Ruy Fausto MARX: LÓGICA E POLÍTICA Investigações para uma reconstituição do sentido da dialética
Tomo III
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Imagem da capa: Paul Klee, Zeichen verdichten sich (Signos se adensando), 1932, desenho com pincel, 31,2 x 48,7 cm, Paul Klee-Stiftung, Kunstmuseum Bern Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: Bracher & Malta Produção Gráfica Revisão: Alexandre Barbosa de Souza
I a Edição - 2002
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro (Fundação Biblioteca Nacional, RJ, Brasil) F268m
Fausto, Ruy M arx: Lógica e Política: investigações para uma reconstituição do sentido da dialética (tomo III) / Ruy Fausto. — São Paulo: Ed. 34, 2002. 320 p. ISBN 85-7326-243-5 1. Filosofia. 2. M arx, Karl, 1818-1883. 3. Dialética. I. Título. CD D - 100
M A R X : LÓ G IC A E POLÍTICA T O M O III
N ota in trod utória...................................................................................................... Hoje (introdução geral)............................................................................ ...............
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I. A apresentação m arxista da história: modelos ...........................................
91
II. Sobre o conceito de capital. Idéia de uma lógica d ia lética ......................
187
III. Dialética m arxista, historicismo, anti-historicism o....................................
229
IV. A dialética do Capital — e as suas implicações (ética e m arxism o, prolegómenos) .....................................................................................................
273
Sumário sistemático parcial (tomos I a III) de M arx: Lógica e Política, investigações para uma reconstituição do sentido da dialética................ Siglas e abreviações....................................................................................................
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MARX: LÓGICA E POLÍTICA Investigações para uma reconstituição do sentido da dialética
Tomo III
À memória de meu pai, Simon Fausto À memória de minha mãe, Seva Fausto (Salem)
N O T A IN TRO D U TÓ R IA
Com o os anteriores, este terceiro volume de M arx: Lógica e Política, investi gações para uma reconstituição do sentido da dialética deveria conter quatro textos. “ A apresentação m arxista da história: m odelos” , redigido em 1988/89 a partir de materiais anteriores, faz parte da minha tese de livre-docência (M arx, Lógica, His tória) defendida na Universidade de São Paulo em 1989. Um fragmento da última seção do texto foi publicado pela revista Lu a N ova (São Paulo, n° 19, novembro de 1989), sob o título “ A pós-grande indústria nos Grundrisse (e para além deles)” 1. “ Sobre o conceito de capital: idéia de uma lógica dialética” , escrito em 1993/ 94, foi publicado em francês (Paris, L ’Harm attan, 1996). M odifiquei o texto em mais de um ponto. A tradução é de Sílvio R osa Filho. “ Dialética m arxista, historicismo, anti-historicismo” , igualmente redigido em francês, é, na sua primeira form a, de 1973. Com várias modificações, aqui reto m adas, também foi incluído na tese de livre-docência. Uma parte dele foi publica da no volume Conhecimento, linguagem, ideologia (São Paulo, Perspectiva, 1989), organizado por M arcelo Dascal. “ A dialética do Capital — e suas implicações (ética e m arxism o, prolegóm e n os)” (1997) foi apresentado em francês ao Coloquio M arx aujourd’hui (Paris, 1997). Eu traduzi. Para apresentar esses ensaios, decidi redigir uma introdução, que, por várias razões, acabou tom ando dimensões muito maiores do que as que eu havia supos to. Sobre o caráter desse texto, que acabou ultrapassando de muito o seu teor pri mitivo de introdução geral, explico-me melhor em seguida. Agradeço a Francisco M iraglia Netto, matemático e lógico, professor titular da USP, que teve a gentileza de ler e discutir comigo a segunda seção deste livro (“ Sobre o conceito de capital: idéia de uma lógica dialética” ). Evidentemente, ele não tem nenhuma responsabilidade pelos meus eventuais passos em falso, em ter reno tão escarpado. Com o indicarei no lugar correspondente, meu mestre e amigo Jean-Toussaint Desanti, assim como o meu ex-aluno Olivier Fecome leram e co mentaram comigo a versão francesa desta mesma segunda seção. Desde já agradeço. Carlos Fausto, antropólogo, professor do M useu N acional do Rio de Janei ro, a quem dediquei o segundo volume de M arx: Lógica e Política... foi ainda uma vez um leitor crítico insubstituível, tanto no plano da forma como no do conteúdo. N ão hesito em dizer que sem o seu olhar crítico, o conjunto deste volume seria bastante diferente do que apresento aqui. Ainda uma vez meus agradecimentos (sem que ele tenha responsabilidade pelas posições que assum o ou por aquilo que esse livro tem de imperfeito), esperando que o nosso diálogo se prolongue enquanto durar o mais velho de nós dois.
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H O JE (IN TRO D U ÇÃ O GERAL)
1. I n t r o d u ç ã o
Para este volume III de M arx: Lógica e Política, investigações para uma re constituição do sentido da dialética, não pretendia fazer senão uma nota introdu tória, análoga à que abre o volume II. M as as m udanças que ocorreram no m un do, dos anos 80 ao final do milênio, as mutações que tiveram lugar no cenário político e intelectual brasileiro, e last but not least, a ruptura do 11 de setembro de 2001, decidiram-me a fazer uma apresentação bem maior, antecipando em par te o que, em princípio, só deveria vir no último volume da série. Impossível publi car um livro técnico sobre M arx, em que se trata, entre outras coisas, de política, sem dizer alguma coisa sobre o que se pode pensar do que se passa hoje no mun do. O que gostaria de dizer nesta introdução é certamente excessivo, dado o vo lume dos temas que tenho em vista tratar, m as não vejo como me subtrair a eles. O leitor me perdoará se ultrapasso a temática do volume, mas esta, e mais ainda a temática do conjunto da série, é suficientemente vasta para justificar esse excurso pelo presente. A exposição terá dois eixos: 1) uma parte geral, esboço de filosofia da histó ria e de teoria das formas sociais contemporâneas a partir da crítica do m arxism o, e 2) uma crítica — breve, m as que pretende visar o essencial — de algumas das ten dências teóricas, e em parte também práticas, da esquerda e da pseudo-esquerda brasileiras. O primeiro ponto fundamenta em alguma medida o segundo, mas há descontinuidades entre os dois, dado o caráter muito específico deste último, e a impossibilidade de desenvolver o bastante o primeiro. Que isto me agrade ou não, o presente texto é a introdução de um livro que inclui no título o nome de M arx. Se o fato não me contraria propriamente, compli ca certamente o trabalho. Continuo a ter uma opinião muito alta da obra de M arx — como não tê-la? — mas creio que deixei de ser m arxista há já uns vinte anos (a introdução ao primeiro volume, que é de 1983, já era explicitamente crítica). Se me disponho a continuar publicando a série com o título original — não vejo razões m aiores para abandoná-lo, embora o subtítulo fosse desde o início mais expressi vo — , esta introdução deve falar, entre outras coisas, do m arxism o, o que, mesmo em forma crítica, tem como efeito “ m arxizar” o texto mais do que gostaria. Entre tanto, além do fato de que M arx continua sendo uma referência importante, há uma outra razão que leva a privilegiar essa referência: escrevo em português, e, em pri meiro lugar, para um público brasileiro. O ra, é indiscutível que, apesar de algumas mudanças, a atmosfera brasileira é, a esse respeito, muito diferente da européia. Para o melhor e para o pior, M arx continua tendo aqui um lugar que há muito tempo
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perdeu na Europa — também para o melhor e para o pior. M eu objetivo principal não é entretanto fazer a crítica do m arxism o; esta é um meio para um outro obje tivo, que é o de tentar pensar de forma lúcida a realidade política e ética deste iní cio de milênio. Advirto desde já que não pretendo me limitar aos macro-problemas ou macroobjetos. Contra uma tradição de pensamento que só aparentemente foi superada, darei um lugar considerável aos micro-problemas. Sem dúvida, isto amplia ainda mais o tema, e como justificativa só posso dizer de novo que também destes não há como escapar. Os m acro-problem as nos remetem ao micro-problemas, em bora, também aqui, e isto é um resultado, não haja continuidade simples entre uns e outros.
2. O “ M
elh o r”
M
a r x is m o
A crítica do m arxism o enfrenta uma dificuldade. Freqüentemente, os argu mentos críticos são insuficientemente rigorosos, e um bom leitor de M arx pode res ponder a eles de maneira convincente. Só que a resposta é em geral ilusória, no sentido de que, mesmo se ela restitui toda a riqueza e o rigor do pensamento de M arx, se é suficiente no que se refere à leitura do texto de M arx, ela é apesar de tudo in suficiente para as necessidades teóricas e práticas do presente. Assim, um bom co nhecimento de M arx é, sob certas condições, e paradoxalm ente, um entrave à crí tica do m arxism o (embora, na realidade, ele seja uma condição necessária dessa crítica). N esse sentido, toda a crítica de M arx deve partir do que ousaria chamar de “ m elhor” m arxism o, o mais sutil, o mais complexo, o mais distante da leitura vulgar. Este é o verdadeiro ponto de partida, sem o que lutaremos contra moinhos de vento. Porém uma vez reconstruídas as poderosas m áquinas de guerra teóricas do m arxism o, trata-se de m ostrar quais são os seus pontos cegos, por onde, apesar de tudo, elas se revelam inadequadas — se é que alguma vez foram plenamente adequadas — para enfrentar os problem as do nosso tempo. N essa segunda parte tentarei expor, na medida do possível de maneira rigorosa, alguns dos movimen tos e teses principais do corpus m arxiano, em conexão com uma crítica possível, que, entretanto, por ora ficará apenas no horizonte. Os temas ora concernem dire tamente conteúdos, ora se referem ao que se poderia chamar em termos muito ge rais de “ form a” ; ora ficam entre uma coisa e outra. Tratarei sucessivamente: 1) de um grupo de problem as que concernem ao progresso histórico, m as que nos levam num mesmo movimento à questão da democracia e, de m odo mais geral, à da rela ção entre economia e política; e no plano mais propriamente formal, à problem áti ca da necessidade e da contingência históricas; 2) da questão do comunismo (ou do socialismo); 3) do lugar da ética (tanto o da ética da política como o da ética em geral); e finalmente 4) dos problem as meta-históricos da relação entre homem e natureza, e homem individual e espécie. E claro que abordarei mais ou menos su cintamente esses vários pontos, m as espero tocar no que é essencial. T odas essas questões estão muito estreitamente ligadas, e é muito difícil falar de cada uma de las separadam ente2.
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História, democracia, economia e política; necessidade e contingência N o que se poderia considerar como as “ melhores” versões no corpus marxiano (penso em particular nos Grundrisse) a história não aparece como uma unidade, pelo menos no plano da posição. H á antes histórias do que história. C ada modo de produção tem sua história própria, e um “ m ecanism o” interno e diferenciado que leva à sua própria dissolução3. H á uma necessidade interna dos m odos de pro dução. Entre os m odos, há períodos de transição. Nestes, a necessidade é progres sivamente constituída, a partir de processos em que existe mais contingência do que necessidade, mesmo se a partir de pressupostos dados pelos elementos liberados pela dissolução dos m odos anteriores. Só se tem unidade da história sob a forma pres suposta (em sentido dialético, não como fundamento das histórias postas, mas como “ fio” que as liga num discurso “ segundo” ), seja esse fio caracterizado como préhistória, história da exploração (excluindo um eventual momento inicial comuni tário), ou história natural. Assim, coexiste descontinuidade posta, e continuidade pressuposta. Essa concepção tem por base a distinção entre os vários m odos de pro duzir, portanto, a economia; entretanto, há m odos em que o econômico em senti do moderno, a busca do lucro ou antes da valorização do valor é decisiva, e há outros em que isto não ocorre. M ais precisamente, é só no capitalism o que se tem essa ca racterística, em oposição aos outros modos. N o sentido moderno do “ econômico” , a idéia geral de história em M arx não é assim “ economicista” , porque se opõe o “ econôm ico” em sentido moderno, mas que é o seu sentido próprio, ao “ não-econôm ico” . N o entanto, em forma geral, mesmo se pressuposta, o econômico, isto é, a referência fundamental à produção subsiste. Quanto à relação entre o econômi co e o político, como também o ideológico, é preciso observar, contra a leitura vulgar, que a posição de cada um desses momentos pressupõe os outros, ou o momento “ seguinte” , portanto, nenhum deles é meramente econômico, ou político ou ideo lógico4. Entretanto, apesar disso, a dependência entre econômico (econômico p os to, político e ideológico pressuposto) e político (político posto, econômico pressu posto) etc., é afirm ada, e com ela o prim ado do econômico (posto). Isso vale tam bém para os vínculos entre o econômico (ou sócio-econômico) e outras relações no interior da sociedade civil (por exemplo, as relações entre sexos), como também para o estatuto das lutas de classes relativamente a outros tipos de luta no interior da sociedade civil. Voltando ao problema da necessidade e da contingência. Vimos que a con tingência tem um papel na história (aliás ela também tem um papel no interior da história dos m odos, mas subordinada à necessidade). A afirm ação do papel da con tingência nas transições valeria tanto para o passado como para o futuro, isto é, valeria também para a passagem da pré-história à história, para o movimento que conduziria ao comunismo. M as, apesar disso, é preciso observar que a liberdade (a contingência vale aqui como liberdade) é condicionada pelos elementos liberados pela morte do modo anterior. Esse condicionamento, pelo menos para o caso da passagem ao comunismo, não estabelece possibilidades variadas. A passagem ao comunismo parece ser apresentada como um ato de liberdade, mas não se vê como se poderia passar a outra coisa, a não ser que voltássem os ao passado, ficássemos eternamente no interior do velho sistema, ou houvesse auto-destruição da humani-
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dade (a rigor, nenhuma dessas três hipóteses é considerada por M arx). Assim, há liberdade na construção do comunismo, mas, retomando uma velha fórmula de um outro pensador — ou de outros pensadores — , estaríam os como que condenados a esta liberdade5. Eis aí os traços gerais da “ melhor” idéia de história que encon tram os em M arx, como da relação necessidade e contingência (e também liberda de), assim como da relação entre política e economia. Sobre a idéia de progresso, prefiro examiná-la na terceira parte, já num contexto crítico. Por ora, bastaria di zer que, para M arx, os vários modos de produção constituem de alguma forma uma série em progresso. M as veremos o que isto poderia significar e as suas dificuldades. Comunismo O comunismo, como fim da pré-história, resultado da revolução proletária e de um longo período de transição, se apresenta de um m odo um pouco paradoxal à primeira vista, em M arx. De um lado, no plano do conteúdo, se lhe concede um m áximo. A sociedade comunista é pensada como uma sociedade mais ou menos transparente, onde não haveria Estado, e nem mesmo leis. Ao mesmo tempo, do ponto de vista form al, essa forma social é mais pressuposta do que posta pelo dis curso. Ela é sempre visada “ no horizonte” ; mesmo se comentadores bem informa dos recolheram um número relativamente grande de textos a respeito6. E, se isto ocorre, é porque, como expliquei abundantemente7, há uma oposição de tipo dia lético entre os meios visados para a realização do comunismo, que seriam meios violentos, e o caráter não-violento da sociedade comunista. Assim, fala-se pelo menos “ intensivamente” pouco do comunismo, mas ao mesmo tempo ele é apresentado como a forma social por excelência, uma forma em que se realizam plenamente todas as qualidades reputadas como “ hum anas” . M esm o se ela é rigorosamente justifi cada no interior do m arxism o e da dialética, essa dupla situação — um m áxim o de conteúdo e um mínimo de forma — tem de ser rediscutida. Ética Referi-me à necessidade — sempre segundo M arx — do emprego de meios violentos para a destruição do capitalism o. Isso nos conduz ao estatuto da ética no m arxism o. O m arxism o contém a rigor uma ética da política, mas não uma ética em geral8. M arx e Engels supõem que a passagem ao comunismo se fará a partir de uma revolução violenta que porá abaixo o poder capitalista. Esta é a tese gené rica, embora, desde o início, eles admitam uma exceção, a Inglaterra, e mais tarde ampliem o quadro das exceções9. M as a revolução violenta é a regra. Ela se justifi caria, por um lado, por razões práticas: o poder capitalista, salvo as exceções, não aceitaria as regras do jogo democrático, ou este seria insuficiente para afastá-lo do poder. Ela se legitimaria por outro lado, pelo fato de que o capitalism o exerce vio lência sobre os proletários. A violência aparece assim como contra-violência, e como tal é legitimada (esta justificação ética não está, porém, explicitada nos textos)10. Isso não implica, entretanto, justificar qualquer violência. A violência revolucionária é violência que se apresenta como contra-violência, por isso mesmo nem todos os meios são válidos. A violência é “ afetada” pela não-violência, que é o seu fim. Se isso é evidente em termos teóricos, não é muito fácil encontrar textos de M arx e
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Engels que ponham os pingos nos iis a respeito desse ponto. M arx e Engels conde naram os atos terroristas dos Fenianos (organização nacionalista irlandesa) que pro vocaram a morte de civis11. M as, para além de uma ética da política (e vimos que mesmo esta fica mais ou menos implícita), não há, a rigor, lugar para uma ética em M arx. De Kant a Hegel, a ética já se deslocara: a M oralität tem um lugar como “ m o m ento” em Hegel, mas ela não legisla no plano da Sittlichkeit, a “ eticidade” , que concerne à cidade. Isto não significa que Hegel fosse am oralista, mas sim que ele não acreditava que, de fato e de direito, a moralidade fosse primeira no interior da esfera da grande política, isto é, da História. (Kant também não acreditava que de fato fosse assim , e mesmo como possibilidade futura tinha grandes dúvidas, mas não abandonava, por isso, a idéia de uma legislação universal da razão prática.) De Hegel a M arx, a ética sofre um novo abalo. De novo, não se trata de afirmar que há aí am oralism o ou cinismo, nem, como já vimos, no plano da política, nem no plano pessoal. Lendo a correspondência de M arx e Engels, vê-se como questões “ empíricas” de natureza ética afloram, aqui e ali, embora a ética (ou a moral, como ele diz geralmente), ou é incorporada à ideologia — ver o M anifesto, por exemplo — e portanto incorporada à crítica do modo de produção capitalista (crítica cuja “ infra-estrutura” é a crítica da economia política), ou então permanece não tematizada em termos teóricos. Sem desaparecer sob a form a de temas empíricos, a éti ca individual é assim reduzida a menos do que uma super-estrutura ideológica. A super-estrutura ideológica é constituída pelo discurso que justifica, idealizando, o m odo de produção. A moral para M arx faz parte dessa justificação, m as a moral naquilo que ela tem de mais próxim o da política. A ética individual é um pouco uma form ação ideológica segunda no interior dessa form ação ideológica, e, nesse sentido, não há lugar para uma tem atização teórica que lhe seja própria. As razões mais profundas dessa atitude estão na idéia m arxiana de progresso e no papel de terminante que nela tem o comunismo como fim da pré-história. Privilégio do co munismo e irrelevância da ética se condicionam reciprocamente. Homem / natureza, homem individual/ espécie humana D a análise das formas gerais do processo histórico segundo M arx, para o papel que têm no corpus m arxiano o socialismo e, negativamente, a ética, passam os da história, enquanto “ pré-história” , a duas instâncias que vão ou iriam além dela, embora em sentidos diferentes: o pós-histórico (pós-pré-histórico) e o transcendental. Discutir o estatuto da relação homem/ natureza e homem individual/ espécie hu mana em M arx também nos leva além da história em sentido estrito, m as num outro sentido. Leva-nos, digam os, aquém da história, pois, no interior do m arxism o, a relação homem/ natureza, assim como a relação homem individual/ espécie hum a na estão presentes, m as não no plano do discurso posto, mas só como pressuposi ções. M ais precisamente, como meta-pressuposições, no sentido que elas estão aquém, mesmo do discurso pressuposto, que estabelece um “ fio” de sentido entre os vários m odos de produção12. Assim, o m arxism o não deixa de tematizar essas relações, porém M arx — refiro-me ao “ velho” M arx, não ao de 1844 — as tematiza não mais do que como pressuposições (em sentido dialético, fundamentos “ nega d os” ) do discurso substantivo, e também como m eta-pressuposições das pressupo-
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sições quase-totalizadoras. Por isso mesmo — uma conseqüência importante — , se é verdade que M arx não deixa de indicar os efeitos desastrosos sobre a terra ou o meio ambiente da maneira capitalista de produzir, suas observações não vão além de certos limites, e não são propriamente constitutivas da concepção que ele tem da história do capitalismo no século X IX e de suas perspectivas para o futuro. Resta saber se esse estatuto de pressuposto é hoje suficiente para dar conta da história do nosso tempo.
Creio ter indicado aí em grandes linhas um certo número de temas e teses prin cipais, em torno dos quais se move o marxismo. Pelo menos para alguns deles, penso ter dado o que me parece ser a versão mais rica e fecunda. Observe-se que, quase sempre, essa versão é a que não faz economia das distinções e figuras dialéticas, a primeira das quais é a distinção entre pressuposição e posição: por exemplo, há um discurso posto sobre as histórias dos m odos de produção e um discurso pressupos to sobre a história em geral; há uma relação de pressuposição e posição — e não simples distinção de “ níveis” — separando os “ m om entos” (em sentido dialético, não temporal) econômico, político, ideológico etc. Tem-se também a contradição entre partes que não são partes de um todo, porque rompem esse todo (o que é uma conseqüência da distinção pressuposição/ posição), e além disso descontinuidades entre, de um lado, processos necessários afetados pela negação interna e, de outro, momentos de contingência (ou de constituição da necessidade, no interior de uma contingência posta) etc. E através da dialética — objeto muito “ conhecido” e por isso desconhecido em geral como o objeto rigoroso que é — que o discurso m ar xista ganha rigor e tem um lugar privilegiado no interior não só da história da filo sofia, m as também, e melhor, na história das ciências do homem. O problema é en tretanto o de saber se mesmo esse “ melhor m arxism o” — suponho que o seja, pelo menos — ainda “ serve” , hoje.
3 . C r í t ic a
do
“M
elh o r”
M
a r x is m o
Retomemos agora cada um desses pontos. As observações críticas que farei têm por base principalmente a história do século X X — história prática, mas tam bém em alguma medida teórica — , o que não quer dizer que uma parte delas pelo menos não pudesse ser legitimada a partir de dados anteriores. N ão são as grandes mutações que se operam no interior da economia capitalista, nem mesmo as m uta ções na ideologia do capitalism o, que vão pôr em xeque a construção geral do m arxism o. O grande desenvolvimento de lutas que não são lutas de classe tem um significado maior nesse sentido, m as também não é aí que aparecem os problemas mais importantes para a construção clássica. O marxismo, essencialmente uma teoria crítica do capitalism o, suporta bem, em geral, as mutações que sofreu o sistema. Entenda-se: não quero dizer com isto que, no plano específico das leis ou regulari dades do sistema, não haja muito a mudar, digo apenas que as categorias críticas gerais — mesmo se como veremos elas são, sob um aspecto, unilaterais e estreitas
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— parecem suficientemente sólidas quando se trata de dar as grandes linhas de uma análise crítica do sistema. Dir-se-á então: nesse caso, o m arxism o vai bem... Se o que acabo de dizer é verdade, de fato não devemos nem podem os nos desem bara çar, sem m ais, do m arxism o, sempre que se tratar de uma análise crítica do capita lism o1-3. Essas afirmações parecem, entretanto, significar mais do que significam, porque se supõe, erradamente, que “ tudo” ou quase tudo, no século X X e, mais ainda, hoje, é capitalism o (ou então variante, ou desvio “ imanente” do capitalis mo). M ais precisamente, diante de uma forma contemporânea, ou se supõe que ela é capitalista, incluindo as variantes deste, ou então ela é “ socialista” (nas suas vá rias — supostas — expressões). Veremos o grão de verdade que existe nisso. Se pensarmos que houve no século X X , e há no século X X I, real e virtualmente mais do que capitalismo e “ transição” ao socialismo, as coisas já mudam de figura. O ponto de partida poderia ser a idéia m arxiana do progresso. Se perguntar mos qual o estatuto do progresso em M arx, estaremos diante de um problema cuja resposta está longe de ser fácil14. Claro que existência de progresso científico e téc nico não oferece nenhuma dificuldade, m as a questão não está aí. Em que medida se poderia falar em progresso (digamos progresso político, ou, se M arx aceitasse essa fórmula, progresso ético-político), de m odo de produção a modo de produ ção? Supõe-se que os vários m odos de produção estejam “ em progressão” . M as o que poderia significar isto? Que haja descontinuidade ou continuidade entre os m odos não representa um problema, no sentido de que não se trata agora de ana lisar a forma das passagens, mas de saber em que medida, de modo a m odo, há progresso na liberdade e na “ redução” da exploração15. Saber se — quaisquer que tenham sido os mecanismos das passagens (e retomando uma expressão hegeliana) — a história é uma história da apresentação progressiva da liberdade e da autono mia “ econômica” . A resposta de M arx é positiva, mas é complexa a sua legitimação nos limites do m arxism o. Digam os, para simplificar: do pré-capitalismo ao capita lismo, há certamente progresso form al no que se refere à liberdade. Essa forma não é certamente pura ficção; mas ela bastaria para falar em progresso? Seria preciso considerar também a história interna do capitalism o, não só a relação do capitalis mo com o passado. M arx supõe que na história interna a exploração aum enta16. Assim, a categoria do progresso aparece em forma problemática. O progresso en quanto progresso só tem uma legitimação inequívoca: a possibilidade de dar os pres supostos para a emergência da sociedade comunista (a distância relativa em rela ção a esta possibilidade). E só nesse sentido que o capitalism o representaria certa mente um progresso, enquanto progresso. Quanto ao mais, a categoria dominante não é a do progresso, e também não é a da regressão, é a categoria tanto antiaufklàrer (anti-iluminista), como anti-“ superstição” (anti-“ anti-ijufklàrer” ) do progresso-regressão. E esta categoria, de origem hegeliana, que domina a idéia da his tória do capitalismo em M arx. Pressuposto dessa idéia, cuja riqueza e importância não se trata de negar, é a consideração do m odo de produção capitalista como uma espécie de unidade, cuja essência é dada precisamente pelo “ m om ento” — em sen tido técnico — em que a economia é posta; o resto está também presente, mas é segundo. Em outros termos, a idéia do progresso-regressão — não em si mesma,
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m as como categoria hegemônica, e no limite exclusiva — é de algum modo solidá ria do privilégio da leitura da relação (sócio-) economia/política em termos da p o sição do primeiro termo e da pressuposição do seguinte. O que tem como conseqüên cia a possibilidade de definir o m odo de produção só dizendo a base econômica ou sócio-econômica. O ra, haveria uma outra possibilidade, a de definir o capitalismo na sua forma dominante atual, dizendo também a forma política — democracia ca pitalista, o que nos leva a pensá-lo de uma forma virtualmente contraditória. O b serve-se que, qualquer que seja a modo pelo qual ele a enuncia, também para M arx há evidentemente contradições virtuais no capitalismo, mas, com a “ definição” que propus, a contradição é iluminada diferentemente. Definindo o capitalismo atual como democracia capitalista17 — Castoriadis prefere: “ oligarquia liberal” 18 — , separamos a forma política da forma sócio-econômica, o que tem ou pode ter como resultado uma outra teoria do progresso, uma teoria em que o progresso-regressão tem um lugar, m as em que também poderia ter um lugar, entre outras coisas, o progresso, sim plesm ente^. Quaisquer que tenham sido as descontinuidades do p as sado, isso significaria introduzir um certo tipo de continuidade no plano crítico (no plano da “ apreciação” , embora o termo não seja o melhor). A forma democrática — que em M arx não é pura ficção, m as não vai muito longe como realidade — ga nharia uma outra espessura. E por que ela deve ganhar outra espessura? Parece-me que é o fato de que o século X X conheceu a emergência de movimentos eminente mente anti-democráticos, um dos quais deixava subsistir o capitalism o, sem que entretanto, apesar do que pensa certa tradição m arxista, este o definisse; e o outro, liquidava tanto a democracia como o capitalismo, sem entretanto corresponder à idéia que M arx tinha do comunismo ou mesmo da transição para o comunismo. Assim, é em grande parte a experiência do século (lida a partir dos seus melhores especialistas), que leva a essas considerações críticas. M as vejamos isto mais de perto, sem aprofundar muito, porém, pois retomaremos as conclusões na quinta parte desta introdução geral, depois de um interregno crítico sobre o Brasil. Nazism o e bolchevismo-stalinismo de um lado — digo “ bolchevismo-stalinism o” , não porque acho que as duas coisas sejam idênticas, mas porque a primeira, “ malgré elle” em grande parte, prepara objetivamente o leito da segunda — , de m ocracia, de outro, aparecem como pólos políticos no interior da história do sé culo X X . Pólos políticos, mesmo se a democracia só aparece sob a forma contradi tória da democracia capitalista20. Comecemos pelas duas formas que opusemos ao capitalismo. O interesse delas para uma teoria geral da história é que elas representam sem dúvida uma regressão em relação à democracia, mesmo em relação à democracia sob a forma virtualmente contraditória do capitalismo. Nazismo e bolchevismo-stalinismo nos mostram a pos sibilidade, não pensada absolutamente por M arx, de formas modernas — em ter m os técnicos e em parte em termos de organização — de novas criações históricas, que representam entretanto, do ponto de vista da história da liberdade, e também da exploração, um retrocesso histórico. Aqui não se tem progresso-regressão, mas regressão histórica (em termos ético-políticos). É sobre o fundo deles que a demo cracia enquanto tal aparece como progresso. Poder-se-ia dizer assim que há três “ ten dências” — progresso-regressão, progresso, e regressão21.
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Evidentemente, essa concepção só é pensável se supusermos, contra a opinião marxista dominante, que nazismo e bolchevismo-stalinismo não são pensáveis como simples variantes das formas conhecidas, capitalismo e socialismo (ou transição para o socialismo). N a realidade, é o peso da tradição m arxista que leva a ver no nazis mo um simples “ avatar” do capitalism o; e na sociedade “ bolchevista-stalinista” (a URSS dos anos 30, por exemplo), ou uma form a, eventualmente “ deform ada” ou “ degenerada” , de sociedade de transição para o socialismo m as como simples va riante dela22 ou, no outro extremo, uma simples variante do capitalism o, “ capita lismo de E stad o” por exemplo. N a realidade, é o privilégio abusivo da definição através da chamada “ infra-estrutura” sócio-econômica que leva a esse tipo de erro. A form a nazista é essencialmente diferente da form a “ dem ocracia capitalista” , mesmo se, na sociedade nazista, o capitalismo de grande indústria sobrevive, e tem um peso “ específico” . Do mesmo m odo, a sociedade “ stalinista” não é uma socie dade capitalista, ainda que, no interior dela haja algo como “ m ercadoria” (com uma determinação de preços m odificada). As mercadorias estão lá, m as estas não bas tam nem para afirmar que lá se tem capitalismo, nem para dizer que se trata de uma “ sociedade m ercantil” ou “ produtora de m ercadorias” , se com isto se pretende definir, mesmo genericamente, essa forma. D o mesmo m odo, ela não é certamente comunista — o que, a rigor, poucos pensaram — , mas também não é sociedade de transição ao comunismo, o que seria dar uma definição teleológica sem muito sen tido. Se dissermos que ela é “ degenerada” ou “ deformada” — o que tem em si mesmo a sua verdade — porém supondo que ela continua sendo socialista, dam os uma definição genética confusa em que a gênese vira essência23. Define-se, num caso, através de um futuro que ela “ ainda” não é; no outro, por um passado, idealizado, que se reconhece que ela não encarna m ais, mas que se pretende conservar como sujeito no presente. Seria preciso, pelo contrário, separar essas form as das outras, um pouco como o m arxism o separa os “ m odos de produção” . Aqui se trata de um registro intencionalmente mais geral, o das “ formas sociais” , m as a distinção qua litativa tem de ser introduzida, como M arx fazia para os seus “ m odos de produ ç ã o ” . Deixo de lado, por ora, as conseqüências desse primeiro esboço de um novo esquema das formas sociais, para retomá-lo — como também a teoria do progres so — na quinta parte. Essas considerações são inseparáveis da análise das dificuldades no que con cerne à idéia do comunismo. Que se pensem outras formas sociais além do capita lismo, das formas que o precedem, e do comunismo, m ostra já a necessidade de ir mais longe no que se refere ao problema da necessidade histórica. Vimos que no “ melhor” m arxism o essa necessidade é constituída progressivamente por um pro cesso em si mesmo contingente, m as que se faz a partir de pressupostos liberados pelo modo anterior. O resultado, vimos também, é que, se o processo de constitui ção de um novo modo não é em si mesmo, desde o início, necessário, não se supõe entretanto — pelo menos para o caso da passagem ao comunismo que é o que in teressa aqui — uma variedade de possibilidades, mas no m áximo a alternativa en tre a passagem ou o bloqueio na forma antiga (ou retrocesso a formas anteriores), não muito mais que isso. Ora, a necessidade de considerar outras formas sociais
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contemporâneas m ostra que as alternativas prospectivas para o além-capitalismo — boas ou m ás — são mais vastas do que se poderia pensar. N esse sentido o co munismo deixa de ser o que representava em M arx (em termos de m odalidade dia lética): uma possibilidade concreta, para se transform ar, em algo como uma possi bilidade histórica abstrata, um possível histórico simplesmente24. Entretanto, a idéia do comunismo não é posta em xeque só pela necessidade geral de atenuar o papel da necessidade histórica (entre as formas sobretudo), mes mo se, no “ melhor” m arxism o, essa necessidade, como já vimos, não era absoluta mente rígida. É todo o estatuto formal e material da idéia de comunismo que tem de ser rediscutida. Vimos que o comunismo em M arx se apresenta de uma forma aparentemente “ p arad o x al” : ele é pensado, no plano do conteúdo, como uma for ma social que, na linguagem do realismo lógico, tem um m áxim o de realidade (tra ta-se de uma sociedade que encarnaria a verdadeira sociabilidade, sem Estado nem leis), e que, ao mesmo tempo, no plano da forma — da forma em sentido dialético — não pode ser posta e deve ficar pressuposta. Vimos também que as duas deter minações, de certo m odo opostas, se condicionam: é porque o comunismo repre senta um “ m áxim o de realidade” que ele não pode ser posto. O ra, a necessária mudança do registro modal da história a que fiz referência, porém mais do que isto, certas razões ligadas ao conteúdo, obrigam a rever o estatuto “ paradoxal” , a invertêlo de certo m odo25. Assim, a rediscussão não vem apenas do fato de que o com u nismo aparece hoje como menos “ necessário” , do que poderia parecer a M arx. Há razões internas ligadas ao conteúdo que tornam a idéia do comunismo altamente problem ática. M esm o se isso pode parecer uma concessão a um a-historicism o burguês e uma retom ada de um argumento antigo utilizado por pensadores con servadores, parece-me que há razões antropológico-históricas para recusar a pos sibilidade e também a “ desejabilidade” do comunismo. Razões antropológico-históricas: nesse ponto é preciso fazer apelo menos à história prática do século X X do que à história teórica do século, e já do final do século X IX , para não recuar mais. O argumento se encontra em algum lugar em Castoriadis: a idéia de uma socieda de transparente, sem Estado nem leis seria compatível com o que hoje sabemos sobre o indivíduo, sua estrutura pulsional, sua ruptura interna, dividido que está entre um eu, uma ou algum as instâncias auto-repressivas e um território de pulsões que tem relações conflitivas com as outras duas instâncias? A idéia de uma sociedade sem Estado nem leis é compatível com esse retrato do que seria o sujeito? Bem en tendido, poder-se-ia duvidar de que essa descrição seja objetiva; dir-se-á por outro lado — argumento clássico — que esta é a estrutura do sujeito burguês, mas que este é um produto histórico: “ a história” forjará um outro sujeito. Entretanto, que o sujeito tal como o conhecemos hoje seja, em parte pelo menos, um produto da história não implica em que todas as suas características sejam reversíveis; quanto à segunda parte do argumento, se “ a história” pode sem dúvida modificar os indi víduos, nada nos leva a crer que essa possibilidade seja ilimitada. Supor uma socie dade transparente sem Estado nem leis, funcionando entretanto sem maiores difi culdades, significa acreditar numa formidável plasticidade do sujeito humano, plas ticidade que é própria de um certo humanismo desenvolvido a partir de Rousseau (que ultrapassa porém, em otimismo, o que R ousseau pensava do indivíduo huma-
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no). Essa concepção fora posta em xeque, embora de forma unilateral sem dúvida, pelos “ escritores negros da burguesia” , como diziam os frankfurtianos, os Hobbes, Sade, M aquiavel, e volta a ser posta em xeque, sempre de forma unilateral, pelos pensadores da segunda metade do século X IX . Freud traduz os resultados em for m a científica, e certamente com menos unilateralidade, apesar de tudo. A idéia de uma sociedade transparente não é afinal de contas uma idéia pré-freudiana? Podese supor como realista o projeto desse tipo de sociedade, mesmo se para um futuro mais ou menos distante, tendo em conta tudo o que se sabe sobre o indivíduo des de Freud? A meu ver a resposta é negativa, e ela implica também na não “ desejabilidade” de um projeto desse tipo, que, pela sua inviabilidade, só pode desembo car em resultados opostos aos objetivos visados. M as ao discutirmos a questão, pom os em xeque, em boa medida, a segunda característica da idéia m arxiana do comunismo: o de que ela não deve nem pode ser posta, que ela deveria permanecer pressuposta. A mudança no registro da m o dalidade nos leva26 não só a abandonar o conteúdo da idéia m arxiana da “ socie dade reconciliada” (para utilizar de novo uma conceituação adorniana), mas a abandonar também o dispositivo formal em que ela se introduz. Em outras p ala vras: a história do século X X — história prática, m as também teórica — nos con duz de certo m odo a inverter as exigências de M arx: é preciso renunciar ao conteú do comunista da idéia da sociedade que ultrapassa a pré-história, isto é, deve-se aban donar a utopia de uma sociedade sem Estado nem leis; e inversamente é necessário pôr (e não só pressupor), isto é tematizar e discutir plenamente a idéia e a possibi lidade dessa sociedade, que, pela alteração do seu conteúdo, não será mais com u nista, mas poderia ser cham ada de socialista. Assim, conteúdo e forma se alternam ou se invertem. A crítica da idéia m arxiana de progresso, como simples progresso-regressão m arcado por rupturas catastróficas; e o questionamento do conteúdo e da forma do comunismo — ou, corrigindo, do socialismo — , são evidentemente inseparáveis de uma releitura do estatuto da ética. Tanto da ética da política como da ética em sentido geral. Vimos que, se ele supõe exceções, M arx propõe para o caso geral uma revolução violenta, sendo a violência justificada pelas necessidades políticas práti cas (quebrar a resistência das classes dominantes), e sendo legitimada pelo fato de ser contra-violência. Assim, a legitimação da violência reside na distinção entre contra-violência e violência, só a primeira ganhando legitim ação2'. M as razões internas e externas exigem que se repense a relação entre violência e contra-violên cia, e em geral a idéia de violência revolucionária. N ão se trata em absoluto de banir toda legitimação da violência como contra-violência (pensemos na resistência con tra os poderes totalitários), mas o fato de que há violência no interior da ordem burguesa não justifica mais o apelo à revolução violenta. O que afirmo está ligado à idéia de uma relativa autonomia da instituição democrática, e à de que ela repre senta um progresso. M esm o a serviço de projetos de reforma que introduziriam maior igualdade, a ruptura da ordem democrática corre o risco de implicar numa regressão. Essa possibilidade é amplamente confirmada pela história do século X X . As revoluções ditas proletárias, ou proletárias e cam ponesas, liquidaram a demo
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cracia, e trouxeram finalmente muito pouca igualdade. O seu destino foi afinal, pri meiro a sociedade burocrática com o seu cortejo de horrores, incluindo a liquida ção de milhões de pessoas; depois, o retorno do capitalism o, às vezes um capitalis mo autocrático, e até um capitalism o totalitário, que reúne o pior de duas formas de regime. Esse processo regressivo se deu desde os primeiros anos da revolução russa, senão desde os primeiros dias, embora só mais tarde tenha se desenvolvido na ordem stalinista28. A “ prudência” diante da violência não tem apenas justificação externa, a que se baseia na experiência do século X X ; ela poderia ser fundada internamente, a partir do que já foi dito. Se a violência se legitima como contra-violência, isto é, a partir da revelação da violência inerente à sociedade burguesa, a crítica dessa legitimação faz valer que não é qualquer violência que funda qualquer contra-violência: seria preciso justificar a proporcionalidade ou justiça da retorsão. A resposta clássica p a rece excessiva, embora seja difícil dizer precisamente por que. N o fundo, é a rea firm ação da democracia, mesmo se imperfeita, que de novo está no centro da dis cussão. O uso da violência, parece, só se legitima se houver trangressão das regras democráticas por parte dos adversários: nesse caso, a violência dos oprimidos e explorados é proporcional à violência sofrida, e se legitima como contra-violência. Se isto não ocorrer, ela parece apesar de tudo excessiva. A violência dos oprimidos se configura como contra-violência enquanto defesa da legalidade. É mais ou me nos o que diziam Kautsky ou M artov há mais de três quartos de século. Dir-se-à que tudo isto é abstrato, e depende das circunstâncias. Sem dúvida, mas aqui se pretende indicar somente as condições gerais de legitimação. Até aqui, quanto à ética da política. E a ética em geral? Vimos que se, de Kant a Hegel, a ética se regionaliza — ou mais exatamente, se torna “ m om ento” , o que tecnicamente, não esqueçamos, remete à determinação ou o destino de ser “ nega d o ” — , em M arx ela se dilui enquanto tema, como uma “ form ação” teoricamente irrelevante no interior da ideologia dominante. M as o questionamento do com u nismo altera não só o estatuto da ética da política, como também o da ética em geral. A pressuposição da sociedade transparente — espécie de teologia negativa — e a diluição da ética vão juntas. O comunismo como pressuposição da reconciliação m áxim a absorvia toda possibilidade de um a instância transcendental. Caindo a teologia negativa, o transcendental aflora de novo. N ão há como escapar dele, porque não existe mais juízo final, momento último em que se contariam e, ao mesmo tempo, se desagregariam o justo e o injusto. A ética — a ética individual — reaparece as sim como problema. N ão há domínio em que reine maior confusão do que o que concerne à ética; refiro-me à opinião popular, m as é duvidoso que os filósofos vão hoje muito mais longe. Duas coisas são importantes. A primeira é insistir sobre a existência de uma confusão, no que se refere ao individual e ao universal. A partir de um lugar comum, segregado pela ideologia dominante, supõe-se que há de um lado questões universais, e de outro, problemas que concernem só ao indivíduo. Isto poderia ser aceitável, se fossem feitas as distinções necessárias no interior desse “ individual” . Ora, as questões “ individuais” ou são considerados de forma mais ou menos negativa (em sentido pejorativo) — assim , para m ostrar que um proble ma não tem interesse universal e que concerne só ao egoísmo do particular, diz-se:
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é uma questão pessoal — , ou então se supõe que elas sejam moralmente indiferen tes. H á sem dúvida questões que são ética ou moralmente indiferentes. E, curiosa mente, o melhor exemplo delas está nas que remetem a uma área tradicionalmen te, m as por erro ou preconceito, associada à ética — ou à “ m oral” quando não se distingue uma coisa da outra, como também não distinguirei aqui29 — : a área do comportamento sexual. N a realidade, fora os casos de violência — entre os quais, bem entendido, se inclui a pedofilia, lembro isso dadas as enormidades proferidas por certos “ pensadores” da galáxia de 196830— , essa área não tpm nenhum inte resse para a ética. As questões que pertencem a essa esfera poderiam justamente ser cham adas de privadas ou pessoais, em sentido próprio, porque concernem estrita mente ao indivíduo ou aos indivíduos envolvidos; sobre elas, a ética não tem nada a dizer31. Porém o privado, pessoal, em sentido estrito, não se confunde com o que é individual mas não pessoal no sentido de privado, entendendo por individual-nãopessoal, o domínio de certos atos praticados fora da esfera pública, ou fora das esferas públicas mais abrangentes, mas que têm um interesse universal. N a realidade, a universalidade de um ato (universalidade positiva ou negativa) não advém do fato de que ele concerne imediatamente à esfera pública — mesmos às esferas públicas menos abrangentes — , m as do fato de que a ética pode reconhecer nele matéria para julgá-lo correto ou incorreto, moral ou amoral (no sentido de imoral, já que este último termo tom ou um sentido muito estrito e equívoco, na direção evocada pou co acima). E ele tem universalidade independentemente de haver sanção jurídica prevista, e em geral de interessar ao direito. N ão darei exemplos pelo menos por ora, m as creio que a distinção é teoricamente evidente; no entanto, ela é objeto de todo tipo de confusão32. Um ato pode ser individual — não se referir imediatamente à esfera das instituições públicas — e ser entretanto, positiva ou negativamente universal, no sentido de interessar à ética. A segunda observação, mais especifica e, digam os, não tão urgente, porque se situa no interior de um desenvolvimento já mais teorizante, é de que a necessi dade de pensar a ética não significa imediatamente pelo menos, ou estritamente, fazer da ética o fundamento da política. Digo que é preciso tematizar a ética; que lugar ele terá, se fundamento ou não, é um problema a discutir, e que, nos limites deste texto pelo menos, não poderá ter mais do que um começo de solução (ver a sexta parte desta introdução geral). As relações entre o homem e a natureza, e entre o homem individual e a espé cie humana estão pressupostos e não postos no discurso de m aturidade de M arx. O que significa que eles ficam fora do discurso de ordem propriamente científica, e, objetivamente, que eles antes constituem o “ fundo” da história — ou da “ préhistória” — do que são propriamente elementos constitutivos dela. Refiro-me, bem entendido, à natureza como conjunto dos objetos naturais, que têm como outro a espécie humana; e à relação dessa espécie em conjunto, com cada homem indivi dual33. Ora, o desenvolvimento das técnicas de destruição, assim como a explora ção de energias e técnicas com fins pacíficos m as potencialmente perigosas, alterou a situação. Ultrapassou-se o limite de uma certa utilização dos meios de produção e de destruição34. N o momento em que grandes m assas humanas estão ameaçadas
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por técnicas de produção ou de destruição, passam os a um a outra idade histórica, em que o homem — a espécie humana — e a Natureza não são mais pressuposi ções. Homem e natureza vieram a ser postos pela história. Em certo sentido, pos tos em forma negativa. Com o observei em M L P I: “ O segundo ponto para a crítica do m arxism o — eu escrevia no início dos anos 80 — é o da nova dimensão que ganha a história com a invenção de novos meios de destruição. (...) N ão basta di zer, a esse respeito, que em lugar de passar da pré-história à história, história que representaria a posição do homem, ficou-se na pré-história. A história do século X X remete na realidade à posição do homem — m as à posição negativa do homem. Isto quer dizer que, em certo sentido, se passou à história, mas como advento não da vida genérica, mas da morte genérica, da destruição genérica. Passam os a algu ma coisa que é ao mesmo tempo história e pré-história, história na pré-história. Talvez pudéssemos chamá-la de anti-história” 35. Esse tipo de observação segue em linhas gerais os caminhos do pensamento de Frankfurt, talvez mesmo alguma for m ulação literal. Significa que não é mais possível nem rigoroso apenas pressupor a natureza e a espécie, porque am bas passaram a estar presentes enquanto tais na história. De algum m odo essa posição é também positiva, no sentido de que tam bém os efeitos benéficos se universalizaram numa escala superior. (A propósito da posição positiva da espécie seria o caso de assinalar que essa humanidade a ser posta deve ser a humanidade dos homens e das mulheres. O M arx humanista de 1844 pensava em termos do homem e da mulher; m as quando ele abandona o humanis mo, seu universo, agora prometeano, torna-se ao mesmo tempo mais ou menos androcêntrico.) M as essa universalização não se confunde com a que assinalaria a passagem ao Sujeito, tal como era pensada por M arx, em termos de fim da préhistória, e só representa propriamente uma m utação histórica pelas suas conseqüên cias negativas. É a possibilidade de destruição de grandes m assas humanas, senão da espécie humana, possibilidade posta pelas novas técnicas de produção e destrui ção, que opera essa m utação. Esta atinge a meta-história mais do que a história simplesmente: mas, precisamente, essa meta-história é agora posta como história. Ela passou a ser um “ estrato” constitutivo do conjunto da história. Digam os, pri meiro pôs-se a história universal — “ ela nem sempre existiu” , diz M arx nos Grundrisse36 — lá onde só havia histórias locais. Agora é como se a história universal pusesse a história da espécie, com o que se passa a um novo registro histórico. Os acontecimentos que se iniciaram com o 11 de setembro de 2001 assinalam também à sua maneira esta passagem .
4 . C o n s id e r a ç õ e s C r í t ic a s S o b r e A l g u m a s T e n d ê n c i a s
da
E sq u erd a
E DA PSEUDO-ESQUERDA BRASILEIRAS
Os elementos críticos indicados na seção anterior serão retom ados na quinta e na sexta partes. Eles fornecem, entretanto, materiais suficientes para que se p o s sa interpor, como anunciado, uma crítica — breve — de algumas das tendências teóricas (e em parte também práticas) da esquerda e do que poderíamos chamar de pseudo-esquerda brasileiras. Antes de mais nada, assinalo os limites dessas análi
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ses críticas. N ão pretendo analisar em conjunto as principais tendências teóricas ou filosóficas que se poderiam encontrar no Brasil, e mesmo no que se refere a m ar xism os — incluindo anarco-m arxism os e pseudo-m arxism os — só me ocuparei de alguns casos37. Escolho aqueles que me parece necessário e urgente criticar. Tentemos organizar um pouco o objeto, mesmo se ele é parcial. H á por um lado as tendências que grosso modo podem os chamar de m arxistas ortodoxas. Aí seria preciso distinguir a ideologia dos políticos que representam partidos de esquerda — ou simplesmente a ideologia desses partidos — e a ideologia e a teoria dos inte lectuais. Sobre a ideologia dos homens políticos de esquerda, seria preciso distin guir. Se, digam os, tom arm os como referência a atitude para com o atual poder totalitário-capitalista chinês (um bom objeto para estudar os descaminhos de uma certa esquerda), há no limite líderes da extrema esquerda que, por exemplo, defendem abertamente a política colonialista do poder chinês no Tibet, em nome do progres so e dos interesses da revolução! H á outros que, se não vão até aí, tecem loas ao desenvolvimento industrial da China, à luta contra o analfabetismo, sem pronun ciar uma palavra sequer sobre as transgressões aos “ direitos do hom em ” . M esmo se em geral terminam dizendo que a situação do Brasil é diferente — o que assinala um progresso em relação a posições anteriores — , é de qualquer m odo assustador ver como se retomam os argumentos favoráveis à URSS utilizados pela m aioria da esquerda nos anos 30, e também depois. Parece que não se extraiu nenhuma lição da história mundial, já que se continua a julgar regimes e formas sociais só pelos seus sucessos econômicos reais ou supostos. Bem entendido, nem todos os nossos homens políticos de esquerda reagem assim. Passando dos políticos aos intelectuais. Em tese, seria necessário distinguir o discurso propriamente teórico dos intelectuais, e suas intervenções mais especifica mente ideológicas. Porém a distinção não é sempre clara, já que freqüentemente um registro invade o domínio do outro. Em geral, tomando como referência os melho res textos em crítica literária, história etc., o nível das análises m arxistas no Brasil é, como se sabe, muito alto. M as é provável que o trabalho seja prejudicado em alguma medida por uma visão um pouco unilateral da história do século X X . Ten tarei me ocupar desse problem a em outra ocasião. Já anteriormente, em entrevista citada, indiquei que o que me parece suscetível de crítica seria não o fato de que as análises sejam sociologizantes — sempre que não for reducionista, esse caminho não só é válido mas dentro de certos limites se impõe — , a dificuldade estaria talvez antes na idéia que se faz da história social e econômica, em particular do século X X . O papel da emergência dos poderes burocráticos e das ideologias de esquerda ligadas a ela é levado suficientemente em conta? O deciframento da produção cultural não seria excessiva e unilateralmente marcada pelo apelo ao movimento do capital e suas conseqüências? É uma hipótese a examinar. N as intervenções públicas, quando se trata de lutas universitárias ou outras, a ideologia dos intelectuais m arxistas — penso agora nos que participam mais di retamente dessas lutas — é freqüentemente m arcada por um discurso m arxista clás sico sobre a luta de classes, que, verdadeiro em suas linhas mais gerais, é muito esquemático e arcaico para as exigências atuais. Isso enfraquece as posições críti cas no interior dessas lutas, que são de grande importância.
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Até aqui não citei nomes, m as não posso deixar de mencionar alguém que considero um amigo. É impossível não se manifestar sobre o rumo que tom am as intervenções de Paulo Eduardo Arantes desde a publicação do seu livro O fio da m eada38. A crítica é difícil, tam bém porque as intervenções recentes de Arantes são, em grande parte, de natureza oral; m as elas são suficientemente freqüentes e convergentes, para que uma resposta se imponha. Limito-me aqui a fazer consi derações gerais; para os detalhes, ver, sobretudo, o texto indicado em nota. De pois de ter escrito um livro muito importante sobre Hegel, Hegel, a ordem do temp o 39, dois livros de excelente nível no plano da análise sócio-filosófica (Sentimento da dialética e Ressentimento da dialética40), além de um a análise, discutível tal vez, m as extremamente brilhante de uma história universitária local (Um departa mento francês de ultram ar)41, Arantes enveredou cada vez m ais, em oposição ao que era a sua tendência inicial, na direção de um discurso reducionista e anti-filo sófico (senão anti-teórico), cuja legitimidade teórica e política se revela, a meu ver, cada vez mais duvidosa. Esses traços já são visíveis em O fio da meada. Nesse li vro, ele registra “ o atestado de óbito da filosofia” (p. 112), “ a falência do gênero filosofia em geral” (p. 148), “ a exaustão histórica do gênero” (p. 28). E não se tra ta apenas de constatar um processo que seria da ordem do real. Arantes assume como tese e no sentido mais forte — teórico e prático — essa liquidação. As interlocutoras de Arantes — o livro seria um “ diálogo” a quatro, m as há razões para supor que estas últimas, embora tenham o nome de pessoas reais, sejam , no livro, simples “ heterônimos” do autor — vão direto ao que importa. Se Arantes, ele mesmo, põese a refletir “ por que diabos um tipo como Adorno continuou a falar em filosofia (...) (p. 52), uma delas explica: “ Em matéria de filosofia, não renego nem escondo minha ‘linha ju sta’ : filosofia é falsa consciência de uma sociedade falsa e ponto. Por isso me dá urticária toda vez que ouço algum adorniano pontificando: a filo sofia sobrevive porque a prom essa de sua realização não se cumpriu, ou seja, já que a Revolução foi à breca, filosofem os” (p. 29). E assim por diante. Essa liquidação sum ária da filosofia se combina com um a política também sum ária em que a revo lução de 1848 aparece como momento negativamente fundante, e em que, a res peito dos totalitarismos do século X X , não se vai muito além de vagas fórmulas do tipo “ retrocesso stalinista” (p. 46). Desse livro para cá, o tom piora ainda mais: crítica desabusada dos frankfurtianos, análises sum árias da história da filosofia do século X X a partir do movimento do capital, certo esnobismo anti-teórico, e poli ticamente uma sorte de nihilismo (bem visível também no final de O fio da meada) paradoxalm ente ligado, segundo fontes idôneas, a intervenções que justificam di taduras burocráticas, a cubana em todo caso... Arantes pensa talvez que com isto está na vanguarda do pensamento crítico. N ad a mais enganoso. Com o já disse em outro lugar, seu modelo é em parte a Ideologia alemã de M arx (incorporando m o tivos do Capital), livro brilhante porém dogm ático e ideológico nas suas simplifi cações anti-filosóficas. (A crítica às ideologias para além dos limites “ vira” de fato ideologia-, um pouco de dialética nos ajuda a pensar esse “ p arad o x o” .) Esse estilo de pensamento conduz a uma espécie de liquidação não só da filosofia, mas tam bém da teoria em geral, em benefício de uma hipóstase do tempo histórico, conce bido essencialmente como meio em que se dá o movimento do capital e a luta de
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classes. Se teoricamente, esse estilo de pensamento é de um esquematismo esterili zante, politicamente, apesar das aparências, não serve ao “ progresso social” . De fato, se quisermos pôr esse estilo em correspondência com movimentos sociais ou políticos (reais ou virtuais, o que é possível) não é com lutas dos explorados e opri midos que ele m ostraria afinidade, m as, como no caso do pensamento de Lukács nos seus piores momentos, é com a sociedade burocrática e as políticas burocráti cas que ele se revelaria afim. A “ rage” contra a crítica de Frankfurt, o espírito antifilosófico radical, a simplificação brutal dos problem as em nome de um saber his tórico pronunciado em forma oracular, apesar da sua sofisticação formal, não ser vem a nenhum movimento de libertação. E, nas condições do Brasil, seu sucesso eventual seria desastroso. Para além do m arxism o, mas não tão além como veremos, seria preciso fazer a crítica de uma outra tendência, pouco conhecida fora do Brasil, m as que teve e tem bastante audiência aqui. Refiro-me aos escritos de Robert Kurz e de seu gru po. E preciso se ocupar deles, não porque — na minha opinião — o que eles escre vem seja muito importante, m as por causa do sucesso que têm no Brasil. O projeto de Kurz pode ser definido primeiro como uma tentativa de radicalizar a crítica m arxiana, dando ênfase menos à crítica do capital, do que à crítica daqui lo que seria o fundamento deste, a forma mercadoria. Além da sua aparente radicalidade, essa perspectiva teria também a vantagem da amplitude, porque, no qua dro dela, todas as sociedades contemporâneas “ civilizadas” seriam subsumidas por um só conceito, o de pertencerem ao “ sistema produtor de m ercadorias” ou “ siste ma mundial de produção de m ercadorias” (ver O colapso da m odernização4,1, por exemplo, pp. 65, 88, 91, 92, 103...). Entram nessa categoria, digam os, a sociedade russa dos anos 30, a sociedade americana dos anos 90, a sociedade alemã dos anos 30/40 ou as sociedades escandinavas dos anos 60. Para o dia de hoje, digamos, tanto a sociedade norueguesa como a da Coréia do Norte. M esm o se o autor supõe que passando de algum as delas para outras, as leis internas podem se inverter, em to dos esses casos trata-se de sociedades que produzem mercadorias e esta conceituação as define, pelo menos em termos gerais. M ais do que isto, todas essas sociedades são “ sociedades de trabalho” , e com essa determinação chega-se ao cerne da teoria e do projeto de Robert Kurz: as so ciedades contemporâneas são sociedades em que domina o trabalho (isto é, a sepa ração entre trabalho e lazer) e a crítica do trabalho (ver por exemplo, ibidem, pp. 26 ss.) aparece assim como seu grande projeto teórico senão prático. Kurz parte da tese em grandes linhas correta de que M arx tem uma atitude ambígua em relação ao trabalho no sentido de que, se encontramos no corpus m arxiano a crítica do trabalho (há, como veremos, mais de uma crítica), nela está presente também a idealização deste (de fato, segundo a Crítica do program a de Gotha, na sociedade comunista o trabalho “ se tom aria uma necessidade natural” ). É essa ideologia do trabalho — fazendo “ pendant” à onipotência da forma m ercadoria — que deveria ser combatida. Por que meios? Kurz não acredita em meios políticos. Trata-se não de tomar o poder, mas de promover um movimento de “ desvinculação” (ver “ Antieconomia
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e Antipolítica” 43, passim ), que terá como resultado a “ desapoderação” do poder (Entmachtung der M acbt) (ibidem, p. 51). O meio principal de luta é a criação de “ redes” de cooperadores (começando pelo consumo), à margem da economia mer cantil. As lutas dentro do sistema (por melhores salários ou mesmo em torno da jornada de trabalho44) contam no m áximo com a tolerância dele, mas são lutas que não nos levarão — nem a longo prazo, aparentemente — para além dele. De lutas pela democracia, nem se fale: “ Sob as asas da p ax americana, estam os justamente às voltas com o triunfo da circulação, da concorrência e da democracia, que se precipita de seu apogeu rumo à crise histórica terminal” (ibidem, p. 31). “ O to ta litarismo substancial da modernidade é o da forma-mercadoria e, portanto, o da própria dem ocracia” (ibidem, p. 35). O que é resumido por um epígono: “ A de m ocracia não é o antagonista do capitalismo m as sua forma política, e ambos es gotaram seu papel histórico” 45. As “ formas embrionárias de uma nova emancipação social” têm por base — em alguns textos até mais do que isto — “ a economia natural micro-eletrônica (mikroelektronische Naturalwirtscbaft) que escapa fundamentalmente do valor e por ele não pode mais ser apreendida46” . A utilização da energia solar vai no mes mo sentido (ibidem, p. 14). A partir dessas formas embrionárias desenvolver-se-ão as “ redes” (“ Antieconomia e antipolítica” , p. 50), com práticas de desvinculação. Graças a “ um terremoto da sociedade m undial” (que viria aparentemente em pri meiro lugar da nova contradição interna forças produtivas/ relações de produção), entraríamos num período de transição “ que durará, no m áxim o (...) algumas dé cad as” (ibidem, p. 43), e nos conduzirá à “ verdadeira sociabilidade” (“ A Honra perdida do Trabalho” , p. 22). Esta terá sem dúvida “ instituições” (“ Dominação sem sujeito” 47, p. 45), mas não com portará nem propriedade privada, nem m ercado ria, nem Estado: “ [Bettelheim] não enxergou que a forma da propriedade privada (...) é inerente a todo m odo de produção fundado no valor. (...) N esse sentido, todo Estado é, por definição um Estado burguês, assim como toda nação, na sua essên cia é uma nação burguesa, todo dinheiro, como forma universal de m ediação, é um dinheiro burguês” etc. (“ Antieconomia e Antipolítica” , pp. 20-1). Que dizer dessa máquina teórica e crítica? Diria três coisas. De um lado, a leitura de M arx que faz Kurz, em termos de explicação de textos, é de bom nível, se com pararm os com a que circula por aí (quero dizer internacionalmente, porque a leitura nacional — “ une fois n ’est pas coutum e” — é melhor do que a interna cional). M as, desculpe o leitor, não há nada que lá se encontre que já não tenha sido feito aqui e — perdoe de novo o leitor — há já uns vinte ou vinte-cinco anos, e com m ais dialética. Em segundo lugar e sobretudo: não é com boas leituras de M arx que podem os resolver os problemas do presente. Bem entendido: Kurz diria que está de acordo com esta última afirm ação. M as vejamos. H á dois problemas no discurso “ kurziano” (como se diz no Brasil). De um lado ele está muito preso a M arx, excessivamente como veremos. Por outro lado, se ele de fato o critica, essa crítica não escapa da alternativa seguinte: ou as críticas não são novas (o tema do M arx prometeano data pelo menos dos frankfurtianos, portanto dos anos 30; a crí tica da ideologia do trabalho, sem ir mais longe, foi feita por muita gente, e sobre tudo por Gorz, a quem Kurz de fato se refere mas para recusar suas teses); ou en
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tão — parece-me evidente — elas são muito insuficientes para constituir uma teo ria capaz de dar conta dos problemas que levanta a história e a política contempo râneas, sendo mesmo, em alguns aspectos — políticos sobretudo — pura e simples mente regressivas em relação a M arx. N o plano teórico, Kurz toma distância em relação a M arx sobretudo em dois pontos. A crítica ao capital se transform a em crítica da forma mercadoria; ou, mais precisamente, acentua-se a crítica da mercadoria mais do que a crítica do capital. Em segundo lugar, a ambigüidade de M arx em relação ao trabalho — mais exata mente, eu diria, o seu espírito “ prom eteano” , objeto principal, aliás, da crítica de Frankfurt — dá origem a uma crítica radical do trabalho. Deixo de lado, por ora, as diferenças no plano da política. O deslocamento da crítica do capital para a crítica da forma mercadoria — Kurz reconhece — parece implicar na introdução de “ uma abstração extremamen te pobre com parada com a riqueza das antigas formas de crítica” 48. E por que esse deslocamento? E que Kurz é obrigado a enfrentar o problema das sociedades bu rocráticas que existiram no passado e ainda existem no presente. Seria forte demais afirmar que elas são capitalistas como pretenderam alguns. N ão seja por isso; há uma outra resposta fácil. Essas sociedades tinham contato com o mercado mun dial onde existe troca de m ercadorias, e no plano interno sua organização econô mica com portava um tipo de forma pelo menos análoga à da mercadoria. Substi tuamos a crítica do capital pela crítica da m ercadoria (ou alteremos o centro da crítica), e tudo entrará nos eixos. Só que restam alguns pequenos problem as. Se su pusermos assim que a m ercadoria é a forma essencial de todas as sociedades con temporâneas (é difícil fugir dessa leitura do seu texto, e Kurz deve aceitá-la), a so ciedade nazista tem de ser explicada a partir da m ercadoria, e também, por exem plo, a sociedade stalinista dos anos 30. A decifração do significado de Auschwitz e do Goulag não exigiriam a análise das formas de dom inação e das formações ideo lógicas que estão na sua base. A solução seria simples: o segredo de um e de outro está na forma mercadoria. Ora, isto é simplesmente absurdo49. A forma m ercado ria domina é certo o comércio mundial (além de ser a “ forma elementar” — não o fundamento, como diz Kurz, mas o fundamento “ negado” — o “ fundam ento” do modo de produção capitalista); m as o fato de que ela seja dominante no mercado mundial não significa que as sociedades de todos os países que participam de algu ma forma desse mercado sejam sociedades em que predomina a mercadoria. Como explicarei melhor nas seções finais desta introdução geral, o capitalism o com a sua forma elementar “ m ercadoria” é a configuração dominante que dá de certo modo o “ fundo” do processo mundial (além de se encontrar internamente como forma na m aioria das sociedades). M as que ele dê o fundo do processo mundial não sig nifica (não significou absolutamente no passado, e continua não significando) que as formas que nele se inserem sejam necessariamente formas sociais capitalistas com a sua célula elementar m ercadoria, ou que elas sejam simplesmente variantes das “ sociedades m ercantis” . D as relações externas não se deduz sem mais as relações internas. Afirmar o contrário é não só introduzir uma homogeneização grosseira em form as sociais essencialmente diferentes (já dei os exemplos), como significa pensar a essência de uma sociedade como a que existe hoje na Coréia do Norte e
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existiu no passado na URSS, ou a que existiu na Alemanha, a partir — mais do que isto: em termos — da forma mercadoria. Se Kurz é levado a esse resultado, é, por um lado, porque apesar de tudo ele é incapaz de se liberar do legado m arxista. Ora, se partirmos das perspectivas m arxianas para a história futura, e se não quisermos supor que se tratava de sociedades pré-socialistas, a única solução é supor que as sociedades do tipo bolchevique-stalinista (ou nazista) ou são sociedades capitalis tas sui-generis, ou são pelo menos sociedades mercantis. M as atenção — digo isto não para salvar o m arxism o, mas para precisar o que representa o “ kurzism o” — se a teoria de Kurz sobre a história do século X X segue o m arxism o no sentido de que ela se apresenta como uma espécie de “ arranjo” , de teoria dos “ epicentros” destinada a evitar a morte da teoria geocêntrica50 — , em termos de método, de pro cedimento teórico, considerando tudo o que a história nos oferece de novo, não tem nada de “ m arxiano” . M arx sabia descrever de perto e com rigor as form as sociais. O seu problema é que ele viu mal o lugar do capitalismo na história, em particular na história futura (o que, diga-se de passagem , não se justifica sem mais pela época em que viveu: certas questões-chave sobre o futuro foram vistas melhor por certos contemporâneos seus). O ra, Kurz não analisa sociedades. Ele analisa pouco mais do que o mercado mundial. E a razão disto é que a sua perspectiva é não só monista mas também utópica (o que, apesar de tudo, não era o caso de M arx). Explico: se ele dissolve todos os objetos sociais na noite — em que todos os gatos são pardos — da mercadoria, é porque ele raciocina do ponto de vista — no sentido mais sub jetivo — da sociedade transparente que representa o seu ideal de sociedade, isto é, ele argumenta do ponto de vista de Sirius. Dessa estrela longínqua, nada de novo sob o sol. Vemos mercadorias por toda parte. O segundo aspecto é a crítica do trabalho. H á em M arx, provavelmente, quatro tipos de textos sobre o trabalho51. H á pelo menos um, o da Crítica do program a de Gotha, já referido, em que ele faz o elogio do trabalho. Há outros, como uma passagem da Ideologia alemã e outra dos M anuscritos de 1844, em que fala numa perspectiva simetricamente oposta, de “ fim do trabalho” . Em terceiro lugar, há textos que não caem em nenhum desses dois pólos, sobretudo o passo bem conhecido do final do volume III do Capital. Nele, M arx fala da redução progressiva do tempo de trabalho, insistindo entretanto que o trabalho permaneceria sempre, ou quase sempre, como alguma coisa do domínio da necessidade, “ além da qual” — enten da-se, no âmbito do tempo histórico em parte, m as sobretudo, pelo menos por um muito longo período, no âmbito do tempo dos indivíduos — se encontra o dom í nio da liberdade. O quarto tipo de textos é o que se encontra nos Grundrisse, nos quais se descreve a transform ação do trabalho em atividade científica, graças à re volução técnica da “ pós-grande indústria” . Em bora sua posição não seja muito clara, podem os dizer o seguinte: Kurz se inscreve evidentemente contra o primeiro texto e, como veremos, critica explicita mente o terceiro. Restam os dois outros. A posição de Kurz, salvo erro, converge com o segundo e com o quarto grupo. As referências à “ revolução microeletrônica” , m utatis mutandis, lembram muito os Grundrisse. M as, aparentemente, ele a enfa tiza mais para m ostrar seus efeitos que ele supõe destruidores sobre a economia do valor — o que é a transposição de um dos temas centrais dos Grundrisse — , do
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que para demonstrar que através dela o trabalho se tornaria agradável, isto é, que deixaria de ser “ trabalho” . A revolução tecnológica não parece funcionar nos tex tos de Kurz como a única razão da futura morte eventual do trabalho. Nesse senti do, sua perspectiva tem também alguma coisa a ver seja com a Ideologia alemã (em que o essencial é a crítica da divisão do trabalho), seja, e particularmente, com os M anuscritos de 1844 (os quais, diga-se de passagem , são muito diferentes teorica mente da Ideologia alem ã). H á em Kurz um ideal de im ediatidade e de concreticidade52 que lembra os M anuscritos, ideal que “ cruza” com a antecipação (pósindustrial) dos Grundrisse53. M as o que pensar dos textos de M arx, e em geral do problem a do trabalho (que é na realidade o da oposição entre trabalho e lazer)? Dos textos de M arx, o melhor a meu ver é o que se encontra no livro III do Capi tal. Pela razão seguinte: é muito pouco provável que o trabalho — isto é, uma ati vidade que sem ser necessariamente torturante é realizada entretanto não porque nos cause prazer, mas essencialmente por necessidade social54 — , é pouco prová vel que o trabalho venha a desaparecer. M arx tem o mérito realista de afirmar que o trabalho não desaparece (mas se reduz), e ao mesmo tempo o mérito radical de não considerar a esfera do trabalho como domínio da liberdade. Kurz protesta contra esse texto (ver “ Pós-marxismo e fetiche do trabalho” , pp. 16-7), porque vê nele uma concessão à esfera da necessidade, ao mundo burguês e ao do conjunto da “ préhistória” ; ao mesmo tempo em que, como vimos, denuncia a redução do tempo de trabalho como algo que não teria mais do que uma significação quantitativa (como se trabalhar 45 horas por semana em cinco dias ou trabalhar 9 horas por semana em três dias fosse essencialmente a mesma coisa). Ora, o que leva Kurz a supor essa desaparição radical do “ trabalho” ? Aqui entramos na discussão sobre o ideal de “ sociedade reconciliada” (para usar da terminologia de Frankfurt) proposto por Kurz. Observei anteriormente que o conteúdo e a forma da idéia de sociedade co munista em M arx são de certo m odo opostas, ele pensa essa sociedade com um m áximo de transparência, e ao mesmo tempo, no plano lógico, não põe a idéia dela, m as somente a pressupõe. Tentei m ostrar que seria preciso alterar as duas coisas, de algum m odo intervertê-las: tematizar a idéia dessa sociedade, do que resulta a impossibilidade de pensá-la como transparente. Ora, Kurz não faz isto, e o seu pro cedimento agrava as dificuldades do m arxism o. Quanto ao conteúdo da “ socieda de reconciliada” , ele segue em grandes linhas o caminho de M arx. Retoma com pou ca diferença o ideal de transparência. Sem dúvida, segundo ele, a sociedade onde reina “ verdadeira sociabilidade” deve ter “ instituições” . M as ela não deve ter Es tado. Sem voltar aos argumentos anteriores, perguntaria: Kurz crê realmente que “ a H istória” (no fundo se trata da bem conhecida “ deusa história” ) produzirá ho mens que escaparão de toda violência. N ão haverá mais indivíduos que praticam agressões, violências, homicídios? Questões ingênuas — se dirá — de quem não teria ultrapassado os limites da idéia burguesa de indivíduo (“ temor pequeno-burguês diante da crise” )55. N ão se trata porém de visão burguesa, m as da recusa de toda sorte de angelismo, ou de providencialismo histórico, incorporando o que hoje sa bemos da estrutura do sujeito. Essa estrutura pode ser m odificada, m as não de for ma ilimitada. H á nos textos de Kurz um número razoável de referências a Freud56, mas ela não tira nenhuma conclusão importante das suas leituras. A noção de su
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jeito que pressupõe a “ verdadeira sociabilidade” de Kurz é pré-freudiana, como a que pressupõe a “ verdadeira sociabilidade” de M arx. Só que M arx viveu no século X IX , o que não justifica mas atenua a gravidade das suas ilusões. De fato, se — na hipótese de um desenvolvimento favorável — supusermos que é pensável e prová vel que pulsões violentas subsistirão e continuarão a se atualizar (mesmo se em menor escala), é preciso admitir que a sociedade que surgirá desse desenvolvimento “ fe liz” haverá de ter leis, e portanto não só Direito m as também Estado. Disto decor re o seguinte: existirão também atividades de tipo administrativo, que remeterão às necessidades sociais (e que não serão em si mesmas “ atraentes” ), e com elas e para além delas haverá abstração social, embora seja perfeitamente pensável e rea lista que essa esfera da abstração seja reduzida a um domínio quantitativamente muito estreito (e como diz M arx no texto referido — texto que aliás corresponde ao desenvolvimento que Gorz dá ao problem a — nele o trabalho se exerceria nas melhores condições possíveis)57. E se Kurz retom a, com pouca diferença, o ideal de transparência de M arx, ele agrava as dificuldades da perspectiva m arxiana, na medida em que ele põe (não apenas pressupõe) a “ verdadeira sociabilidade” 58. E este o segredo, no plano da teo ria, da visão “ à vol d’oiseau” da história contemporânea, como simples história do sistema de produção de m ercadorias: Kurz não pode 1er a história contemporânea porque é incapaz de “ pôr entre parênteses” o seu ideal de transparência. M arx teve muitos pecados, mas não esse. E a mesma coisa dá o sentido geral da política de Kurz. Por muito que M arx se tenha iludido com construções do tipo “ ditadura do proletariado” , ele era um político realista (não um Realpolitiker, duas coisas que Kurz, e mais ainda os epí gonos, confundem) e tinha o senso da luta política, da necessidade de estabelecer diferenças entre os partidos e entre os homens políticos, do longo trabalho de or ganização de forças etc. A partir da homogeneização das formas sociais a que pro cede Kurz não há como preferir uma sociedade a outra. Entre Roosevelt e Hitler nada de novo sob o sol? Pois há pelo menos um texto de Kurz em que ele põe o nazismo e o New Deal, pelo menos genericamente no mesmo plano59; e isto é uma conseqüência necessária da sua teoria. N o mesmo sentido vai a política sem media ções que consiste em transform ar em “ palavras de ordem ” o que se lê num texto hiper-teórico como os Grundrisse. (Exemplo, o célebre “ M anifesto contra o traba lho”., que comentarei logo mais adiante.) Kurz responderia que isto parece chocante porque é novo, e que aí estaria a sua originalidade. N ovo? Original? Por mais que Kurz tome distância em relação ao anarquism o60 — são os aspectos “ anti-modernos” de certos anarquistas o que ele critica — seu projeto prático coincide em grandes linhas com o dos anarquistas: a rejeição da política61. Bem entendido, uma idéia pode ser muito velha e ser verdadeira. M as nada nos leva a crer que requentar essa velha sopa (temperada com a modernidade pós-industrial dos Grundrisse) nos con duzirá a algum resultado. A que levará, num país como o Brasil, a rejeição em blo co de toda política62? H á no pensamento de Kurz algum a coisa de paradoxal. Ele parece conduzir a um resultado oposto daquilo que representa o seu impulso e o seu ponto de par
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tida. De fato, a idéia de que a sociedade sem Estado esteja inscrita no atual desen volvimento das forças produtivas implica, em forma negativa embora, uma form i dável hipóstase teórica e prática da economia. Bem entendido, como homem dos séculos X X / X X I, ele diz que “ obviamente não há garantia de que a superação te nha sucesso. O salto pode não ocorrer, vir muito tarde, ser muito curto, errar o alvo. O ser humano pode também destruir a si próprio (...)” 63. M as tudo isso não elimi na o fato de que é finalmente com base na contradição entre as novas forças pro dutivas (a microeletrônica principalmente) que ele constrói a hipótese e a possibili dade para ele bem concreta de uma sociedade não só sem m ercadoria e sem pro priedade privada, mas sem abstração e sem Estado. N ão seria conceder demais às “ forças produtivas” , e em geral à “ astúcia da razão” 64 na história? A crítica kurziana, que se pretende liberada de toda superstição não está longe de desembocar num providencialismo (e nos jovens epígonos o providencialismo economicista65 é mais do que aparente). M ais do que isto, eu diria que a tentativa de pensar todas as con figurações sociais do século X X a partir da essência-mercadoria tem um resultado inverso ao que é visado por Kurz. H á uma tal invasão do tema da mercadoria e da sociedade produtora de mercadorias que se é tentado a dizer que em Kurz há algu ma coisa como “ o fetichismo do fetichismo da m ercadoria” , ou, simplificando, há um fetichismo teórico (ou teórico-prático) da mercadoria. A m ercadoria é objeto de uma espécie de fetichização. De fato, no universo de Kurz, ela explica tudo. Até aquilo com que tem muito pouco a ver. Assim, os seus textos acabam tendo um resultado oposto daquele que eles visam, a crítica desmistificante acaba na mistifi cação. Quanto ao tema do trabalho, não queria seguir o caminho aparentemente fácil de dizer que finalmente ele acaba servindo o trabalho. M as é um pouco isto o que acontece, ou pelo menos que corre o risco de acontecer. D ado o fato de que o trabalho permanece e permanecerá como necessidade (mesmo se como necessida de marginal em termos do tempo do indivíduo), o discurso sobre o fim do trabalho “ gira em falso” e talvez ainda pior do que isto. Com o acontece com extremos abs tratos, há uma passagem evidente do “ fim do trabalho” ao elogio do trabalho como “ necessidade natural” . De fato, por “ fim do trabalho” se entende uma situação em que todas as atividades produtivas se tornarão — nas palavras de Kurz — fonte de prazer, de contemplação ou reflexão66. O ra, suponhamos que — pelas razões ex postas ou por outras — essa pretensão seja excessiva e que a redução radical da jornada, ligada à idéia de uma execução nas melhores condições possíveis seja a perspectiva mais racional. Se é assim, corremos o risco de que o nosso projeto utó pico se converta numa exigência sem justificativa e coercitiva, feita aos indivíduos, a de que tenham prazer (ou reflitam e contemplem) só porque exercem uma ativi dade socialmente útil. Exagero? Isto foi o que aconteceu em M arx, o que se vê quando se comparam os textos em que ele critica o trabalho com o que ele diz so bre este último na Crítica do program a de Gotha. Houve um curioso deslizamen to, em grande parte inscrito na ordem das coisas. Deslizamento que não deixou de ser bem aproveitado sabem os por que poderes. E, para concluir, como se explica o sucesso de Kurz no Brasil? Ele oferece muito (fim do Estado, fim da propriedade privada etc.), e se apresenta ao mesmo tempo como crítico — mais radical —· de M arx. Esse radicalismo sim plificador e na reali
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dade dogmático é muito atraente, principalmente para certo tipo de público. Ele é atraente porque acaricia o utopismo no sentido do pêlo, e simplifica as questões mais difíceis. Por outro lado, ele não abandona os quadros teóricos do m arxism o67. Ele nunca abandona o privilégio absoluto da sucessão, e quando se trata de anali sar o novo (novo como forma e novo como temporalidade), ele se refugia num apelo ao passado (veja-se a tentativa de pensar o fenômeno URSS em termos de acum u lação primitiva, economicismo redutor que desconhece a política). E a cada passo é o tempo, o amadurecimento das condições que está presente, a idéia de que che gam os à ultima forma e à “ crise terminal” 68 dela, no melhor estilo clássico. Ora, esse apego a M arx evidentemente serve, porque o público de esquerda hesita em “ se separar” de M arx por motivos ideológicos-afetivos, e além disso tem reais difi culdades para passar para um registro teórico que, apesar de tudo, tem de ser bem diferente. Com tudo isso, mais um estilo de profeta hiper-crítico, o sucesso de Kurz é explicável. Tem o os efeitos desse sucesso, tanto no plano teórico como no plano prático. N o plano teórico, o resultado é a tendência a não pensar os problemas, mas diluí-los na noite — em que os gatos são pardos — da crítica da m ercadoria. N o plano prático, o resultado é a recusa da política, o infantilismo de manifestos que reclamam o fim do trabalho (afinal o que se pretende com isso?69), e outros im pas ses que, se não forem criticados a tempo, não farão mais do que aumentar a confu são geral. Para analisar o significado da posição de J. A. Giannotti, outra figura que conviria examinar, seria preciso considerar conjuntamente seus textos teóricos, seus artigos políticos, e também sua atividade prática no interior da Universidade, em sentido amplo. As três coisas não se confundem, m as elas estão mais ligadas do que se supõe. Analisei, mesmo que em geral em forma não muito desenvolvida, tanto os aspectos teóricos como os aspectos práticos e “ ideológicos” de Giannotti, em meus livros70, artigos e entrevistas71. Aqui gostaria de analisar o significado global prático e teórico do que ele escreve e faz. Para isso, apesar das aparências, creio que os artigos recentes em que discute as relações entre filosofia e política representam um bom ponto de partida e talvez mais do que isto. N o seu texto “ O dedo em riste do jornalismo m oral” 72, ele escreve73: “ (...) é particularmente na democracia, quando os interesses gerais e comuns são discutidos até que se decida pela m aioria (...) que se percebe com nitidez sua zona cinzenta de am oralidade” . E continua: “ (...) Isso implica obedecer a determinadas regras que asseguram a legitimidade do procedi mento, tais como eleger representantes (...), determinar prazos, ordem na apresen tação das propostas (...)” etc. Até aqui, ele parece descrever o que seria uma situa ção de fato. M as, em seguida, o fato ganha necessidade, e com isso sem dúvida legitimação: “ N ão há, porém, como impedir a manipulação desse regulamento, pois somente dessa maneira a regulamentação da criação de regras pode funcionar para regular a disputa entre amigos e adversários” . “ (...) N o dissenso, a regra que regu la o exercício de outra regra necessariamente possui sua zona de indefinição” . Que essa “ zona de indefinição” equivale à “ zona de am oralidade” referida acima é con firmado pouco mais adiante numa passagem lapidar: “ As leis guardiãs que regem a polis, para serem praticadas, requerem uma zona de am oralidade sem a qual não
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poderiam funcionar” . E por que “ requerem” ? O autor dá duas razões: A primeira é que o poder “ só se torna necessário quando se distribuem recursos escassos” . Como é preciso, por exemplo, liberar verbas primeiro a uns e depois a outros, “ é insensa to exercer [o poder de contemplar uns antes dos outros] beneficiando o inim igo” . A segunda razão é de ordem mais subjetiva: “ (...) executores [da lei] só podem existir a partir de uma particularidade. O deputado ou senador, prefeito ou governador (...) é um ser social particular cujas necessidades devem ser satisfeitas” . Questão prévia: num artigo pouco posterior “ Para a virtuosa M arilena” 74, tréplica à répli ca de M arilena Chauí, o autor adverte que não se deve confundir “ amoralidade, suspensão do juízo moral em certas circunstâncias, com imoralidade, a permissão de infringir qualquer regra” . Giannotti não estaria justificando a violação de cer tas regras, mas “ a suspensão do juízo m oral” . M as que significa nesse contexto a “ suspensão do juízo m oral” ? De duas coisas uma. Ou essa suspensão não implica trangressão, m as então não há mais o que discutir e o problem a simplesmente não existe. Ou ela implica transgressão, e aí precisaríam os saber que regras se transgri de, como justificar essa transgressão etc. É claro que é a segunda hipótese que é a correta (senão teríamos o seguinte: ao votar no Senado uma medida moralmente duvidosa, o senador X, qual um discípulo do ceticismo antigo, suspende o juízo moral no momento da votação...). É claro que não se trata disto, mesmo se Giannotti tenta atenuar o efeito de suas teses “ radicais” já desde o primeiro artigo com a expres são “ zona de indefinição” (mas a “ zona de am oralidade” é a verdade da “ zona de indefinição” e não o contrário), reservando a expressão “ im oral” para (...) aqueles que pedem “ democracia e igualmente (...) transparência de todas as manifestações da ação coletiva” 75. Isso posto, que valem as razões de Giannotti para justificar a instauração da sua “ zona de am oralidade” ? Começo com o segundo argumento, que é grosseiro. “ O deputado (...) é um ser social particular cujas necessidades sociais devem ser sa tisfeitas” . Um homem político tem, de fato e de direito, necessidade de satisfação. N ão há atividade humana sem investimento do eu. M as isso não significa que há de direito uma dualidade no interior da ação política (portanto da ação política ideal) entre o indivíduo particular e o indivíduo universal, dualidade que justificaria a am o ralidade. N o verdadeiro homem político (estamos no registro não do que é a polí tica, em particular a política brasileira, mas do que ela deve ser, e isso é um ideal regulador do qual se aproxim am figuras históricas), a satisfação do eu vem junto com interesses universais (mais do que “ se submete” a eles)76. Tom em os um gran de homem político (não vou dar exemplos, mas pode-se encontrá-los mesmo em adversários políticos, e isto vale para qualquer pessoa): claro que ele tem também vida individual, interesses individuais etc. M as de direito esses interesses não inter ferem — ou não interferem essencialmente — na sua atividade política. Isto signi ficaria que, ao trabalhar para o universal, ele põe de lado o seu “ eu” ? N ão. A idéia dos “ sacrifícios” pela política é em geral ilusória. Porém isto não quer dizer, e aí está o erro, que ele sobrepõe seus interesses “pessoais” à política, ou que ponha essa última a serviço dos primeiros. Agindo, ele satisfaz o seu “ eu” , mas esse “ eu” está acoplado ao universal. Em outras palavras, satisfação do “eu ” não é a mesma coi sa que “ necessidades particulares” . E da exigência de satisfazer o “ eu” (desde que
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ele seja universalizado) não se deduz de direito a necessidade de nenhuma “ zona de am oralidade” ... A fragilidade da outra razão decorre do que foi dito. A escolha deve ser decidida por critérios tão universais quanto possível. Essa universalidade se realiza a cem por cento? Difícil que seja assim, mas no grande político (no senti do em que o defini, e essa figura existiu e existe historicamente) a convergência é pelo menos tendencial e essencial; e isto basta. De qualquer m odo, nele, os interes ses do eu não se manifestam pela via da satisfação das “ necessidades sociais” (enten da-se, privadas), m as na satisfação que o seu eu tira da realização das tarefas uni versais que ele se propõe. Assim, sem prolongar muito a discussão (já indiquei en passant que Giannotti vai até a denúncia da imoralidade dos que querem transparência..., acenando com o — nesse contexto — fantasma do jacobinismo), diria resumindo: o texto de Gian notti, apesar dos seus protestos, faz “ bei et bien” a defesa de uma certa am oralida de, no sentido em que a m aioria dos leitores o entenderam77. O que quer dizer: a leitura que se supõe — ou que querem supor — ingênua ou vulgar do texto de Giannotti é, a meu ver, a boa leitura. O que a m aioria dos leitores pensou encon trar nesse texto era exatamente o que ali estava. Só num ponto, creio que essa lei tura erra, m as de certo m odo esse erro confirma a tese geral dessa leitura. Insistiuse que o autor visava apenas defender a política “ moralmente livre” do governo Fernando Henrique Cardoso. Claro que isso é verdade, basta ver, de resto, a parte final do artigo e suas referências inequívocas. M as se se pretendeu afirmar com isso que Giannotti foi levado a fazer certas concessões no plano da ética para justificar o governo de um velho amigo e aliado, há aí um erro. O engajamento de Giannotti não só com a “ Realpolitik” mas também com a “ R ealm oral” é muito mais pro fundo do que se pensa. O caso é muito mais “ grave” do que um deslizamento táti co para dentro da zona de “ suspensão” — no sentido de negação, sem dúvida — da ética. Quando ele se defende afirmando que há tempo já pensava assim, diz a verdade, mas essa verdade, como diziam os gregos, é má. De minha parte, eu já ficara muito im pressionado com um artigo que ele publicou na mesma Folha de S. Paulo no dia 7 de junho de 1992 (artigo que para meu espanto — não deixei de comentar com amigos — não provocou, que eu saiba, nenhuma reação). O artigo se cham a va “ Considerações sobre moral e política” , e saiu no momento da crise ética e po lítica do governo Collor. Embora o texto terminasse pedindo “ a apuração rigoro sa de todas as irregularidades” (mas é preciso ver o porquê dessa exigências), lêemse no textos afirmações bem conhecidas dos leitores dos artigos de 2001: “ E preci so saber conviver com a infração contra valores alheios para que tenhamos políti ca ” . “ (...) Já passam os pela dura experiência de que nela o discurso m oralista, do grande Saint Ju st ao pequeno Castello Branco, desemboca na ditadura mais ferre nha e corrupta” . Ou frases ambíguas (ver minhas considerações anteriores) do tipo: “ Que o presidente da República venha a público, como chefe de Estado, clamar pela m oralidade pública, ao mesmo tempo que trata de defender seus interesses parti culares78, tudo isso está nas regras do jogo. Ninguém é movido por interesses uni versais e não se pode pedir aos políticos que abdiquem do esforço pessoal de bus car o poder” . Com o se vê, o conceito transcendental de “ zona de am oralidade” (ou pelo menos as suas base's) já começava a ser elaborado pelo grande pensador. E por
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que finalmente ele está contra a solução dos “ panos quentes” ? Sem dúvida, ele nos diz “ à mulher de Cesar não basta que ela seja honesta; precisa ainda parecer ho nesta” . M as acrescenta: “ E se cometer alguma falta, mais vale que mantenha as ap a rências do que venha se confessar em público” . E por quê? Porque “ a sociedade necessita tanto de seus fundamentos form ados por interesses conflitantes quanto de um espelho em que os interesses são projetados, julgados e coibidos em nome da justiça (...)” . E, na continuação, o essencial: “ Daí a regra política de que todo político que for pilhado agindo em interesse próprio deve ser punido” . O proble ma não estaria portanto em que certos políticos agem “ no interesse próprio” (o que significa esse interesse próprio no caso Collor, sabemos bem: não era propriam en te investimento do eu no universal, mas investimento de outra ordem...), o proble ma não estaria no fato de o político agir “ no interesse próprio” ; esse, o filósofo justificaria... O problema aparece — e no nosso autor, como sempre, a situação de fato e a situação de direito se confundem — se o político “ for pilhado” ...“ Isto vale para Beria ou para aquele assessor do prefeito Koch, que, pilhado por corrupção, suicida-se diante das câmeras de TV para salvar o chefe” . Bonita m oralidade, que na época já devia ter sido discutida. Sem prolongar a análise do texto de 1992, que também permitiria outros de senvolvimentos, quero observar, dando mais um passo, que a “ m oralidade” conti da nos artigos de março e maio de 2001, não só corresponde à posição “ teórica” , se podem os dizer assim , de Giannotti — não se trata apenas de expedientes táticos — , mas correspondem também à moralidade geral da sua prática. Em certas p as sagens do texto de 17 de maio de 2001, ele limita o âmbito de validade das suas considerações à área da política: “ [E] preciso diferenciar o juízo moral na esfera pública do juízo moral na intimidade, pois são diferentes suas zonas de indefini ção. N o primeiro caso, o juízo moral se torna inevitavelmente arma política para acuar o adversário e enaltecer o aliado, de tal m odo que a investigação da verdade fica determinada por essa luta visando a vitória de um sobre outro” . Porém pelo menos numa outra passagem , ele deixa entrever que o âmbito da sua “ teoria” po deria ultrapassar esses limites; ou dito de outro m odo, que essa “ esfera pública” a que ele se refere é bastante vasta e ultrapassa a “ política” em sentido estrito: “ A efetivação de qualquer jogo competitivo sempre requer um espaço de tolerância para certas faltas” . O que quer dizer: onde houver competição deve haver... “ espaço de tolerância para certas faltas” . Já sabem os o que significa esse “ espaço de tolerân cia” . Ele equivale à “ zona de indefinição” , que, por sua vez, se traduz na fam osa “ zona de am oralidade” . A “ tolerância” desse espaço é assim tolerância para certas transgressões, e se a lei que se transgride é de ordem moral, tolerância para certas violências. Porém, o que me interessa aqui é o fato de que Giannotti estende as suas fam osas “ zon as” a todas as áreas em que há competição. Ora, aqui não há como não passar a um segundo registro, entre os que mencionei no início, o das práticas de Giannotti no interior de um domínio, do qual não se pode dizer que a competi ção esteja ausente: o da vida universitária (em sentido bastante amplo). N ão é se gredo para ninguém que Giannotti não só sempre cantou loas à competição, e à sua irmã gêmea, a menos que seja a sua filha dileta, a produtividade, como tam bém sempre a praticou sem “ états d ’âm e” . N a realidade, creio que se poderia dizer
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que Giannotti introduziu na Universidade um estilo competitivo, do mesmo tipo daquele que reina nas relações comerciais, o que, se na área econômica pode pare cer inevitável (mas mesmo aí até onde é inevitável?), no plano da Universidade (in cluindo a vida intelectual em geral), diria sem mais rodeios, é francamente catas trófico. É que — sem falar das diferenças de finalidade que separam esses dois uni versos— se no mundo das relações comerciais o segredo é dentro de certos limites possível, na Universidade a regra é a publicidade, dão-se cursos, conferências, e tudo o que é dito não é nem pode ser imediatamente escrito. A Universidade repousa sobre um mínimo de respeito pela palavra oral, como também pela palavra escrita. Ora, esse respeito não parece ser — é o mínimo que se poderia dizer — a regra de Gian notti. Tem-se a impressão que se tiver um bom álibi, ou como ele mesmo diz, se o outro “ não tiver prova” , Giannotti se dispõe a fazer mais ou menos tudo aquilo que não representar crime... (tudo aquilo que a lei não proíbe). (Se o leitor acha que o que se pode fazer com essa latitude é pouco ou razoável, que só o juridica mente imputável deve ser eliminado da competição universitária, que ele reflita um pouco sobre o que isso significa. A ética não é o direito, nem tudo que não é crime é moralmente aceitável79). De uma m odo mais geral, a filosofia de Giananotti re pousa sobre a idéia de que só o que é posto conta; o pressuposto não tem nenhuma importância (mesmo se, nos seus escritos teóricos, ele foi levado a dar um pequeno lugar às pressuposições). Daí sua total falta de respeito (sobretudo) pela palavra oral, com as conseqüências que essa atitude implica. A prática “ p esad a” de Giannotti repousa explicitamente sobre dois argumen tos: um, o de que tudo isso é da ordem “ pessoal” e não merece ser discutido. O outro argumento é o de que não haveria prova dessas coisas. Ao primeiro argumento, já respondi, num dos parágrafos anteriores: há assuntos pessoais, privados, e há assuntos individuais que são entretanto universais. A lealdade nas relações no inte rior da Universidade (em sentido muito amplo) pertence à segunda categoria. (Podese dizer mesmo, a lealdade nas relações entre os indivíduos, dentro e fora da Uni versidade, pertence em geral a essa categoria). Quanto ao segundo, não é verdade que não se possa “ provar” , nessas matérias. Os testemunhos são múltiplos, às ve zes há “ provas” no sentido mais rigoroso, às vezes razões suficientes80. Em con junto, há razões amplamente suficientes. O “ estilo prático” de Giannotti é mais do que conhecido, e por muita gente. Em resumo, parece-me que os textos em que Giannotti prega “ zonas de am oralidade” , correspondem bem a um certo “ à vonta de” no uso dos meios, digamos assim, que caracteriza a sua prática. E aqui acres cento: pode-se dizer, sem abuso, que o estilo ético de Giannotti converge com o estilo político de seu amigo e aliado, o atual presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. N ão faz muito tempo, um homem político e intelectual de esquerda disse que Cardoso seguia a moral de Giannotti. A afirm ação provocou estranheza. M as, fora o problema de saber quem segue quem (e precisando que se com para uma éti ca com uma política), ela é perfeitamente justa. Se causou estranheza, foi devido ao preconceito de que política e ética “ individual” não têm nada a ver uma com a outra. O que caracteriza a política81 de Cardoso — isso é bem conhecido — é a idéia de que é válido fazer alianças com os mais diferentes setores, desde que “ inte resses políticos” o exijam. Alianças com políticos conservadores, e em muitos ca
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sos, pior do que isto, alianças com gente — os fatos acabaram m ostrando — noto riamente duvidosa do ponto de vista da ética da política. Claro que outros homens políticos também fazem tais coisas. M as essas práticas são características de C ar doso no sentido de que ele não só vem da esquerda, m as se apresenta como socialdem ocrata82. A Realpolitik de F. H. Cardoso corresponde assim à Realm oral de Giannotti (e os textos de Giannotti tentam justificar tanto uma coisa como a outra). O impacto do neoliberalismo veio sobredeterminar essas tendências, que já se manifestavam no filósofo e no político antes que o neoliberalismo se tornasse “ m oda” . A mitologia neoliberal, segundo a qual um m áxim o de competitividade no plano econômico tem como resultado o progresso e o aumento da riqueza, tem como contrapartida, na Universidade, a ideologia anti-humanista e am oralista de que um m áxim o de competição produz os melhores resultados no plano teórico. O neo-darwinismo de pacotilha que reina em certos meios da Universidade não vale m ais do que os sofism as econômicos dos Chicago boys locais. Se as relações entre ética e ciência são certamente com plicadas, e se por outro lado, uma emulação moderada e sem deslealdade é estimulante, é evidente que há incompatibilidade entre trabalho científico sério e original, e competitividade sem princípios. E evidente que as tolices sinistras em torno da “ vitória do mais forte” (sic, um epígono) ou da “ pedagogia da brutalidade” (sic, o próprio filósofo!) não form arão pensadores ori ginais e rigorosos, mas “ espertalhões da universidade” . A ideologia neo-darwinista não visa ajudar o progresso intelectual, mas garantir a vitória desses “espertos” . Ela teve de resto os piores efeitos, mesmo fora do mundo universitário, como se pode ver em certo cinismo jornalístico que se quer legitimar em nome das exigên cias de “ profissionalismo” . Infelizmente, a crítica dessas imposturas não se fez sempre de maneira adequada. Qualquer que seja o barulho em torno da “ excelência” , podese observar que são raríssim os os intelectuais de grande talento, que seguem esse curso. Sem dúvida certos jovens com algumas qualidade se dispõem a embarcar nessa canoa, por ingenuidade, oportunismo, ou confusão, agravada pelos erros do outro lado (não é com a liquidação “ à peu de frais” da filosofia, e outras coisas desse tipo, que vamos parar o carro do amoralism o produtivista). M as muito dificilmente um intelectual realmente talentoso — com um mínimo de experiência e de exigências éticas — pode se deixar seduzir por essa cantilena. Em geral é gente sem muito bri lho, ou com algum talento, mas talento lim itado, a que engrossa as fileiras dos “ competitivismos” . De fato — sem idealização — o grande intelectual sabe e sente que o trabalho original e criador é alérgico a isso, e que esse delírio acaba liquidan do a atividade teórica séria. Em compensação, um pouquinho de habilidade inte lectual é útil, mesmo indispensável para esse jogo de quem atira primeiro. E assim, desses círculos medianos, ou menos que medianos, que vêm o grosso das tropas do produtivismo. Quanto aos resultados teóricos dessas práticas, antecipo um pouco o que direi logo mais. Consideremos a prática e a teoria da mais pura encarnação da corrente. Se Giannotti tivesse alcançado os seus objetivos — a eliminação mais ou menos completa dos “ concorrentes” — , estaríam os hoje limitados à sua “ ciên cia” . E o que ela nos oferece? Uma sopa eclética — sem originalidade nem cria tividade teórica — em matéria de lógica, um amoralism o consternante em matéria de ética, e no mais, ou coisas de escasso interesse, ou, caso contrário, “ resultados”
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que trazem as marcas da confusão e da falta de rigor características do conhecimentopor-ouvir-dizer; de qualquer m odo, resultados que, junto com muitos outros a que ele nunca chegou, existem em outros lugares, sem os defeitos m encionados — e existem porque ele não conseguiu alcançar os seus objetivos. O resto é barulho m idiático cuidadosamente orquestrado. N ão se diga que com isto valorizo afinal a competição. Além do fato (ao qual voltarei mais adiante) de que há competição e competição, deve-se observar que Giannotti não esteve longe de realizar seus fins, e que, o gasto de energia neásas batalhas por parte dos que não têm o hábito de dizer amém, foi de qualquer m odo muito grande. Quanto a afirmar que meu in teresse pelo caso Giannotti provaria o contrário do que escrevo, observo que há muito tempo ele deixou de oferecer interesse teórico. É o peso midiático dele e de sua roda, e seus efeitos nefastos — não uma “ teoria” ou um “ pensamento” qual quer que eles produzam hoje — o que me interessa, e o que é importante combater dentro e fora da Universidade. E não posso deixar de observar que, se a Realm oral de Giannotti e a Realpolitik de C ardoso são condenáveis em termos éticos e políti cos da esquerda, elas não foram , afinal, sequer praticamente eficazes. O etbos de Giannotti, que pouco a pouco vai ficando evidente, é recusado por uma parte m ui to importante da intelectualidade de esquerda. Quanto a Fernando Henrique C ar doso, ele teve graves dissabores por causa das suas alianças (a própria crise energética é um exemplo) e acabou se dispondo a fazer uma — muito ambígua e limitada — guinada “ ética” . Falei até aqui do artigos (mais uma entrevista) e da prática de Giannotti, e tentei mostrar como há uma unidade entre as duas coisas. Poder-se-ia passar ao terceiro nível indicado, o dos textos teóricos de Giannotti (a que aludi só em form a geral). Em que medida há uma relação entre a prática e a ideologia de Giannotti, que aca bam os de exam inar, e os seus textos teóricos? A resposta é em boa medida afirm a tiva. N esse ponto, seria necessário rediscutir a história de certa intelectualidade brasileira, paulistana especialmente. P. E. Arantes começou uma análise dos semi nários sobre M arx 83, análise que é interessante. M as ela foi feita de um ponto de vista um pouco limitadamente “ aufklárer” , o da “ form ação” . Em todo caso, creio que ela deveria ser am pliada, desenvolvendo o julgamento sobre o que o seminá rio, ou os seminários realizaram no plano teórico, e introduzindo uma análise pro priamente ética e política. (Alguma análise política crítica foi feita posteriormente, pelo próprio Arantes e por Roberto Schwarz.) H avia uma espécie de filosofia polí tica comum aos dois participantes mais conhecidos do primeiro seminário. A pers pectiva deles (como aqueles autores assinalaram) era essencialmente uma perspec tiva de modernização. O m arxism o que eles praticavam e continuariam a praticar estava a serviço desse projeto1. Entenda-se, não critico o fato de que eles não acre ditavam em “ ditadura do proletariado” , revolução violenta ou coisas que tais. Isso poderia até lhes ser creditado. E que a perspectiva crítica inerente não só ao m ar xism o, m as, via de regra, às esquerdas em geral, se perdeu nesse projeto de moder nização. “ Perspectiva crítica” tem um sentido ao mesmo tempo ético e político. Ela significa a exigência de m udar os costumes ético-políticos, com vistas a uma m uta ção radical84. O ra, muito cedo ficou evidente que nenhum dos dois valorizava a idéia de uma nova política ou de novas exigências éticas. E é aqui que se poderia
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situar a obra teórica de Giannotti, em particular o seu livro sobre o jovem M arx. M esm o se a filosofía de 1844 não serve hoje, a crítica de Giannotti (e que ele foi modificando, mais ou menos, à medida que ouvia críticas e argumentos85) é na rea lidade injusta. Giannotti vê uma perspectiva moralizante nos textos de 1844. O problema não está apenas no fato de que ele joga para baixo da mesa as passagens que não lhe convêm86 (isto é, de que historicamente'sua leitura é falsa), m as tam bém no fato de que o autor dá um peso excessivo às insuficiências científicas do M arx jovem e à incomensurabilidade do pensamento deste se com parado com o dos anos posteriores. Certo, ele dirá — atenuando suas teses (depois de ouvir e in corporar certas críticas) — que a antropologia não desapareceu no velho M arx, em bora tenha deixado de ser fundante etc. Porém, o que se conserva do jovem ao ve lho, a noção de constituição do homem, de passagem da pré-história à história, tese discutível m as de muita força crítica, muito vinculada aliás à crítica do fetichismo (como fenômeno que não designa apenas uma ilusão), perde-se no texto de Giannotti. Quaisquer que sejam as dificuldades da filosofia dos M anuscritos, a grande força crítica deles é mais ou menos escam oteada em nome das insuficiências científicas do texto. Esse tipo de crítica não é inocente. O resultado é um m arxism o em que não se vê bem outro vetor de progresso social que não seja o desenvolvimento das forças produtivas, isto é, a modernização, com todas as conseqüências políticas que isso implica (de fato, no quadro de uma política simplesmente modernizadora não se vê bem como se poderia formular exigências de ordem ético-política). Já indi quei anteriormente, no contexto da discussão sobre o seu etbos, e retomo aqui num plano mais geral, o que me parece caracterizar no fundo a filosofia de Giannotti: só o que é posto conta, para o pressuposto não há lugar visível. Sem dúvida, para a dialética o posto é outra coisa e em geral “ m ais” do que o pressuposto; é o hu manismo que apaga as diferenças. M as para ela, o pressuposto vale, plenamente se se quiser, embora como pressuposto. Por isso mesmo — considerando agora con juntamente a ética e a política — , tanto ele como o homem político seu aliado nun ca tiveram exigências éticas mais estritas: exigências éticas, projetos conscientes de melhorar o mundo para além do “ progresso” enquanto projetos ético-políticos têm o estatuto de pressuposições; a m odernização ou o desenvolvimento das forças produtivas têm, pelo contrário, a marca do que é posto. Atitude que não é diferen te da de qualquer homem político comum, ou de qualquer intelectual a-críjico. In sisto: não se trata de criticar um e outro por não obedecerem ao ideário m arxista da revolução proletária (esse caminho crítico é frágil e acaba levando ao fortaleci mento do sistema), nem se trata de denunciar o fato de não aceitarem um huma nismo do tipo do dos M anuscritos^7. Trata-se de criticá-los por não verem outra alternativa ao ideário revolucionário que não seja a da Realpolitik e outra alterna tiva ética ao humanismo que não seja a da Realmoral. Como já observei de forma mais geral a propósito do neoliberalismo e do “ neodarwinism o” universitário, o que engana muita gente, no caso de Giannotti como no de Cardoso, é o clássico argumento ideológico de que eles trabalhariam para o “universal” (os m étodos de um e de outro se justificariam, porque estariam a ser viço num caso da produtividade e do progresso intelectual, no outro da produtivi dade e do progresso social e econômico). Com o quando aplicado a outros casos,
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esse argumento é falso. Trata-se da típica universalização ideológica de interesses p articu lares^ . Nem Giannotti, abandonado a si mesmo e aos seus métodos, con tribuiu ou contribui para o progresso das “ luzes filosóficas” no Brasil — voltarei em outro lugar, contando a história de outras obras de Giannotti e mostrando como, a partir de um certo momento pelo menos, o tipo de postura que ele encarna é um formidável entrave intelectual — , nem a política de Cardoso conduzirá o país aos progressos que, ela jurava, estariam no nosso caminho. Um e outro projeto não ser vem ao “ bem com um ” , servem na realidade aos interesses de cada um deles, ou ao dos grupos que eles encarnam. Para terminar assinalo a “ tournure” anti-dialética dos escritos mais recentes de Giannotti89. A dialética é por excelência a lógica do pensamento crítico. Com o disse em outro lugar, não creio que jam ais Giannotti tenha assim ilado as figuras dialéticas mais ricas e mais interessantes. Que ele afinal tome posição explicitamente crítica em relação à dialética — ou me engano? é verdade que sua posição nunca é totalmente clara — estava na ordem das coisas. Aliás, a sua alergia radical ao pen samento de Frankfurt, ao qual devemos a terceira grande versão da dialética m o derna, vai no mesmo sentido, e por si só já diz bastante.
5. M das
a t e r ia is p a r a u m a
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H
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T e o r ia
F o r m a s S o c ia is C o n t e m p o r â n e a s . O s A c o n t e c i m e n t o s R
ecentes
Volto agora às considerações gerais das seções 2 e 3. O que lá foi dito deixou sem desenvolvimento e sem clarificação suficiente toda uma série de questões. Ten temos desenvolvê-las em alguma medida, dando-lhes também um mínimo de arti culação. Incorporo, por outro lado, a esse trabalho, a análise dos acontecimentos mais recentes. As teses principais, construídas a partir de uma crítica do m arxism o eram: 1) que é preciso nomear o capitalism o exprimindo também a sua forma política: di zer — ou pelo menos pensar — democracia capitalista (melhor do que capitalismo democrático) para a form a capitalista dominante, em vez de capitalism o “ tout court” ; o que sem dúvida exprime, virtualmente pelo menos, uma relação contra ditória. 2) Que o capitalism o não foi no século X X , nem é no século X X I, a única forma social existente — o que pode parecer evidente, mas há os que contestam essa afirm ação (a sociedade burocrática seria um “capitalism o de Estado” etc.). 3) Que há duas form as não capitalistas no século X X 90, o nazismo ou o totalitarismo de direita91, e a sociedade burocrática (e em geral o totalitarismo de “ esquerda” )92. 4) Que essas duas form as continuam existindo real ou virtualmente no início do século X X I, e que elas são de algum m odo essenciais para pensar o capitalism o democrático, não porque sejam variantes dele, mas porque são o seu outro ou os seus outros93. — Os acontecimentos recentes põem na ordem do dia uma reflexão sobre os países mais “ pobres” ou da periferia — reflexão cujo ponto de partida pode ser também a crítica do m arxism o — que será introduzida mais adiante. Isso posto, foi possível também, num primeiro nível, repensar o problema do progresso. H á uma linha de progresso — refiro-me sempre ao progresso ético-po-
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lítico — representado pelo desenvolvimento da democracia. A regressão está em ambas as formas totalitárias. O capitalism o é, de certo m odo, o “ fundo” do pro cesso global (ele é form a também evidentemente, m as não forma global). Em si mesmo o capitalism o não é progresso nem regressão; ele é, como pretendia a teo ria dialética clássica (o m arxism o), progresso-regressão. Temos aí alguns elemen tos para uma teoria das formas, e ao mesmo tempo alguns elementos para uma teoria do progresso. Vejam os melhor o que isto tudo significa, e também as dificuldades e os pontos a desenvolver. Em primeiro lugar, contrariamente à teoria dialética clássica, quebra-se o privilégio da sucessão. Sem dúvida, na teoria clássica, a “ ordem do tem po” não era simples. Poderia haver recuos, havia coexistência de form as de idades diferentes, finalmente havia form as combinadas (o fam oso “ desenvolvimento desigual e com binado” ou variantes deste). Entretanto, não se abandonava a ordem de sucessão94. Supunha-se uma ordem de sucessão de direito, que em grandes linhas seria tam bém de fato. A coexistência indicava a presença no mesmo instante de estratos de idade (“ ideal” ) diferente, que de resto poderiam se combinar. M as, o essencial: todos os estratos tinham uma idade e um lugar numa sucessão ideal. Por mais que se complicasse o esquema temporal, ou de sucessão, permanecia o privilégio, mais que isso, a exclusividade do esquema de sucessão. A nova perspectiva rompe com esse privilégio. Nem todas as formas existem em sucessão. Sem dúvida, seria preciso dis tinguir a forma que dá o “ fundo” da totalidade, que é o capitalismo (em particular na sua relação com outras grandes form as), das formas “ segundas” . O capitalismo surge num momento mais ou menos determinado, e sucedendo a form as anterio res a ele (mesmo que elas possam reaparecer localmente aqui ou lá, e de maneira mais ou menos complexa). Quanto às outras, é verdade que as suas expressões até aqui mais características têm evidentemente uma data (ou antes duas: de nascimento e de morte) no interior do tempo. M as o problema é por um lado o de que se elas não vêm antes do capitalism o, também não vêm depois, elas são contemporâneas ao capitalism o95, e, por outro lado — e isso ultrapassa a questão das suas relações com o capitalismo — , consideradas em forma bastante geral (totalitarismo de di reita e totalitarismo de esquerda), elas não só podem reaparecer (em termos de p os sibilidades abstratas ou gerais), m as representam verdadeiras virtualidades. M as a explicação desse ponto exige que se introduza mais um elemento no quadro das formas. Analisemos mais de perto o problema da natureza do totalitarismo de di reita e do totalitarismo de esquerda (sociedade burocrática), e de suas relações com o capitalism o. O nazismo, ou, preferindo, o totalitarismo de direita, é uma forma que nasce do (= a partir do) capitalism o, mas que, como já disse, não é variante dele. A sociedade burocrática não nasce do capitalism o, ela vem do movimento de luta contra o capitalismo. Porém, de maneira análoga, ela também não é uma “ va riante” , no caso, desse movimento. (É incorreto deduzir daí que, se é assim, ela nasce também do capitalism o. Sem o capitalism o, ela não existiria é verdade. M as não há por que estabelecer, entre eles, mesmo uma continuidade de ruptura, mesmo porque é de uma continuidade de ruptura que se trata, no caso precisamente da passagem movimento socialista/ burocracia.) Se incluirmos o movimento socialis ta, teríamos assim quatro figuras.
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Seria preciso esboçar agora uma apresentação geral dessas formas sociais con temporâneas. A teoria do progresso a acompanha. Ela exigiria a rigor uma espécie de “ redução” na apresentação das formas. M as pode-se introduzir a teoria do pro gresso no movimento mesmo da apresentação das formas (na realidade, esta exige esse novo estrato lógico) operando uma espécie de redução imanente. Um ponto importante. Com o acabo de indicar será necessário introduzir não só as form as existentes, que são objeto da crítica, m as também a form a a partir da qual se critica, que podem os chamar de democracia socialista, ou socialismo de m ocrático96. Isso pode parecer arbitrário. M as a democracia socialista existiu, e existe, como projeto, como movimento. A forma democracia socialista é a forma virtual que indica a direção desse movimento. M ais do que isso — o que à primei ra vista pode parecer estranho — , colocarei como referências primeiras, de um lado, o capitalismo democrático, a democracia capitalista, termo que, como já foi indi cado, indica um objeto virtualmente contraditório), e, de outro, a democracia so cialista. Estas seriam de certo m odo as form as canônicas (embora uma delas seja apenas virtual). Por que canônicas? A primeira, já disse, porque ela ocupa o espa ço global; a segunda é a sua negação “ adequada” , virtual como form a, m as real como movimento e projeto. A partir delas, introduziríamos duas formas derivadas. “ D erivado” significa que cada uma das form as contemporâneas têm um parentesco genético privilegia do com uma das formas canônicas, mas, ao mesmo tempo, não indica que elas se jam simples variantes dessas formas. Isso é preciso fixar, porque foge da tradição clássica: há parentesco (genético, digamos), o que por outro lado não significa que as formas derivadas não tenham nada em comum com a grande forma que não lhes corresponde, m as a relação é remota. A ordem que se poderia chamar de primeira — a terminologia já o indica — vai da forma dita fundamental à forma derivada, e não o contrário. O que não significa que o movimento não possa se inverter, mas que a inversão é de certo m odo segunda. Assim, além das form as principais, temos formas que são ao mesmo tempo derivadas (ou segundas) e independentes (não só distintas m as independentes). A forma derivada do socialismo é a sociedade buro crática. A forma derivada do capitalism o (do capitalism o democrático, mas atra vés do capitalism o autoritário) é o nazism o97, ou preferindo o totalitarismo de di reita. Evidentemente, pode-se considerar essas form as como “ form as de degene rescência” , m as sempre que isso não implique em afirmar que elas são simples va riantes98. “ Form as de degenerescência” indica que elas representam regressão his tórica. Assim, ligam os a teoria das form as à teoria do progresso. O capitalism o democrático e a democracia socialista não representam regressão histórica, mas só a democracia socialista representa progresso. O capitalismo democrático é progressoregressão, ele é progresso só enquanto democracia. Essas são as form as fundamentais do mundo contemporâneo, se deixarmos de lado não só o que resta dos povos “ prim itivos” mas também, provisoriamente, a questão do mundo colonial (em geral ex-colonial). Observe-se que ao introduzir a idéia de formas “ de degenerescência” , mais do que certos temas m arxistas con temporâneos (porque, como indiquei, neles introduzo uma inflexão fundamental), retomo sim uma idéia muito antiga, dos clássicos (não da teoria dialética clássica),
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de Platão a M ontesquieu. A idéia das form as degeneradas, que entretanto eram outras formas. N ão posso desenvolver esse ponto aqui. M as trata-se de um tema e de um modo de desenvolvimento — em geral, perdido enquanto tal, pelo m arxis mo — que é extremamente importante para pensar as form as sociais contemporâ neas" . Sob esse aspecto, Platão é mais contemporâneo nosso do que muitos pen sadores contemporâneos, ou dos séculos X IX e X X . Eu acrescentarei mesmo que também a idéia de tipos de individualidades que acom panha, no texto de alguns filósofos, a teoria dessas formas — o m arxism o não é estranho a essa idéia, mas se revelou inapto para explicitá-la — teria de ser reposta: pensar o que é o homem nazista, o homem burocrático, o homem capitalista (democrático ou autoritário), o homem democrático e socialista100. Trata-se agora de estudar mais precisamente as relações entre essas formas, e o seu movimento interno. Nesse ponto, há o perigo de se limitar a um esquema classificatório, ou um quadro de tipo estrutural, o que seria muito insuficiente. Tentarei introduzir pelo menos algumas das determinações dialéticas que me parecem essen ciais. M as, como ponto de partida, se em seguida form os capazes de ir além disso, os quadros de estilo estrutural podem ser úteis. Por ora, apresento um quadro, que irei dialetizando progressivamente. Darei depois uma outra figura ao conjunto. Poderíamos apresentar as quatro formas na seguinte ordem: capitalismo de mocrático, nazismo (totalitarismo de direita), burocracia (totalitarismo de “ esquer d a” ), socialismo democrático. Essa ordem pode parecer estranha, depois do que disse sobre as derivações, m as, como veremos, há uma circularidade das formas e essa apresentação, pelo menos por ora, parece mais fecunda. Consideremos cada uma dessas formas segundo a sua “ estrutura” econômica e social, sua configuração p o lítica, sua ideologia (sua aparência que oponho à sua essência101), sua “ essência” , sua relação com formas de pensamento e m odos de pensar (entendimento, razão,...), e finalmente segundo a natureza da individualidade (psique) que deve lhe corres ponder. Teríamos o seguinte quadro:
F orm as E con ô m icas cap ital
F o rm as Políticas d em ocracia
A parên cia
E ssên cia
igu ald ade não-violència liberdade
d esigu ald ad e “ vio lên cia” liberdade
TD
cap ital n eu tralizad o
to talitarism o co m u n idade violência e d esigu ald ad e
violência d esigu ald ad e
B
liq u id ação d o cap ital
DS
socialism o
totalitarism o co m u n idad e so cialista m ítica dem ocracia ig u ald ad e não-violência liberd ad e
violência nivelado ra d esigu ald ad e ig u ald ad e não-violência liberdade
c
F orm as L ó g icas dialética interna (interversão) entendim ento m itologia racial (entendim ento m ítico) m itologia “ d ialétic a” crítica dialética
Psique esquizofren ia
p erversão
p a ra n ó ia
“ n o rm a lid a d e ”
C = capitalism o democrático, TD = totalitarismo de direita, B = burocracia (totalitarismo de esquerda), DS = democracia socialista.
