EDGAR ALLAN POE
Contos de terror, mistério & morte Tradução de José Luís Silva
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A máscara da Morte Vermelha
“ M O R T E V E R M E L H A ” tinha há muito devastado o país. Nenhuma pestilência havia
jamais sido tão fatal, ou nefanda. O sangue era seu Avatar e selo: a vermelhidão e o
horror do sangue. Sobrevinham dores agudas e vertigens súbitas, e então o sangramento profuso pelos poros e a liquefação. As manchas escarlates sobre o corpo e especialmente sobre o rosto da vítima eram o anátema da peste, que a excluía da assistência e simpatia de seus semelhantes. Todo o processo de contaminação, desenvolvimento e consumação da doença era coisa de meia hora. Mas o Príncipe Próspero era feliz, destemido e sagaz. Quando seus domínios se encontraram despovoados pela metade, chamou à sua presença um milhar de amigos sãos e de coração leve colhidos entre os cavaleiros e as damas de sua corte, e com eles se retirou para o isolamento profundo de uma de suas abadias acasteladas. Esta era uma edificação ampla e esplendorosa, criação do gosto excêntrico, porém augusto, do próprio Príncipe. Um muro forte e alto a circundava. Tal muro tinha portões de ferro. Uma vez lá dentro, os cortesãos apanharam fornalhas e martelos pesados, e soldaram os ferrolhos. Resolveram não deixar meios nem de ingresso nem de egresso para os impulsos súbitos de desespero dos de fora, ou de exaltação dos de dentro. A abadia foi amplamente abastecida. Com tais precauções, os cortesãos poderiam desafiar o contágio. E o mundo externo que se arranjasse por si. Nesse meio tempo, insensato era se afligir, ou pensar. O príncipe providenciara todos os meios de prazer. Havia bufões e improvvisatori ,* havia dançarinos e músicos – havia Beleza, havia vinho. Isso tudo e a segurança estavam do lado de dentro. Do lado de fora, a “Morte Vermelha”. Por volta do fim do quinto ou sexto mês de isolamento, quando a pestilência vociferava ainda mais furiosamente lá fora, o Príncipe Próspero entreteve seus mil amigos com um baile de máscaras do mais extraordinário esplendor. Foi um espetáculo voluptuoso, aquela mascarada. Mas, primeiro, deixe-me falar dos salões nos quais se deu. Eram sete: uma série imperial de salões. Em muitos palácios, entretanto, tais séries formam um longo panorama retilíneo quando as portas dobradiças são deslizadas para ambos os lados até as paredes, de modo que apenas de raro em raro a visão da extensão completa é obstruída. Aqui, o caso era bem diferente; como se poderia esperar do amor do duque pelo bizarro. Os cômodos se encontravam tão irregularmente dispostos que a visão abrangia pouco mais que um por vez. Havia uma curva fechada a cada vinte ou trinta jardas e, a cada curva, alguma impressão nova. À esquerda e direita, no meio de cada parede, uma alta e estreita janela gótica se abria para um corredor fechado que acompanhava os meandros da série. * Improvisadores. Em italiano no original. (N T )
A MÁSCARA DA MORTE VERMELHA
Tinha vitrais cuja cor variava de acordo com o matiz predominante na decoração de cada aposento que servia. O da extremidade oriental pendia, por exemplo, para o azul – e vivamente azuis eram suas janelas. O segundo aposento possuía ornamentos e tapeçarias purpúreos, e, aqui, purpúreas eram as vidraças. O terceiro era completamente verde, e assim eram os batentes. O quarto fora mobiliado e iluminado com a cor laranja. O quinto, com a branca. O sexto, com a violeta. O sétimo cômodo fora inteiramente amortalhado com tapeçarias de veludo preto, que pendiam de todo o teto e das paredes, depositando-se em pesadas dobras sobre um tapete de mesmo material e matiz. Mas neste aposento apenas, a cor das janelas não combina va com a decoração. As vidraças, aqui, eram escarlate – da cor do sangue profundo. Ora, em nenhum dos sete cômodos, havia lamparina ou candelabro algum em meio àquela profusão de ornamentos dourados que descaiam, dispersos, para lá e cá, e, às vezes, do forro. Luz de espécie alguma emanava de lamparina ou vela alguma no interior da série de aposentos. Todavia, nos corredores que a contornavam, jazia, oposto a cada janela, um pesado tripé sobre o qual se sustentava um braseiro de fogo que projetava seus raios através do vidro tingido e, assim, iluminava deslumbrantemente o quarto. E, deste modo, produzia-se uma multidão de aparências berrantes e fantásticas. Mas, no aposento ocidental ou preto, o efeito da luz do fogo, que fluía até as colgaduras negras através das vidraças tingidas de sangue, era cadavérico em extremo, e gerava uma expressão tão selvagem nos semblantes dos que ali entravam, que, dentre os con vivas, poucos eram corajosos o suficiente para sequer pôr os pés no interior de seu recinto. Era neste cômodo, também, que jazia contra a parede ocidental um enorme relógio de ébano. Seu pêndulo balançava para lá e cá com um tinido surdo, pesado e monótono; e, quando o ponteiro dos minutos completava uma volta no mostrador, e a hora estava para ser soada, provinham dos pulmões de bronze do relógio um som que era claro, alto, profundo e excessivamente musical, mas de canto e ênfase tão peculiares que, a cada lapso de hora, os músicos da orquestra eram obrigados a interromper, momentaneamente, sua performance, para escutar o som; e, assim, os valsistas forçosamente suspendiam seus passos; e um breve desconcerto habitava a todos os alegres convivas; enquanto o carrilhão do relógio ainda repicava, via-se os mais levianos ficando pálidos, e os mais velhos e tranqüilos passando as mãos sobre a fronte, como se em confuso devaneio ou meditação. Quando os ecos cessavam por completo, um riso sem graça permeava de imediato a reunião; os músicos olhavam uns para os outros e sorriam, como que de seu próprio nervosismo e desatino, e ainda faziam, uns para os outros, promessas sussurrantes de que o próximo repique do relógio, neles não produziria efeito similar; e então, após o lapso de sessenta minutos (que abrange três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa), advinha um outro repique do relógio, e então se seguiam o desconcerto, o tremor e a meditação de antes.
