ESPECIAL |
PSICOSSOMÁTICA PSICANALÍTICA ANO XIII
PARKINSON Desenho simples permite diagnosticar a doença
NEUROCIÊNCIA p s ic ol o gi a
p s i c a ná ná l is e
n e r c i ên c ia
O sistema que funciona como GPS dentro do cérebro c érebro
Mais do que demonstrar afeto ou desejo, gesto é capaz de é capaz de revelar informações sobre o DNA do parceiro
o j j i be
to M u i t a lé m de u m
sumário | dezembro 2017 CAPA: /FVAL
Muito mais que um
por Chip Waltey
O toque dos lábios desencadeia a liberação de substâncias químicas ligadas à estimulação sexual e às interações sociais; o mais curioso, porém, é que este gesto também transmite ao parceiro informações sobre o DNA
beijo capa
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Ciênci cia a par para muda mudarr hábi hábito toss 06 Ciên Atingir objetivos aos quais nos propomos traz ótimos impactos para a mente, mas para isso é preciso alterar costumes – o que nem sempre é fácil. Algumas descobertas recentes podem ser úteis para pessoas que planejam incorporar nova novass atit atitud udes es a pont ponto o de torn tornáá-la lass auto automá máti tica cass
14 Outras formas de escutar o sofrimento por Lédice Lino de Oliveira, Rafael Piccolo
Feliciano e Ros Rosa a Junqueir Junqueira a
Muitas vezes, pacientes com manifestações somáticas procuram a psicoterapia encaminhados por médicos ou por insistência de parentes e outras pessoas de seu convívio, em busca de ajuda para se livrar dos sintomas do adoecimento físico, mas se mostram distantes de suas próprias angústias. Cabe ao analista encontrar maneiras de lidar com dor psíquica, nem sempre óbvia 4
18 Aquém da mente, para além do corpo por Rubens Marcelo Volich
Todos nós apresentamos marcas físicas e mentais resultantes de vínculos e experiências acumulados desde o início da vida. Vivências perturbadoras, conflitos, frustrações, perdas e traumas também deixam vestígios, causando carência ou empobrecimento de recursos emocionais, que se expressam por vias psíquicas e somáticas
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Sintomas como tremor e enrijecimento muscular são captados quando paciente traça a figura em uma folha de papel sobre um tablet
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28 A espiral que ajuda no diagnóstico
30 O GPS dentro da cabeça por May-Britt Moser e Edvard I. Moser
Saber onde estamos e para onde vamos é fundamental para sobreviver. Em geral não nos damos conta de que a habilidade de navegação requer do cérebro cálculos complexos, em frações de segundo. Apenas quando nos perdemos ou algo compromete esse mecanismo nos damos conta do quanto esse sistema é importante
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comportamento
Ciência para mudar hábitos Atingir objetivos aos quais nos propomos traz ótimos impactos para a mente, mas para isso é preciso alterar costumes – o que nem sempre é fácil. Algumas descobertas recentes podem ser úteis para pessoas que planejam incorporar novas atitudes a ponto de torná-las automáticas
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hega dezembro e, em meio à pressa para encerrar tarefas ou entre uma comemoração e outra, surge uma pergunta quase inevitável: quais meus projetos para o próximo ano? Não importa as metas – talvez mudar de emprego ou de carreira, voltar a estudar, adotar uma dieta saudável, exercitar-se regularmente, viajar mais, meditar diariamente ou qualquer outra. A despeito das boas intenções e por mais louvável que seja o plano, sua realização exige esforço e às vezes é frustrante manter a transformação. Intrigados com essa dificuldade tão persistente, cientistas têm pesquisado esse tema e feito algumas descobertas interessantes. Uma delas é que para aumentar as chances de alcançar um objetivo, em primeiro lugar é preciso descobrir exatamente por que de fato se almeja algo – e o que sustenta esse desejo. Desde já é bom ter em mente que “por que eu quero” ou “porque me faz bem” não servem como resposta, é preciso ir mais fundo. “Pensamentos do tipo ‘eu deveria’ podem manter a pessoa firme por um ou até dois meses em seu propósito, mas em geral não se sustentam por muito mais do que isso, ou se o fazem é à custa
de muito sacrifício”, diz o psicólogo Richard M. Ryan, da Universidade de Rochester. Ele e seu colega Edward L. Deci desenvolveram um modelo de motivação denominado teoria da autodeterminação, segundo o qual as pessoas com necessidades psicológicas se sentem mais satisfeitas, competentes e capazes de manter relacionamentos afetivos saudáveis – e autônomas, com liberdade para escolher o que fazer. “Mas se a pessoa simplesmente pensar ‘Eu consigo, basta evitar’, é provável que falhe porque as situações que se apresentam estão sujeitas a variáveis mais complexas”, diz a pes-
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quisadora Mary Jung, professora da Universidade da Colúmbia Britânica, que nos últimos anos tem se dedicado ao estudo da relação das pessoas com a apropriação de comportamentos saudáveis. Ela salienta que faz toda a diferença o fato de as pessoas compreenderem que “escorregar” de vez em quando é normal, e isso não deve ser interpretado como sinal para desistir. “Se você perdeu uma etapa de exercício, não significa que falhou, mas apenas que terá de tomar algumas providências para deixar seu treino em dia”, afirma Jung. Ela enfatiza a importância de dedicar algum tempo imaginando o resultado do sucesso de seus esforços e os obstáculos específicos que certamente aparecerão ao longo do caminho. Vamos imaginar que sua meta seja economizar mais dinheiro no próximo ano. Em vez de tentar resolver tudo de forma abstrata, é possível formar duas imagens mentais: a primeira poderia ser a de maior saldo bancário e a outra de si mesmo lutando contra a vontade de se juntar com os amigos no caro restaurante inaugurado recentemente. Vários estudos mostram que a técnica de dois passos, chamada de oposição de ideias, ajuda as pessoas a procrastinar menos e a enfrentar os desafios com mais entusiasmo. “Uma das chaves essenciais para a concretização de nossos planos é descobrir a motivação certa, aquela que realmente nos move”, afirma o psicólogo Pedro J. Teixeira, professor da Universidade Técnica de Lisboa. Teixeira, que pesquisa o tema. Ele observa que para firmar mudanças duradouras é fundamental começar devagar para, gradualmente, chegar a desafios maiores. “As conquistas mais bem-sucedidas são aquelas em que pegamos o ritmo pouco a pouco durante algumas semanas; com isso é possível ir fazendo ajustes e evitar a sensação frustrante de se esforçar tanto por algo e depois falhar”, afirma Mary Jung. “Em relação ao condicionamento físico, por exemplo, se não tenho certeza de que alguém pode fazer algo, não é uma boa ideia pedir que comece justamente com essa tarefa; o ideal é que se atinja o propósito em etapas, até para que esse comportamento se sedimente no cére-
bro”. No entanto, por mais sensato que isso possa parecer, as pessoas geralmente fazem o oposto – não raro, entram em dietas extremas ou exageram na prática de exercícios físicos para os quais não estão preparadas. Há também aqueles que fazem votos súbitos de praticar piano ou estudar mandarim por uma hora todos os dias. A abordagem gradual funciona porque aumenta um ingrediente essencial para a realização do objetivo: a confiança. Apesar das reais dificuldades, o sentimento é necessário para ter sucesso. Esse tipo de motivação é muito diferente do otimismo infundado daqueles que superestimam sua capacidade de resistir a tentações, explica Jung. Conseguir superar desafios externos tem menos a ver com força de vontade e mais com habilidades específicas de enfrentamento, como o gerenciamento de problemas e a capacidade de se reerguer depois de contratempos. Aos poucos, o desenvolvimento dessas habilidades e a definição de objetivos modestos que permitam encontrar maneiras de lidar com eventuais problemas aumentam a segurança e as chances de persistir a longo prazo. Pessoas que falham repetidamente na tentativa de alcançar um objetivo tendem a duvidar de sua capacidade de realizar qualquer coisa. Por isso, especialistas insistem: é preciso ir aos poucos. Se você se esforçar para manter a casa arrumada, no início deve focar em um dos quartos – ou até mesmo em um armário ou gaveta. Se mantiver o espaço arrumado por uma semana, comemore a conquista e, depois, escolha outra área e assim por diante. Podemos pensar que mudanças duradouras requerem incorporar o novo comportamento, torná-lo automático, de forma que não nos incomode. Uma maneira de começar o processo para adquirir um hábito é dizer para si mesmo, de maneira realista, o que pretende fazer e de que forma vai se movimentar para pôr o plano em prática. Com isso, é possível traçar a estratégia para determinar quando, onde e como pretende alcançar seus objetivos. Por exemplo, se você pretende beber mais água ao longo do dia, vale ter uma garrafinha ao alcance da mão para facilitar a realização do intento. dezembro 2017
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Muito mais que um
beijo O toque dos lábios desencadeia a liberação de substâncias químicas ligadas à estimulação sexual e às interações sociais; o mais curioso, porém, é que este gesto também transmite ao parceiro informações sobre o DNA
por Chip Walter, jornalista especializado em divulgação científica
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os momentos de intensa paixã o o beijo na boca prende duas pessoas numa troca de cheiros, sabores, toques, segredos e emoções. Beijamos lascivamente, de modo gentil, tímido, faminto, intenso, luxuriante ou furtivo. Em plena luz do dia e na calada da noite. Damos beijos cerimoniosos, afáveis, polidos, de rostos que não se tocam; a literatura e a história registram beijos da morte e, ao menos nos contos de fada, beijocas fazem princesas reviver. Do ponto de vista da ciência, os lábios podem ter evoluído primeiro para favorecer a alimentação e, mais tarde, para a fala, mas no beijo eles satisfazem tipos diferentes de apetite. No corpo, o toque dos lábios ativa uma sucessão de mensagens neurais e químicas que transmitem sensações táteis e excitação sexual, e desperta sentimentos de intimidade, motivaç ão e até euforia. Nem todas as mensagens são internas. A fusão de dois corpos transmite sinais intensos passí veis de serem reconhecidos tanto pela própria pessoa quanto pelo parceiro ou parceira. Beijos podem, inclusive, enviar informaç ões significativas sobre as condições presentes e futuras de uma relaç ão amorosa. Muitos psicólogos especializados em terapia de casais garantem que, se o primeiro beijo não for considerado agradável e prazeroso para os dois envolvidos, dificilmente o relacionamento evoluirá . dezembro 2017 • mentecérebro
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OS LÁBIOS HUMANOS têm a camada mais fina de pele do resto do corpo e estão entre as áreas de maior concentração de receptores e transmissores sensoriais
Alguns cientistas acreditam que a união dos lábios evoluiu porque facilita a seleção de parceiros. “O beijo envolve uma troca bem complicada de informações – olfativa, tátil e ajustes de postura – que costuma acionar mecanismos neurológicos sofisticados e também inconscientes, permitindo às pessoas determinar subjetivamente até que grau elas são geneticamente incompatíveis”, afirma o psicólogo evolucionista Gordon G. Gallup, professor da Universidade de Albany e da Universidade do Estado de Nova York. Beijar pode ainda revelar até que ponto o outro está disposto a se comprometer na relação. Esse comprometimento significa, em alguns casos, a predisposição para estabelecer parcerias, aprofundar o grau de confiança e até mesmo a intenção de criar filhos – uma questão central em relacionamentos de longo prazo e crucial para a sobrevivência da espécie. MENSAGEIRO SILENCIOSO
Independentemente do que mais esteja acontecendo quando beijamos, nossa história evolucionária está incorporada nesse ato terno e tempestuoso. Nos anos 60, o zoólogo e escritor britânico Desmond Morris sugeriu, pela primeira vez, que o beijo pode ter evoluído da prática de algumas mães primatas de mastigar a comida para seus filhotes e alimentá-los boca a boca, com os lábios comprimidos. Os chimpanzés se alimentam des10
sa maneira, e nossos ancestrais hominídeos, provavelmente, também o faziam. A pressão de lábio contra lábio evoluiu posteriormente para uma forma de confortar crianças famintas em períodos de escassez de comida e, com o tempo, derivou para um modo de expressar amor e afeição. A espécie humana levou esses beijos protoparentais por outros caminhos, até criar as variedades mais apaixonadas que temos hoje. Mensageiros químicos silenciosos chamados feromônios podem ter acelerado a evolução do beijo “íntimo”. Muitos animais e plantas usam os feromônios para se comunicar com outros membros da mesma espécie. Insetos, em particular, são conhecidos por emitir a substância como um alarme, para sinalizar, por exemplo, a presença de alimento ou a atração sexual. Se os seres humanos detectam feromônios ou não – e com que precisão isso aconteceria – é assunto controverso. Diferentemente de ratos ou porcos, não temos um detector de feromônios “especializado”, o órgão vomeronasal, entre o nariz e a boca. No entanto, a bióloga Sarah Woodley, da Universidade Duquesne, em Pittsburgh, na Pensilvânia, sugere que podemos captar feromônios pelo sistema olfativo. Segundo ela, a comunicação química inconsciente explicaria descobertas curiosas, como a tendência de os ciclos menstruais de mulheres que
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convivem de forma muito próxima, como companheiras de dormitório, se sincronizarem, ou como a atração das mulheres pelo cheiro da camiseta usada por homens cujo sistema imunológico é geneticamente compatível com o delas. Feromônios humanos podem incluir androstenol (componente químico do suor masculino que, para algumas mulheres, amplia a excitação sexual) e hormônios vaginais femininos chamados copulinas (que aumentam os níveis de testosterona e o apetite sexual dos homens). Se os feromônios realmente representam um papel na procriação humana, então beijar seria uma maneira extremamente eficiente de transmiti-los. Podemos também ter herdado o beijo íntimo de nossos ancestrais primatas. Bonobos, que são geneticamente muito semelhantes a nós (embora não sejamos seus descendentes diretos), são especialmente apaixonados. O primatólogo Frans B. M. de Waal, da Universidade Emory, na Geórgia, lembra-se de um guarda de zoológico que aceitou de um bonobo o que ele achava que seria um beijo amigável, até sentir a língua do macaco em sua boca! Os lábios humanos têm a camada mais fina de pele do corpo humano e estão entre as áreas corporais em que se encontram as maiores concentrações de receptores e transmissores sensoriais. Quando beijamos, as células da língua e de outras regiões da boca disparam mensagens para o cérebro e para o corpo, provocando emoções e reações físicas intensas. Dos 12 ou 13 nervos cranianos que afetam a função cerebral, cinco estão em ação quando beijamos, carregando mensagens de nossos lábios, língua, bochechas e nariz para o cérebro – que capta informações sobre temperatura, sabor, cheiro e movimentos de toda a situação. Parte dessa informação chega ao córtex somatossensorial, faixa de tecido na superfície cerebral que representa a informação tátil no mapa do corpo ( veja ilustração na pág. 14) Nessa representação os lábios aparecem desproporcionalmente grandes em relação ao tamanho real porque cada região do corpo aparece de acordo com a densidade de suas terminações neurais.
