Educação e Imagens: instituições escolares, mídias e contemporaneid contemporaneidade ade Aristóteles Berino e Conceição Soares (orgs.)
Aldo Victorio Filho Alessandra da Costa Barbosa Nunes Caldas Alik Wunder Ana Godoy André Brown Carlos Eduardo Ferraço Cláudia Regina Ribeiro Pinheiro das Chagas Edméa Santos Geni Amélia Nader Vasconcellos Isabel Machado Jean Beatriz Wermelinger
Leandro Belinaso Guimarães Maja Vargas Marcos Reigota Nilda Alves Paulo Sgarbi Roberta Lobo Rosângela Lannes Couto Cordeiro Stela Guedes Caputo Selma Ferro dos Santos Tânia Mara Pedroso Müller
Conceição:
Para o meu pai
Aristóteles:
Para Caio Graco e Bernardo
SUMÁRIO PRA COMEÇAR, QUEREMOS OS ENCONTROS... PARTE I – INSTITUIÇÕES ESCOLARES EM IMAGENS 1. A trajetória de duas duas professoras negras contada através de fotograas fotograas
Isabel Machado 2. Imagens e narrativas: narrativas: uma viagem pelo Colégio Nossa Senhora das Dores Geni Amélia Nader Vasconcellos, Vasconcellos, Jean Beatriz Wermelinger e Selma Ferro dos Santos 3. O cotidiano do SAM: Histórias e imagens Tânia Mara Pedroso Müller 4. A escola caricaturada Paulo Sgarbi
PARTE II – PRÁTICAS COMUNICACIONAIS E IMAGENS 1. As imagens da escola e as redes de comunicações, conhecimentos conhecimentos e sentidos Conceição Soares 2. Memórias de professoras professoras sobre a televisão e o vídeo: narrativas, imagens imagens e sons Maja Vargas e Nilda Alves 3. Fotograa, educação e tempo: cortar-se cortado por imagens Alik Wunder 4. As imagens e a educação online: convergências entre o cinema e os fóruns de discussão no contexto de uma pesquisa-formação multirreferencial Edméa Santos 5. ‘Divulgar para melhor compreender’ – o caso do Jornal Jornal Eletrônico Educação & Imagem Imagem Alessandra da Costa Barbosa Nunes Caldas e Rosângela Lannes Couto Cordeiro 6. Imagens de mulheres negras em álbuns coletivos Cláudia Regina Ribeiro Pinheiro das Chagas 7. Caricaturas e quadrinhos de Angelo Agostini: imagens de afro-brasileiros afro-brasileiros no século XIX André Brown
PARTE III – TEMAS DA CONTEMPORANEIDADE E IMAGENS 1. Educação Ambiental: um prólogo prólogo e três episódios episódios de re(existência) re(existência) Ana Godoy, Leandro Belinaso Guimarães e Marcos Reigota 2. Cotidianos das escolas e fotograas de atividades escolares: escolares: pistas dos currículos tecidos nas redes de de saberes, fazeres e poderes
Carlos Eduardo Ferraço 3. Apontamentos sobre sobre fotograas na pesquisa em terreiros terreiros de candomblé candomblé
Stela Guedes Caputo 4. Juventude da juventude no corpo da escola e cidade juvenil Aldo Victorio Filho 5. Educação, tecnologia e crítica da cultura Roberta Lobo 6. Antonioni e Platão: entre Blow Up e o diálogo da caverna – imagens Aristóteles Berino
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Pra começar, queremos os encontros... 1
As culturas audiovisuais constroem um entorno que faz pensar com as imagens, paisagem-cultura-mundo audiovisual e tecnológico que brinda um repertório comum em meio ao qual se produz o sujeito contemporâneo; paisagem-cultura local de imagens e narrativas próximas e afetivas que reivindica as estéticas e as histórias locais como táticas legítimas de construção da subjetividade. Culturas audiovisuais da subjetividade e do pensamento (tradução nossa).
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RINCÓN, Omar. Televisión, video y subjetividad. Bogotá: Grupo Editorial Norma, 2002. Integra a coleção Enciclopedia Latinoamericana de Sociocultura y Comunicación.
Las culturas audiovisuales construyen um entor no que hace pensar com las imágenes, paisaje-culturamundo audiovisual y tecnológico que brinda um repertorio común desde donde producir el sujeto contemporâneo; paisaje-cultura-local de imágenes e nar rativas próximas y afectuales que reivindica las estéticas y las historias cercanas como tácticas legítimas de constitución de la subjetividad. Culturas audiovisuales de la sensibilidad y del pensamiento.1
Omar Rincón2
Nós nos encontramos, mais ou menos há um ano, no/com o grupo de pesquisa Currículos, Redes Educativas e Imagens e logo começamos a desenvolver projetos juntos e em conjunto com os pesquisadores do Laboratório Educação e Imagem, ambos coordenados pela professora Nilda Alves e vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/Uerj). Uma jornalista e um historiador. Dois professores com Doutorado em Educação, realizados, contudo, em ocasiões e instituições diferentes e atuando profissionalmente também em instituições distintas. Cada um com suas memórias, suas histórias, suas expectativas, suas redes de significações e relações e já com alguns anos de estradas. Experiências, errâncias, itinerâncias, caminhos e descaminhos que, de repente, se cruzam em meio às nossas buscas por conhecimentos e sentidos que nos orientem para uma vida alargada, criativa e afirmativa. Em comum, a atitude de se pôr em movimento, a abertura para os encontros, a vontade de potência e o interesse (ou gosto?) pelas imagens e seus usos nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos e nas práticas educacionais. Esse encontro com o grupo de pesquisa e com os projetos do laboratór io foi potente e nos possibilitou expandir nossas redes. Dele resultou, entre outros projetos, a oportunidade para organizar o livro digital Educação e Imagem: instituições escolares, mídias e contemporaneidade. Aceitamos o desafio e entramos nessa aventura sem medo dos r iscos que uma nova experiência pode produzir. O interesse pelas imagens e seus usos nas pesquisas e nas práticas educativas, que nos uniu, é também o elo que une os vinte e um professores/pesquisadores, de diferentes instituições, que participam dessa edição.
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Nosso compromisso é com a tessitura de conhecimentos em meios às redes de significações e relações, considerando e dialogando com todas as fontes a que temos acesso. O que buscamos é a expansão dessas redes. É por isso que queremos os encontros... Com artefatos culturais, com novas e diferentes linguagens, com outros professores/pesquisadores e com usuários/leitores.
Breves considerações teórico-metodológico-epistemológicas um campo tem terra e coisas plantadas nela a terra pode ser chamada de chão é tudo que se vê se o campo for um campo de visão
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Letra da canção ‘Campo’, da qual Arnaldo Antunes é compositor e intérprete.
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Nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos adotamos este modo de escrever esses termos pela necessidade que sentimos de mostrar os limites herdados do modo de criar conhecimento, especialmente o pensamento dicotômico, próprio da ciência moderna.
Arnaldo Antunes
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As discussões que temos desenvolvido em torno dos usos de imagens em nossas pesquisas nos/dos/com os cotidianos e nas nossas práticas de ensinaraprender 4 têm nos permitido compreender que o desenvolvimento de questões teórico-epistemológico-metodológicas postas a esse tipo material é uma exigência. A partir de diferentes perspectivas de abordagem, e em diversos contextos, temos usado imagens como ilustração, registro (ambíguo) da experiência, apontamento de memória, caso de pensamento e devir, desenvolvendo, simultaneamente, questões teórico-metodológicas a respeito desses usos. Compreendemos que, de uma forma ou outra, as imagens operam como potência para a produção de teoriaspráticas que visem, para além da compreensão, a fabulação sobre o vivido, permitindo, a partir desse processo, a criação de outros possíveis. Consideramos que as imagens instituem um pensamento plástico, com uma lógica que lhes é peculiar, e que, independente da intenção de quem as produziu, podem nos propor ‘olhares não familiares’ sobre o mundo. Como produto material e simbólico, as imagens podem conter em si mesmas alguma coisa que potencialize o deslocamento do pensamento e da experiência. Entendemos, ainda, que praticar imagens, e aqui nos referimos especificamente a interpretar, produzir e usar imagens, constitui um modo de conceber, expressar, imaginar e, principalmente, produzir o real. Assim, analisar o ato
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de praticar imagens pode nos ajudar a compreender a existência humana na sociedade contemporânea, bem como os modos pelos quais constituímos nossas memórias, nossas utopias e nossas histórias.
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Alves, Nilda. Faz bem trabalhar a memória: criação de currículos nos cotidianos, em imagens e narrativas In: VIII Encontro de pesquisa em educação da região sudeste - Desaos da Educação básica a pesquisa em educação. Vitória/ES: Universidade Federal do Espírito Santo. v.1. 2007, p.10 – 25.
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Foucault, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Por fim, no grupo de pesquisa Cur rículos, Redes Educativas e Imagens defendemos que as imagens remetem às narrativas e que as narrativas remetem às imagens, em processos e conexões permanentes. Assim, ‘ver’ uma imagem implica contar uma história. Por isso, para nós, o uso de imagens em pesquisas, especialmente em pesquisas nos/dos/com os cotidianos, tem exigido, como necessidade epistemológica (da forma como problematiza Nilda Alves)5, a incorporação das narrativas sobre elas ou por elas impulsionadas, inclusive as dos próprios pesquisadores.
Os artigos e o modo pelo qual decidimos organizá-los Os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classicação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito no de pelo de camelo, l) et cétera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que
de longe parecem moscas .
No prefácio de As palavras e as coisas , Foucault6 nos apresenta uma instigante provocação com essa referência a uma classificação dos animais em “uma certa enciclopédia chinesa” de Jorge Luis Borges. A forma de agrupamento e caracterização dos animais, que de imediato provoca risos, nos impele também a pensar sobre algumas operações que realizamos nos processos de criação, sistematização e comunicação de conhecimentos. No caos semiótico em que vivemos, nos valemos da prática da ‘edição’ para tentar colocar uma ordem nas nossas percepções e afetações pelas pessoas e pelas coisas e, assim, compreendê-las, identificá-las, reuni-las, combiná-las e expressá-las de forma que ‘faça algum sentido’. Estamos todo o tempo, nem que seja apenas na nossa cabeça, editando: os ruídos, os sons, as imagens, as palavras, as memórias, os pensamentos... De uma prática de edição depende a música, o cinema, a televisão, o jornal, o álbum de fotografias, a fala das ruas e também o livro, a aula e a pesquisa científica. A edição é uma operação nossa, um modo de organização da experiê ncia, e não tem a ver com a ‘ordem natural das coisas’. Editamos, e para isso selecionamos, classificamos, agrupamos, esquematizamos, da forma como nos parece ‘fazer sentido’. Com esse livro não foi diferente, embora o suporte digital assegure a possibilidade de que cada usuário/ leitor escolha, mais fácil e livremente, seu percurso de leitura. Contudo, há outra coisa que fazemos frequentemente em
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nossas vidas cotidianas: desconstruir as edições alheias e construir tantas outras quanto forem possíveis e necessárias. Assim compreendendo, e ainda sem conseguir mos nos desvencilhar da necessidade de uma organização formal, optamos por agrupar os artigos da forma que nos pareceu ‘fazer mais sentido’. Ou seja, a partir dos temas aos quais eles se referem. Esse processo resultou em três grandes grupos, que constituem as três partes do livro: 1) Instituições escolares em imagens; 2) Práticas comunicacionais e imagens; e 3) Temas da contemporaneidade e imagens.
Parte 1 - Instituições escolares em imagens Na primeira parte, Instituições escolares em imagens, reunimos os textos: As trajetórias de duas professoras negras contadas com imagens e outras narrativas, de Isabel Machado; Imagens e narrativas: uma viagem pelo Colégio Nossa Senhora das Dores, de Geni Amélia Nader Vasconcelos, Jean Beatriz Wermelinger e Selma Ferro dos Santos; O cotidiano do SAM: histórias e imagens, de Tânia Mara Pedroso Müller; e A escola caricaturada, de Paulo Sgarbi. Isabel Machado aborda em seu artigo alguns aspectos das trajetór ias de duas professoras negras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) revisitando, através de fotografias do acervo de J. Vitalino e de conversas com uma delas, os caminhos percorridos por essas professoras em uma instituição de ensino superior marcada pelo racismo institucional e estrutural. Na sua abordagem, Machado toma as fotografias como documentos visuais que portam informações e detonam emoções. Como na viagem do flaneur , Geni Amélia Nader Vasconcelos, Jean Beatriz Wermelinger e Selma Ferro dos Santos exploram possibilidades de sentidos não-hegemônicos em meio aos espaçostempos do Colégio Nossa Senhora das Dores. Nessa viagem, elas ‘conversam’ com imagens e narrativas plurais produzidas por aqueles que lá transitam. Para as autoras, as fotografias, como disparadoras de sentidos , possibilitam uma viagem livre que nos arrasta para outros tempos e espaços muito além do aqui e agora do instante fotográfico. Um encontro com centenas de fotografias do antigo Serviço de Assistência ao Menor (SAM) instigou Tânia Mara Pedroso Müller a investigar a trama histór ica que originou a produção e utilização dessas imagens. No artigo, a pesquisadora discute o contexto histórico de produção das fotografias, problematiza a investigação realizada pela Comissão de Sindicância instalada para apurar denúncias feitas pela mídia e, por fim, apresenta o cotidiano dos meninos e
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meninas nas escolas do SAM, revelados no relatório produzido por essa Comissão, cujas imagens fizeram parte. Conforme Müller, as fotografias constituem um universo pleno e fértil de informações. Fechando esse primeiro bloco, Paulo Sgarbi nos apresenta caricaturas da escola e discute-as como modos de representação e expressão que satir izam as pessoas e os fatos ao se referirem aos cotidianos vividos. Sgarbi, que considera o gênero caricatural como uma linguagem potente na “leitura” das acontecências de vários “reais” escolares , constrói sua narrativa a partir de diversos e combinados modos de escrita.
Parte 2 – Práticas comunicacionais e imagens Nesse segundo bloco, intitulado Práticas comunicacionais e imagens, reunimos artigos que tratam dos diversos e diferentes ‘usos’ de meios e artefatos comunicacionais nas práticas cotidianas, coengendrando redes educativas. Os artigos que compõem o bloco são: As imagens da escola e as redes de comunicações, conhecimentos e sentidos, de Conceição Soares; Memórias de professoras sobre a televisão e o vídeo: narrativas, imagens e sons , de Maja Vargas e Nilda Alves; Fotografia, educação e tempo: cortar-se cortado por imagens, de Alik Wunder; As imagens e a educação online: convergências entre o cinema e os fóruns de discussão no contexto de uma pesquisa-formação multirreferencial , de Edméa Oliveira dos Santos; ‘Divulgar para melhor compreender’ – o caso do Jornal Eletrônico Educação & Imagem, de Alessandra da Costa Barbosa Nunes Caldas e Rosângela Lannes Couto Cordeiro; Imagens de mulheres negras em álbuns coletivos, de Cláudia Regina Chagas; e Caricaturas e quadrinhos de Angelo Agostini: imagens de afro-brasileiros no século XIX , de André Brown. No artigo que abre esse bloco, Conceição Soares discute o uso de fotografias na pesquisa nos/dos/com os cotidianos e nas práticas educativas em uma escola pública. A autora discute o contexto em que se dá a profusão de imagens realizadas por não profissionais e toma de empréstimos as fotos da escola para problematizar as fabulações sobre os currículos vividos e a produção de subjetividades. Para Soares, as imagens são documentos ambíguos de cotidianos ambíguos, que contêm em si realidades e ficções, vivências e prospecções.
Maja Vargas e Nilda Alves nos apresentam vídeos feitos por professores, no contexto de uma pesquisa que discute: tessitura de conhecimentos e significações no cotidiano e valores; formação continuada de professoras e uso da tecnologia; autoria, memória e narrativa; imagem e som . As memórias de professores sobre o meio televisão/vídeo, os vídeos criados sobre narrativas feitas por eles e o material acumulado no making of do trabalho, constituem o corpus da análise, que possibi-
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lita a compreensão dos processos de reprodução, transformação e criação de valores (éticos e estéticos) na própria ação de professoras em processos de formação, nos usos que fazem de artefatos tecnológicos contemporâneos com imagens e sons e como essas praticantes negociam mudanças em suas práticas curriculares cotidianas nesses processos .
A partir de uma lógica de sensações, Alik Wunder propõe que a fotografia pode ser pensada/sentida/usada como cicatriz, que nos desloca e faz vazar os sentidos. O que interessa à autora são as passagens entre o olhar fotografias e o pensar por elas, na intensidade do tocar e ser tocado, cortar e ser cortado. Assim, a partir de imagens de escolas produzidas por educadores em cursos por ela realizados e que tinham como proposta a produção de ensaios fotográficos, Wunder busca criar com eles um movimento de pensamento em que as imagens movimentassem os conceitos, ao mesmo tempo que os conceitos movimentassem as imagens . Edméa Santos nos apresenta uma experiência que faz convergir o uso do cinema em situações de aprendizagem presenciais e a vivência em fóruns de discussões on-line. A experiência foi realizada no contexto de atividades formativas que procuram integrar universidade, escola básica e docência online, por meio de práticas mediadas por mídias digitais em rede e que partiram da necessidade de ampliar os repertórios culturais dos sujeitos envolvidos. Segundo a pesquisadora, as narrativas cinematográficas articulam saberes e conhecimentos fundamentados nas Ciências, nos Saberes dos Cotidianos, na Filosofia e nas Artes de uma forma geral.
A divulgação científica através da internet é o tema da reflexão de Alessandra da Costa Barbosa Nunes Caldas e Rosângela Lannes Couto Cordeiro, que discutem as narrativas e as imagens de professores/pesquisadores veiculadas pelo Jornal Eletrônico Educação & Imagem. No artigo, as autoras analisam editorias e textos de algumas seções, para abordar as discussões teórico-metodológicas em relação ao uso de imagens adotadas pelos diferentes grupos de pesquisas que contr ibuem com o periódico. De acordo com elas, o jornal propõe a possibilidade de mudar o modelo de comunicabilidade entre a universidade e a escola fu ndamental, desenvolvendo uma prática dialógica, recriando a proximidade e acompanhando práticas curriculares.
Claudia Regina Ribeiro Pinheiro das Chagas escreve sobre a história de mulheres negras contada a partir das fotografias de álbuns coletivos. Esse tipo de álbum, conforme Chagas, possibilita um resgate da memória familiar dos grupos sociais, representando o sistema de vida em determinado contexto , bem como nos convoca a perceber as ausências nos espaçostem pos vazios.
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A memória da vida cotidiana brasileira no final do séc. XIX, no modo pelo qual foi representada nas caricaturas e quadrinhos de Angelo Agostini, é a problemática que André Brown desenvolve em seu artigo. Considerando que as histórias em quadrinhos são compostas por imagens e textos, o autor busca compreender as relações discursivas no entrelaçamento das linguagens desenhadas e escr itas. Brown defende que histórias em quadrinhos, caricaturas e charges ajudam bastante em sala de aula, mas assume que os usos dessas linguagens são recursos, entre outros tantos, e não representam uma fórmula milagrosa para aprenderensinar.
Parte 3 – Temas da contemporaneidade e imagens Na última parte do livro, reunimos textos que se ocupam de pesquisas, como imagens e narrativas, voltadas a questões emergentes na contemporaneidade: Educação Ambiental: um prólogo e três episódios de re(existência), de Ana Godoy, Leandro Belinaso Guimarães e Marcos Reigota; Cotidianos das escolas e fotografias de atividades escolares: pistas dos currículos tecidos nas redes de saberes, fazeres e poderes, de Carlos Eduardo Ferraço; Apontamentos sobre fotografias na pesquisa em terreiros de candomblé, de Stela Guedes Caputo; Juventude da juventude no corpo da escola e cidade juvenil , de Aldo Victorio; Educação, tecnologia e crítica da cultura , de Roberta Lobo; e Antonioni e Platão: entre Blow Up e o diálogo da caverna – imagens, de Aristóteles Berino. De um encontro entre três pesquisadores que se ocupam da Educação Ambiental em suas relações com a contemporaneidade e com a existência, resulta o artigo assinado por Ana Godoy, Leandro Belinaso Guimarães e Marcos Reigota. Desse encontro, para ministrarem o minicurso “Meio Ambiente, Cultura e Educação” (Anped, 2009), resulta a parceira entre os autores e também o texto aqui apresentado em três episódios. Nos dois primeiros, Godoy e Guimarães, cada um a seu tempo, abordam questões originadas no minicurso. Já no terceiro episódio, Reigota apresenta uma versão ampliada de uma conferência que deu no México. A preocupação comum, segundo os próprios autores, é com o olhar que lançamos ao mundo e como esse olhar caracteriza nossas intervenções cotidianas, assim como a nossa produção teórica e/ou imagética.
Carlos Eduardo Ferraço nos traz fotografias de escolas para discutir diversos usos que se faz delas nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos escolares. Para o autor, as fotografias nos oferecem pistas dos currículos tecidos nas redes de saberes, fazeres e poderes. No contexto dessas pesquisas, as imagens, além de registrarem fragmentos de diferentes
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movimentos e momentos das práticas pedagógicas, também ampliam as redes dos sujeitos praticantes à medida que potencializam outros modos de tecerem os currículos, outras possibilidades de experimentação-problematização de suas redes de conhecimentos.
Pesquisando, há quase vinte anos, crianças em terreiros de candomblé, Stela Guedes Caputo nos apresenta apontamentos sobre o uso de fotografias, suas e de outros, em pesquisas sociais. Para Caputo, as fotografias são fundamentais em sua pesquisa, pois mostram coisas que, além só poderem ser vistas e produzidas no ato fotográfico, as palavras não conseguem expressar. Como pescadora fotográfica ela diz que buscou fixar rostos de cr ianças, adolescentes e adultos, seus gestos, risos, olhares, roupas e artefatos religiosos, porém, eles não se deixaram fixar . Caputo diz ter aprendido muitas coisas com as fotografias, sobre ética, sobre metodologia e sobre o próprio tema estudado. Encarando o desafio e a urgência de refletir sobre os acontecimentos que dizem respeito à juventude e seus sujeitos, Aldo Victorio Filho se propõe a tentar elucidar as energias culturais juvenis que movimentam um mundo parametrizado pelas perspectivas adultocêntricas e o faz a partir de uma discussão da relação imagem, juventudes e escola. O pesquisador se debruça sobre imagens de jovens estudantes de uma escola pública, cujos corpos em movimento oferecem farta torrente de indícios sobre suas vidas, sobre a educação e a realização da cidade.
Entendendo educação como crítica da cultura e baseando-se no conceito de racionalidade tecnológica de Marcuse, Roberta Lobo busca, com seu questionamento, compreender a relação entre processos educativos e processos de produção com base nas novas tecnologias, em especial com as chamadas tecnologias livres. Sua proposta é descortinar o fetiche da tecnologia com base na apresentação das relações sociais concretas, incluindo aspectos da ‘nova ordem mundial’, do mundo do trabalho e da produção em larga escala do lixo tecnológico.
Aristóteles Berino, no último texto do livro, procura aproximar algumas questões referidas à dissimulação das imagens que percorrem o filme Blow Up, História de um Fotógrafo , de Michelangelo Antonioni, e a alegoria da caverna , de Platão. O autor parte de um dilema recorrente que a fotografia traz consigo a respeito da produção do conhecimento: é possível acreditar na percepção que proporciona nossos sentidos, no conhecimento que nos dá a experiência? Posta a questão, Berino problematiza a possível identidade entre o que existe e o que é visto, entre aquilo que ocorre e o que narramos através da experiência vivida.
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Em seu conjunto, os textos acima relacionados remetem a algumas das inquietações que têm impulsionado professores/pesquisadores a buscar outros modos de compreensão do mundo em que trabalham e que vivem, cada vez mais midiatizado e povoado de imagens técnicas. Remetem também às discussões teórico-metodológico-epistemológicas que vêm sendo realizadas com o intuito de compreender e de constituir processos de criação de conhecimentos por meio dos usos que fazem dessas imagens nas pesquisas. Dessa forma, encerramos esta apresentação convidando os usuários/leitores a imergirem nesse universo, criando suas própr ias trilhas, pois, parodiando Sontag7 em relação ao que ela diz sobre a fotografia, acreditamos que as imagens são documentos impregnados de fantasia, tanto dos produtores, quanto dos usuários/leitores. Ao revelar o que está lá, e também o que está ausente, as imagens propõem-se como realismo da incerteza.
Aristóteles de Paula Berino Conceição Soares
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Sontag, Susan. Sobre fotograa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
PARTE I (animação)
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As trajetórias de duas professoras negras 1 contadas com imagens e outras narrativas
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“Negro. Denominação genérica do indivíduo de pele escura e cabelo encarapinhado e em especial dos habitantes da África subsaariana e seus descendentes; descendente de africano, em qualquer grau de mestiçagem, desde que essa origem possa ser identicada fenotipicamen te. No Brasil, o vocábulo, que durante muitos anos foi sinônimo de “escravo”, passou, com o tempo, a ser um referente étnico e político, reivindicado como autodenominação até pelos afro-descendentes de pele clara. Nos Estados Unidos, a conotação negativa ainda acompanha o qualitativo “negro” e sua variante “nigger”, altamente ofensiva. Assim, lá, os afro-descendentes reivindicam para si o tratamento de “african-americans” (afro-americanos), a exemplo de outros grupos, como os judeus americanos, ítalo-americanos, hispano-americanos etc., cujas origens étnicas foram agregadas às respectivas deni ções de nacionalidade” (Lopes, 2004, p. 47).
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Nas pesquisas que desenvolvemos, mostrando os limites de nossas heranças da Ciência Moderna, grafamos assim certos termos que aprendemos a ver dicotomizados.
Isabel Machado
Este texto aborda alguns aspectos da história de duas professoras negras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Maria José e Lucia Maria, mãe e filha. A partir da análise de fotografias, procuro, com o auxílio de outras narrativas, (re)visitar os caminhos percorridos por essas professoras em uma instituição de ensino superior marcada pelo racismo institucional e estrutural – como acredito que são todas em nosso país. Nessa instituição, poucas mulheres negras ocupavam/ocupam cargos considerados de poder. Interessa-me, então, compreender como essas duas professoras negras apropriaram-se/apropriam-se dos cur rículos como meio para ocupar, e assim tornar habitáveis com suas marcas de praticantes (Certeau, 1994), espaçostempos2 já marcados por práticas de segregação, buscando superar processos históricos de invisibilização, silenciamentos e discriminações. Santana (2004, p. 44) indica a importância dos estudos biográficos de professores(as) negros(as) dizendo que, nessa linha de abordagem, considero que cada percurso dos professores negros representa uma forma singular de ver as relações raciais que é marcada, justamente, por suas vivências e pelos significados que eles atribuíram e atribuem a elas. Apesar de existirem muitos pontos em comum entre esses professores, cada um expressará uma concepção e uma atuação diferenciada. Algo comum é a vivência com a discriminação racial, característica peculiar aos que são vistos como diferentes e desiguais. Mas o enfrentamento dessas discriminações poderia compor um quadro de vários matizes.
Pesquisar as trajetórias de professoras negras no ensino superior é uma for ma de reivindicar mais um campo de lutas, no qual a mulher professora negra recebe todo o ‘peso’ que estas adjetivações acarretam. Santana salienta que a história de vida de cada professor pode formar um quadro variado, pois a presença nesses espaços institu cionais se transforma em uma forma de resistência para esses professores e professoras com as marcas das suas vivências singulares.
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A partir da indicação de Santana e do acervo fotográfico de J.Vitalino, com o qual venho trabalhando,3 analisei os caminhos percorr idos pela professora Maria José Alves de Oliveira – Zezé, como era conhecida. Essa trilha me levou também ao encontro de sua filha Lucia Maria Alves de Oliveira. Zezé foi professora do Instituto de Educação Física e Desportos da Uerj desde sua criação, em 1970, até 2008, ano em que faleceu. Lúcia Maria também é professora desse Instituto desde 2003, muito por influência de sua mãe. Atualmente, ela é responsável pelo Laboratório de Programa de Culturas Populares e Folclore (LCPF), cujo projeto foi gerado por sua mãe. Essas professoras tornaram-se ‘personagens’ importantes de minha pesquisa, na qual segui um caminho metodológico diferente daqueles que geralmente são percorr idos em algumas pesquisas mais tradicionais. Examinando imagens do acervo do fotógrafo da Uerj descobri uma dessas mulheres. A partir da análise das imagens, fui (re)construindo sua trajetória e, em meio a esse movimento, buscando entender quais foram os processos engendrados para o permanecimento de professoras negras nessa instituição. Quais as táticas (Certeau, 1994) que elas lançaram mão para transpor barreiras impostas pelo racismo institucional e social? Pouco a pouco, à maneira de um quebra-cabeça, juntando peça por peça, fui produzindo dados que per mitiram o desenvolvimento de minha pesquisa. Compreendo o “uso” de fotografias na pesquisa social no modo como propõe Kossoy (2001, p. 28), quando ele indica: é a fotografia um intrigante documento visual cujo conteúdo é a um só tempo revelador de informações e detonador de emoções. Segunda vida perene e imóvel preservando a imagem-miniatura de seu referente: reflexos de existências/ocorrências conservados congelados pelo registro fotográfico. Conteúdos que despertam sentimentos profundos de afeto, ódio ou nostalgia para uns, ou exclusivamente meios de conhecimento e informação para outros que os observam livres de paixões, estejam eles próximos ou afastados do lugar e da época em que aquelas imagens tiveram origem.
