida tornam-se inevitavelmente uma fonte de mal-entendidos nas relações humanas. O agente, que pode nada saber da existência de uma intenção ligada a esses atos, não acha que eles lhe sejam imputáveis e não se sente responsável por eles. A outra pessoa, pelo contrário, uma vez que geralmente baseia nesses atos, entre outros, as suas conclusões sobre as intenções e modos de pensar do parceiro, sabe mais dos processos psíquicos do outro do que ele próprio se dispõe a admitir ou acredita ter comunicado. Mas o agente fica indignado quando essas conclusões extraídas dos seus atos sintomáticos lhe são apresentadas; declaraos sem fundamento, pois não teve consciência da intenção ao realizá-los, e queixa-se de haver sido mal interpretado pela outra pessoa. Em rigor, esses mal-entendidos
baseiam-se numa compreensão excessiva, e também demasiadamente refinada. Quanto mais «nervosas» são duas pessoas, mais elas se dão motivos para desentendimentos, cuja responsabilidade é tão terminantemente negada por cada uma em relação a si mesma quanto é considerada certa em relação à outra. E esse é, sem dúvida, o castigo pela insinceridade interna das pessoas, que só a pretexto do esquecimento, dos equívocos na ação e da não-intencionalidade expressam impulsos que melhor seria admitirem para si mesmas e para os outros quando já não podem controlá-los. De facto, pode dizer-se genericamente que cada pessoa pratica em termos contínuos uma análise psíquica dos seus semelhantes, e por isso aprende a conhecê-los melhor do que eles próprios se conhecem. Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901)
RELIGIÃO O falso conforto da religião O homem comum entende como sendo a sua religião um sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, lhe explica os enigmas deste mundo com uma perfeição invejável e que, por outro, lhe garante que uma Providência atenta cuidará da sua existência e o compensará, numa outra futura, por qualquer falha nesta vida. O homem comum só consegue imaginar essa Providência sob a figura de um pai extremamente elevado, pois só alguém assim conseguiria compreender as necessidades dos filhos dos homens ou enternecer-se com as suas orações e aplacar-se com os sinais dos seus remorsos. Tudo isto é tão manifestamente infantil, tão incongruente com a realidade, que para aquele que manifeste uma atitude amistosa para com a humanidade é penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca será capaz de estar acima desta visão de vida. É ainda mais humilhante descobrir como é grande o número de pessoas, hoje em dia, que não podem deixar de perceber que essa religião é insustentável e, no entanto, tentam defendê-la sucessivamente, numa série de lamentáveis atos retrógrados. Gostaríamos de pertencer ao número dos crentes, para podermos advertir os filósofos que tentam preservar o Deus da religião substituindo-o por um princípio impessoal, obscuro e abstrato, e dizemos: «Não usarás o nome de Deus em vão!» Alguns dos grandes homens do passado fizeram o mesmo, mas isso não serve de justificação para nós; sabemos porque tiveram de o fazer. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
A natureza grandiosa da religião
Se quisermos dar uma noção da natureza grandiosa da religião, devemos ter em mente o que ela se propõe fazer pelos seres humanos. Dá-lhes informações a respeito da origem e da existência do universo, assegura-lhes proteção e felicidade definitiva nos altos e baixos da vida e dirige os seus pensamentos e ações mediante preceitos, que estabelece com toda a sua autoridade. Com isto ela preenche três funções. Com a primeira delas, satisfaz a sede de conhecimento do homem, faz a mesma coisa que a ciência tenta realizar, com os seus próprios meios, e nesse ponto entra em choque com ela. É à segunda das suas funções que a religião deve certamente a maior parte de sua influência. A ciência não pode competir com a religião quando esta acalma o medo que o homem sente em relação aos perigos e vicissitudes da vida, quando lhe garante um fim feliz e lhe oferece conforto na desventura. É verdade que a ciência nos pode ensinar como evitar determinados perigos e mostrar-nos existirem certos sofrimentos que ela é capaz de combater com êxito e seria muito injusto negar que é um poderoso auxiliar do homem; há, contudo, muitas situações em que se vê obrigada a deixar o homem entregue ao sofrimento e apenas pode aconselhá-lo a resignar-se. Na sua terceira função, mediante a qual estabelece preceitos, proibições e restrições, a religião vai muito além da ciência. Isso porque a ciência se contenta com investigar e estabelecer factos, embora seja verdade que das suas aplicações derivam normas e orientações quanto à conduta de vida. Em algumas circunstâncias, estas coincidem com aquelas que a religião oferece, mas, quando tal se verifica, os motivos de uma e de outra são diferentes. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933)