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Tem os assim quatro formas. Se considerarmos o capitalismo na sua configu ração democrática, duas dessas formas (democracia socialista e capitalismo demo crático) são democráticas e duas totalitárias (nazismo e burocracia) no que se refe re à natureza do poder político. Só em uma (democracia socialista), há liberdade, igualdade e não-violência no plano essencial. Isso não significa que essa sociedade seria “ transparente” , pelo menos se definirmos a “ transparência” não como con gruência entre essência e aparência (se for esta a definição, a democracia socialista seria transparente), mas como ausência de formalismo, isto é de Direito e de Esta do. N o capitalism o democrático, há desigualdade e, de certo m odo — isto será re tom ado mais adiante — violência; mas a liberdade, de algum m odo, participa de sua essência. H á certamente violência nas duas sociedades totalitárias: em uma de las, mais a violência “ niveladora” (que não exclui a desigualdade); na outra, vio lência fundada propriamente na desigualdade. Q uanto à relação com as “ form as lógicas” , no interior do capitalism o há interversão, mas é o entendimento que domina sua forma consciente. Ele sedimenta a ideologia. N a democracia socialista, não haveria interversão interna. M as, por isso mesmo, a crítica dialética é sua forma lógica correspondente no plano da cons ciência. N as duas formas totalitárias domina a im aginação “ m ítica” . M as, na so ciedade burocrática, é antes a crítica dialética que é mitificada — a ideologia da sociedade burocrática é o m arxism o banalizado, a “ negação” da democracia, por exemplo, torna-se negação pura e simples da democracia; no nazismo, tem-se mais uma mitificação do entendimento (mitificação das formas lógicas “ rígidas” ). N a aparência dessas sociedades, tem-se, para o nazismo, a comunidade mítica (de san gue), m as ao mesmo tempo, nele — particularidade do nazismo — afloram a desi gualdade e a violência (é nesse sentido que há correspondência entre o nazismo e o homem perverso). N a sociedade burocrática, não aflora a violência (o homem bu rocrático não é perverso), na aparência há a igualdade socialista mítica. Observe-se que a essência da form a, no caso das duas sociedades totalitárias, é dada pela política, mais do que pelo estrato sócio-econômico. Para a democracia socialista, tanto o econômico como o sócio-político contam. Para o capitalism o democrático, embora de outro modo, também os dois são decisivos. Deixo em aberto o problema preciso da natureza da economia socialista (se haverá mercadoria ou não etc., o essencial é que deve haver formas, e portanto abstração). Quais os tipos psicológicos correspondentes a essas form as?102 Se a figura psi cológica do nazismo é a do perverso, quais as figuras que corresponderiam ao ca pitalism o e à burocracia? A resposta é difícil. Com o hipótese, diria que ao capita lismo e à burocracia correspondem, respectivamente, pelo menos em certo senti do, a esquizofrenia e a paranóia. E de Castoriades que se pode tirar a idéia da na tureza esquizofrênica da sociedade burguesa, no sentido de que, nela, encontramos uma ruptura ou tensão interna, que aparece pela primeira vez na história103. Os indivíduos têm de ser tratados ao mesmo tempo como iguais e como desiguais. Restaria estudar como isto se manifesta na consciência dos agentes, mas há indica ções de que, pelo menos para certas regiões do comportamento, a sugestão é fecunda. A paranóia não caracteriza certamente o burocrata russo dos períodos de estabili zação relativa, mas parece ser uma categoria muito ilustrativa do clima reinante pelo
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menos em certas épocas do poder stalinista (os anos trinta, por exemplo, m as não só). Hitler era perverso; Stalin e Lenin talvez, paranóicos; os atuais dirigentes ame ricanos, nem perversos, nem paranóicos, mas talvez mais próxim os da esquizofre nia. Com o form a psíquica que corresponde à democracia socialista, indiquei no quadro a “ norm alidade” As aspas não indicam que a norm alidade não existe, mas que ela deve ser pensada como remetendo a um conteúdo complexo e não simples mente a uma psique “ pacificada” . Com o traços dessa norm alidade, ousaria suge rir os seguintes em contraposição aos dos homens dos regimes “ patológicos” : cisões mas não disruptivas, talvez narcisismo mas interiorização da lei, agressivida de mas lúdica ou benigna. Nesse texto, limito-me a essas indicações104. Estudemos agora as passagens de uma forma a outra, ou preferindo, em lin guagem não dialética, suas regras de transform ação. Ordenei as várias form as de um modo linear, m as a rigor seria necessário representá-las em forma circular. Esse é um ponto importante. De certo m odo, ao contrário do que se pensa — inclusive e sobretudo à esquerda — , as posições políticas, não se ordenam em forma retilínea. O espaço da política não é euclidiano. Ele é curvo. Se formos caminhando à esquerda, a partir de certo ponto caminhamos para a direita, ou já estam os na região da di reita. Certo, a inversão não vale perfeitamente se “ caminharmos para a direita” , embora a extrema direita, tenha, como se sabe, ressaibos de esquerda; uma certa extrema-direita, arrasta uma “ cauda” de extrema-esquerda. De qualquer m odo, no sentido esquerda-direita, a passagem se dá. Se quisermos ilustrar as quatro form as consideradas, eu proporia o seguinte: as duas form as principais, democracia socialista e capitalism o democrático seriam representadas por círculos ou melhor ainda por esferas, colocadas uma ao lado da outra, a que representa o socialismo democrático à esquerda, a outra à direita. A partir da esfera da esquerda, é preciso traçar uma linha curva que vai para a es querda, e depois Ínflete para a direita-, ela termina numa outra esfera, situada à direita do capitalism o (a qual pode ser representada como de menor tam anho, eventual mente com uma “ caud a” , que Ínflete à esquerda, como se fosse um cometa): esta esfera figura a forma burocrática. A partir da esfera da direita que representa o ca pitalism o, seria preciso traçar uma linha, que poderia ser ligeiramente curva (para indicar que o espaço da política é curvo) mas que vai para a direita. Ela termina por uma esfera que figura o nazismo (esse esfera pode ser também de menor tam a nho, como a da burocracia)105. Assim , ao contrário do que ocorre com a outra pequena esfera, a linha a partir da qual ela é traçada e que a une a uma das duas grandes esferas, não Ínflete de uma direção a outra; ela vai simplesmente mais para a direita. — Entre as duas grandes esferas, deve-se colocar uma flecha que vai nas duas direções, o que indica a passagem possível de uma forma na outra; na reali dade, essas duas passagens têm sentidos diferentes: deslizamento da democracia socialista numa ideologia pró-capitalista, ou passagem do capitalism o ao socialis mo democrático; a diferença na forma mesmo dessas duas passagens (isto não está representado, senão na diferença entre as duas esferas) vem do fato de que consi deramos de um lado uma estrutura e de outro um movimento social. E preciso além disso traçar uma flecha que vai da pequena esfera que representa o totalitarismo
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de “ esquerda” à que representa o totalitarismo de direita. A passagem contrária não precisa ser representada. Teríamos assim o seguinte gráfico:
D E M O C R A C IA S O C IA L IS T A
C A P IT A L IS M O D E M O C R Á T IC O
b u ro cracia (totalitarism o de “ e sq u e rd a ” )
to talitarism o de direita
Tentemos examinar agora o que poderia representar o processo de passagem ; ou, usando uma linguagem não dialética, as regras de transform ação de certas for mas em outras. Comecemos por um movimento que vai de baixo para cima, pen sando o significado da transform ação da última forma para a penúltima. D o so cialismo democrático para a burocracia ou em geral para o totalitarismo de esquerda. Com o as outras, essa passagem , tem também uma significação histórica. O movi mento socialista russo tinha ligações com o projeto democrático, que o movimen to socialista internacional havia herdado, mas ele se perdeu na ideologia bolchevique e depois no stalinismo, em suma, na forma burocrática. Que significa essa p assa gem? Bem entendido, não se trata aqui de analisar historicamente como ela se deu. Nem mesmo, a rigor, de uma análise sociológica. Em bora se deve estudar em deta lhe o alcance dessa descrição, creio que esta fórmula dá o sentido da passagem , a partir dos conceitos que foram indicados: a passagem de um em outro se faz por uma espécie de interversão da igualdade no seu contrário106. Bem entendido, os stalinistas não são igualitários fanáticos. M as seguindo um texto do M arx de 1844, que fala do que ele chama de “ comunismo vulgar” e aproveitando também expe riências que tive de “ micro-sociedades” de estilo burocrático de “ esquerda” — isso existe — , eu diria: a passagem do socialismo democrático à forma burocrática ou mais precisamente aos totalitarism os de esquerda poderia ser pensada (“ logica mente” , em alguma medida) como um movimento que resulta do fato de que se leva a igualdade às ultimas conseqüências107, fazendo abstração das diferenças (há di ferenças reais, mesmo se não biológicas, que podem e devem ser levadas em conta e que essa passagem liquida). A brutal equalização, a igualdade abstrata, que é a igualdade levada aos seus últimos limites, tem dois efeitos que vão juntos: ela destrói a liberdade e ao mesmo tempo se interverte em não igualdade108. Assim , a passagem da última forma n.o quadro, ou da grande esfera da esquerda, à penúlti
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m a form a, e à pequena esfera adjacente, se faz por uma interversão da igualdade — levada ao seu limite — em desigualdade e não-liberdade. Essa passagem representa, por outro lado, uma dialética da razão109. M ais precisamente, uma dialética da razão dialética, uma interversão da razão dialética no mito. Com o já foi indicado, é a crítica do capitalismo que vem a se constituir como ideologia da sociedade burocrática. O m arxism o, em particular, vem a ser essa ideologia; m as um “ m arxism o” tal, que a interversão da ideologia burguesa da liberdade em não-liberdade, interversão, que em termos marxistas representa uma “ Aufhebung” , torna-se um a simples negação. O que serve de justificação para que toda democracia, reduzida a pura ficção ideológica, seja liquidada no interior da sociedade burocrática. Enfim, é um “ m arxism o” sem categorias nem movimentos dialéticos110, que serve de ideologia para a sociedade burocrática. Partamos agora do alto do quadro, ou da grande esfera da direita, no gráfi co. Com o se passa à segunda form a, ou à pequena esfera da direita? A passagem não é da ordem da interversão (no que se refere ao movimento que corresponde ao primeiro aspecto considerado anteriormente). Do capitalism o democrático — com a m ediação eventual do capitalism o autoritário — ao nazismo, considerando um primeiro bloco de mutações, tem-se dois movimentos: o que era parte da essência do sistema, desigualdade e até certo ponto violência, aflora, e é assum ido sem mais como ideologia pela nova forma. H á assim uma espécie de “ revelação” do sistema que entretanto muda o seu caráter. Em segundo lugar, sempre nesse primeiro blo co de mutações, há uma transform ação da igualdade jurídico-formal em igualdade-desigualdade comunitária (os membros da comunidade são iguais no sentido de que são todos membros dela, desiguais porque são membros com funções diferen tes). A idéia de comunidade não está ausente da representação do capitalism o, mas ela representa uma espécie de pressuposição do sistema, que não é propriamente p osta111. A emergência da comunidade como ideologia é assim ao mesmo tempo posição de um pressuposto, e transform ação de uma atom ização abstrata em tota lidade “ concreta” . Passagem do abstrato ao “ concreto” , da “ sociedade” à “ com u nidade” . Esse duplo movimento liquida literalmente tanto a igualdade como a li berdade: a liquidação da “ abstração” é aqui, pelo menos, liquidação da liberdade e da igualdade individual. Por outro lado — segundo bloco de mutações — e agora de forma análoga à passagem que exam inam os anteriormente, o movimento con duz ao mito. H á aqui também um processo que é em parte dialética da razão dia lética (o nazismo utiliza uma caricatura da crítica m arxista, ou socialista em geral, do capitalism o), porém é também e mais do que isto uma interversão do form alis mo burguês no mito. As leis e regras formais se cristalizam em leis “ concretas” , di tadas pela natureza (sangue e terra). Passagem do convencionalismo da ideologia burguesa a um naturalism o que no entanto não é exatam ente da ordem do fe tichismo. O fetichismo, que corresponde à sociedade capitalista, é a transform ação dos processos sócio-econômicos quase-naturais que “ pesam ” sobre os sujeitos em processos naturais, ideologia que por isso mesmo conserva e agrava a realidade desses processos. De forma diferente, a naturalização que caracteriza a ideologia nazista, transform a a sociedade e a dom inação totalitária em comunidade natural. As dife renças com o fetichismo estão tanto no ponto de partida como no ponto de chega
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da. N ão é característico do nazismo fetichizar (naturalizar por tanto) as estruturas do capitalism o. Ela as conserva neutralizadas, e se existe fetichização enquanto fenômeno objetivo, ela não é de nenhum modo reforçada pela ideologia. N o nazis mo, a naturalização incide sobre a sociedade na sua relação com o Estado e sobre o próprio Estado. Em segundo lugar, e mais importante: ela desemboca não na vi são de processos naturais coercitivos, m as numa natureza miticamente reconcilia da, a da comunidade de “ terra e sangue” 112. N o caso da sociedade burocrática é a crítica do fetichismo que se faz ideologia. Assim, na passagem da última form a à penúltima e na passagem da primeira à segunda, há movimentos em direção ao mito, à im aginação mítica, respectivamente (pelo menos no essencial), dialética da razão e dialética do entendimento113. N o plano econômico, a passagem do capitalismo ao nazismo não implica na liquidação do primeiro como form a econômica, m as de certo modo na sua “ neutralização” . O capitalismo permanece lá, desempenha o seu papel a serviço do regime, m as contrariamente ao que supõem os m arxistas, não define este último. De certo m odo, o capitalism o se torna form a (no sentido de determinação) a qual entretanto não se necessita nomear para caracterizar o nazis mo, pelo fato de que, nele, ela aparece neutralizada114. Restaria ver as duas outras passagens, que seriam quatro, se considerássemos as duas direções que cada uma pode tomar. D a burocracia ao nazismo, tem-se um movimento o qual pode ser exemplificado por exemplo pela situação dos nostálgi cos de Stalin na Rússia, que ao mesmo tempo aceitam as teses da extrema direita (esses traços já estão no anti-semitismo de Stalin, no pacto germano-soviético ou pelo menos nos termos em que ele assina esse pacto etc.). E também o deslizamento conhecido dos “ rouge-brun” 115 do ocidente. Deixo de lado a análise das razões que poderiam explicar o peso e a freqüência atual do fenômeno. A passagem não é da ordem da dialética da razão ou do entendimento, porque aqui se vai de mito a mito. E no in terior da imaginação mítica que ela se opera. Ela tem entretanto alguma coisa da pas sagem capitalismo/ nazismo, a violência de classe se torna violência racial, a desi gualdade, em geral ocultadas pela ideologia burocrática, se manifesta na aparência; e se mitifica a comunidade. Só que nessa passagem não é a forma da igualdade bur guesa que se torna comunidade mítica, é a igualdade “ m ítica” e entretanto, dentro de certos limites, também em parte “ form al” (o cidadão soviético “ supostamente livre e igual” ) que se transmuta no membro “ concreto” da comunidade de sangue. Trata-se assim — mas desde o início já no interior do universo da imaginação mítica — de uma revelação de uma essência, ainda que, revelando-se, como é o caso em todas essas transformações, ela mude fundamentalmente; por outro lado a forma e o con teúdo do mito se alteram (por exemplo, o mito do comunismo tem um conteúdo igualitário e aponta mais para o futuro). Pode-se pensar a partir daí o movimento inverso, mas ele é historicamente mais raro: a “ esquerda” nazista é a que mais se apro xim ou desse percurso, que ela não realiza entretanto efetivamente. Quanto às transform ações entre as duas grandes esferas (ou os dois extremos do quadro), trata-se esquematicamente, ou em termos de formas de pensamento, de uma passagem da crítica dialética ao entendimento, ou vice-versa. O bloqueio da crítica dialética, transform a a democracia capitalista em democracia tout court. A trajetória de Bernstein, como figura de teórico e homem político, exemplifica, em
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parte, umas das direções do movimento. (Bernstein critica — passa a criticar — constantemente a dialética. O melhor exemplo de deslizamento “ aufklãrer” de Bernstein é entretanto — mas o tema ultrapassa esse primeiro item — a sua idea lização do colonialismo.) O movimento inverso é o dos que progressivamente che garam à dialética da igualdade no capitalismo democrático: democratas puros ou, na origem, mesmo burgueses “ autocratas” , que se tornaram socialistas). Nesse ponto, dou exemplos no plano das individualidades; mas nesses casos é o que se pode fa zer, e de qualquer m odo, eles dizem bastante. Em termos econômicos e sociais, esse movimento seria o da liquidação do capital (ou de sua “ neutralização radical” ), em proveito de uma democracia social, o que, como já disse, não significaria a meu ver, necessariamente, o fim da m ercadoria116, nem, provavelmente, o fim da proprie dade privada individual. Em termos dinâmicos, há nesse esquema uma série de forças que vão na direção da direita e da extrema-direita. Espécie de inércia — no sentido físico — histórica da direita e da extrema direita, ou força centrífuga em relação à democracia socialista e à democracia em geral. Essa força que nas suas últimas conseqüências é regressiva é um elemento fundamental na história contemporânea, e tem de ser levada em conta. Diante dela há uma força centrípeta em relação à democracia, que vai na direção do progresso. As duas subsistem sobre o fundo do capitalism o, que é progresso-regressão. Disse anteriormente que, na medida em que ela faz menção de “ form as de degenerescência” 117, essa apresentação das formas retoma uma temática da filosofia antiga e da filosofia moderna. Também o fato de que esbocei pelo menos uma apre sentação da figura antropológica ou psicológica que corresponderia a cada forma. Isso não se opõe — de certo modo até converge com ela — à tentativa de pensar as passagens utilizando figuras ao menos em parte dialéticas, interversão, manifestação (como movimento que vai da essência à aparência), passagem da forma ao conteú do ou do abstrato ao concreto etc. M as essa maneira de relacionar as form as tem também alguma coisa com a maneira pela qual Lévi-Strauss articula formas sociais (penso em particular na Pensée sauvage, e sobretudo no capítulo “ totem e casta” ). Digam os que há pelo menos uma coisa em comum, sem dúvida bastante geral mas talvez não irrelevante: o fato de que a relação não é “ histórica” — no sentido de datada e essencialmente irreversível — em oposição aos historicismos strictu senso, m as também a toda ordenação temporal das form as, por mais complexa que seja. N o texto de Lévi-Strauss, trata-se de definir as alterações que nos permitem passar de uma forma a outra, em temos lógicos118, m as mobilizando as noções de nature za e de cultura119. As operações estruturais são, sem dúvida, em seu núcleo, de outra natureza que as operações dialéticas, m as já o fato de que a estas interessa entre outras coisas o “ jo g o ” do fetichismo (e do seu outro, o convencionalismo), como o movimento do concreto ao abstrato etc., m ostra que a diferença não é tão radical. De resto, há um texto de M arx, texto que, aliás, curiosamente é o mais dialético de todos os que M arx escreveu, e que entretanto evoca, mais do que qualquer outro, as análises de Lévi-Strauss. Refiro-me aos Grundrisse, mais particularmente o tex to a que se deu o título de “ Formas que precedem a produção capitalista” . O que há de interessante nesse texto é a dispersão das formas. Sob esse aspecto, ele é o oposto da Origem da fam ília, do Estado e da propriedade privada de Engels, de
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estilo radicalmente historicista. Ainda que se fale de “ primeira form a” , de “ segun da form a” , a sucessão não é, nele, uma dimensão essencial. As form as são como que expostas lado a lado120. A definição das diferenças se faz utilizando categorias dialéticas (pressuposição/ posição) ou categorias da tradição filosófica que a dialé tica herda (substância e acidente, por exem plo)121. Por outro lado, é verdade que o que permite pôr todas essas formas no mesmo plano em oposição ao capitalism o é a finalidade, a produção com vistas ao valor de uso. M as as form as são pensadas como “ possíveis” 122 e, mais ainda, há formas que são consideradas como negati vas em relação a form as positivas (por exemplo, a escravidão e a servidão são as form as negativas da simples propriedade da terra e, secundariamente, dos instru mentos; e — o mais interessante para o nosso tema — “ o sistema de castas” 123 é a forma negativa da propriedade fundada no instrumento (“ o sistema de jurandascorporações” )124. Vê-se como formas possíveis (que, na suas encarnações reais, estão separadas umas das outras no tempo e no espaço) são articuladas por operações dialéticas ou lógicas (neste caso, uma operação que não é estranha a Lévi-Strauss). Assim, creio que, por surpreendente que isto possa parecer, não só os Grundrisse, mas também o texto de Lévi-Strauss parece oferecer por isso mesmo uma perspectiva que, sob um aspecto, o torna muito fecundo para pensar as sociedades contempo râneas. Sua maneira de “ dispersar” as form as, e defini-las por operações “ lógicas” , é muito melhor do que se supõe, para pensar esse objeto. De qualquer m odo, se refletirmos sobre textos como aquele, seremos capazes de quebrar os preconceitos que impedem toda teoria rigorosa das formas sociais contemporâneas, e através dela, toda política lúcida. Assim, o desenvolvimento anterior se colocaria sob a “ inspira ç ã o ” conjunta das teorias antigas e clássicas sobre as form as políticas, da análise das form as sociais em Lévi-Strauss (em particular o texto citado), e do “ m elhor” M arx (que é o meu ponto de partida, mas “ Form as...” [Grundrisse] é um caso limite). Ao tentar o esboço de uma apresentação das formas sociais contemporâneas, deixei de lado, como já havia indicado, o mundo colonial, ou mais exatamente excolonial. Os acontecimentos recentes, que se iniciam com os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, nos convidam por sua vez — mes mo se este é só um dos seus aspectos — a tratar do mesmo objeto. Esses acontecimentos resultam de uma espécie de interseção entre, por um lado, a questão das difíceis relações — para não dizer mais — entre o mundo capitalista (democrático e também capitalista em geral) e os países “ pobres” , e, de outro, o problema do desenvolvimento dos meios de destruição (caso particular, negativo, dos “ meios de produção” )125. Começo por esse segundo ponto, já tratado em for ma geral, m as não nesse contexto. Desde a Primeira Guerra M undial pelo menos (senão desde a invenção da m etralhadora que, não por acaso, Engels considerava como a invenção que encerraria a história das arm as de guerra126), o nível do de senvolvimento técnico permitiu a fabricação de arm as de extermínio coletivo (ga ses, arm as bacteriológicas, mais tarde, com a Segunda Guerra M undial, arm as nucleares)127. Os m étodos de fabricação dessas armas foram caindo no domínio público — ou quase-público, o da generalidade dos especialistas — , e os métodos de fabricação foram se tornando, ou se revelando, relativamente sim plificados.
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Hobbes dizia que era fácil m atar um homem, e que essa circunstância (negativa) estabelecia uma espécie de igualdade entre os homens128. Com as novas armas, tornase relativamente fácil a destruição de m assas humanas (genocídio) senão a destrui ção da espécie. A equalização de que falava H obbes se realiza agora em forma potenciada. N ão é fácil apenas m atar um outro, m as também muitos outros, senão todos os outros. E se o suporte dessa possibilidade, agora potenciada, poderia ser ainda, dentro de certos limites, o indivíduo, ela nos interessa muito m ais como passível de ser realizada por grupos religiosos ou nacionais, partidos, Estados etc. E realizável tanto no plano nacional (onde segundo os clássicos vigora o contrato), como no plano internacional (onde, segundo os clássicos, teríamos o “ estado de na tureza” e o “ direito das gentes“ ). Aliás, os acontecimentos recentes nos põem diante de um objeto que intersecta de certo m odo essas duas possibilidades: neles intervie ram poderes e grupos não-estatais, que agem entretanto no plano internacional. E com o as arm as de que eles poderão dispor são capazes de produzir destruições “ universais” , a emergência de tais grupos e poderes confirma a impossibilidade de hoje apenas pressupor (e não pôr) a espécie e a natureza. Este é um aspecto do problema: o da história da espécie, mais precisamente o da sua posição na história. O outro são os aspectos propriamente políticos, isto é os que concernem à história tout court, a história interna da espécie, em que por isso mesmo a própria espécie não é posta enquanto tal. Ao me referir ao capitalis mo no quadro do que seriam as formas sociais contemporâneas, reais e virtuais, depois de assinalar a igualdade, a não-violência, e a liberdade como características da aparência dessa forma, coloquei a desigualdade entre as notas da sua essência, acrescentando a ela, m as com alguma condição, a violência. Essa violência é a que subjaz de algum m odo em todo capitalism o mesmo democrático. M as ela teve, e em parte tem, um aspecto totalmente efetivo fora do centro do sistema. N a perife ria do mundo capitalista. M esm o se ela se efetiva de forma intermitente, pelo me nos na sua m odalidade espetacular, lá sempre reinou uma violência aberta, violên cia que de algum modo anuncia o que seria o nazismo. Hannah Arendt tem perfei tamente razão — e essa é uma das suas contribuições mais importantes — quando vê no mundo colonial a antevisão do que seria depois o totalitarismo. Assim, o mun do colonial estabelece efetivamente um elo entre capitalism o e totalitarismo (refi ro-me aqui ao totalitalism o de “ direita” ), sem entretanto, como se pretende às ve zes, eliminar as diferenças essenciais, que apesar de tudo subsistem entre eles. Que a “ violência aberta” e arbitrária só existisse a rigor na periferia, não inocenta o sistema, m as é relevante para definir a sua especificidade O cham ado problem a nacional e colonial interessou desde cedo a M arx e Engels. M as pode-se dizer que, nem eles, nem o marxismo posterior, que, entretanto, tom ou posição crítica em relação a vários textos dos fundadores, foi muito feliz no tratamento da questão. Primeiro tem-se os fam osos artigos de Engels para a N ova G azeta Renana (e outros artigos de mesmo tipo) que retomam a tese hegeliana dos povos “ sem história” , artigos que, no melhor estilo do fanatism o do progresso129, defendem os colonizadores e os civilizadores. Entre os povos oprimidos, reconhe cem-se alguns poucos (poloneses, irlandeses, húngaros...) como vetores da causa do progresso, e são esses os únicos cuja luta mereceria ser apoiada M ais tarde, M arx
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escreve de maneira mais m oderada sobre a questão nacional e colonial. Em seus artigos sobre a índia, ele se refere aos horrores da opressão colonial, mas confere ainda a esta última, uma justificação histórica geral130. O m arxism o posterior tom ou distância não só em relação ao fanatism o “ aufklãrer” dos textos de Engels na Gazeta R enana, como também em geral — sem, via de regra, dar os nomes aos bois — em relação à postura dos textos posteriores dos dois pais fundadores. A partir das primeiras décadas do século X X , parte dos socialistas começa a denunciar o imperialismo, que deixa de aparecer assim como força de progresso131. Em certo momento, surge no entanto um problema inverso ao que M arx enfrentava nos seus artigos sobre a índia. Os poderes e form as sociais que os imperialismos combatem são muitas vezes os de governos despóticos ou anti democráticos, interiormente opressores. Deve-se assim mesmo tom ar o partido dos colonizados? A resposta clássica do m arxism o radical do século X X , e em parti cular, do bolchevismo, é positiva. Um texto de Trotsky, dos anos 30, deixa claro qual a posição que deveria ser a dos revolucionários: na luta entre governos impe rialistas democráticos, e ditaduras ou autocracias periféricas, é preciso tom ar posi ção contra os primeiros, o que significa a favor dos últimos132. Com o se vê, há uma espécie de inversão da posição inicial: se apesar das violências e horrores da colo nização, os fundadores defendiam o “ trabalho” dos colonizadores —■pelo menos em term os históricos mais am plos — em nome do progresso, o m arxism o mais radical do século X X defendia — e o do século X X I defende — o ponto de vista do colonizado, apesar das form as anti-democráticas em que ele se encarnava. Aí sur gem vários problemas. Por um lado, a partir da revolução russa, não houve somente dois termos — capitalism o imperialista e povos coloniais, mas três, imperialismo capitalista, povos coloniais (e dependentes) e sistema burocrático com prolonga mentos internacionais. Em segundo lugar, mesmo independentemente desse con texto, a violência do colonizado tinha de ser senão condenada pelo menos tom ada em consideração — uma violência que se manifesta também entre os colonizados, mesmo de uma mesma nação (ver a liquidação do M N A pelo FLN argelino)133. Ain da que praticada pelo colonizado, tal violência deve ser pensada na sua significa ção ética e também política134. E além da violência, há o problema do caráter mais ou menos “ bárbaro” de certos poderes periféricos, o que não implica somente atraso econômico ou técnico, m as dom inação e exploração. M ais do que isto. N o interior do mundo periférico, surgiram formas claramente regressivas, que elas tenham se desenvolvido a partir de um fundo arcaico, ou apareçam como formas de degene rescência de movimentos legítimos de resistência. N o primeiro caso, temos os fundamentalismos religiosos ou nacional-religiosos, no último, o nacionalismo expansionista do tipo do de Saddam Hussein, o banditismo guerrilheiro (Colômbia etc.) ou o terrorismo arbitrário e criminoso (tipo ETA). N essa segunda categoria, esta mos diante de um fenômeno que corresponde na periferia ao que foi no primeiro mundo (Rússia inclusive e sobretudo) a degenerescência dos movimentos socialis tas e dos poderes que deveriam encarná-los. M ais ainda do que os seus homólogos nos países avançados, esses movimentos convergem muitas vezes não só com o banditismo, m as também com os movimentos de extrema-direita. Esse processo é muito malcompreendido e conhecido pela extrema-esquerda, falta-lhe o conceito
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dele, o conceito propriamente político que permita pensar o fenómeno135. Em últi mo lugar, e aqui chegamos ao nosso problema: com o desenvolvimento e a popu larização dos meios de destruição, o colonizado, ou mais exatamente, certas forças que emergem do mundo colonizado estão em condições de praticar violencias de m assa de vários tipos. Se, no fundo, a indiferença em relação ao “ despotism o” eventual de um Estado colonizado — ou a indiferença em relação à violência do colonizado sempre legitimada como contra-violéncia1’ 6 — nunca se justificou, ela se complica ainda mais no momento em que forças que emergem da “ periferia” estão dotadas das armas mais modernas de destruição. Ora, que forças são essas? Elas encarnam não uma religião diferente enquanto tal, mas antes a franja fundamentalista e hiper-radical (no sentido mais reacionário) dessa religião. N esse sentido, ela tem menos em comum com essa religião, do que com os fundamentalismos das várias religiões. Afinal, o cristianismo já produziu as cruzadas e a Inquisição, m es mo se hoje seus efeitos, pelo menos na sua tendência dominante, estão atenuados, sendo minoritários os cristianismos fundamentalistas mais agressivos. H á um fundamentalismo judeu tão execrável quanto o islâmico. Com o discutirei logo mais, ele tem uma responsabilidade bem precisa na criação de condições que fornecem le nha ao terrorismo fundamentalista islâm ico137. E assim, à luz da interseção entre o que há de mais regressivo politicamente no mundo periférico e as formas mais modernas de destruição, que se deve entender os fenômenos que começam (não em termos absolutos) com o 11 de setembro — o que em parte é uma evidência. E menos reconhecida a dificuldade que tem a ideologia tradicional da esquerda em pensar o problema. Nem a posição primitiva de M arx — esta não ê mais aceita por ninguém na esquerda — nem a posição do m arxism o do século X X e do bolchevismo, a qual está no fundo da m aioria das reações da extrema-esquerda na América Latina e na Europa, dão conta do objeto. Diante do atentado, houve várias reações no Brasil (Falo do que vi e ouvi). Posição limite: a dos que saudaram pura e simplesmente o atentado como vitória contra o imperialismo... N essa forma “ p u ra” , essa reação foi rara, mas em forma quase-pura, a ouvi de intelectuais de esquerda. E os outros? O caráter brutal do ato impedia que as pessoas com um mínimo de bom senso político e de bom senso em geral (ou um mínimo de exigências éticas) se identificassem sem mais com os agres sores. M as, a partir daí, várias atitudes. Por um lado, havia a recusa em aceitar que o atentado viera de fundamentalistas islâmicos, num momento em que os indícios já eram abundantes. Se a realidade era politicamente incorreta, e complicava mui to a “ grille” de leitura, m arxista ou outra, tanto pior para a realidade. A coisa te ria sido feita mesmo por “ am ericanos” 138. Depois, quando a culpabilidade desses setores foi mais ou menos bem estabelecida, tratava-se de responsabilizar a políti ca americana pelo que acontecera. Bem entendido, há alguma verdade nessas afir m ações, mas só alguma verdade. Senão vejamos. Em primeiro lugar é necessário afirm ar que os responsáveis pelo ato são os que o organizaram e os que o pratica ram (afirm ação que parece tautológica m as, dado o que se ouviu e ouve, não é). Ato brutal de assassinato de população civil, e perpetrado por gente que professa um ideal ético e político o mais reacionário, com portando entre outras coisas uma
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situação de hiper-opressão da mulher. Por que isto não foi, em geral, suficientemente sublinhado? Porque o homem comum de esquerda não sai dos limites da teoria bolchevique e m arxista do século X X , de que na luta entre o imperialismo “ demo crático” (com aspas porque o imperialismo, ele mesmo, não é democrático) e o dés pota brutal é preciso tom ar posição contra o imperialismo (na versão bolchevique isso significava na realidade: e a favor do déspota). Ora, é essa posição que a meu ver é insustentável, mesmo que a crítica dos erros e crimes da política americana tenha de ser posta em evidência. M as a questão não pode ser colocada como faz o diretor de uma publicação quinzenal parisiense de extrema esquerda: “ 11 de setem bro de 2001, atentado terrorista nos EUA, 11 de setembro de 1971, assassinato de Allende por aliados do governo am ericano” . N ão quero dizer com isto que a m or te de Allende não tenha sido um crime, como foi também a morte de Lumumba etc. (tomo aliás, de propósito, os crimes mais hediondos, e as causas mais inde fensáveis). M as quem m atou alguns milhares de civis em 11 de setembro de 2001 não foram os americanos, foram fundamentalistas islâmicos; e, por ocasião do 11 de setembro de 2001, é isto que tem de ser dito primeiro e plenamente. Por horren do que tenha sido o crime contra a grande figura de democrata socialista que foi Allende — odiado por isso mesmo pelos “ democratas” N ixon e Kissinger — , a morte de Allende não foi a causa do crime dos fundamentalistas, nem eles m ataram al guns milhares de civis, para vingar Allende. Separemos as duas coisas. O crime de setembro de 2001 foi o crime de setembro de 2001. H orror, condenável em si mes mo, perpetrado por quem o organizou e o realizou. Isto posto, analisemos as con dições que facilitaram o massacre. E mais precisamente, as condições que fazem com que setores importantes das populações de países periféricos tenham manifestado algum tipo de sim patia, mesmo se ambígua em relação aos terroristas. E aí apare cem os erros e crimes dos am ericanos.1383 Com o condições que facilitaram o aten tado ou, pelo menos, a injustificável simpatia de alguns pelo que aconteceu. M as aí é preciso considerar (o que não inocenta os americanos): não foram só os ameri canos que cometeram erros e crimes. Tam bém russos e chineses, e os europeus não foram inocentes. Seria preciso partir pelo menos do golpe tram ado e executado pelos anglo-americanos contra M ossadegh no Irã (homem político relativamente demo crata até onde eu sei, e moderadamente nacionalista: nacionalizou o petróleo, eis o seu pecado), da guerra da Argélia e suas brutalidades, passando pela guerra do G olfo139, e pela guerra da Iugoslávia140. M ais os erros e crimes da política ameri cana e russa no Afeganistão. Os americanos estão interessados acima de tudo em garantir o petróleo saudita que assegure o bom funcionamento de sua economia de desperdício e poluição. Além do petróleo da Arábia, há o petróleo e o gás do m ar Cáspio, que serviriam pelo menos de sucedâneos: o problema é o dos pipe-lines existentes, ou em projeto, cruzando o Afeganistão (para ter “ p a z ” para os seus agentes econômicos, os talebans pareceram ser a melhor solução). Do lado chinês e russo, além de interesses econômicos similares, há a questão nacional: a guerra contra o chefe fundamentalista permite am algam ar a luta contra o terrorismo com a luta contra as aspirações nacionais ou de liberdade religiosa, aspirações em si mesmas legítimas, na Chechênia, no Tibete, nas zonas muçulmanas do interior da China. L ast but not least, há a questão palestina. Aí o grande culpado é, apesar dos
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erros dos palestinos, o governo de Israel. Contrariando as determinações da O N U ele apóia e desenvolve as colônias inspiradas e em parte ocupadas por fundamentalistas judeus, cujos motivos são religiosos, ou políticos, e em geral os dois. Os americanos são culpados não de ajudar Israel, que, evidentemente, também tem direito à existência, mas de não pressionar o governo israelense — o grande res ponsável de qualquer m odo — para que ele abandone as colônias e aceite um Esta do palestino viável. Isto explica os atentados de 11 de setembro nos EUA? N ão; como lembrou alguém, a organização dos atentados remonta já há algum tempo, talvez à época em que as esperanças de paz eram reais. Por outro lado, é duvidoso que o mentor provável da ação de 11 de setembro (que é de resto também um mi lionário moderno) se interesse muito pelos palestinos. M as, de qualquer form a, é indiscutível que a situação dos palestinos fornece lenha aos terroristas. Com o for nece também a sobrevivência calculada do regime de Saddam , e suas conseqüên cias: o embargo, com seus efeitos de horror sobre a população inocente. M as a que nos leva isso tudo? Qual a significação desses acontecimentos à luz do que foi dito anteriormente, ou, antes, em que medida eles modificam o que foi dito, no plano da filosofia da história e da teoria das formas sociais contem porâ neas? Além da posição negativa da espécie e da natureza, que já era conhecida pe los críticos do m arxism o a partir de Frankfurt pelo menos, também a violência que vem do território dos colonizados e exprime o que há de mais regressivo entre eles e ao mesmo tempo explora demagogicamente certos temas, já aparecera como pro blema (ver de novo Frankfurt, ou mais precisamente Adorno, não Marcuse). O novo seria a interseção das duas coisas? H á um elemento relativamente novo na ideolo gia regressiva do fundamentalismo contemporâneo, a relação com a morte. O fato de que o terrorismo agora é terrorismo de “ kamicases” . É interessante observar como essa alteração ideológica na suas origens tem uma significação técnica fundamen tal, com conseqüências políticas. Quem tem a seu serviço homens dispostos a m or rer (no sentido de aceitar um a morte inevitável, não a possibilidade, o risco da m orte141), dispõe de um poder técnico superior. M as, com tudo isto, não se pode dizer que o evento fosse imprevisível. Ele se anunciava há bastante tempo, ainda que, do interior de um ponto de vista m arxista ou outro muito clássico, fosse difí cil prevê-lo. De minha parte, peço licença ao leitor para dizer que o fato não me surpreendeu. Escrevi em entrevista de outubro de 1999, publicada em 2000: “ (...) Porém há vários problemas. Se a gente considerar o mundo globalmente, há por exemplo os fenômenos do fanatism o, que são enor mes. Seria preciso que surgisse um Islã moderado, assim como surgiu um cristianismo dominante que não é o cristianismo mais fanático. E o mes mo vale para as demais religiões. Porque esses fundamentalismos religi osos representam um perigo muito grande, podem levar a catástrofes em matéria de terrorismo, guerra atômica, guerra bacteriológica. Chega a ser estranho que ainda não tenha estourado uma bom ba atômica por
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Eu insistia de resto, nesse texto como no pósfácio a Le Capital et la Logique de H egel143 sobre a possibilidade real das “ catástrofes” 144, falando também das catástrofes ecológicas e alimentares. M as que significação mais precisa poderia ter o 11 de setembro, e o que se gue — mais o que deve se seguir — a ele? N ão é ele que nos obriga a introduzir novos desdobramentos, necessários, no quadro e no esquema anteriores. Bem an tes dessa data, a consideração da realidade pós-colonial e de suas regressões nos obrigaria a fazê-lo. Se ele acrescenta algum a coisa é à teoria do progresso. De certo m odo, os acontecimentos nos põem diante de um tema m arxista clássico, na sua forma explícita, do m arxism o do século X X : o do cham ado desenvolvimento “ de sigual e com binado” . Porém em forma negativa. O tema do desenvolvimento desi gual e combinado visava as economias de países da periferia ou menos desenvolvi das, em que se combinariam traços arcaicos com elementos muito modernos (cf. a análise da economia russa que fazia Trotsky). Ressaltava-se a idéia dessa “ com bi nação” em oposição à idéia de “ atraso” , porque ela serviria de base para legitimar a possibilidade de uma revolução proletária, em todo caso pós-burguesa, nos paí ses atrasados. N os acontecimentos recentes, aparece também uma “ com binação” de traços, não na economia propriamente, m as na “ cultura” , ou mais precisamen te uma com binação de elementos ideológicos arcaicos — m as pode-se discutir se eles são, de fato e em que sentido preciso, arcaicos — com o domínio de “ técnicas” mais modernas, inclusive econômicas. M as, e é nesse sentido que a versão é nega tiva, tudo isso está a serviço de objetivos que representam regressão e não progres so, nem mesmo progresso-regressão. É uma espécie de “revolução permanente” (que, na sua versão “ positiva” , descrevia o que deveria ser — m as não foi — o processo da passagem sem interrupção das “ tarefas democrático-burguesas” para as “ tare fas socialistas” ), porém às avessas: o caminho que através da modernidade capita lista nas técnicas aponta para a regressão histórica. N esse sentido, se a ideologia deles é muito diferente da do nazismo, eles têm em comum com o nazismo o ódio à democracia (e ao mesmo tempo a associação com um certo tipo de capitalism o, mesmo se as proezas econômicas do chefe terrorista-capitalista é algo bem diferen te dos arranjos de Hitler com o grande capital). Em todo caso, em termos de apre ciação ética e política, eles são potencialmente — isto é, quanto ao que se dispõem a fazer, se tiverem os meios — tão perigosos quanto os nazistas. São assim, no pla no de uma filosofia da história, mais uma figura da regressão. N ão é à toa que m arxistas e aparentados tenham tanta dificuldade em pensar o fenômeno. Volto à questão nas conclusões. M as, à luz dessas observações, seria preciso completar o gráfico anterior, incluindo neles tanto os movimentos nacionais e coloniais (ou póscoloniais), como os fundamentalismos e os movimentos terroristas. O gráfico to maria a forma seguinte:
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D EM O C R A C IA SO CIALISTA
CAPITALISM O D EM O C R Á T IC O
-0
b u ro cracia (to talitarism o de “ e sq u e rd a ” )
to talitarism o de direita
fun d am en talism o terrorism o ban ditism o
6. C
o n c lu sõ e s.
D
ia l é t ic a ,
P o l í t i c a . I d é ia s
para u m a
É t ic a .
Chegamos assim às conclusões dessa longa introdução. Que o leitor desculpe o volume, a quantidade de matérias tratadas, e a mistura, intencional, de registros. Tentei abordar três tipos de problem as. Lógicos, políticos, e éticos. Voltarei um pouco às questões de lógica, isto é de dialética. Tentarei resumir e ampliar, em al guma medida, os resultados no plano da política. Como desenvolvi pouco teses gerais no plano da ética — embora tenha dado bastante espaço aos m odelos éticos145 — , darei um lugar maior a ela nessa conclusão. Começo pela política. Resumindo os resultados. Seria preciso romper com o caráter unilateral da idéia m arxista de história, centrada exclusivamente demais, mesmo se o esquema m arxiano é complicado, na idéia de sucessão. Seria necessá rio pensar de maneira mais ampla a idéia de formas sociais diferentes (não ordena das essencialmente no tempo) que coexistem. Isso significa, ao mesmo tempo, aban donar a idéia de que o capitalism o ou mesmo algo como “ a sociedade produtora de m ercadorias” tenha sido a única forma existente no século X X . A recusa desse esquema tradicional se justifica, apesar do fato de que o capitalism o aparece nesse início de século e de milênio como a forma dominante (o que ele já era nos séculos X IX e X X ). Em termos mais ou menos lógicos, tal perspectiva implica em modifi car o estatuto que tinham as formas virtuais, na teoria dialética clássica. Vimos que no “ m elhor” m arxism o — não no m arxism o “ com um ” que é também o de certos textos de M arx — a virtualidade tem duas características: ela é negativa (poten cialidade de destruição de formas) e segue a ordem de sucessão. N o “ melhor” m ar xismo, nenhum m odo de produção é “ germ e” do outro146, cada um contém só o seu “ princípio de morte” , que liberará apenas os pressupostos do outro. Em segundo
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lugar, se há contingência na sucessão, não só ela tem, pelo menos para um caso — o da passagem ao comunismo — uma direção privilegiada (não me refiro ao julga mento, mas à ordem dos processos objetivos), mas o eventual fracasso da p assa gem, mesmo se não de todo impensável, aparece como volta ao passado, ou “ atolam ento” no presente. N ão como criação regressiva. Porém, a história do século X X , e do começo do séeulo X X I, nos leva por um lado a reintroduzir um certo tipo de continuidade, ou de pensar de outro m odo a descontinuidade; e ao mesmo tem po — isto já está contido implicitamente no que foi dito — a supor, pelo menos para as formas “ segundas” , a possibilidade de que haja mutações tanto numa dire ção como na direção inversa, mesmo se uma delas é privilegiada. E essas possibili dades devem ser pensadas tanto a partir (ou envolvendo) o capitalismo como a partir dos movimentos de oposição ao capitalismo. Assim, haveria virtualidades negati vas, no sentido mais forte do termo, tanto no capitalism o, como nos movimentos que se lhe opõe. Elas são negativas porque implicam na morte da forma a partir da qual se elas se constituem. Esse “negativo” é diferente do que se encontra em M arx, porque tanto a form a da passagem , como a sua significação geral são diferentes. A significação geral é a da regressão histórica. A forma da passagem não é exatamente a da liberação de pressupostos, pelo menos com as características que ela tem em M arx. O movimento socialista “ libera” uma teoria, que se transform a em ideolo gia, e um program a de liquidação do capital, que serve de pressuposto — ideológi co pelo menos — à construção de uma economia burocrática. (Ou de um partido burocrático, se a m utação for pensada a partir do surgimento do bolchevismo.) O nazismo herda do capitalism o o m odo capitalista de produzir, m as o neutraliza através de um poder político de novo tipo que o domina, e define uma nova forma social. M ais do que liberação de pressupostos, parece haver, nos dois casos, con servação de certas “ peças” , e introdução de elementos novos, que transm utam qualitativamente a totalidade. Reabilitada, de algum m odo, m as no contexto de novas figuras históricas e com base em outra teoria do progresso, a idéia do m ar xismo comum (não do “ melhor” marxismo) de que um sistema contém virtualmente um outro — desde que a virtualidade seja solidária da descontinuidade qualitativa — ganha assim certa verdade147. Interessa muito o caso das mutações regressivas a partir do movimento socia lista, já que, em forma banal e em geral incorreta porque qualitativamente continuísta, o m arxism o explorou muito o tema das virtualidades totalitárias do capi talismo. Seria preciso pensar seriamente nas virtualidades totalitárias do socialis mo. Dir-se-á que hoje todo mundo sabe disto, à direita como à esquerda. Porém à esquerda, pensa-se em geral a “ degenerescência” como coisa da época stalinista, e que portanto pertence ao passado. O ra, não é difícil m ostrar — creio ter dado al guns elementos — que esta virtualidade não vale só para o passado, m as também para o presente, o que significa, para o futuro. O movimento socialista tem que se dar conta de que, pelo próprio fato de se opor ao capitalism o, ele corre um risco constante de um a derrapagem totalitária. Esse risco — ponto importante e mal conhecido — não vem apenas do socialismo estatizante ou do movimento socialis ta alçado ao poder de Estado. Também não se limita à degenerescência dos movi mentos coloniais e nacionais. Ele está também nos grandes movimentos de m assa
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do tipo do de 1968, cuja análise crítica ainda está para ser feita. M esmo gente tão arguta politicamente como Lefort e Castoriadis não avançaram muito nesse pon to. Creio que aí só Edgard M orin — no que se refere à França — foi suficientemen te longe. Esse risco o movimento socialista pode e deve combater. A consciência dele é de resto a pré-condição desse combate. M as se por um lado a idéia da pre sença virtual de novas formas sociais (progressivas ou regressivas) atenua de algum modo as descontinuidades148, de outro, no que se refere à necessidade da p assa gem, seria preciso fazer a correção inversa. A indeterminação teria de ser pensadas de forma muito mais radical. Assim, é preciso de certo m odo, e um pouco p arado xalmente, acentuar a possibilidade geral das passagens e atenuar a sua necessidade. Anteriormente, insisti na necessidade da reformulação da idéia das relações que existem entre o “ m om ento” econômico ou sócio-econômico, e o “ m om ento” político e ideológico, mesmo tal como ela aparece na versão dialética do “ melhor” marxismo. A reform ulação desse ponto está implícita no desenvolvimento imedia tamente anterior. Porém, se quisermos explicitá-la e situá-la, poder-se-ia dizer: as sim como não há mais ordem privilegiada no plano da sucessão temporal (pelo menos lá onde intervêm as “ pequenas” form as), não há mais ordem sócio-lógica privile giada na análise das determinações estruturais. Ela é com plexa, e muda com as formas, de um m odo muito mais radical do que supunha mesmo “ o melhor m ar xism o” . N ão basta assim introduzir a dualidade pressuposição/ posição. E é no quadro dessa reform ulação que é preciso reafirmar a necessidade de caracterizar o capitalism o com democracia, não como “ capitalism o” simplesmente, mas como capitalismo democrático, sem o quê, perdem-se as referências necessárias para uma crítica lúcida. N o que se refere à teoria do progresso — além do que está contido nas consi derações do item precedente — , faço uma observação de ordem geral sobre o mé todo que segui até aqui, antes de resumir os resultados anteriores. Evidentemente, quando falei em “ progresso” (e isso vale em forma geral) pronunciei julgamentos; mas julgamentos desse tipo, independentemente da sua verdade “ pontual” , são le gítimos e essenciais. Eles não são, em termos absolutos, exteriores à história. M as também não são imanente à maneira de M arx. Seria preciso introduzir uma im a nência de uma outra “ ordem ” (no sentido de “ potência” ) (num contexto um pou co diferente, esse problem a reaparecerá logo mais adiante, a propósito da ética e da história). Quanto às “ categorias” do progresso, vimos que foi preciso acrescentar ou tras três figuras à noção marxista-hegeliana de progresso-regressão, a do progres so propriamente, a da regressão, e a do progresso que se Ínflete em regressão; for m as que o m arxism o só conheceu de um m odo atenuado, e como simples variantes do progresso-regressão. O que significa: há um processo progressivo-regressivo que é o do capitalism o democrático. Contra ele, m as a partir dele, surgiu o movimento socialista, que deveria radicalizar a democracia, encarnação do progresso. As socie dades burocráticas foram (e ainda são) uma irrupção de um movimento regressivo a partir desse movimento. Por outro lado, houve (e pode haver de novo) movimen tos puramente regressivos que se desenvolvem contra o capitalism o democrático, a partir dele. Tanto a regressão através do progresso, como a regressão simplesmen
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te, poderiam ter infletido — e sob formas diferentes podem ainda infletir — o cur so da história na direção do totalitarismo. Essas form as “ segundas” se desenvol vem no quadro de uma situação em que as form as capitalistas são dominantes, em que o capitalism o fornece o “ fundo” da história universal (isto é, o quadro geral dessa história). As form as regressivas poderiam ter substituído este “ fundo” (e, no futuro, sob outras m odalidades, é sempre possível que isso ocorra). M as, no século X X , as formas regressivas, mesmo se não estiveram longe disso, não foram suficien temente fortes para se impor como “ fundo” , substituindo o capitalismo. Quanto às forças de progresso, elas devem se instituir como form as no interior do fundo dominante (não há nenhum outro caminho possível). E o projeto socialista é evi dentemente o de que elas se transformem num novo “ fundo” . Introduzo assim uma espécie de dialética do “ fundo” (isto é, do quadro geral da história universal) e da form a (isto é, das form as sociais) — o fundo é também forma m as não toda forma — para pensar o conjunto desses processos. N o que se refere aos aspectos lógicos, isto é, essencialmente à questão da dia lética, não haveria, aparentemente, muito a concluir. N essa introdução não teorizei propriamente a respeito da dialética, mas procurei investi-la. Para a teorização, remeteria em primeiro lugar aos meus outros trabalhos, inclusive os deste volume, o segundo ensaio principalmente. Entretanto, tudo bem pensado, o texto tem uma relação muito direta com o problema da dialética. Além do que veio inserido no interior dos desenvolvimentos substantivos (por exemplo, as indicações sobre a noção de virtualidade, de negação etc.), há uma série de pontos importantes, que devem ser destacados. Desde há mais de vinte anos, minha perspectiva geral tem sido crítica em re lação ao m arxism o, mas não em relação ao pensamento dialético. H á porém uma história da dialética, há dialéticas, e é preciso particularizar. Em textos anteriores — ver sobretudo M LP II e Le Capital et la Logique de Hegel — , insisti sobre o fato de que, de Hegel a M arx, a dialética reabilita de certo m odo o entendimento (mes mo se ele já era “ levado a sério” por Hegel). Escrevi que, com M arx, a dialética “ se abre” para o entendimento, do que resulta um risco de dogm atização (a razão dialética poderia se perder impondo “ leis” aos entendimento), m as o que ao m es mo tempo traz uma vantagem: num movimento inverso, nessa situação, o entendi mento poderia pôr um freio às pretensões especulativas da razão dialética. A esse respeito, citei um texto dos Grundrisse (que até onde estou informado, ninguém havia citado antes, no Brasil ou fora), texto onde se fala que é preciso conhecer os limites da dialética149. N o quadro das análises anteriores, poderíam os acrescentar algum a coisa a respeito desse tema do papel do entendimento150. Figuras dialéticas conhecidas aparecem em vários pontos desta apresentação. M as em que medida a apresenta ção que fiz do que seriam as formas sociais contemporâneas reais e virtuais altera a idéia clássica que poderíam os ter da dialética, digam os, na figura da dialética m arxiana? Creio que o elemento mais importante, do ponto de vista lógico, é o fato de que surgiram formas sociais que se valeram da dialética — sem dúvida uma ca ricatura dela, m as na qual a reconhecemos até certo ponto151 — para “ com por” a
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sua ideologia. Pense-se na ideologia stalinista da grande época, mas a observação tem um alcance mais geral. Observar-se-á que, lá onde uma espécie de “ dialética” se tornou ideologia, a identidade e portanto o entendimento ganham uma outra dimensão crítica. Sem dúvida, como foi assinalado, a crítica dessa ideologia con siste em parte em restabelecer o verdadeiro sentido da dialética. Por exemplo, se a ideologia burocrática afirma que a democracia burguesa é pura ficção e que por tanto é preciso negá-la simplesmente, importa restabelecer o caráter dialético da ne gação que a afeta no interior do mundo capitalista, o que implica concomitantemente dialetizar também o caráter da negação que utiliza a crítica socialista daquela de mocracia. Porém ao mesmo tempo, e sobretudo se pensarmos nas conseqüências que tira a burocracia para justificar as suas próprias instituições, é preciso mostrar que a democracia — agora se trata do projeto democrático em si mesmo, indepen dentemente do capitalismo — não se interverte sem mais em negação da democra cia, como pretende essa ideologia; considerada em si (e ela tem alguma realidade “ em si” , mesmo no interior da forma burguesa), a democracia é igual a si própria: a democracia é a democracia, como a liberdade é a liberdade, elas não são outra coisa. Vê-se que os papéis se invertem: a dialética — sem dúvida a sua caricatura — se torna ideologia, e a “faculdade de identificação", o entendimento , vem a ser instância crítica. Assim, da apresentação anterior, centrada até certo ponto na análise das formas totalitárias, e em particular no “ totalitarismo de esquerda” , resulta uma revalorização do entendimento. Que isto não implica em pôr de lado a dialética, já foi visto: a caricatura tem de ser desconstruída e é a dialética o meio e o resultado desse trabalho. M as descobre-se ou se redescobre a função crítica do entendimento. H á um problema a respeito do destino da dialética, que se coloca a propósito das formas modernas de ideologia no interior do capitalismo, que poderia ter alguma relação com a questão anterior. Também aí o problema é saber se novas formas sociais (dentro ou fora do capitalismo) teriam o efeito de desvalorizar a força crítica da dialética. Se como pretendem os frankfurtianos, no capitalism o mais avançado do século X X , a ideologia como cam ada ilusória tende a se desfazer em proveito de uma espécie de revelação da essência (haveria assim revelação da essência dentro do capitalismo), a dialética que restabelece o movimento contraditório da passagem da essência à aparência não perderia com isto seu interesse e importância enquanto instância crítica?152 A esse respeito, sob reserva de investigações mais detalhadas, poderíamos dizer duas coisas: uma é que, se ocorre de fato esta m anifestação da essência — o que valoriza sem dúvida a categoria da identidade na análise do social — esta manifestação não tem um caráter absoluto, pois ela em geral coexiste com a forma tradicional da ideologia (para dar um exemplo que está “ à m ão” : há uma dose importante de “ cinism o” na ideologia neoliberal, m as ela suporta ao mesmo tempo um discurso opaco, de justificações em termos de racionalidade, de competência, de seriedade etc.). Em segundo lugar, deve-se observar que a dialética não se limita a analisar a passagem da aparência à essência no plano da estrutura sócio-econômica. Assim, a relativa clarificação da aparência, parece coincidir com uma radicalização da dialética da razão (no sentido dos frankfurtianos). A crítica é censurada por “ tabus sem ânticos” instaurados em nome da razão. A análise crítica desse movimento, evidentemente dialética, é aliás um dos motivos principais da crítica de Frankfurt.
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Porém, a dialética está presente da maneira mais m arcada no desenvolvimen to anterior, precisamente no tema do caráter “ não euclidiano” do espaço político. De certo m odo, o que tentei m ostrar é que à política da esquerda atual falta preci samente consciência desse caráter, o que significa, falta dialética. A esquerda atual é mais ou menos inconsciente do fato elementar e ao mesmo tempo fundamental de que há passagens de extremo a extremo. O caminho que vai para a extrema es querda a partir de um certo ponto é um caminho que vai para a direita. Com o di zia Heráclito (a citação desse grande pensador, não me parece forçada nesse con texto): “ o caminho para cima [e o caminho] para baixo são uma [só] e mesma [coi sa]153. Nesse sentido, a dialética está presente do começo ao fim do texto, e a men sagem que ele quer passar é simplesmente a de que a crítica do entendimento tem de ser feita também e sobretudo no cam po da política, ou de que a política da es querda atual é, em geral, uma política do entendimento. Ou resumindo e explici tando: os princípios lógicos-formais devem ser dialetizados também e sobretudo no cam po da política. Assim, para o princípio de identidade: no limite — e toda posi ção política pode ir ao seu limite — uma posição.não é igual a ela mesma. Para o princípio de não-contradição: no limite — e toda posição política etc. — uma p o sição é igual a uma outra que lhe é oposta. Para o princípio do terceiro-excluído: a negação da posição oposta à posição A não reconduz a A, ou popularm ente — verdade elementar que boa parte da esquerda não assimilou: os inimigos de nossos inimigos não são necessariamente nossos amigos. Sobre ética, esboço algum as idéias gerais, retomando as breves considerações da terceira parte e legitimando melhor o que foi dito a propósito de casos singulares na quarta parte. Com o já disse, reina uma grande confusão a esse respeito, tanto no grande público de esquerda como no grande público em geral. E a situação não é muito melhor entre os intelectuais, inclusive entre os filósofos. N a terceira parte, insisti contra o sofism a que consiste em confundir questões particulares, privadas, que não interessam à m oral, com questões individuais que têm entretanto signifi cação universal. Dei como exemplo das primeiras as questões ligadas estritamente à vida sexual, que a opinião vulgar supõe erroneamente como típicas do domínio moral. Como indiquei, com exceção das situações em que há violência (e a pedofilia — observei — é certamente uma violência), o que concerne à vida sexual enquanto vida sexual, é de direito perfeitamente indiferente à ética (ou à m oral, entendida como idêntica à ética). N o segundo caso, o das questões que ocorrem no espaço das relações entre indivíduos m as são de significado universal, tem-se tudo aquilo que escapando embora da ordem jurídica, aparece entretanto — digamos, para dar um critério — como conforme ou não conforme ao preceito kantiano de conside rar o outro também como um fim em si mesmo: por exemplo, a lealdade ou a des lealdade, o respeito ou a traição aos amigos etc. Isso posto, é preciso desenvolver. H á por um lado a distinção entre ética da política e ética “ tout court“ . O m arxism o e o ponto de vista burguês realpolitiker partilham da tese de que a ques tão da m oral em política não é decisiva. Para o m arxism o, a am oralidade é um epifenômeno da política burguesa, para o Realpolitiker são as finalidades políticas que contam, a moral põe-se a serviço delas. A revalorização da democracia recolo-
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ca o problema da ética na política, para além do m arxism o e do Realpolitiker. As diferenças entre a ética da política e a ética “ tout court” não são tão grandes, e elas vão numa direção que parece contrária à que se supõe freqüentemente. Existe uma tendência a empobrecer muito ou esvaziar as exigências que se poderia fazer ao homem político. D aí certas confusões. Discuti anteriormente a anfibolia entre a satisfação do eu — que de direito pode e deve estar ligado ao universal no homem político — e o interesse privado do mesmo. Seria o caso de acrescentar numa m es ma linha de idéias — no sentido de que a opinião vulgar também aqui esvazia muito as exigências e escamoteia o conteúdo — que a “ corrupção” do político não deve ser vista apenas no plano econômico. Pode haver corrupção de político, sem que ele tenha embolsado um só centavo do tesouro público. E é freqüente essa forma de corrupção: o sacrifício dos interesses coletivos e universais, em proveito da ambi ção de poder (de poder individual ou de “ ban do” ) do homem político, que pode não ter nenhum interesse no enriquecimento próprio. N os últimos tempos, ouviram-se muitos discursos demagógicos dos que se jactam da sua m oralidade, por que nunca teriam se apropriado indevidamente de dinheiro público. Isso é condi ção necessária mas bem insuficiente. De um modo geral, poderíamos mesmo dizer, invertendo as aparências, que do homem político se exige mais e não menos do que se deve exigir do não-político, em matéria de ética, ou de subsunção ao universal. Sem renunciar ao interesse privado, mas separando-o da política, o homem políti co, deve, de direito, restringir o papel que aquele tem na sua vida (o que não se exige, ou se exige em muito menor medida do homem não-político). De um modo geral, as confusões a respeito das exigências éticas, confusões muito agravadas pelo avanço do neoliberalismo, vêm do fato de que não se vê que entre, de um lado, o “ angelism o” — isto é a idealização das qualidades éticas do homem — e, do outro, o cinismo e o am oralism o, existe uma terceira posição. O sucesso do amoralism o, às vezes junto a pessoas que supúnhamos capazes de resistir melhor a certos argumentos, vem da perda das ilusões na visão idílica do homem. N um texto que retomei em versões diferentes — situando-me no interior do m arxismo clássico, inicialmente porque era esta a minha posição e depois só com vistas ao problema prévio de elucidá-lo — , desenvolvi uma crítica do humanismo e do anti-humanismo. Desde que adequadamente modificado, esse duplo movimento crítico revela ter um alcance m aior154. Ele se aplica bem ao problema aqui em vis ta, que é o da ética, em geral. A posição idílica é no fundo a do humanismo; o ou tro do humanismo, o anti-humanismo, que, como mostrei, não é implicado pela crítica do humanismo, é o equivalente do que aparece aqui como “ am oralism o” . Observe-se que essa transposição do duplo movimento para o interior do plano da ética implica em deslocar a situação e o estatuto do m arxism o em relação aos dois pólos. N o contexto da minha análise inicial, o m arxism o não aparecia nem como um humanismo (porque ele aceita e prega meios violentos), nem como um anti-humanismo (porque visa uma sociedade não só pacificada mas transparente). Trans posto o problema para o plano da ética — e também à luz da crítica do m arxismo — , o m arxism o aparece apesar de tudo como um humanismo, no sentido de que supõe não haver limites antropológicos para uma sociedade sem leis e sem Estado. Poder-se-ia acrescentar que paradoxalm ente ele aparece também como um anti-
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humanismo, porque propõe a violência (mesmo se legitimada como contra-violência). O m arxism o se perde e ou se desfaz nos dois pólos que ele deveria unificar·, o humanismo e o anti-humanismo. Assim, do ponto de vista ético, seria preciso re cusar tanto a idealização do homem, a idéia de que no limite ele se deixa ou se deixará guiar simplesmente pela razão ou pelo amor, como a “ desidealização” dele, a idéia de que estam os condenados necessariamente a uma prática amoral. Com o sair do dilema? Sem falar na vontade santa, o que se exige não é a ra zão pura e simples nem o amor universal. A existência das pulsões é um limite que põe em xeque esse tipo de representação. Porém isso não significa que estejamos condenados de fato e de direito a obedecer sem mais às pulsões. Precisaríamos de uma forma de conceituação que reconhecesse de fato e de direito a possibilidade de uma instância quase-transcendental, constituída entretanto a partir do eu empí rico m as transcendendo-o, que, sem dominar as pulsões, fosse capaz, dentro de certos limites, de se “ entender” com elas, mesmo que esse movimento pudesse e devesse ser lido também na direção inversa (são as pulsões que “ se entendem” com essa instância)155. De modo mais prosaico, tomo a questão da competição, que está no centro, quando se fala em ética nos meios intelectuais. N ão se trata de não compe tir, todos competem, (por isso mesmo, a expressão, ele é “ competitivo” não tem maior sentido, salvo se explicada). M as nem todos competem do mesmo jeito. Há os que não têm limites, os que legitimam todos os “ lances” e transform am a com petição num fim em si, e há os que, aceitando-a embora como um dado, consideram os riscos em que ela implica para eles mesmos e para a coletividade. Talvez a me lhor fórmula fosse ainda uma vez a que faz apelo às noções dialéticas de posição e pressuposição. E preciso antes pressupor do que pôr a competição. Trabalhando — e sobretudo trabalhando bem — num setor qualquer, estamos sempre competin do. A competição nunca nos é estranha, m as ela não é primeira. Sem dúvida, um nível nulo de competição ou de emulação não é o desejável; de resto, ele é raro. Mas a partir de um certo limite, os efeitos da competição se invertem, e eles desservem em lugar de servir. Isso deve valer em economia, e vale, em geral, nas relações interindividuais. O ideal não é o a-competitivo, mas o que conhece os limites da compe tição, e a necessidade de obedecer a certas regras. O que se recusa a transgredir certas exigências. Claro que na prática isso pode não ser simples, mas a diferença entre as duas atitudes é, apesar de tudo, enorme. A recusa do angelismo e mesmo do huma nismo ético não significa a aceitação do anti-humanismo e do amoralismo. Em relação à ética, outro problema é o do seu lugar, particularmente em re lação à política. A ética — estou convencido — deve necessariamente ser reintroduzida. M as que lugar ela terá? A discussão não se situa agora no nível da relação entre o eu e o universal, mas propriamente no quadro da luta política nacional ou internacional. Isto é, não se trata da oposição entre o eu e a política pensada como o universal, mas entre a política e a universalidade ética (aqui a política não repre senta mais, ou não representa mais plenamente, o lado do universal). A questão que se propõe é sobretudo a da relação entre meios e fins da ação política. H á hoje uma tendência a fundam entar a política na ética ou, de novo, no contrato. Quanto a essa última tendência, creio, a contrapelo, que o modelo de M ontesquieu — que era aliás um modelo muito estimado entre as filosofias políti-
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cas do século XVIII, tanto por Hegel como por M arx — é melhor do que os m ode los contratualistas. Montesquieu não fundamenta; há entretanto uma instância crítica que se reconhece no movimento mesmo da sua leitura da história. Quanto a uma ética fundante. Quando se pensa em fazer a crítica do m arxis m o, freqüentemente se pretende substituir o julgamento que se fundamenta nos objetivos políticos últimos (a praxis em direção ao comunismo como legitimação dos atos) por um fundamento ético. A solução é imperfeita. A relação entre ética e história não pode se resolver introduzindo sem mais um fundamento ético da ação histórica. A história está em curso, é preciso de certo modo “ acom panhá-la” 156. H á atos em parte justificáveis em parte não, há graus de legitimidade, construídos a partir de uma apreciação com plexa157. H á de fato o que se chamava de dialética dos meios e dos fins. (Isso, diga-se de passagem , não tem nada a ver com conces sões a interesses pessoais. O sofism a dos que abrem a via da amoralidade é proje tar a dialética complexa dos fins e dos meios, para uma dialética muito ambígua entre interesses universais, e interesses pecuniários ou de poder individual158). É a existência da dialética dos meios e dos fins que faz com que a resposta ao amoralismo não possa ser o m oralism o159, e que obriga a pensar o problema da relação entre ética e história a partir da crítica do moralismo e do anti-moralismo. M as essa dupla crítica não tem mais o sentido que tinha no m arxism o (pelo menos o seu sentido implícito). Devemos “ acom panhar” a história, mas não aceitá-la, mesmo nos limi tes, do hegelianismo e do m arxism o. Se é da história que partim os, e não da legis lação moral, é preciso julgá-la (sem entretanto perder de vista o caráter “ contradi tório” da ação histórica). Há alguma coisa como um realismo, mas com bases éti cas. O que isso significa em termos teóricos mais rigorosos? A ética está “ lá ” , ela nos acom panha sempre, mas não recorremos a ela para recusar a violência como contra-violência, ou dar regras absolutas para julgar cada ação histórica. Em ana logia com o fato de que em M arx os objetivos finais eram pressupostos e não pos tos, isto significaria que devemos pressupor, sem pôr, as exigências éticas? De fato, obtém-se essa resposta numa primeira aproxim ação, mas também ela é insuficien te. Se de fato a ética tem de ser pressuposta, ela é pressuposta, para ser posta nos momentos limite. Há ações, no plano da política, que não podem ser praticadas, mesmo se elas servem a objetivos legítimos — mais do que isto — mesmo se, feitos os cálculos (ou certos cálculos), elas implicariam no sacrifício de um número me nor de vidas humanas do que se teria na sua ausência. N ão é certo que morreria menos gente se bom bas atômicas não tivessem sido lançadas no Jap ão (menos ci vis já é mais duvidoso). Porém isso não justifica os bombardeios de Hiroshima e N ag asak i160. Ou então, são moralmente exigíveis ações inúteis do ponto de vista político, pelo menos em primeira instância, mas que são obrigatórias em termos dos direitos do homem. Por exemplo: o bombardeio das câmaras de gás, a que se recusa ram os “ aliados” . Aqui se reproduz um pouco a situação do indivíduo. H á um h o« possum us que deve ser invocado. Uma espécie de irrupção da ética exigível em determinados momentos; nos outros, ela não está ausente, mas não pode ser posta. Chego com isso ao final dessa introdução. Esse volume, está separado do se gundo por mais ou menos quinze anos. N esse período, os acontecimentos mais
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importantes devem ter sido, para marcar datas, o acidente de Chernobil (prototipo de outros acidentes nucleares ou em geral industriais) (1986), a queda do M uro de Berlim (1989) e a série de atentados terroristas nos Estados Unidos (11 de setem bro de 2001) e suas conseqüências. O segundo deles m arca o fim do “ im pério” de pelo menos um certo tipo de sociedade burocrática, o primeiro assinala uma gran de catástrofe civil com o uso das energias novas, e o último a interseção entre o surgimento de novas técnicas161 e a formação de setores altamente fanatizados no seio das ideologias religiosas que existem nos países “ periféricos” . O primeiro e o terceiro anunciariam o mundo que nasce, o segundo o final de um período ante rior. N a realidade, o segundo não fecha a historia das degenerescências da esquer da, mas fecha provavelmente o capítulo da forma que foi dominante no século X X , o burocratismo estatal anti-capitalista162. Outras formas poderão surgir, como já surgiram, por exemplo as que vêm dos próprios movimentos de m assa e não pas sam necessariamente pelo Estado. O terceiro acontecimento se situa na esteira da guerra fria e do seu final. M esmo se não deriva deles, a sua emergência foi facilita da tanto pela guerra fria (em seu quadro, americanos e russos alimentaram positi va ou negativamente os monstros que hoje se erguem) como pelo fim dela (o con trole se tornou, em conjunto, menor). Minhas considerações finais não podem se limitar à política, embora seja pre ciso dar a esta última um lugar importante, com as suas implicações éticas e “ histórico-filosóficas” , e privilegiando o presente imediato. Retomo antes o problema da ética. Com algumas exceções (Schopenhauer, Bergson) a ética teve má fama entre os filósofos, como entre os não-filósofos, mais ou menos desde Kant e Fichte até pelo menos os anos 70 do século X X . Segundo uma referência clássica, “ a ética é a impotência posta em ação ” . O m arxism o, o nietzscheísmo, a psicanálise vulgar e o bom senso burguês dão as m ãos para denunciar sua impotência ou sua hipocrisia. Hoje há um renascimento da ética; resta saber a que ele nos levará. — A ética seria assim impotente. A esse respeito, duas observações. A primeira é que a política não se revelou mais potente do que a ética e a ética pelo menos não teve efeitos negati vos. (Com isto, não quero evidentemente condenar a política, só dizer que ela tem seus grandes riscos e que, além disso, é inútil esperar tudo dela.) A segunda é que se há uma “ im potência” da ética, ela é muito maior se a dissermos impotente. N ão entro nos detalhes desse reforço bem conhecido, que interessa à pragm ática mas interessa também à dialética. Se a ética for levada a sério, ela não se torna onipo tente, mas o seu estatuto prático se altera essencialmente. Antes de tudo, é preciso dizer que ela importa e não é impotente, mesmo se os seus efeitos são limitados. Nesse sentido, creio que a primeira coisa a fazer é repetir as palavras do “ chinês de Königsberg” : “ De tudo o que é possível pensar no mundo e mesmo fora dele, não há nada que possa sem restrição ser considerado como bom, a não ser, somente, uma boa vontade” 163. Os que pretendem hoje “ executar” a filosofia deveriam me ditar um pouco sobre esse texto. Aparentemente não há aí mais do que palavrório edificante. M as a verdade é que essa aparente banalidade foi objeto de um verda deiro “ recalque” por parte das m aioria das tendências dominantes do pensamento contemporâneo. Ao escrever essa frase, Kant opera uma verdadeira “ redução” ao transcendental, redução a que se recusam os sociologismos, psicologismos, m as tam
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bém os ontologismos dominantes. Esse texto é precioso, e a partir dele se pode re pensar a ética. A meu ver nem mesmo os frankfurtianos, que entretanto reabilita ram a teoria “ da vida ju sta” , a encararam com a independência necessária, no sen tido de que apesar de tudo, o notável discurso adorniano sobre a vida justa, per maneceu a meu ver um pouco ligado demais ao macro-social. Seria preciso liberar, o que não significa separar completamente, m as dar a necessária autonom ia, o es paço do micro social. (Dir-se-á que desde Foucault, tudo isso é conhecido. Enga no. Foucault explorou alguns aspectos. M as, entre outros problem as, seu trabalho foi limitado: 1) por uma atitude unilateralmente anti-aufklärer. A diferença entre Foucault e Adorno é que este último é, no melhor estilo dialético, ao mesmo tempo anti-aufklär er e anti “ anti-a ufklär er” ; e 2) por uma leitura muito insuficiente do macro-social. A “ liberação” do espaço micro-social exige, não tão surpreendente mente, uma crítica muito lúcida do macro-social. Ela não o é suficientemente em Foucault.) Se pode haver alguma esperança, ela deve vir tanto de uma ética como de uma política. A ética sem política é, sem dúvida, alguma coisa, mas de fato não é muito. A política sem a ética — isto é menos reconhecido — também deixa muitos pro blemas em aberto. E possível pensar uma sociedade mais ou menos “ reconciliada” em que os indivíduos não seriam muito felizes. Basta supor um mundo sem “ boa vontade” , o que pode existir mesmo numa sociedade que funciona bem. Podemos imaginar uma cidade bem organizada, mas onde a vida interindividual seria povoada por “ cabalas” de gente sem boa vontade. Só um macro-sociologismo ingênuo pode excluir essa possibilidade. Descartes tem inteiramente razão quando dá à moral e à medicina um lugar privilegiado na sua árvore da filosofia164. Política, moral e me dicina são os pilares sobre os quais se apóia a possibilidade de uma saída feliz para o gênero humano. Schopenhauer observa, sem exagerar muito, que “ um mendigo são é mais feliz do que um rei doente” 165. Perguntaram a Frederico Engels, alguém de muito coragem e de interesses universais, o que era para ele a pior das coisas. Ele respondeu: ir ao dentista. Engels vivia numa época “ bárb ara” em que a visita ao dentista, inevitável no decurso de uma vida, implicava em tortura. N ós vivemos numa época menos bárbara, mas ainda bastante, em que, nos países mais avança dos, ainda se morre de doença aos 40 e aos 50 anos. Uma política justa bem-sucedida permitiria que se desse alimentação, educação e saúde a todo mundo, e poria um ponto nos delírios do “progresso” (assim, seria possível combater os acidentes de automóvel, sucedâneo, na matança dos nossos jovens, das febres e da tísica dos jovens do Rom antism o); mas só progressos substanciais na medicina166 evitariam o que ainda existe de bárbaro na limitação dos meios de que dispomos para enfrentar a doença e a m orte167. Que podem os esperar (pergunta até aqui kantiana), no plano político, nesses primeiros anos do terceiro milênio? Impossível não retomar ainda uma vez, para concluir, o processo que se inicia com as ações terroristas do 11 de setembro. O que se teve, já disse, foi como que um “ desenvolvimento com binado” de caráter negativo. N a situação do imediato após 11 de setembro, que vivemos, temos de um lado, uma m isteriosa galáxia fundam entalista e terrorista; de outro, os grandes
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poderes, americanos em primeiro lugar, mas também R ússia e China, além da Eu ropa. Formou-se uma coalisão contra o fundamentalismo. Essa luta serve o mun do pelas razões que indiquei, m as, ao mesmo tempo, os motivos dos grandes pode res são duvidosos: eles passam também pelo petróleo, gás, e opressão nacional. Assim, o que seriam fatores de legitimação da guerra contra o terrorismo vem aco plado a motivos ilegítimos. De um lado, o perigo que representa para todos o ter rorismo — que não é produto dos imperialismos, embora este facilite a sua tarefa — é imenso168. Destruir mesmo se só o seu núcleo, não hesito em dizer, será posi tivo. M as a intervenção só se justifica para além desse objetivo, se ela visar dar apoio aos movimentos que lutam contra o poder fundamentalista, e se ela for travada tendo em vista a vitória das forças mais democráticas. O que im porta, já dissse, não é sempre evitar as intervenções (embora, quando legítimas, o normal seria que a O N U e não os EUA as praticasse). Conforme o caso, uma intervenção se justifica e a abstenção é criminosa ou vice-versa. O que interessa é o caráter das guerras, e tam bém dos após-guerra. Se os americanos continuarem a intervir (ou não intervir) para ajudar o trabalho das suas multinacionais, ou para garantir, por quaisquer meios, o acesso às energias que garantem sua economia de desperdício, a vitória sobre o terrorismo não trará um grande saldo169. Também se russos e chineses a aprovei tarem para liquidar os seus chechenos, tibetanos, ou muçulmanos da China, e se os governos ocidentais utilizarem o motivo da luta anti-terrorista para impor legis lações repressivas, o que já está acontecendo. E uma suposição ingênua a de que possa haver uma m odificação no estilo da política internacional dos grandes, e em particular dos am ericanos? N ão creio, embora esta seja a alternativa otimista (mas é improvável um curso favorável sob uma administração, como a atual, visceralmente ligada aos grandes interesses pe trolíferos). H á uma probabilidade real de que tudo continue como antes. Porém acho que há alguma esperança, a médio prazo, no sentido de que depois do 11 de setem bro ficou claro que o interesse bem entendido dos grandes, em particular dos ame ricanos (o enlightned self interest), os convida a alterar pelo menos em alguma medida a sua política. De resto, não esqueçamos, como se faz freqüentemente no interior da esquerda, que há tendências diversas (mesmo se as diferenças às vezes se esva em) no interior dos partidos dominantes nos EUA. Os acontecimentos mostram que os fortes não podem fazer o que querem (triste que seja preciso o massacre para que isso se evidencie), que eles pagam um preço pelo que fazem — se os fundamentalistas não agem contra a injustiça, eles se apóiam na injustiça e dela se alimentam — e que, como já escrevia em algum lugar dos seus Estudos sobre a história do pensamento político o velho Charles E. Vaughan, às vezes uma conduta mais ética é também a mais útil do ponto de vista do interesse próprio. A conjuntura teve pelo menos um efeito positivo170. Esses efeitos poderiam ser reforçados por pressões populares, cf. não só a guerra do Vietnã, mas também as reações das feministas americanas contra os namoros do governo americano com os talebans. Claro que isso é compensado pelas necessidades reais ou supostas da coligação: tenta-se falar o menos possível do que poderia incomodar russos, chineses ou paquistaneses. (Há também um risco simétrico: ganha a guerra, o governo americano voltaria a prati car uma política isolacionista-intervencionista — o oxím oro se impõe a propósito
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do perfil da atual administração — sem se preocupar com o que pensa o mundo.) M as se entrevê pelo menos um caminho, que no fundo seria aquele que Kant des crevia (como uma possibilidade): a de que os interesses egoístas bem entendidos levassem não a Estados éticos, mas a Estados que agiriam de maneira convergente com a ética (pelo menos em muito maior escala do que o que ocorre hoje), e isto, repito, por motivos não-altruístas171. Aqui é a partir de Kant mais do que de M arx, que um futuro menos terrível é pelo menos pensável172. Este é apenas um aspecto, que não representa em todo caso concessão à Realpolitik, mas exigência de realis mo. O outro aspecto é o das lutas por uma democracia socialista. A queda do “ im pério soviético” é auspiciosa, não porque, como pretendem alguns, ela seria um índice da crise do capitalismo (!), mas porque ela liquida uma “ hipoteca” da es querda. Com o império “ com unista” destruído, é possível argumentar com mais clareza, e com menos risco de ser mal entendido. E o processo que se inicia com o 11 de setembro, por sua vez, obriga a pensar. Ele será fonte de novas confusões talvez, mas pode servir também a uma clarificação. Do lado da esquerda, há em geral dois perigos. De um lado, o de confundir crítica do capitalismo e crítica de democracia, sob pretexto de que a democracia seria a forma política do capitalismo. N ad a mais funesto. A idéia de que o capita lismo (e mais ainda o capitalismo democrático) seria o mal absoluto — isso resu me todo o meu argumento — tem as piores conseqüências: o capitalism o é, sob muitos aspectos, um “ m al” , m as, se ele for visto como a forma absoluta do mal, não veremos o mal absoluto, ou pelo menos tudo aquilo que é pior do que o capi talismo democrático173. Seria preciso que as novas gerações e também as mais ve lhas tentassem repensar o fenômeno hitleriano e também o burocrático, ou as de formações da esquerda em suas várias formas e como virturalidade no presente. Um e outro são muito mais atuais do que se pensa. Em geral, não há espaço na cabeça de uma parte da esquerda para esse tipo de objeto: a única possibilidade é vê-los respectivamente como simples variantes do capitalism o, e como deformações p as sadas e arqui-datadas da “ transição ao socialism o” . Com essa atitude, não há lu gar para pensar os horrores que a história ainda pode nos oferecer. Hoje temos no mundo o triunfo — que não é entretanto um triunfo absoluto — de um capitalis mo que é ao mesmo tempo (imperfeitamente) democrático e imperialista. N ão nos esqueçamos que coexistem com ele outros poderes, embora menores mas não des prezíveis em termos de força: um capitalismo autocrático (o russo), um capitalis mo que em grandes linhas pode ser chamado de totalitário (o chinês) — que oferece grandes riscos — , e finalmente democracias capitalistas, em processo de semi-unificação (Europa) de um estilo muito mais avançado que o capitalism o americano, apesar de certas ameaças de retrocesso por ora locais (Áustria, Itália). Acrescentese a isto, not the least, a periferia, com suas desigualdades gigantescas, a corrupção profunda dos seus governos, a decom posição progressiva da própria vida civil no interior das grandes cidades, e com movimentos de “ resistência” muitas vezes in teiramente “ degenerados” ou simplesmente regressivos. E preciso pensar esse con junto, e não apenas o Império, embora o peso dos americanos seja de fato extraor dinário, mesmo em termos do conjunto da história. H á assim um risco de a esquerda não ver — isto é, não conceituar na sua especificidade essencial — tanto as formas
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de degenerescência do capitalism o, como as dela mesma, esquerda. N ão ver o que as diferenciam respectivamente, do capitalism o democrático, e do projeto demo crático socialista. Infelizmente a leitura monista simplicadora continua sendo a regra, mesmo em alguns bons espíritos. 0 outro perigo que a esquerda enfrenta é o erro simetricamente inverso. O de apagar as diferenças entre a democracia socialista e a democracia capitalista. Esta última, mesmo representando um progresso em si por causa da sua forma política, e por imperfeita que ela se apresente, contém pelo menos virtualmente uma con tradição interna (não é preciso insistir que esta contradição é enorme no interior de um capitalism o periférico, corrupto, criador de enormes desigualdades —- e pro duzindo uma burguesia arrogante — como o brasileiro). O neoliberalismo com seus cortejos de desastres e horrores agravou e pôs ã mostra essa contradição. As pseudosocial-democracias nacionais, corroídas pela tolerância em relação à corrupção, foram seduzidas por ele e lhe abriram caminho. Seria preciso entender que entre o burocratismo pseudo-socialista e o neoliberalismo democrático-capitalista, há uma outra possibilidade. M as esta possibilidade, espero ter m ostrado, não é a que o m arxism o oferece, embora elementos dele devam ser conservados e o m arxism o subsista como “ m om ento” 174. Grande teoria crítica do capitalism o, sobretudo na sua forma clássica, o m arxism o não oferece uma visão da história suficientemente lúcida tanto do ponto de vista propriamente histórico, como do ponto de vista antropológico, e o que ele pode dizer sobre as form as sociais, por muito brilhante que seja nos melhores textos, é insuficiente e mais do que isso perigoso — porque semeia confusão — para pensar as form as sociais contemporâneas. N ão são tam bém os neo-anarquismos mais ou menos proféticos e simplificadores que nos ofe recem saídas. Sobre o fundo da negação do m arxism o, m as aproveitando as suas lições, e ocupando um espaço que é ao mesmo tempo o da ética e o da política, e o do investimento de uma lógica crítica, há lugar para um pensamento — um “ pensam ento-ação” — lúcido e sem concessões, radical e ao mesmo tempo realista, so bre a história e o homem do nosso tempo. São Paulo, setembro de 2001 Paris e Boulogne-Billancourt, outubro e novembro de 2001
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1 Parte da prim eira seção do mesmo texto foi, por sua vez, apresentada em conferência, no quadro do Coloquio sobre a Ideologia alemã organizado pelo Centro Acadêmico de Filosofia prof. Jo ã o Cruz C osta, em com em oração do centenário da Ideologia alemã (conferência gravada em vídeo pelo mesmo Centro Acadêmico, 1997). Uma outra versão reduzida do mesmo texto foi p u blicada por M ais! (suplemento da Folha de S. Paulo) de 4/4/2001, sob o título “ Sobre o lugar da Ideologia alemã na obra de M arx. —- Desde o ano em que foi defendida (1989), minha tese de livre docência (que contém o conjunto desse primeiro texto e tam bém do terceiro, desse volume) foi posta à disposição do público, na USP. 2 Tratei desses pontos em textos anteriores, embora de form a m ais ou menos breve, princi palmente nos seguintes: Introdução a Marx: Lógica e Política, vol. I, São Paulo, Brasiliense, 1983,
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2 a edição 1987, abreviarei por M LP I (o segundo volume, ibidem 1987, abreviarei por M LP II); “ Sur la politique de M a rx ” , posfácio a Le Capital e la Logique de Hegel, dialectique marxienne, dialectique hégélienne, Paris, L ’H arm attan, 1997, publicado em português na revista Dissenso, São Paulo, H um anitas, FFLCH -USP, n° 2, primeiro semestre de 1999, tradução de Sílvio R osa Filho; e na entrevista que dei a M arcos N obre e Jo sé M areio Rego (orgs.), em Conversas com filósofos brasileiros, São Paulo, Editora 34, 2000. 3 Ver a respeito, sobretudo, o primeiro ensaio de M LP II, além do primeiro ensaio do pre sente volume. 4 Além de M LP II (São Paulo, Brasiliense, 1987), ver a respeito tam bém o meu livro A pro dução capitalista como circulação simples, dialética marxista, dialética hegeliana (São Paulo, Brasiliense e Paz e Terra, 1997) — esse livro representa a prim eira parte de um texto m aior, de que Le Capital et la Logique de Hegel (op. cit.) representa a terceira. 5 Ver a esse respeito, a introdução a M LP I.
6 Ver sobretudo Karl M arx’s Theory o f Revolution, de H al D raper, New Y ork, M onthly Review Press, 4 vols., 1977-1990. 7 Ver por exemplo M LP I, ensaio I, e a segunda parte do último ensaio do presente volume. 8 Aquém do problem a da ética da política, que na realidade será nessa Introdução Geral o da ética na política, existe (fora o problem a da ética individual, de que falo logo em seguida) a questão da ética da política no sentido m ais geral, ou dos fundamentos da política: esta última série de questões remete ao problem a do estatuto da crítica (em M arx), da junção entre a crítica com o análise teórica, e a crítica como julgam ento do sistema e abertura para a ação. E ssa conste lação, também ausente da terceira parte dessa Introdução Geral, será discutida na parte final do último ensaio (IV) deste volume. 9 Ver a respeito Jacques Texier, Révolution et démocratie chez Marx et Engels (Paris, PUF, 1998), principalmente o capítulo “ Le passage pacifique au socialisme dans les pays anglo-saxons” , p. 337. Entre os textos m ais im portantes a respeito do problem a estão o artigo de M arx “ Die Chartisten” (“ O s cartistas” ), publicado pelo New York Daily Tribune de 25 deagosto de 1852 (M arx-Engels, Werke, Berlim, Dietz — abreviarei por W — , vol 8, p. 342), o discurso que M arx pronuncia em Am sterdã em 8 de setembro de 1872 relatando os resultados do Congresso da Inter nacional (W 18, p. 159) e o prefácio de Engels à edição inglesa do Capital (1886) (W 23, p. 36). 10 Aqui o “ im plícito” tem só em parte o caráter técnico do pressuposto. Dentro de certos limites, a ética da política m arxista poderia ser justificada no interior do m arxism o. E se não M arx e Engels, os m arxistas tentaram fazé-lo. Veja-se por exemplo — em geral para o melhor e para o pior, respectivamente — A moral deles e a nossa (que Merleau-Ponty comenta com simpatia) e Terrorismo e Comunismo, am bos de Trotsky. Para a crítica deste último texto, ver meu artigo “A polémica sobre o poder bolchevista — Kautsky, Lenin, Trotsky” , revista Lua Nova, revista de cultura e política, São Paulo, n° 53, 2001. 11 Eric H obsbaw m escreve a respeito “ (...) Frederico Engels condenou os fenianos irlande ses (que tinham sua sim patia) por colocarem uma bom ba em W estminster Hall, arriscando a vida de transeuntes inocentes” (“ Barbárie: o guia do usuário” , in Emir Sader (org.) O mundo depois da Queda, trad. J. França, São Paulo, Paz e Terra, 1995, p.18). D a mesma forma, H obsbaw m afirma em “ Politische Gewalt und ‘politischer M o rd ’ : zu dem Beitrag von Franklin F ord” (in M . J. M om msen e G. Hirschfeld, Sozialprotest, Gewalt, Terror, Stuttgart, 1982, p. 25) que “ nos anos 1880 Friedrich Engels se indigna profundamente com os irlandeses, porque eles (...) m atavam não-participantes. Ele acreditava que também os revolucionários devem se com portar com o soldados e só m atar os seres humanos contra os quais eles lutavam efetivamente” . M as em nenhum dos dois textos, H obsbaw m dá referências. Eis o que encontrei nos textos. Em 13 de dezembro de 1867 revolucio nários irlandeses provocam uma explosão p ara tentar libertar um militante aprisionado na prisão londrina de Clerkenwell. A tentativa fracassa, há alguns m ortos e m ais de cem feridos (ver nota dos editores em W vol. 31, p. 679, n. 466; ver também R. V. Com erford, The Fenians in Context...
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Dublin, W olfhound Press, 1985, p. 149). M arx comenta assim o evento: “ Esse último ‘exploit’ dos fenianos em Clerkenwell é urna grande tolice (Dummheit). As m assas de Londres, que m os traram m uita sim patia pela Irlanda, ficarão furiosas com isto e serão jogadas nos braços dos par tidos do governo. N ão se pode esperar que os proletários londrinos se deixarão explodir pela honra dos em issários fenianos” (W 31, p. 409, carta a Engels de 14/12/1867). Engels é ainda m ais vio lento: “ A tolice de Clerkenwell foi evidentemente obra de alguns fanáticos especializados; é a des graça (Pech) de todas as conjurações, a de conduzir a tais tolices porque ‘de qualquer m odo [é preciso] que algum a coisa aconteça, que se faça algum a coisa’. De resto se fez muito barulho na América com esse capítulo de explosão e incêndio, e então chegam alguns asnos e cometem tal idiotice. E com isso esses canibais (Menschenfresser) são em geral os maiores covardes (Feiglinge) (...) a idéia de libertar a Irlanda, pondo fogo numa alfaiataria de L on dres!” (W 31, p. 4 13, 414, carta a M arx, de 16/12/1867). Ver comentários a respeito em Walter Laqueur, Le Terrorisme (trad, francesa de P. Verdun, Paris, PUF, 1979, pp. 75-6). D o mesmo m odo, comentando o atentado de 6 de m aio de 1882 no Phonix Park de Dublin, que custou a vida ao ministro para a Irlanda, Lord F. Cavendish, e ao seu adjunto (ver W 35, p. 4 77, n. 66), M a rx escreve: “ O ‘ato heróico’ de Phenixpark aparece se não como pura tolice, sem dúvida com o pura ‘propaganda pelo ato’ [de estilo] bakuhnista, fanfarrão [e] sem finalidade” (W 35, p. 339, C arta a Engels de 26/6/1882). Em 24 de janeiro de 1882 houve um triplo atentado em Londres, que Engels comenta nos seguintes termos: “ [Trata-se de] atentados que visavam o Legislativo na C ám ara dos Com uns, o Judiciário em Westminster Hall e o Executivo na Torre. Desta vez não se trata m ais de explodir privadas ou aterrorisar viajantes do metrô. Tem-se agora um ataque concentrado contra os três grandes pode res do Estado, sim bolizados pelos edificios em que eles se situam ” (W 36, p. 276, carta a Lafargue de 25/1/1885). N a continuação, Engels se pergunta se são fenianos remanescentes que o pratica ram , ou se ele é “ o grande golpe de que necessita o Tzarism o p ara obrigar a Inglaterra a aderir à sua liga contra-revolucionária” . — Esses textos não significam que M arx e Engels condenem to dos os atentados (o que, aliás, de um modo geral, não é criticável: quem poria em dúvida por exemplo a legitimidade ética de um atentado contra Hitler?, e talvez, com Edgard M orin — ver suplemen to de Le Monde de 22/11/2001 — se deva recusar a um ato de resistência, em geral, a qualificação de “ terrorista” ). M arx tende a justificar “ naturalizando” os atentados contra a autocracia russa, opondo-os à infantilidade dos atentados no ocidente: ver a carta à sua filha Jenny de 11/4/1881, em que ele com para os dois casos. N essa carta, em que, a propósito do julgam ento dos autores do atentado de 13 de m arço de 1881 que custou a vida a Alexandre II (os acusados foram condena dos à morte e, com uma exceção, executados), M arx comenta o M anifesto do Comitê Executivo da organização revolucionária Narodnaya Volia dizendo: “ (...) eles (...) se esforçam por ensinar à Europa que o seu modus operandi é um m odo de ação especificamente russo [e] historicamente inevitável, sobre o qual podem os m oralizar (moralisieren ) tão pouco — a favor ou contra — como a propósito do terremoto de C h ios” (W 35, p. 179). (Ver a discussão sobre as possíveis am bigüi dades da posição de M a rx e Engels a respeito em W. Laqueur, Le Terrorisme, op. cit.).
12 Ver a respeito, o primeiro ensaio deste volume. 13 Portanto, a crítica mesmo do “ melhor” m arxism o não significa que nada seja aproveitável no corpus m arxiano. O próprio fato de que me situo no interior da tradição da dialética já impli ca em conservar com o “ m om ento” algum a coisa do m arxism o. N a realidade, o modelo dialético que me serve de referência é — junto com a dialética de Adorno, que tem relações com plexas com o m arxism o — m ais o da dialética de M a rx do que o da dialética hegeliana. D ada a im bricação entre form a e conteúdo, im bricação que não é entretanto total, isto implica em “ salvar” alguma coisa também do conteúdo do m arxism o. O balanço final exigiria uma análise crítica do capita lismo contem porâneo, análise que, nesse texto, pus intencionalmente entre parênteses. 14 Ver a respeito o primeiro ensaio deste volume. 15 Curiosam ente, se p ara a redução da opressão tem-se um termo positivo — “ liberdade” , para a redução da exploração parece faltar um conceito positivo perfeitamente inequívoco.
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16 N o que se refere à história extern a, certos tex to s — ver a Ideologia alemã — d irão que a liberd ad e só aparentem ente au m en ta. 17 P recisão. N ã o é necessário dizer sem pre “ cap italism o d em o c rátic o ” , m as é preciso pensálo assim (lá on d e existe cap italism o e d em ocracia). N esse te x to , direi alg u m as vezes, sim plesm en te “ c a p ita lism o ” . A relação do cap italism o com a dem ocracia é co m p le x a. N ã o se trata de afir m ar que ele é indiferente à d em ocracia, há cap italism o s n ão -d e m o crático s, m as de certo m o d o — m esm o se a relação p o d e se inverter — o cap italism o tende h istoricam en te (através d as lu tas, sem d ú vida) à d em ocracia. A ssim há u m a certa v erd ad e em su sten tar que h á u m a relação interna entre as d u as c o isas. M a s a co n clu são que se deve tirar d essa o b serv ação é diferente, sen ão o p o sta , da que tira o m arx ism o (excetu an d o em b o a m ed id a o que escreve E ngels nos seus ú ltim os an os). Pri m eiro, se o cap italism o tende de certo m o d o à d em o cracia, a recíproca n ão é verd ad eira. A d em o cracia n ão im plica em cap italism o . P recisam ente p o rq u e a u n ião entre cap italism o e dem ocracia in dica u m a contradição interna, que, diferentem ente do que pen sa M a r x , n ão é u m a co n trad ição m ais ou m en os inerte e infecunda d o sistem a, m as a co n trad ição verd ad eira, a co n trad iç ão cria d o ra p o rq u e n egativa do sistem a. (Para M a r x , a co n trad iç ão criad o ra, que d eterm in aria a m orte do sistem a, seria a lei ten dencial p o r um lad o , e p o r o u tro , no p lan o sócio-p olítico, som ente a que n asce da o p o siç ã o de classe.) V oltarei a isto. 18 V er C orn élius C a sto ria d is, Les Carrefours du labyrinthe, (2) Domaines de l’homme (Pa ris, Seuil, 1 9 8 6 , p . 1 0 7 ), Les Carrefours du labyrinthe, (3) Le monde morcelé (Paris, Seuil, 1 9 9 0 , p. 1 6 5 ), Les Carrefours du labyrinthe (4) La montée de l’insignifiance (Paris, Seuil, 1 9 9 6 , p. 62), Les Carrefours du labyrinthe (5) Fait et à faire (P aris, Seuil, 1 9 9 7 , p. 6 4 ), Les Carrefours du labyrinthe, (6) Figures du pensable (Paris, Seuil, 1 9 9 9 , p . 156). 19 A d istin ção relativam en te à p o siç ã o de M a r x é sutil. P ara M a r x , essa d em o cracia vale p elo que ela an u ncia. Sem dú vid a, essa d em ocracia im perfeita vale pelo que an u n cia. M a s, m esm o que n ão m u ito, ela vale tam b ém em si m esm a. M a r x p o d eria no lim ite aceitar e ssa ú ltim a afirm a çã o , po rém , nele, esta afirm ação é em gran de m ed id a “ d e v o r a d a ” p ela p ro jeç ão d o futu ro. 20 E ssa ú ltim a o b serv ação n ão quer dizer que o ad jetivo “ d em o c rátic o ” n ão tem im p o rtân cia, m as ap en as que, de direito, ou virtu alm ente, pode-se se p arar u m a co isa da ou tra. 21 Esse esquem a será am pliad o m ais adiante. Além do p ro gresso , d a regressão e do p rogressoreg ressã o , será possível acrescen tar ain d a u m a q u arta d im en são. 22 Isto é, não é a d eterm in ação “ d e g e n e rad a” , co m o verem os, que represen ta propriam en te um p rob lem a. 23 Isto se o p red icad o “ d eg en e rad o ” valer efetivam ente co m o u m p red icad o , de u m sujeito que perm anece p o sto (a sociedade de tran sição ao socialism o). Se ele indica p assag e m a ou tra co isa, a e x p re ssão gan h a im p o rtân cia; m as ela tem de ser an a lisa d a e ex p licitad a. 24 V er a respeito, M L P II, apên dice II ao en saio 2 , p. 1 9 5 ; e o en saio 1. 25 É preciso rever o co n teú d o d a “ sociedade re co n ciliad a” , o que im plica tem atizá-la (criti cam ente), p ô -la. M a s a sim ples p o siç ão dela sem alte raç ão do co n teú do só ag ra v a o p rob lem a. 26 C o m o sem pre, a estru tu ra da argu m en tação é, em b o m sentido, creio, circu lar; p o d e ría m os partir desses resu ltad os. 27 F alei dessa d ialética da ju stificação da violência co m o contra-violência em M L P II, ver p. 3 0 2 ss. O b serv o que o tem a tam b ém se encontra em Sartre. 28 Ver o m eu “ A polêm ica sobre o pod er bolchevista (K autsky, Lenin, T ro tsk y )” , artigo citado. 29 C reio que seria b an alizar o p ro b le m a, ten tar introdu zir as distinções n ecessárias através d a diferenciação entre ética e m oral. Por razões que seria longo discutir aqu i, é m ais rigoroso, m esm o se m ais co m p lex o , n ão distinguir ética de m o ral, m as sim d ois níveis, um que in teressa à ética (ou m o ral), e ou tro que n ão interessa. 30 R efiro-m e a d iscu rsos da é p o ca, n ão à evo cação recente e h on esta d o p ro b le m a p o r um an tigo m ilitante, e v o cação e x p lo rad a dem agogicam en te pela d ireita eu ropéia.
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31 Explico-me. O que quero dizer é que a (pseudo) distinção entre o que é decente e o que é indecente (no sentido m ais tradicional) não tem nada a ver com a ética. Isso não significa que, no quadro das relações “ de sexo” , não tenha havido e não haja práticas que interessam positiva ou negativamente à ética. Esse cam po é mesmo um domínio privilegiado para a eclosão da violência; o feminismo e a m obilização em defesa dos hom ossexuais foram e são os grandes movimentos so ciais contra a violência nesse registro. E os progressos no plano da em ancipação da mulher (e da liberdade sexual) são talvez, apesar dos limites das conquistas obtidas, os avanços m ais im portan tes do século X X . — Eu diria mesmo, a propósito do interesse ético que esse universo oferece, que até a conhecida afirm ação de Adorno na Minima moralia (I, §29) — “ o primeiro e único princí pio da ética sexual: aquele que acusa nunca tem ra zã o ” — me parece excessiva. Pode haver injus tiça nesse cam po, ainda que as exigências éticas que nele se constituem sejam muito peculiares. 32 As confusões existem no plano do cotidiano, m as incluindo o cotidiano daqueles que co nhecem a ética como disciplina filosófica e a sua história. 33 A relação com a materialidade dos objetos, com os valores de uso, enquanto eles são postos pelo m odo de produção, entra na crítica m arxiana da economia política (a qual não é puramente form al, com o M a rx faz questão de m ostrar contra Ricardo). 34 Com o já assinalei, M arx pensou o problem a dentro desses limites, o que não foi algo ine vitável por causa dos limites da produção do seu tempo. Q uaisquer que tenham sido as suas “ in suficiências” no plano científico, Fourier ultrapassou certamente aqueles barreiras. 35 M LP I, p. 17. 36 Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, Berlim, Dietz, 1953 (abreviarei p or G), p. 30, citado em M LP II, p. 82. 37 N ão tratarei, por exem plo, das leituras gram scianas de M arx. 38 São Paulo, Paz e Terra, 1996. Ver a respeito minha resenha desse livro e de Ressentimen to da dialética (São Paulo, Paz e Terra, 1996), publicada, em versão resum ida, sob o título “ Da Filosofia à anti-filosofia” , Jornal de Resenhas (Folha de S. Paulo), 11/4/1997, e integralmente na revista Lua Nova, n° 42, 1997, sob o título “ Entre Adorno e L u k ács” . 39 São Paulo, Polis, 1981. 40 Respectivamente, São Paulo, Paz e Terra, 1992, e op. cit.. 41 São Paulo, Paz e Terra, 1994. 42 Subtítulo: “ D a derrocada do socialism o de caserna à crise da econom ia m undial” , Ed. Paz e Terra, 1991. 43 Digitado. 44 “ N ão tem relevância algum a se o indivíduo ‘trabalh a’ duas ou cinco ou oito horas, o im portante é apenas se os elementos postos em movimento têm um ‘sentido’ em relação ao conteú do e às conseqüências m ateriais” (“ A H onra perdida do T rab alh o” , digitado, p. 30). 45 Anselm Jap p , apresentação a Robert Kurz, Os últimos combates, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 7. 46 “Antieconomia e antipolítica” , p. 23, a tradução diz “ economia microeletrônica de troca” . 47 D igitado. 48 Os últimos combates, op. cit., p. 87. 49 Observe-se que se a crítica da form a m ercadoria se encontra também nos frankfurtianos — e qualquer que seja o valor dessa crítica — eles nunca pretenderam que ela tivesse um a signifi cação universal válida para todas as form as sociais do nosso tempo. 50 A im agem é de Castoriadis. 51 Ver a respeito, o primeiro ensaio deste volume.
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52 V er, p o r ex em p lo, “ A n tiecon om ia e an tip o lític a” , p. 2 , sob re a “ co m u n icação social di r e ta ” e ibidem, p. 19, sob re a “ co m u n icação co n creta so b re relações sensíveis e m a te ria is” . 53 O bserve-se que os Manuscritos não são ro m ân tico s, pelo m en os no que o rom an tism o p o d eria ter de anti-anfklãrer. Eles sã o antes schillerian os, m as m u ito “ a b e rto s” às ciências, em b o ra n ão-p rom etean os; p o r essa ú ltim a característica, eles sã o nitidam ente diferentes d o s Grundrisse. V er, a respeito, a ú ltim a p arte do prim eiro en saio deste volum e. 54 O caráter d essa necessidade deve m u d ar, m as co m o ten tarei m o strar a “ n ecessid ad e” n ão d esaparece. 55 “ A n tieco n om ia e an tip o lític a” , p. 2 4 . 56 V er so b re tu d o “ D o m in ação sem su je ito ” . T e x to que, em g ran d es linhas faz u m a crítica do estru tu ralism o e do an ti-estru tu ralism o, an á lo g a (m enos a fo rm a dialética) à que se encontra n o m eu “ D ialética m a rx ista , h u m an ism o, an ti-h u m an ism o” , p u b lic ad o pela prim eira vez em 1 9 7 6 (em fran cês em 19 8 7 ). 57 M a r x diz: “ n as co n dições m ais d ign as e m ais ad e q u ad as à n atu reza h u m an a d eles” [“ d o s hom ens so c ia liz a d o s” , d o s “ p ro d u to re s a sso c ia d o s” ] W 2 5 , Das Kapital, livro III, Berlim , D ietz, 1 9 6 8 , p. 8 2 8 . C f. ain d a o prim eiro en saio deste volum e. 58 Eu o b serv ara que se era p reciso p ô r os o b jetivos fin ais (ou tem atizá-los) essa exigên cia só tem sentido se ab an d o n arm o s o co n teú d o trad icio n al atrib u íd o a eles. Se n ão os ab an d o n arm o s, a p o siç ã o só au m en ta as dificuld ad es. -'s V er R o b ert K u rz, “ T o talitarism o E c o n ô m ic o ” , Mais!, suplem ento de Folha de S. Paulo, 2 2 /9 /1 9 9 9 ; 60 V er “ A n tieco n om ia e a n tip o lític a” , p. 7, “ O fim da p o lític a ” , p. 19, “ D o m in ação sem su je ito ” , p. 3. 61 C o m isto n ão estou declarando sem interesse os projetos de co operativas etc. Eles são m uito in teressan tes e têm a su a im p o rtân cia. N ã o está a í o p ec ad o e o perigo d a p olítica de K u rz; estes residem n a vertente n egativa, su a p o lítica é an ti-política. C o n tra K u rz, é p reciso afirm ar que o ver d ad eiro germe d o futu ro n o presen te é a d em o cracia, e é n a p o lítica e p ela p olítica que ela p o d e ser d esen volvida, e a p artir d a fo rm a im perfeita em que existe hoje. 62 Sei que R . K u rz n ão p o d e ser resp o n sab iliz ad o p o r tu d o o que p u b licam os seus p a r tid á rio s. M a s tenho diante de m im u m jo rn al ed itad o no N o rd este p o r u m g ru p o de am igo s dele, e se n ão p o sso garantir que K urz esteja de acordo com o conteúdo desse jornal, n ão tenho razões m aiores p a ra su p or que ele esteja em d esac o rd o : a linha d o jo rn al parece decorrer do ensinam ento dele. P ara d ar ap en as um exem plo: a prim eira p ág in a traz u m a caricatu ra, em qu e se vê u m gran d e c ai x ã o de d efu n tos, onde se lê “ p o lític a ” . D en tro dele, reconhecem -se várias figu ras: o atu al p resi dente d a R e p ú b lica, um ex-prefeito de São P aulo a cu sad o de co rru p ção , u m ex-presidente d o Se n ad o idem, v ário s p o lítico s co n serv ad o res etc., m as tam b ém o can d id ato à presidên cia do p rin ci p a l p artid o de esqu erd a b rasileiro, um d o s d ep u tad o s federais m ais ativos e resp eitad o s d o m esm o p artid o etc. etc. A ch arge deve levar ao p a ro x ism o o en tu siasm o dos n o sso s n ovo s rad icais. Se a política de M a r x n ão serve (e, sob m uitos aspectos, ele não serve m esm o), a solu ção é sim ples: ponhase no lu gar dela a que p raticav am os a n arq u istas lá p elo s an o s 6 0 ... do século X I X . P ode-se im a gin ar que efeitos isso p o d e ter so b re tu d o n a situ aç ão b rasileira, em que se trav a um co m b ate d ifí cil, o rgan izan d o fo rç as, g an h an d o certos esp aço s de liberd ad e, d en u n cian d o as m istificaçõ es den tro e fo ra d a esqu erd a etc. etc. Na melhor das hipóteses, d igo sem h esitação , as receitas p olíticas de K u rz n ão terão co n seqü ên cias. 63 “ D o m in ação sem su je ito ” , p. 4 3. 64 A fó rm u la h egelian a é reto m ad a em “ A H o n ra p erd id a do T r a b a lh o ” , p. 6. 65 “ N a d iscu ssão m a rx ista existe o conceito p ejo rativ o de econ om icism o. Eu pen so que a o rien tação , segu n do a d im en são p o lítica (...) foi teoricam ente e em prin cípio um m ovim ento de desvio do m a rx ism o (...)” . Os últimos combates, op. cit., p . 81.
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66 “ N esse contexto, ‘economia natural’ indica somente que a reprodução não assume a form a-valor e que os meios de produção serão tratados de acordo com o caráter material e sensível dos produtos e em vista do prazer humano, isto é, não se submeterão mais à abstração fetichista da form a-valor” (“ Antieconomia e antipolítica, p. 23, grifado por RF). “ (...) O tempo e o espaço da atividade produtiva” seria “ atravessado por critérios sociais, culturais e estéticos, por prazer, contem plação, reflexão etc.” (ibidem, p. 42, grifado por RF). 67 Já indiquei em que sentido. Ele é incapaz de se libertar dos quadros teóricos da tradição. M as com o há muitos fatos novos de que ele não dá conta, o resultado é uma violência ao objeto que o leva paradoxalm ente para muito aquém do estilo teórico de M arx. 68 Ver por exem plo, “ Fim da Política” , op. cit., pp. 29, 31. 69 O “ M anifesto contra o T rab alh o” do Grupo Krisis (publicado em português por C ader nos de Labur n° 2, São Paulo, USP, Laboratório de Geografia Flum ana, Departam ento de G eo grafia, 2000, utilizei separata) é um documento extraordinariamente típico do pensamento de Kurz e do seu grupo. A leitura desse texto confirma o que disse acima. Kurz supõe que a crise do siste ma desem bocará em curto prazo, mesmo se não fatalmente, num universo “ hum ano” do tipo da quele que é descrito pelos Manuscritos de 1844 de M arx. Para garantir e apressar essa passagem é preciso antes de mais nada lutar contra “ o trab alh o” , e não em form a política, mas se “ desligan d o ” do sistema e constituindo uma “ contra-sociedade” de redes auto-geradas. Tudo o m ais são lutas dentro do sistema, que de um m odo ou de outro tentam conservá-lo, mesmo se às vezes, sem querer, apressam o seu fim. T odos aqueles que defendem o trabalho e a m ercadoria aparecem no discurso de Kurz com o que situados num mesmo plano. “ N o mínimo desde o nazism o, todos os partidos são partidos dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, partidos do capital” (p. 12). N ão vejo bem, nesse termos, por que deveríamos preferir Allende a Pinochet, Mendes-France a Lavai, Jospin a Jean-M arie Le Pen, já que todos eles propõem modelos de sociedade (Kurz não gosta da palavra “ m odelos” ) em que há m ercadoria, e trabalho. Tam bém não entendo com o, desse ponto de vista, poder-se-ia lutar por exem plo contra a privatização e a liquidação mercantil da Universidade: Universidade estatal ou não, séria ou de picaretagem mercantil, tudo “ lo stesso” . Em sum a, assim com o ele homogeneíza de form a caricatural as form as sociais, homogeneíza da maneira mais bru tal, movimentos, partidos e líderes políticos. N ad a de diferente sob o sol. Os únicos diferentes são ele e o seu movimento. A única coisa que conta é que a “ sociedade do trabalh o” “ alcançou o seu limite” , “ chegou ao seu fim definitivo” , entrou na sua “ etapa final” , alcançou “ seu limite históri co absoluto” , está “ clinicamente” m orta, “ definitivamente no seu fim ” . Com o trabalho, caem “ va lor, m ercadoria, dinheiro, Estado, form a jurídica, nação, dem ocracia etc.” (p. 19). E o fim do tra balho é “ o fim da política” (p. 14). Só que — diria eu — se conseguíssem os realmente sair do Es tado, da democracia e da form a jurídica, seria preciso reorganizar a contra-sociedade, e aí como de fato “ algum as [atividades] tornam-se m ais [criadoras de] prazer e outras m enos” (p. 22), seria preciso organizar esses prazeres a m ais e a menos entre os indivíduos. Para isso, algum tipo de le gislação deveria ser criada, e com ela o Estado, e se não a mercadoria e o dinheiro, pelo menos algum a form a de abstração. O conteúdo racional e verdadeiro que poderia conter “ o fetichismo do fetichismo do trabalh o” que professa Kurz — porque se trata disto — é o seguinte: é preciso lutar, por um lado, pela redução da jornada, por outro, pela redução da diferença qualitativa en tre trabalho e lazer (em benefício do último). M as isso é um processo que passa necessariamente pela luta política, e que, se começa desde hoje (ou se começou já há muito tem po), é longo e difí cil. Sem essas precisões, a “ luta contra o trabalh o” é m itologia política (ou anti-política), e suas conseqüências práticas são o imobilismo, o sectarismo, e a confusão. N ão entrarei em detalhes sobre o uso imediatista desse bonito texto — entretanto, totalmente otim ista diante do uso capitalista atual da ciência, com o assinalou C arlos Fausto — que são os Grundrisse. — Profetas como Kurz, que anunciam a indiferença entre todos os outros (indivíduos ou movimentos) e a impossibilidade de salvação fora da Igreja-dos-últimos-dias (-do-trabalho ou -da-mercadoria), o século X IX co nheceu m uitos; e, apesar de tudo, M arx teve o mérito de criticá-los. Só a enorme confusão teórica e prática, aliada à ignorância da história política, que reinam no Brasil, pode explicar o entusias mo ingênuo com que, em alguns setores, se acolheu o discurso de estilo “ kurziano” — esse velho
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p ro d u to , de efeitos co laterais co n h ecid os — co m o su ced ân eo m ágico p a ra os rem édios m arx istas caíd o s em d esu so. 70 V er so b re tu d o M L P I. T am b ém o presente volu m e, en saio II. 71 V er principalm en te m eu tex to em M. N o b re e J . M . R e go (orgs.), Conversas com filóso fos brasileiros, op. cit., “ Sobre o Jo v e m M a r x ” , Discurso, S ão P au lo, P olis, n° 1 3, 1 9 8 3 , e um a lon ga n o ta em “ Sobre o lu gar da Ideologia alemã na o b ra de M a r x ” , Mais! (Folba de S. Paulo) 4/ 3 /2 0 0 1 . 72 Folha de S. Paulo, 1 7 /5 /2 0 0 1 .
73 O s g rifo s são to d o s m eus. 74 Folha de S. Paulo, 3 0 /5 /2 0 0 1 . 75 D e ix o de lad o o fato de que “ a m o r a l” é há m uito tem po u tilizad o co m o o equivalente m ais ex ato de “ co n trário à m o ra l” , p ara evitar as resso n ân cias pu ritan as do term o “ im o ra l” . N esse sentido, “ a m o r a l” , d istinto de “ im o r a l” , n ão sign ifica “ n e u tro ” d ian te d a ética, m as p recisam e n te, o que é o p o sto , co n trário à ética. 76 C laro que essa u n iversalid ad e, é u n iversalidad e d entro de um certo cam p o . Pode ser a u n iversalid ad e de interesses de n ações ou de classes. D iscu to p o r ora a ética d o “ verd ad eiro p o lí tic o ” e n ão m ais d o que isto. 77 A s teses a m o ralistas dos artig o s de 2 0 0 1 n ão sã o oc asio n ais, co m o m ostrarei m elhor logo em segu id a. D esd e já assin ale-se qu e elas estão tam b ém n a entrevista que ele deu em abril de 2 0 0 0 , e que ap arece em Conversas com filósofos brasileiros, op. cit., g rifad o p o r R F : “ N a d a m ais natu ral que as b o as consciências apelem p a ra a in dign ação m oral. M a s a que isso serve? A o vir a ser pú blica converte-se em arm a p o lítica, tã o m an ipu lável e m an ip u lad a co m o q u alq u er o u tra. M a is ain d a, a pregação m oral tende a negar a política, em particu lar aquela zona cinzenta em que opera, su p o n h a m os, m eu represen tante. E u o en carrego de acu sar m eu inim igo, em pu rro-o a ag ir co n tra a sua v on tad e m ais p ro fu n d a ( ...)” (p. 1 1 2 ). “ C a d a vez m ais so u an tid edu tiv ista e an tifu n d acio n ista, po rq u e não m e interessa legitim ar esta ou aq u ela regra m oral, m as ex am in ar co m o devo ser e to d o s nós devem os ser para que sejam os dign os de um a regra m oral que se apresente co m o um im perativo, seja là qual for seu conteúdo ” (ibidem ). O im perativo de ob ed iên cia a b so lu ta ao chefe (com o o da intolerân cia e d a ex term in ação), p o r ex em p lo, é tam b ém u m a regra m o ral, e se preten deu m esm o derivá-la d o k an tism o . Q ue p en sar de u m filó so fo que só se p reo cu p a em estu d ar as co n dições form ais-ab stratas de possibilid ad e d o s im perativos (problem a que p oderia também ser interessante), sem se p reo cu p ar en tretan to do m ais im portan te, d a legitim idade ou ilegitim idade deles? /8 T o d o s os g rifo s sã o m eus. 79 A s áreas do direito e da m o ral n ão sã o coin cidentes, o que n ão quer dizer que n ão h aja um m ovim en to de regras que p a ssa m de um cam p o a ou tro (em p articu lar d a ética ao D ireito). N o n o sso c a so , é interessante o b serv ar qu e, d ad o o p eso que g an h a ra m certos p ro b le m as ju n to à o p in ião p ú b lica (graças em p arte ao trab alh o de p sic ó lo g o s e p sic an alistas críticos) as legislações eu rop éias co m eçam a san cio n ar ju rid icam en te fo rm as de violên cia p esso al (que na F ran ça sã o c o nhecidas p elo nom e de “ h arcélem ent m o r a l” ). H á os que falam , a p ro p ó sito , de “ p sic o lo g iz a ç ã o ” . M a s não se trata d isto, trata-se antes do co n trário: de “ d e sp sico lo g iz ar” o co tid ian o , d escobrin d o a su a d im en são ética. 80 T ratare i d essas qu estões em detalhe, em livro que p rep aro sob re a m inha experiên cia u n i versitária no B rasil e na Fran ça. 81 In sisto: c o m p aro a ética de G ian n otti co m a p o lítica, inclusive a ética-política, de C a rd o so, m a s n ã o co m a su a ética em geral. D e sta ú ltim a n ão estou suficientem ente in fo rm ad o nem ela é m eu problem a. 82 N ã o faz m uito tem po , ele co m p aro u seu trab alh o ao do p rim eiro m inistro so c ialista da F ran ça. O s d o is estilos seriam co m p aráv eis se, p o r ex em p lo, o p rim eiro m in istro fran cês se tivesse aliad o a setores conservadores-corruptos do espectro político francês (imagine-se o escândalo político
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que isso representaria na França). Faço essa observação para mostrar tudo que há de falso em termos gerais, e de desastroso para a esquerda, pela confusão que isso gera, no modelo político de pseudoesquerda que o atual presidente da República encarna. 83 Ver P. E. Arantes, Um departamento francês de ultramar, op. cit. 84 Poderíamos dizer que é preciso recusar tanto o “ reform ism o” (que seria preciso distin guir do projeto de reform a ou m utação radical) com o o “ revolucionarism o” (termo que Bernstein utilizou para os próprios fins, m as que se encontra também em Lefort). 85 O livro foi primeiro uma tese, que passou por m odificações. 86 Ver meu artigo “ Sobre o jovem M a rx ” , artigo citado, resumido em apêndice de M LP I. 87 Sobre a significação ética mais precisa da falsa oposição humanismo/ anti-humanismo fa larei na última parte dessa Introdução geral. 88 Observe-se que “ ideologia” tem aqui um sentido mais vasto do que o usual. O termo cobre não só o discurso ilusório a serviço de classes, nações ou macro-poderes em geral, mas também o que está a serviço de indivíduos e grupos relativamente pouco numerosos de indivíduos. N a reali dade, o conceito tem também, ou deve ter uma dimensão ética, até aqui mal conhecida. Ao intro duzir o conceito de “ ideologia” na Ideologia alemã, M arx recorre como ilustração à dimensão in dividual, m as de form a lim itada, ver W. 3, Die Deutsche ldeologie, p. 49. 89 Retom o o tema no segundo ensaio deste volume.
90 D eixo de lado, os “ prim itivos” nossos contemporâneos. 91 Simplifico colocando o fascism o na mesma categoria, apesar das diferenças que são im portantes.
92 Ponho aspas em “ esquerda” , porque defino esquerda com o a tendência que encarna o progresso da liberdade e a luta contra a exploração. N ão me pareceu útil introduzir o esquem a de N . Bobbio, em que a esquerda aparece como guardiã da igualdade, mas não da liberdade. Espero voltar a essa tema. Ver o interessante Droite et Gauche, essai sur une distinction politique de N orberto Bobbio (trad. francesa de Sophie Gherardi e Jean-Luc Pouthier, Paris, Seuil, 1996). 93 Simplifico bastante, por ora. A rigor, a sociedade burocrática tem um “ outro” que lhe é particular. 94 Jacques Bidet, cujas análises em geral vão numa direção teórica bem diferente da minha, insistiu com razão nesse ponto (ver a sua Théorie de la Modernité... Paris, PUF, 1990).
95 Dizer que elas aparecem na “ velhice” do capitalism o é duvidoso e de qualquer maneira não elimina a contemporaneidade. 96 A não confundir sem mais com as form as sociais-dem ocratas conhecidas, embora os me lhores exemplos desta estejam entre os m odelos reais m ais adequados, até aqui, do socialism o democrático 97 Já indiquei que não vou considerar o fascism o com o caso particular, em bora ele seja bas tante diferente. Fica “ entre” o capitalism o autoritário e o nazism o. O capitalism o autoritário é uma form a já regressiva que fica entre o capitalism o democrático e o totalitarism o. 98 A grande falha da teoria m arxista corrente sobre o nazismo, e da teoria trotskista sobre a sociedade burocrática, não está assim em ter falado em “ degenerescência” (para o nazismo, “ forma de decom posição” etc.), m as em ter suposto que esta não instaura uma ruptura qualitativa funda mental. O termo “ degenerescência” tem certa verdade (o que no primeiro momento de crítica temse tendência a recusar), mas não é predicado simples da form a principal. Ele implica na negação da form a principal, em bora se conserve um fio pressuposto que indica algum a coisa sobre a natu reza da nova form a. 99 As referências são sobretudo as seguintes: Platão, República, livro VIII (que fala de “ cor ru pção” , “ ruína” (διαφθορά ou φτορά). Aristóteles, Política, livros III e IV. O termo negativo uti lizado é παρέκβασισ (ver por exemplo 1.279 b), “ desvio” . M ontesquieu, De 1’esprit des lois, li
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vro III, (Plêiade, vol. II, p. 250) e livro VIII (Plêiade, vol. II), respectivamente sobre as form as de governo e sobre a “ corrupção” (corruption ) delas. R ousseau, Du contract social, livro III, capítu lo I e s. (Plêiade, Du contrat social — études politiques, pp. 395 s s .) e livro III, caps. X ss. (ibidem, pp. 421 ss.), respectivamente sobre as form as de governo e “ da sua tendência a degenerar” (dégénérer). — N essa retom ada dos clássicos há dois aspectos. Um ê o da existência de form as de degenerescência próprias a cada regime ou ao regime ideal. A outra idéia é a da circularidade das form as ou pelo menos do “ ciclo” das suas aparições, a qual está presente em pelo menos alguns desses autores (sob esse aspecto, seria preciso citar também o Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio de M aquiavel). Utilizei algum a coisa dessas duas idéias; reservo para outros textos o desenvolvimento desse tema. 100 Evidentemente, “ homem” equivale aqui a “ ser hum ano” : “M ensch” e não “ M an n ” ; “ anthropos” , e não “ aner” . 101 A essência não se refere necessariamene a um só ou a um mesmo “ estrato” ou momen to. Quantos e quais “ m om entos” definem uma form a, isso varia conforme a form a considerada. M arx conhecia essa possibilidade, m as reduziu o seu alcance, supondo que há um estrato — em bora definido em form a dialeticamente contraditoria sob m ais de um aspecto — que decide sem pre que estrato (ele mesmo ou outro) é dominante. Ver a esse respeito uma nota na seção I do li vro I do Capital (W 23, p. 96, n. 33). 102 “Você sabe (...) que há necessariamente tantas espécies de temperamentos de homens quantas há de form as de governo, ou você crê que essas form as nascem de algum carvalho ou de algum rochedo, e não do caráter (έκ των ήθών) dos cidadãos que povoam os Estados (...)? (Pla tão, Republica, VIII, 544d). M as o Sócrates platónico diz ter considerado primeiro o caráter dos regimes políticos e depois o dos individuos, porque assim há m ais clareza (cf. ibidem, 545 b). “ H á esta diferença entre a natureza do governo e o seu principio, [a saber] que a sua natu reza é o que o faz ser assim (tel). Uma é a sua estrutura particular, e a outra as paixões humanas que o põem em m ovim ento” (M ontesquieu, De l’esprit des lois, livro III, cap. I). 103 Em Capitalisme moderne et révolution (tomo II, Le mouvement révolutionnaire dans le capitalisme moderne (París, Union Générale d ’Éditions, 1979), Castoriadis fala em neurose: “ O capitalism o, pelo contrário, está construido sobre uma contradição intrínseca — uma contradi ção verdadeira no sentido literal do termo. A organização capitalista da sociedade é contraditória no sentido rigoroso em que um individuo neurótico o é: ela não pode tentar realizar suas inten ções senão através de atos que a contrariam constantemente” (p. 106). 104 O utras form as sociais poderiam ser acrescentadas às que indiquei? Cruzando o q u a dro, a partir da diagonal do prim eiros quadrado no alto à esquerda, obter-se-ia um “ capitalis mo totalitário” . É a meu ver o caso da China atual, pelo menos aproxim ativam ente, isto é, se totalitarism o não significar dominio total ou quase total, m ais muito m ais do que um simples Estado autoritário 105 C om o há ressaibos de esquerda no nazism o, poder-se-ia eventualmente desenhar tam bém uma “ cau d a” no círculo ou esfera que o representa. M as com o a relação com a esquerda é muito diferente da que tem a burocracia, para evitar confusão, omito essa ilustração. 106 Esse tema retom a, num contexto diferente, o que escreve J. L. Talm on em The origins o f
totalitarian democracy (Londres, Secker & W arburg, 1952). 107 Esse movimento corresponde bem à παρέκβασισ de Aristóteles: ato de sair do caminho reto, mas com o um caminhar (βαίνω) para além de (παρέκ). 108 Bem entendido, além da desigualdade que descrevo que é a que consiste na equalização dos desiguais, essa ultrapassagem de limites produz também uma desigualdade pura e simples. Aque la que se estabelece entre chefes, burocracia ou nomenklatura de um lado, e m assa anônim a de outro. E ssa desigualdade se constrói, porém , na base de uma equalização brutal. Tal equalização faz pensar naquela a que alude R ousseau no segundo Discurso, a igualdade produzida pelo des potismo e que introduz uma espécie de circularidade no processo (“ Aqui se tem o último termo
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da desigualdade, e o ponto extremo que fecha o Círculo e toca no ponto de que partim os: É aquí que todos os particulares tornam-se de novo iguais porque não são nada Oeuvres Completes, Plêiade, III, p. 191). A diferença é que no caso da burocracia a igualdade está inscrita na ideolo gia, ela é propriamente embora caricaturalmente a realização dessa inscrição. 109 “ Dialética da ra zã o ” no sentido de Frankfurt. 110 O que precisa ser lem brado contra os que — de Bernstein aos pós-m odernos, passando por Arendt — professam a doutrina de que a dialética é mais ou menos a culpada de tudo... 111 Ver a respeito M LP II, ensaio “ Sobre o E stad o ” . 112 N a realidade, essa representação coexiste com a “ revelação” da violência e da desigual dade, a que fiz referencia. A violencia e a desigualdade (enquanto não é desigualdade harmônica que funda a ditribuição de tarefas dentro da comunidade) aparece sobretudo em relação ao ou tro, o não-ariano, os povos “ inferiores” . N o caso da burocracia, o outro são evidentemente as antigas classes dominantes. M as na ideologia burocrática não há propriamente um culto da violência, como se tem no nazismo. 113 Sempre no sentido de Frankuirt. 114 N ão falei do sentido da passagem no plano econômico, do socialism o democrático à bu rocracia. É difícil fazê-lo. Abstratamente, nos dois casos não ha (não haveria) capital, e poderia haver m ercadoria. M as é claro que issso não estabelece uma identidade entre as duas form as, por que a integração desse não-capitalism o no poder burocrático m uda essencialmente o seu caráter. N ão disse “ econom ia burocrática” , porque a expressão não elucida muito. 115 Vermelho-marrom, elementos de extrema esquerda que se confundem com a extrema direita. 116 N ão digo que ela deveria subsistir, m as deveria subsistir certamente algum tipo de “ abs tração” social. 117 Insisto, elas são sempre outras em relações às demais form as. N ão se trata nem da visão m arxista do nazism o, nem do “ Estado operário degenerado” de Trotsky. 118 Ver, por exemplo, La pensée sauvage, Paris, Plon, 1962, p. 156: “ [a] passagem [...] é [...] possível nos dois sentidos” . 119 Assim, se o ponto de partida é a idéia tradicional de que totemismo e exogam ia vão jun tos, com o vão juntos por sua vez organização em castas e endogam ia, o deslocamento do eixo das correspondências entre natureza e cultura — nas sociedades “ totêm icas” — da relação entre os termos para os próprios termos produz uma ruptura entre os grupos, que é solidária da emergên cia da endogamia. Inversamente existem castas que se representam sob form a quase-totêm ica; só que aqui, como o atesta a presença entre os “ quase-totens” de muitos objetos artificiais (além de produtos naturais), antes se projeta a cultura na natureza do que a natureza na cultura. — Por outro lado, e de m odo mais elegante, pensam-se os dois casos como “ exo-praxis” , só que uma de troca de mulheres, e a outra de troca de produtos, o que implica em conseqüências inversas na maneira de representar — de “ poser” diz Lévi-Strauss (por exemplo, op. cit., p. 164) — natureza e cultura. 120 N ão quero dizer com isto que o esquema em sucessão (descontínua) não tenha interesse. M as ele vale p ara as grandes form as, e m ais precisamente, no que se refere ao texto, para a passa gem do registro do pré-capitalismo para o capitalismo. 121 H á um jogo constante entre o sujeito e o não-sujeito, e no ponto de partida — porque há um ponto de partida — entre o “ natural” (naturwüchsig) e o “ histórico” . 122 Exemplo, W 42 (Grundrisse) p. 407. 123 Ibidem, p. 408, grifado por RF. 124 Ibidem, p. 407. O que disse, resume o desenvolvimento das pp. 406-7. 125 Uma passagem da Ideologia alemã menciona o problem a, ver W. 3, p. 69.
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126 R eferindo-se aos n ovo s can h ões e às arm as m an ejad as “ p o r um só h o m em ” que pod em “ atingir um b a ta lh ã o ” , Engels escreve: “ (...) A s arm as estão tã o ap erfe iço ad as que um n ovo p r o gresso que tenha um a influência revolu cion ária q u alqu er n ão é m ais p ossível (...) P or esse lad o , a era do desenvolvim ento está assim essencialm ente term in ad a” (W 2 0 , Anti-Diihring, p. 158). Engels se en gan a tam b ém , contra D iihring, qu an to às p o ssib ilid ad es fu tu ras de p ro g resso — aqu i no p la no d o s av an ço s potencialm en te p acífic o s — em m atéria de tran sp orte aéreo. 12
Bem en tendido, esses av an ço s p ressu p õ e m co n dições p olíticas. B uscou-se a fab ricação
d e ssa s n o v as a rm a s, no co n tex to d o p ro g re sso técnico a lcan çad o que sem pre teve, em alg u m a m ed id a, esse con d icion am en to. I2fi H o b b es se referia à situ aç ão no estad o de natu reza, à situ aç ão n atu ral do hom em . M a s o que ele diz é verdade, tam b ém na situ aç ão “ so c ia l” . “ (...) Se co n sid erarm o s hom ens feitos, e o b servarm os a estru tu ra do co rp o h u m ano (...) e qu an to é facil ao m ais frac o m atar o h om em m ais ro b u sta do m u n d o, não nos restará ab solu tam en te m otivo p a r a co n fiar n as n o ssas fo rç as, co m o se a natureza nos tivesse d ad o co m isso algu m a su p eriorid ad e sob re os o u tros. São ig u ais os que pod em co isas iguais. O ra os que p o d em o que há de m aio r e pior, a sab er tirar a vida, p o d em c o i sas iguais. P ortan to to d o s os hom ens são naturalm ente iguais. A desigu ald ad e que reina atualm ente foi in trod u zida pela lei civ il” (De Cive, seção prim eira, cap ítu lo prim eiro, III, [Le Citoyen ou les fondements de la politique], trad , fran cesa de Sam u el Sorbière, P aris, F lam m ario n , 1 9 8 2 , pp. 945, Opera Philosopbica Omnia, ed. p o r W . M o lesw o rth , reed. B ristol, T h oem m es P ress, 1 9 9 9 , II, p. 162). “ A natu reza fez os hom ens tã o igu ais qu an to às facu ld ad es do co rp o e do espírito, que, em b ora se p o ssa às vezes en con trar um h om em m an ifestam en te m ais forte, co rp oralm en te, ou de um espírito m ais ráp id o d o que um ou tro, entretanto, tu do bem co n sid erad o , a diferença entre um hom em e um ou tro não é tão considerável que um hom em p o ssa por isso reclam ar por ele m esm o u m a v an tagem à q u al um ou tro n ão p o ssa preten der tan to qu an to ele. C o m efeito, no que se refe re à fo rça co rp o ral, o h om em m ais frac o tem fo rça suficiente p a ra m atar o h om em m ais forte, seja através de u m a m aq u in ação secreta, seja se alian d o a o u tro s que co rrem o m esm o perigo que ele” (Leviatan..., prim eira p arte, cap ítu lo X III (ed. R ich ard T u ck , C am b rid g e U niversity P ress, 1 9 9 1 , pp. 86 -7 ; trad , fran cesa de F. T ricau d , P aris, Ed. Sirey, p. 121). 129 Engels escrevia de um m o d o terrivelm ente am b íg u o , no fin al d o seu artigo “ A lu ta dos h ú n g a ro s” (‘D er m agyarisch e K a m p f” ) (Nova Gazeta Renana, 13 de jan eiro de 1 8 4 9 ): “ A p r ó x i m a guerra m u n d ial fará d esap arecer (verschwinden) d a superfície d a terra n ão som ente classes e d in astias reacio n árias, ela fará d esap arecer tam b ém p o v o s reacio n ário s inteiros. E isto é tam bém p ro g re sso ” (W 6, p. 176). E no artigo “ O pan eslavism o d em o crático ” (“ D er dem okratische Panslaw ism u s” ) (Nova Gazeta Renana, 1 5 /2 /1 8 4 9 ) lê-se: “ (...) que ‘crim es’ , que ‘n efan d a p o lític a ’, [o fato] de que os alem ães e os h ú n garos, na época em que em geral na E u ro p a as g ran d es m on arqu ias eram um a ‘necessidade h istó rica’ , d evorassem (zusammentschlugen) to d a s essas naçõezin h as m u tila d as e im poten tes [para form ar] um gran d e im pério e co m isso as ca p a c ita sse m a p articip ar de um desenvolvim en to h istórico, ao qu al elas teriam p erm an ecid o totalm ente estran h as, se a b a n d o n a d a s a si m esm as! Sem d ú vid a, tais co isas n ão p o d em ser im p o stas, sem qu eb rar violen tam en te m uita florzinha n acion al su ave. M a s sem violência e sem férrea d esco n sid eração n ad a se im p o rá na história, e se A lexandre, C ésar e N ap o leão tivesse possu íd o a m esm a faculdade de se em ocionar, à qu al apela hoje o p an e slav ism o em favor d o s seus clientes em ru ín as, o que teria sid o a h istória! E os persas, celtas e g erm an o s c ristão s n ão valem os tchecos, os ogu lin os e os se re c h an o s?” (W 6, p. 2 _ 9). Ver a respeito o excelente livro de R o m an R o sd o lsk y (cito a trad u ção espan h ola), Friedrich
Engels y el problema de los pueblos “sin historia”, la cuestión de las nacionalidades en la revolución de 1848-1S49 a la luz de la “Nene Rheinische Zeitung” (trad, de C o n rad o Ceretti, revista p o r M aria Inés Silberberg, M é x ico , C u ad ern o s de P asad o y Presente, Siglo X X I, 1 9 8 0 ). Sabe-se que Engels saúda tam b ém em nom e do p ro g resso a co n q u ista d o T e x a s p elo s E sta d o s U n idos: “ N a A m érica, vimos a co n q u ista do M é x ico e n os aleg ram o s co m isto. É um p ro g resso que um p aís, que até aqui só se o cu p ou de si m esm o, d ilace rad o p o r eternas g u erras civis (...) seja in trodu zido co m violência no m ovim ento h istó rico ” (“ D ie Bew egungen von 1 8 4 7 ” , D eutsch e-B rú sseler-Z eitun g, 2 3 /1 /1 8 4 8 W 4 , p. 5 0 1 ). N a carta a E n gels, de 2 /1 2 /1 8 5 4 , M a r x escreve sob re os m exican os: “ O s espan h óis
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são de fato degenerados (schon verkommen). M as [diante de] um espanhol degenerado, um mexi cano, aquilo (das) é um ideal. T odos os vícios, a pretensão, a fanfarronice, o donquichotismo dos espanhóis, à terceira potência, mas de nenhum m odo o que estes têm de sólido” (W 28, p. 417). Ver a propósito, Jo sé Aricó, Marx y América Latina (M éxico, Alianza Editorial M exicana, 1980). N o s artigos sobre a guerra civil am ericana, M arx tem uma posição totalmente diferente da que tinha Engels em 1847. A guerra contra o M éxico aparece com o resultado das necessidades expansionistas dos escravistas do Sul: “ (...) para afirmar sua influência no Senado (...) o sul necessi tava (...) de uma form ação constante de novos estados escravistas. M as isso só foi possível através da conquista de terras estrangeiras, com o no caso do T exas (...)” (W 15, p. 336, “A guerra civil norte-am ericana” (“D er nordamerikanische Bürgerkrieg” ), Die Presse, 25 de outubro de 61). Cf. ibidem, p. 334, a referência às “ incessantes expedições de pirataria de filibusteiros contra os E sta dos da América Central” etc. etc. Diga-se de passagem : os dois artigos publicados em Die Presse (o segundo é de 7 de novembro) sobre a guerra civil am ericana deveriam ser meditados pelos m ar xistas que têm o hábito de “ deduzir” o caráter de uma form ação social da sua relação com o mer cado mundial. M arx não se recusava a escrever a propósito da guerra da Secessão: “ A luta atual entre o Sul e o N orte não é assim senão uma luta entre dois sistemas sociais, o sistema da escravi dão e o sistema do trabalho livre” (W 15, p. 346, grifado por RF). Isto a propósito de um territó rio que, mesmo sendo escravista, tinha uma economia m ais ou menos orientada para o mercado mundial. Imaginemos o que ele pensaria do raciocínio que, do fato de que a Rússia stalinista, através do m onopólio estatal do comércio exterior, participava do m ercado mundial, conclui o caráter capitalista da Rússia desse período, ou mesmo o seu caráter de “ sociedade produtora de m erca d orias” ? O argum ento fundado sobre a presença interna de mercadorias tam bém não vai longe. — Q uanto ao problem a das pequenas nações européias, a atitude posterior de Engels em relação a elas não se modifica. Ver sua carta a Bernstein de 22-25/2/1882 (W 35, p. 2 82, em francês em G. H aupt, M . Low y e C. Weil, Les marxistes et la question nationale..., Paris, M aspero, 1974, pp. 101 ss) em que ele escreve a propósito dos eslavos do sul: “ Eu sou suficientemente autoritário para considerar com o um anacronism o a existência de tais povoam entos primitivos (Naturvòlkchen) no meio da E urop a” . M ais adiante, ele se refere ao s búlgaros com o “ povo nojento” (Sauvolk), e diz que se os turcos tivessem agido com os búlgaros com o estes agem em relação a outros peque nos povos (expulsando e assassinando) “ não haveria no mundo m ais problem a b úlgaro” . E na mesma carta, em bora reconhecendo aos sérvios certo “ lustre poético” (referência aos seus cantos populars), e admitindo que será possível que organizem seu Estado após duas a quatro gerações, Engels afirm a, a respeito deles e de outros povos eslavos, que, no caso de uma nova guerra m un dial — que “ estragaria toda a nossa situação revolucionária” — “ eles (Engels os vê com o aliados dos russos) e seu direito de roubar gado deveriam ser impiedosam ente sacrificados aos interesses do proletariado europeu” (W 35, pp. 281-2, H aupt, Low y e Weil, op. cit., ibidem). Esse “ progressism o” brutal do velho Engels coexiste com um indiscutível dem ocratism o cujo ponto mais alto — escam oteado por Lenin em O Estado e a revolução é a afirm ação da Crítica do programa de Erfurt de que “ [a república democrática] é a (...) forma específica para a ditadura do proletariado” (W 22, p. 235). 130 Trata-se de artigos publicados na New York Daily Tribune, em 1853. O artigo de 25 de junho de 1853 termina assim: “ Sem duvida o egoísmo m ais sórdido era o único motivo da Ingla terra, quando ela desencadeou um a revolução social na índia [entenda-se, “ revolução estrutural” , RF], e o m odo pelo qual ela im pôs os seus interesses foi estúpido. M as aqui não é esta a questão. A questão é se a humanidade pode realizar (erfüllen) a sua determinação sem um revolucionamento radical na Ásia. Se não, quaisquer que possam ter sido os crimes que ela cometeu, a Inglaterra foi entretanto o instrumento inconsciente da história, na m edida em que ela conseguiu fazer essa re volução. (...) Pois, por comovente que possa ser para o nosso sentimento pessoal o espetáculo da ruína de um mundo antigo, temos os direito de clam ar com Goethe, diante da história: ‘Deve essa tortura nos torturar, se ela aumenta o nosso prazer; o domínio de Timur não consumiu miríades de alm as?’ ” (W. 9, p. 133, grifos de RF). Tom o esses artigos de M a rx sobre a índia (há outros) como expressão típica. M arx e Engels escreveram muito sobre o mundo colonial. Entre outras coisas,
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E ngels tem u m tex to sob re o A feg an istão . — A lém de R o lsd o lsk y , ver a p ro p ó sito G eorges H au p t, M ich ael L õ w y e C lau die W eill, Les marxistes et la question nationale, op. cit. 131 C laro que nem to d o s os so c ialistas. Bernstein, cu jas críticas a M a r x contêm elem entos vá lid o s, ju stifica a co lo n iz ação da m an eira m ais idílica, em nom e d os interesses d o p ro g resso : “ A civ ilização (Kultur) m ais alta tem aq u i, em últim o c a so , tam b ém o d ireito m ais a lto ” (E d u ard Bernstein, Die Vorausstzungen des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie, H am b u rg o R ow o h lt, 1 9 6 9 , p. 180). 132 T rata-se de u m a entrevista que T ro tsk y concede em 1938 a M ate o F o ssa , u m sin d icalis ta argentino, m argin aliz ad o p o r ter se m an ifestad o co n tra os p ro ce sso s de M o sco u . A lém d o seu interesse g eral, o tex to tem ain d a a p articu larid ad e de se referir ao B rasil. C reio que ele m erece u m a ex ten sa citação . F o ssa p ergu n ta: “ O que p o d e dizer sob re a lu ta de lib e rtação d o s p o v o s da A m érica L atin a e d o s p ro b le m as d o fu tu ro ? Q ue p en sa d o ap rism o [m ovim ento de esq u e rd a do Peru, RF] ? D e p o is de afirm ar que n ão está suficientem ente fam ililiarizad o co m a v id a p o lítica de ca d a p a ís latin o -am erican o, T ro tsk i o b serv a: “ É claro em to d o c aso p a r a m im que as tarefas in tern as desses p aíses n ão p o d em ser resolvid as fo ra de um a lu ta revolu cion ária sim u ltân ea co n tra o im p erialism o . O s agen tes d o s E stad o s-U n id o s, da In glaterra, d a F ran ça (os L ew is, Jo u h a u x , L o m b a rd o T o le d an o , os stalin istas) ten tam su bstitu ir a lu ta co n tra o im p erialism o p ela lu ta co n tra o fascism o . P ud em os assistir a seus esforços crim in osos nesse sen tid o, no cu rso do recente co n g re sso co n tra a guerra e o fascism o (...) T o m arei o exem plo m ais sim ples e m ais evidente. R eina h oje n o B rasil u m regim e se m i-fascista que n en hum rev o lu cio n ário p o d e co n sid erar sem ó d io. Su p o n h am o s entretanto que, am an h ã, a In glaterra entre em u m co n flito m ilitar co m o B rasil. Per gun to: de que la d o estará a classe o p erária? R espon d erei de m inha p arte que, nesse c aso , estarei do la d o d o B rasil “ fa sc ista ” co n tra a In glaterra “ d e m o c rátic a” . Por qu ê? P orqu e, no co n flito que os o p o ria , n ão é de dem ocracia ou de fascism o que se trataria. Se a In glaterra g an h asse , ela in sta laria no R io de Jan e iro u m ou tro fascista, e en cad earia du plam en te o B rasil. Se pelo co n trário o Brasil g an h asse, isto p o d e ria d ar u m im pu lso con sid erável à consciência dem o crática e nacion al desse p a ís e con duzir à d erru b ad a da d itad u ra de V arg as. A d errota de In glaterra g o lp earia o im perialism o britân ico, e ao m esm o tem p o d aria um im pu lso ao m ovim ento revolu cion ário do p r o letariad o inglês. R ealm ente, é preciso n ão ter n ad a na cab eça p a ra reduzir os an tag o n ism o s m u n diais e os co n flito s m ilitares à lu ta entre fascism o e d em ocracia. E p reciso aprender a distinguir sob to d a s as su as m á sc a ra s os e x p lo rad o res, os escravistas e os la d r õ e s!” (Léon T ro tsk y , Oeuvres, sob a d ireção de Pierre B rou é, P aris, Institut Léon T ro tsk y , vol. 18, p p . 3 2 5 -6 ). P orém , a vitória dos “ c o lo n iz a d o s” n ão tem os efeitos su p o sto s p o r T ro tsk y . P or ex em p lo, um a v itória d o s m ilita res argen tin os n a guerra d as M alv in as levaria ao refo rço , n ã o ao en fraquecim en to, d a d itad u ra m ilitar. O m esm o se S ad d am tivesse g an h o a G u erra do G o lfo . C o m relação à atitu d e de T ro tsk y em relação ao fascism o e ao n azism o, o b servo que, m esm o se ele previu co m m uita lucidez a v itó ria d o n azism o n a A lem an h a, su a atitude em relação a este, um a vez in iciad a a g u e rra, fo i no c o m eço, am b íg u a. N o início d a gu erra de 3 9 , T ro tsk y se recu sav a a escolher entre o p o d e r n azista que o cu p a p arte d a N o ru e g a , e o p o d e r britân ico ou pró-britân ico que o c u p av a a ou tra parte. A p o siç ã o de T ro tsk y relativam en te ao n azism o parece ter evoluído no breve p eríod o de vida que Stalin lhe concederia. 133 M N A , m ovim ento nacional argelino; F L N , frente de libertação nacional. O prim eiro deles é o m ais an tigo. Ele é n eu tralizad o p ela F L N , que se torn a h egem ônica no p ro cesso da revolu ção argelina. lj4 P arece evidente qu e alg u m a co isa d a situ aç ão atu al d a A rgélia tem a ver co m a fo rm a e os m étod os d a guerra de independência. E preciso p en sar pelo m enos a p o ssib ilid ad e de que se tivesse segu ido u m ou tro cam inh o, e que conseqü ên cias p o d eria ter tido. C asto riad is criticou Sartre p o r ca u sa d o sim plism o d a p o siç ã o de Sartre a respeito desse p rob lem a. 135 R efiro-m e ao fato de que é preciso p en sar essas fo rm as reg ressiv as ou “ d e g e n e rad as” co m o fo rm as p o líticas p ró p ria s — essencialm ente diferentes d o s m ovim en tos n ac io n ais n ão “ p a to ló g ic o s” — e que se situ am à direita e n ão à esqu erd a do e sp aço político.