Fotograas, marcas e pistas: caminhos percorridos Quando comecei a trabalhar com as fotografias do acervo de J. Vitalino, e no contexto do meu interesse em investigar as questões raciais em suas relações com a educação, detive-me, inicialmente, nas fotografias em que pude identificar, visualmente, negros e negras. Para isso, tomei como referência a pigmentação da pele dos fotografados, considerando ainda algumas características físicas que me são familiares, tais como: formato do nariz, boca e tipos de
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A pesquisa desenvolvida tem como título: Memórias Imagéticas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – algumas questões curriculares sobre um acervo fotográco da Uerj.
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cabelos. A identificação, classificação, segregação e discriminação das pessoas a partir de critérios como esses está no cerne das questões raciais e, no modo como sugerem autores como Paixão (2006), Guimarães (2008) e Teixeira (2003), dão sustentação ao chamado preconceito de marcas, baseado no fenótipo ou aparência e que determina preterição.
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“A Reserva de Cotas, em se tratando de espécie de Ação Ar mativa, propõe-se a representar a efetivação do compromisso assumido pela Constituição de 1988 e pelos acordos internacionais de direitos humanos, que nosso País é signatário. Por esse sistema, é reservado, na área educacional, um percentual de vagas em universidades pú blicas, as quais contemplariam negros, índios e alunos que cursaram o ensino fundamental e médio em escolas públicas” (Moura, Online, p. 3).
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Total de professores por sexo e cor – Brasil/ Censo demográ co 2000: Professores do ensino superior: Homens brancos 23,3, Homens pretos e pardos 8,0; Mulheres brancas 5,1, Mulheres pretas e pardas 1,6.
Saliento, contudo, que esses critérios para identificar negros e negras só podem ser pensados na contingência da relação com o olhar do outro, do que está de fora (Gomes, 2006), ou seja, daqueles que, em meio a relações culturais, políticas e econômicas, se consideram não-negros e, em determinadas condições de saber/poder, produzem e tentam fixar significados sobre aqueles que pretendem subalternizar. Por outro lado, reivindicar para a si própr io(a) a condição de negro(a), em contextos de relações raciais, culturais, políticas e econômicas assimétricas, constitui um modo de posicionar-se politicamente, com a perspectiva de afirmação, sensibilização, mobilização, enfrentamento e luta. Num primeiro momento, minha intenção ao pesquisar as fotografias daquele acervo era analisar a presença de negros e negras na universidade antes da implementação da reserva de vagas4 para aqueles(as) que se auto-declarassem como tais. Ao analisar o mater ial, percebi a necessidade de afunilar quais seriam os objetivos, qual seria o ponto principal de análise e que segmento da universidade elegeria para pesquisar (se funcionários, discentes ou docentes). Para tal escolha, busquei saber onde estariam os menores contingentes de pessoas negras nesses três segmentos. Baseada em dados do IBGE, apresentados por Teixeira (2006, p. 30), apontando números significantemente inferiores de professores negros em relação a professores brancos no ensino superior, fiz a minha escolha. E, mais ainda: comparando os números de professoras negras com o de professoras brancas, vi que entre as mulheres a desproporcionalidade era ainda maior.6 Uma vez decidida a pesquisar a presença de professoras negras, resolvi que seguiria os “rastros” ( Ginzburg, 1989) delas através das fotografias em que aparecessem. Recorro ainda, uma vez, a Santana (2004, p. 43) quando nos diz que “as biografias dos professores, por sua diversidade, permitem apreender os vários percursos de formação e transformação”. Retornei ao acervo lançando outros olhares. Uma figura, que já havia se destacado durante meu primeiro contato com os álbuns de J. Vitalino pelas suas vestimentas características de algumas representações de mulheres do continente africano, chamou mais uma vez minha atenção. Continuei seguindo seus rastros e algumas pistas, presentes
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em outras imagens, indicavam que ela poderia ser uma professora, como quando, por exemplo, foi fotografada entre alunos, identificáveis pelos uniformes, e ao lado do reitor Charles Fayal. Em conversas com outros integrantes do grupo de pesquisa do qual faço parte, sobre a dificuldade em encontrar informações sobre a série de fotografias nas quais essa mulher neg ra aparecia, estes, ao verem tais fotos, reconheceram-na como uma ex-professora do Instituto de Educação Física, Maria José. A ausência ou escassez de informações sobre professores(as) negros(as) é uma das “estratégias” (Certeau, 1994) utilizadas por aqueles(as) que tentam invisibilizar a presença dos negros no ensino superior. Santos (2002), em sua proposta de uma “sociologia das ausências” , com a qual busca explicar e reverter certos mecanismos de invizibilização, destaca que o que não existe é produzido ativamente como não-existente, como uma alternativa não-crível, como uma alternativa descartável, invisível à realidade hegemônica do mundo. Na tentativa de transpor tais “estratégias” recorri, tacitamente, às pessoas que a identificaram. Uma delas foi Guilherme Locks, professor do mesmo Instituto de Educação Física e Despor tos, que, ao saber que me interessava pela história dessa professora, contou que sua filha, também professora do instituto, havia assumido a disciplina ministrada pela mãe anteriormente. Então, marquei uma entrevista com a professora Lucia Mar ia.
O encontro com Lucia Maria e Maria José O encontro foi no Laboratório de Programa de Culturas Populares e Folclore (LCPF), localizado no nono andar do bloco F, na Uerj, em uma sala onde vi alguns objetos que havia identificado nas fotografias que analisei: algumas vestimentas usadas em festividades, instrumentos musicais, adereços e outros objetos que já me eram familiares através das imagens. Para essa conversa, levei as fotografias nas quais identifiquei Maria José, o currículo Lattes dela e o de Lucia Maria. Por meio dos cur rículos soube que ambas tinham suas vidas acadêmicas interligadas, ao ponto de terem escrito textos juntas e de Lucia ter sido orientada na graduação por sua mãe. Nesse encontro, a história que conto sobre a trajetór ia dessas professoras continuou sendo tecida com múltiplos e novos fios. Às imagens produzidas pelo fotógrafo, às minhas impressões sobre elas e às informações que havia levantado sobre a vida acadêmica das duas, articulavam-se agora com as memórias e as fabulações de Lucia Maria.
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Lucia viu as fotografias, identificou a mãe e falou sobre algumas situações retratadas. Em algumas das fotos notou a presença de suas irmãs e dela própria. Contou que participava dos eventos realizados pela mãe desde criança e que Maria José fazia questão que as filhas participassem de sua vida profissional. Segui conversando sobre as atividades desenvolvidas por Lucia e esta me disse que falar sobre sua trajetória era inevitavelmente falar sobre sua mãe. Com a pesquisa que realizei sobre a atuação de Mar ia José na Uerj percebi que ela, por meio dessa disciplina e do laboratório, trouxe para a universidade aqueles(as) que estavam em seu entor no, mas que, no pensamento de tantos, ali não deviam estar presentes. Um movimento que continua realizado por sua filha, principalmente, a partir das atividades do Laboratório de Programa de Culturas Populares e Folclore. Essa ligação de Maria José com as comunidades vizinhas, consideradas como de ‘fora’ do espaço acadêmico – e que agora são parceiras de sua filha –, foi registrada em várias fotografias. Contudo, questiono a ideia do que seja estar ‘fora’, pois tais comunidades, de alguma maneira, sempre estiveram presentes nesse lugar, apesar dos processos de de squalificação e invisibilização. A esse respeito, Guimarães (2008, p. 49), em sua descrição sobre discriminação, afirma: Nesse caso, o preconceito age de modo ativo em detrimento de seu desafeto. Seu comportamento procura impedir os membros de um determinado grupo de usufruírem certos tipos de emprego, áreas residenciais, direitos políticos, oportunidades educacionais ou recreativas, igrejas, hospitais, ou algum tipo de privilégio social. A segregação é uma forma institucionalizada de discriminação, protegida pelas leis ou pelos costumes.
No Brasil, muitas vezes essa discriminação não ocorre de forma explícita, mas sutilmente. Lucia, em um momento de sua fala, lembra que sua mãe, por vezes, era considerada mística em função do trabalho dela. Entendo que essa pode ser uma forma de desqualificar o que fazia, não apenas por basear-se na ideia do negro como o ‘exótico’, mas principalmente por tentar caracterizar as práticas daquela professora como não-científicas, não-acadêmicas. O racismo, o preconceito e a discriminação produziram/produzem desigualdades sociais profundas na sociedade brasileira. As maneiras como eles se manifestam tornam-se ainda mais perversas quando são sutis, fazendo com que, muitas vezes, aqueles que os sofrem sequer os percebem. A compreensão do envolvimento de Maria José com as questões raciais perpassa o reconhecimento do lugar que ela ocupou, tendo sido uma professora negra em um ambiente marcado pelo racismo estrutural, institucional e social. Gomes (1995, p. 142) escreve que:
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ser negra e discutir a questão racial é um processo muito complexo. Representa ser confrontada a todo momento com o racismo vivido na história, no cotidiano e com a introjeção dos valores racistas. Para desconstruí-los há que se fazer um longo processo de repensar a própria trajetória da vida.
As fotografias nas quais Zezé aparece são aquelas realizadas para retratar eventos. Entre eles: festivais de música, atividades com a presença de integrantes de escolas de samba, apresentações de cantores e cantoras brasileiras e um encontro com comitiva do governo do Senegal. O envolvimento dela com esses projetos não deve ser considerado uma mera coincidência, pois suas práticas e sua presença em tais acontecimentos, embora a filha relate que Maria José não era integrante de nenhum movimento organizado relacionado a questões raciais, eram modos de se posicionar politicamente. Entre as fotografias que apresentei a Lucia, está uma série de imagens por meio das quais infiro o posicionamento de Maria José em relação às questões que envolvem as relações raciais. Nessa série, ela aparece em uma foto feita para registrar uma cerimônia em que o reitor Charley Fayal confere um diploma de honra e amizade a Nelson Mandela. No diploma, datado de 11 de outubro de 1985, pode-se ler: O reitor da Uerj, no uso de suas atribuições, confere este diploma de honra e amizade a Nelson Mandela, como elo importante da corrente de solidariedade que o mundo vem construindo pela causa da liberdade, igualdade, justiça e dignidade de nossos irmãos sul-africanos. 6
Na referida fotografia, Maria José está ao lado de um homem n egro reconhecido por Lucia como o fotógrafo Januário,6 importante fotógrafo brasileiro. Essa cerimônia foi coordenada pelo Instituo Com Áfr ica, fundado em 1985 com a intenção de unir pesquisa acadêmica e ações políticas empreendidas pela sociedade civil na luta contra o racismo em todo o mundo. As práticas de Maria José e Lucia Maria se inscrevem entre os múltiplos modos de lutas contra o racismo, tecidos incessantemente em nossa sociedade pelos praticantes da cultura em seus múltiplos contextos cotidianos, inclusive na universidade. Nessas idas e vindas, vou tecendo minha pesquisa articulando essas histórias a outras h istórias de diferentes mulheres negras, com suas lutas, conquistas, constituição processos identitários, superações e mudanças, tecidas em meio às suas práticas nos diversos contextos cotidianos em que viveram e vivem.
O fotógrafo Januário Garcia, negro e militante, vem documentando, com imagens, histórias de negros brasileiros. Outras informações sobre o fotógrafo e sua obra estão disponíveis em http://imagesvisions.blogspot. com/2008/10/exposio-do-fotgrafo-janurio-garcia.html.
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Referências bibliográcas ALVES, Nilda. Memórias Imagéticas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – algumas questões curriculares sobre um acervo fotográco da Uerj . Rio de Janeiro, 2008. (Projeto de pesquisa). CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano – artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. GUIMARÃES, Antonio. Preconceito racial: modos, temas e tempo. São Paulo: Cortez, 2008. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GOMES, Nilma. Sem perder a raiz: o corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. ________. A mulher negra que vi de perto. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1995. KOSSOY, Boris. Fotograa & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2004. MOURA, Adriana Galvão. A questão das ações armativas – a reserva de cotas para negros, à luz do princípio constitucional da igualdade.Disponível em: http://www.feb.br/revistafebre/ARESERVACOTASNEGROS.pdf. Acesso: 04 de março de 2010. PAIXÃO, Marcelo. Manifesto anti-racista: idéias em prol de uma utopia chamada Brasil. Rio de Janeiro: DP&A; LPP/Uerj, 2006. SANTANA, Patrícia. Professores Negros: trajetórias e travessias. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2004. SANTOS, Boaventura. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: Revista Crítica de Ciências Sociais. n. 63, p. 237-280, out. 2002. TEIXEIRA, Moema. A presença negra no magistério: aspectos quantitativos. In: Oliveira, Iolanda de.(org.) Cor e Magistério. Niterói, RJ: Quartet/ EDUFF, 2006. _________. Negros na universidade: identidade e trajetória de ascensão social no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
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Imagens e narrativas: uma viagem pelo Colégio Nossa Senhora das Dores Geni Amélia Nader Vasconcelos Jean Beatriz Wermelinger Selma Ferro dos Santos
Quem vai a Olinda com uma lente de aumento e procura com atenção pode encontrar em algum lugar um ponto não maior do que a cabeça de um alfinete que um pouco ampliado mostra em seu interior telhados, antenas, clarabóias, jardins, tanques, faixas através das ruas, quiosques nas praças, pistas para as corridas de cavalos. Aquele ponto não permanece imóvel: depois de um ano, já está grande como um limão; depois, como um cogumelo; depois, como um prato de sopa. E eis que se torna uma cidade de tamanho natural, contida na primeira cidade: uma nova cidade que abre es paço em meio à primeira cidade e impele-a para fora. Ítalo Calvino. As cidades invisíveis
Tornarmo-nos viajantes, ao modo de Marco Pólo na obra de Calvino (1999), é abrirmo-nos para possibilidades fantásticas de percursos. Percursos que nos impulsionam a buscar rotas diversas, a transitar por meandros que escapam aos caminhantes de pouca sensibilidade, apressados, incapazes de percebê-los. Percursos que esgarçam itinerários programados, roteiros pré-definidos, apontando-nos novas e incessantes descobertas e aventuras. As cidades invisíveis de
Calvino convidam-nos a conhecer o outro, os tantos outros em sua alteridade, em seus modos de fazer, sentir e pensar. Cada uma das cidades de Calvino pode ser considerada espaçotempo1 de busca, de questionamentos criados e recriados com a presença dos que as percorrem. Como Olinda, narrada em epíg rafe, outros espaços ganham densidade, movimento e novos sentidos por meio
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Esse modo de escrita, aprendido com Nilda Alves e presente em outros momentos deste texto, indica que cada um dos termos reunidos nessa palavra está estreitamente ligado ao outro e só existe nessa relação.
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de narrativas e imagens trazidas por aqueles que neles transitam. É essa possibilidade que abraçamos na elaboração deste texto. Contrapondo-nos aos que preferem os circuitos programados para tur istas, que tudo pretendem apresentar sem perceber o quanto lhes escapa, preferimos a viagem do flaneur, do passeante “ocioso” (Pais, 2003) sem destino aparente. Preferimos rotas não estabelecidas, abertas ao imprevisto. A Olinda pela qual viajamos é o Colégio Nossa Senhora das Dores, escola confessional católica da região serrana do Rio de Janeiro, conhecida também como CNSD, “Colégio das Irmãs”, ou simplesmente, “das Dores”. Cada uma dessas denominações constitui pista para as tantas histórias que essa escola abriga em seus mais de cem anos de existência. Como ex-alunas, mães, avós e professoras, nossas vidas nos enredam, nessa instituição, a muitos outros sujeitos que, com gramaticalidade e temporalidade distintas das nossas, a constituem. Viajarmos pela nossa Olinda é mergulharmos em imagens e narrativas trazidas pelas irmãs doroteias,2 colegas, filhos, netos, alunos, famílias e muitos outros constituintes dessa rede, percorrendo rotas diversas, desdobrando em outros espaçostempos, aqueles que, para muitos, parecem únicos. Percorrermos nossa Olinda é, assim, abraçarmos o gosto pela exploração de outras possibilidades de sentido, além daquelas veiculadas pelo modo de conhecer hegemônico. É entendermos a escola como polissêmica. Os sujeitos que a fazem acontecer cotidianamente são sujeitos concretos, plurais, encarnados histor icamente, que se relacionam com a estrutura mais ampla em uma trama de relações complexas, de conflitos, imposições, acordos, submissão e rebeldia. Em uma primeira aproximação da ideia de escola, é possível que sejamos tomados pelo conceito de trabalho, de aulas, de estudo, de saberes e fazeres que marcam o dia a dia da escola e a tornam um espaço privilegiado de relações de ensinaraprender. Mas, quem conhece uma escola por dentro sabe que isso não diz tudo a seu respeito. Uma escola, na memória de cada um de nós, é muito mais que isso: é espaço de encontros, de afetos, de intercâmbios, de sonhos, de sentimentos que vão, por certo, muito além do previsto em qualquer fluxograma de uma instituição. Para quem a conhece por dentro, a escola é sempre muito mais que o olhar do alto – distanciado da prática, pretensioso, mas empobrecedor – permite-nos detectar. Quem conhece uma escola por dentro, quem se deixa envolver por seu cotidiano de forma sensível e atenta sabe que, para além de sua história oficial de domínio público, há centenas de pequenas histórias, únicas, singulares, carregadas de emoção que a fazem marcante na vida dos sujeitos que a constituem
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As irmãs doroteias pertencem à Congregação de Santa Doroteia da Frassinetti do Brasil, da qual faz parte o Colégio Nossa Senhora das Dores.
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(Vasconcelos, 2000). Esse entendimento nos convida a deixarmo-nos intrigar por sua trama, pelos processos reais que se dão em seu interior, pelo reconhecimento da autoria dos sujeitos que a constituem. Esse entendimento orienta-nos na viagem à nossa Olinda. Em nosso trabalho no CNSD, nas situações mais diversas – a chegada de um novo aluno, a observação do espaço por um familiar à espera de uma criança, o desenrolar de uma cerimônia artística, religiosa ou de uma atividade física –, somos convocados a viajar no tempo, impulsionadas por falas daqueles que frequentaram essa escola ou a imaginaram através de muitos outros. São narrativas que trazem à cena experiências e situações que não se encontram em documentos e registros oficiais, contribuindo para pluralizar a leitura de sua história e romper com interpretações lineares dos fatos. São narrativas diversas, provocadoras de risos, espantos, capazes de despertar dúvidas, aguçar a curiosidade e impulsionar novas conversas. Narrativas oportunizadas, com frequência, por fotografias expostas em murais, projetadas em telões nos eventos, fixadas em quadros, visualizadas em álbuns de alunos ou no amplo acervo fotográfico da escola. Diante das fotografias, o desejo de falar, tecer comentários, expor pensamentos e emoções, intercambiar experiências se avoluma. Há sempre histórias a serem contadas, lembrando-nos com Manguel (2001, p. 28), que uma imagem dá origem a uma história que, por sua vez, dá origem a uma imagem. Histórias que se desdobram em muitas outras, indicando-nos o dinamismo da narrativa a ser retomada. Se a informação adquire significado e desperta interesse enquanto nova, a narrativa oferece outras possibilidades. Certamente nisto reside a sua força: em sua incompletude, em seu movimento, em sua vitalidade ao se retomar a narração. A narrativa não se entrega. Sua preocupação não é transmitir o “puro em si” da coisa narrada, não é elaborar um relatório ou expor algo quantificável, mas mergulhar o narrado na vida do narrador, em suas exper iências e nas exper iências narradas por outros e imprimir-lhes a sua marca, encharcá-los com sua vivência. A narrativa, diferentemente da informação, conserva sua força e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver (Benjamin, 1987), de ganhar novas faces tecidas pelos ecos de outras narrativas, por meio da ilusão de autorreflexo, por meio do conhecimento técnico e histórico, por meio da fofoca, dos devaneios, dos preconceitos, da iluminação, dos escrúpulos, da ingenuidade, da compaixão e do engenho (Manguel, 2001, p. 24).
Nas lembranças evocadas, no ato de contar, surgem emoções diversas, gestos incontidos, olhares atentos e curiosos, reações de apreensão, espanto e questionamento diante do narrado. Nesse processo de ver e escutar, como temos
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experimentado no CNSD, inúmeros sujeitos oferecem-nos outras imagens – do próprio acervo, de um parente ou de um conhecido – conferindo densidade à história apresentada e possibilidade de outros desdobramentos. Aliado à disposição de mostrar novas fotografias, se manifesta o desejo de contar outras histórias, referentes às imagens apresentadas. Desse modo, a narrativa recomeça, trazendo à cena outras falas e imagens, retomando a prática de contar exper iências. Narrativa e imagens se mesclam e as fotografias, aparentemente estáticas, são dinamizadas pela verbalização. É muito raro que alguém apresente uma foto sem comentar o que ela significa ou levantar questões a seu respeito. Histórias guardadas em álbuns, em fotos isoladas, esperando quem as ouça para serem transmitidas, encontram aí uma oportunidade de serem verbalizadas. Revisitar fotografias não significa apenas contemplar imagens arquivadas por uma pessoa. É mais. É conhecer parte de sua história e das histórias que nos constituem, trazendo à cena situações que nos formam enquanto coletividade. A memór ia, como aprendemos com Halbwachs (1990), não é apenas algo individual. Está impregnada das memórias de muitos outros com os quais nos relacionamos e partilhamos experiências. Essa memória coletiva contribui para o sentimento de pertença a um grupo, sustenta o sentimento de identidade do indivíduo, ancorada numa memória compartilhada no campo histórico e, também, no campo simbólico. Aguçando lembranças, as imagens permitem que, a partir de registros aparentemente gélidos, as situações adquiram novos significados. Nesse processo, não suspendemos a vida atual para voltar ao passado, para percebê-lo tal como aconteceu. Reconfiguramos a imagem original, engendrando uma interlocução entre o momento fotografado e o presente. O que desapareceu pode ser visualmente refeito, mas nunca trazido totalmente de volta. Imagens registradas por um fotógrafo apresentam significados ocultos até mesmo para o fotógrafo que as registrou (Manguel, 2001). Falam de seu autor para aqueles que as contemplam. Registram algo a respeito do mundo nelas apreendido, mas os que as observam extrapolam o que foi capturado pelo fotógrafo em um dado espaçotempo. Na fotografia, como em outros textos, quem a observa se introduz no lugar do autor. Faz, da propriedade do outro, um lugar tomado de empréstimo. Aí, em terras alheias, caça por conta própria (Certeau, 1994) acionando vivências, saberes e fazeres elaborados nas múltiplas redes de subjetividade nas quais sua exi stência se dá. Atuando como disparadoras de sentido, as fotografias promovem uma viagem livre, porque absorvida na evocação do presente de imagens que não são dali, mas estão ali expostas, reveladas aos olhos que as observam (Koury, 2001).
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Fotografias levam-nos a visitar outros espaçostempos. Transportam-nos de um tempo cronológico a um tempo memorial, afetivo. Essa viagem do observador entre o então-lá sugerido pela imagem e o aqui no qual está situado (Barthes, 1977) faz-nos percorrer um território complexo, no qual lembranças e imaginação se mesclam, conferindo às nossas memórias um certo caráter de ficção, propiciador de leituras plurais. A imaginação per mite perceber, sentir, ouvir os eventos para além de sua compreensão literal. Coloca sob suspeição ou mesmo rompe com o que é apresentado como objetivo, definido. Conecta imagens provenientes do mundo exterior a outras, geradas pelo “cinema interior ” no dizer de Machado (1997). Nessa viagem recriada pela imaginação se mesclam o presente e o passado, o conhecido e o surpreendente, introduzindo elementos novos na conversação. Ao longo de nosso percurso, visitamos inúmeros territórios, denominados por Pollak (1992) elementos constitutivos da memória: acontecimentos, pessoas e lugares. Experimentados pessoalmente ou presentes no imaginário com grande força, torna-se difícil ou mesmo impossível perceber se o narrador os vivenciou de fato. O que importa é compreender que esses elementos forjam nossas lembranças. O mergulho em imagens e em narrativas trazidas por fotografias do CNSD permite-nos realçar, na história desse colégio, diferentes sujeitos e projetos, questionando, assim, abordagens que generalizam situações particulares e identificam como pertencendo a uma memória comum o que muitas vezes é próprio de grupos hegemônicos. Tal mergulho aponta a complexidade do real, a multiplicidade de fios e teias que aí se trançam, esgarçando ou mesmo rompendo propostas teóricas que tentam aprisioná-los em uma perspectiva definida, incapaz de compreender a vida em seu acontecer. Na contramão de discursos generalizantes sobre a escola e a educação, pesquisas do/no cotidiano possibilitam trazer à cena situações que não foram registradas. Ressignificam particularidades e singularidades como fios constitutivos da própria teia na qual a vida se tece. Captam práticas e emoções que escapam ao olhar janeleiro (Pais, 2003), capaz de privilegiar apenas o pré-estabelecido. Por essa maneira de compreensão, o vivido é previamente delimitado, contornado, enquadrado. Pesquisas no/do cotidiano convidam-nos a perceber os diversos sujeitos presentes na escola como criativos, autores de saberes e fazeres irredutíveis à mera repetição de uma ordem social. Apontam-nos usos e táticas de praticantes que, na contramão do proclamado oficialmente, tornam as escolas inovadoras, plurais. Dessa forma, contradizem generalizações sobre o passado, ampliam a percepção histórica, permitindo “ mudança de perspectiva ” (Al-
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bertini, 2004). Trazem à cena modos de fazer cotidianos, artes que, para além da racionalidade dominante, jogam com emoções, intuições e imaginação criadora e, sem dúvida, com outra racionalidade (Alves e Garcia, 2000). Permitem que nos encontremos de outro modo com o passado. Quantas situações inéditas experimentamos, por esse viés, em nossa Olinda. Narrá-las permite que outros modos de ser e estar no mundo não sejam ignorados ou obscurecidos. Concordamos com Maturana (2008, p. 127) ao afirmar que Cada vez que um ser humano morre, um mundo humano desaparece, muitas vezes de maneira irrecuperável. Isto não é uma banalidade sentimental, é uma realidade biológica. (...) Não sabemos fazer os muros incas porque o último pedreiro que podia fazê-lo ao viver, morreu, e com sua morte acabou uma linhagem da história humana. Talvez se houvesse ficado algum relato... talvez se houvesse sobrevivido algum aprendiz... A falta da prática leva ao esquecimento e à morte, ao fim da história. E quando isso acontece, às vezes um mundo se acaba de forma irrecuperável.
A trajetória metodológica abraçada no presente texto se insere em um movimento que busca compreender a escola a partir de seu fazer cotidiano, 3 de seu dinamismo, utilizando fontes negligenciadas ou rejeitadas pela historiografia tradicional. Cadernos, diários de classe, livros de visita, salas de aula e tantos outros ar tefatos ganham espaço em propostas dessa ordem. Fotografias constituem mais uma possibilidade de t razer à cena esses ar tefatos, tecer novas histórias, convidando-nos a outros percursos. Esse modo de trabalho requer uma sensibilidade epistemológica específica, aguçada (Pollak, 1992), possibilitando-nos compreender o cotidiano escolar a partir de seus praticantes. Neste trabalho com imagens e narrativas que circulam no CNSD, procuramos trazer significados que emergem nas diversas redes em que nos incluímos enquanto pesquisadoras praticantes, estimulando possíveis leitores para que, a partir das tantas redes cotidianas em que vivemaprendem, procurem outros significados para o que vão ler e ver para além dos que apresentamos. Com Alves e Oliveira (2004, p. 19), é possível entender esse trabalho como o entrelaçamento de redes que ligam imagens vistas com o que é contado sobre elas e sobre o que delas está ausente, mas presente na memória de professoras e de outros praticantes do cotidiano escolar. Não é nossa intenção apresentar como únicas as narrativas de nossa Olinda, construídas por nós e pelos diversos sujeitos com os quais conversamos. Interessa-nos a possibilidade de trazer à cena outras histórias do cotidiano do CNSD que escapam ao olhar do alto (Certeau, 1994). Tal possibilidade intima-nos a buscar o que, mesmo desligado, desconsiderado ou rejeitado por um paradigma excludente, esteve presente. Convoca-nos a uma aproximação não
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Entre os pesquisadores que fazem acontecer esse movimento no Brasil citamos Nilda Alves e Inês Barbosa de Oliveira (Uerj), Regina Leite Garcia (UFF) e Carlos Eduardo Ferraço (UFES).
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linear ou dogmática da realidade, assumindo a incompletude como própria do sujeito encarnado (Najmonovich, 2001) e convidando outras vozes para o diálogo. Percorrer imagens e narrativas, debruçarmo-nos sobre os múltiplos processos cotidianos de criar e recriar a vida, permite-nos, como afirmamos em outra ocasião, entender, com Prigogine (2000, p. 6) a história como uma sucessão de bifurcações, na maioria das vezes múltiplas, indicando que, para cada ramo seguido, inúmeras possibilidades foram ficando para trás. Esse entendimento é um convite à esperança, à utopia. O caminho entre as bifurcações não está dado, está prenhe de incertezas. É constantemente definido e redefinido pelas ações dos atores sociais.
