ESPECIAL |
O NOVO TOM DA LINGUAGEM ANO XIII
SEXUALIDADE A química secreta da atração
CRIANÇA psicologia
psicanálise
neurociência
Riso pode revelar como os bebês pensam
MEDITAÇÃO Atenção plena para diminuir o estresse, por Jon Kabat-Zinn
Quando o alimento vira
obsessão A ortorexia é uma síndrome ainda pouco conhecida, difícil de ser diagnosticada e cada vez mais comum entre pessoas bem informadas, preocupadas com a dieta saudável
1anos
I
ED 9 771807 156009
www.mentecerebro.com.br
00297 ISSN 1807-1562
RIO
R$ 15,90 4,90 €
DE ANIVE R
SÁ
O ÇÃ
carta da editora
Idas, vindas e outros formatos
C
shutterstock
omida atrai nossa atenção, agrega e, quase sempre, é motivo de preocupação – no sentido mais prático, nos pré-ocupamos ou nos pós-ocupamos com os alimentos que ingerimos e as consequências que provocam. Não por acaso o que e o quanto comemos, de que forma e em que horário o fazemos e o tempo que levamos para preparar uma refeição ou nos deslocar para fazê-la consomem boa parte de nossa energia e rendem muito assunto nas mídias sociais. O problema é quando o cuidado se transforma em obsessão, o que caracteriza um quadro patológico, a ortorexia, que requer reeducação alimentar. “Mas 90% da terapia nesses casos é psicológica”, enfatiza o nutrólogo Lorenzo Donini, professor da Universidade de Roma La Sapienza, entrevistado na reportagem de capa desta edição que marca o aniversário de Mente e Cérebro. A edição traz também um artigo de Jon Kabat-Zin, pesquisador da Universidade de Massachussets, que há quase quatro décadas organizou o sistema de atenção plena, ou mindfulness, uma modalidade de meditação eficiente e acessível, que vem ganhando cada vez mais espaço. Quando tratamos de meditação, nos aproximamos – de forma mais ou menos consciente – do fato inegável (e nem sempre confortável) de que a vida é feita de ciclos, seja de respiração ou de desenvolvimento. Idas e vindas, chegadas e partidas. Transformações. Neste mês em que completa 13 anos, Mente e Cérebro passa por uma mudança importante: deixa de ser impressa e passa a ser veiculada de forma digital. A alteração segue uma tendência mundial do mercado editorial e abre espaço para ampliar o acesso de leitores que continuam a ter informações confiáveis e de qualidade ao alcance de um toque, por meio do celular, do tablete ou do computador. Que os novos tempos fluam com o respaldo e a proteção das experiências acumuladas. E possamos continuar a nos encontrar. Obrigada. Boa leitura!
GLÁUCIA LEAL, editora-chefe
[email protected]
sumário | outubro 2017 CAPA: SHUTTERSTOCK/FVAL
capa
22 Quando a busca pela saúde faz adoecer por Irene Campagna
Ficar atento à procedência e à qualidade dos alimentos que ingerimos, assim como fazer escolhas condizentes com nossas crenças parece – pelo menos em princípio – um comportamento saudável. No entanto, a preocupação excessiva com esse tema pode se transformar em obsessão. Difícil de ser diagnosticada, a ortorexia preocupa especialistas
16 A química secreta da atração
46 Cuidado com as máquinas
por R. Douglas Fields
que leem pensamentos!
Nervo que conecta o nariz (ou focinho, no caso dos animais) ao cérebro é um resquício evolutivo que oferece pistas para entender o mecanismo físico do desejo
por Marcello Ienca
Nos últimos anos, a tecnologia de imageamento cerebral avançou tanto que se tornou capaz de perscrutar – e em alguns casos até alterar – conhecimentos guardados no cérebro
34 Rir é coisa séria por Gina C. Mireault
48 Refazendo caminhos ancestrais
O riso infantil, presente já nos primeiros meses de vida, independentemente da cultura ou língua nativa, revela como os bebês pensam
42 Atenção plena para iniciantes por Jon Kabat-Zinn
A prática de mindfullness pode ser resumida no ato de manter a consciência deliberadamente voltada ao momento presente, sem fazer julgamentos; um ato simples, capaz de proporcionar inúmeros benefícios 4
por Kate Wong
Macacos-prego brasileiros criam “ferramentas” de pedra muito semelhantes a artefatos feitos por humanos primitivos; cientistas questionam se esses objetos são feitos de forma intencional
52
especial • cognição
O novo tom da linguagem por Paul Ibbotson e Michael Tomasello
A teoria de Noam Chomsky tem sido questionada. Segundo defensores de outras abordagens, ao aprenderem um idioma, crianças usam capacidades gerais e decifram intenções alheias
seções 3 CARTA DA EDITORA
nas bancas Em movimento
EDIÇÃO ESPECIAL ANO XII
A edição digital Mente e Cérebro Especial 60 – Corpo e cérebro em movimento já está disponível. Os artigos tratam da fascinante capacidade de deslocamento – e não apenas quando andamos, saltamos ou corremos, mas também presente nos mínimos gestos, nas expressões faciais e no pensamento. Os textos revelam como movimen- corpo e tos, amplos ou sutis, são coordenados pelo cére- cérebro em bro e pela mente. Por mais quietos que estejamos movimento – como agora, lendo este texto – universos físicos e psíquicos se movem em nós. Acesse www.lojaseg ento.com.br. psicologia • psicanálise • neurociência
6 PALAVRA DO LEITOR
8 ASSOCIAÇÃO LIVRE Notas sobre atualidades, psicologia e psicanálise
11 NA REDE O que há para ver e ler na internet
60
14
62 LIVRO Infância e memória: histórias de psicanálise com criança por Daniele Sanches
64 LIVROS Lançamentos
colunas 12 PSICANÁLISE (Re) Orientação sexual
PSICOLOGIA
Empatia na sala de aula
PEDAGOGIA
A descoberta dos neurônios-espelho, feita por cientistas italianos, há alguns anos, tem Empatia na possibilitado uma melhor compreensão dos sala de aula mecanismos neurológicos que nos fazem ficar com os olhos marejados quando a protagonista do filme sofre, também ajuda a entender por que sentimos uma vontade incontrolável de bocejar quando alguém boceja ESPECIAL perto de nós ou sorrimos ao vermos outra ADOLESCÊNCIA pessoa sorrir. Os neurônios-espelho também são considerados hoje estruturas fundamentais para entendermos a natureza da aprendizagem embasada nos processos de imitação e empatia. Vários estudos têm testado e validado estratégias pedagógicas adotadas em sala de aula que relacionam a sincronia dos estados fisiológicos dos estudantes. Com base nessas pesquisas, alguns especialistas argumentam que a aprendizagem pode ser constituída por uma dimensão biológica e outra social, que se completam. Leia mais sobre o assunto na edição 11 de Neuroeducação. Já nas bancas. As descobertas sobre os neurônios-espelho podem revolucionar a compreensão sobre como o cérebro aprende
E MAIS:
Como escolas inovadoras estão apostando nas emoções para ensinar melhor
2017
• As mudanças no cérebro • Dificuldades no 6º ano • Janela de oportunidade
00011
32 NEUROCIRCUITO Mais caneta e papel, por favor! Novidades nas áreas de psicologia e neurociência
no 11 N E U R O C I Ê N C I A
ISSN 2359-4462
por Erane Paladino
NEUROEDUCAÇÃO
9 772359 446006
CINEMA O filme da minha vida
R$ 14,90
AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA: Para que serve e como funciona
Acompanhe a @mentecerebro no Instagram Saiba com antecedência qual será o tema da capa da próxima edição
por Christian Ingo Lenz Dunker
66 LIMIAR Relatório de campo: a neurociência da pobreza e seu reverso por Sidarta Ribeiro
www.mentecerebro.com.br NOTÍCIAS Notas sobre fatos relevantes nas áreas de psicologia, psicanálise e neurociência. AGENDA Programação de cursos, congressos e eventos. A localização das estruturas cerebrais nas imagens desta edição é apenas aproximada Os artigos publicados nesta edição são de responsabilidade dos autores e não expressam necessariamente a opinião dos editores
outubro 2017 • mentecérebro
5
palavra do leitor www.mentecerebro.com.br
TECNOLOGIA Gerente: Paulo Cordeiro Analista programador: Diego de Andrade Analista de suporte: Antônio Nildo Matias Desenvolvedores: Thean Rogério, Raul Araújo MARKETING/WEB Diretora: Carolina Martinez Gerente de marketing: Mariana Monné Eventos: Lila Muniz Coordenador de criação e designer: Gabriel Andrade Editor de vídeo: Gabriel Pucci Analista de web: Lucas Alberto Analista de marketing: Fabiana Simões ASSINATURAS E CIRCULAÇÃO Supervisora: Cláudia Santos Eventos Assinaturas: Simone Melo Vendas telemarketing ativo: Cleide Orlandoni FINANCEIRO Faturamento/contas a receber: Karen Frias Contas a pagar: Siumara Celeste Controladoria: Fabiana Higashi Recursos humanos/Depto. pessoal: Roberta de Lima Mente e Cérebro é uma publicação mensal da Editora Segmento com conteúdo estrangeiro fornecido por publicações sob licença de Scientific American.
Spektrum der Wissenschaft Verlagsgesellschaft, Slevogtstr. 3-5 69126 Heidelberg, Alemanha Editor-chefe: Carsten Könneker Gerentes editoriais: Hartwig Hanser e Gerhard Trageser Diretores-gerentes: Markus Bossle e Thomas Bleck
PUBLICIDADE Anuncie na Mente e Cérebro e fale com o público mais qualificado do Brasil.
[email protected] CENTRAL DE ATENDIMENTO AO LEITOR Para informações sobre sua assinatura, mudança de endereço, renovação, reimpressão de boleto, solicitação de reenvio de exemplares e outros serviços São Paulo (11) 3039-5666 De segunda a sexta das 8h30 às 18h, atendimento@editorasegmento. com.br www.editorasegmento.com.br Novas assinaturas podem ser solicitadas pelo site www.lojasegmento.com.br ou pela Central de Atendimento ao Leitor Números atrasados podem ser solicitados à Central de Atendimento ao Leitor pelo e-mail atendimentoloja@editorasegmento. com.br ou pelo site www.lojasegmento.com.br MARKETING Informações sobre promoções, eventos, reprints e projetos especiais.
[email protected] Editora Segmento Rua Cunha Gago, 412 – 1o andar São Paulo/SP – CEP 05421-001 www.editorasegmento.com.br Edição no 297, outubro de 2017, ISSN 1807156-2. Distribuição nacional: DINAP S.A. Rua Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678.
$662& $d®2 1$&,2 $/ '( (' 725(6 '( 5(9,67$6
MENTE E CÉREBRO
p
g
p
MEDO
a
i
r
ê
a
O que acontece em seu corpo quando você se apavora
CEGUEIRA ÉTNI
UM MARCA-PASSO
PARA ALIVIAR
A DEPRESSÃO
CA Por que temos dificuldade para distinguir traços físicos diferentes
R$ 15,90 4,90 €
www.men tecerebro. com.br
Cartas e mensagens devem trazer o nome e o endereço do autor. Por razões de espaço ou clareza, elas poderão ser publicadas de forma reduzida.
RELÓGIOS
INTERNOS Além do céreb ro, fígado e pâncr eas têm função de regular o humo r
00296
Cartas para a revista Mente e Cérebro: Rua Cunha Gago, 412 1o andar – São Paulo/SP CEP 05421-001
O
9 771807 156009
Escritórios regionais: Brasília – Sonia Brandão (61) 3321-4304/9973-4304
[email protected] Rio de Janeiro – Edson Barbosa (21) 4103-3846 /(21) 988814514 edson.barbosa@editorasegmento. com.br
Olá, pessoal da edição. ESPECIAL | CO MO COMPREEND EMOS O MUNDO Gostaria de parabenizálos pelo conteúdo da revista Mente e Cérebro. O primeiro contato que tive com a revista foi na edição nº 293, junho/2017, quando uma colega de turma me indicou a publicação. Conteúdos interessantíssimos. um marca-passo para aliviar a O que mais achei incrível foi a maneira como a maioria dos assuntos parece estar sincronizada com os demais assuntos da revista. Por exemplo, a matéria “Quem cuida de quem cuida ?” com a indicação do canal do filho que documenta rotina da mãe com demência. Os assuntos têm tudo a ver. Parabéns, mais uma vez. Foi amor à primeira leitura hahaha. (Logo após ter lido, passei a indicar a revista a todos os colegas estudantes de psicologia.) Ah, só mais uma coisinha... Gostei muito da sugestão de um leitor (que está exposta nessa mesma edição), para que seja feito um artigo sobre como as cenas de violência que vemos todos os dias no cotidiano impactam nossa mente, saúde mental etc. Adoraria ler sobre isso também! Obrigada! O 2017
PUBLICIDADE Gerente: Almir Lopes
[email protected]
REDAÇÃO Comentários sobre o conteúdo editorial, sugestões, críticas às matérias e releases. redacaomec@editorasegmento. com.br tel.: 11 3039-5600 fax: 11 3039-5610
AMOR À PRIMEIRA LIDA
ISSN 1807-1562
Editora-chefe: Gláucia Leal Editora de arte: Fernanda do Val Estagiário: Gabriel Seixas (redação) Colaboradores: Maria Stella Valli e Ricardo Jensen (revisão) Tratamento de imagem: Paulo Cesar Salgado Produção gráfica: Sidney Luiz dos Santos
MENTE E CÉREBRO ON-LINE Visite nosso site e participe de nossas redes sociais digitais. www.mentecerebro.com.br facebook.com/mentecerebro twitter.com/mentecerebro Instagram: @mentecerebro
ÇÃO N 296 • SETEMBR
Presidente: Edimilson Cardial Diretoria: Carolina Martinez, Marcio Cardial e Rita Martinez
Nova técnica cirúrgica de estimulação elétrica profunda pode ser alternativa para pacientes que não respondem a outros tratamentos
depressão
Rammy Ramos Rio de Janeiro, RJ
O DILEMA DE DORIAN GRAY Excelente o texto do neurobiólogo Sidarta Ribeiro, “O dilema de Dorian Gray”, da edição 296. Acrescento aos dilemas apresentados pelo autor a seguinte questão: teria esse novo ser humano “com 300 anos e um corpinho de 30”, capacidade de usar seu tão longo tempo de experiência para tornar o mundo um lugar digno de se viver? Menos corrupto, menos intolerante, menos sem educação, e tantos outros menos? Se sim, que venham esses neo-imortais. Polyane Tozzi Piumhi, MG
MULHERES SOFREM MAIS Ao longo dos anos, mulheres carregam a fama de “loucas”, são as histéricas, as emotivas as que mais sofrem de doenças mentais. O artigo da edição 294 de Mente e Cérebro mostra como,
paradoxalmente, aos cientistas (majoritariamente homens, claro) estudam quase exclusivamente animais machos, mesmo quando investigam distúrbios prevalentes em fêmeas. Isso explica por que relatamos mais reações adversas aos medicamentos. Além disso, não podemos deixar de lado o quanto a discriminação, a violência e o excesso das jornadas triplas são estressantes e nos fazem adoecer! Maria Eugênia Lima São Paulo, SP ESPECIAL “COM DEFEITO” A edição digital Mente e Cérebro Especial 60 – Corpo e cérebro em
Quando a imaginação se mexe Coordenar ações complexas e velozes está entre os fei os no áveis de que o cérebro é capaz. Muitas vezes nem são necessários anos de treinamen o: bas a a o ça da imaginação por Franz Mechsner
P
ara entender como os seres humanos coorde nam os movimentos é preciso antes de mais nada compreender de que forma o sistema nervoso contrai ou d stende os músculos certos no momento decisivo Assim rezava a doutrina tradicional dos fisiologistas do movimento Mas como explicar por exemplo que uma pessoa com doença de Parkinson que apesar de andar com dificuldade seja capaz de dançar bem? É o caso de Sofia Quando lhe perguntei como se via ao caminhar ela d sse “Ponho um pé d ante do outro e fico atenta para ver se funcio na ou não” “E ao dançar?” acrescentei “Ah então eu voo!” respondeu Se contudo a experiência de Sofia admite generali zação a expl cação tradicional decerto revela se insu ficiente Está claro que também a maneira como ima g namos mentalmente um movimento exerce enorme influência sobre sua execução real Já na década de 50 o físico israelense Moshé Fel denkrais (1904 1984) que ficou famoso por sua teo ria do movimento estava convencido de que nem
SHU TER TOCK
DESDE O COMEÇO Duas publicações de altíssima qualidade que aconselho a leitura sem pestanejar: Mente e Cérebro e Scientific American. Lembrome das primeiras edições e coleciono todas, nunca deixo de ler. Recomendo com veemência. Só tenho a agradecer... Fausto Willer Souza Nova Lima, MG
6
O AUTOR FRANZ MECHSNER é doutor em b ologia p ofessor da Univers dade Northumbria em Newcastle no Re no Unido
sempre a repetição das mesmas sequências motoras é o melhor a fazer quando se deseja aperfeiçoar novos movimentos em processo de aprendizado Muito mais sensato ser a ao contrário refinar a percepção que se tem de si mesmo “A imaginação poss bilita progresso maior que a ação” Percepções e imaginações encarre gadas de fomentar a coordenação muscular não preci sam necessariamente ter por conteúdo a coordenação em si podem direcionar se também para o resultado desejado Assim é que grandes violinistas enfatizam com frequência que ao tocar prestam menos atenção aos movimentos do corpo que ao som do instrumen to que por ass m dizer “ouvem de antemão” Mas é de fato concebível imaginar que algo como um “voo” possa vir a ser mais propício à coordenação muscular que um bem ponderado “um pé depois do outro”? No Instituto Max Planck de Ciências Cogniti vas e Neurociências de Mun que investigamos essa questão Para tanto em vez de abordar logo a comple xa interação entre os componentes do conjunto que forma nosso aparelho locomotor começamos com um exercício simples para os dedos Não era pouca coisa Pedimos aos voluntários que balançassem paralelamente para a direita e para a es querda os indicadores esticados de ambas as mãos e
l mentecérebro l Corpo e céreb o em movimento
movimento está linda. Mas tem um problema grave. Não posso pegar, folhear, deixar no meu revisteiro, ao alcance de parentes, amigos, alunos e pacientes. Lamentável que um produto tão bom tenha esse grave “defeito”. Maria Helena Ferreira Ribeirão Preto, SP
CONCURSO CULTURAL: ESCREVA E GANHE UM LIVRO! Mande sua opinião sobre um dos artigos desta edição para o e-mail
[email protected] ou uma sugestão e concorra a um livro. Por limitação de espaço, tomamos a liberdade de selecionar e editar as cartas recebidas. A premiada deste mês é Rammy Ramos – Rio de Janeiro, RJ.
7
XEXPOSIÇÃO
Masp apresenta coletiva com 200 obras sobre sexualidade Mostra é grande destaque da programação sobre sexo e erotismo, eixo temático do museu em 2017
D
Assume vivid astro focus. Obama Lady #5, 2012. Serigrafia sobre papel 8
a submissão de Angélica acorrentada, pintura neoclássica de Jean-Auguste Dominique Ingres, à libertação sexual psicodélica de Eu amo te vencer, obra dos anos 60 da artista visual feminista Dorothy Iannone. Essa é a proposta de Histórias da sexualidade – corpo, sexo e erotismo vistos de múltiplas perspectivas de tempo, de espaço e de cultura em uma ambiciosa reunião de 200 obras do acervo do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e de coleções internacionais. A coletiva é o carro-chefe da programação temática sobre sexualidade que o museu está apresentando este ano. Trabalhos em videoperformance, pintura, escultura e fotografia, entre outros suportes, estão divididos em núcleos temáticos. Corpos nus traz representações do corpo feminino, masculino e queer ao longo dos séculos; Totemismos dedica-se aos genitais, reunindo falos e vulvas, desde pinturas rupestres até fotografias em alta definição; Linguagem dialoga com a semiótica ao tratar das representações simbólicas da sexualidade; Performatividade de gênero se aprofunda nas questões da heteronormatividade e da diversidade; Jogos de prazer convida o visitante para o terreno do fetiche e das fantasias sexuais; Mercado do sexo aborda a prostituição e a pornografia; Religiosidade traz obras, em especial as do período renascentista, que retratam santos e mártires com alta carga sexual; e, por fim, Voyeurismo, sobre olhar e ser visto na intimidade em um mundo repleto de câmeras.