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Mas, a despeito dessa situação, era uma festa alegre e esplendorosa. Os gostos do duque eram peculiares. Tinha um olho apurado para as cores e seus efeitos. Desdenhava os decora* do mero bom-tom. Seus projetos eram audazes e impetuosos, e suas idéias fulguravam um lustro bárbaro. Alguns o achariam louco. Seus seguidores sentiam que não. Era preciso ouvilo, vê-lo e tocá-lo para ter certeza de que não era. Ele havia, em grande parte, comandado a ornamentação, em nada rígida, dos sete aposentos, por ocasião dessa grande fête;†, e foi seu próprio gosto diretor que atribuiu personagens aos mascarados. Por certo, eles eram grotescos. Havia muito esplendor, brilho, malícia e fantasmagoria – muito do que vemos desde o Hernani. Figuras arabescas com membros e acessórios inaptos. Fantasias delirantes como as predileções dos loucos. Muito de belo, feminino, e bizarro, algo de terrível, e nem um pingo do que quer que pudesse estimular o sentimento do
desgosto. Para lá e cá, nos sete aposentos, espalhava-se, de fato, uma multidão de sonhos. Esses – os sonhos –, retorcidos sobre si mesmos, e de um lado ao outro, adotavam a cor e a forma dos quartos, e faziam a música selvagem da orquestra passar por eco de seus próprios passos. Então, de pronto, soa o relógio de ébano no vestíbulo de veludo. Por um instante, tudo para e silencia, exceto a voz do relógio. Os sonhos, como estão, congelam-se. Mas os ecos do carrilhão fenecem – eles haviam durado apenas um instante – e um riso sem graça e um tanto contido tremula depois deles, quando partem. Agora, de novo, a música se dilata, os sonhos revivem e se retorcem para lá e cá mais jovialmente que nunca, adotando a cor das janelas hiper-tingidas através das quais fluem os raios dos tripés. Mas, ao mais ocidental dos sete aposentos, nenhum mascarado se aventura agora a ir; pois a noite cai sem cessar; flui uma luz afogueada através das vidraças coloridas de sangue; a escuridão das tapeçarias negras apavora; e também porque, para aquele cujo pé assalta o tapete negro, advém do relógio de ébano ao lado, um estrondo abafado mais solenemente enfático que o que alcança os seus ouvidos quando estão entregues às alegrias distantes dos outros cômodos. Mas esses outros cômodos se achavam apinhados de gente, e neles batia febrilmente o coração da vida. A festa seguiu em turbilhão, até que, por fim, o relógio precipitou o som da meia-noite. A música, então, cessou, do modo já descrito; os passos dos valsistas se aquietaram; e houve uma interrupção constrangida de tudo, como antes. Mas agora, eram doze as badaladas a serem retumbadas pelo sino do relógio; por isso, talvez, mais pensamentos se insinuaram, por mais tempo, nas meditações dos mais reflexivos entre os festeiros. Talvez por isso, também, aconteceu de, antes de os últimos ecos do último carrilhão terem se abismado por completo no silêncio, muitos indivíduos na multidão terem tido oportunidade de notar a
* Ornamentos. Em latim no original. ( N T ) † Festa. Em francês no original. (N T ) 4
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presença de uma figura mascarada, a qual não havia até então atraído a atenção de ninguém. Tendo o rumor dessa nova presença se espalhado aos sussurros pelos quatro cantos, originouse, por fim, entre todos os convivas, um burburinho, ou murmúrio, indicativo, no início, de desaprovação e surpresa – mas logo, finalmente, de terror, horror e repugnância. Numa reunião de fantasmagorias tal como a descrita, poderia-se bem supor que nenhuma aparição ordinária haveria de estimular tal sensação. Em verdade, a licenciosidade mascarada da noite era quase ilimitada; mas a figura em questão havia ultrapassado o próprio Herodes, e ido além dos limites até mesmo do decoro indefinido do príncipe. Há cordas nos corações dos mais imprudentes que não podem ser tocadas sem emoção. Até para os que estão completamente perdidos, e a vida e a morte são igualmente gratas, há assuntos com relação aos quais nenhuma graça pode ser feita. Todos os convivas, de fato, pareciam agora sentir profundamente que não existia