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Inclinação à direita O psicólogo Onur Güntürkün, da Universidade Ruhr, de Bochum, Alemanha, realizou recentemente uma pesquisa curiosa. Observou 124 casais enquanto se beijavam em lugares públicos dos Estados Unidos, Alemanha e Turquia e constatou que eles tombavam levemente a cabeça para a direita com o dobro de frequência do que para a esquerda antes de seus lábios se tocarem. Güntürkün suspeita que os beijos inclinados para a direita resultem de uma preferência geral desenvolvida no final da gestação e na primeira infância. Essa “assimetria” é relacionada à lateralização das funções cerebrais, tais como a fala e a percepção espacial. A educação e a cultura também podem influenciar essa tendência de curvar-se para a direita. Estudos mostram que até 80% das mães, quer sejam destras, quer sejam canhotas, acalentam do lado esquerdo seus bebês. Bebês aninhados com o rosto para cima, à esquerda, viram-se para a direita para ser amamentados ou se aconchegar. Como resultado, a maioria de nós pode ter aprendido a associar calor e segurança com o inclinar para a direita. Alguns cientistas propuseram que aqueles que viram a cabeça para a esquerda quando beijam podem estar mostrando menos afeto do os que o fazem para o lado oposto. Um estudo realizado pelo naturalista Julian Greenwood e seus colaboradores da Universidade Stranmillis College, em Belfast, na Irlanda, contrapõe essa ideia. Os pesquisadores constataram que 77% de 240 graduandos inclinavam a cabeça para a direita quando beijavam uma boneca na bochecha ou nos lábios. Curvar-se para a direita com uma boneca, ato que não denota emoção, foi quase tão predominante entre os participantes como entre os 125 casais observados enquanto se beijavam em Belfast que se inclinaram para a direita em 80% das vezes. A conclusão: beijar inclinado para a direita provavelmente resulta de uma facilidade motora, como Güntürkün sugeriu – e não de uma preferência emocional.
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capa Beijar desencadeia um coquetel de substâncias químicas que governam o estresse, a motivação, as relações sociais e a estimulação sexual. Em um novo estudo, a psicóloga Wendy L. Hill e sua aluna Carey A. Wilson, do Lafayette College, compararam os níveis de oxitocina e cortisol, dois hormônioschave, em 15 casais heterossexuais antes e depois de eles se beijarem e antes e depois de conversarem de mãos dadas. A oxitocina está ligada às relações sociais e o cortisol é considerado o hormônio do estresse. Hill e Wilson supunham que beijar ampliaria os níveis do primeiro hormônio, que influencia também o reconhecimento social, o orgasmo e o parto. Elas esperavam que esse efeito fosse particularmente pronunciado nas mulheres participantes do estudo que relataram um grau maior de intimidade em seus relacionamentos. Também previam uma queda no cortisol, porque, presumivelmente, beijar aliviaria o estresse.
BARÔMETRO EMOCIONAL As pesquisadoras, porém, se surpreenderam ao descobrir que os níveis de oxitocina aumentaram apenas nos homens e diminuíram nas mulheres, tanto depois de beijar quanto ao conversar de mãos dadas. Concluíram, então, que elas precisam bem mais do que um beijo para se sentir ligadas emocionalmente ou excitadas sexualmente durante o contato físico. As autoras inferiram que as mulheres podem, por exemplo,
precisar de uma atmosfera mais romântica. Mas, de fato, uma suspeita das pesquisadoras se confirmou: o estudo reportado por Hill e Wilson, em novembro de 2007 na reunião anual da Sociedade para a Neurociência, em Nova Orleans, revelou que os níveis de cortisol caíam para ambos os sexos, não importando a forma de intimidade, o que indica que o beijo realmente reduz o estresse. Na medida em que o beijo está ligado à afetividade, pode aumentar a produção de substâncias químicas do cérebro associadas ao prazer, à euforia e à motivação para estabelecer ligações específicas. A antropóloga Helen Fisher e colaboradores da Universidade Rutgers registraram, por meio de tomografias do cérebro, a reação de 17 voluntários enquanto olhavam para fotos de pessoas pelas quais diziam estar profundamente apaixonados. Os pesquisadores descobriram uma atividade incomum em duas regiões cerebrais que governam o prazer, a motivação e a recompensa: a área tegumentar ventral direita e o núcleo caudado direito. Drogas como a cocaína estimulam de maneira semelhante esses centros de recompensa, por meio da liberação do neurotransmissor dopamina. Uma primeira conclusão seria, então, a de que o amor funciona, para humanos, como um tipo de droga. E o beijo evoca reações primais. Pode aumentar a pulsação e a pressão sanguínea; as pupilas se dilatam; a respiração fica mais profunda e o pensamento racional recua. Assim como
Homúnculo sensorial: o mapa do corpo Informação tátil da pele chega ao córtex somatossensorial primário do cérebro, que contém um mapa distorcido do corpo chamado “homúnculo sensorial”. Nesta representação, os lábios são desproporcionalmente grandes porque têm uma enorme concentração de receptores sensoriais e, portanto, são muito sensíveis ao toque. 12
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o desejo, o ato de beijar suprime (ou pelo menos torna mais tênue) a prudência e a inibição. Durante um beijo a maioria das pessoas fica, provavelmente, encantada demais para se importar com isso. Talvez o superego (instância psíquica proposta por Sigmund Freud, guardiã das normas e proibições que aprendemos e adotamos) seja solúvel em beijos. Pode mesmo um beijo ser algo tão poderoso? Algumas pesquisas indicam que sim. Num levantamento recente, Gallup e seus colaboradores descobriram que 59% de 58 homens e 66% de 122 mulheres admitiram que houve ocasiões em que, embora estivessem atraídos por alguém, o interesse logo sumiu depois do primeiro beijo. Os beijos “ruins” não tinham nenhuma falha específica; simplesmente não passavam a “sensação certa”. Resultado: deflagravam o fim do romance. Gallup também acredita que o beijo carrega tal peso porque transmite informações subconscientes sobre a compatibilidade genética de um possível companheiro. Sua hipótese é consistente com a ideia de que ele evoluiu como uma estratégia de acasalamento que ajuda a avaliar potenciais parceiros. Da perspectiva darwiniana, a seleção sexual é a chave para a transmissão dos genes. Para nós, humanos, a escolha do parceiro frequentemente implica apaixonar-se. Fisher escreveu em seu artigo de 2005 que o “mecanismo de atração nos humanos evoluiu para permitir aos indivíduos concentrar sua energia de acasalamento em pessoas específicas, o que facilita a escolha do parceiro – e satisfaz um aspecto primário da reprodução”. Com base em descobertas recentes, Gallup argumenta que o beijo desempenha um papel crucial na progressão de um relacionamento, mas de forma diversa para homens e mulheres. Num estudo – que teve os resultados publicados – ele e seus colaboradores entrevistaram 1.041 universitários de ambos os sexos a respeito do beijo. Para a maioria dos rapazes ouvidos, acariciar a boca da outra pessoa com a língua é uma maneira de avançar no relacionamento sexual. Para os pesquisadores, porém, o ato serve para conduzir o casal ao próximo nível emocional
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e para avaliar não apenas se a outra pessoa seria uma fonte excelente de DNA, mas um bom parceiro a longo prazo. O encontro dos lábios é, portanto, um tipo de barômetro emocional: quanto mais entusiasmado, mais saudável é o relacionamento. Como as mulheres têm menores possibilidades biológicas de perpetuar seus genes, já que necessitam investir mais energia para ter filhos, é fundamental que sejam mais criteriosas na escolha de seus parceiros – e não podem se permitir muitos equívocos. Dentro dessa lógica evolucionista, quanto mais apaixonado o beijo, maior a chance de o parceiro ser um bom companheiro não só para a procriação – mas suficientemente comprometido também para ficar por perto e criá-los. Por outro lado, o beijo talvez não seja tão necessário do ponto de vista evolutivo. Afinal, a maioria dos animais não se beija e, mesmo assim, produz muitas crias. E nem todos os humanos beijam. Na virada do século 20, o cientista dinamarquês Kristoffer Nyrop descreveu tribos finlandesas cujos membros se banhavam juntos, mas consideravam o beijo indecente. Em 1897, o antropólogo francês Paul d’Enjoy relatou que os chineses consideravam o toque das bocas tão horrendo quanto é o canibalismo para a maioria das pessoas. Na Mongólia, por exemplo, é raro que os pais beijem seus filhos em vez disso, cheiram a cabeça dos pequenos. O pioneiro da etologia humana Irenäus Eibl-Eibesfeldt escreveu em seu livro de 1970 Love and hate: the Natural History of behavior patterns (Amor e ódio: história natural dos padrões elementares do comportamento), considerado um clássico, que pelo menos 10% da humanidade não beija.
PRÁTICA AFETIVA pode ter derivado do hábito de mães primatas de mastigar alimentos e passá-los direto para a boca dos filhotes
PARA SABER MAIS
Sex differences in romantic kissing among college students: an evolutionary perspective. Gordon G. Gallup, Jr., Susan M. Hughes e Marissa A. Harrison, em Evolutionary Psychology, vol. 5, nº 3, págs. 612-631, 2007.
Adult persistence of headturning asymmetry. Onur Güntürkün, em Nature, vol. 421, 13 de fevereiro de 2003.
Romantic love: an fMRI study of a neural mechanism for mate choice. Helen Fisher, Arthur Aron e Lucy L. Brown, em Journal of Comparative Neurology, vol. 493, nº 1, págs. 58-62, 5 de dezembro de 2005.