ANA MENDIETA. Guanaroca (Esculturas rupestres), 1981. Impressão digital sobre papel
DOROTHY IANNONE. I love to beat you (Eu amo te vencer), 1969-70
joão musa
cortesia peres projects
llc e galerie lelong, new york
associação livre
DOMINIQUE INGRES. Angélica acorrentada (Angelica in chains), 1859. Óleo sobre tela, 100,5 x 81 cm. Acervo Masp
Histórias da sexualidade. Museu de Arte de São Paulo (Masp). Avenida Paulista, 1578, São Paulo. De terça a domingo, das 10h às 18h (bilheteria aberta até as 17h30); quinta-feira, das 10h às 20h (bilheteria até 19h30). Informações: (11) 3149-5959. R$ 30,00. De 19 de outubro até fevereiro de 2018.
ronin gallery/ny
No subsolo do museu, o núcleo Políticas do corpo e ativismos traz trabalhos que provocam uma reflexão sobre questões que merecem um olhar urgente das políticas públicas, como feminicídio e transfobia. Propositadamente nomeada com o mesmo título da famosa obra do filósofo Michel Foucault, a mostra propõe um mergulho na história da sexualidade humana.
EISEN. Hurry, hurry someone is coming. (Rápido, rápido, alguém está vindo), 1830. Xilogravura sobre papel. outubro 2017 • mentecérebro
9
associação livre XTELEVISÃO
Série sobre jovem com autismo estreia na Netflix
O
canal de streaming Netflix liberou os episódios da primeira temporada de Atypical, série que tem como protagonista Sam, um rapaz de 18 anos com transtorno de espectro autista (TEA) de alto funcionamento. Inteligente e aficionado por biologia, Sam é um especialista na vida animal da Antártida e em tecnologia, porém de-
pende da família para atividades do cotidiano: a mãe cuida de sua rotina, da alimentação à escolha das roupas, e a irmã mais nova o acompanha na escola. No entanto, com ajuda da terapeuta, ele começa a trabalhar suas habilidades para se tornar mais autônomo e se relacionar afetivamente com mulheres. O roteiro aborda de forma leve e empática as características do TEA – como a dificuldade em entender figuras de linguagem, o apego à rotina, estereotipias e problemas de interação social. Um dos méritos da série é o foco nas vivências da mãe do protagonista, que redescobre sua sexualidade depois de anos focada nos cuidados com o filho.
divulgação
O ROTEIRO ABORDA de forma leve e empática as características do TEA, como a dificuldade em entender figuras de linguagem e problemas de interação social
Atypical – 16 episódios. Disponível no canal de streaming
Netflix.
XTECNOLOGIA
Game explica construção da confiança da perspectiva da teoria dos jogos teoria dos jogos é um ramo da matemática aplicada que estuda as relações estratégicas entre diferentes jogadores. Atualmente, tem sido usada para estudar interações no campo da economia e da psicologia social, como o comportamento colaborativo. O gamer Nicky Case criou um jogo de 30 minutos que ajuda a entender, de forma didática, a teoria dos jogos aplicada à construção de vínculos de colaboração. A evolução da confiança apresenta jogadores, com diferentes perfis, que podem ter todo tipo de reação – trapaceiros, colaborativos, rancorosos, copiadores, aleatórios etc. – e o usuário pode escolher jogar com cada um deles para tentar prever resultados e estratégias capazes de garantir o melhor custo-benefício em um jogo que consiste em ganhar e perder dinheiro, entendendo como a matemática mostra que comportamentos colaborativos podem ser mais eficazes em vários setores da vida. Acesse a versão traduzida para o português em brunolemos.github.io/trust/. 10
DESENVOLVER COMPORTAMENTOS colaborativos é uma estratégia eficaz de sobrevivência a longo prazo, mostra a matemática
divulgação
A
o que há para ver e ler
6
aplicativos para combater a
violência contra mulheres
Rede de proteção Disponível para Android e iOS, o Agentto permite à usuária formar uma rede de confiança com 12 pessoas para emitir um alerta com sua localização e pedido de ajuda se houver uma situação em que se sentir em perigo. Na mesma linha, o app Circle of 6 propõe criar um círculo de seis amigas, que oferece rapidamente a localização em GPS em ocasiões de maior vulnerabilidade, como encontros marcados por meio de aplicativos de relacionamentos: www.circleof6app.com. Vítima de agressão O aplicativo Bem querer mulher é voltado para vítimas de agressão doméstica e assédio sexual. Traz lista de serviços de atendimento psicológico e de delegacias por região e de agentes cadastradas no site para oferecer apoio nessas situações, além de uma linha direta para o 180, serviço de proteção à mulher. Disponível para Android, na Google Play Store. Assédio nas ruas Chega de fiu fiu é um mapa para marcar locais onde ocorreram casos de assédio, de verbal a estupro. Muito intuitivo, permite à usuária preencher um rápido formulário para denunciar anonimamente o que sofreu ou viu e também contar a história em detalhes. Também traz orientações sobre como a vítima pode se comportar nessas situações: chegadefiufiu.com.br.
reprodução
| na rede
comuns em maternidades que na verdade são práticas de violência obstétrica, como pressão para optar por cesárea, anestesia sem conhecimento da gestante e excesso de exames de toque. Traz orientações sobre como fazer denúncias de agressão durante e após o parto e indicações de acompanhantes profissionais para parto humanizado. Pode ser baixado na Google Play Store, apenas para Android. Caminho mais seguro O Malalai ajuda a escolher o trajeto mais seguro, principalmente à noite. Com informações feitas por mapeamento colaborativo, de forma que uma usuária ajuda a outra, reúne informações sobre movimento na rua, presença de policiamento fixo nas proximidades, prédios com porteiros e estabelecimentos comerciais abertos, trechos mal iluminados e ocorrências anteriores de assédio. Também é possível enviar uma mensagem avisando que chegou a seu destino. O mapeamento colaborativo estará disponível em breve. Para Android e iOS: malalai.com.br. “Uber” para mulheres A ideia do aplicativo Lady Driver surgiu diante dos casos de assédio por motoristas de táxi e do Uber. Apenas mulheres sem antecedentes criminais dirigem. A plataforma já conta com duas mil motoristas cadastradas em São Paulo e em breve será expandido para outras cidades. Para Android e iOS: ladydriver.com.br.
Violência obstétrica O app Parto humanizado possibilita que usuárias façam um plano de parto que podem enviar para seu médico e se informem sobre procedimentos outubro 2017 • mentecérebro 11
psicanálise
inconsciente a céu aberto
(Re) Orientação sexual
E
stes tempos de pós-verdade e vale-tudo jurídico habilitaram o retorno de antigas teses regressivas em matéria de psicologia. Recentemente, o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho expediu uma liminar suspendendo as disposições do Conselho Federal de Psicologia (CFP), de 1990, que vetavam o tratamento e a cura das homossexualidades. Ele indica textualmente que tal resolução não deve ser interpretada de modo a impedir psicólogos de “promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re) orientação sexual, garantindo-lhes assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia por parte do Conse12
lho Federal de Psicologia (CFP)”. Os argumentos remontam à liberdade de pesquisa científica, à inquietação social em torno de “práticas sexuais desviantes”, à censura, ao preconceito e à discriminação praticada pelo CFP e ao direito dos “eventuais interessados neste tipo de assistência psicológica”. A ciência, o interesse social, as instituições reguladoras e o direito do “consumidor” ficaram assim “agraciados” com essa nova forma de liberdade. Por um truque retórico, o magistrado separa “tratamento, cura das homossexualidades”, sua patologização ou “ação coercitiva para tratamentos não solicitados” do que seria o “estudo ou atendimento profissional pertinente à (re) orientação
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER
sexual”. Ora, desde que na edição de 1973 da terceira edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-III) a homossexualidade foi retirada da condição de transtorno (disorder), iniciou-se um processo de renomeação de abordagens com o intuito de justificar a prática como reconversão, reorientação e reparação. Quase todas essas tentativas provêm de grupos que alinham princípios psicoterapêuticos com abordagens religiosas. É o caso também dos dois projetos de lei que tramitam no Congresso com o objetivo de alterar o veto do CFP. Ocorre que esta não é apenas uma matéria inócua, que a experiência poderia resolver deixando-se
arquivo pessoal (foto), shutterstock (imagem)
Várias tentativas de normatizar e “curar” orientações homossexuais têm efeitos iatrogênicos, ou seja, além de serem ineficazes, prejudicam o paciente; nesse contexto, a tarefa do psicoterapeuta é separar o sujeito de sua alienação de ideais sociais que lhe impõem a renúncia ao desejo
O pedido, a reza, a mais sólida deliberação do espírito, a soberana vontade do consumidor ou a mais grotesca justificativa jurídico-moral não são suficientes para nos fazer colocar o sujeito contra seus próprios desejos, sejam eles homo, hetero, bi ou n-sexuais
a deliberação livre para o mercado dos consumidores de psicoterapias. Pouco se debate, mas várias delas têm efeitos iatrogênicos, ou seja, não apenas não apresentam eficácia ou eficiência reduzida, mas prejudicam o paciente. A apresentação de uma liminar desse tipo também deveria ser incluída como um desserviço social de nosso sistema judiciário. Isso ocorre porque nossa relação com a sexualidade, seja no âmbito da identidade de gênero, seja na esfera de nossas modalidades preferenciais de prazer ou, ainda, de nossas escolhas de fantasia, depende de como somos lidos e como nos interpretamos em relação ao Outro. Portanto, o sentimento de
adequação ou inadequação e o reconhecimento ou a derrogação de reconhecimento alteram efetivamente nossa relação com a sexualidade. Um prazer proibido é diferente de um prazer autoimposto ou socialmente sancionado. A sexualidade humana é sempre dissonante de si mesma, e quase sempre envolve demandas de adequação, se não do ponto de vista comportamental, em relação aos efeitos das fantasias pessoais que os outros fazem sobre as nossas fantasias. Por isso, a tentação de utilizar instâncias socialmente universalizantes como o direito, a religião ou a ciência para manipular tais disposições será muito grande. Isso ocorre por querermos trocar o
sentimento de inadequação pelo trabalho de adequação à fantasia alheia. Diante dessa injunção, a tarefa do psicoterapeuta é separar o sujeito de sua alienação de ideais sociais que lhe impõem a renúncia ao desejo. Por isso, o pedido, a reza, a mais sólida deliberação do espírito, a soberana vontade do consumidor, ou a mais grotesca justificativa jurídico-moral não são suficientes para nos fazer colocar o sujeito contra seus próprios desejos, sejam eles homo, hetero, bi ou n-sexuais. CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER,
psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). outubro 2017 • mentecérebro 13
cinema
O FILME DA MINHA VIDA 113 min – Brasil, 2017 Direção: Selton Mello Elenco: Johnny Massaro, Vincent Cassel, Bruna Linzmeyer, Ondina Clais
Nuances do silêncio Adaptado do livro Um pai de cinema, do autor de O carteiro e o poeta, o filme dirigido por Selton Mello recorre a imagens delicadas para falar de melancolia
por Erane Paladino
Q
Muitas vezes,
uais os caminhos possíveis para fotografia bem cuidada, com cenas a culpa se instala comunicar algo? Em princípio, bucólicas contemplativas, olhares inalgumas estratégias como palavras, tensos em primeiro plano e personaquando não há sinais e imagens seriam as respostas gens caracterizados, que evocam um possibilidade de mais evidentes. Mas e o silêncio? A lirismo próximo ao sonho. nomear o que ausência de sons também pode ser O filme da minha vida fala da expeforma importante de comunicação. riência do jovem Tony diante da ause sente ou buscar Psicanalistas costumam dar ao silênsência inesperada do pai. Na década representações cio atenção especial, e, muitas vezes, de 60, o personagem (interpretado psíquicas para a percepção das sutilezas de seus por Johnny Massaro), filho de um a angústia; é matizes é fundamental no trabalho francês e de uma brasileira, retorna clínico. Há, por exemplo, o silêncio da a Remanso, sua cidade natal, nas como se o objeto angústia, dos momentos de paz e das Serras Gaúchas, para exercer a properdido vagasse implosões mudas de ódio. No livro O fissão de professor. O pai (vivido por internamente, numa Vincent Cassel) embarca no mesmo silêncio na psicanálise (Zahar, 2010), J. D. Nasio diz que “o silêncio está trem no qual o rapaz chega e abanexperiência sem sempre presente em uma sessão de dona a cidade, sem dar explicações contornos análise e seus efeitos são tão decisivos ou notícias. Apaixonado por livros e quanto uma palavra explicitamente filmes, Tony passa os dias buscananunciada”. do entender o que teria causado o desaparecimento tão Numa adaptação do livro Um pai de cinema (Record, repentino e sem nenhuma razão clara. Ouvira dizer ape2011), do chileno Antonio Skármeta, autor do conhecido nas que o pai retornara para a França e chega a escrever O carteiro e o poeta (Record, 1996), O filme da minha vida, várias cartas, mas não obtém resposta. Apesar da dor e dirigido por Selton Mello, parece explorar outros meios de das intermináveis dúvidas sobre o paradeiro do grande expressão além da linguagem verbal. Troca de olhares e companheiro de infância, tenta seguir seu caminho. Frerespostas lacônicas estão presentes na obra marcada pela quenta sessões de cinema, vive as primeiras experiências 14
divulgação
sexuais e fantasias românticas com a bela Luna (Bruna Linzmeyer), uma amiga da cidade por quem se apaixona. Os diálogos monossilábicos com a mãe, Sofia (Ondina Clais), e com o rústico vizinho Paco (Selton Mello) não são suficientes para tranquilizá-lo. O ar introspectivo e tímido do rapaz é contornado pelo enredo entremeado por um universo dividido entre a vontade de viver e o sofrimento. A falta de informações convincentes sobre o destino do pai deixa uma espécie de sombra silenciosa, o vazio e a apreensão latente. É como se o “não dito” se tornasse maldito e a ânsia da resposta, um fantasma. Em Luto e melancolia (2017), Freud aponta para a experiência de perda de um ente querido (ou mesmo de ideais) que acaba por gerar uma inibição dos interesses pelo mundo externo devido aos intensos sentimentos de dor. Muitas vezes, a revolta e a saudade se mesclam e acabam por causar uma turbulência psíquica que dificulta a elaboração. A culpa pode se instalar quando não há como nomear o que se sente ou buscar representações psíquicas para a angústia. É como se o objeto perdido vagasse internamente, numa experiência sem contornos. Para Freud, o estado melancólico não permanece associado apenas à perda do objeto amado, mas também traz a perda de uma parte de si mesmo, do ego. No caso de Tony, não houve sequer a oportunidade da despedida.
A ausência de palavras – que iluminariam a experiência – traz um hiato em sua história e impede a construção de sentidos que talvez permitissem que seguisse em frente. E essa falta parece lhe tirar a coragem. No entanto, a vila prepara surpresas. O trem que leva Tony à cidade vizinha para desfrutar das atrações do cinema carrega também os filmes a serem projetados numa metáfora poética que sugere sua tentativa de encontrar uma saída para seus impasses pessoais. Em dado momento, o reencontro com o pai termina por trazer à tona a verdade sobre o afastamento. Nesse momento, uma nova trama começa a se delinear e o filme ganha novo ritmo. Nas conversas entre os dois, é possível desfazer as mentiras, retomar a proximidade e nutrir a troca de afetos, na qual palavras ganham coerência. O que estava petrificado no silêncio ganha movimento, fecha a ferida e abre espaço para novos desejos. Da melancolia, fruto de uma vivência na qual as emoções e a esperança não encontravam eco, surgem para o personagem o alívio e a libertação que permitiram dar sequência à própria vida, resgatando seu lugar como filho e abrindo oportunidade para construir seu lugar no mundo – como se assumisse a direção de seu próprio filme. ERANE PALADINO é psicóloga e psicanalista, mestre em psicologia social, professora do Instituto Sedes Sapientiae. outubro 2017 • mentecérebro 15
sexualidade
A química secreta da
atração Nervo que conecta o nariz (ou focinho) ao cérebro – resquício evolutivo descoberto durante pesquisas neuroanatômicas com roedores e mamíferos aquáticos – pode ajudar a entender o mecanismo físico do desejo por R. Douglas Fields
A
lém da beleza, da afinidade ou mesmo das atitudes, parece haver um componente misterioso que nos faz sentir sexualmente interessados em determinadas pessoas, sem sequer nos darmos conta do que mexe tanto com a libido. É o que cientistas chamam de atração sexual subliminar, uma reação desencadeada por um minúsculo nervo, que começou a ser estudado há pouco tempo. A “magia” é explicada pela ciência: os feromônios, mensageiros químicos inodoros, transmitem sinais ao cérebro por meio dele. A maioria dos nervos penetra no cérebro pela medula espinhal. Alguns, porém, tomam um atalho e entram diretamente no crânio, daí serem conhecidos como nervos cranianos. Hoje sabemos que eles são responsáveis pela recepção de sinais sensoriais e pela execução de movimentos de olhos, mandíbula, língua e rosto. Em 1878, uma descoberta sacudiu o mundo da neuroanatomia. Estudando tubarões, o anatomista alemão Gustav Fritsch (1837-1927) foi o primeiro a constatar a presença de um nervo craniano bem delgado, localizado à frente dos outros, que foi chamado de nervo zero ou terminal. A repercussão foi quase nula. No século seguinte, porém, ele foi observado em quase todos os vertebrados e, em 1913, identificado em humanos. Foi quando se percebeu que, por ser tão discreto e delicaO AUTOR R. DOUGLAS FIELDS é neurocientista, doutor em ciência cognitiva. Atualmente chefia a Seção de Desenvolvimento de Sistemas Nervosos nos Institutos Nacionais de Saúde, em Bethesda, Maryland.
16
shutterstock
outubro 2017 • mentecérebro 17
sexualidade
EM ROEDORES, a estimulação vomeronasal por meio de feromônios libera uma enxurrada de hormônios na corrente sanguínea, o que favorece a reprodução
18
UM CHEIRO DIFERENTE O olfato é o mais antigo dos sentidos. Embora a precisão dessa capacidade humana seja insignificante perto da de outros mamíferos, não é nada desprezível: dispomos de 347 tipos de neurônios sensoriais no epitélio olfatório. Cada um deles detecta um odor diferente. Nosso repertório de odores resulta das possíveis combinações dessas centenas de receptores. Os feromônios estão envolvidos na seleção de parceiros e na reprodução em praticamente todo o reino animal. Muitas espécies distinguem pelo faro sexo, posição social, território e status reprodutivo do potencial parceiro. Em seres humanos, esses processos são mais complexos, mas há indícios de que as pessoas troquem mensagens secretas e inconscientes por meio de feromônios. Há pelo menos duas diferenças entre os feromônios e as substâncias que estimulam o olfato humano. Para sentir um odor, é necessário que moléculas muito pequenas e voláteis flutuem por grandes distâncias.