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136 A d o rn o teve o gran d e m érito de a ssin alar, em plen a ép o ca de en tu siasm o “ terceirom und ista s” , que o “ ou tro la d o ” , na guerra d o V ietnã, tam b ém to rtu rav a. V er Marginalien zu Theorie und Praxis, in Stichworte, Kritische Modelle 2, F ran kfu rt-am -M ain , Su h rkam p, 1 9 6 9 , p. 1 8 7 (trad. fran cesa de M . Jim en ez e E. K au fh o lz, Modèles Critiques, P aris, P ayot, 1 9 8 4 , p. 2 9 2 ). D ian te do sartrian ism o a-crítico de certos ep ígo n os, seria p reciso tam b ém reestu d ar a s p o siç õ es, a respeito, de C am u s e de M erleau-P onty. 137 Q ue h aja elem entos violen tos n o Corão, deve ser um erro negá-lo. O argu m en to n ão é recu sá-los, m as m o strar que eles existem tam b ém n as o u tras religiões, e n ão só n os m on oteísm o s: co m o ob serv am os esp ecialistas, até o b u d ism o tem os seus fan ático s, e n ão p o u c o violen tos. 13S No pri?neiro momento, a h ipótese que viesse d a ex trem a direita am erican a que já o rg a n izara u m grave aten tad o p o d eria e deveria ser co n sid erad a, em b ora o catáter im ediatam en te su i cid a d o ato n ão in d icasse essa p ista. T am b é m n ão se exclui qu e, n a c o n fu são , a extrem a direita a m erican a, m esm o se aparentem ente m u ito d eb ilitad a, venha a ten tar ou já ten h a ten tado algum tipo de ação .
138a T ^ v e z seja m ais do que u m a sim ples cu rio sid ad e, e aju d e a entender o que ocorreu e a fo rm u lar um ju lg am en to ju sto sob re o o c o rrid o , lem b rar qu e, d esde os an o s 3 0 , um d o s so n h o s de H itler e d o s seus seq u azes era b o m b ard e ar os E sta d o s U n id o s, to m an d o co m o alvo, entre ou tros, m as p articu larm en te, N o v a Y o rk . N u m d iscu rso p ro n u n ciad o em 1 9 3 8 , p o rtan to antes d a gu er ra, no q u al ele in stav a os in d u striais alem ães a co n stru ir um av ião ca p a z de b o m b ard e ar aqu ela cid ad e e reto rn ar à A lem an h a (m ais tard e p e n saram em u tilizar co m o b ase o s A ç o re s), G òrin g pro n u n ciou as seguintes p alav ras: “ Eu ficaria ex traord in ariam en te feliz com um b o m b ard eio com o esse p a r a a c a b a r de vez co m a jac tâ n c ia deles [endlich... das Maul zu stopfen]” (Jochen T u es, Architekt der Weltberrschaft. Die “Endziele” Hitlers, D iisseld o rf, D roste V erlag, 1 9 7 6 , p. 138). A s p a la v ra s de G õ rin g m o stram co m o a rep u lsa à “ ja c tâ n c ia ” am erican a — re ação em si m esm a ju stificável — p o d e entretanto, se a rep u lsa n ão conhecer os seu s lim ites, d esem b ocar em sim p atia p o r p ro je to s e açõ es típicos d a extrem a-direita. — Sob re o tem a d o “ b o m b ard e iro N o v a Y o r k ” , co m o era ch am ad o o av ião em p ro jeto , ver tam b ém o livro de G eh rard L . W einberg, Germany, Hitler, and World War II, essays in Modem Germán and world history, C am b rid g e U niversity P ress, 1 9 9 5 , pp. 196-7. 139 M a s aí, a m eu ver, o grande erro foi não ter ap o iad o as forças que lu tavam contra Sad d am H ussein e p o d eriam derruba-lo; ele foi p o u p a d o provavelm ente p o r razões de equilíbrio geopolítico. A gu erra d o G o lfo tinha, sem d ú vid a, m otivos d u v id o so s. M a s: 1) S a d d a m in vadira efetivam ente o K u w ait, isso qu an to à legitim idade d a intervenção; 2) S ad d am é um d ésp o ta extram ente perigoso. 140 T am b ém nesse c a so , a op in ião de esqu erd a dom in an te, pelo m en os na A m érica L atin a, se en gan a redon dam en te. P or horríveis que se jam to d o s os b o m b ard e io s de cid ad es, os b o m b a r d eios d a Iu g o sláv ia, tã o criticad o s, fo ra m d o s p o u c o s ato s que a ju d a ra m a s p o p u laçõ e s m u çu lm a n as. F o i em p arte g ra ç a s a eles qu e M ilo sev ic caiu , e o K o so v o se to rn o u q u ase independente. O gran d e erro e crim e d o s ocid en tais (em prim eiro lu g ar d o s eu rop eu s m as n ão só deles) foi a omis são — ou intervenção tard ia — em Srebrenica, o m issã o que deve ter c u stad o a vida a uns 7 .0 0 0 m u çu lm an os. (O bserve-se que fo ra im possível obter um vo to p ró-in terven ção d a O N U e que, p o r isso , era preciso intervir p o r o u tro s m eios.) P orém , p a r a a o p in ião dom in an te de esq u erd a, criti car os am erican os o u eu ropeu s p o r omissão é politicam en te in correto. E la se esquece que a ex tre m a direita am erican a é fun d am en talm en te iso lac io n ista (m esm o se intervém q u an d o há interesse direto), e que a intervenção am erican a n a guerra co n tra H itler, lev ad a avan te p elo centro-esquerda ro o sev eltian o , h avia sido du ram en te co m b atid o p ela direita iso lac io n ista. D ir-se-á que en tra ram na guerra p o r “ in teresse” , o que é v erd ad e, já que tu d o é “ in te resse” : de fa to , p o r “ in te resse” p o d em ser entend id as desde as m o tiv açõ es econ ôm icas m ais im ed iatas e eg o ístas, até m otivações co m p lex as em que entram , se n ão id eais, pelo m en os p ro je to s p o líticos. O p ro b le m a em política n ão é sab er se a atitu de foi “ in te re ssa d a ” , m as sab er se o interesse converge ou n ão , p o r razõ es conscientes ou inconscientes — ou p o r u m a m istu ra d a s d u as co isas — co m interesses u niversais. 141 M a lr a u x diz — ten to recon stitu ir o argu m en to — que entre o terro rista su icid a e o com -
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batente há u m a verd ad eira o p o siç ã o . A que se p a ra um a exigên cia m áx im a de vid a (a exigên cia de quem aceita a gran d e p ro v a) de u m a exigên cia de m orte. 142 R F in M . N o b r e e J . M . R e go , Conversas com filósofos brasileiros, op. cit., p. 168. 143 Op. cit., em p o rtu gu ês em Dissenso, artigo citado . 144 V er m inha entrevista em N o b re e R e go , Conversas..., op. cit. A p ro p ó sito de R o b ert K urz eu d izia: “ (...) n ão critico [em K urz] o cata stro fism o , m as a e sc a to lo g ia ” . [E em n ota:] isto é, não d igo que n ão h averá c a tástro fe s, só du vid o que elas n os co n d u zam à re d e n ç ã o ” (Conversas..., pp. 1 61, 172, n. 4. V er tam bém e Le Capital et la Logique , op. cit., p o sfácio “ Sur la politique de M a r x ” , pp . 1 4 0 -1 ; “ Sob re a p olítica de M a r x ” trad u ç ão em Dissenso, artigo citado . 145 “ M o d e lo ” no sentido de A d orn o. C a so s sigulares que fun cion am ao m esm o tem po co m o u niversais. N ã o h á p o r qu e tem er essa term in ologia, só p o rq u e há um u so p o sitiv ista do m esm o term o. 146 F rase que n ão cessei de p ro n u n ciar ou escrever d esde h á m u itos an o s. V er Le Capital et
la Logique de Hegel, op. cit., pp. 111 ss. 147 O que sign ifica que a idéia de “ g e rm e ” p o d e ter alg u m a v erd ad e. D e resto, m esm o no “ m elhor m a r x ism o ” , sim plifiquei um p o u co o p ro cesso : co n form e a p a ssa g e m , se um m o d o não traz co n sig o o prin cípio d o o u tro , m as só germ es de m orte, esses germ es p o d em ser “ equ ivalen te s” a o s d o s “ g erm e s” de vid a d o n ovo sistem a. E n tretan to isso n ão estabelece co n tin u idade. Pri m eiro p o rq u e esses germ es sã o um fa to r entre o u tro s. E, em segu n do lu gar, p o rq u e m esm o que o “ princípio de m o rte ” d a fo rm a an tiga e o “ prin cípio e v id a ” do novo m o d o sejam d a m esm a o r dem (d igam o s, a “ econ om ia m o n e tá ria ” no interior d a socied ad e feu dal e na co n stitu ição do c a p italism o), o p ro cesso se faz em d o is m om en tos (ou três, co m a tran siç ão ). M o rte d a fo rm a an ti ga, tra n siç ã o , su rgim en to d a nova. 148 Se, co m o vim os, a idéia de v irtu alidad e de u m a n ova fo rm a so cial n ão im plica em co n ti nuidade entre as fo rm as, ela in trodu z entretanto u m a d escon tin u id ade de certo m o d o m enos m ar cad a d o que o “ m e c an ism o ” clássico da m orte de u m a fo rm a co m lib e raç ão de p re ssu p o sto s, p o r que a su p o m o s so lid ária d a idéia de que o n ovo , em b o ra qu alitativam en te diferente, co n serva cer tos “ elem en tos” (m ais d o qu e “ p r e ssu p o sto s” ) d a fo rm a origin ária. 149 M a r x , Grundrisse der Kritik der politischen Okonomie, Berlin, D ietz, 1 9 5 3 , p. 9 4 5 , ci tad o em M L P II, p. 168. 150 U m a q u estão prévia seria a d o pap el do entendim ento n a d ialética de A d o rn o , a qu al, sem ser o “ m o d e lo ” , fo i m inha referência m ais p ró x im a entre a s três d ialéticas d a m odern idade. M a s a q u estão nos levaria m u ito lon ge, e p o r isso a an aliso só en passant, n o q u a d ro d o que direi sobre o lu gar d a d ialética no co n texto d o s desenvolvim en tos anteriores. 1:>1 Indiquei o p o n to de in flexão o u um deles: a “ n e g a ç ã o ” dialética se torn a n eg ação vu lgar. 152 P. E. A ran tes m e fez oralm ente essa o b je ção , no q u ad ro de um co ló q u io . 153 H éraclito, Fragments, tex to, trad u ção e com en tários de M arce l C onche, P aris, PU F, 1 9 8 7 (1 9 8 6 ), frag m en to 1 1 8 , p. 4 0 8 . C f. o fragm en to 11 7 — co m os co m en tários de M . C onch e — em que se fala de u m m ovim en to m ecânico que, sendo “ reto e c u r v o ” , é “ u m e o m e sm o ” (ibidem, p. 4 0 4 ss.). 154 A g en eralização veio de d iscu ssõ es co m m eus o rien tan d o s d a USP. 155 C o n fro n to aqu i o eu e o universal. Sabe-se que, na trad ição p sic an alítica, há u m a lon ga discu ssão a partir de um texto de Freud — o final da conferência 3 4, da Neue Folge der Vorlesungen zu Einfiibrung in die Psychanalyse (Nova série de conferências de introdução à Psicanálise) — so bre as relações entre o eu e o “ is s o ” (es). O p ro b le m a que d esen volvo é do m esm o reg istro , só que o eu é aqu i o “ eu p u lsio n a l” , em o p o siç ã o ao universal, e nesse sentido ele o c u p a o lu gar do “ is s o ” . A tese de qu e há d o is m ovim en tos, um que vai d o eu ao isso e ou tro que vai do isso ao eu — tra d u zid o na lin gu agem desse tex to, do eu ao u niversal e do u niversal ao eu — é de C a sto ria d is (Ver L ’institution imaginaire de la société, P aris, Seuil, 1 9 7 5 , p. 143).
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156 Até aqui, a resposta é clássica. 157 Em tudo o que se segue, creio que a melhor referência é o notável e sempre atual Aven turas da dialética de Merleau-Ponty. Esse livro, de há quase meio século, foi uma das primeiras grandes críticas da política m arxista, e continua sendo fundamental. 158 Sem dúvida, a dialética dos meios e dos fins em política pode encontrar a questão da corrupção ou da intervenção de interesses individuais-pessoais no universo da política. O proble m a aparece por exemplo sob a form a da questão: podem os utilizar com o meios para fins plena mente justificados a aliança com personagens e partidos corruptos? Só que a resposta à questão é negativa. E ssas alianças.não são em absoluto válidas, e isto porque elas acabam por “ poluir” os fins. Outra coisa é a possibilidade de justificar, por exemplo, e dentro de certos limites, a guerra que em si mesma é evidentemente um mal, ou então outros tipos de alianças. 159 O argumento e a terminologia devem ser usados com cautela. Em nome de uma pseudoluta contra o m oralism o — na realidade uma luta contra a ética — perpetram -se as m aiores violências. 160 E interessante observar com o a idéa da am oralidade de certo tipo de bom bardeios das cidades vai se im pondo, mesmo quando está a serviço de uma causa justa e as vítimas civis são involuntárias. H á uma exigência crescente de respeito à população civil, por parte da opinião pública ocidental, que deve ser exam inada com seriedade. Por outro lado, para além da ética, há a ques tão dos efeitos políticos negativos dessas ações. Ver m ais adiante.
1S1 O próprio atentado só indiretamente utilizou as técnicas mais recente; a rigor ele seri possível já há meio século. M as ele anuncia a possibilidade da utilização dessas técnicas por m o vimentos fundam entalistas. 162 É duvidoso que feche o capítulo do poder burocrático de “ esquerda” em geral. Sob uma form a sui generis que é a com binação de um Estado policial — com uma ideologia “ de esquerda” — com um capitalism o selvagem (já conhecíamos um “ p rato ” parecido mas como fenômeno “ da direita” , isto é, surgido no quadro do capitalism o e com a ideologia deste), o poder burocrático subsiste na China atual. Assim, este poder não subsiste apenas nas form as que podem parecer fol clóricas (não p ara os dissidentes) da Coréia do N orte, de C uba ou do Vietnã. A China não é uma pequena potência, é o mínimo que se poderia dizer. Que no período que se abre, a menos que as reform as ganhem terreno, um dos elementos essenciais será a presença desse totalitarism o capita lista, não é propriamente um fato auspicioso. 163 Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Kants Werke, Akadem ie-Textausgabe, Band IV, Berlim, W alter de Gruyter & C o., 1968, p. 393; Fondements de la Metaphysique des moeurs, in Kant, Oeuvres Philosophiques, Paris, Gallim ard, Bibliotèque de la Plêiade, vol. II, 1985, p. 250. 164 Ver a carta ao tradutor dos Princípios, Oeuvres et Lettres, G allim ard, Plêiade, 1953, p. 566, e a sexta parte do Discours de la Méthode. 165 Parerga und Paralipomena, I, “ Aphorismen zur Lebensweisheit” , Sämtliche Werke, IV, Sttutgart/Frankfurt, 1986, p. 381. 166 Bem entendido, a medicina, e sob certos aspectos até mais do que as outras ciências, não escapou nem escapa da “ dialética do Aufklärung". A partir dos anos 70, a hipermedicalização que dom inou a prim eira metade do século X X pelo menos, e cujos efeitos as pessoas da minha gera ção conhecem bem, começou a ser criticada no mundo ocidental (ela subsiste, é claro, em am plos setores). H oje se colocam os seríssimos problem as das novas técnicas e dos seus efeitos, para o melhor e para o pior. Qualquer que seja o destino dessas práticas, seria absurdo, entretanto, como hoje paradoxalm ente é um pouco m oda, negar o lado positivo do progresso, se convenientemente “dominado” , no campo dos conhecimentos médicos. Sobre a questão geral do progresso, para além tanto do fanatism o aufklärer com o de certos fundam entalism os naturalistas, ler o muito lúcido ensaio “ Fortschrit” (“ Progresso” ) de Theodor Adorno, em Stichwort (Kritische Modelle2), Frank furt, Surhrkamp, 1992, trad. francesa, Modèles Critiques, op. cit.
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1<5/ D escartes escrevia que torn ar-n os “ co m o qu e (comme) senh ores e p o ssu id o re s da n atu re z a ” era “ d esejável n ão só p a r a a invenção de u m a infinidade de artifícios que fariam co m que g o z á ssem o s (...) d o s fru to s de terra e de to d a s as co m o d id ad es que nela se en con tram , m as prin ci palm en te tam b ém p a ra a co n serv ação da saú d e, a q u al é sem dú vid a o p rim eiro bem e o fu n d a m ento de to d o s os o u tro s bens d esta vid a (...)” . “ É verdade — acrescen tava — que [a m edicina] que está hoje em u so con tém p o u cas co isas cu ja u tilidade seja tã o n otável; m as, sem que eu tenha nenhum a intenção de desprezar, estou certo de que n ão há ninguém , m esm o entre os que fazem p ro fissã o d ela, que n ão co n fesse que tu d o o que se sab e n ão é q u ase n ad a co m p a ra d o co m o que resta sa b e r ” (Discours de la Méthode, se x ta p arte, Oeuvres et Lettres, op. cit., p. 169. 16S Dij-.se-á q Ue os am erican os tam b ém sã o p erig o so s: eles jo g a ra m b o m b as atô m ic as, fo ram m esm o os ú nicos a u tilizá-las. M a s o p ro b le m a n ão é o de sab er se já as u tilizaram , e sim o de saber se hoje eles a u tilizariam . Sob esse asp ecto eles represen tam um perigo m enor d o que o que oferecem os terro ristas, e as p eq u en as n ações “ n u c le a riz a d a s” . A respeito d as b o m b as so b re o J a p ã o , seria preciso o b servar. O lan çam en to d as d u as b o m b as n ão se ju stifica, m ais que isso , foi um crim e qu e d everia ter sid o evitad o. P orém , n ão p a ra ju stificá-lo e sim p a r a situ á-lo, convém lem brar o co n texto . Ele ocorreu no cu rso de um a gu erra, e u m a g uerra, em que os d o is lad o s — e m ais ain d a o lad o de lá — u tilizavam os m eios m ais terríveis. Se a guerra estava g an h a co m o se diz, ela o estava no sentido de que o Ja p ã o dificilm ente p o d eria inverter a situ aç ão , m as n ão esta va g an h a se se preten de dizer co m isto que a vitória fin al n ão cu staria m ilhares e m ilhares de vidas
d o s d ois lad o s. E m resu m o , foi u m crim e (m atan ça de civis) — co m o o foi tam b ém e talvez p io r — o b o m b ard e io de D resd e, m as um crim e (o de H iro sh im a e N a g a sa k i) que se deu em circu n stân cias p recisas, de tal m o d o que é difícil im agin ar que hoje ele se repetiria. O s am erican os n ão se serviram da bo m b a no período em que eram os únicos detentores dela (em bora tenham , p o r exem plo, u sa d o de b o m b as d esfolh antes n a guerra d o V ietnã, além de terem feito m u itas co isas terríveis com arm as co n ven cion ais, d esde os m assac re s nas F ilip in as no início d o século X X , até as intervenções bru tais na A m érica L atin a). M a s a p ro p ó sito d a b o m b a — e já que se co stu m a recorrer a o s ex em p lo s d o p a ss a d o — seria b o m n ão esquecer que a resp o n sab ilid ad e da b u ro cracia dita soviética no “ jo g o d o te rro r” n ão foi m enor do que a dos am erican os: pense-se na crise de C u b a de 62 (nela ficou claro tam b ém o aven tu rism o su icida de Fidel C astro , que ch egou a sugerir a K ru tschev a p o s sib ilidad e de que este desse a prim eira salv a). A lém d isso — hoje se sab e — os ru sso s fo ram “ v a n g u a r d a ” no que se refere à p re p a ra ç ã o d a guerra bacteriológ ica. Porém quem u so u d as arm as de guerra m ais terríveis, nos últim os tem pos — gás — fo ram os terroristas japon eses e Sad d am H ussein, este co n tra cu rd os (os seus co lo n izad o s) e iran ian o s. Ele reconheceu, a liás, ter c o lo cad o cep as in fecciosas n as o g iv as de seus m ísseis, m esm o se n ão chegou a u sá-los. D ir-se-á que se o s am erica nos n ão a m eaçam co m a b o m b a — aliás n ão u sar a bomba n ão significa n ão utilizar arm am en to atôm ico tático, o que já n ão é p o u co — , am eaçam de ou tra fo rm a, que os efeitos de sua política econôm ica principalm ente sã o d esatro so s. Sem dúvida, é preciso co m b atê-lo s; m as, ap esar de tudo, é p ossível co m b atê-lo s politicam en te, tan to no p lan o n acion al (através de um a p olítica de resis tência e au to n o m ia) co m o no p lan o in tern acion al, sem excluir os co n tato s co m o m elhor d a es qu erd a am erican a. E tam b ém sem esquecer o p ap el fun d am en tal que p o d erá ter a E u ro p a, se ela n ão fo r m in ad a p elo s n eo fascism o s.
169 A proveito p a ra lem b rar aq u i u m ou tro asp e cto p ertu rb ad o r — que m u itos co n sid erarão um detalhe, um p o u co co m o o terrorism o p arecia ser — n a p o lítica exterior am erican a. O s am e rican os, m esm o a ad m in istração dem o crata, to m am in ternacionalm en te a defesa d as seitas m icrototalitárias, em nom e da liberdade religiosa. N ã o p o sso desenvolver aqu i esta q u estão, m as o m icroto talitarism o d a s seitas deveria ser p o sto em p aralelo com o d o s terrorism o s (ainda que o s m éto d o s respectivos sejam diferentes e q u ase o p o sto s). A lém de estar im b ricad a co m a d efesa d o s p o deres econ ôm icos (as seitas são o rgan izaçõ es de g ran d es recu rsos), a atitu de am erican diante d as seitas deve ser en tendida no q u ad ro da m esm a id eo lo g ia h iper-individualista “ in vertid am en te” re p ressiva — “ liberdade re lig io sa ” , “ liberd ad e de in iciativ a” — em nom e d a qu al os E U A su sten tam a ca u sa d as g ran des em p resas m u ltin acio n ais.
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170 O s efeitos parecem positivos no caso da Irlanda. Eles pareciam inicialmente positivos tam bém no caso palestino, m as hoje é tudo extremamente duvidoso. 171 Em aula na USP, em 1999, observei que o esquema reflexionante de Kant é a transposi ção para a história do mecanismo utilitarista da transform ação dos vícios privados em virtudes públicas. A observação, bem escutada por alguns, reapareceu por aí. Ela está também — aviso aos interessados — num dos volumes da Filosofia Política de Renaut e Ferry. 172 “ (...) Através das guerras, de sua preparação excessiva e incessante, pela miséria em que finalmente deve se sentir interiormente de cada Estado, mesmo em tempo de paz, a natureza os impulsiona a fazer tentativas no início imperfeitas, finalmente, depois de m uitos desastres e nau frágios, e mesmo depois de um pleno esgotamento interior de suas forças, a fazer aquilo que a razão também poderia ter dito, sem uma experiência tão triste, a saber: sair da condição dos selvagens, a de ausência de lei, para entrar numa liga de nações, na qual cada Estado, mesmo o menor, pode ria esperar a sua segurança e o seus direitos, não pelo próprio julgam ento do direito, m as somente desta grande liga de nações (foedus am phictyonum), de uma força unida e da decisão, conforme a leis, a vontade un ificada” (Idee zur eine allgemeinen Geschichte in Weltbürger Absicht, Werkausgabe, X I, Frankfurt, Suhrkamp, 1977, p. 42. Kant, Oeuvres Philosopbiques, Idée d ’une bistoire iiniverselle au point de vue cosmopolitique, Paris, Gallim ard, Plêiade, II, pp. 196-7) Cf. Idee zur..., op. cit., p. 47, Idée..., op. cit., pp. 201-2, onde se fala que os governos seriam movidos “ pelo pró prio interesse” à pratica de uma política “ aufklárer” . 173 Este texto já estava escrito, quando Edgar M orin publicou um artigo que vai na mesma direção, e cujos próprios termos são às vezes m uitos próxim os do que escrevi aqui (ver “ Sociétémonde contre terreur-monde” , in “ Guerre éclair, doute persistant” , suplemento do jornal Le Monde, Paris, 22/12/2001). N ão resisto à tentação de citar algum as passagens desse texto: “ Os Estados Unidos são a m ais antiga dem ocracia do globo, eles constituem uma sociedade aberta e por causa dessa característica, a partir daqui vulnerável. Eles salvaram a Europa ocidental do nazism o, eles a protegeram da U RSS que estava longe de ser um tigre de papel. Eles socorreram povos islâmicos na Bósnia e no K osovo. O s Estados Unidos não são responsáveis pela guerra m ortífera Iraque-Irã, pelo terror na Argélia, por todos os conflitos inter-árabes. Sua cultura não se reduz ao M cD onald’s nem à Coca-Cola, mas ela se m ostrou criadora na ciência, na literatura, no cinema, no jazz, no rock (...) M as eles constituem uma potência imperial dom inadora pelo armam ento e pela econo mia. Sua democracia não os impede de form a algum a de sustentar ditaduras quando seu interesse o pede. Seu hum anism o com porta uma mancha cega de desumanidade: eles praticaram os bom bardeiros de terror sobre as cidades alem ães, depois as hecatom bes de Hiroshim a e N agasak i. Os bom bardeios contínuos do Afeganistão revelam um outro terrorism o atingindo populações civis, vítimas não só de bom bas ou de mísseis lançados de uma altura e de uma distância excessivas, m as do medo e da fome, que os obriga ao êxodo. Sensíveis ao sofrimento das 5.000 vítimas do W orld Trade Center, eles são insensíveis aos desastres hum anos que os seus bom bardeios infli gem às populações afegãs. Eles são inconscientes da contradição que com porta o terror de seus bom bardeiros anti-terroristas” (p. VI). M ais adiante ele escreve que “ os E stados Unidos são con siderados como o mal supremo e atual do m al ocidental” mas que “ também aqui é necessário manter juntas duas verdades op o stas” . 174 E ssa fórmula visa dar conta das insuficiências tanto da atm osfera intelectual dominante no Brasil, pelo menos em certos círculos, como da que predom ina na Europa. N o Brasil, não se vê o que não funciona no m arxism o. N a Europa, pelo contrário, abandonou-se completamente o que, do m arxism o — sem falar na dialética — deveria ser conservado.
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I. A APRESEN TAÇÃ O M A R XISTA DA HISTÓRIA: M O D ELO S
N
o ta
“ A apresentação m arxista da história: m odelos” está ligado ao ensaio “ Para uma crítica da apresentação m arxista da história: sobre a sucessão dos m odos de produção” , publicado no volume II de M arx: Lógica e Política (São Paulo, Brasiliense, 1983; 2 a ed. 1987). N o ensaio publicado no volume II, eu estudo o discurso m arxiano enquanto discurso posto; no presente texto, sobretudo como discurso pressuposto. Os dois textos são prolegómenos a uma crítica da apresentação marxista da história. Retom o aqui, em grandes linhas, a versão original de 1989. Além de algumas correções estilísticas, incluí algumas notas que completam ou corrigem o texto.
In t r o d u ç ã o
N a sua versão mais rica, o m arxism o reúne em forma contraditória um dis curso posto sobre os m odos de produção que se alinham em dispersão e descontinuidade, e um discurso pressuposto que organiza, em (quase) continuidade, a his tória até o capitalism o1. Este o ponto de partida para entender a apresentação m ar xista da história. Com o seria fácil m ostrar, pouca gente chegou a esse resultado, o que revela o quanto a discussão sobre m arxism o e história, que se supõe às vezes como mais ou menos encerrada, começa apenas a ser formulada em bases sólidas. O esquema é de resto mais complicado do que se poderia supor, porque além do discurso posto que trata das histórias, há, nas versões mais elaboradas, pelo menos dois níveis de quase-totalização, um retilíneo e um circular. Vê-se que toda discussão crítica sobre a apresentação m arxista da história e sobre a idéia m arxista de progresso deve enfrentar um objeto complexo e contra ditório, no qual se reconhece uma pluralidade de registros. H á porém ainda uma outra dificuldade, que pode parecer meramente marxológica, m as é na realidade essencial. M arx não deixou apenas um a versão da sua apresentação da história. Sem dúvida, os modelos que encontramos são em parte convergentes, mas só em parte. Se não quanto às linhas da ação política que eles propõem, as diferenças entre os modelos são significativas quanto ao sentido que se dá à história, e à lógica em que se articula o conjunto do processo histórico. Elas se manifestam assim tanto no plano da forma, que é ela mesma uma determinação do conteúdo, como no plano do conteúdo. O presente texto, que tratará desses m odelos, é, juntamente com um texto
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anterior2, só um prolegómeno a um a crítica da apresentação m arxista da historia. Ele contém entretanto alguns desenvolvimentos críticos. Os grandes modelos que serão estudados são os seguintes: 1) o do Manifesto comunista e da Ideologia alemã; 2) o dos Grundrisse e de O Capital; e 3) o dos M a nuscritos de 1844. Cada um desses modelos, no interior dos quais há variantes, tem urna lógica própria, que articula uma idéia de historia, um conceito de ideologia, uma concepção de universalidade, uma relação com o tempo, uma versão do sen tido do progresso. M eu objetivo é estudar essas lógicas da história que se encon tram no corpus m arxiano. Sem esse trabalho prévio de distinção dos m odelos, mesmos se as convergências são indiscutíveis, toda crítica da apresentação m arxis ta da história corre o risco de visar mal o seu objeto. “ A inteligência (Klugheit) subalterna, que se recusa a falar do progresso antes de poder distinguir progresso em que, para onde, em relação a que, escamoteia a unidade dos momentos, que no conceito se trabalham uns aos outros, em mera jus taposição.” 3 A observação de Adorno vale, m as vale também a necessidade de es tabelecer algumas distinções, mesmo se elas se resolverão em “ m om entos” . Assim, distinguirei uma história da liberdade, uma história da riqueza, uma história da sa tisfação. Em todas elas será preciso distinguir, por sua vez, o curso ou a direção do processo (se retilíneo ou circular etc.) do seu sentido (progressão, regressão, progressão-regressão etc.). As demais distinções serão introduzidas no corpo do texto.
1. O M a n if e s t o c o m u n is t a e a I d e o l o g ia a l e m ã
Nesse primeiro modelo, o tempo domina o conceito. N ão é o conceito que põe o tempo, m as o tempo que põe o conceito. H á por isso mesmo um prim ado da prática, que vai até o ponto de diluir as significações teóricas. — Logicamente, isso aparece como um imperialismo do discurso posto, que reduz a muito pouco, e no limite aniquila, o discurso pressuposto. Se uma caracterização convém a esse m o delo é a de historicista, mas esse historicismo é bem diferente daquele que estuda remos no penúltimo ensaio desse volume4. A. O M anifesto comunista — a) Tom ando como referência o segundo mode lo, que estudarem os mais adiante, poder-se-ia distinguir em M arx, de um lado, noções, como as de “ história” , que articulam um movimento de quase-totalização com um curso retilíneo, noções que chamarei de meta-pressuposições; e de outro noções, como as de liberdade, propriedade, riqueza, satisfação, que remetem a um movimento de quase-totalização circular, e que chamarei de pressuposições5. N o primeiro caso, a estrutura pressuposta é a da gênese, a da passagem de uma préhistória a uma história. N o segundo, tem-se antes uma negação da negação, uma figura propriamente hegeliana. M as nos dois casos, passa-se de uma negação (pre cedida por uma posição em um deles) a uma posição final. A distinção entre essas duas séries de conceitos não é, entretanto, absoluta. Para a m aioria daqueles conceitos (e outros análogos), embora não para todos, há um uso possível num contexto e no outro. A diferença aparece então como uma diferença de forma. Por exemplo, para a noção de “ hom em ” , poder-se-ia pressu-
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por por um lado um processo retilíneo, o que descreve a historia do nascimento do homem-sujeito, e por outro lado um movimento circular, que vai do homem-sujeito do pré-capitalismo ao homem-Sujeito do comunismo, passando pelo homem '“negado” do capitalismo. O mesmo para a liberdade. M as para a noção de “ histó ria” , isto já é problemático, o que m ostra que certos conteúdos se ajustam mais a um contexto do que a outro. O que caracteriza o M anifesto comunista é a ausência de negação num caso como no outro. Com efeito, por um lado, não há no M anifesto processo de consti tuição das meta-pressuposiçóes. N ão há passagem da pré-história à história, de uma pré-sociedade à Sociedade, de um homem a um Homem etc. H á apenas e sempre: história, homem, sociedade. Ou seja, não se põe a distinção entre conceito consti tuído e conceito em constituição, distinção que deveria escandir o tempo em dois grandes momentos. O conceito não separa o tempo de constituição do tempo do objeto constituído. Pelo contrário, é o tempo que escande o conceito. E essa escansão significa a diluição dele no tempo e, no limite, a sua aniquilação, já que o conceito exige a dom inação do tempo. O discurso do M anifesto é comandado pela distin ção entre o que é até aqui (bisherige) e o que é futuro (zukünftige): “ Todos os m o vimento até aqui ( . . . ) ” ( W 4, p. 473 [F] ) é. “ Toda história até aqui ( . . . ) (ibidem); “ A história de toda sociedade até aqui (...)” (W 4, p. 480 [F]); “ Suas pressuposi ções positivas sobre a sociedade futura (...)” (W. 4, p. 491 [F]). Nesses textos, à escansão do tempo pelo próprio tempo corresponde uma identidade no plano das noções: história, sociedade etc. O mesmo vale para as noções de homem e de indi víduo. Elas são postas para exprimir tanto o objeto anterior ao comunismo, como o objeto interior a este. “ N a sociedade burguesa o capital é autônom o e im pesso al” (W 4, p. 476 [F]). O indivíduo não é autônom o nem pessoal na sociedade bur guesa, m as o discurso que enuncia esse fato só raramente põe outro conceito em lugar do de indivíduo (a saber o de portador [Träger]7) para exprimir esse objeto. Ao indivíduo não autônomo e impessoal da sociedade “ até aqu i” se contrapõem os “ indivíduos associados” (“ [...] toda a produção se concentra nas m ãos dos indi víduos associad os” (W 4, p. 482 [F]). Do mesmo m odo, aos homens de antes da época do comunismo8 sucedem os homens tais como eles serão na sociedade co munista: “ (...) os homens são finalmente obrigados a ver com olhos sóbrios sua situação de vida, suas relações recíprocas” (W 4, p. 465 [F]). A diferença está sem pre no predicado (que de resto é, de certo m odo, constituído pela simples escansão do tempo), ela não está no sujeito. Este permanece idêntico, homogêneo. A ausên cia de um processo de constituição (pré-história/ história, em primeiro lugar) faz com que, em vez de uma descontinuidade dialética (descontinuidade entre a “ ne gação” inerente a todo objeto na sua pré-história, e a sua posição na História), se estabeleça — nesse plano — uma continuidade83. Porém a descontinuidade dialética nesse plano não se perde apenas em conti nuidade. Se das meta-pressuposições passarm os às pressuposições, também não en contraremos a descontinuidade dialética; aqui, entretanto, não em proveito da con tinuidade, mas do seu oposto, a descontinuidade “ vulgar” . De fato se, como disse, no segundo modelo, que veremos mais adiante, as pressuposições propriamente ditas são “ negadas” , inseridas que estão num esquema circular de posição, “ negação” e
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posição — no M anifesto, pelo menos se considerarmos a tendência geral, não há propriamente “ negação” . Em lugar dela, o que encontramos é ou ausência pura e simples, ou uma presença parcial. O que significa que, também nesse caso, em vez da passagem de uma “ negação” a uma posição, temos um movimento que vai de uma ausência a uma presença, ou então de uma presença parcial a uma presença total. Essa observação vale para a liberdade, para a propriedade (embora a propó sito da propriedade haja um texto que não vai no mesmo sentido), para a riqueza e para a satisfação. De um modo geral, para a época anterior à do comunismo, ou se diz que elas são inexistentes, ou se afirma que existem apenas para alguns. Elas não são consideradas propriamente como negativas, como o serão em outros textos. Entenda-se o que isto implica. Que, na época da burguesia9, a liberdade, a propriedade etc. sejam nada, ou então realidades parciais (existentes só para alguns), isto significa que elas não existem em forma geral ou universal nesse período. Para que as significações “ liberdade” , “ propriedade” etc. existam enquanto significações objetivas, é preciso supor que de alguma form a, mesmo negativamente, elas exis tem para todos. Se elas só existem para alguns não há universalização possível, a significação universal se resolve na particularidade que esgota o seu sentido. Só existe a liberdade burguesa, a propriedade burguesa, a satisfação burguesa. Ora, na me dida em que a quase-totalização no plano da história global depende dessa uni versalização, a recusa desta última a compromete. Resta a multiplicidade do que para o M anifesto são as formas de propriedade. A história não será estritamente mais do que essa sucessão de formas. De fato, a história se exprime no Manifesto da seguinte maneira: há por um lado significações “ m udas” como a própria noção de história, que não são objeto de constituição, e valem para todas as épocas, in clusive para o comunismo. De outro, uma pluralidade de formas de propriedade particulares absolutamente refratárias a toda totalização. Longe de se excluir, as duas coisas se encontram, na medida em que em ambas se recusa a “ negação” . Temse assim um a unidade “ m uda” e um a totalidade de pura dispersão, nos dois casos algo que fica aquém de uma rigorosa apresentação dialética. Uma conseqüência desse estatuto da universalidade é evidentemente uma idéia “ generalizante” e nominalista da ideologia. As pressuposições são representações “ com uns” e não verdadeiros universais, e menos do que noções, elas são antes “ maneiras de dizer” . O único sentido que se pode dar a elas é o sentido específico que têm no interior de uma forma de propriedade, e em oposição a outras formas. “ A história de toda a sociedade [existente] até aqui se moveu em oposições de clas ses, que tom aram formas diferentes nas diferentes épocas. (...) M as qualquer que tenha sido a forma que elas tom aram , é um fato comum (gemeinsame Tatsache) a todos os séculos passados a exploração de uma parte da sociedade pela outra. Por isso, não é de se admirar que a consciência social de todos os séculos, apesar de toda a multiplicidade e variedade, se mova em certas form as comuns, formas de cons ciência, que só se dissolvem plenamente com o total desaparecimento das oposi ções de classe” (W 4, p. 480 [Fj). “ N a sociedade burguesa o capital é autônom o e im pessoal, enquanto o indivíduo ativo e não autônom o é impessoal. (...) E a bur guesia chama a supressão dessa relação, de supressão da personalidade e da liber dade! E com razão. Trata-se de fato da supressão da personalidade, da autonomia
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e da liberdade burguesas. (...) Por liberdade se entende no interior das atuais rela ções de produção burguesas, o livre comércio, a compra e venda livres. (...) M as se cai o tráfico; cai também o tráfico livre. As maneiras de dizer ( Redensarten) a pro pósito do livre tráfico, como todas as demais bravatas de liberdade da nossa bur guesia, só têm em geral sentido (einen Sinn) diante do tráfico refreado, diante do burguês sujeitado da Idade M édia, mas não diante da supressão comunista do trá fico, das relações burguesas de produção e da própria burguesia” (W 4, p. 476 [F]).10 b) Vê-se quais são as conseqüências dessa maneira de pensar ou antes de não pensar a totalidade. M esm o se se afirma que é com o comunismo que se chega a uma sociedade de liberdade etc, a novidade radical da sociedade comunista não está posta. Afirm ada embora a sua radicalidade e originalidade diante das outras revo luções, a revolução comunista é apresentada entretanto como uma revolução dife rente das outras só no sentido em que cada uma delas o foi , isto é, ela é igual às outras na sua diferença. N o nível da posição, a revolução comunista é uma revolu ção como qualquer outra. Ela é diferente de cada uma das outras revoluções, mas não exatamente do conjunto das outras. “ O que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa” (W 4, p. 475). O texto se refere ao fato de que a propriedade subsiste — ou só existe — no comunismo (enquanto relação ao mesmo tempo coletiva e pessoal) ou quer di zer que o comunismo não abole toda a propriedade que existiu até aqui, m as só a propriedade burguesa? O contexto sugere a segunda leitura. Em primeiro lugar, por que M arx escreve em continuação: “ M as a propriedade privada moderna burgue sa é a última e a mais completa (vollendete) expressão da produção e apropriação dos produtos, que se baseia em oposições de classe, na exploração de uma pelas outras” (ibidem); “ N esse sentido, os comunistas podem resumir a sua teoria na expressão: abolição da propriedade privada em geral” (ibidem [F]). E mais clara mente ainda porque se indica a razão da exigência de uma posição, exclusiva, da particularidade: “ Os princípios teóricos dos comunistas não residem absolutamente em idéias, em princípios, que são inventados por este ou aquele reform ador do mundo. (...) Eles são só expressões gerais de relações efetivas de uma luta de clas ses existente, de um movimento histórico que se processa sob os nossos olhos. A abolição das relações de propriedade que existiram até aqui não caracteriza pro priamente o comunismo (ist nicht dem Kommunismus eigentlicb bezeichnendes ) ” (ibidem [F]). Também aqui poder-se-ia pensar em outra leitura, a saber, que a abo lição da propriedade em geral é uma característica comum ao comunismo e a ou tros movimentos. M as a continuação, que explicita o texto, estabelecendo um p a ralelo com a revolução burguesa, parece eliminar toda ambigüidade: “ T odas as relações de propriedade estiveram submetidas a uma mudança histórica constante, a uma transform ação constante. A revolução francesa, por exemplo, aboliu a pro priedade feudal em proveito da propriedade burguesa” (ibidem). A revolução comunista é assim revolução contra a propriedade burguesa, não contra a propriedade em geral. Ela é revolução contra a propriedade burguesa, como a revolução burguesa foi uma revolução contra a propriedade feudal. Dir-se-á que M arx nunca deixará de pensar assim. A revolução comunista será sempre conside rada por ele como revolução contra o capitalismo, não contra toda a história ante
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rior. Isto é verdade, m as só no plano do discurso posto. Aqui se trata também do discurso posto; porém a diferença com outras obras está precisamente no fato de que nestas há em outras passagens um discurso pressuposto que opera uma (quase-) totalização, discurso que está ausente no Manifesto. Claro que o M anifesto diz a radicalidade da diferença entre o comunismo e as outras formas de propriedade. M as na falta de uma articulação totalizante, ficamos aquém do que seria propria mente um discurso pressuposto. O “ sistema” de pressuposições não é posto enquanto tal. Temos de certo modo só a pressuposição das pressuposições, não a posição delas enquanto pressuposições. O que significa dizer, em última análise, que é a prática que com anda o discurso teórico e o discurso em geral. Os limites de toda posição teórica (mesmo a posição das pressuposições) são dados pela ação prática, pela luta de classes em suma (veremos que isso não se deve exclusivamente ao fato de se tra tar de um m anifesto, texto prático por excelência). Nesse universo, só é lícito pôr um conceito, se a ele corresponder uma ação efetiva real ou possível. Se ao concei to não corresponder uma ação, ele é pura determinação e se reduz a representação vazia, e representação enganadora e inibidora da ação. N o fundo, se os comunistas não recorrem a idéias ou princípios, é que eles não querem abandonar o solo prático da história. E se eles não querem abandonar esse solo, é que todo vôo pretensamente teórico que supõe ultrapassá-lo, introduz uma opacidade que pesa negativamente sobre a prática revolucionária. Nesse sen tido, a perspectiva é oposta à dos M anuscritos de 1844, que analisarem os mais adiante. Lá se trata11 de olhar para mais longe do que o comunismo, de dizer a teoria a partir de uma época que só poderá vir depois dele. Aqui, trata-se pelo contrário de inibir, na medida do possível, todo “ além ” , e se dessa inibição não resulta uma pura ausência, fica-se aquém de um real discurso pressuposto e da negação dialética. Para o M anifesto, toda “ proposição” de “ idéias” ou “ princípios” põe o que não é efetivo (e portanto o que é apenas determinado) e através disso inibe ou pode inibir a posição prática, a efetivação real do comunismo, ou inversamente, pode estimular uma posição prática cujo impulso não irá na direção do comunismo12. Tudo isto m ostra o quanto a posição teórica, da perspectiva do M anifesto, tem de ser adequada à efetivação prática. Observe-se que não há nenhum apelo a uma educação “ trans-histórica” do proletariado (uma educação que o prepare a sair da pré-história13). N a perspectiva de outros textos, mesmo supondo que a revolução comunista começa como todas as outras, poder-se-ia admitir que ela só será possí vel se o proletariado se elevar a uma consciência do conjunto do processo histórico ou a uma maneira de ser em ruptura consciente com todo o passado. N o M anifes to, não se trata bem disto. O M anifesto, que é um instrumento de educação, convi da a não pôr qualquer instância totalizante. Se de algum m odo ele poderá contri buir à auto-educação do proletariado, essa contribuição será à sua maneira negativa. c) “ (...) a propriedade privada moderna burguesa é a última e a mais comple ta expressão da produção e apropriação dos produtos que se baseia em oposições de classe (...)” (W 4, p. 475 [F]). Este não é o único texto de M arx em que a proprie dade burguesa é dita a última. Ver o prefácio da Contribuição à crítica da Econo mia Política, como também um texto dos Grundrisse14. Bernstein talvez tenha sido o primeiro a observar as dificuldades do emprego desse termo, ao escrever a pro
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pósito do prefácio à Contribuição à crítica da Econom ia Política: “ (...) deve-se ob servar desde o início que a frase final e a palavra “ últim a” na frase que a precede não são demonstráveis (beiveisbar) (..,)” 15. Em certo sentido, a grande dificuldade que oferece a apresentação marxista da história reside no emprego desse termo. Aqui se trata de analisar o que ele significa no contexto do Manifesto. Sem dúvida, tenta-se justificar a idéia de que não poderá haver outra forma de exploração. E assim como se m ostra a novidade histórica que representa o co munismo, também se afirma, em alguma medida, a originalidade da revolução. N a época burguesa as oposições de classe se simplificam e as relações se universalizam. Por outro lado — e isto é absolutamente novo — se as antigas formas de proprie dade garantiam a sobrevivência dos explorados, na época burguesa estes são con denados não só ao pauperism o mas também ao aniquilamento. A revolução é as sim uma exigência de sobrevivência. Além disso, diferentemente do que ocorria anteriormente, a classe revolucionária não tem condições próprias — form as de apropriação — a impor. Pelo contrário, ela quer se desfazer dessas condições. Fi nalmente, ao contrário do que aconteceu no passado, a revolução será um movi mento autônom o da imensa m aioria16. De fato, sob todos esses aspectos as condi ções atuais e a revolução aparecem na sua originalidade. M as na falta de um ver dadeiro discurso pressuposto, essas indicações, mesmo se essenciais, antes situam a revolução comunista e o comunismo numa série (elas indicam o fechamento da série), do que estruturam a história através de um princípio quase-universal de ar ticulação. Sem dúvida, ao opor a simplificação das oposições que caracterizaria a sociedade burguesa ao sistema complexo de oposições característico das socieda des anteriores, compara-se a universalização das relações no interior do mundo burguês com o caráter não universal de todas as relações anteriores. M as não se vai até o ponto de pôr a form ação atual e a revolução proletária como universais concretos, como universais-singulares em que se presentifica o conjunto do p assa do. Claro que se pode perguntar se isto ocorrerá efetivamente nos outros modelos, mas a presença de um esquema articulado de pressuposições parece garantir uma resposta afirmativa. Talvez na afirm ação de que o proletariado não tem princípio particular de apropriação a impor — consideração que não está ausente de outros textos, m as não será mais instância decisiva — esteja o segredo da idéia de história do M anifesto. A história da exploração se esgota com o proletariado. Ele não tem princípio de exploração a impor, pois é vítima do “ seu” princípio. E se ele não tem um princípio de exploração, é a história que não tem mais. A revolução comunista aparece assim como uma revolução qualquer (como as outras, ela se faz contra um sistema de opressão), mas um movimento revolucionário qualquer, que, malgré lui, efetua uma mudança original e radical. E que, uma vez destruída a propriedade burguesa, não há mais nada, em termos de exploração, para pôr em seu lugar. Assim como o prefácio à Contribuição à crítica... nos diz que é impossível a morte de um m odo de produção antes que sejam esgotadas todas as suas possibilidades (e por tanto vê o seu desaparecimento como o resultado do esgotamento das suas possi bilidades), aqui se trata do esgotamento das possibilidades da história da explora ção. Totaliza-se, talvez, mas sem que a totalidade seja posta mesmo como pressu posição. Ou, como vimos, a revolução não totaliza mas é o final de uma série. Ela
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é a última. A exploração se esgotou, não tem mais nada a produzir. A revolução comunista que em si e para si é uma revolução como qualquer outra, recebe de certo modo o fim de toda a exploração — e aí estaria a sua originalidade — como um resultado que a rigor ela nem visava nem deveria visar. Porque se visasse, e mesmo se como pressuposto, o projeto correria o risco de se interverter e anular. Do comunismo, diz o Manifesto: “ Em lugar da antiga sociedade burguesa com suas classes e oposições de classe, surge uma associação em que o livre desenvolvi mento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de to dos” (W 4, p. 482 [F]). A história aparece assim como história da liberdade. M ais do que história da satisfação, e mesmo, relativamente, do que história da riqueza. O desenvolvimen to da riqueza (e no período burguês em particular) é sem dúvida fundamental, pois sem ele o comunismo não seria possível. M as a noção de riqueza, no M anifesto, não tem o papel que terá nos Grundrisse. Do esgotamento da exploração, e pela luta contra o que representa a última forma desta, surgiria assim uma sociedade de liberdade17. B. A Ideologia alemã —· a) Tam bém na Ideologia alem ã só se tem, a rigor, o discurso posto. Flá, entretanto, diferenças em relação ao Manifesto. De uma m a neira ainda m ais clara do que no M anifesto, porque a rejeição é absolutamente explícita, não há processo de constituição das pressuposições: “ Os indivíduos que não estão mais subsum idos sob a divisão do trabalho, os filósofos os representa ram enquanto ideal (Ideal) com o nome ‘o homem’, e compreenderam a totalidade do processo que desenvolvemos como processo de desenvolvimento ‘do homem’, de tal modo que sob os indivíduos [que existiram] até aqui em cada nível (Stufe) histórico foi interposto ‘o hom em ’, [o qual] foi representado com o a força im pulsionadora da história. O processo total foi assim compreendido como processo de auto-alienação ‘do homem’, e isto provém essencialmente do [fato de] que se in terpõe sempre o indivíduo médio do nível posterior ao [do nível] anterior, e a cons ciência posterior aos indivíduos anteriores. Através dessa inversão, que desde o início faz abstração das condições efetivas, foi possível transform ar toda a história em processo de desenvolvimento da consciência” (W 3, p. 69 [F])18. Essa crítica de todo discurso pressuposto de constituição é solidária de uma crítica da filosofia, crítica que não deve ser confundida nem com a que está presen te em form a mais ou menos implícita em O Capital ou os Grundrisse, nem com a que se encontra nos M anuscritos de 1844. N a Ideologia alem ã, o questionamento da filosofia não está longe da crítica positivista: “ Lá onde cessa a especulação, na vida real, começa assim a ciência real, positiva, a apresentação da atividade (Be tätigung) prática, do processo prático do desenvolvimento dos homens. Cessam as frases sobre a consciência, o saber real deve tomar o lugar delas. Com a apresentação da realidade efetiva, a filosofia autônom a perde o seu meio de existência. N o lugar dela pode entrar no m áximo um resumo dos resultados gerais que se pode abstrair da consideração do desenvolvimento dos homens. Separadas da história efetiva, essas abstrações não têm por si nenhum valor. Elas só podem servir para facilitar a or denação do material histórico, para indicar a série das suas estratificações (Schichten) individuais. M as elas não dão de forma algum a, como a filosofia, uma receita ou
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esquem a, segundo o qual as épocas históricas podem ser acom odadas (zurückstützen)” (W 3, p. 2 7 [F]). A filosofia é concebida assim só como sistema dogmático, no sentido mais grosseiro. Vê-se por outro lado que não se recusa toda pressuposi ção, m as sim todo processo de constituição e toda pretensão à universalidade19. Que representam desse ponto de vista as pressuposições?20 As pressuposições são idéias, e as idéias são em primeiro lugar produtos; elas emanam da produção espiritual e são lançadas na circulação espiritual, como os produtos materiais vão da produção à circulação material21: “ A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material, dispõe também ao mesmo tempo dos meios da produ ção espiritual (...)” (W 3, p. 46)22. Elas são forças, potências espirituais, mesmo se se diz que enquanto forças elas não são diferentes das classes a que correpondem23. M as que representam elas em termos de significação? Sabem os que as idéias exprimem as relações materiais dominantes. Entre elas e estas relações, existe uma distância que é fruto de uma transfiguração. Esta é ao mesmo tempo uma idealização e uma universalização. Por exemplo, a partilha tem porária do poder, episódio da “ luta entre o rei, os príncipes e a burguesia, se transfigura em doutrina da divisão dos poderes” 24. O conteúdo das forças em luta e a oposição delas são assim idea lizados. Por sua vez, a particularidade se torna universalidade ilusória. O interesse de classe se transfigura em interesse de todos os membros da sociedade (o que, no início do processo, não é em princípio ilusório, já que então a classe revolucionária representa efetivamente o interesse de todas as classes)25. H á assim na ideologia uma espécie de “ deslizamento” da significação, que é ao mesmo tempo um excesso de significação. Ela só nos dá acesso ao real se sobre ela se proceder a uma operação de desidealização e desuniversalização. M as o que representa essa sobre-significação de que é preciso se desfazer? Ela é uma significação ou antes uma intenção de significação que não é preenchida mesmo negativamente. Tudo se passa como se, a exemplo do que vimos para o M anifesto, no universo da Ideologia alem ã a frase “ a liberdade é... a liberdade burguesa” tivesse a rigor não um sujeito pressuposto, que é negado pelo predicado, mas ainda menos do que isto. O sujeito não é ilusó rio no sentido de que o seu preenchimento só pode ser negativo. Ele não é absolu tamente preenchido. Trata-se de uma significação que permanece vazia e que se resolve em coisa, produto ou potência prática, ou se dilui em imagem (Phantasie, Hirngespint)26 em im aginação, em non-sens27 ou em nome. A teoria da ideologia que se encontra na Ideologia alemã é assim m arcada pelo materialismo reducionista, pelo psicologism o e pelo nominalismo. A ideologia é a “ som bra da realidade efeti va” 28. A definição da “ propriedade” que dá Destutt de Tracy é a ocasião de uma crítica das definições ideais-universais que oferece a ideologia. O tema tem um in teresse particular, veremos por quê. Destutt relaciona propriedade com próprio e reduz a crítica da propriedade à crítica de tudo o que nos é “ próprio” . “ Depois de identificar assim propriedade privada e personalidade, como em Stirner através do jogo de palavras com mein e Meinung, com Eigentum (propriedade) e Eigenheit (o próprio), em Destutt de Tracy com proprieté e propre, tira-se a seguinte conclusão [M arx cita agora Destutt]: ‘E absolutamente inútil perguntar se não seria melhor que nada fosse próprio — em todo o caso isto significa perguntar se não seria me lhor que fôssem os totalmente outros e mesmo investigar se não seria melhor que
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não fôssem os nada’ ” (W 3, p. 210). M arx comenta o que lhe parece ser um jogo de palavras etimológico: “ O burguês pode tanto mais facilemente provar a partir da sua língua a identidade entre relações mercantis e individuais ou também univer sais humanas, porque essa língua é ela mesma um produto da burguesia e por isso, assim como na realidade efetiva, também na linguagem as relações do tráfico se tor naram a base de todas as outras. Por exemplo, proprieté, Eigentum [propriedade] e Eigenschaft [o que é próprio], property, Eigentum e Eigentümlichkeit [proprie dade característica], Eigen [próprio] em sentido mercantil e em sentido individual, valeur, value, Wert — commerce, Verkehr [intercâmbio] — échange, exchange, Austausch etc., que são empregados tanto para as relações (Verhältnisse) comerciais, como para as qualidades e relações (Beziehungen) dos indivíduos enquanto tais. N as demais línguas modernas o caso é exatamente o m esm o” (W 3, pp. 212-3). O parentesco entre as duas significações tem assim uma base na ordem das coisas, m as apesar disso, ou por isso mesmo, constitui essencialmente uma “ am bigüidade” . N a realidade, há uma oposição entre um significado e outro: “ A pro priedade privada efetiva é precisamente a mais universal de todas, o que não tem nada a ver com a minha individualidade, [e] mesmo a anula (um stösst). N a medi da em que valho como proprietário particular não valho como indivíduo — uma proposição que os casamentos por dinheiro confirmam todos os dias” (W 3, p. 211 [F])29. Além disso, a frase de Desttut permitia imputar ao comunismo uma contra dição: “ T odo esse absurdo (Unsinn) teórico, que busca refúgio na etimologia seria impossível, se a propriedade privada que os comunistas querem suprimir não fosse transform ada no conceito abstrato ‘a propriedade’. Com isto, por um lado se eco nomiza o esforço de dizer ou saber algo sobre a propriedade privada efetiva, e por outro lado se pode chegar facilemente a descobrir uma contradição no comunis mo, no fato de que depois da supressão da propriedade (efetiva), sem dúvida mui ta coisa se deixa subsumir sob ‘a propriedade” ’ (W 3, p. 211, M arx grifa “ efeti v a ” ). O interesse desse desenvolvimento é evidente. E que em outros textos — dos Grundrisse — M arx se serve do sentido antropológico do termo “ propriedade” para designar uma relação que está presente tanto no comunismo — então sob forma “ perfeita” — como no pré-capitalismo. Este sentido é sem dúvida oposto e contra ditório — de m odo diferente, de resto, conforme se considere o pré-capitalismo ou o comunismo — ao sentido que tem a propriedade no capitalismo. Aparentemen te, para o caso do comunismo pelo menos, não haveria nenhuma diferença entre esses textos e o que se lê na Ideologia alemã. M as, precisamente, nos Grundrisse não se corta o fio semântico que une contraditoriamente um sentido ao outro. Isto é, põe-se a contradição entre os dois sentidos, e por isso mesmo se estabelece um contínuo pressuposto que une ■— isto é, separa — os dois sentidos. A diferença parece sutil, e ela de fato o é. M as são sutilezas como essa que distinguem a razão dialéti ca do entendimento. Basta pôr a contradição denunciada pelo texto citado da Ideo logia alemã, para que o discurso de entendimento da obra de 1845 se transforme num discurso dialético. Basta assumir em interioridade a contradição que a Ideo logia alemã denuncia em exterioridade, para que a pura dispersão histórica e o seu complemento, a teoria nominalista-historicista da ideologia seja posta em xeque. M as isto a Ideologia alemã não faz, e não o faz intencionalmente. De fato, há uma
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certa finura ou astúcia na ingenuidade anti-hegeliana da Ideologia alemã, porque M arx já se ocupara da dialética hegeliana, embora não tivesse chegado ainda a investi-la de maneira satisfatória na crítica da economia política. b) Antes de analisar as conseqüências dessa redução das pressuposições, para a idéia da revolução e do comunismo em particular, é preciso explorar mais as di ferenças entre a Ideologia alemã e o M anifesto. Detenhamo-nos na idéia geral de história e de progresso da Ideologia alemã. Se de fato não há processo de constitui ção das pressuposições, há entretanto (como de resto também no M anifesto) no ções como as de natureza e civilização, que permitem escandir, mas sem negação, o conjunto do processo histórico. Por outro lado, no plano do discurso posto, as sim como a propriedade ou as formas de propriedade caracterizavam o M anifesto, a noção fundamental é aqui a de divisão do trabalho. “ N aturw üchsig” (se se quiser, “ o que cresce naturalmente” ) opõe-se por um lado a “ civilizado” (zivilisiert), por outro a “ voluntário” , livre (freiwillig). A pri meira partição designa às vezes a comunidade primitiva em oposição à sociedade civilizada30, mas sobretudo a oposição entre o capitalismo — talvez o capitalismo de grande indústria — e o pré-capitalism o. Aqui aparece a noção de subsunção (Subsuption). Q uando o instrumento de produção é natural, os indivíduos estão “ submetidos à natureza” , quando o instrumento é “ produzido pela civilização” , eles são submetidos “ a um produto do trabalho” . “ Por isso, no primeiro caso, a propriedade (a propriedade fundiária) aparece como dom inação imediata, natural, no segundo como dom inação do trabalho, especialmente do trabalho acumulado, do capital” (W 3, p. 65)31. M as “ naturwüchsig” se opõe também a “ freiwillig” (li vre, voluntário), e nesse caso opõe-se a história “ até aqui” ao comunismo. Volta rei a isto. Se no M anifesto fala-se antes em opressão e em subordinação de uma classe a outra, na Ideologia alem ã tem-se mais a subordinação dos indivíduos — de todos os indivíduos — à divisão do trabalho. “Já m ostram os assim, acima, que a supres são da autonom ização (Verselbständigung) das relações em face dos indivíduos sob a contingência, da subsunção de suas relações pessoais sob relações universais de classe etc., está condicionada pela abolição da divisão do trabalho” (W 3, p. 424 [F]). “ O indivíduo enquanto tal, considerado por si mesmo, está subsumido à divi são do trabalho [e] através dela [é] “ unilateralizado” , estropiado, determinado” (W 3, p. 422)32. Assim, o dado fundamental é menos a subordinação de certos indiví duos a outros indivíduos, do que a de todos a uma potência autonomizadaj3 . E “com a divisão do trabalho está dada ao mesmo tempo (...) a partilha (Verteilung), na realidade partilha qualitativa e quantitativamente desigual dos trabalhos e dos pro dutos (...)” (W 3, p. 32). Nesse sentido “ divisão do trabalho e propriedade privada são expresões idênticas — numa se exprime, em relação à propriedade, aquilo que na outra se exprime em relação ao produto da atividade” (ibidem). “ A divisão do trabalho só se torna divisão efetiva no momento em que ocorre uma divisão entre trabalho material e espiritual” (W 3, p. 31). Que significa isto? É que, a partir des se momento, a divisão coincide com uma emancipação ilusória da consciência em relação à realidade efetiva. Surge então uma divisão entre a produção m aterial e a produção espiritual. A cultura se autonomiza através da atividade “ dos ideólogos
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‘conceituais’ (konzeptiven) ativos, que fazem da elaboração (Ausbildung) da ilusão dessa classe sobre ela própria seu ramos principal de subsistência (...)” (W 3, p. 46). Diz-se que através disto a divisão se efetiva, porque, como já vimos, as idéias são poderes. Com a elaboração das ilusões (elas já existiam antes, mas de forma imedia ta), as potências objetivas que dominavam materialmente (se quiser, havia só su bordinação m aterial à divisão do trabalho) vêm a ser repostas enquanto idéias: é como se agora se estabelecesse uma subordinação m aterial e espiritual dos indiví duos à divisão do trabalho34. A Ideologia alemã apresenta uma sucessão de formas, cada uma das quais passa por um curso cíclico de desenvolvimento, maturidade e decadência. O problema de saber o que se conserva ao passarm os de uma forma a outra se coloca em ter mos diferentes, conforme se considere o pré-capitalismo ou o capitalism o. Até a época capitalista, o progresso da riqueza material é aleatório. As invenções se per dem ao sabor dos acidentes históricos, de tal forma que tudo deve começar de novo35. A história da satisfação também segue aparentemente o processo cíclico do desen volvimento das form as. Enquanto o sistema não entra em crise, as classes dom i nantes estão satisfeitas com a sua condição, e as classes dominadas acom odadas a estas. O mesmo vale para a liberdade, m as, no que se refere a ela, é preciso supor um movimento progressivo, para além dos ciclos internos, um movimento progres sivo na história do conjunto das formas (na passagem de uma forma a outra), m o vimento que vale sobretudo para as classes dominantes36, mas que dentro de cer tos limites (e apesar do que se lê em certos textos) valeria também para as classes dominadas. Com o capitalism o — em particular com o capitalism o da grande indústria — a situação se modifica. O progresso da riqueza se torna acumulativo. Ao m es mo tempo, o caráter contraditório do progresso se manifesta. Em primeiro lugar, ao passar-se da época pré-capitalista à época capitalista, a liberdade se reduz, e isto não só para as classes dom inadas, mas também para as classes dominantes. Além disso, a satisfação ou m anifestação de si, para utilizar a linguagem da Ideologia alemã, está ausente desde o início da nova form a, embora só potencialmente para a classe dominante. (Esse “ potencialmente” se refere ao destino dos indivíduos, não ao destino da classe). Assim, com o capitalism o, há ruptura de uma história que era essencialmente cíclica, no seu sentido e na sua direção. A situação se modifica dentro da cada forma (isto é, na história interna da forma e das formações que nela aparecem), e nas suas relações com as formas anteriores. N a relação entre a forma capitalista e as formas anteriores aparece acumulação e progresso, embora progresso contraditório. Antes do capitalism o, havia ausência de progressso ou um progres so limitado entre as diferentes formas, e um ritmo de caráter cíclico e não-contraditório no interior de cada forma. Entre o capitalismo e as formas anteriores há progresso-regressão, e no interior da forma capitalista um ciclo que é desde o iní cio contraditório. Assim, de um a situação em que havia ciclo não contraditório no interior de cada form a e progresso limitado ou ausência de progresso na relação de cada form a com o passado, passam os a uma situação em que há ciclo contraditó rio interno e progresso contraditório (progresso e regressão) na relação para com o passado. Os dois pólos fundamentais desse novo quadro são o progresso da ri
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queza objetiva, e a regressão da liberdade. Progresso da riqueza: “ Só quando o trá fico (Verkehr) se tornou tráfico mundial e tem por base a grande indústria, [e] to das as nações são lançadas na luta da concorrência, a permanência das forças pro dutivas adquiridas está assegurada” (W 3, p. 54). Regressão da liberdade: “ A dife rença entre o indivíduo pessoal e o indivíduo de classe, a contingência das condi ções de vida para o indivíduo, surge somente com o aparecimento da classe que ela mesma é um produto da burguesia. Somente a concorrência e a luta dos indivíduos entre eles produz essa contingência enquanto tal. Por isso, na representação, os indivíduos, sob a dom inação burguesa, são mais livres do que eram antes, porque para eles as suas condições de vida são contingentes; na realidade efetiva eles são naturalmente menos livres, porque mais submetidos a potências objetivas: (W 3, p. 76 [F]). Essa regressão na liberdade significa que os indivíduos não estão mais ligados à comunidade (que por isso não é mais uma comunidade) senão por uma relação contingente. H á uma necessidade nessa contingência. E essa necessidade da contingência que aparece como ausência de liberdade. M as essa necessidade repre senta coisas diferentes, conforme se considere o burguês ou o proletário. Para o burguês, a relação positiva para com a sociedade está dada, ela é contingente, por que ele pode vir a perdê-la. Para o proletário, é antes a relação negativa que está dada, a contingência não é mais do que a possibilidade abstrata de que ele venha a obter uma relação positiva. H á assim um sentido geral da contingência, que vale tanto para um caso como para o outro, e um sentido diferencial que permite dis tinguir as duas situações. A Ideologia alem ã introduz ainda o conceito de Betätigung, atividade (opera ção), e o de Selbstbetätigung, que remete a uma história da satisfação. Trata-se de opor um esquema cíclico não-contraditório que vale para o pré-capitalismo (os in divíduos são aí “ auto-ativos” , isto é, sua atividade corresponde à sua individualidade no início e até a maturidade de cada form a, estabelecendo-se mais tarde uma ruptu ra), a um ciclo contraditório em si mesmo, que corresponde ao caso do capitalismo37. Até que se manifeste a contradição, os indivíduos estão satisfeitos com a ati vidade que exercem no interior de uma forma. Só quando sobrevem a crise é que há uma ruptura entre a sua personalidade e a realidade efetiva. O curso da satisfa ção tem assim um sentido cíclico. Ele acom panha a história cíclica da forma de produção38. N a época burguesa, essa situação se altera. A história da satisfação não segue mais um ritmo cíclico: “ (...) N o curso do desenvolvimento histórico, e preci samente através da autonomização inevitável no interior da divisão do trabalho surge uma diferença entre a vida de cada indivíduo até onde ele é pessoa, e [a sua vida] até onde ele está subordinado a um ram o qualquer do trabalho e às condições que pertencem a este. (N ão se deve entender isto como se por exemplo o “ rentier” , o capitalista, deixasse de ser pessoa; mas a sua personalidade está condicionada e determinada por relações de classe totalmente determinadas, e a diferença aparece só em oposição a uma outra classe, e para si mesmo só quando eles vão à bancar rota39. N a ordem (e mais ainda na tribo) isto ainda está oculto40, por exemplo, um nobre permanece sembre um nobre, um “ roturier” permanece sempre um “ roturier” , independentemente das suas demais relações, [ser nobre ou “ roturier” ] é uma qua lidade inseparável da sua individualidade. A diferença entre o indivíduo pessoal
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diante do indivíduo de classe, a acidentalidade das condições de vida para o indiví duo só surge com o aparecimento da classe que é ela mesma um produto da bur guesia” (W 3, pp. 75-6 [F])41. Essa ruptura vale a fortiori para o proletário. E nesse caso ela é efetiva e não potencial; “ A única conexão, na qual eles [a m aioria dos indivíduos, os proletários] mantêm ainda com as forças produtivas e com a sua própria existência é o traba lho, que para eles perdeu toda aparência de auto-satisfação (...)” (W 3, p. 77 [F]). E, para o caso dos proletários, a idéia de que a ruptura entre a personalidade e as condições de existência se dá desde o início da época burguesa, isto é, que ela não depende, conforme o esquema especificamente historicista aplicável ao pré-capitalismo, do envelhecimento da forma de propriedade, é duplicada por uma referên cia ao que ocorre desde logo na vida individual de cada proletário. A ruptura entre individualidade e sistema já na sua juventude vale para a juventude do sistema como para a juventude do indivíduo: “ Entre os proletários pelo contrário, sua própria condição de vida, o trabalho, e com isso todas as condições de existência da socie dade atual, se transform aram em algo acidental, algo sobre que os proletários in dividuais não têm nenhum controle, sobre que nenhuma organização social pode estabelecer um controle, e a contradição entre a personalidade do proletário indi vidual e a condição de vida que lhe é im posta, o trabalho, aparece para ele mesmo, sobretudo porque desde a juventude ele já é sacrificado, e porque ele não tem a possibilidade de chegar no interior da sua classe às condições que o inserem na outra” (W 3, p. 77 [F]). Se a ruptura originária entre individualidade e condições de exis tência pode não ser uma ruptura originária atual para a história de vida do burguês, ela o é para a do proletário. O caráter contraditório do progresso na época da bur guesia aparece assim na Ideologia alem ã como contradição entre o progresso da riqueza (enquanto riqueza objetiva) e a regressão da liberdade e da satisfação. Esse tema anti-aufklär er, que sob diversas form as está presente em todos os modelos da apresentação m arxista da história, encontra-se também no Manifesto42, sobretudo sob a forma da regressão nas condições de vida do proletário. Regres são na satisfação·. “ Através da extensão da m aquinária e da divisão do trabalho, o trabalho do proletário perdeu todo caráter autônomo e com isto toda atração (Reiz) para o trabalhador. Ele se tornou um mero acessório (Zubehör) da m áquina, que exige só a m anipulação mais simples, mais monótona e mais fácil de aprender” (W 4, p. 469 [F]). “N a mesma medida em que aumenta o caráter desagradável (wiederwãrtig) do trabalho (...) [etc]” (ibidem [F]). Esta regressão se dá tanto em relação às épocas anteriores, como no interior da história da produção burguesa. Regres são na riqueza (no texto essa regressão aparece como interior à história da produ ção burguesa): “ À medida que aumenta o caráter desagradável do trabalho, cai (...) o salário” (ibidem [F]). Regressão na liberdade: “ M assas de operários am ontoados na fábrica são organizados à maneira de soldados. Enquanto simples soldados da indústria eles são postos sob a vigilância de uma hierarquia completa de sub-oficiais e oficiais. Eles são apenas servos da classe burguesa, do Estado burguês, eles são diariamente e a cada hora subm etidos à m áquina, ao vigilante, e sobretudo ao próprio fabricante burguês individual. Esse despotismo é tanto m ais mesquinho, odioso, exasperante, quanto mais se proclama abertamente que o ganho é o seu fim
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últim o” (W 4, p. 469 [F])43. O lado regressivo do progresso, ainda no M anifesto, é resumido pela idéia de que há um excesso de civilização e que esse excesso equiva le à barbárie: “N as crises irrompe uma epidemia social que apareceria para todas as épocas anteriores como um absurdo — a epidemia da superprodução. A socie dade se encontra bruscamente remetida a uma condição de barbárie momentânea; uma miséria, uma guerra geral de aniquilamento parecem ter-lhe cortado todos os meios de vida; a indústria, o comércio parecem aniquilados, e por quê? Porque eles possuem civilização demais, meios de vida demais, indústria demais, comércio de m ais” (W 4, p. 468 [F]). H á assim uma espécie de hybris da civilização, que cons titui um retrocesso. E nesse ponto, Manifesto e Ideologia alemã convergem na afir m ação de que a forma burguesa de propriedade, ao contrário das form as anterio res, leva à destruição das classes oprimidas: “ T oda sociedade [que existiu] até aqui repousou, como vimos, sobre a oposição entre classes opressoras e classes oprimi das. M as, para poder oprimir uma classe, deve-se assegurar a ela condições no in terior das quais ela possa pelo menos garantir (fristen) sua existênca servil” (W 4, p. 473). A Ideologia alemã fala de maneira mais radical na transform ação — na realidade uma interversão — das forças produtivas em forças destrutivas, um tema que tem interesse, evidentemente, para além da crítica da grande indústria e para além da crítica do capitalismo em geral: “ N o desenvolvimento das forças produti vas surge um nível no qual são suscitadas forças produtivas e meios de produção que, nas condições existentes, só causam desgraças, que não são mais forças pro dutivas m as forças de destruição (máquinas e dinheiro) (...)” (W 3, p. 69 [F]). “Já m ostram os que os indivíduos atuais deve?n suprimir a propriedade privada, por que as forças produtivas e as forças de intercâmbio se desenvolveram tanto, que sob o domínio da propriedade privada se tornaram forças destrutivas (...)” (W 3, p. 424, M arx sublinha “ devem” ). Em bora nem o Manifesto nem a Ideologia ale mã se refiram a um fim da pré-história, está presente a idéia de que a história da exploração se esgota, porque as condições de produção da vida se transform aram em condições de produção da destruição. Esse tema dá um conteúdo, embora dis cutível, à idéia de que se trata da última forma. Aqui se com para o destino da pro dução capitalista não com o de uma outra form a, m as com o do conjunto das ou tras form as de produção. E não se fala em contradição entre forças produtivas e relações de produção, mas na transform ação de forças produtivas em forças de des truição. O destino do capitalismo aparece de um modo mais ou menos apocalíptico. Entretanto, que a época burguesa traga consigo algo assim como a destruição — considerada como única na história — de uma parte da sociedade constitui menos um discurso pressuposto sobre a história do que um tema que o substitui. A explo ração não pode subsistir porque não há mais quem explorar: ela se esgota. A notar que, aqui, pensa-se a destruição como provindo imediatamente da forma social, não da matéria (o que significaria, provindo só mediatamente da forma) como ocorre em geral na crítica pós-m arxista do sistema. c) N a Ideologia alemã como no M anifesto — como será também o caso em outros modelos que exam inarem os — a revolução é um ato de força44 que depen de de condições objetivas gerais — o desenvolvimento da riqueza no interior da sociedade burguesa, e de uma tom ada de consciência do proletariado que tem suas
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bases na sua situação de classe excluída: “ (...) Produz-se (bervorgerufen w ird) uma classe que tem de suportar todos os vícios da sociedade, sem gozar das suas vanta gens, que é expulsa da sociedade, [que] é forçada a [se situar] na oposição mais de cidida para com todas as outras classes; uma classe que constitui a m aioria dos membros da sociedade, e da qual nasce a necessidade de um revolução fundamen tal (gründlicbe Revolution), a consciência comunista, que naturalmente também pode se constituir entre as outras classes, através da visão (Anscbauung) da posição des sa classe” (W 3, p. 69 [F])45. N a Ideologia alemã, nascem no proletariado não só a consciência, mas também a p aixão: “ (...) a miséria do proletariado (...) o leva a uma luta de vida ou morte (...) torna-o revolucionário, e com isso não produz ‘cuidado’ (Sorge) mas p aix ão ” (W 3, p. 200)46. A Ideologia alemã apresenta entretanto alguns traços que a diferenciam, no interior do modelo que ela partilha com o Manifesto. Disse que o que caracteriza em geral esse modelo é a ausência de um discurso pressuposto quase-totalizante. A revolução é em si e para si ruptura com o capitalism o, mas este último não aparece como um universal concreto que, enquanto momento negativo, permitiria a unifi cação da “ pré-história” . H á entretanto na Ideologia alemã duas particularidades que introduzem certo tipo de totalização, para além dos elementos já indicados, co muns ao Manifesto e à Ideologia alemã. Se o universal é só de generalidade, a ge neralidade é de certo m odo objetiva, enquanto base comum do conjunto da histó ria “ até aqu i” . Diferentemente das outras, a revolução comunista ataca essa base comum. A identidade entre o particular — a luta contra o capitalism o — e a gene ralidade (identidade que não se realiza plenamente como universalidade concreta) é dada pela noção de “ bürgerliche Gesellschaft” 47, que significa “ sociedade bur guesa” , portanto algo particular, mas ao mesmo tempo, “ sociedade civil” , o que poderia ter uma significação universal: “ Essa contradição entre forças produtivas e a forma de intercâmbio, a qual, como vimos, já ocorreu muitas vezes na história [que houve] até aqui, sem entretanto am eaçar a base (Grundlage) da mesma, teve de explodir cada vez numa revolução (...)” (W 3, p. 74 [F]). “ (...) Em todas as re voluções que houve até aqui o m odo (Art) da atividade permaneceu, e só se tratou de uma outra distribuição dessa atividade, de uma nova partilha do trabalho entre outras pessoas, enquanto que a revolução comunista se dirige contra o m odo de atividade [que existiu] até aqui (...)” (W 3, p. 7). Evidentemente, m odo (Art) tem aqui um sentido senão unlversalizante, pelo menos generalizante, e sob esse aspec to vai na direção oposta a Weise, na expressão “ modo de produção” , expressão que particulariza. Assim, a revolução se faz contra um objeto comum ao conjunto da história “ até aqu i” . Este é um dos limites da universalização na Ideologia ale mã. A segunda diferença está na idéia de uma espécie de auto-educação unlver salizante do proletariado, a qual vai além da simples tom ada de consciência (e por tanto do movimento de auto-emancipação, no seu sentido imediato) tal como já se encontra no M anifesto. De fato, um texto da Ideologia alemã — que havia interes sado H. Arendt48 — afirma a necessidade da revolução não só pelo fato de que as classes dominantes resistirão às transformações, mas também porque só através dela o proletariado poderia se desem baraçar de todo o peso do passado... “ (...) Tanto para a produção em m assa dessa consciência comunista como para a realização da
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coisa é necessária uma mudança maciça dos homens, que só pode ir adiante num movimento prático, numa revolução: a revolução é assim necessária não só p or que a classe dominante não pode ser derrubada de nenhum outro jeito49, mas tam bém porque a classe que derruba só numa revolução pode se liberar de toda a an tiga merda e se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade” (W 3, p. 70, grifei o final).50 Essa auto-educação não é simplesmente uma tom ada de consciência das ne cessidades do presente enquanto presente. Ela é uma espécie de catarse em relação ao conjunto do passado. Assim, mesmo se falta um discurso pressuposto, há na idéia de revolução que propõe a Ideologia alemã uma dupla instância de totalização. Por um lado, ela visa objetivamente o conjunto do passado, a base sobre a qual se fez até aqui a história. Em segundo lugar, a revolução só é possível através de uma autoeducação que elimine todas as marcas do passado. Só assim será possível uma “ nova fundação da sociedade” 51. Que é o comunismo para a Ideologia alem ã? Ele é antes de mais nada o fim da divisão do trabalho: “ N a realidade, tão logo o trabalho começa a ser dividido, cada um tem um círculo exclusivo de atividade, que lhe é imposto, do qual não pode sair; ele é caçador, pescador ou pastor ou crítico, e deve permanecer nele, se não quiser perder o seu meio de vida — enquanto na sociedade comunista onde cada um não tem um círculo exclusivo de atividade, mas pode se cultivar no ramo que quiser, a sociedade rege a produção geral e faz com que me seja possível através disso fazer isto hoje, aquilo amanhã, caçar depois do almoço, tocar bois de tarde, criticar depois do jantar, conforme eu tenha vontade, sem jam ais me tornar caça dor, pescador ou crítico” (W 3, p. 33)52. Se o comunismo representa assim o fim da divisão do trabalho, o fim da divisão do trabalho é ao mesmo tempo a supres são do trabalho. Esse movimento é importante, tanto no que se refere ao conteú do, como no que se refere à forma. Trata-se de abolir o trabalho e não de estabele cer o “ trabalho livre” : “ Assim, enquanto os servos em fuga só queriam desenvol ver livremente e fazer valer sua condição de vida já existente, e por isso em última instância só chegaram ao trabalho livre, os proletários, para se fazerem valer pes soalmente devem suprimir a sua própria condição de existência até aqui, o traba lho” (W 3, p. 77 [F]). Se o trabalho é suprimido com a supressão da divisão do tra balho, é que só posto como divisão do trabalho ele é trabalho, um pouco como só posto como o valor, o valor é valor53. O trabalho não posto como a força que re presenta a divisão do trabalho não é trabalho, embora tenha a determinação do trabalho. Tem-se aqui uma articulação que em grandes linhas é dialética (o que não prejulga a verdade dela), num texto que não é essencialmente dialético. De fato, existe aí uma constituição negativa, um processo de desaparição do objeto, pelo fato de desaparecer a sua posição: “ O próprio trabalho só pode subsistir sob a pressuposi ção dessa dispersão” (W 3, p. 66). O trabalho que fora “ uma forma inferior de autom am festação” (W 3, p. 67), que se tornara depois “ uma forma negativa de autom anifestação” (ibidem), se resolve agora em auto-manifestação: “ Somente nesse es tágio a auto-manifestação coincide com a vida material, o que corresponde ao de senvolvimento do indivíduo até o indivíduo total e à eliminação (Abstreifung) de toda naturalidade; e então se correspondem a transform ação do trabalho em auto-
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m anifestação e a transform ação do intercâmbio condicionado que existiu até aqui em intercâmbio dos indivíduos enquanto tais” (W 3, p. 68 [F]). Com o no M anifes to, a pressuposição privilegiada não é a satisfação, nem mesmo a riqueza (pelo menos comparativamente a outros textos) mas a liberdade. “ Só na comunidade [com ou tros, tem cada] indivíduo o meio de cultivar suas capacidades por todo lado; só na comunidade, a liberdade pessoal será assim possível” (W 3, p. 74 [F]). “ N a comu nidade dos proletários revolucionários (...) que tomam as suas condições de exis tência, e a de todos os membros da sociedade, sob o seu controle, é precisamente o contrário; nela os indivíduos participam enquanto indivíduos. É precisamente a união dos indivíduos, naturalmente no interior da pressuposição da força produtiva ora desenvolvida, que dá as condições do livre desenvolvimettfo e do livre movimento dos indivíduos sob o controle deles, condições que até aqui foram abandonadas ao acaso (...)” (W 3, pp. 74-5). A liberdade se contrapõe aqui a uma situação em que os indivíduos são oprimidos menos por indivíduos de outra classe como no M ani festo, do que pela sua própria atividade parcelada. E, nesse sentido, o comunismo como reino da liberdade é a negação de uma situação histórica em que, de algum m odo, todos eram oprimidos. C) Conclusões — A apresentação da história tal como se encontra no M ani festo e na Ideologia alem ã representa o que se pode considerar como o modelo historicista (ou quase-historicista)54 no interior do pensamento de M arx, modelo que infelizmente é muitas vezes tom ado como se representasse simplesmente a apresen tação da história, de M arx. Nele, pode-se dizer, o tempo e a ação dominam o conceito e a teoria. Falta a posição de um discurso pressuposto. Isto é, não se põe o discurso pressuposto en quanto tal. Entretanto, há um a espécie de pressuposição da pressuposição, em mais de um aspecto. Vimos que a idéia de uma revolução visando a base comum da his tória “ até aqu i” , assim como a exigência de uma auto-educação unlversalizante do proletariado vai no sentido de uma totalização. As expressões “ nova fundação da sociedade” ou nova “ abolição da divisão do trabalho” infletem essas indicações no sentido de uma totalização que não será só retilínea mas também circular. M as não se vai propriamente até a constituição do discurso pressuposto. Isto significaria que o M anifesto e a Ideologia alem ã nos propõem um esquema de simples dispersão das form as de propriedade? N ão. E não apenas por causa da presença dos esboços de totalização indicados. Antes pela razão contrária. A ausência de um verdadeiro discurso pressuposto tem paradoxalmente como conseqüência a introdução de uma espécie de contínuo e, até certo ponto, mesmo de um finalismo na história, embora a recusa em totalizar venha de um impulso explicitamente anti-finalista. E como se um discurso totalizador dogmaticamente continuista e um simples discurso posto descontinuista se sustentassem um ao outro na forma da “ m á” contradição (e não da unidade dialética do contínuo e do descontínuo). Isto é, a ausência de um ver dadeiro discurso pressuposto faz com que o esquema descontinuista se inverta no seu oposto. A pura dispersão é continuismo. Poder-se-ia também dizer, na mesma direção, que esse discurso que se apresenta como essencialmente prático, isto é, cujos títulos de legitimidade são apresentados essencialmente na instância prática, pre
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cisamente pelo caráter unilateral, excessivo desse praticismo — no caso do M ani festo isto tem algo a ver, é verdade, com o gênero do discurso — se interverte em discurso teórico m al fundado, em sistema dogmático. Ou, digam os, a anti-filosofia estreita da Ideologia alemã se interverte em má filosofia, em filosofia “ sistemá tica” em sentido pejorativo. Os pressupostos que deveriam indicar a direção do pro jeto se perdem no movimento efetivo. “ O comunismo não é para nós uma situa ção, que deva ser estabelecida, um ideal segundo o qual a realidade efetiva terá de se orientar. Cham am os de comunismo o movimento efetivo que suprime as condi ções atu ais” (W 3, p. 35 [A]). A exigência de desqualificar toda utopia normativa vai longe demais, como se só houvesse duas possibilidades, o dogm atism o dos fins postos, e a ausência pura e simples dos fins (a que equivale à simples presença do movimento efetivo). A recusa em pensar um fim “ negado” (o qual se torna aqui um fim simplesmente negado )55 tem como resultado um discurso que é tão identitário e dogmático como o seu oposto. O comunismo não seria mais do que um m ovi mento efetivo. M esm o que se pense a ação como auto-consciente etc., a liquidação abstrata do “ ideal” introduz uma espécie de finalismo histórico·, a história tende à realização do comunismo. Essa espécie de finalismo, que não tem nada de dialéti co, se reforça pelo fato de que M arx não estava ainda de posse dos elementos es senciais da sua crítica da economia política. E, paradoxalm ente, o fato de não ha ver ainda elaborado essa crítica que introduziria um finalismo do capital (isto é, um finalismo interior a um m odo de produção) tem como resultado uma espécie de homogeneização da história, que não está longe de introduzir um esquema fina lista no plano global56. Em resumo, o caráter em geral anti-dialético da crítica da dialética hegeliana a que procede a Ideologia alemã tem como resultado contradi tório uma espécie de dogm atism o filosófico e de totalização da história, precisa mente o que se tratava de exorcisar. Com o M anifesto comunista ocorre coisa se melhante. Se falta um discurso quase-totalizante, isto não significa que tenhamos como resultado efetivo uma dispersão de formas históricas. Logicamente é o que se pretende, mas na falta dos conceitos fundamentais da crítica da economia polí tica, mesmo no plano lógico a descontinuidade fica a meio caminho. E, no plano histórico, a falta de uma lógica da descontinuidade (a outra vertente do discurso dialético) tem como resultado algo como um contínuo histórico, cujo ponto de chegada inevitável é o comunismo. Assim, sob mais de um aspecto, o discurso quasehistoricista que se quer não-totalizante, anti-filosófico e anti-finalista se inverte no seu contrário. M as antes de concluir é preciso aprofundar ainda a lógica desse texto de qual quer m odo notável, que é a Ideologia alemã. Vimos que o que caracteriza a Ideo logia alem ã — como também o M anifesto — é o fato de considerar a posição como equivalente da atividade·, se o conceito não for imediatamente “ adequado” (no sen tido filosófico do termo “ adequação), mas “ adequado” à atividade prática, ele é apenas determinado e não posto. E, sendo assim, ele não significa o que pretende significar. N ad a mais característico da lógica da Ideologia alemã do que o texto em que M arx define o termo “ com unista” : “ Fica evidente também a partir dessa dis cussão o quanto Feuerbach se engana, quando graças à qualificação de “ Homem com um ” ele se declara comunista, [designação que é] transform ada num predicado
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do homem, e assim crê poder transform ar de novo numa pura categoria a palavra comunista, que no mundo atual designa o seguidor de um partido revolucionário determinado'’'’ (W 3, p. 41 [F]). “ Com unista” é aquele que age como comunista. Se ele tiver apenas idéias comunistas, tem a determinação de comunista, mas não a posição. Se esse movimento tem alguma coisa a ver com o universo da filosofia póskantiana alemã, a referência não é certamente Hegel. Embora o texto tenha — como foi dito — uma ressonância historicista, há um paralelo possível com o pós-kantismo na figura da filosofia de Fichte. A Ideologia alem ã, e em particular as Teses sobre Feuerbacb, que fazem parte do mesmo conjunto de textos, querem realizar o “ lado ativo” que só o “ idealism o” desenvolveu. E criticam a tradição materialista por não ter considerado o objeto, a realidade, subjetivamente57. Como em Fichte,“ atividade” , “ auto-atividade” , e também “ vida” são termos-chave·58. Trata-se nos dois casos, embora em sentidos diferentes, de exorcisar de certa forma — não absolutamente em M arx — a coisa-em si59, através de uma conversão da sensibilidade e da intuição em atividade60. Só que, evidentemente, se em Fichte a atividade é posição, na Ideo logia alemã, a posição é atividade. E a exorcisação da coisa em si em Fichte se faz antes por um interiorização do “ sensível” do que por uma exteriorização dele; por isso, a transcendentalidade fichteana cairia sem dúvida sob a crítica do “ misticismo” , tal como se encontra na tese oito, e em geral na Ideologia alemã. N ão é menos ver dade que há uma certa hom ologia, divergente embora, entre as duas “ démarches” .
2. Os G r u n d r i s s e e o C a p i t a l Se no Manifesto e na Ideologia alemã, o discurso posto tende a absorver o dis curso pressuposto, nos Grundrisse e em O Capital — os m odelos mais elaborados e dialéticos da apresentação m arxista da história — , discurso pressuposto e discur so posto coexistem de forma dialeticamente contraditória. Longe de representar uma dificuldade, é essa contradição que garante a presença plena, à sua maneira, de cada um dos dois discursos. A) As meta-pressuposições são objeto de um processo de constituição. Isto sig nifica que o comunismo representa a posição do homem (em oposição à sua pres suposição) e a posição da História (em oposição à pré-história); o comunismo põe também a sociedade61. O esquema retilíneo de quase-totalização da história é a s sim plenamente elaborado enquanto pressuposição. Com relação às pressuposições propriamente ditas (liberdade, propriedade, riqueza, satisfação), elas são integra das a um esquema circular. Postas (positivamente) em form a limitada no pré-capitalismo (a Antiguidade Clássica é o exemplo privilegiado), elas são “ negadas” no m odo de produção capitalista, m as supostas como presentes para a totalidade dos indivíduos. O comunismo representará a reposição delas em forma não só positi va, mas infinita. À positividade finita do pré-capitalismo, sucede assim a infinida de negativa do capitalism o, e a este o infinito positivo do comunismo62. A este estatuto das pressuposições corresponde uma concepção da ideologia que só na aparência coincide com a da Ideologia alemã. Tam bém nos Grundrisse, elas exprimem as relações sociais63 e são o lugar da ilusão64. M as se na Ideologia
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alem ã o conteúdo da representação é essencialmente falso e no limite sem sentido (embora as representações sejam potências sociais, além de serem produtos espiri tuais), nos Grundrisse a ideologia tem um a verdade intrínseca, embora negativa. A ilusão está antes em supor positivo (ou seja, posto) o que é negativo (ou pressupos to), ela está assim mais no sinal que afeta o conceito — o que evidentemente é es sencial — do que no próprio conceito65. N o mesmo sentido, a atitude crítica em relação à filosofia que, de form a implícita, poder-se-ia reconhecer nos Grundrisse, não se confunde com a crítica de estofo positivista que vimos na Ideologia alem ã66. Além das pressuposições se mostrarem como negativas, a apresentação da his tória para o caso particular dos Grundrisse tem ainda outras características peculia res. N ão há mais apenas uma dualidade entre o natural e o histórico (embora redo brada num esquema em três momentos), há um terceiro termo distinto que, de um m odo geral, é o espiritual. Isto quanto às meta-pressuposições. O esquema circular das pressuposições — e a articulação delas com o discurso posto — é construído pela dualidade entre matéria e forma (o que se tem igualmente em O Capital), e também, de um modo mais ou menos explícito, sobre as noções de corpo e de alma. Final mente, no plano do discurso posto, não é a noção de propriedade burguesa ou de divisão do trabalho (na sociedade burguesa) a noção dominante nos Grundrisse e em O Capital, m as a própria noção de capital (assim como a de modo de produção). B) -— a) Pré-capitalismo — N o início do textos sobre as “ Form as que prece dem a produção capitalista” (Grundrisse) M arx distingue três form as de relação pré-capitalista — na realidade três form as antigas — que se estabelecem entre o indivíduo e a comunidade. N um a, a relação é de substância e acidente, forma que corresponde à comuna oriental; em outra, o universal é algo comum, o mundo germânico; numa terceira, a relação é de universal a particular, o mundo grecoromano. M ais adiante há uma outra quase-sistematização, esta de âmbito mais geral, a partir dos pressupostos materiais da produção. O interessante é que se distinguem aqui formas positivas e negativas, efetuando-se a passagem de umas às outras por uma alteração de “ sinal” . Em uma delas, a terra é apropriada, em outra o instru mento e, na terceira, os meios de subsistência. À primeira correspondem as dife rentes sociedades em que predomina a propriedade da terra, inclusive a form a clás sica, à segunda corresponde a propriedade urbana medieval, e a terceira é a situa ção dos que perderam a posse da terra e não passaram à segunda forma (nem às formas negativas da primeira), por exemplo a situação “ da plebe rom ana no tem po do panes et circenses” (G, 399 e 400). As form as negativas da primeira são a escravidão e a servidão, e da segunda, o sistema de castas, no qual o manejo do instrumento coloca de certo modo o indivíduo entre as condições objetivas da p ro dução. (Da terceira não se indica uma forma negativa, aparentemente porque ela já tem esse caráter.) Em bora se trate de um esquema pressuposto, poder-se-ia ob servar que o estilo não é propriamente ou especificamente dialético. A negação que se encontra aí não é estranha a uma negação do entendimento. O que não lhe tira o interesse. Fixar-me-ei aqui, sobretudo, na forma própria à Antiguidade Clássica, com algumas referências às formas medievais. A form a clássica irá representar em certa medida o universo do pré-capitalismo.
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N a Antiguidade Clássica — como de um modo geraJ no pré-capitalismo — as pressuposições propriedade, riqueza, liberdade, satisfação, são positivas m as limitadas. Elas são negativas só no sentido em que são limitadas. Vejam os mais de perto o seu conteúdo. a) Propriedade e riqueza — Além do seu corpo orgânico, o indivíduo dispõe do que se chama de um corpo inorgânico^1. “ C o rpo” indica que se trata de algo ligado ao indivíduo, ou antes não separado dele. “ Inorgânico” , que se trata de um objeto não-anim ado. Nesse sentido, o corpo inorgânico está ao lado do homem, e a inseparabilidade desse corpo em relação ao indivíduo indica que não se lhe pode retirar, e não que haveria continuidade entre um e outro. Esse corpo inorgânico é a riqueza. E a relação a esse corpo é a propriedade, ou pelo menos uma das dimen sões desta. “ Ora, a riqueza está realizada por um lado em coisas (Sachen), produ tos materiais, que o homem afronta como sujeito; por outro lado, enquanto valor, ela é puro comando sobre trabalho alheio, não com a finalidade de dom inação mas de gozo privado etc. Em todas as form as, ela aparece em configuração coisificada (dinglicher Gestalt) seja [como] coisa (Sache), seja [como] relação entre coisas que existem fora do indivíduo e acidentalmente junto dele” (G, p. 387 [F])68. É nesse sentido que a propriedade, segundo Aristóteles, é parte, m as parte separada do sujeito: “ O termo propriedade (κτήμα) se emprega do mesmo m odo que o termo parte (μόριον): a parte não é somente parte de uma outra coisa, m as ela pertence inteiramente a uma outra coisa; e ocorre o mesmo para a propriedade (...) uma pro priedade não é senão um instrumento de ação separado do proprietário” (Aristó teles, Política, I, 4, 1254 a 8-16 [F])69. Continuando com os Grundrisse, a riqueza como objeto material não é a “ única condição natural de exigência à qual ele [o produto] se liga como corpo inorgânico” (G, 389 [F])70. Essa segunda condição não é de “ natureza objetiva” m as “ de natureza subjetiva” . E a comunidade, à qual ele está ligado enquanto membro “ natural” . Essa relação também é de propriedade, sem dúvida no sentido daquilo que lhe é próprio71. Reconhece-se aqui o uso rigo roso, mesmo se no plano das pressuposições, da “ am biguidade” contida na defini ção ideológica de propriedade de Destutt de Tracy. Encontrou-se um objeto para o qual o sentido antropológico que está na definição de Destutt deixa de ser ideoló gico; m as, na medida em que se conserva o mesmo conceito, isto quer dizer que as duas significações coexistem para o caso do capitalism o, só que coexistem contra ditoriamente como uma significação posta e uma significação pressuposta. Assim, em lugar de denunciar a contradição ideológica de Destutt, como ele fizera na Ide ologia alem ã, põe-se a contradição: a ideologia não estará mais em geral numa pretensa coexistência dos dois sentidos, mas sim numa pretensa coexistência posta e não contraditória (isto é, não se rejeita mais a coexistência em geral dos dois sen tidos porque contraditória, se a põe, mas com um pólo posto e um pólo pressuposto). A riqueza é também limitada, mas não afetada pela negação. Aqui se deve fazer referência aos textos de Aristóteles sobre a diferença entre economia e crematística (ou entre as duas crematísticas), alguns dos quais M arx cita em O Capital. Aristó teles distingue uma riqueza lim itada, e uma riqueza sem limites, que ele conde na: “ Falam os assim da forma não necessária da crematística, indicamos a sua natu reza e a razão pela qual precisam os dela; tratam os ainda da sua forma necessária,
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e mostramos que ela é diferente da primeira, e que a economia doméstica é conforme à natureza (eu entendo, aquela [economia] que se relaciona com as subsistências). Ela não é, como a outra, ilimitada, mas tem limite” (Arist., P o i, 1.258 a 13-18 [F])72. A ultrapassagem do limite é assinalada pelo fato de o dinheiro assumir uma fun ção que é própria dos seres vivos (na linguagem da dialética moderna, uma função de Sujeito): “ (...) nessas condições, o que se contesta com mais razão é a prática do empréstimo com juro, porque o ganho que se retira disto provém da própria moe da e não responde mais ao fim que presidiu a sua criação, porque a m oeda foi cria da com vistas à troca, enquanto o juro multiplica a quantidade da própria moeda. Aí está mesmo a origem do termo juro ( t ó k o g , criança): pois o juro é um dinheiro que nasce de um dinheiro. Em conseqüência, esta última maneira de ganhar dinheiro é de todas a mais contrária à natureza (Arist., Pol., 1.258 b, 2-7 [F]). (3) Liberdade e satisfação — A liberdade antiga é pensada igualmente como limitada, liberdade no quadro da comunidade. A liberdade moderna tem limites, mas a comunidade não é o seu limite. “ Se assim a forma econômica, a troca — escreve M arx a respeito da liberdade moderna — põe por todos os lados a igualdade dos sujeitos, o conteúdo, a m atéria, do indivíduo como da coisa, que impele à troca, [põe] a liberdade. A igualdade e a liberdade são assim não só respeitadas na troca, que repousa sobre valores de troca, m as a troca de valores de troca é a base produ tiva real de toda igualdade e liberdade. Como puras idéias, elas são meras expressões idealizadas da troca; enquanto [elas estão] desenvolvidas nas relações (.Beziehungen) jurídicas, políticas, sociais, elas são apenas essa base numa outra potência. Pois isto se confirmou também historicamente” (G, 156 [A]). A essa liberdade e igualdade fundamentadas na troca de valores de troca (a troca importa aqui como relação entre indivíduos independentes e liberados dos laços comunitários) se opõe a liberdade e a igualdade antigas: “ A igualdade e a liberdade nessa extensão são precisamente o contrário da liberdade e da igualdade antigas, que precisamente não têm como base (Grundlage) o valor de troca desenvolvido, e antes se perdem (kaputtgehen) com o desenvolvimento dele. Elas pressupõem relações de produção que no mundo antigo ainda não estavam realizadas; nem na Idade M édia. Trabalho forçado direto é a base do primeiro; a comunidade repousa sobre ele como base de apoio (Unterlage) existente; o próprio trabalho como privilégio, ainda na sua particularidade, não va lendo como algo que produz valor de troca universal [é] a base (Grundlage) do se gundo. [Na situação moderna, RF] nem o trabalho é trabalho forçado, nem como no segundo caso ele se faz em consideração a algo comum enquanto alguma coisa superior (corporações)” (G, 156). O trabalho forçado é a base da comunidade, o trabalho corporativo é trabalho na comunidade. A liberdade antiga e pré-capitalista em geral é liberdade limitada pela comunidade; não se trata do limite da lei moder na, que legitima o ilimitado. O mundo antigo é finalmente o da satisfação positiva mas limitada. Um tex to das Form as que precedem à produção capitalista resume esse estatuto da satis fação na Antiguidade em oposição ao mundo moderno: “ Por isso, o pueril mundo antigo aparece por um lado como o mais alto. Por outro lado, ele o é em tudo aquilo em que se procurar [uma] form a, [uma] configuração fechada, e uma delimitação dada. Ele é satisfação (Befriedigung) de um ponto de vista limitado; enquanto a
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modernidade (das M oderne) deixa insatisfeito ou onde aparece satisfeita em si é vul gar (gemein)” (G, 387-8 [F]). γ) Conclusões sobre o pré-capitalismo — Liberdade, propriedade, riqueza, sa tisfação, aparecem assim como determinações idênticas a si mesmas, isto é, não afetadas pela negação, mas ao mesmo tempo como limitadas. Este limite está no conteúdo de cada determinação (por exemplo, a liberdade é definida de maneira a excluir todo desenvolvimento infinito), e também se revela no fato de que elas só valem para alguns homens: “ Essas considerações mostram claramente qual a na tureza do escravo e qual a sua potencialidade: aquele que por natureza não perten ce a si mesmo embora seja homem (άνθροποσ ών), mas é a coisa de um homem, todo homem que, apesar da sua qualidade de homem, é uma propriedade, uma propriedade não sendo senão um instrumento de ação e separado do proprietário” (Arist., Pol., I, 5, 1.254 a, 13-16 [F]). O escravo (um certo homem), embora ho mem é um instrumento. Como analisar um enunciado como este? Aparentemente, haveria reflexão do homem no instrumento. N o entanto, seria difícil falar em pres suposição. E propriamente no capitalismo que o “ homem” permanece pressupos to. N a realidade, “ hom em ” pode ser aqui uma simples determinação que não re presenta nem mesmo uma pressuposição73. Quando se fala em pressuposição, temse em vista uma situação em que a condição de sujeito tem um mínimo de efetivi dade, mesmo se formal. N a realidade, a relação entre o escravo e o homem livre na Antiguidade nos remete, em termos de lógica clássica à dualidade entre I e O, al guns homens são livres, outros não: “ É pois manifesto que há casos em que por na tureza certos homens são livres e outros escravos, e que para estes últimos perm a necer na escravidão é ao mesmo tempo benfazejo e justo” (Arist., Pol., I, 5, 1.255 a, 1-2). (No limite, se negássemos ao escravo a condição de homem, passaríam os de I e O a A: todos aqueles que merecem a qualificação de “ hom em ” são livres.) A ligação lógica (cópula) do juízo I (“ Alguns homens são livres” ) é plenamente posi tiva, ou preferindo, o predicado é plenamente idêntico a si mesmo. O mesmo vale para a riqueza. Trata-se da verdadeira riqueza: “ Assim, existe uma espécie de arte de adquirir que por natureza é um ramo da economia doméstica, na medida em que esta deve ter à m ão, ou obter, de modo a torná-las disponíveis, as riquezas de que é possível constituir aprovisionamentos, quando elas são necessárias à vida e úteis à comunidade política ou familiar. E parece que estão aí os elementos constituti vos da verdadeira riqueza (άλεθινόσπλουτοσ). Pois um direito de propriedade dessa ordem, suficiente por si mesmo para assegurar uma existência feliz não é ilimitado (...)” (Arist., Pol., I, 8, 1.256b, 13-14).74 A verdadeira riqueza se opõe a uma ou tra, infinita e contraditória, que é chamada de “ riqueza estranha” (όίτοπον πλούτον): “ Em outros momentos, pelo contrário, se é de opinião que a moeda é uma pura insignificância, uma coisa inteiramente convencional e sem nada de natural (...) ela não é de nenhuma utilidade para as diversas necessidades da vida (...) E entretanto uma estranha riqueza (ατοπον πλούτον) aquela cuja posse abundante não impede que se morra de fom e” (Arist., Pol., I, 9, 1.257b, 10-15 [F]). A limitação se encontra também na concepção antiga de virtude (“ sendo a fe licidade uma atividade conforme à virtude” 75). N a teoria aristotélica da virtude, a limitação parece se situar em vários níveis: “ A m oderação, σωφροσύηε — escreve
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Pierre Aubenque — , é uma dessas palavras propriamente intraduzíveis — ao lado de αίδϋίσ, o “ pudor” — pelas quais os gregos nos convidam, em toda ocasião, a evitar o excesso (υπερβολή), a desmesura (ΰβρισ), o desejo de ter mais do que lhe cabe (πλεονεξία), e a nos conhecer a nós mesmos, para tomar a medida exata de nossos limites e da distância que nos separa de Deus. Por um processo semântico cujas principais mediações, como vimos, se ordenavam em torno das idéias de li mite e de equilíbrio, esses temas, difusos na consciência e na literatura gregas, se cristalizaram progressivamente na noção, de início bastante vaga, de phronesis: a phronesis é o saber mas limitado, consciente dos seus limites; é o pensamento, mas humano e que se sabe e se quer hum ano” 76. Distinguem-se também os prazeres ver dadeiros que são prazeres limitados, dos falsos prazeres, que nos conduzem ao seu oposto77. A diferença entre dois tipos de prazeres se encontra também entre os modernos, em Descartes, por exem plo78. M as o contexto é diferente. N ão é a idéia de limitação que distingue o prazer verdadeiro do falso. Aparentemente, é até mes mo o contrário79. É sintomático que a referência m aior da m oral cartesiana não seja a moral de Aristóteles, m as as morais pós-aristotélicas, estóica e epicuréia so bretudo. N ão é a exigência de limitação que domina a filosofia estóica (nem, a ri gor, a epicuréia), mas o contrário: “ Será necessário esperar uma visão radicalmen te nova do homem, do mundo e dos Deuses, uma visão da qual será banido todo pudor, toda reserva, para que o sentido da fórmula délfica seja invertido. Esta re volução, que tornará possível uma apoteose do homem que teria parecido às gera ções precedentes o cúmulo da impiedade (άσέβια), só se efetivará com o estoicismo. Somente então o “ saiba que tu és um hom em ” se tornará “ saiba que tu és um deus” 80. b) Capitalism o — A característica geral do capitalism o será a ruptura entre o indivíduo e a cidade, e a ruptura entre o indivíduo e o seu corpo inorgânico. Essa segunda ruptura não se faz ao mesmo tempo no plano das form as e no plano do processo material de trabalho. A partir daqui será preciso, pois, distinguir esses dois planos. M arx reconhece dois momentos do capitalism o, em cada um dos quais predomina uma das formas internas desse m odo de produção: “ O capital produti vo, ou o m odo de produção que corresponde [de forma adequada ou não, RF] ao capital pode ser duas coisas” : m anufatura ou grande indústria” (G, p. 480). M arx esboça ainda uma terceira forma. As relações entre as form as internas e o passado é, portanto, complexa. Existem linhas de continuidade ou descontinuidade, con forme se considere a forma ou o processo material de produção. A acrescentar que, até a grande indústria, o capitalismo aparecerá como o momento da artificialidade. a) M anufatura — Com a manufatura, a socialização comunitária que se per de enquanto tal, passa, de certo modo, para o interior do processo produtivo81. N o plano macro-social, o indivíduo se separa da comunidade, que por isso mesmo deixa de ser comunidade, e ele perde, formalmente, a propriedade do seu “ corpo inor gânico” . Entretanto, no interior da manufatura, o corpo animado não se perde num todo inanimado, como ocorrerá com a grande indústria, mas num todo anim ado82; por outro lado, ele se reduz a alguns de seus órgãos, ou preferindo, a algumas das suas funções. Do ponto de vista material, o verdadeiro sujeito da produção é o que M arx chama de trabalhador total (Gesam tarbeiter)·. “ A m aquinária específica do
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período manufatureiro permanece sendo (bleibt) o próprio trabalhador total, cons tituído (kombinierte) por muitos trabalhadores parciais” (W 23, K I, p. 3 69)83. O indivíduo que trabalha aparece como trabalhador parcial (Teilarbeiter), o qual é simplesmente um órgão do trabalhador global: “ Precisamente porque a habilidade m anual continua sendo a base do processo de produção, cada trabalhador é as similado (angeeignet) a uma função parcial, e sua força de trabalho se transforma no órgão perpétuo dessa função parcial: (W 23, K I, pp. 358-9)84. As diferentes funções que o indivíduo pode exercer são reduzidas a uma só, ou a algumas. O corpo global do indivíduo se reduz a um corte do próprio corpo. E esse corpo reduzido se integra a um corpo global social: “ Ela [a manufatura] estropia o trabalhador [fazendo dele] um a m onstruosidade (Abnorm ität), na medida em que ela im pulsiona ar tificialmente sua habilidade particularizada (Detailgeschick), através da repressão de um mundo de impulsos e capacidades produtivas, assim como nos Estados do Rio da Prata se abate um animal inteiro, para explorar sua pele ou o seu sebo. N ão só os trabalhos parciais particulares serão distribuídos entre diferentes indivíduos, mas o próprio indivíduo é dividido, transform ado em engrenagem autom ática de um trabalho parcial, e a fábula insípida de Menenius Agripa, que representa um homem como fragmento de seu próprio corpo se realiza” (ibidem, p. 382 [F]). O trabalhador individual não perde materialmente o seu “ corpo inorgânico” (no sen tido de que ele maneja o instrumento e dá forma ao objeto de trabalho, o que mais tarde não ele mas a máquina fará). M as ele se integra a um corpo orgânico total, o que só é possível pela “ redução” do seu corpo orgânico individual. Por sua vez o capital — que é o todo no plano da forma — não adquiriu ainda um corpo próprio adequado. Ele organiza e domina um corpo subjetivo. Por isso, a subordinação, ou antes a subsunção, é dita form al, embora ela já introduza m odificações no interior do processo de produção (reunião de trabalhadores, disciplina etc.).85 Seria preciso estudar de um modo mais preciso a lógica que preside a esse ob jeto, a m anufatura. Ela poderia ser caracterizada por juízos do tipo: “ o trabalha dor é o trabalhador parcial” e “ o trabalhador é o trabalhador total” , e ainda, “ o capital é o trabalhador to tal” . Tom em os em primeiro lugar os juízos: “ O trabalha dor é o trabalhador parcial, e “ o trabalhador é o trabalhador total” . Evidentemente, trata-se de juízos de reflexão, no sentido em que os defini em outro lugar86: o sujeito é pressuposto e o predicado posto. N ão é por acaso que um dos parágrafos do ca pítulo sobre a divisão do trabalho e a m anufatura se chame “ o trabalhador parcial e o seu instrumento” . Só “ trabalhador parcial” é uma noção posta, não “ trabalha dor” simplesmente. Do mesmo modo, “ trabalhador global” é posto. M as, se há evi dentemente reflexão, importa precisar de que forma de reflexão se trata. N a medida em que o predicado não é objetivo mas subjetivo, a passagem é de certo modo quanti tativa, não qualitativa. Passa-se do todo individual pressuposto à parte, posta. E do todo individual pressuposto ao todo, posto. Entenda-se que a parte posta é parte, tanto relativamente ao todo individual, como relativamente ao todo social. Poderse-ia dizer também que essa parte é posta duas vezes, conforme se pense a relação ao todo individual pressuposto, ou ao todo social posto. — De qualquer m odo, nos dois juízos há negação. O sujeito se perde no predicado. Só que essa perda é quanti tativa, não qualitativa. M as não se trata aqui de uma mera mudança de quantidade,
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a passagem é uma mudança de quantidade no interior de unia negação (a que ca racteriza a manufatura — capitalista — em oposição ao seu passado pré-capitalista). E interessante observar que a significação lógica desses enunciados não é apa rente. Seria difícil pensar imediatamente que ela é subjacente a textos que se situam em parte no plano do vivido e descrevem o atrofiamento (Verkrüpplung)87 do tra balhador (assim como a ampliação negativa do trabalhador em trabalhador glo bal). Essa reflexão na quantidade deveria ser com parada com a reflexão na quali dade que vai se operar na grande indústria, assim como com o movimento que se opera no interior do pré-capitalismo. A limitação que predomina no pré-capitalismo não tem nada a ver com o m o vimento que se tem aqui. Poder-se-ia dizer que, pela sua limitação, o predicado nega o sujeito, mas trata-se lá de qualquer m odo de uma limitação “ adequada” ao su jeito. A negação está pura e simplesmente na limitação, e no outro pólo tem-se o devir do homem no objeto. Assim, do pré-capitalismo ao capitalism o, passar-se-ia de uma situação que se exprime por um devir (lógico) puro e simples do homem na coisa (ou então por um juízo que exprime uma posição positiva e limitada), a uma reflexão, em que o sujeito é apenas pressuposto. M as em se tratando da m anufatu ra (do capitalismo manufatureiro) deve-se distinguir a reflexão quantitativa, que lhe é própria — porque ela é passagem de sujeito a sujeito (o sujeito se reduz ou se amplia, mas sempre com reflexão) — da reflexão característica da grande indús tria, que é qualitativa, já que nela o sujeito se nega no objeto. A negação qualitati va existe também na situação da manufatura, mas para o caso do capital. N o enun ciado “ o capital é o trabalhador global” , a reflexão é qualitativa, porque o capital, forma objetiva, põe-se numa matéria de estofo subjetivo, que lhe é assim inadequada. Essa relação é comparável à que mantém o dinheiro com materiais que devem exprimi-lo, mas que não são o ouro ou a prata. A com paração entre o capital e o di nheiro, no que se refere às suas encarnações materiais, está em M arx: “ M as se o capital só na m áquina e em outras formas de existência (Daseinsformen) material do capital fixo, como estradas de ferro etc. (...) se dá a sua configuração adequada enquanto valor de uso no interior do processo de produção, isso não significa de modo algum que esse valor de uso — a máquina em si — é capital, ou que a sua existência (Besteben) como maquinária seja igual à sua existência como capital; assim como o ouro não perderia o seu valor de uso como ouro, se ele deixasse de ser di nheiro” (G, p. 587 [F])88. Assim, para o caso da m anufatura, o enunciado relativo ao capital é de refle xão qualitativa; o enunciado relativo ao sujeito, de reflexão quaiititativa. A idéia de progresso e de progresso contraditório está expressa nesses diferentes enuncia dos. Que não se tenha mais devir mas reflexão, isto indica progresso (na liberdade, na satisfação) relativamente às formas pré-capitalistas; mas que haja reflexão e não inerência (cuja emergência só se daria com o fim da pré-história), isto m ostra os limites do progresso. N a história interna do capitalismo — história das form as do capitalismo — a manufatura representa, por sua vez, um movimento positivo, re lativamente à grande indústria. Isto está indicado pelo fato de que, na m anufatura, a reflexão, no que concerne aos indivíduos, é só quantitativa e não qualitativa. A coexistência contraditória de progresso (na riqueza social) e regressão (relativamente
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a üm momento de transição em que os trabalhadores são livres m as ainda não há divisão manufatureira do trabalho) está dada pelos juízos “ o trabalhador é o tra balhador parcial” e “ o trabalhador parcial é o trabalhador global” . Este último juízo exprime o princípio de uma am pliação e racionalização da atividade produtiva, o outro o princípio de um empobrecimento do indivíduo. “ Se (...) [a divisão m a nufatureira do trabalho] aparece por um lado como progresso histórico e momen to necessário do desenvolvimento no processo econômico da form ação da socieda de, ela aparece, por outro lado, como um meio de exploração civilizada e refina da"'’ (W 2, K I, p. 386). O capital enquanto forma é ao mesmo tempo progresso e regressão. A inadequação da m atéria, isto é, do processo de trabalho, no período manufatureiro, limita tanto o progresso como a regressão, e limita por isso a con tradição entre os dois. A matéria se opõe aqui ao progresso, m as se opõe também à regressão89. Se é possível assim reconstituir uma espécie de lógica do objeto m anufatura no nível da teoria dialética dos enunciados, poder-se-ia ainda caracterizar a lógica do objeto manufatura, a partir da teoria dialética do silogismo. Ocupei-me da teo ria dialética dos enunciados, aqui e em outros textos, e também (alhures) da teoria dialética do conceito e da apresentação (ver M LP I e II, passim ). M as em nenhum momento me referi à teoria hegeliana do silogism o, ou daquilo que Hegel chama de silogismo (Schluss), e que se encontra na lógica do Conceito90. Essa teoria apa rece como mais ou menos enigmática, e isto por várias razões. Os “ silogism os” de Hegel não equivalem aos silogismos em sentido próprio, e não se vê imediatamen te nem o interesse nem o rigor dessa nova “ silogística” . Ela poderia parecer — como ouvi uma vez de um grande especialista em Hegel — uma retom ada não muito fe liz por parte da dialética hegeliana de um corpus inteiramente clássico. A noção de silogismo está presente em mais de um lugar de O Capital. Deixo para outros tex tos a apresentação global desse tema. Lem bro em primeiro lugar que as noções fundamentais sobre as quais se articula a temática do silogism o (dialético, em sen tido moderno) em M arx, como também sem dúvida em Hegel, são as noções de m ediação (Vermittlung), de termo médio (M ittel), ou de mediar (vermitteln), que significa também “ obter através de um m eio” . M as que lugar pode ter uma noção aparentemente tão ligada à tradição, no interior da lógica dialética? A relação en tre o “silogism o” em sentido dialético e o silogism o em geral é análoga à relação entre o enunciado dialético e os enunciados do entendimento. Assim como o enun ciado dialético se caracteriza por introduzir a negação e a contradição lá onde o entendimento as exclui (na relação afirmativa entre sujeito e predicado), o silogis mo dialético, em sentido hegeliano, se caracteriza por introduzir uma relação con traditória entre princípios e conseqüências, que seria inteiramente irracional para os silogismos do entendimento, e em geral do ponto de vista do entendimento. (Já havia m ostrado essa relação contraditória entre princípios e conseqüências, mas para a apresentação.) N os dois casos — enunciado e silogismo — , é a distinção entre pressuposição e posição que assegura a possibilidade da negação e da contradição não-vulgares. M as o que tudo isto tem a ver com a m anufatura? E que alguns textos dos Grundrisse insistem sobre o fato de que na manufatura o m ediador (Mittel, termo
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médio) é o instrumento, enquanto na grande indústria o mediador é o trabalhador que se tornou “ suporte” ou “ p ortad or” (na realidade portador real, portador e “ apêndice m aterial” , porque portador formal ele já era na manufatura). “ N a m á quina, e mais ainda na m áquina enquanto sistema autom ático, o meio de trabalho (.Arbeitsmittel) se transform ou segundo o seu valor de uso, isto é, segundo a sua existência (D asein) material em uma existência adequada ao capital fixo e ao capi tal em geral, e a forma em que ele [o meio de trabalho] é tom ado como meio de trabalho imediato no processo de produção do capital é suprimida numa forma posta pelo próprio capital e que lhe corresponde. A sua diferença específica não é de m a neira algum a, como no [caso do] meio de trabalho, a de servir de m ediador (vermitteln) entre a atividade do trabalhador e (auf) o objeto; pelo contrário, esta ati vidade é antes posta de tal modo que ela agora só serve de mediadora (·vermitteln) para o trabalho da m áquina, para a sua ação sobre a matéria-prima — ela [a ativi dade] vigia esse trabalho e o preserva de perturbações. N ão é como [no caso do] instrumento que, enquanto órgão, o trabalhador anima com a sua habilidade e atividade, e cujo manuseio depende por isso do seu virtuosismo. M as a máquina, que possui habilidade e força para o operário, é ela mesma o virtuose que possui uma alma própria nas leis mecânicas que nela agem, e que, para seu auto-movimento constante, consome assim carvão, óleo etc. (matérias instrumentais), assim como o trabalhador consome alimentos (Nahrungsmittel)” (G, 584 [F]). Até a grande in dústria, o instrumento é o mediador, o termo médio; os extremos são o trabalha dor (mais precisamente — para o caso da manufatura — o trabalhador global) e a matéria-prima. N a grande indústria, o mediador, o termo médio é o trabalhador, os extremos são o sistema mecânico e a matéria-prima. (Deixo de lado, por ora, outras questões de interesse que o texto propõe.) Poderíamos formular assim um “ silogism o” válido para a produção capitalista anterior à grande indústria, mais especificamente, para a manufatura. Ele deveria começar exprimindo uma relação em que o objeto real é o sujeito do juízo, para, “ corrigir” (“ negar” ) essa “ premis s a ” , por uma conclusão em que o sujeito da frase é o sujeito efetivo. N a realidade, haveria duas negações, a “ prem issa m enor” é a primeira negação da “ premissa m aior” , a conclusão é a segunda negação desta. Teríamos mais ou menos o seguinte”
(mas) (na realidade)
O instrumento age sobre a matéria prima. O trabalhador coletivo maneja o(s) instrumento(s). O trabalhador coletivo [é que] age sobre a matéria-prima.