As fotografias com as quais tivemos longas conversas estiveram por longos anos em caixas e envelopes. A sua utilização foi possível a partir de minucioso trabalho de identificação, seleção, catalogação e digitalização, etapa integrante de uma dissertação de mestrado.4 O r ico acervo fotográfico, zelosamente guardado pelas religiosas, abriu novos caminhos para o entendimento do fazer pedagógico do Colégio Nossa Senhora das Dores. Muitas situações vividas em nossa Olinda foram registradas em imagens estampadas em fotografias desse acervo que se constitui em mais uma fonte relevante para o entendimento da história do seu cotidiano. Trabalhar com esse acervo possibilita mergulharmos nessa escola a partir de imagens que outros fotografaram e outras – as religiosas de muitas épocas – haviam olhado e entendido que era importante guardar. Esse acervo tem muito a contar, provocando narrativas que possibilitam a produção de novos significados sobre as mú ltiplas estratégias5 da ordem que sempre geriu e organizou os processos pedagógicos do colégio, bem como sobre as diferentes táticas6 de seus tantos sujeitos praticantes. Ampliar o significado original da fotografia através de um campo dialógico é abrir caminhos para que novos sentidos sejam negociados.Vai-se da imagem à palavra e da palavra à imagem, alargando-se dessa forma as possibilidades e os modos de interpretá-la. Não é sem razão que o poeta Antonio Cícero (1996, p. 11) afirma: guardar uma coisa é olhála, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. Cada uma delas, com seus ‘segredos’, fala-nos de conhecimentos sobre a escola, de seu currículo e de processos pedagógicos que nela se desenvolveram, a partir de redes múltiplas de valores, significados e conhecimentos: da Igreja Católica; da ordem religiosa a que pertence a instituição; do sistema vigente de ensino; das ideias pedagógicas de cada período; dos visitantes que recebia; das alunas que atendia
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Referimo-nos à pesquisa Fotogra as de uma escola centenária – pistas para repensar o currículo no cotidiano, desenvolvida por Jean Beatriz Wermelinger, sob orientação da professora Nilda Alves, na Uerj.
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Estratégias, segundo Certeau (1994, p. 46), são ações e cálculos que têm um próprio, um lugar do qual governam. As estratégias escondem sob cálculos objetivos a sua relação com o poder que os sustenta, guardado pelo lugar próprio ou pela instituição.
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Certeau (1994, p. 47) fala das táticas: sua síntese intelectual tem por forma não um discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ocasião. Muitas práticas do cotidiano são do tipo tática.
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e suas famílias, entre outras. São diferentes fios que se trançam, criando novos modos de pensar, fazer e expressar, em movimentos constantes, introduzindo nos espaçostempos escolares novas questões e desafios a serem enfrentados. São práticas de sujeitos e instituição que precisam ser contadas para que se possa conhecer um pouco mais do seu interior, para além da sua homogeneidade, indo fundo para encontrar e fazer emergir o diverso, as vivências que ultrapassam os limites dos currículos oficiais, das práticas cotidianas que escapam ao controle rígido e circunscrito pelo planejamento ou mesmo pela legislação. Práticas mostrando-nos que as escolas, para além de serem ‘lugar’ (Certeau, 1994) – entendido como espaço apropriado – são movimento (Alves, 1998), porque nelas existem pessoas e artefatos culturais vários que se entrecruzam e que estabelecem relações entre si, em diálogos frequentes e diversificados (Wermelinger , 2007). O trabalho realizado de identificação, catalogação, digitalização e organização em álbuns contempla cerca de quatrocentas fotografias. As legendas encontradas nas fotos e as indicações nos envelopes que as guardavam se constituíram como pistas a serem seguidas nesse processo. As fotografias que não eram legendadas, a grande maior ia, foram observadas a partir do modo como eram ar rumados os artefatos e móveis nos espaços, das cenas, pessoas fotografadas e, até, detalhes como expressões faciais e corporais das alunas, as vestimentas que usavam, a maneira como arrumavam os cabelos, entre outros aspectos. Em cada um dos álbuns aparece uma lista, indicando as fotografias que constam daquele arquivo. Todas as fotografias que constituem o acervo de nossa Olinda são representativas de cenas escolares. São situações de alunas em sala de aula, no jardim, fazendo recreio, em festas cívicas e religio sas; são espaços pedagógicos, salas especiais, todas elas evidenciando conhecimentos, valores, regras de convivência, comportamentos, processos pedagógicos e curriculares que têm muito a dizer. Percebemos que essas fotografias foram feitas por fotógrafos profissionais. O enquadramento, a luz, a revelação cuidadosa são dados que apontam para a qualidade do trabalho realizado. Grande parte das fotografias é frontal, permitindo a observação de detalhes, tais como: a quantidade e diversidade de sujeitos e artefatos presentes nas fotos, a organização dos espaçostempos, a presença de símbolos representativos da religiosidade da instituição, entre outros. É importante observar, mais do que a beleza da coleção, as inúmeras ser iações possíveis e, consequentemente, os desdobramentos e possibilidades de pesquisa. Nota-se que é possível seriá-las segundo o critér io de vestuário; muitas das fotografias dão conta do uso de diferentes unifor mes em ocasiões diversas – uniforme próprio para uma solenidade,
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para uma partida de vôlei, para um passeio pela praça. Poder-se-ia, também, arrumá-las de acordo com os eventos mais comuns na instituição, além das aulas, é claro. Formaturas, apresentações artísticas diversas, exposições, desfiles cívicos e, principalmente, atividades de caráter religioso – celebrações na capela, participação da escola em procissões, enfim, múltiplas combinações e possibilidades de leituras. Para este artigo recorremos a algumas imagens do acervo. Refletindo a respeito dos critérios que nortearam nossa escolha, percebemos que, ao percorrermos nossa Olinda folheando os álbuns da escola, fomos surpreendidas pelo nosso aprisionamento por algumas imagens. Na verdade, não fomos nós que as escolhemos. Elas se insinuaram, capturaram nossa atenção, seduziram-nos, evocando lembranças. Na medida em que dialogávamos com as fotografias, murmúrios, burburinhos e até algazarras das alunas nos corredores e pátios dessa escola pareciam saltar daquelas imagens, dando-lhes vida, conferindo movimento àquelas jovens estampadas nas fotos. Os seus risos e conversas, seus segredinhos, sons e ruídos iam imprimindo outros ritmos na vida dessa escola, e que só podem ser ‘pensados’ por aqueles que, como nós, conhecem os burburinhos e movimentos de hoje. Ao serem trazidas para o hoje, essas imagens despertam uma for te sensação de estar lá, fazer parte daqueles momentos, tocar aqueles objetos, afinal, ao deslizar o olhar pelas fotografias agregamos a esse olhar nossas vivências, nossas próprias lembranças. Essa é uma experiência fantástica e, a partir dela, criamos e recriamos novas representações que vão sendo assimiladas como nossas. É como estar dent ro da imagem; é um ver que pode ser entendido como momento de caça não autorizada (Certeau, 1994); um ver que é insistente, curioso e integrador, próprio de quem deseja investigar o cotidiano. Nessa caça incessante, as imagens fotográficas apontaram indícios que sugeriram o tipo de educação dada às alunas da instituição. Com esses elementos, convidamos nossos possíveis leitores a aventurarem-se conosco nos percursos de reconhecimento e ressignificação que fizemos através das imagens fotográficas da instituição de ensino centenária. São imagens instigantes que nos abrem possibilidades fantásticas de percursos. Vale a pena fazer essa viagem. As duas primeiras fotografias que selecionamos nos mostram normalistas impecavelmente vestidas, postadas segundo uma disciplina e uma ordem próprias do tempo escolar que procurava normatizar e enquadrar os diversos comportamentos das alunas. O alinhamento das normalistas, a forma como estão dispostas nas fotos parece ter sido geometricamente pensada e arrumada. Certamente, na materialidade dessas fotografias, é possível perceber a intenção
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da escola de ser representada a partir de um modelo de educação de ordem e disciplina, testemunho de uma prática escolar, de uma forma de escola comprometida com essa proposta. Cumpria-se um ritual que, de certa for ma, transmitia os códigos sociais que deveriam moldar o modo de compreensão do entorno e de inserção das alunas no mundo. Fortalecendo os esquemas de docilidade dos corpos, a pose nas fotos é indicativa do caráter disciplinar exercido na época na qual as coerções são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus movimentos e gestos, gerando corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis” (Foucault, 2001). As fotos ao redor do lago central do colégio e na escadaria do jardim impressionam pela harmonia, pela distância estabelecida entre os corpos, pela postura irrepreensível, pelos sorrisos esboçados e os uniformes impecáveis, uma quase musicalidade, um balé reforçado pelo reflexo nas águas do lago. Imagens feitas em épocas diferenciadas, mas semelhantes quanto à arrumação e, certamente, ao sentido. O que a imaginação nos leva a interrogar? A arrumação das alunas, a escolha do lugar onde as alunas são fotografadas seriam frutos das decisões do fotógrafo? Alguma autoridade da escola ordenava a formação do grupo? Como obter-se uma organização tão disciplinada de mais de tr inta jovens mulheres? Quanto tempo foi preciso para se chegar a essa formação? Que ocasiões sugeriam tais poses? Em algumas fotos há leves sor risos, em outras, não – permissão dos fotógrafos, astúcias de praticantes? A escola alvo de nosso estudo parece ser entendida, então, como lugar de conhecimento, de seriedade – corpos imóveis, estáticos, olhar fixo em um ponto, postura padronizada. Em nossas lembranças, revivemos o momento no qual as alunas eram recebidas na escola e submetidas à criteriosa revista feita por uma irmã ou funcionária designada para essa função. Comprimento das saias, uso de combinação, meia soquete branca de algodão, zelo com os sapatos pretos, utilização da boina azul-marinho eram alvos de vigilância diária. Entretanto, apesar das normas rígidas, da preocupação por regular mentes e corpos, práticas de emancipação (Santos, 2000) eram constantemente inventadas. As saias eram enroladas na cintura para ficarem mais curtas, nas andanças fora do colégio; um lenço branco por baixo da blusa, simulava a presença da combinação diante do olhar perscrutador das guardiãs dos costumes e da moral. Outras duas fotos selecionadas são de momentos religiosos de alta representatividade da opção confessional da escola. São trazidas para este texto por evocar lembranças marcantes nas nossas vidas. Fotografias têm a capacidade de ativar os sentidos dos sujeitos que as observam. Segundo Manguel (2001), para aqueles que podem ver, a existência
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se passa em um rolo de imagens que se desdobra continuamente; imagens são capturadas pela visão e realçadas ou minimizadas pelos outros sentidos de quem as captura. Em situações de festas litúrg icas, em que missas especiais eram celebradas, após a cerimônia as alunas recebiam chocolate e pão doce, alimentos que chegavam como dádivas após um longo jejum e em um tempo que o acesso a certas guloseimas não era, para muitos, tão frequente. Ainda sobre essas imagens, percebemos no espaço da capela marcas dos moldes litúrgicos da época. A grade delimitando os espaços indica o distanciamento e a autor idade de um, o celebrante, e outros, os fiéis. A capela, símbolo maior da religiosidade da instituição, os momentos litúrgicos que aí se davam, instigam-nos a pensar na sua força modeladora nos comportamentos das alunas. A próxima fotografia chama atenção pela presença de materiais específicos para o ensino de geografia. Mapas e globo terrestre, presentes em uma das fotos indicadas, nos levam a pensar na presença de cer to espírito inovador, talvez próprio do pensamento da Escola Nova. O armár io repleto de livros. Seria uma biblioteca de classe? Estariam ali guardadas publicações próprias do campo da geografia? Os alunos que frequentavam essa sala pesquisavam nesses livros? Estabeleciam relações entre as experiências de leitura e as obser vações que faziam nos mapas e no globo? Como esses recursos eram, efetivamente, usados pelos alunos? Há um tablado para a mesa do professor e a presença do sagrado.Ambos, tablado e imagem do sagrado, indicando o sentido e a força nor matizadora desse ambiente. A materialidade dos artefatos presentes nesse ambiente exprime vestígios das relações pedagógicas aí estabelecidas. Independente da existência do tablado, no entanto, a mesa do professor não está apoiada no tablado, nem sob a imagem que indica a carga de religiosidade própria da instituição. Está mais à esquerda, mais próxima do armár io com livros. Seria possível infer ir uma certa ousadia, um sinal de ruptura em relação à ordem estabelecida? Ser ia uma burla às funções de controle e vig ilância? Os sujeitos praticantes dessa sala de aula, professores e alunos, já estariam vivenciando inovações pedagógicas? Como seriam realizadas as atividades nessa sala? Em grupo, em ambiente coletivo ou individual e solitariamente? Afinal, as carteiras, sendo individuais, poderiam ser movimentadas, organizadas de modos diversos. Cada artefato possibilita muitos usos. Em nossas lembranças, professores utilizando o tablado para posicionar sua mesa e coordenar os trabalhos da classe apareceram com frequência, traduzindo diferentes modos de relacionamento com a turma. A narrativa de uma ex-aluna da escola, recolhida ocasionalmente por uma de nós enquanto esta escrita
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era organizada, apontou para uma utilização diferente do t ablado: local de castigo e exposição de uma aluna, das menores. Tal medida adotada simplesmente pelo fato da criança ser irmã de outra aluna supostamente flagrada mentindo. No processo de tecer imagens e narrativas, outras lembranças do tablado vivenciadas direta ou indiretamente por nós indicavam outras possibilidades: em várias ocasiões, uma das pernas da cadeira do professor era colocada no limite do tablado, com a intenção de provocar desequilíbrio do mestre e gargalhadas da turma. Táticas de praticantes, lembrando-nos, mais uma vez, como nos diversos temposespaços, mesmo nos que se pensam mais controlados, o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autor izada (Certeau, 1994). As fotografias das salas de aula nos possibilitaram puxar narrativas referentes às práticas pedagógicas que se desenvolveram para além delas e trouxeram outras imagens para o texto. Essas fotos nos remetem à década de 1960, quando longas viagens não eram frequentes, especialmente para os habitantes do interior. Nesse período, as irmãs do colégio já propiciavam excursões a outras cidades para suas alunas. Nas séries concluintes, o passeio era mais prolongado. Constituía-se em prêmio, em troféu pela conquista. A exemplo dessa experiência, o relato de uma aluna da turma concluinte do Curso Normal, no início dos anos 1960 ilustra este texto. O grupo realizou uma viagem a Brasília, logo após a inauguração da nova capital. Período de aventuras para as alunas e preocupações para as religiosas que acompanharam mais de vinte jovens alunas, além de ex-alunas e professoras. Os fios das lembranças de nossa narradora fizeram-na rememorar um episódio curioso e inusitado. Havia no grupo uma aluna que tinha um irmão na Escola de Paraquedistas − Cadetes do Ar , da Aeronáutica, em Barbacena. Ao passar por essa cidade, ela manifestou o desejo de visitar o irmão. Todo grupo insistiu para a realização da visita. As religiosas não imaginavam o que as esperavam: tão logo as jovens adentraram a escola, foram cercadas por cadetes que surgiam de todos os lados. A irmã responsável pelo grupo, ao ver suas alunas rodeadas por uma multidão masculina, ficou muito aflita, exigindo que todas permanecessem juntas e dela não se afastassem. Obviamente, isso não aconteceu. A visita ocorreu com os esperados flertes entre moças e rapazes. Agora, examinaremos uma fotografia que indica modos diferentes de a escola fazer-se presente para além de seus muros, participando de um desfile cívico durante os festejos de aniversário da cidade. Nessa fotografia podemos ver representados valores de civismo, ordem, disciplina, respeito, entre outros. Entretanto, é possível observar também, pelas expressões dos rostos, direção dos olhares e sorrisos marotos de algumas alunas, que elas encontravam maneiras
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de imprimir outros significados às normas de comportamentos estabelecidas. Como diria novamente Certeau (1994), astúcias de praticantes. Em um tempo no qual a movimentação das meninas era socialmente mais controlada, o desfile cívico servia a outros propósitos, indicativos de sua polissemia para os diferentes sujeitos. Jovens rapazes, interessados em olhar as meninas, ocupavam a rua, aplaudindo as jovens à medida que desfilavam. Muitos se apresentavam em grupos para intensificar os aplausos àquela que cortejava. Alunas internas, que raramente circulavam pelas ruas da cidade, mereciam especial atenção. Um fato curioso, quase hilário, ocorreu por ocasião do centenár io da escola. Muitas ex-alunas, vindas de todos os cantos do país, participaram do desfile e specialmente organizado para a ocasião.As ruas foram povoadas por dezenas de cinquentões que quer iam saber a respeito das “meninas do Colégio das Irmãs”. Como estariam as beldades de outrora? As fotografias apresentadas no texto possibilitam compreender o fazer pedagógico no/do Colégio Nossa Senhora das Dores. Indicam, certamente, marcas de uma época. Não só do CNSD, mas do espaçotempo no qual essa escola se insere, lembrando-nos o imbricamento do cotidiano com a sociedade mais ampla.Tais fotografias f azem-se convites para novas narrativas, trazidas pelos ecos de outras narrativas, fofocas, devaneios, ingenuidade e engenho. Evocam outras imagens e narrativas que não se pretendem definitivas ou exclusivas (Manguel, 2001). Nossa Olinda apresenta grande vitalidade em seus mais de um século de existência. Os sujeitos que a fazem existir, em meio a múltiplos e diversos embates, ajustes, conflitos e entendimentos, a reinventam cotidianamente. Muitas outras imagens e narrativas emergem desse contexto. Nesse processo de cr iar e recriar esse colégio, como na Olinda de Calvino (1999, p. 119-120), as velhas muralhas se dilatam levando consigo os bairros antigos, ampliados, mantendo as proporções sobre um horizonte mais largo nos confins da cidade; estes circulam os bairros um pouco menos velhos, também maiores no perímetro mas afinados para ceder lugar aos mais recentes que fazem pressão de dentro para fora; e assim por diante até o coração da cidade: uma Olinda inteiramente nova que em suas dimensões reduzidas conserva os traços e o fluxo de linfa da primeira Olinda e de todas as Olindas que despontaram uma de dentro da outra; e no meio desse cercado mais interno já despontam – mas é difícil distingui-las – as Olindas vindouras e aquelas que crescerão posteriormente.
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O cotidiano do SAM: histórias e imagens Tânia Mara Pedroso Müller
Iniciei este estudo1 a partir do encontro fortuito de centenas de fotografias do Serviço de Assistência ao Menor, perdidas nos arquivos da Faetec, onde se localizava a antiga Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (Funabem), 1 Este texto foi escrito tomando antes, Serviço de Assistência ao Menor (SAM). Tive como objetivo investigar a trama histórica que originou a procomo referência a minha tese de doutoramento (cf. Muller , dução e a utilização das imagens do cotidiano de meninas e meninos do SAM no ano de 1961 pelo Estado, especifi2006). camente pela Agência Nacional. Seguindo a informação de que foi constituída uma Comissão de Inquérito para apurar denúncias divulgadas pelo Jornal do Brasil, saí à procura de documentos produzidos por esse grupo, que pudessem revelar sua proposta de trabalho, trajetória metodológica, resultados e como as fotografias foram utilizadas no relatório. Recuperando o caminho do SAM, descobri que todo o seu acervo faz parte do Fundo da extinta Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência (FCBIA), órgão que substituiu a Funabem, mas que ainda não estava catalogado. Contando com a gentileza e presteza dos funcionários do Arquivo Nacional que se dispuseram a procurá-lo, entre tantos materiais guardados, conseguimos, surpreendentemente, encontrar o Relatór io Final da Comissão. Acasos!?!. Este texto foi organizado da seguinte forma: começo contextualizando a produção de imagens pela Agência Nacional, resgatando um pouco de sua história. Em seguida, relato o processo de constituição da Comissão de Sindicância e sua trajetória de investigação, para ao final apresentar o cotidiano dos meninos e meninas nas escolas do SAM revelados no relatório produzido, cujas fotografias fizeram parte. Assim situadas, me proponho a fazer a leitura de algumas imagens.
As fotograas da Agência Nacional Vários governos, em diferentes momentos, utilizaram-se da fotografia para registrar seus feitos. Mas essa prática
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se firmaria com a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão responsável por toda a produção e controle das notícias e fotografias do Estado, durante o Governo Vargas (Oliveira, 2001, p. 53). Tinha como objetivo disseminar os ideais do Estado Novo, as realizações governamentais e o controle sobre as informações que deveriam ser noticiadas pela imprensa. O DIP exerceu esse controle de diferentes maneiras: pela censura, quando um censor per manecia diariamente dentro dos jornais, definindo as matérias que poderiam ou não ser publicadas; pela isenção nas importações das cotas de papel, “no caso dos jornais que deixassem de colaborar essa isenção era suprimida”; e também, pela concessão das verbas de publicidade, visto que o Departamento coordenava a distribuição dos recursos oriundos de diferentes instituições públicas, repassando apenas aos jornais de sua predileção ou que apoiavam o governo. Com isso, conseguia garantir e manter o monopólio das informações. A criação do DIP resultou das modificações ocorridas na política de propaganda do Governo. O primeiro órgão fundado foi o Departamento Oficial de Propaganda (DOP), em 1931, subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Em 1934 tornou-se Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), substituído em 1938 pelo Departamento Nacional de Propaganda (DNP). Em 1939 virou DIP. Esse órgão passou a ser subordinado à Presidência da República, tendo entre seus objetivos fiscalizar as atividades da imprensa e propaganda em todo território nacional. Seu poder foi ampliado em 1940 com a criação de um Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP) em cada estado brasileiro. Com o enfraquecimento do Estado Novo, o DIP perde sua função inicial. Extinto em 1945 teve suas atribuições transferidas para o Departamento Nacional de Informações (DNI), que comandava diversos órgãos, entre eles a Agência Nacional. A Agência Nacional tinha como função a “distribuição do noticiário e serviços fotográficos vinculados ao Governo à imprensa da Capital e Estados” (art. 14, Decreto 7.582, de 25/05/45). Apesar de ser referida pela primeira vez no decreto que criou o DNI, o próprio documento traz indícios de sua existência desde 1934. Em 1967 ampliou sua importância ao ser desvinculada do DNI, subordinando-se diretamente ao Gabinete da Presidência da República. Tornou-se Empresa Brasileira de Notícias (EBN) pelo decreto 83.993, em 19 de junho de 1979. Até a década de 1950, a AN foi responsável pela distribuição de 60% das matérias publicadas nos jornais, decrescendo para 20% na década de 1960 (Oliveira, 2001, p. 53). Ainda assim, somente os jornalistas registrados no DIP
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podiam cobrir organismos oficiais, o que subjugava o repórter ao departamento. Tanto as notícias quanto as imagens oficiais reproduzidas nos jornais representavam a ótica do Estado e carregavam a ideologia do governo ou da administração a qual estavam submetidos. Essas informações nos fazem entender o modo de produção e usos das fotografias realizadas pela Agência Nacional, e compreendê-las como fotodocumentar ismo, como definiu Sousa (2000), por comportar as seguintes características: as fotografias apresentam um tema bem demarcado; são atemporais; retratam histórias de sujeitos marginalizados e anônimos (ainda que representem a visão do Estado sobre eles); e foram produzidas em quantidade suficiente para compor um conjunto documental. Em relação ao SAM, pode-se dizer que a qualidade e profundidade do mater ial produzido permitiram salvaguardar o passado de crianças e adolescentes tutelados pelo Estado, e, portanto, podem ser vistos como documento/monumento da memória coletiva (Le Goff, 1990). Antes de analisar as fotografias produzidas, tentei responder algumas questões: Como foi composta essa comissão? O que fez e o que produziu? A partir de que documentos e argumentos o grupo organizou seu discurso? Com que tipo de dados sustentou sua argumentação? O que pretendia com o documento final? A quem se dirigia? De que forma a fotografia foi incorporada no texto? Enfim, essas são algumas das perguntas que direcionaram os próximos passos.
O relatório da comissão de sindicância Um inquérito, como disse Foucault, é o procedimento pelo qual, na prática judiciária, se procurava saber o que havia ocorrido. Tratava-se de reatualizar um acontecimento passado através de testemunhos apresentados por pessoas que por uma ou outra razão – por sua sabedoria ou pelo fato de terem presenciado o acontecimento – eram tidas como capazes de saber (1996b, p. 60).
Trata-se de apurar os dados através de testemunhos e documentos de modo que permitam reconstruir uma história de forma rigorosa e criteriosa. A comissão – CSSAM como se intitulou – instalou-se no dia 29 de março, no gabinete do ministro no Rio de Janeiro. Comprovando desde o início as irregularidades – maus tratos; superlotação; ausência de registro de identifica-
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ção dos menores e prontuários; existência de meninos e meninas maiores de dezoito anos inter nados; inadequação das instalações e ausência de espaços próprios para higiene dos internos; funcionários residindo na instituição, ocupando salas destinadas às crianças; inexistência de serviço de triagem; convívio de meninos e meninas de diferentes idades; entre outras –, propôs medidas imediatas para atenuar “os danos que vinham causando aos menores, desvalidos e transviados ali internados ou em trânsito, sob inteira responsabilidade do Estado” (idem, p. 5). Após citar as primeiras providências adotadas, afirmara que esse panorama generalizado de deteriorização institucional era “consequência da absoluta falta de administração decorrente de incapacidade, desinteresse, displicência e irresponsabilidade dos principais responsáveis pelo funcionamento daquele estabelecimento assistencial” (idem, p. 8). Acusara especialmente os inspetores dos alunos, responsáveis pelos “maus tratos, espancamentos (constatados no Instituto Macedo Soares, no Instituto Coração de Maria, na Escola João Luiz Alves, e na Casa do Menor Trabalhador) e corrupção de menores” (ibidem). Surpreende que tais denúncias não foram amplamente divulgadas, solicitando igualmente a prisão dos responsáveis e do Diretor por sua conivência e omissão. Estabelecera uma metodologia de trabalho “fundamentada em pressupostos científicos”, que valorizava os seguintes procedimentos: entrevistas, questionários, leitura de documentos, processos e a observação in loco, seguidos de análise de dados. Enfatizou que “essa metodologia pressupunha um registro preciso da situação investigada, na qual a fotografia permitiria dar visibilidade à realidade” (idem, p. 20), além de confirmá-la. O material obtido, apurado e analisado, e as visitas realizadas tiveram como diretriz o Regimento do SAM (aprovado em 26/10/57 pelo dec. 42.510) e resultaram na produção de um relatório composto de dezenove volumes (oito volumes e onze anexos, totalizando 7.547 folhas e 340 fotografias), encadernado em brochura pelo DNI, e enviado ao Ministro da Justiça, em 24 de outubro de 1961, quando se desfez a comissão. Ao utilizar o regimento da instituição como marco do trabalho e da avaliação de sua organização, o grupo definira sua proposta de identificar a adequação institu cional através do documento que a rege. A sua intenção era verificar se o SAM estaria cumpr indo adequadamente seu papel, a partir do desvendamento dos dispositivos disciplinares estrategicamente exercidos. Assim, se o previsto era cumprido e se o espaço e tempo eram organizados conforme o regulamento significaria que a instituição desempenhava sua função principal: dirigir condutas (Foucault, 1996a).
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Tomo esse material como narrativas do cotidiano de crianças e adolescentes sob tutela do Estado. Minha proposta era recuperá-las, visto sua importância para a compreensão das histórias do cotidiano das diversas vidas que passaram pelo SAM, e não expô-las significaria calá-las mais uma vez, condenando-as novamente ao abandono e esquecimento. Empilhar, arquivar, silenciar é o que se tem feito com as histórias de meninos e meninas que ficaram, autoritariamente, ou por total falta de opção, sob os cuidados do Estado. Defino essas crianças e adolescentes como aqueles que “ainda que encarcerados num mesmo perfil, mostraramse diferentes em suas singularidades porque tiveram suas próprias formas de resistência” (Bernal, 2004, p. 34). Resistências tramadas silenciosamente, reveladas na inadequação do comportamento ou por burlarem as regras impostas, nas fugas constantes ou por for mas mais violentas como as rebeliões. E como disse Foucault, existem várias formas de lutas de resistência ao poder, dentre as quais merecem destaques as lutas contra o assujeitamento; as lutas de contestação e insubmissão. Lutas de recusa à aceitação de violação das identidades e subjetividades. Lutas contra a imposição de formas de ser. Luta contra as normalidades (1996a, p. 28).
Lutas – denominadas táticas por Certeau – que foram travadas no cotidiano institucional, que subverteram a ordem estabelecida, que podem ser reveladas nos relatos encontrados, e, por isso, a importância em recuperá-los. A leitura dessas narrativas fez-me lembrar das poéticas palavras do autor quando ressaltou que “é preciso despertar as histórias que dormem nas ruas que jazem de vez em quando num simples nome, dobradas neste dedal como as sedas da feiticeira” (2003, p. 201). Despertar essas histór ias, escondidas entre as folhas de papel, permitem não somente dar voz a “sujeitos invisíveis”, mas revelar as marcas de um cotidiano de omissão e violência, porém também de resistências. Entendo ser necessário resgatar as conclusões apresentadas pela comissão, para ajudar na leitura das imagens produzidas. Esse recurso, que propicia a intertextualidade, permite recuperar a história das fotografias de crianças e adolescentes do Serviço de Assistência ao Menor e situar a fotografia como instrumento e objeto de pesquisa.
Histórias de meninos e meninas do SAM Começarei por narrar a trajetória de um ex-aluno do SAM, que se encontrava cumprindo pena no Presídio Lemos de Br ito no Rio de Janeiro, em 1961.