Já os feromônios podem até ser moléculas grandes e pesadas, desde que o contato entre os indivíduos seja íntimo, como nos beijos. Além disso, muitos feromônios humanos são inodoros. Eles excitam terminações neurais que transmitem sinais diretamente para as regiões do cérebro responsáveis pelo controle da reprodução sexual, contornando o córtex cerebral. Essas substâncias parecem agir como um cupido invisível que dribla a consciência e coloca um brilho romântico nos olhos do apaixonado. Ao que tudo indica, as ligações do nervo zero ao cérebro permitem tal possibilidade. O nervo conecta os receptores situados no nariz ao bulbo olfatório, um ponto de retransmissão neural, situado no cérebro, que classifica e processa as informações sensoriais captadas pelos receptores. Em seguida,
O papel das proteínas A neurobióloga Linda Buck identificou uma família de proteínas receptoras em camundongos, especificamente na superfície de neurônios que detectam feromônios. Ao todo são 15 proteínas chamadas TAARs (do inglês, receptores associados a traços de tiamina), que respondem de forma seletiva a moléculas específicas (que contêm nitrogênio) da urina do camundongo. A concentração de uma delas é maior (tanto na urina do camundongo como na do ser humano) em condições de estresse associadas ao ritual de acasalamento. Duas dessas TAARs são ativadas por componentes encontrados exclusivamente na urina de machos adultos, o que também sugere uma função sexual. Uma delas é capaz de acelerar o início da puberdade em fêmeas. Além disso, Buck descobriu ainda que os seres humanos têm genes para pelo menos seis TAARs identificadas em camundongos.
shutterstock
do, o nervo não resistia aos procedimentos de dissecação. Mas qual seria a função desse filamento quase imperceptível? A primeira pista veio da forma como ele se conecta ao cérebro. À semelhança de seu congênere olfatório, o nervo zero parece ramificar-se próximo ao nariz. Para alguns pesquisadores, ele talvez seja apenas um ramo desviado do nervo olfatório, não constituindo uma entidade separada.
shutterstock
os sinais são enviados ao córtex olfatório, onde é feito um processamento mais refinado para que então surja a percepção do odor. No caso dos feromônios, a estrutura protagonista é o órgão vomeronasal, que se liga a um minúsculo bulbo olfatório “acessório”, localizado ao lado do principal. Dali em diante, os nervos se dirigem a áreas cerebrais associadas ao comportamento sexual (como a amígdala). Embora alguns cientistas afirmem que o órgão vomeronasal humano esteja ativo, para a maioria a estrutura é apenas um vestígio da evolução. Segundo eles, ela se forma durante a vida fetal e depois atrofia, tal como ocorre com as fendas branquiais. Logo, se os feromônios enviam sinais para o cérebro, não o fazem por meio dessa estrutura. Há fortes suspeitas, porém, de que o nervo zero esteja preenchendo essa lacuna. EVIDÊNCIAS ANATÔMICAS Assim como seu primo olfatório (nervo I), o nervo zero tem terminações na cavidade nasal, porém, se projeta para áreas sexuais do cérebro: as pré-ópticas e os núcleos septais medial e lateral. Essas regiões estão ligadas a “funções básicas” da reprodução, como
controle da liberação de hormônios sexuais, e outros impulsos irresistíveis, entre eles sede e fome. O núcleo septal pode agir sobre a amígdala, o hipocampo e o hipotálamo, mas também é influenciado por eles. Lesões no núcleo septal alteram o comportamento sexual, a alimentação, a ingestão de líquidos e as reações de raiva. Ao ligar o nariz aos centros reprodutores do cérebro, o nervo zero contorna o bulbo olfatório. Lesões no nervo olfatório ou no órgão vomeronasal comprometem o acasalamento de roedores, o que sugere que essas estruturas estejam envolvidas na transmissão de mensagens de feromônios. Entretanto, nos últimos anos, pesquisadores descobriram que o nervo zero envia fibras ao órgão vomeronasal e que elas passam muitíssimo próximas às fibras do nervo olfatório. Resultado: os experimentos nos quais o nervo olfatório foi deliberadamente cortado devem ter causado também o rompimento do nervo zero. Em 1987, a neurocientista Celeste Wirsig, então na Universidade Baylor, em Waco, Estados Unidos, removeu cuidadosamente o nervo zero de hamsters machos, deixando o nervo olfatório ileso. Os animais não conseguiram se acasalar, embora fossem
SEXO NA ÁGUA: o comportamento de animais marinhos, como baleias e golfinhos, ilustra a autonomia do nervo zero
outubro 2017 • mentecérebro 19
sexualidade
PARA SABER MAIS P-02-006 The roles of tactile and olfactory sensory inputs on sexual desire and performance. J. Bendas, J. Georgiadis e outros, em The journal of Sexual Medicine, vol. 14, nº 4, suplemento pág. e184; abril de 2017. Pheromones and animal behavior. Tristram D. Wyatt. Cambridge University Press, 2003. The terminal nerve: a new chemosensory system in vertebrates? L. S. Demski e R. G. Northcutt, em Science, vol. 220, nº 4595, págs. 435-437, 1983. The terminal nerve (nervus terminalis) structure, function and evolution. Edição especial de Annals of the New York Academy of Sciences, vol. 519, 469 págs., 1987. Olfactory function and the social lives of older adults: a matter of sex. Sanne Boesveldt, Jason R. Yee, Martha K. McClintock e Johan N. Lundström, em Nature, disponível online; março de 2017: https://www.nature.com/ articles/srep45118
20
tão hábeis para encontrar comida quanto seus colegas do grupo de controle. De maneira semelhante, neurocientistas já haviam observado, em 1980, que a estimulação elétrica do nervo olfatório poderia deflagrar respostas sexuais em peixes e outros animais. Esse comportamento sexual não poderia ser resultado da estimulação do nervo zero, uma vez que os dois estão muito perto um do outro? Essa foi a suspeita dos neuroanatomistas R. Glenn Northcutt, da Universidade da Califórnia em San Diego, e Leo S. Demski, hoje no New College da Flórida. Eles também sabiam que, no caminho para o cérebro, algumas fibras do nervo zero faziam um desvio inesperado, enviando ramos às retinas. Northcutt e Demski conseguiram aplicar um estímulo elétrico leve no nervo zero de peixes-dourados bem onde ocorre essa ramificação, sem afetar o nervo olfatório. Resultado: os machos responderam instantaneamente com liberação de esperma. RESQUÍCIO EVOLUTIVO Outra indicação que aponta o papel sexual do nervo zero viria de minha própria pesquisa em uma criatura marinha. Em 1985, enquanto eu estudava o nervo zero de uma arraia-lixa, vi algo peculiar: muitas fibras estavam repletas do que pareciam ser minúsculas esferas negras. Uma análise química revelou que elas eram feitas de hormônios de natureza protéica altamente compactados. Na ponta de algumas fibras observei a liberação dessas substâncias e sua absorção por minúsculos vasos sanguíneos, sugerindo que o nervo zero poderia ser um órgão neuroendócrino. Quando Demski e eu soubemos que uma baleia-piloto havia acabado de morrer na Base Naval de San Diego, ficamos eufóricos com a oportunidade de examiná-la. Esse animal poderia colocar fim à discussão, provando se, afinal, o nervo zero é ou não autônomo e elucidando sua real função. Isso porque baleias e golfinhos são os únicos animais marinhos com um respiradouro no alto da cabeça. Eles descendem de mamíferos aquáticos que respiravam por narinas localizadas na parte anterior da cabeça, as
quais, ao longo de milhões de anos de evolução, migraram gradativamente para o alto. Nesse processo, perderam o nervo olfatório e, como consequuência, o sentido do olfato. Se o nervo zero estivesse envolvido na olfação, ele provavelmente teria sido abandonado na troca evolutiva de narinas por respiradouro. Caso contrário, estaria presente na baleia, como suspeitávamos. Com muito cuidado, Demski removeu as membranas da área em que esperávamos encontrar o par de nervos zero. E lá estavam eles: dois finos nervos brancos que se dirigiam ao respiradouro da baleia. A autópsia do animal provou que o nervo zero é uma entidade neural diferenciada, não apenas um fragmento do nervo olfatório. Sua função era preciosa demais para ser abandonada pela evolução. Em humanos, porém, o papel do nervo zero continua um mistério. Pesquisas recentes com camundongos constataram a presença de certos neurônios sensoriais não relacionados ao órgão vomeronasal que respondem à estimulação de feromônios. Quanto desse trabalho é dividido entre o nervo olfatório e o nervo zero ninguém sabe com certeza, mas é certo que este está associado ao comportamento reprodutivo e à liberação de hormônios sexuais, particularmente do hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH), secretado pela hipófise. Do ponto de vista embriológico, o nervo zero se desenvolve bem cedo, e vários estudos mostram que todos os neurônios que produzem GnRH usam o nervo zero fetal como eixo para migrar e descobrir seu lugar correto no cérebro. Se esse processo embrionário for interrompido, o resultado será a síndrome de Kallmann (que prejudica o olfato e impede o amadurecimento sexual, isto é, a puberdade). Provavelmente ele tem outras funções além das ligadas à reprodução – afinal, a maioria dos nervos cranianos transmite sinais sensoriais e motores. Muitas pesquisas ainda são necessárias para desvendarmos completamente seu papel no sistema nervoso. Mas pelo menos agora entendemos que a natureza criou um canal oculto de comunicação que garante a reprodução da espécie.
capa
Quando a busca pela saúde faz
adoecer
por Irene Campagna, jornalista 22
shutterstock
Ficar atento à procedência e à qualidade dos alimentos que ingerimos, assim como escolher opções condizentes com nossas crenças na hora de comer, parece – pelo menos em princípio – um comportamento saudável tanto para o corpo quanto para a mente. No entanto, a preocupação excessiva com esse tema pode se transformar em obsessão. A ortorexia é uma síndrome insidiosa, difícil de ser diagnosticada e cada vez mais comum entre pessoas bem informadas
outubro 2017 • mentecérebro 23
capa
Procurar saber se os tomates recebem pesticidas, se o leite vem de uma criação na qual as vacas recebem hormônios e se a embalagem da salada contém plástico cancerígeno é válido, mas, quando essas preocupações se tornam o centro da vida de uma pessoa, é sinal de que algo não vai bem
“E
u vivia numa rede de proibições. Seguia uma dieta completamente vegana, baseada apenas em legumes, totalmente livre de glúten, óleo, açúcares refinados, farinhas, condimentos. A minha vida dependia daquilo que eu podia e não podia comer e de quais alimentos podia ou não associar.” Com essas palavras, Jordan, uma garota culta e atlética, encerrou seu blog The Blonde Vegan, com milhares de seguidores, em 23 de junho de 2014. Nos meses anteriores, ela havia perdido peso, estava sempre cansada e com fome, não menstruava mais e estava obcecada pela qualidade da comida. Jordan estava ortoréxica. A ortorexia – literalmente “apetite correto” – é uma obsessão compulsiva por uma alimentação saudável. Descrito pela primeira vez em 1997 pelo nutrólogo americano Steven Bratman numa revista de ioga, o quadro alcançou visibilidade no meio acadêmico em 2004, com a publicação de um artigo a respeito do primeiro estudo sobre o assunto no periódico científico Eat and Weight Disorders, de autoria de um grupo italiano coordenado pelo pesquisador Lorenzo Maria Donini. “Eram os tempos da vaca louca; havia muita preocupação com o tema na Europa e decidimos entender melhor o fenômeno”, conta o nutrólogo e docente de alimenta-
24
ção e nutrição humana na Universidade de Roma La Sapienza. “O estudo revelou uma realidade além de nossas expectativas”, diz. Geralmente, tudo começa com o desejo de controlar a própria alimentação, na ilusão de alcançar um nível de saúde “perfeita”. Diferentemente das pessoas anoréxicas ou bulímicas, os ortoréxicos não se preocupam com a quantidade de comida que consomem, mas com a sua qualidade. Para eles, a perda de peso não é um objetivo fundamental. Em alguns casos, porém, jejuam (em geral sem orientação médica) para evitar ingerir alimentos que consideram contaminados ou perigosos para a saúde – chegando, raramente e em casos extremos, à morte por inanição. O BRÓCOLIS MÁGICO A síndrome insidiosa leva profissionais da saúde a questionar: em que momento o interesse numa dieta saudável, algo em princípio tão benéfico, se torna patológico? “Quando essa preocupação é marcada por uma rigidez excessiva e pelo evitamento arbitrário de certos alimentos, a ponto de provocar carências nutricionais e energéticas graves”, responde Liliana Dell’Osso, psiquiatra e diretora da Escola de Especialização em Psiquiatria da Universidade de Pisa. A., um homem de 28 anos, pesava 43 quilos (a metade de seu peso ideal, de acor-
Crianças que recusam comida
shutterstock
Dificilmente os pequenos rejeitam biscoitos recheados e bolo, mas convencê-los a comer frutas e verduras pode ser muito difícil Sabe-se hoje que escolhas alimentares na infância derivam de uma complexa interação entre experiências emocionais, preferências gustativas individuais e de seus pais, habilidades cognitivas, capacidade de atenção e hábitos culturais. Nos últimos anos, porém, as proporções de cada um desses aspectos têm intrigado especialistas. Um estudo desenvolvido na Universidade de Roma La Sapienza e publicado pelo Journal of the American College of Nutrition revelou que, numa amostra de 127 crianças entre 2 e 6 anos, 20% recusavam uma ampla gama de alimentos, tanto os mais comuns quanto os desconhecidos, o que restringia significativamente sua dieta. Uma pesquisa britânica publicada no periódico científico Appetite indicou que os obstáculos mais importantes ao aumento da variedade na dieta são representados pela neofobia alimentar (recusa em comer comidas nunca provadas antes). Esse é um comportamento determinado evolutivamente pela necessidade de evitar a ingestão de substâncias tóxicas quando as crianças se tornam suficientemente autônomas para pegar objetos na ausência dos pais. As comidas vistas como desconhecidas são rejeitadas e, em geral, somente a exposição repetida ao novo alimento as convence a prová-lo. O componente visual é parte essencial também na recusa dos enjoados para comer. Elementos como cor,
forma, consistência e cheiro determinam a recusa ou a aceitação do alimento. A apresentação é importante: algumas crianças não gostam de comidas misturadas. Se as cenouras e o arroz, por exemplo, não estão bem distantes no prato, o pequeno percebe como uma “contaminação” e sente nojo. A reação pode ser evocada também pela associação de diferentes consistências, como a do iogurte e de pedaços de fruta. Evolutivamente, essa reação é compreensível, já que a mistura poderia (pelo menos teoricamente) mascarar algo nocivo, que faria mal a nossos ancestrais, de quem os pequenos teriam herdado o asco. A criança costuma ser influenciada também pelas preferências da mãe e da forma como é educada, mas ser resistente para comer pode ser um traço da sua personalidade. Os alimentos mais evitados são aqueles de origem vegetal, por isso há o risco de uma carência de vitaminas, sais minerais e fibras. Para alívio dos pais, depois dos 6 anos a frequência desses comportamentos tende a diminuir. Para driblar a dificuldade de aceitação de alimentos pelos pequenos, uma saída bastante eficiente costuma ser insistir no alimento recusado, apresentando-o de outras maneiras, além de envolver as crianças no seu preparo. Talvez o mais importante, porém, seja mesmo a chamada “facilitação social”, ou seja, ver os outros consumirem o alimento evitado. Já forçar a ingestão é contraproducente. outubro 2017 • mentecérebro 25
Fanatismo na rede
O Instagram é um dos palcos preferidos dos apaixonados por gastronomia que querem exibir as próprias proezas culinárias: pratos típicos, doces feitos em casa, cafés da manhã elaborados. Mas a plataforma de imagens é também o espaço ideal para inventores de dietas sem nenhuma competência científica com intenção de difundir a própria crença. Segundo uma pesquisa setorial da rede social, realizada nos Estados Unidos, 54% dos usuários utilizam o compartilhamento nas mídias para expor as próprias experiências culinárias e 42% o fazem para buscar conselhos sobre alimentação. Um estudo da Universidade College London publicado este ano no Food and Weight Disorders revela que entre os usuários mais assíduos do Instagram os sintomas da ortorexia são mais frequentes. Segundo os autores, os motivos podem ser diversos. Sobretudo, trata-se de uma iconografia social, e as imagens são mais memoráveis do que os textos. A hipótese é que a exposição contínua a fotografias de receitas saudáveis poderia surtir um efeito maior sobre as escolhas alimentares do que a leitura de posts sobre como seguir uma dieta balanceada. Outra característica típica das mídias sociais é o efeito eco: o usuário tende a seguir perfis que reflitam a sua visão de mundo, ficando exposto a conteúdos que reforçam as suas ideias. Ao seguir apenas determinados perfis, a pessoa pode ser induzida a acreditar que certas dietas sejam mais difundidas do que realmente são, além sentir uma pressão social para encaixar-se num tipo específico de comportamento alimentar. Segundo essa linha de raciocínio, pessoas com alguma fragilidade emocional estariam mais vulneráveis, podendo ser encorajadas pela interação com outros usuários com ideias similares. O ortoréxico corre o risco de déficits nutricionais graves, inclusive com consequências sérias para a saúde, enquanto do ponto de vista psicológico a sua obsessão por regras autoimpostas pode se tornar um inferno. 26
do com sua altura) quando passou a ser acompanhado pelo psiquiatra Ryan Moroze, professor da Universidade do Colorado em Denver, que em 2015 descreveu o caso no periódico científico Psychosomatics. Por três anos, A. ingeriu apenas shakes proteicos que preparava em casa, dissolvendo em água envelopes de aminoácidos em pó. O rapaz começou a limitar sua dieta devido a uma constipação intestinal, mas com o tempo seus motivos mudaram e ele passou a escolher a comida com base na sua origem, insistindo que seu corpo era “um templo” e que aquilo que comia deveria fornecer “tijolos puros” que o mantivessem saudável. A teoria parecia boa, mas no momento da hospitalização ele não apenas estava gravemente mal nutrido, mas também sofria de constipação, tinha um déficit grave de testosterona, os dentes e ossos fracos, os glóbulos brancos e as plaquetas estavam bastante baixos e o coração batia muito lentamente. Parecia confuso e continuava a falar do brócolis e das suas propriedades mágicas. Ideias que não se sustentam racionalmente são típicas de pacientes ortoréxicos. Com base em informações corretas, muitos elaboram teorias mirabolantes. Se a pessoa lê num livro que o corpo humano é constituído de 70% de água, pode deduzir que 70% daquilo que come deve conter muita água. Um pensamento ilógico, porque a água ingerida com os alimentos corresponde só a uma porcentagem mínima da água corporal, que é fisiologicamente regulada pelo organismo. Segundo uma teoria crudivorista, mastigar muito rápido impede a digestão gástrica das proteínas e a absorção dos aminoácidos. Entretanto, ainda que seja verdade que a digestão começa na boca, graças à mastigação e à presença de algumas enzimas na saliva, só conseguimos digerir os alimentos graças ao sistema gastrointestinal. Dietas mais leves poderiam favorecer experiências mais sutis. Faz sentido se pensarmos que, se o organismo não gasta tanta energia com a digestão de alimentos mais pesados, a pessoa fique mais desperta para práticas de meditação, por exemplo. O risco, porém, é reduzir um conceito no outro, de forma simplista.
shutterstock
capa
No entanto, a obsessão com a qualidade dos alimentos geralmente não é ligada a crenças religiosas ou a preocupações com o meio ambiente e o bem-estar dos animais – mas sim ao medo de doenças transmitidas pela comida, como a vaca louca ou a gripe aviária, bem como à desconfiança em relação aos conservantes ou corantes”, explica Dell’Osso. Ela reconhece que muitas dessas preocupações são justificáveis, o que prejudica é o excesso de autorrestrições. Inicialmente, os ortoréxicos estão – de forma mais ou menos racional – preocupados de fato com a saúde. Depois, essa preocupação, como afirma Dell’Osso, “vai ficando mais invasiva, obsessiva, a ponto de se tornar, se não o único, certamente o seu principal ponto de interesse; um verdadeiro e total fanatismo alimentar”. A comida deve ser pura, ou seja, genuína, incontaminada, não processada, natural. No supermercado, controlam atentamente a origem dos alimentos, buscam saber como são produzidos, conservados e embalados. O problema é que o escrutínio se torna implacável e as compras, uma investigação. O limite é tênue: procurar saber se os tomates foram tratados com pesticidas, se o leite vem de uma criação na qual as vacas recebem hormônios, se as verduras grelhadas conservaram os nutrientes durante o cozimento e se a embalagem da salada contém plástico cancerígeno é válido, mas, se essas preocupações se tornam o centro da vida de uma pessoa, é sinal de que algo não vai bem. A preparação das refeições, por exemplo, pode se transformar numa operação extremamente complexa: somente algumas comidas podem ser consumidas juntas, ou então certo alimento pode ser ingerido somente em determinado momento. Fora das refeições, a comida é pesquisada, catalogada, pesada, planejada; torna-se um pensamento constante a ponto de prejudicar até mesmo os estudos, o trabalho, as relações pessoais. O alimento tem grande valor social, mas, para um ortoréxico, ir a um restaurante equivale a perder o controle sobre a alimentação e se torna motivo de profunda
Assim como pacientes anoréxicos, pessoas obcecadas com a alimentação saudável apresentam a “ruminação de ideias”, retornando constantemente às próprias preocupações e ao sentimento de culpa quando quebram as próprias regras
angústia. “Imerso no próprio fanatismo, o ortoréxico torna-se intolerante com aqueles que não seguem as suas regras, e isso leva inevitavelmente ao isolamento social”, diz Dell’Osso. O que preocupa especialistas é que o comportamento surge de uma preocupação legítima e saudável, mas pode evoluir de tal forma que prejudica os âmbitos físico, psicológico e social. “Já temos registros de casos em que essa visão obsessivo-paranoica a respeito da pureza da comida afeta famílias inteiras e as crianças, muitas vezes desde o nascimento”, observa Dell’Osso. MAL NUTRIDOS E SOLITÁRIOS Aos 28 anos, M. se afastou da família por causa do distúrbio. A jovem só comia verduras cruas por acreditar que misturar diversos tipos de proteínas e nutrientes na mesma refeição produziria toxinas. O seu caso, descrito em um artigo científico de 2005 pela psiquiatra Catalina Zamora, é emblemático. O texto relata que aos 14 anos um nutricionista aconselhou a paciente a eliminar da dieta todas as gorduras para controlar a acne. Aos 16 anos, ela decidiu seguir uma dieta ovolactovegetariana. Aos 24, eliminou ovos e laticínios. Quando foi hospitalizada, pesava apenas 27 quilos. “Na tentativa de se alimentar apenas de comida considerada genuinamente saudável, o ortoréxico acaba excluindo de seu cardápio um número cada vez maior de alimentos, chegando a restrições quantitativas muitas vezes comprometedoras”, afirma Dell’Osso. Esse comportamento pode levar a déficits nutricionais graves e às mesmas complicações que caracterizam as formas mais graves de anorexia: perda de massa ósoutubro 2017 • mentecérebro 27
capa sea, alterações metabólicas como a acidose, déficits hormonais, braquicardia, anemia e pancitopenia (redução das células do sangue que pode levar, entre outras consequências, a um aumento do risco de hemorragias e infecções). Do ponto de vista psicológico, as pessoas ortoréxicas costumam experimentar forte sentimento de frustração quando as regras alimentares são quebradas, ficam com nojo se a presumida pureza da comida parece comprometida e sentem culpa e desprezo por si mesmas se cometem transgressões. Tudo é rodeado de uma constante preocupação com a saúde. Se o ortoréxico violar as suas prescrições, pode acabar experimentando o desejo de autopunição, que se manifesta com normas ainda mais rígi-
das ou práticas purificadoras como o jejum, ministrado de forma excessiva (leia quadro na pág. 30). QUEM SE TORNA ORTORÉXICO? A ortorexia é, com frequência, o espelho de um distúrbio mais profundo. “Que uma pessoa não beba leite se ele for pasteurizado não é por si só um problema. Mas por trás dessa linha de pensamento pode haver algum raciocínio específico, uma motivação mais profunda”, afirma Donini. Pessoas perfeccionistas, ansiosas, com tendências obsessivas e hipocondríacas podem ser mais propensas à ortorexia. Aqueles que se interessam muito pela alimentação, seja por motivos profissionais, para evitar doenças ou pela preocupação com a forma física, são
Comportamento à mesa O teste ORTO-15 identifica hábitos alimentares e exageros, como ortorexia. Os resultados do questionário não têm valor de diagnóstico, apenas oferecem indícios de práticas e rotinas que ameaçam a saúde Perguntas 1. Ao comer, você presta atenção às calorias dos alimentos? 2. Você fica confuso(a) ao entrar em uma loja de produtos alimentares? 3. Nos últimos três meses, o pensamento sobre a comida tem sido uma preocupação para você? 4. As suas escolhas alimentares são condicionadas pela preocupação com seu estado de saúde? 5. O sabor é a qualidade mais importante que você leva em consideração ao avaliar uma comida? 6. Está disposto a gastar mais para ter uma comida saudável? 7. O pensamento sobre a comida saudável preocupa você por mais de três horas por dia? 8. Você se concede alguma transgressão alimentar? 9. Acredita que o seu humor influencie o seu comportamento alimentar? 10. Acredita que a convicção de alimentar-se com comida saudável aumenta sua autoestima? 11. Acredita que o consumo de comida saudável modifique o seu estilo de vida (idas a restaurantes, amigos...)? 12. Acredita que consumir comida saudável pode melhorar sua aparência física? 13. Sente-se culpado(a) quando faz transgressões? 14. Acredita que há no comércio também comidas não saudáveis? 15. Atualmente, quando consome as refeições, o faz sozinho(a)?