Amor e ódio: história natural dos padrões elementares do comportamento.Irenäus Eibl-Eibesfeldt. Livraria Bertrand, 1987.
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especial – psicossomática psicanalítica
Outras formas de escutar o
sofrimento Muitas vezes, pacientes com manifestações somáticas procuram a psicoterapia encaminhados por médicos ou por insistência de parentes e outras pessoas de seu convívio, em busca de ajuda para se livrar dos sintomas do adoecimento físico, mas se mostram distantes de suas próprias angústias. Cabe ao analista encontrar maneiras de lidar com dor psíquica, nem sempre óbvia por Lédice Lino de Oliveira, Rafael Piccolo Feliciano e Rosa Junqueira
A
psicanálise é instigada constantemente a se reinventar. Há mais de um século, quando criou esse método – para tratar inicialmente pacientes histéricas –, Sigmund Freud apresentou a escuta como principal instrumento de trabalho. Ele pedia para que seus pacientes se deitassem no divã, de forma confortável, e falassem “aquilo que lhes viesse à cabeça”. Essa técnica, conhecida como associação livre, facilitaria a emergência para a consciência de conteúdos recalcados. Quando falamos em recalque, longe de seu significado popularizado, que se aproxima da inveja, nos referimos a uma defesa bastante elaborada, própria à neurose. Resumidamente, seu mecanismo se baseia em retirar da esfera consciente (e manter inconscientes) conteúdos de difícil elaboração, sentidos como intoleráveis ou incompatíveis com os próprios valores, mas que emergem, como afirmam os psicanalistas franceses Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis, “sob a forma de sintomas, sonhos, atos falhos etc.”. OS AUTORES
LÉDICE LINO DE OLIVEIRA é psicóloga, mestre em ciências da saúde, professora do curso de psicologia da Universidade Paulista (Unip). RAFAEL PICCOLO FELICIANO é psicólogo clínico, autor do livro digital Escritos psicanalíticos da vida . (ePub, 2017). ROSA JUNQUEIRA é psicanalista. Os três são membros-fundadores do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo 14
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A psicossomática psicanalítica considera que apresentamos outras formas de organização psíquica que diferem da neurose e podem ser incluídas no campo das desorganizações psicossomáticas. Caracterizadas pela prevalência de sintomas que incidem diretamente sobre o corpo, costumam desencadear afecções somáticas crônicas e até mesmo progressivas, o que torna o manejo clínico com esses pacientes um desafio a mais para o método analítico. Destacam-se aqui particularidades do campo transferencial, refletindo impasses na relação terapeuta-paciente, específicos ao tratamento de pessoas que apresentam processos de desorganização psicossomátidezembro 2017
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especial – psicossomática psicanalítica
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ca. Inúmeras se apresentam ao terapeuta: Como contribuir para que este paciente possa construir e dar sentido às palavras? Como se tornar um “outro” diante de um paciente que preserva o investimento maciço em si próprio? Como evitar que o acompanhamento psicoterápico caia no vazio refletido pela vida psíquica ausente de símbolos, com grandes inconsistências nas relações com o mundo externo? Com frequência, esses pacientes chegam aos consultórios encaminhados por médicos e muitas vezes por insistência de familiares e outras pessoas de seu convívio. Apresentam alguma manifestação somática para a qual buscam auxílio para tratar seus sintomas. Porém, se revelam distantes de suas angústias, diferentes dos chamados “neuróticos clássicos” que alcançaram a 16
capacidade de simbolização e conseguem, das mais variadas maneiras, metabolizar as angústias. Pacientes que manifestam diretamente no corpo suas questões psíquicas não parecem entrar em contato com conflitos, tampouco com processos de pensamento ou fantasias. O paciente parece estar movido por seus instintos mais primitivos e necessita de cuidados que acolham seus excessos. Segundo o psicanalista inglês Donald W. Winnicott, é possível supor que esses adultos foram crianças que não experimentaram um ambiente suficientemente bom, nem tiveram um cuidador devotado, capaz de integrar os sentimentos infantis de amor e de raiva, algo fundamental para o desenvolvimento psicossomático saudável. Ao contrário: podemos supor a presença de um adulto preponderantemente intrusivo ou ausente (certamente um reflexo de carências resultantes da história de vida do próprio cuidador), incapaz de se adaptar ao tempo ou ao ritmo das necessidades da criança pequena. Nesse sentido, podemos pensar sobre os conceitos de verdadeiro self e falso self propostos por Winnicott. Se o primeiro resulta da aceitação dos gestos espontâneos da criança por parte de quem cuida, o segundo revela uma submissão da criança aos gestos e vontades do adulto, incapaz de entender e satisfazer as necessidades do filho. Quando isso ocorre pela ausência de reconhecimento, podemos supor que se constrói um falso self como defesa contra o excesso de intrusão, impedindo o surgimento de manifestações espontâneas. Assim, na relação terapêutica, o analista se vê diante da necessidade de um manejo que, diferentemente da técnica clássica baseada na interpretação do material inconsciente, se orienta por acolher o paciente e acompanhar cuidadosamente suas expressões e comunicações aparentemente mais singelas e triviais. Nestes casos, a técnica clínica mais clássica poderia contribuir para a manutenção de cisões do ego. O que impede a integração dos afetos e facilita a consequente desorganização psicossomática. Isso nos leva a pensar que a interpretação seja uma forma intrusiva de agir, que po-
deria ser comparada aos atos invasivos do cuidador. Ciente das defesas primitivas respeitando a maneira peculiar de relação objetal, com toda a violência que as identificações carregam e das quais o analista é alvo, este poderá então exercer a escuta por meio das sensações que impregnam seu próprio corpo. Segundo o filósofo e psicanalista Fédida, o corpo do analista se concretiza como palco onde se encenam os “fantasmas” do paciente. Como já observou R. Volich (autor do artigo na pág. 18), as sensações ocorridas no corpo do terapeuta se põem como caminho importante para a compreensão da dinâmica do paciente e contribuem para futuras possibilidades de interpretação. Ao suportar tais desconfortos (a exemplo da mãe que realiza sua função materna), o terapeuta metaboliza os conteúdos agressivos, transformando-os em elementos mais “palatáveis” ao paciente. Há grande importância na autopercepção do analista em relação a sensações corpóreas, com vistas a uma transformação em sua atividade interna como ferramenta construtiva do processo de estruturação subjetiva e da mentalização do paciente. Parece fundamental, portanto, colocar o corpo a serviço da relação analítica, pois, se o corpo “fala” por meio dos sinais patológicos, será por meio do corpo tanto do paciente quanto do terapeuta que o diálogo será inicialmente instaurado. A psicanalista Joyce Mc Dougall traz essa ideia em sua obra: como se fosse um aparelho psíquico compartilhado, dois corpos tornam-se apenas um no trabalho conjunto do ato de pensar e buscar significados. Cabe ao terapeuta, portanto, tornar-se intérprete desses conteúdos, no momento em que os identifica, os toma como seus e, delicadamente, permite a construção de um ambiente acolhedor no qual o paciente poderá se sentir, gradativamente, capaz de suportar seus próprios conteúdos agressivos, na medida em que abre mão de defesas primitivas como a cisão e a projeção para defesas mais elaboradas. “É por meio da delicadeza da escuta, de uma leitura em filigrana das palavras, na sutileza da busca dos detalhes, dos
Segundo o filósofo e psicanalista Fédida, o corpo do analista pode ser comparado a um palco onde se encenam os “fantasmas” do paciente; é nesse campo que o diálogo entre paciente e terapeuta será inicialmente instaurado
gestos, do olhar, do silêncio, que o analista vai reencontrar as marcas das imagens internas do paciente. Tudo se passa como se a palavra do analista devesse incentivar o paciente a desenvolver seu poder imaginativo de tal forma que o acontecimento que toca o corpo não fique privado de possibilidades metafóricas”, escreve a psicanalista Maria Helena Fernandes, em seu livro Corpo (Casa do Psicólogo, 2008). É na qualidade do vínculo psicoterapeuta-paciente que encontramos as condições de um recomeço. A ideia é que, aos poucos, o paciente adquira a possibilidade de expressar em palavras a parte que foi vivida como má, iniciando um processo de integração entre os próprios pensamentos e sentimentos – antes insuportáveis e assustadores –, e que aos poucos adquirem sentidos e significados. É por meio da relação com o terapeuta que aparecem novas capacidades, expressões menos regredidas, mais espontâneas e criativas. Após algum tempo de análise, por vezes, surgem comentários dos pacientes sobre como se sentem acolhidos no espaço analítico. Isso nos lembra Winnicott, quando enfatiza que “na prática psicanalítica, as mudanças que ocorrem nesta área podem ser profundas. Elas não dependem do trabalho interpretativo, mas sim da sobrevivência do analista” a este tipo de relação fragilizada. Não é raro observar a necessidade de o paciente sentir-se fisicamente próximo ao terapeuta. Sobre isso, Fernandes escreve: “Não é por acaso que esse tipo de paciente tem necessidade de constatar a presença viva do analista; é essa presença que lhe assegura que o analista não está “morto”.
PARA SABER MAIS
Psicanálise e psicossomática: casos clínicos, construções. A.M. Soares, C.R.
Rua, R. M. Volich, M.E.P. Labaki (org). Escuta, 2015. Psicossomática: de Hipócrates à psicanálise. R. M.
Volich. Casa do Psicólogo, 2010. Corpo. M. H. Fernandes. Casa do Psicólogo, 2008. Hipocondria: impasses da alma, desafios do corpo.
R.M. Volich. Casa do Psicólogo, 2002. Explorações psicanalíticas . D.W. Winnicott. Artes Médicas, 1994. O ambiente e os processos de maturação.
D.W. Winnicott. Artmed, 1983.
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Aquém da mente, para além do
corpo
Todos nós apresentamos marcas físicas e mentais resultantes de vínculos e experiências acumulados desde o início da vida. Vivências perturbadoras, conflitos, frustrações, perdas e traumas também deixam vestígios, causando carência ou empobrecimento de recursos emocionais, que se expressam por vias psíquicas e somáticas por Rubens Marcelo Volich
OS AUTORES
RUBENS MARCELO VOLICH é psicanalista, doutor pela Universidade de Paris VII – Denis Diderot, professor do curso de especialização em psicossomática psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. É autor, entre outros livros, de Psicossomática: de Hipócrates à Psicanálise (Casa do Psicólogo – Coleção Clínica Psicanalítica, 2000) e coorganizador e autor dos livros da série Psicossoma (Casa do Psícólogo). 18
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Apesar dos avançados recursos diagnósticos e terapêuticos da medicina, a dificuldade em compreender o adoecimento dos pacientes, leva profissionais a atribuir esse processo a fatores ditos emocionais, psicológicos ou psicogênicos
A
organização pulsional marca a transcendência do humano da condição biológica para a condição de sujeito. Atravessada pelo desejo, ela é modulada, desde o nascimento, e talvez mesmo antes disso, pelas marcas das relações da criança com seu semelhante. São também essas relações que tecem em torno do corpo a trama entre as pulsões de vida e de morte, forjando a diversidade de formas e organizações que constituem a economia psicossomática, em suas infinidade de expressões normais e patológicas de dor e de prazer. Fluidez e rigidez, precariedade e consistência, organização e desorganização caracterizam a plasticidade da trama pulsional que pauta a clínica contemporânea, muitas vezes marcada por dinâmicas mais primitivas, aquém da linguagem e da representação. Dinâmicas arcaicas, atuações e somatizações revelam pacientes refratários aos enquadres psicanalíticos e psicoterapêuticos clássicos. A clínica médica e a de outras especialidades da saúde também são desafiadas por essas dinâmicas na anamnese, no diagnóstico e nas mais diversas modalidades terapêuticas. Tanto nas instituições de saúde como na clínica particular, profissionais são confrontados com dificuldades semelhantes, que se manifestam por meio de quadros que vão desde doenças orgânicas até distúrbios comportamentais, passando por manifestações borderlines, adicções, transtornos de caráter e alimentares e inúmeros outros. Muitos desses sintomas, doenças e pacientes revelam-se inacessíveis aos recursos em20
pregados para compreendê-los e tratá-los. Em alguns casos, há dificuldades para se chegar a um diagnóstico, apesar de investigações exaustivas e consultas a vários especialistas, comprometendo a definição das estratégias terapêuticas. Em certos pacientes, a história da doença ou os prognósticos de um tratamento subitamente apresentam mudanças bruscas e surpreendentes. Dificuldades como essas, evoluções inesperadas e quadros clínicos inespecíficos são frequentemente caracterizados como “psicossomáticos”, “somatizações”, quadros “idiopáticos”, “funcionais”, “sem explicação médica”, entre outros. Na clínica médica, a dificuldade em apreender e compreender a etiologia do adoecimento dos pacientes, apesar dos avançados recursos diagnósticos e terapêuticos, leva a atribuir o que lhes escapa a fatores ditos “emocionais”, “psicológicos” ou “psicogênicos”. No campo da saúde mental, os profissionais, psicoterapeutas e psicanalistas em particular, são desafiados por formas bastante desorganizadas de expressão do sofrimento humano. Não apenas por manifestações corporais mais graves e distintas dos clássicos quadros histéricos, mas, também, por expressões onipotentes e indiferenciadas do narcisismo, manifestações exacerbadas do ego ideal e formações primitivas do superego, e muitas outras que evidenciam a carência ou a precariedade dos mecanismos do recalcamento, a impossibilidade do reconhecimento da castração e da alteridade, a ausência de transicionalidade que tornam o sujeito dependente e cativo do desejo do
outro, impermeável à transferência e à interpretação. Essas manifestações somáticas e psíquicas são frequentemente acompanhadas por expressões precárias de recursos psíquicos, fantasmáticos, oníricos e relacionais, denotando limitações dos recursos de ligação pulsional, dos afetos e representações, dinâmicas que favorecem descargas pelo comportamento e desorganizações somáticas, em casos extremos graves e mortíferas. Elas revelam uma complexidade que solicita uma compreensão mais profunda que a dos usos coloquiais e, algumas vezes, científicos do termo “psicossomática”, que reduzem essa concepção a sintomas e doenças orgânicas que seriam determinadas ou agravadas por fatores psíquicos.