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M.G.M. nasceu em quatro de junho de 1934, em Minas Gerais. Era filho de boiadeiro e ainda pequeno perdera a mãe. Ficara sob a guarda de um tio, funcionário do Ministér io da Aviação, que o trouxera para o Rio de Janeiro para estudar. Morou no Largo da Abolição e cursou a 3ª série primária no Colégio Guarani. Fugiu de casa nessa época, quando foi preso, levado para a Delegacia de Menores e encaminhado para o SAM em treze de abril 1947, quando foi classificado como “desvalido”. Fugiu novamente. Em 24 de junho de 1954, já adulto, foi preso por homicídio e assalto à mão armada e condenado a sessenta e quatro anos de reclusão. Sua história de vida, dos doze aos vinte anos, marcou-se por entradas, fugas e transferências nas diferentes instituições do SAM, como descrito: alojamento provisório; Patronato Agrícola Lindolfo Coimbra; alojamento provisório; desligado; alojamento provisório; Patronato Agrícola São José; evadido; alojamento provisório; Patronato Agrícola Lindolfo Coimbra; alojamento provisório; Instituto Governador Macedo Soares; evadido. Ele fora visitado na penitenciária pela comissão, que pediu a narração de sua histór ia e que, transcrita no relatório, revela como o esquecimento de meninos ou meninas era parte da estratégia institucional. Por outro lado, reflete a avaliação do jovem sobre a instituição e do período em que lá esteve, servindo de referência para compreender o cotidiano dos diversos meninos e meninas que passaram pelas escolas do SAM. Ao ler os relatos e ver as fotos dos meninos que residiam na Ilha do Carvalho, o sentimento no olhar, entre ameaçado e ameaçador, dominando a fotografia, não foi difícil lembrar a frase dita no romance O Atheneu, de Raul Pompéia: “Olhe, um conselho: faça-se forte aqui, faça-se homem: os fracos se perdem” (1998, p. 46). Quando Pompéia inicia a frase de seu personagem dizendo “olhe, um conselho”, e não “escute, um conselho”, ele situa o olhar acima do ouvir. Não basta ouvir, é preciso mais: olhar. Perceber, observar, estar atento, notar os detalhes, as diferentes situações. O conselho necessário àquele que chega, por alguém que já exper imentou, provou do dissabor de descobrir, na “marra”, as maldades dos homens. “Faça-se forte, faça-se homem”.
Na frase está implícita a informação: – não chore, não demonstre dor, não seja criança. Negue a infância e a fraqueza que ela traz ou representa. Esqueça-a. Infância perdida... “Menores do SAM”, “menores transviados”, “delinquentes”, “desvalidos”. Meninos e meninas solitários e abandonados nas instituições que os protegiam. Sem saudade, sem esperança, sem começo, sem fim...
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Muitos casos descritos pela Comissão exemplificam a situação de violência e maus tratos que frequentemente os alunos do SAM foram submetidos e a conivência e inoperância administrativa de seus diretores na apuração dos fatos e punição dos culpados. As cenas observadas nas fotografias, complementadas por esses relatos, não somente causam indignação como responsabilizam toda a sociedade pelas condições de vida desses meninos e meninas e todos aqueles que passaram pelo SAM. Nesse momento, é impossível não lembrar os versos do poema Legião Estrangeira, de Clarice Lispector (1964, p. 107) que acusam e condenam essa omissão: Nós, os adultos, já teríamos encerrado o sentimento.Mas nos meninos havia uma indignação silenciosa,E a acusação deles é que nada fazíamos....
Indignação! Essa é a palavra. O que fizemos por esses tantos meninos e meninas? Como reagimos às notícias e informações apuradas sobre as condições de vida na instituição? Quais as providências tomadas sobre os fatos? Quais os sentimentos despertados no resgate das histór ias e pelas leituras de tantos documentos? E, sobretudo, o que se fez para mudar o cotidiano desses tantos meninos e meninas nos lugares que os abrigavam?
O cotidiano do SAM O SAM surgiu “como uma tentativa de centralizar a assistência no Distr ito Federal” (Rizzini, 1995, p. 276) com a responsabilidade pela orientação e fiscalização das instituições de atendimento a crianças e adolescentes órfãos que cometiam infrações penais. Em 1944 passou a coordenar as ações assistenciais em nível nacional. Era assim a trajetória dos meninos e meninas no SAM: primeiro as crianças e adolescentes deveriam ser acolhidos pelo setor de tr iagem, e após o necessário período de observação e de acordo com o resultado dos exames realizados, eram encaminhados para inter nação em uma de suas unidades, a fim de ministrar-lhes ensino, educação e tratamento “sômato-psíquico” até o seu desligamento. Para tal, pressupunha um grande aparato institucional. O que de nada valia, pois não funcionava como estabelecido. O SAM era constituído de: I − Órgão Central; e II − Órgãos Executores que englobavam: Instituto Profissional
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Quinze de Novembro, Escola Agrícola Artur Bernardes, Escola Wenceslau Braz, Escola Granja, Casas-lar, Instituto São João Batista, Escola Feminina de Artes e Ofícios, Pavilhão Anchieta, Instituto Governador Macedo Soares, Escola João Luiz Alves, Instituto Padre Severino, Instituto Coração de Maria e Hospital Central. O Pavilhão Anchieta, o Instituto Governador Macedo Soares, a Escola João Luiz Alves e o Instituto Padre Severino destinavam-se a meninos infratores das leis penais. O Instituto Coração de Maria, a meninas infratoras. As Casas-lar eram para meninos de um a seis anos e o Instituto São João Batista acolhia meninas de um a seis anos. A Escola Granja e o Hospital Central atendiam a meninos excepcionais de mais de doze anos. Havia no relatór io, após cada descr ição, uma indicação – vide fotos – para que o leitor se reportasse ao volume no qual estavam as fotografias, afirmando: “as fotografias anexas dizem melhor do que as palavras o que aí ocorre” (idem, p. 137). A comissão circunscreveu minuciosamente as condições degradantes e desumanas em que viviam mais de três mil crianças e adolescentes confinadas nas instituições. Cada uma delas com uma série de problemas, que submeteram os alunos e alunas ao máximo de privações: amontoamento, promiscuidade, maus-tratos, negligência, abandono e inexistência de qualquer privacidade ou preservação de sua individualidade, além de não existir nenhum projeto educacional e de inclusão social. Esse cenário per mite que se caracter ize o SAM como um espaço meramente repressivo, segregador, punitivo, de permanente desrespeito à dignidade e aos direitos humanos. Na verdade, retrata o desinteresse do Estado, mas também a inoperância, a incompetência e em alguns casos até a per versão dos seus dirigentes. A comissão definira o SAM como “um depósito de sucata”. Entendendo sucata como coisa que não se quer mais, como um “depósito de restolho humano”. Situava-o como um lugar para aqueles que ninguém queria: crianças pobres. Por isso, é possível compreender por que a sociedade se calou ante aos fatos como também os seus dirigentes. De outro modo, o silêncio perante a situação narrada é incompreensível e injustificável. Pensar esse cotidiano implica em analisar os elementos que o compõe, desvelando suas origens, seu significado e sua relação com os objetivos sócio-políticos e econômicos daquele momento histórico (Alves, 2003). As narrativas apresentadas demonstram que as falhas e as deficiências institucionais se acumularam e não foram corrigidas por falta de vontade política das autor idades competentes – apesar dos diversos planos, comissões, projetos, denúncias e críticas
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apresentadas –, ou por quase todos aqueles que tiveram poder para alterar o destino de crianças e adolescentes que estavam sob a tutela do SAM. O panorama traçado traduz a falência do sistema até então adotado, comprovadamente condenado, do qual o SAM era um simples instrumento, e o desinteresse da sociedade em questionar o tratamento dispensado pelo Estado a esse grupo populacional.
Leitura das imagens do cotidiano A disciplina é uma tecnologia política capaz de ordenar os espaços e controlar os tempos dos indivíduos, defendeu Foucault (1996a). Ela se exerce em locais fechados, protegidos, tornados um universo em si mesmo, com regras e valores absolutos para seus moradores, cujo horizonte mais longínquo que podem vislumbrar era seus muros. A arte de disciplinar se impõe particularmente ao que é rotineiro, indissociável e inconsciente, com o fito de impregnar no “disciplinado” as marcas de sua subordinação. Ela esquadrinha e compartimentaliza todo o tempo dos sujeitos, exercendo o controle total sobre seus cor pos. Ao dispor um universo cujo espaço era calculado, o tempo esquadrinhado, as atividades regularizadas, e assim passíveis de punições pelo menor erro, estabelecem um sistema marcadamente corretivo, em que “castigar é exercitar”. Nesse contexto, “o internato aparece como um regime de educação o mais perfeito” (Foucault, 1996a, p. 130). Não é possível pensar o internato sem considerar as estratégias de ordenação dos espaços e o controle dos tempos dos sujeitos. Não se pode separar os espaços onde as atividades são aprendidas dos tempos destinados a elas, pois espaço e tempo são indissociáveis. Espaços e tempos de aprender : aprender pelo trabalho, pelo exercício, pela ocupação, cujos corpos são tornados dóceis. Ao tentar organizar sér ies com essas fotografias, essa reflexão se concretiza. Elas compõem um único conjunto que denominei como espaçotempo2 de aprender. Se considerarmos a assertiva de Sontag – “fotografar é conferir importância a algo realizado ou acontecido” (1979, p. 34) –, pode-se dizer que as fotografias da AN garantiram a autenticidade do texto, logo importância, servindo tanto como testemunha, mas também como sustentação da narrativa e, com isso, como informação. Assumindo a ideia de fotografias como um universo pleno e fértil de infor mações, a leitura do relatório preencheu as lacunas e dúvidas na interpretação das imagens, possibilitou responder como, por que, para quê foram geradas
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Nilda Alves chama a atenção para essa questão quando arma que
algumas palavras, por sua natureza, não podem funcionar separadas, pois uma não existe sem a outra e assim sugere a sua graa de forma inseparáveis:
espaçotempo é uma delas (cf. Alves, 2003).
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e conhecer o cotidiano institucional, permitindo a interrelação entre texto e imagem e sua contextualização. Numa primeira leitura das imagens, vejo: crianças correndo; moças brincando de roda; meninos posando para a foto; garotos sorr identes carregando cestas de verduras; alunos uniformizados em sala de aula frente ao quadro de giz cheio de matérias; uma ampla área de plantio; meninos em atividades nas diferentes oficinas de aprendizagem – carpintaria, barbearia, culinária, marcenaria, agricultura, pecuária – com seus equipamentos. As imagens aparentam um cotidiano tranquilo e harmônico, como se estivessem num ambiente perfeitamente funcional. Essas imagens podem induzir o leitor/observador à ideia de que no SAM, apesar das críticas, as crianças eram felizes, tratadas e educadas. As imagens retratam também os diferentes espaços onde se constroem os cotidianos: banheiros, refeitório, cozinhas, dormitórios e pátios. Algumas são carregadas de dramaticidade pelo seu estado de depredação. Outras enfatizam a sua grandiosidade e abandono: os galpões das oficinas, os terrenos, as plantações e os campos cultivados. Numa segunda leitura, confrontada com o texto produzido pela comissão, que se reportou às fotografias, ou como disse, “as fotografias anexas dizem melhor do que as palavras o que aí ocorre”, pode-se ver o cotidiano vazio de objetos pessoais e de atividades dinâmicas e interessantes. O conjunto de imagens representa o estado de decadência e de penúria em que as crianças viviam, constatado pela escassez do mobiliário, de material e de vestuários, ou pelo desmonte e destruição dos ambientes de uso diário e coletivo. As imagens fizeram-me recordar da análise de Pedro Vasquez, quando estudou as fotos de escravos e seus senhores produzidas por Militão no séc. XIX: Chama a atenção, como sempre nas fotografias de escravos, os pés descalços, evidência maior da condição servil, a tal ponto que a primeira posse almejada pelo escravo alforriado era um par de calçados (1993, p. 11).
O que as pessoas vestem conduz a uma interpretação de sua conduta e papel social, por isso, a imagem dos pés descalços dos meninos denota uma condição de submissão e ressalta sua ausência de posses. Mas, a leitura também revela a negligência do Estado em fornecer o mínimo para garantir o bem estar e reforça a ideia de descaso. Ao retratarem uma quase maioria de alunos negros (pretos e pardos), as imagens indicam que esse segmento compunha um número bastante alto, confirmando a tese de que a pobreza tem cor, a exclusão tem cor e a cor é negra (Lima, 2004, p. 170).
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Algumas fotos se destacam do conjunto, permitindo uma leitura mais particularizada. Tomo como referência tanto a forma de leitura do mundo ocidental, que se inicia da esquerda para a direita, ou o modo de leitura e m diagonal, do canto superior esquerdo ao canto inferior direito, seguindo o mapa da zona ótica, como definiu Collaro (1996). Ao observar a foto dos meninos enfileirados começaremos a olhar do primeiro ao último, quando nos depararemos com um muro e um matagal atrás, podendo ser esse o elemento privilegiado na leitura. O mato, por representar algo que cresce sem previsão e planejamento, dá a sensação de descontrole, instabilidade, juntamente com a inadequação da roupa pendurada no muro; revela o desequilíbrio simbólico da imagem, logo da instituição, em contraposição à cena de disciplinamento que a fila representa. Desse modo, sobre os personagens coletivamente retratados repercute essa noção de abandono.
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Outros elementos ajudam na leitura: a ausência de camisas e sapatos, os gestos e olhares dos meninos, como também o chão de terra batida, que retira a ideia de progresso tão apregoada na época. A inexistência de qualquer objeto que os identificassem como alunos e aprendizes não per mite situá-los num contexto institucional de aprendizagem, mas, ao contrário, remete a ideia de que são meninos submetidos a duras condições de vida. Alguns teriam uma idade acima de dezoito anos, o que denuncia a impropriedade e ir regularidade em permanecerem numa instituição dest inada a meninos na faixa etária de catorze a dezoito anos. Ver as moças brincando de roda pode ser um indicativo de que o fotógrafo tenha sugerido tal ação. Ainda que a brincadeira seja inadequada para a idade das meninas, humaniza-as, e destaca que, apesar de grandes, elas eram meninas como todas as outras, mas que estavam ali trancadas, descalças, de cabelos curtos, despersonalizadas nos largos camisolões, sem nenhum enfeite que valorizasse sua feminilidade. A centralização do foco nas “moças brincando” deixa ver: os quartos ao fundo que se abriam para o pequeno quadrado de cimento onde elas passavam seus dias; a menina esticando no chão a roupa lavada para secar ao sol e, portanto, a responsabilidade impingida; a obrigatória roupa branca e larga, sem forma e sem cor que vestiam, amarrada por tiras de pano, que as uniformizavam e despersonalizavam-nas. E que a grande maioria é negra. Olhar a imagem dos muitos meninos agrupados no refeitório escuro, de paredes azulejadas, com longas mesas de cimento, sentados sem pratos, talheres ou toalhas, alguns muito sérios e entediados, lembrou-me de uma descr ição de Certeau: “Uma comida feita para muita gente, sem sabor e sem identidade – nos refeitórios barulhentos e sombrios,
Agência Nacional / 1961 Instituto Coração de Maria
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e só me lembro daquelas batatas de todo dia, daquele arroz empapado e daquela carne de nome indefinível” (2003, p. 213). Que cheiro teria esse espaço? Para prosseguir trago uma foto de um gr upo de meninos raspando, lavando ou enxugando (não há como saber) os pratos tortos de alumínio, com os pés descalços no chão frio da copa, sob o olhar rigoroso do inspetor, enquanto o último menino da fila próxima a ele observa seu olhar . Como que a emoldurando, destacam-se as paredes sujas da cozinha. Pergunto-me: era ali onde diariamente três refeições eram feitas e servidas aos diversos meninos internados? É possível compreender as afirmações feitas pela comissão, quando apontara que os meninos eram obrigados a participar dos serviços de limpeza e manutenção e que isso era considerado um castigo. Ao ver os meninos ali trabalhando, surge a questão: o que fizeram para estarem sendo punidos? Essa cozinha ainda é um retrato um pouco me lhor do que a frequentada pelas meninas do Instituto Coração de Maria. Paredes descascadas, azulejos quebrados e cheios de limo. Embaixo de uma bancada encontra-se guardada uma panela de alumínio, velha, suja e gasta, utilizada, talvez, no cozimento das refeições diárias. Conclui-se que a alimentação e nutrição não eram consideradas como parte dos cuidados obrigatórios dispensados às alunas, mas, sim, parte de um processo de disciplinamento, cujo princípio em vigor baseava-se no mote: “quando o corpo padece, a alma se fortalece”. As imagens das salas de aula são iguais às de tantas outras salas: a professora séria à frente da turma, o quadro de giz cheio de “deveres” e os meninos sentados em fila, uniformizados e calçados. O que causa espanto e surpreende nessa foto é exatamente essa cena: sua perfeição. Ao olhá-la tem-se a ideia do pleno funcionamento das atividades escolares e que o ensino, apesar de rigoroso, ocorre da forma esperada. Cotejá-la com os documentos e com outra foto chama a atenção para a carteira escolar, provocando estranheza: o trilho montado no chão, no qual carteira e cadeira se encaixam, não permitindo qualquer alteração ou modificação do lugar. O pedestal sob o banco o fixava no lugar, mantendo os meninos imobilizados, sem poderem ir para frente ou para trás. Entra-se certeiro como um parafuso, produzindo uma fileira ordenadamente montada e solidamente presa ao chão. Essa imagem denota a ideia de que a sala de aula é organizada como uma engrenagem perfeita e, portanto, parte do universo onde a arte de disciplinar se impõe.
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Ao analisar o contexto constata-se, não que uma foto mente, já que aquilo realmente estava acontecendo, mas que um cenário pode ter sido arrumado. Ao juntar textos e imagens ou ao olhar outra foto, o teatro se desfaz . A sala de aula, de tão pouco usada, toma outro destino ou uma nova função. E por que não usá-la como área coberta para secagem dos uniformes e calcinhas das meninas? A foto da oficina de trabalho revela sua amplitude e a grandiosidade dos equipamentos, mostrando o investimento empregado na atividade e a expectativa nessa proposta pedagógica, que tinha o trabalho como princípio educativo, descrita por Maria Ciavatta como “escola do trabalho” (2002). Mas, isso se contrapõe ao ver o retrato dos meninos sozinhos, sem professores ou um adulto próximo para orientá-los e na desordem do espaço: materiais e ferramentas espalhados, amontoados pelos cantos, jogados uns sobre os outros. Em outra oficina o fotógrafo privilegiou o enquadramento cujo foco é o espaço, ressaltando as bancadas de trabalho, as condições dos instrumentos e do material disponibilizados displicentemente para os meninos, desprovidos de quaisquer medidas de segurança. Os sapatos produzidos não eram para o próprio consumo, visto estarem permanentemente descalços. Exemplifica que não tinham acesso àquilo que produziam e não se apropriavam do produto de seu próprio trabalho. A imagem de meninos com idade entre doze a catorze anos trabalhando no campo sob o sol, carregando na cabeça grandes cestos de couve recém colhidas, vestidos com velhos uniformes, descalços no chão de terra batida, parando sorr identes, pelo minuto de alívio, talvez, para posar para a foto, tendo ao fundo os terrenos onde realizavam as muitas idas e vindas, retrata a dureza do trabalho executado por garotos tão novos. As fotos dos ambientes interiores, principalmente as dos banheiros, revelam que a higiene não era objeto de preocupação dos dirigentes das instituições. Os modelos de sanitários primavam pelo primitivismo – vaso turco, onde o sujeito faz suas necessidades fisiológicas de cócoras – e a total ausência de privacidade – ou sanitários sem portas e mictórios sem vaso.
Agência Nacional / 1961 Instituto Padre Severino
Agência Nacional / 1961 Instituto Coração de Maria
Agência Nacional / 1961 Escola João Luiz Alves
Agência Nacional / 1961 Instituto Prossional Quinze de Novembro
Uma foto adiante mostra os quadros na parede do banheiro cujas escovas de dente enfileiradas ficavam penduradas. Essa pretensa organização não impediu o fotógrafo de retratar o tempo de uso e a sujeira das escovas, que só perdiam para as paredes com sua crosta de limo. Ele foi muito feliz em fazer essa imagem que serve como símbolo do Agência Nacional/1961
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SAM: o descontrole da instituição de controle. Mas é possível compreender realmente o que foi o cotidiano de meninos e meninas do SAM? Para tentar responder essa questão, tomo a lição que aprendi com Nilda Alves, quando alerta que: Para apreender a “realidade” da vida cotidiana, em qualquer dos espaçostempos em que ela se dá, é preciso estar atenta a tudo o que nela se passa, se acredita, se repete, se cria e se inova, ou não. Mas é preciso também reconhecer que isso não é fácil, pois o ensinado/aprendido me leva, quase sempre, a esquemas bastante estruturados de observação e classificação e é com grande dificuldade que consigo sair da comodidade do que isto significa, inclusive a aceitação pelos chamados “meus pares”, para me colocar à disposição para o grande “mergulho” na realidade (2002, p. 6).
Nesse sentido, para entender o cotidiano vivido e tecido pelos praticantes, é preciso sentir, mais do que ver. Sentir o cheiro de banheiro sujo pelo uso; sentir a pele roçando no forro áspero do colchão de palha; sentir o corpo apertado na cama, sem poder se mexer, preso entre outros corpos no meio da noite; sentir cãibras por dormir sentado com as pernas dobradas num cubículo de um metro quadrado; sentir o cheiro da comida azeda ou de corpos suados quando se entra num refeitório lotado; sentir o frio do chão gelado ou as pedras da estrada de terra sendo pisadas pelos pés descalços; sentir a pele arder após horas de exposição ao sol ou a garganta seca de sede; sentir o calor e o suor escorrendo pelo corpo, sabendo que não há uma água fresca para asseá-lo e uma toalha macia e limpa para secá-lo; sentir a barriga doendo de fome e a tontura que dá e saber que nada pode ser feito para saná-la; sentir a dor no dente latejando sem parar um só instante; sentir a mão inchada das pancadas da palmatória, ou os pernas queimando pela surra de “vara de marmelo” ou de cinturão... (como a lembrança de Infância contada por Graciliano Ramos) e tantos outros sentires possíveis no cotidiano de um internato. Será que há algo mais a se ver nas fotos que o fotógrafo não tenha visto? Para essa reflexão me aproprio das ideias de Certeau que podem me ajudar nessa resposta. Mesmo que os meninos e meninas não possam sair ou fugir das normas estabelecidas pela instituição onde estão internados, os praticantes do cotidiano instauram ali mesmo formas criativas de resistência, as táticas, que “não obedecem à lei do lugar” (2003, p. 93). Os praticantes, que são todos aqueles que realizam as práticas cotidianas – ler, comer, cozinhar, brincar – reorganizam à surdina novas formas de agir e circular nesses espaçostempos, inventando e combinando para si novas “maneiras de utilizar a ordem imposta do lugar” (idem, p. 95).
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Como disse Certeau, são “articulações práticas desenvolvidas no diálogo diário com outros praticantes do cotidiano” (idem, p. 66). Diálogos estabelecidos que permitiram superar as dificuldades ou suportá-las. Criar confrarias, apoiando-se mutuamente, amenizando a dureza do cotidiano e possibilitando a interação e a construção de afetividades. Os meninos e meninas submeteram-se, não de forma passível, mas reagindo e resistindo, através do uso de táticas que garantiram a sobrevivência, a sanidade e a construção de redes de subjetividades, numa “hábil utilização do tempo ”. Até quanto resistiram? Pode-se dizer que muito, haja vista as centenas de pessoas que passaram pelo SAM, e que apesar dele, constituíram família, trabalharam, estudaram... fizeram histórias. Eis o sentido em contá-las. Esse tema simples e humilde, que revela um grupo permanentemente humilhado, da trajetória escondida de uma população in justiçada, sem direito à justiça, embora tutelado por ela. E como narrou o poeta Ferreira Gullar: E a história não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos qu intais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios, nas usinas. Nos namoros de esquinas. Disto eu quis fazer minha poesia. Desta matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não tem voz...
Por isso, precisava contar esse conto, não como fantasia, ficção, mas narrativa organizada de fatos que permitiram revelar às pessoas que, apesar das denúncias e de todo o investimento na montagem de uma nova comissão para apurar as irregularidades no SAM, esses meninos e meninas não tiveram vez e não eram ouvidos. Apesar das fotos mostrarem as condições cotidianas de vida das crianças e adolescentes, eles foram vistos apenas como objetos que compunham um cenário e não sujeitos que deveriam ser olhados, cuidados e protegidos.
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Contudo, o SAM existiu (e os meninos e meninas resistiram) por mais três anos, pois somente em 1964 foi extinto, dando lugar à outra instituição, Funabem, criada para corrigir as distorções e transformar totalmente as escolas do SAM. Na análise do pedagogo Luiz Bazílio, a instituição surge com uma proposta diferenciada do SAM, mas que pouco foi concretizada: Oficialmente, aponta-se para uma mudança de enfoque. A visão do “menor” como ameaça social cede lugar à da criança carente e abandonada. As práticas assistencialistas passam a ter prioridade maior que as práticas punitivas. (...) legalmente, a internação seria a última alternativa de assistência e ressocialização do “menor”. A prática, no entanto, ter mina consolidando a Funabem com a mesma lógica carcerária com a qual dizia romper, ampliando o controle e a centralização do poder de tutela do Estado ( Bazílio, 1985, p. 71).
E essas fotografias? Foram posteriormente guardadas e esquecidas numa gaveta qualquer, de uma mesa qualquer, quando foram, e só agora, novamente reveladas. Novas leituras, outras interpretações...
Uma história de fundação e fundamento... Não se pode negar a importância da fotografia como documento/monumento da memória coletiva de um grupo, de uma instituição ou de uma sociedade e como recurso que possibilita a reconstrução da história. As fotografias, neste estudo, permitiram recuperar as histórias de meninos e meninas que tiveram seu passado silenciado quando os documentos, os quais as fotografias faziam parte, foram arquivados, e desvendar a imagem de criança desejada pela sociedade, que se utilizou da imprensa para expor seus projetos. E, ao contrário do que fora divulgado nos jornais da época, sobre a internação ser um ato de ir responsabilidade ou descaso dos pais, os dados apresentados podem significar que essa era vista como o único recurso da população pobre para a sobrevivência de seus filhos, de oportunidades de estudo e, portanto, alteração na trajetória de vida da família. As narrativas permitem dizer que, ao final de tudo e após todo o massacre, o destino das crianças, em sua maioria, era o de ser devolvidas à rua, sem dinheiro, sem domínio da leitura e escrita, sem profissão, entregues à própria sorte. O esquecimento da história do SAM e de seus tutelados significa uma tentativa de apagar os vestígios dessa inoperância
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institucional, da opressão e do longo tempo de descaso da sociedade para com os meninos e meninas (des)protegidos pelo Estado. A fotografia pode ser concebida como instrumento e objeto de pesquisa quando ela é tomada como fonte privilegiada para estudos e pesquisas, ou seja, como recurso utilizado pelo pesquisador para buscar informações sobre ela mesma ou sobre fatos, lugares e pessoas por ela retratados, produzindo uma reflexão ou investigação que tenha valor histórico. Mas não há um caminho prévio na pesquisa qualitativa e historiográfica com fotografias. Estabelecer esse caminho faz parte dos procedimentos metodológ icos. As perguntas vão surgindo à medida que as pistas e documentos vão sendo encontrados, como ensinou Ginzburg. Entre fotos e papéis, textos e poemas, revirando caixas e arquivos, entre documentos e nar rativas, fui revelando histórias e refazendo as andanças e imagens de gentes que mereciam outras vidas, outras trajetórias... Termino com um pedaço do conto de Galeano, que vem dizendo...: Marcela esteve nas neves do Norte. Em Oslo, uma noite, conheceu uma mulher que canta e conta. Entre canção e canção, essa mulher conta boas histórias, e as conta espiando papeizinhos, como quem lê a sorte de soslaio. Essa mulher de Oslo veste uma saia imensa, toda cheia de bolsinhos. Dos bolsos vai tirando papeizinhos, um por um, e em cada papelzinho há uma boa história para ser contada, uma história de fundação e fundamento, e em cada história há gente que quer tornar a viver por arte de bruxaria. E assim ela vai ressuscitando os esquecidos e mortos; e das profundidades desta saia vão brotando as andanças e os amores do bicho humano, que vai vivendo, que dizendo vai...
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A escola caricaturada Paulo Sgarbi
Era uma vez... ... uma escola em que, ao terminarem as aulas... Creio que o Tonucci linkado aí em cima (1997, p. 151) é um bom exemplo de expressão caricatural sobre a escola. Se não, vejamos o que diz Ferreira (2009): 1. Desenho que, pelo traço, pela escolha dos detalhes, acentua ou revela certos aspec tos caricatos de pessoa ou fato. 2. Teatro. Representação burlesca em que se arremedam ou satirizam comicamente pessoas e fatos. 3. Reprodução deformada de algo. 4. Pessoa ridícula pelo aspecto ou pelos modos.
Os sentidos 1 e 2 cabem nessa imagem com rara precisão, seja na acentuação da tristeza do afastamento, seja pela exacerbação da alegria pelas férias, o que, de certa forma, não deixa de ser a alegria pelo mesmo afastamento. Neste texto, o foco é a escola, propositalmente, aqui, generalizada pela singularização, pois o que me é possível trazer, ao compreender o gênero caricatural como uma linguagem potente na “leitura” das acontecências de vários “reais” escolares, são fatos que, por sua recorrência, fazem sentido em muitas escolas de espaçostempos bem diversos. Numa categorização mais técnica, o desenho de Tonucci é classificado como charge [Representação pictór ica, de caráter burlesco e caricatural, em que se satir iza um fato específico, em geral de caráter político e que é do conh ecimento público. (Ferreira, 2009)] ou cartum [Desenho caricatural que apresenta uma situação humorística, utilizando, ou não, legendas (ib.)], sendo o elemento caricatural a constante nesse tipo de produção gráfica. Pelo senso comum, as caricaturas são mais identificadas como desenhos de pessoas, mas temos uma produção muito ampla, principalmente na esfera política, em que os fatos são o centro da cena.