A imaturidade da religião Enquanto as diferentes religiões altercam entre si pela posse da verdade, a nossa opinião reside em que a questão da verdade das crenças religiosas pode ser totalmente colocada à parte. A religião é uma tentativa de obter domínio do mundo percetível no qual nos situamos, por meio do mundo dos desejos que desenvolvemos dentro de nós em consequência de necessidades biológicas e psicológicas. Mas a religião não pode conseguir isso. As suas doutrinas conservam a marca dos tempos em que surgiram, dos tempos de ignorância da infância da humanidade. O seu consolo não merece fé. A experiência ensina-nos que o mundo não é um aposento de crianças. As exigências éticas, nas quais a religião procura apoiar-se, acentuam, antes, a necessidade de lhe serem dadas outras bases, pois são elas indispensáveis à sociedade humana, e é perigoso vincular à fé religiosa a obediência aos princípios éticos. Se tentarmos situar o lugar da religião na evolução da humanidade, ela aparece não como uma aquisição permanente, mas sim como um equivalente da neurose pela qual o homem civilizado, individualmente, teve de passar na sua
transição da infância à maturidade. Novas Conferências sobre a Psicanálise (1933)
SOCIEDADE Amarmos o nosso próximo como a nós próprios O mandamento de amarmos o nosso próximo como a nós próprios é a defesa mais forte que existe contra a agressividade humana e é um exemplo superlativo de uma atitude antipsicológica do superego cultural. O mandamento é impossível de cumprir; uma tão grande inflação do amor só pode diminuir o seu valor e não remediar o mal. A civilização não presta atenção a nada disto, só diz que quanto mais difícil for obedecer mais louvável é a obediência. Mantém-se o facto de que qualquer pessoa que siga uma tal pregação, no estado atual da nossa civilização, só se coloca em desvantagem em relação àqueles que não lhe fazem caso. Que obstáculo para a civilização deve ser a agressão se a proteção contra ele nos pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressão! A moral espontânea, como é chamada, não nos oferece mais do que uma satisfação narcisista de nos julgarmos melhores do que os outros. A Civilização e os Seus Descontentamentos (1930)
A resistência às novas teorias As pessoas não querem receber lições. É por isso que não compreendem agora as coisas mais simples. No dia em que o quiserem, verificar-se-á que são capazes de perceber também as mais complicadas. Até lá, as instruções são: continuar a trabalhar, discutir o menos possível. Com efeito, só poderíamos dizer a um indivíduo: você é um imbecil, a outro: você é um patife, e há boas razões que excluem a realização expressiva de tais convicções. Sabemos, de resto, que estamos diante de pobres diabos, que receiam, por um lado, chocar, prejudicar as suas carreiras e que, por outro, se encontram acorrentados pelo medo do que está recalcado neles próprios. Teremos de esperar que todos morram ou se tornem lentamente minoritários. De qualquer maneira, o que acontece de fresco e de novo é a nós que pertence. Correspondência (1907)
SONHO Não devemos subestimar a importância histórica dos sonhos Não devemos subestimar a importância histórica dos sonhos. Talvez um sonho tenha impelido algum líder a aventurar-se numa empreitada audaciosa, cujo êxito modificou o curso da história. Mas isso só levanta um novo problema se o sonho for encarado como uma força estranha, em contraste com as outras forças, mais familiares, da alma; tal problema não persiste quando o sonho é reconhecido como uma forma de expressão de moções que se encontram sob a pressão da resistência no decorrer do dia, mas que puderam, durante a noite, achar reforço em fontes de excitação situadas nas camadas profundas. O respeito conferido aos sonhos na Antiguidade baseia-se, entretanto, num discernimento psicológico correto e é a homenagem prestada às forças incontroladas e indestrutíveis do espírito humano, ao poder «demoníaco» que produz o desejo onírico e que encontramos em ação no nosso inconsciente. A Interpretação dos Sonhos (1900)
SONO A finalidade do sono A finalidade biológica do sono parece ser, portanto, a recuperação, e a sua característica psicológica, a suspensão do interesse pelo mundo. A nossa relação com este, ao qual viemos tão a contragosto, parece incluir também a nossa impossibilidade de o tolerar ininterruptamente. Assim, de tempos a tempos, retiramonos para o estado de pré-mundo, para a existência dentro do útero. A todo o custo conseguimos para nós mesmos condições muito parecidas com aquelas que então possuíamos: calor, escuridão e ausência de estímulos. Alguns de nós enrolam-se em si mesmos, formando uma densa bola e, para dormir, assumem uma postura muito parecida com a que ocupavam no útero. Parece que o mundo não domina completamente nem mesmo aqueles que entre nós são adultos, mas apenas até os dois terços; um terço de nós ainda é como se não fora nascido. Introdução à Psicanálise (1916-1917)
TRABALHO Não posso conceber uma vida sem trabalho Não posso conceber uma vida sem trabalho como verdadeiramente aprazível; para mim, viver através da imaginação e trabalhar significam a mesma coisa; nada mais me contenta. Seria a receita da felicidade, se não fosse o pensamento horrível de que a produtividade depende por completo de uma disposição aleatória; que poderemos, com efeito, empreender no decurso de um dia ou de um período em que as ideias se recusam e as palavras não querem alinhar-se? É por isso que, embora submetendo-me ao destino, como convém a qualquer homem honesto, não deixo de formular uma secreta prece: acima de tudo, escapar a uma doença prolongada, à miséria física que paralise as minhas faculdades criadoras. «Morramos de arnês vestido», como diz o rei Macbeth. Correspondência (1910)