ORGANIZAÇÃO E DESORGANIZAÇÃO Tanto doenças como manifestações típicas do desenvolvimento revelam a existência de uma continuidade funcional do que denominamos economia psicossomática. Algumas circunstâncias da vida humana são predominantemente marcadas por expressões e manifestações orgânicas (como fome, riso, choro, tremores, dores de cabeça, indigestão ou cardiopatias) e outras, por meio de funções mentais (como pensamentos, fantasias, sonhos e neuroses). Em ambas, articuladas em diferentes formas e proporções, estão implicados processos biológicos, fisiológicos, comportamentais e psíquicos constituindo uma mesma e única economia psicossomática do indivíduo. Desde a concepção, durante a gestação, após nascimento e ao longo do desenvolvimento, observamos em cada pessoa movimentos e marcas de integração, organização e hierarquização de funções e vivências corporais, relacionais e psíquicas. Quando as pessoas enfrentam vivências perturbadoras de conflitos, frustrações, perdas (algumas vezes traumáticas), é possível constatar movimentos de sentido oposto, de desintegração, desorganização e precarização de funções e hierarquias estabelecidas. Esses movimentos se manifestam por meio da carência ou do empobrecimento de recursos representativos, relacionais e emocionais
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desenvolvidos ao longo da vida e revelam a continuidade evolutiva de diferentes dimensões da experiência de cada indivíduo, que se expressa, por vias somáticas, psíquicas e comportamentais, normais ou patológicas. A natureza, a qualidade, a consistência e a fluidez dos recursos da economia psicossomática estruturam-se ao longo da história de cada um, a partir de fatores constitucionais, por meio das interações com o ambiente e com os outros. Na infância e no puerpério, principalmente, a mãe e todo aquele que cuida da criança tem uma função primordial na mediação e promoção desses processos. O equilíbrio psicossomático é fruto da relação entre a qualidade, complexidade e consistência dos recursos desenvolvidos dezembro 2017
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especial – psicossomática psicanalítica pelo indivíduo ao longo de sua vida e a natureza e intensidade de experiências pessoais, sociais e orgânicas que podem perturbá-lo. Quando da existência de recursos mais organizados e complexos da economia psicossomática, de ordem representativa, afetiva e mental, a perturbação causada por uma vivência pode encontrar um equilíbrio por meio de manifestações psicopatológicas (neuroses, psicoses e outras). Quando os recursos mais organizados e evoluídos da economia psicossomática não foram suficientemente desenvolvidos ou quando se perdem em função da intensidade desorganizadora de uma experiência, um novo equilíbrio pode ser buscado, por meio de movimentos regressivos no sentido contraevolutivo do desenvolvimento, em patamares menos organizados e mais primitivos, por descargas pelo comportamento (transtornos alimentares, toxicomanias, descargas impulsivas e outros) ou no extremo, de desorganizações somáticas (dores, sintomas e doenças orgânicas, agudos ou crônicos). Apesar de capazes de colocar em risco a integridade funcional, anatômica e mesmo a vida da pessoa, é importante considerar que mesmo as formas mais desorganizadas e patológicas do fenômeno psicossomático são ainda tentativas de (re) equilibrar essa economia. Assim, é possível compreender e tratar o adoecimento, em suas diferentes formas de expressão – psíquica, somática ou comportamental –, como um processo multifatorial que resulta de uma combinação de fatores internos, externos, pessoais, ambientais, familiares, de movimentos de desorganização interna da economia psicossomática, potencialidades somáticas constituídas por eventuais fragilidades ou predisposições somáticas a doenças específicas, rebaixamento do tônus vital, falhas transitórias ou crônicas nas relações com objetos privilegiados investidos pelo indivíduo. Esses processos podem ser potencializados por experiências de vida perturbadoras e traumáticas, e também por mudanças próprias a diferentes fases da vida como na infância (nascimento de irmãos, mudanças de escola), adolescência (mudanças corporais e questões de identidade), na passagem para 22
a idade adulta (escolhas vocacionais, experiências profissionais, casamentos, separações e parentalidade), e o envelhecimento (mudanças corporais, aposentadoria, morte de pessoas próximas), perdas e outras situações que sobrecarregam os recursos da economia psicossomática.
DESAFIOS TERAPÊUTICOS A teoria e a clínica psicanalíticas há muito revelaram as articulações entre as funções corporais e mentais, bem como os desdobramentos patológicos das perturbações dessas articulações. Elas evidenciam diferentes aspectos das relações intrínsecas entre as bases anatômicas e fisiológicas do organismo e o funcionamento psíquico, destacando seu papel de mediador de experiências, processos e estímulos oriundos tanto do organismo como do mundo exterior. No corpo originam-se e se articulam os instintos, as pulsões, a sexualidade, a libido, as funções psíquicas, assim como as marcas e consequências do encontro do sujeito com o outro humano e com o mundo, configurando, assim, as dimensões metapsicológicas do aparelho psíquico, do narcisismo, das
Em certos casos, a descarga pulsional se dá diretamente pelas vias corporais, com pouca ou nenhuma elaboração mental da excitação, essas dinâmicas, distintas e mais primitivas que as dos mecanismos neuróticos, escapam ao recalcamento
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relações de objeto e da economia psicossomática. É também a partir da cena corporal que são vividas as experiências de prazer e desprazer, fundando e delineando a possibilidade de subversão e transcendência do corpo anatômico para as vivências do corpo erógeno, passível, em certas circunstâncias, de desorganizar funções fisiológicas e orgânicas. Apesar da riqueza dessas hipóteses referentes ao corpo, é curioso constatar que durante muito tempo prevaleceram na psicanálise as restrições inicialmente preconizadas por Freud para o tratamento de uma ampla gama de manifestações corporais. Por um lado, pautada pela perspectiva do recalcamento e dos mecanismos psíquicos de defesa, a clínica freudiana desenvolveu recursos importantes para o trabalho de elaboração dos sentidos simbólicos e representativos dos sintomas e seus derivados de uma ampla gama de manifestações psicopatológicas, no campo das psiconeuroses (histeria, neurose obsessivas, fobias), psicoses e perversões. Porém, ao mesmo tempo, Freud evidenciou as dificuldades e, mesmo, a impossibilidade da utilização da técnica psicanalítica, tal como a preconizava, no tra-
tamento das neuroses atuais (de angústia e traumática, neurastenia e hipocondria), bem como doenças orgânicas, nas quais a descarga pulsional se dá diretamente pelas vias corporais, com pouca ou nenhuma derivação ou elaboração mental da excitação, ou seja, dinâmicas “aquém do recalcamento”, distintas e mais primitivas que as dos mecanismos neuróticos. Os quadros derivados da neurose atual, descritos por Freud e ainda mais freqüentes na clínica contemporânea, são marcados pelo vazio, pelo desamparo, pela hiperadaptação à realidade, pela auto-depreciação, por comportamentos de risco e pela violência larvada ou explícita das anorexias, das adicções, das descargas impulsivas e da sintomatologia somática, entre outros. Eles são frequentemente refratários ao trabalho livre associativo e à atenção flutuante, dificilmente acessíveis ao trabalho de figuração, ao discurso e aos enquadres clássicos e regressivos de uma análise e de muitas psicoterapias. Nessas condições ficam também perturbadas, não apenas em processos analíticos, condições diagnósticas, condutas terapêuticas e a adesão aos tratamentos, dezembro 2017
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especial – psicossomática psicanalítica clínicos, farmacológicos e de outras ordens. As contribuições do psicanalista Sándor Ferenczi foram fundamentais para a superação desses impasses terapêuticos. Reconhecendo o potencial teórico e clínico da psicanálise para compreender as relações entre o corpo e o psiquismo, mesmo em suas formas não representativas, ele preconizou mudanças na postura, na forma de observação e de escuta do analista, e também modificações no dispositivo clínico para lidar com traumatismos e dimensões mais primitivas, pré-verbais e corporais, do funcionamento dos pacientes com manifestações das neuroses atuais e doenças orgânicas e com dinâmicas a elas assemelhadas. Ao mesmo tempo, ele convidou os médicos a perceberem a importância das vivências psíquicas e da história de vida de seus pacientes, a serem somados aos recursos da medicina para melhor compreendê-los e tratá-los. Muitos dos pioneiros da psicossomática, como Groddeck, Franz Alexander, Ballint foram inspirados por essas concepções. Graças a essa ampliação, e também ao interesse crescente da psicanálise pela compreensão do infantil, das primeiras vivências do bebê e suas relações com o ambiente, psicanalistas como D. Winnicott, P. Marty, L. Kreisler, Ch. Dejours, O. Kerneberg, J. McDougall, P. Fédida, A. Green, M. Aisenstein entre muitos outros, dedicaram-se à reflexão metapsicológica e ao desenvolvimento de recursos clínicos para o tratamento das manifestações primitivas e não representativas da linhagem das neuroses atuais, como transtornos alimentares, impulsivos, ansiosos, adicções e quadros borderlines. A partir de novas hipóteses e manejos clínicos, progressivamente consolidou-se a compreensão da plasticidade pulsional que permite vislumbrar e entender a continuidade funcional e as oscilações entre formas mais desorganizadas de manifestações da economia psicossomática (somáticos e comportamentais) e os quadros clássicos da psicopatologia (nos quais predominam expressões mentais). Fruto de diferentes níveis e formas de integração entre vivências corporais e o tecido psíquico, esses movimentos podem ser acompanhados nos processos terapêuticos 24
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por meio de suas manifestações transferenciais e contra-transferenciais. Em processos psicanalíticos ou psicoterapêuticos, é possível observar, entre diferentes pacientes e, ao longo do tempo, em um mesmo paciente, alterações da consistência, da intensidade e dos afetos transferenciais, moduladas pelo ritmo, conteúdo e coloração afetiva da associação livre, dos sonhos e de fantasias, reflexos das oscilações da economia psicossomática. As mudanças de padrões associativos, discursivos, afetivos e transferenciais são sinalizadores preciosos para identificar movimentos de organização e de desorganização dessa economia, indicando tanto avanços no trabalho terapêutico como alertando para riscos de descargas pelo comportamento e sintomatologia somática. As dinâmicas mais primitivas, aquém do recalcamento e da resistência neurótica manifestam-se pelo empobrecimento da trama transferencial e pelo retraimento libidinal, algumas vezes extremo, “aquém do narcisismo”, confrontando o terapeuta com descargas pulsionais diretas sem mediação representativa. Nessas condições o espaço terapêutico precisa se constituir como espaço de continência, depositário de experiências corporais, perceptivas, sensoriais e motoras mais primitivas, para permitir que, por meio da relação terapêutica, elas possam adquirir densidade representativa através de um trabalho ativo de figuração, passível de elaboração e de transformação. Por sua vez, a contratransferência é um importante recurso para a apreensão de vivências primitivas não representadas do paciente que, muitas vezes, mobilizam sensações corporais do terapeuta. Uma vez elaboradas pelo terapeuta e compartilhadas na relação, elas podem passar a ser representadas pelo paciente. Na trama transferencial, mediadas pela função materna do terapeuta e pelo holding , a elaboração dessas formas de comunicação mais primitivas podem propiciar a reorganização narcísica e objetal do paciente, promovendo os recursos de ligação entre as pulsões de vida e de morte, necessários para lidar com conflitos e vivências traumáticas, bem como para estancar e
reorganizar os movimentos desorganizadores da economia psicossomática. Apesar das diferenças de enquadre e de contexto, movimentos semelhantes podem ser observados em processos terapêuticos com outros profissionais de saúde. Nas formas mais graves e manifestas das desorganizações psicossomáticas, são naturalmente necessárias intervenções e terapêuticas específicas, médicas e de outras áreas. A ampliação da observação e da escuta do médico desses processos pode aumentar a eficácia de suas estratégias diagnósticas e terapêuticas. A complexidade de tais desorganizações convida a reconhecer, para além de técnicas específicas, a importância da relação terapêutica com o profissional como instrumento adicional para a reorganização e o fortalecimento dos recursos da economia psicossomática do paciente, com vistas a promover o equilíbrio dessa economia em patamares mais organizados, diminuindo o risco à integridade funcional do paciente. De forma semelhante, o trabalho terapêutico adjuvante em uma perspectiva interdisciplinar, com outras especialidades (fisioterapia, fonoaudiologia, nutrição, psicopedagogia, e outras, adequadas ao quadro do paciente) e atividades mediadoras complementares (artísticas, esportivas, sociais) podem também contribuir para tais objetivos. No contexto institucional, a compreensão dos movimentos da economia psicossomática é favorecida pela integração entre os diferentes profissionais que acompanham o paciente e pela atenção às transferências paralelas estabelecidas com cada um deles. O reconhecimento da equipe terapêutica como caixa de ressonância das vivências do paciente permite a identificação, a elaboração e a possível transformação dos processos de desorganização psicossomática. Todas essas experiências revelam que nos processos naturais da vida, do desenvolvimento, da saúde e da doença, a compreensão da plasticidade pulsional manifesta nas oscilações e diferentes expressões da economia psicossomática permite a ampliação dos horizontes não apenas clínicos, mas também educacionais, sociais e ambientais do humano.