28
Sempre
Frequentemente
Às vezes
Nunca
guntas que investigam hábitos alimentares, emoções e as preocupações ligadas à comida. A ferramenta, validada pela primeira vez em italiano e depois traduzida para diversas línguas, constitui o principal instrumento de diagnóstico para a ortorexia. A sua aplicação apresentou, porém, resultados heterogêneos, observando-se uma prevalência da doença entre 7% e 57% na população geral e até 82% em grupos de alto risco. Especialistas advertem que, dentro de um espectro de comportamentos anormais, somente os casos mais extremos são realmente patológicos. Pode ser associada ao ORTO-15 uma versão modificada do MMPI (Minnesota Multiphasic Personality Inventory), um teste para a avaliação de traços obsessivo-compulsivos. Pensamentos inva-
os que correm mais risco de desenvolver um quadro ortoréxico. Ainda há poucos estudos sobre o tema, mas alguns levantamentos indicam que a patologia é mais frequente entre estudantes de nutrição e medicina e profissionais dessas áreas, além de artistas plásticos, atores e atletas. Um estudo publicado na Rivista di Psichiatria em 2016, realizado com 2.826 estudantes e funcionários da Universidade de Pisa, revelou que 32,7% dos participantes tinham “traços” ortoréxicos. Segundo o texto, as mulheres parecem mais inclinadas à ortorexia. A investigação foi conduzida por meio de um questionário autoaplicável, o ORTO-15 (veja quadro abaixo). O teste, útil para identificar o “fanatismo alimentar”, foi idealizado em 2005 pelo grupo de Donini e é constituído por 15 per-
HORA DE CONTAR OS PONTOS Perguntas
Respostas Sempre
Frequentemente
Às vezes
Nunca
2, 5, 8, 9
4
3
2
1
3, 4, 6, 7, 10, 11, 12, 14, 15
1
2
3
4
1, 13
2
4
3
1
• Pontuação inferior a 35 indica um comportamento potencialmente de risco. A preocupação com a procura dos alimentos e com a preparação das refeições poderia ser excessiva. Preocupar-se com a própria saúde é normal, mas às vezes essas preocupações são irracionais. Se as regras autoimpostas começam a prejudicar o seu bem-estar psicofísico e a sua vida social, pode ter chegado o momento de revê-las, talvez com a ajuda de um especialista. • Pontuação superior a 35 (especialmente se for superior a 40) indica uma boa consciência da importância da alimentação para a saúde. Você é atento àquilo que come sem ser obcecado pelo pensamento na comida. Mas, se a maior parte das suas respostas foi “nunca”, seu interesse pela alimentação pode ser escasso demais. Uma dieta não equilibrada, rica em gordura e açúcar, pode levar à obesidade e ao um risco aumentado de acidente vascular cerebral (AVC) ou infarto e de doenças metabólicas, em especial diabetes e aparecimento de tumores.
shutterstock
Fonte: Seção de Ciências da Alimentação do Departamento de Fisiopatologia Médica da Universidade de Roma La Sapienza. L. M. Donini, D. Marsili, M. P.Graziani, M. Imbriale e C. Cannella, Orthorexia nervosa: validation of a diagnosis questionnaire, em Eat Weight Disorders2005, 10, e28e32.
outubro 2017 • mentecérebro 29
Polêmicas do jejum Nos últimos anos, a adoção de dietas restritivas, nas quais a pessoa opta por se abster de alimentos por alguns períodos, tem ganhado adeptos. Embora a privação não seja consenso entre médicos e pesquisadores, vários cientistas argumentam que o jejum pode ser um aliado importante para a saúde, ajudando a combater a depressão e a estimular a reciclagem dos neurônios. Estudos feitos em animais revelam que a prática tem potencial para fortalecer a memória, aumentar a vitalidade e até diminuir sintomas de demência. O pesquisador Dieter Melchart, professor de medicina complementar e alternativa da Universidade Técnica de Munique, afirma que o excesso de ingestão de alimentos ao qual nos habituamos nas últimas décadas deixa marcas que podem se traduzir em patologias como obesidade, diabetes, acidentes vasculares cerebrais (AVC), hipertensão, cardiopatias e Alzheimer. Mas ressalta: “Quem simplesmente ficar sem comer durante três dias, sem preparação para isso, provavelmente adoecerá e, em certos casos, pode até morrer”. Em países da Europa e nos Estados Unidos já existem “clínicas de jejum”. De acordo com o especialista em biologia celular Valter Longo, da Universidade do Sul da Califórnia em Los Angeles, a restrição alimentar desacelera o envelhecimento e pode também ter efeito positivo no tratamento de alguns tipos específicos de câncer. “Há casos em que o jejum ajuda a combater a doença, mas também existem situações em que pode agravá-la; o limite entre o que faz bem e o que faz mal é muito tênue”, observa o doutor em farmacologia Gustavo Pereira, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que trabalha com modelos neuronais mimetizados em doenças de Alzheimer, Parkinson e Huntington in vitro, no Laboratório de Farmácia/Setor Modo de Ação de Drogas da universidade. (Por Ulrike Gebhardt, bióloga especializada em divulgação científica) 30
sivos relativos à comida, preocupações com qualidade e tendência a transformar as refeições em rituais parecem ser elementos bastante característicos do paciente ortoréxico. As obsessões do paciente ortoréxico são basicamente de caráter egossintônico, ou seja, congruentes com as suas necessidades e desejos e, portanto, não costumam ser consideradas um desconforto ou uma limitação, até que surjam efeitos colaterais graves desse comportamento. A incapacidade de compreender as consequências e os riscos aproxima os ortoréxicos dos anoréxicos. Há algo comum entre os dois distúrbios: a busca por um ideal, seja de magreza ou de saúde – no primeiro caso, com a alimentação reduzida e, no segundo, na escolha de comida da melhor qualidade. A obsessão dos anoréxicos pela imagem corporal e pela perda de peso em geral é estranha ao ortoréxico. O que é comum às duas condições é a ruminação contínua, o fato de retornar constantemente às próprias preocupações e sentimento de culpa depois da quebra, mesmo que involuntária, das rígidas regras alimentares, o que leva, geralmente, a um endurecimento ainda maior delas. Em raros casos, a ortorexia pode ser precursora de um distúrbio mais importante, como aconteceu com S., uma mulher de 33 anos. Em 2012, o psiquiatra indiano Sahoo Saddichha acolheu no Instituto para a Saúde Mental e Neurociências de Bangalore a paciente muito abaixo do peso e em estado de confusão mental. O caso foi reportado no Schizophrenia Research. Nos oito anos ante-
shutterstock
capa
Dificuldade de aceitar o tratamento A ortorexia não figura nas classificações da edição mais recente do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5), adotado para o diagnóstico das patologias psiquiátricas. Ainda assim, especialistas argumentam que o paciente ortoréxico tem, antes de tudo, necessidade de suporte psicológico. Caso apresente também carências nutricionais, esteja abaixo do peso ou tenha problemas orgânicos, a abordagem deverá ser também médica, com direcionamento para a reeducação alimentar. “Mas sabemos que 90% da terapia é psicológica”, enfatiza o nutrólogo Lorenzo Donini, professor da Universidade
de Roma La Sapienza. “Esses pacientes têm, sobretudo, problemas emocionais e sociais, agravados porque terminam se isolando.” Um tratamento psicoterápico combinado com medicação farmacológica e reeducação parece ideal, embora ainda não haja um número significativo de estudos que tenham verificado a eficácia dessas abordagens. Talvez a maior dificuldade não seja tratar, mas sim diagnosticar o distúrbio, já que dificilmente o ortoréxico reconhece que tem um problema. “Observamos que essas pessoas veem o seu modo de se relacionar com a comida como um valor positivo, não como um valor negativo”, diz Donini.
riores, S. havia seguido uma dieta baseada exclusivamente em frutas frescas, verduras e legumes crus e ovos não cozidos, na convicção de que cozinhar os alimentos os privaria das suas propriedades nutricionais. Rompeu relações com todos os parentes e amigos, exceto com a mãe, a quem convenceu a seguir a mesma dieta. Nos últimos meses, desenvolveu sintomas aparentemente esquizofrênicos, com ideias paranoicas recorrentes sobre sofrer perseguição da família e de conhecidos. O evento, no entanto, é excepcional; geralmente, os casos de pacientes ortoréxicos descritos na literatura são poucos e extremos e poderiam ser apenas a ponta do iceberg de um fenômeno difuso. “Numa sociedade na qual a alimentação saudável é um culto, esses problemas em geral não vêm à tona”, comenta Donini.
ideia não é vista como um problema” (veja quadro acima). Numa sociedade em que programas de TV e blogs fazem da alimentação “saudável” a sua bandeira, em que somos bombardeados por informações sobre os riscos de comer de forma incorreta e por recomendações sobre quanta fruta, gordura e proteína podem ser consumidas, um fenômeno como o da ortorexia não pode surpreender. “Hoje a manipulação da imagem corporal e a preocupação com a saúde tornaram-se tão importantes que constituem um terreno fértil para a manifestação de problemas psicológicos”, comenta Donini. Nesse sentido, distúrbios alimentares podem ser considerados um fenômeno cultural; a sua manifestação depende da sociedade na qual se manifestam e se difundem. “O aumento de casos de anorexia, por exemplo, coincidiu com a ascensão de um padrão estético andrógino de mulher”, afirma Dell’Osso. “Já o transtorno da compulsão alimentar periódica veio após a difusão de ofertas de alimentos que contrapõem a extrema palatabilidade e a acessibilidade econômica à comida.” Alguns profissionais acreditam mesmo que a ortorexia seja uma espécie de “herdeira” da anorexia e se torne cada vez mais frequente.
SINTOMA ATUAL Embasadas em convicções profundas e irracionais, as escolhas dos ortoréxicos não são discutidas com médicos ou especialistas, permanecendo invisíveis. “Lembro-me de pacientes que recusavam o leite pasteurizado acreditando que fosse um produto insalubre, porque era processado”, diz Donini. Mas quem é que vai ao médico porque não confia no leite UHT? Ninguém, porque essa
PARA SABER MAIS On orthorexia nervosa: a review of the literature and proposed diagnostic criteria. T. M. Dunn e S. Bratman, em Eating Behaviors, vol. 21, págs. 11-17; abril de 2016. Historical evolution of the concept of anorexia nervosa and relationships with orthorexia nervosa, autism, and obsessivecompulsive spectrum. L. Dell’Osso e outros, em Neuropsychiatric Disease and Treatment, vol. 12, págs. 1651-1660; 2016. The clinical basis of orthorexia nervosa: emerging perspectives. N. S. Koven e A. W. Abry, em Neuropsychiatric Disease and Treatment, vol. 11, págs. 385-394; 2015.
outubro 2017 • mentecérebro 31
X
ESCRITA
Mais caneta e papel, por favor!
Em busca de comodidade, cada vez mais deixamos de lado o papel e optamos por digitar. De fato, parece mais prático escrever um e-mail do que uma carta. Mas, como tudo tem seus prós e contras, nessa área também não é diferente. E, quando se trata de redigir, um grupo de cientistas adverte que nem sempre o método mais rápido é, necessariamente, o melhor. Segundo pesquisadores da Universidade Princeton, tomar notas à mão favorece a capacidade de síntese e ajuda a focar o essencial e – melhor – a reter conceitos com mais facilidade. O psicólogo Daniel Oppenheimer e sua equipe chegaram a essa conclusão quando pediram a alguns estudantes que assistissem a uma palestra e fizessem anotações – parte deles à mão e parte usando um notebook. Depois de 30 minutos, os pesquisadores fizeram entrevistas com os voluntários sobre aspectos factuais e conceituais do conteúdo visto e descobriram que aqueles que escreveram com papel e caneta se saíram significativamente melhor, sobretudo em relação a ideias 32
abstratas, ainda que o restante tivesse registrado maior quantidade de informações no computador. Os pesquisadores ressaltam que, quando tomamos notas, selecionamos determinados dados (e os codificamos) e os recordamos mais tarde (o que favorece o armazenamento e facilita a aprendizagem). Quando o registro se torna muito fácil, tendemos a nos dispersar e perdemos a oportunidade de absorver algo novo, principalmente quando se trata de conceitos, e não fatos. Escrever à mão, por outro lado, nos obriga a focar o essencial já que, em geral, não somos fisicamente capazes de escrever cada palavra do que é dito, o que termina facilitando a assimilação. Os resultados publicados na Psychological Science ajudam a esclarecer um fenômeno que os psicólogos chamam de “dificuldade desejável”, para se referir à necessidade de esforço e investimento com o intuito de assimilar novos conteúdos. “Às vezes, os obstáculos que nos frustram nos ajudam a aprender”, diz Oppenheimer.
shutterstock
Tomar notas à mão pode ser mais eficaz para o processo de aprendizagem do que digitar; especialistas acreditam que essa prática ajuda a reter informações
neurocircuito
Escrever para curar a dor Registrar de forma orientada experiências traumáticas pode auxiliar as pessoas a refletir sobre si e a superar a dor da perda. Segundo estudo publicado no Journal of Paliative Medicine, a “escrita terapêutica” ajuda o paciente a descrever detalhes de experiências negativas, explicitar sentimentos, colocar os fatos em ordem cronológica e estabelecer nexos. O artigo se apoia na ideia de que descrever os próprios sentimentos e emoções em uma narração coerente dos fatos tem utilidade em situações específicas, como elaborar o luto da morte de uma pessoa querida. Para medir a eficácia da técnica, os pesquisadores avaliaram os pacientes deprimidos depois de esses voluntários terem passado por uma perda significativa e pediram que registrassem regularmente seus sentimentos, Curiosamente, foi constatada melhora no estado geral de humor e ânimo das pessoas após o exercício. “Estudos recentes com ressonância magnética funcional demonstraram que nosso cérebro trabalha de forma diferente antes, durante e depois de escrevermos”, observa o psicólogo James Pennebaker, diretor do Departamento de Psicologia da Universidade do Texas em Austin. Pioneiro nesse tipo de pesquisa, ele investiga desde a década de 90 a ligação entre a capacidade de escrita expressiva e alterações biológicas. A escrita terapêutica, complementar à terapia da fala, não se contrapõe à expressão oral. Pelo contrário: assim como na comunicação verbal, permite associações inesperadas, que muitas vezes levam a questões inconscientes intrincadas – e fundamentais para o tratamento. Cientistas reconhecem, porém, que a neurobiologia da escrita terapêutica ainda apresenta muitos pontos obscuros. Algumas tentativas de registrar a atividade neural antes e depois de a pessoa escrever renderam poucas informações, pois as regiões ativas estão localizadas em áreas muito profundas do cérebro. O que se sabe é que a escrita ativa um conjunto de vias neurológicas – e vários estudiosos estão comprometidos em descobri-las. Atualmente na Universidade do Arizona, o neurocientista Richard Lane, doutor em psicologia, usa técnicas de imagem cerebral para estudar a neuroanatomia das emoções e a forma como elas são expressas. outubro 2017 • mentecérebro 33
shutterstock
criança
Rir
é coisa séria
O riso infantil – uma manifestação automática, independentemente da cultura ou língua nativa – pode revelar como os bebês pensam
por Gina C. Mireault
A AUTORA GINA C. MIREAULT é doutora em psicóloga do desenvolvimento, professora da Johnson State College, em Vermont.