UTOPIA Uma categoria de pensadores independentes É uma das faces da desigualdade humana – desigualdade nativa e impossível de combater – a que quer que exista uma repartição dos homens em chefes e em súbditos. Estes últimos formam a imensa maioria, têm necessidade de uma autoridade que tome em seu lugar decisões que eles acatam quase sempre sem reservas. Talvez seja possível observar, nesta ordem de ideias, que deveriam ser feitos mais esforços do que até aqui no sentido da criação de uma categoria superior de pensadores independentes, de homens inacessíveis à intimidação e dedicados à busca da verdade, que assumissem a direção das massas destituídas de iniciativa. Que o império exercido pelos poderes do Estado e a proibição do pensamento por parte da Igreja em nada se prestam a esta formação não é preciso demonstrá-lo. O Estado ideal residiria naturalmente numa comunidade de homens que tivessem subordinado a sua vida instintiva à ditadura da razão. Nada poderia criar uma união tão perfeita e tão resistente entre os homens, ainda que para isso estes tivessem de renunciar aos laços sentimentais que os unem entre si. Mas há a maior probabilidade de que tudo isto não passe de esperança utópica. Correspondência (1933)
VELHICE A serenidade da idade Envolve-me lentamente uma carapaça de insensibilidade, verifico-o sem me queixar. É também um desfecho natural, um modo de começar a tornar-me anorgânico. A isto costuma chamar-se, segundo creio, a serenidade da idade. É algo que, sem dúvida, deve estar ligado a uma viragem decisiva nas relações entre as duas pulsões cuja existência supus. A transformação que a acompanha não é talvez excessivamente forte; permanece cheio de interesse tudo quanto tinha outrora, mas há um certo eco que falta e eu, que não sou músico, represento-me esta diferença como uma questão de usar ou não o pedal. A pressão sensível e incessante de uma enorme quantidade de sensações importunas deve ter apressado este estado prematuro, esta disposição a sentir tudo sub specie aeternitatis . Correspondência (1925)
VERDADE Uma irredutível coragem diante da verdade O que você adianta como análise da minha produção prende todo o meu interesse e deixa-me incapaz de julgar. Sei apenas que me afadiguei enormemente, o que fez com que o resto chegasse por si mesmo. Tudo teria podido também ser melhor. Sentia somente o objeto, sem me dar conta do sujeito. As minhas piores qualidades, e entre elas um certo indiferentismo geral, tiveram no resultado uma parte igual à das melhores, por exemplo, a de uma irredutível coragem diante da verdade. No mais profundo de mim, estou, como sabe, persuadido de que os meus queridos semelhantes são – com algumas exceções – uma escumalha. Correspondência (1929)
VIAJAR A vontade de viajar Chegar tão longe, «ser tão bem-sucedido», parecia-me fora de todas as
possibilidades. Este sentimento estava ligado à estreiteza e à pobreza das nossas condições de vida durante a minha juventude. E certamente os meus sonhos de viagens expressavam também o desejo de escapar à atmosfera familiar, esse mesmo desejo que impulsiona as fugas de tantos adolescentes. Tinha descoberto há muito tempo que uma boa parte da minha vontade de viajar se ligava ao desejo assim de uma vida livre ou, por outras palavras, ao descontentamento que experimentava no seio da minha família. Quando vemos o mar pela primeira vez, atravessamos o oceano e contemplamos cidades e paisagens reais com que sonhámos durante muito tempo como se fossem coisas longínquas e inacessíveis, fazemos perante nós próprios a figura de um herói que consuma proezas incríveis. Correspondência (1936)
Cartas a Martha
19 de junho de 1882 Eu sabia que seria apenas depois de te teres ido embora que iria perceber a completa extensão da minha felicidade e, alas!, o grau da minha perda também. Ainda não a consegui ultrapassar, e, se não tivesse à minha frente aquela caixinha pequena com a tua doce fotografia, pensaria que tudo não teria passado de um sonho do qual não quereria acordar. Contudo, os meus amigos dizem que é verdade, e eu próprio consigo-me lembrar de detalhes ainda mais charmosos, ainda mais misteriosamente encantadores do que qualquer fantasia sonhadora poderia criar. Tem de ser verdade. Martha é minha, a rapariga doce da qual todos falam com admiração, que, apesar de toda a minha resistência, cativou o meu coração logo no primeiro encontro, a rapariga que eu receava cortejar e que veio para mim com elevada confiança, que fortaleceu a minha confiança em mim próprio e me deu esperanças e energia para trabalhar, na altura que eu mais precisava. Quando tu voltares, querida rapariga, já terei vencido a timidez e a estranheza que até agora me inibiram perante a tua presença. Iremos ficar de novo sozinhos naquele pequeno quarto agradável, vais-te sentar naquela poltrona castanha, eu estarei a teus pés no banquinho redondo, e falaremos do tempo em que não haverá diferença entre noite e dia, onde não existirão intrusos nem despedidas, nem preocupações que nos separem.