PARA SABER MAIS
Psicanálise e psicossomática. Casos clínicos, construções. A. Soares et al. Escuta, 2015. Psicossoma V: Integração, desintegração e limites. R. M. Volich, W. Ranña e M.P. Labaki (orgs). Casa do Psicólogo, 2014. Psicossomática: de Hipócrates à psicanálise. R. M. Volich. Casa do Psicólogo, 2010. A criança e o adolescente: seu corpo, sua história e os eixos da constituição subjetiva. W. Ranña, em Psicossoma III: interfaces da psicossomática, Casa do Psicólogo, 2003. Psychopathologie e somatisation. R. Debray, em Psychopathologie de l´expérience du corps. Dunod, 2002. A psicossomática do adulto. P. Marty. Artes Médicas, 1994. As neuroses de órgão e seu tratamento. S. Ferenczi, em Psicanálise 3: Obras completas, vol. 3, págs. 377-382. Martins Fontes, 1991. A criança e seu corpo. L. Kreisler, M. Fain e M. Soulé. Zahar, 1981. Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica intitulada de “neurose da angústia”. S. Freud, em Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, vol. 3. Imago, 1976.
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A espiral que ajuda no diagnóstico precoce de
Parkinson Sintomas como tremor e enrijecimento muscular são captados quando paciente traça a figura em uma folha de papel sobre um tablet
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esenhar uma espiral: uma tarefa bastante fácil para a maioria dosadultos. Esse gesto simples, porém, pode revelar precocemente sintomas do Parkinson, uma doença neurodegenerativa que atinge em torno de 4 milhões de pessoas no mundo e, segundo estimativas da Organização Mundialda Saúde (OMS), esse númeropode dobraraté 2040. Estudo desenvolvidopor pesquisadores do Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, na Austrália, e publicado no periódico científico Frontiers of Neurology, mostra que é possível avaliar em que estágio a patologia se encontra com base na velocidade com que a pessoa faz os traços e a pressão que exerce sobre a superfície. Indícios importantes da doença, como tremores nas mãos e enrijecimento da musculatura – ainda que em fases iniciais – são captados 26
quando os pacientes desenham uma espiral em uma folha de papel sobre um tablet. O software foi desenvolvido pela equipe de cientistas australianos. A proposta era criar um sistema eletrônico para o diagnóstico precoce do Parkinson suficientemente acessível para ser utilizado por profissionais da área da saúde. Com esse objetivo, a nova tecnologia foi testada em 55 voluntários, 27 deles com a patologia. “Observamos que a lentidão do gesto e a força exercida sobre a caneta eram consideravelmente mais intensas entre as pessoas com o diagnóstico e essas características se tornavam mais evidentes entre aqueles em estado mais crítico”, afirmou o pesquisador Dinesh Kuman, principal autor do estudo. Segundo ele, em 93% dos casos foi possível detectar a doença com precisão.
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Cansaço e diminuição do olfato são sinais de alerta Enquanto a ciência não encontra a cura do Parkinson ou mesmo maneiras eficientes de evitar que a doença se instale, o diagnóstico precoce é uma das maiores armas para evitar efeitos indesejáveis da neuropatologia. A boa notícia é que os novos conhecimentos oferecem esperança de que, nos próximos anos, o desenvolvimento do quadro seja adiado. Hoje, em geral, são necessários cerca de dois anos para que o diagnóstico seja feito com certeza. Nessa fase, entretanto, mais da metade das células nervosas das regiões cerebrais afetadas já está atrofiada. Um método certeiro, mas dispendioso, para um diagnóstico precoce é a tomografia computadorizada de emissão (PET), através da qual os processos de troca de substâncias do corpo humano podem ser observados. Nesse caso, com o uso do medicamento L-Dopa, a atividade cerebral é marcada e acompanhada de forma radioativa, o que permite avaliar em que estágio de degeneração os neurônios se encontram. Em quase todos os casos, a doença pode ser diagnosticada antes de
surgirem os primeiros sintomas aparentes. Especialistas ressaltam a importância de que parentes e outras pessoas que convivem com idosos fiquem atentos, pois antes dos primeiros distúrbios de movimento, são comuns o aumento do cansaço, depressão ou crises repentinas de suor. Muitas vezes, nada acontece por muito tempo – podem se passar de nove a 12 anos até a doença se manifestar completamente. Mas, pouco a pouco, fica cada vez mais difícil lidar com objetos cujo manejo exige habilidade motora fina. Às dificuldades motoras somam-se problemas psíquicos: assim como os movimentos, os processos mentais ficam mais lentos. O fluxo de pensamentos se torna vagaroso, a fala soa arrastada e baixa. Cerca de um em cada dois pacientes é depressivo ou tem distúrbios de ansiedade; além disso, um em cada três sofre crises de demência. Distúrbios olfativos também costumam anteceder o surgimento completo da doença de Parkinson e podem ser, portanto, um primeiro sinal de alarme.
Atualmente, a patologia costuma ser detectada nos casos em que a pessoa apresenta um grau avançado do quadro, quando problemas neurológicos (em certos casos com aparecimento de comprometimento cognitivo), tremores e fraqueza muscular se tornam perceptíveis. Quanto mais cedo a doença for detectada, melhor é o tratamento. Se diagnosticada a tempo, a patologia pode ser bem controlada com medicamentos em seu estágio inicial. Em um tratamento ideal é possível atenuar os sintomas durante oito a 15 anos – e a expectativa de vida dos afetados permanece quase normal. No entanto, o diagnóstico dificilmente é feito em seu início, pois a doença começa com sintomas pouco específicos, como tensões
musculares em um dos ombros ou braços, o que faz as pessoas visitarem primeiro o ortopedista, e não o neurologista. Aparentemente, o diagnóstico pelo desenho da espiral tem várias vantagens. Uma delas é que se trata de um método de baixo custo, que não requer treinamento longo ou sofisticado para sua aplicação; em segundo lugar, oferece informações bastante fidedignas, além disso a pessoa recebe pouco depois a devolutiva e, diferentemente da escrita, o desenho da figura não é influenciado pelo grau de instrução do paciente. Embora os cientistas acreditem que esse seja um avanço para o diagnóstico precoce, é consenso que as pesquisas ainda precisam ser aprofundadas para que o uso do novo software seja difundido. dezembro 2017
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O GPS dentro da cabeça Saber onde estamos e para onde vamos é fundamental para sobreviver. Em geral não nos damos conta de que a habilidade de navegação requer do cérebro cálculos complexos, em frações de segundo. Apenas quando nos perdemos ou algo compromete esse mecanismo nos damos conta do quanto esse sistema é importante
por May-Britt Moser e Edvard I. Moser
OS AUTORES MAY-BRITT MOSER e EDVARD I. MOSER são professores de psicologia e neurociência na Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia, em Trondheim. Os dois são cofundadores do Instituto Kavli para Neurociência de Sistemas, em 2007, e do Centro para Computação Neural, em 2013, ambos localizados na universidade. Em 2014, eles compartilharam o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina com John O’Keefe, da University College London, por sua descoberta do sistema de posicionamento do cérebro. 28
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ossa capacidade de pilotar um carro ou avião, ou até caminhar pelas ruas de uma cidade, foi completamente transformada pela invenção do Sistema de Posicionamento Global (GPS). Mas como nos orientávamos antes do advento da tecnologia? Novos estudos mostram que o cérebro de mamíferos utiliza seu próprio sistema incrivelmente sofisticado de posicionamento, semelhante a um GPS, para nos nortear e conduzir de um lugar para outro. Assim como o mecanismo instalado em nossos celulares e carros, o sistema de nosso cérebro determina onde estamos e para onde estamos nos dirigindo integrando múltiplos sinais relacionados à nossa posição e à passagem do tempo. O cérebro normalmente faz esses cálculos com um mínimo de esforço, por isso quase não estamos cientes deles. Somente quando nos perdemos ou quando nossa destreza de navegação fica comprometida por uma lesão ou doença neurodegenerativa percebemos o quanto esse sistema de mapeamento e deslocamento é crucial para nossa existência. A capacidade de saber onde estamos e para onde precisamos ir é fundamental para a sobrevivência. Sem ela, nós, como todos os animais, seríamos incapazes de encontrar alimentos ou nos reproduzir. Pessoas, e, de fato, espécies inteiras pereceriam. dezembro 2017 • mentecérebro 29
neurociência A sofisticação do sistema de orientação de mamíferos se torna particularmente evidente quando comparada à de outros animais. O simples verme nematódeo Caenorhabditis elegans, que tem apenas 302 neurônios, navega quase exclusivamente em resposta a sinais olfativos, seguindo o caminho de um gradiente crescente ou decrescente de odor. Animais com sistemas nervosos mais sofisticados, como formigas do deserto ou abelhas melíferas, se orientam com a ajuda de estratégias adicionais. Um desses métodos é chamado integração por caminhos, um mecanismo similar a um GPS, em que neurônios calculam a posição de um animal com base em um monitoramento constante de sua direção e velocidade de movimento em relação a um ponto de partida, uma tarefa executada sem o auxílio de indicadores externos, como pontos de referência, ou marcos geográficos físicos. Em vertebrados, particularmente em mamíferos, o repertório de comportamentos que permitem a um animal se localizar em seu meio ambiente expandiu ainda mais. Mais do que qualquer outra classe de animais, mamíferos dependem da capacidade de formar mapas neurais do ambiente; padrões de atividade elétrica no cérebro em que grupos de células nervosas disparam de um jeito que reflete o layout, ou a disposição do ambiente circundante e a posição de um animal nele. Acredita-se que a formação desses mapas mentais ocorre principalmente no córtex, as enrugadas camadas superiores do cérebro que se desenvolveram bastante tarde no processo evolutivo. Ao longo das últimas décadas, pesquisadores adquiriram um profundo entendimento de como, exatamente, o cérebro elabora e depois revisa esses mapas à medida que um animal se move. As pesquisas mais recentes, conduzidas principalmente em roedores, revelaram que os sistemas de navegação consistem em vários tipos de células especializadas que calculam continuamente a localização de um animal, a distância que percorreu, a direção em que está se movendo e sua velocidade. Coletivamente essas diferentes células formam um 30
dinâmico mapa do espaço local que não opera somente no presente, mas também pode ser armazenado como uma memória para utilização posterior.