outubro 2017 • mentecérebro 35
criança
Por volta de 18 semanas, eles já costumam rir; essa expressão pode ser estimulada em crianças bem pequenas, quando alguém apresenta a elas um evento fora do comum e que desafia as expectativas das regras sociais
M
eu filho tinha 3 meses quando deu sua primeira gargalhada. O fato de ele ter feito isso num funeral foi mais do que irônico: foi constrangedor. Seu riso era tão poderoso que transformou a tristeza das pessoas ao redor em alegria – de forma simultânea e quase que instantaneamente. Essa observação me motivou a fazer pesquisas empíricas sobre o surgimento do riso tão cedo na vida e o grande impacto que pode causar. Sou psicóloga do desenvolvimento e estudo o assunto há quase uma década em meu laboratório da Faculdade Estadual Johnson, em Vermont. Como eu, vários cientistas se sentem intrigados com a manifestação precoce da risada dos bebês e se perguntam o que isso pode revelar sobre os pequenos. O riso é universal. É uma resposta automática que aparece nos primeiros meses de vida, independentemente da cultura ou língua nativa. Não importa se uma criança é criada no Canadá ou na Coreia, no Peru ou no Paquistão, sua primeira risada vai deleitar seus pais entre as 14 e 18 semanas de vida. Mas os cientistas, por outro lado, só começaram a compreender seu significado recentemente. Claro, a risada não é exclusivamente uma expressão de prazer. Em adultos, pode ocorrer em muitos contextos emocionais, como quando estamos nervosos, por exemplo, em resposta ao riso de terceiros ou simplesmente quando encontramos alguém. Mas por que as crianças riem? Talvez não tenha tanto a ver com o que acham engraçado. Até onde sabemos, não existe uma piada universal para bebês. (A gargalhada durante o funeral foi provocada pelo espirro de uma pessoa.) Devemos, portanto, considerar como os pequenos extraem o humor do ambiente em que estão. 36
Diferentemente do choro, que claramente incita o cuidador a entrar em ação, o riso parece ser um luxo emocional. O fato de um ser humano de apenas 3 meses acessar essa habilidade – muito antes de outros marcos significativos, como adquirir a linguagem e andar – sugere que os gracejos têm função importante e podem revelar muito sobre como as crianças compreendem o mundo físico e social. UMA COISA ENGRAÇADA Não parece ser obra do acaso o riso ter sido priorizado e preservado na cadeia evolutiva. De fato, várias espécies, como chimpanzés, macacos, esquilos e outros primatas, fazem vocalizações em momentos de descontração que se assemelham a gargalhadas. Esses mamíferos (principalmente os mais jovens) exibem sons rítmicos próprios enquanto brincam juntos, com tom emocional. O neuropsicólogo evolutivo Jaak Panksepp, pesquisador das universidades Estadual Bowling Green e Estadual de Washington, afirma que o cérebro de qualquer animal guarda circuitos neurais, similares aos nossos, relacionados com o riso. Essas áreas incluem centros emocionais e de memória, como a amígdala e o hipocampo. O riso parece “caminhar” pela superfície do córtex como uma resposta involuntária, ativando os sistemas neurais associados com o prazer. Um famoso estudo no qual Panksepp usou de tecnologias que permitem ouvir frequências altíssimas mostra que ratos emitem sons rítmicos quando lhes fazem “cócegas”. Nos humanos, as risadas infantis ganharam a atenção de alguns estudiosos proeminentes. No século IV a.C., Aristóteles postulou que o primeiro sorriso marcava a transi-
shutterstock
ção da criança para a humanidade e servia de evidência primária de que ela tinha adquirido uma alma. Em 1872, Charles Darwin levantou a hipótese de que os gracejos, como outras expressões de emoção posturais, faciais e comportamentais, “serviam como um sinal social de mera felicidade ou alegria”. Em seu volume histórico, A expressão das emoções no homem e nos animais (Companhia de Bolso, 2009), o autor descreve meticulosamente o riso de seu próprio filho. Escreve: “Com 113 dias de vida, esses pequenos ruídos, que sempre eram feitos durante a expiração, assumiram caráter ligeiramente diferente e foram mais quebrados ou interrompidos, como no soluço; e isso foi certamente uma incipiente risada”. A psicologia, no entanto, negligenciou o tema por décadas. Durante a maior parte de sua história, pesquisadores se concentraram principalmente em questões consideradas negativas, como raiva, depressão, ansiedade e doenças mentais. Essa tendência começou a mudar aproximadamente há 40 anos,
quando alguns psicólogos decidiram estudar a felicidade, a psicologia do bem-estar e a resiliência à adversidade. A partir daí, nasce um subcampo conhecido como psicologia positiva. Somente nos últimos 30 anos, os psicólogos do desenvolvimento adquiriram metodologias para fazer inferências sobre a cognição e as emoções das crianças. Num desses métodos, o “paradigma do olhar”, é cronometrado o tempo que os pequenos passam encarando algo. Vários estudos demonstram que os bebês tendem a focar mais um objeto novo, o que, no nível mais básico, revela que podem diferenciá-lo de algo familiar. Em 1985, as psicólogas Elizabeth Spelke, agora na Universidade Harvard, e Renée Baillargeon, da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, utilizaram a noção de paradigma do olhar para estudar o conhecimento conceitual dos bebês. As pesquisadoras apresentavam aos pequenos participantes do estudo cenários possíveis e impossíveis – por exemplo, um objeto que, de acordo com
BEBÊS COMEÇAM A RIR antes de dominar a fala, uma habilidade que pode ter raízes evolutivas profundas: várias espécies, como bonobos, fazem vocalizações e dão risadas durante interações divertidas
outubro 2017 • mentecérebro 37
QUANDO UM EVENTO quebra as expectativas dos bebês, eles olham fixamente; mas, para que reconheçam algo como cômico, é necessário que haja um contexto social específico; situações improváveis podem ser mais surpreendentes do que engraçadas
38
as leis naturais, não penetraria em uma barreira sólida. E, em seguida, mostravam uma situação semelhante que indica o contrário. Spelke e Baillargeon observaram que os bebês contemplavam os eventos inesperados por mais tempo. Os resultados levaram as psicólogas a deduzir que as crianças pequenas têm algumas expectativas simples sobre como os objetos se comportam – e, quando o que esperam não acontece, sua atenção é despertada. O fato é que essas mudanças são poderosos estímulos em relação ao humor. Comediantes stand-up costumam explorar as expectativas para fazer o público rir. Fazem suspense e forçam os limites das normas e aceitabilidade para provocar a risada, seja com trocadilhos, críticas ou chistes. Para que algo seja cômico, a pessoa que conta e a
que ouve a piada precisam de algum conhecimento comum. O humor, portanto, exige pelo menos alguma compreensão rudimentar do mundo físico e social. Esse entendimento pode se apoiar em experiência e observação, que oferecem o suporte para o que é “compartilhado”. Com essa base, podemos diferenciar o comum do absurdo. A pesquisa que fiz em meu laboratório mostra que apenas quatro semanas depois que o riso aparece crianças de até 5 meses podem apresentar a diferença perceptual básica de forma independente. Em 2014, meus colegas e eu publicamos resultados de um experimento em que apresentamos eventos comuns e absurdos a 30 bebês. Por exemplo, um auxiliar pressionava e rolava uma bola de espuma vermelha (cenário comum) e, em seguida, a usava como um nariz (repetição absurda). Os bebês não só faziam distinção entre as cenas, como riam da última. A principal constatação foi que as risadas não eram uma imitação: ocorriam mesmo quando o ajudante e os pais eram instruídos a permanecer emocionalmente neutros. Apenas alguns meses depois, por volta dos 8 meses, a maioria já sabe como ser engraçada e entende como fazer que os outros deem risada sem usar nenhuma palavra. A psicóloga Vasudevi Reddy, da Universidade de Portsmouth, na Inglaterra, chama de “clowning” (fazer palhaçada) essa forma de humor não verbal. Ela documentou crianças de 8 a 12 meses envolvidas com esse comportamento em suas mais variadas formas – por exemplo, ao fazer o movimento de vai e vem com a cantiga “Serra-serra-serrador” ou ao pegar uma fralda limpa, fingir nojo e soltar uma gargalhada. Bebês com essa idade também sabem fazer provocações, como sorrir timidamente enquanto desobedecem de forma intencional às ordens da mãe ou do pai de, por exemplo, não subir as escadas ou oferecer sucrilhos ao cachorro. Esse “fingimento” foi observado em crianças ainda mais novas, de aproximadamente 6 meses, momento em que os pequenos já podem dissimular risadas (ou choro) para receber atenção. Mais importante, os bebês podem criar interações e decidir quando e com quem em-
shutterstock
criança
pregar essas técnicas. O mais interessante é que essas brincadeiras e provocações podem oferecer uma janela para entendermos o funcionamento da consciência das crianças. Particularmente, o ato de desafiar exige pelo menos compreensão rudimentar da mente alheia; desejo de se envolver; e criação de hipótese de como atingir outra pessoa. Dissimular significa saber que alguém pode, na verdade, ser enganado. Essa compreensão refinada, chamada de teoria da mente, era, até alguns anos atrás, creditada apenas a crianças com pelo menos 4 anos. Embora os bebês não apresentem a sofisticação mental dos mais velhos, sua capacidade de provocar os outros sugere que tenham pelo menos algum nível desse tipo de consciência. GRANDES EXPECTATIVAS Clowning e provocação refletem a natureza essencialmente social do humor, mas, para que algo nos faça cair na gargalhada, precisamos mais do que apenas a presença de outros. Afinal, os bebês passam a maior parte do tempo com pessoas, mas proporcionalmente pouco tempo rindo. Isso ocorre porque o humor – seja para adultos ou crianças pequenas – requer um componente cognitivo: a incongruência. Trata-se de uma situação que expressa uma espécie de contradição, que a psicóloga Elena Hoicka, professora da Universidade de Sheffield, na Inglaterra, descreve como “misexpected” (mal antecipada, em tradução livre), o que significa criar um desalinhamento entre o que a criança supõe e o que experimenta. Eventos assim não são tão comuns. Por outro lado, acontecimentos verdadeiramente inesperados são completamente chocantes ou surpreendentes – e, como tais, podem ser percebidos como mais perturbadores ou extraordinários do que engraçados. Por exemplo, quando um copo é usado como chapéu, não combina com a experiência prévia do bebê com copos (ou com chapéus). Mas, se o copo se transformasse em um antílope, a situação seria totalmente imprevisível. Bebês, crianças maiores e adultos consideram eventos inesperados interessantes, mas não necessariamente engraçados. Várias explicações surgem das pesquisas com o pa-
Fundamental para a socialização, o riso desempenha papel importante na comunicação, o que pode explicar por que surge tão cedo na vida
radigma da quebra de expectativa. Quando alguém apresenta violações de leis físicas naturais a crianças pequenas – como gravidade, solidez, inércia –, elas costumam observar esses eventos “mágicos”, mas não riem. Contextualizando as ideias de Hoicka com a pesquisa sobre o olhar e o interesse infantil, podemos conjecturar que o humor se relaciona com as expectativas de comportamento social. Um brinquedo que voa pelo espaço e desafia a gravidade é motivo de admiração. Mas e a avó usando esse objeto na cabeça? Pode ser absolutamente hilário. Teóricos do humor apresentam uma possível explicação com a ajuda de um fenômeno que chamam de resolução de incongruência. Perceber uma incoerência como humorística exige que ela seja resolvida, o que significa entender sua causa ou chegar ao “sentido da piada”. O instante em que o ouvinte decodifica a nuance ou o duplo sentido de um chiste verbal, por exemplo, é o momento de conclusão. É o ponto em que a natureza ilógica de “por que a galinha atravessou a rua” se torna humorística, seja ou não acompanhada por risadas. Há 40 anos, muitos psicólogos cognitivos estavam convencidos de que os bebês não tinham sofisticação suficiente para resolver a incongruência. As psicólogas Diana Pien e Mary Rothbart, ambas então da Universidade de Oregon, propunham que a percepção do humor não exigia necessariamente habilidades mentais avançadas. Em um estudo publicado em 2012, meus alunos e eu decidimos testar a ideia. Pedimos a 30 pais que “agissem como de costume” para fazer seu bebê sorrir ou dar risada e observamos que eles recorriam exageradamente ao clowning. Faziam barulho com a boca, caretas estranhas, caminhavam como pinguins – na maioria das vezes, interações cotidianas comuns. O comportamento, outubro 2017 • mentecérebro 39
criança no mínimo, chamava atenção da criança. Começamos a monitorar essas famílias quando os filhos estavam com 3 ou 4 meses e continuamos até completarem o primeiro ano. No início, 40% davam risada em resposta às brincadeiras dos pais; por volta dos 6 meses, esse número havia subido para 60%. Os bebês não precisam de muito para resolver situações mal antecipadas e achar graça delas. De fato, eles se baseiam em pelo menos três pistas disponíveis. O contexto social é um deles: atos absurdos feitos por um parceiro social podem ser suficientes para a criança interpretar o comportamento como positivo. Meus colegas e eu observamos que os pais praticam clowning, às gargalhadas, em 65% das vezes. Essa combinação sinaliza que as travessuras são seguras, satisfatórias e alegres. O segundo fator é a familiaridade. As pessoas que convivem com os bebês costumam repetir “ações tolas” até que a criança dê risada e, então, continuar justamente porque ela riu. Talvez a reiteração do cuidador permita que o bebê preveja a ação e seu resultado ou que faça inferência sobre o ato de forma intencional. Equilibrar a colher no nariz, brincadeira comum dos pais, não é interpretado por quem assiste como algo inesperado se a cena acontece inúmeras vezes. A psicóloga Amanda Woodward, agora da Universidade de Chicago, demonstra que, a partir do primeiro aniversário, as crianças podem inferir a intenção da fala e das ações dos outros. Por último, bebês diferenciam incongruências extraordinárias e humorísticas considerando que estas últimas são possíveis. Ou seja: não há nada de mais em ver a mamãe usar um copo como chapéu. A natureza comum dos eventos engraçados pode levar as pessoas (incluindo os bebês), para além dessa condição inicial de admiração, a um estado final de humor. Seja qual for a estratégia, evidências experimentais mostram que, embora os bebês comecem a rir com aproximadamente 5 meses, eles podem começar a achar graça ainda mais cedo. As crianças de 4 meses que participaram do nosso estudo observavam situações cômicas com fascínio, registrando 40
uma significativa desaceleração da frequência cardíaca. Essa resposta fisiológica é exibida quando mostram o mesmo interesse em um estímulo, bem como quando sorriem. CALMA FISIOLÓGICA O psicólogo Stephen Porges, da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, argumenta que a desaceleração da frequência cardíaca não reflete necessariamente a alegria, mas a disposição da criança para o prazer. Quando confrontados com algo novo, os bebês costumam encarar, uma resposta acompanhada por uma desaceleração da frequência cardíaca. Segundo o pesquisador, essa calma fisiológica funciona como estratégia que permite à criança permanecer orientada para um estímulo desconhecido e não ameaçador. Quando essa reação é combinada com seu viés para a sociabilidade, os bebês podem se beneficiar dessa resposta tranquila, encontrando prazer no absurdo. Nosso trabalho sugere que as crianças realmente podem perceber e fazer humor. Mas nem todo riso se relaciona com diversão. Embora não existam provas de que as crianças deem risada em momentos de desconforto, sabemos que os adultos têm a capacidade de sorrir sem alegria – e que, de fato, muitas vezes, agem assim. Essa observação pode ajudar a conhecer o propósito mais profundo do fenômeno. Independentemente de como se desenvolve, sabemos que a risada é social. Os psicólogos Robert Kraut e Robert Johnston, falecido em 2014, ambos da Universidade Cornell, inauguraram o campo da psicologia evolutiva com um estudo histórico de 1979, demonstrando, entre outras coisas, que jogadores de boliche eram mais propensos a sorrir não após um strike, mas depois de encarar o público logo em seguida à jogada de sucesso. O psicólogo Robert Provine, da Universidade de Maryland, do Condado de Baltimore, revela que a risada é 30 vezes mais provável de ocorrer na companhia de alguém, independentemente de algo divertido acontecer. A pesquisa de Provine mostra que o sorriso geralmente vem logo depois de comentários banais, como “Melhor me apressar” ou “Bom te ver!” – mais frequentemente até do que no
shutterstock
A PARTIR DOS 8 MESES, os pequenos podem se revelar ótimos comediantes, mesmo sem dizer nada; fazem palhaçadas e provocações, como tentar colocar os dedos na boca da mãe ou do pai
final de uma piada. Além disso, podemos nos divertir sem dar nenhuma risada. Para os mais novos, o riso parece indicar tanto emoções positivas como vínculos afetivos. E, na fase adulta, nos mantém conectados e em harmonia, propõem os psicólogos evolucionários Robin Dunbar, da Universidade de Oxford, e Guillaume Dezecache, da Universidade de Neuchâtel, na Suíça. A ideia é apoiada, sobretudo, pela característica contagiante do riso em contextos grupais, mesmo entre estranhos. As gargalhadas, portanto, servem como uma espécie de cola social, com muitos significados possíveis. O riso nervoso de um pode induzir o outro a oferecer uma palavra de conforto, enquanto uma risada irreverente pode sinalizar que a provocação é apenas uma brincadeira. Elena Hoicka descreve o que chama de “quadro humorístico”, em que parceiros sociais podem interagir de tal maneira que ambos interpretem uma interação, por exemplo, a pirraça, como positiva. De fato, a maioria das crianças de 4 a 6 meses espera por emoções positivas. Ainda
sem desconfiar de estranhos ou da separação dos cuidadores primários, os bebês em geral estão prontos para a interação com qualquer um, o que aumenta as oportunidades de brincar, dar risada e sorrir exatamente no momento em que esse tipo de resposta está disponível. Do ponto de vista evolutivo, esse surgimento conjunto de riso e sociabilidade é sábio. O fato é que rir tem um lado sério. Seu valor como sinal social e supercola de mamíferos explica por que acreditamos que seja uma “peça de fábrica”, uma parte de algo nato dos bebês. Aos 4 meses, é mais provável que o riso dos pequenos seja o início neurológico de seu intenso interesse para a novidade e a valorização do contexto social de forma mais ampla. Mas, depois de um mês, eles já têm sofisticação cognitiva suficiente para detectar e interpretar eventos sociais novos e não ameaçadores como engraçados por si mesmos. Algumas semanas mais tarde, os bebês também podem produzir essas situações – para a alegria de quem está ao redor.
PARA SABER MAIS Humor in infants: developmental and psychological perspectives. Gina C. Mireault, em Vasudevi Reddy. Springer, 2016. How infants know minds. Vasudevi Reddy. Harvard University Press, 2008. Infant clowns: the interpersonal creation of humour in infancy. Vasudevi Reddy, em Enfance, vol. 53, nº 3, págs. 247–256; 2001.
outubro 2017 • mentecérebro 41
meditação
para iniciantes 42
shutterstock
Atenção plena
A prática de mindfullness pode ser entendida como o no ato de manter a consciência deliberadamente voltada ao momento presente, sem fazer julgamentos; um ato simples, capaz de proporcionar inúmeros benefícios por Jon Kabat-Zinn
A
atenção plena (mindfullness) e sua utilização na área da saúde e do combate a doenças têm sido tema cada vez mais frequente de estudos e descobertas nas últimas quatro décadas, desde a fundação da Clínica de Redução do Estresse e do Programa de Redução do Estresse Baseado na Atenção Plena (MBSR) em 1979, no Centro Médico da Universidade de Massachusetts. O treinamento em MBSR e intervenções relacionadas a essa terapia têm se revelado altamente eficazes em reduzir o estresse e problemas médicos ligados a esse quadro, como ansiedade, pânico e depressão. A atenção plena também se mostrou útil para ajudar os portadores de dor crônica a viver melhor, a melhorar a qualidade de vida de pessoas com câncer e esclerose múltipla e a reduzir as recaídas em pacientes com um histórico de depressão grave. Essas são apenas algumas das muitas descobertas clínicas relatadas na literatura científica. O Programa de Redução do Estresse Baseado na Atenção Plena também se provou capaz de afetar de maneira positiva a forma como o cérebro processa emoções difíceis sob estresse, passando a ativar não as áreas do lado direito do córtex pré-frontal, mas as do esquerdo – na direção de um maior equilíbrio emocional. A MBSR também induz mudanças positivas no sistema imunológico – relacionadas com as mudanças que causa no cérebro. Outros estudos revelaram que pessoas treinadas em MBSR apresentam boa ativação de redes no córtex cerebral que estão envolvidas na experiência direta do momento presente. Pessoas que não praticam a atenção plena mostram menor ativação nesses circuitos, enquanto as redes envolvidas na geração de narrativas sobre as experiências parecem mais ativas. Essas descobertas sugerem que a prática da atenção plena desenvolve novas formas de experimentarmos a nós mesmos e influencia a maneira como criamos histórias sobre as nossas vivências.
Agora está se tornando evidente que o treinamento em MBSR também resulta em mudanças estruturais no cérebro: o espessamento de certas regiões, como o hipocampo, que desempenha papéis importantes no aprendizado e na memória, e a redução de outras regiões, como a amígdala direita, uma estrutura do sistema límbico que regula nossas reações de medo frente a ameaças de qualquer tipo, o que inclui a frustração dos nossos desejos. Existem muitas outras descobertas surpreendentes na pesquisa da atenção plena, e a cada dia novos estudos são divulgados na literatura científica. REDUÇÃO DO ESTRESSE Desde 1979, eu e meus colegas da Clínica de Redução do Estresse do Centro Médico da Universidade de Massachusetts oferecemos, em paralelo a tratamentos convencionais, um treinamento em atenção plena na forma do Programa de Redução do Estresse Baseado na Atenção Plena (MBSR) para pessoas que sofrem de estresse, dor crônica e outras doenças e que não estão plenamente satisfeitas com a assistência e os cuidados médicos que vêm recebendo. Às vezes elas se sentem ignoradas pela medicina convencional. Hoje, mais de 30 anos depois, a situação do sistema de saúde piorou ainda mais no mundo inteiro. O AUTOR JON KABAT-ZINN, doutor em biologia molecular, é professor emérito de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachusetts. Fundador do Centro para Atenção Plena em Medicina, Assistência Médica e Sociedade e de sua mundialmente famosa clínica que utiliza o Programa de Redução do Estresse Baseado na Atenção Plena (MBSR). É autor de vários livros que foram traduzidos para mais de 30 idiomas. Este texto foi adaptado de seu último livro, recém-lançado no Brasil, Atenção plena para iniciantes (Sextante, 2017), com autorização da editora. outubro 2017 • mentecérebro 43
meditação
A respiração Mesmo que você não perceba, o ar entra e sai do seu corpo o tempo todo. Sorvemos o ar a cada inspiração, devolvendo-o ao mundo a cada expiração. Nossa vida depende disso. Suzuki Roshi referiu-se a esse movimento repetitivo como uma “porta vaivém”. E, como não podemos sair de casa sem essa atividade vital e misteriosa, nossa respiração pode servir como um primeiro objeto ao qual voltar a atenção para nos trazer de volta ao momento presente, porque sempre estamos respirando no agora – a última expiração acabou e a próxima inspiração ainda não chegou. Assim, para nossa atenção errante, a respiração é uma âncora ideal, capaz de nos manter no momento presente. Esse é um dos motivos por que as sensações que a respiração produz no corpo costumam ser o primeiro objeto de atenção para iniciantes em muitas tradições meditativas. Mas prestar atenção nos efeitos da respiração sobre o corpo não é apenas para principiantes. Pode ser algo simples, mas o próprio Buda ensinou que a respiração contém em si tudo que você precisa para cultivar a plenitude de sua humanidade, especialmente sua sabedoria e sua compaixão. A razão, como veremos em breve, é que prestar atenção na respiração não tem a ver exatamente com a respiração. Nenhum objeto a que voltamos a atenção
44
é importante por si mesmo. Os objetos da atenção nos ajudam a estar presentes de forma mais estável. Assim podemos começar a perceber que o que importa de verdade é o próprio ato de estar presente. É a relação entre aquele que percebe (você) e o que é percebido (qualquer objeto de atenção). Esses dois elementos se juntam num todo contínuo e dinâmico na consciência, porque, fundamentalmente, nunca estiveram separados. É a consciência que importa.