19 de junho de 1882 A tua amorosa fotografia. No início, quando eu tinha o original à minha frente, não pensei nada sobre a mesma; mas agora, quanto mais olho para ela mais se assemelha ao objeto amado; espero que o rosto pálido se transforme na cor das nossas rosas, e que os braços delicados se desprendam da superfície e prendam a minha mão; mas a imagem preciosa não se move, parece apenas dizer: «Paciência! Paciência» Eu sou apenas um símbolo, uma sombra no papel; a tua amada irá voltar, e depois podes negligenciar-me de novo. Eu gostaria imenso de colocar esta fotografia entre os deuses da minha casa que pairam acima da minha mesa, mas, embora possa mostrar os rostos severos dos homens que reverencio, quero esconder a face delicada da minha amada só para mim. Vai continuar na tua pequena caixinha e eu não me atrevo a confessar a quantidade de vezes, nestas últimas vinte e quatro horas, que tranquei a minha porta para poder tirar a fotografia da caixa e refrescar a minha memória.
19 de junho de 1882 Minha querida noiva. Se alguma vez hesitei em ligar-me a ti para toda a vida, eu não te deixaria fugir agora nem que o infortúnio mais medonho se abatesse sobre mim.
19 de junho de 1882 Se precisares de alguma coisa daqui ou se quiseres que algo seja feito, por favor não favoreças ninguém, mas apenas a mim com os teus pedidos. Esta é a exclusividade que ofereço sempre que estou apaixonado. Deixa-me saber tudo aquilo que estás a fazer neste momento, pois dessa forma será mais fácil para mim lidar com a tua ausência. E aproveita bem a tua estada em Hamburgo para tratares da tua saúde. Eu gostaria imenso de te voltar a ver com essas lindas bochechas redondas que as tuas fotografias de infância mostram.
18 de agosto de 1882 Uma vez que a forma de o destino recompensar ou ignorar o mérito é tão caprichosa – e injusta –, resta apenas o amor, que se mantém fiel ao homem pobre sem que se torne falso. Assim, mesmo que eu pareça insignificante e sem importância às outras pessoas, contigo serei sempre rico e desfrutarei de reconhecimento e louvores ilimitados.
18 agosto de 1882 Oh, minha querida Marty, quanto pobres nós somos! Supõe que iríamos dizer ao mundo que estávamos a planear partilhar a vida e que eles nos perguntassem: qual é o vosso dote? Nenhum a não ser o nosso amor um pelo outro. Nada mais? Agora ocorre-me que precisaríamos de dois ou três pequenos quartos para viver, comer e receber as visitas, e um fogão onde o fogo para as nossas refeições nunca se apague. E pensa então em todas as coisas que temos de ter nesses quartos! Mesas e cadeiras, camas, espelhos, um relógio que lembre ao feliz casal a passagem do tempo, uma poltrona para uma hora diária de doces sonhos, tapetes que ajudem a manter os soalhos limpos, quadros na parede, serviços para o dia-a-dia e outros para ocasiões
festivas, uma pequena despensa, e um grande molho de chaves – que têm de fazer muito barulho ao chocalharem umas com as outras. Teremos tanto para desfrutar, os livros, a mesa de costura e a lâmpada acolhedora, e tudo deverá estar sempre em boa ordem, ou então a dona de casa, que dividiu o seu coração em pequenos pedaços, cada um para cada peça da decoração, irá chatear-se. E este objetivo deve ser testemunha do trabalho árduo que mantém o lar, do sentimento pela beleza, dos queridos amigos que queremos recordar, das cidades que visitámos, das horas que queremos lembrar. E, tudo isto, um pequeno mundo de felicidade, de amigos silenciosos e provas de elevados valores humanos, ainda se mantém só no futuro; ainda nem sequer desenhámos a fundação da casa, pelo que, por enquanto, apenas existem duas criaturas que se entretêm a amar-se uma à outra. Iremos apoiar os nossos corações nestas coisas tão pequenas? Sim, e sem hesitação, por tanto tempo até que algum eventual evento fora do nosso controlo venha bater à nossa porta silenciosa. E claro que teremos todos os dias que dizer um ao outro que nos continuamos a amar.
25 de setembro de 1882 Eu não quero apenas passar as horas mais agradáveis contigo, tudo o que eu quero é continuar a sentir, e fazer-te sentir, que nos amamos e que nos tentamos ajustar um ao outro tão longe quanto é possível a dois seres humanos.