NEUROCIÊNCIA DE ESPAÇO O estudo dos mapas espaciais do cérebro começou com Edward C. Tolman, professor de psicologia na Universidade da Califórnia, em Berkeley, de 1918 a 1954. Antes de seu trabalho, experimentos laboratoriais em ratazanas domésticas pareciam sugerir que animais se movem e norteiam ao responderem a, e memorizarem, estímulos sucessivos ao longo do caminho que perfazem. Ao aprenderem a percorrer um labirinto, por exemplo, acreditava-se que elas se lembravam das viradas (mudanças de direção) que haviam feito desde seu ponto de partida até o final, ou saída do mesmo. Essa ideia, porém, não levou em conta a possibilidade de os animais talvez visualizarem uma “imagem” geral de todo o labirinto, o que lhes permitiria planejar o melhor caminho, ou percurso. Tolman contradisse radicalmente as opiniões prevalecentes. Ele tinha observado ratazanas tomarem atalhos ou fazerem desvios, comportamentos que não seriam esperados se elas tivessem aprendido apenas uma longa sequência de comportamentos. Baseado em suas observações, ele propôs que animais formam mapas mentais do ambiente, que espelham a geometria espacial do mundo exterior. Esses mapas cognitivos faziam mais do que apenas ajudá-los a encontrar o caminho; eles também pareciam registrar informações sobre acontecimentos pelos quais haviam passado em lugares, ou pontos específicos. As ideias de Tolman, propostas originalmente por volta de 1930, permaneceram controversas durante décadas. Sua aceitação ocorreu lentamente, em parte porque elas eram baseadas inteiramente na observação do comportamento de animais experimentais, que podia ser interpretado de várias maneiras. Tolman não dispunha dos conceitos ou das ferramentas para testar se um mapa interno do ambiente de fato existia no cérebro de um animal.
Levou cerca de 40 anos para que surgisse uma evidência direta de um mapa desses em estudos de atividade neural. Na década de 1950, o progresso no desenvolvimento de microeletrodos possibilitou monitorar a atividade elétrica de neurônios individuais em animais despertos. Esses eletrodos extremamente delgados permitiram que pesquisadores identificassem o disparo de neurônios isolados, individuais, à medida que os animais se comportavam como de costume. Uma célula “dispara” quando ativa um potencial de ação, uma breve e passageira mudança na voltagem da membrana celular neuronal. Potenciais de ação fazem neurônios liberar moléculas neurotransmissoras que transmitem sinais de um neurônio a outro. John O’Keefe, da Universidade College London (UCL), no Reino Unidos, usou microeletrodos em ratazanas domésticas para monitorar potenciais de ação em seus hipocampos, uma área do cérebro conhecida há décadas por sua importância para funções de memória. Em 1971, ele relatou que células neuronais ali disparavam quando um animal em uma caixa, ou cercado, passava algum tempo em um determinado local; por essa razão, ele as chamou “células de localização” ( place cells, em inglês), também conhecidas como “células de posicionamento”. O’Keefe observou que diferentes células de localização disparavam em pontos, ou lugares distintos no cercado e que o padrão de disparo das células coletivamente formava um mapa de locais do interior da caixa. A atividade combinada de diversas células de posicionamento podia ser “lida” dos eletrodos para identificar a localização exata do animal a qualquer momento. Em 1978, O’Keefe e seu colega Lynn Nadel, agora na Universidade do Arizona, sugeriram que células de localização eram, de fato, uma parte integrante do mapa cognitivo imaginado por Tolman.
UM MAPA CORTICAL A descoberta de células de posicionamento abriu uma janela para as partes mais profundas do córtex, nas áreas mais distantes dos córtices sensoriais (que recebem inputs, ou
AS INCRÍVEIS CAPACIDADES DE POSICIONAMENTO DO SISTEMA NERVOSO A sobrevivência, para qualquer espécie, requer uma capacidade de levar em conta o meio ambiente circundante e fazer um cálculo, mesmo que bruto, de onde um animal esteve, onde está e para aonde está indo. Em níveis mais altos da cadeia evolutiva, muitas espécies desenvolveram sistemas de “integração de caminhos” que lhes permitem executar essa tarefa sem a necessidade de identificar onde estão ao se nortearem por pontos de referência físicos externos. Mamíferos encontraram uma solução ainda mais requintada, que utiliza mapas mentais interiorizados. RASTREANDO UM ODOR
Nematódeo Simples
Inseto
Gradiente de odor
Caminho de partida
O simples verme nematódeo Caenorhabditis elegans talvez exiba o mais básico e rudimentar sistema de navegação animal. Seu mundo é organizado de acordo com cheiros. Equipado com apenas 302 neurônios, ele se empurra diretamente para frente, rumo a uma fonte de alimento, ao “sentir”, ou detectar níveis crescentes de um odor. GPS INTERNO
Caminho de volta
Mamífero
Complexo
Caminho inicial
Caminho futuro
A evolução equipou até alguns insetos e outros artrópodes com elaboradas capacidades de integração por caminhos. Eles são capazes de monitorar internamente sua velocidade e direção em relação a um ponto de partida. Isso lhes permite encontrar meios mais eficientes para percorrer uma determinada rota, como um caminho de volta direto, em vez dos ziguezagues feitos em um percurso de ida, ou ponto de partida. MAPAS MENTAIS
Mamíferos evoluíram habilidades de orientação ainda mais complexas e intricadas, em que neurônios em seus cérebros disparam em sequências que espelham as rotas que perfazem. Essas redes neuronais compõem mapas mentais do mundo físico. Animais armazenam memórias de viagens passadas e as usam para planejar jornadas futuras. dezembro 2017 • mentecérebro
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estímulos, informações dos sentidos) e do córtex motor (que emite os sinais que iniciam ou controlam movimentos). No final da década de 1960, quando O’Keefe começou seu trabalho, o conhecimento sobre quando neurônios se ligavam e desligavam era restrito, em grande parte, a áreas chamadas córtices sensoriais primários, onde a atividade neural é controlada diretamente por estímulos sensoriais ( inputs) como luz, som e tato (toque). Neurocientistas daquela época especulavam que o hipocampo estava localizado longe demais dos órgãos sensoriais para processar suas informações de qualquer maneira que pudesse ser facilmente entendida a partir de um registro de microeletrodos. A descoberta da existência de células no hipocampo que criavam um mapa do meio ambiente imediato de um animal acabou com essa suposição. Embora isso fosse notável e sugerisse um papel para as células de localização na navegação (orientação), durante décadas depois de sua descoberta ninguém soube dizer que função poderia ser essa. As células de posicionamento se localizavam em uma área chamada CA1 e esse era o ponto final em uma cadeia de sinalização que se originava em algum outro lugar do hipocampo. Foi teorizado que elas recebiam muitos dos cálculos, ou registros fundamentais para a navegação de outras regiões do hipocampo. No início dos anos 2000, nós dois decidimos explorar essa ideia mais a fundo no novo laboratório que tínhamos montado na Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia (NTNU), em Trondheim. Esse empreendimento acabou levando a uma importante descoberta. Em colaboração com Menno Witter, agora em nosso instituto, e um grupo de estudantes altamente criativos, começamos nosso estudo ao usarmos microeletrodos para monitorar a atividade de células de localização no hipocampo de ratazanas domésticas, depois de termos interrompido (bloqueado) parte de um circuito neuronal que já se sabia que repassava informações para essas células. Esperávamos que o trabalho confirmasse que esse circuito era importante 32
para o bom funcionamento das células de posicionamento. Mas, para nossa surpresa, os neurônios no fim desse circuito, em CA1, continuaram disparando mesmo quando os animais chegavam a locais específicos. A inevitável conclusão de nossa equipe foi que células de localização não dependem desse circuito no hipocampo para avaliar, ou estimar a direção/posição de um animal. Nossa atenção então se voltou para o único caminho neural que havia sido poupado em nossa intervenção: as conexões diretas do córtex entorrinal, uma área adjacente que oferece uma interface para o resto do córtex, para CA1. Ainda em colaboração com Witter, inserimos microeletrodos no córtex entorrinal dos animais e começamos a registrar sua atividade enquanto eles desempenhavam tarefas semelhantes às que havíamos empregado em nossos estudos de células de posicionamento. Conduzimos os eletrodos para uma área do córtex entorrinal que tem conexões diretas com as partes do hipocampo onde haviam sido registradas células de localização em quase todos os estudos anteriores ao nosso. Constatamos que muitas células no córtex entorrinal disparavam quando um animal estava em um determinado ponto, ou lugar do cercado, de um jeito bem parecido com o das células de localização no hipocampo. Mas, ao contrário de uma célula de posicionamento, uma única célula no córtex entorrinal disparava e não apenas em um determinado local visitado por um roedor, mas em muitos. A propriedade mais notável dessas células, porém, foi o jeito como elas disparavam. Seu padrão de atividade só se tornou óbvio para nós quando, em 2005, ampliamos as dimensões do cercado em que estávamos fazendo os registros. Depois de expandi-lo até um determinado tamanho, constatamos que os múltiplos locais em que uma célula entorrinal disparava formavam os vértices de um hexágono. Em cada um desses pontos, a célula, que chamamos uma “célula de grade” (grid cell , em inglês), disparava quando o animal passava por cima dele. Os hexágonos, que cobriam todo o cercado, pareciam formar as unidades indivi-
COMO O CÉREBRO SE POSICIONA A ideia de que os cérebros de mamíferos criam um mapa mental que espelha a geometria espacial do mundo exterior surgiu por volta de 1930. Posteriormente, neurocientistas identificaram células que trabalham em conjunto para elaborar esses mapas. Um avanço fundamental ocorreu em 1971, quando um pesquisador americano-britânico [John O’Keefe] descobriu que “células de localização” no hipocampo de ratazanas domésticas disparavam em locais específicos do caminho casual, errático, percorrido por um animal. Em 2005, os autores [May-Britt Moser e Edvard I. Moser] descobriram “células de grade”, que permitem a um animal “avaliar” sua localização no meio ambiente em que se encontra; por exemplo, em relação às paredes de um cercado. À medida que ele se move por ali, cada célula de grade dispara em diversos pontos, ou locais que correspondem aos vértices de um hexágono.
Localização das células de posicionamento (hipocampo) Locais que provocam o disparo de células de posicionamento
Localização das células de grade (córtex entorrinal)
Locais que provocam o disparo de células de grade
SURGIMENTO DE UM MAPA COGNITIVO
O disparo de células de grade produz um mapa (à direita) semelhante a uma carta geográfica (extrema direita). Em conjunto com as células de localização ou posicionamento, que identificam a localização do animal em um determinado ambiente, as células de grade permitem que ele construa uma imagem mental de seus arredores.