O trabalho mais difícil do mundo Ironicamente, o maior desafio que cada um de nós enfrenta como ser humano é realizar a plenitude de quem já somos. Ninguém além de nós pode assumir esse trabalho, que deve ser empreendido por decisão própria, em resposta a nossa vocação – e apenas se considerarmos importante viver uma vida autêntica. O trabalho de cultivar a atenção plena também pode ser entendido como um jogo. Trata-se de algo sério demais para ser levado muito a sério – e digo isso com toda a seriedade! –, pois envolve a nossa vida inteira. Faz sentido que a leveza e a diversão sejam elementos-chave na prática da atenção plena, pois são essenciais para o bem-estar. Em última análise, a atenção plena pode se tornar natural, algo perfeitamente integrado a nossa vida, uma forma de expressão autêntica e plena do nosso próprio ser. No entanto, a trajetória de cada pessoa no cultivo dessa prática e os benefícios que pode alcançar são sempre únicos. O desafio é descobrir quem somos e viver da nossa própria maneira, de acordo com a vocação de cada um. Para isso é necessário prestar muita atenção em todos os aspectos da vida, à medida que se desenrolam no momento presente. Obviamente, ninguém pode fazer esse trabalho por você, assim como ninguém pode viver a sua vida em seu lugar. O que eu disse até aqui pode não fazer muito sentido para você. Na verdade, isso tudo só vai fazer sentido quando você se comprometer com o cultivo formal e informal da atenção plena ao longo do tempo. Assim, você poderá olhar e ver por si mesmo como as coisas são de verdade, por trás do véu das aparências e das histórias que somos tão hábeis em contar a nós mesmos.
shutterstock
Existe pouca discussão sobre em que consiste o cuidado à saúde, como mantê-la e recuperá-la, ou o que exatamente significa ser saudável. Nessas circunstâncias, é sensato assumir a responsabilidade pela nossa saúde e pelo nosso bem-estar. Na verdade, esse envolvimento pessoal é um elemento essencial da nova visão da medicina e da assistência médica, um modelo bem mais participativo em que o paciente desempenha um papel colaborativo importante, mobilizando os próprios recursos para alcançar a cura na medida do possível. A ideia por trás da MBSR é convidar as pessoas a verem se há algo que podem fazer por si mesmas – como um complemento essencial à contribuição de médicos, cirurgiões e do sistema de saúde como um todo – para alcançarem um nível maior de saúde e bem-estar ao longo da vida, tomando como ponto de partida a situação em que se encontram hoje. Falo em “saúde e bem-estar” em seu significado mais profundo e amplo. Em última análise, trata-se não apenas da saúde do corpo, mas também do bem-estar e do funcionamento mental, emocional e físico ideais que você pode desenvolver através da exploração sistemática e disciplinada da verdadeira extensão de sua humanidade. Para isso é necessário conhecer sua mente e seu corpo de forma mais íntima, pois esses dois aspectos não estão fundamentalmente separados. É necessário um cultivo diligente de suas capacidades biológicas e psicológicas intrínsecas de bem-estar e sabedoria, inclusive da compaixão e da bondade que residem dentro de todos nós. FENÔMENO MUNDIAL O Programa de Redução do Estresse Baseado na Atenção Plena já se disseminou por clínicas, centros médicos e hospitais nos Estados Unidos e ao redor do mundo. As meditações guiadas em áudio se assemelham, em alguns aspectos, àquelas que meus colegas e eu usamos com os pacientes do programa MBSR na Clínica de Redução do Estresse. Mas isso não significa que essa abordagem só sirva para pessoas sofrendo de doenças, dor crônica ou estresse. Por ser universal, essa prática é aplicável a qualquer um que esteja motivado a otimizar sua qualidade de vida. É importante lembrar que o objeto da medita-
Cuidando do momento presente Na prática da atenção plena, todo o nosso passado – qualquer que tenha sido e por mais dor e sofrimento que tenha envolvido – tornase o ponto de partida para a tarefa de habitar o momento presente com consciência, equanimidade, clareza e cuidado. Você precisa do seu passado; ele é a argila na roda do oleiro. Não se deixar aprisionar no passado ou em nossos conceitos e ideias, reconquistando o único momento de que realmente dispomos – o agora – é trabalho de uma vida inteira. Cuidar do momento presente pode ter um efeito notável sobre o próximo instante e, portanto, sobre o futuro – seu e do mundo. Se você puder estar plenamente atento a este momento, é possível que o seguinte seja imensa e criativamente diferente – porque você estará consciente, sem tentar impor suas expectativas de antemão.
ção consiste totalmente na consciência: seu caráter, sua estabilidade, sua confiabilidade e sua capacidade de nos libertar de nossos hábitos de autodepreciação e nosso costume de ignorar o que é mais importante na vida. A atenção plena desenvolve a atenção pura, o discernimento, a visão clara e, portanto, a sabedoria – ou seja, a habilidade de conhecer a realidade objetiva das coisas para além das nossas percepções equivocadas. E todos nós temos que lidar com muitas percepções equivocadas acerca da realidade, pois é muito fácil nos deixarmos capturar em nossos próprios sistemas de crenças, ideias, opiniões e preconceitos. Nossas suposições formam um tipo de véu, um nevoeiro, que muitas vezes nos impede de ver o que está bem diante dos nossos olhos e de agir de acordo com o que consideramos mais importante e mais valorizamos. Pode haver momentos em que nossos familiares tentem nos mostrar – por amor ou por desespero – quanto sofrimento desnecessário estamos gerando ao nos recusarmos a enxergar as coisas como realmente são, ou que estamos levando tudo para o lado pessoal de tal forma que acabamos distorcendo as coisas. Mas, mesmo em circunstâncias como essas, é extremamente difícil nos convencer. Em geral não ouvimos ou não acreditamos, de tão enredados que estamos em nossa ilusão e em nosso hábito de nos distrairmos de nós mesmos.
PARA SABER MAIS Atenção plena para iniciantes. Jon Kabat-Zinn. Sextante, 2017.
outubro 2017 • mentecérebro 45
ética
Cuidado com as máquinas que leem pensamentos! Nos últimos anos, a tecnologia de imageamento cerebral avançou tanto que se tornou capaz de perscrutar – e em alguns casos até alterar – conhecimentos guardados no cérebro. Com esse novo cenário, que até recentemente seria considerado tema típico de um filme de ficção, se torna necessário pensar em como podemos nos proteger de possíveis invasões
A
ideia de que a mente está completamente protegida das intrusões externas persistiu por séculos. Mas hoje essa suposição pode não ser mais válida. Sofisticados equipamentos de neuroimageamento e interfaces cérebro-computador detectam a atividade elétrica de neurônios, o que permite a decodificação e até alteração de sinais do sistema nervoso que acompanham processos mentais. Embora tais avanços tenham grande potencial para as áreas de pesquisa e medicina, eles trazem um desafio ético, jurídico e social: de repente se torna importante determinar se, ou em que condições, é legítimo obter acesso à atividade neuronal de outra pessoa ou interferir nela.
O AUTOR MARCELLO IENCA é neurocientista, pesquisador do Instituto para Ética Biomédica da Universidade de Basel, presidente do comitê de estudantes e pós-doutores na Sociedade Internacional de Neuroética. 46
Essa questão tem especial relevância porque muitas neurotecnologias se desviaram de uma configuração médica e passaram a fazer parte no domínio comercial. Tentativas de decodificar informações mentais por meio do imageamento também estão ocorrendo em processos judiciais em tribunais, às vezes de modo bastante questionável cientificamente. Há quase uma década, por exemplo, uma mulher indiana foi condenada por homicídio e sentenciada à prisão perpétua com base em um exame de varredura cerebral que mostrava, de acordo com o juiz, “conhecimento experiencial” sobre o crime. O potencial uso de tecnologia neural como um detector de mentiras durante interrogatórios ganhou atenção especial. Apesar do ceticismo de especialistas, empresas já estão comercializando tecnologia baseada em imageamento por ressonância magnética funcional e eletroencefalografia para detectar mentiras. As forças armadas americanas também têm testado técnicas de monitoramento,
shutterstock
por Marcello Ienca
mas por outra razão: a ideia é utilizar estímulo neural para aumentar o estado de alerta e a atenção dos soldados. A tecnologia de leitura cerebral pode ser vista como só mais uma etapa de uma tendência inevitável do mundo digital de avançar um pouco mais sobre nosso espaço pessoal. Talvez não estejamos dispostos a aceitar essa intromissão em nosso universo mental. As pessoas poderiam, de fato, considerar tal tecnologia como algo que exige a revisão de conceitos acerca dos direitos humanos básicos e até mesmo da criação de “direitos neuroespecíficos”. Diante da evolução tecnológica, é possível falar hoje em direito à liberdade cognitiva. Isso daria às pessoas a possibilidade de tomar decisões livres e informadas sobre a aplicação prática do conhecimento científico que possa vasculhar seus conhecimentos ou até afetar seus pensamentos. Num futuro próximo, o direito à privacidade mental deveria nos proteger tanto de intrusões não consentidas de terceiros em nossos “arquivos” cerebrais, quanto da coleta não autorizada dessas informações. Violações de privacidade no âmbito neural poderiam ser até mais perigosas do que as convencionais, uma vez que ultrapassam o nível do raciocínio consciente, deixando-nos expostos ao risco de ter nossa mente lida involuntariamente. Por mais que lembre enredo de filme de ficção, o fato é que esse perigo existe não apenas em estudos de marketing predatório ou tribunais que poderiam utilizar a tecnologia em demasia, mas também em usos que afetariam consumidores em geral. Esta última categoria, aliás, está crescendo. Há poucos meses, o Facebook revelou um plano para criar uma interface “discurso-para-texto” com o intuito de traduzir pensamentos direto do cérebro para o computador. Ensaios parecidos são feitos por empresas como a Samsung e a Netflix. No futuro, o controle cerebral poderia substituir o teclado e o reconhecimento da fala como forma principal de interagir com computadores. Se tais ferramentas se tornarem cada vez mais comuns – como é bem possível que ocorra –, novas possibilidades de uso indevido surgirão, inclusive violações de seguran-
Empresas como Facebook, Netflix e Samsung já cogitam traduzir o que se passa na cabeça do usuário diretamente para o computador; num futuro próximo, o controle cerebral poderá substituir, de forma rotineira, o teclado e até o reconhecimento da fala, tornando-se nossa forma principal de interação com as máquinas ça. Cientes de que dispositivos neurológico conectados ao cérebro são vulneráveis a sabotagem, neurocientistas da Universidade de Oxford sugerem que a mesma fragilidade se aplica a implantes cerebrais e que podem levar a um fenômeno chamado brainjacking, que seria uma espécie de “hackeamento” da mente. Tal possibilidade pode exigir a reconsideração do que entendemos hoje como direito à integridade mental, já reconhecida como uma prerrogativa indispensável para a saúde mental. Essa nova interpretação, porém, tem desdobramentos: não só protegeria pacientes contra uma possível recusa a tratamentos para doenças mentais, mas também defenderia as pessoas de modo geral contra manipulações prejudiciais de nossa atividade mental pelo uso indevido da tecnologia. Por fim, o direito à “continuidade psicológica” pode proteger a vida mental contra alterações feitas por terceiros. Um exemplo: o mesmo tipo de intervenção em estudo para reduzir a necessidade de sono nas forças armadas poderia ser adaptado para tornar soldados mais beligerantes ou destemidos. A neurotecnologia traz benefícios, mas para diminuir riscos indesejados precisamos de um debate aberto que envolva neurocientistas, psicólogos, psicanalistas, médicos peritos legais, especialistas em ética e cidadãos comuns. Para alguns, podem parecer precipitadas essas preocupações, mas o mundo se transforma rápido, frequentemente nos surpreende. Afinal, há 15 anos você imaginava o quanto a tecnologia ocuparia sua vida hoje e o faria tão dependente de seu celular ou de seu computador? outubro 2017 • mentecérebro 47
inteligência animal OBJETOS FEITOS de pedra encontrados em sítios arqueológicos de Pedra Furada, no Brasil, localizados perto do hábitat de macacos-prego no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí: peças confeccionadas por macacos, bastante parecidas com as feitas por humanos, atraem a atenção de pesquisadores
48
Refazendo caminhos
ancestrais fotos: tiago falótico
Macacos-prego brasileiros criam “ferramentas” de pedra muito semelhantes a artefatos feitos por humanos primitivos; cientistas questionam se esses objetos são criados de forma intencional ou “por engano” por Kate Wong, jornalista
U
m macaco-prego pega uma pedra do tamanho de uma batata média, ergue-a acima de sua cabeça e bate com toda força em outra pedra incrustada no chão. Lascas voam enquanto o animal repete essa ação entusiasmadamente, muitas e muitas vezes. Esses estilhaços são suficientemente afiados para cortar carne ou material vegetal, mas o macaco não lhes dá muita atenção – exceto quando coloca uma delas sobre a pedra encravada e tenta esmagá-la também. Ainda assim, ele acaba de produzir, involuntariamente, artefatos que se parecem, em todos os aspectos, com ferramentas de pedra encontradas em alguns sítios arqueológicos humanos. outubro 2017 • mentecérebro 49
inteligência animal
50
O primata vive no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Nordeste do Brasil, onde há muito se sabe que esses animais usam pedras para uma ampla gama de atividades: de quebrar sementes e castanhas e escavar o solo em busca de raízes a chamar atenção de potenciais parceiros. Outros primatas não humanos (incluindo chimpanzés da África ocidental) também usam pedras como ferramentas para facilitar sua sobrevivência na natureza. Mas os macacos-prego da serra da Capivara são os únicos que cientistas já observaram batendo pedras umas contra as outras com o objetivo de quebrá-las – uma ação antes considerada por pesquisadores exclusiva dos humanos. Nossos ancestrais primitivos faziam isso para criar ferramentas afiadas, usadas para cortar coisas. Os macacos-prego, porém, nunca foram vistos usando as lascas que produzem; eles apenas lambem a superfície da pedra presa ao chão, talvez em busca de algum pó mineral. Agora, um novo estudo examinou as lascas de pedras produzidas pelos micos-de-topete e concluiu que elas atendem a critérios usados para diferenciar ferramentas humanas de pedras quebradas naturalmente. As descobertas, publicadas há poucos meses no periódico científico Nature, têm alimentado debates sobre sítios arqueológicos controversos. A revelação suscita também perguntas sobre o que diferencia humanos de outros
IDEIAINCÔMODA Anteriormente, especialistas tinham ligado essas características ao surgimento de mãos e coordenação motora humanoides, assim como a mudanças na cognição humana. Mas o fato de que macacos produzem pedras com esses mesmos aspectos exige uma explicação evolutiva diferente. E, se macacos da atualidade modificam pedras desse jeito, é possível que macacos e grandes primatas extintos também fizessem o mesmo, deixando para trás suas próprias coleções arqueológicas. “É preciso refinar os critérios científicos empregados para identificar ferramentas de pedra produzidas intencionalmente por humanos”, reconhece Proffitt. “Para muita gen-
shutterstock
“FÓSSEIS DIAGNÓSTICOS”: cientistas comparam objetos usados pelos animais, atualmente, com peças que pertenceram a humanos pré-históricos, mas ainda não há consenso entre os pesquisadores
primatas e como a nossa linhagem começou a fazer ferramentas de pedra. O pesquisador Tomos Proffitt, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e um grupo de colegas observaram macacos-prego escolherem pedras para usar como martelos e depois batê-los contra pedras arredondadas. Os cientistas recolheram os fragmentos resultantes e coletaram também outros artefatos similares encontrados em outras escavações nas áreas circundantes – exatamente como fariam se estivessem escavando um sítio arqueológico humano. Os pesquisadores analisaram a coleção de 111 artefatos de Sapajus, examinando seus formatos e tamanhos, assim como a natureza das marcas deixadas nas rochas. A equipe constatou que as peças produzidas pelos macacos-prego exibem lascas distintas, em forma de concha, denominadas “concoidais”, com bordas ou “cortes” afiados. Constataram também que os primatas frequentemente removiam múltiplas lascas de uma única pedra, deixando marcas características de ferramentas de pedra feitas por seres humanos. Os autores da pesquisa salientam que, comparativamente, fragmentos de pedras produzidos quando chimpanzés quebram castanhas não se encaixam na maioria dos critérios considerados pelos cientistas, como no caso das lascas criadas por bonobos, ou chimpanzés-pigmeus cativos aos quais foi ensinado lascar.
te, pode ser perturbador o fato de essas ferramentas serem feitas por macacos-prego”, comenta a arqueóloga Sonia Harmand, da Universidade Stony Brook, que não participou da nova pesquisa. Em sua opinião, os artefatos dos macacos não destoariam nem parecem estar “fora de lugar” em sítios arqueológicos do leste africano, onde foram encontradas ferramentas produzidas por ancestrais humanos em uma das mais primitivas tecnologias tradicionais: a olduvaiense, que remonta a 2,6 milhões de anos, encontrada no sítio de Gona, na Etiópia. As lascas dos macacos-prego se assemelham aos exemplos mais simples dessa técnica. “Mas outras ferramentas de pedra olduvaienses exibem consideravelmente mais sofisticação e planejamento”, salienta Harmand. Os artefatos dos primatas diferem também das mais antigas ferramentas de pedra conhecidas no mundo: “instrumentos” de 3,3 milhões de anos que ela e sua equipe escavaram do sítio de Lomekwi, no Quênia. Essas peças, feitas de quartzito, basalto e fonólito (rochas vulcânicas mais densas que as de quartzo), são muito maiores do que as usadas pelos macacos-prego. Especialistas se perguntam se as lascas dos micos-de-topete poderiam pôr em dúvida se membros da linhagem humana de fato fizeram as mais antigas ferramentas de pedra. Embora pesquisadores tenham atribuído esses instrumentos a ancestrais humanos, os sítios arqueológicos não contêm os chamados “fósseis diagnósticos”, necessários para estabelecer a conexão. “Não temos nenhuma ideia de quem criou o material de Lomekwi e Gona”, reconhece o arqueólogo Wil Roebroeks, da Universidade de Leiden, na Holanda. A professora Hélène Roche, da Universidade de Paris X-Nanterre, mais conhecida como Université Paris Ouest Nanterre la Défense, discorda. Ela escreveu um comentário que acompanhou o artigo da Nature, argumentando que os achados dos macacos-prego não deveriam levantar suspeitas sobre quem produziu as primitivas ferramentas de pedra encontradas na África. Arqueólogos estudaram centenas daqueles sítios, justifica ela – e muitos deles são acompanhados por pistas contextuais, inclusive ossos com mar-
Alguns especialistas se perguntam se as lascas produzidas pelos micos-de-topete poderiam pôr em dúvida se membros da linhagem humana de fato fizeram as mais antigas ferramentas de pedra
cas de cortes que mostram como os artefatos eram usados, assim como fósseis que indicam que eles foram produzidos por ancestrais humanos. “Embora a descoberta demonstre que espécies não humanas podem acidentalmente produzir fragmentos de pedras que se parecem perfeitamente com ferramentas de corte feitas por ancestrais humanos, isso não significa que elas não sejam especiais”, adverte Harmand. Mesmo se ancestrais humanos começaram a criar lascas de pedra por engano, como fazem os macacos-prego, em algum momento perceberam que poderiam usá-las para fazer alguma coisa e até produzir outras novas para atender aos seus propósitos. Além disso, a tecnologia humana evoluiu das ferramentas comparativamente simples encontradas em Lomekwi e em sítios olduvaienses para machadinhas de mão com “lâminas” de corte cuidadosamente esculpidas 1 milhão de anos mais tarde e, por fim, para o elaborado maquinário que temos hoje. “Por que a tecnologia não avançou na mesma medida entre chimpanzés e macacos? Por que só humanos a levaram a tal extremo?”, pergunta Harmand. Proffitt está ansioso para determinar há quanto tempo os macacos-prego vêm usando pedras dessa maneira. Outras evidências demonstram que eles as têm usado de forma arredondada para abrir castanhas há pelo menos 600 anos. E ferramentas de pedra de chimpanzés da Costa do Marfim, na África ocidental, datam de 4.300 anos atrás. “Além disso, não temos nenhuma evidência do que macacos ou grandes primatas primitivos faziam”, admite Harmand. E isso abre espaço de sobra para mais surpresas no futuro. outubro 2017 • mentecérebro 51
shutterstock/arte fernandadoval
especial • cognição
52
O novo tom da
linguagem por Paul Ibbotson e Michael Tomasello
Boa parte da revolução de Noam Chomsky na linguística, incluindo a explicação sobre como aprendemos idiomas, tem sido questionada. Uma das principais críticas é de que a teoria mudou várias vezes para dar conta de exceções que contrariam seus postulados originais – marcando um recuo de suas origens ambiciosas. Defensores de teorias alternativas à gramática universal argumentam que, ao aprenderem uma língua, crianças usam capacidades cognitivas gerais e leem as intenções alheias
OS AUTORES PAUL IBBOTSON é doutor em linguística, professor de desenvolvimento da linguagem na Universidade Abert, na Inglaterra. MICHAEL TOMASELLO é neurocientista, codiretor do Instituto Max Planck para Antropologia Evolucionária em Leipzig, na Alemanha. É autor de A natural history of human morality (Harvard University Press, 2016, não publicado no Brasil). outubro 2017 • mentecérebro 53
A
ideia de que temos cérebros equipados com um modelo mental para aprender gramática – lançada por Noam Chomsky, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) – dominou a linguística por quase meio século. Mas recentemente, cientistas cognitivos e linguistas abandonaram em massa a teoria da “gramática universal” de Chomsky por causa de uma nova pesquisa que examina muitas línguas diferentes – e a forma como as crianças aprendem a entender e a falar os idiomas de suas comunidades. Esse trabalho não dá sustentação às afirmações de Chomsky. A pesquisa sugere uma visão radicalmente diferente, segundo a qual o aprendizado de uma primeira língua pela criança não depende de um módulo gramatical inato. Em vez disso, o estudo mostra que a criança usa várias formas de pensar que podem não ser típicas da língua – como a capacidade de classificar o mundo em categorias (pessoas ou objetos, por exemplo) e entender as relações entre as coisas. Essa capacidade, aliada à habilidade humana única de entender o que outros pretendem comunicar, permite a ocorrência da linguagem. As novas descobertas indicam que, se realmente quiserem entender como crianças e demais aprendem línguas, os pesquisadores precisam buscar diretrizes fora da teoria de Chomsky. Essa conclusão é importante porque o estudo da linguagem desempenha um papel central em diversas disciplinas – da poesia à inteligência artificial e até à própria linguística; métodos equivocados levam a resultados questionáveis. Além disso, a linguagem é usada por humanos de maneira que nenhum animal iguala; se compreendermos o que é 54
a linguagem, entenderemos um pouco mais sobre nós mesmos. Na primeira versão de sua teoria, apresentada em meados do século 20, Chomsky entrelaçou duas tendências emergentes da vida intelectual ocidental. Primeiro, ele postulou que a linguagem usada pelas pessoas para se comunicarem no dia a dia se comportava como a linguagem com base na matemática do então novo campo da ciência da computação. Sua pesquisa buscou a estrutura computacional subjacente da linguagem e sugeriu uma série de processos que criariam sentenças “bem formadas”. A ideia revolucionária era que um programa como o de computador poderia produzir sentenças que as pessoas reais considerassem gramaticalmente corretas. Esse programa poderia supostamente explicar também a forma como as pessoas geravam suas sentenças. Essa maneira de falar sobre linguagem ganhou repercussão entre muitos acadêmicos desejosos de adotar um enfoque computacional para... bem... tudo. Enquanto desenvolvia suas teorias, Chomsky simultaneamente propunha que elas tinham raízes na biologia humana. Na segunda metade do século 20, muitos concordavam que nossa história evolucionária singular havia influenciado aspectos de nosso funcionamento mental – o que favoreceu a propagação de sua teoria. A gramática universal foi apresentada como um componente inato da mente humana – e prometia revelar as profundas bases biológicas das mais de 6 mil línguas humanas. As mais poderosas, para não dizer as mais bonitas, teorias da ciência revelam uma unidade escondida sob a diversidade superficial, e assim essa teoria imediatamente se tornou atraente.