25 de setembro de 1882 Vou ser muito franco contigo, como deve acontecer entre duas pessoas que juntaram as suas mãos para toda a vida tanto no amor como na amizade. Mas como não quero continuar a escrever sem receber resposta pelo que irei parar assim que tu falhares a responder-me. Monólogos interiores contínuos sobre uma pessoa amada, que não são corrigidos ou lembrados por essa pessoa, conduzem a opiniões falsas sobre a relação mútua, e até à estranheza quando se encontram outra vez e descobrem que as coisas são diferentes daquelas que pensavam. Nem eu serei sempre afetuoso, às vezes serei sério e sem rodeios, como deve ser entre amigos e tal como a amizade exige. Mas ao proceder dessa forma não te sentirás privada de nada, e ser-te-á fácil escolheres entre um homem que te valoriza de acordo com o teu mérito e os muitos outros que te tentam mimar e tratar-te como um brinquedo encantador.
25 de setembro de 1882 Tu irás perceber-me quando eu digo que até para uma rapariga amada ainda existe um passo a dar: o de ser uma amiga, e seria uma perda horrível para nós se eu me decidisse a amar-te como uma rapariga querida, mas não como igual, alguém de quem teria de esconder os meus pensamentos e as minhas opiniões – ou seja, a verdade. Por favor, aceita a mão que te estendo com o mais profundo afeto e confiança, e procede comigo da mesma forma que procedo contigo.
5 de outubro de 1882 Não fiques entediada, minha amorosa menina (cujo encanto ao meio-dia deixa-me fora de mim), se te inicio nos labirintos das minhas pesquisas onde a minha luta pela existência levou. Não passam, afinal, da minha batalha e interesses, e nós estamos ligados de forma tão íntima, eu estou tão feliz por tu seres minha, tão certo do teu interesse, que tudo o que faço só se torna importante para mim se eu o partilhar contigo.
22 de agosto de 1883 Receio que tenha efetivamente uma tendência para a tirania, como alguém recentemente me disse, e adicionado a isso é um facto que ando muito alegre hoje em dia; tenho-me deixado arrastar por um espírito juvenil de imaturidade, que sempre foi muito estranho para mim.
22 de agosto de 1883 Eu leio imenso, desperdiçando grande parte do dia. Por exemplo, neste momento leio Dom Quixote , e concentro-me mais nesta leitura do que na anatomia do cérebro. Tu tens toda a razão, pequena princesa, não é uma leitura adequada para raparigas, tinha-me esquecido de que o livro contém muitos episódios grosseiros e nauseantes, quando to enviei. Não há dúvida de que atinge o seu objetivo de uma forma notável, embora tal soe um pouco distante à minha princesa. Mas os episódios acidentais são encantadores, e aconselho-te mesmo que os leias. Estou a meio do livro, e digo-te que
há muitos anos que não me ria tanto. Está mesmo bem escrito.
23 de agosto de 1883 Perdoa-me, minha amada, por não te escrever tantas vezes quantas as que tu mereces, em especial em resposta às tuas cartas tão afetuosas. Mas quando eu penso em ti sinto uma felicidade tão serena que é mais fácil para mim falar de outras coisas do que sobre nós próprios.
29 de agosto de 1883 Tu não imaginas o tamanho da tua influência sobre mim, e não deves concluir que, pelo modo áspero como eu lido com algumas das coisas ligadas às condições básicas e ao dia-a-dia da nossa relação, que eu seja de forma geral intolerante. Estou bem preparado para ser completamente governado pela minha princesa. De bom grado quem ama deixa-se dominar pela pessoa que ama; se nós pudéssemos chegar assim tão longe, Marty!
4 de setembro de 1883 Embora seja dotado de uma constituição muito forte, não tenho estado em boa forma neste últimos dois anos; têm ocorrido tantas dificuldades que apenas devido à alegria e felicidade da nossa relação me tenho mantido saudável. Sou um relógio que não é reparado há muito tempo, enferrujado em todas as articulações. Como a minha humilde pessoa tem assumido uma cada vez maior importância, até para mim, desde que eu te conheci que estou mais preocupado com a minha saúde e não tenciono desleixar-me. Eu preferiria renunciar à minha ambição, atrair menos atenção, ter menos sucesso, do que danificar o meu sistema nervoso. No futuro, vou tentar viver de uma forma mais modesta, aprendendo e praticando o necessário para o dia-a-dia, sem me esforçar demasiado nas descobertas nem aprofundar demasiado as minhas pesquisas. A minha felicidade reside acima de tudo na minha relação contigo, e em tornar-te minha. Devemos ficar juntos e fazer com que a nossa vida em conjunto seja linda, e tudo o que precisarmos para a nossa independência será adquirido com trabalho constante e decente, mas sem esforços gigantescos.
9 de setembro de 1883 Eu sempre pensei que existe uma via curta e uma via longa para se conseguir alguma coisa; se a mais curta me for barrada, eu seguirei com confiança a mais longa, e é precisamente isso que me está a acontecer neste momento.