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Antes de adentrar a escola pela caricatura, penso ser interessante conversar com Herman Lima (1963, p. 5) sobre essa linguagem: Na página de abertura de seu livro Rules for drawing Caricatures, with an Essay on Comic Pointing, editado em Londres em 1788, e que se presume seja a primeira obra dedicada ao estudo sistemático da caricatura, diz o autor, Capitão Francis Grose, antiquário e armador inglês de muito talento: “A arte da caricatura é geralmente considerada como um dom perigoso, mais próprio a tornar seu possuidor temido do que estimado; mas é certamente injusto condenar o abuso a que qualquer arte está sujeita, como argumento contra a própria arte. Para julgar com isenção o mérito dessa que tencionamos falar, não devemos esquecer que ela é um dos elementos da pintura satírica, e que, como a poesia desse gênero, é talvez empregada com maior êxito em vingar a virtude e a dignidade ultrajadas, apontando os culpados ao público, único tribunal a que êles não podem fugir; e fazendo tremes à simples idéia de ver suas loucura, seus vícios, expostos à ponta acerada do ridículo, aquêles mesmos que enfrentariam com desdém censuras atrozes”. [Foi mantida a grafia original nessa e nas demais citações.]
Francis Grose traz um aspecto muito interessante em sua definição, que é a comparação da caricatura com um tribunal [e não está sozinho nisso, segundo Oliveira e Almeida, 2006, que apontam Ramon Columba, [que] a denomina “Supremo tribunal”, pois, “ante ela se inclinam os própr ios juízes e as autor idades da nação”. Na caricatura, o grande júri é for mado pelos leitores, o caricaturista é
refere”.Assim,é Assim, é interessante o temido promotor e a sentença é a opinião pública.] , o que enfatiza o “dom perigoso a que ele se refere”. observar, como o faz Lima (ib., p. 6-7), que a caricatura não é sòmente, como entendiam os italianos que lhe lançaram a moda na era do Renascimento – o ‘ritrato ridículo di cui siansi esagerati i difetti’. É ainda, e de preferência [...] a arte de caracterizar. Porque um artista verdadeiro [...] não caricatura para troçar dum homem e menos ainda para deformar o tipo humano. Caricatura para caracterizar, para sublimar algum gesto, para notar algum jogo de fisionomia, para unir tão intimamente todos os aspectos inesperados, inéditos, da máquina humana, [... e] isso não difere muito, aliás, da sentença de Aristóteles, quando afirmava que “quando se tem que representar certas personagens pela imitação, deve-se necessàriamente pintá-las melhores ou piores do que são”.
Além de constatarmos a longevidade do burlesco – muitas vezes, ao mesmo tempo, ferino – como forma de “expressar” os cotidianos [vide a sentença de Aristóteles], é fundamental pensarmos, também, que a compreensão das personagens ou situações trazidas pela caricatura [em forma ou não de charges] depende de um conhecimento contextual de
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quem vêlê essa produção. Pensando nessas questões durante meus estudos de mestrado (Sgarbi, 1999), procurei mostrar que, nesta figura de Tonucci (1997, p. 127), as várias situações apresentadas caracterizam a instituição escola pela junção de texto e imagem e manifestam leituras avaliativas a partir de um conceito de escola socialmente construído, sendo, portanto, comum ao autor e aos leitores: a aparência fabril “taylorista” da escola como representação dos processos didáticos como uma linha de montagem, com os vários “setores pedagógicos” organizados ao lado de uma esteira por onde os alunos são levados, e não caminham por si mesmos e, em casa, TV e cama. (p. 81),
ao mesmo tempo, tendo a clareza de que esta análise traz à tona um problema epistemológico, na medida em que as situações apresentadas nos cartuns assumem uma perspectiva de generalização. A escola “representada” no cartum de Tonucci não é uma escola italiana – nacionalidade de seu autor – tampouco uma escola brasileira ou francesa ou chinesa; é simplesmente uma construção de um conceito genérico de escola, cujas situações podem ou não ter pertinência em qualquer espaçotempo, através de um ato de linguagem que fala tanto de seu autor quanto de seus leitores. Essa escola, portanto, não é uma escola real. E é exatamente aí que encontramos um dilema epistemológico, pois partimos do pressuposto teórico de que a diversidade e a complexidade são marcas evidentes das escolas reais. (ib.)
Isso evidencia que autor e leitores devem ter, minimamente, um conhecimento comum sobre aquilo que a caricaturachargecartum expressa. Vou trazer como exemplo uma caricatura e uma fotografia do escritor Jorge Amado. Quando se trata de uma caricatura de uma personagem, o conhecimento desta traz uma identificação mais imediata dos traços caricaturais. Uma pessoa que, não conhecendo a personagem de nenhuma maneira, nem por fotografia, terá maior dificuldade nessa identificação, embora possa até “imaginar” a personagem “real”. No entanto, no caso das caricaturas de situações ou fatos, a identificação dos elementos caricaturais vai, normalmente, ser mais difícil se o que está caricaturado não for do conhecimento de quem vêlê o desenho. Nesta charge de J. Carlos [Lima,1963, p. 322], por exemplo, a compreensão da situação expressa não faz sentido se o vedorleitor não tiver conhecimentos dos fatos que a geraram. Ao, no entanto, colocarmos o texto que Herman Lima escreveu sobre ela, sua compreensão já fica mais possível: “A caricatura alude às agitações do estado do Rio de Janeiro,
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com a eleição de Nilo Peçanha para o governo, derrotando Feliciano Sodré, que Pinheiro Machado fizera tudo para salvar.” Com essa “explicação”, já fica mais fácil perceber os elementos caricaturais, como o Rio Nilo e o cenário, mesmo a roupa usada por Nilo Peçanha, a metáfora de Moisés como referência a Feliciano Sodré, etc. Mesmo assim, uma compreensão mais aprofundada da situação só se dá por um conhecimento mais aprofundado da situação política retratada. Ao comparar a figura de Tonucci “Os perigos do turno integral na escola” e a situação política trazida por J. Carlos percebo algumas diferenças fundamentais quanto ao conhecimento que envolve as situações, embora essas diferenças estejam, quase sempre, muito misturadas. Enquanto, na segunda situação, um fato específico [eleição de Nilo Peçanha] e todas as “agitações” dela decorrentes são indispensáveis para que a caricatura faça sentido, na figura de Tonucci, os conhecimentos envolvidos são conceituais [produção em sér ie, automatização] e, portanto, de uma temporalidade diferente da temporalidade factual. De outra forma, o uso de elementos simbólicos por J. Carlos tem sentido – caricatural – a partir da analogia com o nome do eleito, trazendo o Rio Nilo a situação de não-salvamento a partir do conhecimento de que Pinheiro Machado não conseguiu “salvar” Feliciano Sodré, etc. Portanto, são conhecimentos datados e decorrentes de uma factualidade cotidiana bem definida. Já na charge do psicólogo e desenhista italiano, os conhecimentos envolvidos são sobre linha de montagem, procedimentos escolares repetitivos e automatizados, que não se remetem diretamente a esta e àquela escola, mas a um fazer escolar cotidiano que, recorrentemente, acontece em muitas escolas, talvez, até, na maioria delas, mas a factualidade é uma decorrência do conhecimento conceitual, sendo este, portanto, que nos possibilita atribuir sentido à situação caricaturada. Ainda hoje, em diferentes espaços, essa concepção de educação pode estar presente em muitas escolas.Tonucci, italiano, com uma passagem profissional pela Argentina,“retrata”, em 1974, uma tipologia de escola que, decorrente de uma maneira de compreender a educação, esteve em muitos espaçostempos no Brasil e fora dele, ainda está presente em muitos espaçostempos no Brasil e fora dele e, possivelmente, ainda fará parte de um futuro educacional no Brasil e fora dele. Hoje, no Rio de Janeiro, não temos Nilos vencendo eleições de Felicianos bancados por Machados. No entanto, mesmo na política, caricaturas com base em conhecimentos conceituais e bem pantemporalmente cotidianos também acontecem, como podemos ver nesse trabalho de Calixto Cordeiro (Museu, 1987, p. 39).
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Adentrando a caricatura pela caricatura, este artigo se pretende uma exposição em que as caricaturaschargescartuns trazendo situações escolares e educacionais serão fixadas nas paredes de nossa visão por fios e ganchos feitos das letras das minhas reflexões. E preciso revelar aos meus interlocutores vedoresleitores que, como ficou até já bem explícito quando argumentei sobre a necessidade do texto trazido por Herman Lima para a nossa compreensão da charge de J. Carlos sobre a eleição no Rio de Janeiro em 1915, não acredito que uma imagem, mesmo valendo uma narrativa, não “vale mais do que mil palavras” no sentido de se bastar. É compreensível, para mim, que há imagens tão evidentes que dispensam narrativas que lhes dê um sentido. No entanto, tenho dito que uma imagem vale uma imagem. Mil palavras valem mil palavras. O que me importa, tanto das imagens quanto das palavras, são os significados possíveis de suas articulações nos discursos. (Sgarbi, 2008, p. 24).
Esse raciocínio se solidifica quando, tentando compreender as escolas e os processos escolares usando caricaturaschargescartuns, comparo duas imagens cuja atribuição de sentido pelos vedoresleitores se dá a partir de suas estruturas bem diferentes na articulação imagem/texto. Melhor dizendo, penso que as pessoas todas atribuem significados às imagens que veem, sejam elas fotografias ou imagens desenhadas sem qualquer texto. No entanto, da mesma forma como acontecem com inúmeros textos [alguns estudiosos defendem que a plurissignificação acontece com todos], as imagens, enquanto uma forma intencional de comunicação, inúmeras delas [não conheço teórico que defenda a totalidade delas] precisam do suporte linguístico para efetivar, com relativa precisão, o que intentam comunicar. A primeira das duas imagens a que me referi é esta tirinha de Quino (2003, p. 22), em que a ironia, o sentido da comunicação do autor e o “roteiro” de compreensão do leitor estão no texto e não nas imagens. Se, por exercício, tirarmos as f alas das personagens, os desenhos não nos trazem maiores significados. Poderíamos, na verdade, criar inúmeros diálogos com essas figuras e todos poderiam fazer sentido sem que a imagem efetivamente interferisse significativamente. Pensando, pois, nessa relação imagem texto, quando o foco é a caricaturachargecartum, é importante compreender que o texto que faz parte dos desenhos [como os diálogos, por exemplo, ou a nomeação das estacas que prendem o cidadão
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na charge do Calixto [duas páginas antes]] é
diferente de outro que, fora da imagem, lhe vem elucidar o sentido. A invenção [no sentido dado por Von Foerster , 1996, p. 65-66] da da imagem vem ao mesmo tempo que aa invenção invenção do do texto, texto, ou seja, o artista cria a situação que quer expressar e lhe dá forma pela articulação imagem texto. A segunda imagem da comparação que anunciei é de Tonucci (1997, p. 18), propositalmente sem o ano/título que estão presentes em todas as imagens deste livro do artista italiano para mostrar uma imagem que se basta, ou seja, qualquer texto, ou mesmo título, não interferem de maneira fundamental para a compreensão do que está sendo comunicado. Algumas questões devem ser colocadas para que eu possa pensar nos sentidos possíveis para esta em outras tantas imagens, que é o repertór io cultural que cada um de nós tem em sua memória. De outra forma, os conhecimentos [imagéticos e de outras ordens] que temos nos nos possibilitam possibilitam sentidos para esta imagem, desde a simples constatação descritiva de um efeito anunciado pela ciência de que as mães fumantes fazem com que seus fetosfilhosfilhas fumem juntos a sentidos de outras ordens [moral, religiosa, de saúde, de crítica, etc.], mas, mas,em em princípio [considerando que a subjetividade pode atriimagem. buir sentidos bem divorciados dos elementos gráficos representados na imagem], relacionados ao que está expresso na imagem.
Adentrando a escola pela caricatura, e tendo como ponto de partida que a lógica da grande maioria dos nossos processos educativos tem base na oralidade e na escritura [seja pela leitura, seja pela forma de demonstrar conhecimento], constato que as escolas caricaturadas são expressas, quase sempre, pelo textoimagem. Contando com a sempre gostosa ajuda de Tonucci (ib., p. 83), podemos observar uma situação de “correção” bastante comum em nossas escolas, em que o pensamento analógico do aluno é, muitas vezes, deixado de lado em detrimento da norma a ser assimilada e tida como única forma possível. Se, ao mesmo tempo, temos como uma das funções das escolas o ensino dos conhecimentos formais e, neles, as formas corretas de dizer, deveríamos ter [e temos em muitos casos] um maior respeito pelo outro na na forma de de fazer fazer aa correção. correção. Esta [digamos] inadequação da postura do professor diante da “obrigação de corrigir” está expressa nos elementos imagéticos da charge, ressaltando tanto a “contundência” com que o professor corrige quanto o efeito dessa “descoberta” pelo aluno.
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Caricatura? Sim, com certeza. Ficção? Não, com a mesma cer teza. Neste quadro de Anker, datado de 1896, podemos ver um [talvez] “retrato” retrato” de uma escola da época que,a que, a não ser ser pela indumentária dos per sonagens e pelos artefatos escolares, bem poderia ser uma “fotografia” de uma escola de nossos dias. Chamo a atenção para a formatação da sala de aula, um esquadrinhamento visível, apesar de algumas quebras nessa organização. Na tirinha de Quino (2003, p. 114 [essa tirinha, como as demais Mafaldas daqui por diante, foi tirada de uma versão da internet, sendo o número da página relativa à versão citada] ), a organização espacial simétrica, em forma de fila única, é bem caricatural, assim como a postura comportada tanto dos alunos como da professora [Manolito foge à regra, mas é o que dá sentido ao humor da situação (des)conhecimento] . Essas duas imagens, imagens,expostas expostas para mostrar o formalismo espacial como as escolas, quase sempre e na maioria dos espaçostempos, se organiza possibilitam, também, a reflexão sobre outro tipo de formatação, que é a dos comportamentos acadêmicos, como nos mostraWatterson (2007, p. 31-32). Nesta pequena narrativa desenhada, o artista norte-americano mostra uma situação escolar cotidiana bastante comum e, eu diria, bastante verossímil. Além de colocar [hoje caricaturalmente] aa questão do castigo [palmadas na bunda], satiriza, de maneira muito humorada, a questão do curr iculum vitae [histórico escolar] e, e,como, como, no no nosso nosso caso, esse esse currículo currículo tem um nome acadêmico bem expressivo, pois a referência à pós-graduação me remete ao currículo Lattes [rsrsrsrs]. A questão do poderautoridade também está presente nessa narrativa, pois o pânico das cr ianças pelo fato de terem que “encarar” o diretor e todo o imaginár io de perversidade que a figura da autor idade escolar tem para muitas pessoas é ironizada na figura do “monstro” criado pelo Calvin. Aliás, a metáfora do monstro é recorrente no imaginário do Calvin para representar situações escolares como esta da página 28 da obra de Watterson citada. Da mesma forma que situ-ações cotidianas são caricaturadas, questões conceituais também podem ser vistas como alvo dos artistas. Em especial, trago uma tirinha doVeríssimo (1997, p. 73) de que gosto muito e que uso sempre que vou conversar sobre conhecimento.
Adentrando os currículos escolares pela caricatura Alguns componentes escolares têm sido alvos constantes de alguns ar tistas das linguagens desenhadas e o psicólogo e desenhista italiano Francesco Tonucci (1997) tem-se destacado na caricaturização de cenas escolares com muita
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potência. O seu personagem Frato “vivencia” um cotidiano escolar que traz, com muito humor, reflexões importantes sobre os nossos processos de ensino. Muitas das situações caricaturizadas por Tonucci trazem uma reflexão importante sobre como as escolas concebem os currículos. Algumas dessas maneiras de compreender currículo têm, na reprodução sem criatividade, um ponto metodológico a ser repensado.Vejamos uma dessas situações [p. 82]. Observe-se o contraste entre os balões de pensamento das crianças com as belas peças que fariam com a “ordem” de que todos façam um “lindo porta-canetas” para o papai. Essa é uma maneira de conceber currículo como uma “norma unificadora”, ou seja, um sistema de limites que tem como função dar a todos os mesmos conhecimentos e apenas eles, sem considerar as diferentes e diversificadas contribuições ao conhecimento que as criançasalunos trazem de suas experiências de toda ordem. A maestria de Tonucci se faz, também, por alguns detalhes gráficos que emprestam especial sentido aos seus desenhos. Veja-se, por exemplo, a diversidade expressa pelos balões individualizados e as fisionomias alegres das crianças em contraste com um único balão para todas elas e suas carinhas entristecidas. Caricatura? Sim. Ficção? Certamente não. Nesse seu livro Com olhos de criança, Tonucci traz algumas outras charges que têm como foco as questões curricular e metodológica, quer quando aborda a versão adulta para criança dos conhecimentos [(1968) Onde ele nasce? p. 52], ou quando traz o pretenso controle que os adultos [pais, professores, em especial] têm sobre o que as crianças aprendem [(1969) ... ele nem pensa nisso... p. 60], seja quando mostra o descompasso entre o que as crianças sabem e o que escolas [pelos currículos, principalmente] acham que elas têm que aprender aprender [(1977) Os trabalhos manuais, p. 85], ou, ainda,ao ainda, ao levantar levantar questões questões metodológicas [(1974) A adição, p. 118]. Outro cartunista com quem tenho conversado é Ziraldo, através do seu Menino Maluquinho, que me apresentou duas situações muito interessantes para pensar na pertinência dos conhecimentos que vêm determinados pelos currículos escolares. Sou dos que pensam que conhecimento não ocupa espaço [mas há quem diga exatamente o contrário, tanto que, quando não usamos o que sabemos, esquecemos para dar lugar a coisas mais importantes] , mas temos que convir que existe uma postura um tanto acrítica sobre o s conhecimentos que os currículos preveem. As duas narrativas abaixo me fazem lembrar uma conversa que tive com o amigo Filé [José Valter Pereira, amigo professor da UFRRJ] quando quando lecionou a disciplina
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Currículo na Faculdade de Educação da Uerj. No corredor, ele me pergunta: – Afinal, Paulo, o que é currículo? Respondi a ele meio que caricaturalmente: – Um monte de respostas que damos aos alunos sem que eles façam quaisquer perguntas. O Menino Maluquinho traz questionamentos aos cur rículos pré-fixados que, muitas vezes, estão desconectados dos contextos sociais, trazendo para a cena discussões como a que faz Alves (2002, p. 23) de que é necessário... buscar as tantas e diferentes histórias das tessituras das redes de conhecimentos, no que se refere às ações pedagógicas e aos currículos, que desenvolvemos nas tantas escolas por que passamos. Mais ainda: é assim que, embora vivendo experiências localizadas, todas as pessoas que estão algum tempo do seu cotidiano na escola, buscando mudanças que levam em consideração as “forças locais, trazem ao que está sendo tecido, em cada momento de cada escola, todas as experiências vividas nos outros tantos contextos em que se fizeram e fazem redes de subjetividades.
Ao mesmo tempo, essas escolas são palcos de histórias que se encontram, cotidianamente, nas redes de conhecimentos que as constituem. As infinitas tramas que tecem essas escolas são as histórias de todos que por elas passam. Histórias que mostram, muitas vezes, as astúcias dos sujeitos que, em suas táticas de praticantes (Certeau, 1994), se movimentam “dentro do campo de visão do inimigo... e no espaço por ele controlado” (p. 100). Assim (Watterson, 2007b, p. 28). É numa conversa com Michel de Certeau (op. cit., p. 103) que encontro uma menção importante para a compreensão da caricatura como uma linguagem que, sendo metafórica em sua premissa comunicativa, tão bem traz a vida cotidiana e os conhecimentos do senso comum que a fecunda: Diversas referências teóricas permitirão caracterizar melhor as táticas ou a polemologia do “fraco”. É o caso, em particular, das “figuras” e das “metáforas” analisadas pela retórica. Freud, aliás, já as tinha individuado e utilizado em seus estudos sobre o chiste e sobre as formas assumidas, no campo de uma ordem, pelos retornos do eliminado: economia e considerações verbais, duplos sentidos e contra-sensos, deslocamentos e aliterações, empregos múltiplos do mesmo material etc.
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Desenhando essas reflexões com Tonucci (1997, p. 123), temos uma situação em que a escola é representada como um tempo a ser desconsiderado no fluxo das coisas que realmente são importantes serem feitas, um tempo de blá blá blá que não interfere no desejo das ações que [no caso] um dos meninos pretende praticar [ir ao cinema com João]. Um detalhe que caracteriza, nessa charge, o espaçotempo escolar é a ausência da boca do menino que, antes de entrar na escola [Hoje à noite irei...] ee depois de sair dela [... ao cinema com João], fala, dando a sensação de que, para as criançasalunosalunas, a escola é o lugar da audição. Interessante perceber [estou-me restringindo a uma experiência muito brasileira, pra não dizer carioca] que que os muitos pro jetos de melhoria das condições materiais das escolas públicas, mais especificamente no que se refere à tecnologia educacional, dotam as escolas de televisão, tocadores de CD/DVD, ou seja, de aparelhos para leitura, mas não de câmeras de vídeo, que seriam os instrumentos de escrita. É importante que se diga que esse tratamento tem mudado, mais pelo esforço próprio dos sujeitos escolares e menos pelos responsáveis públicos por essas ações junto às e scolas, mas é cada vez maior o número de escolas que têm incentivado o uso, pelos alunos, dos artefatos culturais de escrita, de expressão. No entanto essa é uma realidade mais visível na rede privada. Enquanto isso, os sujeitos escolares vão, taticamente, se movimentando no espaço do inimigo e denunciando esse movimento: (Tonucci, 1997, p. 78). Ou negociando (Watterson, 2007b, p. 130).
O trabalho do professor na (re)ação dos alunos: Mafalda e Frato conversam Nesta imagem [Adotei um livro],Tonucci (1997, p. 150) rompe com uma lógica escolar bem marcada que tem no livro [e, hoje, alguns outros artefatos mais tecnologizados] um um eixo muito forte. forte.Mas,por Mas, por trás do livro [didático e paradidático], estão as professoras e os professores e seus trabalhos, suas crenças e conhecimentos [milenares] do do que é importante para os alunos [para que eles tenham sucesso na vida], seus modos de fazer. Em se tratando de caricaturas de escolas, professoras e professores são alvos dos artistas, principalmente para críticas às suas maneiras de praticar educação, crítica essa que, normalmente, vem das (re)ações das alunas e dos alunos.
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É importante ressaltar que a característica generalizante dos cartuns acaba por colocar todas e todos num mesmo saco, mas sabemos que não é assim, que as professoras e os professores são todas e todos diferentes e suas práticas pedagógicas cotidianas seguem por caminhos nem sempre padronizados, por mais que as políticas de governo induzam a práticas uniformizantes e modelares. As alunas e os alunos que (re)agem às ações das professoras e dos professores também não podem ser generalizados, mas, sem dúvida [para mim], Frato [personagem de Francesco Tonucci] ee Mafalda [personagem do Quino [Joaquín Lavado]] são são duas sínteses de muitas alunas alunas e muitos alunos que nos possibilitam viajar por universos escolares dos mais variados e, ao mesmo tempo, reconhecíveis para cada um de nós. Como tenho repetido neste texto, as situaçõesfatos podem ser caricaturas, mas, certamente, mesmo que inventados, não são ficção, pois, como nos ensina Manoel de Barros (1997, p. 69), “Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.” Vejamos, por exemplo, essa tirinha do Quino (2003, p. 123). A resposta de Manolito “quebra” a lógica de um exercício de repetição bem recorrente nas escolas [pelo menos em algumas que conheço e feitas por professores que também conheço], do tipo: – Uma das coisas que as abelhas produzem é a CE... – ... RA. – As plantinhas verdes fazem a FOTOSSÍN... – ...TESE.
– E por aí ... – [...vai]. Na mesma linha de (re)ações desconcertantes, uma outra da página 220 que eu adoro. Uma aula de língua pátria (Quino, 2007, p. 123) [o original é em espanhol, e as tirinhas que estou usando são da edição brasileira] mostra bem o sistema de repetição da escola argentina de então, “começando pela alfabetização: o método usado era o silábico, totalmente alheio ao universo da criança e ao contexto em que ela vive, e faz-se o uso da cartilha...” (Gottlieb, 1966, p. 125). Já Tonucci (1997, p. 143) caricaturiza usando a imagem do Frato sendo esquadrado como os “mapas” de corte de bovinos [observem, pelas expressões faciais, que tanto Frato quanto o boi não se sentem confortáveis nessa situação], em que os
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pedaços são as várias datas comemorativas do calendário escolar, procedimento “curricular” de amplo uso em nossas escolas até hoje, tornando-se, como o título da charge de Tonucci, um programa a ser seguido, não apenas no maternal [como refere o psicólogo italiano], sequer apenas na educação infantil, mas que caracteriza, de uma for forma ma geral,os geral, os processos educativos de todo o ensino fundamental. Algumas caricaturas marcam bem que A forma de relacionamento entre professores e alunos é direta e imposta. Graficamente fica claro como é essa relação direta, que implica na ausência de uma relação verdadeira e também de dinâmica de grupo. O professor sempre aparece falando, despejando o conteúdo e não admitindo a manifestação do aluno (Gottlieb, 1996, p. 131).
Parece que “zero em sinceridade” é uma recorrência nas relações entre professores e alunos, mas com a constatação de que o zero é dado ao aluno que, na grande maioria das vezes, sequer pode negociar essa sentença. Muitas são as charges que ampliam a relação professor-aluno caricaturalmente, tanto em Quino como em Tonucci, e sempre focando aspectos em que o professor traz a carga negativa dessa relação, até porque é ele quem “representa” o lado institucional do processo educacional. Na narrativa desenhada ao lado (Tonucci, 1997, p. 90), uma certa “truculência” da professora ao se sentir atingida pela “sinceridade” do aluno. E, também com certa recorrência, esse tipo de situação em que o professor se sente atingido, se converte em valores no sistema de avaliação, temática também bastante presente nos desenhos desses dois artistas. Os processos escolares, a partir da própr ia política de governo que os organiza, têm como base a mer itocracia, que instaura uma lógica de avaliação matematizada [mesmo que os números venham disfarçados de letras ou até mesmo de narrativas], que reproduz a hierarquização que tanto caracteriza caracteriza asas relações relações sociais sociais nas nas instituições instituições escolares. escolares.Evito, Evito, neste neste texto, intencionalmente, aprofundar a discussão sobre a avaliação da aprendizagem no que se refere, por exemplo, à produção de exclusão [e inclusão], às relações de poder postas [e as não postas, mas que existem aos montes], à apreciação dos instrumentos de avaliação mais usados, como provas e testes [mesmo que disfarçados de pesquisa e outros instrumentos menos protocolares], e muitos outros procedimentossituações que envolvem as práticas avaliativas nessas tantas escolas por que passamos e onde se dá parte significativa e importante da nossa formação. O que quero deixar mais evidente, neste estudo com as caricaturas,
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é que os processos de aprendizagens são múltiplos e não -controláveis, mesmo os institucionais, apesar da ilusão de controle que se tem, o que, nas escolas de todos os níveis – hoje, aqui em nossas terras, até mesmo em muitas escolas dos bem miudinhos –, é criada pelas práticas avaliativas e outros procedimentos que se destinam a controlar condutas, como nos [desenha] Francesco Tonucci (1997, p.79), mostrando conflitos entre dois espaçostempos de formação de extrema importância para a grande maioria das pessoas: a família e a escola (Sgarbi, 2005, p. 33 do artigo 6).
Em que pesem as muitas contradições entre os currículos familiar e escolar, há de compreender que há mais aproximações do que afastamentos. Até porque, por exemplo, na pré-escola [vou focar essa faixa do processo educativo pela intensidade com que acontece o que vou expor a seguir] , a cada dia, mais as famílias “depositam” seus filhos nas instituições que, cada vez mais, se ocupam, também, da educação que caberia à família dar, como, por exemplo, a própria questão dos limites. Um pouco dessa relação família-escola é vivida por Manolito (Quino, 2007, p. 156) e por Frato (Tonucci, 1997, p. 154).
Fechando a exposição que anunciei quando “adentrei a caricatura pela car icatura”, vou trazer três imagens dos personagens principais dessa nossa aventura pelas narrativas desenhadas das escolas e seus sujeitos. E, como normalmente acontecem quando vamos a exposições, vemos as imagens expostas e vamos embora com a cabeça povoada de pensamentos [imagéticos e de outras tantas naturezas possíveis para os pensamentos] sem que que isso isso represente representeuma umaconclusão. conclusão.Penso, Penso, mesmo, que exposições podem ter esse sentido bem marcado de nos acompanhar para fora do espaçotempo possibilitando [nos] pensar pensar [mos] nas nas coisas dos mundos que nos cercam e nos servem de habitat. Na ordem [rsrsrs], (Watterson, 2007, p. 79; Quino, 2007, p. 221; Tonucci, 1997, p. 129).