O “ princípio” desse “ silogism o” está na conclusão; o trabalhador coletivo é o verdadeiro sujeito, que age sobre a matéria-prima. O instrumento é o mediador. Esse “ silogism o” (que não exprime nenhuma transform ação histórica) constitui o sujeito “ trabalhador coletivo” a partir do termo médio “ instrumento” . O instru mento é constituído assim, por sua vez, como simples m ediador a serviço do sujei to. (Observe-se que, em lugar de “ o ra ” , “ logo” etc., como partículas de ligação, teríamos antes “ m as” , “ na realidade” etc., cujo conteúdo é adversativo.) Poder-se-ia perguntar qual a necessidade da construção. É como se se tratas se de apresentar o princípio da produção manufatureira através de uma negação
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— ou antes de uma dupla negação — da tese oposta. A verdade do princípio sub jetivo da m anufatura se m ostra a partir de um enunciado que diz o contrário da essência dela, porque nele o “ sujeito” é o instrumento. Através do “ silogism o” , apresenta-se o instrumento como mediador (como termo médio), e reconstitui-se a totalidade na sua articulação interna subjetivamente negativa. . Com a manufatura, primeira form a91 do m odo de produção capitalista, re encontramos, no interior do processo de produção, num modo despótico, a socia bilidade comunitária que existia, fora do processo produtivo, nas form as pré-capitalistas. Fora do processo de produção, domina pelo contrário, uma sociabilidade “ societária” , a atomização dos indivíduos e a luta de todos contra todo: “ Se a anar quia da divisão do trabalho social e o despotismo da divisão do trabalho manufatureiro condicionam um ao outro, na sociedade do m odo de produção capitalis ta, form as sociais anteriores nas quais a particularização dos ofícios se desenvolve naturalmente, depois se cristalizam e em seguida é fixada legalmente, oferecem pelo contrário a imagem de uma organização planificada e autoritária da divisão do tra balho, ao mesmo tempo em que, por outro lado, elas excluem a divisão do traba lho no interior da oficina, ou só a desenvolvem numa medida reduzida ou esporá dica e acidentalmente” (W 23, K I, pp. 377-8 [F]). A oposição que se estabelece é entre planificação (despótica) e a ausência de planificação. N as sociedades pré-capitalistas, a primeira existe fora do processo produtivo, organizando a divisão so cial do trabalho, ao passo que, dentro do processo produtivo, ela inexiste (pratica mente, não há lá divisão do trabalho “ m anufatureira” ). N o m odo de produção ca pitalista, cuja primeira forma é a m anufatura, a planificação despótica se encontra no interior do processo de produção, organizando uma divisão interna do traba lho desenvolvida, ao passo que, fora do processo de produção, reina a anarquia. (M as a divisão social do trabalho também aumenta.) “ Pode-se mesmo estabelecer em regra geral que quanto menos a autoridade preside a divisão do trabalho no in terior da sociedade, mais a divisão do trabalho se desenvolve no interior da ofici na, e mais ela está submetida à autoridade de um só. Assim, a autoridade na ofi cina e a autoridade na sociedade, com relação à divisão do trabalho, estão em ra zão inversa uma da outra” (W 23, K I, p. 378, n. 1 [F]). P) A grande indústria — Com o capitalism o da grande indústria, tem-se a posição da forma em uma matéria que lhe é adequada, ou antes a produção pela forma de uma matéria adequada, na qual ela se põe. “ A apropriação do trabalho vivo pelo trabalho objetivado — da força valorizadora ou da atividade através do valor que é para si — , que existe no conceito de capital, na produção que repousa sobre a maquinária está posta como caráter do próprio processo de produção, tam bém segundo os seus elementos materiais e o seu movimento m aterial” (G, pp. 5845 [F]). “ N a m aquinária, o trabalho objetivado afronta materialmente o trabalho vivo, como força dominante e enquanto subsunção ativa deste último sob ele, não só pela apropriação deste, mas no próprio processo real (real) da produção; a rela ção do capital como valor que se apropria da atividade de valorização é posta no capital fixo que existe como m aquinária igualmente na relação do valor de uso do capital para com o valor de uso da capacidade de trabalho (...)” (G, p. 585 [F]). Já
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vimos que, com esta posição, o trabalhador não será apenas (formalmente) porta dor92 do capital, mas também (materialmente) apêndice dele93. Seria interessante considerar desde já (para retomar o tema mais adiante) as duas definições da fábri ca que se encontram em A. Ure, “ o Píndaro do tear autom ático” , definições que M arx critica, porque elas lhe parecem opostas: uma descreve incorretamente a fá brica como se o seu princípio fosse subjetivo, e a outra a descreve corretamente como uma organização cujo princípio é objetivo. Primeira definição da fábrica por Ure: “ cooperação de diversas classes de trabalhadores adultos e não adultos, que com habilidade e aplicação supervisionam um sistema de m aquinária produtiva que é posta em atividade de forma ininterrupta por uma força central (o primeiro m o tor)” (citado por M arx in W 23, K I, p. 441). Segunda definição da fábrica, por Ure: “Um enorme autôm ato, constituído por inúmeros órgãos mecânicos e autoconscientes, que agem em concordância e sem interrupção, para produzir um mes mo (ein und derselbe) objeto, de tal sorte que todos esses órgãos estão subordina dos a uma força motriz que se move por si m esm a” (ibidem [F]). M arx comenta: “ As duas expresões não são de forma alguma idênticas. N a primeira, o trabalha dor total com binado ou o corpo social do trabalho aparece como o sujeito que domina (übergreifendes Subjekt) e o autôm ato mecânico como objeto; na outra, o próprio autôm ato é o sujeito, e os trabalhadores são coordenados aos órgãos in conscientes como órgãos conscientes, e subordinados junto com aqueles à força motriz central: (W 23, K I, p. 442). E ele acrescenta: “ A primeira expressão vale para qualquer uso possível da m aquinária em grande escala, a outra caracteriza o seu emprego capitalista e por isso o moderno sistema de fábrica” (ibidem). Se a crítica das duas definições supostamente idênticas é bem clara, a obser vação final é menos, e aponta para uma dificuldade (como veremos, os Grundrisse se separam de O Capital num ponto que se relaciona com o problema desse texto). O prim ado do objeto, que a segunda definição descreve corretamente na grande indústria capitalista, remete à matéria não à forma do processo produtivo (se se quiser, remete não só à forma). M as, se é assim, que significa afirmar que a primei ra definição “ vale para qualquer uso possível [inclusive o uso não-capitalista, RF] da m aquinária em grande escala?” . A subordinação material é inerente ao proces so produtivo da grande indústria, enquanto processo produtivo material. A elimi nação da forma capitalista m udaria muitas coisas, mas não daria a esse processo o caráter subjetivo que é indicado na primeira definição, — a menos que se mudasse o caráter da m aquinária. Sem dúvida, falar em “ qualquer uso possível” remete a uma pressuposição (geral), que é subjetivizante. M as a pressuposição geral da grande indústria ou, preferindo, de suas bases materiais é problemática e introduz, como veremos, certas dificuldades. Retomemos o problema da significação da passagem da m anufatura à gran de indústria, em termos das noções pressupostas mencionadas anteriormente. A perda do corpo inorgânico pelo trabalhador não é apenas form al, m as também material. O seu instrumento e o seu objeto não são mais seus, não só formal mas também materialmente. Por outro lado, como já disse, com a manufatura, que é a primeira form a da produção capitalista, o laço comunitário e a comunidade se perdem, mas de certo m odo esta reaparece, em forma despótica, no interior da fá-
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brica (há uma comunidade objetiva constituída pelos trabalhos parciais, que é en tretanto comandada despoticamente pelo proprietário dos meios de produção). Com a grande indústria, o despotismo não só se mantém, mas se desenvolve. E, no pla no material, não é o conjunto dos trabalhos que constitui um todo orgânico. Ago ra é no sistema mecânico enquanto tal que essa totalidade aparece. De certo modo, a comunidade que se entronizara, embora sob forma despótica, é agora comunida de de m áquinas; ela se objetivou, perdeu-se no objeto. A posição form al numa matéria adequada, que torna possível a subordinação real do trabalho ao capital, faz-se pela apropriação da ciência pelo capital. — Por outro lado, com o modo de produção capitalista (mas isso já vale para a m anufatura), o capital se personifica na pessoa do capitalista. A apropriação da ciência pelo capital representa a constituição de uma espé cie de alm a própria do capital (o corpo é o sistema mecânico). “A ciência, que obriga os membros não-anim ados (nnbelebten) da m áquina, através da construção dela, a agir como autôm atos com vistas a um fim, não existe na consciência do traba lhador, mas age através da máquina sobre ele, como força estranha, como força da própria m áquina” (G., p. 584). O trabalhador, por sua vez, perde a sua “ alm a” , porque o seu trabalho é “ liberado” do seu conteúdo próprio: “ M esm o o fato de tornar mais leve o trabalho torna-se um meio de tortura, porque a m áquina não libera o trabalhador do trabalho, mas [libera] o seu trabalho do conteúdo” (W 23, K I, p. 446 [F])94. E propriamente no nível da grande indústria que o capital tem uma “ enteléquia” , uma alma material que lhe é adequada. Entretanto, M arx em prega o termo em forma mais geral, visando a enteléquia “ form al” que o capital representa, qualquer que seja a forma material da produção: “ N ão é entretanto essa primeira troca entre o dinheiro e a capacidade de trabalho ou a mera compra dessa última, que transform a o dinheiro em capital. Essa compra incorpora o uso da ca pacidade de trabalho ao capital por um tempo determinado, ou transform a um quantum determinado de trabalho vivo em um modo de existência do capital, por assim dizer em enteléquia (Entelechia), do próprio capital” (W 26, Theorien über den M ehnvert, I, p. 370 [F]). Se a ciência corporificada na maquinária aparece de certo modo como o “ corpo inorgânico do capital” , o trabalhador passa a ser o seu corpo orgânico95. A rela ção do capital para com esse corpo inorgânico é a do morto-vivo que explora o vivo “ m ortificado” : “ O capital é trabalho morto, que se vivifica de maneira vampiresca através da sucção do trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais absorve” (W 23, K I, p. 2 47 [F]). “ O prolongamento da jornada de trabalho noite adentro, para além dos limites do dia natural, age só como paliativo, acalma só de forma aproxim ada a sede de vampiro por sangue vivo de trabalho” (W 23, K I, p. 271 [F])96. O capi tal aparece assim como o não-vivo que vive, e a contrapelo da crítica cartesiana e aufklãrer, como um objeto real que tem entretanto qualidades ocultas: “ (...) o m o vimento no qual ele acrescenta mais-valia é o seu próprio movimento, sua valori zação como auto-valorização. Ele recebeu a qualidade oculta de pôr valor, porque ele é valor. Ele põe filhotes vivos ou pelo menos bota ovos de ouro” (W 23, K I, p. 169 [F]). O capital representa uma espécie de anti-pbysis97. N o capitalista, o capital tem também uma “ alm a” , mas se trata aqui da per
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sonificação do lado propriamente formal. “ Como capitalista, ele é só capital per sonificado. Sua alm a é a alm a do capital. M as o capital tem um único impulso de vida, o impulso de valorizar, de criar mais-valia, de absorver, com a sua parte cons tante, os meios de produção, a maior m assa possível de sobre-trabalho” (W 23, K I, P· 247 [F]). Vejam os mais de perto o que significa logicamente todo esse desenvolvimen to sobre a grande indústria. N o plano dos agentes, obtemos juízos de reflexão de tipo qualitativo e não mais quantitativo, como era o caso para a m anufatura. “ O trabalhor é... portador (suporte)” . Juízos em que não só o sujeito é pressuposto e o predicado posto, m as em que este último exprime uma passagem à condição de objeto. (N a realidade, de quase-objeto, porque o sujeito permanece pressuposto, o que se exprime pelo termo “ portador” [Träger], que não objetiva pura e simples mente, à maneira do escravo e, até certo ponto, do servo.) Quanto ao capital, este se exprime pelo juízo “ o capital é o sistema mecânico” , juízo que é do mesmo tipo — já assinalei anteriormente — do enunciado “ o dinheiro é ou ro” 98. Este juízo exprime a passagem da forma à matéria adequada. N a medida em que a matéria é adequada, poder-se-ia dizer que não há mais reflexão, e que o sujeito não é pressu posto. A relação seria antes de inerência98a. M as passa-se de qualquer modo da forma à matéria, e a rigor há aí uma espécie de reflexão, embora com uma negação ate nuada.99 Esses dois juízos exprimem a coexistência da regressão da satisfação e da liberdade, com o progresso da riqueza social. M as se poderia levar mais adiante a análise da maneira pela qual a idéia de um progresso contraditório, progresso-regressão, se exprime no plano propriamente lógico. A idéia de progresso-regressão poderia ser resumida dizendo “ a barbárie é... civilização” , acrescentando porém, “ enquanto barbárie (ou “ a barbárie se torna civilização, m as enquanto barbárie” ). O “ enquanto barbárie” garante a não-reflexão do sujeito no predicado, isto é, faz com que a barbárie não “ passe” na civilização100. Nesse sentido, poder-se-ia com parar a estrutura desse juízo com a da definição do movimento em Aristóteles, “ ato (enteléquia) do que está em potência enquanto em potência” (Aristóteles, Física III, 201 a 10 [F]). O “ enquanto em potência” impede a reflexão no ato, do sujeito em potência; permanece-se no ato da potência (no ato da potência enquanto potência). Sem essa cláusula, o enunciado exprimiria sem mais a passagem da potência ao ato. M as em “ a barbárie é... civilização, enquanto barbárie” (ou “ a barbárie se torna civilização, enquanto barbárie” ) não só se impede a reflexão do sujeito no predicado (a sua negação pelo predicado), mas ainda se reforça o sujeito. A barbárie se civili za enquanto barbárie, significa que há progresso da barbárie e na barbárie (esse é pelo menos um dos sentidos do juízo). N ão temos assim apenas um bloqueio da reflexão, mas um “ contra-golpe” (“ Gegenstoss” ) do predicado em direção ao su jeito. N o prefácio à Fenomenologia do Espírito, ao fazer a crítica das proposições do entendimento, Hegel se refere a um “ contra-golpe” (Gegenstoss) que sofre o pen samento, quando descobre que o predicado exprime ele próprio o sujeito101. Sem dúvida, essa volta ao sujeito se faz, no texto de Hegel, pela presença do sujeito no predicado (em “ o absoluto é o ser” , aparece que o ser é ele próprio o absoluto [a primeira m anifestação do absoluto, mas isso só se saberá depois]). M as, na medi da em que o movimento dialético é ao mesmo tempo progressivo e regressivo, ele
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pode ser entendido também como realizando propriamente, embora negativamen te, uma volta ao sujeito (por exemplo, em “ a consciência sensível é... o entendimen to ” , põe-se também que o entendimento, que passa na consciência sensível, “ res salta” ao mesmo tempo como “ fundam ento” — como fundamento negado — da consciência sensível). Só que o tema do “ Gegenstoss” e da progressão-regressão na Fenomenología do Espírito tem um sentido que no essencial é lógico e não históri co. E, no caso do juízo, “ a barbárie é, enquanto barbárie... civilização” (não evi dentemente em todos os juízos dialéticos em M arx), a tensão progressão-regressão exprime a idéia de um progresso histórico contraditório. A barbárie passa e não passa na civilização, e o lado negativo — ou antes o da negação da negação — o não passar na civilização, faz mais do que frear a passagem : ele reforça o sujeito enquanto sujeito102. E como se o conteúdo do predicado negasse o sujeito, m as o reforço do predicado determinasse a negação da negação. Assim se exprime logi camente a idéia de um progresso contraditório. M as o que isto significa no plano do conteúdo? Já vimos alguma coisa do con teúdo da contradição progressão-regressão: o progresso da riqueza expresso pela adequação ao capital da organização material da produção, em simultaneidade com a reflexão qualitativa dos indivíduos, que assim são postos como portadores, e perdem liberdade e satisfação. M as talvez se pudesse refletir de forma mais ampla, considerando por um lado a maneira pela qual M arx aborda a situação do traba lhador no processo produtivo, e por outro a análise que ele faz da figura do capita lista, à qual já me referi brevemente. As figuras características que aparecem nessas descrições são respectivamen te as do prisioneiro (e da prisão), e a do louco. Com o o trabalhador, o capitalista é portador do capital, só que, diferentemente daquele, ele só é portador enquanto personifica o capital. “ Com o portador {Träger) consciente desse movimento, o possuidor de dinheiro se torna capitalista. Sua pessoa, ou antes o seu bolso, é o ponto de partida e o ponto de chegada do dinheiro. O conteúdo objetivo daquela circula ção — a valorização do dinheiro, é a sua finalidade subjetiva, e só na medida em que a apropriação crescente de riqueza abstrata é o único motivo propulsor das suas operações, ele funciona como capitalista ou como capital personificado, dotado de vontade e de consciência” (W 23, K I, p. 167 [F]). O capitalista aparece como fa nático, e esse fanático tem a sua gênese na figura do maníaco entesourador: “ (...) o valor de uso não deve ser tratado como a finalidade do capitalista. Nem o ganho individual, mas o movimento incessante do ganho. Esse impulso absoluto de enri quecer, essa caça apaixonada do valor é comum ao capitalista e ao entesourador, mas enquanto o entesourador é o capitalista ‘detraqué’, o capitalista é o entesourador racional (rationell). O aumento incessante do valor, que o entesourador busca ten tando salvar o dinheiro da circulação, o capitalista, mais inteligente, o obtém, aban donando-o constantemente à circulação” (W 23, K I, p. 168 [F]). “ Só nessa medi da [na medida em que o capitalista é capital personificado], não o valor de uso e o gozo, mas o valor de troca e o seu aumento, são o seu motivo impulsionador (trei bendes Motiv). Como fanático da valorização do valor, ele força brutalmente (rücksichtlos) a humanidade à produção pela produção, e assim ao desenvolvimento da força produtiva social (...). Só como personificação do capital, o capitalista é res-
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peitável. Com o tal, ele partilha com o entesourador do impulso abstrato de enri quecimento. M as o que nesse aparece como m ania individual, é no capitalista efei to do mecanismo social, do qual ele é apenas urna roda propulsora (Triebrad)” (W 23, K I, p. 618 [F]). O capitalista aparece, assim, como o desenvolvimento (com negação) de um maníaco, que é o entesourador. O entesourador é uma espécie de louco, de figura marginal, que o capitalista socializa sob a forma do fanático capi talista. O entesourador tem em comum com o capitalista, na sua primeira forma, a renúncia ao gozo, ou a redução deste ao gozo reprimido (gozo no acumular por acumular). O processo civilizatório se faz assim pela interiorização ao sistema — e racionalização — do marginal, sem que se altere entretanto o traço característico daquela marginalidade: a renúncia ao gozo. A civilização traz para dentro do siste ma, sem alterá-la essencialmente, no que se refere à natureza do impulso, urna fi gura marginal e “ m onstruosa” das form as pré-capitalistas. O processo civilizató rio desenvolve o que era estranho à civilização, porque recusava o que era a finali dade última desta: a satisfação. Nesse sentido, o capitalism o aparece como civili zação afetada pela não-civilização (se o “ louco” não era o “ selvagem ” , ele era o “ bárbaro” ). N o outro extremo, temos a mesma idéia de uma interiorização da m ar ginalidade. Se o capitalista aparece na linha do desenvolvimento do entesourador m aníaco, o trabalhador surge no horizonte do prisioneiro, e a fábrica no da pri são: “ (...) [é] sem razão que Fourier chama as fábricas de ‘prisões suavizadas’ (bagues mitigés)?” (W 23, K I, p. 4 5 0 )103. E se na gênese do capitalista se encontra a figura do entesourador, na gênese do proletário está o “ m arginal” , “ liberado” pela dis solução da sociedade feudal. Também aqui há uma m utação essencial, mas é como se o sistema incorporasse esses excluídos enquanto excluídos, assim como o capi talista reencarna a m ania do entesourador sob a form a do fanatism o. N os dois casos, tem-se uma civilização da não-civilização. O sistema introduz no interior dele o m au infinito que anteriormente ficava à margem, ou só aparecia com a dissolu ção da forma. A propósito da m anufatura, introduzi o tema do silogismo “ dialético” , e in diquei que sentido ele poderia ter para a grande indústria. Aqui, o termo médio é o trabalhador suporte, e os extrem os são os meios de trabalho enquanto sistema mecânico, e a matéria-prima. Se quiséssemos enunciar o silogismo da grande indús tria, teríamos: “ o trabalhador submete a matéria-prima, o sistema mecânico sub mete o trabalhador, o sistema mecânico submete a m atéria-prim a” . O trabalhador é constituído como termo médio, m ediador do processo (o qual desaparece na con clusão), e o sistema mecânico é constituído como sujeito. (Esse “ silogism o” se re fere ao lado material do processo. Nele o termo médio “ trabalhador” se torna “ apên dice” do sistema mecânico.) M as pode-se falar em “ silogism o” também num outro plano, que vale em geral para o capitalism o. M arx opõe a fórmula M -D-M (mercadoria, dinheiro, m erca doria), fórmula que caracteriza a circulação simples (que no sistema é a sua apa rência), à fórmula D-M-D, na realidade D-M -D’, que caracteriza a produção capi talista enquanto produção capitalista. N o caso da circulação simples, pode-se di zer que temos um silogismo tradicional. A mercadoria A se troca por dinheiro, o dinheiro se troca pela mercadoria B, a mercadoria A se troca pela mercadoria B. O
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termo médio é o dinheiro. Ele não se altera, como não deve se alterar no processo (se o modelo é o silogismo clássico), e a seqüência se apresenta como um sistema de equivalências. Ao passarm os do silogismo M -D-M a D-M -D’, temos um movi mento que, em certo sentido, é do tipo daquele que foi enunciado anteriormente a propósito dos “ silogismos dialéticos” . O resultado não é conseqüência das prem is sas, mas as contradiz. Em outro sentido, o silogism o parece ter só dois termos, e por isso a conclusão tem ar de ser tautológica. Se a conclusão parece contradizer as prem issas, ou se o movimento parece ser tautológico, é que o termo médio se altera. É como se tivéssemos quatro termos (embora se possa dizer ao mesmo tem po que o termo médio é sempre o mesmo). O “ silogism o” da produção capitalista enquanto tal se enunciaria assim: “ o dinheiro se troca pela m ercadoria n, a m erca doria n se troca por dinheiro, o dinheiro se troca por dinheiro” . Tautologia apa rente. Ou então: “ o dinheiro se troca pela mercadoria n, a m ercadoria n se troca por dinheiro, o dinheiro se troca por mais dinheiro” . Contradição vulgar aparen te. N a conclusão, há “ m ais” do que nas premissas. N a realidade, o que se tem é: “ O dinheiro se troca pela m ercadoria n, a m ercadoria n (que se transform ou em n’ ) se troca por dinheiro, o dinheiro se troca por — mais — dinheiro” . Com efeito, o excesso da conclusão em relação às premissas vem de uma não-identidade do termo médio. E essa não-identidade vem da circunstância de que o uso de uma das mer cadorias obtidas pelo primeiro movimento produz um valor superior ao que ela própria contém. É a presença de uma não-identidade no termo médio (num dos ele mentos do termo médio) que explica o “ excesso” da conclusão sobre as premissas. A efetivação dele tem como resultado um aumento de grandeza. É como se tivésse m os um silogismo com um termo médio que se altera, e por isso produz-se uma conclusão que não se poderia esperar a partir das premissas. Essa alteração do termo médio no “ silogism o do capital” remete à idéia de interversão da lei de apropriação, de que tratei em outro lugar104. A interversão se dá entre a m aior e a menor, e ela ocorre se considerarmos o processo num movi mento incessante e totalizado. Já me referi ao fato de que a interversão das pressu posições caracteriza os textos desse segundo modelo, em oposição ao primeiro: na Ideologia alemã as pressuposições tendem a se esvair em “ flatus voeis” . A liberda de (burguesa) por exemplo se resolve, mais do que isto, se perde inteiramente, no seu predicado. N os Grundrisse e em O Capital, elas se intervertem, conservándo se como pressupostos. Poder-se-ia dizer que a interversão vai por um lado do pla no da forma aparente (a venda da mercadoria força de trabalho) à form a essencial, ou antes fundamental (a apropriação sem equivalência). Por outro lado, ela vai da forma aparente à realidade do processo de trabalho (da forma aparente à matéria), e também da forma aparente ao vivido. Exemplificando a interversão para além do plano formal. Assim, o termo propriedade, que representa uma das pressuposições que se intervertem, é utilizado também com referência ao plano material: “Perten ce ao conceito de capital, que a força produtiva aum entada do trabalho seja posta antes como aumento de uma força dele como seu próprio enfraquecimento (En tkräftigung). O meio de trabalho faz o trabalhador autônom o — o põe como pro prietário. A máquina — como capital fixo — o põe como não-autônomo, como apro p riado” (G, pp. 589-90 [F]). A interversão da propriedade é aqui formal e material.
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O mesmo para a liberdade: “ (...) a combinação social dos processos de trabalho aparece como repressão organizada de sua vida (Lebendigkeit), liberdade e auto nomia individuais” (W 23 , K I, p. 528 [F]). Para a satisfação: “ É (...) uma frase burguesa a mais absurda, a de que o trabalhador partilha [algo] com o capitalista, porque este, através do capital fixo (que de resto é ele próprio produto do trabalho e só trabalho alienado apropriado pelo capital) torna o trabalho mais leve ao tra balhador (através da m áquina, ele antes tira toda autonom ia e todo caráter atraen te do trabalho) ou reduz o seu trabalho” (G, p. 589, o último grifo é meu)105. Se para o pré-capitalismo, e em particular para a Antiguidade, as pressuposi ções se distribuem entre I e O (alguns homens são livres e alguns não são), m as I é plenamente positivo e O, de um modo geral, plenamente negativo — na moderni dade capitalista domina A, todos os homens são livres106. M as esse A é afetado por E (universal negativa). Todos são livres, m as essa liberdade se interverte em nãoliberdade. Nenhum é plenamente livre, embora essa não-liberdade tenha sentidos muito diferentes, conforme se considere o trabalhador ou o capitalista. A exprime a forma, E exprime o conteúdo. Todos são livres, m as também não o são. N o inte rior desse movimento que vai de A a E é que teríamos a partição entre “ alguns” e “ alguns” : alguns são e não são livres de um certo m odo, alguns de outro modo. N a Antiguidade, a partição separa o positivo do negativo, e a tal ponto, como já disse, que o negativo tende a se subtrair completamente: no limite, I se transform a em A. N a modernidade capitalista, temos um movimento contrário, é A que tende a passar a I (particular afirmativa) e se tem um A afetado por E. Seria interessante também analisar a posição dessas form as históricas em re lação às categorias. Aqui dou apenas algumas indicações a respeito. Se tom arm os como referência o quadro kantiano de categorias, observar-se-á por exemplo que, no que se refere às noções que agrupam as categorias (e que, como escreve Hegel — criticando por esse motivo Kant — não são, nos textos deste último, elas m es m as categorias), a quantidade, na modernidade capitalista, é primeira em relação à qualidade. N a Antiguidade, a qualidade é primeira. N o interior da quantidade, a totalidade, no capitalism o, é privilegiada em oposição à unidade, que corresponde melhor à Antiguidade. N o interior da “ qualidade” , o capitalism o privilegia sem dúvida a negação, em oposição à realidade. Para as outras categorias, as distinções são menos nítidas. Com se sabe, o capitalismo aparece na história como uma form ação que, pela primeira vez, totaliza o processo histórico. Convém entretanto distinguir os vários planos em que o capitalism o totaliza. Quando M arx afirma em O Capital107, nos Grundnsse10^ e também na Ideologia alem ã109, que a história universal aparece com o capitalism o, ele se refere a uma totalização no espaço. H á também uma totalização no tempo, a que ocorre pelo fato de que a passagem à história (em oposição à pré-história) —- isto é, a uma sociedade em que os indivíduos são sujeitos — p assa gem que a revolução anuncia, unifica todo o p assado enquanto pré-história110. Estabelece-se assim uma continuidade que, como vimos, coexiste com a descontinuidade histórica111. M as há ainda uma terceira totalização. A que se faz no inte rior mesmo da sociedade capitalista, m as no plano “ vertical” dos diferentes extra tos do “ espírito objetivo” . Assim como a história, enquanto totalidade no espaço e
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no tempo, só existe com o capitalism o, um certo tipo de totalidade social que uni fica de um m odo radicalmente novo a historia sócio-econômica à historia política, à historia da arte e à historia da ciência só aparece com o capitalism o: ‘“ Essa pro gressão contínua de saber e de experiência’ diz Babbage ‘é a nossa grande força’. Essa progressão (Progression), esse progresso social (dieser soziale Fortschritt) per tence ao capital e é explorado por ele. Todas as form as anteriores de propriedade condenaram a maior parte da humanidade, os escravos, a serem puros instrumen tos de trabalho. O desenvolvimento histórico, o desenvolvimento político, a arte, a ciência se processam nas altas esferas, por sobre eles. Foi o capital que capturou pela primeira vez o progresso histórico a serviço da riqueza” (G, pp. 483-4). A s sim, um certo tipo de totalidade social, que o m arxismo vulgar supõe universal para justificar a chamada concepção materialista da história, nem sempre existiu; ela nasce com o capitalismo. y) Pós-grande indústria1' 2 — Haveria em M arx uma teoria do capitalism o de pós-grande indústria? A resposta não é muito simples. Em primeiro lugar é preciso distinguir a esse respeito os Grundrisse de O Capital. Em O Capital, tudo se passa como se M arx analisasse certas m odificações form ais que ocorriam no capitalismo do seu tempo, sem que entretanto ele se pusesse a refletir sobre as mutações essen ciais por que passaria o processo material de produção. As mutações formais po deriam ser resumidas pela fórmula da negação do capital no interior do m odo de produção capitalista. Analisei essas m odificações em outro lugar, embora de for m a lim itada, e não voltarei a tratar aqui desse aspecto113. Q uanto ao processo material de produção, não só não se prevêem m odificações radicais, mas a forma material da grande indústria (em suas linhas essenciais evidentemente) aparece como aquela que deveria ser recoberta pela form a social do comunismo. Vimos anterior mente um texto de O Capital que faz a crítica das definições de grande indústria que dá A. Ure114, no qual se poderia reconhecer a idéia de um a subjetivação do processo de produção, caso a organização material que corresponde à grande in dústria fosse utilizada num quadro que não fosse o das form as capitalistas. M as, como já observei, a introdução de um princípio subjetivo só é pensado no nível formal não no nível do processo material de produção. Por isso, como veremos mais adiante, M arx adota em O Capital uma postura menos otimista no que se refere ao destino que teria o processo de trabalho na sociedade comunista. Dentro dela, a “ necessidade” se manteria. Os Grundrisse enveredam por um outro caminho, e poderíam os perguntar por que M arx não o seguiu em O Capital. Diga-se desde já que não se trata de afirmar, sem mais, a superioridade da perspectiva dos Grundrisse. Ela é provavelmente mais interessante, mas há algo de mais realista na direção que toma O Capital. Os Grundrisse refletem sobre as m odificações por que deve p as sar o sistema em seu desenvolvimento, m odificações que introduzem, sem dúvida, uma ruptura qualitativa. M as o texto não caracteriza de uma forma bem clara essa ruptura enquanto ruptura. Sem dúvida, as negações aparecem como negações no sistema, entretanto elas são tom adas antes como negações rio interior da forma específica. Elas não são apresentadas, pelo menos explicitamente, como seríamos tentados a fazer hoje (mutatis mutandis) como constituindo uma terceira forma, cuja predominância definiria um novo período na sucessão das formas do sistema,
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para além da m anufatura e da grande indústria. É o que tentarei fazer aqui, elabo rando para essa terceira form a conceitos análogos aos que M arx utilizou para a primeira e a segunda115. Para pensar esse desenvolvimento da organização da produção material, o qual não aparece entretanto claramente como um momento diferente do da grande in dústria, os Grundrisse devem supor uma espécie de prolongamento da vida do sis tema (como aliás supõe em parte a temática da negação do sistema dentro do siste ma) e uma espécie de quase-ruptura (auto-ruptura) estrutural dele, ruptura que não implica entretanto —- há textos que o mostram — o abandono da idéia de revolução. A propósito da grande indústria, M arx observa que, a rigor, nela já não se tem processo de trabalho: “ A apropriação do trabalho vivo através do trabalho objetivado — a força ou atividade de valorização através do valor que é para si — que está contida no conceito de capital, é posta na produção que se baseia na maquinária como caráter do próprio processo de produção, também segundo os seus elementos materiais e no seu movimento m aterial116. O processo de produção dei xou de ser processo de trabalho no sentido de que o trabalho nele interviria (übergriffe) como unidade que domina (beherrscbende)” 117. Se a grande indústria aparece como a negação do processo de trabalho, a pósgrande indústria seria a segunda negação do processo de trabalho, e na realidade a negação da negação. M as se a grande indústria representa a posição (material) adequada do capital no processo produtivo, poder-se-ia dizer também que a pósgrande indústria representa a segunda posição m aterial (veremos se ela é ou não adequada ao capital, no processo produtivo). Assim, a pós-grande indústria é ao mesmo tempo a segunda negação do trabalho como princípio do processo produ tivo, e a segunda posição do capital no processo material de produção. Para analisar esse terceiro momento, é essencial examinar em detalhe alguns textos — embora longos — dos Grundrisse. O interesse e a densidade desses tex tos impõem o comentário. O texto principal é talvez o dos Grundrisse, pp. 592-4 (Borrador, 2, pp. 227-30): “ A troca do trabalho vivo contra o trabalho objetivado, isto é, a posição do trabalho social na forma da oposição entre capital e trabalho — é o último desenvolvimento da relação de valor11S, e da produção que repousa sobre o valor. Sua pressuposição é e permanece [sendo] — a m assa de tempo de trabalho imediato, o quantum de trabalho utilizado como fator decisivo da produ ção da riqueza” 119. Até a grande indústria, a m assa de tempo de trabalho, o quantum de trabalho, é o elemento decisivo; é esse tempo que deixará de ser a “ medida do movimento” . “ (...) M as à medida que a grande indústria se desenvolve120, a criação da ri queza efetiva torna-se menos dependente do tempo de trabalho e do quantum de trabalho utilizado, do que da força dos agentes (Agentien, agentes m ateriais, RF) que são postos em movimento durante o tempo de trabalho (...)” Poder-se-ia dizer que o termo-chave é, aqui, “ durante” . A valorização não é mais a cristalização de um tempo posto. Ela se dá no tempo. De certo modo, o tempo volta à sua imediatidade. A “ valorização” se liberta do tempo de trabalho, mas com isto ela não será mais valorização. “ (...) [agentes] os quais, eles próprios —■sua poderosa efetividade (powerful
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effectiveness) por sua vez não tem mais nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa a sua produção, mas [a criação da riqueza efetiva, RF] depende antes da situação geral da ciência, do progresso da tecnologia, ou da utilização da ciência na produção” . Temos assim um “ poder” que escapa do tempo como medida. O “ valor” passa a ser qualitativo, e nesse sentido a “ riqueza efetiva” não é mais valor (trabalho abstrato cristalizado, medido pelo tempo), m as “ valor negado” . “ (...) a riqueza efetiva se manifesta antes — e isto a grande indústria revela — numa desproporção m onstruosa entre o tempo de trabalho empregado e o seu pro duto, assim como na desproporção qualitativa entre o trabalho reduzido a uma pura abstração e o poder (Gew alt) do processo de produção que ele vigia (bewacht)” . A riqueza efetiva não é mais proporcional ao tempo de trabalho. H á despro porção entre eles, e desproporção qualitativa. Que significa uma “ desproporção qualitativa” ? Um elemento tem um peso “ m aior” do que o outro, sem que este “ m aior” possa ser medido pelo tempo, ou medido em geral. O processo de traba lho é agora essencialmente processo de produção. “ (...) O trabalho não aparece mais até o ponto de (so sehr als) estar incluído no processo de produção, m as o homem se relaciona antes como guardião e regu lador (Wächter und Regulator) do processo de produção” . Aqui se exprime a m utação na própria construção da frase. O sujeito “ o ho mem ” emerge de um processo em que ele era apenas termo médio. A noção de vigia (Wächter) da máquina — ou antes o verbo überwachen, vigiar — havia sido utilizada no nível anterior, que correspondia entretanto à função de portador e de media dor121. Agora o termo Wächter não denota mais uma função de suporte (portador), mas uma função de sujeito, e isto porque se alterou a natureza da maquinária. Passa-se de um genitivo subjetivo (guardião da m áquina, guardião que está a serviço da m áquina), a um genitivo objetivo (guardião da m áquina, guardião que tem por objeto a máquina). A passagem do suporte ao sujeito já está expressa pela própria ruptura na construção da frase·, depois do “ m as” , esperar-se-ia a repetição do su jeito “ trabalho” da principal. Em vez disso, introduz-se “ o hom em ” em lugar de “ trabalho” . Esse anacoluto dialético122 indica a ruptura entre o portador (supor te) e o sujeito. “ (...) N ão é mais o trabalhador que intercala o objeto natural modificado como membro intermediário (M ittelglied) entre ele e o objeto. M as ele intercala o pro cesso natural que ele transform a em um processo industrial como intermediário (Mittel) entre ele e a natureza inorgânica que ele submete (sich bemeistert)” . Surge assim um novo “ silogism o” , que, em certo sentido, é comparável ao da manufatura, não ao da grande indústria, por que essa nova negação re-toma de certo m odo a situação da pré-grande indústria. O princípio é de novo subjetivo. M as o médio não é mais “ instrumento” , nem “ objeto natural m odificado” , isto é, objeto artificial, e sim processo natural que se tornou processo industrial. Que significa isto? O m ediador não é mais da ordem do objeto artificial, da natureza m odificada que caracteriza o objeto até o capitalism o de grande indústria (mas nesta última o objeto não é mais o intermediário). — Finalmente, deve-se observar que, nesse m o delo (Grundrisse, Capital) como no anterior, trata-se sempre de domÍ7iar a natureza.
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“ (...) Ele [o trabalho] entra ao lado (neben) do processo de produção em vez de ser o seu agente principal'” . O homem não é mais sujeito do processo de produção, ou antes, a segunda negação faz com que se rom pa a estrutura do processo de produção como proces so de trabalho. O homem é de certo m odo “ posto para fo ra” , liberado (freigesetzt) do processo, mas é assim mesmo que ele passa a dominar o processo. Desse m odo, esse terceiro “ silogism o” é ao mesmo tempo — do ponto de vista material, não formal, porque na situação considerada o capitalism o subsiste — a negação dos “ silogism os” . “ (...) N essa transform ação (Umwandlung) não é nem o trabalho imediato que o homem executa, nem o tempo que ele trabalha, mas a apropriação da sua pró pria força produtiva universal, sua compreensão (Verständigung) da natureza e sua dom inação dela através da sua existência (D asein) como corpo social — em uma palavra [é] o desenvolvimento do indivíduo social que aparece como o grande pi lar da produção e da riqueza.” A apropriação do objeto se faz agora pela compreensão da natureza. Obser ve-se que isto não quer dizer apenas que o processo de produção depende da ciên cia, porque isto já era o caso para a grande indústria. “ (...) O roubo de tempo de trabalho alheio sobre o qual repousa a riqueza atual123 aparece como base miserável diante dessa [base] que se desenvolve pela primeira vez (neu entwickeln) criada pela própria grande indústria124. Logo que o trabalho em forma imediata deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa e deve deixar (muss aufhören) de ser a sua medida e por isso o valor de troca [deve deixar de ser a medida] do valor de uso. O sobretrabalho da m as s a 115 deixou de ser condição para o desenvolvimento da riqueza universal, assim como o não trabalho de poucos12é para o desenvolvimento da força universal do cérebro (Kopf) humano. Com isto, cai a produção fundada no valor de troca, e o próprio processo de produção imediato se despoja (erhält...abgestreift) da forma do carecimento (Notdürftigkeit) e da oposição (Gegensätzlichkeit)” . “ O roubo do tempo de trabalho.” A pós-grande indústria revela a base pri meira (o Hintergrund) do sistema. Essa base se revela miserável, quando o traba lho deixa de ser a fonte da riqueza. Isso ocorre quando o processo material de pro dução já se modificou. Ele deixou de ser o lugar da necessidade. A oposição que desaparece é a dos indivíduos reduzidos a apêndices dos meios de trabalho no pro cesso material de produção. N um outro sentido, como veremos, surge agora uma oposição, a que opõe a form a à matéria do capital: a adequação m aterial do capi tal é posta em xeque como que por um excesso de adequação. “ (...) [Obtém-se] o livre desenvolvimento das individualidades127 e, por isso, não a redução do tempo de trabalho para pôr sobretrabalho; m as em geral a redu ção do trabalho necessário da sociedade a um mínimo, o qual corresponde então à form ação artística, científica etc. dos indivíduos através do tempo que se tornou livre para todos e dos meios criados” . N ão só o processo de produção deixou de ser o lugar da necessidade, mas ainda o tempo de trabalho foi reduzido a um mínimo. Ganha-se qualitativa e quantitati vamente, e dentro e fora do processo de produção.
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“ (...) o capital é ele próprio a contradição em processo, porque ele reduz (zu reduzieren stòrt) o tempo de trabalho a um mínimo, enquanto põe, por outro lado, o tempo de trabalho como única medida e fonte de riqueza. Por isso ele reduz o tempo de trabalho na forma do tempo de trabalho necessário, para aumentá-lo na forma do tempo excedente; por isso põe o [tempo] excedente, em medida crescen te, como condição — questão de vida ou de morte — para o trabalho necessário. Assim, conjura [ms Leben rufen] todas as forças da ciência e da natureza assim como a combinação social e do intercâmbio (Verkebr) social, para tornar a criação da riqueza (relativamente) (relativ) independente do trabalho empregado nela. Por outro lado, quer medir essas forças sociais gigantescas, assim criadas, pelo tempo de tra balho, e as conter nos limites exigíveis para manter como valor o valor já criado. As forças produtivas e as relações sociais — am bos lados diferentes do desenvolvi mento do indivíduo social ■— aparecem só como meio, e para ele só são meio para produzir a partir da sua base limitada. N a realidade, são entretanto condições m a teriais para fazê-lo explodir. [Uma nação é realmente (wahhaft) rica128 quando se trabalha 6 horas em vez de 12. A riqueza não é comando sobre tempo de trabalho excedente (riqueza real) (realer Reichtum) (mas) tempo disponível (disposable time) fora do que é utilizado na produção imediata, para cada indivíduo e para toda a sociedade.]” A contradição do capital que se assinala aqui não é a que se analisa em O Capital, ou preferindo, não é considerada no mesmo grau, e por isso muda de ca ráter. Em O Capital, a contradição consiste em que o desenvolvimento do sistema (desenvolvimento que só pode se fazer pela substituição crescente da força de traba lho pela m aquinária), ao aumentar a com posição orgânica c/v, tem como resulta d o129, já que a mais-valia vem de v (e supostas certas condições), a redução da taxa de lucro Pl/C. O sistema iria à ruína, porque a sua finalidade é acumular mais-valia, e, se a taxa de lucro for muito baixa, cai o estímulo (objetivo e subjetivo) para que a acum ulação prossiga. Os Grundrisse nos põem diante do mesmo movimento, só que eles consideram não os efeitos formais imediatos de uma mecanização crescente, m as os efeitos materiais — que entretanto anunciam revoluções formais — de uma mecanização que transfigurou a relação da ciência para com a produção. Estam os, assim, diante de uma verdadeira transform ação — como vimos, o termo se encon tra no texto — do processo produtivo, de uma m utação tecnológica, e os efeitos formais considerados não atingem apenas o nível, que é afinal fenomênico, da taxa de lucro, mas os “ fundam entos” do sistema. A m utação tecnológica não produz contradições internas no sistema, ele provoca a explosão de suas bases. O resulta do é a revelação do que é a “ verdadeira riqueza” . M as não antecipemos. Tentemos agora organizar e desenvolver esses resultados. O estágio descrito pelos Grundrisse representa uma terceira form a, cuja predom inância define um terceiro momento do modo de produção capitalista. Com essa form a, tem-se por um lado uma segunda posição da forma na matéria, e ao mesmo tempo uma se gunda negação do processo de trabalho enquanto processo de trabalho. Essa se gunda negação é também uma negação da negação, porque se nega com ela a con dição de portador-apêndice que fora posta pela segunda forma, a grande indústria.
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A condição de portador, no nivel formal, ainda não é negada. Tem os assim três formas do capitalism o, no plano do processo material de produção. A essas três formas correspondem configurações distintas no plano formal, ou níveis diferen tes de desenvolvimento dessas formas. N a primeira form a, o desenvolvimento da exploração da mais-valia relativa só pode ser limitado (mas dada a resistência, ain da possível, com base na natureza da organização material da produção, o prolon gamento da jornada é também limitado). N a segunda form a, temos o pleno desen volvimento da exploração da mais-valia relativa (mas, com essa form a, também a exploração da mais-valia absoluta pode se expandir). N a terceira form a, tem-se a “ negação” do trabalho como fundamento do valor, e do tempo de trabalho como medida da grandeza de valor. Esses três momentos são form as sucessivas do modo de produção capitalista. Até certo ponto, poder-se-ia dizer que esses três momen tos têm algo a ver com os três momentos lógicos que se pode reconhecer na estru tura do modo de produção capitalista. O princípio da “produção simples” 130 é sub jetivo, como é também subjetivo o princípio da manufatura. O segundo momento lógico é o da essência do sistema, o da produção capitalista enquanto produção ca pitalista. Seu princípio é objetivo, como é objetivo o principio da grande industria. Finalmente, o terceiro momento lógico é o da interversão das relações de apropria ção, o qual revela o “ fundo” (Hintergrund) do sistem a131. Já vimos que, no plano da sucessão de form as do sistema, a pós-grande industria revela também esse “ fun d o ” , o que significa, m ostra o sistema como fundado no “ rou bo” do tempo de tra balho alheio. H á também m udanças na estrutura do contrato, conforme se considere cada uma dessas formas. É na manufatura que o contrato se apresenta como contrato individual livre (ou “ livre” , m as, por ora, o âmbito dessa liberdade é ainda relati vamente amplo). A propósito da grande indústria, M arx observa que o contrato de trabalho tende a ser revolucionado, porque (nas condições do século X IX ) o trabalhador é levado a vender ao mesmo tempo a força de trabalho da mulher e dos filhos (ou simplesmente a mulher e os filhos). “ Ela [a máquina] revoluciona fun damentalmente a m ediação formal da relação-capital, o contrato entre o trabalha dor e o capitalista. N a base da troca de m ercadorias, a primeira pressuposição era a de que o capitalista e o trabalhador se afrontavam como pessoas livres, possui doras independentes de m ercadorias, [sendo] um possuidor de dinheiro e meios de produção, e o outro, de força de trabalho. M as agora o capital com pra menores ou semi-adultos. Antes o trabalhador vendia sua própria força de trabalho, da qual ele dispunha como pessoa formalmente livri. Agora ele vende mulher e filho. T or na-se comerciante de escravos. A procura de trabalho infantil é igual, até na for ma, à oferta de escravos negros (...)” (W 23, K I, pp. 417-8 [F]; S I, 2, pp. 23-4). Observei em outro lugar (ver M LP II, 4, pp. 317-8) que, com a terceira forma (ca racterizada como “ negação” do capitalismo no interior dele), o contrato é “ nega d o ” e em duplo sentido: por um lado surge a prática do contrato coletivo de traba lho. Por outro lado, o Direito Social reconhece uma desigualdade entre as partes do contrato132. Se considerarmos assim as três form as, encontramos m udanças na forma da produção, na matéria dela (no processo material da produção), e na es trutura das pressuposições jurídicas do sistema.
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M as o que significa mais precisamente a segunda posição material, que ca racteriza a terceira forma? A primeira posição material — que corresponde à se gunda forma — é posição da forma na m atéria, criação de uma segunda matéria adequada. Já vimos que isto se faz mediante a apropriação da ciência pelo capital, de que resulta o sistema mecânico. Vimos que essa adequação é comparável à do ouro em relação à forma dinheiro, e que ela representa a criação de uma espécie de alma-corpo do capital. O que ocorre na segunda posição, isto é, na terceira forma? Se, na grande indústria, tínhamos uma posição da forma na matéria através de uma organização material adequada, temos agora uma espécie de posição na matéria da form a enquanto form a. E a forma enquanto tal — m as, atenção, trata-se aqui da forma material, da ciência, não da forma form al, o capital (que já era e continua sendo posta) — que agora é posta na matéria. A ciência se objetiva enquanto ciên cia na matéria. Surge assim uma espécie de ciência objetivada na maquinária da pósgrande indústria. “ O desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto o saber social universal, knowledge, se tornou força produtiva im ediata133 e por isso as condições do processo social de vida e ele próprio caíram sob o controle do gene ral intelect e são criados de modo conforme a ele. [Indica] em que grau as forças produtivas sociais são produzidas não só na form a da ciência, m as como órgãos imediatos da praxis social, do processo de vida real” (G, p. 594; Borrador, 2, p. 230)134. Vimos anteriormente um texto em que se diz que não se utilizará mais como “ m édio” um “ objeto material m odificado” , m as sim um “ processo natural trans form ado em processo industrial” . Já observei o que isto significa negativamente: vai-se além do objeto artificial, a artificialidade caracterizando o universo do capi talismo da grande indústria. M as o que se tem em seu lugar? A interiorização e objetivação de processos naturais. E sendo a interiorização intelectualização do objeto, a objetivação é posição do “ intelecto geral” 135. Isto concorda com a idéia de que a força produtiva — embora seja força objetiva — está na “ compreensão da natureza” . A compreensão da natureza está objetivada nas novas m áquinas. Se na grande indústria o capital valia-se da ciência para adequar a matéria aos seus fins, ele é levado a fazê-lo uma segunda vez, trabalhando “ assim para a sua pró pria dissolução como forma que domina a produção” (G., p. 588; Borrador, 2, p. 222). A ciência, que é form a material do capital, é posta uma segunda vez. E agora a posição é de tal ordem que a matéria, o esqueleto material enquanto tal, torna-se simples suporte da ciência. Nesse sentido, essa posição é muito diferente da primeira, e do seu análogo, a encarnação do dinheiro no ouro. Aqui não há mais encarna ção, porque a form a excede a matéria. A forma (sempre a forma material) reduz a matéria (a matéria material) a suporte136. E como se a descrição que M arx faz do trabalho concreto a propósito do processo de trabalho já não fosse válida (“ N a sua produção, o homem só pode proceder como a própria natureza, isto é, m udar as formas das m atérias” (W 23, K I, p. 57; C 1 ,1, pp. 50-1). “ T odos os fenômenos do universo — escreve Verri, citado por M arx — não são verdadeiramente criações novas, mas somente transform ações da m atéria” ( Umformung des Stoffes)” (ibidem)137. Assim, já não se tem m ais, propriamente, um objeto artificial. Antes uma espécie de objeto intelectual ou espiritual: é o logos — mas logos da natureza assi milado pelo intelecto — que é posto no processo de produção138. Com isto, a rup
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tura entre trabalho vivo e trabalho morto é relativizada, a máquina passa a ser uma espécie de força de trabalho (intelectual), no sentido de que ela não necessita mais (quase) nenhum trabalho para ser vivificada. O autôm ato é agora autôm ato espiri tual, não simples autôm ato “ vivo” . Passa-se do conceito de vida, ou da vida como conceito (cf. a Lógica de Hegel), ao conceito de espírito139. M as no momento em que a forma material se adequa inteiramente à matéria, no sentido de que ela a domina inteiramente, a form a (form al) enquanto tal, isto é o capital, já não se adequa mais à matéria (à forma material mais a matéria m ate rial). A posição plena da forma material, pelo próprio fato de que ela é plena, já não serve mais à forma enquanto tal. A form a m aterial passa a servir a si própria em vez de servir à forma formal. Esta última, o capital, funciona assim como aprendiz de feiticeiro140. Ela utiliza uma “ alma m aterial” que se volta contra ela. Isto não ocorre com o dinheiro, precisamente porque este não se subjetiviza enquanto di nheiro: ele só utiliza “ corpos” . É como se o capital, processo quase-vivo, se per desse, no momento em que ele mobiliza o espírito enquanto tal. É evidente a extra ção hegeliana de todo esse desenvolvimento. Entretanto, a ciência de que se trata aqui é a ciência natural, a ciência do entendimento; há mesmo uma referência ex pressa ao Verstand. Essa ciência do entendimento desempenha assim um papel muito próxim o do da Verfunft hegeliana. Ainda aqui se m ostra como o m arxism o reabi lita o entendimento — ou como ele opera uma segunda reabilitação do entendimento, já que Hegel não se “ opunha” a este — no contexto de uma lógica da razão. Em M arx, entendimento e razão se limitam de uma form a original141. Assim, o capital que era uma alma apetitiva — ele tem “ fome devoradora” de trabalho alheio (W 23, K I, p. 425; C I, 2, p. 29) — se apossa de um intelecto; mas acaba sendo dom i nado por ele. É preciso acompanhar as mudanças que se operam dentro do processo de pro dução e sua relação com a exterioridade, no tempo e no espaço. A emergência do homem no processo material como vigia da m áquina, e não mais vigia da m áqui na, indica o fim da subordinação do trabalho ao capital. Vimos que na primeira fase, a m anufatura, a subordinação é apenas form al, ela não existe no interior do processo material de produção, senão na relação para com uma subjetividade glo bal (que, sem dúvida, nega à sua maneira a individualidade, reduzida a parte). N a segunda fase, a grande indústria, onde ocorre a primeira posição adequada da for ma na matéria, tem-se a subsunção real142, isto é, formal e material. Com a pósgrande indústria desaparece a subordinação material, e é nesse sentido e só nesse sentido que se retoma a primeira situação. N a realidade, tem-se uma negação da negação. Se a subordinação material desaparece é porque o processo de trabalho perdeu completamente o seu caráter de processo de trabalho. O processo de pro dução tem um caráter muito próxim o ao de um processo de produção da ciência. São as novas máquinas que o executam, o indivíduo sai até certo ponto do proces so (“ Ele entra ao lado do processo de produção” [G, p. 593; Borrador, 2, p. 228]).. Assim, a subordinação material desaparece. N ão há mais “ op osição” entre o indi víduo e o processo material, embora ou precisamente porque se restabelece a opo sição matéria e forma. M as esta oposição tem um sentido novo: a matéria, e em particular a “ form a m aterial” , comanda o processo. E como se a form a material
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exigisse uma posição adequada na form a. O capital é inadequado a esse novo p ro cesso material de produção. Em relação aos indivíduos, fica apenas a interversão forma/conteúdo, não mais a inversão do plano material. Teríam os assim a suces são: subordinação form al, subordinação real, subordinação form al novamente. Sucessão que corresponde a: oposição não-plena (entre indivíduos e condições ob jetivas), oposição plena143, oposição não-plena outra vez. Este não é o lugar em que pretendo fazer a crítica de M arx 144. M as já aqui se pode observar: se é verdade que M arx não afirma que com a pós-grande in dústria (e antes da revolução) possa haver verdadeira libertação, ele supõe nesse estágio o fim da subordinação m aterial do trabalho ao capital. Entretanto, poderse-ia perfeitamente dizer que com as novas m áquinas não desaparece a subordi nação material (entendendo “ m aterial” em sentido am plo que remete ao que se p assa no processo de trabalho). M arx pensa num modelo que poderia ser, por exemplo, o do engenheiro que pilota um avião supersônico. M as há também o modelo do trabalhador que faz uma longa jornada diante de um com putador. Se ria difícil dizer que ele é materialmente livre diante do instrumento. M arx crê que a espiritualização do objeto implica uma libertação (que, bem entendido, é para ele, apenas libertação material, isto é, interior ao processo de trabalho). M esmo isso é, entretanto, excessivo. A rriscaria aqui alguns conceitos novos. Diria que pode haver uma espécie de subordinação intelectual (ou espiritual) do trabalho ao capital. Teríam os assim a subordinação form al, a subordinação formal-material (em sentido próprio), e a subordinação formal-intelectual (ou espiritual) do tra balho ao capital. As duas últimas seriam reais (na minha versão; na de M arx só a segunda é real, a primeira e a terceira são formais). E se, no caso da subordina ção formal, o trabalhador é (formalmente) portador (suporte), sem ser (material mente) apêndice, se no caso da subordinação formal-material ele é apêndice, além de ser portador (suporte), na subordinação formal-intelectual ele é de certo modo servidor do novo mecanismo, que é um autôm ato espiritual145. A transform ação da natureza em “ espírito” não garante a libertação, mesmo a libertação “ m ateri a l” , isto é, a que se dá no processo de trabalho. Essa transform ação pode ser uma condição da libertação material. M arx parece afirm ar que ela pode ser condição de liberdade no plano da form a, m as que ela é condição suficiente de liberdade no plano material. N esse ponto, Proudhon é menos otimista do que M arx, em bo ra talvez exagere em sentido contrário: “ Quaisquer que sejam os progressos da mecânica, quando forem inventadas m áquinas cem vezes mais m aravilhosas do que a mule-jenny, o tear de braço, a prensa com cilindro, quando se descobrirem forças cem vezes mais poderosas do que o vapor, muito longe de libertar a hum a nidade, de lhe criar lazeres, de tornar a produção de todas as coisas gratuitas, não se fará senão multiplicar o trabalho, incitar a população, tornar m ais pesada a servidão, tornar a vida cada vez mais cara, e cavar o abism o que separa a classe que com anda da classe que obedece e sofre” 146. As m odificações que descrevem os Grundrisse só são plenamente compreen síveis se se pensar que elas revolucionam as relações entre o tempo (e o espaço) de trabalho, e o tempo (e o espaço) de não-trabalho. Já vimos que os limites do espa ço de trabalho são quebrados pela nova forma de produção material. O produtor
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se situa fora da produção. Longe de significar uma invasão do espaço de não-trabalho pelo do trabalho, esse movimento representa o contrário disto. E no capita lismo de grande indústria que os espaços exteriores ao do trabalho são “ invadidos” formal ou mesmo materialmente pelo processo de trabalho. Para o tempo, ocorre a mesma coisa. M as a análise do tempo exige que se passe pela pressuposição fun damental, que é aqui a riqueza. Até a pós-grande indústria, a riqueza dependia do trabalho. A riqueza concreta era form ada pelo trabalho concreto, a riqueza abs trata — valor — era criada pelo trabalho abstrato. O tempo de trabalho media a produção da riqueza. De certo m odo, a riqueza sempre representou uma pressupo sição objetiva, diante da liberdade e da satisfação que, em sentido geral, se com pa radas à riqueza, tiveram sempre um caráter subjetivo. A riqueza estabelecia a con tradição entre as pressuposições, porque ela dependia da não-liberdade e da nãosatisfação. E como se para passar da liberdade à satisfação — exigência que vai na linha da dialética da razão prática — fosse necessário passar pela riqueza. M as a riqueza pressupõe o trabalho, e o trabalho é não-liberdade147. Tudo se passa como se o percurso necessário até aqui fosse sempre liberdade — riqueza — satisfação, “ silogism o” em que a riqueza é o termo médio. M as no capitalism o, até a grande indústria, essa m ediação institui um bloqueio, a riqueza é riqueza pela riqueza. Ela se transform ou em extremo, ou antes nos extremos (os extremos são ela e ela mes ma acrescida de uma diferença quantitativa), enquanto a liberdade e a satisfação se tornaram termos médios. De forma que não havia apenas contradição interna nas pressuposições (entre liberdade e liberdade, riqueza e riqueza etc.), mas con tradição entre as pressuposições. N a Antiguidade, isto se evitava porque a produ ção da riqueza cabia a outros homens (que passavam ao estatuto de coisas, sem perder, entretanto, na leitura aristotélica, o seu estatuto de homens)148. Assim, a riqueza era sempre o operador negativo, num sentido ou em outro. Com a pós-grande indústria, há ruptura dessa situação. A riqueza não é mais produzida pelo traba lho, m as pelo não-trabalho. Isto num duplo sentido. Em primeiro lugar, a riqueza material já não depende essencialmente do trabalho. Em segundo lugar, a riqueza passa a ser essencialmente a ciência (a arte etc.), e esta é produzida no tempo de não-trabalho149. Assim, a substância da riqueza não é mais o trabalho, m as é o nãotrabalho- O trabalho era a substância da riqueza abstrata. A matéria (mas matéria substancial) da riqueza concreta era a natureza (o trabalho concreto só m odificava a forma). Tinha-se assim uma oposição entre, de um lado, o universo concreto, o dos valores de uso, no interior do qual se tinha matéria e form a, e de outro lado o universo abstrato, do valor e do trabalho abstrato, que era pura form a (incluindo a substância da form a, o próprio trabalho abstrato). Agora a substância da forma não é mais o trabalho, mas o não-trabalho (é a ciência que cria “ valor” ). Porém, enquanto “ não-trabalho” concreto, a (nova) ciência fará mais do que m odificar a forma dos objetos naturais. O que era assim forma abstrata (do lado da forma) e simples forma (do lado do conteúdo) diante do conteúdo substancial, passa a ser forma “ concreta” , diante de um simples suporte material. A forma abstrata se tor na forma concreta, e a matéria substancial se reduz a simples matéria. M ovimento inverso ao da passagem da matéria ao conteúdo (e correspondente redução da for ma a simples forma), que vimos em outro lugar150.
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A riqueza é agora cristalização do “ trabalho” científico, mas o trabalho cien tífico “ entra” no tempo livre. “ (...) A poupança de tempo de trabalho é igual ao aumento do tempo livre, tempo livre para o pleno desenvolvimento do indivíduo, tempo que, ele mesmo, age por sua vez sobre a força produtiva do trabalho. (...) Que de resto o próprio tempo de trabalho imediato não possa permanecer em opo sição direta ao tempo livre — como ele aparece do ponto de vista da economia burguesa — entende-se por si mesmo. O trabalho não pode se tornar jogo como quer Fourier, cuja grande contribuição é ter afirm ado como objetivo último a su pressão, numa forma mais alta, não da distribuição, m as do próprio modo de pro dução. O tempo livre — que é tempo livre como tempo para atividade mais alta — transform ou naturalmente o seu possuidor num outro sujeito e, enquanto esse ou tro sujeito, ele entra no processo de produção im ediato” (G, p. 599, Borrador, 2, p. 236 [F])151. Tem-se assim uma anti-economia política, uma economia política negativa. O tempo de não-trabalho é a substância da riqueza. A riqueza aparece “ do outro lado do espelho” , do lado do tempo livre. O tempo de não-trabalho é a medida da riqueza enquanto riqueza objetiva, e ela é tempo livre enquanto riqueza subjetiva. Todo o sistema se inverte. O importante é que a pressuposição riqueza se subjetiviza e se interverte em liberdade. O fundo passa a ser form a, e a forma fundo; o que era residual e pressuposto passa a ser primeiro e posto. Essa econo mia política negativa opera evidentemente uma negação da negação, e nesse senti do é ela que é realmente positiva. “A criação de muito tempo disponível (viel dis posable time)151 fora do tempo de trabalho necessário para a sociedade em geral e para cada membro dela (isto é, espaço para o desenvolvimento da plena força pro dutiva dos indivíduos [e] por isso da sociedade), essa criação do não-tempo de tra balho aparece do ponto de vista do capital como de todos os níveis anteriores como não-tempo de trabalho, tempo livre para alguns” . O que o capital acrescenta é o uso “ da arte e da ciência” porque a sua finalidade posta é criar valor e apropriar trabalho excedente. Com isso ele contribui “ malgré lui” a reduzir o tempo de tra balho “ a um m ínim o” e a “ tornar livre o tempo de to d o s” . O desenvolvimento da contradição torna evidente que não se pode mais ficar nos limites da “ apropriação do trabalho excedente” , e que a “ própria m assa dos trabalhadores deve se apro priar” dela. “ Se ela o fizer” (aqui se supõe, portanto, a revolução, qualquer que seja a sua forma), “ o tempo livre (disposable time)” 153 deixará de ter “ existência con traditória (gegensätzlich)” , “ o tempo de trabalho necessário terá sua medida nas necessidades do indivíduo social” e “ o desenvolvimento da força produtiva social crescerá tão rapidam ente” que, embora agora se considerem todos (“ a produção seja calculada sobre a riqueza de to d os” ), “ o tempo disponível de todos cresce” . Segue-se uma definição da “ riqueza efetiva” (Cf. “ a verdadeira riqueza” e o texto de Aristóteles [Pol., I, 8, 1.256 b, 26-30] sobre ela citado, anteriormente). “ A ri queza efetiva (der wirkliche Reichtum) é a força produtiva desenvolvida de todos os indivíduos.” E uma nova definição da medida da riqueza e da relação entre tempo de trabalho e tempo livre: “ O tempo de trabalho não é mais de modo algum a medida da riqueza, e sim o tempo livre (disposable time). O tempo de trabalho como me dida da riqueza põe a riqueza como fundada sobre a pobreza e o tempo livre (dis posable time) como existindo na e através da oposição ao tempo de trabalho exce
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dente ou [através da] posição de todo o tempo de trabalho de um indivíduo como tempo de trabalho e por isso degradação do mesmo a mero trabalhador, subsunção sob o trabalho” (G, p. 595, 6, Borrador, 2, p. 231, 2 [F])154. O tempo destinado à produção do capital fixo representa, no interior do ca pitalism o, o tempo livre, no sentido de que não é um tempo dedicado à produção de objetos de consumo ou imediatamente consumíveis: “ A poupança de tempo de trabalho é igual ao aumento de tempo livre, tempo para o pleno desenvolvimento do indivíduo, o qual por sua vez age sobre a força produtiva do trabalho. D o pon to de vista do processo de produção imediato, ela [a poupança de tempo de traba lho] pode ser considerada como produção do capital fixo, sendo o capital fixo o próprio homem” (G, p. 599, Borrador, 2, p. 23 6)155. Isto é, o tempo de produção de um objeto não imediatamente consumível anuncia o tempo de não-produção. Assim, o que se teria com a pós-grande indústria seria uma interversão do tempo. O tempo de trabalho se torna tempo de não-trabalho, em parte porque o tempo de trabalho não é mais tempo de trabalho, em parte porque a criação da verdadeira riqueza não se faz nele m as no seu outro. O mesmo se pode dizer do espaço. O espaço do trabalho se interverte em espaço de não-trabalho. Anterior mente, o tempo (como o espaço) de trabalho era idêntico a si mesmo (ele não p as sava num outro), e ao mesmo tempo ele era o elemento da contradição (um dos elementos em que se dava a contradição). N o interior dele, ocorria a interversão material da liberdade em não-liberdade, da satisfação em insatisfação etc. Por sua vez, o tempo — como o espaço — de não-trabalho era enquanto tal afetado pela contradição. Ele passava em tempo de trabalho156. Em si mesmo, entretanto, ele não era elemento da contradição. Agora temos uma situação inversa. É o tempo de trabalho que passa em tempo de não-trabalho. E o tempo de não-trabalho passa a ser idêntico a si mesmo. M as esse tempo idêntico a si mesmo não é (continua não sendo, e agora em sentido pleno) elemento de interversão. Nele, a liberdade = li berdade, a satisfação = satisfação etc. Essa m utação se faz através da riqueza. É a riqueza — uma das pressuposições — que se interverte em liberdade (sempre no plano material), operando uma negação da negação. A riqueza volta a ser — ou vem a ser — uma m ediação que opera sem bloqueio. M as para que isso ocorra é preciso que a riqueza opere uma interversão do tempo e do espaço. O tempo de trabalho — vimos — é o lugar, o elemento, em que ocorrem essas interversões. Ele é o operador lógico da interversão, e de certo m odo a ligação lógica (a cópula). Q uanto à riqueza, ela é na realidade, ela mesma, um termo que, como os outros, se interverte através dessa ligação. Ora, com a m utação que se produz após a grande indústria, a riqueza interverterá o próprio tempo de trabalho em tempo de não-tra balho. E, mais ainda, ela mesma tornar-se-á tempo de não-trabalho. Isto significa que um termo (a riqueza) atua sobre a ligação lógica, e acaba passando nessa liga ção lógica (ou antes no resultado da interversão desta, que ela mesma produziu: o tempo livre). Depois de operar a interversão do trabalho em não-trabalho, o termo riqueza passa assim na ligação lógica oposta à que representa o trabalho. A rique za passa a ser tempo livre. Se a passagem da circulação simples, enquanto aparên cia do sistema, ao capitalism o enquanto capitalism o, pode ser representada pela
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mudança de um silogismo do entendimento em silogism o dialético, a passagem do capitalism o de grande indústria ao capitalism o de pós-grande indústria poderia ser pensada como nova m utação, mais radical, em que não apenas se altera o conteú do do termo médio, mas em que um termo se resolve em ligação lógica, e em liga ção lógica identitária que elimina a interversão. E como se tivéssemos: “ a riqueza é (no tempo de trabalho) não-riqueza” , “ a riqueza é riqueza (no tempo livre), (esse “ tempo livre” é resultado da interversão da ligação “ tempo de trabalho” , operada pela riqueza), conclusão: “ a riqueza é tempo livre” . Ou, preferindo, partindo da riqueza objetiva: “ A riqueza é tempo de trabalho cristalizado” , “ a riqueza é tempo de não-trabalho cristalizado” , “ a riqueza é tempo de não-trabalho” . N o primeiro caso, temos assim, uma espécie de prom iscuidade entre termo e ligação lógica157. N o segundo caso, o tempo, meio para a constituição da riqueza, a qual tem uma substância própria, o trabalho, passa a ser ele mesmo a substância. O tempo se torna substância, substância da riqueza. Também aqui, do ponto de vista da tradição, se opera uma passagem ilegítima de uma categoria a outra categoria. Isto ocorreria quando o sistema m aterial iria ao “ abism o” , depois de revelar o seu “ fundo” . C — Com unism o158 — D o capitalism o de pós-grande indústria ao comunis mo, a passagem em termos estruturais se faria eliminando a subordinação formal do trabalho ao capital, ainda subsistente. N a versão dos Grundrisse, a revolução termina assim um processo revolucionário (no sentido positivo de um processo de libertação) já começado no capitalism o. Assim como na primeira form a do modo de produção capitalista, embora já se tenha formalmente capitalism o, permanecese ainda no passado no plano material, porque o princípio da produção é ainda sub jetivo, — na terceira forma do capitalism o, já se estaria no futuro, porque a subor dinação material já teria desaparecido. Temos aí um traço característico da idéia de história do capitalism o em M arx. A organização m aterial está aquém ou além do sistema de formas, salvo no caso da grande indústria. H á descom passo entre m a téria e form a. N a grande indústria, elas são contemporâneas. N os outros dois ca sos, a história das form as em sentido estrito faz-se num tempo que não coincide com o do processo material de produção. Este retarda ou avança. “ A rrasta” o p as sado ou anuncia o futuro. Uma vez restabelecida — conforme supõe M arx — uma subordinação que é apenas form al, “ o roubo de tempo de trabalho alheio” (...) “ aparece como base m iserável” 159. Através da revolução — necessária para que o comunismo venha a ser possível160 — cai “ a forma burguesa” . De certo m odo, volta-se — mas trata-se de bem mais do que uma volta — ao princípio subjetivo dominante no mundo précapitalista (em especial na Antiguidade Clássica). O texto merece ser citado sem cortes: “ A antiga visão em que o homem, qualquer que fosse a sua determinação limitada nacional, religiosa, aparece sempre como a finalidade da produção, pare ce ser muito elevada diante do mundo moderno, em que a produção aparece como finalidade do homem e a riqueza como finalidade da produção. M as, de fato, se a form a burguesa limitada for retirada, que é a riqueza senão a universalidade das necessidades (Bedürfnisse), capacidades, gozos, forças produtivas etc. dos indiví duos, criada no intercâmbio universal, o pleno desenvolvimento da dom inação
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humana sobre as forças naturais, tanto da assim chamada natureza como da sua própria natureza? A elaboração absoluta de suas disposições criadoras sem outra pressuposição que não a do desenvolvimento histórico anterior, que transforma em auto-finalidade essa totalidade do desenvolvimento, isto é, do desenvolvimento de todas as forças hum anas enquanto tais, não m ensuradas por nenhuma medida (M asstab) preestabelecida161, na qual ele não se reproduz numa determinidade mas produz a sua própria totalidade? N a qual ele não procura permanecer em algo que veio a ser (irgend etwas Gewordenes), mas está no movimento absoluto do devir? N a economia burguesa e na época que lhe corresponde — essa plena elaboração da interioridade humana aparece como completo esvaziamento, essa objetivação universal aparece como alienação total, e o dilaceramento de todas as finalidades determinadas unilaterais como sacrifício da auto-finalidade (.Selbstzweck) sob fi nalidades totalmente externas” (G, p. 387 [F] menos indicação)162. Antes de analisar certos problem as relativos ao conteúdo do comunismo le vantados pelo texto, voltemos um pouco atrás, para insistir ainda sobre o caráter da passagem ao comunismo. N os Grundrisse como em O Capital, M arx a conce be em descontinuidade: mesmo considerado na sua forma última, o modo de pro dução capitalista só fornece pressuposições ou condições para a passagem . Isto é válido em geral, no plano da posição, para todas as passagens de um m odo de pro dução a outro. Porém neste caso, também no discurso pressuposto, que representa em geral o plano da continuidade, tem-se uma espécie de descontinuidade, porque se passa da pré-história à história. O ponto de partida é a limitação (Schranke) do capital e a forma da alienação, que cria as condições do seu desaparecimento: “ A barreira (Schranke) do capital é que o conjunto desse desenvolvimento ocorre de maneira contraditória diante dele e [que] a elaboração (.Herausarbeiten) das forças produtivas, da riqueza universal etc., da ciência etc., aparece de tal modo que o in divíduo que trabalha se aliena (sich entaussert); que ele se relaciona com o que é elaborado por ele não como condições da sua própria riqueza, mas da riqueza alheia e da sua própria pobreza. Entretanto, esta forma é ela mesma evanescente, e pro duz as condições reais (die reale Bedingungen) de sua própria supressão” (G, p. 4 4 0 163). M as essa auto-supressão dá por sua vez as condições objetivas e subjeti vas da nova forma de reprodução: “ As condições para que seja assim na reprodu ção da vida dos indivíduos, no seu processo de vida produtivo, são postas só (erst) através do próprio processo econômico; tanto as condições objetivas como as con dições subjetivas, que são só duas formas diferentes das mesmas condições” (G, p. 716 [F])164. O resultado é o fim da limitação (Schranke) e a universalização: “ O resultado é: segundo a sua tendência e ‘dynámei’ [potencialmente], o desenvolvi mento universal das forças produtivas — da riqueza em geral — como base, [e] igual mente a universalidade do intercâmbio, por isso o mercado mundial como base. A base como possibilidade do desenvolvimento universal do indivíduo, e o desenvol vimento efetivo dos indivíduos a partir dessa base como supressão constante do obstáculo (Schranke)165 deles, que é conhecido como obstáculo e não vale como limite sagrad o166. A universalidade dos indivíduos não como universalidade pen sada ou im aginada, mas como universalidade das suas relações reais ou ideais. Por isso também compreensão da sua própria história como um processo, a saber, da
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natureza (igualmente existente como força prática sobre ela) como do seu corpo real. O próprio processo de desenvolvimento posto e conhecido como pressuposi ção deste. Entretanto, para isto é necessário sobretudo que o pleno desenvolvimento das forças produtivas tenha se tornado condição da produção167; não que condi ções da produção16S determinadas sejam postas como limites (Grenze) para o de senvolvimento das forças produtivas” (G, p. 4 4 0 )169. O capitalism o é condição, pressuposição da sociedade desalienada, mais pre cisamente, o capitalism o “ negado” por um processo interno é a pré-condição ime diata da nova sociedade na qual as condições objetivas da produção reaparecem como “ corpo real” ou “ corpo social inorgânico” dos indivíduos. O aparecimento da nova sociedade se faz assim por um processo descontínuo, ela emerge do p assa do, e a compreensão do passado, do conjunto dele, como condição dessa emergên cia, unifica o passado como pré-história·, este é o sentido da “ compreensão de sua própria história como processo” . A propósito do processo que conduzirá ao fim da “ forma da alienação” , M arx emprega as noções de “ necessidade histórica” e de “ fim imanente” . “ Necessidade histórica” remete ao desenvolvimento “ alienado” nas condições da economia burguesa, “ fim imanente” ao seu processo de destrui ção e ao fato de que este processo será o ponto de partida de uma forma radical mente nova: “ M as evidentemente esse processo de inversão (Verkehrung) é mera necessidade histórica170, mera necessidade para o desenvolvimento das forças pro dutivas de um ponto de vista histórico determinado, ou [a partir] de uma base, mas de forma alguma uma necessidade absoluta171 da produção; é antes uma necessi dade evanescente (verschwindende), e o resultado e o fim (imanente) (Zweck [ima nente]), desse processo é suprimir essa base ela mesma, assim como essa forma do processo” (G, p. 71 6 )172. [Esse texto m ostra bem tanto os méritos como as dificul dades da idéia m arxiana de história. Os “ elementos” são aí a história interna de cada forma e a história total. M arx joga com dois termos “ necessidade” e “ fim ” (ambos com determinações, “ necessidade [não-] absoluta” , “ fim imanente” ). Uma leitura superficial reconheceria sem mais um esquema finalista nesse texto. Uma leitura m arxista sofisticada tentaria m ostrar que ele o evita. N a realidade, o esque ma está lá, m as de forma complicada. Tudo se passa como se M arx se esforçasse para evitar todo finalismo da história global, sem que entretanto o consiga. V eja mos. Para o determinismo interno, ele recorre ao conceito de “ necessidade” , isto é, à causalidade, precisando que se trata de uma “ necessidade evanescente” , isto é, uma causalidade que se auto-destrói. Para além dessa causalidade, introduz-se uma finalidade, que vai introduzir à história global. Esta finalidade não vem de fora entretanto, ela está inscrita na forma particular (da qual se disse que ele é “ necessária-evanescente” ). De fato, o texto fala em “ fim imanente” . Porém mais do que isto, a finalidade imanente de cada modo não é propriamente a de produzir um outro modo (e no limite, que é o nosso caso, o comunismo). A finalidade seria produzir só as bases do comunismo? Sim, m as essa produção das bases se faz pela morte da form a anterior. Pode-se dizer que a finalidade ou a finalidade imediata é a morte do m odo. Assim, o esquema finalista parece recobrir o da causalidade. N os dois casos o modo aparece, se ouso dizer, como modo-para-a-morte. M as é evidente que essa substituição de um esquema de bonecas russas (o do m arxism o vulgar, inclu-
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sive de certos textos de M arx: cada modo está grávido do outro) pela idéia de uma história como uma espécie de cemitério dos m odos de produção, não elimina o finalismo. Passa-se do que seria um finalismo interno (em termos kantianos) da história global, a um esquema em que o finalismo não é a rigor nem interno nem externo — fórmula que eu havia utilizado já há muito tempo — mas que é finalista entretanto: tem-se uma espécie de “ m ontagem ” de um finalismo interno (em senti do kantiano m as também no sentido de “ interior a cada m odo” ) com um finalismo externo. C ada m odo tem um processo de vida que é um processo de morte. Com a sua morte, ele deixa restos que modos em processo de nascimento utilizam (finalismo externo em sentido kantiano), m as essa utilização post-mortem está inscrita no processo de vida e morte de cada modo (finalidade interna-externa, duplicando os dois sentidos kantianos). O finalismo está lá, mesmo se ele é negativo e instaura uma descontinuidade173.] O comunismo aparece como um infinito em que há satisfação, em oposição ao infinito sem satisfação do capitalism o174. Esse bom infinito da satisfação, que o comunismo representa, não é entretanto sem mais o bom infinito da tradição hegeliana. E como se, de novo, se combinassem o bom infinito da Vernunft e um in finito — “ bom ” , só em sentido não-hegeliano — de tipo prometeano, da ordem do entendimento: o infinito do progresso científico sem entraves. Esses dois aspectos podem ser lidos nos textos fundamentais dos Grundrisse: “ (...) a riqueza (...) [é] o pleno desenvolvimento da dom inação humana sobre as forças naturais, tanto da assim chamada natureza como da sua própria natureza (...) a elaboração absoluta das disposições criadoras [dos indivíduos] sem outra pressuposição que não a do desenvolvimento histórico anterior, que transform a em auto-finalidade essa totali dade do desenvolvimento (...) na qual não procura permanecer em algo que veio a ser, mas está no movimento absoluto do devir” (G, p. 387 [F]). O desenvolvimen to é absoluto, livre de pressuposições, a única pressuposição é ir além do ponto de partida para dominar as forças naturais. Qual o destino do trabalho na sociedade sem alienação?175 Vimos que com a pós-grande indústria, o processo de trabalho é negado uma segunda vez. M as há textos que aparentemente vão numa direção diferente. Um texto dos Grundrisse, a propósito de Adam Smith, parece fazer o elogio do trabalho. “ [Segundo Smith] (...) um quantum determinado de trabalho176 para o trabalhador (...) é quantitativa mente sacrifício da mesma grandeza (...). ‘Quantidades iguais de trabalho devem ter um valor igual para aquele que trabalha, em todos os tempos e lugares (...) ele deve dar sempre a mesma porção do seu repouso, da sua liberdade, e da sua felici dade’177 (...) Você deve trabalhar com o suor do teu rosto! foi a maldição que Jeová transmitiu a Adão. E [é] assim , como m aldição, [que] A. Smith considera o traba lho. O ‘repouso’ aparece como a situação adequada, como idêntico à ‘liberdade’ e à ‘felicidade’ ” . Ao que M arx replica: “ Que o indivíduo (...) tenha também necessi dade de uma porção normal de trabalho e de supressão do repouso parece total mente estranho a A. Smith. Sem dúvida a própria medida do trabalho parece dada externamente, através do objetivo a alcançar e através dos obstáculos que, para alcançá-lo, [é preciso] vencer pelo trabalho. M as que essa superação de obstáculos
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é em si exercício (Betätigung) da liberdade — e além disso que os fins externos se jam despojados da aparência de mera necessidade externa e postos como fins que o próprio indivíduo põe — e assim [sejam postos] com o auto-realização, autoobjetivação do sujeito, por isso como liberdade real (reale), cuja ação é precisamente o trabalho178, A. Smith tam pouco pressente” (G, pp. 504-5). Tem-se aí aparentemente um elogio do trabalho, em oposição absoluta ao que se encontra na Ideologia alemã. M as a continuação do texto precisa: “ Sem dúvida ele tem razão de que na forma histórica do trabalho, como trabalho escravo, tra balho assalariado, o trabalho é sempre repulsivo, aparece sempre como trabalho coercitivo externo179 e diante dela o não-trabalho [aparece] como ‘liberdade e feli cidade’. Trata-se de duas coisas: desse trabalho contraditório (gegensätzlich), e o que é conexo, do trabalho que ainda não criou as condições subjetiva e objetiva (ou ainda, diante da condição pastoral etc., que as perdeu) para que o trabalho seja trabalho atrativo, auto-realização do indivíduo, o que não significa que ele se tor ne puro prazer, pura diversão, como o concebe, de modo ingênuo, Fourier, à m a neira de uma ‘grisette’ ” . M arx continua: “ Trabalho efetivamente livre, por exem plo, compor, é ao mesmo tempo a coisa mais danadamente séria (verdammtester Ernst), o esforço mais intensivo. O trabalho da produção material só pode receber esse caráter, através do fato de que: 1) O seu caráter social seja posto, 2) que ele seja de caráter científico e igualmente trabalho universal, não esforço do homem como força natural treinada de um m odo determinado, mas como sujeito que ap a rece no processo de produção não como mera forma natural, [forma] que cresce naturalmente (naturwüchsige), m as como atividade que rege todas as forças natu rais. De resto, A. Smith pensa só nos escravos do capital. Por exemplo, mesmo o trabalho semi-artístico da Idade M édia não deve ser colocado sob essa definição” (G, pp. 504-5)180. Assim , se o texto começa reabilitando o trabalho, é para em seguida afirmar que o verdadeiro trabalho é o trabalho científico e artístico. Só quando ele tom ar esse caráter, mesmo na produção imediata, é que se tornará atividade livre. Outros textos são mais ambíguos. H á assim uma passagem que se refere à disciplina e à “ diligência” (Arbeitsamkeit) herdadas do capitalismo: “ O grande lado histórico do capital é criar esse sobretrabalho181, trabalho excedente do ponto de vista do mero valor de uso, da mera subsistência182, e a sua determinação histórica (historische Bestim m ung) é preenchida, logo que por um lado as necessidades são desenvolvi das a tal ponto, que o sobretrabalho para além do necessário é ele mesmo necessi dade (Bedürfnis) universal, que nasce das próprias necessidades individuais — por outro lado a diligência universal através da disciplina estrita do capital, pela qual passaram as gerações sucessivas, é desenvolvida como aquisição universal da nova ‘geração’ (Geschlecht) (...)” (G, p. 231). A continuação do texto vai num sentido um pouco diferente. N ela se reconhece o tema da redução do tempo de trabalho, característica de um texto do Capital, que veremos mais adiante: “ (...) finalmente através do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, que o capital (...) impulsiona (...) [,] a posse e a conservação da riqueza universal (...) só exigem um tempo mínimo de trabalho para toda a sociedade, e a sociedade que trabalha se relaciona de uma maneira científica com o processo da sua reprodução progressi-
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va, da sua reprodução em uma abundância (Fülle) cada vez maior; e assim desapa receu o trabalho em que o homem faz o que ele pode deixar que as coisas façam ” (ibidem). O final introduz a idéia de “ supressão” do trabalho, mas sem eliminar toda ambigüidade: “ (...) enquanto esforço incessante na direção da forma geral da riqueza, o capital impulsiona o trabalho para além dos limites de sua necessidade natural e cria assim os elementos materiais para o desenvolvimento da individuali dade rica que é universal (allseitige) tanto na sua produção como no consumo, e cujo trabalho por isso não aparece mais como trabalho, mas como pleno desenvol vimento da própria atividade, na qual desaparece a necessidade natural (N atur notwendigkeit) na sua forma imediata; porque em lugar dela aparece uma necessi dade histórica” (G, p. 231 [F])183. Já vimos que em O Capital falta esta transmutação do processo material de produção operada pelo desenvolvimento da riqueza. O processo material de pro dução que corresponde ao comunismo, tal como é pensado em O Capital, não é qualitativamente diferente do da grande indústria. Como resultado, em vez de uma quase desaparição das diferenças entre o tempo de trabalho e o tempo de não-trabalho, tal como encontramos nos Grundrisse, tem-se, pelo contrário, uma distin ção bem clara entre os dois domínios. Tudo o que se obtém é uma redução quanti tativa do tempo de trabalho. O que quer dizer, o tempo de trabalho permanece como um domínio de necessidade, no interior de uma sociedade livre. A idéia de um rei no da liberdade aparece como alguma coisa que vai além do comunismo, um hori zonte que é duplamente pressuposto, o horizonte de um horizonte. Ainda que fos se realizável, de resto, ele viria através de um processo que não é o que descrevem os Grundrisse. Aparentemente, O Capital aponta assim para uma sociedade que é a mais livre possível, enquanto os Grundrisse apontam para uma sociedade plena mente livre. É sem dúvida necessário citar aqui o texto — embora longo e bemconhecido — de O Capital: “ A riqueza efetiva da sociedade, a ampliação constan te do seu processo de reprodução não depende assim da extensão do sobretrabalho, mas da sua produtividade e das condições mais ou menos ricas de conteúdo (reich haltigen) em que ele se realiza184. O reino da liberdade só começa na realidade lá onde cessa o trabalho (das Arbeiten) que é determinado pela carência (Not) e a fi nalidade externa (äussere Zw eckm ässigkeit)1^5; conforme a natureza da coisa, ele fica assim além da produção propriamente material. Assim como o selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer as suas necessidades, para manter e repro duzir a sua vida, o civilizado tem [de lutar] também, e tem de fazê-lo em todas as form as sociais e sob todos os m odos de produção possíveis. Com o seu desenvolvi mento se amplia esse reino da necessidade natural (Naturnotwendigkeit) porque [se ampliam] as necessidades (Bedürfnisse). A liberdade nessa região só pode consistir no fato de que o homem socializado, os produtores associados, regulam racional mente sua troca material com a natureza, põem-na sob o seu controle, em vez de serem governados por ela como por uma força cega; realizam-na com o menor dis pêndio de forças e nas condições mais adequadas e mais dignas da sua natureza hu mana. M as isto continua a ser (bleibt immer) um reino da necessidade. Além dele começa o desenvolvimento humano de forças, que vale como seu próprio fim (Selbst zweck), o verdadeiro reino da liberdade, que entretanto só pode florescer sobre aquele
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reino da necessidade [que é] como sua base. A redução do tempo de trabalho é a condição fundam ental” (W 25, K III, p. 828 [F]). A julgar pelo final do texto, o reino da liberdade nasceria assim de uma jornada de trabalho evanescente, não de uma m utação qualitativa do processo de trabalho. A riqueza não transform aria a necessidade em liberdade, mas no m áxim o —· caso se chegar até aí — acabaria por devorar a necessidade. Seria interessante incorporar aqui a Crítica do program a de Gotha. Nele se encontra o texto que está mais próxim o de um elogio do trabalho. M as, antes dis so, vejam os o que diz em geral a Crítica do program a de Gotha a propósito da passagem ao comunismo. H á aí várias questões que interessam, inclusive do ponto de vista lógico. “ Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista, há o período de trans form ação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período de transição política, cujo Estado não pode ser outro que não a ditadura revolucio nária do proletariado” (W 19, p. 28). A Crítica do program a de Gotha distingue duas fases na nova sociedade. Sobre a primeira, se lê: “ Aquilo de que aqui se trata é de uma sociedade comunista não como ela se desenvolveu sobre a sua própria base, mas ao contrário como ela precisamente surgiu a partir da sociedade capitalista, e assim ainda afetada, sob todos os aspectos (Beziehung), econômico, ético-social (sittlich), espiritual, pelas m arcas de nascimento da antiga sociedade de cujo seio ela surgiu” (W 19, p. 20 [A]). A primeira fase já pertence à história — e não à préhistória — da sociedade comunista, mas, ao contrário do que ocorre nos Grundrisse e em O Capital, isso é expresso de um m odo relativamente continuísta em relação ao passado: a nova sociedade nasce do seio da antiga186. As condições de produ ção e de distribuição dessa sociedade de transição são descritas assim: “ (...) cada produtor individual, depois das deduções, recebe de volta exatamente o que deu a ela. O que ele lhe deu é o seu quantum individual de trabalho. Vpr exemplo, o tem po de trabalho social consiste na soma das horas de trabalho individuais187. O tempo de trabalho individual de cada produtor é a parte do dia de trabalho social que ele forneceu, sua participação nisto. Ele recebe da sociedade um bônus (depois da de dução do seu trabalho para o fundo social) e tira com esse bônus, da provisão so cial de meios de consumo, tanto quanto custa em trabalho (soviel ais gleich viel Arbeit kostet). O mesmo quantum de trabalho, que ele deu à sociedade numa forma, re cebe de volta na outra. Aqui domina evidentemente o mesmo princípio, que rege a troca de m ercadorias, na medida em que esta é troca de [coisas] de mesmo valor. Conteúdo e form a mudaram , porque, sob as circunstâncias m odificadas, ninguém pode dar algo, fora o seu trabalho, e porque nada na propriedade do indivíduo pode passar (übergehen) à propriedade do indivíduo fora os meios de consumo indivi duais. Entretanto, no que se refere à partilha destes entre os produtores individuais, domina o mesmo princípio [que se tem] na troca de mercadorias equivalentes, trocar-se-á tanto trabalho numa forma contra tanto trabalho em outra. Por isso, o direito igual188 é aqui ainda — no seu (nach) princípio — o direito burguês189, ainda que princípio e prática não se arranquem mais os cabelos (...)” 190 (ibidem). Se prin cípio e prática não se opõem mais é porque “ a troca de equivalentes na troca de m ercadorias [na sociedade burguesa, RF] só existe em m édia191, não para cada
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indivíduo” (,ibidem). Aqui conviria fazer as observações seguintes: A diferença ge ral e fundamental entre circulação simples (como “ m om ento” do modo de produ ção capitalista [mas em que o capital enquanto capital fica entre parênteses]) e pri meira fase do comunismo, é que no primeiro caso a regulação é objetiva, e no se gundo subjetiva, isto é, determinada pela comunidade. Entretanto, nem por isso todo papel das médias desapareceria; e em certo sentido ele até se reforçaria. Sem dúvi da, o quantum que cada um poderia receber dependeria, sempre segundo a cons trução de M arx, do tempo de trabalho efetivamente efetuado. M as se a aquisição se faz segundo o “ custo” em trabalho, isso só pode significar que os objetos adqui rem um “ preço” dado pela média dos tempos de trabalho empregados na sua pro dução (não mais as médias no interior do trabalho socialmente necessário, como ocorre na circulação simples capitalista, porque precisamente, na primeira fase do comunismo, não deve haver mais tempo de trabalho socialmente necessário senão como tempo médio). Porém isso quer dizer que se, na primeira fase do comunis mo, haveria equivalência de trabalhos nas trocas, esta se estabeleceria não entre trabalho efetivo e trabalho efetivo, m as entre trabalho efetivo e trabalho médio. O sistema de bônus segundo o trabalho efetivo estabelece, de certo m odo, princípios diferentes para a “ venda” e para a “ com pra” . A coisa se complica mais ainda por que, como veremos logo mais adiante, se a produtividade de cada um não im por ta, a intensidade de cada trabalho individual deve ser medida. O mais importante (junto com o caráter subjetivo que o processo tomaria) é que não haveria interversão da lei de apropriação. De fato, que “ forma e conteúdo m udaram ” significa em última análise que, dada a ausência de propriedade priva da dos meios de produção, não há mais interversão da form a num conteúdo estra nho. A forma passa a ser igual ao conteúdo. Isto é, a propriedade = propriedade, a liberdade = liberdade etc.192 N esse sentido geral e fundamental, estabelece-se (ou restabelece-se) o princípio da equivalência nas trocas. Querendo pensar esse (re-) estabelecimento na linha dos Grundrisse, poderíamos dizer o seguinte: assim como no período ainda capitalista da pós-grande indústria temos uma negação da subor dinação material, ter-se-ia aqui, depois da transição, uma negação da subordina ção formal. Ou seja, assim como a inversão material desapareceria com a pós-grande indústria, desapareceria em seguida a interversão form al, e com ela o próprio capi tal. Se a negação material representa de certo modo uma volta à situação dominante anteriormente à grande indústria, a negação formal representa até certo ponto uma volta à situação dos homens livres antes do capitalism o, nos casos em que eles tro cavam mercadorias (como se sabe, essa forma de apropriação era, entretanto, em geral, secundária). Assim, se quisermos estabelecer um paralelismo entre o capita lismo e a primeira fase do comunismo tal como ela é im aginada por M arx (ajus tando a Crítica do program a de Gotha aos Grundrisse), dever-se-ia dizer: se o ca pitalismo nasce com uma base material que não lhe é adequada, e durante uma pri meira fase continua funcionando com uma base já m odificada, mais ainda inade quada, o comunismo nasceria com uma base material adequada (criada pela pósgrande indústria) operando sobre essa base a m utação formal, isto é, adequando de certo m odo a forma a essa matéria que, em si, é pós-capitalista. N a passagem ao capitalismo, a forma se antecipa à matéria, na passagem ao comunismo é a matéria
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que se antecipa. Se tom arm os por base O Capital e não os Grundrisse, o que o ca pitalismo realiza não é o fim da subordinação material, mas apenas um grande de senvolvimento da grande indústria, que assegurará uma redução da jornada, além das m odificações essenciais da forma (expropriação do capitalista individual etc.) que anunciam uma segunda expropriação. Ainda sobre a Crítica do program a de Gotha. O que foi dito refere-se ao que M arx chama de primeira fase do comunismo. Problema. Desde a primeira fase, não há mais propriedade privada dos meios de produção. M as em que medida subsiste a “ propriedade” em geral? Vimos que na primeira fase só há “ propriedade” dos “ meios de consumo individual” , mas se pode perguntar o que significa essa pro priedade, já que pouco antes se lê que “ na sociedade fundada no domínio comum (Gemeingut) dos meios de produção os produtores não trocam os seus produtos” (logo mais adiante indica-se que se trata da primeira fase) (ibidem, p. 19). Vê-se que desde a primeira fase não há a rigor “ propriedade” : da propriedade burguesa — e é ela que constitui a categoria da “ propriedade” — subsiste o direito de con sumir, m as não o direito de alienar. E, sem o direito de alienar, é difícil falar em propriedade193. A primeira fase do comunismo representa apenas a primeira negação do ca pitalismo. Uma segunda negação se operaria com o advento “ de uma fase superior da socidade com unista” (ibidem , p. 21). Com ela, superam-se as lim itações do “ direito igual” que reina na primeira fase. Esse direito “ continua afetado por uma limitação burguesa. O direito dos produtores é proporcional às suas contribuições em trabalho; a igualdade consiste aí no fato de que o trabalho é medido por uma medida igual. M as um [indivíduo] é superior física e espiritualmente ao outro, e assim fornece no mesmo tempo mais trabalho ou pode trabalhar durante mais tempo; e, para que o trabalho sirva como medida, ele deve ser determinado segundo a exten são ou a intensidade, senão ele deixaria de ser m edida” (ibidem, pp. 20-1 [A] me nos o último grifo). Assim, os trabalhos são reduzidos à igualdade — e, observe-se, mede-se mes mo a intensidade, o que não poderia se fazer sem verificar a quantidade do que foi produzido, e o que levaria a estabelecer médias-, m as, como já disse, a redução que aí se opera é subjetiva (embora social) — ela é operada por sujeitos conscientes e por isso não se tem aí a categoria do trabalho abstrato, que exige posição objetiva, isto é, que exista um mecanismo social objetivo. Pela mesma razão, em esm o se se opera com médias, o valor como categoria social está ausente. O texto continua: “ (...) Esse direito igual é direito desigual para trabalho igual” (ibidem, p. 21 [A]). O direito igual é... direito desigual. O direito igual se interverte em direito desigual. Com o? E que “ ele não reconhece nenhuma diferença de clas se, porque cada um é apenas trabalhador como o outro; m as ele reconhece implici tamente (stillschweigend) a desigualdade dos dotes individuais e por isso a capaci dade de prestação (Leistungsfähigkeit) dos trabalhadores como privilégio natural. Ele é por isso, segundo o seu conteúdo, direito de desigualdade como qualquer di reito” (ibidem, [F], menos a última frase). Restam pois vantagens naturais, que são reconhecidas socialmente, e por isso constituem privilégios. Essa conseqüência seria inerente, de form a geral, a todo
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direito. Porque é form a, abstração, o direito é necessariamente direito de desigual dade. M arx exclui a idéia de um direito que reconheça a desigualdade das partes. (Por exemplo, à sua maneira194, o Direito Social reconhece a desigualdade das partes, embora de fato, como todo direito igualize de algum m odo, mas não à maneira tradicional do Direito Civil.) “ Segundo a sua natureza o direito só pode consistir no uso da mesma m edida; mas os indivíduos desiguais (e eles não seriam indiví duos diferentes se não fossem desiguais) são medidos segundo a mesma medida, quando (so weit) se os considera sob um mesmo ponto de vista, se os concebe só por um lado determinado195, no caso se os considera só como trabalhadores196 e não se vê neles mais do que isto; faz-se abstração (absieht) de todos os outros a s pectos. Um trabalhador é casado, o outro não; um tem mais filhos do que o outro etc. etc. Sendo igual a prestação de trabalho e por isso a participação no fundo de consumo social, um recebe assim , de fato, mais do que o outro, um é mais rico do que o outro etc. Para evitar esses inconvenientes, o direito deveria ser desigual em vez de igual. M as esses inconvenientes serão inevitáveis na primeira fase da socie dade comunista, tal com o, precisamente, ela nasceu da sociedade capitalista, após um longo parto. O direito197 nunca pode ser superior à configuração econômica e ao nível de desenvolvimento cultural da sociedade que aquela condiciona (ibidem)198. Assim, mesmo uma vez eliminada a interversão característica do modo de pro dução capitalista, a identidade a que se chega não é plena. Um pouco como, se no plano material, supõe-se necessárias duas negações do processo de trabalho (estas no interior do capitalism o), no plano da forma seriam também necessárias duas negações (mas já fora do sistema). As duas negações da forma bloqueiam interversões. M as qual o caráter da última interversão, que é objeto de negação final? Com a primeira negação, já se chegara às identidades propriedade = propriedade, igualdade = igualdade, liberdade = liberdade etc. Os juízos que exprimem a pro priedade, a igualdade etc., na primeira fase do comunismo já não são mais juízos de reflexão, no sentido que dei à expressão. São juízos que exprimem identidades. M as o problema restante é que a pura identidade é geradora de não-identidade. O que significa: no interior do capitalismo, antes portanto da primeira negação da for m a199, a form a, que se apresenta como uma identidade, se interverte num conteú do cujo teor é a não-identidade. A supressão do capital, de toda subordinação do trabalho ao capital, faz com que desapareça o conteúdo que contradizia a forma. Entretanto, a desaparição desse conteúdo deixa subsistir a pura forma. M as, para a Crítica do program a de Gotha, resta um problema: ao lado da pura forma sub siste um certo conteúdo que não foi absorvido. Esse conteúdo não é mais contradi tório em relação à form a, nem contém interiormente uma oposição. O que ele con tém é a diferença: ele é diferente da form a, cujo conteúdo é a pura igualdade. A diferença entre eles está assim na diferenciação interior ao conteúdo, e que está ausente da forma. Por exprimir a pura igualdade, a identidade da igualdade com ela mesma, a forma não dá conta da desigualdade que existe no conteúdo enquan to tal, e passa na desigualdade. Por isso, será preciso dar mais um passo, o que conduz à segunda fase do comunismo, lugar de uma segunda negação. Com ela, da identi dade “ a igualdade = igualdade” , passa-se a algo como “ a igualdade é ” . (Isto vale também para a liberdade; para a propriedade também, se entendermos a proprie-
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dade no sentido da verdadeira propriedade que visam certos textos dos Grundrisse.) O “ é ” da cópula lógica se transform a (ou se interverte) num “ é ” existencial. Dirse-á que, de novo, a igualdade, a liberdade e a propriedade deveriam ser negadas para não se interverter? M as esse caminho se esgotou. Os enunciados “ a igualdade é ” ou “ a liberdade é” estão no limite da form a, e em geral no limite da linguage?n. Se da igualdade (ou da liberdade) só se pode dizer que ela é (a rigor não se pode nem mesmo dizer que ela é igual a si mesma), vê-se que a forma — como form a social e como linguagem, as duas coisas vão juntas — passa no seu conteúdo. Che ga-se assim a um ideal de transparência200, que, justificado ou não, era sem dúvida o de M arx. As pressuposições se resolvem no seu objeto, a linguagem que diz a forma social enquanto forma se resolve na comunidade dos indivíduos associados. N es ta, que é da ordem das práticas, a forma e o enunciado da forma desaparecem no conteúdo. Desse m odo, a segunda negação é finalmente negação da própria forma social (de toda form a social) e da linguagem que a enuncia, embora não evidente mente de toda linguagem. N a versão da Crítica do program a de Gotha, nesse estágio final, o trabalho não desaparece, ele se transforma mesmo na “ primeira necessidade da vida” : “ Numa fase superior da sociedade comunista, depois que a subordinação servil dos indi víduos sob a divisão do trabalho, e, com ela, a oposição entre trabalho espiritual e trabalho material tiverem desaparecido; depois que o trabalho não for mais so mente meio de vida, mas se tiver transform ado ele mesmo na primeira necessidade vital (das erste Lebensbedürfnis), depois que, com o desenvolvimento universal (allseitige) dos indivíduos, também as forças produtivas tiverem crescido e todas as fontes de que jorra a riqueza comunitária (genossenschaftliches Reicbtum ) fluí rem plenamente — só então o horizonte estreito burguês do direito poderá ser ple namente ultrapassado, e a sociedade poderá escrever sobre a sua bandeira: de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades” (W 19, p . 21 CF]).
Em bora se faça referência ao fim da oposição entre trabalho espiritual e m a terial, embora se considere uma situação de plena satisfação das necessidades, não se considera aqui a possibilidade do fim do trabalho, ou mesmo da sua “ supres s ã o ” , à maneira dos Grundrisse. Assim, a transform ação do trabalho em “ primei ra necessidade vital” só pode resultar de uma educação que transform a em ativi dade livre alguma coisa que, segundo O Capital, não é da ordem da liberdade. Nesse sentido, a versão do destino do trabalho que dá a Crítica do program a de Gotha é talvez a mais perigosa, porque é a que mais abre brechas para a legitimação de um autoritarism o “ com unista” . Os Grundrisse escapam dessa interiorização e autofinalidade do que é da ordem da necessidade natural, pela idéia de uma resolução do trabalho em “ trabalho” (= não-trabalho) científico. O Capital também escapa, mas por um outro caminho: reconhecendo a necessidade natural pelo que ela é, território de não-liberdade no interior de uma futura sociedade de liberdade. d) Observações finais sobre a apresentação da história dos Grundrisse e em O C ap ital— a) A apresentação da história nos conduz sempre a cjuase-totalizações e não a totalizações. A apresentação da totalidade não é totalizante. D e certo modo,
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\ a história (enquanto pré-história + história) poderia ser pensada como história da comunidade. Esta existe no pré-capitalismo, ou no contexto do despotismo, ou como comunidade de homens livres. Com o capitalism o, a comunidade se perde no pla no macro-social, mas na sua primeira forma, a m anufatura, ela reaparece como co munidade organizada de maneira despótica no interior da fábrica. N a segunda for m a, a grande indústria, a comunidade no interior da fábrica, tem um princípio objetivo, e nesse sentido é antes “ comunidade de m áquinas” . Com a revolução científica que leva a grande indústria à pós-grande indústria e ao fim da subordi nação material do trabalho ao capital, reaparece uma comunidade subjetiva no pro cesso de trabalho, a que se constitui através da ciência. Esta é o pressuposto da co munidade dos indivíduos associados, que se realiza com o fim das duas form as de subordinação, a material e a formal. (3) A história (como pré-história) aparece como um desenvolvimento que não vai apenas do natural ao artificial, como se depreenderia dos textos da Ideologia alem ã, m as como encerrando uma terceira fase, aquela em que predomina o inte lecto ou o espírito. N aturalidade — artificialidade — espiritualidade, a segunda começando com o capitalism o (mais especificamente com o capitalism o de grande indústria), a terceira com o capitalism o de pós-grande indústria, são os diferentes momentos da pré-história; mas o último momento invade a História. y) O capitalism o e depois o comunismo unificam a história (a pré-história) de três m odos: no tempo (a história é entendida como processo de constituição do homem), no espaço (a história universal passa a existir), e na textura interna de cada form ação (com o capitalism o, a ciência, a arte, a política etc. passam a ser condi cionadas pela história social). Isto significa que, a rigor, o chamado materialismo histórico só é verdadeiro para o capitalismo. — Com o comunismo, desaparece esse “ condicionam ento” , mas nem por isso se volta à situação antiga, em que arte, p o lítica etc. não eram condicionadas enquanto tais, mas subsistiam numa espécie de transcendência, cuja base era a história social. N o comunismo, todas essas ativida des coexistiriam num mesmo registro, sem que houvesse entretanto um real “ con dicionam ento” por parte de uma delas. 6) A história pode ser pensada como história das mutações do tempo e do espaço. N o pré-capitalism o, tempo e espaço não são objetivados por nenhuma posição diferente da do indivíduo social: um e outro são o tempo e o espaço dos indivíduos (tempo e espaço livres). Por outro lado, o espaço e o tempo da história são dispersos. Com o capitalism o, há posição do tempo e do espaço de trabalho, e da ação dos indivíduos enquanto portadores do capital. Esse tempo (e esse espaço) “ negam ” o tempo e o espaço livres. Por sua vez, constitui-se o espaço e o tempo da história universal. A partir da pós-grande indústria, e depois (no que se refere à forma) com o comunismo, opera-se uma negação da negação. O espaço e o tempo postos pelo capital são negados, primeiro no microcosmo (processo de trabalho), depois no m acrocosm o social. O tempo e o espaço livres passam a determinar o seu outro, se é que resta um outro: eles passam a constituir o tempo e o espaço social, simplesmente. A história universal permanece unificada — ou antes ela é re-unificada, porque o princípio não será mais objetivo (ou unilateralmente objetivo) — no espaço e no tempo.
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e) O pré-capitalismo é a (boa) finitude, o capitalism o a m á infinitude, o comu nismo a boa infinitude. Essa boa infinitude é a da razão (Vernunft) na medida em que ela é posição do Sujeito, mas é também da ordem do entendimento (Verstand), na medida em que se abre um domínio prometeano de progresso contínuo e de plena dom inação da natureza. O segundo modelo, que vem de ser exam inado, caracteriza-se assim, sobre tudo na versão dos Grundrisse, pelos seguintes traços: coexistência contraditória de um discurso posto e de um discurso pressuposto; dominância da pressuposição riqueza; presença de uma crítica (em ato) da filosofia, que não se confunde com a crítica com ressonâncias positivistas-historicistas que faz a Ideologia alemã; esque ma em que as pressuposições não são generalidades quase vazias, mas pressuposi ções universais que se intervertem no seus contrários; lógica da história m arcada pela matriz do hegelianismo, investida entretanto, numa perspectiva que, a exem plo da Ideologia alem ã e o M anifesto, é uma perspectiva prom eteana de dom ina ção da natureza pelo homem.
3. Os M a n u s c r i t o s d e 1844 Se na Ideologia alemã e no M anifesto o discurso particular (posto) tende a ab sorver o discurso quase-totalizante (pressuposto), se nos Grundrisse e em O Capi tal coexistem de form a contraditória discurso particular (posto) e discurso quasetotalizante (pressuposto), nos Manuscritos de 1844, o discurso totalizante (que deixa assim de ser pressuposto) tende a absorver todo discurso particular (que, desse modo, não é mais a rigor, um discurso posto). Isto significa que o esquema geral da histó ria se apresenta aqui no limite do que seria uma totalização posta da história. R i gorosamente, o esquema total não é “ negado” pelos discursos particulares, mas quase os fundamenta. “ Q uase” porque permanece uma relação de negação. Entretanto, essa negação deixa intacto o discurso totalizante: o discurso particular se estabele ce em continuidade com o discurso totalizante, só que ele tem sinal negativo. A história é representada como pré-história, história do nascimento ou histó ria natural do homem: “ E como tudo o que deve nascer, o homem tem também o seu ato de nascimento, a história, que entretanto é para ele uma história conhecida (,geivuste) e por isso enquanto ato de nascimento, ato de nascimento que se supri me conscientemente (mit Bewusstsein). A história é a verdadeira história natural do hom em ” (W, Ergánzungsband, Erstes Teil — abreviarei por WEB — I, p. 579). Também: “ (...) Hegel só encontrou a expressão abstrata, lógica, especulativa201 para o movimento da história, a qual ainda não é história efetivamente real do homem como de um sujeito pressuposto202, mas somente ato de engendramento (Erzeugungsakt), história do nascimento (Entstehungsgeschichte)20i do hom em ” (WEB, I, p. 570). E ainda: “ (...) tudo o que se chama de história universal não é outra coisa senão o engendramento (Erzeugung) do homem pelo trabalho humano (...)” (WEB, I, p. 546)204. E esse discurso, o qual estabelece a continuidade da história como préhistória, que funciona aqui como um verdadeiro discurso posto. Por outro lado,
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como veremos, esse discurso totalizante não diz apenas a constituição do homem (e de outras pressuposições análogas). Há algo mais que se acrescenta. N os m odelos anteriores, o discurso totalizante representava a ideologia, e isto seja porque ele era da ordem de uma generalidade vazia (Ideologia alemã), seja porque ele era da ordem de uma universalidade que se interverte no seu opos to (Grundrisse, C apital) (o discurso se torna ideológico, se for bloqueado em positividade). Aqui não se tem nem generalidade vazia nem universalidade negativa, e por isso não é no discurso totalizante que se encontra a ideologia. Ela está antes no discurso particular. É a particularidade e não a universalidade o que a consti tui. M ais precisamente: se na Ideologia alemã a universalidade é ela mesma ideo lógica, a ideologia se caracteriza, nos Grundrisse, pela cristalização em forma p o sitiva de categorias que na realidade se intervertem no seu contrário. Essas cate gorias representariam ao mesmo tempo uma universalidade ilusória, e a aparên cia do modo de produção capitalista. N os M anuscritos, se podem os falar em ide ologia, ela não viria do bloqueio em forma positiva de um termo em si contradi tório. Ela nasce antes da não posição do primeiro termo, aquele que deveria ser “n egado” : o discurso ideológico seria aquele que não revela o fundamento do objeto, o trabalho alienado; seria assim aquele que oculta o caráter de termo ne gado das categorias econômicas. Nesse sentido, quanto mais “ contraditório” for o seu fundamento, mais verdadeiro ele é205, porque mais revela o seu fundamen to: “ Grande progresso de Ricardo, M ili etc. diante de Smith e Say, [pelo fato de] que eles declaram a existência (D asein ) do homem — a m aior ou menor produti vidade humana da m ercadoria — como indiferente e mesmo prejudicial. [Que] a verdadeira finalidade da produção seja não quantos trabalhadores um capital mantém, mas quanto juro ele produz, a soma das economias anuais. Foi igualmen te um grande e conseqüente progresso da economia política inglesa m oderna, que ela — que eleva o trabalho [fazendo dele] o princípio único da economia política — tenha explicado ao mesmo tempo com plena clareza a relação inversa [que exis te] entre o salário do trabalho e o juro do capital, e que o capitalista em regra [ge ral] só possa ganhar pela redução do salário e vice-versa. Que não a exploração (übervorteilung) do consumidor, mas a exploração recíproca do capitalista e do trabalhador seja a relação norm al” (WEB, I, p. 524 [A], salvo último grifo). Há mais um texto, que vai no mesmo sentido, e que é preciso citar inteiramente: “ N ão só o cinismo da economia política cresce relativamente de Smith — passando por Say — até Ricardo, M ill etc., na medida em que as conseqüências da indústria (Industrie)206 aparecem (in die Augen treten) aos últimos [como] mais desenvol vidas e mais cheias de contradição, mas também positivamente eles vão sempre e conscientemente mais longe do que os seus predecessores na alienação em rela ção ao homem, m as somente 207 porque a sua ciência se desenvolve de um modo mais conseqüente e verdadeiro. Fazendo da propriedade privada, na sua configu ração ativa, o sujeito, e fazendo ao mesmo tempo do homem a essência, e do ho mem como não-essência (Unwesen, também “ m onstro” ) a essência, a contradi ção da realidade efetiva corresponde assim [plenamente] à essência cheia de con tradição que eles reconheceram como princípio. Longe de refutá-lo, a realidade dilacerada (zerrissene Wirklichkeit) da indústria confirma o princípio em si dila
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cerado208 da ciência deles. Com efeito, o princípio deles é o princípio desse dilaceramento (WEB, I, p. 531)209. É essa ciência contraditória que aparece assim como a ciência verdadeira. Con traditória e verdadeira é pois a ciência cuja base é o homem alienado, a que tem como fundamento a antropologia negativa. Sem esse fundamento, a economia mais recente não tem inteligibilidade. M as ela não é antinômica, como a economia mer cantilista ou a economia clássica nas suas primeiras expressões. Por não exprimi rem o princípio contraditório que está na sua base, estas últimas se movem em antinomias. Com isto se define a natureza da ideologia nos M anuscritos, e o que o texto pensa das condições de progresso na ciência econômica. M as voltemos ao discurso totalizante. Se ele exprime de maneira explícita a idéia da constituição do homem como resultado da pré-história, ao contrário do que ocorre em O Capital e nos Grundrisse, não é apenas o homem que se consti tui, mas também a natureza. Assim, lê-se a propósito do comunismo: “ (...) só en tão [a natureza] está lá para o [homem social] como ligação (B an d) com o homem, como ser aí de si para os outros e dos outros para ele, e como elemento vital da efetividade humana, só aí ela é como base {Grundlage) do próprio ser-aí humano [do homem]. Só então o seu ser-aí humano veio a ser ser-aí natural e a natureza para ele (fiir ihn), tornou-se homem para ele (ihm Menschen geworden). Assim a sociedade é a unidade essencial plena do homem com a natureza, a verdadeira res surreição da natureza, o naturalismo realizado (durchgefiihrte) do homem e o hu manismo realizado da natureza” (WEB, I, pp. 537-8 [A], salvo as últimas linhas). Vê-se que não há apenas um processo de constituição do homem (que, como sem pre, é também sob certos aspectos re-constituição); de certo modo também a natu reza se constitui (ou se re-constitui, “ ressuscita” ): “ (...) N essa relação [do homem com a mulher, este é um aspecto do processo, RF] aparece assim de modo sensível, redutível a um fato observável, em que medida para o homem a essência humana veio a ser (geworden ist) natureza ou a natureza veio a ser essência humana do homem (...)” (WEB, I, p. 535 [A], menos a última frase). M as além da constituição do homem, não se tem apenas uma humanização da natureza. H á um duplo movimento, que é humanização do natural e naturali zação do humano. Esse duplo movimento introduz elementos novos em relação aos modelos que examinei anteriormente e que na realidade são cronologicamente pos teriores. N ão temos aqui o elemento prometeano, dominante em todos os textos vistos anteriormente, inclusive os Grundrisse (mesmo se ele tem em comum com os M anuscritos um discurso sobre a alienação)210. O desenvolvimento histórico, que é pensado como uma gênese, não vai mais na direção de uma dom inação final da natureza, mas de uma reconciliação com ela. Esse elemento distingue os M a nuscritos de todos os outros textos de M arx. N os M anuscritos (como também nos Grundrisse) a natureza é o corpo inorgânico do homem: “ A universalidade que faz do conjunto da natureza seu corpo inorgânico, tanto na medida em que ela 1. é um meio de vida imediato, quanto na medida em que 2. ela é a matéria, o objeto, e o instrumento da sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem, isto é a natureza, na medida em que ela mesma não é o corpo do homem. O homem
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vive (lebt) da natureza significa: a natureza é o seu corpo (L eib ), com o qual ele permanece em processo constante para não morrer. Que a vida física e espiritual do homem coincide com a natureza não tem outro sentido senão o de que a natu reza coincide consigo m esm a, pois o homem é uma parte da natureza” (WEB, I, pp. 515-6 [A], menos o último grifo). Como vimos, o tema do “ corpo inorgânico” está também, nos Grundrisse. M as a última frase, cujo caráter não é apenas hum a nista mas também naturalista — e já nisto há uma distância mesmo em relação aos Grundrisse — , dá-lhe uma inflexão estranha ao espírito prometeano (e também não propriamente humanista) dos Grundrisse, e dos outros textos de M arx, em geral. — A acrescentar que a posição do processo pré-história/história do homem e da natureza introduz, nos Manuscritos de 1844, uma espécie de finalismo biologizante, a contrapor ao finalismo (malgré lui) da Ideologia Alemã, que é antes de estilo “ mecânico” , e ao contra-finalismo dialético dos Grundrisse e também do Capital. O ponto de chegada é assim tanto o humanismo como o naturalismo: “ Esse comunismo é como pleno naturalism o = humanismo, como pleno humanismo = naturalismo, é a verdadeira resolução do antagonismo ( Widerstreit) entre o homem e a natureza [e entre o homem] e o homem (...)” (WEB, I, p. 536 [F], M arx grifa “ verdadeira” ). Dir-se-ia, se fosse válido empregar aqui esta linguagem, que não só o homem vem a ser sujeito da natureza, mas que, por sua vez, a natureza vem a ser sujeito do homem. M as, na realidade, nos dois casos, trata-se de outra coisa que não de sujeitos. Se do ponto de vista do conteúdo temos aqui uma ruptura do ideal prometeano, no plano lógico há também um novo registro que é preciso explicar. O ponto de chegada não é mais exatamente a igualdade homem = homem (que poderia passar no puro conteúdo, como na Crítica do program a de Gotha). Ele se apresenta ago ra como igualdade homem = natureza, ou natureza = homem. Essa igualdade é logicamente de um tipo particular, ela não é hegeliana nem fichteana mas tem a ver com a identidade especulativa de Schelling. O homem = natureza significa: o ho mem se reflete na natureza e a natureza se reflete no homem; há como que dois juízos de reflexão simultâneos “ o homem é... a natureza, e “ a natureza é... o h om em ". Trata-se de uma forma lógica que não havíamos encontrado até aqui. De certo modo, ocorre também um ‘“ contra-golpe” (Gegenstoss), mas sob uma forma diferente daquela que encontramos anteriormente. Disse mais acima que a coincidência en tre progresso e barbárie ou a idéia de um progresso contraditório poderia ser ex pressa pelo movimento lógico do “ Gegenstoss” do predicado sobre o sujeito, cujo modelo é a Fenomenologia do Espírito de Hegel. Aqui também há uma progressão que é “ regressão” . Porém a regressão não é decadência, como nos casos anterio res. A regressão exprime a idéia de um progresso não prometeano, progresso que é .70 mesmo tempo reconciliação com a natureza. De um modo um pouco surpreen dente, o “ contra-golpe” — em certo sentido — está aqui ainda mais próxim o da Fenomenologia do Espírito. De fato, se também neste caso é preciso projetar na história a progressão-regressão lógica (ou fenomenológica) que se encontra na Fe nomenologia, a proxim idade para com o modelo é de certo m odo m aior, porque não se trata de um progresso que é ao mesmo tempo volta à barbárie (esse progres so contraditório está também nos M anuscritos), mas de um desenvolvimento que é
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igualmente “ retorno” ao ponto de partida, a “ certeza sensível” . Bem entendido, na Fenomenología como em geral em Hegel, se existe volta, ela se faz em proveito de um imediato que não é mais o sensível.-Porém a analogia é evidente, se supuser mos que o conceito se concilia com o imediato enquanto imediato. A dialética hegeliana reencontra assim a “ sensibilidade” e se reconcilia com ela. Afirmei acima que as identidades que se encontram nos Manuscritos têm algo a ver com a identidade absoluta de Schelling. Com o em Schelling, trata-se de iden tidades entre identidades, ou se se quiser, da identidade da identidade e da identi dade. M as não é apenas com a “ filosofia da identidade” de Schelling (enquanto época do pensamento de Schelling) que os Manuscritos parecem ter algo em comum. N essa fase, de inspiração espinozista, Schelling acentua a idéia da posição da có pula, não da posição dos dois termos, entre os quais se estabelece a identidade. N os Manuscritos temos essas duas ordens de posições. Começo acentuando o que os M a nuscritos têm em comum com a fase anterior à “ filosofia da identidade” , quando o dualismo ainda está presente-11. Terminado o processo de constituição, e na medida em que se chega não só ao homem mas também à natureza, a posição é dada pela presença sensível do objeto, e não só pelo conceito. E ssa “ prova ontológica ” deve ser distinguida da posição pela prática que vimos na Ideologia alemã, e que evoca o idealismo fichteano, e da posição pela efetividade do conceito, que é a posição de estofo begeliano encontra da nos Grundrisse e em O Capital. M as se esse movimento se aparenta certamente à unidade do pensamento e da intuição que encontramos em Schelling212, essa temática nos conduz também, e mais do que a Schelling, às teses da Educação estética de Schiller. H á certamente uma relação — pouco estudada — entre os M anuscritos de 1844 e a Educação es tética. Basta dizer que Schiller faz apelo a uma “ revolução total de todo modo de sensação ” (ein totale Revolution in seiner ganzen Empfindungsweise)213. Em ge ral, trata-se em Schiller tanto de uma educação da razão como de uma educação dos sentidos, o que significa tanto uma educação do “ hom em ” quanto de uma educação da “ natureza” (na realidade, da natureza no homem)214. Para Schiller, é preciso vencer “ a utilidade (...) o grande ídolo da [nossa] época” 215, e criar as con dições para um conciliação entre a atividade e o gozo216. E pela “ cultura estética217 que se chegará a isto. Esta “ submete às leis da beleza todos os atos nos quais não estão nem as leis da natureza, nem as leis da razão, só as leis do arbítrio humano” 218. A “ educação estética” tal como aparece nos M anuscritos distingue-se entretanto da de Schiller. Digamos que nos Manuscritos a educação estética no interior da “préhistória” existe apenas “ em si” . Só através de uma revolução, que nela mesma não é “ estética” , inicia-se um processo de educação estética “ para si” . Em Schiller, pelo contrário, ela é plenamente e desde logo a mediadora da humanidade futura. Tentemos aprofundar o sentido do movimento de constituição do homem e da natureza, tanto do ponto de vista da forma como do ponto de vista do conteú do. Afirmei, a propósito dos Grundrisse, que a pressuposição privilegiada era lá a riqueza, assim como se poderia dizer (pelo menos comparativamente) que a pro posição privilegiada da Ideologia alemã, e também a do M anifesto, é a liberdade.