9 de setembro de 1883 Nunca mais me digas que és fria e que não encontras as palavras certas; tu escreves de uma forma tão doce, as tuas cartas são tão ternurentas que a única forma de lhes responder seria com um longo beijo, envolvendo-te nos meus braços. Espero que um dia seja apenas uma memória agradável a ansiedade que eu tinha por ti e o facto de não conseguir acreditar que virias a ser minha. Eu nem me atrevo a pensar muito nisto, pelo medo que tenho de não conseguir aguentar uma espera tão longa e de me derreter por completo até que se concretize a nossa união.
9 de setembro de 1883 Eu estava à procura na ciência da satisfação que o esforço da pesquisa e o momento da descoberta oferecem; eu nunca fui daquelas pessoas que não aguentam o pensamento de terem desperdiçado a sua vida antes de terem conseguido escrever o seu nome na rocha pelo meio das ondas. Mas quando penso como é que eu seria se não te tivesse encontrado – sem ambição, sem saber desfrutar os pequenos prazeres da vida, sem qualquer fascínio pela magia do ouro, e ao mesmo tempo dotado de uma inteligência moderada e sem quaisquer meios materiais – iria sentir-me muito miserável e entraria em declínio. Tu dás-me não apenas objetivos e direção, mas também tanta felicidade que nunca poderia sentir-me insatisfeito com o presente infortunado que vivo neste momento; tu dás-me esperança e a certeza do sucesso. Eu sabia-o mesmo antes de tu me amares e sei-o agora que tu me amas, e é graças a ti que me tornei um homem autoconfiante e corajoso.
9 de setembro de 1883 Marty, meu doce tesouro, a nossa felicidade reside no nosso amor, eu não desejo
mais do que aquilo que tu desejas para nós os dois, não por cobardia, mas porque estou consciente da insignificância de todos os outros desejos em comparação com o facto de que tu és minha. E tu és tão doce e tão amorosa!
6 de outubro de 1883 Tu escreves de uma forma tão inteligente e direta aos assuntos que até fico com um pouco de medo de ti. Eu penso que tudo isto apenas mostra o quanto as mulheres superam os homens. Bem, não vai ser isso que me vai fazer perder o que quer que seja.
9 de outubro de 1883 Quando chega uma carta tua todas as divagações acabam, e acordo para a vida. Todos os problemas estranhos deixam de ter importância, os misteriosos quadros de doenças se desvanecem, e acabam-se as teorias vazias «de acordo com o estado presente da ciência», como elas são chamadas. Então o mundo fica tão acolhedor, tão alegre, tão fácil de compreender. A minha doce querida não é uma ilusão, ela não tem de ser comprovada por testes químicos; de facto ela pode ser observada a olho nu. Ainda bem que ela não tem nada a ver com doenças – e espero que continue –, exceto por ter sido suficientemente imprudente para tomar um médico para amante. Oh Marty, é muito mais gratificante ser um ser humano em vez de um armazém de certas experiências monótonas. Mas ninguém se pode permitir ser humano por uma hora, a não ser que tenha sido uma máquina ou um armazém por onze horas. E aqui chegámos, onde começámos.
23 de outubro de 1883 Eu atrevo-me a dizer «minha amada», embora ocasionalmente tenha maus pensamentos e te escreva de forma tão zangada. Se te ofendi outra vez, por favor, põe na lista com as outras ofensas e pensa na minha longa, solitária, impaciente luta e os grilhões que me são impostos. Agora e repetidamente tenho algo parecido com ataques de desalento e desânimo, que tu, minha querida, não deves partilhar. Nesses momentos, deves-te rir de mim e recordar o quanto rapidamente eu recupero a minha
elasticidade e a minha capacidade de julgamento serena.
23 de outubro de 1883 Acima de tudo, eu sei o quanto doce tu és, como consegues transformar uma casa num paraíso, como irás partilhar os meus interesses, o quanto alegre e cuidadosa serás. Eu deixarei governares a casa tanto quanto queiras, e tu vais recompensar-me com o teu doce amor e colocares-te acima daquelas fraquezas pelas quais as mulheres são frequentemente desprezadas. Tanto quanto as minhas atividades o permitam, iremos ler juntos o que queiramos aprender, e eu irei iniciar-te em coisas que não interessariam a uma rapariga que não se familiarizasse com a sua futura companhia e a sua ocupação. Tudo o que aconteceu e acontecerá, vai, por todo o interesse que mostrares por isso, tornar-se um interesse adicional para mim.
15 de novembro de 1883 Eu atrevo-me a dizer que concordamos que a limpeza da casa e a educação das crianças reivindicam uma pessoa por completo, e praticamente fazem com que não se possa ter outra profissão. Ainda que condições simplificadas de vida possam aliviar a mulher da lida da casa, da limpeza, de cozinhar, etc.