na fantasia e no comportamento do estranho nem espirituosidade nem adequação. A figura era alta e lúgubre, e se encontrava amortalhada da cabeça aos pés com os trajes do sepulcro. A máscara que escondia seu rosto fora feita para assemelhar tão proximamente o semblante de um cadáver enrijecido, que o escrutínio mais estreito teria dificuldade em detectar o engano. Até aí, tudo ainda poderia ter sido tolerado, senão aprovado, pelos ensandecidos festeiros à sua volta. Mas o mascarado tinha ido longe demais ao adotar a fantasia da Morte Vermelha. Sua vestimenta estava chuviscada de sangue – bem como sua larga testa e todas as linhas de sua face se encontravam sarapintadas de horror escarlate. Quando os olhos do Príncipe Próspero se deitaram sobre essa imagem espectral (que com um movimento lento e solene, como se para representar mais cabalmente o seu role,* moviase para lá e cá entre os valsistas), ele, de início, entrou em convulsão, em meio a um forte estremecimento de terror ou repulsa; de pronto, contudo, sua face ficou vermelha de raiva. — Quem ousa? – perguntou, roucamente, aos cortesãos próximos a ele. — Quem ousa nos insultar com esse escárnio blasfemo? Peguem-no e tirem-lhe a máscara – vejamos quem temos para enforcar nas ameias ao amanhecer! O Príncipe Próspero estava no aposento oriental ou azul quando pronunciou essas pala vras. Repercutiram sonora e claramente de um extremo ao outro dos sete quartos –, pois o príncipe era um homem forte e seguro de si, e aquietara a música com um gesto de mão. O príncipe estava então no quarto azul, com um grupo de cortesãos pálidos ao seu lado. De início, enquanto falava, houve, da parte desse grupo, um ligeiro movimento de assalto em direção ao intruso, que já se encontrava, além disto, ao alcance de suas mãos, e agora se aproximava ainda mais, em passo deliberado e majestoso, do falante. Mas, em razão de uma certa estupefação sem nome que a tresloucada presunção do mascarado inspirou em todos os con* Papel . Em francês no original. (N T ) 5
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vidados, não se achou ninguém que esticasse a mão para agarrá-lo; de modo que, desimpedido, passou a um metro da pessoa do príncipe; e, enquanto o vasto grupo, como que por efeito de um empurrão, encolhia-se do centro dos quartos para as paredes, seguiu ele o seu caminho sem interrupção, com o passo solene e medido que o havia desde o início distinguido, do aposento azul para o púrpura, do púrpura para o verde, do verde para o laranja, deste, mais uma vez, para o branco, e, ainda, dali para o violeta, antes que qualquer movimento decidido tenha sido feito para detê-lo. Foi então, todavia, que o Príncipe Próspero, enlouquecido de raiva e vergonha com sua própria covardia momentânea, atirou-se com ímpeto e muito às pressas pelos seis aposentos, mas ninguém, por conta do terror mortífero que a todos havia capturado, o seguiu. Carregava no ar uma adaga desembainhada, e chegara, com súbita impetuosidade, a dois braços da figura recolhida, quando esta, tendo alcançado a extremidade do cômodo aveludado, voltou-se de repente e confrontou seu perseguidor. Houve um grito lancinante – e a adaga tombou lampejando no tapete negro, sobre o qual, logo depois, sucumbiu, prostrado em morte, o Príncipe Próspero. Em seguida, convocando a coragem selvagem do desespero, a massa de festeiros se lançou de uma só vez para dentro do aposento preto, e, tendo agarrado o mascarado, cuja figura alta jazia ereta e imóvel na sombra do relógio de ébano, arquejou com inexprimível horror ao descobrir que a mortalha fúnebre e a máscara cadavérica que amarrotavam com violência não era habitada por nenhuma forma tangível. Foi então reconhecida a presença da Morte Vermelha. Chegara como um ladrão na noite. Um a um, tombou cada festeiro nos vestíbulos orvalhados de sangue da festa, morto na posição desesperada de sua queda. A vida do relógio de ébano se apagou com a do último homem alegre. As chamas dos tripés se extinguiram. E as Trevas, o Declínio e a Morte Vermelha tiveram domínio ilimitado de tudo.
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