shutterstock
Mas a teoria de Chomsky está em xeque. Como disse uma vez o físico Max Planck, antigos acadêmicos tendem a persistir nas fórmulas antigas: “A ciência processa um funeral por vez”. A primeira “encarnação” da gramática universal, nos anos 60, tomou como ponto de partida a estrutura básica do “padrão médio das línguas europeias” – as faladas pela maioria dos linguistas que trabalhavam com elas. Assim, o programa de gramática universal operou em pedaços de linguagem, como frases nominais (“os bons cães”) e frases verbais (“gostam de gatos”). Mas logo começaram a ser feitas comparações linguísticas entre múltiplas línguas que não se enquadravam nesse esquema simples. Algumas línguas nativas da Austrália, como o warlpiri, tinha elementos gramaticais espalhados por todas as sentenças – frases nominais e verbais que não estavam “ordenadamente empacotadas” para que pudessem se encaixar na gramática universal de Chomsky – e algumas sentenças não tinham nenhuma frase verbal. Era difícil conciliar esses chamados desvios com a gramática universal construída com exemplos dos idiomas europeus. Outras exceções à teoria de Chomsky vieram do estudo de idiomas ergativos, como basco ou urdu, nas quais o sujeito da sentença é usado de forma muito diferente da maioria das línguas europeias, mais uma vez contestando a ideia de uma gramática universal. Essas descobertas, juntamente com trabalhos de teoria linguística, levaram Chomsky e seus seguidores a uma completa revisão da noção de gramática universal nos anos 80. A nova versão da teoria, chamada princípios e parâmetros, substituiu uma gramática uni-
versal única para todas as línguas do mundo por uma série de princípios “universais” que regiam a estrutura da língua. Esses princípios se manifestavam de forma diferente em cada língua. Uma analogia seria que todos nascemos com um grupo básico de gostos (doce, azedo, amargo, salgado e umami) que interagem com a cultura, história e geografia para produzir as atuais variações na cozinha mundial. Os princípios e parâmetros eram a analogia linguística aos paladares. Eles interagiram com a cultura (se uma criança estava aprendendo japonês ou inglês) para produzir as variações correntes nas línguas, assim como definiram a série de línguas humanas possíveis. Línguas como o espanhol formam sentenças gramaticais completas sem a necessidade de sujeitos separados – por exemplo: Tengo zapatos, na qual a pessoa que tem sapatos, eu, é indicada não por uma palavra à parte, mas pelo “o” ao fim do verbo. Chomsky sustentou que, logo que as crianças encontravam algumas sentenças desse tipo, um interruptor seria ligado em seu cérebro para indicar que o sujeito da sentença deveria ser descartado. Elas então saberiam que poderiam eliminar o sujeito em todas as suas sentenças. O parâmetro para “eliminar o sujeito” supostamente determinou também outras características estruturais da língua. Essa noção de princípios universais serve razoavelmente bem a muitas línguas europeias. Mas dados sobre línguas não europeias revelaram que estas não se encaixavam na versão revisada da teoria de Chomsky. De fato, a pesquisa que tentou identificar parâmetros, tais como o para eliminar o sujeito, levou ao abandono outubro 2017 • mentecérebro 55
especial • cognição
Pela nova abordagem centrada no uso, as crianças não nascem com uma ferramenta universal dedicada a aprender gramática. Em vez disso, elas herdam o equivalente mental a um canivete suíço da segunda encarnação da gramática universal porque não resistia à análise. Mais recentemente, em um famoso estudo publicado na Science em 2002, Chomsky e seus coautores descreveram uma gramática universal que incluía apenas uma característica, chamada recursividade computacional (embora muitos defensores da gramática universal ainda prefiram supor que existam muitos princípios e parâmetros universais). Essa mudança permitia que um número limitado de palavras e regras fosse combinado para formar um número ilimitado de sentenças. As possibilidades sem fim existem pela forma como a recursividade embute uma frase dentro de outra frase do mesmo tipo. Em inglês, por exemplo, podem-se adicionar frases à direita (John hopes Mary knows Peter is lying) ou embuti-las ao centro (The dog that the cat that the boy saw chased barked). Na teoria, é possível acoplar essas frases infinitamente. Na prática, o entendimento começa a se romper quando as frases são empilhadas como nesses exemplos. Chomsky acreditava que essa ruptura não estava diretamente relacionada com a língua em si. Era mais uma limitação da memória humana. Mais importante, Chomsky propôs que essa capacidade recursiva é o que diferencia a linguagem de outros tipos de pensamentos como categorização e percepção das relações entre as coisas. Recentemente ele também propôs que essa capacidade surgiu de uma única mutação genética ocorrida entre 100 mil e 50 mil anos atrás. Da mesma forma que antes, quando linguistas começaram de fato a olhar as variações de línguas no mundo, eles descobriram contraexemplos à alegação de que esse tipo de recursividade era uma propriedade essencial da língua. Alguns idiomas – como o pirarrã, do Amazonas – parecem prescindir da recursividade de Chomsky. Como acontece 56
com todas as teorias linguísticas, sua gramática universal faz um exercício de equilíbrio. A teoria tem de ser suficientemente simples para valer a pena tê-la. Ou seja, deve prever algumas coisas que não estão na teoria em si (de outra forma seria apenas uma lista de fatos). Mas não pode ser tão simples a ponto de não conseguir explicar o que deve explicar. Pegue a ideia de Chomsky de que as sentenças em todas as línguas do mundo têm um “sujeito”. O problema é que o conceito de um sujeito se parece mais com “semelhanças familiares” características que com uma categoria pura. Cerca de 30 diferentes aspectos gramaticais definem as características de um sujeito. Qualquer língua terá apenas um subgrupo dessas características – e os subgrupos não costumam se sobrepor aos de outras línguas. Chomsky tentou definir os componentes de um estojo de ferramentas essenciais da língua – o tipo de maquinário mental que permite que a linguagem humana aconteça. Quando exemplos contrários foram encontrados, alguns defensores de Chomsky responderam que só porque uma língua não tem determinada ferramenta – como recursividade – não quer dizer que não esteja no estojo. Da mesma forma, não é porque uma cultura não use o sal para temperar os alimentos que ele não esteja em seu repertório básico de sabores. Infelizmente, essa linha de raciocínio torna difícil testar as propostas de Chomsky na prática. QUANDO OS SINOS DOBRAM Uma falha-chave nas teorias de Chomsky é que, ao serem aplicadas ao aprendizado de línguas, elas estipulam que as crianças vêm equipadas com a capacidade de formar sentenças usando normas gramaticais abstratas. (As normas precisas dependem de qual versão da teoria esteja sendo invocada.) Mas muitas pesquisas mostram agora que a aquisição da linguagem não ocorre dessa forma. As crianças começam aprendendo padrões gramaticais simples e gradualmente intuem as normas por trás deles parte por parte. Assim, as crianças inicialmente usam apenas construções gramaticais concretas e simples com base em padrões específicos de pala-
shutterstock
vras: “Onde está X?”; “Eu quero X”; “Mais X”; “É um X”; “Eu estou X-endo isso”; “Coloque X aqui”; “Mamãe está X-endo isso”; “Vamos X isso”; “Jogue X”; “X foi embora”; “Mamãe X”; “Sente em X”; “Abra X”; “X aqui”; “Há um X”; “X quebrou”. Posteriormente, as crianças elaboram esses padrões em outros mais complexos, como “Onde está X que mamãe X?”. Muitos defensores da gramática universal aceitam essa caracterização de desenvolvimento gramatical inicial das crianças. Mas eles supõem que, quando surgem construções mais complexas, esse novo estágio reflete o amadurecimento de uma capacidade cognitiva que usa a gramática universal e seus princípios e categorias gramaticais abstratos. A maior parte dos enfoques da gramática universal defende, por exemplo, que uma criança forma uma questão seguindo uma série de normas com base em categorias gramaticais como “O que (objeto) você (sujeito) perdeu (verbo)?”. Resposta: “Eu (sujeito) perdeu (verbo) algo (objeto)”. Se esse pressuposto estiver correto, então, em determinado período do desenvolvimento, a criança deveria cometer erros parecidos com todas as perguntas semelhantes, que, em inglês, começam com palavras iniciadas com wh. Mas os erros das crianças não se enquadram nessa previsão. Muitas delas, nas primeiras etapas do desenvolvimento, cometem erros como “Why he can’t come?”, mas, ao mesmo tempo que cometem esse erro – deixando de colocar o “can’t” antes de “he” –, elas formam corretamente outras perguntas com outras palavras iniciadas com wh e verbos auxiliares, como a sentença “What does he want?”. Estudos experimentais confirmam que crianças elaboram perguntas de forma correta mais frequentemente com determinadas palavras com wh e verbos auxiliares (em geral com as que estão mais acostumadas, como “What does...”), enquanto continuam cometendo erros com perguntas contendo outras (em geral menos frequentes) combinações de palavras com wh e verbos auxiliares: “Why he can’t come?”. A principal resposta dos gramáticos universais a essas descobertas é que a criança tem a competência em gramática, mas ou-
tros fatores podem impedir seu desempenho e isso tanto oculta a verdadeira natureza de sua gramática como interfere no estudo da gramática “pura” defendida pela linguística de Chomsky. Os fatores que mascaram a gramática implícita, dizem, incluem capacidades sociais, atenção e memória imaturas. Mas a interpretação chomskyana do comportamento infantil não é a única possível. Memória, atenção e habilidades sociais podem não mascarar a verdadeira condição da gramática; elas podem muito bem ser parte integral da construção da linguagem em primeiro lugar. Um recente estudo de coautoria de um de nós (Ibbotson) mostrou que a capacidade de a criança conjugar um verbo irregular no pretérito perfeito de forma correta – como “Every day I fly, yesterday I flew” (e não “flyed”) – está associada com sua capacidade de inibir uma resposta tentadora desvinculada da gramática. (Por exemplo, dizer a palavra “lua” ao olhar para uma foto do sol). Mais que um obstáculo para as crianças expressarem a gramática pura dos linguistas chomskyanos, faculdades mentais como memória, analogias mentais, atenção e raciocínio sobre situações sociais podem explicar por que a língua se desenvolve da forma como faz.
outubro 2017 • mentecérebro 57
especial • cognição
Noam-clatura
shutterstock
Noam Chomsky impressionou a comunidade linguística há mais de 50 anos com uma ideia tão simples quanto interessante, segundo a qual a estrutura da língua é formada por uma série de normas inatas que premiem a criação de sentenças gramaticais desde a infância. Chomsky buscou definir essas normas e como elas funcionam. Ele pensou que sem a gramática universal seria impossível para uma criança aprender qualquer língua. Nos anos seguintes, a teoria foi contestada por novas teorias que afirmam que a linguagem é adquirida quando as crianças discernem padrões no idioma com o qual convivem. NOAM CHOMSKY tem sido um gigante no campo da linguística por muitas décadas, famoso por sua conhecida teoria da gramática universal; a ideia de Chomsky de um cérebro equipado com um programa mental para gramática, porém, tem sido questionada por causa da falta de evidências em estudos da linguagem
58
Pequenos criadores de frases A gramática universal de Chomsky postula que a criança dispõe de normas que funcionam em frases (“os cães bons”) e normas para transformar essas frases (“cães bons gostam de gatos”). A teoria evoluiu nos últimos anos, mas mantém a ideia essencial de que crianças nascem com a habilidade de fazer palavras se enquadrar em um modelo gramatical.
Aprendizado centrado no uso Novas abordagens da linguística e da psicologia sugerem que a habilidade natural das crianças de intuir o que outros pensam, combinada com poderosos mecanismos de aprendizado no cérebro em desenvolvimento, diminui a necessidade de uma gramática universal. Ao ouvir, a criança aprende padrões de uso que podem ser aplicados a diferentes sentenças. A palavra “comida” pode substituir a palavra “bola” após a frase “o cachorro quer”. Estudos mostram que essa teoria de construção de conhecimento do significado das palavras e da gramática aproxima a forma como crianças de 2 e 3 anos aprendem de fato a língua. A máquina diagramadora de sentença inata do cérebro, segundo Chomsky, colocaria as palavras no espaço gramatical correto – “bons” (adjetivo) e “cães” (substantivo).
Assim como com o recuo em relação aos dados translinguísticos e o argumento da caixa de ferramentas, a ideia de desempenho mascarando a competência é também bastante difícil de verificar. Recursos a esses tipos de alegações são comuns em paradigmas científicos em declínio que não possuem forte base empírica – considere, por exemplo, a psicologia freudiana e as interpretações marxistas de história. À parte esses desafios empíricos para a gramática universal, psicolinguistas que trabalham com crianças têm dificuldades em conceber teoricamente um processo no qual as crianças começam com as mesmas normas gramaticais algébricas para todas as línguas e então partem para descobrir como uma língua em particular – seja inglês ou suaíli – se conecta com aquele esquema de normas. Linguistas chamam esse enigma de o problema de conexão, e uma rara tentativa sistemática de resolvê-lo no contexto da gramática universal foi feito pelo psicólogo Steven Pinker, da Universidade Harvard, sobre os sujeitos de sentenças. O trabalho de Pinker, no entanto, mostrou-se em discordância com dados de estudos de desenvolvimento infantil ou não aplicável a outras categorias gramaticais além do sujeito. Assim o problema de conexão – que deve ser central na aplicação da gramática universal ao aprendizado da língua – nunca foi resolvido nem seriamente confrontado. VISÃO ALTERNATIVA Tudo isso leva inevitavelmente à visão de que a noção de gramática universal está errada. Evidentemente, cientistas nunca abandonam sua teoria favorita, mesmo diante da evidência contraditória, até surgir uma alternativa razoável. Essa alternativa, chamada linguística com base no uso, chegou. A teoria, que assume diversas formas, propõe que a estrutura gramatical não é inata. Em vez disso, é o produto da história (o processo como as línguas são passadas de geração para geração) e da psicologia (a série de capacidades sociais e cognitivas que permitem que gerações aprendam uma língua em primeiro lugar) humanas. Mais importante, essa teoria propõe que a língua recruta sistemas cerebrais que podem não ter evoluído especificamente para
esse propósito e, portanto, é uma ideia diferente da de Chomsky sobre a mutação de um gene único para a recorrência. Pela nova abordagem centrada no uso (que inclui ideias de linguistas funcionais, linguistas cognitivos e de construção gramatical), as crianças não nascem com uma ferramenta dedicada, universal, para aprender gramática. Em vez disso, herdam o equivalente mental a um canivete suíço: uma série de ferramentas multiúso – como categorização, leitura de intenções comunicativas e capacidade de analogia, com que constroem normas e categorias gramaticais da língua que ouvem ao seu redor. Crianças de língua inglesa, por exemplo, entendem “the cat ate the rabbit” (o gato comeu o coelho) e, por analogia, compreendem também “the goat tickled the fairy” (a cabra fez cócegas na fada). Elas generalizam ouvindo de um exemplo a outro. Após um número suficiente de exemplos desse tipo, elas podem até conseguir adivinhar quem fez o que para quem na sentença “the gazzer mibbed the toma”, mesmo que algumas palavras sejam literalmente sem sentido. A gramática deve ser algo que elas discernem além das próprias palavras, dado que as sentenças têm pouco em comum no nível das palavras. O significado da linguagem surge por meio de uma interação entre o potencial significado das palavras (como as coisas que a palavra “ate” pode significar) e o significado da construção gramatical à qual estão conectadas. Por exemplo, mesmo que sneeze (espirrar) apareça no dicionário como um verbo intransitivo que acompanha um ator único (aquele que espirra), se for usado em uma construção bitransitiva – capaz de aceitar um objeto direto e um objeto indireto –, o resultado poderá ser “she sneezed him de napkin” (ela espirrou o guardanapo para ele), no qual sneezed é construído como uma ação de transferência (ou seja, ela fez o guardanapo chegar a ele). A sentença mostra que a estrutura gramatical pode dar uma contribuição tão forte ao sentido do enunciado quanto as palavras. Contraste essa ideia com a de Chomsky, que argumentou que há níveis de gramática que são totalmente livres de significado. outubro 2017 • mentecérebro 59
O conceito do canivete suíço explica também o aprendizado da língua sem precisar invocar dois fenômenos exigidos pela teoria da gramática universal. Um é a série de normas algébricas para combinar símbolos – um chamado núcleo gramatical conectado no cérebro. O segundo é um léxico – uma lista de exceções que cobrem todos os outros idiomas e idiossincrasias das línguas naturais que precisam ser aprendidas. O problema com essa abordagem de mão dupla é que algumas construções gramaticais em parte são baseadas em normas e em parte não são – por exemplo, “him a presidential candidate?!”, em que o sujeito him retém a forma de um objeto direto, mas com os elementos da sentença fora da ordem adequada. Um nativo de língua inglesa pode gerar uma variedade infinita de sentenças usando o mesmo método: “her go to ballet?!” ou “that guy a doctor?!”. A questão, então, é: esses enunciados são parte do núcleo gramatical ou da lista de exceções? Se não são parte de um núcleo gramatical, então precisam ser aprendidos individualmente como itens separados. Mas, se crianças podem aprender esses enunciados que são em parte norma e em parte exceção, então por que não podem aprender o restante da língua da mesma forma? Em outras 60
palavras, por que elas precisam da gramática universal, afinal? De fato, a ideia de uma gramática universal contradiz evidências de que crianças aprendem a língua por meio de interação social e ganham prática usando construções de sentenças que foram criadas por comunidades linguísticas ao longo do tempo. Em alguns casos, há bons dados sobre como esse aprendizado ocorre. Orações relativas, por exemplo, são comuns nas línguas do mundo e costumam derivar de uma junção de sentenças separadas. Assim, podemos dizer, “My brother… he lives over in Arkansas… he likes to play piano” (Meu irmão... ele vive em Arkansas... ele gosta de tocar piano). Por causa de vários mecanismos de processamento cognitivos – com nomes como esquematização, habituação, descontextualização e automatização –, essas frases evoluem por longos períodos para construções mais complexas: “My brother, who lives over in Arkansas, likes to play the piano” (Meu irmão, que vive em Arkansas, gosta de tocar piano). Ou podem gradualmente transformar sentenças como “I pulled the door, and it shut” (Eu puxei a porta e ela fechou) em “I pulled the door shut”. Além disso, parece que temos uma habilidade específica para decodificar as intenções
shutterstock
especial • cognição
comunicativas de outros – saber o que um orador pretende dizer. Eu poderia dizer, por exemplo, “she gave/bequeathed/sent/loaned/ sold the library some books” (ela deu/pediu/enviou/emprestou/vendeu à biblioteca alguns livros), mas não “she donated the library some books”. Pesquisa recente mostrou que há vários mecanismos que levam as crianças a restringir esses tipos de analogias inadequadas. Por exemplo, crianças não fazem analogias sem sentido. Então elas nunca tentariam dizer “she ate the library some books” (ela comeu alguns livros da biblioteca). Além disso, se as crianças ouvem com frequência “she donated some books to the library” (ela doou alguns livros para a biblioteca), esse uso evita a tentação de dizer “she donated the library some books”. Esses mecanismos de restrição limitam sensivelmente as possíveis analogias que uma criança possa fazer às que se alinham com as intenções comunicativas da pessoa que ela está tentando entender. Nós usamos esse tipo de leitura de intenções quando entendemos “can you open the door for me?” (você pode abrir a porta para mim?) como um pedido de ajuda, e não uma questão sobre nossa capacidade de abrir portas. Chomsky admitiu esse tipo de “pragmatismo” – como usamos a língua no contexto – em sua teoria geral sobre como o idioma funciona. Considerando-se como a língua é ambígua, ele tinha de fazê-lo. Mas ele parece tratar o papel do pragmatismo como periférico ao trabalho principal da gramática. De alguma forma, as contribuições da teoria com base no uso mudou o debate em direção a quanto o pragmatismo pode fazer pela língua antes que os oradores precisem se voltar para as regras da sintaxe. As teorias centradas no uso estão longe de oferecer uma resposta completa sobre como a língua funciona. Generalizações significativas que as crianças fazem por ouvir sentenças e frases tampouco revelam toda a história de como as crianças constroem sentenças – há generalizações que fazem sentido, mas não são gramaticais. Por exemplo, “he disappeared the rabbit. De todas as possíveis generalizações com significado, mas não gramaticais que as crianças podem fazer, elas
parecem fazer muito poucas. A razão parece ser que elas são sensíveis ao fato de que a comunidade da língua a que elas pertencem se enquadra em uma norma e comunica uma ideia apenas “desse jeito”. Elas alcançam um delicado equilíbrio, no entanto, uma vez que a língua das crianças é tanto criativa (“I goed to the shops”) quanto obediente às normas gramaticais (“I went to the shops”). Há muito trabalho a ser feito pelos teóricos da língua com base no uso para explicar como essas forças interagem na infância de forma a explicar exatamente o caminho do desenvolvimento da linguagem. UM OLHAR À FRENTE Quando foi proposto, o paradigma de Chomsky era uma ruptura radical com abordagens mais informais que prevaleciam na época e chamou atenção para toda a complexidade cognitiva envolvida em se tornar competente na fala e entendimento da língua. Mas, ao mesmo tempo que teorias como as de Chomsky nos ajudaram a ver coisas novas, elas também nos cegaram para outros aspectos da língua. Em linguística e campos correlatos, muitos pesquisadores estão se tornando cada vez mais insatisfeitos com uma abordagem totalmente formal como a gramática universal – para não mencionar as inadequações empíricas da teoria. Além disso, muitos pesquisadores modernos estão insatisfeitos também com análises teóricas de dados linguísticos – muitos disponíveis on-line – que podem ser usadas para testar uma teoria. A mudança de paradigma certamente não está completa; parece adequado levar em conta as considerações. Há novas descobertas fascinantes a serem feitas com a pesquisa dos detalhes das diferentes línguas do mundo, no que elas têm de semelhante e diferente entre si, de como elas mudaram historicamente e como as crianças adquirem competência em uma ou mais delas. A gramática universal parece ter chegado a um impasse final. Em seu lugar, a linguística centrada no uso pode abrir um caminho para estudos empíricos do aprendizado, uso e desenvolvimento histórico das 6 mil línguas do mundo.