14 de fevereiro de 1884 Não compreendes que já há dois dias que não ouço nada de ti e que me estou a começar a preocupar! Será que estás doente, ou zangada comigo? A minha vontade é a de te escrever mais frequentemente outra vez; o melhor mesmo seria passar os dias a escrever-te, mas ainda assim prefiro trabalhar durante todo o dia para o mais brevemente possível ter meios de te ter nos meus braços durante anos e anos. Senão, para que estaria empenhado em tantas coisas neste momento: escrever artigos, dar aulas, examinar pacientes, dar-me tanto às pessoas?
19 de junho de 1884
Minha amada querida, deves banir totalmente da tua mente os pensamentos sombrios que te fazem crer que me estás a impedir de ganhar a vida. Afinal, tu sabes qual é a chave da minha vida: que apenas consigo trabalhar quando estimulado por grandes esperanças de atingir coisas superiores na minha mente. Antes de te conhecer eu não sabia o que era a alegria de viver, e agora que, em princípio, és minha, ter-te completamente é o meu único objetivo de vida. Eu sou muito teimoso e, por outro lado, um imprudente que precisa constantemente de grandes desafios; tenho feito muitas coisas que qualquer pessoa sensata consideraria serem muito temerárias. Por exemplo, assumir a ciência sendo eu um homem tão pobre, e logo a seguir tentar capturar uma pobre rapariga como tu – mas este deve continuar a ser o meu modo de vida –, a arriscar muito, com esperanças de chegar a muito, a trabalhar muito.
30 de junho de 1884 Lembras-te com que frequência me costumavas dizer que eu tinha um talento especial para provocar a tua resistência? Como nós estávamos sempre a discutir, e que tu nunca na vida te entregarias a um homem como eu? Nós éramos duas pessoas que divergíamos em todos os detalhes da vida e que, contudo, estavam determinadas a amarem-se uma à outra, e começaram de facto a amar-se. E então, depois de um período em que não foram trocadas palavras azedas entre nós, tive de admitir que tu eras de facto a minha amada, embora nunca ninguém se tenha apercebido de que te estavas a preparar para vir a partilhar a minha vida; e tu própria admitiste que eu não tive qualquer influência nessa decisão.
17 de agosto de 1884 Com exceção dos minutos iluminados pelas tuas cartas, só desfrutei nos últimos catorze meses de três ou quatro horas felizes – quando alguma peça do meu trabalho foi bem-sucedida. E isso é demasiado pouco para um ser humano que ainda é jovem e, contudo, nunca se sentiu jovem.
7 de janeiro de 1885 Há um ponto no qual não posso concordar contigo, Marty. Tu dizes que agora
somos muito sensatos e o quanto tolos fomos no passado a lidar um com o outro. Eu concordo alegremente que agora somos sensatos o suficiente para acreditar no nosso amor sem quaisquer dúvidas, mas não teríamos chegado a este ponto, se não fosse por tudo o que aconteceu entre nós antes. Foi a intensidade do meu desgosto, trazido pelas muitas horas de sofrimento que tu me causaste há dois anos, que me convenceu do meu amor por ti. Hoje em dia, com todo o meu trabalho, e a luta por dinheiro, posição e reputação, que tudo junto mal me dá tempo de sobra para te escrever uma carta afetuosa, já seria quase impossível chegar a essa convicção. Não desprezemos os tempos em que para mim um dia só teria sentido se recebesse uma carta de ti, quando uma decisão tua significava uma decisão entre vida e morte. Eu não sei realmente que mais poderia ter feito nessa altura, foi um período de luta muito difícil e, finalmente, de vitória, e só após isso tudo ter terminado consegui encontrar a paz interior para trabalhar em torno do nosso futuro. Nesses dias, eu estava a lutar pelo teu amor como luto agora pela tua pessoa, e tens de admitir que precisei de trabalhar tanto para atingir esse objetivo, como estou a trabalhar agora para alcançar este outro.
19 de junho de 1885 Tenho sentido mais saudades tuas recentemente do que alguma vez senti desde a primeira vez em que fomos forçados a separar-nos. Esse é o resultado da tua doce, ternurenta, carta, que levo comigo para todos os sítios onde vou. Estou ilimitadamente feliz pela carta, mas é verdade que uma satisfação tão completa faz-nos ficar sem palavras. Tudo o que te posso dizer é que, se levasse sete e não três anos – de acordo com o costume do nosso patriarca – para te conseguir ter, não consideraria isso nem demasiado cedo, nem demasiado tarde.
26 de junho de 1885 Estou prestes a ser chamado para o jantar – até lá vou continuar a escrever esta carta. Quantas vezes preferiria estarmos no quarto da tua casa; acordava-te logo cedo todas as manhãs cobrindo-te de beijos. Só se consegue amar como deve ser quanto se está perto um do outro. O que é uma memória comparado com o que se pode contemplar!