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Humanos e outros mamíferos criam mapas internos do meio ambiente; padrões de atividade neural em que células cerebrais disparam para refletir onde um animal se encontra e onde está posicionado em relação ao meio que o cerca. duais de uma grade, como os quadrados formados pelas linhas de coordenadas em um mapa rodoviário. O padrão de disparos levantou a possibilidade de que células de grade, ao contrário de células de localização, fornecem informações sobre distância e direção, ajudando um animal a monitorar sua trajetória com base em “instruções” internas dos movimentos do corpo, sem depender de inputs, ou informações adicionais do meio (ambiente). Vários aspectos da grade também mudaram à medida que examinamos a atividade celular em regiões distintas do córtex entorrinal. Na parte dorsal, perto do topo dessa estrutura, as células geravam uma grade do cercado que consistia de hexágonos muito próximos, pouco espaçados. O tamanho dos hexágonos aumentava em uma série de sequências, ou módulos, à medida que fomos descendo rumo à parte inferior, ou ventral, do córtex entorrinal. Os elementos hexagonais da grade em cada módulo tinham um espaçamento único e singular. O espaçamento das células de grade em cada módulo sucessivo em direção descendente podia ser determinado ao se multiplicar a distância entre as células no módulo anterior por um fator de cerca de 1,4, aproximadamente a raiz quadrada de 2. No módulo na parte superior do córtex entorrinal, uma ratazana doméstica que ativasse uma célula de grade em um vértice de um hexágono teria de se locomover de 30 a 35 centímetros para chegar a um vértice adjacente. No módulo descendente seguinte, o animal precisaria andar de 42 a 49 centímetros, e assim por diante. No módulo mais baixo, a distância chegava a vários metros de extensão. 34
Ficamos extremamente empolgados com as células de grade e sua disposição tão organizada. Na maioria das regiões do córtex, os neurônios têm padrões de disparo que parecem caóticos e inacessíveis, mas aqui, em seu interior profundo, havia um sistema de células que disparavam em um padrão previsível e ordenado. Estávamos ansiosos para investigar. Mas essas células e as células de localização ou posicionamento não eram as únicas envolvidas no mapeamento do mundo de mamíferos; outras surpresas também nos aguardavam. Em meados da década de 1980 e no início dos anos 90, James B. Ranck do Centro Médico Downstate da Universidade Estadual de Nova York (SUNY) e Jeffrey S. Taube, agora na Dartmouth College, em Hanover, New Hampshire, haviam descrito células que disparavam quando um roedor virava a cabeça para uma direção específica. Ranck e Taube tinham descoberto essas chamadas “células de direção da cabeça” ( head-direction cells ou HD, em inglês) no presubículo, outra região do córtex adjacente ao hipocampo. Nossos estudos constataram que essas células também estavam presentes no córtex entorrinal, misturadas em meio às células de grade. Muitas células HD no córtex entorrinal também funcionavam como células de grade: os pontos, ou lugares no cercado em que disparavam também formavam uma grade, mas elas só ficavam ativas nesses locais quando o animal estava voltado para uma determinada direção. Essas células pareciam fornecer uma bússola para o roedor; ao monitorá-las podíamos determinar para qual direção o animal estava voltado a qualquer dado momento em relação ao seu ambiente circundante. Alguns anos mais tarde, em 2008, descobrimos outro tipo de célula no córtex entorrinal. Essas chamadas “células limítrofes” (border cells, em inglês) disparavam sempre que o animal se aproximava de uma parede ou margem do cercado, ou de alguma outra divisória. Elas pareciam calcular a distância a que o animal se encontrava de um limite, ou linha fronteiriça. Essa informação então podia ser usada pelas células de grade para calcular o quanto o animal tinha se afastado
da parede, e também podia ser estabelecida como um ponto de referência para, posteriormente, “lembrar” o roedor de onde ficava a parede; ou seja, sua localização. Por fim, em 2015, um quarto tipo de célula entrou em cena. Esta respondia especificamente à velocidade de locomoção, independentemente da localização ou direção do animal. As taxas de disparos desses neurônios aumentavam proporcionalmente à velocidade de movimentação. De fato, podíamos determinar com que rapidez um animal se movia a qualquer dado momento ao olharmos para as taxas de disparo de apenas algumas poucas células de velocidade (speed cells, em inglês). Em conjunto com células de direção da cabeça (HD), células de velocidade talvez desempenhem o papel de fornecer às células de grade continuamente informações atualizadas sobre os movimentos do animal; sua velocidade, direção e distância de seu ponto de partida. DECIFRANDO CÓDIGOS
Nossa descoberta de células de grade resultou de nosso desejo de desvendar os inputs que permitem às células de localização, ou posicionamento fornecer aos mamíferos uma imagem interna de seu ambiente. Agora entendemos que elas integram os sinais de vários tipos de células no córtex entorrinal à medida que o cérebro tenta “mapear” a rota percorrida por um animal e para onde este está indo em seu ambiente. Porém nem esses processos contam toda a história de como os mamíferos navegam. Nosso trabalho inicial se concentrou no córtex entorrinal medial (interior). Células de localização, ou osicionamento também podem receber sinais do córtex entorrinal lateral, que retransmite informação ( input) processada de diversos sistemas sensoriais, inclusive sobre odor e identidade de objetos. Ao integrarem as informações das partes medial e lateral do córtex entorrinal, células de localização interpretam sinais de todo o cérebro. A complexa interação de mensagens que chegam ao hipocampo e a formação de memórias específicas de posicionamento que isso possibilita são questões que ainda estão sendo investigadas por nosso e
outros laboratórios, e essa pesquisas sem dúvida ainda continuará por muitos anos. Um jeito de começar a entender como os mapas espaciais do córtex entorrinal medial e do hipocampo se combinam para auxiliar a navegação é perguntar como os mapas diferem. Na década de 1980, John Kubie e o falecido Robert U. Muller, ambos então no Centro Médico Downtown da SUNY, mostraram que mapas no hipocampo formados por células de localização podem mudar inteiramente quando um animal migra para um novo ambiente, mesmo que seja para um cercado de cor diferente no mesmo local e no mesmo recinto. Experimentos realizados em nosso próprio laboratório, em que ratazanas domésticas forrageiam em até 11 cercados em diversos recintos diferentes, mostraram que cada sala, de fato, rapidamente origina seu próprio mapa independente, sustentando ainda mais a noção de que o hipocampo forma mapas espaciais customizados, ajustados a ambientes específicos. Comparativamente, os mapas no córtex entorrinal medial são universais. Células de grade, assim como células HD e limítrofes, que disparam juntas em um determinado conjunto de localizações no mapa de grade para um ambiente também disparam em posições análogas no mapa para outro meio, como se as linhas de latitude e longitude do primeiro mapa fossem “impostas”, ou sobrepostas à nova configuração. A sequência de células que disparam quando o animal se move em direção nordeste em um espaço da gaiola se repete quando o roedor caminha nessa mesma direção em outro recinto. O que o cérebro usa para navegar por seus arredores é o padrão de sinalização entre essas células no córtex entorrinal. Esses códigos são então transmitidos do córtex entorrinal ao hipocampo, onde são utilizados para formar mapas específicos de, ou para um determinado lugar. Do ponto de vista da evolução, dois conjuntos de mapas que integram suas informações para nortear animais parecem ser uma solução eficaz para um sistema utilizado por eles para a navegação espacial. As grades formadas no córtex entorrinal medial, que medem disdezembro 2017
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neurociência
DENTRO DO GPS CEREBRAL O sistema de navegação neural do cérebro humano reside no interior profundo de uma região conhecida como o lobo temporal medial. Duas áreas dessa região — o córtex entorrinal e o hipocampo — agem como componentes fundamentais do GPS cerebral. Redes de determinadas células especializadas no córtex entorrinal contribuem para a complexidade do sistema de posicionamento/localização do cérebro de mamíferos.
Hipocampo (localização das células de posicionamento)
CA3
Córtex entorrinal (localização das células de grade)
Hipocampo (verde)
ENVIANDO MENSAGENS AO HIPOCAMPO
Corte transversal da região hipocampal
O córtex entorrinal transmite informações das células de grade sobre direção e distância percorrida. Ele faz isso ao enviar sinais ao longo de vários caminhos para sub-regiões do hipocampo (o giro denteado, CA3 e CA1) que produzem um mapa mental otimizado para planejar futuras jornadas (inserção).
Córtex entorrinal ( amarelo)
UM EXAME MINUCIOSO DA ORGANIZAÇÃO DAS CÉLULAS DE GRADE…
Escala ampliada
... revela que o espaçamento dos elementos hexagonais que ajudam na criação de um mapa espacial muda quando estes se deslocam de cima para baixo no córtex entorrinal. Os intervalos mais largos correspondem a distâncias maiores que a ratazana doméstica tem de percorrer para ativar um vértice na grade. Na parte superior do córtex entorrinal, um animal que ativa uma célula de grade em um vértice de um hexágono terá de se locomover de 30 a 35 centímetros para um vértice adjacente. Já na parte inferior, ele terá de percorrer até vários metros.
OUTRAS CÉLULAS ESPECIALIZADAS DESCOBERTAS RECENTEMENTE… ... no córtex entorrinal de roedores transmitem informações ao hipocampo sobre a orientação da cabeça de um animal, sua velocidade de movimento, e a distância até paredes e outros obstáculos detectados. O output, ou as informações produzidas por essas células é combinado (somado) para ajudar a criar um mapa composto dos arredores do animal.
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Orientação
Velocidade
Reconhecimento de limites/obstáculos
tância e direção, não mudam de um recinto para outro. Comparativamente, as células de posicionamento do hipocampo formam mapas individuais para cada recinto separado.
MAPAS LOCAIS Compreender o sistema navegacional neural ainda é um esforço em andamento. Quase todo nosso conhecimento de células de posicionamento ou localização e grade foi obtido em experimentos nos quais a atividade elétrica de neurônios é registrada quando ratazanas domésticas ou camundongos caminham sem rumo, aleatoriamente, em ambientes altamente artificiais; ou seja, caixas (ou cercados) com fundo plano, desprovidas de estruturas internas para servir como pontos de referência. Um laboratório difere substancialmente de ambientes naturais, que mudam constantemente e estão cheios de objetos tridimensionais. O reducionismo dos estudos levanta questões sobre se as células de localização e de grade disparam do mesmo jeito quando animais estão fora do laboratório. Experimentos em labirintos complexos, que tentam imitar o habitat natural dos animais, fornecem algumas pistas do que pode estar acontecendo. Em 2009, monitoramos células de grade enquanto os roedores se moviam por um labirinto intrincado, em que encontraram uma curva (virada) muito fechada no final de cada caminho que marcava o início da próxima passagem. O estudo mostrou que, como esperado, as células de grade formavam padrões de hexágonos para mapear distâncias em caminhos individuais do labirinto para as ratazanas. Mas toda vez que um animal virava de uma passagem para outra ocorria uma transição abrupta, em que um padrão de grade separado era sobreposto ao novo caminho, quase como se a ratazana estivesse entrando em um recinto completamente diferente. Trabalhos posteriores em nosso laboratório mostraram que mapas de grade também se fragmentam em mapas menores em ambientes abertos quando esses espaços são suficientemente amplos. Agora estamos pesquisando como esses mapas menores se fundem para formar um mapa integrado de
Ao contrário do que se acredita, cerca de oito em cada dez usuários de crack são pessoas com família, trabalham, são produtivas e fazem uso recreativo da droga, o que obviamente não significa que o risco seja baixo
uma determinada área. Porém mesmo esses experimentos são simplificados demais, porque os cercados são planos e horizontais. Experimentos conduzidos em outros laboratórios, para observar morcegos voando e roedores que escalam obstáculos em gaiolas, estão começando a fornecer algumas pistas: células HD e de localização parecem disparar em locais específicos espalhados por qualquer espaço tridimensional, e as células de grade muito provavelmente fazem o mesmo.
ESPAÇO E MEMÓRIA O sistema de navegação no hipocampo faz mais do que ajudar animais a se moverem do ponto A ao ponto B. Além de receber informações sobre posição, distância e direção do córtex entorrinal medial, o hipocampo faz um registro do que está localizado em um lugar em particular, seja um carro ou um mastro de bandeira, assim como dos eventos que ocorrem ali. Portanto, o mapa espacial criado pelas células de posicionamento não contém apenas informações sobre a localização de um animal, mas também detalha suas experiências, mais ou menos como a concepção que Tolman tinha de um mapa cognitivo. Algumas dessas informações adicionadas parecem vir de neurônios localizados na parte lateral do córtex entorrinal. Pormenores sobre objetos e eventos se fundem com as coordenadas de um animal e são “arquivadas” como uma memória. Quando esta é recuperada posteriormente, tanto o evento como a posição são relembrados. dezembro 2017 • mentecérebro
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PARA SABER MAIS
Grid cells and the entorhinal map of space. Edvard I. Moser. Palestra Nobel, 7 de dezembro de 2014. www.nobelprize.org/ nobel_prizes/medicine/ laureates/2014/edvardmoser-lecture.html Grid cells, place cells and memory. May-Britt Moser. Palestra Nobel, 7 de dezembro de 2014. www.nobelprize.org/ nobel_prizes/medicine/ laureates/2014/may-brittmoser-lecture.html Grid cells and cortical representation. Edvard I. Moser et al. em Nature Reviews Neuroscience , vol. 15, nº 7, págs 466–481; julho de 2014.