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Se, no plano das metó-pressuposições, temos nos M anuscritos tanto a constituição do homem como a da natureza, a pressuposição que se privilegia é evidentemente a satisfação. E essencialmente o universo do gozo, mais do que o da liberdade ou da riqueza, que encontramos no final do processo219. O gozo, a satisfação, é con traditório na pré-história, para se tornar — de um modo particular que é o da iden tidade especulativa — não-contraditório, quando advém a história. E isto só é p os sível pela educação das necessidades (Bedürfnisse ) que não é outra coisa senão a educação da sensibilidade. Se a história na Ideologia alemã é história da liberdade ¡história da constituição da liberdade, embora o texto não a apresente assim), se nos Grundrisse ela é história da constituição da riqueza, apresentação da riqueza, a história nos M anuscritos é história da constituição da satisfação e do gozo, a apresentação deles. E se na Ideologia alemã tem-se a educação do homem para a liberdade (isto ocorre com a revolução e através dela), se nos Grundrisse tem-se a "educação” , a form ação da riqueza, que, se transfigurando em logos, cria a verda deira riqueza, o tempo livre, nos M anuscritos tem-se a educação dos sentidos. E é sob esse aspecto que a história nos M anuscritos é “ educação estética da humani dade” . M as se trata, como indiquei, de uma “ educação” contraditória que se faz através da sua “ negação” (um outro modo de dizer que ela é apenas “ em si” ). “ A supressão da propriedade privada é por isso a plena emancipação de todos os sen tidos e propriedades humanos; mas ela é esta emancipação precisamente pelo fato de que esses sentidos e propriedades se tornaram humanos tanto subjetiva como objetivamente. O olho se tornou olho humano, assim como o seu objeto se tornou um objeto social, humano, um objeto que provém do homem [e é] para o homem. Os sentidos se tornaram por isso teóricos na sua prática” (WEB, I, p. 540 [A]). Por isso, o ponto de chegada é tanto a teoria (o análogo do saber absoluto) como a sensibilidade (a certeza sensível reelaborada): “ Eles se relacionam com a coisa (Sache) por causa da coisa, mas a própria coisa é uma relação objetiva humana a si mesma e ao homem e vice-versa. A necessidade (Bedürfnis) e o gozo (Genuss) perderam por isso a sua natureza egoísta e a natureza perdeu a sua mera utilidade (Nützlicbkeit), quando a utilização se tornou utilização humana. Tam bém os sen tidos e o gozo dos outros homens se tornaram a minha própria apropriação (eigne Aneignung). Além desses órgãos da sociedade, assim por exemplo a atividade na sociedade com outros se tornou um órgão da minha exteriorização de vida (Lebenssãusserung) e um modo de apropriação da vida humana (...) É evidente que o olho humano goza de modo diferente do olho grosseiro, desumano, o ouvido humano, de m odo diferente do ouvido grosseiro etc.” (WEB, I, pp. 540-1 [A]). Constitui-se assim a natureza, o homem, a sociedade. A natureza não é mais mero objeto de utilização. Entretanto, porque o ponto de chegada não é simples mente o homem (e a sociedade), mas também a natureza, o resultado também não é a simples identidade das pressuposições. D o mesmo modo que as meta-pressuposições não conduzem a uma identidade, pois o que se tem, no final do processo, é uma igualdade desigual homem = natureza, no plano das pressuposições também não somos conduzidos a igualdades do tipo riqueza = riqueza, liberdade = liberda de etc. A exemplo do que ocorre para as meta-pressuposições, chega-se a igualda des entre termos contrários. Por exemplo. Lê-se no texto que o comunismo “ é a
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verdadeira resolução do conflito entre (...) a liberdade e a necessidade (...)” (WEB, I, p. 536 [F]). N ão temos como resultado nem o reino da liberdade de que fala a m aioria dos outros textos, nem a liberdade envolvendo uma ilha cada vez mais reduzida de necessidade (a solução que propõe O C apital), m as a conciliação entre a liberdade e a necessidade220. A liberdade é... necessidade, e a necessidade é... li berdade. Por sua vez, também não se chega à riqueza como categoria igual a si própria: “ Vê-se como em lugar da riqueza e da pobreza da economia política surge (tritt) o homem rico e a necessidade humana rica. O homem rico é igualmente o homem que necessita (bedürftige) de uma totalidade da exteriorização humana da vida. O homem no qual sua própria realização efetiva como necessidade íntima existe como carência (Not). N ão só a riqueza, também a pobreza do homem recebe do mesmo modo — sob a pressuposição do socialismo — uma significação humana e por isso social” (WEB, I, p. 544 [A]). Assim como o socialismo não é mera identidade da liberdade com ela mes ma, mas identidade especulativa (dupla reflexão) — poderíamos representá-la as sim: “ a liberdade é <...> necessidade” (= “ a liberdade é... necessidade, e a necessi dade é... liberdade” ), a distinguir da simples reflexão “ a liberdade é... necessida de” , — a riqueza não é riqueza simplesmente (nem passa apenas na pobreza), a riqueza é <...> pobreza (= a riqueza é... pobreza, e a pobreza é... riqueza). Para que a liberdade seja necessidade e a riqueza pobreza, é preciso que a finalidade não seja dominar a natureza. Pelo contrário — em certo sentido, porque a recíproca é tam bém verdadeira — é a natureza que me domina: “ A dom inação da essência objeti va em mim, o eclodir (Ausbruch) sensível da minha atividade essencial é a paixão, que com isto se torna aqui a atividade da minha essência” (WEB, I, p. 544, “ dom i nação” e “ sensível” [F]). M as paixão (Leidenschaft) é também sofrimento (Leiden). O que significa: a satisfação não é simplesmente igual à satisfação. A satisfação é <...> sofrimento: “ O homem se apropria de sua essência universal (allseitig) de um modo universal (allseitig), assim, como um homem total. Cada uma das suas rela ções humanas para com o mundo, ser, ouvir, cheirar, saborear, ser ativo, amar, em resumo, todos os órgãos da sua individualidade, assim como os órgãos que imedia tamente na sua forma são como órgãos sociais, são na sua relação objetiva ou na sua relação para com o objeto a apropriação do objeto. A apropriação da realida de efetiva humana, sua relação com o objeto, é a afirm ação (Betätigung) da reali dade efetiva humana; eficácia (Wirksamkeit) humana e paixão (Leiden) humana, pois a paixão (das Leiden, o sofrimento) entendida humanamente é também gozo de si (Selbsgenuss) do homem: (WEB, I, pp. 539-40 [A]). E ainda: “ Ser sensível é ser sofredor (leidend). O homem enquanto essência objetiva sensível é por isso um sofredor, porque a essência que sente o seu sofrimento (Leiden) é uma essência apai xonada (leidenschaftliches). A paixão (Leidenschaft), o passional (die Fassion) é a força essencial do homem que tende energicamente em direção ao seu objeto” (WEB, I, p. 579 [A]). A força é... passividade (e a passividade é... força). Com o veremos mais adiante, a propriedade também não se resolve numa identidade simples con sigo mesma, mas numa identidade especulativa com o seu contrário. Com o se entende, nesse contexto, o processo histórico e o progresso? Exce tuando um primeiro momento de conciliação (cuja realidade, como na maioria dos
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textos de M arx, também aqui é apenas insinuada), há um momento em que a opo sição ainda não chegou ã contradição, aquele em que ela se manifesta como sim ples oposição entre propriedade privada e ausência de propriedade privada: “ (...) a oposição entre a falta de propriedade (Eigentum slogigkeit) e a propriedade é ainda a oposição indiferente, ainda não entendida na sua relação ativa (tätige Bezieung), na sua relação interna, ainda não como contradição, enquanto ela não for compre endida como oposição entre o trabalho e o capital. Tam bém sem o movimento progressivo da propriedade privada, na Rom a antiga, na Turquia etc., essa oposi ção pode se manifestar na sua primeira configuração. Ela aparece assim como não tendo ainda sido posta pela propriedade privada” (WEB, I, p. 353 [A], salvo “ como não tendo etc” ). Esta é a primeira oposição. “ M as o trabalho, a essência subjetiva da propriedade privada como exclusão da propriedade, e o capital, o trabalho ob jetivo como exclusão do trabalho, é a propriedade privada como sua relação de senvolvida até a contradição, por isso uma relação enérgica que impulsiona na di reção da sua dissolução” (ibidem [A]). A oposição se torna contraditória, quando toma a forma capital/trabalho, o que significa, quando ela é posta pela propriedade privada. Só então a propriedade remete efetivamente ao seu fundamento, o trabalho alienado. Nesse estágio, as pres suposições se intervertem no seu contrário: o gozo, que é a pressuposição privile giada, se interverte em não-gozo, e em geral a civilização é barbárie: “ (...) Assim como a indústria especula com o refinamento das necessidades, assim ela especula com o caráter grosseiro delas (Roheit) com o seu caráter grosseiro produzido arti ficialmente, cujo verdadeiro gozo é pois o auto-embotamento (Selbstbetäubung), essa satisfação aparente da necessidade, essa civilização no interior da barbárie grosseira da necessidade” (WEB, I, p. 552 [A]). Se na Ideologia alemã fala-se da subordinação dos indivíduos à divisão do tra balho, se em O Capital e nos Grundrisse trata-se da subordinação do trabalho ao capital, nos M anuscritos de 1844 a subordinação aparece também sob outra for ma, a subordinação do gozo ao capital: “ Ele [o capitalista industrial] também goza sem dúvida. De modo algum ele volta à simplicidade da necessidade (Bedürfnis), mas o seu gozo é coisa acessória, repouso, subordinado à produção, e com isto gozo calculado, e assim ele mesmo econômico, pois ele lança o seu gozo nos custos do capital, e seu gozo só pode lhe custar tanto, que o que ele lhe consumiu venha a ser reposto com lucro através da reprodução do capital. O gozo é assim subordinado ao capital, o indivíduo que goza ao indivíduo que capitaliza, enquanto antes havia o contrário” (WEB, I, p. 556 [A], menos o último grifo). N a medida em que a divisão do trabalho — que como vimos é o conceito central da Ideologia alemã — e em geral todas as potências objetivas são traduzidas em termos antropológico-ontológicos, como forças da espécie, o caráter contraditó rio do progresso aparece como oposição entre o indivíduo e a espécie·. “ A divisão do trabalho é a expressão econômica da sociabilidade (Gesellschaftlichkeit) do tra balho, no interior da alienação (Entfremdung). Ou, assim como o trabalho é só uma expressão da atividade humana no interior da ex-teriorização (Entäusserung, “ m á” exteriorização), da exteriorização da vida (Lebensäusserung) como perda da vida (Lebensentäusserung), a divisão do trabalho nada mais é do que a posição alienada
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(entfremdete) perdida [entäusserte) da atividade humana como uma atividade ge nérica real (reale Gattungstätigkeit) ou como atividade do homem como ser gené rico (GattungswesenY’ (WEB, I, p. 5 57 [A]). “ A divisão do trabalho — M arx p ara fraseia J. B. Say — é um meio côm odo, útil, um emprego hábil das forças humanas para a riqueza social, mas ela diminui a capacidade de cada hotnem tom ado individuahnente. A última observação é um progresso de Say” (WEB, I, p. 561 [A])221. O fim da alienação resulta da educação dos sentidos que é ao mesmo tempo form ação “ estética” do objeto. A ruptura se dá quando a necessidade (Bedürfnis) se humaniza (ou quando a necessidade humana — que é primeiro abstrata — se naturaliza) e se torna necessidade do outro homem·. “ O conjunto da história é a história da preparação e do desenvolvimento (Vorbereitung-, Entwicklungsges chichte) para que o “ hom em” venha a ser objeto da consciência sensível e a neces sidade (Bedürfnis) do “ homem enquanto homem” venha a ser necessidade” (WEB, I, pp. 543-4 [F], salvo “ hom em ” ). “ (...) N essa relação [a relação do homem para com a mulher] m ostra-se também em que medida a necessidade (Bedürfnis) do homem (M ensch) se tornou necessidade humana, em que medida assim o outro homem enquanto homem se tornou para ela uma necessidade, em que medida no seu ser-aí (Dasein), mais individual, ele é ao mesmo tempo um ser com unitário” (Gemeinwesen)” (ibidem, p. 535 [A]). Essa passagem, que não se faz sem revolução222 implica entretanto numa longa transição que nos interessa tanto pela form a como pelo conteúdo. A primeira ne gação (positiva) da propriedade privada (se com parada com as críticas de Fourier e Saint-Simon) é a que opera um comunismo que não é ainda “ apropriação efetiva da essência hum ana” . H á na realidade duas form as desse comunismo. A primeira é a do comunismo grosseiro, que aparece como “ generalização e realização (Vollen dung) da propriedade privada” (WEB, I, p. 534). N esse comunismo, o tipo de ne cessidade (Bedürfnis) que caracteriza a propriedade privada não se altera, só se generaliza·. “ (...) o domínio da propriedade coisificada (sachliche) lhe é tão grande, que ele quer negar tudo aquilo que não é suscetível de ser possuído por todos en quanto propriedade privada; ele quer fazer abstração do talento etc., de um modo violento (gewaltsam ). A posse física imediata vale para ele como única finalidade da vida e da existência; a determinação do trabalhador não será suprimida, mas ampliada a todos os homens; a relação da propriedade privada permanece sendo a relação da comunidade para com o mundo das coisas (...) Este comunismo — ne gando p or toda parte a personalidade do homem — é precisamente apenas a ex pressão conseqüente da propriedade privada, a qual (propriedade) é esta negação. O desejo (Neid, “envie") universal e que se constitui como força é a form a oculta em que a avidez se produz, e apenas se satisfaz de outro m odo” (WEB, I, ibidem [A], salvo os dois grifos maiores). O comunismo grosseiro deseja o nivelamento, como o proprietário menos rico em relação ao proprietário mais rico. “ Ele tem uma medida determinada lim itada” (WEB, I, p. 535 [A]). N ega abstratamente “ todo o mundo da cultura e da civilização” e prega a volta à simplicidade “ contra a natu reza (unnatürliche)223 do homem pobre, grosseiro e sem necessidades” (ibidem), que nem chegou à propriedade privada. A situação no comunismo grosseiro é a de uma espécie de interversão generalizada. A liberdade é... não liberdade, a satisfa-
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ção é... insatisfação etc. — do mesmo m odo para todos. Só a diferença entre a interversão para o caso do capitalista e a interversão para o caso do trabalhador desaparece. E como se tivéssemos uma situação em que, sem diferença, A seria afe tado por E: todos os homens são livres, felizes etc., m as ao mesmo tempo nenhum é livre, feliz etc. Para além do comunismo grosseiro, tem-se “ o comunismo a) ainda de natu reza política, democrático ou despótico; [e] b) com supressão do Estado, mas igual mente ainda não plenamente desenvolvido e sempre [como] essência afetada pela propriedade privada, isto é, pela alienação do homem ” (WEB, p. 36 [F]). Desse comunismo, M arx dirá que ele é “ a posição como negação da n egação” (WEB, I, p. 546), isto é, ele é “ a vida efetiva” (como o ateísmo é a consciência de si efetiva), mas mediada “ pela supressão da propriedade privada” (ibidem). Isto quer dizer que se trata de um comunismo em que o princípio do egoísmo não foi totalmente eli minado (poder-se-ia pensar na igualdade homem = homem, liberdade = liberdade etc., em oposição às identidades absolutas homem = natureza, liberdade = necessi dade etc.)224. E desse comunismo que se diz: ele é “ a configuração necessária e o princípio energético do futuro próxim o” , mas “ não é enquanto tal o objetivo (Ziel) do desenvolvimento humano — a forma da sociedade hum ana” (WEB, I, 546). Ele já “ se sabe como reintegração ou volta do homem a si, como supressão da autoalienação humana, m as como ainda não apreendeu a essência positiva da proprie dade privada nem tampouco a natureza humana da necessidade (Bedürfnis), ele está preso (befangen) à propriedade privada e infectado por ela. N a realidade, ele apre endeu o conceito dela, mas não ainda a sua essência” (WEB, I, p. 536) (F, M arx grifa “ hum ana” ). Esse comunismo não formou ainda inteiramente a ?tecessidade (Bedürfnis) por não compreender plenamente o princípio da propriedade privada que é o seu contrário. (Conhecer o conceito m as não ainda a essência, é estranho. N a Lógica de Hegel, a essência vem “ antes” do conceito. M as “ conceito” talvez signifique a primeira m anifestação da coisa [sentido que também aparece em H e gel], a menos que se trate — e é provável — de uma inversão im posta pelo espírito em parte feuerbachiano do texto. Deste ponto de vista, a essência é o mais alto, o conceito, herança imediata de Hegel, tem alguma coisa de ilusório.) A plena formação só será alcançada com o que o texto chama também de “ so cialism o” , ou antes de “ socialismo enquanto socialism o” que “parte da consciên cia sensível teórica e prática do homem e da natureza como da essência” (WEB, I, p. 546 [A]), e que já não necessita da m ediação que a negação da propriedade pri vada representa” . Assim, tem-se aqui também um processo de form ação do socia lismo. O socialismo é inicialmente um outro. A sua história só começa aparente mente com o comunismo que ultrapassou o estágio do comunismo grosseiro. Este último pertence à sua pré-história. O comunismo plenamente formado constitui assim a segunda negação, “ retor no que veio a ser (gewordene), pleno e consciente do homem para si como homem social, isto é, como homem humano, e no interior de toda a riqueza do desenvolvi mento anterior” (WEB, I, 536, “ homem hum ano” [F]). Já vimos que este comunis mo é a resolução das antíteses humanismo/ naturalism o, liberdade/ necessidade, assim como ele resolve também a oposição entre “ existência e essência, entre obje-
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tivação e auto-afirmação (Selbstbetätigung) (...) entre indivíduo e espécie” (ibidem). “ Ele é o enigma resolvido da história e se conhece como essa resolução” (ibidem)-25. Importante também do ponto de vista lógico é que essa passagem ao socialis mo enquanto socialismo (ou ao comunismo que apreende a natureza humana da necessidade) seja pensada como um movimento que vai do ter ao ser. “ (...) a apro priação setisível da essência e da vida humanas, do objeto humano, das obras hu m anas para o homem e através do homem, não deve ser entendida só no sentido do gozo im ediato, unilateral, não só no sentido do possuir (Besitzen), no sentido do ter” (WEB, I, p. 539 [A]). “ A propriedade privada nos tornou tão tolos e unila terais que um objeto só é nosso, quando o temos, assim , quando ele existe para nós como capital, ou quando ele é imediatamente possuído, comido, bebido por nós, levado pelo nosso corpo, habitado por nós etc., em resumo utilizado. Ainda que, por sua vez, a propriedade privada conceba todas essas efetivações imediatas da posse, elas mesmas, só como meios de vida. A vida de que elas servem de meio é a vida da propriedade privada, trabalho e capitalização. Em lugar de todos esses sen tidos, aparece o sentido do ter. A essência humana teve de ser reduzida a essa po breza absoluta, para que a partir de si desse à luz a sua riqueza interior” (WEB, I, p. 540 [A])226. Assim, no enunciado “ eu tenho o objeto” , a regência transitiva in dica, ao contrário do que sugerem as aparências, uma separação entre sujeito e predicado. O processo de constituição dos sentidos e do objeto que opera a préhistória, segundo os M anuscritos, é na realidade processo de constituição de uma ligação entre o sujeito e o predicado. E a ligação, tanto em sentido real como em sentido lógico (cópula) que é constituída pelo processo. A cópula lógica é posta como identidade especulativa. “ A carência (Not) é a ligação (Band) passiva que faz sen tir como necessidade (Bedürfnis) aos homens a maior riqueza, o outro homem como necessidade” (WEB, I, p. 544, M arx grifa “ outro” ). “ (...) a natureza sensível ime diata para o homem é imediatamente a sensibilidade humana (uma expressão idên tica) imediata enquanto (ais) o outro homem que existe de m odo sensível para ele m esm o” (WEB, I, p. 544 [A]). Q uando se ultrapassa o comunismo grosseiro, elimina-se a interversão, mas não se suprime inteiramente, a ligação “ ter” . E como se houvesse um bloqueio. Em “ eu tenho o objeto” , o “ eu” não passa no objeto. A passagem que o ter bloqueia seria um dos movimentos da dupla reflexão que constitui a identidade especulati va. Fica-se aquém da “ b o a” reflexão, que caracteriza a paixão (a distinguir da “ m á” reflexão — que vai só num sentido — da alienação e da interversão). Nesse senti do, o bloqueio prolonga a interversão que caracteriza a pré-história: nesta não se chega à relação “ estética” entre sujeito e objeto, porque o sujeito se perde no obje to; agora ele não se perde mais nele, m as não o alcança (só se reflete nele, na forma abstrata do ter). (Do comunismo grosseiro, pode-se dizer pelo contrário, que a perda no objeto ainda subsiste.) Assim como o “ é” da reflexão simples diz que o sujeito é e não é o objeto, no “ eu tenho” , o “ eu” tem e não tem a coisa. O eu permanece igual ao eu, a coisa igual à coisa. Em sentido mais profundo, o predicado não é dito do sujeito. H á assim algo que parece ser o contrário de uma reflexão. Um sujeito que é como que sobre posto e impede, por isso, a passagem . Esse bloqueio não é o bloqueio da ideologia, que vimos em outro lugar227. E a natureza da ligação que o
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determina. Poder-se-ia também dizer que há uma espécie de “ contra-golpe” unila teral. O objeto se reflete no sujeito, porque ele tem o objeto. M as o sujeito não se reflete no objeto. Ele se mantém como sujeito egoísta, fechado sobre si mesmo, espécie de tautologia oculta. Da perspectiva crítica dos M anuscritos, o juízo “ eu tenho o objeto” indica uma espécie de imobilidade do sujeito. Em vez de ser uma reflexão, como no caso da m aioria dos juízos dialéticos, nos quais o predicado é ao mesmo tempo “ negante” , aqui falta a própria afirm ação do predicado. N ão se tem uma predicação positiva que seria ao mesmo tempo negativa. A predicação é anulada no momento mesmo em que se a enuncia (resta entretanto uma atribuição abstrata). De certo m odo, a situação se inverte, em relação a todos os casos ante riores: o que está expresso não está posto, m as simplesmente pressuposto. O que está posto não está expresso. É a tautologia eu = eu que está posta, e ela permanece não expressa. Tem os no fundo um juízo de “ não-predicação” . Com a passagem ao socialismo enquanto socialismo, opera-se a dupla refle xão, e o seu (do homem) passa a indicar uma verdadeira ligação: “ (...) o homem não se perde no seu objeto, se este lhe é como objeto humano ou homem objetivo. Isto só é possível quando este se torna para ele objeto social, e ele mesmo essência (Wesen) social, assim como a sociedade torna-se, para ele, essência. (...) Por isso, como por toda parte, para o homem na sociedade, por um lado, a efetividade ob jetiva vem a ser como (ais) efetividade das forças essenciais hum anas, como efetivi dade humana e em conseqüência como efetividade de suas próprias forças essenci ais, todos os objetos vêm a ser para ele como objetivações de si mesmo, como ob jetos que confirmam e efetivam sua individualidade, como seus objetos, isto é, ele mesmo se torna objeto” (WEB, I, p. 541, M arx grifa o primeiro “ seu” ). H á assim uma espécie de constituição do possessivo especulativo que até então estava pres suposto, constituição portanto da ligação lógica (cópula) especulativa. E se nos Grundrisse — onde se acentua também a constituição do Sujeito — a relação cons tituída será essencialmente de ordem científica228 (ela é de resto produzida pela ciência, ela mesma impulsionada pelo capital), nos M anuscritos a relação é estéti ca, o objeto não será mais apenas como objeto útil, m as como objeto belo·. “ Por outro lado: compreendido subjetivamente. Assim como somente a m úsica desper ta o sentido musical do homem, assim para o ouvido não musical a mais bela m ú sica não tem nenhum sentido, [não] é [nenhum] objeto, porque o meu objeto só pode ser a confirm ação de uma das minhas forças essenciais (...) só vai tão longe quanto vai o meu sentido [— ] os sentidos do homem social são por isso outros que não os do homem associai; só através da riqueza objetivamente desenvolvida (enftaltete) da essência humana, a riqueza da sensibilidade subjetiva humana, um ouvido mu sical, um olho para a beleza da form a, sentidos capazes de gozos humanos, senti dos que se confirmam como forças essenciais humanas, vêm a ser em parte form a dos, em parte produzidos” (WEB, I, p. 541 [A]). “ Pois não só os cinco sentidos, mas também os assim chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (querer, amar etc.), em uma palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos vem a ser só através do seu objeto, através da natureza humanizada. A form ação dos cin co sentidos é um trabalho do conjunto da história universal [que houve] até aqui'''’ (WEB, I, pp. 541-2, última frase [F]). E para terminar, o texto em que M arx opõe
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de um lado o sentido grosseiro e o sentido egoísta, e de outro o sentido humanizado. “ O sentido preso à necessidade grosseira prática tem também um sentido limita do. Para o homem esfom eado não existe a forma humana da comida, só sua exis tência (D asein) abstrata como comida; do mesmo m odo, ela poderia estar presente na forma mais grosseira, e não se pode dizer em que essa atividade de se alimentar se diferencia da atividade animal de se alimentar. O homem cheio de cuidados (sor genvolle), necessitado, não tem nenhum sentido para o espetáculo mais belo-, o tra ficante de minerais só vê o valor mercantil, m as não a beleza e a natureza caracte rística do mineral; ele não tem nenhum sentido mineralógico; assim a objetivação da essência humana, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista práti co, necessita tanto tornar humano o sentido do homem como criar o sentido hu mano que corresponda a toda a riqueza da essência humana e natural” (WEB, I, p. 542, “ beleza” e “ o espetáculo mais belo” [F])229. N o socialismo enquanto socialismo, o trabalho desaparece: “ M as que o p ró prio trabalho não só nas condições atuais, m as na medida em que em geral a sua finalidade é o simples aumento da riqueza, digo, que o próprio trabalho é prejudi cial, funesto, isto se segue, sem que o economista o saiba, dos seus próprios desen volvim entos” (WEB, p. 476 [F]). N um outro texto, poder-se-ia vislumbrar uma abertura para certo tipo de trabalho: “ N a economia política o trabalho só aparece na forma da atividade de ganho (Erwerbstätigkeit) (WEB, I, p. 477 [A]). M as, como nos Grundrisse, o trabalho aparece como “ negado” ; porém “ negado” mais em pro veito da atividade artística do que da atividade científica. N a Ideologia alemã falase — como vimos — em fim do trabalho, fim do trabalho significa aí fim da divi são do trabalho; porque só como divisão do trabalho é que este está posto. M as não há nem “ revolução científica” como nos Grundrisse, nem “ revolução estéti ca ” como nos Manuscritos. N os M anuscritos, o socialismo é também o reino do infinito (“ o comunismo grosseiro ainda tem ‘medida delim itada” ’, ibidem, p. 535), mas esse infinito não é nem o infinito hegeliano, nem o do Aufklärung, mas o infinito do gozo, do instan te. Os M anuscritos desenvolvem o lado para o qual, no dizer de Sartre, Hegel era pouco sensível: o momento da satisfação, anterior ao consumo e diferente dele230. Resumindo os resultados. N os M anuscritos tem-se assim o predomínio do dis curso totalizante, que representa também o lado da continuidade. A pressuposição privilegiada é a satisfação ou o gozo. A filosofia é objeto de uma crítica que não é nem a crítica quase positivista-historicista da Ideologia alemã, nem a crítica dialé tica, m as uma crítica que se faz ao mesmo tempo em nome da teoria e em nome da sensibilidade. A ideologia está antes no discurso particular, quando falta o funda mento negativo, do que no discurso geral ou universal. O socialismo representa tanto a constituição do homem como a da natureza, ou antes representa a constituição da ligação entre um e outro. O processo histórico aparece como progresso contra ditório que opõe o indivíduo e a espécie. O ideal prometeano é criticado. O concei to fundamental não é nem o capital, nem as form as de propriedade, nem a divisão do trabalho, m as o trabalho alienado. M ais do que história da apresentação da li berdade, ou história da apresentação da riqueza, a história é história da apresenta ção da necessidade humana e da satisfação1^ .
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Esse texto não se limitou a tentar uma reconstituição dos três m odelos prin cipais da apresentação m arxista da história, como prolegómeno a uma crítica des ta, m as apresentou também, embora em form a limitada, algumas análises sobre o sentido da história do capitalism o e da história em geral, além de alguns desenvol vimento críticos. Os três m odelos permitem, entre outras coisas, obter certos esquemas sobre o enraizamento possível de M arx no conjunto da filosofia clássica alemã. Num deles, é clara a presença da matriz hegeliana; em outro, para além de Feuerbach, apare cem ressonâncias schellingianas; o terceiro, se o confrontarm os com o idealismo alemão, parece retomar em outro registro alguma coisa do caminho de Fichte. A s sim, a posição está, num caso, à maneira de Hegel, na força do conceito (conceito que, como em Hegel, é objetivo); em outro, ela reside num imediato, de que depen de toda posição conceituai; no terceiro, a posição está na ação. Os três m odelos privilegiam, um a revolução científica, outro a revolução es tética232, um terceiro a revolução política, embora esta última esteja presente em todos eles. A estas possibilidades corresponde respectivamente ou uma história pensada como processo de constituição do homem sujeito, ou uma história em que se constitui uma ligação entre o homem e a natureza, ou a ausêticia de real consti tuição de categorias universais pelo processo histórico. Poder-se-ia acrescentar ainda outras diferenças entre os modelos. Em um de les (Ideologia alemã e M anifesto), tem-se uma recusa de todo finalismo, recusa que, entretanto, dado o seu caráter abstrato, se interverte paradoxalm ente no seu con trário; outro (M anuscritos de 1844) tem por base uma história de form ação que, por com portar uma dimensão naturalista, tem ressonâncias finalistas; no terceiro (Grundrisse e Capital), no qual coexistem continuidade e descontinuidade, há — pelo menos como projeto teórico — uma quase finalidade (uma finalidade pressu posta), “ negada” pela recusa de toda finalidade posta. Em um dos m odelos, o conceito é “ reduzido” pelo tempo (Ideologia alemã e M anifesto); em outro (Grundrisse e Capital), o tempo é dom inado pelo conceito; no terceiro (M anuscritos), a ordem do conceito acom panha a do tempo (sem se “ reduzir” a ele). Em um modelo (Ideologia alem ã, M anifesto), a prática é a instância decisiva, e por isso há um privilégio “ abstrato” do futuro imediato; em outro, o sujeito do discurso, que não tem representação prática, se antecipa ao horizonte do sujeito prático (Manuscritos); em um terceiro, a prática também não é dominante, mas por outras razões: o sujeito teórico segue os contornos da estrutura (em sentido dialé tico) que ele reproduz (Grundrisse, Capital). O que na ordem da apresentação desse texto foi o segundo modelo interessa (entre outras coisas) seja pela “ esquem atização” — mesmo se muito problemática como indiquei, porque demasiado “ otim ista” -— do que considerei como um a ter ceira fase e form a do capitalismo (Grundrisse), seja pela idéia sob muitos aspectos inversa mas igualmente importante de uma “ continuação” da necessidade no inte
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rior de uma sociedade livre (Capital). Os M anuscritos interessam pela crítica do projeto prometeano. Quanto ao modelo quase-historicista, ele é talvez o menos in teressante. Vale, entretanto, entre outras coisas, pela ênfase que dá — embora uti lizada só nos limites de uma crítica do capitalism o — à idéia de uma interversão dos instrumentos de produção em instrumentos de destruição. Nesse sentido, tam bém ele aponta, a seu m odo, para além do universo m arxiano.
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o tas
1 A propósito da descontinuidade e da continuidade entre os m odos, permito-me citar al guns textos ainda inéditos. N o meu primeiro rascunho de tese (1973) que deveria apresentar em Aix-en-Provence, “ A dialética m arxista e as falsas leituras” , eu escrevia (cito o original em fran cês): “ On sait comment les Grundrisse (...) presentent la succession des modes de production. On n’a pas une histoire, m ais plusieurs histoires. Chaqué mode passe par un processus de dissolution, en général inscrit dans leurs propres présupositions, processus qui amène à sa disparition. Avec les débris de chaqué mode de production, se construit un nouveau mode. Donc, il y a toujours négation de chaqué mode, et ensuite, emergence des nouvaux modes sur la base des m atériaux (des présupositions) du mode ancien (...) Chaqué mode nait donc de la mort de l’autre, pas de continuité entre les différents m odes” (p. 274, grifado no original). A tese desenvolve tam bém o lado da con tinuidade pressuposta (ver ibidem, p. 294). (Ver também aqui no ensaio III, que é de 1973, pp. 257-8.) Seis anos depois, no texto também ainda inédito [“ Critique du m arxism e” ] “ Sur le vieilissiment du m arxism e” (1979) — os textos estão em pastas e cadernos datados, e abertos a qual quer verificação — eu volto ao tema: “ M arx apresenta o surgimento de um novo m odo de produ ção com o o surgimento de uma nova história (...) mais do que história, há histórias” (p. 37). Se faço questão de citar alguns desses textos é pela razão seguinte. N o final dos anos 70 e em 1980, conversei a respeito deles e de outros temas com um com patriota m ais jovem que preparava tese sobre Hegel, com patriota a quem seu orientador francés, que era também o meu orientador, reco m endara, com a melhor das intenções, o contato comigo. N a realidade, discuti com o filósofo bra sileiro os seguites temas: 1) a idéia de que em M arx há histórias e não história, de que um modo de produção não gera o outro (de que um não é o germe do outro), e de que nesse esquema há continuidade e descontinuidade, sendo o lado da continuidade o da “ história da exploração” ; 2) a idéia de que há sucessão de form as também no capitalism o — m anufatura, grande indústria (até aqui é banal), mais uma terceira forma que caracterizei entre outras coisas pelas mudanças no Direito (eu aproveitava aqui meus estudos de Direito, sobretudo as aulas de Direito Social); 3) as caracte rísticas do capítulo II do livro I do Capital, m ostrando que aí se põem os agentes, com o que se tem a presença de direito pressuposto na “ infra-estrutura” (portanto a existência de uma relação muito com plexa entre as cham adas “ infra- e superestrutura” ; isto prolongando as teses de Pasukanis, com o assinalei em M LP II); 4) a noção de limites da dialética (que tirei de um texto dos Grundrisse). A acrescentar, last but not least, 5) uma conversa de ordem m ais propriamente lógi ca em torno da conversão possível do exemplo de Frege (“ estrela da m anhã” ...) na dualidade es sência/aparência, em conexão com as analogias entre peso e valor no Capital e com o anti-newtonismo de M arx e de Engels. Além disso, falei de outros problem as (p. ex. que a quarta figura da form a do valor assinala uma m udança semântica, que no final do livro III se esboça um a teoria das classes mas sem luta de classes, que M arx se refere ao capital com o enteléquia, etc. etc.). N a realidade, a m aioria desses tem as, que em parte, mas só em parte, são um desenvolvimento do que está em M LP I (publicados em artigos nos anos 70), já tinha sido tratada por mim em textos iné ditos, como os que citei, textos que com eçariam a surgir em artigos a partir de 1983 e que, no essencial, estão em M LP II (1987). (Os ensaios 3 e 4 de M LP II foram escritos em 1979/80, como indiquei no volume). Se conto essa historia com algum detalhe é porque, curiosamente, quase to-
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dos esses pontos apareceram não com desenvolvimento, m as digamos com “ enchimento” , num livro bem conhecido, publicado no início dos anos 80 (sobretudo na prim eira e nas duas últimas partes). Alguns deles já estavam, aliás, em apressadas e estratégicas “ versões preliminares” de partes de tal livro que circularam não muito tempo antes da sua publicação. Com o isto tudo tem não só interesse ético mas também teórico — a transposição por ouvir-dizer deu naturalmente em sala das teóricas que é preciso pôr a nu — , contarei esta história, com todos os detalhes, no livro que preparo sobre a minha experiência na Universidade. 2 O já referido ensaio 1 (“ Para uma crítica da apresentação m arxista da história” ) de M LP II. M as o presente texto também está ligado ao ensaio 1 de M LP I “ D ialética m arxista, humanis mo, anti-humanismo” , particularmente à segunda parte dele. Se o ensaio 1 de M LP II trata da su cessão descontínua dos m odos, ou seja, logicamente, do discurso posto, a segunda parte do en saio 1 de M LP I trata dos esquemas quase-continuístas e quase-totalizantes, isto é, em termos ló gicos, do discurso pressuposto. O presente texto em parte desenvolve o tema da segunda parte desse último ensaio, distinguindo modelos, em parte tenta aprofundar as relações contraditórias entre o discurso pressuposto e o discurso posto. 3 Theodor Adorno, “ Fortschritt” in Stiebworte, Gesammelte Schriften, 10, 2, Frankfurt-amM ain, Suhrkam p, 1977, trad. francesa “ Le Progrès” , in Modeles Critiques, (Intervensions-Répliques), trad. de M arc Jimenez e Eliane Kaufholz, Paris, Payot, 1984, p. 154. Em princípio retraduzo os textos. 4 Ver em particular o final daquele ensaio (“ Dialética m arxista, historicismo, anti-historicism o” ), em que trato dos dois historicismos. 5 Ver a respeito a segunda parte do texto de M LP I, a que me referi (“ D ialética m arxista, humanismo, anti-hum anism o” ). 6 (F) indica que os grifos são meus; (A), que o autor grifa. 7 N ota de 1998: Entretanto, mesmo se em geral isto não é o caso, numa passagem pelo menos encontramos no Manifesto a noção de portador: “ O progresso da indústria, cujo portador (Träger) sem vontade (willenlos) e sem resistência ( Widerstandlos) é a burguesia (...)” (W 4, p. 4 74, texto que cito no artigo “ Acertos e D ificuldades do M anifesto com unista” , Revista do Instituto de E s tudos Avançados da USP, vol. 12, n° 34, setembro-dezembro de 1998). 8 “Necessita-se de um discernimento profundo para compreender que com as relações de vida dos homens (...) m udam também suas representações (...) sua consciência?” (W 4, p. 480 [F]). 8a O registro das pressuposições e meta-pressuposições é em princípio, com parado ao das noções postas, o da continuidade. M as essa continuidade não é absoluta; ela com porta “ negações” que, nesse primeiro modelo, são mais ou menos escam oteadas, o que “ dissolve” esse registro. 9 Podemos nos limitar aqui à situação no interior da sociedade capitalista. 10 H á porém um texto que poderia sugerir um desenvolvimento dialético: “ (...) a proprie dade pessoal não pode mais se interverter em propriedade burguesa” (W 4, p. 477). Afirma-se aí a interversão de um pressuposição em seu contrário. M as a presença da interversão não é ela m es ma probante. E preciso saber de que form a ela nega o sujeito. T odo o contexto do Manifesto nos leva a pensar antes num esvaziamento do sujeito pressuposto (da pressuposição) — reduzido a nada no plano objetivo e a pouco mais do que a “ flatus voeis” no plano subjetivo — do que numa “ ne g a ção ” dialética. A acrescentar — além do fato de a referência à interversão ser excepcional — que o texto precisa tratar-se de uma “ propriedade que pressupõe a não-propriedade da m aioria esm agadora da sociedade” (W 4, p. 477). O que significa que também aqui o esquema lógico es sencial é o da disjunção (ou se é ou não se é proprietário) e não o da “ n egação” dialética. 11 Fazendo abstração de outras diferenças. 12 O que o texto do Manifesto tem em vista aqui é, bem entendido, a interversão dos fins postos, que descrevi em outros lugares, sobretudo em M LP I, ensaio 1 (“ D ialética m arxista, hu m anism o, anti-hum anism o” ), interversão que é “ bloqueada” pela negação dialética. M as no Ma -
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nifesto esse dispositivo é apenas pressentido. E por isso não é a negação dialética que evita a interversão m as a negação vulgar. 13 Ou se se quiser: não intervém nenhuma instância “ trans-histórica” que possa servir como teoria ao proletariado que se auto-educa. 14 Ver Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie, Rohentwurf (1857-1858). Anhang (1850-1859), Berlim, Dietz Verlag, 1953 (abreviarei por G), p. 592. 15 E. Bernstein, Die Voraussetzung des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie, Stuttgart, J. H . W. Dietz, 1899, p. 5. 16 Ver W 4, p. 473: “ O s movimentos [que existiram] até aqui foram movimentos de mino rias ou no interesse de minorias. O movimento proletário é movimento autônomo da imensa maioria no interesse da imensa m aioria” . 17 Considerarei m ais adiante, em paralelo com a Ideologia alemã, alguns aspectos da idéia de progresso no Manifesto. 18 “ Q uando se considera filosoficamente esse desenvolvimento dos indivíduos nas condi ções de existência com um das ordens e das classes que se sucedem historicamente e as representa ções que com isto são im postas a eles, pode-se sem dúvida facilmente im aginar que nesses indiví duos se desenvolveu o gênero ou o homem, ou que eles desenvolveram o homem; uma idéia im a ginária (Einbildung) com a qual se dá um forte bofetão na história. Pode-se então conceber essas diversas ordens e classes com o especificações da expressão geral, com o sub-espécies do gênero, como fases do desenvolvimento do hom em ” (W 3, p. 75 [A]). 19 Entenda-se: recusa-se toda pretensão à universalidade — mesmo pressuposta ou negati va — que não seja mera generalidade, “ resum o” com fins propedêuticos. 20 C om o vimos, considerei como pressuposições as noções de liberdade, propriedade, riqueza e satisfação. N este ponto, não particularizo. 21 Ver a respeito W 3, p. 46. 22 N a Ideologia alemã, as idéias aparecem com o mercadorias: “ Os industriais filósofos, que viveram até aqui da exploração do espírito absoluto, se lançaram agora em novas combinações. (...) Isto não pode ocorrer sem concorrência. Esta foi conduzida no início de m odo bastante bur guês e sólido. M ais tarde, quando o m ercado alem ão ficou sobrecarregado, e apesar de todos os esforços foi impossível escoar a mercadoria no m ercado mundial, o negócio foi viciado à maneira alemã usual, através da produção em série e a produção aparente, a alteração da qualidade, a so fisticação da m atéria-prim a, a falsificação das etiquetas, as vendas aparentes, a em issão de letras de câm bio duvidosas, e um sistema de crédito despido de toda base real” (W 3, pp. 17-8). Sobre a idéia de produção espiritual, ver W alter Benjamin, “ Der Autor als Produzent” , in Gesammelte Schriften, II, 2, Frankfurt, Suhrkam p, 1977, p. 683. Sobre o comércio das mercadorias “ de que a alm a se nutre” , ver Platão, Protágoras, 313, c-d, e Sofista, 224, b-d; e sobre o tema, o artigo de F. W olf, “ D u métier de sophiste à l’homme m esure” , Manuscrito, Cam pinas, v. 5, n° 2, 1982. 23V e r W 3 , pp. 46-7. 24 Ver ibidem.
15 Ver W 3, p. 48. 26 Ver W 3, p. 13. 27 “ T odo esse absurdo (Unsinn) teórico, que busca refúgio na etimologia, seria impossível se a propriedade privada efetiva, que os comunistas querem suprim ir não se transform asse no con ceito abstrato “ a propriedade” ” (W 3, p. 211 [F]). N um outro texto, mas a propósito das noções de consciência de si e de substância, falar-se-á em “ nom es” e em abstrações “ sem sentido” (sinnlos) e “ sem conteúdo” (inhaltlos). Ver ibidem, p. 83. 28 Ver W 3, p. 23. Trata-se da “ ideologia alem ã” , um caso particular, mas a tese geral vai na mesm a direção.
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29 Esse texto foi riscado por M arx. 30 Ver, por exemplo, o uso da expressão “ naturwuchsiges Gemeinwesen” em W 3, p. 62. 31 O bservar a “ m á” definição do capital com o trabalho acum ulado. Sobre a subordinação da ciência pelo capital, e a dissolução de todas as relações naturais, ver ibidem , p. 60. 32 “ A oposição entre a cidade e o cam po só pode existir no interior da propriedade privada. É a expressão m ais crassa da subsunção do indivíduo à divisão do trabalho, a uma atividade de terminada que lhe é im posta, uma subsunção que faz de um deles um animal limitado da cidade, do outro um animal limitado do campo, e produz de novo todos os dias a oposição entre os inte resses de am bos” (W 3, p. 50 [F]). 33 “ A potência social, isto é, a força de produção multiplicada, que aparece através do es forço com binado (.Zusammenwirken) de diferentes indivíduos, não como a sua própria força uni da, mas como um poder estranho que nasce fora deles, o qual eles não sabem nem de onde [vem] nem para onde [vai], que eles, assim , não podem mais dominar, [e] que, pelo contrário, percorre agora uma série de fases e graus de desenvolvimento sucessivos, independente do querer e do agir (laufen ) dos homens, dirigindo, agora, mesmo este querer e agir” (W 3, p. 34). 34 Observe-se que distingo aqui uma subordinação material de uma subordinação espiri tual. N ão se trata da oposição entre subordinação formal e real, que se encontra em O Capital e em outros textos, e da qual me ocuparei mais adiante. E isto porque, primeiro, trata-se de uma determinação da divisão social do trabalho (e não da divisão interna, a da fábrica ou da unidade de produção), e em segundo lugar, porque por isso mesmo a distinção se faz no interior do m o mento material. — Note-se que os poderes espirituais se exercem também sobre a própria classe, ver W 3, pp. 46-7 (texto e notas sobre os “ conceitos dom inantes” ). 35 “ Depende exclusivamente da extensão do comércio que a força produtiva a que se che gou numa localidade, especialmente as invenções, sejam ou não perdidas para o desenvolvimento posterior. Enquanto não existe nenhum comércio que vá além da vizinhança imediata, cada in venção deve ser feita de m odo particular em cada localidade, e puros acidentes com o a irrupção de povos bárbaros, e mesmo guerras comuns bastam para que uma região com forças produtivas e necessidades desenvolvidas seja levada a começar [tudo] de novo. N o início da história, cada in venção teve de ser refeita diariamente e de m odo independente em cada localidade” (W 3, p. 54). Segue-se o exemplo dos fenícios, “ cujas invenções” , embora “ elaboradas num comércio relativa mente muito extenso” , “ em grande parte se perderam por muito tempo, pela expulsão” deles “ do comércio, a conquista de Alexandre e a decadência que se seguiu a isto ” ; e o exemplo da pintura em vidro na Idade M édia, cuja “permanência (D auer )” “ só foi assegu rad a” “ quando o comércio se tornou comércio mundial e teve por base a grande indústria” (ibidem).
36 “ T o das as libertações [que ocorreram] até aqui tiveram por base forças produtivas limi tadas, cuja produção insuficiente para toda a sociedade só tornaram possível um desenvolvimen to, se uns satisfaziam as suas necessidades à custa dos outros, e através disto, uns — a minoria — tinham o m onopólio do desenvolvimento, enquanto os outros — a m aioria — através da luta con tínua pela satisfação das necessidades m ais prementes eram provisoriam ente (isto é, até a criação de novas forças produtivas revolucionárias) excluídos de todos desenvolvimento. Assim, até aqui a sociedade se desenvolveu sempre no interior de uma oposição [:] entre os antigos a oposição entre [homens] livres e escravos, na Idade M édia a oposição entre nobres e servos, no período moderno a oposição entre burguesia e proletariado. D aí se explica o m odo anorm al ‘desum ano’ pelo qual a classe dominante satisfaz as suas necessidades, e por outro lado, a limitação dentro da qual se de senvolve o intercâmbio ( Verkehr) e com ele toda a classe dominante, e de tal m odo que a limita ção do desenvolvimento não consiste somente na exclusão de uma classe, m as tam bém no caráter limitado (Borniertheit) da classe dom inante” (W 3, p. 417). A idéia de exclusão do desenvolvi mento não parece se opor à de que a liberdade, mesmo a dos dom inados seja objeto de um desen volvimento progressivo e acum ulativo. A parte final do texto aponta para um desenvolvimento contraditório que é característico sobretudo da época capitalista.
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37 “ A diferença entre o indivíduo pessoal e o indivíduo acidental não é nenhuma diferença conceituai, mas um fato histórico. Essa diferença tem para as diferentes épocas um sentido diver so, por exem plo, a ordem como algo acidental ao indivíduo no século XVIII, também, m ais ou menos, a família. N ão é uma diferença que devemos fazer para cada época, m as que cada época faz ela própria, entre os elementos que ela encontra e, na realidade, não segundo o conceito, mas obrigada pelas condições materiais de vida. O que aparece com o acidental para a época posterior em oposição à anterior, e assim também [aparece] entre os elementos transmitidos pela época an terior, é uma form a de intercâmbio ( Verkabrsform) que correspondia a um desenvolvimento de terminado das forças produtivas. A relação entre as forças produtivas e as form as de intercâmbio é a relação entre as form as de intercâmbio e a atividade (Betätigung ) dos indivíduos (...) As condi ções sob as quais os indivíduos se relacionam uns com os outros enquanto a contradição ainda não ocorreu são condições que pertencem à sua individualidade, nada de exterior a elas, condi ções sob as quais, somente, esses indivíduos determinados que existem sob condições determina das podem produzir, são assim condições da sua auto-manifestação (Selbstbetätigung) e são pro duzidas por esta auto-m anifestação” (W 3, pp. 71-2 [F]). O texto continua dizendo que as condi ções “ aparecem primeiro como condições da auto-manifestação, e m ais tarde com o cadeias para e la” e que com isto se constitui “ uma série conexa de form as de intercâm bio” na qual “ em lugar da form a de intercâmbio anterior que se tornou cadeia é posta uma nova form a que corresponde às forças produtivas m ais desenvolvidas e (...) à form a m ais avançada (fortgeschritten) de autom anifestação dos indivíduos (...)” (W 3, p. 73 [F]). ° 8 Um problem a é o de saber se esse movimento de sentido cíclico vale também para a his tória da satisfação ou da auto-m anifestação no que se refere às classes dominadas. A resposta não é simples. Por um lado, afirma-se que “ nos períodos anteriores [à grande indústria, RF], auto-manifestação e produção da vida material estavam separadas, pelo fato de que cabiam a pessoas di ferentes” (W 3, p. 67). Entretanto, observa-se que nesses períodos subsiste “ uma aparência de autom anifestação” (ibidem), e mesmo que “ a produção da vida m aterial devido à limitação dos p ró prios indivíduos vale ainda [só] como uma forma subordinada de auto-manifestação (...)” (ibidem [F]). O seguinte texto parece levar ao extremo a posição historicista: “ O assim cham ado ‘inumano’ é tanto um produto das condições atuais como o ‘hum ano’; ele é o seu lado negativo, a rebelião que não repousa sobre nenhuma força produtiva revolucionária contra as relações dominantes que repousam sobre as forças produtivas existentes e o mundo de satisfação das necessidades que lhe corresponde. A expressão positiva ‘humano’ corresponde às relações dominantes conforme um certo nível de produção, e ao m odo determinado por ele de satisfazer as necessidades, assim com o a expressão ‘inum ano’ corresponde às tentativas produzidas cada dia, de novo, pelo próprio nível de produção, de negar essas relações dominantes e o m odo de satisfação dominante nesse m odo de produção existente” (W 3, pp. 417-8 [F]). 39 A frase parece significar: o capitalista etc. é uma “p e sso a” , m as não no sentido em que, por exemplo, um nobre o é. A diferença entre a pessoa do capitalista e as suas condições de capi talista aparece para nós, se o com pararm os a um nobre, por exemplo; para ele, capitalista, ela só aparece se ele for à bancarrota. 40 Tom o a expressão “ oculto” como equivalente de “ inexistente” . De fato, trata-se de uma possibilidade abstrata. Por outro lado, o que nos interessa aqui é a relação vivida do indivíduo com as suas condições de existência. 41 Ver também W 3, pp. 423-4, onde se trata tanto da questão da individualidade com o da dom inação das condições. A diferença entre pré-capitalism o e capitalism o aparece aí como uma diferença de grau. 42 Retom o aqui a teoria do progresso do Manifesto. 43 Esse texto não afirm a propriamente uma regressão na liberdade em relação às épocas an teriores, mas simplesmente que há despotism o na época burguesa. 44 Ver Manifesto, W 4, p. 473.
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45 Sobre a consciência no Manifesto ver W 4 , pp. 492-3: “ [o Partido Comunista] não deixa em nenhum momento de se esforçar para que surja entre os trabalhadores uma consciência a mais clara possível da oposição hostil entre burguesia e proletariado (...)” · 46 Cf. Michael Lowy, La Théorie de la Révoution chez le jeune Marx, Paris, M aspero, 1970, p. 133. — É M a x Stirner que falara no “ cuidado” (Sorge, também inquietude) enquanto traba lho. Ao contrário do que ocorre nos Majtuscritos de 1844, a noção de “ p a ix ã o ” não é objeto de nenhuma elaboração particular. 47 Ver sobre esse ponto W 3, p. 36. 48 Ver H annah Arendt, D a Violência, Editora da Universidade de Brasília, 1985, apêndice I (nota 16 à p. 9), p. 51.
49 Cf. W 3, p. 69: “ Que as pessoas (Leute) estão interessadas em manter as atuais condi ções de produção” (nota m arginal de M arx). 50 “Além disso, a apropriação está condicionada pelo m odo pelo qual ela deve ser efetua da. Ela só pode ser efetuada através de uma associação ( Vereinigung) que, por sua vez, pelo cará ter do próprio proletariado, só pode ser uma associação universal, e através de uma revolução, na qual por um lado a força do m odo de produção e de intercâmbio e a configuração social que hou ve até aqui é derrubada, e por outro lado se desenvolve o caráter universal e a energia do proleta riado necessária à execução da apropriação, além do que, [nela] o proletariado se desfaz de tudo o que lhe resta ainda da situação social que teve até aqui” (W 3, p. 68 [F]). 51 Poder-se-ia ter introduzido também como particularidade da Ideologia alemã não p ro priamente a idéia da universalização das relações que se cria com a produção burguesa (porque isto se encontra também no Manifesto ), m as a de que a instrumentos que se tom aram um a “ tota lidade” deve corresponder uma apropriação universal (ver a respeito, W 3, pp. 67-8). N o s limites da Ideologia alemã, isto só pode significar que os novos instrumentos devem ser apropriados co letivamente porque materialmente só podem ser m anejados por uma totalidade de indivíduos. M as a extrapolação que se faz disso é problem ática. H á também a circunstância, negativa, de que os indivíduos não necessitam m ais uma form ação especializada para se ocupar deste ou daquele ins trumento. É só com os Gnmdrisse que a idéia da universalidade do objeto tom ará um conteúdo capaz de fundar — de um m odo que, embora ainda problem ático, é a seu m odo rigoroso — a idéia de uma passagem radicalmente diferente das outras passagens históricas. 52 “ (...) Com a divisão do trabalho (...) está dada a possibilidade, mesmo a realidade efetiva de que a atividade m aterial e espiritual — o gozo e o trabalho, a produção e o consum o, caibam a indivíduos diferentes, e a possibilidade de que eles não entrem em contradição está somente em que a divisão do trabalho seja de novo abolida ” (W 3, p. 32 [F]). “ A transform ação das potências pessoais (relações) em coisas através da divisão do trabalho (...) só pode ser abolida, se os indiví duos submeterem a si próprios de novo essas potências objetivas e suprimirem a divisão do traba lho ” (W 3, p. 74 [F]). 53 Ver a respeito sobretudo M LP I, ensaio 3, “ A bstração real e contradição; sobre o trab a lho abstrato e o valor” . 54 A própria análise do capitalism o e de sua história, na Ideologia alemã, está m arcada pelo historicismo. 55 Em lugar de um “ fim ” negativo, a Ideologia alemã tende precisamente a negar todo fim. N ão é a recusa em fundamentar o comunismo no “ princípio do am or” ou no princípio do “ egoís m o ” (ver W 3, p. 425), o que caracteriza a Ideologia alemã, mas o fato de não pôr nenhum fim “ negado ” no lugar deixado por essa recusa. N um a carta a M arx de 19/11/1844, onde se trata de Stirner, Engels esboça uma fundam entação do comunismo num egoísmo que se resolve em amor. O egoísmo de Stirner iria tão longe na sua “ tolice” que se revolveria em comunismo. De resto “ o coração humano, já desde o princípio é imediatamente no seu egoísmo (Egoismus ) não egoísta (ungennützig) devotado” (W 27, Briefe, p. 11). “ (...) se o indivíduo vivo é a base verdadeira, o verdadeiro ponto de partida para o nosso “ hom em ” [isto é, o “ homem” tal como o pensam M arx
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e Engels em 1844, RF] é assim evidentemente o egoísmo — não naturalmente o egoísmo do en tendimento, de Stirner, m as o egoísm o do coração — o ponto de partida do n osso am or da hum a nidade, senão este flutua no ar ” (W 27, id., p. 12 [F]). O que há de interessante nesses textos é que M arx e Engels se debatem com o problem a do fundamento (am or, egoísm o..., o que significa: hu manism o, utilitarism o...), e acabam optando por uma negação abstrata daquele, em proveito da ação histórica, antes de chegar a uma resposta propriamente dialética (discutível mas rigorosa) que introduz a “ negação” .
56 J á havia indicado essa interversão em M LP II, ensaio 1, “ Para uma crítica da apresenta ção m arxista da história” , apêndice 2. 57 O início da prim eira tese sobre Feuerbach diz: “ O defeito principal (Hauptmangel) de todo m aterialism o [que houve] até aqui (inclusive o de Feuerbach) é que o objeto, a realidade efe tiva, a sensibilidade só foram apreendidos sob a form a do objeto e da intuição (Anschauung); mas não com o atividade humana sensível, praxis, não subjetivamente (nicht subjektiv). Por isso, o lado ativo em oposição ao materialismo foi desenvolvido abstratamente pelo idealimo (...)” , Marx-Engels, M EG A , Erste Abteilung, Band 5, p. 533, grifado por M arx). N o volume 35, consagrado a M arx, da coleção Os Pensadores (São Paulo, Abril, 1974), Jo sé Arthur Giannotti dá a seguinte tradução para essa prim eira tese sobre (ad) Feuerbach (na tra dução de J. A. Giannotti o título é “ Teses contra [sic, RF] Feuerbach” : “ A falha capital de todo m aterialismo até agora (incluso o de Feuerbach) é captar o objeto, a efetividade, a sensibilidade apenas sob a form a de objeto ou de intuição, e não com o atividade humana sensível, praxis-, só de um ponto de vista subjetivo. D aí (...) etc” (M arx, in Os Pensadores, vol. 35, p. 57, o último grifo é meu). Com o se vê o “ nicht subjektiv” do texto, o qual não contém nenhuma am bigüidade (ele é = “ não subjetivo“ ) se transform ou em “ só subjetivo” . Desse m odo, a “ trad ução” obriga M arx a dizer o contrário do que ele escreveu, isto é, obriga-o a escrever o que o tradutor quer que ele diga. Se o texto não concorda com o que pensa o tradutor, tanto pior para o texto... Reconheçamos entretanto a essa “ trad ução” o mérito da coerência: ela é a única que corresponde ao que o p ró prio Jo sé Arthur Giannotti escreveu sobre a Ideologia alemã, nas suas Origens da dialética do tra balho. N a realidade, é preciso ser capaz de reconstituir em toda a sua com plexidade tanto a p as sagem do jovem ao velho M arx com o a pluralidade das funções que assum em os agentes no dis curso de M arx, p ara não “ tresler” os textos em que o M arx anti-feuerbachiano e anti-hegeliano dos textos de transição reclam a contra a sub-repção pelo idealismo de uma certa subjetividade. — Além de tê-la apresentado em minha tese de livre docência (1989) — Faculdade de Filosofia, Le tras e Ciências H um anas da USP — , expus essa crítica da “ trad ução” por Giannotti da primeira tese sobre Feuerbach na conferência sobre a Ideologia alemã que fiz na mesma universidade em 1997, no quadro do seminário comemorativo dos cento e cinqüenta anos da Ideologia alemã (con ferência que foi gravada em vídeo e é acessível ao público). Giannotti, que até o fim dos anos 1990 não se pronunciara sobre esse ponto, publicou em apêndice ao seu Marx, vida e obra (L& P M , Porto Alegre, 2000) uma tradução das Teses sobre Feuerbach (e não m ais “ contra Feuerbach” , como escrevera anteriormente). Curiosamente, a tradução da prim eira tese não diz m ais “ só de um ponto de vista subjetivo” , m as, com o eu indicara, “ não de um ponto de vista subjetivo” . Lêse em nota ao pé da página: “ tradução revista de Jo sé Arthur G iannotti” . Entre a tradução origi nal e a tradução revista — deve-se convir — há o que se cham a, em lógica, de “ contradição” (ou se trataria de “ contrariedade” ?), o que em si mesmo não seria grave, se o autor pusesse todas as cartas na m esa, como exigem as regras do trabalho científico sério, rigoroso e responsável. De resto, ao longo dos dois livros sobre M arx que ele publicou no mesmo ano, com o também nos seus ar tigos para os jornais, é fácil identificar o trabalho de correção silenciosa, ou de “ melhoram ento” , de suas próprias interpretações anteriores — sobre a Ideologia alemã, mas também sobre outros pontos, trabalho naturalmente orientado por leituras “ discretas” de textos alheios (como, nou tros casos, por informações “ reservadas” sobre resultados alheios), jam ais referidos no corpo dos seus livros. M as é no volume que ele publicou em 1983 que se tem — se não o clím ax da sua R e flexão — o clím ax desse seu estilo de “ T rab alh o” .
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58 Para as noções de atividade, auto-atividade (Selbstätigkeit), e também vida, ver por exemplo a Segunda Introdução à Doutrina da Ciência (Zweite Einleitung in die Wissenschaftslehre für Leser die schon ein philosophisches Systema habem, 1797, in Sämtliche Werke, editadas por J. H . Fichte, Erste Abt. Erster Band, Berlim, 1845, sobretudo § 5, p. 463, tradução francesa por A. Philonenko, in Oeuvres Choisies de Philosohie Premiere, Paris, Vrin, pp. 272 ss).
59 “ (...) N a realidade nenhum ser é deduzido no sentido em que se costum a utilizar o termo: nenhum ser em si. O que o filósofo admite diante de si é um agente (Handlendes) segundo leis: e o que ele estabelece [é] uma série de atos necessários deste agente” (Fichte, Sämtliche Werke, op. cit., ibidem, Zweite Einleitung...,§ 7, p. 4 98, trad. francesa de Philonenko, op. cit., p. 298 [A]). “ (...) o conceito de ser não pode ser considerado um conceito primeiro e originário, m as somente como um conceito derivado por oposição à atividade (Tätigkeit), isto é somente com o um concei to negativo. O único positivo para o idealista é a liberdade; ser é para ele pura negação da liberda de. Só sob essa condição o idealism o tem uma base sólida e permanece de acordo consigo mesmo. Para o dogmatismo, pelo contrário, que acreditava poder repousar tranqüilamente sobre o ser, como algo que não podia m ais ser pesquisado e fundado, essa afirm ação é loucura e escândalo. O som brio refúgio que ele encontrava sempre nos tormentos que de tempos em tempos o afligiam , esse ser originário qualquer, que poderia ser mesmo uma matéria totalmente bruta e informe é total mente arrancado, e ele permanece lá nu e só ” (Fichte, Sämtliche Werke, op. cit., ibidem, § 7, p. 4 99; trad. francesa de Philonneko, op. cit., p. 298 [A]). A exorcização de toda coisa em si e de toda m atéria bruta, que se encontra nesse texto, poderia sem com parada mutatis mutandis com o que se lê na Ideologia alemã sobre a m atéria bruta: “ A tal ponto essa atividade, essa constante criação e esse constante trabalho sensível é a base de todo o mundo sensível tal com o existe hoje, que se ele fosse interrompido apenas por um ano, Feuerbach encontraria uma enorme m odifica ção não só no mundo natural, m as em todo o mundo humano, e sua própria faculdade intuitiva, mesmo a sua própria existência, logo se perderia. É verdade que se mantém nisto a prioridade da natureza exterior, e é verdade que tudo isto não tem nenhuma aplicação para os homens produzi dos originariamente através da generatio equivoca-, essa diferença só tem sentido quando se con sidera o homem com o diferente da natureza. De resto, esta natureza, na qual vive Feuerbach, não é a natureza que hoje existe, com exceção de alguma coisa que nasça ( Ursprung) numa ilha de coral isolada na A ustrália, ela não existe m ais em nenhum lugar, e assim também para Feuerbach não existe” (W 3, p. 44). 60 “ Essa intuição de si mesmo, suposta pelo filósofo na efetuação do ato pelo qual para ele o eu nasce, eu chamo de intuição intelectual. Ela é a consciência imediata de que efetuo um ato (handle) e que ato (was ich handle): ela é aquilo pelo qual eu sei algo, porque o faço (tue)” (Fichte, Sämtliche Werke, op. cit., ibidem, Zweite Eileitung..., § 5, p. 4 72, trad. francesa de Philonenko, op. cit., p. 272). “ A intuição intelectual no sentido kantiano é um monstro que desaparece nas nossas m ãos se se quiser pensá-la, e que nem mesmo é digna de algum nome. A intuição intelectual de que fala a Doutrina da Ciência, não se refere (steht... auf) a um ser mas a um ato (Handeln) (...)” (Fichte, Sämtliche Werke, op. cit., ibidem, Zweite Einleitung, op. cit., § 6, p. 4 72, trad. fran cesa de Philonenko, op. cit., pp. 278-9). M as “ a intuição intelectual está constantemente ligada a uma intuição sensível. N ão posso me encontrar atuando (handelnd), sem encontrar um objeto sobre o qual atuo, numa intuição sensível que é concebida (...)” (Fichte, Sämtliche Werke, op. cit., ibidem, Zweite Einleitung, op. cit., § 5, p. 464, trad. francesa de Philonenko, op. cit., p. 272). Cf. a primeira tese sobre Feuerbach: “ (...) o lado ativo, em oposição ao m aterialismo foi desenvolvido abstrata mente pelo idealism o — que naturalmente não conhece a atividade sensível efetivamente real” . 61 Ver G, pp. 592, 599-600 e 505. 62 Sobre tudo isto, ver G, pp. 592, 594, 4 09, 376, 385, 390, 392, 505, 387, 599. 63 Ver G, p. 82.
64 Ver ibidem. 65 Tentarei provar esse ponto. Já no seguinte texto aparecem as diferenças em relação à Ideo logia alemã (no sentido de que nos Grundrisse não se recusa um conteúdo à idéia, só se denuncia
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a confusão entre idéia e ideado): “ Essas relações (Verhältnisse) de dependência coisificada (sachliche) em oposição às relações de dependência pessoal aparecem tam bém (a relação de dependência coisificada nada m ais é do que as relações (Beziehungen) sociais que enfrentam de m odo autôno mo os indivíduos aparentemente independentes, isto é, suas relações (Beziehungen) de produção recíprocas autonom izadas diante deles mesmo) [no fato de] que os indivíduos agora são dom ina dos por abstrações, enquanto antes dependiam uns dos outros. Porém a abstração ou idéia não é senão a expressão teórica daquelas relações (Verhältnisse) m ateriais que os dominam (die Herr über sie sind)” . E o texto (que é de leitura difícil porque se trata de um rascunho) continua nos termos seguintes: “ Naturalm ente, relações (Verhältnisse) só podem ser expressas em idéias e as sim os filósofos tom aram com o característica da época m oderna [o fato de] os indivíduos serem dom inados pelas idéias, e identificaram a produção da livre individualidade com a derrubada des sa dom inação das idéias. O erro era do ponto de vista ideológico tanto mais fácil de cometer, por que aquela dom inação das relações (Verhältnisse) (aquela dependência coisificada que de resto se interverte por sua vez em relações (Verhältnisse) de dependência pessoal determinada, só que des pida de toda ilusão) na consciência dos indivíduos aparece com o dom inação das idéias, e a crença na eternidade dessas idéias, isto é, daquelas relações de dependência coisal é, o f course, reforçada, alim entada, e inculcada por todos os m odos pelas classes dom inantes” (G, 81, 82 [F]). As idéias são assim a expressão teórica das relações coisificadas. E ssas relações só podem, de resto, ser ex pressas por idéias. A ilusão não está propriam ente no conteúdo dessas idéias, mas na confusão entre elas e o objeto que exprimem. 66 Essa diferença aparece na própria form a dialética do discurso dos Grundrisse, mas tam bém numa referência explícita ao interesse dos problem as lógicos: “ A dupla posição, a de se rela cionar consigo mesmo como estranho se torna nesse caso diabolicamente real (real). Por isso, en quanto o universal é, por um lado, só diferença específica (differentia specifica) pensada, ele é igual mente uma form a real (reelle) particular junto da form a do particular e do individual. (Voltare mos m ais tarde a esse ponto que, embora de caráter mais lógico do que econômico [economiste], terá entretanto um grande papel no progresso da nossa pesquisa.) (Texto entre parênteses em francês no original, RF). Assim, também em álgebra. Por exemplo, a, b, c são números em geral (überhaupt)·, em generalidade (im allgemeinen); mas eles são números inteiros diante de a/b, c/b, c/a etc., que entretanto os pressupõe como elementos gerais” (G, 354 [F]). Seria difícil encontrar na Ideologia altmã um texto com o este, no qual não só se reconhece o interesse geral da lógica (o que não é incompatível com o projeto da Ideologia alemã), m as o seu interesse intrínseco e substantivo, o que já é outra coisa. 67 Ver G, 376, 388, 384, 385, 378. 68 A riqueza “ enquanto valor” é a riqueza na sua dimensão subjetiva, na sua relação com o trabalho. Ao contrário do que se poderia esperar, o texto diz que na riqueza pré-burguesa a fina lidade não é a dom inação. É no capitalism o que a dom inação (pela dom inação) seria preponde rante. E com o se exploração (como absorção da riqueza abstrata) e opressão (também “ ab strata” porque visando a riqueza abstrata ou a própria opressão) andassem juntas, em oposição à finali dade “ concreta” , o valor de uso e a satisfação. Tam bém o papel que se dá à coisa na riqueza préburguesa pode parecer surpreendente. M as se trata da coisa m aterial, a qual ganha sem dúvida uma form a, mas não uma forma sujeito. 69 Diz-se que a propriedade é instrumento de ação porque aqui se visa o escravo, m as a idéia de separação parece valer para toda propriedade. Ver sobre tudo isto Aristóteles, Política, I, 4. Ver tam bém Ética a Eudemo, VII, 9, 1.241 b, 16-24: “ M a s desde que há a mesm a relação entre alma e corpo, artesão e instrumento e senhor e escravo, entre cada um desses pares não há ‘parce ria’, porque eles não são dois, mas em cada qual o primeiro termo é um, e o segundo uma parte desse um m as não um em si mesmo. N em o bem deve ser dividido entre os dois, m as o [bem] dos dois pertence a um em vista do qual o par existe. Porque o corpo é o instrumento congênito da alma, enquanto o escravo é com o que a parte e o instrumento destacável do senhor, sendo o ins trumento uma espécie de escravo inanim ado” .
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70 A comunidade é de ordem subjetiva, m as não é “ orgânica” , isto é, não é corpo animal. Sobre esse último ponto, ver um texto da Política (II, 2, 1261, 17-19) que, segundo Tricot (ver Arist. La Politique, Paris, Vrin, 1977, p. 85, n. 3), é dirigido contra Platão (em particular contra República, V, 4 62, c, onde se propõe com o m odelo do Estado a unidade do individuo): “ Entre tanto, é evidente que se o processo de unificação for levado a cabo com excesso de rigor, não h a verá m ais Estado: pois a cidade é por natureza um a pluralidade, e se a sua unificação for levada dem asiado longe, de cidade ele se transform ará em família, e de família em indivíduo (...)” . 71 Ver G , 392: “ A propriedade significa assim pertencer a um a etnia (Stamm) (comunidade') (ter nela uma existência subjetiva-objetiva) (...)” (A). 72 “ A crematística natural remete à economia dom éstica, enquanto o comércio é a arte de criar riquezas não de qualquer m odo, m as somente por meio da troca de bens. E é essa última forma, parece, que se relaciona com o dinheiro, pois o dinheiro é nesse caso elemento e limite da troca. Em conseqüência, essa form a de riqueza que provém da crematística assim definida é verdadeira mente sem limites (...) para esta form a de crematística não há limite para o seu fim, e seu fim é a riqueza e a aquisição de bens em sentido mercantil. Pelo contrário, a arte de adquirir riquezas para a adm inistração da casa, totalmente diferente da crematística propriamente dita, tem um limite, e por outro lado a experiência de cada dia nos m ostra que é o contrário que ocorre: pois todos os traficantes aumentam indefinidamente a sua reserva m onetária (...) o uso não ocorre do mesmo m odo nos dois casos (...) a form a doméstica da crematística tem em vista um fim distinto da acum u lação de dinheiro, enquanto a segunda form a tem por fim a própria acumulação. Em conseqüên cia, alguns pensam que esta acum ulação é também o papel da administração doméstica, e eles vivem continuamente na idéia de que seu dever é conservar intacta a sua reserva de m oeda ou m esmo de aumentá-la indefinidamente. A razão dessa atividade é que eles se aplicam unicamente a viver, e bem viver, e como o apetite de viver é ilim itado, eles desejam meios de viver tam bém ilim itados” (Arist., Pol., I, 9, 1.257 b, 20-42 [F]). A riqueza com o projeto infinito é criticada mesmo quando o objetivo não é a própria riqueza mas o gozo (ver Pol. I, 9, 1.258 a 2-14 [F]). O que se critica, assim, é propriamente a ausência de limite, quer na própria progressão da acum ulação pela acum u lação, quer na acum ulação com vistas a um “ excesso” de “ bem viver” . 73 Em “ La Théorie aristotélicienne de 1’esclavage” (in Ecrits, I, Etudes de Philosophie ancienne, Paris, Vrin, 1984), V. Godschmidt defende a tese de que todo o esforço de Aristóteles “ con siste em ver no escravo um hom em ” (p. 64), e que a pbysis à qual ele remete a escravidão não se confunde com a pbysis da tradição (que se opõe a nomos), mas tem um sentido “ antes descritivo” (...) (p. 75). M as mesmo nessa hipótese, o homem não está pressuposto no escravo antigo no mesmo sentido em que ele o está no trabalhador moderno sob o capitalism o. 74 Tricot cita aqui Santo Tom ás: “ Verae divitiae sunt ex hujusmodi rebus quibus subvenitur necessitati naturae” (As verdadeiras riquezas são [constituídas por] aquelas coisas por meio das quais se provê à necessidade da natureza) (in Tricot, Aristote, Politique, op. cit., p. 54, n. 3), o texto é do In libros Politicorum Aristotelis expositio, ed. R. M . Spiazzi, Turin, 1951, 108, p. 33. 75 Ética a Nicômaco, X , 7, 1.177 a 10.
76 Pierre Aubenque, La prudence chez Aristote, Paris, PUF, p. 160 (A). Aubenque adverte contra a leitura reflexiva do conhece-te a ti mesmo. A acrescentar que, depois de fazer o elogio da vida contemplativa, Aristóteles afirm a que ela “ será elevada demais para a condição hum a na: porque não é enquanto homem que se viverá desse m odo, mas enquanto algum elemento di vino estiver presente em n ó s” (Aristóteles, Ética a Nicômaco, X , 7, 1.177 b, 26-28). A noção de limite parece estar presente no lugar que tem no homem a ciência, na noção de fronesis, e na idéia de sofrosine. 77 Ver sobretudo o Filebo : “ O que Você pretende, que os prazeres não são ora verdadeiros, ora falso s?” (Filebo, 36 e). “ H á pois nas alm as dos homens, segundo os nossos raciocínios atuais, falsos prazeres que só imitam os verdadeiros caricaturando-os, e igualmente falsas dores” (id., 40 c [F]). São os prazeres m isturados com as dores “ que nos conduzem de um extremo ao outro” (Filebo, 46 e). A eles se opõe o prazer lim itado m as puro: “ (...) qualquer prazer mesmo pequeno e
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raro, desde que ele seja puro de toda dor, será m ais agradável, assim verdadeiro, m ais belo que um outro m aior ou m ais freqüente” (Filebo , 53 b c [F]). Sobre o prazer com o “ mau infinito” : “ (...) o prazer é do número dos infinitos” (id ., 31 a). “ (...) o prazer é por si mesmo ilim itado e entra num gênero que não tem e nunca terá em si nem começo nem fim” (id., 31 a [F]). 78 Ver a respeito, M . Guéroult, Descartes selon l’ordre des raisons, Paris, Aubier, 1953, II, p. 229. O texto remete à carta a Elisabeth de 1/9/1645. 79 Ver Guéroult, op. cit., p. 229 (F): “ Se nós devemos nos separar dos prazeres que vêm do corpo, para melhor nos consagrar aos prazeres que vêm da alm a, é que esses últimos estão sempre em nosso poder, e não são como os prim eiros fugidios, decepcionantes e de pequena grandeza” . 80 P. Aubenque, La Prudence chez Aristote, op. cit·., p. 166, 167. 81 Trata-se de um princípio de sociabilidade comunitária que como veremos é de natureza despótica, porque subm etida a uma autoridade “ heterônom a” . 82 Esse todo é mecânico porque ele próprio não é um organismo; mas é um todo animado, porque os seus membros o são (e eles são verdadeiros m embros do todo). “ O trabalhador total com binado (...) constitui o mecanismo vivo da manufatura (...)” (W 23, K I, p. 359 [F]) (Cf. id., p. 365). 83 Cf. W
23, K I, p. 366.
84 Cf. p. 359: “ O trabalhador parcial e seu instrumento” (F). Perguntado com o mantinha a aplicação ao trabalho dos jovens operários, um manager de uma m anufatura de vidro respondeu: “ (...) se começam a trabalhar, devem continuar também; são como partes de uma máquina” (W 23, K I, p. 370, n. 4 7 [F]). M arx cita também um texto de D ougald Stewart, em que o trabalhador m anufatureiro é cham ado de “ autom atism o (...) que é utilizado para trabalhos parciais” (W 23, K l , p. 381, n. 63). 85 Ver a respeito, sobretudo o capítulo sobre a cooperação, W 23, K I, pp. 351-2. 86 Ver M LP I e II, passim. 87 “ Ela [a divisão m anufatureira do trabalho] não só desenvolve a força produtiva social do trabalho para o capitalista em lugar de desenvolvê-la para o trabalhador, mas [o faz] através do atrofiamento (Verkrüpplung) do trabalhador individual” (W 23, D as Kapital [abreviarei por K] I ,p . 386 [F]). 88 Retom arei o problem a a propósito da grande indústria. 89 “ Durante o período m anufatureiro propriamente dito, isto é, o período em que a m anu fatura é a forma dominante do m odo de produção capitalista, a plena realização da própria ten dência deste se choca com múltiplos obstáculos. Ainda que, com o vimos, ao lado da estruturação hierárquica do trabalho, ela crie uma divisão simples entre trabalhadores especializados e não es pecializados, o número desses últimos permanece muito lim itado pela influência preponderante dos primeiros. Ainda que ela adapte as operações particulares ao grau diverso de m aturidade, for ça e desenvolvimento dos seus órgãos vivos de trabalho e por isso pressione na direção da explo ração produtiva de mulheres e crianças, essa tendência fracassa em grandes linhas diante dos h á bitos e da resistência dos trabalhadores homens. Ainda que a dissem inação da atividade artesanal diminua os custos de form ação e portanto o valor da força de trabalho, continua [sendo] necessá rio para o trabalho mais difícil de detalhe (schwierigere Detailarbeit) um longo tempo de aprendi zagem, e mesmo lá onde ele é supérfluo, será mantido zelosamente pelos trabalhadores” (WS 23, K I, p. 389 [F]). Resta assim algum a satisfação e algum a liberdade ao trabalhador da m anufatura. “ Com o a habilidade artesanal permanece [sendo] a base da m anufatura e o mecanismo global que funciona nele não tem nenhum esqueleto objetivo independente dos próprios trabalhadores, o capital luta constantemente contra a insubordinação dos trabalh adores” (W 23, K I, p. 389). “ A m anu fatura não podia nem se apropriar (ergreifferí) da produção social em toda a sua extensão, nem revolucioná-la em profundidade” (W 23, K I, p. 390). Só com a m áquina é que “ a configuração autônom a e alienada que, diante do trabalhador, o m odo de produção capitalista dá em geral às condições de trabalho e ao produto do trabalho, se desenvolve (...) até uma plena oposição (voll-
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ständige Gegensatz)” (W 23, K I, p. 455 [F]). Antes da grande indústria, a oposição existe, mas não chega à sua plenitude. Tem os aqui a diferença hegeliana entre a contrariedade e a contradição. 90 N ota de agosto de 2000: trato do assunto no ensaio II desse volume, publicado em fran cês em 1996, cuja redação é posterior a este primeiro ensaio. 91 “ Com o forma especificamente capitalista do processo social de produção — e sobre a base que encontrou só poderia se desenvolver na form a capitalista — [a divisão m anufatureira do trabalho] é apenas um m étodo particular de obter m ais-valia relativa (...) etc.” (W 23, K I , p. 386). 92 N ota de agosto de 2000: Em se tratando de indivíduos e não de objetos, “ p ortador” é melhor do que “ suporte” com o tradução para “ T räger” . O primeiro termo não altera a função de inércia que a palavra alemã introduz, e tem a vantagem de evitar a ressonância de pura passivida de “ morta” que o segundo termo induz. 93 Ver sobre esse ponto W 23, K I, p. 445. 94 “ A habilidade do trabalhador mecânico individual, que se tornou vazia (entleerte), desa parece com o coisa acessória insignificante diante da ciência, das forças naturais m onstruosas e do trabalho social de m assa que se corporifican! no sistema m ecânico, e que com ele constituem a potência do ‘mestre’ (Meister [master])” (W 23, K I, p. 446). 95 “ O fato de que no desenvolvimento das forças produtivas do trabalho as condições obje tivas do trabalho, o trabalho objetivado deve crescer em relação ao trabalho vivo — (...) que a riqueza social se exprim a cada vez m ais nas condições de trabalho criadas pelo próprio trabalho — aparece do ponto de vista do capital da seguinte maneira, não que um momento da atividade social [,] o trabalho objetivado [,] se torne um corpo sempre m ais poderoso do outro momento, o trabalho vivo, subjetivo, mas que — e isto é importante para o trabalho assalariado — as condi ções objetivas do trabalho ganham uma autonom ia sempre mais colossal, que se apresenta atra vés da sua própria extensão, diante do trabalho vivo, e a riqueza social afronta em enormes pro porções o trabalho enquanto força estranha e dom inante” (G, pp. 715-6 [F]). E ainda: “ Acentuarse-á não o ser-objetivado (Vergegenständlichtsein), m as o ser-alienado (Entfremdet), o ser e x teriorizado (Entäussert-), exteriorado (Veräussernsein), o fato de que a força objetiva m onstruosa que o trabalho social contrapôs a si próprio como um dos seus momentos pertence às condições de produção personificadas, isto é, ao capital [dem-Kapital-Zugehören], e não ao trabalhador [das Nicht-dem Arbeiter]. N a m edida em que do ponto de vista do capital e do trabalho assalariado a produção desse corpo objetivo da atividade ocorre em oposição à capacidade im ediata do traba lho — esse processo de objetivação aparece de fato como processo de exteriorização (Entäusserung) do ponto de vista do trabalho, ou de apropriação do trabalho alheio do ponto de vista do capital — essa entorse (Verdrehung) e [essa] inversão (Verkehrung) são efetivas não simplesmente visa das com o se só existissem na representação do trabalhador e do capitalista (...) (...) Os econom is tas burgueses estão tão encerrados nas representações de um grau de desenvolvimento histórico determinado, que a necessidade da objetivação (Vergegenstándlichung) das potências sociais do trabalho aparece para eles [como] inseparável da necessidade da alienação (Entfremdung) das mes mas diante do trabalho vivo” (G, p. 716, grifei “ corpo objetivo” ).
96 Cf. W 2 3, K I, pp. 319-20, onde a imagem do vam piro é extraída de um texto de Engels. 97 De certo m odo, a leitura de M arx encontra a análise de Aristóteles. M as acom panhando o objeto, ela objetiva esse nomos anti-physis como nomos-physis. O anti-natural de Aristóteles se traduz no quase-natural da sociabilidade capitalista. Ver a respeito M LP II, ensaio 1, “ Para uma crítica...” , op. cit. 98 Ver G, p. 587, texto já citado. 98a Com o escrevi em M LP I (pp. 169-70), opondo esse juízo ao inverso “ o ouro é dinheiro” . 99 Em outro texto, tratarei de form a m ais sistemática, do conjunto dessas form as de juízo. 100 Com o veremos, é antes a civilização que “ p a ssa ” na barbárie. 101 “ O pensamento representativo segue por sua própria natureza os acidentes e os predicados,
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e com razão os ultrapassa porque eles são apenas predicados e acidentes; mas ele é freado no seu curso quando o que na proposição tem a form a de um predicado é a própria substância. Para re presentar [a coisa] assim , ele sofre um contra-golpe { Gegenstoss)” (Hegel, Phänomenologie des Geistes, H am burgo, F. Meiner, 1952, p. 50, trad. francesa de J. Hyppolite, Paris, Aubier, I, p. 53 [F]). “ O pensamento, em vez de progredir na passagem do sujeito ao predicado, como o sujeito está perdido, sente-se antes freado e remetido de volta (.zurückgeworfen) ao pensamento do sujei to, porque sente a ausência dele (vermisst) (...)” (Phänomen. des Geistes, op. cit., p. 50, trad. francesa de J . Hyppolite, op. cit., I, p. 54 [F]). “ O pensamento perde por isso a sua base fixa objetiva que ele tinha no sujeito quando, no predicado, é remetido de volta ao sujeito, e no predicado ele volta (zurückgeht) não a si mesmo, mas ao sujeito do conteúdo” (Phänomen, des Geistes, op. cit., p. 52, trad. francesa de J . Hyppolite, op. cit., I, p. 55). O “ contra-golpe” vale tanto para o pensa mento representativo como para o pensamento dialético. H á um bom e um mau “ Gegenstoss” . 102 Tentarei retomar em outro lugar a análise desse tipo de juízo, que parece não se enqua drar perfeitamente em nenhuma das form as de dialéticas de juízo que vimos até aqui. 10j “ A economia dos meios de produção social, am adurecida só artificialmente no sistema de fábrica, torna-se ao mesmo tempo, nas m ãos do capital, roubo sistemático das condições de vida do trabalhador durante o trabalho, do espaço, da luz e de meios pessoais de proteção contra condições do processo de produção que oferecem riscos de vida, e que são nocivos à saúde, sem falar nos dispositivos necessários ao conforto do trabalh ador” (W 23, K I, pp. 449-50). 104 Ver sobretudo M LP I, ensaios 1 e 4, e M LP II, ensaios 1 e 4 [e aqui mesmo, último ensaio], 105 Certos textos exprimem também a experiência vivida do trabalhador: “ Era precisam en te o baixo preço do suor e do sangue transform ado em m ercadoria que expandiu constantemente o mercado de consumo e diariamente o expande (...)” (W 23, K I, p. 495). 106 A, universal afirm ativa; E, universal negativa; I, particular afirmativa; O, particular ne gativa. 107 “ [O capital] surge somente (erst) quando (wo) o possuidor de meios de produção e de meios de vida encontra no m ercado o trabalhador livre com o vendedor da sua força de trabalho, e esta condição histórica envolve (umschliesst) uma história universal” (W 23, K I, p. 184 [F]). ios y er 3 Q. “ a história universal nem sempre existiu” (texto citado em M LP II, p. 82, n. 125); “ a história como resultado histórico-universal” . i°9 y er 3^ 4 g. “ j ) e onde se segue que essa transformação (Umwandlung) da história em história universal não é algo como uma mera atividade abstrata da “consciência de si” ( ...)” Cf. ibidem, p. 45: “ (...) tanto mais a história se torna história universal [F]). no y er
p^ 4 4 0 ^ Comentarei mais adiante esse texto.
111 Esse tema aparece no ensaio 1, “ D ialética m arxista, humanismo, anti-hum anism o” de M LP I, ensaio cujo título primitivo era “ Sobre a totalização da história em M a rx ” . O texto insiste ao mesmo tempo sobre a dispersão dos m odos, e sobre a totalização (ou quase-totalização, pois se trata de uma totalização pressuposta) que é introduzida pela idéia de pré-história. A expressão “ uma continuidade que coexiste com a descontinuidade histórica” , que empreguei oralmente (ver acima), reaparece em outros autores em form a pouco rigorosa, porque confundindo totalização no espaço com totalização no tempo. 112 A parte que se segue foi publicada originalmente na revista Lua Nova, n° 19, São Paulo, novembro de 1989. 113 Ver M LP II, sobretudo o final dos ensaios 3 e 4. Para os textos, ver principalmente W 25, K III, pp. 452-6, capítulo 27. 114 Ver W 23, K I, p. 442 (O Capital, trad. brasileira de R. Barbosa e F. R. Kothe, coorde nação e revisão de P. Singer — abreviarei por S — vol I, tomo 2, São Paulo, Ed. Abril, “ Os Econo m istas” , 1984, p. 40).
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115 [N ota de 2001: Sem prejuízo das considerações críticas que introduzirei mais adiante, creio que valeria a pena fazer desde já as seguintes observações. Com o se pode ver pelo que escre vi na Introdução geral, a teorização que irei desenvolver não supõe a idéia de que o m odo de p ro dução capitalista enquanto tal chega efetivamente ao fim com essa terceira form a (forma que tem certas analogias com a situação atual), só supõe que nessa terceira form a do capitalismo se ope ram modificações “ fundamentais” . Isso implica tomar distância crítica em relação ao texto de M arx. De fato, M arx acredita que essa nova situação daria os pressupostos do fim do sistema, mesmo se é preciso considerar que o texto põe entre parênteses — mas não elimina — o problem a político da passagem para um além-capitalismo. Qualquer que seja a riqueza desse texto, há uma dupla distância entre a realidade que ele descreve e a de hoje: por um lado, mesmo se há analogias entre as duas situações, o capitalism o atual parece se acom odar apesar de tudo com essa nova constela ção; por outro, mesmo que não se acom odasse, a passagem só seria possível — e nisso M arx esta ria de acordo — sem um grande movimento de ordem política. Extrair “ brutalmente” desse texto certas conclusões para o destino a curto prazo do capitalism o no início do século X X I é ·— como diria o mesmo M arx — acreditar “ que pulam os no Milenium (...) através de um Salto m ortale” (W 34, p. 277, C arta a Sorge de 5/11/1880). (Com o assinalei da Introdução geral, minhas obser vações sobre os Grundrisse devem algum a coisa aos comentários críticos que Carlos Fausto fez a esse respeito em intervenções orais. Esta não é, de resto, a única dívida que este livro tem para com ele.)] 116 Observe-se que, de certo m odo, tam bém o movimento das m áquinas exprime m aterial mente o capital. 117 G, pp. 584-5. O texto continua assim: “ O trabalho aparece antes apenas com o órgão consciente, em muitos pontos do sistema mecânico, sob a form a de trabalhadores vivos individuais; [ele aparece] disperso (zerstreit), submetido ao processo global da própria m aquinária, ele pró prio só [como] um membro do sistema, cuja unidade existe não nos trabalhadores vivos, mas na maquinária viva (ativa), que diante do fazer individual não significativo (unbedeutende) do traba lhador, aparece em face deste com o organism o poderoso. N a m aquinária, o trabalho objetivado enfrenta o trabalho vivo com o sua força dominante no próprio processo de trabalho, [força] que o capital com o apropriação do trabalho vivo é segundo a sua forma ” (G, p. 585 [F]) (Elementos fundamentales para la critica de la Economia Política [Borrador]) 1857-1858, trad. espanhola de Pedro Scarón, edição a cargo de Jo sé Aricó, M iguel M urm is e Pedro Scarón, Buenos Aires, Siglo Veintiúno, vol. 2, p. 219, abreviarei por “ B orrador” ). 118 Confirm o uma indicação anterior: (A) = grifado por M arx; (F) = grifado por mim. 119 Salvo indicação em contrário, os grifos serão meus (F) até o início da próxim a sub-divisão, “ com unism o” , não inclusive. 120 Observe-se que não se fala de uma terceira fase do capitalismo. 121 “ (...) A m áquina não aparece em nenhuma relação com o meio de trabalho do trabalh a dor individual. Sua diferença não é de form a algum a, com o no caso do meio de trabalho, a de me diar a atividade do trabalhador; m as, antes, essa atividade está posta de tal m odo que ela só serve de m ediação ao trabalho da m áquina, à sua ação sobre a matéria-prima — [só] a vigia (überwacht) a protege de perturbações” (G, p. 584, Borrador 2, p. 218 [F]). — N a continuação do texto já citado onde se encontram as definições da fábrica por Ure, M arx afirm a que este “ gosta de (...) representar a m áquina central (...) não só como autôm ato m as com o autocrata'” (W 23, K I, p. 442 [F]; S I, 2, p. 40), caracterização que sem dúvida M arx aceita. É essa autocracia da m áquina que será rom pida pela m utação do sistema mecânico. 122 Adorno utiliza o termo “ an acoluto” a propósito de Hegel, ver Drei Studien zu Hegel (“ Skoteinos...” ), Suhrkam p, Frankfurt, 1974, p. 10, Tres Estudios sobre Hegel, trad. espanhola de Víctor Sánchez de Z aval, Taurus, M adri, 1969, p. 157. 123 (A) 124 A nova base m aterial é criada pela grande indústria, assim com o a m anufatura criou m a
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terialmente a grande indústria: “ Uma das criações (Gebilde) mais perfeitas da m anufatura era a própria oficina para a produção de instrumentos de trabalho e especialmente dos aparelhos me cânicos que já eram utilizados (...). Esse produto da divisão m anufatureira do trabalho produziu por sua vez — m áquin as” (W 2 3, K I, p. 390; S I, 1, pp. 288-9). — Tem os aqui uma juízo de tipo dialético (um juízo do devir) no plano material. A divisão m anufatureira produz... m áquinas. M arx representa a negação (aqui a negação com o devir) através de um travessão “— ” (eu a represento em geral pelo sinal “ ...” ). Encontram os assim pelo menos um texto em que M arx assinala explicitamente a negação do su jeito pelo predicado. 125 (A) 126 (A) 127 N o texto, falta o verbo. Entende-se: “ abre-se a possibilidade d e...” , ou “ obtém -se...” . 128 M arx cita aqui o autor anônimo de The Source and Remedy ofthe National Difficulties, Deduced from Principies o f Political Economy in a Letter to Lord John Russell (1821). São de M arx os grifos da citação. 129 c = capital constante, v = capital variável, C = capital total. 130 [N ota de agosto de 2000: ponho aspas em “ produção sim ples” , pois a denominação ri gorosa do primeiro momento (e é assim em M arx), é circulação simples. Ver a respeito, entre ou tros textos, o capítulo I do meu Dialética marxista, dialética hegeliana: a produção capitalista como circulação simples, São Paulo, Brasiliense, e Paz e Terra, 1997 (abrevio por PCCS) (Também o último ensaio desse volume).] 131 Ver M LP I, ensaios 1 e 4, e M LP II, ensaios 1 e 4. 132 Diga-se de passagem , não é o “ direito ao trabalh o” que se reconhece como o direito a ser protegido, com o escreveram alguns que ouviram cantar o galo, é o próprio trabalhador que é reconhecido como parte fraca a ser protegida 133 (A). 134 “A natureza não constrói m áquinas, locom otivas, estradas de ferro, telégrafos elétricos, teares autom áticos etc. Eles são produtos da indústria humana; m aterial natural transform ado em órgãos da vontade humana sobre a natureza, ou sua ativação na natureza. São órgãos do cérebro humano criados pela mão humana” (G, p. 594 [A]; Borrador, 2, pp. 229-30). Aqui as m áquinas aparecem como corpo inorgânico, m as corpo inorgânico a serviço imediato do cérebro. De certo m odo, elas são “almas inorgânicas” e não mais corpos. “ (...) o tempo de trabalho [torna-se] (...) elemento, na realidade indispensável, m as subalterno diante do trabalho científico universal, do uso tecnológico das ciências naturais (...), assim como da força produtiva universal que nasce da articulação social na produção global (...)” (G, p. 587; Borrador, 2, p. 222). 135 A expressão tem ressonância aristotélica. 136 De certo m odo, não é mais apenas a form a da matéria que se tem aí, mas uma form a de que form a e matéria são suportes. Cf. as considerações de Sartre em C ahiers pour une morale (Pa ris, Gallim ard, 1983, p. 568) a propósito da form a artística. Sartre observa que a form a do objeto de arte não é a form a que tom a o bronze por exemplo, no sentido da tradição aristotélica. A for ma do bronze é, junto com a m atéria, só o suporte da form a artística. Aqui se trata de um análogo da form a artística, a “ form a científica” . 137 Em outro lugar (W 2, K I, p. 19; S I, 1, p. 150), M arx escreve que o homem “ não só realiza uma m udança de form a do [objeto] natural, ele ao mesmo tempo realiza sua finalidade no [objeto] natural (...)” . A m udança de form a é realização dos fins. Ou, talvez, a posição dos fins não é simples m odificação da natureza, é criação de formas. 138 Um texto já citado (G, p. 592; Borrador, 2, p. 228), em que se fala da substituição do objeto mediador pelo processo natural, vai no mesmo sentido.
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139 Em francês, o “ softw are” dos computadores se diz “ logiciel” , em oposição ao “ hardware” que se diz “ m atériel” . O “ logiciel” é o conjunto de program as, o “ m atériel” o conjunto de “ ele mentos físicos empregados para o tratamento da inform ação” (Dictionnaire de 1'informatique, sob a direção de P. M orvan, Paris, Larousse, 1981, verbete “ m atériel” ). A divisão entre “ logiciel” e “ m atériel” não coincide com a divisão entre o lado em que a ciência se objetiva e o puro suporte material. A ciência está tam bém no “ m atériel” . M as a terminologia não deixa de ser sintomática: há uma posição material do logos enquanto tal. 140 H á, nos Grundrisse, uma astúcia da forma formal de que a form a m aterial é vítima. Em O Capital, há uma astúcia da matéria contra a forma. 141 Ver a respeito M LP II, 2, “ Pressuposição e posição: dialética e significações ‘obscuras’ ” [Também, aqui, a Introdução geral], 142 O termo “ subsun ção” é no fundo preferível a “ subordinação” , porque nele se investe também o sentido lógico do processo (silogismo). Ver a respeito uma nota de G. Badia, na sua tradução francesa das Teorias sobre a Mais-Valia (Tbéories sur la Plusvalue, Paris, ed. Sociales, 1 9 7 4 ,1, p. 455, n. 3). 143 Cf. W 25 I, p. 455; S I, 2, p. 49, já citado; e G, p. 593, Borrador, 2, p. 229. 144 [Remeto nesse ponto à Introdução Geral. As considerações críticas que se seguem se re ferem ao significado do processo material de trabalho. N a Introdução Geral, critiquei sobretudo a significação da forma.] 145 N o s trabalhos muito importantes de André Gorz, encontram-se análises do mesmo tipo. Em Métamorpboses du travail. Quête du sens. Critique de la Raison Economique (Paris, Galilée, 1988), ele cita O skar N egt (Lebendige Arbeit, enteignete Zeit, Frankfurt, Cam pus Verlag, 1984), que escreve a respeito: “ O operário que, diante do seu painel de com ando, controla o funciona mento ininterrupto de um sistema de m áquinas autom áticas, não trabalha no sentido habitual, ele não é ativo de maneira contínua, ele está de serviço. Em caso de incidente, lhe é preciso intervir prontamente (...) Ele age com o funcionário da máquina (...)” (Negt, op. cit., p. 188 (189; Gorz, op. cit., p. 107 [A]). 146 N otas marginais de Proudhon à Miséria da Filosofia de M arx, citado por M . Rubel, in Oeuvres, Paris, Gallim ard, Bibliotèque de la Plêiade, 1965, Économie I, pp. 1.563-4. 147 G, p. 595, Borrador, 2, p. 231: “ (...) não tempo de trabalho, tempo livre (...)” . E verda de que há um texto de crítica a Smith em que o trabalho não aparece só como não-liberdade. M as, como veremos, não se trata pura e simplesmente do trabalho. 148 Aristóteles faz tudo para separar os dois domínios. Assim, a atividade de dirigir ou vi giar os escravos não tem m aior dignidade. Por exemplo: “ T odos os conhecimento desse gênero são, pois, ciências do escravo. Quanto à ciência do senhor, ela é a [ciência] da utilização do escra vo. Esta ciência não tem nada de grande, nem de venerável: o senhor deve somente saber prescre ver as tarefas que o escravo deve saber executar. Eis por que aqueles que têm a possibilidade de poupar a si mesmos os incômodos domésticos têm um preposto que se exerce nessa tarefa, enquanto eles mesmo se ocupam de política ou de filosofia” (Aristóteles, Política, I, 7, 1255, 30-36 [F]). 149 [N ota de 2001: Isto no interior da conceituação de M arx — que tem interesse — não na realidade atual. M esm o se “ não é o tempo de trabalho o que im porta, a ciência é [hoje] além da cham ada pesquisa básica, plenamente trabalho realizado em grandes laboratórios ligados à gran de indústria, com esquemas hierárquicos, rotinas, métodos de controle etc.” (Carlos Fausto).] « o Ver M LP II, 3, p. 230.
151 (...) o trabalho imediato (...) se torna momento subordinado (...) do trabalho científico universal (...)” (G, p. 587, Borrador, 2, p. 222). 152 (A). 153 (A) Este e os próxim os quatro grifos são de M arx.
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154 Ver também G, pp. 506, 301 e 305, Borrador, 2, pp. 120-2, 348-9 e 352-3. 155 Fiz uma leitura desse texto em M LP II, 1, pp. 22-3. 156 Ver as análises de O Capital em torno da idéia de que também durante o tem po livre o trabalhador serve o capital (W 23, K I, 589-98, S I, 2, pp. 157-8). 557 H á aí um “ escândalo sintático” a com parar com os “ escándalos sem ánticos” que se en contram na Lógica de Hegel e também em M arx. Ver por exemplo “ o desaparecer do desapare cer” ( Wissenchaft der Logik, ed. Lasson, H am burgo, M einer, 1967, Erster Teil, p. 93; e o mesmo movimento em M arx, G, p. 539). 158 V olto a assinalar os grifos por (A) = autor, e (F) = eu grifo. 159 O paralelism o que existe nesse plano entre o desenvolvimento histórico e o desenvolvi mento lógico, o processo de desenvolvimento do sistema que leva à sua destruição revelando ao mesmo tempo o seu “ fundam ento” , é visível no seguinte texto (em relação ao qual é difícil separar leitura lógica e leitura estrutural-histórica): “ Assim com o desenvolvemos progressivamente o sis tema da economia burguesa, [desenvolvemos] tam bém a negação dela mesm a, que é o seu resulta do último. A gora temos de nos ocupar ainda do processo de produção imediato. Se considerar mos em grandes linhas a sociedade burguesa, aparece sempre com o resultado último do processo de produção a sociedade ela mesm a, isto é, o homem nas suas relações sociais. Tudo o que tem forma fixa como o produto etc. aparece só como momento, momento evanescente nesse movimento. O próprio processo de produção aparece aqui só com o momento. As condições e objetivações do processo são elas mesm as, constantemente, momento desse processo, e com o sujeitos dele apare cem só os indivíduos, mas os indivíduos relacionados uns com os outros, que tanto reproduzem como produzem (neuproduzieren). O próprio processo em movimento constante, no qual eles re novam tanto eles próprios com o o mundo da riqueza que eles criam ” (G, p. 600 [F]). 160 “ Por ¡SSO) ninguém acreditará poder suprim ir as bases do comércio privado interno ou externo através de uma reform a da bolsa. M as com o no interior da sociedade burguesa que re pousa sobre o valor de troca são produzidas tanto relações de produção com o relações de troca, que são igualmente várias minas, capazes de fazê-las explodir (um sie zu sprengen). (Uma m assa de form as em oposição à unidade social, cujo caráter contraditório (gegensátliche) não pode ja mais explodir entretanto, através de uma metam orfose tranqüila. Por outro lado, se na sociedade tal como ela é não encontramos veladas (verhüllten) as condições materiais da produção, e as re lações de intercâmbio que lhes correspondem , para uma sociedade sem classes, toda tentativa de explosão seria quixotesca” (G., p. 77). O final do texto não deixa dúvida de que M arx se refere a uma revolução, enquanto prática social e política.
161 (A) 162 A esse texto se deve acrescentar o de G, pp. 715-7, cujo tema é a alienação, texto já ci tado. Nele, acentua-se sobretudo a objetivação alienada, isto é, a redução dos indivíduos a supor tes-apéndices no interior da produção. A disjunção entre a objetivação e a alienação — “ tarte à la crême” das leituras humanistas, e “ bête noire” das leituras anti-humanistas — só se faz, nos ter m os dos Grundrisse, através de uma revolução técnica que m odifica a natureza das potências objetivadas. 163 (A), menos o último grifo. 164
por ora> deixo de ]ac)0 a questão da subjetividade.
165 (A). 166 (A). 167 (A). 168 (A). 169 Grifos restantes (F). 170 (A).
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171 (A).
172 Demais grifos (F). 173 Acréscimo de 2001. 174 Resumindo o tema, eu escrevi em M LP I (p. 45): “ (...) ñas econom ías pré-capitalistas (...) os indivíduos são satisfeitos, o que permite estabelecer uma relação entre o pré-capitalismo e o socialismo (...) no capitalism o o individuo permanece insatisfeito. E entretanto, o principio do capitalism o é o desenvolvimento infinito (...) o que permite aproxim ar o capitalism o do socialis mo. Assim, pré-capitalism o e capitalism o respondem cada um deles a urna das exigencias do so cialism o — a satisfação do indivíduo ou o desenvolvimento infinito, mas sacrificando a outra” . 175 A propósito do desenvolvimento que se inicia com este parágrafo, ver também a Intro
dução Geral. 176 (A). 177 Smith, citado por M arx (A). 178 (F). 179 (A).
180 Grifos restantes (F). 181 Dois últimos grifos (A). 182 Isto é, trabalho excedente no sentido de que vai além de prover o necessário à mera sub sistencia. 183 (F). N um outro texto aparece a noção de disciplina. M as é preciso entendê-la, no con texto dos Grundisse (não em outros casos), em função da “ negação” que sofre o trabalho (embo ra se ressalve que em certos casos — na agricultura — o esforço físico se mantenha): “ (...) O tem po livre — que é tempo de lazer tanto quanto tempo para atividade m ais alta — transform ou o seu possuidor num outro sujeito e enquanto [é] esse outro sujeito ele entra no processo de produ ção imediato. Este [processo] é igualmente disciplina, com relação ao homem em devir, exercício (.Ausiibung), ciência experimental, ciência materialmente criadora e se objetivando com relação ao homem constituído em cujo cérebro existe o saber acum ulado da sociedade. Para os dois, na m edida em que o trabalho exige manuseio prático e movimento livre, com o na agricultura, é ao mesmo tempo exercício (exercise)” (G, pp. 599-600 [F]). “ Homem em devir” e “ homem constituído” poderiam se referir ao processo histórico de constituição do homem ou ao processo de form ação que conduz da criança ao adulto. Aqui se trata aparentemente desse último, ao contrário do que ocorre em G, p. 231, texto já citado, onde se fala de nova “ geração” (Geschlecbt, raça). 184 N esse ponto e na frase seguinte, esboça-se a temática dos Grundrisse. 185 Aqui se opõe a finalidade externa à finalidade interna do sujeito nas relações deste para com a sua atividade. 186 H á nos Grundrisse um certo continuismo, no sentido de que, como vimos, lá se supõe uma “ pós-grande indústria” . Continuismo pela antecipação do futuro no passado. Aqui se trata do contrário: presença do passado no futuro. 187 Isto indica uma diferença em relação ao que ocorre na sociedade capitalista. Aqui se vai das partes ao todo e não o contrário. Ver mais adiante. 188 (A). 189 (A).
190 Os demais grifos (F). 191 (A).
192 Cf. M LP I, ensaio 1, segunda parte. [E o último ensaio deste volume.] 193 Os Grundrisse falam por sua vez em “ propriedade” (ver a respeito M LP I, 1, segunda
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parte), mas no sentido da “ verdadeira” propriedade, isto é, de uma relação viva entre o homem e o objeto; o que evidentemente nos conduz para além da simples idéia de consum o, m as numa di reção que não tem nada a ver — e mesmo se opõe — ao caminho das possibilidades form ais em que se situa a possibilidade de alienar o produto. 194 Ver m ais acim a, e M LP II, ensaio 4, p. 317. 195 (A ).
196 (A). 197 A frase não aponta só para outros direitos, mas tam bém para o fim do direito. 198 Grifos (F), salvo as indicações em contrário. 199 D eixo de lado aqui a negação do capitalism o no interior do capitalism o de que fala O
Capital, a propósito da sociedade por ações. 200 Cf. o parágrafo sobre o caráter fetiche da mercadoria no capítulo primeiro da seção pri meira do livro I, onde se opõe não-transparência a transparência. M as lá a transparência não equivale à ausência de form a, porque se considera a prim eira form a do comunismo. 201 (A). 202 (F). 203 CA).
204 20s Isto vale também para a perspectiva de O Capital, m as em outro sentido. N o Capital não se trata de revelar o fundamento negativo, mas de apresentar a interversão que atravessa o sistema. D os Manuscritos ao Capital, passa-se da antropologia negativa (não da simples antropo logia como se pretendeu) à dialética. 206 Dois últimos grifos (A). 207 “ Som ente” , (A), o resto do grifo (F). 208 Três últimos grifos (A); os restantes (F). 209 N o mesmo sentido: “ (...) o senhor Michel Chevalier acusa Ricardo de fazer abstração da m oral. M as Ricardo deixa a economia política falar a sua própria língua. Se ela não fala m o ralmente, isto não é culpa de Ricardo (...) que pode fazer R icard o” (WEB, I, p. 551). E ssa p a ssa gem justificando o “ am oralism o” de Ricardo é um verdadeiro experimento crucial: ela m ostra a falsidade das leituras que acentuam sem mais um pretenso “ m oralism o” do jovem M arx. 210 Se resolvi inverter a ordem cronológica, tratando primeiro das obras da transição, em seguida d ’O Capital e dos Grundrisse, e só depois dos Manuscritos, é porque este representa uma ruptura muito forte (embora não absoluta) em relação aos dois outros m odelos, e porque o m ar xism o tal como ele passou para a história corresponde muito m ais aos dois primeiros. Para uma análise puramente histórica, conviria a ordem cronológica; para uma análise m ais precisamente teórica e crítica, creio que a presente ordem é a que se impõe. De resto, sob essa form a, os Manus critos aparecem com o uma espécie de crítica do legado m arxista senão m arxiano. Entretanto, a opção por essa ordem não implica, da minha parte, privilegiar a verdade dos Manuscritos. A ne cessária crítica da obra de M arx passa sem dúvida pelos Manuscritos, m as só em parte; não creio que eles possam servir de modelo para a crítica. 211 Se nas Teses sobre Feuerbach (sobretudo a tese I, onde se fala do idealismo e da prática) poder-se-ia reconhecer, para além de Hegel, uma alusão a Fichte, os Manuscritos visam certamente Schelling lá onde se lê: “ As ciências naturais desenvolveram uma enorme atividade e se apropria ram de um material sempre crescente. A filosofia se manteve entretanto estranha a elas, assim como elas [se mantiveram] estranhas à filosofia. A união momentânea era só uma fantástica ilusão. A vontade esta lá, m as falta a capacidade (Vermögen)” (WEB, I, p. 543 [A]). 212 “ M as que idéia mais alta e excelente Você exprime assim com aquela unidade da intui
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ção e do pensamento! Pois o que pode ser pensado de m ais m ajestoso e excelente do que a nature za daquilo no qual, através do universal, também o particular é posto e determinado, através do conceito também os objetos são postos e determinados, de m odo que nele mesmo as duas coisas são inseparáveis (...)” (Schelling Werke, 3, p. 137, Bruno oder über das göttliche und natürliche
Prinzipien der Dinge, Ein Gespräch). 213 Schiller, pp. 354-5. “ Para que ele chegue a isso [a conceder “ uma personalidade própria ã aparência” , RF], é necessário uma revolução total de todo o seu m odo de sensação, sem o que, o homem não se encontraria nem mesmo na via que leva ao ideal” . Observar o conceito de “ modo de sensação” (Empfindungsweise), totalmente no espírito senão na letra dos Manuscritos, a com parar com “ m odo de produção” (Produktionsweise) (quase-presente no mesmo texto). 214 O vir a ser da natureza enquanto natureza é mais característico de Schelling. 215 Ibidem, pp. 88-9. “ A utilidade é o grande ídolo da época, ao qual todas as forças são obrigadas (sollen) a servir e todos os talentos devem prestar homenagem” .
216 Ver ibidem, pp. 336-7. 217 Ibidem, pp. 302-3.
218 Cf. os Manuscritos de 1844: “ O animal form a só segundo a medida e a necessidade da espécie a que pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de cada espécie e em toda parte sabe pôr a medida inerente ao objeto; por isso, o homem forma também segundo as leis da beleza” (WEB, I, p. 517 [F]). Observe-se também a presença em Schiller e em M arx da ex pressão “ nobreza da natureza hum ana (ou da hum anidade)” . Schiller (ibidem, p. 81): “ O assunto de que vou tratar tem uma relação imediata com a nossa felicidade, com o que tem de melhor nela, e tem uma relação bastante estreita com a nobreza moral da natureza humana ” (F). M arx (a p ro pósito dos operários revolucionários franceses): “ A sociedade, a associação, a conversação, que por sua vez têm como finalidade a sociedade, lhes bastam , neles a fraternidade não é uma frase m as verdade, e a nobreza da humanidade rebrilha diante de nós dessas figuras endurecidas pelo trabalho” (WEB, I, p. 554 [F]). 219 O tema do gozo está também nos Grundrisse, como os temas da riqueza e da liberdade estão nos Manuscritos. M as não com o mesmo peso. 220 A qual nada tem a ver, evidentemente, com a idéia da liberdade como consciência da necessidade. Com o assinalei em outro lugar, essa fórm ula, que se encontra em Engels, é estranha ao m odelo dos Manuscritos, com o ao de O Capital e dos Grundrisse, e salvo erro também não se encontra na Ideologia alemã ou no Manifesto. Cf. Adorno, Negative Dialektik, Frankfurt, Suhrkamp, 1966, p. 346 (trad. francesa pelo grupo de tradutores do Collège de Philosophie, Dialectique Négative, Paris, Payot, 1978, p. 277). 221 G. Lebrun observa que a idéia de um enriquecimento da humanidade simultâneo a um empobrecimento do indivíduo (tema, observo, que está também nas Cartas sobre a educação esté tica do homem de Schiller), já se encontra nas Conjecturas sobre o começo da história da humani dade (1786) de Kant (ver G. Lebrun, “Um a escatologia para a m oral” in Kant, Idéia de uma his tória universal do ponto de vista cosmopolita, Ricardo Terra [org.], São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 99). 222 “ (...) Finalmente — escreve M arx, referindo-se à situação do proletariado no cam po após a ruína previsível de arrendatários e mesmo de proprietários — o salário do trabalho reduzido deve se reduzir ainda mais, para suportar a nova concorrência. Isto conduz necessariamente à revolução” (WEB, I, pp. 509-10). Esta é, entretanto, uma das raras referências à revolução nos Manuscritos. 223 Contra a natureza, porque a natureza, a do homem como a do seu objeto, já atingiu, na sua form ação, um estágio superior. 224 Cf. a primeira fase do comunismo na Crítica do programa de Gotha. N a Crítica do pro grama de Gotha, as igualdades são insuficientes por causa das diferenças reais, tema que também está presente aqui, m as elas não são insuficientes por causa da natureza da necessidade. M ais do
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que a passagem à “ identidade especulativa” , a Crítica do programa de Gotha anuncia simples mente a desaparição futura da form a, na sociedade dos produtores livres e disciplinados. 225 Cf. a com preensão da história como processo, referida pelos Grundrisse. N o s dois tex tos, conhece-se a história com o pré-história do homem, m as em quadros conceituais que não são idênticos. 226 Lê-se entre parênteses: “ Sobra a categoria do ter, ver Hess nas 21 Folhas” . H ess tem um lugar reconhecidamente importante nos Manuscritos. 227 Ver M LP I, ensaio 1, terceira parte. 228 Em bora se aluda também à produção artística, assim como, inversamente, fala-se tam bém de ciência nos Manuscritos. 229 Sobre a beleza, ver também WEB, I, p. 517. 230 Sintomaticamente, na tradução inglesa dos Manuscritos, publicada pelas edições em lín guas estrangeiras de M oscou (a qual, de resto, não é mal feita), traduz-se algum as vezes “ Genuss” (gozo) por “ consumption” (consumo) (!), (ver por exem plo, p. 104 de Economic and Philosohpic Manuscripts, ed. cit., p. 1.961). 231 Sobre os Manuscritos, ver também meu texto “ Sobre o jovem M a rx ” in Discurso, n° 13, texto que é m ais desenvolvido do que o apêndice 2, de mesmo nome, em M LP I. 232 O termo “ revolução” é tom ado aqui, evidentemente, em sentido amplo.
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II.
SOBRE O CO N C E IT O DE CAPITAL. IDÉIA DE UM A LÓ G IC A DIALÉTICA
In t r o d u ç ã o G
eral ao
Seg un d o C
a p ít u l o
O presente capítulo contém uma versão m odificada1 do pequeno livro que publiquei em francês em 1996, Sur le concept de capital: idée d ’une logique dia lectique (Paris, L ’Harm attan). Pensei em fazer uma nota introdutória a este capítu lo, como fiz para os outros, mas afinal, sem dúvida por causa do seu caráter muito particular, fui levado a escrever uma introdução geral a ele. O que o leitor encon trará aqui é ainda só uma parte daquilo que eu teria a dizer sobre o problem a, mas ultrapassa os limites das indicações que se encontram na pequena introdução que abre o texto. Começo com algum as indicações, que visam evitar mal-entendidos. O texto não deve ser lido como uma tentativa de form alização da lógica dialética, ele con tém no máximo uma tentativa de simbolização de alguns dos aspectos. Porém mesmo a simbolização, que me pareceu útil apesar dos seus inconvenientes, não represen ta o essencial. H á muito tempo, estou convencido que há conseqüências a tirar, no plano da cham ada lógica dialética, do privilégio que têm em Hegel e em M arx a “ matemática dos infinitos” . Foi durante a redação da série que concebi sob o nome geral de Dialética m arxista, dialética begeliana (primeiro volume, em português, Brasiliense e Paz e Terra, 1997, terceiro volume em francês, Le Capital et la logique de Hegel, L ’Harm attan, 1997, segundo volume inédito) — série que complementa M arx: Lógica e Política — que me pareceu possível tentar uma teorização mais am biciosa da lógica do capital, a partir do tratamento hegeliano e m arxiano da mate mática do infinito. O texto que se segue, e que constitui o segundo capítulo de MLP III, é evidentemente uma primeira tentativa, a ser retomada, desenvolvida, corrigida. Talvez o resultado mais importante da minha investigação seja a noção de “ dife rencial de significação” , que o leitor encontrará na segunda parte dela. Estou con vencido entretanto de que o que foi feito representa um progresso. Advirto o leitor do volume francês (publicado pela L ’Harm attan, 1996), que a contra-capa daque le livro não é minha, mas dos editores. Apesar de eu ter tido a possibilidade de cor rigi-la um pouco, não pude eliminar inteiramente o seu tom ambíguo e neo-român tico, que sugere uma idéia da lógica dialética como pura e simples alternativa à “ lógica do entendimento” . N a realidade, como se pode ver pelo meu texto, a rela ção é muito mais sutil e se, em parte, o projeto é alternativo, ele se situa ao mesmo tempo na “ esteira” da lógica formal. Simplificando o problem a, é como se as no ções de pressuposição e posição, espécie de “ operador dialético” , introduzissem uma “ pequena complicação” na lógica formal, complicação esta que tem entretanto como efeito uma alteração considerável, senão essencial do conjunto do edifício. Isso não
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significa entretanto pôr em dúvida o rigor dos resultados formais (plenamente su ficientes para um certo tipo de discurso), nem esquecer que se a lógica formal é hoje uma ciência constituída, a cham ada lógica dialética continua sendo pouco mais do que um projeto. Estou convencido, porém, de que os resultados já obtidos (em ato, ou no plano das teorizações de ordem lógica) nos dão a garantia da fecundidade, do rigor e do interesse desse projeto lógico e filosófico que, em termos gerais, é uma herança da tradição filosófica antiga e moderna. O texto francês contém agradecimentos, que reitero, a J.-T. Desanti, mestre e amigo. Se ele teve a gentileza de ler e discutir comigo o texto, não tem nenhuma responsabilidade pelo que foi tentado. Agradeci também, e reitero o agradecimen to, a Olivier Fecome, meu ex-aluno, de quem não tive mais notícias, que reviu com muito cuidado a versão francesa. Agradeço a Silvio R osa pela tradução do texto, tradução que no essencial conservei. Reitero os agradecimentos a Francisco Miraglia N etto, expressos na nota introdutória. A bibliografia que se encontra no final da versão francesa será incluída na bi bliografia geral de M LP (a ser inserida no último volume da série). Se a lógica formal se desenvolveu com grande rigor e fecundidade a partir do seu renascimento no século X IX , a chamada “ lógica dialética” continua sendo um objeto difícil de definir. Como indiquei, e como a perspectiva deste texto (na linha do conjunto dos meus escritos) tenta confirmar, creio que a boa opção a esse res peito não é: 1) nem abandonar o projeto de uma lógica dialética de maneira “ der rotista” , reconhecendo a verdade universal e sem resto da lógica formal; 2) nem construir uma lógica alternativa em termos absolutos, que faria tábula rasa dos resultados formais; 3) nem enfim tentar inserir sem mais os resultado das investi gações dialéticas no quadro da lógica formal. Trata-se de proceder a investigações dialéticas rigorosas, e de pensar os seus resultados nas suas relações com a lógica formal. Depois de definir a natureza das operações que a cham ada lógica dialética introduz, é necessário precisar o lugar delas relativamente ao corpus da lógica for mal, e estudar o tipo de m odificação que implicaria uma possível inserção daque las operações nesse corpus. O que proponho aqui é uma pequena contribuição a esse trabalho. Há alguns anos, no prefácio à segunda edição de um livro que publicara no final da década de 1960, um filósofo brasileiro bem conhecido2, comentando os trabalhos que eu publicara até então (início da década de 1980), me criticava por cometer um grave erro lógico, o de confundir identidade e predicação. O meu interesse aqui não é essencialmente o de responder às críticas (já o fiz em outros textos, e o faço em outras passagens deste livro), mas analisar o problema. A resposta que eu dera a essa ob servação, numa de minhas aulas (resposta de que tom ou conhecimento um círculo bem mais vasto do que o dos meus auditores) — e que foi objeto de uma primeira versão em apêndice de um texto inéditoJ — , era de que a denúncia de uma confu são entre identidade e predicação, por parte de um pensador que parecia ainda vi sar uma explicitação da dialética, era muito ingênua. E isto porque é de certo modo substancial à dialética de Hegel, e em boa medida à dialética em geral, se não, sem dúvida, a eliminação da diferença entre identidade e predicação, pelo menos uma
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articulação sui generis entre uma determinação e outra, o que alterava substancial mente os termos do problema. Eu me referia então à “ proposição especulativa” de Hegel tal como a encontram os na Fenom enologia do Espírito, e tal como ela é explicitada no prefácio dessa obra. Com o se sabe, a proposição especulativa con tém uma sucessão de predicações, cada uma das quais terminando com uma espé cie de equalização entre sujeito e predicado. Cada equalização dá origem a uma nova predicação, de tal modo que a igualdade (ou pelo menos a equalização) aparece de certo modo como o limite da predicação. Isso representa uma espécie de diferen cial de significação, mais precisamente uma diferencial de significação de ordem sin tática. (No presente texto, o leitor encontrará o que chamo de “ diferencial de sig nificação” , ou de significações diferenciais, como de maneira m ais geral, “ signifi cações em flu xo” , mas se trata de diferenciais de significação de ordem semântica. Diante delas, a identidade como limite da predicação aparece como uma diferen cial de significação de ordem sintática.) Observo que o que afirmo para Hegel vale, mutatis m utandis, para M arx. Tentemos desenvolver o problema a partir de M arx (entre outras razões, para que não se impute esse desenvolvimento à “ lógica especulativa” )4. De fato, não é só a proposição especulativa hegeliana que opera uma refor m ulação — ou exige uma reform ulação — de noções que vêm da lógica formal (ou mais precisamente das teorias de pensadores, lógicos e filósofos, cuja obra tem uma relação direta com a história do renascimento da lógica formal). A lógica em ato do corpus m arxiano também o faz. Quanto aos clássicos do entendimento, que, do outro lado, poderiam servir como referência, a minha im pressão é de que aquele que oferece m aior interesse é Frege, quem precisamente formulou de maneira rigo rosa a distinção entre identidade e predicação M ais adiante, tentarei desenvolver melhor por que Frege é uma referência privilegiada para a discussão dos nossos problem as5. N os limites dessa introdução, tentarei m ostrar a partir do discurso m arxiano com o não só a diferença entre identidade e predicação é repensada e dialetizada, m as também outras distinções introduzidas por Frege. Partamos da apresentação m arxiana da história (cf. a primeira seção deste vo lume, e o ensaio 1 de M L P II, assim como o ensaio 1 de M LP I). Essa apresentação contém por um lado um discurso pressuposto sobre o “ hom em ” , o que M arx cha ma de pre-história do homem, e da futura passagem dessa pré-história à história. Por outro lado, há um discurso posto, ou vários discursos postos, relativos aos di ferentes m odos de produção (dos quais M arx só desenvolveu efetivamente um, o caso privilegiado do capitalism o). Tudo isto oferece um interesse lógico considerá vel (veremos que a crítica da noção específica de “ pré-história” não tira nem o ri gor nem a validade atual dessa forma de apresentação). Se partirm os do discurso pressuposto, e o pensarmos, como é preciso fazer, em conexão com o discurso posto (ou com as noções introduzidas pelo discurso posto), diremos que se tem uma série de juízos em que o sujeito é “ o homem” e o predicado exprime diferentes figuras históricas, cidadão romano e escravo (ou mem bro da polis e escravo), senhor feudal e servo, proletário e capitalista etc. “ O ho m em ” é, se se quiser, um objeto coletivo6. M as na realidade, a leitura deve ser intensional não extensional, trata-se de algum m odo da “ essência” “ homem” , um
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objeto que recebe os predicados cidadão e escravo, ou senhor e servo, ou proletá rio e capitalista etc. Sem dúvida, essa essência se realiza em indivíduos, mas o enun ciado põe a essência não os indivíduos. Teríam os, assim , os juízos “ o homem é ci dadão ou escravo” , “ o homem é senhor feudal ou servo” , “ o homem é capitalista ou proletário” etc. E, simplificando, “ o homem é capitalista” , “ o homem é prole tário” , “ o homem é cidadão rom ano” , “ o homem é escravo” etc. Entretanto, se passarm os do discurso pressuposto ao discurso posto, vemos que a situação se altera. Em termos estritos do discurso posto o sujeito “ desapare ce” (na realidade, ele é “ negado” e se torna pressuposto). “ N ã o ” há mais esse ob jeto “ o hom em ” . (Esse “ n ão ” é evidentemente o do Aufhebung, porém se tom ar mos só o discurso posto, isso não importa.) Por outro lado, o que era predicado se tornou sujeito (o que significa, em termos fregianos, tornou-se um objeto). De fato, agora o sujeito não é mais “ o homem” , m as sim o antigo predicado, seja ele “ o ci dadão rom ano, o escravo, o senhor feudal, o servo, o capitalista, o proletário” ...). Em boa lógica fregiana, agora cabe o artigo definido que caracteriza o objeto (o qual ocupa o lugar de sujeito na proposição, embora para Frege a recíproca não seja sempre verdadeira, mas isto não interessa aqui). Temos assim dois registros, o do homem sujeito com os seus predicados, e aquele em que o homem “ desapare ce” tornando os predicados os verdadeiros sujeitos. Até aqui não há maior proble m a, ou não haveria, se a apresentação m arxiana da história não exigisse que se considere ao mesmo tempo os dois registros, o do discurso pressuposto e o do dis curso posto. Somos obrigados a fazê-lo, mas então vemos o resultado: uma deter minação como “ proletário” ou como “ capitalista” (mas isto vale também para as outras) é ao mesmo tempo, em sentido fregiano, um objeto e um conceito. A dis tinção fregiana entre conceito e objeto não é eliminada propriamente. M as ela pa rece, rigorosamente, se “ dialetizar” . A apresentação dialética da história exige que se pense certas determinações ao mesmo tempo — em registros diferentes, que en tretanto têm de coexistir — como conceito e como objeto. Com os limites que lhe deu Frege, a distinção é incompatível com a dialética. M as a dialética não a “ abo le” . Poder-se-ia m ostrar — já se vê por aí — que a distinção é muito rica, e a crítica posterior pelas “ lógicas da extensão” empobrecedora. M as a sua “ maneira de ser” se altera, ela não funciona mais no registro da lógica da identidade. M as em que sentido preciso ela se altera? Aqui aparece o segundo par de de terminações, aquele que fôra o nosso ponto de partida. A distinção entre “ pre dicação” e “ identidade” . E que se supusermos um movimento da história em que se sucedem diferentes formas sociais (M arx dirá “ m odos de produção” , mas a su posição pode ser mais fraca), tem-se alguma coisa que, em analogia com a propo sição especulativa de Hegel, nos conduz de uma predicação a uma quase-identidade. Em cada form a, as determinações são predicados (ou quase-predicados, por que o sujeito é pressuposto e não posto); por outro lado, cada forma tende mais ou menos à identificação entre sujeito e predicado. Precisemos. N o discurso hegeliano, pode-se dizer que a predicação tende à identidade (ou à identificação) (a últi ma é o limite — sintático — da primeira), no sentido de que cada momento vai “ realizando” cada vez mais uma determinação. O mesmo poderia ser dito em grandes linhas da apresentação marxiana da história. Porém, poderíamos expressar a situação
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de uma outra maneira. Vejam os como. Para o caso do capitalism o, “ capitalista ou proletário” é predicado do homem. Ora, na representação fetichista (que representa a ideologia ou uma das ideologias que correspondem ao m odo), o sujeito, no limi te, se identifica com o predicado. De fato, a naturalização, no limite, identifica homem a capitalista ou a proletário7. Entretanto, a forma de que partim os, que faz de “ proletário ou capitalista” um predicado, um simples predicado, também é ilu sória. Se a primeira é fetichista, esta é cotwencionalista. Trata-se da ideologia si metricamente oposta ao fetichismo. Aqui a ilusão consiste em fazer das duas deter minações simples predicados do sujeito “ homem” . N a realidade, o que temos? Nem uma simples predicação (convencionalismo), nem uma identidade (fetichismo)8. N ão se trata nem de “ o homem é proletário (ou capitalista)” , nem de “ o homem = o capitalista (ou = o proletário)” (nem ainda: “ homem” é um simples nome que apenas indica “ proletário” ou “ capitalista” [o que encontramos em Althusserj). Tem-se na realidade algo que fica “ entre” uma predicação e uma identidade. (Observe-se que a leitura extensiva em termos de dois conceitos, para todo x, se x é homem, x é proletário etc., não convém evidentemente.) N os meus textos, eu escrevia — e escrevo —- de forma “ selvagem ” “ o homem é o proletário” . Esse enunciado é “ bárbaro” 9, sem dúvida, m as essa enunciação bár bara é descritiva do movimento que se tem aqui. Tem-se um movimento de refle xão do sujeito no predicado, que faz do predicado um sujeito. N ão se trata eviden temente do Sujeito-movimento, nem do Sujeito no final de uma pré-história, mas do sujeito no interior de uma pré-história. Do movimento que, na conceituação fregiana, implicaria um processo de transform ação de um conceito em um objeto. Assim, não só em Hegel, mas também na apresentação da história de M arx, tem-se um movimento de passagem sintática ao limite (a predicação tem como li mite a identidade, ou uma espécie de identidade). Só que, por razões que poderia explicar, insisto menos na passagem de uma forma a outra, do que na idéia de que a “ pura” predicação e a “ pura” identidade (ou quase identidade) representam for mas ideológicas de exprimir a situação. Vê-se o que isto significa: a expressão lo gicamente “ rigorosa” da situação é na realidade ideológica. Eis aí um ponto a par tir do qual se pode provar rigorosamente que as exigências formais aplicadas ao campo do discurso crítico significam um a obliteração do rigor crítico, e do rigor em geral desses discursos. A dialética da razão (positivista) é assim m ostrada no seu significado lógico preciso. Vê-se que o discurso formal mais “ rigoroso” não é rigo roso, mas impreciso e enganoso. Se se quiser: a realidade é contraditória (sob cer tas condições, o objeto é conceito e o conceito objeto, a identidade “ p a ssa ” na predicação e a predicação na identidade), e, nessas condições, só o discurso que se abre à contradição é um discurso “ adequado” . A contraposição entre convencionalismo e fetichismo se reencontra, aliás, ou corresponde aproxim adam ente à que encontramos entre um certo humanismo historicista (ou historicismo humanista) e o anti-humanismo (ou os anti-humanismos). O humanismo historicista considera as determinações do sistema como predicados de “ homem” (ou das determinações pressupostas), precisamente no sentido de que o humanismo é incapaz de compreender o caráter quase-natural dessas determina ções. N esses termos, pode-se dizer que ele privilegia a predicação, uma form a lógi
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ca que em si mesma não tem nada de dialética. Inversamente, e de maneira aparen temente paradoxal, o anti-humanismo converge com o fetichismo. N a medida· em que ele reduz o estatuto dos pressupostos a pouco mais do que simples nomes, ele confere às determinações postas do sistema um caráter mais ou menos absoluto (mesmo se na sua “ relatividade” ), dá-lhes um “ peso ontológico” que não está lon ge, pelo menos nas suas implicações lógicas, da naturalização. N esse sentido, a fi gura lógica que eles privilegiam é a identidade, form a que em si mesma também não tem nada de propriamente dialético (na realidade, as duas posições separam em termos absolutos predicação e identidade, e nesse sentido, como mostrei em outro lugar, são convergentes)10. Já que a minha referência foi o discurso crítico marxiano, poder-se-ia perguntar qual a validade desse discurso no momento em que a crítica do m arxism o parece se impor. Seria muito difícil admitir hoje a idéia de que a história é pre-história do homem, de que é o homem sujeito que vemos nascer na história. N ada justifica um tal esquema, que implica apesar das descontinuidades uma perspectiva teleológica. M as uma suposição mais fraca, a de que a história atual é “ história natural” do homem, entendendo a expressão, à maneira de Adorno, como uma história em que os homens não são sujeitos é admissível. A diferença é sutil, m as significativa. “ H is tória natural” definida à maneira de Adorno não implica suposições teleológicas. “ H istória natural” significa aí, aproxim adam ente, história no registro do “ quasenatural” , não mais nem menos do que isto A expressão não diz que haverá uma outra história (embora sugira a sua possibilidade, mas, digamos, como possibilidade A abstrata). Ela diz apenas que a história até aqui não é uma história de sujeitos (senão em parte, e em certo sentido: há, para alguns, e dentro de certos limites, atividade e não só trabalho de “ portar” estruturas). Assim modificada, a idéia crítico-dialética de história se sustenta, exigindo sempre uma instância pressuposta que coexiste com o discurso posto. N essa instância pressuposta, não está desenhada a H istória do homem, mas um espaço de possibilidades aberto em forma geral para o homem. Nesses limites, a dualidade pressuposto/ posto parece não só aceitável mas necessária. Restaria perguntar o que se pode concluir dessa análise para a idéia de uma lógica dialética e da sua relação com a lógica form al, considerando em particular a obra de Frege. Começaria por esse último aspecto. Já assinalei o interesse que a obra de Fre ge oferece para a dialética. Sendo um dos grandes fundadores da lógica contempo rânea, Frege é ao mesmo tempo suficientemente clássico. A diferença entre objeto e conceito — que os sucessores tentarão liquidar — evita a homogeneização dos elementos da proposição, e por aí mesmo, a homogeneização do real. Se com isto Frege se afasta da tradição da lógica form al de inspiração aristotélica, ou aristotélico-medieval, ele ao mesmo tempo, e pelo mesmo movimento, se aproxim a da gran de tradição filosófica inclusive da metafísica de Aristóteles)11. M as também a dis tinção entre Sinn e Bedeutung é de um interesse muito grande. O Sinn (o sentido) — em oposição a Bedeutung12, o que um signo designa — é a maneira pela qual o objeto se dá, mas uma maneira objetiva, o que nos conduz até muito perto da dua lidade essência aparência (Frege compara o Sinn como modo objetivo da Gegebenbeit
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à imagem do objeto no telescópio por exemplo, em oposição às imagens subjetivas do obervador)13. O que é preciso fazer para ir além da perspectiva de Frege? De um lado, arti cular os diferentes Sinn, pensá-los em movimento. O objeto “ capital” em M arx é comparável a Vênus no exemplo de Frege, se os sentidos “ estrela da m anhã” e “ es trela da tarde” (equivalentes no quadro dessa com paração a “ m ercadoria” e “ di nheiro” ) estiverem ligados sob a forma de um devir14. Para que Vênus fosse um ob jeto como o capital, seria preciso dizer: “Vênus é a estrela da m anhã” , “ Vênus é a estrela da tarde” , “Vênus é a estrela da manhã” etc. (Em linguagem fenomenológica, poder-se-ia pensar num devir dos perfis, m as, como assinalei já há bastante tempo, essa terminologia não representa um avanço em termos de dialética.) Por outro lado, seria preciso reconsiderar a relação entre Sentido (Sinn) e Referência (Bedeutung). Primeiro pensar os dois termos, que já para Frege representam dois níveis da obje tividade como aparência e essência, e em seguida assinalar que o sentido (Sinn) oculta, mas ao mesmo tempo revela — este é o “ p arad o x o ” da “ essência ” — o referente (o sentido o contradiz, mas ao mesmo tempo representa o oposto do referente) e por isso é não só o caminho que conduz a este último, m as já um momento deste. N a realidade, no exemplo mesmo de Frege, a oposição é visível: o planeta Vênus se dá na sua Gegebenheit objetiva, como uma estrela. Dizer que Vênus é uma estrela é um enunciado que tem a estrutura de um juízo ideológico (comparável à do fe tichismo). O juízo diz a aparência como essência. Subjetivar a aparência seria a ilusão oposta (a do convencionalismo, Vênus-estrela seria ilusão pura e simples).15 O ponto decisivo é que a dualidade entre aparência e essência (como objetivação plena, di gam os, de sentido e referência) é constitutiva do modo de ser da realidade social (a ligação entre um a coisa e outra no objeto natural é de outra ordem 16). N o objeto social, encontramos um sentido (Sinn) objetivo que contradiz a essência, e o traba lho da crítica é m ostrar o movimento que vai de um a outra. M as esse deciframento se fará dificilmente, se não houver um discurso pressuposto, que serve não de fun damento mas de “ base” para a crítica. Assim, também nesse ponto, Frege nos ofe rece um material precioso. Desse m odo, tanto as dualidades identidade/ predicação e objeto/ conceito, quanto à dualidade sentido/ referente, têm não só grande interesse para a lógica dialética, m as são suscetíveis de um desenvolvimento dialético. Ou dito de outro modo. Descobrimos em Frege elementos que, submetidos a uma elaboração dialé tica, permitem desenvolver e explicitar certas particularidades do discurso dialéti co. E isto sem propriamente alterar o núcleo de significação dos conceitos fregianos. Uma crítica dialética da lógica formal, dirão alguns, representa uma preten são abusiva. Seria excessivo tentar uma leitura crítica de Frege, lá onde ele faz obra de lógico17. N a realidade, Frege pensou um tipo de discurso rigoroso, não todo dis curso rigoroso, e menos ainda todo discurso. Surpreendente seria que a sua obra lógica servisse para qualquer tipo de discurso rigoroso. Seria excessivo pôr em dú vida princípios e leis lógicas? Já me expliquei sobre isto. N ão se trata de propor uma nova lógica, que “ derrubaria” a lógica formal e as suas leis, embora o que se pro
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põe também não seja um simples desenvolvimento que não tocaria no núcleo da lógica formal. Visa-se algo que fica entre uma coisa e outra. Trata-se de um tipo de análise que introduz certas operações, ou certos operadores desconhecidos pelos lógicos profissionais e conhecidos por esses grandes lógicos não profissionais que foram os filósofos maiores (a idéia se não a expressão é de Víctor Goldschmidt). A introdução desses operadores (e também movimentos etc.) altera o sentido das leis lógicas e das relações lógicas em geral, sem questionar em termos absolutos — mas modificando — a idéia da sua validade. De certo m odo, essa validade não é abso lutamente abalada, porque as novas figuras, mesmo se têm as mesmas denomina ções, não coincidem perfeitamente com as form as clássicas (a “ contradição” dialé tica é diferente da contradição dos lógicos etc.) Entretanto há um abalo, pois a co incidência das denominações não é arbitrária e pode ser justificada. O próprio es cândalo que provoca o discurso dialético é um elemento que valida uma denomi nação como a de “ contradição dialética” . Por outro lado, a ruptura aparece visível quando a lógica formal pretende legislar universalmente, o que tem como resulta do inevitável uma liquidação total ou parcial do discurso crítico. Nesse sentido, as observações de Adorno sobre os “ tabus sem ânticos” — a acrescentar os “ tabus sintáticos” — e seus efeitos ideológicos, a conversão da razão mais rigorosa em ideo logia, revelam-se assim plenamente legítimas.