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Algumas pessoas com quem conversei nesse escrito: ALVES, Nilda (Org.). Criar currículo no cotidiano. São Paulo: Cortez, 2002. (Série Cultura, memória e currículo, v. 1). BARROS, Manoel. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1997. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano – 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. FERREIRA, Aurélio Buarque H. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 4. ed. Curitiba: Positivo, 2009. GOTTLIEB, Liana. Mafalda vai à escola: a comunicação dialógica de Buber e Moreno na Educação, nas tiras de QUINO. São Paulo: Iglu: Núcleo de Comunicação e Educação: CCA/ECA-USP, 1996. LIMA, Herman. A história da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963. MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES, Rio de Janeiro. Calixto Cordeiro. Rio de Janeiro, 1987. (Catálogo de Exposição). OLIVEIRA, Neide A.A.; ALMEIDA, Lara M.O. Gêneros jornalísticos opinativos de humor: caricaturas e charges. In: Janus, Lorena. Ano 3, n. 4, 2º semestre de 2006. QUINO. Toda Mafalda. São Paulo: Martins Fontes, 2003. SGARBI, Paulo. Conhecimentos, linguagens, avaliações: o que dizem os cartuns. Rio de Janeiro, 1999. 121 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. SGARBI, Paulo. Avaliação pensadassentida a partir de uma epistemomagia do cotidiano. 2005. 381 f. Tese (Tese de Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. SGARBI, Paulo. Uma imagem vale mais do que mil palavras? In: A Página da Educação. Porto: Profedições, 2008. p. 24-25. TONUCCI, Francesco. Com olhos de criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. VERÍSSIMO, Luiz F. As cobras em: se Deus existe que eu seja atingido por um raio. Porto Alegre: L&PM, 1997. VON FOERSTER, Heinz. Visão e conhecimento: disfunções de segunda ordem. In: SCHNITMAN, D. F. Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. WATTERSON, Bill. Calvin e Haroldo: e foi assim que tudo começou. São Paulo: Conrard, 2007. WATTERSON, Bill. O mundo é mágico: as aventuras de Calvin & Haroldo. São Paulo: Conrard, 2007b.
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PARTE II (animação)
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As imagens da escola e as redes de comunicações, conhecimentos e sentidos Conceição Soares
Com este texto, produzido a partir de imagens e narrativas capturadas/criadas por ocasião da elaboração de minha tese de doutorado, busco discutir a comunicação praticada nos/com os cotidianos de uma escola pública de ensino fundamental, acrescentando, contudo, um novo enfoque que procura dar conta do que eu não havia percebido ou dado muita importância na época. A pesquisa foi realizada entre os anos de 2005 e 2008, na EMEF Álvaro de Castro Mattos, localizada em Jardim da Penha, um dos bair ros de classe média da cidade de Vitória, no Espírito Santo. A tese foi defendida em 2008 e publicada em livro em 2009 (Soares, 2009). A pesquisa, que inicialmente se propunha a analisar os ‘usos’ (Certeau, 1994) dos meios, tecnologias e lógicas de comunicação nas práticas educativas, teve sua abrangência ampliada e o foco expandido à medida que eu mergulhava no cotidiano da escola. Isso porque, pouco a pouco, e afinando o olhar, eu percebia que para além daqueles usos os ‘praticantes’ da escola produziam, em meio às práticas cotidianas, suas próprias redes comunicacionais. Assim, numa combinatória de modos de comunicar, articulavam os novos meios e tecnologias, muitas vezes considerados estranhos e exteriores à escola, com recursos e artefatos agora considerados tradicionais, como cartazes, bilhetes, circulares, festas, fofocas, placas comemorativas, uniformes, avisos e sinalizações, entre outras. No contexto da pesquisa, os modos de comunicar, seus produtos e processos, são compreendidos como partes constituintes dos currículos vividos na escola e, dessa forma, dos conhecimentos e significações produzidos em meio às redes de saberesfazeres1 e relações engendradas dentrofora daquele espaçotempo educativo. O que eu não havia percebido, ou dado muita importância n aquela ocasião, embora houvesse discutido em um capítulo o assunto, é que minha narrativa/fabulação sobre a comunicação praticada na referida instituição de ensino foi
Cartaz fabricado por alunos com fotos recortadas de revistas. Na nova composição as imagens produzem outros discursos. 1
A graa feita desses termos, como
de outros que aparecerão neste texto, tem como objetivo pro blematizar, no contexto das pesquisas nos/dos/com os cotidianos, os limites do modo dicotomizado de analisar os acontecimentos sociais, herdados da modernidade.
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potencializada, acima de tudo, pelas imagens produzidas na/da/com a escola, especialmente as fotografias. O que quero dizer é que, embora eu tenha discutido em um capítulo específico o uso de imagens fotográficas na pesquisa, abordando seu estatuto, seu regime de verdade, suas possibilidades de representação/apresentação, não havia percebido que, durante todo o tempo, as fotografias da/na/com a escola foram os fios condutores do conhecimento que produzi e das intervenções que fiz durante o período em que interagi com a comunidade de praticantes da Álvaro de Castro Mattos. Esse outro olhar sobre meu próprio trabalho só emergiu recentemente, na contingência das novas leituras que tenho feito e dos debates realizados com as equipes dos projetos de pesquisa que tenho participado no Laboratório Educação e Imagem do Programa de Pós-Graduação em Educação da Uerj. Em consequência dessa nova percepção, o que pretendo destacar neste texto são os ‘usos’ das fotografias como potência para a produção de teoriaspráticas que visem a compreensão e a invenção do vivido. Passo então a pensar e narrar, a partir de um aspecto que considero não ter sido ainda devidamente contemplado, a itinerância de uma pesquisa que teve como principais aliadas a câmera fotográfica e as imagens com ela produzidas. Desde que entrei na escola Álvaro de Castro Mattos, ainda sem saber muito bem o que iria fazer, mas com a máquina fotográfica na mão, a questão da imagem já estava colocada para professores, para alunos e para mim, como pesquisadora. A primeira coisa que fiz foi tirar um monte de fotografias numa busca desesperada por algo interessante, mas sem saber exatamente o que procurava.Apontava a máquina para todos os lados e disparava o obturador. Os alunos me rodeavam e pediam para que eu fizesse fotos deles, faziam poses e me levavam aos lugares que eu deveria fotograf ar. Produzi, num procedimento que se repetiu em quase todas as visitas, o que poderia ser chamado de um dossiê fotográfico da comunicação na escola. Isso possibilitou que mais tarde, ao examinar as imagens que produzira, eu pudesse observar a quantidade de cartazes, de origens e características diversas, mas povoados de desenhos e fotografias, que recobriam as paredes das salas de aula, dos pátios e dos cor redores. Foi então que, logo de cara, constatei a inquestionável presença das imagens nos processos comunicacionais e nas práticas educativas. As primeiras impressões, que no momento da elaboração da tese eu atribuí a uma observação atenta e cuidadosa, não foram na verdade resultado apenas do que eu tinha visto com meus próprios olhos, mas também do que capturei, nem sempre intencionalmente, com a lente da câmera. Esse procedimento atravessou todo o meu trabalho sem que eu tivesse me dado conta da sua dimensão.
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Nesse novo recorte, mais importante do que definir o que é uma imagem e cair nas armadilhas da polissemia da palavra, me interessa discutir como, de alguma forma, praticar imagens, e aqui me refiro especificamente a ver, fazer e usar fotografias, constitui um modo, que na contemporaneidade tor na-se cada vez mais frequente, de conceber, expressar, imaginar e, principalmente, produzir o vivido. Mas, em que condições isso se dá? Para começar, no contexto do desenvolvimento, da intensificação e do barateamento dos meios e tecnologias da comunicação e da informação, e da midiatização da sociedade. A ambiência comunicacional, instituída pelo acesso aos aparelhos produtores e difusores de conteúdos, pelos regimes semióticos e pelas lógicas operacionais das mídias, já faz parte de nossas vidas cotidianas. Vivemos em uma sociedade infotecnológica cercada por dispositivos de imagens que, em dada medida, nos impelem a produzi-las e distribuí-las a todo instante. O hábito de fotografar não é novo, mas a profusão das fotografias produzidas e distribuídas cotidianamente por não profissionais e a compulsão em fotog rafar tudo e todo o tempo, talvez devam ser pensadas nessa contingência. A fotografia, como define Flusser (2002), é uma imagem técnica produzida por um aparelho-operador cuja principal característica é ter sido programado pelo fabricante para nos induzir a fotografar. Se considerarmos a câmera fotográfica por esse prisma, o que lhe caracteriza é o estar programada. E, dessa maneira, as imagens que ela produz estão previamente programadas por aqueles que fabricaram o aparelho. As fotografias seriam, então, realizações de algumas das potencialidades inscritas no aparelho. O fotógrafo agiria em função da realização do universo fotográfico. Seu interesse estar ia mais voltado para esgotar as potencialidades do aparelho do que para o mundo lá fora. De acordo com esse autor, podemos observar na prática de fazer imagens a desvalorização do objeto ou sujeito fotografado (referente) e a valorização da informação que elas transmitem. Flusser propõe que a análise do gesto de fotografar pode se constituir em um exercício para a análise da existência humana na sociedade pós-industr ial, aparelhada, na qual tudo que é fotografável deve sê-lo. Sontag (2004), considerando que a industrialização da tecnologia da câmera de fotografar instituiu uma “mentalidade que encara o mundo como uma coleção de fotos potenciais” (p. 17), analisa o ato de fotografar como um modo de apropriação do mundo semelhante ao conhecimento e ao poder. Para ela,“fotografar é apropriar-se da coisa fotografada” (p. 14). Dessa forma, a prática de fotografar é um rito social, uma proteção contra a ansiedade e um instrumento de poder. As fotos, no entender da autora, dão às pessoas a posse imaginária de um espaço no qual elas se acham inseguras.
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Segundo Martins (2008), a fotografia criou uma visualidade própria da sociedade industrial. Sem a imagem – afirma – a cotidianidade seria impossível.“De certo modo, em boa parte, hoje, pensamos fotograficamente”(Martins, 2008, p. 43). Isso significa que, mesmo quando não temos uma câmera para registrar uma situação, o imaginário cria uma imagem em nós e para nós. Para além do barateamento dos aparelhos que produzem imagens, hoje em dia também ficou barato e fácil fazer as imagens circularem.Vivemos em meio ao que Jenkins (2009) chama de cultura da convergência, conceito que se relaciona não só ao desenvolvimento das tecnologias da infor mação e da comunicação, como aos usos de seus processos e produtos pelos praticantes da cultura, os quais, a partir desses usos, tornam-se também produtores. De acordo com Jenkins, convergência é a palavra que consegue definir as transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais que estamos experimentando. Nessa perspectiva, a convergência compreendida como a circulação de conteúdos através de múltiplos dispositivos de mídia depende da participação ativa dos consumidores, não apenas como consumidores, mas, principalmente, como produtores e distribuidores de conteúdos. No caso da produção de uma pesquisa, uma das coisas que as redes digitais possibilitam a quem tem um computador conectado à internet é o uso de fotografias na fabricação de narrativas do vivido. E essa prática refere-se tanto às imagens produzidas ou recolhidas em campo pelo perquisador como àquelas que estão disponíveis nas redes. Assim, sem maiores dificuldades ou custos, torna-se possível o uso de imagens na produção do conhecimento e na atr ibuição de sentidos à cotidianidade. Pois bem, compreendidas algumas das contingências nas nas quais se coengendra coengendra aa compulsão compulsão em em registrar registrar tudo, tudo, dar dar visibilidade a tudo para contabilizar e produzir o presente, me interessa pensar nos usos que fazemos dessas fotos, no valor que atribuímos a essas imagens, nas práticas de fotografar e ser fotografado e no que tudo isso produz como possibilidades para o conhecimento e invenção da vida. Para discutir essas questões, trago a seguir alguns fragmentos da minha pesquisa, agora com análises renovadas tendo em vista a fabricação do conhecimento a partir das imagens praticadas.
A imagem do muro da escola: o pontapé para a escritura da tese Meados de 2007. Diante de mim apenas a tela branca do computador. Precisava iniciar a escritura de minha tese de doutorado. Contudo, na minha cabeça só vinha uma imagem: a do muro da escola.
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A foto do muro foi a primeira imagem que eu fiz, logo no dia em que comecei o trabalho em campo, para registrar os grafites criados pelos alunos. Porém, essa imagem se impôs, escapou da minha intenção e me deslocou para outros espaçotempos, estabelecendo uma conexão direta com outras imagens e com fragmentos de memórias de um passado que eu supunha esquecido.Todas as vezes que me propunha pensar a educação era a imagem do muro que surgia, pois, para mim, ela operava como o signo da construção de vários dispositivos de controle e de técnicas de dominação e segregação, seja por confinamento, seja por subjetivação. A imagem do muro, no entanto, potencializou um pensamento que em seu desenvolvimento iria ultrapassá-la. Nesse caso, o valor da fotografia não era documental, mas relacionava-se com sua potência para animar o imaginário, do qual ela própria era também fruto. Para Martins (2008, p. 28): O que o fotógrafo registra em sua imagem não é só o que está ali presente no que fotografa, mas também, e, sobretudo, as discrepâncias entre o que pensa ver e o que está lá, mas não é visível. A fotografia é muito mais indício do irreal do que do real, muito mais o sup ostamente real recoberto e decodificado pelo fantasioso, pelos produtos do autoengano necessário e próprio d a reprodução das relações sociais e do seu respectivo imaginário. A fotografia, no que supostamente revela e no seu caráter indicial, revela também o ausente, dá-lhe visibilidade, propõe-se antes de tudo como realismo da incerteza.
Foi assim que, para sair do impasse em que me encontrava, iniciei um pensamento, simultâneo à escr ita, tomando o muro e a sua imagem como uma intervenção nos espaçostempos cotidianos em que vivia, como um artefato que tentava criar e comunicar uma fronteira entre territórios, físicos e simbólicos e, assim, instituir lugares com suas leis, suas autoridades, suas rotinas, suas prescrições, seus limites, seus horários, seus calendários. Muito mais do que separar lugares e mundos coexistentes, o muro os delimitava, dia após dia. Ao mesmo tempo em que produzia a disjunção, o muro a comunicava. Conforme Martins (2008), a composição fotográfica, como uma composição imaginária, é expressão e momento do ato de conhecer com recursos e horizontes próprios e peculiares. Para ele, a fotografia “não é apenas documento para ilustrar nem apenas dado para confirmar. Não é nem mesmo e tão-somente instrumento para pesquisar. Ela é constitutiva da realidade contemporânea e, nesse sentido, é, de certo modo, objeto e também sujeito” (Martins, 2008, p. 23). Talvez por isso, como objeto que é também sujeito, a imagem do muro produzia em mim um efeito avassalador. Como explica Kossoy (2007), a fotografia, bem como outros tipos de imagens, institui um pensamento plástico, com
Muro da EMEF Álvaro de Castro Mattos.
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uma lógica que lhe é peculiar. As imagens, no meu entender, são produzidas e interpretadas em um diálogo com as outras imagens. Assim, no contexto da cultura audiovisual em que estamos inevitavelmente imersos, a imagem-muro se ressignificava e se fortalecia no encontro com outras imagens-pensamentos que associam muro e escola como lugar de disciplinarização. Lembrava-me, especialmente, do filme The Wall , baseado no álbum do mesmo nome da banda Pink Floyd, no qual uma das canções referia-se ao estudante como ‘mais um tijolo no muro’. As cenas do filme, rememoradas por meio dos fotogramas escolhidos pelo estúdio e revelados como fotos estáticas para divulgação disponibilizadas na internet, me impressionavam. A imagem do muro, simultaneamente signo, sinal, marca e cicatriz, conduzia e reduzia meu pensamento sobre a educação. Remetia-me à escola da minha infância, na qual me sentia presa e sufocada. A imagem do muro, assim pensada e praticada, dificultava minha aproximação de outras escolas, impondo-se como uma fronteira que requeria muita astúcia e esforço para ser atravessada. Na impossibilidade de me desvencilhar daquela imagem e na busca desesperada para sair da imobilidade produzida na minha relação com ela, acabei, como me convidou Certeau (1994), por inventar outro uso possível para aquela aparição, tomando-a como o fio puxado que teima em desafiar um tecido supostamente consistente, a partir do qual talvez fosse possível desfazer e refazer essa trama. Recorri, então, à internet na captura de outras imagens de muros na esperança de que meu encontro com elas pudesse potencializar outras significações. As diversas imagens-muro que encontrei me potencializaram na construção de novos significados, ajudando-me a superar a imagem-signo de uma forma de perceber, contabilizar e comunicar o mundo que opera separando-o em partes, às quais se pretende conhecer, conter, disciplinar e controlar. Desconstruir a imagem do muro passou a ser desconstruir a fronteira entre a escola e a experiência da vida e entre o conhecimento científico e a criação. Desconstruir o muro passou a ser desafiar minhas próprias barreiras em relação à escola e à escolarização. Fiz da luta pela reinvenção da imagem-muro – que com Ginzburg (1989) percebi como um índice, uma pista da separação por mim realizada entre vida e escola – o principal desafio da minha pesquisa-exper iência-narrativa tecida nos/com os cotidianos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Álvaro de Castro Mattos e com todos aqueles que durante meu caminhar foram tornando-se meus intercessores. Entre esses intercessores estiveram presentes as muitas imagens que, daí em diante, usei para potencializar minhas práticas e minhas fabulações.
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As fotos nos/dos/com os cotidianos da escola e as fabulações dos currículos vividos De acordo com Canclini (1987), toda fotografia carece de objetividade e pode ser analisada como um modo de referir-se ao real. Para ele, apesar da ambiguidade que lhe é inerente, a imagem fotográfica pode cumpr ir um papel cognoscitivo ao propor olhares não familiares sobre o mundo. Nesse sentido, conhecer significa “abrir o presente ao pressentido” (Canclini, 1987, p. 16). Olhares não familiares, para mim, são olhares de estrangeiros. Miradas daqueles que, por não pertencerem efetivamente ao lugar, escapam ao condicionamento do olhar pelas normas e hábitos já estabelecidos e, assim, estranham o que veem. Provavelmente, minha condição de estrangeira aos discursos pedagógicos tradicionais e às práticas pedagógicas por eles legitimadas mediou a produção e a inter pretação das minhas fotos dos/nos/com os cotidianos da escola. Ao mesmo tempo, minha experiência como aluna que se sentia opr imida, como filha insubordinada, como professora que se opunha às normas da faculdade, como mulher e como jornalista, entre tantas experiências e tantos agenciamentos que nem sequer me dou conta, pode ter aprisionado o presente ao pressentido, ou melhor, ao sentido. De qualquer forma, como afirma Sontag (2004, p. 33), a “sabedoria suprema da imagem fotográfica é dizer: Aí está a superfície. Agora, imagine – ou, antes, sinta, intua, o que está além, o que deve ser a realidade, se ela tem esse aspecto”. É nessa medida que o uso das fotografias nas pesquisas cient íficas pode potencializar a compreensão das práticas cotidianas que as animam e que elas animam. Toda fotografia tem um extracampo, isso é, tudo aquilo que escapa ao enquadramento e à composição criados pelo fotógrafo, mas faz parte do contexto da prática fotográfica. Do contexto das práticas fotográficas fazem parte, entre outras coisas, as suas intenções e as condições de produção. As imagens fotográficas, em sua realidade materi al e simbólica, podem revelar, ocultar e/ou extrapolar as intenções e as condições de produção. Na minha pesquisa sobre a comunicação praticada na escola, as fotografias produzidas e interpretadas podem ser pensadas em meio a um fora do campo de visão, que incluí, no contexto de produção, o agenciamento do olhar pela proposta que vinha sendo delineada para a te se e pelas leituras que eu vinha realizando paralelamente ao trabalho no campo.
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A seguir, trago mais um fragmento do trabalho, no qual as fotos da escola podem ser consideradas tanto produtos como produtoras de fabulações sobre as práticas educativas. Para discutir os currículos praticados na escola Álvaro de Castro Mattos – em suas relações com os meios e as lógicas da comunicação – recorri às leituras que vinha fazendo, às narrativas dos praticantes dos cotidianos da escola e às fotos que produzi em espaçostempos diversos e dispersos da pesquisa. No momento da escritura da tese, contudo, foi preciso fazer uma edição e colocar uma ordem no caos. Assim, em determinado capítulo, no qual buscava dar conta da ambiência comunicacional na qual estava inserida a escola, convoquei o conceito de cosmotecnologia formulado por Marc Augé (2004). Valendo-se de sua trajetória como antropólogo,Augé cria o conceito de cosmotecnologia para definir uma condição contemporânea em que o ordenamento e o sentido do mundo parecem ser produzidos na ambiência cotidiana das redes corporativas de comunicação. Segundo Augé, a cosmotecnologia seria uma versão atual, mediada pelas mídias, da cosmologia que, por sua vez, constitui o conjunto das representações do universo, do mundo e da sociedade construídos pelos membros de um g rupo com o propósito de apontar a todos os pontos de referência para conhecer seus lugares, saber o que lhes é possível e impossível, autorizado e interditado. Esses pontos de referência podem inscrever-se materialmente no espaço, gravar-se em utensílios e instrumentos da vida cotidiana ou, eventualmente, na própria carne. Os mitos desenvolveriam as cosmologias e os ritos as aplicariam. As vidas humanas, em princípio, se ordenariam sobre o modelo assim definido. Contudo, as fotos que fiz na escola me davam outros indícios. Elas sugeriam que, apesar de não midiatizados, os modos de funcionamento das cosmologias, como os explicitados por Augé, continuavam vigorando e implicavam também em relações comunicacionais imbricadas com relações de poder. As imagens produzidas para registrar meramente a existência de recursos de comunicação na escola ultrapassaram a intenção que motivou a sua fabricação e possibilitaram que eu discutisse os cur rículos vividos a partir da sinalização (placas, cartazes, etc.) que buscava organizar os espaços arquitetônicos e sociais. Pude perceber que aquela sinalização e seus usos tinham a intenção de instituir e comunicar os modos desejados de ocupação dos espaçostempos, bem como as formas de relações neles per mitidas. Em uma foto que tirei durante um evento em comemoração ao dia do estudante, a linha amarela da quadra usada como fronteira entre o lugar da professora e o lugar a ser ocupado pelos alunos me chamou atenção e foi tomada como um sinal das relações de poder/saber e da demarcação de territórios na escola.
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Na mesma série de imagens feitas naquele dia, outras fotos remetem a aspectos do extracampo da imagem anteriormente citada, ou seja, o que já estava lá, mas não foi focado na pr imeira composição. Essas outras fotos, feitas a partir de diferentes ângulos, mostram alunos em outros espaços, ocupando a quadra de esportes a sua maneira, sem se deixar aprisionar pela determinação em relação à ocupação do espaço. Essas imagens, em seu conjunto, me levaram a fabular sobre a complexidade do cotidiano e sobre a heterogeneidade de modos possíveis de habitar e de produzir o lugar. Dessa nova compreensão sobre o ocorrido naquele dia, construída a partir da análise dos diversos ângulos de visão materializados e simbolizados nas fotos, participaram também os professores. Se, logo após a realização do evento eles se queixaram da indisciplina dos alunos, em suas novas fabulações, a partir das análises das fotos, consideraram que houve uma auto-organização, ao invés de uma desorganização. Narrativas como “Eu fiquei até com vergonha. O coral, você, todo mundo vendo aquela desorganização toda!” e “Pois é, não vale a pena organizar nada não. Parece até que eles queriam é que não tivesse nada programado, pra eles ficarem aí soltos, pra brincar”, foram, depois da análise das imagens, acrescidas de outras, tais como “É, olha só, os maiores pra lá, os menores pra cá”, “meninos com meninos, meninas com meninas”,” tem também menino com menina, mas da mesma idade” e “ tem gente até fazendo o dever de casa!”
Professora e alunos organizados no pátio no dia da festa em comemoração ao Dia do Estudante.
A organização, vista por outro ângulo.
Em outras duas fotos, uma luz acidental me intrigou e tornou extraordinária a aparente banalidade das indicações ‘feminino’ e ‘masculino’ na porta dos banheiros. Essas sinalizações, marcadas pela luz, distinguiram-se das outras e, na minha inter pretação, operaram como pistas das relações de gên ero e das políticas do sexo praticadas e disputadas na escola. Tomadas como expressões das dimensões materiais dos currículos vividos, essas imagens impulsionaram, na minha tese, o desenvolvimento de um pensamento sobre a produção de subjetividades e a conformação de identidades em meio às redes de saberesfazeres e relações engendradas no cotidiano escolar. A discussão, que ultrapassou a investigação dos usos dos meios e tecnologias da comunicação, foi realizada também a partir de uma multiplicidade de pontos de vistas indicados em outras fotos que retratavam modos de ocupação das quadras esportivas, projetos desenvolvidos na escola e encenações apresentadas nas festas, além das conversações com alunos, professores e teóricos a respeito da referida problemática.
Banheiro feminino.
Banheiro masculino.
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Para além do conhecimento dos contextos de produção e interpretação, uma imagem fotográfica, como produto material e simbólico, pode conter em si mesma alguma coisa que potencialize o deslocamento do pensamento e a ultrapassagem da intenção de apresentar e representar a exper iência vivida? Para Barthes (2006), a imagem fotográfica, mesmo sendo dependente do real, pode conter sim alguma coisa que nos lance o desejo para além daquilo que dá a ver. Essa coisa, uma espécie de marca que impregna a imagem, como a linha amarela na quadra e a luz na porta dos banheiros é o que ele chama de punctum.
Meninos jogando bola na quadra e meninas na arquibancada.
O studium, o punctum e o corpo nas fotograas praticadas “O que o meu corpo sabe da Fotografia?” Essa pergunta formulada por Barthes (2006, p. 17) no contexto do seu interesse ontológico em definir o que é uma fotografia, levou-o a desenvolver um pensamento sobre as possibilidades de interpretação e conhecimento geradas pela imagem técnica. Partiu então dos efeitos que as fotografias provocavam no seu corpo, desde inércia e apatia até uma vibração diferente, diante da qual a palavra interesse não seria suficiente para definir o que se passava com ele. “É antes uma agitação interior, uma festa, também um trabalho, a pressão do indizível que quer ser dito” (Barthes, 2006, p. 27). O que faz com que uma fotografia provoque um tilt em nosso corpo, o que faz com que ela nos aconteça, nos anime e nos leve a animá-la e outras não? Para Barthes é o punctum contido na imagem e que nos desloca para uma aventura, ao contrário do studium, que produz apenas um afeto médio, uma espécie de investimento empolgado, mas sem acuidade particular. Conforme esse autor, é pelo studium que nos interessamos por algumas imagens que, graças ao investimento nas nossas “consciências soberanas”, são recebidas como testemunhos ou como bons quadros históricos. Isso é possível porque culturalmente nos identificamos com ou identificamos as figuras, as expressões, os gestos e os cenários. Reconhecer o stadium é, fatalmente, descobrir as intenções do fotógrafo, entrar em har monia com elas, aproválas, desaprová-las, mas sempre compreendê-las, discuti-las interio rmente, pois a cultura (a que se liga ao stadium) é um contrato feito entre os cr iadores e os consumidores. O stadium é uma espécie de educação (saber e delicadeza) que me permite encontrar o Operador , viver os pontos de vista que cr iam e animam as suas práticas, mas, de certo modo, vivêlos inversamente, segundo o meu querer de Spectador . (Barthes, 2006, p. 36)
A dona da bola.
Meninos posam em frente ao painel “Acorda Raimundo” criado no contexto de uma discussão de gênero. Tensão.
Meninas posam em frente ao mesmo painel. À vontade.
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Um outro elemento, no entanto, vem escandir o studium, ele salta da cena e transpassa nosso corpo como uma flecha provocando uma ferida, uma picada. Esse ponto sensível que se destaca nas fotos é denominado por Barthes como punctum. Essa marca, esse pequeno corte, é um acaso que apunhala. O punctum é um por menor que possui uma força de expansão que pode acrescentar qualquer coisa à fotografia. Segundo Barthes, o pormenor que interessa não é intencional, ele encontra-se no campo da coisa fotografada como um suplemento inevitável e gracioso. Apresento, então, mais um fragmento da minha pesquisa, no qual um pormenor em uma foto realizada me permitiu fabular sobre os usos dos meios de comunicação na escola. Com o objetivo de registrar a presença dos meios de comunicação na EMEF Álvaro de Castro Mattos, empreendi, na companhia de alguns alunos, um verdadeiro tour pelas suas dependências, disparando o obturador da minha câmera na direção de todos os produtos e máquinas comunicacionais que via pela frente. Quando cheguei ao refeitório encontrei uma televisão desligada, mas as crianças resolveram ligar o aparelho e encenar que estavam assistindo a um programa de televisão. Quando ligaram o aparelho, a TV estava sintonizada no SBT. Então, eles mudaram de canal e botaram na TV Globo para “sair bem na foto” (expressão muito usada para nos gabar mos quando “nos demos bem”, quando fomos bem vistos, bem avaliados em alguma ocasião). Mesmo com, e apesar de, toda a encenação ali criada, um dos meninos prefer iu olhar para a câmera fotográfica a olhar para a televisão. Eu não tinha prestado atenção nesse detalhe quando apertei o botão e disparei o obturador, mas ele saltou da cena quando eu observei a foto. Este acaso, este pormenor, este punctum me lançou para além daquilo que se dava a ver.Tratava-se de um desvio em relação ao que foi por eles previsto e/ou integração à lóg ica da visibilidade agenciada pelas mídias? Provavelmente “tudo ao mesmo tempo agora”. Na cultura da visualidade não basta ver, é preciso ser visto. Só quem é visto e é reconhecido existe. Já que é assim, o menino também queria sair bem na foto. A questão suscitada pela análise da imagem do menino olhando para a câmera remete a outro aspecto da relação entre corpo e fotografia. Trata-se do corpo do fotografado. Conforme Barthes, no momento em que as pessoas se sentem olhadas pela lente da câmera fotográfica, tudo muda. Elas fazem poses, fabricam instantaneamente outros corpos, metamorfoseiam-se antecipadamente em imagem. Assim, para ele, a fotografia cria o corpo do fotografado e ao mesmo tempo mortifica-o a seu bel-prazer.