26 de junho de 1885 Se a energia que eu sinto dentro de mim permanecer comigo, nós podemos rapidamente deixar para trás alguns traços das complicações da nossa existência. Não creio ser muito ambicioso, embora seja um pouco sensível ao reconhecimento público. Eu quero-te toda para mim, alguma liberdade, e possuir certas coisas; quero manter o meu sistema nervoso intacto e que o resto do meu corpo me deixe em paz.
24 de novembro de 1885 Quando chego a casa, sinto-me completamente resignado e digo a mim próprio: os grandes problemas do mundo são para os homens entre os cinquenta e setenta anos, para os mais novos como nós já basta a vida em si. A minha ambição ficará saciada por uma vida longa passada a aprender a compreender algo do mundo, e os meus planos para o futuro é que nos casemos, que nos amemos, e trabalhar com o objetivo de desfrutarmos a vida juntos, em vez de gastar cada milímetro da minha energia a atingir objetivos, como um cavalo de corrida – por outras palavras, evitar tentar construir para mim próprio um lar que envolvesse um tão grande esforço e privação que depois não poderia esperar ter mais do que dois ou três anos de saúde mental. Ou estarei sob a influência desta cidade tão magicamente atrativa e repulsiva? Se sim, seria uma influência muito indireta. Tens algo a dizer sobre isto, minha querida?
2 de fevereiro de 1886 Durante muito, muito tempo, critiquei-te e desfiz-te em bocadinhos, e o resultado de tudo isso é que não há nada que eu queira mais do que a ti, e exatamente como tu és.
6 de maio de 1886 Eu já me sinto tão velho, sabes, e, no entanto, na véspera do quarto aniversário do nosso noivado ainda não sabemos quando é que o estado de casados, que tanto visualizamos, passará a ser uma realidade. Mas embora ainda estejamos longe desse objetivo, não o estamos da certeza de que isso vai acontecer. Dentro de algumas semanas, o dinheiro – no qual ainda não toquei – vai ter de se concretizar num
objetivo, e então veremos se já posso ir viver para Viena.
16 de outubro de 1887 Provavelmente estão mais interessadas em saber da mãe. Ela tem estado muito bem, tem sido tão corajosa e tão doce durante todo o processo. Nem um sinal de impaciência ou mau feitio, e sempre que teve de gritar pedia desculpa ao médico e à parteira. (...) às dezanove e quarenta e cinco, a criança nasceu. Martha sentiu-se logo muito bem de repente, comeu logo um prato de sopa, ficou imensamente satisfeita quando chegou o nosso rebento e, no meio de todo aquele choque físico e mental causado por uma ocasião como esta, nós estávamos muito felizes. Eu vivo com ela há treze meses e nunca cesso de me congratular de ter tido tanta sorte de me haver proposto a ela antes de realmente a conhecer; conquistei um tesouro sem preço na sua pessoa, mas nunca a vi tão magnificente na sua simplicidade e bondade como nesta ocasião crítica, que, mais do que em qualquer outra, não permite quaisquer pretensões ou aparências. Carta a Emmeline e Minna Bernays
BIBLIOGRAFIA OBRAS/ENSAIOS DE FREUD Projeto para Uma Psicopatologia Científica (1895) Estudos sobre a Histeria (1895) A Etiologia da Histeria (1896) O Mecanismo Psíquico do Esquecimento (1898) A Interpretação dos Sonhos (1900) Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901) Sobre os Sonhos (1901) A Palavra do Espírito e as Relações com o Inconsciente (1905) Fragmento de uma Análise da Histeria (1905) Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905) Os Chistes e a Sua Relação com o Inconsciente (1905) Delírios e Sonhos na «Gradiva» de Jensen (1907) Ensaios de Psicanálise Aplicada (1908) A Moral Sexual Civilizada e o Mal-Estar Nervoso dos Tempos Modernos (1908) O Pequeno Hans (1909) O Romance Familiar dos Neuróticos (1909) Notas sobre Um Caso de Neurose Obsessiva (1909) Um Souvenir da Infância de Leonardo da Vinci (1910) Cinco Lições sobre a Psicanálise (1910) A Técnica Psicanalítica (1910) As Perspetivas Futuras da Terapêutica Psicanalítica (1910) Notas Psicanalíticas sobre Um Relato Autobiográfico de Um Caso de Paranoia – o Caso Schreber (1911) Formulações Respeitantes aos Dois Princípios do Funcionamento Mental (1911) Totem e Tabu (1912-1913) A Propósito de Uma Discussão sobre o Onanismo (1912) Considerações sobre o mais Comum das Limpezas da Vida Amorosa (1912) O Interesse Científico da Psicanálise (1913) Duas Mentiras de Crianças (1913) Novas Recomendações sobre a Técnica da Psicanálise (1913) Contribuição para a História do Movimento Psicanalítico (1914) Para Introduzir o Narcisismo (1914) O Moisés de Miguel Ângelo (1914)