In t r o d u ç ã o
Se a existência de uma relação entre o Capital de M arx e a Lógica de Hegel é de uma evidência indiscutível (embora a polêmica na França esteja longe de estar encerrada), o conceito de capital é o lugar em que se encontram o grande texto da crítica da economia política e a lógica hegeliana do conceito. A noção de capital, assim como a “ sintaxe” que lhe é inerente, estão, com efeito, “ em correspondên cia” com as determinações que caracterizam o terceiro livro da Lógica, lógica sub jetiva ou lógica do conceito. Extrair a idéia de uma lógica dialética a partir da noção de capital é um pro cedimento que se justifica ao menos por uma razão: a noção de capital é, de certa maneira, a mais rica no conjunto da apresentação. M as, por isso mesmo, tal pro cedimento não deixa de com portar um inconveniente. Ao nos fixarm os no capital, situamo-nos em um nível que já apresenta uma certa complexidade. Mesmo se, como sempre acontece na ordem de uma apresentação dialética, os conceitos e determi nações que a noção pressupõe estejam presentes enquanto conceitos e determina ções “ n egadas” (no sentido hegeliano), poder-se-ia perguntar se não seria mais apropriado partir de um momento anterior, mais simples, da apresentação. De fato, para extrair o conjunto da idéia de uma lógica dialética, seria preciso proceder tanto de um m odo como de outro. Pode-se, porém, começar pelo capital. As dificulda des não são intransponíveis, e as vantagens, reais. Em certa m edida, mesmo se ao preço de um atalho, tocar-se-ia de pronto, na idéia geral de uma lógica dialética18. O texto presente se articula em torno de vários eixos. Inicialmente, o de uma teoria do movimento e da m udança, tanto a de Flegel, tal como poderia ser extraí-
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da dos três livros da Lógica, quanto a de Aristóteles. H á evidentemente um vínculo entre uma e outra, entre am bas e a teoria do capital. Em segundo lugar, apoiandose aínda na Ciencia da Lógica de Hegel, o texto privilegia, na obra, as form as do juízo, e a lógica do Conceito. Essa perspectiva converge com o trabalho de pôr em evidência formas do movimento. O terceiro eixo é o da relação entre, de um lado, o conceito de capital e o projeto geral de uma lógica dialética, e, de outro lado, as idéias de fluxo, de continuidade e também de infinitamente pequeno19. Um quarto eixo, para mencioná-lo de maneira geral, é o da lógica formal contemporânea. Tentei aproxim ar, na medida do possível, as determinações dialéticas das noções funda mentais da lógica contemporânea — porém, de modo a m ostrar a diferença entre umas e outras. Sem dúvida, para estabelecer tal relação, é preciso evitar tanto o reducionismo quanto a exclusão recíproca. É o próprio relacionamento (ou a “ apro xim ação” ) que revela a diferença, e até mesmo, o afastam ento de umas perante as outras. Voltarei a este ponto. Assim, se a noção de capital em M arx nos reconduz a Hegel, ela não deixa de nos remeter a Aristóteles e aos lógicos modernos, bem como a Newton e a Leibniz. Por onde se vê a riqueza das sugestões teóricas que o conceito envolve.
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A) O triplo devir na forma geral A apresentação do capital põe inicialmente a forma geral e a produção, de pois a circulação, em seguida, as form as derivadas do capital. N a forma geral, o capital aparece como “ circulante” , mas, de fato, ela introduz o momento em que somente a produção é posta, a circulação sendo apenas pressuposta. N o momento da circulação, pelo contrário, é a produção que é pressuposta, e a circulação, p o s ta. As formas derivadas pertencem ao desenvolvimento da produção global, isto é, da unidade da produção e da circulação. A produção, assim como a circulação, terminam com a reprodução — reprodução global — do capital (respectivamente, pela acumulação que começa com a interversão das relações de apropriação, e pe los esquemas de reprodução). N a unidade da produção e da circulação, em que se encontram as form as derivadas, encontra-se também a apresentação do que seria a lei tendencial do sistema. Aqui trabalharei basicamente com a form a geral. Tam bém me servirei das formas da circulação, mas em conexão com a forma geral, e somente na medida em que elas permitem dar acabamento à compreensão desta última. N ão se trata de apresentar o capital e suas formas — já me ocupei disso em vários textos e vol tarei a me ocupar — , m as de estudar a lógica da forma geral. E enquanto conceito, no sentido técnico do termo, tal como se encontra na Lógica de Hegel, que o capital aparece na forma geral, apresentada no livro I. É sobretudo desta “ definição” conceituai que se trata aqui. Encontramos também uma espécie de definição essencial do capital, que corresponde em grandes linhas à for ma geral. Dela falarei adiante, brevemente.
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O capital é ao mesmo tempo forma e matéria. D ada a delimitação do objeto, é antes a form a que aqui interessa. Quando chegarmos à relação entre o conceito de capital e certos textos da Lógica, direi alguma coisa sobre esse duplo m odo de existência do capital. A “ definição” do capital que na maioria das vezes se encontra no corpus cons tituído pela crítica m arxiana da economia política é a do “ valor que se valoriza” . Tal “ definição” corresponde ao que se poderia chamar o devir quantitativo do capital, ou, mais precisamente, ao capital enquanto devir quantitativo. M as o ca pital é apresentado também, às vezes ao mesmo tempo, como um movimento que percorre sucessivamente as formas do dinheiro e da mercadoria: é o capital como devir qualitativo. N a base do devir quantitativo e qualitativo, há um movimento que exprime a igualdade do capital consigo mesmo, que se poderia chamar de devir “ tautológico” . O capital é a unidade de um devir quantitativo, de um devir quali tativo e de um devir “ tautológico” . Dois destes aspectos, o primeiro e o terceiro, podem ser reconhecidos numa passagem do livro I das Teorias da mais-valia, em que se define o capital: “ O (...) capital é (...) valor de troca, mas valor que se valo riza, valor que, pelo fato de ser valor, cria valor, cresce como valor, recebe um in cremento [Inkrement]” 20. Os três aspectos estão estreitamente vinculados num texto fundamental do livro I, cujo núcleo central é a noção de sujeito e de substânciasujeito. Leiam os em extenso este texto, como ponto de partida: “ As form as autô nom as, as formas dinheiro que o valor das mercadorias assume na circulação sim ples só mediatizam a troca das m ercadorias, e desaparecem no resultado final do movimento. Pelo contrário, na circulação D-M-D, tanto um como outro, a merca doria e o dinheiro, só funcionam como m odos de existência [Existenzweisen] dife rentes do próprio valor, o dinheiro como seu m odo de existência universal, a mer cadoria como seu modo de existência particular, por assim dizer, somente disfar çado. O valor (er) passa (geht...über) constantemente de uma forma para outra, sem se perder neste movimento, e ele se transforma assim num sujeito automático (auto matische Subjekt). Se se fixarem as formas fenoménicas (Erscheinungsformen) par ticulares que, alternativamente, assume o valor que se valoriza no circuito (Kreis lauf) de sua vida, obtém-se então as explicações [seguintes]: o capital é dinheiro, o capital é mercadoria. M as aqui, de fato, o valor se torna o sujeito de um processo no qual, através da mudança (Wechsel) constante das formas-dinheiro e m ercado ria, ele modifica (verändert) a sua própria grandeza, se destaca (stösst sich... ab) enquanto mais-valia de si mesmo enquanto valor original, valoriza-se ele mesmo. Pois o movimento no qual ele incorpora mais-valia é o seu próprio movimento, sua valorização, portanto, [uma] auto-valorização. Ele recebeu esta qualidade oculta de pôr valor porque ele é valor. Ela faz pequenos viventes (lebendige Junge) — ou, pelo menos, põe ovos de ou ro” 21. O texto continua da seguinte maneira: “ Enquanto sujeito dominante (das übergreifende Subjekt) de tal processo, em que ora ele reveste ora se desfaz das formas-dinheiro e m ercadoria, ao mesmo tempo em que se conserva e se estira (ausrecken) nesta mudança (Wechsel), o valor precisa antes de tudo de uma forma autónom a pela qual sua identidade consigo mesmo é constatada. E ele só possui esta forma no dinheiro” 22.
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Citemos ainda os dois parágrafos seguintes: “ Se, na circulação simples, o va lor das m ercadorias recebe, ao menos perante o seu valor de uso, a form a autôno ma do dinheiro, aqui ele se apresenta (darstellen) subitamente como uma substân cia em processo (prozessierende... Substanz), [uma substância] que move a si mes m a [e,] para a qual, m ercadoria e dinheiro são apenas simples formas. M ais que isto, porém. Em lugar de apresentar relações de m ercadorias, ele entra agora, por assim dizer, numa relação privada (Privatverhãltnis) consigo mesmo. Enquanto valor original, ele se distingue de si mesmo enquanto mais-valia, como Deus pai distin gue-se de si mesmo enquanto Deus filho, um e outro tendo a mesma idade e for m ando de fato uma única pessoa, pois é somente por meio da mais-valia de 10£ que as 100£ adiantadas se tornam capital: e uma vez que se tornaram capital, que o filho é engendrado e que por ele [é engendrado\ o pai, desaparece de novo a sua diferença e ambos são apenas um: 1 1 0 ” . “ O valor se torna portanto valor em processo (prozessierender Wert), dinheiro em processo, e, como tal, capital. Ele provém da circulação, a ela retorna, nela se conserva e se multiplica, dela volta crescido e sem cessar recomeça o mesmo circui to [trata-se, aqui, da circulação global do capital que envolve a circulação simples, RF]. D-D’, dinheiro que faz nascer dinheiro (geldheckendes Geld) — money which begets money — como é dito pela descrição do capital na boca de seus primeiros intérpretes, os m ercantilistas” .23 B) O capital e a circulação simples O texto do Capital que citei começa evocando a circulação simples e com pa rando a circulação simples com a circulação do capital e com o próprio capital. Isso pode nos servir de ponto de partida. O capital se apresenta como valor-em-processo. N a circulação simples, temos já uma autonom ização do valor, sob a forma dinheiro. M as o dinheiro não é valor-em-processo, mesmo se há movimento do dinheiro. O dinheiro está, decerto, em movimento, mas ele próprio não é movimento. O movimento ainda é atributo, não sujeito. A troca entre m ercadoria e dinheiro pode ser pensada sob form a de um devir. Se nos fixarmos num ponto do processo, diremos que a mercadoria se torna dinheiro, e que o dinheiro se tom a m ercadoria. O Werden (devir), forma muito próxim a do Ubergehen (passar do outro lado, se transform ar), é característica da lógica do ser. N o movimento do capital, que remete à lógica do conceito, temos uma retom ada do devir, mas como devir-Sujeito. Por enquanto, basta-nos dizer que, se na circula ção das m ercadorias, há sem dúvida devir, o próprio devir não está posto. Põe-se a mercadoria e o dinheiro. M as se se puser o momento em que a m ercadoria e o di nheiro se cruzam, em que a mercadoria se torna dinheiro e o dinheiro mercadoria, o devir se transform ará em devir-Sujeito, e ter-se-á o capital. O movimento da mer cadoria e do dinheiro virá a ser o sujeito do processo.
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2 . O D e v ir Q u a lit a t iv o
A) As significações “ fluentes” e as diferenciais de significação A com paração com a circulação simples nos põe na via da análise do movi mento qualitativo do capital. Vimos que, em seu curso, o capital é dinheiro e o capital é mercadoria, mas que, de fato, o capital é sujeito de um processo. Isto quer dizer que ele se constitui neste processo como devir-Sujeito. M as quais são os predicados de tal devir? A resposta parece já ter sido dada: os predicados seriam a mercadoria e o dinheiro. N o entanto, esta resposta não é inteiramente exata. Se o sujeito é um devir, o predicado deve também ter o caráter de um devir. O capital é devir como sujeito (também no sentido propriamente lógico), e a este sujeito deve correspon der um devir enquanto predicado. Se afirmo que a mercadoria e o dinheiro não são os verdadeiros predicados do sujeito capital, é porque o verdadeiro predicado é, antes, o fluxo do dinheiro ou da m ercadoria, o movimento da mercadoria ou do dinheiro, movimento que tem como limite respectivamente o dinheiro ou a merca doria. Seria possível dizer também que o predicado é a negatividade da mercadoria ou do dinheiro. O dinheiro e a m ercadoria enquanto tais não são, a rigor, predicados do ca pital, porque se eu detiver o movimento ou, o que dá no mesmo, se detiver a enun ciação do capital, dizendo somente “ o capital é m ercadoria” ou “ o capital é dinhei r o ” , emitirei falsas enunciações. O capital não é simplesmente dinheiro, nem sim plesmente mercadoria. Tam pouco ele é dinheiro e m ercadoria, nem simplesmente dinheiro ou m ercadoria. Ele é dinheiro a tornar-se m ercadoria e m ercadoria a se tornar dinheiro. Ele é o fluxo mercadoria-dinheiro e dinheiro-mercadoria. Temos aí o que poderíam os chamar significações fluentes, isto é, significações em devir. Logo, não se deve escrever “ k é m ” ou “ k é a ” 24 senão para designar momentos do capital fixados enquanto momentos. Retom ando uma notação antiga, poder-se-ia escrever “ k é m ” e “ k é â ” — o sin a l", posto sobre as letras que representam a mer cadoria e o dinheiro, indica que a m ercadoria e o dinheiro devem ser tom ados em seu fluxo, fluxo de que o limite é a outra determinação. M ercadoria e dinheiro são postos assim, “ fo ra” do limite. M as seria possível pô-los igualmente no limite25, a saber considerá-los no momento mesmo da p assa gem, o que não era o caso anteriormente. Consideremos o momento em que o di nheiro em “ desaparecimento” cruza a mercadoria que está nascendo, ou vice-versa. Neste momento, m ercadoria e dinheiro não são “ nulos” , mas estão perto da “ nuli dade” , no sentido de que um deles “ quase” desapareceu (ou, antes, está desaparecen do), e o outro “ quase” nasceu (ou, antes, está nascendo). O que temos neste m o mento é, portanto, uma espécie de diferencial, uma diferencial de significação, uma diferencial de significação mercadoria e uma diferencial de significação dinheiro.26 Poder-se-ia representá-las por “ dm ” e “ d a ” . Escreveremos então, a propósito deste momento: “ k é dm e d a ” ou “ k é dm . d a ” . (Seria possível ainda distinguir o nasci mento e o desaparecimento, utilizando flechas de sentido contrário, “ —» ” para o nascimento e ” para o desaparecimento. Escreveremos, então: “ k é drji . ^ a ” . O conjunto desse desenvolvimento exige alguns esclarecimentos, “ m ” foi mo-
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dificado em “ m ” e em “ dm ” , respectivamente como “ m ” em fluxo fora do limite, e como “ m ” em fluxo dentro do limite. D a mesma maneira, “ a ” tornou-se “ â ” e “ d a ” . Qual é a relação entre estas m odificações e a operação hegeliana (bem co nhecida e por isso mal conhecida) da Aufhebung? A mercadoria em fluxo e a dife rencial m ercadoria (assim como o dinheiro em fluxo e a diferencial dinheiro) são a mesma coisa que a m ercadoria “ suprim ida” (aufgehoben) ou o dinheiro “ suprimi d o ” ? Tal é a resposta que se dá correntemente, quando se tenta incorporar à dialé tica a noção de fluxo, e há mesmo textos de Hegel que sugerem tal leitura. N a rea lidade, porém, nem “ m ” (ou “ â ” ), nem “ dm ” (ou “ d a ” ), se confundem com “ m ” “ suprim ido” ou “ a ” “ suprim ido” . (Para notar a “ supressão” hegeliana, proponho o sinal /, cortando a letra ou os sinais a “ suprim ir” 27.) Tanto “ m ” (ou “ a ” ) quanto “ dm ” (ou “ d a ” ) têm uma relação com a Aufhebung, mas nenhum deles correspon de à Aufhebung, “ m ” ou “ â ” denotam na realidade a mercadoria ou o dinheiro en quanto “suprim entes” . Isto quer dizer que a referência deles não é um objeto pres suposto como no caso da Aufhebung. M ercadoria e dinheiro são aqui postos, e no entanto são postos enquanto afetados pelo outro , que eles pressupõem. E esta p o sição pressuponente ou “ suprimente” que caracteriza “ a ” ou “ m ” enquanto pre dicados do capital, “ dm ” e “ d a ” não são tam pouco a mercadoria e o dinheiro “ su prim idos” . Designam, antes, o limite da mercadoria e do dinheiro, o que quer di zer, o ponto em que eles estão, am bos, próxim os de “ zero” (um deles se aproxim a de zero, o outro se afasta); mas não são “ zero” . Porém o que quer dizer “ zero” — que emprego de maneira mais ou menos provisória e analógica — neste contexto? “ Z ero” é, aqui, a “ supressão” hegeliana (ou, mais precisamente, o momento em que ocorre a “ supressão” hegeliana; a partir daí a determinação passa a ser “ supri m ida)” . Com efeito, “ nascim ento” e “ m orte” da mercadoria e do dinheiro são, ao mesmo tempo (é a linguagem da essência m ediatizada pelo ser, isto é, paradoxal mente, pelo imediato), o devir posto e o devir pressuposto de um e de outro, ou, se quisermos: a vida é a posição, a morte a pressuposição que corresponde precisa mente à “ supressão” . Os dois “ estados” assim delimitados, o estado do posto e o do pressuposto, correspondem de resto ao do expresso e ao do inexpresso. Assim, o ponto “ dm . d a ” (ou “ dm . d a ” , por exemplo) é o limite entre o expresso e o inexpresso. Ele não corresponde ao silêncio, mas tam pouco corresponde à expres são; ele é o limite da expressão e da não-expressão dos dois predicados. B) Sobre os infinitesimais na Lógica. Hegel e Newton. Antes de continuar, poder-se-ia fazer as seguintes observações, que têm mais ou menos o caráter de uma digressão. N a Lógica, Hegel põe em evidência o interesse que tem, para a dialética, a noção de grandeza evanescente, assim como a de “ m om ento” em sentido newtoniano28. O que há de importante nisto para Hegel é que, postas enquanto desaparecentes, as grandezas não são tom adas após o seu desaparecimento, mas na re lação (Verhältnis) com a qual elas desaparecem. Neste sentido, são e não são29. A leitura do comentário de Hegel poderia levar a crer que, contrariamente à minha interpretação, Hegel faria com que o “m om ento” newtoniano correspondesse ime
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diatamente ao momento no sentido hegeliano, isto é, à Aufhebung, ou mais preci samente, àquilo que é suprimido (das Aufgehobene). Porém, se lermos com aten ção o texto de Hegel, damo-nos conta de que, na realidade, o “ m om ento” newtoniano é interpretado, não como sendo o equivalente de um “ suprim ido” (hegelia no) qualquer, mas como um “ suprim ido” que se encontra no limite (no caso, no limite do quantum e da qualidade que reaparecerá no interior da medida). É tal “ suprimido” no limite e não um “ suprimido” (hegeliano) qualquer que será o modelo das diferenciais de significação (mesmo se, em Newton comentado por Hegel, o “ su prim ido” se encontra no limite do quantitativo e do qualitativo, e, no caso geral que aqui considero, trata-se de um “ suprim ido” no limite da passagem do qualita tivo ao qualitativo). Neste sentido, os textos de Hegel sobre a matemática dos infi nitos e sobre Newton, em particular, parecem confirmar a minha interpretação. C) Análise do sujeito. O juízo do Sujeito Retomemos agora a análise do conceito de capital. Até aqui, tratei sobretudo do que se passa no predicado. Convém agora ocupar-se do sujeito. A análise do sujeito, como se verá, opera uma mudança de perspectiva. Partam os uma vez mais da circulação simples, porém, acrescentando à leitu ra em termos de devir (lógica do ser) que fiz precedentemente, uma segunda leitura — trata-se na realidade de um deslocamento do objeto — em termos de essência. M ostrou-se que a troca de mercadorias pode ser considerada como um devir, de tal m odo que se poderia escrever “ o dinheiro é... m ercadoria” , “ a mercadoria é... dinheiro” (o “ é ...” indicando, aqui, a idéia de devir). M as, na circulação sim ples, estão igualmente presentes determinações da ordem da essência. Por um lado, a troca de mercadorias pode ser lida como um movimento em que ocorrem rela ções de posição e de pressuposição. (No dinheiro, o valor de troca é posto e o valor de uso pressuposto, na m ercadoria, o contrário; a troca faz do posto o pressuposto e vice-versa.) M as, se se considerar a relação entre valor e valor de troca, encontrar-se-á propriamente uma relação entre essência e aparência. O valor é a essência de que o valor de troca é a aparência. Seria possível escrever “ o valor é... o valor de troca” (em que o “ é” ... indica uma relação entre essência e aparência). O capital poderia ser lido como a unidade dessas determinações, portanto, como a unidade do ser e da essência (do devir e da posição). M ais precisamente, esta unidade se estabelece da seguinte maneira: o valor, que era a essência (e o sujeito do juízo de essência), torna-se de certa maneira o m ediador do devir do dinheiro em m ercado ria e da m ercadoria em dinheiro. Neste sentido, é como se o sujeito do juízo da essência se tornasse uma espécie de cópula do Juízo do devir30. E, na medida em que o movimento da essência é um devir “ suprim ido” , tudo se passa como se a es sência retomasse o devir ou repusesse o devir enquanto devir, mas, agora, como devir auto-dominante, como devir-Sujeito. A negatividade da essência estava, de certa maneira, “ atrás” das aparências (Hegel condena esta expressão, m as emprega-a ocasionalmente para m ostrar o que muda com o conceito). Agora esta negativida de está de certa maneira no próprio nível das aparências que se tornaram fenôme nos, ou ela é inerente aos fenômenos e àquilo que os põe em movimento. Assim,
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estabelece-se um vínculo entre o movimento da essência, de que o sujeito essencial é o valor, e o devir do dinheiro em m ercadoria (e vice-versa), dois movimentos — de que o primeiro é um movimento “ suprim ido” — que estavam separados no ní vel da circulação simples. M as também seria possível dizer da seguinte maneira: o sujeito essencial va lor não se reflete mais em seu predicado, ele se torna — de um m odo que à primei ra vista pode parecer um tanto paradoxal — um sujeito de inerência. Só que o que lhe é agora inerente é precisamente um “ fluente” , o dinheiro ou a mercadoria en quanto “ fluentes” . Por isso, teremos aí um juízo — veremos que só nesse nível é que teremos um juízo plenamente posto — que não é mais da ordem da essência, nem da ordem do devir (de resto, é de maneira sui generis que ele se torna juízo de inerência) — um juízo que é, ele próprio, um fluente, o que chamei noutro lugar31 juízo do Sujeito. De fato, este juízo é momento de uma cadeia — mais que uma cadeia — de um processo de juízos, cujos momentos estão vinculados entre si por relações que são ao mesmo tempo da ordem da pressuposição/ posição (portanto, da ordem da essência) e do devir (portanto, da ordem do ser). Assim, “ o capital é m ercado ria” (já que, pelas operações que descrevi, o valor se tornou capital) pressupõe “ o capital é dinheiro” (e vice-versa); m as “ o capital é m ercadoria” — pode-se dizer também — se torna (wird, devient) “ o capital é dinheiro” (e vice-versa). O princi pal resultado desta leitura, que completa a primeira, é que, por esta via, o conceito de capital aparece, pela primeira vez, remetendo propriamente ao domínio do ju í zo plenamente posto. O que seria preciso explicar de maneira mais precisa. Com efeito, enquanto se permanecer no momento da circulação simples, não se pode dizer que haja posição de um juízo. Isto porque ou o sujeito não é posto ou, quando o é, a posição do sujeito é pressuposição do predicado e vice-versa (caso do sujeito “ es sencial” ). N a realidade, no devir m ercadoria/dinheiro (e dinheiro/ m ercadoria), m ercadoria e dinheiro são predicados com sujeito pressuposto. São “ determinidades” , no sentido especifico em que Hegel emprega o termo quando escreve Bestimmtheit, no momento de dar o título à lógica da qualidade (é que a lógica da quali dade, e numa certa medida toda a lógica do ser, é uma lógica de predicados com sujeito pressuposto). N o juízo de essência (por exemplo, “ o valor é... o valor de troca” ), sem dúvida o sujeito é posto, mas só é posto enquanto o seu predicado é pressuposto, e vice-versa. O juízo de essência é um movimento de posição e de pres suposição que exclui a posição simultânea do sujeito e do predicado. Com o capi tal, ao contrário, sujeito e predicado são postos, e somente aí é que se tem propria mente (isto é, no nível da posição) o juízo. Só que esta unidade, ela própria posta no que concerne às suas relações internas (as relações inter-proposicionais), é — não pressuposta, m as — pressuponente. Isto quer dizer que, ao se pôr, ela pressu põe outros juízos, ela os “ nega” , m as, por isso mesmo, é por eles “ afetada” . Tais juízos pressupostos, por sua vez, são postos em seguida como pressuponentes, isto é, como negando os seus opostos, sendo entretanto por eles afetados. Aqui, por tanto, o juízo — tal é o estatuto do juízo numa lógica dialética — é um momento num “ processo” de juízos32. Todo juízo (todo juízo como juízo, todo juízo no in terior do Conceito) pressupõe outros juízos33. Assim como o domínio do conceito (com minúscula, a esfera do que fica aquém do juízo, e corresponde aproxim ada-
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mente àquela que, na lógica clássica, era a do termo) é, no interior de uma lógica dialética a dos predicados com juízo pressuposto, o domínio do juízo é, por sua vez, o da pressuposição de um processo de juízos (esse processo, ele próprio, não está posto com o juízo, a posição do processo devendo por sua vez nos conduzir à de m onstração dialética que é na realidade uma apresentação (D arstellung))^. Só nos resta transpor ao juízo o que foi feito com os predicados. Havia ob servado que os predicados do capital não são simplesmente a mercadoria ou o di nheiro, mas a m ercadoria e o dinheiro enquanto “ fluentes” , o que nos levava a escrever “ k é m ” e “ k é â ” . Por outro lado, no limite da passagem , tínhamos as di ferenciais de significação “ dm ” e “ d a ” (eventualmente com a indicação do sentido do processo, para o surgimento e para o desaparecimento). De maneira análoga, ao passar agora do predicado ao conjunto do juízo, senajprecisoj^screver não “ k é m ” ou “ k é a ” , nem sequer “ k é m ” ou “ k é â ” , mas “ k é m ” e “ k é a ” , onde o sinal valeria como ~ ampliado, designando, sempre, que a determinação que ele afeta, agora o conjunto do juízo, é uma determinação fluente. D a mesma maneira, no que respeita às diferenciais de significação, teremos agora, não conceitos diferenciais, mas juízos diferenciais, que seria preciso escrever, em conformidade com a repre sentação indicada, não somente “ k é dm ” , “ k é d a ” , mas também “ d (k é m )” , “ d (k é a )” , eventualmente com a indicação das flechas, para distinguir a geração, do desaparecimento (por exemplo, “ d [k é r^]” para a geração da m ercadoria, “ d (k é m )” para o desaparecimento da m ercadoria, e o mesmo para o dinheiro. N o limi te, teremos a conjunção dos juízos “ d (k é m). d (k é a )” . Transpõe-se, assim , o que fora dito do predicado para a esfera do juízo. Ademais, dado que, se o domínio do predicado pressupõe o juízo, o domínio do juízo, pressupõe, por sua vez, as rela ções (processuais) entre juízos, — seria possível dizer, como escrevi em outro lu gar, que passam os do domínio das relações intra-proposicionais ao das relações interproposicionais.
3 . O D e v ir Q u a n t it a t iv o
Em bora a análise do devir qualitativo ainda não esteja terminada — seu aca bamento depende de certos elementos ainda não elucidados — passo ao devir quan titativo. A) O texto dos resultados... Existe um texto de M arx em que o crescimento quantitativo do capital está presente numa linguagem que decalca imediatamente o da “ matemática dos infini to s” . É preciso analisar este texto pormenorizadamente, porque seu interesse é real. Trata-se de uma passagem dos Resultados do processo de produção imediato, ver são primitiva do que seria o capítulo VI da primeira edição do livro I do Capital, versão que finalmente não foi utilizada. O crescimento do capital é ali designado por “ A valor” , como acontece tam bém noutro lugar35. Em M arx, a letra À indica de preferência uma quantidade
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finita36, m as a passagem retoma evidentemente expressões da matemática dos infi nitos. Aqui também são necessárias longas citações: “ Em sua forma primeira (por assim dizer, provisória) enquanto dinheiro (enquanto ponto de partida da form a ção do capital), o capital existe somente como dinheiro, como uma som a de valo res de troca na forma autônom a do valor de troca, em sua expressão dinheiro. M as este dinheiro deve se valorizar. Para isso, o valor de troca deve servir para criar mais valor de troca. As grandezas de valor devem crescer, isto é, não somente conservar o valor existente, mas p ôr um incremento, À valor, uma mais-valia, de tal maneira que o valor dado — a som a de dinheiro dada — se apresente como fluens, e o in cremento como fluxão (Fluxion) (...) Aqui, o capital existe somente como uma soma de valor dado: A (dinheiro) no qual todo valor de uso se apagou, e, portanto, na forma do dinheiro. A grandeza dessa soma de valor é limitada pelo montante (Hõhe) ou a quantidade da soma de dinheiro que deve se transformar em capital. Esta soma de valor se torna portanto capital, devido ao fato de que a grandeza cresce, de que se transform a em uma grandeza variável, de que desde o início ela [é] um fluens que deve pôr uma fluxão (Fluxion). Em si, esta som a é capital, isto é, segundo a sua determinação [Bestimmung], somente [erst] porque ela é gasta de maneira que tem como finalidade o seu crescimento, porque ela é dispendida tendo como fim \zum Zweck] o seu crescimento” 37. Eis que, no próprio texto de M arx, encontramse as expressões newtonianas de “ fluens” e de “ flu xão” . Aqui, tais expressões têm, evidentemente, um sentido quantitativo e não-qualitativo como era o caso no em prego que fiz anteriormente. O dinheiro que era uma grandeza constante deve se transform ar em grandeza variável (Fluens), grandeza capaz de pôr um crescimento (Fluxio). T al é a finalidade pela qual o dinheiro foi gasto38. Vejam os como se des creve esta transform ação: “ Se o capital primitivo é uma som a de valor = x, a fina lidade é que x se transforme em x + Ax — pelo que x se torna capital — , isto é, [se transforma] numa som a de dinheiro ou som a de valor = som a de valor primitiva + o excedente sobre a soma de valor primitiva, [se transforma] na grandeza dada + a m ais-valia” 39. Indica-se em seguida a via da pesquisa: “ Esta finalidade do proces so, [isto é,] que x se transforme em x + Ax, m ostra ademais que via (G ang) deve seguir a pesquisa. A expressão deve ser a fw ição [Funktion] de uma grandeza variá vel, ou nela se transform ar durante o processo” . Isto significa o seguinte40: a ex pressão é x + Ax. Ela deve ser função, isto é, variável dependente de um x capaz de se transform ar, ou já transform ado em x. Ou então é a própria expressão x + Ax que se transform a em variável, isto é em x + Ax. Se a primeira possibilidade remete à transform ação da “ produção sim ples” em produção capitalista, a segunda reme te à passagem do excedente (lucro comercial ou de usura) pré-capitalista, à maisvalia como determinação capitalista (ver a referência a isso na mesma página 5 dos Residtate...). “ Inicialmente, enquanto soma de dinheiro dada, x é uma grandeza cons tante, cujo incremento é portanto = 0. Assim, no processo, ela deve se transform ar numa outra grandeza, que contém um elemento variável. Trata-se de descobrir este componente e, igualmente, de m ostrar por que mediações uma grandeza variável vem a ser, a partir de uma grandeza primitivamente constante” 41. Retomemos de um pouco antes. A expressão x + A x deve ser a função de uma grandeza variável. Partiu-se de uma grandeza que se apresenta como constante, tornando-se em se
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guida esta constante, ao longo do processo, uma outra grandeza que contém um elemento variável. Trata-se de descobrir esse elemento variável, m as também, e sobretudo, as mediações que a tornam possível, o que quer dizer: é preciso extrair a variável no sentido próprio, a grandeza que sofrerá variação. O problem a é, portanto, descobrir o que varia, de certo m odo, constituir uma variável a partir de um elemento constante (ou aparentemente constante), x + Àx (o capital mais o seu crescimento) designa, por um lado, a variável dependente e seu crescimento (o que se poderia transcrever por y + Ay), o resultado do processo. M as x + Ax contém também a variável independente que na realidade está oculta em x (trata-se de v, capital variável, que existe como elemento de x). Assim, a linguagem do Cálculo se redobra com a linguagem da essência (a variável dependente é a aparência da va riável independente e a contém...). O problem a consiste, de fato, em separar os elementos constantes dos elementos variáveis no interior da totalidade inicial (isto é, no interior da variável independente aparente). “ Com o (...) uma parte de x se transform a novamente numa grandeza constante (...), mudança [change] que em nada altera a natureza constante da grandeza do valor, que não altera absoluta mente [■überhaupt] em nada esta parte, na medida em que ela é o valor de troca, x se apresenta no processo como c (grandeza constante) + v (grandeza variável) = c + v ” 42. A grandeza inicial x se resolve, portan to, num a parte constante e numa parte variável. (Se se quiser m ostrar em que medida este desenvolvimento decalca a matemática dos infinitos, mesmo se A designa aqui um crescimento finito, será preciso proceder ã seguinte notação: y é a grandeza inicial total, x, a sua parte variável. Ter-se-á, então, y = x + c. Com o crescimento, o lado direito da equação será x + Ax + c, e a equação será y + Ay = x + Ax + c, de onde Ax = Ay e Ay/ Ax = 1.) N o m esmo sentido, M arx escreve: “ M as a diferenciação [Differenz]43 A (c + v) = c + (v + Av), e como a diferenciação de c = 0 [a diferenciação A (c + v)] = v + Av). O que aparece originariam ente como Ax é efetivamente Av. E a relação deste in cremento da grandeza x com a parte de x de que ele é efetivamente o incremento deve ser ([visto que] Av = Ax [pois Ax = Av]) Ax/v = Av/v, que é na realidade a fór mula da taxa de m ais-valia” 44. Com o se vê, o problem a teórico para a crítica da economia política é o de apresentar a diferenciação do capital, apresentação que exige a redução da totalidade inicial (simultaneamente, variável dependente e va riável independente aparente) à verdadeira variável independente. Entendamos, a questão é: o que é que vem a se diferenciar? O que é que varia? A dificuldade parece situar-se, portan to, num nível que não apresenta dificuldade para a m a tem ática. Para esta, a variável está dada, o que constitui problem a é o cálculo da derivada (supondo-se a ciência já constituída) ou o estabelecimento e a disposi ção das noções que permitem este cálculo (para a ciência em constituição)45. Se distinguirmos “ tom ar a diferencial” (em francês, “ différentier” ) de “ calcular a di ferencial” (em francês, “ différencier” )46, a crítica da econom ia política, ao in verso da m atem ática, se interessa pela prim eira “ o p e ração ” , não pela segunda. (De resto, vimos que a derivação da função capital y = x + c não oferece nenhu ma dificuldade.)47 A seqüência do texto insiste no fato de que c deve ser posto de lado: “ Como o capital total C = c + v, no qual c [é] constante e v variável, C pode ser considera
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do como função [Funktion] de v. Se v aum entar em Av, C se tornará = C ’ (so wird C = C ’). Tem-se portanto: 1) C = c + v; 2) C ’= c + (v + Av). Se se subtrai a equação 1) da equação 2), obtém-se a diferença C ’ - C, o incre mento de C = AC. 3) C ’ - C = c + v + Av - c - v = Av; 4) AC = Av. Tem-se portanto 3) e por isso 4) AC = Av. M as [de fato, RF] C ’ - C, a grandeza na qual C se modificou (= AC), = o incremento de C ou AC, portanto 4). Ou o incremento do capital total = ao incremento da parte variá vel do capital, de tal maneira que AC [na realidade, Ac, RF] ou a mudança da parte constante do capital = 0. Por conseguinte, nesta investigação sobre AC ou Av, o capital constante [é] posto como = 0, isto é, deve ser posto de lado [ausser Acht gelassen werden]48. N o cálculo diferencial, as constantes que se adicionam à va riável independente desaparecem na derivação. N o entanto, o paralelo vai somen te até um certo ponto. O problem a do matemático não é extrair as constantes, mas saber o que elas se tornam na derivação. Para a crítica da economia política, tratase, ao contrário, de extraí-las. M as uma vez que este trabalho estiver feito, sabe-se “ por definição” que as constantes não entram na variação. Interessam, entretanto, para a crítica, as relações Av/v e Av/C (isto é, se o ca pital variável é x e o capital total y, as relações Ax/x e Ax/y): “ A proporção em que v aumenta [= Av/v (taxa de mais-valia). A proporção em que C aumenta [é] Av/C =Av/c + v (taxa de lucro)” 49. “ A função própria, específica do capital enquanto capital [observemos: “ fun ção ” remete simultaneamente à função no sentido — quase — matemático, e à fi nalidade do processo, RF] é, portanto, a produção da mais-valia, a qual, como será apresentado adiante, não é senão a produção do sobre-trabalho, apropriação do trabalho não pago no processo de produção efetivo, [sobre-trabalho] que se apre senta sob a forma objetiva (vergenstàndlicbt) como m ais-valia” 50. A conclusão a tirar da análise deste texto, que serve para introduzir a discus são sobre o movimento quantitativo, é, de um lado, que, se nos ativermos à forma do raciocínio, a despeito da forma matemática na qual ele se apresenta, o desen volvimento que nele encontramos remete a algo bem distinto. Digam os que, aqui, a progressão da análise crítica da economia política é estranha ao cálculo e à dedu ção matemática, e que, inversamente, a análise matemática dispensa a revelação de uma essência. E no entanto seria um erro supor que o paralelo é arbitrário ou arti ficial. E que, para além daquilo que constitui o movimento do raciocínio há, no nível do teor dos conceitos e mesmo da sua ordenação (que distinguirei do teor das “ in ferências” pelas quais eles são apresentados), uma analogia real. N ão é pelo modo do raciocínio, m as pelo conteúdo mesmo dos conceitos e pelas formas que o con
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teúdo destes induz, que o modelo do Cálculo parece importante neste contexto. Ele interessa porque introduz a idéia de fluxo e de continuidade51. E é na medida em que tais noções são suscetíveis de uma significação lógica que o modelo do cálculo infinitesimal parece pertinente e fecundo para pensar a lógica do Capital. Nesse sentido, o decalque do Cálculo é simultaneamente instrutivo e enganador. Ao ape lar para o simbolismo das operações algébricas que nos conduzem ao limiar do Cál culo, corre-se o risco de que ele oculte a verdadeira natureza do raciocínio; porém, ao mesmo tempo, ele fornece um modelo conceituai que, sob a condição de ser trans posto, é suscetível de esclarecer a natureza verdadeira dos conceitos e a estrutura geral que o conteúdo destes impõe. Se isto é verdade, teríamos aí um problema bem conhecido, atinente à relação entre a matemática e a lógica (no caso, o que se chama de lógica dialética): a primeira fecunda a segunda, m as, ao mesmo tempo, quando a primeira é tom ada em proxim idade demasiado grande, corre-se o risco de que ela obscureça o caminho a seguir. Sob tais condições, poderíam os dizer que a apresen tação do capital aparece como uma espécie de diferenciação da circulação simples. N os limites da circulação simples, m as, considerando-se já a transferência do valor dos meios de produção (o que é possível fazer), teríamos M = v + v(c), em que M é o valor da mercadoria, v o valor criado e v(c) o valor transferido, ou se se quiser, te ríamos y = x + c. N o nível do capital enquanto capital (ao substituir o crescimento finito Ax pelo crescimento infinitamente pequeno dx, porque do ponto de vista lógico — não do ponto de vista estritamente econômico — , é dx que se impõe), teríamos y + dy = (x + dx) + c. O capital é logicamente a diferencial da circulação sim ples52. B) O movimento quantitativo Resum am os primeiro o que foi feito para o movimento qualitativo. Introdu zi, a propósito do movimento qualitativo, o conceito de significação fluente, em seguida, o de diferencial de significação. Representei o movimento qualitativo pe los ju í^ osJ‘k é m^_e^“ k é â ” , em que “ m ” e “ â ” são conceitos fluentes; e também por “ k é m ” e “ k é a ” , que são juízos fluentes. Introduzi, por outro lado, as dife renciais conceituais “ dm ” e d a ” , com as quais podem os form ar o juízo “ k é dm . d a ” , e as diferenciais de juízos ou os juízos diferenciais “ d (k é a )” e “ d (k é m). d (k é a )” , ou “ d [(k é m) . (k é a)]” . Para o movimento quantitativo, há uma diferença importante. Se para o m o vimento qualitativo há predicação (entre o capital de um lado, a m ercadoria e o dinheiro de outro), para o movimento quantitativo, trata-se de igualdades entre o capital e certas grandezas: k = 4, k = 5 etc.53 Representaremos estas grandezas por n: teremos portanto k = n, m as, como se trata de grandezas fluentes, escreveremos “ k = ñ ” ; como para o devir qualitativo, poderíamos escrever “ k é n” . Por outro lado, de maneira análoga ao devir qualitativo, teremos não somente grandezas fluentes, mas também, no limite da passagem , diferenciais de grandeza. Notarem os a p assa gem por k = n + dn, que exprime o capital no momento em que ele adquire um crescimento infinitamente pequeno (insisto na pertinência lógica do conceito de tal crescimento do capital, mesmo se do ponto de vista estritamente econômico ela não é significativa).
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C) O capital como vivente. M arx e Aristóteles. H á um aspecto que foi mencionado, mas não analisado até agora, o do capi tal apresentado como “ vivente” . Qual é a legitimidade desta representação e quais são as suas implicações, lógicas, sobretudo? Com o ela se insere na tram a das no ções que exam inam os? Parece haver aí dois problem as. Inicialmente, com que di reito se pode afirm ar que o capital é um tipo de [une sorte de] vivente? Em segun do lugar, com que direito se pode afirm ar que o capital é capaz, não somente de crescer, mas também de engendrar? As duas questões estão certamente ligadas, porém, essa ligação é mais complexa do que se poderia pensar. O próprio capital não é um vivente, isto é óbvio. E a produção da mais-valia não é tam pouco uma reprodução biológica. Ele é um quase-vivente, que é capaz de um quase-engendramento. M as o que é preciso entender por este “ quase” ? Comecemos pelo “ vivente” . Se o capital é considerado como um vivente, é por que ele é capaz de um tipo de automovimento. N ão se trata propriamente de um movimento local, mesmo se tal movimento se encontra aí ou pode aí se encontrar. Trata-se de um conjunto de transform ações cujo resultado é a produção da maisvalia. Porém, em que sentido essas transform ações são autotransform ações e que razões permitem extrair daí a idéia de vida? Questão ingênua, mas que não é possível evitar: tais transform ações não são o resultado das ações de um agente, o capitalis ta? N um plano imediato, elas o são efetivamente; só que a ação do capitalista não aparece como dependendo de uma “ consciência de si” . Tais ações aparecem como impostas aos agentes por algo assim como uma “ força social” . M as, se o agente das transformações do capital está mais do lado do objeto que do sujeito (mesmo se este último é quem as executa), isto não é uma razão suficiente para atribuir a este agente objetivo o caráter de uma quase-vida. A propósito destes fenômenos e de outros apa rentados, fala-se de preferência em mecanismo social, ou mesmo em quimismo social. Se aqui se permite falar de vida ou de quase-vida, é porque tais transform ações encerram em si mesmas um encadeamento que é da ordem da finalidade. Se nos referirmos mais precisamente ao texto do Capital, é preciso dizer que, enquanto nos mantemos no momento da circulação simples, o fim permanece fora da coerção social. H á coerção dos meios, e, nesta medida, ela é somente da ordem do quimismo. M as, no momento do capital enquanto capital, os fins são incorporados ao processo social — há justamente uma relação dos meios (devir qualitativo) com os fins (devir quantitativo) — , por isso pode-se falar de finalidade e de quase-vida. (Em relação aos fenômenos sociais em geral, e, fora de toda referência ao Capital, talvez seja preciso insistir no fato de que, se a coerção social parece remeter freqüentemente, de uma maneira ou de outra, à realização de certos fins, a particularidade do capi tal — m as em tal contexto isso vale para o objeto econômico em geral — parece ser que a finalidade está investida num objeto em sentido estrito.) Tem os aqui, portanto, dois elementos. De um lado, o fato de que as ações devem ser captadas como remetendo a algo que não a subjetividade dos agentes. E, em segundo lugar, o fato de que esse algo se revela mais como um análogo do processo vital do que como um análogo do processo físico ou químico. E isto porque ele encerra uma re lação de finalidade (deixo para mais tarde explicitar o conteúdo desta finalidade)54.
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Passemos agora às idéias de crescimento e de engendramento. N o que con cerne ao movimento quantitativo, o que mais deveria nos interessar é a idéia de crescimento. Veremos porém que, num nível mais profundo, é a idéia de engen dramento (de auto-engendramento) que prevalece. Por isso, importa mostrar, mesmo no nível quantitativo, em que sentido se pode dizer que o capital não somente cres ce mas engendra (“ faz filhos” ). Uma razão pela qual se poderia supor que há engen dramento é que —- nos termos da teoria de M arx — há criação de valor. A criação de valor se opõe à simples transferência, e esta oposição se explicita nos termos de uma diferença entre crescimento e engendramento. M as, na realidade, se a produ ção da mais-valia pode ser vista não somente como crescimento, m as como engen dramento de um vivente por um vivente, é porque o objeto engendrado — abstra ção feita (e já justificada) do fato de que é preciso um mínimo de capital para que o capital funcione enquanto tal — goza de inteira autonom ia55. M esmo se isto nem sempre acontece na realidade, o novo capital pode exercer a função de capital au tônomo. Devido a este fato, pode-se dizer que o quase-vivente é capaz de um quase-engendramento. A propósito do auto-engendramento, é preciso distinguir duas situações. A do capital já constituído como capital, e a do capital em constituição, isto é, a do pri meiro percurso, em que o valor se torna capital. É esta última que exige algumas explicações; a primeira, uma vez que a outra tiver sido explicada — mesmo se a explicação do objeto constituído não depende em geral da explicação de seu pro cesso de constituição, uma sem a outra sempre deixaria subsistir alguma indeterminação — , não oferece dificuldade. A passagem do valor, que aparece como ob jeto inerte, ao capital, que se apresenta como um quase-vivo, poderia ser posta em relação com a idéia de geração espontânea em Aristóteles. Sabe-se que Aristóteles admite a possibilidade de uma passagem do não-vivo ao vivo56. N os textos em que se trata de geração espontânea, encontraremos o termo atjTÓjiaToa e os seus deri vados, que quer dizer aquilo que move a si mesmo e aquilo que é efeito do acaso. Ora, o capital é dito expressamente “ sujeito autom ático” (automatisches Subjekt). E dito autom ático, como se viu, porque move a si mesmo. Esse “ autom ático” indi ca também a origem inerte do capital? Um sujeito autom ático seria, então, não so mente o que move a si mesmo, m as aquilo que se faz a si mesmo sujeito. N o entan to, não se permanece no modelo da geração espontânea. A referência aristotélica se acrescenta um modelo teológico. Para Aristóteles, evidentemente, a geração es pontânea não confere ao que foi o ponto de partida do vivente o caráter de viven te. Aquilo de que nasceu o vivente não é, no caso, vivente. Por isso mesmo, há ge ração espontânea. O ra, é isto o que acontece no caso do capital. Só que a “ geração espontânea” tem aqui um caráter retroativo. N o momento em que nasce o filho, o pai se constitui como vivente. O que legitima esta idéia? É que, de fato, a analogia entre a emergência do capital e a geração espontânea de Aristóteles deve ser corrigida, ou ao menos precisada. O valor de que vai nascer o capital não é, em termos abso lutos, algo inerte57; ele já é, num primeiro sentido, um quase-vivente: num primeiro sentido porque ele só encerra uma finalidade pressuposta. Com a produção do novo capital, a finalidade pressuposta se torna finalidade posta, e devido a este fato é nor mal que, se o novo capital é capital, aquilo que o fez nascer também o seja. M as
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por que o novo capital é capital? A sua própria finalidade (enquanto novo capital), de fato, está somente pressuposta. M as ele é capital porque representa a posição de uma finalidade pressuposta que se encontra em seu “ genitor” . Logo, o filho cria o pai tanto quanto o pai cria o filho. E não se trata de causalidade recíproca, mas de criação recíproca, criação recíproca que é da ordem da posição de uma finalida de pressuposta. De Aristóteles a M arx, não é a definição da vida que se m odifica58. Dir-se-ia que o que é novo é o capital enquanto quase-vivente, se a mesma idéia (num registro diferente) não se encontrasse já — como se sabe — em Aristóteles: “A moeda só foi feita em vista da troca; o juro, pelo contrário, multiplica esse mesmo dinheiro; é daí que o juro tom ou o seu nome (τόκοσ, filho, descendente), porque os seres engendrados são semelhantes a seus pais, e o juro é dinheiro que nasce de dinheiro (ó δέ τόκοσ γίνεται νόμισ μα έκ νομίσματοσ); por isso, de todos os m o dos de aquisição, ele é o mais contrário ã natureza (παρά φ ΐσιν)” 59. A economia enquanto busca do lucro, a economia enquanto objeto da crematística, no sentido estrito, aparece como uma quase-vida e, portanto, como urna contra-natureza. Por isso ela é condenada. O dinheiro remete de fato (em certo sentido, antes, de direi to) ao nomos e não ã physis: “ E é indispensável que todos os bens sejam medidos por meio de uma única escala (...) o carecimento (χρεία) é o vínculo universal [...] mas a m oeda se tornou uma espécie de substituto do carecimento e isto por con venção (κατά συνθήκην), e, de resto, é por esta razão que a m oeda recebe o nome de νόμισμα, porque ela existe, não por natureza, m as em virtude da lei (νόμω) e que está em nosso poder mudá-la ou torná-la inutilizável” 60. Vê-se que o que se desenhava como contra-natureza em Aristóteles se torna o natural-social em M arx. Aquela irracionalidade que aparecia como uma sombra ameaçando a Cidade, torna-se irracionalidade-racional plenamente objetiva e com todos os direitos de cidadania no próprio coração da sociedade capitalista. A mer cadoria é da ordem do quase-químico (isto já vai de encontro a Aristóteles, o céle bre texto da Ética a N icóm aco61, comentado na seção I do Capital, exorciza todo “ quim ism o” da mercadoria). E assim como o físico-químico enquanto tal encon tra na vida um elemento organizador, o quase-físico-químico, que já é algo social, o elemento da m ercadoria, se organiza, ou é organizado, pelo quase-vivente que é o capital. De resto, o social enquanto quase-vida, o capital, organiza também ver dadeiros processos físico-químicos. Esta mimesis do vivente pelo social tem um andamento teológico. Um siste ma de form as, nelas mesmas não-vivas, tom a a forma do vivente, a “ geração recí proca” dessas formas as constitui como quase-viventes. O capital — e não o dinheiro como nos Manuscritos de 1844 — aparece como o “ Deus vivente” , ou melhor, como o desdobramento das pessoas de Deus. (Dizer a este propósito que, como na reli gião, os produtos criados do homem se autonomizaram é banal e antropologizante; digamos antes, que, como na religião, há um sistema não-vivente de formas que se apresenta como vivente ou, em todo caso, como pessoal.) Porém, introduzir o modelo teológico é, ao mesmo tempo, reencontrar a dialética hegeliana. Com a própria idéia de natural-social som os remetidos a Hegel. O conceito é nomo-pbysei. Ademais, a vida é o conceito e a idéia imediata. M ais precisamente, porém, a contemporaneidade do engendrado e do engendrante é a das determinações da Lógica. E da es-
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sência (a qual fornecerá a lógica da mercadoria) que nasce o Conceito, mas é só pelo Conceito que a essência é essência. E o Conceito já está lá — pressuposto — na essência (e também no ser). A contemporaneidade do pai e do filho, do valor que engendra e do capital engendrado, é a mesma das determinações da Lógica (essa teologia racional, segundo o próprio Hegel), contemporaneidade que garante o m o vimento hegeliano, tanto quanto m arxiano, da pressuposição e da posição.
4 . O C o n ju n t o
do
P r o c e sso
O devir “ tautológico” A) A lógica das duas formas de devir. Form as da universalidade concreta. Consideremos agora, lado a lado, as duas formas de devir, e tentemos preci sar a significação lógica de cada uma delas. O devir qualitativo aparece como uma sucessão de juízos do tipo “ o capital (k) é...” 61, o devir quantitativo como uma su cessão de enunciados do tipo “ o capital (k) é igual a x (valor)63” . O primeiro juízo é uma predicação, mesmo se se trata, como já vimos, de uma predicação de um tipo particular, que só se explicita no interior de uma lógica dialética. O segundo é de uma natureza particular. Ele não é propriamente uma predicação. Dir-se-ia que há aí uma identidade, K = x, em que x é um número. Porém, mais precisamente, o juízo exprime uma medida do capital num momento dado. Aqui se colocam os proble mas: 1) do caráter geral dos juízos que exprimem medidas; 2) do que representa um juízo de medida no interior de uma lógica dialética, e em particular em se tra tando de um processo-sujeito. Sem entrar numa discussão mais detalhada que ul trapassaria os limites deste texto, digamos que um juízo de medida em se tratando da medida de um processo-sujeito parece articular igualdade e predicação64. Ele ex prime de certo modo uma igualdade, mas esta não é do tipo da que se encontra por exemplo em 4 = 2 + 2, mesmo do tipo da que une dois sentidos diferentes — na acepção fregiana do termo — de um mesmo objeto. Entretanto, este juízo também não exprime uma predicação (mesmo uma “ predicação dialética” , como no caso anterior). Diria que esse juízo de medida une predicação e identidade, de tal modo que se poderia escrever “ a é = x ” (em que se tem tanto o “ é ” da predicação como a igualdade, e os dois são necessários). Consideradas no interior da dialética, as m o dificações a introduzir nos juízos de medida em geral são análogas às que afetam a predicação. E preciso introduzir as “ operações reflexivas” . Se o sujeito não fosse o Sujeito-processo, teríamos um juízo em que o sujeito é pressuposto e o predicado p osto65. Com o o sujeito é um processo, tem-se na realidade uma não-reflexão, o que, como já si viu para a predicação, não conduz entretanto às determinações ló gicas correntes, porque o predicado (lido de forma tradicional ou de forma fregiana) é pressuponente (isto é, ele é negante, por que nega a forma “ ausente” ).66 M as o que nos interessa agora é a relação ou as relações que poderiam existir entre os diferentes juízos que constituem cada um dos momentos do devir do capi tal. O interesse desta questão é que ainda uma vez encontramos formas que têm
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certa analogia com form as lógicas correntes, distinguindo-se destas porém, essen cialmente, por estarem afetadas por certas modificações. Para simplificar, como fiz no início deste texto, considero o sujeito dos juízos como se ele se mantivesse o mesmo (na realidade ele se repõe), e considero as m o dificações do predicado (em sentido tradicional). N o fundo, para os dois casos, predicação e predicação-identidade, tem-se uma articulação (entre os predicados ou entre os predicados-identidades) que fica a meio caminho entre uma disjunção e uma conjunção, ou se se quiser, usando a linguagem das classes, entre uma soma lógica e uma m ultiplicação lógica. Som a lógica, porque o capital é ou mercadoria ou dinheiro (quantitativamente: ou 2 ou 3 ou 4 etc.), e multiplicação lógica porque ele é mercadoria e dinheiro (quantitativamente: 2 e 3 e 4 etc.). Dir-se-ia que, con forme se considere o movimento quantitativo ou o movimento qualitativo, um dos aspectos é mais forte, ou primeiro, embora seja difícil fazer a distinção. A idéia de multiplicação lógica pareceria convir melhor ao registro quantitativo, porque há acumulação (é preciso distinguir a série aritmética que exprime a acum ulação, por exemplo 1, [1+ n], [1+ n + m], etc., e a cadeia lógica 1. [1 + n] . [1 + n + m] etc.). A multiplicação lógica é aqui mais nitidamente contraditória (do que para o caso da qualidade) porque se terá, por exemplo, 1 = 3 = 7 = ... etc., mas talvez por isso mesmo, se deva privilegiar a multiplicação lógica para a leitura do movimento quantitati vo. Inversamente a diversidade qualitativa (do movimento qualitativo) convida mais facilmente a pensar numa disjunção, isto é, numa som a lógica. M as o essencial é que em nenhum dos dois casos se trata das operações formais de multiplicação ló gica ou de som a lógica, m as dos seus análogos dialéticos. E que, como se viu, a posição da mercadoria (ou do dinheiro) é pressuponente, a outra determinação está presente, embora afetada de “ negação” . Isso significa em termos de classes que cada “ sub-classe” (“ espécie” se se quiser) já continha a classe (o “ gênero” ), o que quer dizer, cada uma era um “ universal concreto” . A som a dialética de classes (das sub classes) não nos conduz a uma classe que contém as duas primeiras, mas à reunião de dois universais concretos, cujas determinações são alternativamente postas (ou pressupostas). A disjunção dialética da mercadoria e do dinheiro tem como resul tado o seguinte: tanto o dinheiro quanto a mercadoria são somente como valores, isto é, só valem como o universal da m ercadoria e do dinheiro. É neste sentido que se diz nos Grundrisse que, com o capital enquanto capital, é a oposição do dinhei ro e da mercadoria que é “ suprim ida” . Tem-se aí, pois, uma forma de universali dade concreta e uma operação dialética, soma de universais concretos, cujo resul tado foi indicado. N o outro registro, teríamos uma multiplicação lógica de caráter dialético. Nele se tem em cada momento uma síntese que incluiu os outros pressu postos, mas ela se revela como exclusão desses outros (temos uma conjunção que é ao mesmo tempo uma disjunção, ou se se quiser uma alternativa). C ada momento se põe como universo do discurso. M as esse universo se desfaz se considerarmos só o que é posto. Essas duas form as de universalidade concreta — na realidade, dois movimentos inversos — estão ligadas à inclusão. — Quando se diz que o dinheiro é ao mesmo tempo uma m ercadoria, a mercadoria, e algo que por isso mesmo não é uma m ercadoria, tem-se também um universal concreto, mas de um tipo diferen te dos dois outros, e do que os dois outros têm em comum. N os dois casos anterio-
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res, há universais concretos ligados à inclusão, no caso da relação (“ sim ples“ ) di nheiro/mercadoria, tem-se uma relação ligada mais precisamente à pertença, uma espécie de “ pertença dialética” na qual uma determinação singular se faz ao mes mo tempo classe (ela equivale à classe a que pertence, e por isso mesmo não per tence mais a essa classe). H á também um movimento do lado do sujeito, representado pela posição su cessiva do mesmo capital. Aqui se tem uma sucessão de objetos, na realidade, uma sucessão de posições do mesmo objeto. Essa sucessão poderia ser pensada sob a forma da multiplicação lógica, que do ponto de vista formal teria como resultado o mesmo objeto. Ou como uma som a lógica, cujo resultado seria idêntico. Tem-se, de novo, uma multiplicação lógica que é ao mesmo tempo uma som a lógica (ou viceversa, mas aqui, como no caso das determinações quantitativas, é melhor pôr em evidência a m ultiplicação, isto é a conjunção das ocorrências). M as no interior da dialética essa multiplicação tem como resultado não o próprio indivíduo, tal como ele é momento e elemento das operações, m as o indivíduo-sujeito. A soma-multiplicação lógica tem como resultado a passagem do indivíduo inerte ao indivíduo sujeito. O indivíduo que se constitui aqui tem como modelo, precisamente o indi víduo vivente. Se nos casos da universalidade concreta anteriormente considerado, encontramos respectivamente a espécie-genérica (sob duas formas) e o individuoespecifico (a relação dinheiro/ mercadoria) aqui temos o indivíduo sujeito, que por conter o conjunto das determinações pode ser chamado de individuo-genérico. Temse assim , respectivamente, a espécie-genérica, o individuo-especifico e o individuogenérico. B) O devir “ tautológico” Tendo chegado a este ponto, torna-se evidente que, na base do devir qualita tivo e do devir quantitativo, há sem dúvida um devir do mesmo ao mesmo, um devir “ tautológico” . Ele subjaz aos processos qualitativo e quantitativo. Em relação à mudança qualitativa, ele se diferencia pelo fato de se tratar de uma sucessão de igualdades, não de predicações. Em relação à mudança quantitativa já se tinha uma sucessão de igualdades, m as de igualdades atípicas (igualdades-predicações), carac terísticas da medida. Tem os portanto, aquém de “ k é m ” (ou de “ k é â ” ) e de “ k é = ñ ” , uma igualdade K = k, na realidade K = k (ou se se quiser, K = [k (é = n) é m]. Consideremos a igualdade K = k. Tudo se passa como se k viesse a ser constante mente. Como se k morresse, para renascer ao mesmo tempo a cada transform ação.67 Teríam os mais ou menos isto: K = k . k ’, K = k . k ’, em que o sinal / indica uma Aufhebung. Isto significa que k pressupõe constantemente a si mesmo. Ele é sem pre idêntico a si mesmo, m as esta identidade sempre pressupõe um devir, um devir que precisamente reconduz ao mesmo. K (K maiúsculo) indica a identidade neste devir, o universal-individual, k (k minúsculo) indica a diferença, o individual-universal. Tem os aí um tipo de identidade especulativa (em sentido mais hegeliano que schellinguiano). Aqui, poderia ser introduzido o movimento da circulação do capi tal, com as suas três form as, o capital-dinheiro, o capital-m ercadoria e o capital produtivo. O capital produtivo representa o momento da identidade de K com k,
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isto é, o momento em que k, que indica a diferença, coincide plenamente com K 68. Os outros momentos são aqueles em que a diferença é propriamente uma diferen ça. Pode-se pensar este movimento como realização de uma identidade por meio de igualdades. N a Lógica de Hegel, a igualdade é a identidade exteriorizada, e os momentos do dinheiro e da m ercadoria são, de fato, momentos de exteriorização (mesmo se, ao se tratar do Conceito, tal exteriorização é, ao mesmo tempo, interior). C) Capital e função proposicional. Capital e integral A análise que foi feita m ostra que o capital, tal como M arx o apresenta, p a rece ter algum a coisa em comum com o que os lógicos chamam de função p ro posicional. M as o paralelism o só vai até certo ponto. Uma função proposicional é uma expressão do tipo “ x é um homem” , em que se tem um predicado “ é um hom em ” e um “ vazio” que deve ser preenchido por objetos expressos por nomes, que terão o papel de sujeitos. O capital — no inte rior da teoria de M arx — parece ter alguma coisa em comum com isto, no sentido de que ele inclui uma parte que deve ser preenchida respectivamente, conforme se considere o movimento qualitativo e o movimento quantitativo, ou pelos predicados "m ercadoria” e “ dinheiro” , ou por números que exprimem quantidades de valor. Teríamos assim “ k é ( )” . Isto, se considerarmos só a variação no interior do pre dicado dos juízos que compõe o circuito do capital (o que significa supor k inva riável). Se pelo contrário, considerarmos a série dos juízos, teríamos K (maiúsculo) = ( ), devendo a parte não saturada ser preenchida pelos enunciados “ k é m ercado ria” (ou “ k é dinheiro” ), e “ k equivale a x valor” . Com parem os essas form as de representação com uma função proposicional. O que há de comum é que a expressão contém uma parte plenamente determina da, e uma parte a ser preenchida por “ quase-argum entos” . M as as diferenças são evidentes. N a primeira apresentação (que considera só a variação no interior dos predicados), a diferença em relação à função proposicional está precisamente no fato de que a variação se faz na esfera do predicado (o que quer dizer dos concei tos), e não na esfera do sujeito (o que significa, na esfera dos objetos). Teríamos antes uma função proposicional em que a variável é conceituai e não “ objetiva” . N a segunda apresentação, a parte não-saturada seria preenchida não por concei tos, mas por enunciados (ex: “ o capital é m ercadoria” ). Nesse caso não teríamos mais uma função proposicional, mas uma função inter-proposicional, em que se sucedem proposições, preenchendo o espaço não-saturado. Observar-se-á, e com isso se introduzem novas diferenças, que, diversamente do que ocorre com as funções proposicionais, é preciso supor que o capital tem sempre um predicado. Dir-se-ia então que é com a proposição e não com a função proposicional que a com paração é possível. M as o interessante é que se a esfera do predicado do capital deve estar sempre saturada, ela está também sempre e neces sariamente não saturada. Em que sentido? N ão no sentido banal de que lhe falta a outra (ou as outras) determinações. Isso ocorre com qualquer função. M as no sen tido de que a ausência da outra está “ presente” , sob a forma da pressuposição. Se se quiser, a não-saturação é visível pelo fato da hiper-saturação. A outra (ou as
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outras) determinações estão sempre presentes sob a forma da não-presença, o que significa uma espécie de não-saturação, que é essencial ao contexto. De fato, a sa turação, a determinação se faz aqui no movimento de determinar e esse movimen to com porta sempre uma “ n ã o ” determinação. O capital se apresenta assim lo gicamente como algo que fica a meio caminho de uma função proposicional (nãosaturada) e de uma função saturada, o que significaria a meio caminho de uma função e de uma proposição (ou de uma função inter-proposicional [não-saturada] e de um seqüência de proposições). M as as diferenças não ficam aí. Pois — e nesse ponto remeto ao início desse texto — temos aqui a particularidade de uma sucessão de conceitos que através desse movimento de sucessão constitui o sujeito, como Sujeito-processo. E se é a sucessão de conceitos que constitui o Sujeito, isto significa também que não som os nós que substituímos um conceito por outro, é o próprio objeto que o faz. O capital é de certo m odo uma “ auto-função inter-proposicional” . Este é aproxim adam ente o sentido lógico dessa “ entidade” dialética. Com o indi quei, também seria possível com parar o capital com uma integral, no sentido de que nesta se tem uma som a, mas que é som a de momentos de um fluxo69. T am bém o capital é soma dos momentos de um fluxo, embora no caso do capital, esse fluxo antes de ser quantitativo, seja também qualitativo. Tudo isso converge com o significado lógico do Conceito hegeliano.
CO N CLU SÃ O As considerações finais são de três tipos. Convém, em primeiro lugar, resu mir brevemente os resultados, acrescentando algum as observações. Em segundo lugar, é preciso indicar, em linhas gerais, a relação que existe entre o conceito de capital e certos momentos mais ou menos precisos da Lógica de Hegel. Direi tam bém alguma coisa sobre a idéia de movimento em Hegel e em Aristóteles. Em ter ceiro lugar, trata-se de m ostrar em que direção este texto aponta, no que concerne à idéia de uma lógica dialética. A) Resumo dos resultados O conceito de capital se apresenta como uma espécie (une sorte) (sui-generis) de função, ou melhor, de “ auto-função” interproposicional. Seria possível descrevêlo, aproxim adam ente, citando um texto de Russell em que ele explica o que, para ele, a variável não é. O que a variável não é para Russell, corresponderia bastante bem ao que é o capital: “ Sem dúvida, na origem, a variável era concebida de m a neira dinâmica, como algo que muda com a passagem do tempo, ou, como se dis se, como algo que assume sucessivamente todos os valores de uma certa classe. Nunca é cedo demais para rejeitar esta perspectiva. Se se prova um teorema que concerne a n, não se deve supor que n seja um tipo de Proteu aritmético, que é 1 no domingo e 2 na segunda-feira etc. N ão se deve supor que n assum a simultaneamente todos estes valores. Se n representa [stands for] qualquer inteiro, não podem os dizer que n é 1, nem que ele é 2, nem sequer que ele é qualquer outro número particular. De
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fato, n denota simplesmente qualquer [any\ número, e isto é algo muito distinto do que cada número e a totalidade dos números. N ão é verdade que 1 é um número qualquer, embora seja verdadeiro que tudo o que vale para qualquer número vale para 1. Em suma, a variável exige a noção indefinível do qualquer [any\, que foi explicada [...]70. O que Russell diz não convir ã noção científica de variável, e, com isso, de função, indica precisamente a direção a seguir para compreender o que é logicamente o capital. Portanto, é como sempre a idéia “ arcaica” de função que convém ao capital. Ele é precisamente, ou de certa maneira, esse Proteu que Russell quer exorcizar. Ele é 1 agora (um “ ago ra” antes lógico do que temporal) e 2 “ mais tarde” . E ele é simultaneamente todos estes valores. Ao se referir ao “ produtor sim ples” em oposição ao capitalista, M arx escreve no Capital: “ M as o seu trabalho não se apresenta no valor da mercadoria e num surplus excedendo o seu valor pró prio, num preço de 10 que seria simultaneamente [zugleicb] um preço de 11, num valor que seria m aior que ele m esm o” 71. Com efeito, o capital é, simultânea e su cessivamente, todos os valores. Simultaneamente, se se considerar também a deter minação pressuposta, sucessivamente ele o é em termos absolutos (as form as pos tas, como as pressupostas, se alternam). Se quisermos resumir estes resultados, será preciso dizer que o capital apre senta duas originalidades enquanto conceito (e isso vale para o Conceito hegeliano em geral): por um lado, ele é simultaneamente determinado e “ n ão ” determinado (se quisermos, ele seria simultaneamente proposição e função proposicional, porém, como se trata de uma função inter-proposicional, ele é simultaneamente função interproposicional e “ feixe” de proposições); por outro lado, ele se apresenta como auto-função ou auto-proposição, o que pode se exprimir de várias maneiras. Ele é objetivo, eis uma maneira de exprimir esta autonom ia (nos termos da Lógica de Hegel, dir-se-ia que ele exprime um juízo — um juízo “ pleno” no sentido indicado — não uma simples “ determinidade” ). N esta espécie de auto-função inter-proposicional, encontram-se expressas as três formas de devir. O devir qualitativo que se manifesta por um continuum de predicações. O devir quantitativo que representa uma sucessão contínua de igual dades. E o devir tautológico que está na base das duas outras. Para representar isto, seria preciso escrever: I. K = K = K = K = etc.
(k (k (k[é (k[é
[é = n] é a) . (k [é = n] é rñ) [é = n] é m) . (k [é = j¿\ & a) = n’] é m) . (k = n ’] é a) = n’] é a) . (k je = n’] é m)
(A) (B) (C) (D)
Ou então: II. K K K K
= = = =
(k Je j= ji[£ ^ a) (k [é = n] é m) ( k jé ^ n ^ é jm ) (k [é = n’] é a)
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(E) (F) (G) (H)
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N a primeira representação (I), explicita-se o que está pressuposto. N a segun da (II), nota-se o pressuponente enquanto pressuponente. Seria possível acrescen tar, entre a primeira e a segunda igualdades, tanto em I quanto em II (portanto entre A e B, e entre E e F) a forma K = (k [é = n] é dm . da). Entre a segunda igualdade e a terceira em II ([F] e [G]), seria possível escrever K = (k [é = n + dn] é m) (em I, seria preciso acrescentar também a parte pressuposta cujo predicado é “ a ” ). O que se poderia colocar entre a terceira e a quarta igualdades, em I como em II (respec tivamente [C] e [D] e [G] e [H]), é análogo ao que foi indicado para a passagem da primeira à segunda (somente, ter-se-ia n’ e não n). O capital produtivo deveria ser escrito simplesmente K = k. M as qual é a relação dada entre as diversas expressões sucessivas (considera das em I ou II)? Poder-se-ia retomar primeiro o esquema das disjunções que são ao mesmo tempo conjunções e vice-versa (por exemplo, [A] . [B] . [C] etc. que é ao mesmo tempo, no sentido indicado anteriormente, [A] v [B] v [C] etc.). Porém, no quadro da Lógica de Hegel, seria possível pensar esse movimento seja como um devir (ou como “ passagem ” , übergehen), o que remete à lógica do ser; seja como um m o vimento de reflexão, que corresponde à lógica da essência; seja como um “ desen volvimento” (em sentido técnico hegeliano, Entwicklung), o que nos conduz à ló gica do Conceito, unidade do devir e da reflexão. Assim, por exemplo, o juízo (A) se torna (B) etc.; ou o juízo (A) se reflete em (B) etc., isto é, passa a ser pressuposto, sendo posto o juízo (B) etc.; ou o juízo (A) se desenvolve em (B) etc., isto é ao mesmo tempo se reflete e se torna (B) etc. Terse-á as mesmas três possibilidades se se considerar separadamente os elementos (m, a, m etc., para o movimento qualitativo; n, n’ etc. para o movimento quantitativo; k, k etc. para o sujeito de um e outro movimento). Por exemplo, m se torna a, ou se reflete em a, ou se desenvolve em a etc. A mesma coisa para os outros elemen tos. T odas essas “ passagens” (em sentido genérico), podem ser expressas por um “ é ” , ou mais precisamente por um “ é...” , que entretanto tem um sentido diferente em cada uma delas7“ . Essa a leitura “ vertical” do capital, aquela em que o “ devir” (em sentido geral), que constitui a sua textura, é propriamente posto. Se nos colocarm os no momento do primeiro percurso (tour) do capital, ob servaremos que v (já que na origem temos v e não k) se torna k e, por isso mesmo, K. Ao mesmo tempo, como foi m ostrado, “ m ” e “ a ” tom am o valor de v. H á aqui uma espécie de deslocamento de v. v era o sujeito (não o Sujeito), mas ele é “ supri m ido” por K. Ele não estava no predicado; agora, ali se encontra, posto que “ a ” e “ m ” valem como v. E como se, a partir dos juízos: v é dinheiro v é mercadoria obtivéssemos como resultado “ k é v ” . Teríam os, portanto, o seguinte: v é mercadoria (ou dinheiro)
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v se desloca do sujeito para o cam po do predicado, ao mesmo tempo em que, no nível do sujeito, ele se transform a em k. Porém k, e mais ainda K, de que o pri meiro é uma “ ocorrência” , são objetos de um novo tipo. N a fórmula que definia o capital e que nos serviu de ponto de partida — “ valor que se valoriza” , nessa fór mula, “ que se valoriza” não é um atributo de “ valor” . “ Que se valoriza” pertence ao sujeito, que é na realidade “ valor-que-se-valoriza” . “ V alor” isoladamente (sob a forma da m ercadoria ou do dinheiro) é pelo contrário o atributo do “ valor-quese-valoriza” e aparece assim no predicado: o valor-que-se-valoriza é valor. B) O conceito de capital e a lógica de Hegel. O conceito de capital e a teoria do movimento em Hegel e Aristóteles. Ao longo deste texto, mostrei a relação entre o conceito de capital e a Lógica de Hegel. M as não dei muitas indicações precisas. O que farei agora, embora sem pre com algum a generalidade. Digam os que esta relação é visível sobretudo no momento da lógica do Conceito, embora não exclusivamente. Limitemo-nos a a s sinalar os momentos mais característicos. Se fosse preciso escolher, dever-se-ia co meçar pela substância (ou melhor, pela substancialidade) na lógica da essência (a relação absoluta), passar às duas alíneas sobre a causalidade (causalidade e causa lidade recíproca), e somente em seguida ir à lógica do Conceito73. N a lógica do Conceito, conviria reter sobretudo o capítulo sobre o conceito, passar em seguida ao silogismo (embora o silogismo tenha mais a ver com a apresentação das diver sas formas do capital, não consideradas aqui), para terminar com os capítulos so bre a teleología e a vida. Trata-se, evidentemente, de uma escolha. A substância hegeliana já é um tipo de Conceito, mas de Conceito sem verda deiras determinações. Tais momentos ainda não são o universal, o particular e o singular, enquanto tais; observemos que, no Capital, fala-se do capital como subs tância em movimento (ver texto citado acima). Para nosso objeto, o que há de mais interessante na substância hegeliana é, por um lado, o fato de que ela é atravessada pelo — ou melhor, ela atravessa o — devir, e um devir que é também uma refle xão: “ Esta relação [de substancialidade] é somente a totalidade que aparece como devir; m as ela é igualmente reflexão” 74. Por outro lado, mas isto vai no mesmo sen tido, há o fato sublinhado por Hegel de que a substância tem acidentes, e não atri butos·. “ Os lados da relação absoluta não são [...] atributos [...] esta relação, em seu conceito imediato, é a relação da substância e dos acidentes f...]” 75. Isto signi fica que, com a substância, o sujeito não se reflete m ais no predicado. H á antes inerência (mesmo se se trata de uma inerência sui generis, a do Sujeito) do que re flexão. O Sujeito é sempre igual a si mesmo. A continuação (alíneas B e C) da rela ção absoluta trata da causalidade. Fixam-se certas determinações da substância, a substância ativa e a substância passiva, que são prefigurações do que serão, respec tivamente, o singular e o universal. T odo este desenvolvimento parece ter alguma analogia com as definições essenciais (definições em termos de essência) do capital que mencionei no início deste texto, definições em que, justamente, aparecem po laridades, porém , no interior do movimento da substância76. As alíneas sobre a causalidade representam, em certa medida, uma retomada de determinações ante
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riores da essência, ou a posição de pólos, no interior da substância. Com o concei to, o movimento quase-conceitual da substância se determina pelos momentos da universalidade, da particularidade e da singularidade. A relação entre o universal e o particular que ali se encontra é análoga à que contém o capital (o dinheiro é a sua forma geral ou universal, a mercadoria é a sua forma particular). De fato, como o dinheiro e a m ercadoria, o universal da Lógica do Conceito não tem uma exten são m aior que o particular: “ A determinidade enquanto conceito determinado [...] é o caráter próprio, imanente, que é um essencial devido ao fato de que ele [é] as- I sumido na universalidade e penetrado por ela, com a mesma extensão [Umfang], idêntico a ela, [e] a penetra igualmente [..,]” 77. A diferença entre o universal e o particular não se define em termos de extensão (e tam pouco, a rigor, em termos de compreensão, entendida à maneira clássica). O universal é um particular, por isso ele se desdobra em particularidade, mas o particular é um universal determinado, e sua posição é a singularidade. O singular é “ a singularidade desprezada [pela abstração,] é a profundidade na qual o conceito apreendeu-se a si mesmo e é posto como conceito” 78. M as a singularidade “ não é somente o retorno em si mesmo do conceito” 79, m as, igualmente, a perda do conceito enquanto (somente) conceito, porque, com a singularidade, o conceito (como na passagem ao capital) “ é posto como juízo” 80. Com o silogismo se recompõem os momentos do conceito, decom postos no juízo. O silogismo, na Lógica de Hegel, deve ser lido em geral de manei ra análoga à leitura dialética do juízo81. Assim como, no juízo, o predicado em ge- I ral contradiz o sujeito (mas isso, justamente, não será mais verdadeiro no momen-. to do conceito como conceito), no silogismo lido dialeticamente a conclusão con tradiz as premissas. Tal é o nervo [la pointe] da idéia hegeliana do silogism o (esta idéia aparece, por exemplo, quando Hegel afirma que, dado o seu caráter imedia to, “ as premissas [...] contradizem a natureza do silogism o, segundo a qual as dife rentes determinações de conceito não [são] relacionadas imediatamente [..,]” 82. O capital pode ser lido com o um silogism o. O silogism o do capital poderia ser ex presso, aproxim adam ente, da seguinte maneira: o valor é dinheiro, o valor é mer cadoria (dinheiro), o dinheiro é (mais)-dinheiro. As premissas indicam o devir qua litativo, a conclusão, o devir quantitativo. H á excesso do segundo em relação ao primeiro, este excesso (o mais) é também o excesso da conclusão em relação às pre m issas. A conclusão contradiz o que deveria ser a conclusão (o dinheiro = o dinhei ro). Tem os, pelo contrário, subjacente à conclusão, a igualdade do capital consigo mesmo, iluminando respectivamente o conjunto do “ silogism o” , ou seja, o devir “ tautológico” . O capital corresponde mais particularmente ao silogismo da neces sidade (no que concerne ao juízo, é preciso, provavelmente, relacioná-lo com o ju ízo da necessidade que, no entanto, dada a divisão quadripartite do juízo, não é a forma mais elevada). Talvez fosse preciso, também, assinalar a relação, tanto do juízo hipotético quanto do silogism o hipotético, com as idéias de mudança e devir (embora “ transpostas” pelo Conceito)83. Porém, se no silogism o os momentos do Conceito (analogamente, do capital) se apresentam postos como totalidade (mes mo se ela própria é pressuposta) — o que não é o caso para o conceito enquanto somente conceito — , permanece-se ainda no nível de uma forma somente lógica, e portanto subjetiva (trata-se da “ subjetividade” na lógica subjetiva). Com a finali
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dade que sucede ao mecanismo e ao quimismo, temos um desenvolvimento em que a forma lógica do silogismo tem ao mesmo tempo um conteúdo objetivo (este con teúdo objetivo já está presente no mecanismo e no quimismo, porém, sem finalida de). Estam os, portanto, além de uma simples forma lógica, mesmo se este “ lógico” nunca fôra formal. Já vimos a relação entre o capital e a idéia de finalidade. O movimento qualitativo tem como resultado o capital produtivo, que é meio [moyen\ do processo de valorização. Poderíamos acrescentar que a passagem do fim subje tivo ao fim objetivo, e deste ao fim realizado, pode ser pensada como a passagem do primeiro movimento do capital, em que ele é somente visado pelo capitalista, ao momento seguinte em que ele é propriamente objetivado. M as a finalidade ain da está por demais m arcada “ objetivamente” (mesmo se, no início, ela aparece ao contrário como subjetiva demais). É com a vida que passam os da objetividade ao sujeito-objeto, ã idéia. Nesse sentido, o capital é não somente Conceito, mas tam bém idéia, mesmo se ele não é idéia absoluta. A propósito da vida, já considera mos vários de seus aspectos, evocando de preferência Aristóteles; porém, os mes mos temas aparecem em Hegel (o vínculo entre a alimentação e a reprodução etc.). O conceito total, a vida, “ é a alma onipresente [allengegenwàrtig] que permanece relação simples consigo m esm a” 84. Porém, se temos a alma, temos também o cor po. E o surgimento da estrutura dual alma-corpo no nível da vida, é particularmente importante para pensar o capital. Foi assinalado, no início, o duplo aspecto formal e material do capital (que de resto não vale somente para o capital, m as, com o ca pital, ele se torna alma-corpo). A estrutura dual alma-corpo é em Hegel a de um sujeito-objeto que se adequa a um objeto que é também sujeito-objeto. M as o ca pital se detém na vida, “ a idéia im ediata” 85. N a apresentação do conceito de capital — como se viu — , encontram-se reu nidos os diferentes movimentos da Lógica de Hegel, o passar (ou o devir), a posi ção e a unidade de am bos, o desenvolvimento. Em um texto, Hegel particulariza vários destes momentos, e apresenta o juízo — que, como vimos, só é posto com o conceito — como a unidade de todas as determinações: “ Esta significação do juízo tem que ser tomada como o sentido objetivo deste mesmo [juízo] e, ao mesmo tempo, como a [forma] verdadeira das formas anteriores da passagem . O ente vem a ser e se transforma, o finito se perde no infinito; o existente emerge de seu fundamento no fenômeno e vai ao abism o; o acidente manifesta a riqueza da substância, assim como o seu poder; no ser, é [a] passagem em outra-coisa, na essência [o] parecer em algo de outro pelo que se revela a relação necessária. Este passar e [este] pare cer, agora, passaram no dividir originário [ursprünglicbe Teilen; cf. Urteil = juízo, RF] do conceito, o qual, enquanto reconduz o singular no ser-em-si de sua univer salidade, determina também o universal como [algo] efetivo. Estas duas-coisas são uma única e mesma coisa, que a singularidade se encontra posta em sua reflexãoem-si, e o universal como [algo] determinado” 86. N o que concerne a Aristóteles, o conceito de capital reúne as diferentes form as da teoria aristotélica do movimento, isto é, a transform ação, o movimento local, a alteração qualitativa, o crescimento e o decréscimo quantitativos, o devir — a geração e a destruição. N ão falei da des truição do próprio capital. Se o tivesse feito, ao lado de uma definição conceituai do capital e de uma definição essencial, teríamos encontrado algo como uma defi-
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nição — tratar-se-ia, porém, mais do que noutro lugar, de uma quase definição — inscrita no registro da lógica do ser. O conceito de capital é, assim, o resumo das teorias hegeliana e aristotélica de movimento. C) Idéia de uma lógica dialética a partir do conceito de capital M ais importante que a questão da relação entre a apresentação do conceito de capital e tais ou tais capítulos da Lógica é a noção de lógica que se extrai dessas análises. A lógica aparece aqui não somente como uma lógica do movimento, mas como uma lógica do continuum (um continuum atravessado pela geração e pela “ corrupção” do M esmo). Trata-se de uma lógica do movimento, mas entendido como movimento auto-constituinte (sujeito)87, e não como movimento predicado de um sujeito. Só por uma lógica do continuum é que se chega a apresentar o m o vimento auto-constituinte. O ra, como vimos, esta lógica se constrói em analogia com a matemática dos infinitos. Com isto, a lógica dialética (ou o que é assim cha mado) tenta dar um passo que a lógica m atemática, ao menos em sua forma clássi ca, não parece ter dado: o de introduzir diferenciais de significação, assim como integrais de significação (a significação fluente como totalização); o que significa transpor no plano lógico determinações que encontramos na matemática dos infi nitos. De fato, mesmo se a lógica formal utiliza tal ou tal exemplo tom ado de em préstimo à matemática dos infinitos, esta última parece ter permanecido ao largo do desenvolvimento propriamente substantivo da lógica. Russell afirma que “ a lógica simbólica se ocupa essencialmente da inferência em geral, e se distingue dos dife rentes ram os particulares da m atemática, sobretudo por sua generalidade. Nem a m atemática, nem a lógica simbólica estudam relações particulares tais como, diga m os, a prioridade temporal, mas a matemática trata explicitamente desta [classe] de relação possuindo as propriedades formais da prioridade temporal — proprie dades que se resumem na noção de continuidade. E as propriedades formais de uma relação podem ser definidas como as que podem ser expressas em termos de cons tantes lógicas, ou ainda, como as que, enquanto são preservadas, permitem que nossa relação varie sem invalidar nenhuma inferência na qual a mesma relação é consi derada à luz de uma variável. Porém, a lógica sim bólica, no sentido mais estrito que é [o que] convém, não busca qual inferência é possível no que concerne a rela ções contínuas (isto é, relações que produzem séries contínuas), esta investigação pertence à matemática, mas ainda é excessivamente particular [special] para a ló gica simbólica. O que a lógica simbólica busca efetivamente são as leis gerais pelas quais as inferências são feitas, e isto exige uma classificação das relações ou das proposições somente na medida em que tais regras gerais introduzem noções parti culares” 88. Aparentemente, a lógica dialética ou o conjunto dos textos — dentre os quais, essencialmente, a Lógica de Hegel — que representam a tentativa de cons tituição de tal lógica, vai na direção que, segundo Russell, a lógica matemática, pelo menos em sua form a clássica, evita. Neste sentido, a lógica dialética estaria para a lógica formal moderna um pouco como a matemática dos infinitos para a mate mática pré-leibniziana e newtoniana. T al parece ser ao menos o projeto de Hegel, apesar de ele tom ar evidentemente distância com respeito a toda possibilidade de
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formalização. E tal paralelo, insisto, não é uma simples visão geral: ele se justifica interiormente, a partir das noções que introduzi como a de diferencial de significa ção. Pensar conceitos como diferenciais (e como fluentes), tal é o passo que a lógi ca dialética — ou a proto-lógica dialética, a única existente — quis dar (franchir). Pelo menos como projeto, nisso não há nada de estranho ou de anticientífico. E no entanto, à parte algumas tentativas recentes, os lógicos de profissão não se m ostra ram indulgentes — é o mínimo que se pode dizer — a respeito do projeto de uma lógica dialética89. Aparentemente, tudo se passa como se, ao querer constituir uma lógica a partir de um modelo matemático, os lógicos se abstivessem de encarar a idéia de uma transposição rigorosa da m atem ática dos infinitos. Isso parece ser verdade tanto para Boole (e seu projeto “ vinculado dem ais” à álgebra), quanto para Frege ou Russell, que conseguiram propriamente fundar a lógica formal contem porânea, apreendendo o que é especificamente lógico, e portanto, renunciando a uma fidelidade excessiva ao modelo algébrico. Em Frege, como em Russell, a m a temática dos infinitos parece ficar fora, mesmo se aqui ou ali eles se inspiram nela para certos desenvolvimentos (a transposição é, porém, aparentemente “ adjetiva” )90. Se o projeto de um a lógica dialética é em certo sentido um projeto “ especulativo” no sentido de Hegel, ele se situa ao mesmo tempo, salvo engano, na linha geral das pesquisas da lógica matemática. A perspectiva de M arx, com o vimos, não era dife rente da de Hegel, e provavelmente com muito menos preconceitos com relação a um tratamento “ aberto” ao formalismo. Para terminar, retomemos as considerações iniciais. N a medida em que elas têm como ponto de partida o conceito de capital, as idéias aqui desenvolvidas so bre o projeto de uma lógica dialética se situam num nível relativamente complexo. Quero dizer com isso que o conceito de capital, ou o tipo de conceito que se encon tra na noção de capital, não representa a forma mais simples que se poderia ofere cer como ponto de partira para uma Darstellung da dialética. M uitas coisas deve riam ser expostas antes de se chegar à noção de capital. Situei-me, portanto, num nível de relativa complexidade, sem ter podido expor as determinações prévias. E o interesse e a fecundidade do assunto que me levaram a este trabalho, o qual, de certa maneira, faz violência à ordem da apresentação. Num outro texto, tentarei apresentar as noções dialéticas fundamentais situadas aquém do conceito de capi tal, isto é, aquém do Conceito enquanto Conceito.
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otas
1 In trodu zi m o d ificaçõ es so b re tu d o n a q u arta p arte d o tex to “ o co n ju n to do p ro ce sso , o devir ta u to ló g ic o ” . E m geral sim plifiquei. 2 O au to r é Jo s é A rthur G ian n otti e o livro, A s origens da dialética do trabalho. 3 V er a p ro p ó sito m inha entrevista em M . N o b r e e J . M . R e go (org s.), Conversas com filó sofos brasileiros, Sã o P au lo , E d ito ra 3 4 , 2 0 0 0 , pp. 1 7 4 , n. 5. O tex to inédito é a segu n d a p arte de Dialética marxista, dialética hegeliana, op. cit. 4 O que direi sob re M a r x vale a fortiori (m as co m alg u m as m odificações) p a ra H egel. E m co n tin u ação , m as so b re tu d o no fin al, discutirei se a crítica que h oje se p o d e e deve fazer ao m a r xism o p õe em xe q u e o interesse e o rigor d o s m ovim entos e figu ras d ialéticas que tentarei descrever.
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5 A m eu ver, as d u as referen cias extern as m ais im portan tes p a r a desenvolver o p ro jeto de urna ló g ica dialética sã o Frege e H usserl. 6 C f. em Frege, “ o tu rc o ” co m o equivalen te de “ o po v o tu r c o ” , ver “ C on ceito e o b je to ” , in
Écrits Logiques Philosopbiques, trad . fran cesa de C . Im bert, p . 1 3 1 , P aris, Seuil, 1971. 7 D ir-se-á que se tem ai um sócio-cen trism o extrem o; o fetich ism o tem , sem d ú v id a, entre ou tras c o isa s, esse caráter. 8 N o caso d o fetich ism o, poder-se-ia dizer tam b ém que o su jeito d esap arece, nesse sentido, o p red ica d o se id entifica p u ra e sim plesm ente co m ele m esm o. 9 M e u em inente m estre e am igo , Je a n -T o u ssa in t D esan ti, disse-m e p erp lex o a p ó s a leitura de M L P I: “ ‘ O h om em é o g re g o ’ , o que Q uin e p en saria d isto ? ” . 10 P od em os a g o ra co m preen der m elhor o sen tid o d a crítica que m e fez J. A . G ian n otti p o r su p o stam en te co n fu n dir id en tidade e p red icação . R e to m an d o u m tem a de que tratei co m outro d esenvolvim en to na Introdução geral, diria qu e se G ian n otti se aferra ta n to à altern ativa identi d ad e/ p red icaç ão , é p o rq u e o seu discu rso é n a realid ad e, em essência, um d iscu rso anti-humanista (m esm o se o seu m o d elo n ão é a ep istem ología fran cesa ou E sp in o sa, m as H egel corrigido por Husserl, e depois por Wittgenstein). D o p o n to de vista an ti-h u m an ista, co m o d o p o n to de vista h u m an ista, o m ovim en to p red icação /id en tid ad e — ou co n ceito/ob jeto — n ão é visível. E isto p o r que o an ti-h u m an ism o liqu id a em m aio r ou m enor m ed id a os p re ssu p o sto s, e o h u m an ism o, in versam en te, os tran sfo rm a em fu n d am en tos. O caráter an ti-h u m an ista d o s escritos de G ian n otti aparece se se ex am in ar o lu gar que eles atribu em (ou n ão atribuem ) a o discurso pressuposto. U m a an álise rig o ro sa m o stra que G ian n otti nunca deu suficiente peso ao discurso pressuposto, em b ora p roced esse a co rreções su cessivas à m ed id a que foi se in fo rm an d o d as críticas. Se, nos seus tex tos, o d iscu rso p ressu p o sto u ltrap assa o nível de sim ples “ n o m e s” (no início, n ão era m ais do que isto), o au to r nunca foi ca p a z de tirar o que se deve e p o d e tirar desse d iscu rso. À su a m an eira, isto é coerente: o d iscu rso p re ssu p o sto é na realid ad e um elem ento essencial d a dialética co m o d iscu rso crítico; o ra, o p ro jeto teó rico e p rático de G ian n otti nunca teve um caráter crítico. O seu d iscu rso “ c o la ” essencialm ente co m o “ m u n d o ” , cu jo ethos ele assu m e visivelm ente. A p o siç ã o explícita m ais recente de G ian n otti sob re (con tra) a d ialética (ver em geral os seus tex to s em torn o de 2 0 0 0 ) n ão é sen ão a revelação d aq u ilo que sem pre con stitu iu a qu intessência d o seu pen sam en to (assim , co m o ob servei, su a crítica ao jovem M a r x ap esar de hegelianizante é na realid ad e i»?f/'-hum anista e p o r isso m esm o n ão-d ialética; a co m p arar co m a crítica, esta sim , d ialética — p o rq u e nem hu m an ista nem an ti-h u m an ista — que a Dialética negativa de A d o rn o faz ao jovem M arx ).
11 D esanti fala de “ essen cialism o” a p ro p ó sito de um e de outro (v erp o sfácio a Frege-Husserl, Correspondance, trad . fran cesa de G . G ran el, B ram ep an , M au vezin [França], T E R , 1 9 8 7 , p. 85). 12 “ D e n o ta ç ã o ” , na trad u ç ão de C lau d e Im bert, o u então “ referên cia” . 13 O que faz p en sar n as m etáfo ras visu ais de M a r x a p ro p ó sito do fetich ism o. 14 Im plicações do exem plo de Frege sã o in d icad as tam b ém — m as a c o m o d a d a s a um co n tex to em p arte w ittgensteíniano — no livro que G ian n otti pu b licou em 1983 (p.ex. p . 3 9 ). A res peito , ver a n ota 1 do en saio anterior. [N o ta de 2 0 0 1 . A relação é na realid ad e m ais co m p lex a. Se o fetich ism o reifica a ap arê n cia e co m isto escam oteia a essência, o co n ven cion alism o “ red u z ” a ap arên cia, e co m esta redução tam b ém perde a essência. O p aralelo e x ato co m os p roced im en tos que co n sevam altern ativ am en te só a ap arên cia ou só a essência p o d e ser ob tid o in trod u zin d o respectivam ente os ex em p lo s da econ om ia vu lgar e d a econom ia ricard ian a. D e fato , se a prim eira sacrifica a essência à ap arên cia, a segu n d a (pelo m enos se co n tin u arm os to m an d o o Capital co m o m o d elo de d iscu ssão crítica), apreende a essência, m as é in cap az de desenvolver a ap arên cia em que a essência se apresen ta.] 16 N o ob jeto so cial e p a ra a ciência (crítica) do so cial, a ap arên cia, que co n tradiz a essência, é tã o im p ortan te q u an to a essência, e a co n trad iç ão entre am b as, u m a característica decisiva do o b jeto , que é preciso estud ar. O cientista n atu ral se in teressa tam b ém pela ap arên cia e a ex p lica a
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partir da sua essência, m as sua atitude é diferente. N a realidade, ele se esforça por produzir outras aparências que reduzam a distância entre aparência e essência. Em resum o, se também o objeto natural se manifesta por aparências que podem contradizer a sua essência, a oposição entre uma e outra, não é enquanto tal objeto fundamental do saber. Se, no caso do objeto social, há esforço por reduzir a distância entre um elemento e outro — m as só com o momento de revelação da es sência, momento que nos remeterá de novo à aparência (que por sua vez “ ap on ta” agora para a sua essência) — , no plano da ciência natural, esse esforço parece constituir a quintessência do tra balho do pesquisador que termina com o que por aquela revelação da essência. 17 Em bora nem sempre seja fácil, seria preciso distinguir o pensamento lógico-filosófico de Frege daquilo que, do seu pensam ento, foi incorporada à lógica formal com o ciência. Porém o primeiro aspecto não é menos importante do que o último. 18 Recordemos brevemente um certo número de resultados obtidos em minhas pesquisas precedentes, que tinham com o objeto o capital e os momentos m ais simples da apresentação. Trata-se, no essencial, de resultados concernentes à teoria dialética do juízo. Eu havia proposto uma espécie de apresentação dialética das form as do juízo, muito m arcada pela que Hegel oferece na Lógica , afastando-se desta, no entanto, em certa m edida (ela foi elaborada essencialmente a par tir da análise dos textos de M arx). A idéia geral, de origem hegeliana, era a de que, diferentemen te do que se encontra na lógica form al, o juízo deveria ser pensado, em geral, com o um movimen to de reflexão — incluindo também, como veremos, o caso da não-reflexão — do sujeito no pre dicado. N a prim eira form a assim extraída, que eu designava com o “ juízo de reflexão” , form a canônica de certa m aneira, o sujeito é pressuposto e se reflete num predicado que — só ele — é posto. Ao lado dessa forma de juízo, eu havia introduzido outras, dentre as quais a designada como “juízo do sujeito” , e que corresponde precisamente aos momentos do movimento do capital. Sob esta form a, obtem os, de certa maneira, algo de oposto ao caso anterior, visto que o sujeito não passa no predicado (e, no entanto, pelas razões que veremos, esta form a não se encontra tam pou co nos tratados correntes de lógica). São exemplos desta form a os juízos “ o capital é dinheiro” , “ o capital é m ercadoria” , enquanto momentos do movimento do capital. Aqui, sujeito e predicado, são am bos postos. Indiquei igualmente outras form as às quais voltarei aqui, com o o “juízo da essência” que vincula uma essência à sua aparência. Outro caso é o do “ juízo do devir” , que ex prime a morte de uma form a e o nascimento de outra. N o juízo do devir, o sujeito e o predicado são, de certa m aneira, sucessivamente postos, sem que no entanto o sujeito se torne propriamente pressuposto (pelo menos no sentido em que há pressuposição no juízo de reflexão). O presente texto se edifica na base dessas distinções e, em parte, é um desenvolvimento da noção de “ juízo do sujeito” . Ver minhas análises em M LP I, sobretudo o primeiro ensaio, e em M LP II, sobretudo o primeiro e o último ensaios; além do texto anterior, neste volume. 19 H á aí um ponto delicado. Um não-matemático pode se ocupar legitimamente de tais as suntos? Qualquer que seja o valor dos resultados, eis as razões que poderiam justificar esse trab a lho. É verdade que a conclusão estará centrada na relação entre o projeto de uma lógica dialética e a m atemática dos infinitos. N o entanto chegarei a ela após ter percorrido duas etapas. Inicial mente, tentarei m ostrar que a lógica dialética e, em particular, a apresentação dialética do concei to de capital exigem a introdução das noções de fluxo e de continuidade. M esm o se transpus à minha maneira certos conceitos, não há aí referência à m atem ática dos infinitos enquanto tal. Em seguida, apresentarei textos em que M arx e Hegel estabelecem, de maneira explícita, passagens entre estas noções, tais como elas se impõem no quadro de uma dialética, e o universo do cálculo infinitesimal. O primeiro procedimento é original, m as não concerne ao próprio Cálculo. O se gundo, decerto, concerne ao Cálculo, mas, salvo em alguns poucos casos, é uma análise interna dos textos de M arx e de Hegel. A conclusão articula sem dúvida os dois procedimentos, mas não vai além do que os resultados parciais autorizam. 20 M arx, Theorien iiber den Mehrwert, I, in W, p. 368; Théories sur la plus-value, sob a direção de G. Badia, Paris, Ed. Sociales, 1 9 7 4 - 1 9 7 6 ,1, p. 459 [F]. (Em geral, refiz as traduções). A passagem com eça e termina assim: “ O próprio capital é duplo porque ele consiste em merca-
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dorias: 1) valor de troca (dinheiro) (...) 2) valor de uso (...) assim , o capital se torna um a essência
misteriosa ” (F). Esse texto oferece, na realidade, uma dupla definição, que se refere ao capital enquanto valor de troca, isto é, com o form a, e ao capital enquanto valor de uso, isto é, como matéria. Cito a de finição enquanto forma. Materialmente, o capital é definido pelas relações materiais nas quais toma corpo o processo de trabalho. 21 M arx, K I, pp. 168-9; Le Capital, livro I, tradução francesa sob a direção de. J.-P. Lefebvre, Paris, M essidor-Éditions Sociales, 1983 (abreviarei por C), pp. 173-4 (F). 22 M arx, K I, p. 169; C, p. 174 (F). 23 M arx, K I, pp. 169-70; C, pp. 174-5 (F). Cf. K III, pp. 404-5, 355, 368; C, p. 329; K II, p. 109; Theorien über den Mehrwert, op. cit., Ill, p. 4 68; Théorie sur la plus-value, op. cit., III, p. 563. 24 K = capital, m = m ercadoria, a = dinheiro. A partir daqui, designarei o dinheiro por “ a ” (como se abreviasse “ argent” em francês), para evitar a letra d, que representará uma operação a ser introduzida. 25 O leitor se dará conta de que o termo “ limite” é tom ado agora numa acepção um pouco diferente do de sua ocorrência imediatamente anterior, quando escrevi “ o limite é a outra deter m inação” .
26 Em relação a estas diferenciais de significação, a Significação fluente (como totalização das significações fluentes e de suas diferenciais) é uma integral de significação. 27 Cf. D esanti, J. T., “ R apport traditionnel des sciences et de la philosophie” , in L a Philo sophie Silencieuse..., pp. 63-4, n. 1, em que se representa a “ supressão” hegeliana barrando uma letra por uma linha contínua (eu a represento por uma linha descontínua). N ão discutirei o ensaio de Desanti. Em geral, não discuto aqui a bibliografia concernente à form alização ou à simbolização da lógica hegeliana. H á algum as contribuições im portantes, de que tratarei em outro lugar. 28 O “m om ento” em sentido newtoniano parece ser o equivalente de grandeza evanescente e de diferencial: “ [...] as partículas finitas não são momentos m as as próprias qualidades produzi das pelos momentos. Devem os concebê-los [trata-se, sem dúvida, dos mom entos, ver o texto da primeira edição, RF] como os princípios no instante mesmo do nascimento (jamjam nascentia) das magnitudes finitas. E não se deve tam pouco enxergar nesse lema a m agnitude dos momentos, mas as suas prim eiras proporções enquanto eles estão nascendo (prima nascentium proportio)” (New ton’s Principles o f Natural Philosophy, trad. A. M otte & F. Cajori, p. 249; N ew ton, Principes mathématiques de philosophie naturelle, trad, francesa da m arquesa de Chastelet, vol. I, p. 260; De Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, fac-símile, p. 251). Ver também o comentário de Cajori, in Newton’s Principles..., op. cit., p. 653, n. 30. 29 Ver Hegel, Wissenschaft der Logik, fac-símile da prim eira edição de 1812, Göttingen, Vandehoeck & Ruprecht, 1966 (abreviarei por W L 1812), p. 227; Science de la Logique, trad, francesa de P.-J. Labarrière & G. Jarczyk, Paris, Aubier-M ontaigne (abreviarei por L), I, L ’Être (ed. de 1812), pp. 257-8: “ (...) por relação (Verhältnis) das grandezas evanescentes, é preciso en tender a relação, não antes e não depois que elas desaparecem, m as a relação com a qual elas de saparecem (quacum evanescunt). D a mesma maneira, a primeira relação das grandezas em devir é a relação com a qual elas vêm a ser” [(A), trad, m odificada]. Com o Hegel o indica, o texto é, na realidade, uma citação dos Principia (livro I, seção I, lema X I, escólio), ver Newton’s Principles..., op. cit., p. 39; Les principes de Newton, genèse et structure des chapitres fondamentaux; trad, francesa de M . F. Bernais, p. 101. Ao comentar tais textos, Hegel escreve: “ (...) o limite da relação-de-grandezas é aquilo em que o quantum (es) é e não é ” (WL, 1812, p. 2 28; L, I, p. 258 [F]). Ver também W L, 1812, p. 230; L, 1,259, W L, 1812, pp. 225-6; L, I, p. 256; e o elogio de Newton pelo anti-newtoniano Hegel, in W L, 1812, p. 227; L, I, p. 257. — Observe-se que aqui há sempre dois problem as: 1) o da passagem , ou do momento da passagem do ser ao não-ser, e vice-versa; 2) o da natureza desse não-ser (que é não-ser afetado pelo ser), com o também desse ser (que é ser
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afetad o pelo não-ser). O p rim eiro p o n to introd u z as “ d iferen ciais” de sign ificação. O segu n do, de form a m ais geral, a idéia de sign ificações fluentes. j0 N o sen tid o de qu e a p a ssa g e m da m ercad oria a o dinheiro (ou vice-versa) é um devir, que p o d e ser ex p resso pelo ju ízo “ a m ercad oria é... d in h eiro ” (ou vice-versa). 31 V er o en saio 1 de M L P I. 32 E n con tra-se em H u sserl a e x p re ssão “ p ro ce sso de ju íz o ” ( Urteilsprozess) (ver p o r ex em p lo , Erfahmng und Urteil, pp. 2 5 8 e 2 8 3 ; Expérience et jugement, pp. 2 62 e 2 8 6 ; §§ 51 b e 58). N o início d a segu n d a seção de Erfahmng und Urteil, H u sserl descreve a un id ad e de um tem a, de um “ su je ito ” , co m o su b strato de u m a su ce ssão ou flu x o de ju ízos. P odem os dizer qu e o prob lem a é p a ra lelo ao que está no fu n d o da tem ática da p ro p o siç ã o especu lativa n o P refácio à Fenomeno logía do Espírito de H egel? Q u al é o su b strato de u m a cad eia tem ática de ju íz o s? A d espeito de tu d o, a resp o sta de H u sserl p ro lo n g a, em linhas gerais, a da trad ição co n tra a q u al H egel se in s creve. A cad e ia rem ete a um sujeito fix o . O que n ão o im pede de falar de “ p ro ce sso de ju íz o s” etc., ex p ressõ es qu e, co n tra H egel, d esign am os m ovim entos de u m su jeito. D iga-se, de p assag e m , é im p ression an te o p aralelism o entre os p ro b le m as p o sto s p o r H u sserl em Erfahntng und Urteil e os de um a ló g ica d ialética. P aralelism o d o s p ro b le m as que n ão quer dizer iden tid ad e de solu ções, m as exprim e, entretan to, bem m ais d o que u m a sim ples co in cidência de ru b ricas. O bserve-se o em prego husserliano do term o “ p o siç ã o ” (Setzen) — term o-chave tanto em H egel quanto em H usserl — ; isto b asta p a ra se d ar co n ta de que o preten so ab ism o que se p araria os dois filó so fo s é um m ito. O em prego qu e H u sserl faz do term o n ão é h egeliano, m as n ão é “ in co m en su ráv el” co m o hege lianism o, e, p o r vezes, ap ro x im a-se deste últim o. V er tam b ém a presen ça de certos tem as que são reen con trad os na Lógica: p o r exem plo, ju ízos co m ser e ju ízos co m ter (Erfahmng und Urteil, p. 2 6 1 ; Expérience et jugement, p . 2 5 6 ; § 52). j3 C o m o verem os, o que é p re ssu p o sto n ão são som ente outros ju ízo s, m as tam b ém o m es m o juízo. j4 Vê-se com o , em lógica dialética, cad a determ inação (predicado, ju ízo, apresen tação) ap are ce co m o m om en to no sen tido técnico do term o. A teo ria de ca d a m om en to invade a do m om ento seguinte. E, neste sentido, n ão se deveria co m eçar nem pelo conceito (isto é, p elo term o) à m an ei ra d a lógica clá ssica , nem p elo ju ízo à m an eira d a ló g ica fo rm al co n tem p orân ea. C om eça-se pelo conceito, pelo p red icad o , enquanto ele pressupõe o ju ízo. P ortan to, co m eça-se sim u ltaneam ente pelo p red icad o (en qu an to p o sto ) e p elo ju ízo (enquanto p ressu p o sto ). U m a vez m ais, é a n o ç ão de p ressu p o siç ã o que subverte tu d o. E vê-se que o que vale p a ra a ap resen tação do o b jeto , no caso , o da crítica d a econ om ia p o lítica, deve tam b ém valer p a r a a ap resen tação d a p ró p ria lógica. 35 V er M a r x , Theorie über den Mehnvert, vol. 2 6 , 1, p. 3 6 9 ; Théories sur la plus-value,
I, p.
460. j6 V er a este respeito Les Manuscrits mathématiques de Marx, ed itad o s p o r A. A lcou ffe, p. 1 9 3 , n ota da ed ição inglesa; p . 135, tex to de M a r x ; a ssim co m o a p. 2 4 1 , n o ta 2 6 da ed ição ru ssa. -l7 M a r x , Resultate des Unmittelbaren Produktionsprozesses, F ran kfu rt, V erlag N eu e K ritik 1 7, 1 9 6 9 , (abreviarei p o r R ) p. 4; Oeuvres, Economie, sob a direção de M . R ubel, Paris, G allim ard, B iblioth èque de la Plêiade (abreviarei p o r Oeuv. Ec.), II, p. 4 0 5 (F). 38 Vê-se que, a q u i, a lingu agem do C álcu lo está lig ad a à fin alidade. N o entanto, n o que co n cerne à co n ceitu ação , o tex to de M a r x está aparentem ente m ais p ró x im o de N ew to n d o que de Leibniz. 39 M a r x , R ., p p . 4 -5; Oeuv. Ec., II, p. 4 0 6 . 40 N a ex p lica ção desse tex to , to m o a diferen ciação co m o um a espécie de fu n ção de segu n do g rau , de qu e a fu n ção que serve de p o n to de p a rtid a seria um argu m en to (em a n alo g ia, salvo erro, co m a leitura qu e faz Frege d as in tegrais defin id as, ver n o ta m ais adiante). 41 M a r x , R ., p . 5; Oeuv. Ec. II, pp. 4 0 6 -7 (F). 42 M a r x , R , p. 5; Oeuv. Ec., II, p. 4 0 7 .
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43 T ra d u z o Differenz p o r “ d ife ren ciação ” . 44 M a r x , R ., pp. 5-6; Oeuv. Ec., II, p. 4 0 7 . 45 Segu n d o L éon B loch (ver L a philosophie de Neivton, pp. 62 e 8 1 ), um elem ento fu n d a m ental na d esco b erta de N ew to n foi a idéia de calcu lar Ay e A x, sem se p arar os d ois elem entos. 46 V er os verbetes “ D ifféren tier” e “ D ifféren cier” em Le Grand Robert, 1 985. 47 Ay = Ax, Ay/Ax = 1. C f. Les Manuscrits mathématiques de Marx, op. cit., p. 194. 48 M a r x , R , p . 6; o tex to d a Plêiade om ite este desenvolvim en to. 49 Ibidem. 50 Ibidem (A). M a r x su blin h a tam b ém o u tro s term os. 51 S ã o , p o rtan to , as fo rm as “ a r c a ic a s” d a m atem ática d o s infinitos que se deve privilegiar neste co n texto (C f. as ob serv açõ e s de A. A lcou ffe in op. cit.). “ Por sim ples a d iç ã o , n ão p o sso p a ss a r d o v alo r de tro ca ao c a p ita l” (M a rx , Grundrisse, p. 1 6 3 ; Manuscrits de 1857-1858, trad . fran cesa de J.-P Lefeb vre, P aris, E d . Sociales, 1 9 8 0 ,1, p. 191). — N o qu e respeita a o term o “ d iferen cial” (différentielle): “ M a r x d istingu e as diferenciais (die Differetttiellen) d x e dy, os v alo res d as d iferen ças infinitam ente p eq u en as d as diferen ças Ax e Ay, da diferencial (das Differential)·. y = f(x) d x ” . (Les Manuscrits mathématiques de M arx , op. cit., p. 1 9 3 , n o ta d o s editores da ed ição inglesa.) C f., ibidem, n. 2 6 , p . 241 53 E ssa fo rm u lação é ap ro x im a d a . V o lto a esse p o n to m ais ad iante. 54 P ara evitar co n fu sõ e s, o b servo que esse fin alid ad e do cap ital é alg o essencialm ente d ife rente d a fin alid ad e — que im plica num “ m a u ” fin alism o e que critiquei — no p lan o da teo ria da h istória. 55 Se se aco m p an h ar o que escreve K an t na Crítica da faculdade de julgar, o p ro b le m a se quer seria co lo cad o : “ [...] u m a árvore tam b ém p ro d u z a si m esm a en q u an to indivíduo. E verdade que d en om in am o s som ente de crescim ento ( Wachstum) este tip o de efeito; to d av ia, é p reciso to m ar isto num sen tid o tal, que o crescim ento se d istingu e inteiram ente do au m en to de gran d eza ( Grõssenszunahme), segu n d o leis m ecân icas, e é p reciso co n sid erá-la, em b ora co m ou tro nom e, co m o o equivalente de uma geração” (Kritik der Urteilskraft, p . 2 3 3 ; trad. fran cesa de Philonenko, p. 190) (respectivam ente [A] e [F]).
56 P ara d ar ap en as d o is ex em plos: “ A p artir d isso , é evidente que certos peix es n ascem de m an eira esp o n tân ea (auTO iicaiÇ óvs xris (fnjaeos), sem o v o s nem c ó p u la ” (História dos animais, V I, 1 5 , 5 6 9 a, 2 5 ). “ O m esm o ocorre co m as p lan tas: alg u m as se p rod u zem a p artir de u m a se m ente, ou tras, co m o que p o r g eração esp o n tâ n e a ” (Da geração dos animais, 7 1 5 a, 2 5 ). 5/ N este sen tido, o au to m atism o do cap ital co rresp o n de ao a v r ó i i a i o s de A ristóteles so m ente en q u an to ele sign ifica aq u ilo que m ove a si m esm o , e n ão en q u an to d esign a o qu e é o efeito do aca so . 58 Poder-se-ia su pô-lo à prim eira vista, d ad o o p eso que assu m e a idéia de engen dram en to na d efin ição d a (quase-) vid a em M a r x . M a s , n a realid ad e, isto vai n o sentido de A ristóteles. A ris tóteles define a vid a d a seguinte m an eira: “ A v id a, tal co m o a entendo, co n siste em alim entar-se a si m esm o, crescer e p erecer” (De anima, II, 4 1 2 a, 14). M a s a c ap ac id ad e de engen drar é co n ceb i da co m o estan d o m u ito vin cu lad a à c ap ac id ad e de se alim entar: “ A alm a n u tritiva pertence a to dos os o u tros [viventes tan to q u an to ao hom em ] [...]. S u as funções sã o a g eração e a alim en tação. C o m efeito, a m ais n atu ral d as funções p a r a to d o ser vivente perfeito, que n ão é in com pleto ou cu ja g e ra çã o n ão é esp on tân ea [m as há tam b ém g e ração a p artir d o s seres p ro d u z id o s p o r geração esp o n tân e a, só que eles n ão p ro d u zem sem elhantes sen ão pela m ed iação d a s larv as etc., ver Gen. des An., 7 1 5 b 5, R F ], é p ro d u zir um ou tro vivente sem elhante a si: o anim al p ro d u z u m anim al, a p lan ta um a p lan ta [;] p a ra p articip ar do eterno e do divino tan to qu an to p ossível, co m efeito, to d o s os seres a isso asp iram e p a ra este fim é que eles agem em to d a a su a ativid ad e n a tu ra l” (De An., 4 1 5 a, 2 4 ). A a n alo g ia entre a vid a e o fo g o que se encontra tan to em M a r x qu an to em H egel
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represen ta, ao co n trário , um afastam en to relativam en te a A ristóteles (ver acerca d isto o De Ani ma), em p rov eito de D em ócrito e de H eráclito. 59 A ristóteles, Política, I, 1 2 5 8 b, 5. O tex to é citad o p o r M a r x no prim eiro volum e do Ca pital (K I, p. 1 7 9 ; C , p. 185) 60 A ristóteles, Ética a Nicômaco, V , 1133 a , 2 5 -3 1 . 61 V , 1 1 3 3 b, 2 5 -2 8 ; em se gu id a, 1 1 3 3 b, 16-20 (ver K I, p p . 73 -4 ; C , pp. 67-8). 62 K (m aiúscu lo) exprim e o cap ital no co n ju n to do seu m ovim en to, k (m inúsculo) em cad a um d o s seus m om en tos. P onh o “ v a lo r ” entre parên teses, p o rq u e n ão se trata de u m a ig u ald ad e q u an titativa entre d ois ob jeto s, o c ap ital e o v alo r, m as, co m o se verá lo g o m ais ad ian te, d a g ran d eza em qu e o c a p i tal é m edido. 64 E ssa articulação entre p red icaç ão e id entidade n ão se confu nde co m a passagem ao limi te entre u m e o u tro , de que tratei anteriorm ente.
65 Isto é teríam o s um ju ízo do tip o do que exprim e reflexivam ente o v alo r de u m a m ercad o ria no v a lo r de u so de u m a o u tra. M a s en tão se trataria de u m a m ed ida ex tern a, n ão de u m a m e dida interna co m o no ca so d o pro cesso -su jeito . 66 N o n o sso c aso tem os a ssim d u as especificid ad es. P orqu e a m ed id a d o p ro cesso su jeito é um a m ed id a in terna, tem -se estritam ente p red icação e id en tid ade. P orqu e se trata de um p o c esso su jeito, n ã o h á refle x ã o in tra-p rop osicio n al.
67 C f.
H eráclito : “ O sol é n ovo ca d a d ia ” (H éraclite, Fragments, op. cit., frag m en to 8 8, p.
3 06). 6S V er M a r x , K III, p. 3 5 5 : “ E n q u an to cap ital, o cap ital, no m ovim en to efetivo, n ão existe no p ro cesso de circu la ç ão , m as som ente no p ro cesso de p r o d u ç ã o , no p ro ce sso de e x p lo raç ão da ío rça de tr a b a lh o ” . 69 L em b ro nesse co n texto que R u ssell co m p ara o sinal d a in tegral defin ida co m um quan:ificad o r e isto p o rq u e, em a m b o s os c a so s, a variável real é “ a b s o rv id a ” : “ (...) qu an d o dizem os ‘x é u m h om em im plica x é um m ortal p a r a to d o s os valores de x ’ , n ão estam o s fazen d o a asse rção [asserting] de u m a im p licação sin gu lar, m as de u m a classe de im plicações; tem os, ag o ra , um a ver d ad eira p ro p o siç ã o n a q u al, m esm o se a letra x aparece, n ão h á variável real: a variável é a b so rv i da no m esm o sentido em que o x [o é] sob o signo da integral definida ' (...)” (R ussell, The Principies of Matematics, C am b rid g e U niversity P ress, I, 1 9 0 3 , pp. 12-3 [eu grifo]. C f. W hitehead e R u ssell, Principia Mathematica, p . 17 (C am b rid g e U niversity Press, 1 9 1 2 -1 9 1 3 ): “ O sím bolo “ ( x ) . f x ”
tem algum a analogia com o sím bolo
fa
J
b
(f)(x) d x
p ara a in tegração d efin id a, d ad o que em nenhum d o s c a so s a e x p ressão é u m a fu n ç ão de x ” . F re ge co n sid era as in tegrais defin idas co m o funções de segu n do g rau , “ funções cu jos argu m en tos são e devem ser fu n ç õ e s” , sendo a a fu n ção a in tegrar um arg u m e n to ” (Frege, Écrits logiques e Philosophiques, “ Fon ction et c o n cep t” , trad . fran cesa de C. Im bert, P aris, Seuil, 1 9 7 1 , p. 9 8 , Kleine Schriftem, p u b licad o s p o r I. Angelelli, H ildesh eim , G eorg Olrns V erlagsb u ch an d lu n g, 1 967, p. 140 (E igualm ente p. 1 0 0 d a trad u ç ão / p. 141 do origin al). Sob re o m esm o p o n to , ver tam b ém T arsk i, Introduction a Ia logique, trad . fran cesa de J . T rem b lay, P aris, G auth ier-V illars, 1 9 7 1 , 11. 70 R u ssell, Principies..., op. cit., pp. 90-1 [F], Cf. T arsk i, op. cit., Introduction, p. 4. 71 M a r x , K l , p. 18 0 , C , p . 186 (F). /2 E m tex to ap resen tad o ao co ló q u io H egel realizad o em San Se b astian (País B asco , E sp a nha, 1 9 9 6 ), p ro p u s u m a sim b o liz ação específica p a ra ca d a u m d esses caso s. 73 O C on ceito rep resen ta a ló g ica su bjetiva em o p o siç ão à ló g ica ob jetiva, que co n tém o ser
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e a essência. M a s , n o interior d a ló g ica do conceito, no seu prim eiro m om en to, a Su bjetividade, h á u m desenvolvim en to sob re o conceito, que co n d u zirá ao ju ízo e a o silog ism o. U sarei o term o C o n ceito (com m aiú scu la) p a r a o tip o de “ d e te rm in aç ão ” qu e caracteriz a a ló g ica su b jetiva, e conceito (com m inú scu la), p a ra o m om en to p articu lar d a Su b jetivid ad e, e tam b ém p a ra o u so m ais geral d o term o. 74 H egel, Wissenschaft der Logik, ed itad a p o r G eorg L asso n , H am b u rg o , Felix M einer (abre viarei p o r W L), II, p. 2 6 0 ; L II, Doctrine de ¡’essence, p. 2 7 4 (A). 75 H egel, W L II, p. 185; L II, p. 2 Í 9 (A).
76 M a r x , Theorien über den Mebrwert, III, p . 4 8 2 ; Théorie sur laplus-value, III, pp. 578-9: “ O tra b alh o en q u an to trab alh o a ssa la ria d o e as co n dições de trab alh o en q u an to cap ital [...] são ex p ressõ es d a m esm a re lação , m as a p artir de seus diferentes p ó lo s” . 77 H egel, W L II, p. 2 4 4 ; L III, p . 73 (“ co m a m esm a e x te n sã o ” [F ]). 78 H egel, W L II, p. 2 6 0 ; L III, p . 92. 79 H egel, W L II, p. 2 6 2 ; L III, p. 9 5. 80 H egel, W L II, p . 2 6 4 ; L III, p. 9 7 (A). 81 C f o en saio anterior. 82 H egel, W L II, p . 3 1 8 ; L III, p. 164. 83 V er H egel, W L II, p. 2 9 6 ; L III, p . 137. 84 H egel, W L II, p. 4 1 6 ; L III, p. 2 8 6 (grifad o p o r H egel). 85 H egel, W L II, p. 4 1 4 ; L III, p. 2 8 4 . 86 H egel, W L II, p . 2 6 8 ; L III, p. 1 0 5 (Al). 87 M o v im en to “ au to-con stitu in te” n ão qu er dizer gênese, m as m ovim en to qu e em si mes--m o co n stitu i o ob jeto co m o su jeito , ou se co n stitu i co m o su jeito. (Isto n ão quer dizer que a gênese n ã o tem seu lu gar na dialética, ver m inh a an álise em M L P I, en saio 1. P or ou tro lad o , ela está im plicitam ente presente no interior do devir que liga os m om en tos d o m ovim ento-su jeito). E preciso d istingu ir m ovim en to-su jeito, devir e gênese (ver M L P , II, en saio 2). — O bserve-se que em prin cí pio a presen ça d o m ovim en to n ão induz p o r si só a n ecessidade de in trodu zir d eterm inações d ia léticas. N em to d o m ovim en to im plica, em prin cípio, dialética, só o movimento de constituição, e o movimento-sujeito (movimento auto-constituinte). A posição de q u alq u er u m a d essas d u as fo r m a s, im plica n a in tro d u ção de determ inações “ c o n tra d itó ria s” . N o s o u tro s c a so s, a presen ça d es tas n ã o é, pelo m enos im ediatam en te, evidente. 88 R u ssell, Principles..., op. cit., p. 11 (F). 89 V er p o r ex em p lo Scholz, Esquisse d ’une histoire de la Logique, so b re tu d o , p. 33. 90 V er Frege, Les Fondements de l’arithmétique, in tro d u ção de C lau d e Im bert, P aris, Seuil, 1 9 6 9 , p . 2 1 2 , e in tro d u ção , p. 81.
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III. DIALÉTICA M A R XISTA , H ISTO RICISM O , AN TI-H ISTO RICISM O
N
o ta
Com o escrevi na nota introdutiva, a primeira versão deste texto é de 1973, e ele foi redigido originalmente em francês. Ao apresentá-lo como parte de minha tese de livre-docência (USP, 1989), introduzi algum as modificações, incluí novas refe rências bibliográficas, mas não alterei essencialmente nem a arquitetura nem o con teúdo do texto. Como o seu título indica, o texto contém uma crítica do historicismo (tal como nele o defino, ver as suas notas iniciais) e do seu oposto, que poderia ser chamado de anti-historicismo. Ele está ligado ao artigo “ Dialética m arxista, humanismo, antihum anism o” (MLP, I). O s dois ensaios contém assim uma crítica do humanismo, do anti-humanismo, do historicismo e do anti-historicismo. Relendo o texto mais de vinte e cinco anos depois da sua primeira elabora ção, não tenho muita coisa a rever no que se refere à idéia de tempo, de consciên cia, de teoria etc., no interior do marxismo·, nem sobre as duas falsas leituras do marxismo — historicismo e anti-historicismo — que se fazia na época, na França principalmente, e que em certa medida ainda se faz. M as hoje tenho uma perspec tiva crítica em relação ao m arxism o (que começou a se desenhar poucos anos de pois de ter escrito o ensaio), e nesse sentido, o mínimo a observar é que seria preci so recobri-lo com uma nova cam ada crítica. M ais problem ática é a relação que ele tem com o bolchevismo. Em bora con tenha uma crítica do Q ue fazer? de Lenin (além de algum as outras objeções in troduzidas em 1989), o texto se mantém nos limites de uma perspectiva que em geral não enfrenta o problema do bolchevismo. Em parte — e esta é uma das chaves para entender a perspectiva do ensaio — , tratava-se de criticar um “ gauchism o” apres sado e simplificador, através da tática mais “ paciente” indicada nos textos de Lenin. Devo dizer que se hoje sou ainda mais refratário aos aventurismos “ gauchistas” , vejo o bolchevismo — que tom a um a distância considerável em relação à política de M arx — como uma tendência vanguardista e autoritária, que teve um papel globalmente nefasto na história do movimento socialista. Peço ao leitor que, ao ler o que escrevo sobre Lenin e Trotsky, não perca de vista a perspectiva que é hoje a minha, a ser encontrada nos meus textos mais recentes e aqui mesmo. Do meu ponto de vista, o pior que poderia acontecer é que esse ensaio venha a servir de justifica ção ideológica para o bolchevismo. Essa circunstância não me pareceu entretanto uma razão suficiente para jus tificar uma não publicação. Acrescentei algumas notas, refiz algumas passagens (mas, de novo, sem alterar a perspectiva do texto)1. O ensaio me parece válido enquanto
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análise do m arxism o — e não pode haver crítica do m arxism o, sem plena compre ensão deste — , além de ter sob vários aspectos — creio eu — um interesse mais geral. Com o já indiquei, ele completa a crítica do conjunto das “ falsas leituras” do m ar xism o (humanismo, anti-humanismo, historicismo, anti-historicismo2) que ainda dominam o pensamento francês3. Se é preciso recobrir este trabalho com uma nova cam ada crítica, que envolve o m arxism o como objeto, não me parece que ele deva ser anulado. Com as necessárias modificações e precisões, esse tipo de análise é mes mo condição necessária para levar a cabo a reflexão crítica que o presente exige.