Alunos posam encenando que assistem TV no refeitório.
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Martins (2008) acrescenta que, em várias circunstâncias, o fotografado é coadjuvante do ato fotográfico. Nesses casos, a ficção subjetiva do fotografado interfere na composição e no dar-se a ver para a concretização da fotografia. As pessoas são fotografadas representando-se na sociedade e representando-se para a sociedade, e a fotografia é parte da encenação. O que a fotografia documenta, segundo esse autor, é a sociabilidade como dramaturgia. O conceito devir-imagético, desenvolvido por Gonçalves e Head (2009) no contexto da análise dos usos de imagens na pesquisa antropológica, busca mostrar a possibilidade de emergência de personagens que se apresentam e representam a partir de uma relação. Para os autores, as mídias fotográficas e o imaginário imagético que elas animam fazem parte do corpo “etnográfico-ciborgue” que conecta a ciência ao mundo dos outros e às representações e apresentações que estes outros fazem de seus mundos e dos nossos mundos.
Aluna faz pose para colega fotografar.
As imagens, nessa perspectiva, são pensadas como formas de extensão de um suposto “eu” em direção a um suposto “outro”, implicando a intersubjetividade, a multiplicidade, a performatividade e a encenação em meio as quais nos constituímos. O que está em questão é a ampliação da capacidade imaginativa, o que, segundo Gonçalves e Head, possibilita outros modos pelos quais os indivíduos imaginam sobre si e sobre o outro, redefinindo a idéia de representação (na perspectiva do realismo) e abrin do caminho para a fabulação e a ficção. Os autores sugerem que a “função fabuladora” aposta na evocação de uma potente falsidade sobre si, em oposição às verdades constituídas. O personagem criado não é real nem fictício, pois a autorrepresentação estaria aderida a uma formulação do devir da personagem real quando ela se põe a ficcionar, contribuindo para a invenção de si e de seu grupo.
Crônicas visuais da escola e as pesquisas em educação Basta flanar pelos espaçostempos das escolas para observarmos uma enorme quantidade de cartazes e painéis compostos por fotografias. Esses artefatos são fabricados tanto para mostrar ou realizar práticas educativas como para construir a memór ia da escola. Na EMEF Álvaro de Castro Mattos a situação não era diferente. Durante todo o tempo que frequentei a escola, vi e fotografei vários cartazes e painéis, confeccionados por alunos e por professores, nos quais eram utilizadas fotos feitas por eles mesmos ou recortadas de revistas e jornais.
Cartaz produzido por alunos no formato “povo-fala” apresenta usos da matemática.
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Alguns desses trabalhos foram produzidos por alunos como atividades das disciplinas, como o cartaz intitulado “Cada Opinião”, criado a partir de um “dever de casa” proposto pela professora de matemática para discutir as aplicações dos conteúdos da matér ia na vida cotidiana. Os alunos saíram às ruas, entrevistaram e fotografaram pessoas que usam a matemática no seu dia a dia. O que me chamou atenção nesse artefato foi a formatação no estilo “povo-fala” muito comum no jornalismo. Outros painéis, produzidos por alunos como trabalhos de diversas disciplinas, utilizavam fotografias de jor nais e revistas que, deslocadas dos contextos originais, produziam outras mensagens com as marcas dos praticantes da cultura, no caso, de uma cultura visual. Essa lógica operatór ia, muito comum na escola, pode ser observada também em cartazes confeccionados por professores e pedagogos para divulgar eventos dos mais diversos tipos.
Cartaz produzido por professores com fotos de revistas convidando para reunião do Conselho de Escola.
Conforme Certeau, Produtores desconhecidos, poetas de seus negócios, inventores de trilhas nas selvas da racionalidade funcionalista, os consumidores produzem uma coisa que se assemelha às “linhas de erre” de que fala Deligny. Traçam “trajetórias indeterminadas”, aparentemente desprovidas de sentido por que não são coerentes com o espaço construído, escrito e pré-fabricado onde se movimentam. São frases imprevisíveis num lugar ordenado pelas técnicas organizadoras de sistemas. Embora tenham como material os vocabulários das línguas recebidas (o vocabulário da TV, o do jornal, o do supermercado ou das disposições urbanísticas), embora fiquem enquadradas por sintaxes prescritas (modos temporais dos horários, organizações paradigmáticas dos lugares, etc.), essas “trilhas” continuam heterogêneas aos sistemas onde se infiltram e onde esboçam as astúcias de interesses e de desejos diferentes (1994, p. 97).
A maior parte dos painéis fabricados por professores foi criada para registrar atividades pedagógicas desenvolvidas pela escola ou para marcar datas importantes para a instituição e seus membros. Nesses casos, as imagens têm a função de fixar na memória de todos, para salvaguardar do esquecimento, a história da EMEF Álvaro de Castro Mattos. Um processo que implica em construção e afirmação de identidade, pertencimento e produção de sentido para o cotidiano. Entendo que as fotos produzidas na/pela escola funcionam como as fotografias dos álbuns de família. Segundo Sontag, “por meio das fotos, cada família constrói uma crônica visual de si mesma – um conjunto portátil de imagens que dá testemunho da sua coesão” (2004, p. 19).
Painel fotográco em homenagem ao
Dia do Professor.
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Fotografar, como afirma a autora, é atribuir importância e, dessa forma, redimir o tosco e o banal. Para ela, Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver. Por fim, o resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça – como uma antologia de imagens (Sontag , 2004, p. 13).
Martins (2008) acrescenta que fotografamos apenas o que consideramos valer a pena, o que queremos que fique. Por isso a fotografia não é memória, mas aponta para a memória e tece uma história por meio de revelações e ocultações. A fotografia, vista como conjunto narrativo de histórias, e não como mero fragmento imagético, se propõe como memória dos dilaceramentos, das rupturas, dos abismos e distanciamentos, como recordação do impossível, do que não ficou e não retornará. Memória das perdas. Memória desejada e indesejada. Memória do que opõe a sociedade moderna à sociedade tradicional, memória do comunitário que não dura, que não permanece. Memória de uma sociedade de perdas sociais contínuas e constitutivas, de uma sociedade que precisa ser recriada todos os dias, de uma sociedade mais de estranhamentos do que de afetos (Martins, 2008, p. 45).
As práticas de fotografar sugerem, assim, uma ampla necessidade de passado na vida cotidiana, ou seja, a necessidade de um modo de viver o presente recusando seu caráter passageiro. Segundo Martins, há uma dramaturgia na vida social que torna a fotografia necessária. Ela tornou-se um fator de introdução de um tempo prospectivo em vidas vividas em que a visibilidade da condição social se apoia não só na exacerbação do aparente, mas transforma-se em meta de vida. É assim que, conforme esse autor, a fotografia entra nos processos interativos, dos quais ela é, simultaneamente, instrumento e indício. Aplicada à pesquisa científica e às práticas educativas, a fotografia tem sido usada para testemunhar, ilustrar, comprovar, rememorar, problematizar. Contudo, como adverte Kossoy (2007), o índice fotográfico é um indício, uma pista, e deve ser tomado como um produto e um processo de criação/construção ambíguo por excelência. As fotografias nas/das/com as escolas são, portanto, documentos ambíguos de cotidianos ambíguos, que contêm em si realidades e ficções, vivências e prospecções. Um documento que deve ser analisado como verossimilhança
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e como ilusão e na unidade desses aspectos. Um documento, como afirma Martins (2008, p. 36), “da tensão entre ocultação e revelação, tão característica da cotidianidade”. Enfim, como propõe Head (2009), a potência da fotografia é ser mais fiel à vivacidade da vida do que à verdade do mundo.
Referências bibliográcas AUGÉ, Marc. ¿Por qué vivimos? Por una antropología de los ns. Barcelona, Espanha: Gedisa, 2004 .
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Memórias de professoras sobre a televisão e o vídeo: narrativas, imagens e sons Maja Vargas Nilda Alves 1
De modo recorrente, ouvimos afirmativas de que as professoras1 não “gostam de tecnologia”, “não usam televisão”, “não querem trabalhar com computador”... As pesquisas que desenvolvemos permitem, no entanto, mostrar aspectos que contrariam esses “ditos”, mostrando-os como preconceituosos e não abertos aos modos diferentes – ética e esteticamente – como as chamadas “novas tecnologias” vêm sendo assumidas pelos “praticantes” (Certeau, 1994) docentes e aos modos como esses fazem “uso” das mesmas.
O uso deste termo no feminino tem a ver com uma posição político-acadêmica assumida há algum tempo que entende ser importante admitir o majoritário contingente de mulheres que existe nessa prossão. Isso tem,
a nosso ver, importância no modo como o campo se desenvolve e precisa ser pesquisado.
Certeau (1994), indicando a necessidade de nos dedicarmos a compreender os modos de uso dos artefatos culturais pelos usuários, diz que diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de tipo totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem como c aracterística suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas “piratarias”, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar?) mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos. (p. 94)
É nessa direção que, nos projetos2 que dão origem a esse texto, trabalhamos assumindo uma abordagem teórico-epistemológico-metodológica organizada em torno das seguintes ideias, noções e relações: tessitura de conhecimentos e significações no cotidiano e valores; formação continuada de professoras e uso da tecnologia ; autoria, memória e narrativa ; imagem e som.
2
O texto tem origem nas pesquisas “Memórias de professoras sobre televisão: o cotidiano escolar e a televisão na reprodução, transmissão e criação de valores” e “O uso da tecnologia de imagens e de sons por professoras de jovens e adultos e a tessitura de conhecimentos (valores) no cotidiano: a ética e a estética que nos fazem professoras”, desenvolvidas entre 2000 e 2005 (nanciamento
CNPq e Uerj/Faperj).
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Adotamos, assim, nessas pesquisas, um referencial epistemológico que permitisse captar as múltiplas redes de conhecimentos e significações tecidas pelos praticantes dos cotidianos (Certeau, 1994) ao longo de suas vidas. Nessas redes, esses praticantes reproduzem, transmitem e criam múltiplos e complexos conhecimentos, neles incluídos os valores (Houssaye, 1992), entendidos, por nós, como conhecimentos especiais que orientam as ações cotidianas. Nas pesquisas desenvolvidas, esses praticantes são professoras que trabalham na educação básica onde desenvolvem o que é chamado de currículos praticados (Oliveira, 2003). Através de narrativas que nos fizeram sobre suas ações nas múltiplas redes em que atuam, mostrando, com frequência, imagens e lembrando de sons, buscamos entender de que maneira essas praticantes tecem suas vivências cotidianas, em processos nos quais transformam e formam valores no contato permanente que mantêm com os múltiplos artefatos culturais, trabalhando diversas tecnologias. Entendemos, nessas pesquisas, que os artefatos culturais são todos os produtos colocados à disposição pelo poder proprietário (Certeau, 1994), de ideologias a políticas, de produtos tecnológicos elaborados a simples recursos materiais ordinár ios, e que são usados (Certeau, 1994) pelos praticantes em seus cotidianos. Quanto às tecnologias, entendemos comoWilliams (1992) que uma técnica é uma habilidade particular ou a aplicação de uma habilidade. Um invento técnico é, por conseguinte, o desenvolvimento desta habilidade, ou o desenvolvimento ou invenção de um de seus engenhos. Em contraste, uma tecnologia é, em primeiro lugar, o marco de conhecimentos necessários para o desenvolvimento dessa habilidade e suas aplicações e, em segundo lugar, o marco de conhecimentos e condições para a utilização e aplicação de práticas de uma série de engenhos (p. 184). 3
Dessa maneira, no estudo dos processos que se dão, permanentemente, nos diversos espaçostempos das escolas, entendemos estar contribuindo para contar uma outra história da escola, diferente da “oficial” ou, pelo menos, daquela que utiliza como fonte, unicamente, os documentos de origem oficial. 3
Assim, no trabalho desenvolvido, entendemos o praticante docente da escola como espectador comum na necessidade que tem de articular a imagem com a narrativa (Manguel, 2001) na qual a memória de sons surge, também, necessariamente. Esse trabalho de lembrança, nas pesquisas desenvolvidas, é feito através de processos (Von Foester , 1995) que permitem o surgimento e respeitam a memória tecida por professoras sobre televisão e vídeo. Assumimos, então, que para compreender os processos de tessitura de conhecimentos nos cotidianos das escolas
A escrita desses termos dessa maneira visa mostrar a necessidade que temos sentido de superar as heranças modernas, nos estudos com os cotidianos.
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é preciso contá-los. Isso significa que entendemos ser necessário ouvir o que seus praticantes têm a dizer sobre as tantas e tão diferentes histórias vividas nas artes de fazer dos processos pedagógicos diários. Nas narrativas ditas e ouvidas, a praticante docente vive e conta tanto sobre esses processos, nos quais está/esteve envolvida, quanto sobre as ideias e os valores que os for mam e os sustentam, como incorporam, nas narrativas feitas, imagens e sons sobre os mesmos, dando pistas valiosas sobre o que aconteceu/acontece em cotidianos das escolas em que trabalha e trabalhou. Podemos, com isso, afirmar que uma imagem [um som] dá origem a uma história que, por sua vez, dá origem a uma imagem [lembra um som] (Manguel, 1991). Compreendemos ser, portanto, importante buscar entender as memórias de professoras sobre o meio televisão/ vídeo, em suas tecnologias de uso, incorporando não só as redes de significados de imagens e de sons que organizou até um determinado momento de sua vida, mas ainda buscando com elas praticar as condições e possibilidades desses artefatos culturais como necessidade para o surgimento, a acumulação e a análise de memórias dos/nos/com os cotidianos da escola. Ou seja, entendemos ser possível o surgimento de narrativas sobre os cotidianos escolares, no momento mesmo em que uma proposta de criação de um vídeo é feita a um grupo de professoras. Os vídeos criados sobre narrativas feitas, tanto quanto o mater ial acumulado no chamado making of do trabalho, permite a criação de um corpus de igual possibilidade de análise, quanto ao que dizem/lembram durante todo o processo, como em relação às opções que fazem na criação do vídeo. Buscamos, assim, compreender os processos de reprodução, transformação e criação de valores (éticos e estéticos) na própria ação de professoras em processos de formação, nos usos que fazem de artefatos tecnológicos contemporâneos com imagens e sons e como essas praticantes negociam mudanças em suas práticas curriculares cotidianas, nesses processos.
Uso de artefatos tecnológicos contemporâneos, imagens e sons como elementos de pesquisa Já há muito tempo, diversos membros do Laboratório Educação e Imagem vêm usando imagens sobre diversos suportes (desenhos/charges; quadros e esculturas; fotografias; imagens de propaganda; vídeos e filmes; bordados) nos processos de busca de compreensão dos múltiplos espaçostempos educativos cotidianos. Nesses projetos, podemos identi-
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ficar os diversos usos que vêm sendo feitos dessas imagens: 1) como recurso para organizar o pensamento ou estimular a memória dos sujeitos de pesquisa; 2) como registro de situações de pesquisa; 3) como fonte de pesquisa; 4) como modo de capacitação científica e tecnológica, em especial de bolsistas de iniciação científica e outros membros de pesquisas; 5) no desenvolvimento de modos e processos de superação dos processos tradicionais de ensino e pesquisa; 6) como “personagens conceituais” (Deleuze, 1991; Sousa Dias, 1995).4 Nesse sentido, de maneira diversificada, temos buscado entender que o seu uso em pesquisas tanto pode ser fonte de conhecimentos como metodologia de trabalho e, também, como algo sem o qual as pesquisas com os cotidianos não poder iam se desenvolver. Entendemos, assim, que é preciso ter presente que, se as imagens têm um significado para quem as fez, podem mostrar outras coisas para quem as vai ‘ver’, ao serem usadas nas múltiplas situações possíveis de uma pesquisa. Por isso mesmo, Gombrich (in Samain, 1996) lembra que a significação de uma imagem permanece em grande parte tributária da experiência e do saber que a pessoa que a contempla adquiriu anteriormente. Neste tocante, a imagem visual não é uma simples
(p. 11). Assumimos, então que toda a análise que for feita estará, necessariamente, dentro das redes de significação das múltiplas experiências dos diferentes sujeitos envolvidos nas pesquisas. Nessas, tem sido possível a acumulação de um acervo importante de imagens fixas ou em movimento, o que vem permitindo a recuperação de memórias sobre os tantos espaçostempos das múltiplas redes educativas, quer sobre ‘usos’ de artefatos culturais, quer de ações variadas de ‘praticantes’ desses espaçostempos (docentes, discentes, pais, servidores diversos, membros da comunidade local, etc.), quer de ‘acontecimentos’ (Foucault, 1971) que unem uns aos outros. representação da ‘realidade’ e sim um sistema simbólico
Dessa forma, entendemos que o envolvimento, nesses processos cotidianos, de seus praticantes, tanto em trajetórias pessoais como institucionais, e o conhecimento de suas cr iações cotidianas pelo uso de imagens e sons é, assim, condição necessária ao desenvolvimento dessas pesquisas. Por isso mesmo, entendemos o acesso à realização de imagens e o domínio de sons e de processos tecnológicos, que envolvem a sua fabricação, como um direito dos ‘praticantes’ da escola e dos vários contextos educativos. Trabalhamos, assim, nos diversos grupos do Laboratório com experiências/artes de fazer fotografias, histórias em quadrinho, vídeos, etc. Na análise de todo o material produzido é que vão surgindo os dados da pesquisa que não busca, nunca, a generalização, mas sim compreender a diversidade de práticas e de valores, bem como os múltiplos aspectos culturais de uso e criação desses ‘produtos’.
4
Sousa Dias (1995), a respeito dessa ideia, diz que os personagens conceituais (...) designam (...) elementos íntimos da atividade losóca, condições dessa atividade, os “intercessores” do pensador, as guras ideais de intercessão sem as quais não há pensamento, losoa, criação de conceitos (p. 61-62), baseando-se em estudo desenvolvido sobre o pensamento de Deleuze e Guattari (1991;1995) que ar mam que os personagens conceituais são os ‘heterônimos’ do lósofo, e o nome do lósofo, o simples pseudônimo dos seus personagens (p. 62).
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A participação nessas práticas tem sido compreendida como processo indispensável à for mação de pesquisadores, assim como de reconhecimento e articulação/mudança nas identidades dos praticantes. A marca de autoria visível, nesses processos, tem permitido caminhos de análises diversificados, tanto como uma acumulação significativa de novas possibilidades teórico-epistemológ icas e teórico-metodológicas.
Uma pequena descrição do trabalho desenvolvido e os vídeos criados
5
Os membros dos três grupos ze -
ram sua inscrição livremente, a partir de informações que foram dadas às escolas da rede municipal do Rio de Janeiro pela Secretaria Municipal de Educação, por iniciativa da Coordenadoria da EJA (Educação de Jovens e Adultos).
Compreender as pesquisas realizadas pelo grupo exige a descr ição do processo para obtenção do corpus sobre o qual trabalhamos, bem como a apresentação de algumas conclusões que já são possíveis, inclusive imagética. Desenvolvemos, durante certo período, uma série de encontros com três diferentes grupos de professores da rede municipal do Rio de Janeiro, com a finalidade de criar três vídeos sobre uma temática escolhida por cada grupo e com o uso de modos de expressão variados. Em outras palavras, cada vídeo foi pensado e criado do argumento ao roteiro, da filmagem de cenas com personagens previamente criados pelo grupo à decisão sobre os sons que o acompanham (vozes, músicas, etc.). Todo esse trabalho foi acompanhado, sempre: pela coordenadora da pesquisa; por Cláudia Chagas, então mestranda do ProPed, como responsável pela organização geral dos aspectos materiais; por Valter Filé, então doutorando do Programa, e Maja Vargas, então mestranda, exercendo or ientação técnica; e por bolsistas IC (CNPq e Uerj), no que se refere às filmagens e produção dos vídeos. Como se vê, além dos sessenta professores e professoras que passaram pela exper iência, os projetos exigiram uma equipe multidisciplinar. A produção de cada vídeo se deu em ‘oficinas’ com quinze a dezoito encontros semanais, em acordo com o grupo com o qual se trabalhava. 5 Algumas condições materiais e de trabalho do pessoal envolvido precisam ser lembrados, pois têm, necessariamente, influência sobre o que é produzido. É preciso dizer que a proposta de trabalho foi aceita com muito entusiasmo pelos gr upos, mas as condições de vida e trabalho não per mitiam a permanência de todos até o fim: começávamos o grupo com vinte e cinco inscritos, mas terminávamos com vinte.
Vídeo – Pers
Vídeo – Cara e Coroa: a outra face do professor
Vídeo – O curso e o (re)curso da tecnologia: do usuário ao uso diário
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À guisa de conclusão Se os leitores viram os vídeos poderão entender que os três, criados por grupos diferentes, apresentam uma certa sequência. Como o que tinha sido produzido pelo(s) grupo(s) anterior(es) era mostrado no primeiro encontro, o segundo grupo, ao ver o que o primeiro tinha produzido – problemas que docentes enfrentam com elementos do tráfico na escola –, decidiram que era preciso mostrar que a escola possuía alunos que criavam belezas e que eram responsáveis socialmente. Já o terceiro grupo, entendendo que os dois pr imeiros se preocuparam com os alunos, percebeu que deveriam mostrar como os docentes tinham vida social variada e movimentada. Os grupos eram sempre muito animados e, embora com uma frequência que variava a cada encontro, todos os seus membros acompanharam muito bem os processos desenvolvidos em função, acreditamos nós, de encontros que mantinham em outros espaçostempos. Ou seja, esses processos de formação exigem, com certeza, uma aproximação de interesses e práticas que permitem aos seus sujeitos se entenderem ‘com meias palavras’ e conviverem em múltiplos espaçostempos. No entanto, como em todo grupo, a participação de alguns de seus membros foi particularmente notável, seja pelo encaminhamento que davam às propostas produzidas pelo grupo, seja pela rapidez com que se colocavam a produzir o que era necessário, seja, ainda, pelas engenhosas saídas que encontravam. Em algumas tendências sociológicas, esse é o papel do líder. Queremos entender, no entanto, que essa é a capacidade que um grupo tem de mobilizar características positivas específicas em cada um de seus membros. Além disso, pelo que traziam em cada encontro, percebemos que tudo aquilo que era discutido, criado e produzido pelo grupo era, de modo rápido, levado pela maioria dos membros do g rupo a outros espaçostempos cotidianos, o que nos coloca frente ao questionamento de algo que, com frequência se diz de professoras e professores, tal como: “não querem nada”; “não usam as tecnologias”; “não produzem nada juntos” – o entusiasmo demonstrado, para não se dizer da frequência a esta atividade em seus momentos de descanso mostram aspectos muito diferentes desses. Organizado desde o início com a SME/Rio de Janeiro, coordenadoria de EJA, o projeto pode se desenvolver sem qualquer tipo de interferência ou exigência e, mesmo, antes pelo contrário: contamos com presença amiga de alguma pessoa do grupo central, sempre que necessário, bem como no momento festivo de encerramento de cada cur so quando fazíamos a entrega dos certificados e o vídeo produzido pelo grupo era apresentado.
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A riqueza de narrativas sobre práticas sociais e práticas curr iculares foi sempre muito grande e a disposição para usarem imagens variadas estava sempre presente. Mais uma vez, a generosidade de professoras e professores em entregarem suas memórias nesses processos nos deixa devedores eternos e seus grandes admiradores. Os conhecimentos presentes nas discussões durante o processo, sobre artefatos tecnológicos – aparelhos, máquinas, imagens e sons (além de muitos outros) –, bem como sobre as transformações e os modos de criação de valores éticos e estéticos, estiveram sempre presentes nos grupos. Os acontecimentos, no sentido que lhe dá Foucault,6 presentes nas narrativas feitas trabalhados, contribuíram bastante na produção teór ica da noção de redes de conhecimentos e significações, tal como o grupo de pesquisa vem trabalhando e desenvolvendo nos processos de pesquisa com os cotidianos.
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Acontecimento – é preciso entendê-lo não como uma decisão, um tratado, um reinado ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poder conscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus usuários, uma dominação que se debilita, se distende, se envenena a si mesma, e outra que entra, mascarada. As forças em jogo na história não obedecem nem a um destino, nem a uma mecânica, mas efetivamente ao acaso da luta. Elas não se manifestam como as formas sucessivas de uma intenção primordial; tão pouco assumem o aspecto de um resultado. Aparecem sempre no aleatório sin gular do acontecimento (Foucault, 1971, p. 145-172).
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Fotograa, educação e tempo: cortar-ser cortado1 1
por imagens Alik Wunder
Intensidade tátil Eu queria aprofundá-la (a fotografia) não como uma questão (um tema), mas como uma ferida: vejo, sinto, portanto noto, olho e penso.
Barthes, 1984, p. 39
No encontro de nossos olhos, pele-retina com a pele-fotografia, pulsa um desejo de contato, uma intensidade tátil . A fotografia se efetua em nós como um vínculo que “liga nosso olhar ao corpo da coisa fotografada” (Barthes, 1984, p. 121). Nesse desejo que se deita sobre nossos olhos, “a luz impalpável se faz meio carnal”, materializada em uma película fina e sensível. Entre o fotografado e quem olha uma fotografia há uma força de continuidade e união: pele-retina-lente-película-papel-retina-pele . Como se o olhar pudesse tocar as coisas e os seres, como se a fotografia fosse a própria pele desse momento olhado, que pode ser tocado novamente em outros tempos, por outros olhos. Por essa lógica de sensações, a fotografia pode ser pensada/sentida/usada como cicatriz, como emanação da luz dos corpos fotografados que se faz rastro e presença (Samain, 1998, p. 109). E, inexoravelmente, a fotografia nos joga para um tempo sem a marca do passado. Na sua potência fragmentária, uma abertura, um descolamento, a impossibilidade de recomposição dos pedaços num tecido contínuo do tempo e dos sentidos. Por essa outra intensidade tátil , as fotografias efetuam como feridas abertas, como um vazar de líquidos sentidos. Além de serem peles feridas e marcadas por um olho que recorta e adensa materialmente as luzes do visto, também efetuam como “lâminas que rasgam a pele do mundo” (Vilela, 2004, p. 651).
Deleuze (2004. p. 9).
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Interessam-me as passagens entre o olhar fotografias e o pensar por elas, na intensidade do tocar e ser tocado, cortar e ser cortado. Busco pensar a criação de sentidos por fotografias pelos acontecimentos de superfície (Deleuze, 2004), pela latente tensão entre o adensamento-cicatriz e a abertura- ferida. Tensão que abre fissuras na malha silenciosa de sentidos sobre o tempo do educar, adensado e expandido numa fotografia. Estes pensamentos fizeram-se atravessados por imagens de escolas produzidas por educadores em cursos que realizei entre 2003 e 2006, e que tinham como proposta final a produção de ensaios fotográficos. Não busquei, nesta pesquisa, analisar tais ensaios, mas criar com eles um movimento de pensamento em que as imagens movimentassem os conceitos, ao mesmo tempo em que os conceitos movimentassem as imagens. Neste movimento, além de palavras, surgiram imagens: recorte e composições de fragmentos das fotografias produzidas pelos educadores. Parte deste outro ensaio, que chamei de pensamentos por imagens − imagens por pensamentos é apresentada ao final do texto.