PARA SABER MAIS A critique to fundamental differences hypothesis. Jing Ding, em International Journal of English Linguistics, vol. 7, nº 1; 2017. Constructions at work: the nature of generalization in language. Adele Goldberg. Oxford University Press, 2006. Constructing a language: a usage-based theory of language acquisition. Michael Tomasello. Harvard University Press, 2003. On Chomsky and the two cultures of statistical learning. Peter Norvig, em Berechenbarkeit der Welt? disponível online; maio de 2017: https://link.springer. com/chater/10.1007/ 978-3-658-12153-2_3 Language architecture and its import for evolution. Noam Chomsky, em Neuroscience & Biobehavioral Reviews disponível online; fevereiro de 2017: http:// www.sciencedirect.com/ science/article /pii/ S0149763416305796
outubro 2017 • mentecérebro 61
livro | resenha Infância e memória: histórias de psicanálise com criança. Maria Letícia de Oliveira Reis. Editora CRV, 2016. 140 págs. R$ 33,90
O labirinto de memórias das análises de infância Autora investiga reminiscências para dar forma ao mosaico de recordações de adultos que passaram por processos psicanalíticos quando crianças por Daniele Sanches
No seminário de
H
As entrevistas são comparadas a á muitas maneiras de narrar as 1964, Jacques Lacan depoimentos históricos já publicados. encruzilhadas da memória e de insiste que jamais um Entre eles, a reveladora entrevista contempos em tempos o cinema traduz nossos labirintos internos. Dentre sujeito conseguirá ver cedida pelo adulto que um dia foi conas várias produções sobre o tema, o a si próprio do ponto sagrado como o menino “Richard”, num dos casos mais famosos de Melaclássico Cidadão Kane (1941) destacade vista do qual foi nie Klein. Há também o relato de Her-se. O grande filme de Orson Welles olhado pelo outro. bert Graff, o eterno “pequeno Hans”, narra um projeto de reconstruir as que conta seu fortuito e desajeitado lembranças de uma vida a partir de Assim, a posição uma cena de morte. Ali, a biografia subjetiva da criança reencontro com Sigmund Freud, anos após o encerramento de sua análise de um magnata da imprensa é contana cena analítica só (supervisionada pelo criador da psida de forma retroativa. As casas, os poderia mesmo ser canálise). Um fato curioso é extraído sócios, as empresas e os amores são repassados. Mas o faraônico projeto narrada como uma desses depoimentos: nem Richard nem Graff tinham grandes recordade restauração conserva um ponto espécie de “borrão”, ções de seus processos de análise na indecifrável: “rosebud” – a estranha e como objetos infância. O mesmo lapso ocorreu com última palavra pronunciada no leito de Georges Perec, que se viu obrigado a morte. A investigação sobre “o sentiesparramados admitir para seu biógrafo que nada se do da palavra sem sentido” conduz o lembrava de sua análise com Françoifilme até a derradeira cena. É possível estabelecer um paralelo entre a obra de Welles e Infância se Dolto. Assim, ao constatar pelos documentos a presença de uma amnésia coletiva, Reis encontra o caminho e memória, da psicanalista Maria Letícia Reis. Com caráter híbrido, o livro pode beneficiar tanto espe- de sua pesquisa. Um dos mais célebres pacientes de Melanie Klein cialistas quanto leigos. A proposta é apresentar lembranças de análises de infância narradas por adultos entrevistados nada disse sobre o conteúdo de sua análise, entretanto, pela autora. A exposição é associada a um resgate concei- descreveu com precisão cirúrgica “o formato gordo” dos tual linear e enxuto, que recorta com limpidez a presença pés da analista. Graff, o pequeno Hans, nem sequer se lembrava de que um dia havia sofrido com uma fobia de de uma “teoria da memória” na obra de Sigmund Freud. 62
shutterstock
cavalos. Já adulto, ele deparou com a escrita do caso e desconfiou que o texto pudesse se referir a ele; ao ler, reconheceu o nome Gmunden, cidade onde passava as férias de verão. Reminiscências, nomes irrelevantes, lembranças avulsas e desprendidas de contexto, um verdadeiro mosaico dá o tom dos depoimentos dos entrevistados. Uma das pacientes recorda-se de que vestia um “casaquinho que pinicava”; outro se lembra de que “arrancava as plantinhas” do consultório de sua analista. Muitos anos de trabalho analítico parecem ter se tornado ruínas destroçadas nas lembranças dos pacientes. Imerso nesse caos de fragmentos, o leitor é fisgado por uma espécie de desconforto calculado. Assim como em Cidadão Kane,o leitor aguarda o desvelamento de um segredo, possivelmente crucial – mas o que encontra é um singelo traço de memória do magnata. De fato, rosebud é irrelevante para todos, exceto para Kane. Se Orson Welles prova que um traço da infância se sobrepõe a uma epopeia, Reis revela a metapsicologia desse paradoxo. Trata-se da proposição de que uma lembrança singular se impõe contra a expectativa ansiosa de uma verdade universal supostamente escondida. Analistas descobrem, assim, que as crianças em análise vivem experiências de um lugar a que jamais teremos acesso. É um truque de óptica. Jacques Lacan nos consola quanto a esse ponto de impotência. No seminário de 1964 ele insiste, reiteradas vezes, que jamais um sujeito
conseguirá ver a si próprio do ponto de vista do qual ele foi olhado pelo outro. Assim, de fato, a posição subjetiva da criança na cena analítica só poderia mesmo ser narrada por meio de recordações esquizoides, como se fossem objetos esparramados. Uma espécie de “borrão” surge como a lembrança que toma o plano de frente da recordação da cena analítica. Trata-se de uma experiência análoga à percepção da caveira turva e flutuante pintada no plano de frente na tela “Os embaixadores” (1533), de Hans Holbein. Analisando a nublada caveira, Lacan (1964) sugere que é lá, na posição da mancha na tela, que devemos localizar a posição do sujeito e adverte os espectadores de que, sempre, o olhar vai enganar o olho. Desnudando os enganos, não surgem histórias heroicas ou desvelamentos de cenas secretas fantásticas. Pelo contrário: prevalecem sinceras amnésias de seus entrevistados. E, a despeito da energia que gastamos para restaurar ou sustentar impérios narrativos, a memória é mais minimalista, “opta” por reter para si traços de uma experiência que foi única e indizível. Isso quer dizer que a vasta imensidão de uma vida sempre será referida a pouquíssimos significantes: rosebud ou, se os analistas preferirem, Gmunden. DANIELE SANCHES é psicanalista, doutora em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), pesquisadora do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da mesma universidade e membro conselheiro do Instituto Vox de Pesquisa em Psicanálise. outubro 2016 • mentecérebro 63
livros | lançamentos FICÇÃO
Literatura policial e Lacan
As aventuras psicanalíticas do inspetor Canal.
Bruce Fink. Blucher, 2017. 432 págs. R$ 95,00
AUTISMO
Conceitos da psicanálise de Jacques Lacan são usados pelo detetive Canal para desvendar as motivações de três crimes misteriosos em As aventuras psicanalíticas do inspetor Canal, novo livro de ficção do psicanalista Bruce Fink. São três contos policiais nos quais o autor, tradutor e estudioso de Lacan ilustra conceitos complexos elaborados pelo psicanalista francês. As narrativas, como O caso do objeto perdido, em que o inspetor é convocado para encontrar uma partitura original roubada do maestro da Filarmônica de Nova York, coloca o espectador diante da perspectiva lacaniana de temas como amor, desejo e perda.
Perspectivas da psicanálise Autismo – Novas reflexões apresenta uma visão do transtorno do espectro autista (TEA) para além dos critérios diagnósticos do DSM, propondo possibilidades de intervenção terapêutica que considerem a subjetividade do indivíduo. Sem deixar de dialogar com hipóteses da neurociência sobre a etiologia do TEA, a psicóloga Sonia Caldas Serra apresenta perspectivas da psicanálise sobre os sintomas que caracterizam o autismo. De acordo com a autora, a intenção da obra não é preterir as demais abordagens em favor da psicanalítica, mas fomentar discussões para oferecer mais caminhos de intervenção. Autismo – Novas reflexões.
Sonia Caldas Serra. Zagodoni, 2017. 128 págs. R$ 44,00
MÉTODO PSICANALÍTICO
SAÚDE DO SONO
Conhecimentos da neuropsicologia
Neuropsicologia do sono – Aspectos teóricos e clínicos.
Katie Moraes de Almondes. Pearson, 2017. 416 págs. R$ 89,00
Em comparação a nossos antepassados, nunca dormimos tão pouco – apesar de, paradoxalmente, a ciência trazer cada vez mais conhecimento sobre os efeitos da falta e da má qualidade do sono para o corpo e a mente. Neuropsicologia do sono – Aspectos teóricos e clínicos é uma coletânea organizada pela psicóloga Katie Almondes, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, de textos sobre as contribuições da neuropsicologia para a saúde do sono, explicando a importância de dormir para a cognição e tratando de possibilidades de intervenção para os variados distúrbios do sono.
Mente e intervenção Criar a mente psicanalítica se aprofunda no método desenvolvido pelo autor, o psicanalista Fred Busch, ao longo de quatro décadas, baseado no fundamento comum às teorias psicanalíticas: mudar a maneira de relacionar-se com a própria mente e, assim, poder refletir positivamente sobre a construção de crenças e hábitos de comportamento. A obra dialoga com achados da neurociência e da psicologia cognitiva sobre o funcionamento do cérebro e enfatiza a importância da figura do analista no processo de ajudar o analisando a “criar a mente” apta a se beneficiar das intervenções psicanalíticas. 64
Criar a mente psicanalítica: teoria e método psicanalítico. Fred
Busch. Escuta, 2017. 312 págs. R$ 95,00
A vida com Lacan.
Catherine Millot. Zahar, 2017. 116 págs. R$ 32,90
AUTOBIOGRAFIA
NEUROCIÊNCIA
Intimidade de Lacan
Estruturas do pensamento
“Dar a conhecer o Lacan que eu conheci...” Em A vida com Lacan, a escritora e psicanalista Catherine Millot relembra e nos apresenta a intimidade desse ícone da psicanálise. O livro de memórias cobre o período que a autora conviveu com o psicanalista, de 1972 até sua morte, em 1981, nos oferecendo um novo prisma para enxergar o indivíduo para além do psicanalista. Segundo a autora, “um acesso misterioso ao lugar íntimo de onde emanava sua ligação com os seres e as coisas”. Ela relata experiências cheias de humor e sinceridade, construindo a imagem de um Lacan que o grande público não conheceu.
A vida secreta da mente – O que acontece com o nosso cérebro quando decidimos, sentimos e pensamos.
Mariano Sigman. Objetiva, 2017. 288 págs. R$ 49,90
Agora seu cérebro está lendo estas palavras: você consegue perceber que existe toda uma mecânica – de compreensão científica ainda inatingível – por trás desse simples ato? Em A vida secreta da mente, o cientista Mariano Sigman apresenta, em linguagem acessível para o leitor comum, descobertas da neurociência que trazem insights sobre funcionamento do cérebro, dos sentidos e dos processos de tomada de decisão. O autor aborda, por exemplo, pesquisas de monitoramento cerebral em pacientes em estado vegetativo para se aprofundar em temas complexos e filosóficos, como a consciência.
imagens: divulgação
Uma amizade de dentro para fora Amigo é bom. Faz companhia, escuta e nos acalma – nem sempre, claro, mas muitas vezes. Faz a gente se sentir mais forte, mais protegido. Algumas vezes, porém, eles não são de carne e osso – moram na nossa imaginação. No livro Em asas de algodão, escrito e ilustrado por Marilda Castanha, a protagonista, uma garotinha de vestido vermelho, tem um amigo assim, que em pleno dia cinzento chega de repente e, aos poucos, a ajuda a ver que além da janela existe um mundo colorido. A menina brinca com sua imaginação até que, aos poucos, se sente mais confiante a ponto de ampliar possibilidades de contato. E descobre que também pode ser muito bom se divertir com quem não está só na cabeça da gente. Uma das primeiras descrições do fenômeno é um estudo publicado em 1895, feito pela pedagoga Clara Vostrovsky, da Universidade Stanford: o caso de uma garotinha que teve vários amigos imaginários até a idade adulta. Desde então, novos estudos mostravam que entre 20% e 30% das crianças têm, pelo menos temporariamente, um ou mais acompanhantes invisíveis.
Em asas de algodão. Marilda
Castanha. Edições SM, 2016. 48 págs. R$ 45,00
Não raro, pais, professores e terapeutas se preocupam não apenas com o fato de as amizades imaginárias serem mantidas por um longo tempo, às vezes por anos, mas também com a nitidez com que as crianças parecem ver seus amiguinhos. Os personagens que emergem da fantasia não surgem por acaso: têm a função de proteger seu criador e ajudá-los a enfrentar dificuldades emocionais. Além disso, os pequenos sabem bem que seus parceiros não são reais e que só existem em sua imaginação. E ao final, assim como no livro de Castanha, essas figuras em geral desaparecem logo que a criança encontra amigos reais ou se adapta a alguma nova situação que antes a incomodava. (Por Gláucia Leal, editora-chefe) outubro 2017 • mentecérebro 65
limiar neurociências
Relatório de campo: a neurociência da pobreza e seu reverso
SIDARTA RIBEIRO
É necessário construir um novo modelo de “educação ecológica”, na qual os alunos passem por estágios de aquisição e consolidação de memória
66
de nutrição, sono e exercício físico que comprometem a aprendizagem através de mecanismos biológicos que, apesar de bem conhecidos, são desconsiderados no ambiente escolar. A pobreza material e cultural está associada a déficits em funções executivas processadas no córtex pré-frontal, causando impulsividade, dificuldade de manter o foco e fazer escolhas. Conclusão 3: A superlotação das salas de aula prejudica a avaliação confiável da aprendizagem individual. Análise matemática de textos e jogos de computadores são alternativas baratas, rápidas e escaláveis para personalizar e qualificar a avaliação acadêmica. Os objetivos essenciais de uma nova educação que possa reduzir o fosso entre ricos e pobres devem incluir a otimização dos horários escolares, reduzindo o tempo de aula em favor de apresentações curtas e entusiasmadas, com exercícios físicos e refeições adequadas antes e depois das aulas, além de avaliações computacionais frequentes do desempenho individual. Essas estratégias podem ser combinadas para reforçar positivamente, minutos após sua detecção, os ganhos cognitivos observados em estudantes específicos. Conclusão 4: Assim como a agricultura ecológica busca a rotação ideal das
culturas, é necessário construir um novo modelo de “educação ecológica”, na qual os alunos passem por estágios de aquisição e consolidação de memória, reduzindo a superlotação das aulas sem custo extra e potencialmente contribuindo para nivelar os gradientes educacionais em todo o planeta. Conclusão 5: Os déficits de função executiva observados em pessoas miseráveis, desprovidas da possibilidade de escolher pela absoluta falta de recursos, talvez seja semelhante aos déficits esperados em pessoas riquíssimas, nascidas e criadas no máximo privilégio, desprovidas da possibilidade de escolher pela absoluta abundância de recursos. Excesso de impulsividade, dificuldades atencionais, redução da qualidade da tomada de decisões e piora no planejamento de ações futuras descrevem, por exemplo, o comportamento do bilionário mais perigoso do mundo. Conclusão 6: Mais de metade da riqueza do mundo está nas mãos de 1% da população mundial. Há sinais de perigo no horizonte. SIDARTA RIBEIRO, neurobiólogo, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor titular da UFRN.
andrei verner
L
ocal: Erice, pequena cidade fortificada no extremo oeste da Sicília, com escarpas 750 metros acima do nível do mar, que nos últimos três milênios serviu a sucessivas ocupações de fenícios, gregos, cartagineses, romanos, árabes, normandos e norte-americanos como observatório para perscrutar o horizonte em busca de sinais de perigo. Data: Primeira semana de setembro, 2017. Participantes: 25 cientistas de dez países diferentes, entre psicólogos, biólogos, médicos, sociólogos e cientistas da computação. Objetivo: Discutir a neurociência da pobreza e os caminhos para superá-la. Conclusão 1: Sem excelência na formação e na motivação dos professores, jamais haverá educação de qualidade. É preciso elevar os salários dos professores à altura de sua importância para a sociedade. A carreira do magistério deve atrair os maiores talentos disponíveis, pois a missão da educação é de máxima importância para o futuro da espécie. Conclusão 2: Em escolas com alunos de baixo nível socioeconômico, o aprendizado é diretamente prejudicado pelas limitações fisiológicas que normalmente acompanham a pobreza. A escassez de recursos e a superlotação domiciliar produzem déficits