1. I n t r o d u ç ã o
Discuti em outro lugar4 a relação entre a dialética m arxista, o humanismo e o anti-humanismo. O presente ensaio, cujo objeto é a relação entre a dialética m ar xista, o historicismo e o anti-historicismo, é paralelo ao supracitado, e lhe é com plementar. A noção de historicismo tem alguma ambigüidade. Considero-a aqui enquanto “ falsa leitura” do m arxism o; porém, mesmo nesses limites, é necessário precisá-la. O bjeto de um emprego que à sua maneira poder-se-ia considerar como rigoroso — embora discutível — por parte de Althusser, a noção foi empregada de m odo im preciso pelos epígonos e freqüentemente também pelos críticos de Althusser. Ela se tornou assim um ponto cego dos discursos sobre o m arxism o5. Poderíamos definir o historicismo — como o farei também para aquilo que chamarei de anti-historicismo6 — a partir das respostas dadas a dois problem as, que de resto estão ligados: em primeiro lugar, ao da relação entre teoria e história, entre o tempo da teoria e o tempo da história dita “ concreta” ou “ efetiva” ; em segundo lugar ao problem a, considerado sobretudo no plano da política — no ní vel do pensamento ou no do pensamento e da ação — , da maneira de se relacionar com duas dimensões do tempo, o passado e o futuro (ou do modo de assunção dessas duas dimensões). N o que se refere ao primeiro ponto, o historicismo se caracteriza pela tendência a identificar o tempo da teoria e o tempo da história “ concreta” . Em bora queira dar, ou pelo próprio fato de querer dar, à história “ concreta” a dimensão de uma história teórica, ele efetua uma espécie de redução do teórico ao histórico. Esta é a significação principal da noção de historicismo, tal como a encontramos em Al thusser: “ Podemos designar com precisão o ponto sintomático em que essa redu ção dos níveis se revela (se montre à nu) — isto é se dissim ula sob a aparência (convert) de uma “ evidência” que a trai (nos dois sentidos da palavra): no estatuto do conhecimento científico e filosófico. Vimos que Gramsci insistia a tal ponto sobre a unidade prática da concepção do mundo e da história que deixava (négligeait) de guardar o que distingue a teoria m arxista de toda ideologia orgânica anterior: o seu caráter de conhecimento científico. A filosofia marxista, que ele distingue claramente da teoria da história, sofre o mesmo destino; Gramsci a põe em relação de expres são direta com a história presente (...) Toda ciência, toda filosofia sendo no seu fundo história real pode ela própria ser dita filosofia e ciência” 7. E ainda: “ Reduzir e iden-
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rificar a história própria da ciência à da ideologia orgânica e à história económicopolítica é finalmente reduzir a ciência à história como à sua ‘essência’. A queda da ciência na história não é aqui senão o índice de uma queda teórica; a que precipita a teoria da história na história real (...)” 8. O historicismo efetua assim uma espécie de redução do tempo da teoria e da ciência ao tempo da história vivida9. Ele reduz os objetos ideais ao vivido enquanto experiência histórica, ao mesmo tempo em que dá ao vivido algo como um estatuto ontológico10. N o que se refere ao segundo problema, o das dimensões do tempo, problema que irei considerar sobretudo no plano da política, é um pouco mais difícil antecipar. Digam os que o historicismo seria caracterizado pelo fato de operar uma espécie de posição plena tanto do passado como do futuro. Para o historicismo, passado e futuro nunca são esquecidos11; eles estão sempre presentes e da maneira mais plena. Eles serão sempre conservados pela “ m em ória” , de tal m odo que resultará uma espécie de continuidade (e em certo sentido também uma homogeneização do tem po)12. A leitura oposta, igualmente uma “ falsa leitura” , dá respostas contrárias às mesmas questões. N o que tange à relação entre a teoria e o tempo, em lugar da redução historicista do tempo da teoria ao da história “ concreta” (com uma eleva ção simétrica da história “ concreta” à dignidade da história teórica), haverá uma separação radical entre os dois níveis. Recusa-se ao tempo ou aos sujeitos tem po rais toda possibilidade de constituir o lugar de uma síntese teórica. A teoria será pensada da maneira mais estrita como alguma coisa que remete ao “ transcenden tal” e não ao tempo histórico. N ão haverá assim possibilidade de uma síntese ideal ou quase ideal no tem po13. Quanto ao segundo problema, há também oposição. Se o historicismo, tal como o defini, se caracteriza pela lembrança sempre presente do passado e do futuro, o anti-historicismo se define aqui, por sua vez — aliás sob m odos diversos que às vezes parecem passar no seu contrário — , por uma espécie de não-conservação, de esquecimento abstrato tanto do passado como do futuro. A partir dessas considerações é possível indicar dois pares de conceitos, atra vés dos quais a alternativa historicismo/ anti-historicismo poderia ser pensada. Ela se configura por um lado através da oposição entre consciência, entendida como consciência histórica, e ciência14. Por outro lado, através da oposição entre memó ria (ou lembrança) e esquecimento. O primeiro termo de cada uma dessas dualida des corresponde ao historicismo, o último ao anti-historicismo. M as, a esses dois pares de conceitos, poder-se-ia acrescentar um terceiro, que resume de certo m odo os dois primeiros, a oposição experiência/ teoria, cujos termos remetem respecti vamente ao historicismo e ao seu contrário. As filosofia e as políticas historicistas da consciência, da memória (ou da lem brahça) e da experiência se opõem às filo sofia e às políticas anti-historicistas da ciência, do esquecimento e da teoria.
2 . C o n sc iê n c ia
e
C iê n c ia . M
e m ó r ia e
E sq u e c im e n t o .
O que me proponho fazer é tanto a crítica do historicismo como a crítica do anti-historicismo. Seguirei as grandes linhas das oposições consciência/ ciência, memória/ esquecimento, e experiência/ teoria, detendo-me ora na crítica de uma,
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ora na crítica da outra falsa leitura, atacando portanto ora o primeiro ora o segun do termo de cada dualidade. Começo pelos dois primeiros pares de conceitos, visando o primeiro termo de cada um: faço assim inicialmente uma crítica do historicismo, na forma de uma crítica da maneira historicista de pensar a noção de consciência, e de pôr a m emó ria ou a lembrança. Passarei em seguida, no mesmo registro temático, à crítica do anti-historicismo. A noção de praxis, tal como ela é utilizada correntemente pode servir como ponto de partida para uma crítica do uso historicista das noções de consciência, e de memória ou lem brança15. Tal como ele é apresentado correntemente, o movi mento da praxis é, apesar das aparências, um movimento contínuo. A praxis en quanto tom ada de consciência e movimento de negação do objeto, contém sem dúvida rupturas entre o sujeito e o objeto, m as no discurso e na prática historicistas essas rupturas são sempre solidárias das condições de sua superação16. C ada vez que se estabelece uma ruptura, são dadas ao mesmo tempo, de um m odo imediato, as condições para superá-la. O ra, essa continuidade do movimento da praxis é as segurada exatamente pela consciência (pela tom ada de consciência) e pela memó ria. E a tom ada de consciência e a memória do sujeito que tornam possível o “ pre enchimento” de cada ruptura. Analisar criticamente as noções de “ consciência” e de “ m em ória” no seu emprego historicista significa, assim, m ostrar como o movi mento da praxis remete ao contínuo, como nele as descontinuidades são sempre evanescentes, e m ostrar as dificuldades dessa continuidade. Se a praxis nunca esta belece verdadeiras descontinuidades é, por um lado, por causa da maneira pela qual o historicismo pensa a relação sujeito/ objeto (e por sua concepção do sujeito), e por outro por causa do m odo pelo qual concebe o tempo. A análise do primeiro aspecto do contínuo historicista nos leva à crítica da maneira historicista de pensar a idéia de consciência (considerada num primeiro nível), a análise do segundo à crítica do “ u so ” historicista da noção de memória. Se no movimento da praxis (tomada sempre em forma historicista) reiteramse as rupturas entre sujeito e objeto, essas rupturas são absorvidas pelo contínuo, porque o objeto, embora seja um obstáculo para o sujeito, é sempre objeto no seu cam po, objeto para ele. Para o historicismo, e em particular para a política histori cista, se o objeto a ser enfrentado, no caso as estruturas capitalistas, é um obstá culo, ele é na realidade um obstáculo que o sujeito encontra no seu pro-jeto; e a compreensão do objeto não faz mais do que prolongar a consciência que o sujeito tem de si mesmo. O exemplo extremo de uma tal inerência do objeto ao cam po de inteligibilidade do sujeito, poderia ser encontrado no jovem Lukács, quando ele afir ma, a propósito do processo revolucionário na Hungria, que a verificação do grau de amadurecimento do capitalism o (portanto a leitura do objeto), visando conhe cer as possibilidades da revolução, poderia ser dada pela análise “ auto-consciente” da vontade do proletariado (portanto pela inspeção do sujeito): “ (...) Qualquer outra indicação que se queira dar como prova da maturidade ou imaturidade das condições [para a destruição do capitalismo, RF] é superficial. Apenas e unicamente a vontade unitária do proletariado pode destruir a velha sociedade e construir a nova sociedade. As condições p ara a destruição do capitalism o haviam am adurecido,
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quando esta vontade decidida despertara na consciência do proletariado'” 17. Isto é, o grau de consciência do proletariado é o único indicador válido da maturidade das condições; na consciência do sujeito (que nós percebemos por auto-consciência, pois o sujeito é um nós) encontrar-se-ia o único indicador legítimo do “ am a durecimento” do objeto. A inteligibilidade do objeto é m ediatizada pelo sujeito, e mais do que m ediatizada, ela é absorvida pela “ com preensão” do sujeito. E mesmo quando ele não tom a essa forma extrema, o historicismo pensa sem pre o objeto como momento a ser superado, isto é, pensa-o no movimento do su jeito. Se ele não vai habitualmente até o ponto de afirmar, como faz o jovem Lukács, a possibilidade e mesmo a necessidade da leitura do objeto no sujeito, ele situa sempre a compreensão do objeto no prolongamento da auto-consciência do sujeito. É no projeto do sujeito, na consciência de nossos fins revolucionários, de nossos objeti vos, da praxis do proletariado ou da praxis de nosso grupo etc., que se encontraria o obstáculo a ser superado, as estruturas do capitalism o; estruturas que, sem dúvi da se opõem a nós, m as enquanto obstáculos-para-nós, enquanto objetos atraves sados no nosso caminho. Ora, por evidente que possa parecer esse estatuto do objeto e do conhecimento, ele absolutamente não é convincente: a compreensão do objeto, isto é, a compre ensão do capitalism o, exige um outro tipo de visada. N ão se deve pensar o capita lismo, inicialmente pelo menos, como este objeto para nós, mesmo se esse para nós tem a forma do contra nós. A estrutura capitalista deve ser tom ada inicialmente na sua realidade maciça e irredutível, como coisa inerte, não coisa natural evidente mente, mas de qualquer modo coisa que “ está lá ” , no sentido mais radical. O m odo de produção capitalista, ou uma form ação deste m odo, deve ser tom ado antes de mais nada como este objeto que tem suas leis próprias, sobre as quais, nas condi ções ordinárias, nenhuma força revolucionária poderia influir, senão de maneira secundária. Para compreender o capitalism o é necessário inicialmente “ cortar” de certo m odo a compreensão do movimento do sujeito18, é preciso deixar aparecer o objeto naquilo que ele tem de mais irredutível; o que significa tentar pensá-lo e dizêlo não no registro e na linguagem da consciência, mas no registro e na linguagem da ciência. Se se pensar o capitalism o só como este obstáculo à nossa praxis e por tanto de nossa praxis — e quantos revolucionários não o pensam só desse modo — , a deturpação do seu entendimento científico é mais ou menos inevitável. Se o capitalismo só for pensado como “ objeto” de nossa praxis, a ciência crítica do ca pitalismo tornar-se-á ciência evanescente, simples momento na consciência e no ato da praxis. A possibilidade de todas as mitologizações na análise da estrutura capi talista ficará aberta. Com efeito, é o esquema ilusório da praxis historicista que subjaz às explicações superficiais desta ciência fácil e falsa do capitalism o que pulula em muitos meios m arxistas. O capitalism o só é pensável pelo contrário, se se pressu puser a exigência de uma espécie de corte no movimento da praxis — m as, então, não se tratará mais da praxis no sentido historicista — uma espécie de “ inibição” da visada-consciência do sujeito, para dar lugar à visada-ciência das coisas. E se o historicismo é incapaz de pensar a exterioridade do objeto enquanto este está para além do sujeito, ele também não pensa a exterioridade do objeto, por assim dizer, aquém do sujeito. Ou antes, se ele é incapaz de ler o objeto na sua ex-
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terioridade em relação ao sujeito, ele é também incapaz de descentrar a visada do próprio sujeito. Com efeito, para que esta visada seja objetiva, é preciso que o su jeito seja inserido nas estruturas objetivas que se situam aquém dele, e cuja com preensão depende de algo bem diferente de uma tom ada de consciência. Se a inte ligibilidade das estruturas do capitalism o, concebidas como simples “ objetivos” a atacar se perde na visada (auto-consciente) do sujeito, a inteligibilidade deste últi mo fica também comprometida porque, na leitura historicista, a visada do sujeito só nos remete ao próprio sujeito, a este sujeito prático jam ais descentrado senão através da retom ada da consciência de suas ações anteriores (o que não representa uma verdadeira descentração). Com efeito, o historicismo permanece sempre fechado em um nós — nós que combatemos, nossa classe, nosso grupo; ele é incapaz de fa zer a crítica desse nós, situando-o em relação a estruturas objetivas19. Sem dúvida, há historicismos e historicismos. A visada auto-consciente do sujeito pode ser mais ou menos profunda, mais ou menos dessubjetivizada dentro de certos limites; o próprio sujeito — classe, grupo, pode ser, por outro lado, mais ou menos real, mais ou menos mítico. M as, no essencial, toda “ auto-crítica” do sujeito no historicismo se caracteriza pela ausência de um verdadeiro deslocamen to que conduza a visada do sujeito a um aquém dele capaz de iluminá-lo de fora. O historicismo, em particular a política historicista, é prisioneira de uma espécie de cogito prático: a evidência do nós, nosso grupo, nossa classe, nunca é rompida. Podemos corrigir nossos erros, retificar tal ou qual ação, sem que jam ais se saia da evidência do nós. Quando se critica o nós, é para voltar a ele, sem efetivamente escapar do círculo da sua evidência. Quando parece que saím os dele, mostrando nossos erros, nossas insuficiências, é sempre através de uma operação fugaz que logo nos reconduz ao ponto de partida. N ão se rompe jam ais a evidência do nós situan do-o no contexto “ externo” da história estrutural, m ostrando o que som os e so bretudo o que não som os, nossas possibilidades reais e principalmente nossas impossibilidades reais, tais como elas resultam entre outras coisas do nosso enrai zamento nas estruturas de uma form ação. Isto exige, evidentemente, que se saiba o que são e em que sentido se desenvolvem essas estruturas. Como já disse, toda descentração, mesmo aquela que não faz com que inter venha a análise da estrutura, é difícil para o historicismo. M esm o uma operação tão simples como aquela — sobre a qual chamava a atenção Lenin em A doença infantil do comunismo — que consiste em se dar conta da defasagem entre a m obi lização e a consciência de uma vanguarda e a imobilidade e a inconsciência da massa da classe, não se faz sem dificuldade: “ (...) vocês devem vigiar com um olho lúcido o estado real de consciência e de preparação da classe na sua totalidade (e não so mente da sua vanguarda comunista), da m assa trabalhadora na sua totalidade (e não só dos seus elementos avançados)” 20. Ou, para dar um exemplo de análise de uma situação concreta, e onde o deslocamento é em certo sentido ainda mais radi cal, uma descentração como aquela que encontramos no Dezoito Brumário de Luis Bonaparte, quando M arx constata uma ausência de toda atividade revolucionária das m assas, após a derrota de junho de 1848, e a ausência também da “ cena públi ca ” das próprias vanguardas21 — esta descoberta de que o nós não está lá, que é o outro que age, esta passagem , que entretanto é ainda na ordem das práticas, do nós
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ao outro, da atividade das classes revolucionárias à das classes dominantes, faz-se ainda menos facilmente. Q uantos analistas políticos m arxistas têm a coragem de dizer, como o faz M arx, analisando uma situação, que as m assas enquanto força em ação não estão lá, ou não estão mais lá? M ais difícil do que descentrar o nós na sua relação com o outro, é passar da nossa atividade à inércia das estruturas. Isto é, operar a regressão que vai da cons ciência à ciência, da praxis do nós à análise das coisas em exterioridade. Descobrir o que são e para onde se desenvolvem as estruturas num momento dado e situar — positiva ou negativamente, revelando uma presença mais ou menos significativa — o nós (nossa classe ou as classes que supom os revolucionárias etc.) nesse contexto. E sobretudo aceitar que o movimento regressivo em direção às estruturas possa não remeter de novo ao nós. Isto é, aceitar que o movimento rom pa eventualmente o nós da maneira mais radical, m ostrando a necessidade de um outro nós, de uma outra prática, de outras formas de organização, de se apoiar sobre outras classes etc. E esta form a de crítica radical, feita em “ exterioridade” — crítica que prolon ga a exigência de uma análise em exterioridade do objeto “ a com bater” — que o historicismo é incapaz de fazer. Fechado no seu cogito prático, toda ruptura com esta evidência lhe parecerá sempre fraqueza, concessão ao outro, abandono da pers pectiva revolucionária. E, entretanto, este movimento é a própria condição de toda lucidez revolucionária22. Porém, uma crítica — como a que faço aqui — da hipertrofia da consciência no historicismo, em particular na política do historicismo, corre o risco de dizer mais do que ela quer dizer. Corre o risco de cair na recusa radical da consciência, na ten dência a subordinar unilateralmente a consciência à ciência, pela qual eu havia caracterizado a ideologia oposta, que denominei “ anti-historicismo” . Dizer que a apreensão do objeto assim como a apreensão do sujeito exige algo mais do que a tom ada de consciência, que ela passa por uma espécie de corte da “ com preensão” que dá lugar à “ visada-ciência” , não implica de forma alguma na eliminação da ciência, a qual ciência se encontra antes e depois deste corte. O es sencial é não pensar a sucessão ciência-consciência como se ela se fizesse num con tínuo ou num mesmo registro. Pode-se mesmo falar de um momento da ciência e de um momento da consciência, m as desde que se pense esses “ m om entos” , con trariamente ao uso vulgar, sob a forma da descontinuidade e da mudança de regis tro. Poder-se-ia dizer que a consciência se encontra nos dois planos (não se trata do “ antes e depois” indicado acima, mas de dois níveis), eles próprios susceptíveis de novas particularizações. Por um lado, ela se encontra — só se tratava disto até aqui — no “ sujeito” entendido como a vanguarda, isto é, enquanto “ m om ento” do saber da vanguarda. Por outro lado, a consciência está lá, no grupo ou na clas se, como uma dado irredutível, o qual, qualquer que sejam as suas limitações, não poderia ser substituído nem submetido unilateralmente à visada-consciência-ciência (reduzida freqüentemente, de resto, à visada-ciência) da vanguarda. Assim, de um duplo ponto de vista, a ciência não expulsa o momento da consciência·, primei ro porque a vanguarda deve sempre re-tomá-la, e isto, como veremos, através de um movimento de “ inibição” da ciência; segundo, porque ela está “ lá” , no grupo ou na classe.
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Deixando de lado por enquanto o primeiro aspecto, tratarei desde já da rela ção entre a ciência da vanguarda e a consciência de classe, invertendo pela primei ra vez, de um m odo ainda lim itado, o movimento crítico. Com efeito, a crítica, justificada, do privilégio de que o historicismo investe a noção de consciência e da sua redução acrítica da noção de ciência, está ligada tradicionalmente a uma teoria célebre, a que afirm a uma dependência, já na gênese, da consciência do proletaria do em relação à ciência crítica m arxista, de que são portadores os dirigentes. Exi gência afirmada ainda pelo anti-historicismo althusseriano, e cujo lugar clássico são as teses do Que fazer? de Lenin sobre a origem externa da consciência do proleta riado. Com efeito, é nas teses célebres de Que fazerí 23 que se pretendeu encontrar as armas críticas para atacar as ilusões da praxis e da consciência pensadas à maneira historicista24. De tal m odo que se estabeleceu uma falsa alternativa: ou se critica a praxis historicista mas aceitando as teses anti-historicistas do Que fazer?, ou se critica as teses do Que fazer? mas para cair na aceitação da praxis historicista. M as, de fato, isto é, de direito, a conexão entre os dois termos não tem nenhuma necessida de: pode-se perfeitamente criticar as ilusões da praxis tal como a pensa o historicismo, sem aceitar por isso a idéia de uma im portação da consciência revolucionária. Examinem os mais de perto os textos de Lenin e Kautsky. H á evidentemente um elemento de verdade nesses textos, o qual representa precisamente a crítica do historicismo. É certo que a “ doutrina socialista” , se se entender por isto o m arxis mo enquanto ciência crítica, não “ vem ” da luta de classes. “ Ela nasceu — como diz Lenin — das teorias filosóficas, históricas, econômicas, elaboradas pelos repre sentantes instruídos das classes possuidoras” . Em certo sentido, é verdade, como escreve Kautsky, “ que o socialismo e a luta de classes surgem paralelamente e não se engendram mutuamente (...)” . M as o que pode ser afirm ado sem dificuldade a propósito da relação entre os operários e a ciência m arxista não pode ser afirmado sem dificuldade a respeito de sua consciência socialista ou revolucionária. Que os operários não sejam portadores da ciência crítica m arxista, a qual se inscreve numa história teórica, e que, abandonados a eles mesmos, sem o concurso dos intelectuais, eles não chegarão a assimilar cientificamente o m arxism o, isto parece evidente. M as isto não quer dizer — e é do que vem em seguida que se trata nas teses de Kautsky e de Lenin — que, “ abandonados a eles m esm os” , eles estão condenados ao refor mismo e ao trade-unionismo. Uma coisa é negar que as m assas possam chegar sem o auxílio dos intelectuais a uma compreensão do socialismo que se poderia qualifi car de científica, outra coisa — e um tal deslizamento está nos textos de Kautsky e de Lenin — é negar que, sem ser dirigidas por um partido, elas possam chegar a uma perspectiva e a uma prática revolucionária e socialista. Passa-se sem justifica ção de um plano ao outro. Que pelo menos em determinadas circunstâncias as m assas, mesmo se não dirigidas por um partido, sejam capazes de efetuar essa pas sagem, ainda que ela implique de fato numa descontinuidade para com a luta eco nômica (elas são “ levadas” [tfzrfo-conduzidas] a esse corte), certo número de expe riências históricas parece atestar25. Diria assim que a crítica do historicismo e a aceitação das teses de Que fazer? não têm de direito, nenhuma conexão. Acrescen to mesmo que a crítica da praxis historicista nos leva antes a rejeitar também as teses de Que fazer?, porque, a despeito das aparências, entre o historicismo e o anti-
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historicismo, que Que fazer? representa (de forma análoga à relação que existe entre humanismo e anti-humanismo), há uma solidariedade profunda. De fato, os dois conduzem a uma espécie de continuismo e de m onismo, mesmo se o ponto de par tida de certos anti-historicismos é urna exigencia radical de descontinuidade e de pluralismo. A diferença entre os dois consiste em que no historicismo, o continuo se estabelece a partir e em proveito da consciência, enquanto no anti-historicismo, ele se faz a partir e em proveito da ciência. M as nos dois casos, acaba-se por esca motear as descontinuidades. Para o problema que exam inam os, o da relação entre vanguarda e massas, o historicismo supõe uma espécie de contínuo ascendente (quais quer que fossem as “ m ediações” , as m assas seriam finalmente, as verdadeiras por tadoras da ciência); o anti-historicismo supõe um contínuo descendente: a vanguarda, portadora da ciência, deve “ injetar” nas m assas a consciência revolucionária. N os dois casos, como se ve, supõe-se de direito um caminho contínuo entre o saber da vanguarda e a atividade das m assas, o que implica uma homogeneização da tem poralidade de duas regiões diferentes. Ou as m assas “ im portam ” a ciência da van guarda, ou as m assas são “ em última instância” as portadoras da ciência, o saber da vanguarda se reduzindo no fundo, na segunda hipótese, a algo que não é mais do que um “ reflexo” . Historicism o e anti-historicismo escamoteiam assim o pro blema, sem dúvida difícil, de pensar a relação que se estabelece na descontinuidade entre a ciência e a consciência, entre a vanguarda e as m assas26. O contínuo ascen dente é próprio de um certo “ gauchism o” 27, o contínuo descendente é o de Que fazer?28 (que os stalinistas adotaram sem crítica), mas é característico também apa rentemente, de algumas tendências pelo menos da Segunda Internacional29. O apelo à ciência é uma variante no interior do anti-historicismo, o apelo ao fundamento m oral é uma outra (também no interior do anti-historicismo); o contínuo descen dente está nas duas variantes. M as se podemos ler a praxis historicista acentuando a absorção do objeto pelo sujeito e o fechamento do cogito prático, ela pode ser lida igualmente no plano do tempo, e isto se nos fixarm os sobre a maneira pela qual esta praxis “ assum e” as determinações do tempo. É-se conduzido então a uma outra absorção, a absorção do presente pelo passado e pelo futuro. Ao continuismo em proveito do sujeito e da consciência na relação sujeito-objeto, corresponde um continuismo no tem po30 em proveito do passado e do futuro. O historicismo pensa sempre o presente na continuidade de uma história in teriorizada pela memória. O presente não é mais do que o ponto de chegada de um passado presentificado pela lembrança, no qual ele obtém o essencial de sua inteli gibilidade. N ão se pensa o presente naquilo que o separa do passado, ou antes pensase, mas a posteriori, depois de ter m ostrado o que eles teriam em comum. Assim, a leitura historicista é sem dúvida capaz de diferenciação, mas somente nos limites da não-diferenciação. N o fim das contas, o presente ficará sempre “ enviscado” no passado. Tal tarefa do presente será dita “ semelhante” a tal tarefa do passado, tal situação do presente assim ilada à conjuntura deste ou daquele ano, tal político re formista de hoje será considerado como o análogo de tal político dos anos tanto. Que depois de se entregar a esse movimento regressivo, a leitura historicista tente se corrigir dizendo que se a situação de hoje é análoga à do ano tanto, essas condi-
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ções são, bem entendido, m odificadas por tais ou tais circunstâncias, com isso, nada de essencial muda no estilo de argumentação. Pelo contrário, esse segundo movi mento é o complemento necessário do argumento historicista. Uma vez aceito o encadeamento do presente ao passado, uma vez abandonado o presente em pro veito de uma inteligibilidade ilusória no passado, não há mais volta possível. Toda diferença será então inevitavelmente marcada pela não-diferença e submetida a esta, toda descontinuidade não será mais do que o resultado de um movimento segun do, no quadro do continuum: “ a situação de hoje é como a dos anos tanto, em tal país, com a diferença que...” . A necessidade de dizer sempre a diferença é a melhor prova da subordinação do historicismo ao pensamento da não-diferença. Subordi nação ao passado que é assegurada pelo poder da memória ou da lembrança, a qual remete ao imaginário a visada do presente31. Eis por que, em toda crítica dos anti-historicismos, é preciso evitar um em prego ingênuo da noção de memória. A memória-lembrança que caracteriza o his toricism o, e por meio da qual ele pretende responder às filosofias e às políticas do esquecimento, não é mais do que uma outra figura dos para-m arxism os. Diante de cada situação concreta — emprego de propósito expressões provocadoras que se rão “ negadas” pela crítica inversa — é preciso em primeiro lugar se libertar das lembranças do passado. Um processo social determinado não é, em primeiro lugar, como o processo do país x, no ano z, com tal ou qual diferença. Ele é o que é. E, para compreendê-lo, não se deve “ olhar para trás” 32; é preciso antes de tudo inibir o poder da lembrança. E esta necessidade de “ não olhar para trás” que faz com que uma direção mais “ empírica” possa ser mais eficaz do que uma outra mais consci ente (das experiências do passado), mas que por isso mesmo tem maiores dificul dades para visar o presente. [Sobre o papel do passado nos textos do Dezoito Brumário de Luis Bonaparte e da Guerra civil na França — Já que se trata aqui do peso negativo do passado, seria preciso se referir aos textos de M arx sobre o papel da lembrança, sobretudo os do Dezoito Brumário de Luis Bonaparte e da Guerra civil na França (1871), aos quais não me referi ainda, por razões que serão indicadas. Introduzindo o tema das duas repetições, M arx distingue no Dezoito Brumário... o papel positivo desempenhado pela evocação do passado nas grandes revoluções burguesas anteriores ao século X IX , e o seu papel negativo “ na revolução social do século X I X ” . E preciso citar extensamente esse texto muito importante: “ As revoluções anteriores tinham necessidade de lembranças histórico-universais (weltscbicbtlichen Rückerinnerungen) para nelas embotar (betauben) o seu próprio conteúdo. A revolução social do século X IX deve deixar os m ortos enterrar os seus m ortos para atingir (ankommen) o seu próprio conteúdo” (W 8, Der Acbtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte , op. cit., p. 18). “ Em 1848-1851 voltou somente o espectro da antiga revolução, desde M arrast, o republicano de luvas am arelas que se fantasiou de velho Bailly, até o aventureiro que dissimula seus traços de uma trivialidade repugnante sob a m áscara m ortuária de ferro de N apoleão. Todo um povo que crê se ter dado, por meio de uma revolução, uma força de movimento aum entada, acha-se bruscamente transportado a uma época passad a, e para que não seja possível nenhuma ilusão referente a esta queda, reaparecem as antigas datas, o antigo calendário, os antigos nomes, os antigos éditos que há muito haviam caído no domínio dos eruditos e dos antiquários, e os ve lhos agentes (Schergen) que há muito haviam caído em decom posição. A nação se conduziu como aquele inglês louco (nàrische) de Bedlan, que pretende viver na época dos antigos faraós e se quei xa todos os dias dos serviços penosos que é obrigado a realizar nas minas de ouro da Etiópia, en
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carcerado nessa prisão subterrânea, com um a lâm pada, iluminando pouco, fixada em sua própria cabeça, tendo atrás de si o guardião dos escravos com um longo chicote, e nas safdas um fervilhar de soldados-servos (Kriegsknecbten ) que não compreendiam os trabalhadores forçados nas minas nem se entendiam entre si, porque n ão falavam nenhuma língua comum. ‘E tudo isto — suspira o inglês louco — é exigido de mim, britânico livre, para produzir ouro p ara os antigos faraó s’. ‘Para pagar as dívidas da família Bonaparte’ — suspira a nação francesa. Enquanto ele estava de posse da razão (bei Verstand war), o inglês não podia se desem baraçar da idéia fixa de fazer ouro. En quanto eles faziam revolução (revolutionierten) os franceses [não podiam se desembaraçar] da lem brança napoleónica, com o o provou a eleição de 10 de dezembro. Eles aspiravam voltar dos peri gos da revolução às panelas do Egito, e o 2 de dezembro de 1851 foi a resposta. N ão só caricatu raram a caricatura do velho N apoleão, eles caricaturam o velho N apoleão ele mesmo tal como ele deve se conduzir no meio do século X I X ” (W 8, Der Achzehnte Brumaire des Louis Bonaparte , p. 117, Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte, op. cit., pp. 117-8). Esse texto mereceria um a análise particular. Limito-me aqui a algum as observações. A diferença entre o tipo de memória de que se trata nesse texto célebre, e a que visei no meu texto, está por um lado no fato de que se trata de lembranças de um a outra revolução, isto é, da revolução burguesa, e isto no interior de um pro cesso que seria o de uma revolução “ social” (a saber, proletária). Por outro lado — o que a rigor não é uma conseqüência necessária — , no fato de que a memória em questão não é propriamente heróica. Entretanto, em termos propriam ente form ais, a diferença é que no texto do Dezoito Bru mário... trata-se de uma m em ória objetiva. E a própria história, isto é, não só a prática dos repre sentantes das classes, m as as do conjunto das próprias classes, que repete, em farsa, a história do passado. H á assim uma espécie de historicismo da história objetiva (enquanto história das práti cas). Tudo se passa como se no nível das práticas se constituísse uma dupla cam ada, de essência e de aparência, análoga até certo ponto à que existe no plano da estrutura. Só que nesse caso a ap a rência está afetada no seu próprio conteúdo pela temporalidade, ou é aparência na textura do tempo, ela é a presença ilusória do passado no presente. A relação aparência/essência não nos conduz aqui da identidade à não-identidade, ou da equivalência à não-equivalência (como no caso da estrutu ra); ela nos faz passar de um processo de transform ação aparente de um presente travestido em passado, a um movimento de freagem desse processo, cujo tempo é absolutamente o do presente. Ou: passa-se sem dúvida da identidade à não-identidade, mas a identidade não é aqui a das partes no contrato, m as a identidade dos tempos. A passagem à essência resolve essa identidade em nãoidentidade, separa o presente do passado. Esse caráter objetivo da lembrança modifica em parte os termos do problem a: não há uma falsa leitura do objeto (como no caso da ideologia no plano da estrutura), mas um falso objeto. M as a crítica nesse caso constitui um trabalho análogo ao que representa a crítica no plano das estruturas, porque, também aqui se trata de interverter a aparên cia na essência: m ostrar com o o tempo aparente de transform ação do presente travestido em p as sado se interverte no tempo simplesmente presente de freagem do processo. (M ais adiante m os trarei que as lembranças dos agentes-sujeitos — viso então as vanguardas, a ordem subjetiva das práticas — conduzem igualmente à interversão. Por se tratar da ordem subjetiva da prática, a crí tica se fará então “ suprim indo” a interversão, e não acom panhando o seu movimento com o na ordem objetiva.) O que significa também dizer que, com o a aparência no plano da estrutura, a ideologia objetiva das práticas universaliza. A universalização da prim eira repetição, que utiliza uma sim bologia neutralizada pela distância temporal e pela diferença radical da form a social de que se toma de empréstimo, não é a rigor mistificante, ela se insere lá onde a revolução universaliza, e a estimula. A universalização da segunda repetição, que sendo também lembrança de uma lem brança, utiliza um a sim bologia carregada de um significado presente m as com sinais invertidos, insere-se lá onde a revolução não universaliza, onde se situam as suas oposições, e assim a neutra liza. A praxis se torna com pulsão repetitiva, com parável à do indivíduo portador no interior da estrutura. Tal é o alcance da imagem do inglês louco que evoca de resto o Freud dos Estudos so bre a histeria (a neurose como reminiscência). À com pulsão de “ fazer o uro” que caracteriza o inglês enquanto ele não está doente, com pulsão que é em geral a de todo capitalista, corresponde uma prática que se faz compulsivamente no registro do passado e que termina pela confirmação do poder
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de Bonaparte, com o o inglês acaba mergulhado no passado egípcio. E aqui não se caricatura mais “ a caricatura [isto é, a imagem, RF] do velho N ap o le ão ” , caricatura-se “ o próprio N ap o leão ” : é que no ato final da prim eira repetição, o efeito inibidor da repetição já estava presente, e a lem brança da lembrança no ato final da segunda não institui assim a com pulsão, m as repete uma re petição, já em si mesma compulsiva. — De qualquer m odo, poderíam os perguntar se a diferença entre a tradição num plano subjetivo e a tradição propriamente objetivada pelo conjunto dos ato res do processo tem realmente uma im portância decisiva, e se no fundo as análises do Dezoito Brumário não nos conduzem à raiz de todo historicismo: a volta aos mitos de origem em parte para ocultar a prática do presente, instituindo a ocultação pela repetição, em parte retom ando o que eles já tinham de enganador. Isto vale para as revoluções burguesas, mas vale também para as revoluções pós-burguesas. N a sua form a geral, o fenômeno não parece, de resto, ser exclusivo do mundo moderno; seria preciso estudar o que a form a moderna da repetição tem de característico. Provavelmente a justaposição de um tempo circular a um tempo linear de progresso, enquanto na Antiguidade a volta ao passado não se faz sobre o fundo do progresso e por isso não é mistificante no mesmo sentido (Paul-Laurent Assoun faz uma análise detalhada dos textos de M arx sobre a repetição em Marx et la répétition historique, Paris, PUF, 1978, análises das quais não me ocupa rei aqui). — Os textos da Guerra civil na França (1871) remetem ao que seria uma segunda repe tição da primeira revolução (que ela mesma já repete), portanto, em certo sentido, a uma terceira repetição. A form a da memória é aqui de certo m odo heróica (ela leva ao engajamento na luta contra os prussianos), m as o seu conteúdo, no limite, passa no seu contrário, porque se repete o heroísmo da outra revolução: “ O s trabalhadores franceses devem cumprir seu dever de cidadãos, m as eles não podem se deixar dominar pelas lembranças nacionais de 1792, com o os camponeses franceses se deixaram enganar pelas lembranças nacionais do primeiro Im pério” (W 17, op. cit., Zweite Adresse über den Deutsch-französische Krieg, p. 2 77, La Guerre Civile en France, Paris, Editions Sociales, 1953, p. 289). Apesar de haver, também aqui, uma diferença no conteúdo mes mo da revolução que se traz à lembrança, a situação se aproxim a do m odelo discutido no texto: uma memória heróica que se interverte no seu contrário (só que, com o o curto-circuito do tempo é, aqui, também o do conteúdo, o “ contrário” não é o fracasso da ação arm ada, mas a colabora ção de classes). O texto imediatamente anterior ao citado, que darei m ais adiante, considera (sem referência à memória) a eventualidade de um a insurreição do proletariado, a alternativa heróica independente que, contra o que aconselhava M arx, viria a ocorrer.]
N o outro extremo está a política do esquecimento. M as onde encontrá-la? Os althusserianos deram à noção de esquecimento um lugar especial: “ A análise da acum ulação primitiva nos põe assim em presença de uma ausência radical de me mória que caracteriza a história (não sendo a memória senão o reflexo da história em certos lugares predeterminados — a ideologia, mesmo o direito — e, como tal, de modo nenhum fiel)” 33. N um a outra vertente, poderia ser lembrado o papel do esquecimento na política stalinista. As viradas bruscas marcam rupturas no tem po. N ão se memorizam as táticas abandonadas. Em cada viragem tática, liquida-se brutalmente o passado, esquece-se brutalmente o passado através da auto-crítica mais simplista. Esquece-se também e se “ liquida” (outrora sem aspas) os indivíduos que, pelo papel que tiveram, seriam inevitavelmente guardiães da lembrança. M as a m em ória autom ática do reform ismo, por paradoxal que isto possa parecer, pode também representar a política do esquecimento. Trata-se aí do peso da tradição, m as não da tradição heróica, e sim do autom atismo de uma memória que é “passado sofrido” (passé subi, passado de que se é objeto), ou, segundo uma expressão célebre, do “ esquecimento das origens” 34. A memória não é então posi ção do passado, e ainda menos posição do futuro, e é através dessa dupla posição
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que, pelo contrário, se deve definir o historicismo. Se no reformismo há memoria, a memoria é aqui esquecimento do passado em proveito, paradoxalmente, da conti nuidade do tempo. Essa configuração, Walter Benjamín a caracteriza sob o concei to de historicismo. Eu a subsumiria, pelo contrário, à noção de anti-historicismo, porque a historia não está posta, e é simplesmente “ sofrida” , o passado presentificado porque esquecido. (Diria mesmo, é a leitura que Benjamín faz da historia, e que a “ desequilibra” em sentido oposto, que mereceria o nome de “ historicista” .) Cito dois textos que descrevem muito bem o continuum reformista, um de um artigo interessante e pouco lido de Regis Debray, o outro de Trotsky em N ovo curso. Debray: “ (...) o tempo da dialética revolucionária não é o tempo achatado (plat) do reformismo. N ão se pode chegar a afirmar que eles não têm nada em comum, pois eles partilham uma mesma herança ideológica: a das Luzes, a do Progresso, a qual suporta, apesar de tudo, mais ou menos inconscientemente, numerosas for mulações para- ou peri-marxistas. O tempo reformista procede por ganhos e per das, adição e subtração. (...) o tempo histórico está dotado de uma faculdade es pontânea de acum ulação. Cada um dos seus períodos (o tempo é divisível, segun do a unidade de tempo escolhida, em frações homogêneas e sucessivas) acumula os elementos cuja adição permitirá passar a um período superior, a um estádio mais elevado do desenvolvimento social (...) a vitória resultará de um trabalho político acumulado sobre um período mais ou menos longo, sob a forma da experiência do Partido, o crescimento da sua im plantação, o número dos seus eleitores, a solida riedade da sua infra-estrutura etc., cuja soma compõe uma espécie de capital fixo: o que o movimento acumulou desde a sua origem ” 3''’. Compare-se com o que es creve Trotsky em N ovo curso·. “ Tom em os o partido ‘clássico’ da II Internacional, a social-democracia alemã. Sua política ‘tradicional’ semi-secular estava fundada na adaptação ao regime parlamentar e no crescimento ininterrupto da organização, da imprensa e da caixa. Essa tradição, que nos é profundamente estranha, tinha um caráter semi-automático: cada dia decorria naturalmente do precedente e, também naturalmente, preparava o seguinte. A organização crescia, a imprensa se desen volvia, a caixa se enchia. (...) E nesse autom atismo que se form ou toda a geração que sucedeu a Bebei: geração de burocratas, de filisteus, de espíritos obtusos, cuja fisionomia política se revelou nas primeiras horas da guerra imperialista. C ada um dos congressos da social-democracia falava invariavelmente da antiga tática do par tido consagrada pela tradição. E, com efeito, a tradição era poderosa. Era uma tra dição automática, desprovida de espírito crítico, conservadora, que no final das con tas sufocou a vontade revolucionária do partido” 06. Denunciando embora o peso negativo da lembrança, Trotsky não deixa en tretanto de reivindicar o bom uso da tradição. N ão se trata de dar as costas ao passado ou à tradição, mas de aproveitá-los, impedindo que o seu peso seja um obstáculo à compreensão do presente37. Como pensar e formular teoricamente uma incorporação do passado desse tipo, que escapa do peso dele e neutraliza a sua inér cia? Poder-se-ia formulá-la da seguinte maneira: para pensar o presente é necessá rio, sem dúvida, cortar toda continuidade do tempo, m as num segundo momento (aprés-coup), uma vez pensado o presente, se re-descobre eventualmente, o p assa do sobre o fundo da análise do presente. Em lugar de pensar o presente em conti
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nuidade com o passado e no m odo da identidade com ele, fazendo só depois inter vir, para corrigir a visada, o jogo das descontinuidades e das diferenças, seria pre ciso inverter o movimento, sendo o resultado, entretanto, algo mais do que uma simples inversão. Colocar-se primeiro e da maneira mais radical no terreno da di ferença, isto é, proceder ao corte do passado, para em seguida dar lugar ao jogo das identidades com suas diferenças, e não descobrir o presente como resultado da análise do passado. M ovimento que, quebrando a continuidade, m odifica intei ramente, para além da simples inversão, o jogo das identidades e de suas diferen ças. Esse movimento de corte-retomada do tempo histórico não deixa de ter ana logias, diga-se de passagem , com os cortes no tempo lógico da teoria que o discur so dialético exige. Tom em os, por exemplo, a descontinuidade que se estabelece en tre as pressuposições antropológicas e o discurso substantivo. Assim como na or dem teórica são as categorias do sistema que “ com andam ” as pressuposições an tropológicas (e isto vale em geral para todas as pressuposições — de certo modo deve-se “ esquecer” o que é pressuposto — na ordem do tempo histórico é o pre sente que comanda o passado. N os dois casos, é preciso inverter a ordem (lógica ou histórica) que, à primeira vista, isto é, do ponto de vista do senso comum ou do entendimento, pareceria ser a mais racional. Redescobrir depois o que, aparente mente, viria antes. H á entretanto uma outra form a, mais rigorosa de pensar essa conservação se gunda do passado, forma que completa e corrige a form ulação anterior. Ela é mais rigorosa do que aquela que recorre às expressões “ ingênuas” de antes e depois, e é paralela não à crítica da antropologia, m as à crítica do humanismo. A conservação-desaparição do passado é “ supressão (Aufhebung) do passado, memória, mas não memória à maneira historicista, porque memória afetada pelo esquecimento” 38. O que está em discussão não é pois a conservação do passado em geral, m as a pre sença em sentido forte do passado, a sua posição. E preciso sem dúvida que o pas sado esteja “ lá ” (“ aproveitar toda a experiência do partido para encontrar por si mesmo uma nova solução” ), sem que, entretanto, ele esteja presente na forma ex plícita da posição. Ele está lá, m as somente como passado-negado. Porque a única forma de aproveitar a experiência do passado é incorporá-la como passado-nega do. Quando se tenta assumir o passado pela sua posição, a acum ulação de expe riência, o enriquecimento da visada do presente que deveria resultar disso, se intervertem no seu contrário: quando se põe a experiência do passado, essa experiência se perde. Ou: só há acumulação de experiência, se nos recusarmos a “ acum ular” . O passado só se presentifica pela sua não-presentificação. Só o passado-negado é passado para o nosso presente. O que significa: a idéia de memória é perfeitamente admissível para pensar a relação para com o passado desde que — e essa exigência é generalizável a outros conceitos — se dialetize a noção de memória, desde que se a pense como afetada pela anti-memória, com o que ela não será mais um conceito historicista. Ainda aqui, “ nega-se” o conceito, para que ele não sofra a sua autonegação39. O que, generalizando, significa: assim como o humanismo deve ser “ su prim ido” para que não “ p asse” no anti-humanismo (“ o humanismo é... o antihumanismo”40), o historicismo deve ser “suprim ido” para que ele não passe no antihistoricismo: o historicismo é... o anti-historicismo.
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Seria preciso pois abandonar o uso continuísta e “ aufklãrer” que o histori cismo faz da noção de memória. Ou: não se deve mais pensar a memória na forma da lembrança ou da reminiscência41. E de resto recusando a memória-lembrança que Hegel acolhe a noção de memória, o que perdem de vista as leituras vulgares do hegelianismo. Se, por exemplo, na Fenomenología do Espírito a leitura de cada figura pela consciência remete sem dúvida a uma Erinnerung do espírito, e, através disso, a uma acumulação de experiências, isto não se faz, mesmo para a consciên cia filosófica, sem que ao mesmo tempo se “esqueçam ” as figuras anteriores. Se, em cada figura, a consciência filosófica pode reconhecer um novo predicado do espírito (o que implica sem dúvida, que esse predicado se ponha em relação com as figuras anteriores), isto só é possível, entretanto, e paradoxalmente, porque ela “ esqueceu” o espírito no início da Fenomenología42 e porque, diante de cada nova fi gura, ela inibe a lembrança das figuras anteriores para reencontrá-las sobre o fun do da figura efetiva. N a realidade, o que separa a consciência comum da consciên cia filosófica não é o fato de que a primeira não memoriza e a última memoriza. A diferença real é a de que na primeira tem-se um esquecimento abstrato, enquanto na segunda o esquecimento é afetado de memória, ou, se se quiser, que na primeira não há memória, enquanto na última há memória-esquecimento43. O hegelianismo não é pois um historicismo, como supunham erradamente os althusserianos44. Essa “ supressão” da memória e da anti-memória pode também ser registrada no plano da apresentação da estrutura (já indiquei um caso particular, o da rela ção com as pressuposições antropológicas). Nesse caso, a memória-esquecimento j (memória afetada pelo esquecimento) é constituída pelo próprio objeto. Com efei to, nos textos teóricos de M arx (Grundrisse, O Capital, Contribuição à crítica da | economia política...), há um certo uso da noção de memória, justificado pela m a neira de ser do próprio objeto que é paralela à que apresentei para a memória no tempo histórico. Quando M arx desenvolve uma forma econômica nos seus dife rentes momentos lógicos — o melhor exemplo é o do dinheiro — , ele critica por um lado os economistas, pela sua falta de “ m em ória” . Eles seriam incapazes de conservar todos os momentos. Fixando-se sobre um momento, eles esquecem sem pre os outros: “ O que torna particularmente difícil a concepção do dinheiro na sua plena determinação de dinheiro — dificuldades que os economistas tentam evitar esquecendo uma por vez cada uma das determinações) (dass sie eine Bestimmung iiber die aiidre vergisst) — é que aqui uma relação social (...) aparece como um metal, uma pedra, uma coisa puramente corpórea (...) etc.” 45. E particularmente difícil para eles conservar ao mesmo tempo a segunda e a terceira determinações do dinheiro, a que o constitui como meio de circulação, onde está posto antes o que ele tem em comum com as m ercadorias, e a que o constitui como meio de pagam ento, onde está posta antes a diferença com relação a elas. M as isto só representa um dos lados da crítica. Se os economistas são incapa zes de “ m em orizar” ao mesmo tempo as diversas determinações, outros, em geral os críticos chamados de “ pequeno-burgueses” , tendem a recusar certas determina ções em benefício de outras, a saber, as mais simples46. Esta posição teórica não corresponde exatamente ao historicismo, tal como o descrevi, no sentido de que o análogo exato seria o alinhamento sem contradição de diversas determinações do
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dinheiro. M as isto passaria pela memória da totalidade, uma totalidade pressenti da como contraditória, e que por isso mesmo teve de ser recusada, porque, como a leitura que fazem os economistas, mas com conseqüências inversas, a dos críticos “ pequeno-burgueses” só conhece a contradição vulgar. Por outras palavras, os eco nom istas esquecem, “ recalcam ” , para não se contradizer, os outros “ m em orizam ” sem negação, e recusam certas determinações derivadas47. A leitura que faz M arx supõe, ao contrário, à maneira de Hegel, uma memória de momentos contraditó rios, e por isso mesmo uma memória que só pode se estudar no interior de cada determinação como memória-esquecimento, memória afetada pela anti-memória. Esta maneira de pensar o desdobramento dos momentos de uma categoria do sistema e do conjunto dele reproduz o modo de funcionamento do próprio siste ma. Cada momento só se efetiva se os outros momentos forem esquecidos, mas esse esquecimento tem limites, o que significa que o esquecimento deve ser sempre um esquecimento afetado pela memória. O esquecimento “abstrato ” dos outros m o mentos configura a situação de crise. Esta representa precisamente a interversão desse esquecimento abstrato em memória, quando os momentos esquecidos fazem valer violentamente a sua realidade: “ (...) resulta da tendência geral do capital — assim como na circulação simples, o dinheiro como meio de circulação é uma necessida de evanescente e sem autonom ia e portanto não aparece como obstáculo ou limite — que o capital esquece (vergisst) e faz abstração do seguinte: 1) do trabalho ne cessário que é o limite do valor de troca da capacidade de trabalho vivo; 2) da maisvalia como limite do sobre-trabalho e do desenvolvimento das forças produtivas; 3) do dinheiro como limite; 4) da limitação da produção dos valores de uso pelo valor de troca. Portanto superprodução: isto é, lembrança brusca (plötzliche Erin nerung) de todos esses momentos necessários da produção fundada no capital; tam bém, desvalorização geral como resultado do esquecimento dos mesmos. Com isto, o capital será obrigado a recomeçar sua tentativa (...)48. Se o sistema é, como vi mos em outro lugar, uma “ máquina de abstrair” , ele se revela assim , igualmente, uma “ m áquina de m em orizar” . Assim como o capitalism o deve ser pensado como um sistema de abstrações objetivas, ele é, por isso mesmo, m emória objetiva. A memória (afetada pelo esquecimento) é o laço objetivo (o equivalente dialético da “ articulação“ ) das duas abstrações. E o que vale para o passado vale também para o futuro49, sendo as duas coi sas, de resto, freqüentemente, os dois lados de um mesmo movimento. O passado m itologizado como presença imediata recobre a presentificação mitológica do fu turo. Assim como é preciso “ suprim ir” o passado para evitar o bloqueio e a in terversão, é preciso também “ suprim ir” o futuro, para que ele não se interverta. A diferença é pois a de que aqui é o fim que é “ suprim ido” . De certo m odo, o fim (a finalidade) é primeiro, m as ele só o é como fim “n egado” . (O reformismo clássico transform ava essa “ negação” em negação abstrata·, “ o que [...] se chama de fins últimos não é nada, mas o movimento é tudo” 50.) É preciso “ esquecer” o fim para poder alcançá-lo. Esse “ esquecimento” do fim, isto é, a exigência da sua não-posição, aparece na política m arxista clássica sob a forma da palavra de ordem. E insuficiente pensar a relação entre as palavras de ordem e os fins últimos através das m etáforas visuais
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da “perspectiva” 51. A palavra de ordem contradiz na realidade o fim último. Se — retomando um exemplo célebre — , em lugar de pregar a derrubada do governo provisório, dá-se como palavra de ordem “ abaixo os dez ministros capitalistas” , isto significa que não se deve derrubar o governo provisório. (Bem entendido, não se deve no momento, mas, precisamente, o presente nega os momentos que não “ são ” presentes. E é preciso entregar-se “ inteiramente” a este presente, para ter possibili dades de êxito.) N o nível da expressão, devemos dizer que se põe o contrário do que é pressuposto. A palavra de ordem “ suspende” o objetivo final, porque, se este último for posto, ele passa no seu contrário. A posição do fim “ derrubada do go verno provisório” leva ao bloqueio de tal objetivo. Por isso, ele deve ser apenas um sujeito pressuposto, a ser posto só no final, quando a “ estratégia” (pressuposta) en contrará a tática52. A condição da realização do fim é assim a não-posição dele. Se o dissermos, não o alcançaremos53.
3. D e N
ovo,
C o n s c iê n c ia
e
C iê n c ia . C l a sse
A crítica do historicismo e do anti-historicismo, tal como ela foi proposta no início, deveria percorrer os três pares de conceitos consciência/ ciência, memória (lembrança)/ esquecimento e experiência/teoria (ou saber), nos quais, o primeiro termo é historicista e o segundo anti-historicista. Só vimos os dois primeiros pares, e ainda assim de forma incompleta. A falsa alternativa consciência/ ciência só foi considerada no plano da política, e além disso de um modo parcial. Será preciso retomá- la54. Uma discussão mais geral em torno do uso legítimo da noção de consciência e de tom ada de consciência é evidentemente inseparável de uma análise da noção de classe. A dificuldade lógica que levanta o conceito de classe em M arx, empre gando por ora uma linguagem pouco rigorosa, é que o seu objeto está posto em diferentes níveis (de consciência e de organização), que ele não se dá de um modo unívoco. Que se tomem os textos do M anifesto..., do Dezoito Brum ário..., ou da Miséria da Filosofia, vê-se que a classe (a classe trabalhadora em particular) apare ce em diferentes níveis, começando por um que é anterior a toda luta de classes. Para caracterizar esse desenvolvimento, M arx emprega às vezes a noção de classe para si, à qual seria preciso opor a de classe em si55. É essa pluralidade dos lugares da classe, e a incerteza que ela introduz no que se refere à presença da “ própria” classe num nível determinado (a classe em si “ já ” é uma classe?) que constitui um problema. Qual a função dos agentes, ou como nomear os agentes, são questões que derivam disto. Ainda uma vez, temos um desenvolvimento com sujeito pressuposto, a posi ção da classe só se efetuando no final. A classe existe, sem dúvida, desde o início, como pretende o historicismo em oposição ao que dizem os anti-historicistas56; mas ela não está posta como supõem erradamente os historicistas em oposição aos antihistoricistas. Nem uns nem outros conhecem a noção de posição. Tudo se passa como se fosse preciso apresentar o conceito de classe através de um conjunto de juízos de reflexão57 — a classe é... o conjunto dos suportes (de um dos pólos) da relação de
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produção, a classe é... o conjunto dos “ sujeitos” (ou dos suportes “ negados” 58 em sujeitos) da luta econômica, a classe é o conjunto dos sujeitos (ou dos suportesnegados em sujeitos) da luta política. Observemos nesse desenvolvimento: 1) que o conceito que exprime os agentes (termo que emprego no sentido mais geral) deve m udar com a m udança de “ registro” (ou, melhor, de “ m om ento” ). Passa-se de “ suporte” a “ sujeito (a distinguir esse sujeito na pré-história do sujeito que emerge com a passagem à H istória)59; 2) que o juízo: “ a classe é o conjunto dos sujeitos (ou dos suportes-negados em sujeitos) da luta política” não é mais um juízo de re flexão, mas antes algo como um juízo de identidade, no qual o predicado é plena mente adequado ao sujeito; 3) que a passagem de um “ m om ento” a outro é preci samente “ tom ada de consciência” , mas que ela é negativa, no sentido de que, se cada “ m om ento” conduz ao outro, ao mesmo tempo ele não conduz, porque cada momento tende a se fechar sobre si mesmo, isto é, implica uma espécie de inércia. A função de suporte é condição para que a classe se tom e classe “ em luta” (inicial mente econômica), mas ao mesmo tempo a classe como conjunto de suportes im pede a passagem . Com efeito, existe aí uma inércia, que é propriamente a da estru tura: a classe como suporte tende a perseverar na sua situação. A passagem à clas se enquanto grupo de “ sujeitos” da luta econômica se faz assim por uma descontinuidade. A tom ada de consciência é ruptura com o agente enquanto suporte. M as a passagem da luta econômica à luta política é também ruptura, porque se a pri meira conduz ao limiar da segunda, ela é também à sua maneira um campo de “ inér cia” (aqui se trata da inércia de uma prática). A luta econômica tende a reproduzir a luta econômica. T oda luta econômica pressupõe a justificação, a legitimidade do sistema; m as, ao mesmo tempo, ela torna possível a luta política. A im possibilida de de as m assas chegarem por elas mesmas à luta política, im possibilidade de que fala Lenin, é verdadeira se se entender essa im-possibiidade como negação dialéti ca. H á uma força que as empurra em direção ao interior. M as elas são ao mesmo tempo projetadas para fora (tudo isto, se descrevermos o processo em termos de “ forças” ). Ou: cada posição no interior da luta econômica repõe a negação da luta política, m as ao mesmo tempo cria as condições necessárias para que o “ salto” seja possível. Poder-se-ia dizer que, se não houvesse m utação da consciência, a possibi lidade da ruptura final aumentaria, enquanto a sua necessidade diminuiria. As massas organizadas teriam mais possibilidade de derrubar o sistema, m as se elas tivessem obtido muitas vantagens (supondo que o sistema tivesse feito concessões), a ruptu ra seria menos necessária. Seria preciso, pois, que, uma vez dada a possibilidade, a necessidade — até certo ponto no duplo sentido de Bedürfnis e de Notwendigkeit -— aumentasse. Esse nascimento da necessidade de uma mudança radical é um ele mento essencial para pensar a praxis de uma maneira não-historicista, como emer gência no seio de um processo que, efetivamente, pressiona para baixo e não para cima e que reitera as leis do sistema; 4) que a tom ada de consciência e em geral a consciência devem assim ser pensadas de um m odo negativo, assim como a noção de classe deve ser pensada de um m odo contraditório (no início do processo a clas ses é e não é). Vemos imediatamente em que sentido vão as falsas leituras historicista e antihistoricista, m as deve-se considerar também alguns casos mais complicados. O his-
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toricismo pensa a consciência sem negatividade, supõe que a consciência, de um m odo ou de outro, está dada desde o início, mas isto precisamente porque privile gia o estágio final do processo, e portanto a função de sujeito. O anti-historicismo não vê que a noção de consciência pode e deve ser salva, m as para isso é preciso introduzir a “ negação” (como o seu oposto, ele não conhece a “ negação” ). Tendo o pressentimejíto das dificuldades do contínuo historicista, como não lhe resta outra alternativa, ele expulsa pura e simplesmente o conceito de consciência. Privilegia assim o estágio inicial do processo, e a função de suporte60. Para exem plificar a posição historicista, poder-se-ia citar Gram sci. Porém, mesmo um livro como H istória e consciência de classe de Lukács não escapa intei ramente disto. Uma crítica de História e consciência de classe a esse propósito é difícil, porque, nos ensaios principais que constituem o livro, é evidente o esforço para escapar da projeção da consciência de classe sobre “ m om entos” inferiores do ob jeto classe. O texto tende a m ostrar que há obstáculos para o despertar da cons ciência de classe, e a afirm ar a sua ausência no nível imediato. Lukács escreve que, nesse último plano, o operário não é um sujeito mas o objeto de um processo61. E, entretanto, apesar de tal tipo de precisão62, a solução que ele dá não é inteiramen te satisfatória. Com efeito, não obstante as suas advertências contra toda homoge neização do “ desenvolvimento” da classe, Lukács não escapa inteiramente dela, no sentido de que ele não põe o registro da inércia enquanto tal, isto é, como a região em que os agentes são “ portadores” . A noção que ele emprega é, como indiquei, a de objeto, e o tornar-se objeto é a reificação. Ora, diferentemente da noção de “ por tador” ou de “ suporte” , a noção de “ objeto” (como a de “ reificação” que conduz a esta última) permanece afetada pela de sujeito, de que ela é o avesso. N o fundo, Lukács nunca se “ esquece” do agente sujeito e da consciência. N unca põe a objeti vidade e a inércia do sistema na sua objetividade e inércia. A reificação diz bem o tornar-se coisa das relações sociais, como o tornar-se suporte dos indivíduos: mas ela não diz as relações que se tornaram coisas, nem os indivíduos que se tornaram portadores. M esm o dizendo “ reificação” , permanece-se ligado de m odo excessivo ao cordão umbilical da consciência e da subjetividade. As dificuldades do texto de Lukács são visíveis pelo fato de que, cada vez que ele considera a classe aquém da consciência de classe, ele resvala nos problem as da relação entre interesses individuais e coletivos, entre interesses im ediatos e me diatos63. Ele permanece, assim , no nível da ação, sendo bem expressivo o papel da noção de “ interesse” . Só num caso, ao que parece, ele faz uso de uma noção que remete à de suporte, refiro-me à noção de “ m áscara caracterial econôm ica” (öko nomische Charaktermaske). M as precisamente a maneira pela qual ele a emprega m ostra as dificuldades da sua posição. Veja-se uma nota ao seguinte texto em que ele trata da consciência de classe como “reação racional a uma situação típica” : “ Ora, a reação racional adequada que deve, desse modo, ser atribuída a uma situação típica determinada no processo de produção é a consciência de classe” . Em nota: “ E in felizmente impossível estender-se aqui mais longamente sobre certas form as que tom aram essas idéias no m arxism o, por exemplo, sobre a categoria muito im por tante de “ m áscara caracterial econôm ica” , ou de indicar mesmo as relações entre o materialismo histórico e tendências semelhantes da ciência burguesa (como os tipos
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ideais de M ax Weber)64. Observe-se como Lukács passa sem descontinuidade, e sem se deter no primeiro momento, da “ situação no processo de produção” à consciên cia de classe, mesmo se em outro lugar (já mencionado) ele nos adverte que ela não é imediata. E talvez a consciência de que há aí elisão de um momento que faz com que se introduza a nota sobre a “ m áscara caracterial econômica” , m as o conceito só é indicado — de resto de maneira vaga (“ certas form as que tomam essas idéias” etc.) — para assinalar analogias com a sociologia de Weber, cujo papel não é visí vel nesse contexto65. Com isto, retomamos e desenvolvemos a problemática da consciência enquanto consciência das m assas, que eu havia esboçado a propósito do Que fazerf. Cabe agora prolongar essa retomada da temática consciência/ ciência, estudando que papel a consciência poderia ter no próprio registro dos discursos de ciência. Em outras palavras, nessa ciência de que se tratou anteriormente, não há um lugar em que seria pensável uma visada-consciência? Ou, se se quiser, no próprio interior dos textos representativos dessa ciência, sobretudo O Capital e os Grundrisse, não se poderia reconhecer de algum m odo, mas com rigor, a presença de uma “ visada-consciên cia” ? A partir daí, nos interrogaremos também sobre o papel da consciência nos outros textos de M arx. Sabe-se como historicistas e anti-historicistas resolvem sem mais esta questão. Para os primeiros, a relação entre a consciência (revolucionária) — às vezes especi ficamente a consciência do proletariado — e as obras teóricas como O Capital não representa um problem a, porque se passaria sem descontinuidade de um registro ao outro, quaisquer que sejam de resto as “ m ediações” introduzidas. O tempo da teoria é reduzido, dessa ou daquela maneira, ao da história vivida ou da prática política. Para os anti-historicistas, O Capital e os Grundrisse remeteriam estrita mente ao trabalho da ciência, sendo impossível estabelecer qualquer relação rigo rosa entre esses discursos e o que se chama de “ consciência” , noção à qual eles são radicalmente alérgicos. O anti-historicismo tem razão em atacar a redução historicista. O discurso de O Capital e dos Grundrisse não é da ordem da consciência, mas do conceito. E, entretanto, é preciso ir mais longe. Insisti em outro lugar66 sobre o fato de que, quando M arx critica os limites de um pensamento (por exemplo, o de Aristóteles), a crítica não concerne aos interesses da classe à qual o pensador pertence, m as às limitações objetivas, a ausência ou, antes, a quase-ausência no objeto mesmo da quilo que não teria sido pensado. O que significa: a crítica não recorre à noção de consciência naquilo que a noção tem de específico. E, entretanto, nem sempre é assim. Se a crítica de M arx não desce nunca ao nível de uma simples imputação de inte resses, pois reconstrói cada vez o cam po objetivo e conceituai que torna impossível a visibilidade de uma determinação, ela acolhe ao mesmo tempo a idéia de cons ciência (ou de inconsciência), enquanto instância de repressão de dados “ intolerá veis” 67. Assim, a propósito da interversão da lei de apropriação, ou mais precisa mente da sua ausência na teoria de Ricardo, M arx escreve: Ricardo “ não podia ver (.nicbt einseben dürfte) que o sistema burguês dos equivalentes se interverte em apropriação sem equivalente e se fundamenta nele” 68. Ricardo “ não tinha uma visão
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clara do processo nem podia tê-la enquanto burguês (nicht klar über den Prozess war noch sein konnte ais Bourgeois)” 69. Aparentemente, tais considerações sobre a relação entre consciência e ciência na teoria burguesa não só não fornecem nenhuma indicação sobre a possibilidade de pensar, relativamente à teoria m arxista, o que poderia ligar ciência a consciên cia, mas parecem mesmo excluir essa possibilidade. Com efeito, essas considera ções mostram os limites da consciência burguesa e os bloqueios que eles determi nam na ordem da ciência. Com o encontrar alguma coisa análoga em se tratando de uma consciência revolucionária? Esta última não deveria determinar, em prin cípio, nenhum tipo de bloqueio na ordem da apresentação científica. Se a com pa rarmos com a consciência do teórico burguês, a consciência do teórico revolucio nário deveria se apresentar precisamente como aquela que não intervém na ordem teórica, e essa não-intervenção é justamente o que parece tornar impossível toda verdadeira tematização do papel da consciência nesse contexto. Que a consciência esteja ausente da ordem teórica, isto significa que a teoria remete ao conceito e à ciência, não à consciência. É nisso justamente que se baseia o argumento anti-historicista. Entretanto, a dificuldade deste argumento reside no fato de que ele não se detém suficientemente no sentido dessa “ não-intervenção” . Que haja “ não-in tervenção” , isto não quer dizer que a consciência não esteja “ lá ” . Em outras pala vras, é preciso fazer dessa “ ausência” não uma razão para recusar o problema, mas uma abertura na direção da resposta: é que essa “ ausência” tem uma modalidade a ser investigada. N a realidade, a “ ausência” é a maneira pela qual a consciência está presente na teoria revolucionária. A consciência está “lá ”, mas ela não está posta. Para que se tenha um discurso como o do Capital e dos Grundrisse, é preciso que a experiência vivida da consciência, cujo conteúdo é a recusa do capitalism o seja “ negada” em proveito da apresentação das categorias do modo de produção capi talista. Existe aí uma negação, porque O Capital e os Grundrisse dizem o capita lismo na linguagem do outro desta consciência, o próprio capitalismo. N o nível do discurso posto, o capitalismo não é dito na linguagem daqueles que o recusam, mas através de um discurso que, embora não corresponda às categorias vividas na prá tica capitalista — estas últimas, as categorias da aparência, são de resto também expressas -—, é a linguagem do m odo de produção capitalista. Quando M arx diz que o capital é uma coisa, ele deixa o capital falar a sua própria linguagem70. É essa posição do outro, condição para que se possa exprimi-lo cientificamente, que re presenta o movimento de negação da consciência; através disso, a consciência é “ negada ” em conceito. Entretanto, a consciência não passa inteiramente no con ceito. O discurso do Capital não é um discurso científico, à maneira do das ciên cias naturais. Se este fosse o caso, a consciência entendida como consciência histó rica, vivido afetado de historicidade, seria inteiramente exterior à obra enquanto tal, e toda tentativa de pensar o texto recorrendo à “ consciência” seria historicista e psicologista. N o caso do Capital e dos Grundrisse, o conceito não expulsa a cons ciência, mas a “suprim e” . A prova de que uma afirm ação como esta não é gratuita é que essa consciência se manifesta, de certo m odo, no texto. N a realidade, ela está presente em dois tipos de textos: por um lado, naqueles em que as determinações do m odo de produção capitalista aparecem refletidas nos individuos-portadores do
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sistema, enquanto experiência vivida da violência do sistema. São os textos em que o conceito no qual se “ dobrou” a consciência se “ desdobra” como experiência da violência, na subjetividade dos indivíduos agentes do sistema71. E a fenomenolbgia da alienação. Por outro lado, há os textos em que a consciência, “ desdobran d o ” também o conceito e fazendo refletir a abstração do conceito sobre o vivido dos agentes, nega entretanto essa abstração pela tematização de uma ordem em que o conceito e o sistema que ele fundamenta não existem mais. É o que ocorre lá onde o texto tematiza o comunismo72. De maneira mais rigorosa, poder-se-ia dizer que a posição se não da consciência, pelo menos de uma visada-consciência, tem o seu lugar exatamente na seção sétima do livro I do Capital, com a interversão das rela ções de apropriação. Ele represente bem o lugar em que, rigorosamente, a ciência alcança os limites da consciência. Depois de expor aquela interversão, M arx afir ma: “ M as isto seria então tom ar uma medida (Mafístab, critério), totalmente es tranha à produção de m ercadorias” 73. A significação desse texto é que, com a apre sentação da interversão, pelo próprio fato de que tocam os no fundo do sistema, na essência da sua essência, som os de certo m odo projetados fora dele. A redução à aparência (Schein) do fenômeno (Erscheinung) que o contrato e a troca de equiva lentes — e, portanto, a circulação simples — representam nos conduz ao limite em que o discurso não segue mais o conceito objetivo (conceito no qual, de certo modo, a Erscheinung tende ao Schein m as não passa nele), limite em que, pelo contrário, a ciência crítica do sistema está na junção da consciência crítica visando o sistema. Dizer que a medida se torna totalmente externa ao sistema significa que, pelo p ró - ' prio fato de aprofundarm os a crítica, o objeto se nos apresenta no limite da região em que ele não é mais visado enquanto objeto teórico. Atingido esse limite, a apre sentação teórica “ descarrilha” , o discurso muda de registro e, em detrimento da medida objetiva, põe uma medida que, até então, estava pressuposta: a medida “ externa” da consciência crítica74. Esse desvelamento, que m ostra o processo de apropriação como apropriação sem equivalente do trabalho alheio, coincide de resto com a experiência vivida, que tem o trabalhador, da expropriação do produto do seu trabalho, experiência que representa o solo a partir do qual se constitui (no plano do “ objeto” , isto é o dos agentes) a visada de uma outra forma de sociabilidade. O texto da seção sétima permite assim pensar de um modo ao mesmo tempo mais rigoroso e mais objetivo a fenomenología da alienação e a tem atização do “ comu nismo” . Quer se trate da alienação ou do comunismo, há uma espécie de transgressão da ordem do conceito, dupla transgressão mesmo, que se poderia representar como um movimento que vai respectivamente em direção da “ superfície” do sistema, onde se faz aparecer o vivido dos individuos-portadores, ou na direção do sub-solo (da leitura) do sistema, onde o capitalismo é iluminado pela sociabilidade não-reificada do “ com unism o” . A consciência desdobra assim a dobra do conceito. O discurso que se institui nessas regiões não remete mais a um outro que não a consciência, ele está de algum m odo no próprio nível do vivido da consciência. E, entretanto, não é a própria consciência enquanto negatividade que está posta nesses textos; veremos onde a própria consciência, isto é, o “ n ó s” do discurso, aparece. Tam bém não é a consciência no plano do “ objeto” , isto, dos agentes, que vem à tona. O que se m ostra é antes o que está aquém e além da consciência, ou
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seus pontos extremos, respectivamente a experiência vivida da violência do siste ma, e o sistema enquanto objeto negado. A descrição da experiência vivida repre senta uma ruptura com o universo conceituai, não simplesmente porque se trata de uma descrição do vivido (há um vivido categorial, o das categorias da aparência do sistema, as quais pertencem ao domínio do conceito), mas porque se trata de um vivido em que a violência do m odo de produção capitalista aparece. Descrever a experiência do funcionamento do m odo de produção capitalista como experiên cia de um violência é ler o m odo de produção ou seus efeitos não na linguagem do objeto, m as, pelo contrário, fazendo aparecer uma diferença entre sujeito (no obje to, e em parte no sujeito) e o objeto, a leitura conceituai e científica se definindo, no pólo oposto, pela posição do objeto enquanto objeto. A segunda transgressão, a que revela o “ com unism o” , põe por sua vez a cam ada de sentido pressuposto ao próprio discurso conceituai75. M as em que caso, se houver um, a negatividade da própria consciência, isto é, o nós do discurso, é ele próprio posto? Para responder a essa questão, é preciso introduzir outros textos que não O Capital e os Grundrisse, primeiramente aque les que são da ordem do discurso histórico, como o Dezoito Brum ário de Luis Bonaparte, por exemplo. Um discurso como o do Dezoito Brumário é da ordem do conceito? Que papel se deve atribuir à consciência em tal caso? Um texto como o do Dezoito Brum ário... se distingue do do Capital ou dos Grundrisse, por um lado porque ele tem como objeto uma form ação social determinada no espaço e no tempo, por outro lado por causa do papel que nele tem a luta de classes. O Capital visa não esta ou aquela form ação, m as o m odo de produção capitalista enquanto tal; por outro lado, já vimos, o seu objeto não é a luta de classes. Um discurso his tórico do tipo do do Dezoito Brumário... tem como ponto de partida a análise da estrutura num momento e num lugar determinados, mas a análise se prolonga — e isto constitui a originalidade do seu objeto —- numa tematização da luta de classes. Deve-se considerá-lo como um discurso não-conceitual, da ordem da consciência? Embora vise um objeto tem poralizado, embora tematize a luta de classes, um tex to como o Dezoito Brumário... deve ser pensado como contendo um discurso cien tífico, que apesar das diferenças é também da ordem do conceito (aqui o núcleo do objeto está constituído sem dúvida — além da tem poralização e espacialização — por um desdobramento dos conceitos estruturais e não por estes conceitos mesmos, desdobramento que se abre para outros conceitos — o de “ luta de classes” , em primeiro lugar — ainda que estes últimos se desdobrem, por sua vez, na tem atiza ção de práticas individuais etc.). Ou, em outros termos: é verdade que nessas obras históricas há tem atização da luta de classes, e portanto de um objeto que se consti tui tom ando distância relativamente à estrutura. M as se trata de alguma coisa que está dada efetivamente no objeto, não de determinações que embora sendo de al gum m odo reais não seriam entretanto efetivas. Ao escrever que o discurso concei tuai é aquele que deixa o sistema dizer a sua própria linguagem, eu queria afirmar, num plano mais geral, que o discurso do conceito é aquele que segue os contornos do real efetivo, que reproduz as suas articulações. Os textos sobre a alienação e a fortiori sobre o comunismo não eram conceituais, não só porque instauravam — ou faziam aparecer — uma distância entre de um lado o sujeito (sujeito do discur
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so e sujeitos no objeto), e de outro o objeto enquanto estrutura do sistema, mas tam bém porque o que se obtinha com essa distanciação não aparecia na form a da efetividade. A alienação como vivido e a sua descrição, por um lado, o comunismo como forma de sociabilidade ainda não constituída, por outro, não são — por ra zões diferentes — objetos reais no sentido forte do termo, objetos efetivos76. Efeti vos são o capital e o conjunto das abstrações objetivas que constituem o m odo de produção capitalista. Porém, o discurso histórico, mais precisamente enquanto dis curso sobre a luta de classes, também é da ordem do conceito; porque, se ele ins taura uma distância em relação à estrutura, ele o faz pondo (desdobrando) objetos que são tão reais-efetivos como as abstrações do sistema, ainda que sejam da or dem das práticas e em particular das práticas de oposição ao sistema77. A posição da luta de classes não é posição de uma “ passividade” qualquer (de um objeto inefetivo), mas de um objeto real-efetivo, mesmo se de características próprias78. Trata-se sempre de um discurso conceituai, que supõe uma descentração do sujei to em benefício de um objeto efetivo. N ão é pois nos textos sobre a luta de classes que se poderia encontrar a posi ção da própria negatividade da consciência (e ainda menos no Capital). Tal posi ção se encontra num discurso que tem como ponto de partida os discursos históri cos: o discurso político. Com efeito, o discurso político, que prolonga o discurso histórico — este é análise de uma form ação dada num situação histórica dada — , se caracteriza precisamente pelo fato de que o sujeito do discurso, o “nós”, está posto enquanto tal. M ais precisamente, com os discursos táticos e estratégicos, que tematizam os caminhos que levariam da situação dada ao “ com unism o” , ou a uma outra situação mais próxim a dele, opera-se um salto da posição dos objetos à posi ção do sujeito ou da consciência: o próprio movimento da consciência, que é só pres suposto pela teoria, o movimento de negação do capitalismo é posto enquanto tal. Evidentemente, no discurso tático-estratégico propriamente dito, o comunis mo não está posto. Pelo contrário, esse discurso adere à “ viscosidade” do presen te, e tenta tematizar a passagem ao futuro como projeto de luta contra um certo objeto. É essa “ negação” do tema do comunismo que constitui, no plano propria mente político, o análogo da “ supressão” do humanismo, de que tratei em outro lugar. M as esta “ negação” do tema do comunismo (e através dela, em certa medi da, o seu análogo no plano quase-ético, “ a negação” do humanismo) é aqui posi ção da consciência e da sua negatividade. Com essas considerações sobre o discurso político, ultrapassam os os limites desse parágrafo que deveria terminar pela análise da consciência no interior das obras teóricas. Voltando a este último tema, dever-se-ia dizer, concluindo esta parte: a s sim como a política m arxista não é nem um humanismo nem um anti-humanismo, a teoria m arxista não é nem um discurso da consciência, nem um discurso da ciên cia enquanto negação abstrata da consciência. A teoria m arxista é da ordem da consciência “negada” em ciência, consciência “negada” em conceito. Como a opo sição humanismo/ anti-humanismo, a oposição consciência e ciência é antinômica enquanto ela se mantiver nos limites do entendimento, e se resolve rigorosamente pela Aufhebung.
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4. T eoria (S a ber ) e E xperiência
Esse conjunto form ado por um discurso teórico (em que a visada consciência só é como visada de uma consciência “ negada” ) e de um discurso político (que trans cende o discurso conceituai lógico e histórico)79, pode ser chamado de saber. T ra ta-se agora primeiro de precisar a natureza desse saber e da sua situação relativa mente à temporalidade histórica, e em segundo lugar de repor nesse contexto mais rico a questão das ligações (ou da ausência delas) entre esse saber e a experiência das m assas. Com o situar esse saber relativamente à temporalidade histórica, saber que contém um momento propriamente político e um momento-ciência (no senti do técnico do termo “ m om ento” ?)80. Poderíamos começar discutindo a natureza geral de todo saber que contém um momento político, para tratar em seguida da especificidade do saber marxista. Analisando o estatuto do discurso político, Claude Lefort se refere a uma espécie de paradoxo inevitável que ocorre cada vez que se tenta circunscrever os limites desse discurso. Tudo se passa como se fosse impossível delimitar o seu espaço: “ A região (domaine) que a obra faz surgir parece estranha, porque ela é propriedade deste e entretanto nenhum signo nos adverte das suas fronteiras, porque a exploram os sem saber se estamos no seu âmbito ou se a abandonam os” 81. O discurso político exis te no mundo, na história, m as ao mesmo tempo, está fora do mundo e da histó ria82. Ele é momento da história do “ m undo” , é imanente a essa história, mas en quanto saber fica aquém dela. N ão se pode assumir só um termo da alternativa: “ N ão estam os diante da alternativa entre visar a obra como um discurso que ocor reu em um lugar, em um tempo, e determinar, em conseqüência, o que ele era e o que era o mundo que ele nomeava e na realidade do qual ele se inscrevia, ou então visar nela “ as idéias” que aumentam o tesouro do espírito. Por isso, mesmo essa alternativa nunca foi resolvida de forma absoluta na prática. N a realidade, qual quer que seja a intenção proclam ada e o comentário que se deu a esta prática, nin guém pode reter apenas um dos term os” 83. Digam os que o discurso que contém um momento político nunca fica no lu gar em que ele é visado. Se o visam os em interioridade, enquanto saber, a presença no seu contexto de um momento em que a consciência está posta permite (e em certo sentido exige) que o discurso penda para o real histórico, arrasta-o inteiro para o plano da história “ concreta” . Se, por exemplo, eu pensar num texto como o Que fazerf (que entretanto, segundo o seu conteúdo, deveria escapar desse movimento de báscula) e me fixar no que ele contém propriamente de um discurso prático (a saber, as proposições políticas pelas quais ele termina, a perspectiva que ele abre etc.), vê-lo-ei aparecer na história do movimento revolucionário russo do início do século: ele se torna, de certo m odo — e todo ele, mesmo o que ele contém de pro priamente científico ou teórico — imanente ao tempo histórico. O saber “ bascula” na história concreta. M as quando tento pensá-lo como inteiramente imanente a esta história, mais precisamente, se eu supuser que esse discurso, mesmo naquilo que ele tem de teórico, é assum ido por sujeitos históricos (supondo a existência de cer tos interlocutores da obra que acabassem por aceitá-lo e “ absorvê-lo” inteiramen te), essa imanência total do discurso político à história “ concreta” faria com que
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ele pendesse inteiramente para fora dessa história. Com efeito, se ele for assumido por inteiro — incluindo o que ele contém de teórico — por um sujeito histórico, esse sujeito nos remeterá para fora da sua condição de sujeito histórico, ele apare cerá como sujeito de um discurso teórico: o saber que havia sido pensado como imanente a esta história re-aparece em interioridade, como algo que é da ordem do saber e não da história “ concreta” . O saber político se apresenta assim como um movimento de báscula. Que significa esse “ p arad o x o” ? Ele não é um “ enigm a” , para empregar um outro termo utilizado por Lefort84. H á aí o próprio movimento, contraditório, que, posto, torna pensável o saber político. O saber político é esse movimento contradi tório pelo qual a m aior imanência faz brotar a transcendência (ou o transcenden tal) e a pura transcendência nos reconduz à imanência. Esse movimento de p assa gem do sujeito ao objeto poderia ser descrito também de outro m odo, privilegian do antes o registro histórico do que o registro lógico como fiz até aqui (mesmo se invertendo também o movimento). O saber se torna imanente, e em lugar de reto m ar o registro transcendental pelo próprio fato da sua imanência total, vêmo-lo se prolongar em ação do sujeito prático. Desse ponto de vista, há um movimento que vai do sujeito do discurso político à posição do sujeito prático, movimento que arrasta o conjunto do saber. Tudo isto poderia ser dito do saber político em geral. Que características in troduz, relativamente -— digamos — à tradição clássica, o saber político m arxista? Acredito que ele se distingue por dois aspectos, um dos quais, aquele que destaca o historicismo, é muito mais conhecido. Digam os que ele se constitui por uma dupla radicalização. Por um lado — isto é conhecido — ele vai muito longe no movimen to em direção à imanência. A propósito do discurso político clássico, poder-se-ia sem dúvida falar de um movimento que vai de uma pressuposição do sujeito práti co (pressuposição que corresponde à posição do sujeito do discurso) à sua posição. M as se esse sujeito prático pode ser mais ou menos definido, ele é um outro que não o sujeito do discurso. E, mais do que isto, há de direito e explicitamente um corte (mais do que uma descontinuidade) entre o sujeito do discurso e o sujeito prático. O pensamento político pré-marxista se apresenta como pensamento daqueles que pensam, porque não são nem pretendem ser sujeitos práticos: “ Perguntarão se sou príncipe ou legislador para escrever sobre a política. Respondo que não, e que é por isso que escrevo sobre a política. Se fosse príncipe ou legislador, não perderia meu tempo a dizer o que é preciso fazer; faria ou me calaria” 85. “Tam bém não gostaria que me imputassem presunção porque, sendo de pequena e baixa condi ção, eu ouse entretanto discorrer sobre o governo dos Príncipes e das regras; pois como aqueles que desenham paisagens ficam em baixo na planície para contemplar o aspecto das montanhas e lugares altos, e se lançam sobre estas para melhor con siderar os lugares baixos, do mesmo m odo, para bem conhecer a natureza dos po vos, convém ser Príncipe, e para bem conhecer a dos príncipes, ser do povo” 86. N ão quero opor essas perspectivas, uma das quais funda a possibilidade do saber político sobre a distância entre o dizer e o fazer e a outra sobre a distância entre o conhecimento que tem o sujeito político e o conhecimento que tem o sujei to do discurso político — am bas remetem, pois, à distância entre dois sujeitos — a
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um saber político em que o sujeito seria o mesmo, no qual não haveria descontinuidade entre o sujeito do discurso e o sujeito prático. Descontinuidade há sem dú vida, e os sujeitos de algum m odo não são os mesmos. M as a distância não terá mais o mesmo sentido. Se se quiser, há descontinuidade mais do que corte, e o outro (porque existe sem dúvida um outro) é entretanto uma re-posição do mesmo. O Manifesto comunista tem como sujeito um grupo organizado de trabalhadores de vanguarda87; este sujeito, posto como sujeito do discurso, é um sujeito prático pres suposto. Entre os dois — esse sujeito do discurso, que é o sujeito prático pressu posto, e o sujeito prático posto que ultrapassará o âmbito do pequeno grupo de vanguarda — se situa o processo pelo qual o texto se desloca em relação à imanên cia. Ou, em outro termos, há aqui um processo de constituição do sujeito prático enquanto sujeito da ação desenhada pelo discurso político, processo de constitui ção que na sua forma é análogo àqueles que vimos anteriormente. O sujeito práti co é primeiro pressuposto, isto é, posto somente na forma de predicados negativos: a classe operária, sujeito da ação que projeta o discurso do M anifesto é (são)... os membros da Liga dos Comunistas (que, sozinhos, não são a classe operária, nem poderão realizar o program a do M anifesto). N o final do processo, a classe operá ria deve ser a classe operária, o sujeito do discurso se torna o sujeito posto, com o quê, o discurso é investido no “ m undo” . M as este é apenas um lado. Se, ao fazer do sujeito do discurso o verdadeiro equivalente do sujeito prático pressuposto, o saber m arxista elimina essa espécie de salto do dizer ao fazer que era essencial ao discurso clássico, ele radicaliza também ao lado oposto: enquanto teoria, ele é um saber de um tipo peculiar, ele é mais do que tudo um saber do objeto, saber das coisas em inércia, em si e por si mesmas refratárias a toda intervenção. Esse saber teórico não dirá como o discurso maquiaveliano que os “ homens” são tais e tais88. Esse discurso diz as coisas, a saber, coisas sociais; a teoria deve seguir o contorno dessas coisas naquilo que elas têm de rígido, enquanto elas são obstáculos a toda prática. N o discurso teórico, momento do saber m arxista global, o discurso prático é “ suprim ido” . Nesse sentido, não há apenas radicalização em relação à imanência, mas também radicalização em direção à trans cendência (ou à transcendentalidade). Se o dizer passa no fazer com descontinuidade mas sem corte, esse dizer enquanto teoria é ao mesmo tempo rigorosamente opos to a um fazer. O saber m arxista é ao mesmo tempo aquele que está mais rigorosa mente imerso no tempo da história concreta, e o que toma o m áxim o de distância em relação a esta história enquanto história vivida, e, por paradoxal que isto possa parecer, também enquanto praxis. E essa dupla polarização que torna o m arxism o difícil, e grande a tentação de conservar só um dos lados, em geral o primeiro. Voltemos entretanto ao saber na instância do sujeito do discurso, para recons tituir de um m odo mais preciso o seu movimento. Provavelmente, a melhor manei ra de pensar a relação entre a visada-consciência e a visada-ciência (pois, como vi m os, o saber contém os dois momentos) é pensar um encadeamento em três m o mentos: visada-consciência, corte (descontinuidade) em proveito da teoria, novo corte, e volta à visada-consciência. Visa-se o presente histórico; opera-se uma “ re dução” do tempo histórico, através da teoria (esta estuda em exterioridade as coi sas e os agentes); volta-se ao “ n ós” . É necessário supor uma descontinuidade entre
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esses momentos. A continuidade é seu limite. De certo m odo, trata-se de um movi- j mento que reorganiza o tempo. Corta-se o tempo do presente, para evitar a “ per turbação” (brouillage) que emana do próprio processo histórico. A teoria examina o objeto enquanto coisa, mas este exame leva à partição entre o possível e o im pos sível, pela definição do cam po dos possíveis89. Repõe-se em seguida o tempo, mas ele se apresentará então de outro m odo. O tempo é reorganizado, sua partição terá um outro sentido. Leiam os o final do Que fazer? de Lenin, qualquer que seja a opinião que se possa ter sobre esse texto. Trata-se de romper a “ tem poralidade reform ista” dos períodos de estagnação: “ Ignoram os quando terminará o terceiro j período e quando começará o quarto (anunciado já, em todo caso, por numerosos presságios). Do domínio da história passam os aqui ao domínio do tempo presente, e em parte, ao do futuro. M as temos a firme convicção de que o quarto período levará a consolidar o m arxism o militante que a social-democracia russa sairá da crise mais forte e mais viril [sic], que a retaguarda dos oportunistas será substituí da pela vanguarda verdadeira da classe mais revolucionária. (...) Fazendo um ape lo para que se opere essa ‘substituição’, resumindo tudo o que foi exposto acima dar uma breve resposta à questão ‘que fazer?’: liquidar o terceiro período” 90. É tam bém um corte do tempo histórico, no caso, um corte da “ tem poralidade burocráti c a ” que quer instaurar o Curso novo de Trotsky, aproveitando a resolução do co mitê central sobre o “ novo curso” 91. Falei de uma descontinuidade na relação entre a visada-consciência e a visada-ciência. N a realidade, existe uma dupla descontinuidade, a consciência é “ ne_-yj g ad a” em ciência, a ciência é “ negada” em consciência. Esta negação da ciência em consciência é retom ada do tempo, e através disso reordenamento do tempo. M as esse reordenamento vem depois de uma abertura que faz dessa descontinuidade uma verdadeira ruptura; a re-tomada do tempo não se processa no domínio fechado do sujeito. É aí que se insere, ou pode se inserir (se por inserção se entender uma brus ca “ mudança de direção” ), a experiência das m assas. Pensou-se demais a política marxista através do modelo da praxis, para que esse “ vazio” fosse visível. O exemplo clássico é o da Comuna. N a segunda declaração da Internacional, M arx condena toda tentativa revolucionária92. Entretanto, haverá uma insurreição, e ele a aceita rá. Esse exemplo não é único. Os sovietes são uma invenção das m assas russas, não das vanguardas. Contrários aos sovietes no início, os bolcheviques acabaram por aceitá-los93. Essa inversão da ordem do saber teria uma significação mais geral?94 N a rea lidade, ela põe em xeque a célebre unidade entre a teoria e a prática. Se se pensar no papel do discurso tático-estratégico (sem aprofundar por ora a sua natureza), essa unidade poderia aparecer como algo que caracteriza a novidade do marxismo em relação à tradição (mas já vimos que o movimento descendente que aquele dis curso instaura não se faz em continuidade). H á, porém, um outro lado: o m arxis mo atribui às m assas um trabalho criativo. Esse enunciado, que foi banalizado, e se tornou ideológico, exprime na realidade um resultado importante. O marxismo supõe uma história que é criação, e criação de tal ordem que a teoria é de certo modo incapaz de acom panhá-la plenamente. Com efeito, se o m arxism o estabelece por um lado a exigência de pensar a prática, o que significa de certo modo “ aprisio-
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nar” o tempo, ele atribui por outro lado um papel constitutivo ao tempo. Ele su põe que haverá sempre distância entre teoria e prática, e essa distância não é do gênero daquela que supõe a noção corrente de prática (e mesmo mais, a própria noção de praxis)95. H á aí algo como uma dispersão, entre sujeito e objeto. Sem dúvida, essa dispersão é prevista pela própria teoria; m as isto significa que a teoria contém um momento negativo, e esse negativo representa aqui mais do que uma Aufbebung. A menos que se trate de uma Aufhebung delimitando um espaço vazio a ser preenchido por um trabalho sempre novo e que, portanto, não pode ser co nhecido a priori. Com essas restrições, caberia a fórmula dialética de que a teoria só é verdadeira se ela não for verdadeira. Se o saber m arxista é, pois, por um lado, saber sobre o tempo, e se ele traça um momento, por descontínuo que seja, de “ descida” em direção à imanência histó rica, ele instaura ao mesmo tempo uma ruptura entre o saber e a imanência his tórica: as m assas fazem e querem outra coisa que não o que fazem e querem as van guardas. N ão se trata aí, simplesmente, como se poderia pensar, da exigência de uma tom ada de consciência daquilo que fazem as m assas, por parte das vanguar das, m as, antes, de um movimento contrário das m assas em relação ao trabalho da vanguarda. De fato, os dois movimentos não vão na mesma direção, o que, na sua forma radical, tanto historicistas como anti-historicistas deixam escapar. O saber deve se abrir para o “ movimento” das m assas que se lhe opõe. M as será necessá rio, em seguida, que esse contra-movimento venha a ser interiorizado. Se essa interiorização ultrapassa uma negação hegeliana, é precisamente porque o contra-mo vimento enquanto tal não é um “ m om ento” em sentido hegeliano96. Com o apren der essa interiorização? De que m odo o “ contra-movimento” das m assas será inte riorizado enquanto “ experiência” ? A noção de experiência, diga-se de passagem , está enraizada na tradição m arxista, e nós a encontramos mesmo lá onde se pode ria supô-la ausente97. Se se supuser que esta interiorização da experiência se situa naquilo que, no meu esquema, era um terceiro momento (depois do da teoria, que é aqui a análise teórica de uma form ação e num momento dado), resta saber de que form a ocorre essa interiorização. Digam os que é nesse ponto que se insere, propriamente, o dis curso tático-estratégico. M as qual o teor desse último, quando se trata efetivamen te de um discurso que projeta uma prática específica, e não de um a análise das condições gerais da revolução como se pode encontrar às vezes? O discurso táticoestratégico nunca é um discurso teórico, e no caso presente ele é algo como uma fenom enología (no sentido da Fenom enología do Espírito), m as histórica, uma apresentação crítica de uma sucessão de momentos contraditórios no tempo (pas sado e futuro). Com efeito, cada vez que um grande homem político m arxista ten ta expor uma tática revolucionária, ele acaba traçando uma espécie de fenomeno logía histórica. Veja-se o que escreve Lenin em A doença infantil do esquerdismo no comunismo, ou Trotsky no Curso novo. Tudo se passa como se uma teoria da tática fosse impossível, a tática só podendo ser exposta como uma fenomenología. Um pouco como, no outro extremo, não há teoria da história, m as apresentação dos momentos contraditórios da história. N o nível macro-histórico, como no da história do futuro imediato, encontra-se assim a mesma exigência de apresentar em
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lugar de teorizar no sentido clássico, e isto pelas mesmas razões: os momentos são contraditórios, eles excluem toda totalização que não seja apenas pressuposta. Esta recusa da teoria geral da tática (a com parar, portanto, com a recusa da teoria geral da história) é afirm ada num texto de A doença infantil...: “ A conclusão é clara: rejeitar os compromissos ‘em princípio’, negar a legitimidade dos compromissos em geral, quaisquer que eles sejam, é uma infantilidade que é difícil mesmo levar a sério. O homem político que deseja ser útil ao proletariado deve saber discernir os casos concretos em que os compromissos são inadmissíveis, em que eles exprimem o oportunismo e a traição, e dirigir contra esses com prom issos concretos toda a acuidade da sua crítica, denunciá-los implacavelmente, declarar a eles uma guerra sem conciliação, sem permitir aos ‘habitués’ do socialismo ‘negocista’ que eles es capem, por meio das dissertações sobre os ‘com prom issos em geral’, à responsabilidade que lhes incumbe. É bem assim que os senhores ‘chefes’ ingleses das tradeunions, ou então da sociedade fabiana e do partido trabalhista ‘independente’, se furtam à responsabilidade que pesa sobre eles pela traição que eles cometeram por terem perpetrado um compromisso de tal ordem que ele equivale na realidade ao oportunism o, a uma defecção e a uma traição da pior espécie” 98. É necessário assim, retomando a visada-consciência, apresentar a sucessão das “ figuras” táticas no tempo, ou nos tempos, para propor a figura do tempo presente. É, pois, a heterogeneidade dos tempos (como a heterogeneidade das leis dos diversos m odos de produção na “ fenom enología” da história dos Grundrisse) que torna impossível uma teoria da tática. O discurso tático-estratégico apresenta essa. ordenação do tempo: “ O bolchevismo existe como corrente do pensamento políti co e como partido político desde 1903. Só a história do bolchevismo ao longo de sua existência pode explicar suficientemente porque pode elaborar e manter, nas condições mais difíceis, a disciplina de ferro, indispensável à vitória do proletariad o ” 99. N um texto de Curso novo, Trotsky apresenta esse movimento da seguinte maneira: “ N ão se poderia recortar Lenin em citações apropriadas a todos os casos da vida, pois para Lenin a fórmula nunca está acima da realidade, ela é sempre o instrumento que permite apreender a realidade e dominá-la. Sem dúvida, poder-seia encontrar sem dificuldade em Lenin dezenas e centenas de textos que, form al mente, parecem se contradizer. M as é preciso ver não a relação de um texto a um outro, mas a relação real de cada um deles à realidade concreta na qual a fórmula foi introduzida como uma alavanca” 100. N o fundo, seria preciso dizer que Lenin se contradiz efetivamente; a fenomenología da tática e da estratégia é constituída pelo desenvolvimento dos momentos contraditórios, que só são compatíveis se fo rem “ suprim idos” . Estam os, assim, diante de um discurso que é necessariamente “ tem poralizado” como quer o historicismo, mas essa temporalização não tem nada a ver com aquela que o historicismo opera: basta dizer que esse discurso tem uma textura contraditória, o que é estranho ao historicismo, além de ser momento de um saber que, de m odo algum, é tem poralizado em toda a sua extensão.
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5. C o n clu sõ es. H
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A n t i-H is t o r ic is m o , H
u m a n is m o ,
A n t i - H u m a n is m o
O marxismo rejeita tanto uma construção a partir do “ alto” (com a teoria do minando um tempo absolutamente estranho a toda constituição), como uma cons trução a partir de “ b aix o ” (isto é, a suposição de um poder constitutivo universal — para a teoria também — da história “ concreta” ). Anti-historicismo e historicis mo aderem, assim, a esquemas lineares. Se se quiser remontar a seus modelos, encontrar-se-á num caso Espinosa, no outro M aquiavel. De Espinosa, os primeiros tom am de empréstimo o tema da supressão do tempo pela teoria, e da associação entre tempo e im aginação: “ Com efeito, como há numerosas coisas que só pode mos apreender pelo entendimento e de m odo algum pela im aginação, tais como a substância, a eternidade, etc., realmente extravagam os pela im aginação se tenta mos explicar tais conceitos com a ajuda de noções como o tempo, a medida etc., que não são mais do que auxiliares da im aginação” 101. Apesar do reconhecimento da superioridade dos homens práticos em relação aos filósofos, quando se trata de escrever sobre um objeto político102, ou por isso mesmo, o Tratado Político aspira também a uma “ demarche” demonstrativa: “ Procurei explorar de maneira rigoro sa e indiscutível, assim como deduzir da situação própria à natureza humana, a doutrina capaz de se acom odar melhor à prática. Além disso, visando conservar no domínio da ciência política uma im parcialidade idêntica àquela que temos habitu almente quando se trata de noções matemáticas, empenhei-me em não ironizar sobre as ações humanas (..,)” 103. É pelo caminho da demonstração que seremos levados à prática. N o outro extremo, temos M aquiavel. Se em Espinosa encontra-se um elogio das virtudes formativas da experiência, o qual não abala entretanto o projeto de um conhecimento demonstrativo, em M aquiavel encontra-se sem dúvida alguma coisa como uma teoria, m as uma teoria que parece ser lida no nível da experiência. "A idéia, por exemplo, de que os homens nunca estão satisfeitos da sua condição” — escreve Claude Lefort em Le travail de 1’oeuvre — “ não tem um valor em si, é preciso entender simultaneamente que um príncipe antigo não deixa totalmente de ofender os seus súditos, mesmo quando eles estão acostum ados ao seu poder, que toda mudança cria as condições de uma outra m udança, que um príncipe estran geiro não impõe a sua autoridade senão pela violência e suscita necessariamente ódio, que finalmente certas medidas são capazes de desarmar as oposições. Em definiti vo, só a constituição dos fatos é significativa: não podem os considerar o com por tamento dos súditos senão diante do príncipe e vice-versa, e é o fato da sua relação que constitui o objeto do conhecimento. Do mesmo modo, não poderíamos nos deter nesta última idéia de que o desejo de conquistar é coisa natural, como se ela conti vesse um juízo sobre o homem, que basta a si mesmo (,..)” 104. N a aparência, essa leitura aproxim aria M aquiavel de M arx, no sentido de que o discurso sobre o homem, que funciona como discurso “ teórico” de M aquiavel é de certo m odo dissolvido em benefício de um registro mais concreto. M as a apro xim ação é ilusória. O texto nos m ostra como a teoria em M aquiavel se lê no tem po da história, o que não é absolutamente o caso em M arx. Além do fato de que
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essa “ descida” no mundo significa coisas diferentes em M arx de um lado, e em M aquiavel e nos “ clássicos” em geral, de outro (ver mais acima), o saber m arxista tem a particularidade de apresentar um momento — essencial — em que toda visa da “ dos hom ens” é “ suprim ida” . Como se viu, a teoria fala a linguagem das coi sas, e por aí o lado quase-hstoricista do marxismo é contrabalançado pelo lado quaseanti-historicista (na realidade “ n ão ” historicista: nem historicista nem anti-historicista). O tem po105 é tanto “ acolhido” como “ negado” : o saber m arxista não está nem centrado no tempo, nem cenLrado na negação do tempo. Falou-se demais — os althusserianos sobretudo — de descentração. M as eles não se deram conta talvez do quanto a sua concepção da teoria permanece ligada ao modelo clássico. N a concepção deles, o saber aparece centrado na teoria à m a neira dos clássicos do racionalismo, e nesse sentido, o saber não é menos centrado do que nos historicistas. Só que, para esses últimos, o centro é o tempo e não o conceito. M as o modelo permanece clássico nos dois casos. Uma das novidades do m arxism o reside, pelo contrário, na idéia de um constituição descentrada, e que emana (até certo ponto, “porque em ana” ) tanto da teoria como do tempo (isto é, da experiência), já que a integração dos dois pólos não pode ser feita satisfatoria mente sem descontinuidades e sem contra-movimentos. Se anteriormente acentuei as duas respostas do entendimento como sendo, por um lado, aquela que opõe con ceitos como p raxis, consciência etc., considerados como conceitos positivos (isto é, sem negação), e, por outro, aquela que quer eliminar pura e simplesmente esses conceitos (a resposta dialética introduz esses conceitos, mas afetados pela negação), aqui estamos diante de um movimento que vai além de uma definição pela negatividade. Trata-se da irrupção da experiência das m assas no domínio do saber, ir rupção que não “ nega” apenas o outro movimento, aquele pelo qual o saber das vanguardas “ invade” o domínio da experiência, mas pode mesmo anulá-lo” 106. Qual a relação entre o historicismo e o anti-historicismo com o humanismo e o anti-humanismo, falsas leituras que examinei em outro lugar?107 Relativamente ao humanismo e ao anti-humanismo, o historicismo — segundo o desenvolvimen to que dei a essa segunda parte -— aparece delimitando um domínio novo de deno tação, mas não a rigor o anti-anti-historicismo, embora este último, como seu oposto, introduza uma nova significação. De fato, se se examinar a denotação do anti-historicismo, ver-se-á que ela coincide com o domínio das falsas leituras que exam i nei em outro lugar: o humanismo e o anti-humanismo. Isto é, tanto o domínio do humanismo como o do anti-humanismo, tal como tentei examiná-los, se situam a rigor no cam po do anti-historicismo (falarei logo em seguida do chamado hum a nismo historicista); ou mais precisamente, eles coincidem com o domínio deste úl timo (o que não significa que a conotação deles e a do anti-historicismo seja a mesma). O historicismo, por sua vez, seria o oposto deles, m as um oposto ainda abstrato. Complica-se assim o quadro das “ falsas leituras” . E é preciso introduzir ainda certas precisões. N a definição de historicismo que apresentei, privilegiei o modelo de temporalização “gauchista” , do qual, apesar de tudo, Gramsci deve ser o melhor exem plo. Esta escolha não deixava de ter justificação. Entretanto, há formas que pode-
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ríamos chamar justificadamente de historicistas, e que se afastam daquela direção. Um texto como o da Ideologia alemã poderia ser considerado historicista, e entre tanto ele tem pouco a ver, pelo menos nas suas implicações propriamente políti cas, com um historicismo do tipo do que tentei descrever. A Ideologia alem ã é his toricista no sentido de que o tempo e a experiência aparecem como os verdadeiros sujeitos da teoria; o comunismo não é senão um movimento histórico (a recusa de pôr os fins escorrega na recusa de mesmo pressupô-los10S; o discurso filosófico é apenas um resumo de resultados etc.). M as todo tempo heróico está ausente; e se o texto inspira uma política, esta seria antes uma política de “ paciência” — revolu cionária embora — do que de rupturas bruscas. Se assim abrirmos espaço para uma segunda forma de historicismo, seria pre ciso reconhecer, no limite, quatro falsas leituras, duas form as anti-historicistas, respectivamente humanista e anti-humanista, e duas form as historicistas. Se exa minarmos de perto as diferenças entre essas duas últimas form as, veremos que não sendo propriamente humanistas nem anti-humanistas (mas não sendo também ri gorosamente dialéticas), uma delas, a que desenvolvi neste ensaio, está mais próxi ma do humanismo do que do anti-humanismo (ela põe o fim da pré-história, o ho mem sujeito, embora não tire todas as conseqüências dessa posição, o que a con duz a uma espécie de contradição vulgar que é a do cham ado “ humanismo revolu cionário” ou humanismo historicista). A outra, representada pela Ideologia alemã, está mais próxim a do anti-hu manismo, porque recusa mesmo a pressuposição daquele sujeito (mas não trans forma os agentes, unilateralmente, em portadores das relações, pelo contrário). Ela é também “ imperfeita” , à sua maneira: trata-se de um discurso sobre a praxis que não tem “ fundamento” , isto é, fundamento “ negado” , mas onde há simples ausência de fundamento. Por sua vez, a rigor, anti-humanismo e humanismo correspondem ao saber anti-historicista: o primeiro porque privilegia abusivamente a teoria — a qual não pode dizer nem o homem nem os homens — em detrimento da experiência, o se gundo porque põe uma instância transcendental, o homem ou a lei m oral109.
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1 C om o conservei a versão de 1973, e a de 1989 foi apresentada com o tese, posso datar no essencial as modificações introduzidas. 2 N o final da terceira parte, precisarei a relação entre essas “ figuras” . 3 Acho que não é pretensioso dem ais, m as realista, dizer que a reflexão que se faz na França sobre M arx ficou e fica aquém desses resultados. 4 Ver o ensaio 1, “ D ialética m arxista, humanismo, anti-hum anism o” , de M LP I. 5 [N ota de 1999: Com o o leitor perceberá, a noção de “ historicism o” em Althusser — que me serve de ponto de partida, m as para a crítica tanto a Althusser com o a seus adversários — é diferente da que é objeto da crítica de W alter Benjamin e, até certo ponto, é m esmo oposta à dele. Basta dizer que do ponto de vista político, o historicismo na terminologia de Benjamin correspon de ao que se chamou tradicionalmente de “ reform ism o” . Em Althusser, ela designa, pelo contrá-
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rio, um m odelo “ gauchista” . N o que se segue, explico-me sobre o sentido da noção em Althusser. Ocupar-me-ei em outros textos, de maneira também crítica, da idéia benjaminiana de história, aqui ausente.] 6 Já observei que a convergência com Althusser no que se refere ao uso que farei da noção de historicismo não prejulga minha posição relativa a ele, que é crítica. O althusserism o é a figura m ais conhecida do anti-historicismo que critico juntamente com o historicismo. 7 L. Althusser e E. Balibar, Lire le Capital, Paris, M aspero, 1968, nova edição, II, p. 168, 169. 8 Ibidem, II, p. 170. 9 Este “ vivido” remete sobretudo à história das lutas. 10 Esse duplo movimento é análogo àquele que se encontra em Feuerbach m as a propósito de vividos “ antropológicos” . Feuerbach reduz o lógico ao psicológico e ao antropológico, mas ao mesmo tempo eleva o psicológico e o antropológico a um nível ontológico. Ver a esse respeito as Teses provisórias para uma reforma da filosofia e os Princípios da filosofia do futuro. 11 Permito-me assim falar de esquecimento, com o falarei também da memória, não só no que se refere ao passado mas igualmente a propósito do futuro. 12 Com o veremos, é de um certo modo que o historicismo homogeneíza. E nem toda con cepção hom ogeneizadora do tempo é historicista. 13 Retom arei evidentemente todos esses pontos. 14 A “ consciência transcendental” fica, nesse contexto, do lado da “ ciência” , e não no da “ consciência” . 15 Vê-se que tanto para a noção de praxis com o para as de consciência, m em ória etc., não se trata de criticar o uso em geral, desses conceitos ou a possibilidade geral de seu emprego, que como se verá pode ser feito em form a teoricamente aceitável. Critico a form a que tom am essas noções no discurso historicista, form a bastante difundida, mas que não é, de m odo algum, como veremos, a única em que elas poderiam ser apresentadas. A recusa pura e simples desses conceitos
caracteriza pelo contrário a “falsa leitura” oposta, o anti-historicismo, que criticarei num mesmo movimento. 16 “ Superação” é uma m á tradução para a Aufhebung hegeliana, que prefiro traduzir por “ supressão” (com aspas), ainda que, em “ supressão” , falte o aspecto positivo. Ver a esse respeito M LP I, p. 170, n. 24, e Paulo Eduardo Arantes, Hegel: a ordem do tempo, São Paulo, Polis, 1981, p. 240. Aqui se trata, porém , da Aufhebung reduzida a um contínuo. A má tradução se impõe, então, com o uma boa descrição do universo historicista. 17 G. Lukács, “ Partei und K lasse” (1919) in Werke, Frühschriften, II, Band 2, “ Geschichte und Klassenbew usstsein” (título do tom o), Neuw ied e Berlin, Luchterhand, 1968, p. 76. 18 N ão discuto, por ora, as dificuldades da descrição historicista do próprio sujeito. 19 J á é difícil ao historicismo situar o “ n ós” no conjunto da situação política e econômica, concebida em termos de práticas. M as é diante da tarefa essencial de descentrar o “ n ós” , m os trando o que ele poderia significar num momento da história estrutural, que ele fracassa inevita velmente. Voltarei a isso m ais adiante. 20 Lenin, La Maladie infantile du Communisme, in Oeuvres Choisies, vol. III, M oscou, Ed. du Progrès, 1968, p. 380. 21 “ (...) Essa derrota rejeitou o proletariado para o plano de fundo da cena revolucionária. Ele se esforça p ara retom ar o seu lugar na frente cada vez que o movimento parece tom ar um novo im pulso, m as cada vez com uma energia diminuída e um resultado m ais fraco (...) Por um lado, ele se lança em experiências doutrinárias, bancos de trocas e associações operárias, isto é, num movimento em que ele desiste de transform ar o velho mundo com a ajuda dos grandes meios que lhe são próprios, mas procura, pelo contrário, realizar a sua liberação, por assim dizer, pelas cos-
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tas da sociedade, de m aneira particular, nos limites restritos de suas condições de existência, e em conseqüência, fracassa necessariamente” (W 8, p. 122, Der achtzente Brumaire des Louis Bonaparte ; Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte, Paris, Editions Sociales, 1969 (in 16-), p. 24 [A]). “ Com o se sabe, o 15 de m aio não teve outro resultado senão o de afastar da cena pública, por toda a dura ção do período que consideram os, Blanqui e seus partidários, os comunistas revolucionários, isto é, os verdadeiros chefes do partido proletário” (W 8, p. 121, trad. francesa, op. cit., p. 23). 22 Para m ostrar a dissolução da ciência do objeto na consciência do sujeito, operada pelo historicismo, servi-me de um texto do jovem Lukács. Para ilustrar a recusa de uma regressão do sujeito no que está aquém dele, darei um contra-exemplo, em que, apesar das aparências, procede-se à descentração. Penso na análise da prim eira revolução russa feita por Trotsky em 1905 e Balanço e perspectivas. (Ver 1905 suivi de Bilan et Perspectives, traduções francesas de M . Parijanine e G. Bloch, Paris, Les Éditions de M inuit, 1969). O s títulos dessas obras, em particular Balanço e perspectivas poderiam levar a pensar numa simples análise do tipo das que visam a “ tom ada de consciência” por parte das m assas e do partido. Entretanto, se nos capítulos iniciais tanto de 1905 como de Balanço e perspectivas trata-se da história russa, lá não encontramos de form a alguma uma história (ou pré-história) da revolução, m as um quadro em que a análise das estruturas — ver por exem plo, em 1905, o capítulo “ o capitalism o ru sso” — tem um lugar privilegiado. 23 “ A história de todos os países atesta que, apenas pelas suas forças, a classe operária só pode chegar à consciência trade-unionista, isto é, à convicção de que é preciso se unir em sindica tos, levar adiante a luta contra o patronato, reclam ar do governo tais ou quais leis necessárias aos operários etc. Q uanto à doutrina socialista, ela nasceu das teorias filosóficas, históricas, econômi cas, elaboradas pelos representantes instruídos das classes possuidoras, pelos intelectuais” (Lenin, Que fazer?, in Oeuvres Choisies, M oscou, Editions du Progrès, 1 9 7 1 ,1, p. 135). Eis aqui o texto de Kautsky citado por Lenin, e no qual ele fundamenta a sua argumentação. São palavras que Lenin considera “ profundamente justas e significativas” (ibidem, p. 141): “ (...) a consciência socialista seria o resultado necessário, direto, da luta de classe proletária. Ora, isto é inteiramente falso. Como doutrina, o socialismo tem evidentemente as suas raízes nas relações econômicas atuais, num ir.esmo grau que a luta de classe do proletariado, tanto quanto esta última procede da luta contra a p o breza e da miséria das m assas, engendradas pelo capitalism o. M as o socialism o e a luta de classe surgem paralelamente e não se engendram um ao outro; eles surgem de prem issas diferentes. A consciência socialista de hoje só pode surgir na base de um profundo conhecimento científico. Com efeito, a ciência econômica contem porânea é uma condição da produção socialista tanto quanto, por exem plo, a técnica m oderna, e apesar de todo o seu desejo o proletariado não pode criar nem uma nem outra; as duas nascem do processo social contemporâneo. O ra, o portador da ciência não é o proletariado, m as são os intelectuais burgueses (sublinhado por K. K.): com efeito, é no cérebro de certos indivíduos desta categoria que nasceu o socialism o contem porâneo, e é através deles que ele foi com unicado aos proletários intelectualmente m ais evoluídos, que o introduzem depois na luta de classe do proletariado, lá onde as condições o permitem. Assim , pois, a cons ciência socialista é um elemento im portado (von Aussen Hineingetragenes) na luta de classe do proletariado e não algo que surge dela espontaneamente (urwüchsig). Por isso, o velho program a de Heinfeld dizia com muita justeza que a tarefa da social-dem ocracia é introduzir no proletaria do (literalmente: preencher o proletariado) a consciência da sua situação e a consciência da sua m issão. Isto não seria necessário, absolutamente, se esta consciência em anasse naturalmente da luta de classe (...)” (ibidem , p. 141, o texto de Kautsky, indica Lenin, é da Neue Zeit, 1901-1902, X X , 1, n° 3, p. 79). 24 Ver por exemplo L. Althusser e E. Balibar, Lire le Capital, Paris, M aspero, 1968, p. 180. 25 E um outro problem a o de saber se, sem direção revolucionária, as m assas têm possibili dades de romper o poder burguês, isto é, se o seu im pulso revolucionário não corre o risco de fra cassar quando elas não são enquadradas por uma organização. Ainda que essas distinções pos sam parècer sutis, tem-se aí um problem a diferente, que não se confunde com o dos limites da cons ciência das m assas e deve ser distinguido deste último.
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26 N o contexto dessa discussão inicial, o saber da vanguarda é pensado simplesmente em termos de ciencia, em bora na realidade, com o veremos, ele seja tanto da ordem da ciência como da consciência. Essa limitação se deve em parte ao fato de que é sob essa form a que a questão aparece nos textos anti-historicistas que critico, e, por outro lado, ao interesse em limitar por enquanto o problem a às relações entre a vanguarda e as m assas. Se nos textos anti-historicistas a noção de consciência só aparece, ao descrever o pensamento da vanguarda, com o um derivado da ciência, esta sim plificação provisoria não oferece inconveniente maior. 27 O termo “ gauchism o” , no seu uso comum, designa o estilo político de um certo número de correntes e organizações, que se colocam fora da esquerda dita tradicional. Aqui, ele designa menos a política de tal ou qual corrente, do que um certo estilo que acom panha os adversários da cham ada esquerda tradicional. C om efeito, a empresa de constituir um a política oposta tanto ao reformismo quanto ao stalinismo não soube ou não pôde evitar um certo número de ilusões que poderíam os nomear pelo termo de “ gauchism o” . E a crítica dessas ilusões, de resto em form a teó rica, que se trata de fazer aqui, contribuindo para uma tarefa que não se pode m ais adiar, não a crítica do projeto de um caminho anti-reformista e anti-stalinista, cuja emergência, pelo contrá rio, deve-se saudar com o um progresso. 28 O próprio Lenin parece ter tom ado algum a distância em relação às posições m arcadas de
Que fazer?. Ver a esse respeito, M ichael Lowy, La Tbéorie de la Révolution cbez le jeune Marx, Paris, M aspero, 1970, p. 188. Poder-se-ia perguntar, por exem plo, se o seguinte texto da Doença infantil do comunismo é compatível, sem violência, com a obra anterior: “ E inicialmente se colo ca a questão: que é que cimenta a disciplina do partido revolucionário do proletariado? Que é que a controla? Que é que a sustenta? E primeiramente a consciência da vanguarda proletária e sua devoção à revolução, sua firmeza, seu espírito de sacrifício, seu heroísmo. É em seguida a sua aptidão a se ligar, a se aproxim ar, e, se se quiser, a se fundir até certo ponto com a m assa mais am pla dos trabalhadores, antes de m ais nada, com a m assa proletária. Em terceiro lugar, é a justeza da dire ção política realizada por essa vanguarda, a justeza da sua estratégia e da sua tática política, sob
a condição de que as massas mais amplas se convençam dessa justeza pela sua própria experiên cia” (Lenin, La maladie infantile du communisme, in Oeuvres Choisies, op. cit., III, p. 352 [F]). Esse apelo à experiência — sem dúvida [segundo o texto] p ara se convencer da justeza de uma política posta em prática pela direção política — é compatível com a idéia de importação? 29 O duplo perigo, reform ista e “ blanquista” , com o se dizia na época, havia sido assinalado por R osa Luxemburgo, e também pelo jovem Trotsky [não-bolchevista] em Nossas tarefas políticas. 30 Para evitar confusão, antecipo que o continuismo do tem po historicista de que se tratará em seguida é oposto ao continuum do tempo do reformismo de que me ocuparei mais adiante. O continuum do historicismo será o da “ tradição heróica” , o do reform ism o o continuum do auto m atism o e do “ p assado de que se é ob jeto” (passé subi). E só nesse último caso que se poderá fa lar propriam ente de hom ogeneização do tempo. 31 Evidentemente, essa deglutição do presente pelo passado, do hoje pelo ontem, é insepa rável da absorção do que está próxim o pelo longínquo, do aqui pelo “ lá ” . Assim com o ela presentifica o p assado no tem po, escam oteando o presente, a memória historicista escam oteia o aqui no espaço, “ presentificando” de m odo forçado o que está distante. 32 A expressão, em pregada para caracterizar o estilo “ leninista” de assunção do tempo, é de Trotsky, no capítulo “ T radição e política revolucionária” (“ T radition et politique révolutionnaire” ) in Cours nouveau, Paris, Éditions de M inuit, 10/18, 1963, p. 87. Trata-se de um texto em que ele aborda o im pacto negativo, em sentido pejorativo, tanto da “ tradição heróica” de que me ocupo agora, como a tradição direitista “ au tom ática” . [N a linha do que indiquei na apresen tação desse meu texto, ponho entre parênteses a crítica da idealização do bolchevismo que Cours nouveau certamente contém. M as, para além disso, no quadro do tema da política e do tem po, o texto de Trotsky tem interesse atual. N o ta de julho de 2 000]. “ N em Outubro, nem Brest-Litovsky, nem o sistema da requisição dos produtos alimentares, nem a N EP, nem o plano do Estado, fo ram, nem poderiam ser, previstos ou predeterminados pelo m arxism o ou pelo bolchevismo de antes
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de Outubro. T odos esses fatos e todas essas viragens foram o resultado da aplicação autônom a, independente, crítica, m arcada pelo êspírito de iniciativa dos m étodos do bolchevismo numa si tuação cada vez diferente. (...) C ada decisão, antes de ser ad otada, suscitava com bates. A simples referência à tradição nunca decidiu nada. Diante de cada tarefa nova, em cada viragem, não se trata de buscar na tradição uma resposta inexistente, m as de aproveitar toda a experiência do partido para encontrar por si mesmo uma nova solução e, precisamente desse m odo, enriquecer a tradi ção. Pode-se mesmo dizer que o leninismo consiste em não olhar para trás, em não se deixar pren der por precedentes, referências e citações de pura form a” . Trotsky, Cours nouveau, op. cit., pp. 86-7 [F]). N a texto seguinte é bem a tradição heróica que ele visa, mesmo se emprega e não sem justificação a noção de “ autom atism o” : “ Desde os prim eiros tempos de sua existência oficial, o jovem partido comunista [trata-se do Partido Com unista alem ão, RF] entrou num período tempes tuoso de crises e convulsões. Pode-se entretanto assinalar, no decurso de sua história relativamen te curta, o papel não só criador mas também conservador da tradição, a qual, em cada etapa, em cada viragem, se choca com as necessidades objetivas do movimento e com a consciência crítica do partido. (...) N o prim eiro período de existência do com unism o alem ão, a luta pelo poder repre sentava a tradição, a tradição heróica. Os acontecimentos terríveis de m arço de 1921 revelaram que o partido não tinha ainda forças suficientes para atingir esse objetivo. Foi preciso mudar comple tamente de rumo (faire volte-face) e pôr em prática a luta pelas massas antes de recomeçar a luta direta pelo poder. (...) Essa mudança de rumo se realizou dificilmente, pois ela se chocava com a nova tradição. N o partido russo, atualmente, são lem bradas todas as divergências de perspectiva, mes mo insignificantes, que surgiram no partido ou no seu comitê central no decorrer dos últimos anos. Talvez fosse conveniente também lembrar o dissentimento capital que se manifestou no momento do terceiro Congresso da Internacional Comunista. O ra, é evidente que a reviravolta obtida então sob a direção de Lenin, apesar da resistência encarnecida de um a parte, inicialmente considerável, da m aioria do congresso, salvou literalmente a Internacional do esm agam ento e da desagregação de que ela esteve am eaçada na via do ‘gauchism o’ autom ático, desprovido de espírito crítico, que num curto lapso de tempo, já se tinha constituído em tradição cristalizada” (ibidem , pp. 77-9 [A]). 33 L. Althusser e E. Balibar, Lire le Capital, op. cit., II, p. 192. 34 “ A tradição é o esquecimento das origens, dizia o último H usserl” (M. Merleau-Ponty,
Signes, “ Le Philosophe et son om bre” , Paris, G allim ard, 1960, p. 201). 35 Regis Debray “ N otes de Prison, Tem ps et politique” , Les Temps Modernes, n° 287, ju nho de 1970, pp. 1.942-4. Foi Gérard Lebrun que me chamou a atenção para o interesse desse artigo, que seria utilizado também por P. E. Arantes em Hegel: a ordem do tempo op. cit. 36 Trotsky, Cours nouveau, Paris, M inuit, 1963, pp. 76-7. Regis D ebray insistiu com razão sobre o interesse do capítulo do Novo curso em que se encontra essa passagem : “ T radição e polí tica revolucionária” . Ver o artigo de Debray citado na nota anterior. 37 “ É claro que, como elemento conservador, como pressão autom ática de ontem sobre hoje, a tradição representa uma força extremamente importante a serviço dos partidos conservadores e profundam ente hostil a um partido revolucionário. T o d a a força deste último reside precisamente na sua liberdade com relação ao tradicionalism o conservador. Isto quer dizer que ele é livre em relação à tradição em geral? De form a algum a. M as a tradição de um partido revolucionário é de uma natureza totalmente diferente” (Trotsky, Cours nouveau, op. cit., p. 83). 38 “ N ão há política revolucionária que não se apóie numa tradição, a de uma classe e a de uma nação, indissoluvelmente ligadas, e nesse sentido um comunista de coração e de espírito não deve se sentir incomodado em ser um homem de tradição, o responsável, na atualidade, dos interesses históricos do seu país e da sua classe (...) M as a tradição, para qualquer revolucionário, é nela mesma uma atividade prática que deve ser investida nas tarefas do presente. Ela não pode se dobrar sobre ela mesma, fazer-se peso m orto ou culto do passado, sob pensa de rom per a relação (commerce ), a circulação vivificante do passado no presente. A nossa concepção da tradição se abre para o ris co e mesmo p ara as derrogações da tradição, assim com o a nossa concepção da nação nos abre ao internacionalism o” (R. Debray, “ N otes de Prison, Tem ps et politique” , artigo citado, p. 1.979).
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39 A auto-negação (interversão) é bloqueio da memória. O limite dessse movimento é como vimos a anti-memória do reformismo. Em certo sentido, o tempo do reformismo é aquele em que a interversão está inteiramente realizada: a memória está posta com um tal peso que, com o diria Hegel, ela não passa, como é aqui o caso, mas já passou na anti-memória. 40 Ver a esse respeito a primeira parte do primeiro ensaio de M LP I. [E o final do último ensaio deste volume.] 41 É nesse sentido que vai a crítica hegeliana da reminiscência em Platão. Qualquer que seja a verdade dessa crítica no que se refere a Platão, ela se justifica enquanto “ mise en question” da memória com o um continuum: “ Em Platão, entretanto, a palavra reminiscência tem correntemente o sentido empírico, o primeiro sentido -— é indiscutível (...) O escravo tira a ciência só de si m es m o, de form a que ele não parece fazer outra coisa senão se lem brar de algo que soube mas que esqueceu. O ra, quando Platão chama aqui de reminiscência esse surgimento da ciência a partir da consciência, ele induz através disso esta determinação, a de que este saber já se encontrava efeti vamente nesta consciência não só que a consciência detém em si, segundo a sua essência, o con teúdo do saber, m as que ela já o possuiu, e enquanto esta consciência singular, e não com o uni versal” (Hegel, Geschichte der Philosophie, in Sämtliche Werke, Stuttgart, Bad-Cannstatt, Friedrich Fromann Verlag, 1965, vol. XVIII, pp. 204-5 (A). Hegel insiste no fato de que o conteúdo m em o rizado não existiu efetivamente para esta consciência singular. O nosso problem a não é o mesmo, mas as conseqüências são análogas: a memória não é passividade, o que significaria passividade positiva, m as posição, o que significa posição negativa do passado. 42 Ver a respeito o primeiro ensaio e o primeiro apêndice de M LP I. Em bora não se trate lá de memória, mas de constituição histórica, há um parentesco entre os dois problem as. 43 [As duas últimas frases, que explicam a anterior, foram acrescentadas em julho de 2000.] 44 Ver a esse respeito também P.E. Arantes, Hegel: a ordem do tempo, op. cit., e Gérard Lebrun, La patience du Concept, essai sur le discours hégélien, Paris, G allim ard, 1972. 45 G, p. 151; Manuscrits de 1857-1858, op. cit., I, p. 139. Cf. G, p. 112, Manuscrits de 185758, op. cit., I, pp. 136-7. 46 Ver a esse respeito, por exemplo as observações de M arx sobre Boisguillebert, que con dena o entesouramento e quer que a moeda não ultrapasse a função de meio de circulação. Ver W. 13, Zur Kritik..., pp. 104-5, nota; Contribution à la Critique de l’Economie politique, Paris, Editions Sociales, 1957, p. 92, n. 1. Ver, no mesmo sentido, as observaçôoes sobre Proudhon e em geral os cham ados críticos “ pequeno-burgueses” , que querem a mercadoria m as não o dinhei ro. Ver W 23, K I, p. 82, n. 24, C, p. 78, n. 24, e W 13, Zur Kritik..., p. 66 e seguintes, trad. fran cesa, op. cit., p. 55 e seguintes. [N ota de agosto de 2000: não discuto aqui se a crítica de M arx se justifica inteiramente.] 47 N esse movimento, eles investem evidentemente uma crítica que não é a de M arx. 48 G., p. 319 (F). Manuscrits de 1857-1858, op. cit., I, pp. 355-6 (F). 49 A oposição entre o peso do passado e a “ poesia do futuro” que estabelece o Dezoito Bru mário... (Ver W 8, p. 117, Le Dix-Huit Brumaire..., op. cit., p. 18) é no fundo enganosa. Ela se justifica somente na medida em que no texto se trata de opor a memória retrospectiva de uma outra revolução à memória prospectiva da revolução do presente. 50 Ver E. Bernstein, Die Voraussetzungen des Sozialismus une die Aufgaben der Sozialde mokratie, hsg und mit einem N achw ort von M anfred Tetzel, Berlim, Dietz, 1991, p. 11. — Debray (ver artigo citado) desenvolve o tempo do reformismo com o um tempo em que o fim está sempre lá m as com o um “ n ad a“ : isso só é verdade se essa presença negativa for entendida como a da ne gação abstrata e não com o a da negação dialética. 51 Cf. a noção de “ horizonte” e suas insuficiências. Ver a respeito, M LP I, apêndice II, e introdução, pp. 20-1, n. 19). Aqui encontramos, no plano propriamente político, um análogo da dialética do humanismo e do anti-humanismo.
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52 Voltarei ainda, em form a m ais geral, à questão da tática. 53 Antes de terminar esse desenvolvimento sobre a memória, seria preciso observar que essa recusa tanto do historicismo como do anti-historicismo, enquanto, respectivamente, política da memória ou da lembrança, e da anti-memória, tom a o seu sentido m ais geral no contexto do tem po do ressentimento. Passam os através disto da política à “ teoria da vida ju sta” (Adorno), que entretanto não é estranha à política. Abandonam os, porém, o tema da memória heróica. Conce bida na sua form a m ais geral, a política da memória corresponde à m oral do ressentimento, a p o lítica da anti-memória à m oral do esquecimento. O ressentimento, memória posta, nos torna im potentes diante da violência, ou nos conduz a violências que ultrapassam a violência original. M as o esquecimento, cujo elogio é hoje de bom tom fazer, como alternativa ao ressentimento, mal vis to desde a crítica am bígua de Nietzsche, o esquecimento serve à violência, e é no fundo, a despeito das aparências, o contrário do que ele acredita ser; é “ hipocrisia m oral” , e pior do que isso. Um camponês resistente que, denunciado pelos vizinhos havia sido preso e torturado, e a quem se per guntou se ele guardava ódio por aqueles que o haviam traído, respondeu m ais ou menos isto: “ Ódio eu não tenho. M as esquecer não esqueço” (in M arcel Ophuls, Le chagrin et la pitié, filme, 1971). Eis aí, na sua simplicidade, a lembrança “ negada” , a “ n egação” do ressentimento. A m emória está e deve estar lá. M as ela está como memória pressuposta, não como memória posta, e por isso ela não se interverte no seu contrário. 54 Só considerarei a relação entre a ciência e a consciência política das m assas. N ão tratarei em toda a sua am plitude dos momentos da tom ada de consciência das m assas. Por outro lado, falta o desenvolvimento da questão da consciência no nível dos textos teóricos, desenvolvimento que introduz o ponto seguinte (experiência/teoria) e terá aí o seu lugar. 55 N a Miséria da Filosofia, M arx opõe na realidade “ a classe em relação ao capital” à “ própria classe” (ver Oeuvres, I, op. cit., p. 135). Ver a esse respeito as observações de J. Elster em Making sense ofM arx, Cam bridge, Paris, Cam bridge University Press e M aison des Sciences de 1’Homme, 1985, p. 346, n. 2. Entretanto a classe para o capital é a classe “ para um outro” e o “para um outro” corresponde ao “ em si” . Ver Hegel, Geschichte der Philosophie, in Sämtliche Werke, vol. 17, op. cit., p. 375: “ (...) o que é em si não é para si, mas para um outro, com o na unidade de form a do ser e do não ser” . Sem dúvida, esse “ em si” com o “ para um outro” , é antes o em si da Lógica, enquanto que o “ em si” da Fenomenologia é m ais especificamente o “ para n ó s” (filóso fos). M as há algum a convergência entre essas duas determinações. 56 Para a posição anti-historicista, ver por exemplo, N . Poulantzas, Pouvoir politique et classe sociales, Paris, M aspero, 1 9 7 1 ,1, capítulo 2, “ Política e classe sociais” , sobretudo p. 87. 57 N o sentido por mim definido, ver M LP I e II [e o primeiro ensaio deste volume]. ss Trata-se da negação de uma negação, porque a função de “ suporte” (ou “ p ortador” ), que é negada, já é (ou pode ser considerada como) uma negação. [Resolvi não substituir aqui, em todas as suas ocorrências, o termo “ suporte” por portador. Em alguns casos, ele tem a vantagem de ressaltar as dificuldades das leituras que critico, leituras que aliás utilizam tal termo.] 59 A distinguir também do “ sujeito” nas sociedades pré-capitalistas. Ver a esse respeito o primeiro ensaio de M LP I. 60 N os althusserianos, apesar de certas advertências dos autores (ver L. Atlthusser e E. Balibar
Lire le Capital, op. cit., vol. II, p. 150, há trangressões injustificáveis para além do domínio em que a noção de “ suporte” (Träger , “ p ortad or” ) é justificável. 61 Ver sobre esse ponto, Lukács, Werke 2, Frühschriften, Geschichte und Klassenbewusstsein, op. cit., pp. 356-7; Histoire et conscience de classe, trad. francesa de K. Axelos e J. Bois, Paris, M inuit, 1960, p. 214. 62 Ver por exem plo Lukács, Werke 2, op. cit., p. 348, trad. francesa, op. cit., p. 205; Werke 2, op. cit. Geschichte und Klassenbewusstsein, p. 486, trad. francesa, op. cit., p. 349. 63 Ver a esse respeito, Lukács, Werke 2, op. cit., Geschichte und Klassenbewusstsein, p. 357, 358, trad. francesa, op. cit., p. 215.