Pele-cicatriz A força da fotografia como marca-cicatriz parece ser arrastada por outra, que pulsa de forma sutil e intensa em nossa linguagem e pensamento: a força da visão como o sentido da experiência corpórea que julga poder tocar e captar a essência dos seres e das coisas. No texto “Janela da alma, espelho do mundo”, Marilena Chauí (1998) desenvolve como, no pensamento ocidental, a visão foi se fazendo como sentido primordial para apreender e conhecer, e como isso se expressa e se acentua em nossos dizeres mais corriqueiros e cotidianos. Ao falarmos sobre nossos pensamentos em relação às coisas, não estranhamos palavras como: ponto de vista, perspectiva, sem sombra de dúvida, visões de mundo e outras (1998, p. 31).. Expressões em que o ato de pensar se se faz colado colado ao ao ato de de olhar, olhar, de maneira tão adensada que chega a naturalizar-se na linguagem: “Falamos porque cremos nas palavras e nelas cremos porque cremos em nossos olhos: cremos que as coisas e os outros existem porque vemos e que os vemos porque existem” (Chauí, 1998, p. 32). Nessa passagem entre olhar, pensar e expressar em linguagem cr iou-se uma noção de continuidade, como se olhar fosse o sentido para melhor pensar e a expressão em palavras, uma fiel comunicação do pensamento. Intensificamos essa lógica de continuidade pensamento-olhar pelo uso de instrumentos óticos de melhor ver, apreender e conhecer o mundo. Criamos um olhar de muito perto, um olhar de longe, um olhar que tateia e que se aprofunda nos corpos dos seres e das coisas sempre no desejo de “ver para frente e ver com profundidade” (p. 37). O olhar em nossa cultura, movido pelo pensamento científico e pelo movimento artístico da renascença, fez-se na intenção de desvendar os segredos do
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mundo e na crença de que “do lugar onde nos encontramos, tudo vemos e vemos completamente” (p. 37). Inventamos, assim, uma visão em perspectiva que vê profundidades na superfície do visto, um ver em justaposição aos verbos captar, apreender e conhecer, um desejo de tocar o impalpável. No interior da força desse olhar em perspectiva, o advento da máquina fotográfica que, pelo direcionamento ótico e pela fixação química das luzes emanadas das coisas e seres, parece reproduzir automaticamente suas aparências (Machado, 1998, p. 9). A ênfase em uma visão regularizada, formalizada e disciplinada abriu caminho para o desenvolvimento da câmera fotográfica e possibilitou a criação de um objeto, a fotografia, que expressa e fortalece os anseios de neutralidade e de verossimilhança. Em uma cultura guiada pela visão, a fixação dos raios luminosos na superfície sensível efetua-se como possibilidade de nos unir diretamente, sem mediações, àquilo que esteve à frente da câmera. A fotografia, além de partilhar os caminhos da ciência, também abriu outros para o trânsito de seus desejos de captar e compreender, e instaurou-se a como documento, um “atestado de pré-existência da coisa fotografada” ( Machado, 1998, p. 9) e “prova prova de caráter científico” (Serén, 2002, p. 25). O primeiro cliente do aparelho de Daguer re (considerado o inventor da fotografia), logo após a sua apresentação na Academia das Ciências Francesa, foi a polícia de Paris (Serén, 2002, p. 25). As instituições policiais rapidamente perceberam nesse objeto, a possibilidade de reterem as formas desses corpos em desvio que desejavam identificar. O gesto de fotografar, nessa lógica, é uma maneira de retirar uma fatia, de fazer um corte histológico de um corpo, de uma cultura, da natureza, da história e, desta forma, melhor descrevê-los, identificá-los e nomeá-los. A força de evidência da fotografia teve e tem uma forte relação com o poder, com o desejo de apresentar os seres e as coisas sob um efeito de realidade. A câmera fotográfica também entrou em nossa cultura como forma de arquivamento de uma paisagem, ambiental e cultural, em rápida transformação: “uma quantidade incalculável de formas de vida biológicas e sociais é destruída em um curto espaço de tempo” (Sontag, 1984, p. 26). Criou-se um “mundo-imagem” como forma de controle das feridas de um tempo, de cicatrizá-las na pele-papel e arquivá-las no lugar seguro do conhecimento. Um conhecimento entendido como posse de um sentido material, como ambição de profundidades. Um olhar que age sobre a imagem fotográfica no sentido de extrair dela uma pele do tempo e da verdade , de adentrar a essência carnal das coisas e seres, pelo paradoxal método superficial da fotografia, num dessecamento impossível do que é apenas pele. E em
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um mundo repleto de imagens por todos os lados, diferente daquele no qual surgiu a câmera, o efeito da emanação das luzes de um tempo parece permanecer. Mesmo com as possibilidades de alteração das imagens digitais, percebe-se que a força da fotografia como cicatriz mantém-se forte. Essa força que talvez não se faça “ somente pela via cognitiva, que possa ser comprovada pela técnica, mas também por uma via emotiva” ( Serén, 2004, p. 20). Forças emotivas e cognitivas que se expressam e se recriam nos nossos modos de relação com as fotografias, e que dão a pensar. Na gestão das escolas públicas, as fotografias cotidianas muitas vezes são requeridas nos relatórios com o nome de evidências. São tidas como objetos que comprovam fatos, arquivam vivências, talvez dentro da mesma lógica jurídica do desejo de identificá-las, analisá-las e controlá-las. A fotografia entra como instrumento de um olhar que quer aprisionar os sentidos na pele-papel -tela. Essa tensão evidencial das fotografias pulsou em diferentes encontros que tive com educadores nos cursos que realizei a professores e gestores de redes públicas de ensino. Esses profissionais diziam, no encontro com imagens escolares, por vezes do lugar de quem fiscaliza – num rápido olhar a uma fotografia de sala de aula já identifico as práticas de uma professora − e em outras de quem é fiscalizado. Durante diferentes situações em que olhávamos e conversávamos sobre as fotografias de escolas, a forte relação entre a evidência visual e o controle se fez presente, movimentando pensamentos. As experiências escolares já tão vigiadas por diferentes olhares − mídia, gestão, comunidade, pesquisadores – ganham, no olhar neutro da câmera fotográfica, outra forma de fiscalização. A requisição destas chamadas fotografiasevidências às escolas controla a experiência de quem educa não somente pela possibilidade de serem analisadas, mas, principalmente, pela criação de uma necessidade compulsiva de fotografar o vivido com a finalidade de comprová-lo. Nessas fotografias, corpos em silêncio querem ser ader idos a um corpo de conhecimento e verdade.A pulsão de recortar e ferir a pele de um tempo e de se unir a ela pela fotografia mistura-se, nessas formas de relação com a linguagem fotográfica, com o desejo de controle sobre os cor pos materiais e o corpo imaterial dos sentidos. Por essa lógica, as imagens se multiplicam como peles cicatrizadas de um tempo do educar, prolongando o desejo de domínio de algo que tende sempre a escapar, na semelhança do animal caçado e empalhado, do inseto afixado, do corpo dissecado. Fotografias que se fazem como instantes anestesiados, como duras cicatrizes, peles marcadas por um olhar-pensamento que fere. E as fotografias como peles ganham sensibilidades múltiplas, além de superfícies marcadas; também são escorregadias, deslizam pelos dedos da visão. Uma diretora de escola, em um dos cursos contou-me que se nega a produzir tais
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imagens inquisitivas. Criou uma caixa em sua escola, que contém uma porção de fotografias emblemáticas, não datadas. Quando lhe intimam: foto de reunião com pais, foto de reunião pedagógica, a festa junina, o dia do meio ambiente! – oferece-lhes as provas requeridas. Resistência muda de uma interessante caixa de evidências imaginár ias...
Punctum: a ferida aberta por Barthes A fotografia é subversiva não quando terroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa.
Barthes, 1984, p. 62
Outra diretora de escola, durante um dos cursos sobre fotografia e educação realizados a educadoras da rede pública, define seu tema de ensaio fotográfico: registrar a preparação das instalações físicas de sua escola para receber portadores de necessidades físicas especiais. As rampas no lugar dos degraus, as barras de ferro colocadas nos banheiros, as portas alargadas... Pequenas e necessárias adaptações do espaço, que estavam a fazer durante algum tempo nessa escola e que, pelas imagens, poderiam ser lançadas à visibillidade. Um ensaio que par tia de uma relação com as fotografias como comprovações, como marcas cicatrizadas de concretas realizações. Sua intenção a leva a fotografar um espaço comumente não escolhido para ser fixado em imagem. Banheiro: o lugar privado – privada – de um espaço público – escola. Lugar da expressão violenta de outro alfabeto, das marcas sem limites, de feridas abertas para qualquer tentativa de controle. Nas fotografias, as barras de ferro, seu foco principal, somem entre paredes riscadas, objetos danificados, rasgos nas superfícies materiais e íntimas da escola. Entre a experiência de fotografar e o olhar lento sobre seu ensaio, depara-se com o seu próprio assombro. A quem, afinal, a escola está incluindo? O que a assombra não é somente a coisa fotografada, os danos, a cena aterrorizante , perturbadora, mas também seu próprio movimento com a fotografia, por esta força subversiva e pensativa da imagem (Barthes, 1984, p. 62). Segue em frente, durante algumas semanas, por diferentes espaços – reuniões com professores, coordenadores, alunos, nossos encontros – com um gesto bastante interessante, na latência de um sentido indizível, simplesmente apresentando suas fotografias, sua pergunta sem resposta e seu silêncio. Passagens que levam a pensar na potência da fotografia como um objeto que, mesmo produzido com a intenção de reter e aprisionar sentidos, possui uma força outra, efetua em sua superficialidade, em seu silêncio, em dizeres balbuciantes, em tênues expressões e deixa a abertura para sentidos não determinados. Há um efeito outro, inevitável:
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as luzes de uma fotografia também nos tocam, por vezes nos ferem de maneira inusitada. Por esta outra intensidade tátil , é a pele-fotografia que marca a pele-retina, como um corte inesperado que efetua fora das rédeas de controle. Como se o desejo não estivesse no fotógrafo, nem no observador: “como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver” (Barthes, 1984, p. 89). É essa força contingente e incontrolável do pensamento por fotografias que movimenta os escritos de Roland Barthes em A Câmara Clara. Nesse texto, resiste apaixonadamente a qualquer movimento de codificação, interpretação ou análise, com um corpo susceptível aos golpes imprevisíveis de algumas fotografias. Golpes que abrem fer idas. A escrita e os pensamentos de Barthes são movidos e transpassados nesse texto por uma latência, por uma fulguração, por uma contingência, que ele chama de punctum: “ o acaso que nela me punge (mas também me mortifica, me fere). Ele parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar” (Barthes, 1984, p. 46-47). A fotografia lança – como um lance de dados – flechas que furam a pele do visto. “O que posso nomear não pode, na realidade, me ferir” (p. 80). O punctum seria o inominável, o “campo cego” (p. 86), a “passagem de um vazio” (p. 77), uma “força de expansão” (p. 73), uma “mutação viva” (p. 77). Um movimento de notar, olhar e pensar fotografias que se dá de forma latente, viva, mutante e expansiva. Sentidos que não se deixam identificar, que não se fazem na relação de controle e retenção, mas justamente pelo escape, pelo que foge, extravasa, pelo o que não se deixa nomear. Sentidos que não se deixam representar, provém de numa contínua tensão entre palavra e imagem. Barthes escreve simplesmente das fotos que lhe interessam, emocionam e convidam à aventura. Não busca responder a perguntas, identificar intenções ou códigos, deixa-se afetar pelas forças subversivas das imagens como potência de pensamento. As fotografias que lhe marcam são muitas vezes aquelas que, por um detalhe, por uma composição – geralmente não causada pela intenção do fotógrafo. Um pensar que age e também padece, aberto ao que advém, à a(d)ventura (p. 73). Nesse livro, desenvolve duas possibilidades de movimento de pensamento em relação às fotografias: o punctum e o studium. Segundo ele, o studium faz-se nos moldes de um pensar “educado e polido” (p. 48), que quer “encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em har monia com elas, aprová-las, desaprová-las, mas sempre compreendê-las” (Barthes, 1984, p. 48). O studium como um olhar que busca controlar o fluxo líquido dos sentidos, o punctum como pura vazão, ferida que punge. O movimento de, pela fotografia, encontrar as intenções do fotógrafo afirma a sua potência
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comunicativa e representativa, como se ela contivesse marcas fixas e seguras de certas profundidades: das perspectivas do fotógrafo, de suas intenções nar rativas, de suas representações transformadas em imagens. Um pensamento ligado à força da fotografia como pele-cicatriz, indiciadora de algo que está fora dela, em especial naquele que escolheu, focou, recortou e compôs a cena. A fotografia como representação de um ponto de vista nos lança a um desejo de desvendar, decifrar, investigar e examinar, para uma posterior fraternização, ou não, com a visão do fotógrafo. Nesse pensamento studium, que tem como objetivo compreender o outro pela fotografia, o observador apalpa marcas na busca de indícios de profundidades, mantendo-se em um lugar protegido. Barthes procurava um pensamento menos distanciado, levado pelo prazer e pela emoção, vulnerável e disposto a fer ir-se por uma latência que advém da imagem como flecha pontiaguda. Ferida que possibilita um vazar incontrolável, sem direção, “hemorragia dos sentidos” (Garcia, 2007, p. 106). Percebo ressonâncias entre esta maneira de compreender o pensamento com as formas de Deleuze dizer dos acontecimentos, que “ não procedem de uma boa natureza e de uma boa vontade, mas que provêm de uma violência sofrida pelo pensamento” (Deleuze, 2004, p. 36). Diz de um querer o acontecimento no movimento de pensar, “aceitar o ferimento” (p. 36) que chega e desestabiliza e “ser digno” (p. 36) do que irrompe. Entre as luzes da imagem e as luzes dos nossos olhos, o advento de algo que nos afeta. Ser atravessado pela fotografia pelo “outro do pensamento, por aquilo que força e obriga a prestar atenção” (Barcena;Vilela, 2006, p. 16). Pensar as fotografias não como objetos a serem compreendidos ou interpretados, mas como superfícies que possibilitam um deslizar contínuo, sem a sede de um lugar seguro e estável.Ter uma fotografia “como quem recebe uma canção” (Deleuze, 2004, p. 14) e se deixar tocar por suas intensidades. Simplesmente disponibilizar-se a uma abertura para que as imagens ajam. Reiner Maria Rilke, poeta tcheco, escreve sobre o pensar face ao estranho, ao maravilhoso e ao inexplicável que nos defronta. No movimento de defensiva, de afastamento ao que ir rompe “os sentidos com as quais poderíamos afer rar se atrofiam: como se tirássemos a intensidade de um leito de um rio de possibilidades infinitas para ficarem num ermo lugar da praia, fora dos acontecimentos” (Rilke, 1994, p. 66). Nessa conexão entre o acontecimento de Deleuze e a latência do punctum de Barthes, um desejo de pensar a criação de sentidos que se dá na passagem entre o olhar fotografias e um dizer atravessado por seus efeitos. Na busca de uma poética e política para pensar as fotografias da escola não como cicatrizes de feridas anteriores ou interiores − documentos que atestam fatos ou como objeto de análise de visibilidades −, mas como lâminas que abrem feridas, que dão vazão a outros líquidos e possibilitam novas e infinitas dobras de sentidos. Um pensar que mude seus rumos pela
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passagem inexorável da luz: uma for ma, um brilho, um gesto que nos atinge. Uma aventura não programada de nossos dizeres. O pó de giz na lousa, no chão, nas mãos, sombras e luzes singulares e cotidianas na concretude das paredes, o intenso e fugaz encontro de olhos, o instante em que a tinta se adensa na superfície do papel e que se esvai na água, um toque de corpos, a corda azul que se apaga e se adensa na superfície-papel.
Cortar-ser cortado por Deleuze O acontecimento é infinitamente indizível, é sempre os dois ao mesmo tempo, eternamente o que acaba de se passar e o que vai se passar, mas nunca o que se passa (cor tar demasiado profundo mas não o bastante). O ativo e o passivo: pois o acontecimento sendo impassível, troca-os tanto melhor quanto não é nem um nem outro, mas seu resultado comum (cortar-ser cor tado).
Deleuze, 2003, p. 9
Em Lógica do sentido, Gilles Deleuze escreve sobre e com uma linguagem de efeitos de superfície, não voltada a causas profundas. Para ele, nos movimentos do pensamento “tudo que se passa, passa-se na linguagem e passa pela linguagem” (Deleuze, 2003, p. 23). Desenha o acontecimento também pelo padecer e pelo corte: o que rasgou, feriu, partiu, mas esse efeito de fissura, para ele, é um “cortar demasiado profundo, mas não o bastante” (p. 9), sempre insuficiente, sempre na eminência. Esse quase se faz pela impossibilidade de um efeito do pensamento estabilizar-se na linguagem , por uma potência indizível, que provém de uma disjunção temporal insolúvel: “o acontecimento é eternamente o que acaba de se passar e o que vai se passar, mas nunca o que se passa” (p. 9). Uma maneira de pensar a linguagem pelo tempo aiônico: Segundo Aion somente o passado e o futuro insistem ou subsistem no tempo. Em lugar de um presente que absorve o passado e o futuro, um passado e um futuro que dividem a cada instante o presente, que o subdividem ao infinito em passado e futuro, nos dois sentidos ao mesmo tempo (...). Um tempo que se libera do conteúdo corporal, é este mundo, dos efeitos incorporais ou efeitos de superfície que torna a linguagem possível (...). Enquanto Cronos era inseparável dos corpos que o preenchiam como causas e matéria, Aion é povoado de efeitos que o habitam sem nunca preenchê-lo (...). Sempre já passado e eternamente por vir (Deleuze, 2003, p. 169-170).
Para dizer desta potência de um presente inapropriável diferencia duas leituras de tempo nos movimentos do pensamento. O Cronos, tempo corporal , atua no pensamento que se faz voltado a organizar e medir as causalidades. Nele
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“só o presente existe no tempo”, o passado e futuro são dimensões relativas a ele (p. 167). Esse pensamento faz-se por uma imagem vasta e profunda do presente, que lhe dá uma acomodação estável para buscar as or igens e fazer a “medida da ação dos corpos ou das causas” (p. 167 ). Nessa leitura de tempo, o pensamento se faz pelo “devir-louco das profundidades” (p. 166), pelo corte profundo, que define e estabiliza a efetuação dos sentidos na linguagem num chamado à compreensão e à inter pretação. O tempo do acontecimento, para Deleuze, é da ordem do Aion, “de um passado e um futuro que dividem a cada instante o presente... sempre já passado e eternamente por vir” (p. 170). No tempo Aion, o presente é continuamente cortado e dividido, não se faz de forma profunda na linguagem. O presente em Aion é um instante fugidio e o “acontecimento é infinitamente indizível” (p. 9). No “cortar demasiado, mas não o bastante”, não se faz possível comunicar o acontecimento pela linguagem, pois há algo nele que sempre escapa, num desvio inexorável, num acontecer contínuo. “O Aion é povoado de efeitos que o habitam sem nunca preenchê-lo” (p. 170). Essa profundidade e esse preenchimento sempre insuficiente são o que, para Deleuze, torna possível a linguagem, como nascimento, como novidade, como devir-ilimitado. O sentido não se adensa de forma imutável em palavras, ao subir às superfícies da linguagem muda de natureza, vira outra coisa e deixa uma latência, uma reserva pulsante. “Daí o sentido não pode ser dito existir, mas somente insistir e subsistir” (p. 22). No pensar sob o efeito do acontecimento não é possível dizer do que passou, a partir de um presente estável assegurado por uma linguagem que mede e comunica as causas. O pensar pelo efeito do acontecimento dá-se num movimento de “insistência e subsistência” dos sentidos, por uma linguagem que instaura uma temporalidade não causal, mas de puros efeitos. Essa impossibilidade de distinção entre causas e efeitos no pensamento convida a entrar nos fluxos de efeitos da linguagem, efeitos sobre efeitos, no que Deleuze chama de resultado comum, um cortar-ser cortado contínuo. Cabe, nesse verbo inventado, o cortar, o cortar-se e o ser cortado. Uma justaposição que não possibilita definir as linhas de causalidade entre o sujeito e o objeto, o ativo e o passivo. A força está nesse comum indissolúvel. O presente instável de Aion cria linhas de efetuação constantes. Entrar nesse movimento de efeitos é uma forma de lidar com o que advém – com a contingência, com o acaso, o novo e o inesperado − não na ordem da compreensão (pensamento ativo) e nem da resignação (pensamento passivo), mas de criação: “fazer do acaso objeto de afirmação e ramificação” (Deleuze, 2003, p. 63). Nesse jogo criativo entre o agir e o padecer no pensamento, uma impossível definição de limite s. Nessa afirmação e ramificação do acontecimento, a linguagem é “um deslizar sobre aquilo a que se remete sem jamais se deter,
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é ela que fixa limites, mas também ultrapassa limite e os restitui à equivalência infinita de um devir ilimitado” (Deleuze, 2003, p. 2). O corte demasiado e insuficiente é da ordem do puro devir , diferente do devir das profundidades, pois se furta ao presente , não designa identidades fixas, mas infinitas. O deslizar contínuo do presente é um deslizar sobre forças identitárias, não limita a linguagem a “uma forma de consciência pessoal ou de uma identidade subjetiva, como um sujeito que se manifesta, pontos de vistas subjetivos” (Deleuze, 2004, p. 102). Ao mesmo tempo em que não designa as perspectivas de um sujeito, suas memórias, sua pessoalidade, também não é da “ordem das propriedades objetivas significadas” (p. 102). Assim, da mesma forma o pensamento-acontecimento não define limites entre o que é ativo e passivo, causa e efeito, também não se fixa como subjetivo ou objetivo. “No devir não se ultrapassam as oposições: nem privado, nem público, nem coletivo, nem individual, mas tudo isso ao mesmo tempo” (p. 37). A linguagem acontecimento não é expressão da experiência de certo olhar, mas é um dizer que se corta no próprio dizer, sem origem, sem resgate a um tempo original e da identidade de um sujeito que se expressa, mas de um contínuo devir na linguagem. Por Deleuze, um convite a colocar sob suspeita a autoridade pedagógica das imagens e seguir por um plano de pensamento entre fotografia e devir (Amorim, 2007). Entre a fotografia, o que nela me efetua e o desejo de dizer desta efetuação, há outro dizer, outra efetuação, que move a imagem e se move com ela em um fluxo que não se estabiliza. É esta passagem impossível entre o olhar fotografias e o dizer em palavras que interessa e move, que liquefaz o desejo de, pela superfície das imagens, adentrar profundidades pelo corte incisivo do sentido. Estes pensamentos desfazem a dualidade entre a int enção e a contingência, entre um pensamento que fere a fotografia com um desejo de tocar a pele de um tempo e dos sentidos, e o pensamento que se deixa ferir pelas fotografias, entre um pensamento ativo e um pensamento “submetido à ordem do acidente” (Vilela, 2001, p. 235) em sua pura passividade. Convidam a um pensar sob o efeito de um resultado comum, cortar-ser-cortado, ao mesmo tempo, ativo e passivo, singular e plural. Um pensamento que não se faz como resultado de uma filiação originária (Deleuze; Guatarri, 1995, p. 22) entre sujeito e objeto-imagem, mas por um fluxo não linear, por uma interferência mútu a, um contágio (p. 22). Todas estas coisas têm nomes próprios, mas o nome próprio não designa d e modo algum uma pessoa ou um sujeito. Designa um efeito, um ziguezague, alguma coisa que passa ou se passa entre dois como sob uma diferença potencial (...). Dizemos o mesmo a propósito dos devires: não é um termo que devém a outro, mas cada um encontra o outro, um único devir que não é comum aos dois, mas que está entre os dois (Deleuze, 2004, p. 17).
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Entre dois: isso foi e o devir Ao pensar o acontecimento pelas fotografias de escolas na diferença potencial de Deleuze Barthes (Deleuze, 2004, p. 17) punge a possibilidade de uma expansão poética do inesperado, do efêmero, do ordinário, do singular... Expandir e diminuir, dizer do ínfimo e do amplo. Em A Câmara Clara, Barthes escreve na busca do que chama de “ciência impossível do ser único”, por pensamentos e sentimentos que partem de imagens escolhidas por um critério pessoal – aquelas que o animam − que se expandem em uma escrita sobre fotografia, tempo, morte e vida. A poética do texto de Barthes faz-se em devir, o conceito do punctum não se desenha de maneira linear e estável, mas acontece de forma fulgurante, por relampejos e cintilações inesperadas. Na segunda parte do livro, Barthes discorre sobre uma única foto: um retrato de sua mãe aos cinco anos de idade, que não é apresentada ao leitor. Por essa fotografia um “outro punctum que não é mais de forma, mas de intensidade: o Tempo” (Barthes, 1984, p. 141). Esse Tempo, em letra maiúscula, punge, em especial nessa fotografia pessoal, carregada por uma força emotiva.“Na foto alguma coisa pôs-se diante de um or ifício e aí per maneceu para sempre (está aí meu sentimento)” (p. 117). Para ele a força constativa não incide sobre o objeto, mas sobre o tempo. Nas fotografias, o Isso foi é a sua verdade mais potente. A fotografia não pode dizer o que ela não dá a ver, e o que ela pode nos dizer com força é: isso efetivamente foi (p. 149). No entanto, a escrita de Barthes sobre a fotografia não se estabiliza como comunicação de suas memórias e emoções. O tempo é uma intensidade instável. Seus dizeres por fotografias habitam um tempo liso e descoagulante, entre o singular e o plural, o pessoal e o impessoal. Afirma que a máquina fotográfica é um relógio de ver e se rende ao que ela não dá a ver... O tempo punge na superfície de uma fotografia juntamente com a impossibilidade de adentrar nas suas profundidades. “É preciso, portanto, que eu me renda a essa lei: não posso aprofundar, penetrar na fotografia. Posso apenas varrê-la com o olhar, como uma superfície imóvel” (p. 156). Barthes entra pela força do tempo, sem buscar uma verdade oculta − anterior ou interior à imagem. A consciência amorosa e assustadora da pulsão tempo na fotografia cria o que chama de “êxtase fotográfico: movimento revulsivo que inverte o curso da coisa” (p. 175). “Um tempo em variação, que não se trata de uma anterioridade ou interioridade, mas de uma exterioridade pura” (Garcia, 2007, p. 109). Num tempo em variação, revulsão e dobra, seus pensamentos não vão na direção das origens dos efeitos, mas entram por estas forças de expansão, rendem-se aos seus efeitos de superfície. Um convite a um dizer que se faz na pulsão instável entre o passado e a passagem, a entrar pela intensidade do Isso foi − a luz de que retorna na imagem − e simultaneamente pelo devir ilimitado de sua passagem.
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A força da evidência das fotografias fissurada insistentemente pelo pensamento/sentimento cria um dizer do passado que também diz da passagem. Nessa mudança, a evidência ganha outra potê ncia. A mesma força que possibilita o desejo de captação, compreensão e controle dos sentidos, também efetua como expansão e criação, força de poesia. “Assim é a poesia, exprimindo na linguagem todos os acontecimentos em um (...). A linguagem como sendo ela própria um acontecimento único” (Deleuze, 2003, p. 190). A força evidencial também faz da fotografia “uma infinita matéria poética pela afirmação radical da sua materialidade finita” ( Vilela, 2004, p. 647). Potência poética que afeta um dizer em palavras fragmentadas em continuidade indefinida, sem lugar de origem ou chegada, em passagem, em devir.
Passagens, corte e justaposição “Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre. Foi difícil fotografar o sobre” (Barros, 2001, p. 12). Diz Manuel de Barros em seu ensaio fotográfico sobre o silêncio. “Queria transformar o vento. Dar ao vento uma forma concreta e apta a foto. Eu precisava pelo menos enxergar uma parte física dele: uma costela, o olho” (p. 27). Ao me perder por pensamentos e pelos ensaios fotográficos das educadoras, fragmentando e sendo fragmentada por fotografias e palavras, enveredei-me pelo impulso de fotografar o imaterial: o tempo em passagem. Quis enxergar e dar a ele uma forma concreta. Diferentes fragmentos levaram-me à força da passagem. Texturas, sombras, reflexos, sujeiras, riscos, escritos, corrosões, cores, corpos, opacidades, brilhos em superfícies várias, concreto, papel, parede, folha, janela, lousa, chão. Indícios poéticos de passagens nas superfícies da escola, adensados e expandidos na imagem. Se nas fotografias pulsa um tempo pessoal, quis encontrar nelas o tempo impessoal. Dizer do tempo pelas fotografias, não somente pelo que passou, mas pelo o que continuamente passa. No que paira na imagem encontrar a passagem. Do passado à passagem, da passagem ao passado. Na assunção de que a fotografia tem o poder de levar-nos a tempos e espaços definidos, entrar por esta limitação e sair dela numa tensão insolúvel, criar fragmentos fora do tempo e do espaço. Ferir a lâmina 10x15 cm que imita o passado, proporção que nos arremessa à janela do eis aqui o que aconteceu. Fotografar fotografias, cortar e justapor, acentuar efeitos, efetuar sobre eles, ser efetuada, ferir as palavras. Cortar-ser cortada pelas imagens, justapor e ser justaposta por elas, juntar disparidades, criar paridades outras. O corte e a justaposição acentuam os efeitos de um tempo outro que se faz na superfície da fotografia. Tempos que subsistem nas formas, luzes, sombras, cores, que agem por um contágio não diagnosticado. O corte como uma acentuação da potencialidade da fotografia como fragmento superficial... Ir ao limite desta verdade, no desejo de conviver com a fratura, redescobrir a
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força de iniciar no seio dos fragmentos, no meio do caminho, passagem sem ponto de partida ou chegada. Pela “beleza dos fragmentos de tempos coagulados” (Vilela, 2004, p. 621) nas fotografias, ir simultaneamente do ordinário instante ao tempo ilimitado. Se a educação se faz no desejo de deixar marcas, de ensi(g)nar − e se a fotografia entra como potencializadora deste seu desejo, que ela também possa expandi-lo (talvez subvertê-lo) na sua potência como um dizer em fulguração. Dentro da força-marca, a força-ferida que instaura um tempo em devir . Da cicatriz ao corte , do corte à cicatriz, do que se adere e do que vaza. Fotografias como peles sobrepostas em repetidas recomposições, novas sensibilidades. Coisas e seres passam, passam-se, não se passam, marcam, marcam-se, não se marcam, abrem vazões, não abrem... Um movimento contínuo entre o controle e o acaso, entre marcar (não marcar) e ser (não ser) ating ido por inesperadas e inapreensíveis aberturas. E se elas ensinam, talvez seja um pensar/dizer aberto ao imprevisível e incontrolável . Um ensi(g)nar que se faz como rasgo na pele de um tempo controlado que quer emoldurar com imagens o que lhe escapa. Poética fissura, abertura a outro tempo em constante variação com luzes e palavras.
Montagem a partir de recorte das fotograas de Silvana Lessio e de Anna
Paula Silva.
Montagem a partir das fotograas de
Alessandra Venâncio, Janayna Pinheiro, Márcia Toma.
Montagem a partir de fotograa de Sidnéia Santos.
Montagem a partir de fotograas de Deise Fahl.
Montagem a partir da fotograa de
Adélia Fernanda Pereira Araújo. Montagem a partir de recorte de fotograas de Gene Heber.
Montagem a partir da fotograa de Lídice Ferreira, Márcia Toma.
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