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Essa associação de lugar e memória lembra uma estratégia de memorização inventada pelos antigos gregos e romanos. O chamado “método de loci” ( loci é o plural de locus e significa lugar em latim) permite que uma pessoa memorize uma lista de itens ao imaginar colocar cada um deles em um determinado lugar/posição ao longo de um caminho bem conhecido através de um espaço, digamos, uma paisagem ou um edifício; uma disposição muitas vezes chamada “palácio da memória”. Participantes de concursos de memória ainda utilizam essa técnica mnemônica para memorizar longas listas de números, letras ou cartas de baralho. Infelizmente, o córtex entorrinal está entre as primeiras áreas a falhar em pessoas com doença de Alzheimer. A enfermidade faz com que células cerebrais localizadas ali morram, e uma redução em seu tamanho é considerada uma medida confiável para identificar pessoas que estão em risco de desenvolvê-la. A tendência de vaguear e se perder também está entre os primeiros sinais da doença. Nos estágios mais avançados de Alzheimer, células morrem no hipocampo, produzindo uma incapacidade de recordar experiências ou de se lembrar de conceitos como nomes de cores. De fato, um estudo recente forneceu evidências de que pessoas jovens portadores de um gene que os coloca em elevado risco de Alzheimer podem ter deficiências no funcionamento de suas redes de células de grade; uma descoberta que pode levar a novas maneiras de diagnosticar a doença. UM RICO REPERTÓRIO
Hoje, mais de 80 anos depois de Tolman propor originalmente a existência de um mapa mental de nossos entornos, está claro que as células de posicionamento, ou localização são apenas um componente de uma complexa representação que o cérebro produz de seu ambiente espacial para calcular posição, distância, velocidade e direção. Os diversos tipos de células que foram encontradas no sistema navegacional do cérebro de roedores também estão presentes em morcegos, macacos e humanos. Sua existência em todas as ordens taxonômicas de
mamíferos sugere que células de grade e outras células envolvidas em navegação, orientação espacial, surgiram cedo no processo evolutivo de mamíferos e que algoritmos neurais similares são utilizados para calcular o posicionamento pelas mais diversas espécies. Muitos dos blocos de construção do mapa de Tolman foram descobertos, e estamos começando a entender como o cérebro os cria, posiciona e emprega. O sistema de representação espacial tornou-se um dos circuitos mais bem entendidos do córtex de mamíferos, e os algoritmos que ele utiliza estão começando a ser identificados para ajudar a desvendar os códigos neurais que o cérebro usa para navegar, ou determinar localização. Como ocorre em tantas outras áreas de pesquisa, novas descobertas levantam novas questões. Sabemos que o cérebro tem um mapa interno, mas ainda precisamos entender melhor como seus elementos funcionam em conjunto para produzir uma representação coerente de posicionamento e como a informação é lida por outros sistemas cerebrais para tomar decisões sobre aonde ir e como chegar lá. Há muitas outras questões. A rede espacial do hipocampo e do córtex entorrinal está limitada à navegação de espaços locais? Em roedores, examinamos áreas que têm raios de apenas alguns metros. Células de localização e de grade também são utilizadas para a navegação de longa distância, como quando morcegos migram centenas ou milhares de quilômetros? Por fim, nos perguntamos como células de grade se originam, se existe um período formativo crítico para elas no desenvolvimento de um animal e se células de posicionamento e de grade podem ser encontradas em outros vertebrados ou invertebrados. Se invertebrados também as utilizam, essa constatação implicaria que a evolução usou esse sistema de mapeamento espacial durante centenas de milhões de anos. O GPS do cérebro continuará oferecendo uma rica e valiosa coleção de pistas para novas pesquisas que ocuparão gerações de cientistas nas próximas décadas.
livros | lançamentos GRAVIDEZ
Um estado interessante
Gravidez. Joan Raphael-Leff.
Blucher, 2017. 328 págs. R$ 82,00
Um minúsculo óvulo fertilizado tem uma influência de longo alcance no psiquismo da mulher, capaz de acessar poderosas imagens inconscientes. “Na gravidez existem dois corpos, um dentro do outro, duas pessoas viverem sob a mesma pele – uma estranha união que retoma a própria gestação da mulher grávida, no útero de sua mãe, muitos anos antes”, escreve a doutora em psicologia social e psicanalista Joan Raphael-Leff, autora do livro Gravidez, lançado pela Blucher. De todas as experiências humanas, o ato de gerar um bebê dentro do próprio corpo é a que mais enfatiza as diferenças básicas de gênero. A obra traz um olhar delicado e inusitado sobre essa fase da vida: em vez de tomar como ponto de interesse principal o desenvolvimento psicológico, a autora foca a experiência da mãe “como pessoa inteira”, antes da criança. Esse olhar não é comum, visto que na maioria das vezes, quando o tema da gestação é abordado na literatura psicanalítica, a mãe é olhada como objeto de necessidade da criança. De forma instigante, Raphael-Leff vai por outro caminho, partindo da ideia psíquica da concepção, das repercussões subjetivas e as implicações externas da gravidez. A autora opta por não traçar uma narrativa linear, considerando que figuras parentais são também filhas e filhos – e é o reconhecimento desse lugar psíquico que nos permite cuidar de um bebê. Ela ressalta, ainda na introdução, que hábitos relativos à gravidez revelam crenças e prioridades básicas de uma sociedade, bem como a relação que temos com nossos corpos, crenças, fantasias e desejos. Gravidez discute ainda temas como o lugar do pai, o nascimento e as terapias tanto no pré-natal quanto nos primeiros tempos após o parto.
Meditação para crianças
o ã ç a g l u v i
d : s n e g a m i
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Acalmar a própria mente faz bem, não importa a idade. Para crianças, tem a vantagem que desde cedo proporciona uma série de recursos úteis para toda a vida. “É um ganho de tempo ensinar as crianças a meditar”, diz a educadora americana Susan Kaiser Greenland, uma das pioneiras na prática da meditação com criança no Ocidente. Além de ser uma ferramenta comprovadamente útil no desenvolvimento da concentração e de habilidades emocionais como percepção dos próprios sentimentos e capacidade de não se deixar levar por eles e empatia, atenção e inteligência emocional são ferramentas necessárias para uma rotina proveitosa e para lidar com situações de nervosismo. O recém-lançado Mindfulness para crianças: estratégias de terapia cognitiva baseada em mindfulness oferece informações para que pais, psicólogos educadores, médicos e outros profissionais da área da saúde possam ajudar os pequenos a perceber os próprios pensamentos, sentimentos e como seu corpo reage. O autor, Vitor Friary, diretor Clínico do Centro de Mindfulness, no Rio de Janeiro e coordenador do curso de pós-graduação em terapia cognitiva baseada em mindfulness (MBCT) na
Universidade Candido Mendes, apresenta estratégias para que as crianças possam enfrentar situações difíceis, emoções intensas, pensamentos e sensações angustiantes de forma menos assustadora. O livro é dividido em cinco partes: a primeira explica o que é o mindfulness (ou atenção plena) e como utilizar as técnicas com os pequenos; a segunda traz exercícios e meditações para diferentes situações; a terceira parte apresenta orientações e exercícios para serem praticados entre pais e filhos. A quarta parte é direcionada a profissionais da saúde, trazendo informações para o contexto terapêutico e a última propõe um programa de oito sessões de MBCT para adultos por meio de exercícios estruturados. A obra acompanha um CD com exercícios em áudio para melhor aproveitamento da prática. “O objetivo principal é oferecer técnicas acessíveis, que tragam bons frutos na vida adulta, inspirando desde cedo uma conexão mais amorosa consigo mesmo e com o mundo”, afirma Friary, que é mestre pela Universidade de Londres. Mindfulness para crianças: estratégias de terapia cognitiva baseada em mindfulness. Vitor Friary.
Sinopsys Editora, 2017. 160 págs. R$ 55,00
livro | resenha Por que Freud hoje? Daniel Kupermann (coord.). Maria Rita Khel, Joel Birman, Vladimir Safatle, Gláucia Leal e outros. Zagodoni, 2017. 294 págs. R$ 69,00
Freud? Hoje e amanhã também Time de 14 psicanalistas propõe reflexões sobre questões éticas, políticas, culturais, sociais e clínicas que permeiam a obra freudiana
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urante a preparação do recém-lançado Por que Freud hoje?, o editor Adriano Zagodoni insistiu com o professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) Daniel Kupermann, coordenador do livro, que encontrasse na obra freudiana uma frase significativa, condizente com o teor do projeto, uma epígrafe, que traduzisse a inegável importância do autor, mais de um século depois de o criador da psicanálise ter começado a apresentar ao mundo suas teorias. Ambos psicanalistas, Zagodoni e Kupermann sabiam que não seria tarefa fácil. Mas a tarefa foi cumprida com êxito. Entre tantas palavras significativas, foram escolhidos os dizeres de Freud: “Compreendi que daquele momento em diante eu passara a fazer parte do grupo daqueles que ‘perturbam o sono do mundo’ (...) e que não poderia contar com objetividade e tolerância”. De fato, uma coisa é certa: pode-se gostar ou não das proposições de Sigmund Freud, é aceitável discordar delas, criticá-las ou mesmo repudiá-las, mas é impossível negar seu papel na construção da subjetividade contemporânea e ou mesmo ignorar os desdobramentos que a teoria evoca. Convém considerar que mais de um século após a publicação dos primeiros textos de Freud, seus conceitos foram interpretados, questionados, debatidos, ampliados, contestados, criticados, repudiados – e nem sempre compreendidos. E, ainda assim, se alastraram. Até aqueles que jamais leram um parágrafo sequer de algum de seus textos estão de alguma maneira próximos ao universo do neurologista vienense, o que pode ser facilmente compreendido, se considerarmos que inúmeros pensadores partiram das construções freudianas para propor formas de com-
preender as dinâmicas psíquicas e a cadeia de relações estabelecida tanto de forma subjetiva quanto intersubjetiva. Mas, afinal, as ideias de Freud ainda têm respaldo para ser levadas em consideração? Devem ser estudadas, consideradas? Existe espaço nos dias de hoje para o método terapêutico embasado pela teoria freudiana? Essas são algumas das perguntas que os 14 artigos de Por que Freud hoje? se empenham, se não em responder, ao menos em propor reflexões bastante interessantes a respeito. Entre os autores estão alguns dos mais reconhecidos pensadores da psicanálise hoje. Além de Kupermann, escrevem: Maria Rita Kehl, Christian Dunker, Joel Birman, Vladimir Safatle, Gláucia Leal, Nelson Coelho Júnior, Pedro de Santi, Sidarta Ribeiro (o único neurocientista do grupo), Mário Eduardo Pereira, Maria Lívia Moretto, Tania Rivera, Leandro de Lajoquière e Renato Mezan. Parte da coleção Grandes Psicanalistas, a obra é muito mais que uma “ode a Freud”. Trata-se de uma tentativa de discutir a marca do autor em áreas como a neurociência a filosofia, a literatura e tantos outros campos da cultura. “O resultado é um livro utilíssimo para uma ampla gama de leitores: há textos que, ao construir sua resposta à indagação do título, oferecem ótimas respostas a diversos tópicos do corpus freudiano, e portanto interessarão a quem se inicia nele, enquanto outros, mais densos, se dirigem a quem já domina os assuntos de que tratam”, escreve Mezan. “Mas todos, escorados em bibliografias atualizadas e redigidos com clareza, oferecem a oportunidade de refletirmos sobre questões que nos tocam de perto.” dezembro 2016 • mentecérebro
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