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64 Lukacs, Werke 2, op. cit., Geschichte und Klassenbewusstsein, trad. francesa, op. cit., p. 73.
65 Em Poder político e classes sociais (Paris, M aspero, 1970), N . Poulantzas oferece uma variante entre as respostas não-dialéticas, mais precisamente uma variante entre as respostas não dialéticas anti-historicistas. Poulantzas, cujo ponto de partida era o althusserismo, insiste sobre a exigência em distinguir dois planos que os althusserianos “ clássicos” teriam de certo m odo super posto: o das estruturas e o das práticas sociais. Porém, se de fato é preciso distinguir as duas coi sas, isso só pode ser feito, se se dialetizar também a função dos agentes. O ra, Poulantzas perm a nece fixado na noção de “ suporte” . A posição dele é desse ponto de vista uma tentativa fracassa da de desenvolvimento da noção de classe, fracassada porque a classe permanece finalmente pre sa ao momento inicial. Ver, por exemplo, este texto: “ À questão quem pratica, quem luta, quem trabalha, pode-se responder que são os suportes distribuídos em classe sociais (...)” (Poulantzas, op. cit., p. 94, n. 4 0 [A]). Suportes que lutam é uma expressão em que o predicado contradiz o sujeito, m as no sentido da contradição vulgar. V ai na mesma direção o uso do conceito de cau sa lidade para pensar a relação entre as estruturas e as práticas: estas seriam efeitos das primeiras (ver, por exem plo, ibidem, p. 108). Em bora pretenda distinguir estruturas e práticas, Poulantzas é assim incapaz de construir o “ tem po” peculiar às práticas. Com efeito, em bora distinga num pri meiro momento os dois term os, o que ele faz é importar o “tempo” das estruturas para o domínio das práticas. De onde, entre outras conseqüências, a recusa da noção de consciência. M as, em certo sentido, a tentativa de Poulantzas fracassa não porque ele não consegue pôr a diferenciação, m as porque ele diferencia demais. Com efeito, a classe não existe para ele senão com o prática de clas se, ela está ausente no nível imediato. Com o vimos, a presença da classe é na realidade contradi tória, e como sociólogo do entendimento, Poulantzas quis escapar da contradição. Se os historicistas puros privilegiam o ser da classe tal com o ele aparece no final do desenvolvimento (e o projetam m ais ou menos sobre os outros momentos), os anti-historicistas puros privilegiam o primeiro m o mento, e concebem o ser da classe tal com o ele se dá nesse momento, como a sua existência plena. Poulantzas só reconhece a existência das classes no final do trajeto (o que radicaliza a posição historicista), m as, no que se refere à função dos agentes, concebe essa existência à m aneira dos antihistoricistas — a classe com o conjunto de suportes. De certo m odo, ele cruza as duas posições, m as evitando — com o uns e outros — a contradição. Vê-se que, se houve a í algum progresso em relação a Althusser, foi ao preço de novas confusões. 66 Ver por exemplo, “ Pressuposição e posição: dialética e significações ‘obscuras’ ” , em M LP II. 67 N esse caso, o objeto é tam bém determinante, m as enquanto ele produz aparência. Este caso é m ais precisamente o da m odernidade capitalista, o anterior o da Antiguidade.
68 G, p. 490, Manuscrits de 1857-1858, op. cit., II, p. 86. 69 G, p. 449, Manuscrits de 1857-1858, op. cit., II, p. 43. 70 N ão voltarei aqui ao que foi desenvolvido em outro lugar. Ver M LP I, passim. O fetichismo enquanto ilusão é a naturalização do objeto social, não a própria objetivação dele, que é bem real. O contrário, tam bém ilusório, do fetichismo é o convencionalism o, que recusa não só a naturali zação, mas também a objetividade — em sentido forte — do social. 71 A negação da visada-consciência em proveito do conceito é, no caso de textos como O
Capital, não apenas negação em proveito de um outro, com o é o caso para um discurso de ciência em geral, nos quais se suprime o vivido em proveito do conceito, m as m ais precisamente “ supres sã o ” em proveito do seu contrário. Com efeito, este outro que é posto é o do capitalism o, objeto “ negado” pelo vivido da consciência. Pondo o conceito, nega-se pois uma negação, afirma-se o que a consciência “n ega” . M as, por isso mesmo, a consciência não é expulsa, mas permanece “ lá ” , com o objeto “ n egado” . 72 Tal com o M arx o concebia, evidentemente. 73 W 23, K l , p. 612; C ,p . 657.
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74 A rigor, permanece-se no limite entre a ciência e a consciência. Põe-se o limite da primeira. 75 E ssa pressuposição aparece, por exem plo, numa nota a uma passagem do capítulo sobre a “ m aquinária e a grande indústria” , do livro I do Capital. Observando os limites relativamente estreitos, no interior dos quais as máquinas podem ser introduzidas no m odo de produção capitalista (é a relação entre, de um lado, o salário dos operários que poderia assegurar um mesmo volume de produção, salário que eventualmente se situa aquém do valor da força de trabalho, e, de outro, o valor das m áquinas, que decide da introdução dessas últimas), M arx observa em nota introdu zida na segunda edição: “ Por isso, numa sociedade comunista as máquinas teriam um espaço muito diferente do que têm na sociedade burguesa” (W 23, K I, p. 414, n. 116 a; C, pp. 441-2).
76 Isto não quer dizer que todo discurso pressuposto é um discurso da consciência. A visada-consciência corresponde antes à posição das pressuposições que deveriam permanecer implíci tas (a pressuposição dos fins) assim como à cifra dessa presença “ ab issal” no discurso posto. 77 Refiro-me sempre ao que está posto no discurso históricos. Com o veremos, assim como os discursos estruturais, mas de outro m odo, e a fortiorí, eles pressupõe um algo que fica além do capitalism o. · 78 Objetar-se-á que — com o foi visto — a efetivação da classe só é plena no seu momento final. M as além do fato de que nem todas as abstrações do sistema são positivas (as da aparência, já vimos, são negadas), pom os de qualquer m odo, nesse caso, um objeto efetivo (se se quiser, um objeto efetivo nos limites da sua não-efetividade). A tem atização do comunismo, pelo contrário, incide sobre um objeto irreal. Quanto à fenomenologia da alienação, se ela descreve sem dúvida um objeto real — a experiência da “ m utilação” é real no sentido de que se trata de um dado — , ela não é, entretanto, efetiva no sentido de que os indivíduos não são visados aí nem como deter m inados passivamente pela estrutura, nem como constituídos enquanto agentes-suj eitos em luta contra a estrutura, mas, de certo m odo, na interseção entre as duas coisas. O objeto fica entre duas ordens de conceitos. A experiência da alienação não é nem simplesmente a do portador das rela ções, nem a do sujeito (o que luta contra elas, ou o que é antevisto numa sociedade reconciliada), m as a do não-sujeito, não sujeito que fica entre o portador e o sujeito. E precisamente o fato de ocupar esse interstício entre dois conceitos que permitiria dizer — sem dúvida do ponto de vista de um discurso que privilegia o conceito — que esse objeto, sendo real, não é efetivo. 75 A fórm ula é, por ora, aproxim ada. 80 “ M om entos” — já observei — são determinações “ n egadas” . 81 Claude Lefort, Le travail de Voeuvre, Machiavel, Paris, Gallim ard, 1972, p. 52. S2 “ M as se o paradoxo nos detém, não é porque resistimos à prova à qual a obra nos sub mete, im aginando uma fronteira lá onde ela não pode estar; não é porque desconhecendo o m ovi mento de instauração do discurso, a contingência da origem que o m arca inteiramente, o surgi mento nele do mundo que ele garante, nós nos tornam os incapazes de colher a indeterminação em que a obra nos lança? Esta não pode ser resolvida em virtude de uma determinação do objeto realidade ou de uma determinação do objeto pensamento: ela é o que é próprio à obra que não tem nenhuma fundação fora dela m esm a” (Claude Lefort, op. cit., p. 52). 83 Idem, p. 61. 84 “ O enigma que enfrentamos é que o Aberto (1’Ouvert) não é o espaço anônim o de uma verdade que se limitaria a brilhar diante de todos; o Aberto depende da abertura da obra, a abertura depende de um presente, e essa abertura só posso encontrá-la ou refazê-la a partir de um outro pre sente e numa posição nova. O enigma é que o nome do autor não pode ser apagado, embora eu só possa pensar o que ele faz pensar sob o seu nome próprio (...)?” (Claude Lefort, op. cit., pp. 58-9). 85 R ousseau, Le Contrat Social, livre I, Oeuvres Completes, v. III, Paris, Plêiade, Gallimard,
1964, p. 351. 86 M achiavel, Le Prince (trad. francesa), dédicace, Oeuvres Completes, Paris, Plêiade, G al limard, 1952, p. 289.
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87 Evidentemente, se o que escrevo vale para um texto com o o Manifesto comunista, não vale para O Capital, por exemplo. É um dos erros grosseiros do historicismo pretender que o su jeito das obras teóricas são os sujeitos da historia “ concreta” . M arx não se enganava a esse res peito. Ver a m aneira muito circunspecta pela qual ele descrevia a relação entre o seu grande livro teórico e o proletariado (porque ele acreditava que poderia haver uma relação): “ O desenvolvi mento histórico particular à sociedade alemã excluía, pois, todo progresso original da economia ‘burguesa’, m as não excluía de form a nenhuma a sua crítica. N a medida em que essa crítica repre senta em geral uma classe (so lueit solche Kritik überhaupt eine Klassse vertritt), ela só representa a classe cuja vocação histórica é a derrubada do m odo de produção capitalista e a abolição final das classes — o proletariado” (W 23, K I , “ N achw ort zum zweiten A uflagen” , p. 2 2 , trad. france sa, op. cit., p. 13 [F]). 88 Por exemplo: “ De form a geral, poder-se-ia dizer urna coisa de todos os homens, que eles são ingratos, cam biantes, dissim ulados, inimigos do perigo, ávidos de ganhar” (citado por Lefort, op. cit., p. 722). 89 Tam bém na filosofia política “ clássica” se encontrará a partilha entre o possível e o im possível, por exem plo, a que é determinada pelos limites da natureza hum ana (ver início do Tra tado Político de Espinosa), ou em M aquiavel, a que vem da diferença dos tempos na vida da cida de, cada tempo determinando limites objetivos à ação. 90 Lenin, Obras escolhidas, Que fazer?, op. cit., I, p. 253. 91 Ver por exemplo Curso novo, op. cit., p. 154. 92 “ A classe operária francesa se encontra, pois, colocada em circunstâncias extremamente difíceis. T o d a tentativa de derrubar o novo governo, quando o inimigo quase bate às portas de Paris, seria uma loucura desesperada” (W 17, “ Zweite Adresse über den deutsch-französischen K rieg” , p. 277, La Guerre Civil en France (1871), “ Seconde Adresse du Conseil Général sur la guerre franco-allem ande” , Paris, Editions Sociales, 1953, p. 289). Sobre a posiçãode M arx após o desencadeamento da insurreição, ver as cartas de M a rx a Kugelm ann, de 12 e 17/4/1871 (W 33, pp. 205-9). 93 D eixo de lado, aqui, a análise das razões profundas desta recusa inicial. [N ota de agosto de 2000: a análise dessas “ razões p rofun das” , leva a descobrir desde o início os traços burocráti cos do bolchevismo.] Ao que parece, foi sob a pressão de Lenin que os bolcheviques acabaram por aceitar os sovietes. 94 Sobre esse ponto, ver também Regis Debray, “ N otes de Prison, temps et politique” , in
Les Temps Modernes, artigo citado. 95 Seria preciso que houvesse uma espécie de “ ad equação” entre a praxis [do sujeito] e a praxis [no objeto]. Com o na “ ad eq uação” teórica do conceito [no sujeito] ao conceito [no obje to], trata-se de um a adequação entre dois pólos que têm, cada um, uma estrutura dialética (ver a respeito o segundo ensaio de M LP II). 96 A experiência deve ser lida pelo saber, mas o momento fundamental da instauração é a própria experiência, não a sua leitura. 97 [N ota de agosto de 2000: A observação no texto e a citação que contém a presente nota se explicam em grande parte pela necessidade de mostrar também “ empiricamente” , contra o althusserismo, que dom inava na época, com o a tradição m arxista, mesmo a pouco suspeita de hum a nismo ou de historicismo, utiliza a noção de “ experiência” .] “ N ão há traço de utopism o em M arx, pois ele não inventa, não tira da sua fantasia uma nova sociedade. N ão , M arx estuda como um processo histórico-natural com o a sociedade nova nasce da velha sociedade, ele estuda as form as de transição da última à prim eira. Ele tom a a experiência real do movimento proletário de m assa e tenta tirar disso os ensinamentos práticos. [Ele aprende] com a Com una, assim com o todos os grandes pensadores revolucionários não temeram aprender com a experiência dos grandes movi mentos da classe oprim ida nem lhes dirigiram ‘serm ões’ pedantescos (no estilo do ‘não se deveria ter empunhado arm as’ de Plekanov ou ‘uma classe deve saber se m oderar’ de Tseretelli” (Lenin,
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L ’État et la Révolution, em Oeuvres Choisies em dois volumes, M oscou, Edição em línguas es trangeiras, 1 9 4 1 ,1, pp. 179-80). “ Eu me premuni inteiramente, nas minhas teses, contra toda ten tativa de saltar por cima do movimento cam ponês, ou pequeno-burguês em geral, que ainda não esgotou as suas possibilidades, contra toda tentativa de brincar com a tom ada do poder por um governo [instaurando] um governo operário, contra toda aventura blanquista, porque invoquei formalmente a experiência da Com una de Paris. O ra, com o se sabe, e M arx o dem onstrou minu ciosamente em 1871 e Engels em 1891, essa experiência excluiu absolutamente o blanquism o, as segurou a dom inação direta, imediata, incondicionada da m aioria, e a atividade das m assas uni camente na medida em que essa m aioria ela mesma se afirma de maneira consciente” (Lenin, Lettres sur la tactique, in Oeuvres Completes, M oscou, Éditions du Progrès, 1924, p. 39 [F]). “ Defendo, pelo contrário, com uma clareza que exclui todo equívoco, a necessidade do Estado durante essa época. N ão de um Estado parlam entar burguês ordinário, m as de acordo com M arx e com a ex periência da Com una de Paris, de um Estado sem exército permanente, sem polícia que se oponha ao povo, sem funcionários colocados acim a do p ov o” (Ibidem, pp. 39-40 [F], menos “ sem ” , nas três ocorrências). [Deixo de lado, aqui, a discussão do sentido da distância enorme que existe en tre o que propunham esses textos e o destino efetivo do Estado instaurado pelos bolchevistas]. 98 Lenin, Oeuvres Choisies, op. cit., III, La Maladie infantile..., p. 363 (A).
99 Lenin, Oeuvres Choisies, op. cit., III, La Maladie infantile..., p. 352. 100 Trotsky, Cours Nouveau,, op. cit., pp. 90-1 (F). 101 Espinosa, C arta X II a L. M eyer, in Oeuvres Complètes, Paris, Plêiade, Gallim ard, 1954, p. 1.153. CF. C ogitata Metaphysica in Oeuvres Complètes, op. cit., p. 314. 102 Espinosa, Traité de VAutorité Politique, § 2, in Oeuvres Complètes, op. cit., p. 975. 103 Espinosa, Tratité de VAutorité politique in Oeuvres Complètes, op. cit., pp. 975-6. 104 Claude Lefort, Le travail de Voeuvre, Machiavel, op. cit., p. 355 (A). O texto continua da seguinte maneira: “ Pois natural esse desejo o é, como o desejo dos dom inados de m udar de do minação, como o dos Estados fracos de se subtrair à tutela de um Estado forte graças à interven ção de um príncipe estrangeiro: a conquista não se esclarece pela referência a móveis, que numa outra profundidade do ser m arcariam a sua origem, mas se revela determinada com o um modelo de experiência política que as outras implicam e que, por sua vez, implica as outras, e, em con seqüência, levada por uma necessidade em que se imprime seu sucesso ou seu fracasso. Por isso mesmo é significativo que a fórm ula que retém nossa atenção só é enunciada no final de uma aná lise da política rom ana e da política do rei de França, em que essa necessidade é posta em evidên cia, e é adm inistrada a prova de que a conduta do conquistador se inscreve numa ordem das coi sas (...). A questão: o que é a potência? não im porta p o is” (ibidem, p. 355, [F]). 105 Refiro-me aqui ao tempo vivido, e em geral ao tempo da consciência. A temporalidade das coisas é o elemento da teoria. 106 Q uais são os limites dessa “ usurpação” ? Em M arx, esta não poderia questionar o fim, que é a revolução e depois o comunismo. Supõe-se que este fim é visado, em última instância (“ em si” ), tanto pelo saber como pelas m assas. 107 Ver o primeiro ensaio de M LP I. [Também o último ensaio deste volume]. 108 Com o vimos, há pressuposições na Ideologia alemã, e o termo é mesmo explícito. M as se trata de pressuposições antropológicas em sentido estrito (o homem com o produtor) e não do homem sujeito (pressuposições ¿/«ase-humanistas) com o nos Gnmdrisse. [Ver o primeiro ensaio deste volume.] 109 [A perspectiva da Introdução Geral é tanto de crítica dessa figuras, como de crítica da posição de M arx.]
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IV.
A DIALÉTICA DO “ CA PITAL” — E AS SUAS IM PLICAÇÕES (ÉTICA E M A R X ISM O , PR O LEG Ó M EN O S)
N ota
O presente texto foi apresentado ao Coloquio M arx aujourd’hui que se reali zou na Universidade de Paris X (Nanterre) em 1997. N a sua primeira parte ele re toma e desenvolve resultados que apresentei nos volumes anteriores de M LP e tam bém no que já foi publicado da série Dialética m arxista, dialética begeliana. N esta primeira parte, tento explicar, de um modo mais ou menos sintético, as grandes linhas da dialética do Capital, e a apresentação dos três livros, particularizando a do li vro I. O leitor julgará se tive êxito no difícil projeto de resumir uma apresentação dialética sem traí-la. N a segunda parte, com base nos resultados resumidos na primeira, ocupo-me de um problem a clássico, o das relações entre ética e m arxism o. Sobre a relação entre a discussão desse problem a tal como a faço nesse texto e o que escrevi na Introdução Geral, digo desde já que, diferentemente do que ocorre na Introdução Geral, e em convergência com os outros ensaios, a perspectiva desta segunda parte do ensaio IV é só marginalmente crítica: a finalidade principal é a reconstrução do pensamento de M arx, mesmo se para além do que os seus textos explicitam. Isso não impede que esta parte tenha um caráter em grande parte polêmico. Confronto aí a minha leitura de uma passagem decisiva do Capital (início da seção VII do li vro I), que serve como ponto de partida para a discussão do problem a, com os comentários que podem ser encontrados a respeito em certos autores anglo-saxões, autores cuja particularidade está no fato de serem mais ou menos independentes do pensamento analítico. A exemplo do que fizera em relação ao melhor da leitura francesa (Castoriadis sobretudo), tento m ostrar que esses comentadores (N. Geras em particular) se aproxim am muito da dialética, sem entretanto, a meu ver, entrar no “ território” da dialética. A discussão inglesa — porque, como veremos, houve um debate entre os au tores que comento — tem precisamente a característica e o mérito de colocar o problem a da leitura daquele passagem do Capital, e de outras que lhe são mais ou menos aparentadas, sob a rubrica da antiga e supostamente “ velha” proble mática das relações entre m arxism o e ética. A crítica dos “ ingleses” , com as con seqüências que tentei tirar, pôde assim tom ar o caráter de uma espécie de prole gómeno ao problem a clássico da relação entre m arxism o e ética (que tom ado em diferentes aspectos serviu como ponto de partida das considerações da Introdu ção Geral). Ao ler esta última parte de M LP III, peço ao leitor que leve em conta o fato de que o texto visava um público europeu — de resto, em parte, constituído por
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não-filósofos — , o que implica certa mudança de tom (não falo de nível), e tam bém a circunstancia de ele ter sido escrito para servir de base a uma intervenção oral no quadro de um coloquio, o que explica algumas das suas características.
In t r o d u ç ã o
Este texto tratará tanto da dialética do Capital como de um problema bem mais antigo da “ investigação m arxiana” , o da relação entre a ética e o marxismo. Seria necessário dar uma explicação preliminar sobre o assunto. M uitos con sideram a primeira questão envelhecida, e a segunda, digam os, arqui-envelhecida. A idéia de reunir num mesmo texto o velho e o arqui-velho tem um ar esquisito, e corre o risco de soar como se elevássemos à potência o arcaísm o contido numa ou noutra questão... M as não é assim. Para o problema da dialética do Capital, ocorre o que ocor reu às vezes com os grandes problemas em filosofia ou em ciências do homem. Supõese que eles perderam todo interesse no momento mesmo em que eles começam a se tornar interessantes. O locus classicus “ ética e m arxism o” é por sua vez, e por di ferentes razões, um dos mais atuais entre os “ velhos tem as” . Quanto à justificação da reunião das duas coisas, o texto o explicará. Acrescento o seguinte, a propósito do estado atual da pesquisa na França (visando por ora, principalmente — m as não exclusivamente — o primeiro pon to, a dialética do Capital)·, m ais do que nunca, ao lado do trabalho propriam en te substantivo, necessita-se de um história crítica do problem a. Os resultados ob tidos —- houve sem dúvida resultados — estão dispersos. Confunde-se o melhor com o pior. N ão se extrai claramente a linha de uma acum ulação de resultados no sentido de um progresso. E, entretanto, os avanços estão “ lá ” ; trata-se de redescobri-los. Lembremos por um lado certas particularidades da vida cultural na França que representaram sem dúvida obstáculos a uma tal acum ulação de resultados. M esmo se a situação já se modificou consideravelmente, a discussão permanece ex cessivamente francesa, ou no m áximo continental. Isto talvez seja um caso geral, m as freqüentemente discute-se na França questões amplamente tratadas em outros lugares, sem que se alarguem os limites geográficos da discussão. Por outro lado, a m aldição que durante mais de uma dezena de anos caiu sobre M arx por parte de editores e jornalistas, m aldição à qual, de resto, sucedeu um encantamento fácil e talvez efêmero, não ajuda a esclarecer as coisas. O mínimo que se pode dizer é que há muitos textos importantes mal conhecidos, mesmo se entre os textos mais co nhecidos há também coisas importantes. Última questão preliminar: os economistas — e mesmo os sociólogos — olham talvez de esguelha para as discussões “ estéreis” dos filósofos a propósito da dialé tica do Capital (embora, como assinalou J. Bidet, a tendência desses últimos anos tenha sido antes a contrária: na falta de resultados, os economistas assum iram as tarefas dos filósofos). Entretanto subsiste uma certa desconfiança, e é preciso dizer que ela não é totalmente injustificada. O risco de cair numa “ epistem ología” — na
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tradição dialética, o termo é em si mesmo pejorativo, por indicar um procedimen to “ por definição” não substantivo — é real. M as as “ questões de dialética” são certamente muito mais importantes do que pensam alguns, desde que se vá na di reção do conteúdo. H á certamente uma diferença — e M arx o assinala explicita mente nos Grundrisse — entre as questões lógicas e as questões, digamos, não-lógicas, mas o laço que une umas às outras é muito mais estreito de que se pensa. As questões lógicas são elas próprias substantivas, mesmo se elas o são de um outro modo. Por outro lado, a passagem do lógico ao não-lógico ou vice-versa impõe-se freqüentemente. O que não significa que seja fácil operar essas transgressões. Cien tistas que filosofam e filósofos que tentam “ fazer ciência” , sabem os todos alguma coisa dessa dificuldade... A direção que privilegio é não a de uma leitura hegeliana da dialética do Ca pital, m as sem dúvida a de uma leitura a partir de Hegell . H á boas razões para afirmar que essa leitura se saiu bem, diante das leituras analíticas e estruturais2. Por outro lado, estou convencido — ainda um problema velho-novo — de que não se pode resolver as questões que levanta a dialética do Capital, sem trabalhar, ao mesmo tempo, o velho projeto da elaboração de uma lógica dialética (ou pelo menos da elaboração de um conjunto de materiais para uma lógica dialética). Mesmo se a “ des valorização” de que foi objeto a idéia de dialética, por causa das (pseudo-) dialéticas vulgares, am eaça levar alguns ao ceticismo, já é evidente, se considerarmos os re sultados — ainda que por enquanto eles sejam incompletos ou só parcialmente fundados — que a idéia de uma lógica dialética tem todas as possibilidades de al cançar o estatuto de teoria rigorosa. Por falta de um investimento rigoroso nas for mas lógico-dialéticas (formas do conceito, do julgamento e da apresentação) — as quais são sem dúvida “ p arad o x ais” para o pensamento do entendimento — , a reconstituição da lógica do Capital, mesmo quando referida a momentos da L ó gi ca, ameaça cair num formalism o, ou pelo menos numa esquematização de interes se limitado. A primeira parte deste ensaio IV trata da dialética do Capital. N a primeira seção da primeira parte, tentarei dar um esquema global da apresentação dos três livros do Capital, e até certo ponto de cada livro em particular, a partir dos dife rentes movimentos que o constituem. A segunda seção discutirá de maneira mais detalhada a dialética do livro I e retomará também de maneira mais aprofundada a dialética que une os três livros, bem como a articulação da primeira dialética com esta última. Teremos com isso a apresentação do “ sistema de contradições” que atravessa ou antes constitui o Capital. A segunda parte desenvolverá certas implicações (incluindo “não-implicações” ) do que terá sido visto sobre aquela região de problemas que, retomando um locus tradicional, chamei de “ ética e m arxism o” 3.
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1. S o b r e a D ia l é t ic a d o C a pita l
A. Esquema geral da apresentação4 a) Dialéticas da essência/aparência, da substância/sujeito e do fundamento. Produção e circulação. A sucessão dos três livros do Capital pode ser pensada como um movimento de negação da negação, que põe em movimento um “ jo g o ” de pressuposição e posição5. O livro I põe a produção e pressupõe a circulação. O livro II põe a circula ção e pressupõe a produção. O livro III, que constitui uma negação da negação, re põe a produção, m as em unidade com a circulação, põe, portanto, a unidade da produção e da circulação. Esse movimento está constituído, primeiramente, por uma dialética que se liga à lógica hegeliana da essência, e que se estende em certa medida sobre o conjunto do Capital — ou constitui esse conjunto — , mas que corresponde mais precisamente ao primeiro livro e ao início do terceiro. Ela pode ser caracterizada pelas diferentes determinações que toma a aparência (em sentido geral); porém, mais precisamen te, ela dá a sucessão das diferentes form as que tom a a unidade da essência (em sen tido geral) e da sua aparência. Ter-se-ão aqui sucessivamente as três seções da lógi ca da essência: a aparência (Schein) com sua reflexão no fundamento; o fenômeno (Erscheinung) e a relação essencial (das wesentliche Verhältnis); e a efetividade ('Wirklichkeit), que é o momento da m anifestação (M anifestation) ou revelação (Offenbarung). Esses três momentos correspondem respectivamente à seção I do livro primeiro, às seções II a VII do livro primeiro, e às seções I e II, e num sentido um pouco diferente também à seção VII do livro terceiro (talvez mesmo ao conjun to das seções V, VI e VII do livro terceiro)6. A efetividade, o último desses momentos, pode ser lida como a unidade dos dois primeiros momentos, e ainda uma vez como negação da negação. O fenôme no e a relação essencial — o segundo momento — podem ser lidos como a negação do primeiro, a aparência. A passagem do primeiro ao segundo momento é da or dem do que chamei de dialética interiorizante, a passagem do segundo ao terceiro remete a uma dialética exteriorizante7. Tentarei m ostrar na segunda parte em que sentido rigoroso há também aí um a negação da negação. M as esse processo, reconstituído a partir do movimento da essência não pode ser plenamente apreendido se não se justapor as dialéticas do conceito (ou da pas sagem da essência ao conceito). Diga-se en passant, tem-se aí um dos segredos da dialética m arxiana em relação à dialética de Hegel: ela justapõe os movimento e determinações da L ógica.8 Assim, é necessário “ preencher” o processo que vai da reflexão à relação es sencial (isto é, a passagem do primeiro ao segundo momento) com movimentos que remetem ao conceito. M as quais são esses movimentos? É indispensável pensar esse processo como sendo da ordem do que conduz da substância ao sujeito. A subs tância é uma determinação da lógica da essência, m as que se situa no final do m o vimento da essência (capítulo três da terceira seção da lógica da essência) e que é o
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ponto de partida imediato na direção da lógica do sujeito, a lógica do Conceito. De maneira análoga, da primeira seção do livro I do Capital às seções seguintes, vai-se do trabalho, substância do valor, que é trabalho abstrato cristalizado, à Subjetivação do valor (ao valor que se tornou Sujeito do processo). M as poder-se-ia recorrer também a movimento internos de seções da lógica do Conceito ou a movimentos que articulam as seções entre elas. Assim, a circula ção simples que não repõe as suas próprias pressuposições é análoga ao “ quimismo” (segundo capítulo da segunda seção da lógica do Conceito), o capital enquanto capital (seções II e seguintes do livro primeiro) é o equivalente da vida (capítulo primeiro da terceira seção da lógica do Conceito). Nesse caso, a teleología, tercei ro capítulo da segunda seção da lógica do Conceito, faz a m ediação entre uma fi nalidade externa (em sentido kantiano), a que é posta na seção I do livro I do C a pital, e a finalidade interna deste quase-vivo que é o capital. Se privilegiarmos a fi nalidade interna no capítulo sobre a teleología ou a unidade das duas finalidades, vai-se do quimismo à teleología. Poder-se-ia igualmente tom ar como referência o movimento interno da pri meira seção da lógica do Conceito: a subjetividade. Seus três momentos são: o con ceito, o julgamento e o silogismo. Seria possível m ostrar que da seção I do Capital às seções II e seguintes, vai-se do conceito e do julgamento ao silogismo. T odo esse movimento mobiliza as noções que, na tradição, remetiam à quantidade lógica: singularidade, particularidade, universalidade. A esses movimentos, acrescento, particularizando, a dialética interna do li vro I do Capital. Esta dialética será estudada de uma maneira detalhada na se gunda seção dessa primeira parte, mas é necessário indicar desde já o sentido ge ral dos seus momentos. É preciso reconhecer três momentos também nessa dia lética. O momento constituído pela seção I do livro I, um segundo momento que compreende as seções II a VI, e um terceiro momento constituído pela seção VII, onde se situa a interversão das relações de apropriação. Se é válido falar de nega ção da negação a propósito dos momentos aparência e fundamento/ fenômeno e relação essencial/ efetividade (momentos que, como vimos, nos conduzem do li vro I ao livro III, o segundo momento constituindo as seções II a VII do livro pri meiro, portanto todo o livro primeiro, menos a seção I), pode-se falar também, de um m odo igualmente rigoroso, de posição, negação e negação da negação (ou posição, primeira negação, segunda negação) como correspondendo, no interior do livro primeiro, respectivamente à seção I, às seções II a VI e à seção VII. Lá se tem — m ostrarei em detalhe na segunda parte — uma negação nos limites da dialética interiorizante, a série aparência/ fenômeno/ m anifestação remetendo an tes ao movimento global de interiorização (os dois prim eiros momentos) e de exteriorização. H á boas razões para pôr esta sucessão dos momentos do livro I em relação com as três seções da lógica do ser, a qualidade, a quantidade e a m edida.9 De fato no primeiro momento o valor de uso está posto como finalidade (a finalidade não qualitativa, presente embora, permanece pressuposta), no segundo é a finalidade qualitativa que passa a ser pressuposta. Quanto à relação entre a lógica da medida e a seção sétima, ela é de ordem mais complexa. Resumidamente, ela está no fato
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de que no terceiro momento se transgride a medida do sistema (para o desenvolvi mento dessa idéia, remeto ao que escrevi em CH L, pp. 46-9). Tem os assim uma série de linhas dialéticas, centradas na dualidade essência/ aparência (em sentido geral) e na passagem da substância ao sujeito (a dialética interna do livro primeiro particulariza essas determinações). O conjunto dessas dialéticas nos permite assim reconstituir um movimento interiorizante (em três momentos para o livro primeiro) e um movimento exteriorizante, os quais preen chem os cam pos da produção e da circulação (mais precisamente o cam po da pro dução posta, e aquele em que se põe a produção-circulação). Tratarei adiante, bre vemente, do cam po em que só a circulação está posta. A propósito do conjunto desse movimento, seria necessário fazer ainda as ob servações seguintes: a) Esse movimento, e em particular a dialética da essência/ aparência, e da subs tância/ sujeito, é também o da fluidificação das determinações e inversamente da sua coisificação. A dialética interiorizante conduz a um m áxim o de “ fluidez” das determinações no momento da interversão das relações de apropriação (início da seção VII), a dialética exteriorizante conduzindo pelo contrário a uma coisificação das determinações que vai culminar na seção VII do livro III (os rendimentos e as suas fontes) com a fórmula trinitária, onde se tem uma espécie de Schein im agina tivo (aparência imaginativa) das determinações. p) Introduzi as determinações — singularidade, particularidade, universalidade, assim como a idéia de “ silogism o” , tal como ela aparece na tradição dialética: um movimento com três elementos (dois deles são às vezes da mesma espécie), um dos quais funciona como mediador. O movimento do singular, do particular e do universal estão na base da dia lética da form a do valor. Esta dialética é uma gênese lógica do dinheiro que de semboca nesse último, o qual representa um universal concreto (um gênero que é ao mesmo tempo uma “ espécie” pertencente ao gênero, determinação dialética fundamental). O silogismo está presente na fórmula geral do capital, D-M -D ’ (que inverte a fórmula M -D-M , a qual caracteriza a circulação simples). O silogism o será desen volvido nas três form as do capital, apresentadas no livro III (a última fórmula, o capital a juro representa igualmente um momento importante no movimento indi cado em direção da coisificação das determinações). Tem-se aí a exteriorização, Verãusserlichung, efetivação coisificada. O desenvolvimento silogístico preenche igualmente o livro II — no qual só a circulação está posta — sob a forma dos três circuitos (Kreislauf) do capital, o circuito do capital dinheiro, o do capital produti vo, e o do capital m ercadoria (aqui também seria preciso dizer que se põe uma for ma e se pressupõem as outras). y) A série “ singular, particular, universal” , se duplica na série “ unidade, plu ralidade e totalidade” . Deixando de lado por enquanto o momento do livro pri meiro, digam os que o movimento do livro II vai da unidade (os dois primeiros ci clos são individuais) à pluralidade (a terceira form a exige a rigor a posição de um outro capital10, e da pluralidade à totalidade (a totalidade particularizada em duas
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“ divisões” ou “ departam entos” (Abteilung) que se encontra na terceira seção do livro II: reprodução e circulação do capital social total). N o livro três (que vai além do momento da circulação posta) tem-se assim uma totalização, m as particulari zada em “ ram os” (Zweigen). Percorremos, assim , as determinações da essência e da aparência; da substân cia e do sujeito, e do fundamento; da fluidez e da coisificação; da interiorização e da exteriorização; da unidade, da particularidade e do universal (conduzindo à uni versalidade concreta), assim como as da unidade, da pluralidade e da totalidade. Com o determinações lógicas essenciais, tem-se sempre a dualidade pressuposição/ posição, e a negação dialética (inclusive a negação da negação). Esse conjunto de determinações permite constituir e explicitar os cam pos da produção, da circula ção e da produção-circulação. b) Dialética da form a e da matéria — Ao lo'ngo dos três livros do Capital, encontra-se uma dialética da forma e da matéria, movimento essencial à compre ensão da apresentação do Capital, mas que, curiosamente, não foi visto em geral pelos comentadores11. Este movimento está evidentemente marcado tanto por Hegel como por Aristóteles. Ele não se reduz à dualidade valor de uso/ valor, ou pelo menos a esta dualidade tal como ela está dada na m ercadoria. Com efeito, ele envolve a dupla determinação também enquanto ela pertence ao capital. Por outro lado, como em Hegel, a dualidade forma/ matéria se articula com outras oposições que se refe rem à forma (forma e essência, forma e conteúdo). Convém pois apreendê-la na sua significação “ filosófica” mais geral. A apresentação do Capital não é uma simples apresentação de formas. Ela re produz um movimento (lógico) de formas que se põem na matéria, para produzir ou produzindo já com isso novas form as. Limito-me aqui a indicar os grandes momentos da posição da forma na matéria. 1) A dialética da forma do valor, que tem como ponto de chegada o dinheiro, posição da forma equivalente do valor — aqui “ form a” quer dizer forma fenomenal, o valor é ele mesmo uma form a, mas no sentido primeiro — sobre um a matéria determinada (os metais preciosos). A própria dialética do dinheiro (que não é uma pré-história lógica, m as uma história lógica do dinheiro) não é estranha à dialética forma/ matéria. 2) A posição da for ça de trabalho, portanto de uma matéria privilegiada, de um valor de uso privile giado, enquanto valor de uso para o capital. A forma que se tornou Sujeito pro cura a sua m atéria, a matéria que permite a realização, a atualização da forma. 3) A análise da passagem da m anufatura à grande indústria, na seção III do livro pri meiro. A form a capital modifica a estrutura material do processo produtivo, o que permite um grande desenvolvimento de uma das form as da mais-valia (a mais-valia relativa) cuja expansão no quadro da antiga estrutura material só podia ser li mitada. 4) A distinção entre os dois departamentos da produção, nos esquemas de reprodução do final do livro II. 5) O devir matéria da forma capital na figura do capital a juro. O capital se torna ele próprio, enquanto capital, um valor de uso (aqui não se tem propriamente posição nem encarnação da forma na matéria, mas en carnação da forma na determinação própria à matéria, o valor de uso). A dialética da forma e da matéria escande o conjunto da apresentação. A di-
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alética do Capital é impensável como dialética de puras formas (isto é conhecido, mas às vezes esquecido no detalhe da apresentação, ou então apreendido de um modo estreito ou unilateral). c) Dialética das form as e dos seus “ portadores” — O desdobramento das for mas pressupõe (deixa na som bra, “ nega” ) os portadores dessas formas. M as em vários momentos os portadores serão posíos12, e as formas pressupostas. Nesse sen tido, se o objeto é sempre sócio-econômico, poder-se-ia dizer que no primeiro caso ele é sócio-econômico e no último sóczo-econômico. Lá o econômico está posto, aqui o social. Essa dialética foi também pouco estudada e mal-compreendida, e no en tanto é nela que se encontram os elementos para pensar a noção de classe no C api tal (tanto da classe em inércia como da luta de classes). Com efeito, há uma dialé tica da apresentação dos agentes enquanto portadores no Capital, dialética que deve ser compreendida a partir do movimento da posição e da pressuposição relativo ao econômico e ao social. Esse movimento de posição e de pressuposição das formas e dos agentes se desdobra segundo — entre outras coisas — determinações lógicoquantitativas (em particular a unidade e a totalidade). Assinalemos os principais momentos desse movimento de pressuposição e po sição das form as e dos agentes. Começa-se pela posição das form as e pressuposi ção dos agentes (capítulo I da seção I do livro primeiro). N o capítulo dois, tem-se a posição dos agentes-portadores da circulação simples (é esta posição que distin gue esse capítulo do que o precede). Enquanto portadores da circulação simples, eles aparecem como homogêneos, como “ trocadores” de m ercadorias, não reme tendo às diferenças de classe. Desde o capítulo três da seção I, e nas seções II a VII do livro primeiro -— se considerarmos somente os desenvolvimentos da forma e não os capítulos “ históricos” — , tem-se de novo posição das form as, com a pressupo sição dos agentes-portadores que agora são diferenciados, enquanto trabalhador e o capitalista, mas que são tom ados ainda individualmente. N a seção VII do livro primeiro, com a interversão das relações de apropriação, os agentes-portadores não são mais tomados individualmente, mas aparecem como totalidades (sempre em inér cia). Aqui poderíamos falar da posição tanto das formas como dos agentes. Com parando esse momento com o anterior, seria preciso dizer que, no primeiro caso, os agentes-portadores “ configuram” classes, sem que — em duplo sentido — as clas ses elas próprias sejam postas, ou se se quiser, põem-se indivíduos “ de classe” , mas não a classe enquanto classe (mesmo em inércia, sem falar na luta, que aqui é duas vezes pressuposta, duas vezes “ negada” ). N o segundo caso, na medida em que se põem os agentes, põem-se as classes (em inércia), isto é, “ totaliza-se” tanto os agentestrabalhadores como os agentes-capitalistas: uns e outros se apresentam como tota lidades, e não mais individualmente. N o capítulo final, inacabado do livro III, temse finalmente a posição das classes (enquanto totalidades) e a pressuposição das form as13. Em todos esses casos, já disse, a análise é sempre sócio-econômica. M as a pro pósito do capítulo I da seção I do livro primeiro, poder-se-ia falar de sócio-econô mico. N o capítulo 2, tem-se, pelo contrário, o sódo-econôm ico. A partir do capí tulo 3 e até a seção 6, deve-se falar de novo em sócio-econômico. N a seção VII, te-
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ríamos a rigor o sócio-econômico. E no capítulo final, inacabado, do livro III, de novo e agora plenamente o sócio-econômico (com a posição das classes sempre em inércia). É só em outros textos que, como tema, ter-se-ia no plano lógico a posição isóczo-econômica) das classes em luta, a luta de classes (a qual está evidentemente ausente do último capítulo do livro III do Capital, e a fortiori dos outros momen tos a que me referi). Tratarei mais adiante do estatuto da “ luta de classes” no Ca pital, estatuto que não é o da pura ausência, nem mesmo o da pura pressuposição, m as que é singular. — Com isto termino a apresentação — em grandes linhas — da noção de classe no Capital. d) Dialéticas do tempo e dos efeitos das formas sobre os agentes (para além da posição pura e simples de “ portador” co-constitutiva das formas) — Até aqui, permaneci no plano do objeto lógico e da apresentação lógica. Registro no qual, se há temporalidade, trata-se de uma temporalidade puramente lógico-económica (esta última é de resto complexa, como insistem de resto com razão certos comentadores14: comparemos, por exemplo, os “ circuitos” (Kreisläufen), seção I do livro II, com a “ rotação” (Umschlag), terceira seção do mesmo livro. Em primeiro lugar, seria preciso introduzir a temporalidade histórica, m as o termo é ambíguo. Por outro lado, O Capital se ocupa também, e muito, dos efeitos das estruturas sobre os agentes, efeitos sempre em inércia, mas para além da sim ples condição de portador, que é de certo m odo co-constitutiva das formas. Em terceiro lugar, seria preciso tratar do lugar da luta de classes no Capital. A temporalidade lógico-econômica se “ abre” em certos momentos para uma temporalidade histórica. M as em que “ m om entos” e sob que condições? E que quer dizer aqui “ histórico” ? Aqui, como por toda parte, é preciso evitar, numa apresen tação do Capital, os dois riscos: o de uma simples descrição de entendimento (no limite, classificatória ou formalmente estrutural), e a de um desdobramento dialé tico que, por falta de conteúdo, corre o risco de cair no especulativo ou no arbitrá rio. Com o venho fazendo até aqui, tentarei seguir uma via média. O tempo aparece por um lado em conexão com a posição da materialidade. O capitalism o é um sistema de form as que se inscreve numa base material. N o in terior da produção, considerada como um processo, esta base aparece sob a forma do processo de trabalho, o qual pressupõe uma certa organização material na pro dução (“ um m odo de produção material” ). O capitalismo começa utilizando o modo de produção material que ele encontrou. M as, num segundo momento, põe uma nova forma material. Esta passagem de um primeiro momento do capitalism o, o da m anufatura a um segundo momento, o da grande indústria instaura uma tem poralidade que é a de uma história. “ H istória” quer dizer aqui história interna do capitalismo — a manufatura já é capitalista — e se distingue da sua pré-história, m as também da “ história” do seu futuro. Por outro lado, pelo fato de que se trata de analisar a base material da produção, esta história não é uma “ história estrutu ral” (não é uma história das form as, embora ela tenha efeitos sobre a história das formas, sobretudo o desenvolvimento da mais-valia relativa). Nesse sentido, ela é história no duplo sentido de uma tem poralização e de uma sucessão que não con cerne às formas senão no sentido das “ formas m ateriais” .
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A pré-história do m odo é introduzida por outras razões. O sistema de formas tem certas pressuposições, sem as quais ele não pode existir nem funcionar. As pres suposições constituem de certo modo o “ limite” do sistema, limite aquém do qual só se tem o seu passado. Se no caso anterior, tratava-se do presente do sistema (pre sente global; na passagem à grande industria, a m anufatura representa o passado desse presente), temos agora o passado do sistema em sentido enfático, sua préhistória. Essa pré-história não pode mais constituir urna historia estrutural (uma historia das form as), e isto quase por definição: aquém das pressuposições do sis tema, não se pode encontrar form as, pelo menos não se pode encontrar as formas do sistema. N ão se tem também propriamente a historia, mesmo de decadência, de um sistema anterior. Tem-se um processo de dissolução que é antes heteróclito, o qual, por isso, se apresenta pelo menos em parte como um processo não-formal. Tem-se assim de novo “ história” — no caso pré-história — num duplo sentido: temporalização, e processo não estritamente formal, mesmo se ele tem a ver com as formas. Esta pré-história^nós a encontramos no capítulo sobre a “ pretensa acum u lação primitiva” , cujo sentido será indicado na segunda parte, e nos capítulos (pré-) históricos que acom panham — em geral terminam — as seções sobre as duas for mas derivadas do capital; assim como no capítulo que se ocupa do seu “ outro” , a renda fundiária (respectivamente seções 4, 5, 6 e 7, do livro III). H á também não uma historia do futuro do sistema, mas a apresentação do que representa a virtualidade dessa historia, a apresentação das leis de desenvolvi mento do sistema. Aqui o tempo, tempo do futuro e que permanece virtual, não aparece em conexão nem com a materialidade nem com o “ aquém ” das pressupo sições do sistema. Ele resulta das próprias form as do m odo de produção conside rados na efetividade, as quais instauram uma tem poralidade em parte cíclica, em parte retilínea. Essa temporalidade virtual é a que se encontra no capítulo 23 da seção VII do livro primeiro (“ a lei geral da acum ulação capitalista” ) e na seção III do livro III (“ lei tendencial da queda da taxa de lucro” ). Tal temporalidade virtual é evidentemente estrutural e desdobra, sobretudo no segundo caso, as contradições do sistema (“ contradição” visa, aqui, a tendência do sistema a se desenvolver su primindo progressivamente os seus próprios fundamentos). M as com isso não se esgotam todas as form as da historicidade no Capital. A historicidade instaurada pelas grandes leis da produção capitalista se desdobra tam bém em parte no passado cronológico, e, por isso, ela não é inteiramente virtual. E ela pode ser “ ilustrada” por certos momentos e lugares da historia do capitalismo. “ Ilustrar” que dizer iluminar, sentido que é próxim o de “ revelar” . Simplesmente, aqui não se trata de uma revelação das formas enquanto tais (como será o caso no livro três), mas de uma revelação enquanto “ encarnação” dessas form as e de seus efeitos sobre os agentes, em um dado momento e lugar. E o que se encontra no parágrafo 5 do capítulo 23 da seção VII do livro I (“ Ilustração [Ilustration] da lei geral da acum ulação capitalista” ). A essas figuras da história no Capital, seria preciso acrescentar no mesmo con texto, mas aqui não se trata mais de história e entretanto, como em parte no caso anterior, trata-se de uma “ saíd a” para fora das form as e dos agentes, considerados estritamente como agentes-portadores, e que contém a análise que se poderia cha-
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mar de sociológica dos efeitos das form as sobre os agentes. Pode-se dizer que ela é da ordem do sóc/o-económico, como certos casos indicados anteriormente. E o que se encontra, por exemplo, na análise das diferentes formas de existência da super população relativa, no parágrafo 4 do capítulo 23 da seção I do livro primeiro. E a luta de classes? Ela não é “ histórica” no sentido de uma tem poralização, mas o é no sentido de urna ruptura com o desdobramento puramente formal. D i gamos que, se o objeto do Capital são as form as do sistema (ele analisa o funcio namento destas e faz a sua crítica), ultrapassa-se o sistema estrito das formas, seja porque a forma se põe na matéria (nesse sentido, a matéria faz parte da forma), seja porque se introduzem as diferentes m odalidades de tem poralização não-estrutural indicadas. Estas são induzidas, como vimos, tanto pela própria posição da forma na matéria e pelos limites da forma, como pelos efeitos da forma sobre os agentes. O estatuto da luta de classes, luta que tem um lugar no Capital, mesmo se não se trata do terna da obra, é de uma outra ordem. A luta de classes se introduz numa fissura no sistema de formas. M ais do que isso. Se o regime global do desdobra mento das formas é em geral e, como veremos, em vários sentidos, o da contradi ção, há um momento — e curiosamente é em geral lá ou a partir de lá que se pre tende ver comumente a contradição — no qual não se tem contradição m as an tinomia. É o momento que trata da duração da jornada de trabalho (capítulo 8 da seção III do livro I). A partir dos “ d ad os” do sistema e em conformidade com eles, poder-se-ia obter duas determinações contraditórias. Ocorre que uma das determi nações é “ validada” pelos capitalistas, a outra pelos trabalhadores. As duas deter minações, que enquanto tais são rigorosas e se justificam plenamente a partir das bases do sistema, são relegadas — dado o seu caráter antinómico — à condição de opiniões (.M eimmgen). E, como se lê na introdução da Fenomenología de Espírito a propósito do que poderia ser dito do absoluto antes da posição do saber absolu to, “ uma opinião vale tanto quanto a outra” . A solução do problema não pode vir do desdobramento das form as, que estão reduzidas a “ opiniões” . Por isso a posi ção da antinomia que normalmente dá a contradição, produz aqui outra coisa. A posição das duas opiniões antinómicas não é a contradição, m as a luta entre elas, oa antes entre os agentes que as portam 15. Tem-se aqui um “ juízo de reflexão” : “ a lei é... luta” , ou mais exatamente um “ julgamento de devir” (mesmo se se trata de um devir lógico), as determinações formais se tornam “ luta” , a apresentação — objetiva e subjetiva — das leis do sistema cede o lugar à luta de classes. Com isso, não se esgotam todas as figuras da luta de classes no Capital, mas certamente temse aí a mais característica. B. A dialética do livro primeiro como dialética do fundamento e a sua relação com a dos três livros enquanto dialética da essência Particularizemos agora a dialética do livro primeiro, para retomar em segui da a questão do sentido da dialética global enquanto dialética da essência, e tam bém a questão da relação entre esses dois m ovimentos16. Embora isto não seja inteiramente visível à primeira vista, é preciso pensar o conjunto do livro primeiro como contendo três momentos: o momento da seção I,
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o que compreende as seções II a V, e um terceiro que corresponde à seção sétima. Já para nomear esses três momentos, ter-se-á para um deles pelo menos (e, na rea lidade, para dois deles) uma expressão contraditória. Poder-se-ia nomear cada um desses dois momentos de diferentes maneiras, em cada caso equivalentes. Digamos: primeiro momento, a produção capitalista enquanto circulação simples; segundo momento, a produção capitalista enquanto produção capitalista; terceiro momen to, a produção capitalista enquanto acumulação. Dessas expressões, somente a que exprime o primeiro momento aparece como contraditória, m as, como se verá, há também uma contradição na expressão do terceiro momento. Poder-se-ia dizer tam bém, respectivamente, o capital enquanto circulação simples, o capital enquanto capital, o capital enquanto acumulação do capital. N essas formas de expressão, põese em evidência o caráter contraditório da apresentação (que “ reflete” o do pró prio objeto). O capital está presente (Vorhanden) desde o início do Capital, embo ra ele não esteja posto como capital. O primeiro momento é o da circulação simples e dos seus fundamentos; as duas coisas, m as mais precisamente a última, constituem o que o texto chama de “ produção de mercadorias (não “ produção sim ples” , expressão que está ausente, o que tem uma certa importância). N o mesmo sentido, tem-se nessa primeira se ção a posição da lei de apropriação da produção de mercadorias, a apropriação dos produtos se fazendo direta ou indiretamente, pelo trabalho próprio ou por uma troca de equivalentes. O segundo momento é o da negação da circulação simples, dos seus fundamentos, e desta lei de apropriação. (“ N egação” , entende-se aqui sempre em sentido dialético a negação-conservação ou negação posta e conservação pressu posta). Esta negação é a primeira. Uma negação ainda incom pleta porque, por “ negativizante” que ela seja (sempre no sentido dialético da negação-conservação), ela deixa em aberto a possibilidade de que, aquém dela, haja ainda uma posição subjacente (isso não se confunde com o fato de que se trata sempre de negação-con servação). O terceiro momento é o da segunda negação, que é ao mesmo tempo duplicação da negação, eliminando (ainda que sempre como negação-conservação) todo resíduo de positividade sub-jacente, m as ao mesmo tempo — ver-se-á como — restabelecendo uma positividade, mas enquanto positividade negativa. É o m o mento da interversão das relações de apropriação, momento em que a lei de apro priação da produção de mercadorias se interverte em lei da apropriação capitalis ta. Vejamos em detalhe cada um desses momentos. A natureza e o caráter da seção primeira do livro primeiro do Capital represen tou sempre um problema para os seus leitores e comentadores. Com o ocorre inva riavelmente cada vez que se está diante de um momento “ muito carregado” de dialética, a leitura de entendimento (que representa a m aioria das leituras), incapaz de resolver o problema, sai-se com todo tipo de falsas soluções, de pseudo-soluções ou de recusas. A seção I teria por objeto uma sociedade pré-capitalista, eía repre sentaria uma introdução pedagógica, ela não teria nenhum sentido, ela seria o res to de um hegelianismo ainda não inteiramente superado (e por isso seria necessá rio reescrevê-la). A acrescentar as soluções ecléticas e as soluções aparentes. O problema remete à dificuldade seguinte. M arx quer começar pela aparência do sistema, que é a circulação simples; mas a aparência do sistema é um “momento’'
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“ negado” pelo próprio sistema. Dever-se-ia começar por uma pressuposição nega tiva da circulação simples seguindo desde o início o que “ faz” o próprio sistema? M as que poderia significar começar por uma negação como essa? Vê-se mal como seria possível pôr tal negação, sem pôr ao mesmo tempo o que a nega, isto é a es sência do sistema. M as, nesse caso, a apresentação como desdobramento progres sivo de formas, estaria, parece, comprometida. A solução seria, pois, apresentar esse ser-negado do sistema que é a circulação simples como se ele estivesse posto e 7ião negado. E, na realidade, isto significa apresentá-lo como ele se apresenta a si m es mo. Por isso, o início não tem nada de hipotético, na sua aparência de positividade. Portanto, o que o sistema nega como sua aparência (isto é, o que ele nega porque põe só como aparência) será posto de início; colocando entre parênteses esta nega ção. Só num segundo momento, abrir-se-á os parênteses, pondo a negação. M as tudo isto significa que o objeto é de imediato a produção capitalista. N ão se está evidentemente no registro de uma explicação prévia de natureza histórica, mas também não se está no nível de uma explicação prévia lógica qualquer, exte rior ao sistema. N ão há explicação prévia, há sem dúvida pressuposição, mas esta pressuposição não é exterior ao sistema, ela é interna. A pressuposição é a sua ap a rência, e enquanto tal, ela lhe é imanente. Entretanto, o sistema se apresenta nesse primeiro momento sob uma forma estranha (que é precisamente a da sua aparên cia). Estranha produção capitalista em que o capital está ausente e a finalidade é o valor de uso. Eis a tese da antinomia. A antítese se diz da seguinte maneira: a seção I é o lugar do trabalho abstrato, fundamento do valor, e o lugar do próprio valor (ora, há pelo menos um texto17 em que M arx afirm a que só no capitalism o pode haver trabalho abstrato); e O Capital começa, justificando a análise da mercadoY ria, dizendo-a “ forma elementar” do m odo de produção capitalista (“ nossa inves tigação” escreve M arx, deve começar por aí, o que supõe que a “ nossa investiga ção” , e isto desde a tem atização da m ercadoria, se refere ao m odo de produção capitalista). A solução da antinomia é a posição como contradição. A tese e a antí tese devem ser relidas, para que esta contradição se livre da forma da contradição de entendimento, ganhando a forma da contradição — contradição apesar de tudols — dialética. O capital não está “ ausente” como diz a tese, m as pressuposto (o que indica uma “ ausência” afetada de presença). Do mesmo m odo, não é verdade que a finalidade seja o valor de uso. N a realidade, é a finalidade posta — o que é dife rente — que é o valor de uso, não a finalidade “ tout court” . O valor de uso é na realidade posto como finalidade, mas isto significa que ele está presente mas está “ afetado” por uma outra finalidade que lhe é oposta. Inversamente, no que se re fere à antítese: se é verdade que o objeto é desde o início o modo de produção ca pitalista, é preciso “ acrescentar” — isto representa na realidade uma negação — que se trata do capitalism o “ negado” . Isto é, o capitalismo está “ lá ” , caso contrá rio não se poderia apresentar o trabalho abstrato e o valor. M as, se o capitalismo está lá, ele está de certo modo com os sinais invertidos: lá onde o capitalismo nega, a seção I põe, lá onde ele põe a seção I nega. Entretanto, as determinações presen tes na seção I são sem dúvida determinações do capitalismo. Tam bém se poderia resumir todo esse desenvolvimento dizendo que a seção I, ao mesmo tempo, trata e não trata do capitalismo, m as sob a condição de precisar que o “ n ão” da expres-
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são, a negação que ela contem, é o “ n ão” da negação-conservação dialética, e não 0 da negação usual do entendimento. Se se interpretar essa negação como negação no sentido usual, a asserção é errônea, seu lado negativo é falso; e, contendo uma contradição vulgar, deve ser rejeitada. M as, do mesmo m odo, o lado positivo da asserção só é válido como “ afirm ação dialética” , aquela que pode ser afetada pelo seu contrário e o é no caso, como o seu desenvolvimento o indica. Com o simples afirm ação, ela deve ser rejeitada19. Põe-se entretanto um problema. Em que medida se pode afirmar que a seção 1 do livro primeiro trata da aparência do modo de produção capitalista? Como dizer que se trata da aparência, se na seção I se encontra a apresentação do que parece constituir os fundamentos desse m odo, o trabalho abstrato e o capital?20 Sem dú vida, há um texto de M arx em que ele diz claramente que a circulação simples é a “ forma fenomenal” de um processo mais profundo21. Esses textos são im portan tes para o meu argumento geral (vê-se bem que a circulação simples pode pelo menos ser considerada como interior ao sistema); porém se a seção I tem como objeto a circulação simples, seu único objeto é a circulação simples? N a realidade, a seção I apresenta a circulação simples e os seus fundamentos. M as se dizemos “ e os seus fundam entos” , dado que esses fundamentos são — ao que parece — os fundamen tos do modo de produção, ter-se-á mais do que a aparência do modo. Evidentemente, pode-se e deve-se dizer que a seção I nos dá as pressuposições do modo de produ ção capitalista. M as é preciso acrescentar: a) que essas pressuposições lhe são inte riores (não se trata das pressuposições antropológicas, que são externas); e b) que essas pressuposições são a aparência do sistema. Isto vale mesmo para a esfera dos fundam entos, embora “ aparência” tome nesse último caso um sentido um pouco m odificado (mais precisamente, duplicamos aqui a noção de aparência, porém a significação geral é a mesma). Sem dúvida, os fundamentos tais como são dados na seção I são a aparência do sistema; e isto porque o capital enquanto capital, que está ausente dessa seção, opera, na realidade — quando ele se apresenta (no segun do momento) — uma negação desses fundamentos (ver mais adiante). O ra, como o capital enquanto capital não está presente na seção I, os fundamentos negados pelo capital aparecem como fundamentos positivos ou plenamente positivos, o que eles não são; aparecem na realidade como fundamentos à maneira do entendimen to, o que corresponde bem ao objeto mas ao objeto (objetivamente) aparente. Em outras palavras, ocorre com o fundamento o que ocorre com a aparência em senti do estrito. Seu ser-negado se apresenta, por ora, como ser posto, e isto é a aparên cia. M as não haveria aí um deslocamento da noção de aparência? Sim, em certo sentido, m as a resposta não perde por isso o seu rigor. A diferença é a seguinte: a circulação simples é a aparência do sistema, e se apresenta na seção I de um modo aparente (porque com os “ sinais” invertidos, sem a negação). Os fundamentos, por sua parte, não constituem enquanto tais — digam os, nos seus “ valores absolutos — a aparência nem a “ superfície” do sistema; m as, no seu m odo de aparecer na seção I, eles constituem perfeitamente os fundamentos aparentes superficiais — porque dados como simplesmente positivos — do sistema. E o conjunto fundamentos positivos/ circulação simples, ou seja os fundamentos como fundamentos da circula ção simples que constituem a Aparência (poder-se-ia empregar a maiúscula). A cir
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culação simples é o lado da aparência (com minúscula) no interior da Aparência (objeto da seção I). Agora, e para terminar a apresentação desse primeiro momento, abordemos as dificuldades que poderiam se apresentar com relação ao lado da circulação sim ples tom ada estritamente (isto é, não em relação ao seus fundamentos). Apresentoas no final não só porque há textos em que M arx se exprime diretamente sobre o assunto (o que evidentemente não vale como prova), m as porque elas me parecem oferecer menos dificuldades. Em que medida é verdade, conforme o que diz M arx, que a circulação simples é a aparência do sistema? A resposta se tornará mais clara depois de considerarmos o segundo e o terceiro momento. Digam os por ora que mesmo considerando um sistema capitalista puro, haverá sempre atos que, encara dos só por um dos seus lados, são atos da circulação simples. M ais do que isso, to dos os atos de com pra e venda do sistema, considerados neles m esm os, fazendo abstração da cadeia dos atos em que eles se inserem e da finalidade dessa cadeia — e a produção capitalista, induz, produz essa aparência — , são atos da circulação simples. Dir-se-á que embora essa aparência se produza, ela não é a única aparên cia. Sem dúvida, e por isso mesmo há uma dialética das aparência, que é preciso pensar a partir das três seções da lógica hegeliana da essência. Nesse primeiro m o mento, temos o Schein (aparecer, aparição, “paraître” ) mais do que a Erscheinung (aparência, fenômeno, “ apparaître” ) e de modo algum a Manifestation ou Offen barung (manifestação, revelação). O segundo momento, que corresponde às seções II a VI do livro primeiro, é o da primeira negação. A circulação simples se inverte em circulação do capital, a finalidade posta na seção I se torna finalidade pressuposta em benefício de um “ fi nalidade interna” que visa a valorização do valor. A circulação simples cai no seu fundamento (Grund, fundamento e abismo), mas a produção se torna um momen to do movimento do capital (chamado às vezes de “ processo de produção do capi tal” — produção e circulação — em oposição ao “processo imediato de produção” ). Isso se faz pela introdução de um certo valor de uso que consiste em produzir va lor, à sua maneira uma espécie de universal concreto entre os valores de uso. O valor de uso-para-o-capital. O aparecer (Schein) e a sua reflexão no fundamento (que estava “ separado” do seu aparecer) se torna Erscheinung (fenômeno)22, a aparên cia da Relação essencial (das wesentliche Verhältnis)23. Isto no que se refere à apa rência (em sentido geral). N a realidade o Schein “ afunda” (cf. Grund, em francês, “ s’abîm e” ) na essência. M ercadoria e dinheiro estão sempre presentes, m as como formas fenomenais da relação-capital. Os Grundrisse dirão que o que não está mais presente é a oposição entre as duas determinações. M as se o Schein é negado em Erscheinung, o fundamento também é negado. Lê-se em passagem anterior dos Grundrisse que para desenvolver o conceito de capital não é necessário partir da noção de trabalho, mas da noção de valor. Entre tanto, o próprio valor não é mais um fundamento. O valor se tornou um movimento autônomo, e é esse movimento-Sujeito, que se chama “ capital” . O trabalho, na sua dupla determinação de trabalho concreto e de trabalho abstrato, tornou-se agora o uso do valor de uso de uma certa mercadoria apropriada pelo capital. (É por isso que as fórmulas do tipo “ o capital produz m ais-valia” são em certo sentido objeti
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vas.) Esse segundo momento opera, pois, uma dupla negação (não uma negação da negação). Ele nega o “ lad o ” das aparências — o que é bem conhecido — , mas ele nega também o fundamento, o que, sendo conhecido, é menos reconhecido e mais difícil de explicar. O fundamento, o trabalho está sempre “ lá ” , mas ele não é mais posto. O fundamento é afetado pela negação, ele é apenas como fundamento pressuposto. O Sujeito-capital não tem fundamento posto, ele incorporou como m o mento o que devia ser o seu fundamento. M as o trabalho permanece “ no fundo” como fundamento pressuposto. Vê-se, pois, que o segundo momento opera uma redução tanto da aparência como do fundamento. É de certo m odo o “ estrato médio de sentido” que é posto, m as ele foi completamente invertido — e por isso os ex tremos são afetados de negação — produzindo um movimento Sujeito. Essa nega ção é entretanto incompleta. Por um lado, a aparência continua lá (na realidade, ela ficará sempre “ lá ” , mas duplamente suprimida). E, sobretudo — esta é razão do que foi dito — , a lei da apropriação da produção de m ercadorias (apropriação pelo trabalho próprio e pela troca de equivalentes) foi objeto só de uma negação, o que significa que ela não foi plenamente negada. Resultado paradoxal: a produção capitalista como produção capitalista (é disso que se trata nas seções II a VI) tem uma lei de apropriação que é ainda “ em parte” a lei de apropriação da “ produção de m ercadorias” , lei que regia as relações capitalistas “ com capital negado” . E, se a primeira lei se conservâ, isso se deve a duas razões: no momento, só se considera — m as esse “ momento” é também um momento objetivo do sistema — , no plano lógico, a relação individual entre um capitalista e um trabalhador, não a relação de conjunto entre capitalistas e trabalhadores. Em segundo lugar, só se toma em consideração a prim eira volta do capital, e não a volta do capital e o reinvestimento dele, aumentado ou não pela mais-valia produzida. N essas condições, a obtenção e a apropriação da mais-valia é, perfeitamente, o resultado de uma troca de equivalentes, mesmo se dessa troca — mas trata-se de um resultado normal ain da que fundado sobre as propriedades muito particulares de uma certa mercadoria — resulta uma sobre-apropriação (uma não-equivalência). Quanto ao fato de que essa troca de m ercadorias só pode ser feita se um dos agentes da troca dispuser de dinheiro e de meios de produção, nada nos impede de acreditar que a apropriação desses meios, essa “ primeira apropriação” ou “ apropriação prim itiva” tenha sido feita pelo trabalho e pelo troca de equivalentes. Assim, por um lado, a não-equivalência é um resultado “ natural” da equivalência; de outro (mas a plena justificação do primeiro ponto exige o segundo), é possível que na base e na origem da troca de equivalentes (geradora de uma não-equivalência) haja uma operação de troca pura e simples de equivalentes — uma troca de equivalentes como pura identidade — exprimindo sem mais a lei de apropriação pelo trabalho próprio. Portanto, mesmo se aqui se tivesse passado para o registro de uma nova lei, tratar-se-ia de uma nova lei fundada em última instância — e não só a pressupondo simplesmente — na antiga que a contradiz, portanto, uma nova lei que não é realmente uma nova lei. O terceiro momento é, em primeiro lugar, uma “ neutralização” de um p assa do. N ão a sua desm istificação, como pensaram alguns — a desm istificação está também no texto do Capital, m as ela virá depois, e, de certo m odo, como uma adjunção — ; m as o ato de pôr esse passado entre parênteses. Se se considerar não
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uma volta do capital, mas um conjunto de voltas, se se visar não um trabalhador e um capitalista, mas o conjunto dos trabalhadores e o conjunto dos capitalistas (as classes, mas nos limites anteriormente indicados), o sistema se apresentará sob uma forma totalmente diferente. Eu me exprimi em diversas ocasiões sobre a interversão das relações de apro priação24. N ão insistirei sobre o que desenvolvi em outro lugar. Esforçar-me-ei por exprimir o movimento de uma maneira um pouco diferente, e menos ligada à “ or dem de razões” de M arx. Por outro lado, tentarei apresentar aspectos que não de senvolvi muito até aqui. Voltarei, de resto, ao tema, na segunda parte. Conhece-se em grandes linhas a idéia de interversão tal como a encontramos nos capítulos 21 e 22 do livro primeiro do Capital. Para que ela se opere, é neces sário considerar não uma volta do capital, mas várias voltas, e sobretudo considerálas em continuidade (no momento anterior, podia-se ter várias voltas, mas então elas eram tom adas de um modo descontínuo). A apresentação da interversão (Umscblagen), no Capital, é feita em dois tempos: primeiro para o caso da reprodução simples (no capítulo 21), a qual é suficiente para que a interversão ocorra, e em seguida para a reprodução ampliada (capítulo 22). N os dois casos, o nervo do ar gumento é o fato de que, como o capital não produz somente m ercadorias, mas também o próprio capital, e portanto o trabalhador enquanto trabalhador e o ca pitalista enquanto capitalista, no momento da segunda volta, a decisão por parte do trabalhador de vender a sua força de trabalho não pode ser considerada um ato livre, nem podem os dois agentes da troca serem considerados, mesmo generica mente, como iguais. Para a primeira volta, a produção de uma não-equivalência a partir de uma equivalência seria ainda passível de uma justificação, pelo fato de que o contrato inicial poderia teria sido eventualmente um contrato livre, sendo a con centração de riqueza nas mãos de uma das partes, que o contrato supõe, em tal caso, o resultado de uma aproriação fundada na regra da equivalência e na lei da apro priação pelo trabalho. — A não-liberdade (como a não-igualdade) que está na base do segundo contrato é, no fundo, o que autoriza a posição da continuidade do pro cesso, a qual é evidentemente a condição para que se possa falar de interversão. O salário (pouco importa se pago a um outro trabalhador, agora só as classes inte ressam) aparece, assim, como uma parte da riqueza produzida pelo trabalhador, parte que lhe é entregue pelo capitalista. Para a reprodução simples, a interversão só se consuma no momento em que o montante total da mais-valia apropriada (e, segundo a hipótese, gasta) equivale ao capital total investido no início. Isto se explica pela seguinte razão. Enquanto a mais-valia tom ada não atinge o nível do capital inicial, já existe apropriação ilegí tima (a partir da segunda volta), mas ela permanece parcial. M esmo se o trabalha dor não deve ser considerado livre já a partir do segundo contrato, que não é um contrato, e mesmo se uma parte do que ele produz então não faz mais do que for necer ao capitalista um equivalente de uma certa riqueza, esta riqueza poderia even tualmente ter sido adquirida segundo a lei da apropriação pelo trabalho. O con trato inicial se revela, pois, como alguma coisa que, de certo m odo, já produz vio lência (a apropriação ilegítima do sobre-trabalho, pois a continuidade do processo
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já se estabeleceu), m as ao mesmo tempo essa violência dá ao capitalista um equi valente parcial de um gasto anterior. Porém, uma vez que a mais-valia apropriada e gasta atinge o montante do capital inicial, rompe-se o cordão umbilical que liga o conjunto do processo ao seu ponto de partida eventual. Se o “ trabalho inicial” poderia justificar uma espécie de violência na medida em que esta é, de um m odo geral, “ restitutiva” em seus efeitos (no interior de um certo limite quantitativo), uma vez ultrapassado esse limite, ela não poderia mais se justificar pela primeira lei (que entretanto está na sua “ base” ). Digam os, por ora, que a primeira lei se interverte na segunda. Para a reprodução am pliada (e o texto supõe que toda a mais-valia é rein vestida), o problema se põe de um m odo um pouco diferente. N a medida em que a mais-valia é reinvestida, pelo menos uma parte do trabalho não-pago volta ao tra balhador (e o resto serve para obter as condições desta “ restituição” ). Em princí pio, a interversão não tem por objeto o capital inicial, m as o capital suplementar constituído pela mais-valia apropriada. O capital suplementar I, o que foi obtido no final da primeira volta, se fundamenta ainda no contrato livre, contrato que remeteria eventualmente na sua origem à lei de apropriação pelo trabalho. M as o capital suplementar II, constituído pela mais-valia obtida em I, capital que resulta, pois, do segundo contrato, que é um falso contrato, é riqueza extorquida, trabalho não-pago. Portanto, de novo, o nervo do argumento está no falso contrato que abre a segunda volta, mas como o que nos interessa aqui é o destino da mais-valia (o capital inicial ele mesmo não é gasto progressivamente), o que ocorre com a maisvalia obtida na segunda volta — e portanto o investimento desta na terceira — é o ponto decisivo da interversão. N a realidade, o primeiro ponto decisivo. O segundo não é determinado, como o é no caso da reprodução simples. Diz-se simplesmente que o capital adicional aumenta sempre (capital suplementar original II mais capi tais suplementares derivados) e, por isso, o capital inicial se torna uma “ grandeza evanescente” . Interrompo aqui provisoriamente esta apresentação. Observo somente que na situação de fato, no caso “ norm al” , não há nem reprodução simples nem reprodu ção am pliada total do capital. Para apreendê-lo, seria preciso ler os dois movimen tos ao mesmo tempo. Nesse terceiro momento, como já indiquei, há uma segunda negação que é ao mesmo tempo redobramento da primeira negação e uma nega ção da negação. E isto em duplo sentido. A Erscheinung, como vimos, era a nega ção do Scbein, que se torna forma fenomenal da relação essencial. Com o terceiro momento, o da interversão e da acum ulação, a Erscheinung é por sua vez negada (o que representa um redobramento da negação do Scbein, não só porque a E r scheinung era a negação do Scbein, mas porque todas as operações de troca, mes mo a compra dos meios de consumo pelo trabalhador, aparecem agora como m o mentos do movimento do capital). A relação de troca entre o trabalhador e o capi talista se torna simples aparência (Scbein), ele “ é pura form a, estranha ao conteú do e que não faz senão m istificá-lo” 25. Essa segunda negação não “ anula” , entretanto, a aparência da circulação sim ples, mesmo se ela é duplamente negada. Por outro lado, o terceiro momento afeta também os fundamentos. M as se, para a aparência, a segunda negação é ao mes
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mo tempo duplicação da negação e negação da negação, a operação que afeta os fundamentos é antes negação da negação, ou ela é negação da negação enquanto re-posição dos “fundam entos”26. E, entretanto, ela também redobra a negação, por que os seus fundamentos serão postos em form a negativa. Com efeito, vimos que, no segundo momento, o do capital enquanto capital, o trabalho, “ fundam ento” da produção capitalista, era negado, e se tornava, no plano da posição, uma determi nação da relação essencial, o Sujeito-capital. A interversão das relações de apro priação nega a forma fenomenal da relação essencial, m as nega também, em certo sentido, a própria relação. N a realidade, no terceiro momento, a relação capital cai no seu fundo (Hintergrund), ele se apresenta agora como um processo pelo qual uma classe se apropria da riqueza produzida pelo trabalho da outra. “ O conteúdo é que o capitalista [aqui, a classe capitalista, RF] investe sempre, cada vez, contra um quantum superior de trabalho vivo de outrem, uma parte do trabalho de ou trem já objetivado, da qual ele se apropria de maneira contínua, sem equivalente”27. Eis que o trabalho reaparece, e de certo modo ele nega todas as outras determina ções. O próprio capital se torna riqueza produzida pelo trabalho, definição clássi ca que é na realidade recusada no nível do segundo momento. M as ele reaparece sob a form a negativa, como trabalho que é despojado da sua riqueza; aqui se en contra perfeitamente a idéia de uma riqueza produzida pelo trabalhador que é ca racterizada como sendo a sua riqueza28, contrariamente ao que pretenderam alguns. Vê-se como o movimento da interversão das relações de apropriação é um dos momentos em que aparece da maneira mais clara, m as sem que se caia numa fun dação antropológica, a tem ática da alienação, ou pelo menos um de seus aspec tos: o trabalhador é desapropriado da sua riqueza, o capital é a apropriação da ri queza de outrem (fremde)29. (O outro lugar privilegiado da quase-antropologia é a análise do processo de trabalho na grande indústria, análise “ m aterial” , à qual já aludi.) Assim, o terceiro momento é tanto um redobramento da negação da aparên cia como o restabelecimento do fundamento, m as como fundamento negado. E ele nos conduz à essência da essência, ao Hintergrund, que sucede à essência (a rela ção essencial, que tom a o lugar do Grund) e à aparência (Schein). M esm o se o movimento não é de forma algum a retilíneo, o livro primeiro é uma descida “ no inferno” . Ele tem assim três momentos, dos quais o último representa uma espécie de hybris (desmesura, ultrapassagem da medida) e o primeiro é pelo contrário uma espécie de êlleipsis (falta, insuficiência) sendo o segundo momento, de certo m odo, o ponto de equilíbrio: o capital enquanto capital. Inseri essa dialética do livro primeiro numa dialética mais ampla do que a do Schein, da Erscheinung e da Wirklicbkeit (Efetividade), a qual tem o seu ponto de chegada no livro III. Como se articulam essas duas dialéticas, e em que medida elas podem fornecer um movimento racional que cubra o conjunto do movimento? A Wirklicbkeit — como já disse — , unidade da essência e da existência, é o domínio da manifestação ou revelação (M anifestation, Offenbarung), o que corresponde no Capital às duas primeiras seções do livro III (e talvez às seções I, II e VII, ou mesmo I, II, V, VI e VII).
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Eis aqui aproxim adam ente o que se tem no livro III. Poder-se-ia dizer que se trata de uma dialética da Wirklicbkeit (Efetividade) ou da M anifestação, que é a unidade da essência e da existência. As duas primeiras seções do livro III nos dão a aparência da efetividade, aparência no interior dessa unidade entre a essência e a aparência que representa a efetividade. As seções V e VI (sobre o capital comercial e o capital a juro) nos dão a exteriorização (Verãusserlichung) da própria essência, da relação essencial enquanto tal, aparecendo a essência sob as suas form as deri vadas, cada uma das quais é a cristalização de um dos seus momentos. A seção VII (os rendimentos e suas fontes, sobretudo o § 1, a fórmula trinitária) é a volta da aparência da efetividade sob uma forma grosseiramente a-conceitual: 0 Schein imaginativo dos logaritm os amarelos, ou do domínio comum às beterra bas vermelhas, à m úsica e aos honorários de notário.30 A seção três (lei tendencial) poderia também ser pensada como uma outra face da efetividade. Ela contém a lei da efetivação (no sentido da atualização de uma potência) das contradições do sistema. Essa efetivação é igualmente uma “ saída” da essência, m as entendida como projeção virtual num tempo estrutural-histórico, como temporalização virtual das relações econômicas (o texto atualiza porque pro jeta no plano estrutural histórico contradições de ordem lógico-econômicas, porém, como se trata de uma realização futura, essa atualização é em si mesma virtual). Voltando ao tema da Wirklicbkeit e da manifestação. N as duas primeiras seções do livro III, encontra-se a apresentação da taxa de lucro em relação à taxa de maisvalia, a transform ação do capital constante mais o capital variável (c + v) em preço de custo (K ostpreis) e da m ais-valia em lucro, transform ação que é inicialmente qualitativa e em seguida quantitativa (transformação do valor em preço de produ ção), com a “ perequação” das taxas de lucro e a constituição do preço médio. N ão entro no detalhe do problema da transform ação, que não só tem uma longa histó ria, mas é também amplamente discutido na literatura mais recente. Insistirei so mente sobre a sua significação geral no conjunto da apresentação. Seria preciso pensar a série livro I seção I/livro I seções II a VI/e livro II seções 1 e II, isto é, pôr provisoriamente entre parênteses a seção VII do livro primeiro que acabam os de analisar. Se antes se tinha a série Schein-Grund/Erscbeinung-Relação essencial (como Sujeito)/Hintergrund-segunda negação do Schein; tem-se agora a série Schein-Grund/E,rscheinung-Relação essencial (como Sujeito)/Wirklichkeit (Manifestation). O s dois primeiros momentos são os mesmos nas duas séries. M as o que se obtém quando se passa da primeira à segunda série? Observemos inicialmente que essa segunda série dialética contém também, rigorosamente, uma segunda ne gação, que é — como é o caso para a primeira série — ao mesmo tempo redobramento da negação e negação da negação. Somente — eis a diferença — lá onde o terceiro momento da primeira série antes redobra a negação, o terceiro momen to da segunda série re-põe o seu primeiro momento e lá onde o terceiro momento da primeira série re-põe o seu primeiro momento, o terceiro momento da segunda série antes redobra a primeira negação. N a realidade, a efetividade (Wirklicbkeit31) nos reconduz ao Schein, à aparência do sistema, mas agora se trata da m anifesta ção ou revelação, a aparência que passou por todo o processo da sua essência (como
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disse, a efetividade é a unidade da essência e da existência32). M as a m anifestação é ao mesmo tempo uma negação, uma segunda negação dos fundamentos do siste ma. N a realidade, ela vai “ esconder” cada vez mais o caráter substancial do traba lho em relação ao valor, e no mesmo sentido vai ocultar a m ais-valia, produzida pelo trabalho, travestindo-a na categoria do lucro. Se o capital enquanto capital negava o trabalho enquanto fundamento, pois o trabalho se transform a em uma das suas determinações, a Efetividade nega o trabalho (ou pelo menos a especifici dade essencial do trabalho) um a segunda vez. O capital variável que é investido na força de trabalho (cujo uso é o trabalho) não se distingue agora qualitativamente do capital constante: ele não é mais do que um componente (sem privilégio) do capital total; e a m ais-valia que se tornou lucro aparece agora como provindo tanto do capital variável como do capital constante. Assim, se a aparência é restabelecida por um movimento de re-posição (que é também, à sua maneira, uma negação da Erscheinung), o fundamento, o trabalho criador, é negado; na realidade é negado uma segunda vez, pois ele já o havia sido, mesmo se sob uma forma diferente, no nível do segundo momento. Com parando pois a segunda série com a primeira, vê-se que os dois movimentos, que têm os dois primeiros momentos em comum, recebem, no que se refere ao terceiro (mesmo se nos dois casos há uma dupla negação), uma significação inversa. Lá onde a segun da negação era um redobramento da negação (do cam po da aparência), ela se tor na um a re-posição do primeiro momento; lá onde ela era antes uma re-posição do primeiro momento (o cam po do fundamento), ela se torna um redobramento da negação. Demos mais um passo. O movimento que caracteriza a passagem ao terceiro momento na primeira dialética era o da interversão (Umschlagen). Poderíamos encontrar um termo que especifique o movimento que nos conduz à Efetividade? Esse termo existe, é Verkebung, que eu traduzirei por reversão.33 O Capital — e em princípio o seu objeto — está assim atravessado e constituído por dois grandes movimentos, o da interversão (Umschlagen) e o da reversão (Verkehung). M as é preciso explicitar o que contém cada um deles. O terceiro momento da segunda dialética, o da Wirklichkeit, é apresentado como se conduzisse progressivam ente à “ consciência com um ” — gewöhnliches Bewusstsein — dos agentes da produção” 34. Eis aí algo que nos dá um fio para pensar as form as de consciência do conjunto dos momentos. Se a Wirklichkeit nos dá a consciência comum dos agentes, a que form as de consciência remetem os outros momentos (os três outros momentos, se forem consideradas as duas dialéticas)? H á um momento que é exclusivo da crítica (m arxiana), ao qual nem a consciência co mum nem a consciência científica a-crítica, a da economia clássica, tem acesso: é o terceiro momento da primeira dialética, o que contém a interversão das leis de apro priação. M arx dirá que a economia clássica não chega até aí, e acrescentará mes mo, perentoriamente, que ela não pode alcançar porque é burguesa35. A economia burguesa vai do primeiro momento à Efetividade (“ roçando” de certo modo o se gundo, Ricardo mais do que Smith) sem conseguir juntá-los, ou juntando-os de um modo imperfeito. O lugar da economia vulgar é o da consciência comum. Ela a traduz em (pseudo-) conceitos. Paradoxalmente, o momento da “revelação” é a s
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sim aquele em que a produção capitalista está mais oculta, o momento da descida ao Hintergrund é aquele em que o capitalismo se revela, ou antes se desvela. M ais importante do que isto, as duas dialéticas estão atravessadas e consti tuídas por uma determinação lógico-dialética essencial, a contradição. N a interversão, estão presentes, de form a contraditória, tanto a lei de apropriação da pro dução de m ercadorias, como a lei de apropriação da produção capitalista. E isto porque: 1) a última é um resultado da primeira, e mesmo de uma reiteração da primeira, e 2) porque, por isso mesmo, a última deixa subsistir a primeira, mesmo se “ suprim ida” ou mesmo duplamente “ suprim ida” 36. A segunda dialética, a da reversão, instaura igualmente uma contradição. A essência é “ suprim ida” em pro veito da lei fundamental da concorrência capitalista” 37, mas não anulada. A essên cia “ suprim ida” está sempre “ lá ” , e contradiz a “ aparência efetiva” , a única cam a da que agora está posta. Como disse, O Capital, e em princípio o seu objeto, está atravessado e constituído pelas duas contradições, a interversão das leis de apro priação e a reversão das determinações da essência, e só através dessas duas con tradições a obra e o seu objeto podem ser compreendidos. M ais isto é o mais difí cil. O “ pesado” teor dialético desses dois momentos fez com que pagassem — se posso me exprimir assim — um alto preço. O primeiro, com poucas exceções, foi “ esquecido” pela tradição. Ele não foi lido, não poderia ter sido lido. O segundo, mais visível, dadas as suas implicações mais diretas no interior do cam po da eco nomia (crítica ou não crítica), não foi esquecido, mas se ternou “ o lugar da verda de” (ou o lugar do “ julgam ento” ), lugar de escândalo, da crítica m arxista da eco nomia política. Em bora eu não pretenda riscar cem anos de investigações sobre o problema da transform ação, e embora o que digo não pressuponha absolutamente uma legitimação sem mais da “ transform ação” m arxiana (finalmente é possível que M arx tenha “ transform ado” mal, ou que o problema não se coloque mais no capi talismo na sua form a atual), impõe-se entretanto a exigência de compreender bem a significação lógica global da reversão38: quaisquer que sejam os méritos dessa gran de herança polêmica, uma parte das dificuldades encontradas vêm certamente de uma familiaridade insuficiente (que vai junto com preconceitos ingênuos e dogm á ticos) com a dialética, com a Lógica de Hegel em particular. A essas duas grandes contradições, seria preciso sem dúvida acrescentar as contradições, já mencionadas, que afetam o tempo histórico-estrutural. Aquelas que, inscritas no tempo lógico, se projetam na história estrutural da produção capitalis ta: “ a lei geral da acum ulação capitalista” , que desenha um tempo cíclico, mas já esboçando a direção desses ciclos, e a “ lei tendencial da queda da taxa de lucro” que deveria traçar o destino do sistema. Inseridas no quadro da dialética global do Capital, elas são o ponto de chegada de uma dialética m odal que vai do possível e do contingente, ao necessário e finalmente ao impossível39. Se para as contradições anteriores creio ter podido indicar em que sentido rigoroso pode-se falar em “ con tradição” — mostrei, creio, como essa determinação é legitimada no contexto da dualidade pressuposição/posição de que é inseparável, e com o esta dualidade a explicita e legitima — , poder-se-ia também falar de contradições, no que concerne às leis histórico-estruturais (sobretudo a segunda “ lei” )? Observar-se-á que, se no plano lógico encontramos movimentos que se exprimem como processos que vão
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na direção do Grund (fundamento, fundo), no plano estrutural-histórico, as crises periódicas, e o que deveria ser a crise final do sistema, se exprimem também como quedas no Grund (quedas reversíveis, e afinal como urna queda irreversível). A s sim, a passagem ã terceira seção do livro III (lei tendencial) é um movimento em direção ao Grund (e de novo uma negação do Grund), mas no quadro de um pro cesso histórico-estrutural virtual. Isso ultrapassa em certo sentido o quadro da efe tividade, que é a unidade da essência e da existência (aqui se vai ao fundamento). A passagem reencontra, entretanto, as noções de efetividade e de manifestação: de fato pode-se dizer que agora a efetuação e a m anifestação irrompem no plano his tórico-estrutural. A efetuação é aqui tem poralização estrutural. Esta abertura do lógico-econômico em direção ao tempo da história estrutural pode ser considerada também como uma outra forma de “ m anifestação” (ver acima). N o que se refere ao problem a da contradição, as leituras analíticas só viram aí a expressão de oposições reais entre os interesses dos agentes-capitalistas indivi duais por um lado, e os interesses da classe capitalista e do sistema no seu conjun to, de outro. Tentando obter uma mais-valia extraordinária através do aumento da produtividade da sua indústria, cada capitalista — embora aumentando a mais-valia relativa global (a mais-valia extra só dura até o momento em que todos os capita listas acedem aos novos meios de produção ou aos novos métodos de produção) — aumenta a composição orgânica do capital, o que, supostas certas condições, re duziria a taxa de lucro e eventualmente também a m assa de lucro. Com o a taxa e a m assa de lucro representam os fins a realizar no interior do sistema (para as leitu ras analíticas, apenas as finalidades subjetivas dos capitalistas), este estaria am ea çado a longo prazo na sua existência, cairia em crises sucessivas e, supondo ainda outras condições, acabaria por afundar. M arx não poria em questão a idéia de que o capitalista individual é movido pela procura de uma mais-valia extra; simplesmente, para ele, esse motivo não é primeiro. O motivo seria ele próprio produzido pelo sistema (isto é, pelo m odo de produção). Por outro lado, o esforço por obter a mais-valia relativa seria uma ne cessidade global do modo (quando se revelasse impossível estender os limites da maisvalia absoluta) e serve à sua expansão: necessidade “ suicidógena” porque a Sua sa tisfação seria inseparável do aumento da com posição orgânica, e portanto da re dução relativa do capital variável, fonte da mais-valia40. A contradição estaria, as sim, no próprio centro do m odo de produção capitalista. Entretanto, mesmo feitas essas considerações, poder-se-ia perguntar de novo: trata-se de uma verdadeira con tradição, ou se tem na realidade uma “ oposição real” entre forças e vetores interiores ao sistema e que vão em sentido contrário? Sem dúvida, como disse anteriormente, não se tem aí estritamente uma contradição no sentido lógico usual. E, entretanto, parece que essa oposição merece o nome de contradição. E que as determinações do sistema não são simplesmente forças, elas são ao mesmo tempo idealidades. Por exemplo, o que M arx chama de relação-capital (Kapitalverbàltnis, expressão que, como insisti em outro lugar, não se deve traduzir por “ relação capitalista” ), é tan to uma “ constelação” de forças como uma constelação de significações. Por isso, dado que todas essas significações não podem ser definidas senão por um movimento de posição e pressuposição, suas “ contradições” , as do capital, são ao mesmo tem
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po oposições reais e contradições lógico-dialéticas. Elas são contradições reais porque são oposições que concernem a idealidades objetivas. N a versão de certas p assa gens dos Grundrisse, que anunciam o que hoje se costum a chamar de fim da “ centralidade do trabalho” , a dimensão ideal do processo é ainda mais clara. A realiza ção dos fins do sistema tem ainda aqui como resultado a impossibilidade de reali zar esses fins. M as o bloqueio se apresenta de maneira ainda mais radical. N ão só a taxa e a massa de lucro devem cair tendencialmente, mas é o próprio “ fundamento” do sistema que é posto em xeque; e isto, como no caso anterior, não pela interven ção de um elemento exterior que se opõe a ele, mas pela própria efetivação reitera da de seu movimento “ intencional” . A realização e o desenvolvimento do modo de produção estão em contradição com os seus fundamentos. O seu desdobramento abala os seus fundam entos; ele não pode se desenvolver sem liquidar progressi vamente as suas próprias bases. Qualquer que seja a forma específica sob a qual ela é pensada (digamos, a dos Grundrisse ou a do C apital), essa contradição, que, constituída num tempo lógico-econômico, se projeta no espaço histórico, é de cer to m odo — mesmo se o seu caráter é diferente, mas vimos que a noção de Grund {zugrundegehen) m ostra o parentesco entre ela e as duas primeiras — a terceira contradição constitutiva do Capital e do seu objeto, contradição cujo lugar é a se ção terceira do livro III. Interversão do Hintergrund, reversão na efetividade, contradição “fundamen ta l” efetiva (não só “ real” , porque em princípio todas o são), eis os três grandes momentos que constituem o movimento do Capital.
2 . É t ic a E M
a r x is m o
(P r o l e g ó m e n o s )
Proponho-me agora extrair um certo número de implicações da análise anterior sobre a dialética do Capital. Somos levados a partir daí a uma problemática muito antiga, pois ela está presente já na época de M arx e de Engels. N a França, esse tipo de problema tomou antes a forma da querela do humanismo; nos países anglo-saxões, ela apareceu na figura de um debate sobre ética e m arxism o. N a Alemanha, a questão não parece ter sido realmente posta. Por quê? Creio que pela simples razão de que os filósofos de Frankfurt, Adorno em particular, a haviam compreendido muito bem. De forma mais ou menos indireta, a Dialética Negativa trata do problema. Ocupei-me do problem a do humanismo e do anti-humanismo — já em cone xão com O Capital — em textos que datam de meados dos anos 70. Voltei recen temente a isso, pelo menos sob a forma de citações desses textos antigos. N o fun do, a questão que deve ser desenvolvida aqui, e a sua solução no que se refere, di gam os, à posição m arxista clássica, não é muito diferente, em grandes linhas da que eu havia dado anteriormente41. Volto a isso entretanto (nomeando o problem a an tes à maneira anglo-saxã do que à maneira francesa), e isto por um certo número de razões. Primeiro porque se continua a tropeçar na antinomia do humanismo e do anti-humanismo (como também na do historicismo e do anti-historicismo). D e pois, porque tanto o questionamento teórico e prático do m arxism o por parte de quase todo mundo a partir dos anos 70, como o desenvolvimento de um pensamento
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moral e político relativamente original, com base na tradição pré-marxista, deram um novo interesse ao problema. Velho problema “ ingênuo” . Tentemos formulá-lo ainda uma vez, e inicialmente da maneira mais tradicional. A crítica marxiana da economia implica em valores?42 Ela está fundada em princípios m orais ou pelo menos numa certa idéia do homem? O u ela é de natureza “ científica” , passando por cima eventualmente da impossibiEdade mil vezes afirmada, e aparentemente inabalável, de uma passagem dos “juízos de realidade” aos “ juízos de valor” ? Ou, dizendo as coisas de outro m odo, qual é o fundamento da política de M arx, se é que ela tem um fundamento? O lugar por excelência — m as não o único — dessa discussão (pelo menos do rrim eiro momento dessa discussão) é ainda, certamente, a interversão das relações de apropriação da lei da produção de m ercadorias. Diga-se de passagem que o es quecimento desse assunto (a interversão) pesou muito no destino do debate. N ão discutirei aqui qual o motivo primeiro desse “ esquecimento” , se ético, lógico ou po lítico. Provavelmente tudo isto. Ora, ocorre que autores anglo-saxões, sem dúvida muito informados sobre os textos, e à sua maneira bons leitores dos textos, foram levados ao tema, empurrados de algum modo pelo vento da discussão em torno das relações entre ética e marxismo. Com efeito, se nos referirmos ao debate anglo-saxão em torno do m arxism o e dos valores, que se agita nos anos 70 e 80 (invadindo os anos 90), veremos duas coisas: por um lado, o que acabo de indicar, que eles fo ram levados progressivamente a se ocupar des textos que concernem mais direta mente ao problema, precisamente os do início da seção sétima do livro I do Capi tal. Em segundo lugar, o que é mais importante, que essas passagens e algumas outras os levaram a encontrar em M arx um pensamento antinómico, um pensamento atra vessado por duas teses, am bas afirm adas de maneira suficientemente bem estabe lecida pelos textos, e que entretanto se apresentariam à primeira vista pelo menos como incompatíveis. T al é pelo menos a figura que tom a o debate, na pena de N. Geras — que será aqui a minha principal referência — nos seus artigos dos anos 80 e, para o último ou os últimos, dos anos 90.43 Antes de citar esses textos, diga mos de imediato: cada vez que um comentador de um texto dialético aponta uma antinomia, pode-se dizer sem muito risco de errar que ele chegou a um resultado importante. N ão que em geral essa resposta seja boa (de resto, ela poderia ser, mas isto significaria que o texto-objeto não alcançou o seu alvo), mas porque, como o segredo da apresentação (ou da apresentação da apresentação) de um texto dialé tico reside em pôr em evidência as contradições que ele contém, a descoberta de antinomias, por ilusória e insuficiente que seja, representa a metade do caminho na direção de uma boa resposta. A im putação de antinomias é assim infinitamente superior às soluções ■— antes pseudo-soluções — vulgarmente “ dialéticas” , as que não vêem dificuldades ou as resolvem com pouco esforço através de “ sínteses” (termo que, diga-se de passagem , como designação do terceiro m omento, nada tem de hegeliano), ou de “ superações” (má tradução, sintomática, para a Aufhebung ou para a negação dialética). N o que concerne aos “ fundam entos” gerais da crítica, o pensamento inglês e Geras em particular vão até onde — como tentei m ostrar há uns vinte anos — ti nha chegado Castoriadis (tratando dq problem do estatuto que teria em M arx o
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valor antes do capitalismo) no seu artigo sobre M arx e Aristóteles44. Geras vai até onde vai Castoriadis, e é muito. N a realidade, esse tipo de leitura nos reconduz da dialética de extração hegeliana à dialética transcendental de Kant. E, se esse movi mento não é safisfatório (e em certa medida é mesmo regressivo), relativamente ao conjunto caótico das leituras pouco rigorosas que se pretendem “ dialéticas” , é cer tamente um progresso. Ele nos conduz a um ponto do qual a solução é visivel: ela é na realidade visível demais, e é por essa razão que não se a enxerga. Trata-se de um ponto a partir do qual o procedimento que poderia nos levar a “ sair do túnel” é conhecido, pelo menos na sua forma clássica e especulativa: trata-se do movimento que vai de Kant a Hegel, da dialética transcendental à dialética hegeliana. Geras escreve que a descrição feita por M arx da exploração capitalista tem “ duas faces” , as quais podem ser distinguidas no interior da relação salarial. “ A primeira e a mais benigna se vê na esfera da circulação, onde, segundo M arx, há uma troca de valores equivalentes, os salários de um lado, a força de trabalho de outro.” O que os trabalhadores recebem do capital “ é o pleno equivalente em valor do que eles venderam e portanto não há engano [na operação]. O segundo aspecto, que é menos bonito (uglier) [que o primeiro] se m ostra (...) na esfera da produção (...) os trabalhadores (...) deverão trabalhar para além do tempo que é necessário à reprodução da sua própria força de trabalho, para além do que é necessário para substituir o valor do salário que receberam. Eles farão (...) sobre-trabalho, e a maisvalia que eles criarão através dele será apropriada pelo capitalista enquanto lucro. A força de trabalho em operação cria um valor maior do que o valor da força de trabalho contém em si mesmo, e pelo qual ela é vendida. As duas faces — acres centa Geras — revelam cada uma por sua vez através das páginas do Capital os seus caracteres que se contrastam , [isto é] aspectos complementares da relação salarial: na esfera da circulação, uma troca igual, fruto de um contrato estabelecido livre mente; na esfera da produção, a coerção de trabalhar algum as horas sem recom pensa” 45. E Geras põe-se a desenvolver os dois termos da antinomia. Primeiro, “ M arx contra a justiça” , isto é, M arx contra a idéia de justiça. Ele cita a carta a Engels em que M arx de certo modo se desculpa por ter deixado passar algumas frases sobre o dever e o direito, no seu Adresse inaugural e preliminar aos estatutos da primeira Internacional. Cita também o texto da Crítica do program a de Gotha, lá onde se pode ler que a única distribuição “ ju sta” é a que correponde ao m odo de produção cada vez dominante. M as, em seguida, Geras apresenta: “ M arx pela jus tiça” . Lá se encontrarão os textos do Capital e dos Grundrisse nos quais se fala de “ rou bo” ou de “ extorsão” da mais-valia, entre outros, uma passagem do capítulo 22 § 1, da seção VII, na qual, no quadro da análise da interversão das relações de apropriação, M arx escreve que mesmo se a força de trabalho adicional fosse plena mente paga (zum vollen Freis), ter-se-ia a situação do conquistador que compra do conquistado com dinheiro que lhe roubou46. Observar-se-á que Geras fala aqui de “ produção” , lá onde seria preciso dizer “reprodução” . Com o vimos, há troca de equivalentes, enquanto a visada da produção é das voltas isoladas e dos agente iso lados. N um texto publicado oito anos depois, “ Bringing M arx to justice: an addendum and rejoindre” 47, em que ele desenvolve o seu argumento e polemiza com alguns críticos, Geras citará de maneira mais extensa48 o texto central do § 1 do capítulo
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22 da seção VII (a troca é aparência e forma, o conteúdo é a apropriação da riqueza de outrem49), e indicará as passagens correspondentes nos Grundrisse e nas Teorias... M as voltando ao seu primeiro artigo. Depois de ter m ostrado a presença de duas teses em M arx (urna tese e uma antítese) e depois de ter “ organizado” a biblio grafía anglo-saxã entre os partidários da tese e os partidários da antítese, Geras se pergunta se a relação salarial constituí uma troca de equivalentes. “A resposta é sim e não. Encarada como uma troca de mercadorias no mercado, ele o é. O capitalista paga o valor da força de trabalho; o trabalhador dá a sua mercadoria e recebe, em troca, um salário de mesmo valor. M as, encarada como relação de produção, a relação salarial não é uma troca de equivalentes. Porque aqui o trabalhador deve dar ainda alguma coisa: não no sentido de vender alguma coisa, visto que a venda )á foi concluida, mas no sentido de [dar] o esforço pessoal; e esse esforço pessoal é a substância de um valor que é m aior que o valor da m ercadoria” 50. Em seguida, ele dirá a mesma coisa introduzindo a idéia de acum ulação: “ A mesma coisa pode ser expressa em outros termos. A acum ulação de valor e de capital que ocorre re sulta do trabalho que é do capitalista? Sim e não. O trabalho que é a fonte perten ce ao capitalista, porque foi com prado e pago; mas não é o trabalho do seu (...) próprio corpo, nem o suor da sua (...) fronte. É, se se quiser, trabalho que o capita lista possui, mas não o trabalho do próprio capitalista” 51. M as qual a atitude de Geras diante daquilo que, pelo menos na aparência, é uma contradição? Sem dúvida, ele conhece a resposta de M arx, e, desde o primei ro artigo, cita-a com todas a letras: “ N as palavras [de M arx], ‘as leis da apropria ção ou da propriedade privada, leis baseadas na produção e na circulação das mer cadorias se transform am no seu oposto direto através da sua dialética interna e inexorável” 52. D o mesmo m odo — continua Geras — ele fala aqui de uma “ inver são dialética” 53. M as qual é a opinião de Geras sobre essa resposta? Aqui se en contra o que seria de esperar. Para Geras, a resposta de M arx, na medida em que ela indica uma contradição do sistema, seria — não pelo seu conteúdo mas pela sua forma — insustentável. Tratar-se-ia de um “ truque lógico” (logical trick) que re mete “ ao prazer do paradoxo intelectual e da surpresa” 54. “ É um jogo com os dois sentidos diferentes de equivalência” 55. Como ocorre freqüentemente, segundo o nosso autor, “ aqui a dialética não faz mais do que tornar a água turva. Uma coisa não pode ser o seu oposto. Se a relação é uma troca de equivalentes e [uma rela ção] justa, então, finalmente, isto é o que ela é, e tal coisa pode ser m antida, até o ponto da extrema obstinação, diante de M arx, quando ele fala claramente de um outro modo. M as se de fato ela [a relação] dá a volta na direção oposta, então ela não é, finalmente, uma troca de equivalentes nem [uma relação] justa, e portanto M arx não pode realmente querer dizer (mean) o que ele disse quando disse que ela é. A confusão entre os comentadores é, pois, fruto da própria confusão dele [Marx] (...)” . E Geras explicita: “ [E fruto] da sua tergiversação sobre qual das perspecti vas, equivalência ou não-equivalência, conta realmente a esse propósito; da dispo sição conseqüente e da habilidade em afirmar, com todas as aparências da sua pró pria voz, que a relação salarial não é injusta e, ao mesmo tempo, que ela é um rou b o ” . Haveria talvez outras causas da confusão, m as ela foi certamente facilitada “ pelo uso nesse contexto da linguagem da dialética” 56.
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Fiz questão de citar amplamente o texto de Geras, por causa da radicalidade da sua posição que, bem entendido, não é somente a posição desse autor (mas ela é mais interessante nos seus textos, exatamente porque ele não tem nada de um incondicional do pensamento analítico). N ão discutirei em detalhe o conteúdo da resposta que ele dá. Digam os que, depois de ter registrado “ os elementos de confu são e de inconsistência dos textos” e, dado esse fato, a im possibilidade de ficar no nível da “ simples exegese” , ele vai por um lado afirmar que a diferença é uma dife rença de ponto de vista57; m as, em segundo lugar, ele declara preferir de qualquer m odo, em grandes linhas58 — ela representaria um melhor ponto de vista — , a se gunda hipótese, a que supõe uma não-equivalência na troca, ou nos termos do autor “ aquela que afirm a que o capitalismo é injusto” . Aqui eu abandono, por um momento pelo menos, o texto de Geras, para per guntar o que está em jogo no problema. É claro que se trata de saber se a resposta de M arx é contraditória, e para além disso, de saber se uma resposta contraditória é “ aceitável” . M as o que está em jogo no plano meta-lógico é mais complicado. Sem dúvida, se supusermos verdadeira só a tese da não-equivalência (a antítese, se se quiser), haveria em M arx alguma coisa como um juízo de valor, ou um princípio de justiça (deixarei de lado, em geral, neste texto, toda especificação da posição m o ralizante, especificação que é certamente importante, m as que pode ser posta entre parêntese provisoriamente). Se, pelo contrário, é só a tese da equivalência que se supõe verdadeira, não se teria necessidade de juízo de valor, nem de princípio de justiça (emprego sempre a linguagem em que se travou essa discussão). E se supusermos que as duas teses são verdadeiras e que a presença contradi tória dos dois enunciados ou das duas leituras é uma solução aceitável? Veremos que haverá então uma reposta que,· a rigor, não é nem moralizante nem anti-moralizante (nem mesmo a-moralizante). Tom o como ponto dè partida a lógica, para passar em seguida à ética (ou à “ n ão ” ética) e à política. Vim os, num primeiro nível, qual é o sentido do argumento subjacente à idéia de interversão. M as é preciso voltar a isso por diferentes razões, inclusive a neces sidade de responder às objeções, e eventualmente extrair as implicações relativas à ética e à política. M arx supõe sempre — Geras não se engana a respeito — que o sistema acolhe tanto o primeiro como o segundo momento, isto é, há tanto troca de equivalentes como troca de não-equivalentes (ou a rigor ausência de troca). Isto é essencial. M ais ainda: lê-se no Capital que a interversão se faz através da reitera ção da primeira lei de apropriação, que a segunda lei vem entretanto ferir e contra dizer59. Essa contradição é rigorosa? Anteriormente, insisti no fato de que o centro do movimento de inversão (para as duas form as de reprodução, mesmo se o des dobramento do processo é diferente em cada caso) é a segunda volta do capital, porque é a partir daí que se tem um “ falso contrato livre” . M as o que quer dizer isso? Seria preciso dizer que, antes, a situação seria perfeitamente legítima do pon to de vista das leis da produção de m ercadorias, e que em seguida ela teria se tor nado ilegítima? Geras ataca nesse ponto. N ão haveria mudança no processo. A di ferença seria de ponto de vista, e esses dois pontos de vista estão lá, ou podem es tar lá, durante todo o processo: “ (...) tanto a equivalência ou reciprocidade como a falta delas estão lá do começo ao fim ” 60. N ão haveria um ponto de inversão.
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Analisemos ao mesmo tempo as duas questões, se existe contradição, e se há verdadeiramente um ponto no qual se passa de uma situação a outra (e o que isto poderia significar). Sem dúvida, poder-se-ia sempre dizer que há dois “ pontos de vista” , e nesse caso seria preciso distinguir, de um lado, o ponto de vista tanto da produção como da circulação (e não só o. da produção), e, de outro, o ponto de vista da acum ulação (a excluir do primeiro caso, e a não confundir com o ponto de vista da produção-circulação). M as essa apresentação é suficiente? Digam os ime diatamente que, de uma perspectiva “ fenom enológica” — hegeliana, m as a rigor, também husserliana — , não parece tratar-se de uma questão de “ ponto de vista” (a menos que se acrescente que o próprio sistema assume ao mesmo tempo esse duplo ponto de vista): os dois aspectos se apresentam como se estivessem “ em tensão” . N ão é por acaso (como se dizia antigamente) que os comentadores vêem nisso um paradoxo; m as não é um paradoxo de M arx. Ilusão da consciência? Tratar-se-ia de um pensamento obscuro que seria preciso decompor para ajustá-lo às exigências de um pensamento claro (e “ consistente” )? M as se o real não fosse ele próprio cla ro, a exigência de “ clareza” — não de qualquer clareza, mas de uma certa forma de clareza — trairia esse real, e comprometeria, contrariamente às aparências, as exigências de um a apreensão rigorosa. Palavreado dialético, dirão os outros. E entretanto... De um modo simplificado e não totalmente exato, dir-se-ia que a opo sição que está em jogo é no fundo a que existe entre as determinações jurídicas dominantes na sociedade burguesa (mas que “ já ” estão nas relações sócio-econômicas) e as determinações que se impõem no nível dos resultados dos processos sócio-econômicos. Porém, mais precisamente, a contradição opõe momentos ineren tes aos processos sócio-econômicos aos quais corresponde uma representação jurí dica (mas esta representação, pelo menos enquanto pressuposição, não é estranha a essas relações) aos momentos que não são eles próprios “ sancionados” por rela ções jurídicas — embora coexistam com eles — e estão mesmo “ de direito” em oposição a eles. D igam os, como outros já o disseram (Castoriadis), que, sob essa form a geral, essa oposição é única na história. N ão há exemplo de uma outra sociedade que funcione de um modo tão “ esquizofrênico” . Supõe-se que os agentes sejam ao mesmo tempos iguais e desiguais. Para que não haja contradição é preciso supor ou que há uma diferença de ponto de vista visando o objeto (um mesmo objeto); ou que os objetos visados sejam diferentes, na realidade mais do que diferentes, independen tes (se eles são diferentes dentro de uma mesma “ estrutura” , e no mesmo “ lugar” , a contradição está presente); ou que se trate de um objeto considerado em diferen tes momentos de um “ tem po” — lógico ou histórico — , m as nesse caso é preciso explicar como ocorre essa simples passagem no seu oposto; ou ainda, simplesmen te, que uma tese seja verdadeira e a outra falsa, isto é que a “ esquizofrenia” do sis tema é um mito. Geras opta pela primeira possibilidade (embora admita que, ate nuada, a última contenha alguma verdade). De minha parte, diria o seguinte. De um m odo geral, fenomenologicamente se se quiser, tudo se passa como tivéssemos diante de nós, na relação trabalhador/capitalista, um “ estrato” de liberdade e um de não-liberdade. N ão suponhamos a priori que esse dado imediato “ obscuro” seja necessariamente menos rigoroso do que o dado claro e consistente que a “ lógica”
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estabeleceria, corrigindo o dado primeiro. Supom os que a contradição está no ob jeto (e ela não é simplesmente da ordem do que separa o jurídico do econômico: de alguma forma, a liberdade já está no econômico, pelo menos num certo econômi co). M as supom os igualmente que há um momento de inversão, que os “valores de verdade” em jogo, de algum m odo, se modificam no tempo; e, entretanto, o fato de que há um ponto de inversão não implica em eliminar a contradição. Isto é, afirmo as duas coisas (além do fato da contradição): que a contradição existe em cada momento e que alguma coisa se modifica num certo momento do “ tem po” (que é um tempo lógico-econômico). Com o assim? Ainda uma vez o segredo da questão está na diferença entre pressuposição e posição. Já no primeiro momento existe contradição, mas de tal sorte que o elemento da igualdade está posto e o da desigual dade pressuposto. N o segundo momento é o contrário: a desigualdade está posta e a igualdade passa a ser pressuposta. A interversão é uma inversão entre pressuposição e posição. N o ponto nodal da interversão, o que era pressuposto é posto, e o que era posto se torna pressuposto61. Assim, haveria contradição interna antes e depois, e também contradição entre os m omentos, se se quiser, contradição entre as duas contradições. A contradição entre as contradições é a “mudança de sinal” : a determi nação pressuposta, muda (negada) até então, é posta; a determinação que estava posta, expressa até então, é negada em pressuposição. A interversão é a inversão desses “ sinais” , que ocorre quando se ultrapassa certo limiar quantitativo62. E se é assim, que conclusões poderíam os tirar no que se refere à interrogação sobre m ar xism o e ética? Temos de admitir portanto os dois extremos. E se as respostas alternativas eram (não cito): “ M arx não julga, ele diz o que é” , e “ M arx julga a partir de uma norma ou de um valor qualquer” , o nosso resultado significa que nem a primeira nem a segunda resposta é boa. Conforme uma form ulação que, em grandes linhas, é anti ga, há julgamento, m as não há julgamento externo. O discurso da crítica leva à posição das determinações (em parte pressupostas) do sistema, com o que o siste ma se julga a si próprio. Com o diz um comentador com o qual Geras polemiza no seu segundo artigo: “ (...) a única resposta satisfatória é que o capitalism o está em contradição com ele mesmo, [pois é] forçado a produzir maneiras que violam o prin cípio de justiça que simultaneamente ele é forçado a professar” 63. Vejam os qual o alcance dessa resposta e quais as suas implicações. Ela diz primeiro que as duas leis de apropriação estão de um modo ou de outro sempre presentes (isto é, estão de algum modo lá, tanto no primeiro como no segundo momento do processo). Só que, no primeiro momento, não se teve ainda a posição da segunda lei, e nesse sentido tanto a segunda contradição — ou a segunda forma da contradição — como a con tradição entre as contradições permanece virtual. Com o segundo momento, põese a segunda contradição — reduzindo a primeira a pressuposição64 — , e com ela a contradição entre as contradições, que representa propriamente a interversão. Tom em os o segundo momento. Que significa dizer que o primeiro momento se conserva como pressuposto no interior dele? Significa que o capitalism o, pelo menos na sua forma pura, é impossível sem venda livre de força de trabalho. Se eliminarmos toda liberdade no ato, mesmo a que está posta no primeiro momento, elimina-se uma dimensão essencial do capitalism o. E isto significa que é preciso
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conservar no interior do segundo momento65 este estrato “ negado” (e mesmo du plamente negado); caso contrário, não se teria mais capitalism o. M as em que sen tido se pode dizer que o sistema se auto-nega? N o sentido de que ele é impensável sem conservar no seu interior uma “ cam ad a” de liberdade: mas o seu movimento profundo fere esse “ estrato de liberdade” , e isto pelo simples fato de que as deter minações que ele contém se põem em movimento. H á duas leis que se contradizem, e uma é o resultado da outra. Já observei que a primeira lei é tanto sócio-económica como jurídica, ela exprime a relação jurídica que rege a troca da força de trabalho e representa ao mesmo tempo um princípio geral da legislação (e até certo ponto um principio moral aceito). A segunda não tem nem pode ter expressão jurídica própria66 (e em geral se pode dizer que ela contradiz a moral “ aceita” ). Pondo em evidência os dois pólos, põe-se o siste ma em contradição com o próprio sistema, como o observam Lukács e a tradição lukacsiana (sem que, a meu ver, cheguem a mostrá-la ou desenvolvê-la de maneira satisfatória). Se é esse o caso, a crítica m arxiana da economia política consegue substituir uma crítica externa por uma crítica interna, e, mais do que isso, consegue de certo m odo substituir um juízo de valor por uma relação que em si mesma remete ao campo dos juízos de realidade. Com efeito, mostrar uma “contradição” , se há contra dição, e parece que há, não constitui em si mesmo um juízo de valor mas um juízo de realidade. Bem entendido, um dos membros da contradição, digam os, a tese, é uma norma (norma jurídica e moral). M as o enunciado de uma norma, se m ostrar mos bem que ela está dada no cam po objetivo, e se o enunciado não faz mais do que dizer que ela existe nesse cam po, é um juízo de realidade e não um juízo de va lor67. E é nesse sentido que a crítica m arxiana da economia política pode ser dita científica, sendo não obstante crítica. A idéia de que não se pode nunca passar de um juízo de valor a um juízo de realidade e vice-versa é até certo ponto verdadeira (a idéia é verdadeira em limites muito mais estritos do que se supõe: os seus cultores não pensam no caso das normas objetivas contraditórias e que se auto-produzem reciprocamente); a idéia é enganadora na medida em que parece excluir toda possi bilidade de uma crítica científica. Da impossibilidade de uma continuidade absoluta e simples entre juízo de valor e juízo de realidade não decorre a desqualificação do projeto de uma crítica científica. H á uma passagem possível (que é a da posição de uma norma objetiva de um sistema junto com a posição de uma determinação essen cial ao mesmo sistema, que a contradiz), e este movimento é obliterado, quando se anuncia sem precauções a im possibilidade da passagem . Que de um juízo de valor não se tira um juízo de realidade ou vice-versa — tom ando, de certo m odo, um e outro, como enunciados simples e independentes — não se segue assim, contraria mente às aparências, que uma crítica científica seja impossível (desde que concebida nos termos indicados68). Objeções. Primeiro, a possibilidade da crítica não vem do fato de que há certa convergência entre o sistema de valores admitido no objeto e o sistema “ assum ido” pela crítica? Em que medida a possibilidade da crítica depende dessa convergência, e quais seriam as implicações de uma convergência e as implicações de uma nãoconvergência69? Poder-se-ia dizer que há certa convergência. (Geras destaca as con
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vergências entre os princípios da “ primeira fase do com unism o” e a primeira lei de apropriação. N ão se trata da mesma coisa, mas há de fato algum a convergência. Ver mais adiante.) E se não houvesse convergência? A crítica perderia certamente suas implicações práticas (do ponto de vista do projeto m arxiano), ela não poderia ser a base de uma prática “ socialista” ; mas aparentemente ela subsistiria apesar disso como “ crítica” , como “ m ostração” de uma contradição entre as normas que o siste ma aceita e certas leis do sistema. Dir-se-á que aquele que está contente com o sistema recusará essa mostração? Provavelmente sim, mas isto é um dado externo (uma pres suposição sociológica ou psicológica, estranha à construção ou à refutação da crítica). H á entretanto um problema. N o final do § 1 do capítulo 22, terminando a sua apresentação da interversão no que se refere à reprodução am pliada, M arx faz certas considerações, já citadas aqui, que não deixam de levantar certas questões difíceis de responder. Depois de ter descrito — com a ajuda de uma citação de Sismondi — a situação que se instaura com a primeira lei (de uma maneira muito interessante, ele acrescenta entre parênteses, ao texto de Sismondi, as determina ções contraditórias correspondentes), ele escreve: “ Sem dúvida as coisas se apre sentam de um m odo totalmente diverso se considerarmos a produção capitalista no fluxo ininterrupto da sua renovação, e se nós observarm os não mais o capitalis ta individual e o trabalhador individual, mas o conjunto da classe capitalista e, diante dela, a classe dos trabalhadores. M as seria assum ir um a medida (Mafítab, critério) totalmente estranha à produção de m ercadorias70. O que isso significa? M arx re conhece aí que introduziu um critério externo? É um pouco enveredando por essa brecha que Geras escreverá, em resposta a Ryan, que de qualquer m odo as leis da apropriação mercantil — entendamos, com as suas conseqüências, a troca de nãoequivalentes — são as “ únicas normas relevantes” 71. O que significa: M arx teria reconhecido ter “ acrescentado” alguma coisa. Sim, diria de minha parte, é neces sário reconhecer que ele acrescentou alguma coisa. M as que é que ele acrescentou: em que sentido o critério é um critério externo, ou, o que é externo no critério? O que ele acrescentou é a posição. Ele não acrescentou nenhuma determinação ao sistema. Em outras palavras, os dois membros da contradição estão lá, objetiva mente, são determinações objetivas, embora postas em diferentes momentos, mas o sistema não as põe ao mesmo tempo. Isto permitiria ao sistema escapar da con tradição? De forma alguma. A contradição está lá, em cada momento, como opo sição entre um pólo posto e um pressuposto, e a contradição entre os dois momen tos está lá como contradição pressuposta. Sem dúvida, esta última não é posta pelo sistema, e se apresenta para ele como uma sucessão de momentos contraditórios (eles próprios internamente contraditórios), de certo m odo como uma antinomia. A crítica acrescenta, sem dúvida, algum a coisa aos dados (não exatamente ao ob jeto), m as essa “coisa” não é propriamente “externa” . Ela só é externa como me dida {Mafítab, critério), mas “ m edida” remete aqui precisamente à posição simul tânea das duas leis pelo discurso crítico (se o próprio sistema põe apenas sucessiva mente as duas leis, ele as pressupõe simultaneamente, embora só um dos momen tos se inscreva como relação jurídica. N esse sentido o sistema é “ inconsciente” da sua constituição contraditória, e essa “ inconsciência” é de resto condição do seu funcionamento). Assim, o discurso crítico funciona, como sempre, como memória
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do sistema, ele traz à memoria o que o sistema esquece em cada um dos seus m o mentos. H á bem um ato pelo qual o discurso crítico ultrapassa o dado. M as esse ato não acrescenta determinações, ele acrescenta a posição de determinações que estão no objeto, e que este último esquece. Isso significa evidentemente que é preci so querer criticar o sistema para criticá-lo..., m as não significa que a crítica por ser crítica perde a sua cientificidade. Ela é mais científica do que a descrição a-crítica, que segue o objeto no seu esquecimento. Se é preciso que haja urna exigencia críti ca para que haja crítica, esta exigencia não prejulga em nada qual será o conteúdo mais preciso dessa crítica. Nesse sentido, a crítica m arxiana da economia política é a rigor independente dos temas particulares da política m arxista (por exemplo, a violencia, a ditadura do proletariado etc.). Eis por que ela é tão forte. Ela é, de cer to m odo, independente de uma norma externa72. N a realidade, ela m ostra a con tradição interna do m odo de produção capitalista, contradição que é única na his toria das form as sociais. E esse caráter de auto-crítica do objeto que tem a crítica m arxista é uma das razões pelas quais, justificadamente nesse ponto, M arx pensou poder dispensar a moral. E, entretanto, a crítica da economia política não é o único lugar em que o problem a se coloca, e já sugeri indiretamente que a questão poderia se pôr diferen temente, se se tratasse de justificar em detalhe um projeto político73. Creio ter m os trado por que, de certo m odo, a pretensão de M arx de “ dispensar a ética” poderia se justificar no plano da crítica da economia política. M as haveria ainda, digamos, dois outros planos, que seria preciso considerar, am bos os quais concernem à polí tica, o primeiro relativo, de certo m odo, ao ponto de partida ou ao conteúdo da política, o segundo relativo ao outro extremo, o dos fins da política (ou ã relação entre meios e fins). N ão se pode confundir os diferentes planos. As exigências são diversas conforme o plano considerado, e se a discussão foi bloqueada por falta de um dominio suficiente das figuras dialéticas, ela também o foi porque freqüente mente se considerou tudo em bloco. Se considerarmos o problema dos fins (ou da relação entre meios e fins), encontraremos uma segunda razão pela qual poderia haver de novo, legitimamente dentro de certos limites (indicarei quais), “ negação” da m oral (a negação seria, então, de uma variedade diferente da que vimos a pro pósito da crítica, m as paralela, complementar a ela: nos dois casos “ negação” dia lética). D a discussão do segundo problem a, o do “ ponto de partida” ou do conteú do mesmo da política, problem a que implicaria numa discussão muito longa que não poderei fazer nesse texto, deveria resultar pelo contrário, que não se pode dis pensar um projeto ético-político74. Retom o a dialética dos fins que desenvolvi em outros lugares75. O objetivo da política m arxista, como dizem os Grundrisse, é a “ com unidade” , o que signifi ca também que essa política visa o homem sujeito. Por que não dizer, então, que o homem sujeito é a finalidade (a causa ideal) ou o fundamento prático da política m arxista? Por que M arx se recusou sempre a dizer isso? A razão é dupla, m as um aspecto remete ao outro. É que supondo (para expor o argumento), como M arx supõe, que o caminho que poderia levar ao Homem passa pela violência76, e o ter reno da violência sendo o da negação da humanidade, temos diante de nós uma seqüência do tipo não-homem (violência, negação do humano), homem (não-vio-
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lência). Por que não afirmar as duas coisas? Em certa medida, ele o faz, m as na realidade o homem tende a desaparecer no seu discurso, ou antes ele só se dá no horizonte (para me exprimir, por enquanto, numa linguagem que é mais fenomenológica do que dialética). Isso não é acidental. M arx fez questão expressa de não tematizar o homem. E que a posição do homem bloqueia a sua realização. E por quê? O homem não é somente a finalidade do projeto revolucionário, ele está dado também num campo semântico criado pelo modo atualmente dominante. Se se disser “ o homem” , se enveredarmos por um discurso sobre o homem (mesmo se disser mos que ele só vem no final), essa significação cai num cam po semântico ideológi co, e pelo próprio fato de tematizá-la, o discurso serve à ideologia e à sociedade dominante, porque ele oblitera o momento do “ não-homem” , essencial à realiza ção do homem. M ais precisamente: na situação atual, a posição do homem só pode ter como resultado a interversão do homem em não-homem. Em outras palavras, nas condições atuais — exponho sempre a tese clássica -—, o humanismo é um antihum anism o77. Dever-se-ia então pôr o “ não-homem” , isto é, para evitar a inter versão do humanismo, aceitar, como o quiseram alguns (muitos!) o anti-humanismo? N ão, se o humanismo se interverte em anti-humanismo, e compromete por isso a realização dos fins, o anti-humanismo oblitera igualmente essa realização, e por um caminho mais curto. Ele simplesmente os expulsa, “ se libera” dos fins. Poderse-ia dizer que se no primeiro caso há uma interversão, no segundo tem-se uma tautologia. O humanismo se interverte em anti-humanismo, o anti-humanismo se imobiliza na tautologia “ o anti-humanismo é o anti-humanismo” 78. Qual a solu ção? A solução é a “ negação” (em sentido dialético) do humanismo, a “ supressão” em sentido hegeliano. “ N ega-se” o homem (para que ele não se interverta em nãohomem), deixando-o entretanto “ lá ” (porque ele representa a finalidade da ação revolucionária). Faz-se com que ele passe do registro do discurso explícito ao re gistro do discurso implícito. Observemos: “ nega-se” o homem para que ela não se negue a si próprio (a interversão não é uma simples anulação, mas ela faz com que valham os efeitos da segunda determinação, mesmo se como resultado da primei ra). A Aufhebung — trata-se evidentemente de uma Aufhebung —- permite bloque ar a interversão. A política m arxista não é assim nem um humanismo nem um antihumanismo, m as uma “ supressão” (em sentido dialético) do humanismo79. Aqui se poderia perguntar talvez qual a relação entre esse desenvolvimento e a análise da interversão no Capital, que fiz anteriormente. A idéia de homem se desdobra de certo modo nas idéias de liberdade e de igualdade. Se esse for o caso, poderíamos ligar os dois temas. A ideologia cuja interversão a “ supressão” do ho mem quer bloquear é precisamente aquela que está na base da circulação simples, das leis da apropriação das m ercadorias, e cuja interversão objetiva tentei apresen tar. N esse hipótese, que em grandes linhas é aceitável, vemos como se articulam a análise teórica e o projeto político m arxianos80. A análise teórica, que é no seu nú cleo a crítica da economia política, apresenta a interversão (e outras inversões) do m odo de produção capitalista. A política m arxista, que quer realizar a comunida de, da qual a ideologia burguesa dá uma imagem ainda que degradada, deve pelo contrário impedir a interversão, “ suprimir” (“ negar” ) o homem e as suas represen tações anexas (reprimi-las do discurso explícito), para que eles não comprometam
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a possibilidade da realização do projeto revolucionário. O conjunto do projeto m arxiano deve, pois, ser pensado81 como sendo atravessado por dois movimento, o da interversão (Umschlägen) e o da “ supressão” (Aufhebung). A interversão é o grande movimento da crítica da economia política. Ela desdobra, na suas determi nações contraditórias, as determinações ideológicas, que são entretanto momentos objetivos. A ideologia é o bloqueio em identidade das determinações que se intervertem. A crítica libera as determinações e os momentos que foram bloqueados. Ela mostra como eles se intervertem. A política marxiana, por sua vez, se constrói através de uma Aufhebung dos fins da política. A posição dos fins não poderia escapar à interversão, dada a sua convergência — mesmo se ilusória, e ela não é apenas ilu sória — com as determinações do primeiro mome7ito do sistema. É preciso, pois, “ negá-las” à maneira da dialética, expulsá-las da expressão, deixando-as “ lá” entre tanto. Tem os aqui a segunda razão pela qual M arx queria dispensar a moral, ou antes fazia questão de dispensá-la. A razão é profunda, e diferente — mesmo se existe uma relação entre elas — da legitimação da ausência de toda referência aos valores no plano da teoria (nesse último plano, a negação é dialética, m as não se trata, ri gorosamente, de uma Aufhebung) M as, entre esses dois extremos, a teoria e a situação dos fins (não falei da política de M arx, m as de um certo “ m om ento” dessa política, precisamente o da relação aos fins), há o que chamei de “ ponto de partida” da política, no fundo, o problema do conteúdo da política de M arx, em oposição à forma (mesmo se for ma dialética). N a realidade, só falei da forma, o que não é pouco importante — uma parte dos grandes problem as se põem nesse nível — , m as ela depende de um conteúdo (por exemplo: por que fazer da comunidade um objetivo? A violência revolucionária é realmente legítima, ou em que limites ela pode ser legitimada? etc.). Sem introduzir as questões relativas ao conteúdo, a dialética da forma, mesmo se ela for exposta de maneira rigorosa (e talvez principalmente nesse caso) corre o risco de ser mistificante. Ela depende de um conteúdo que é preciso legitimar (ou, se necessário, criticar). Aqui farei apenas algum as considerações finais sobre esse pro blema, que abre um vasto campo de questões (as quais felizmente tendem a ser cada vez mais discutidas e — espero — de maneira rigorosa). A questão do ponto de partida ou do conteúdo da política m arxiana poderia ser posto a partir do problema que está na base de tudo o que tentei dizer aqui: em que se fundamenta o projeto político m arxiana, e em geral todo projeto socialista de transform ação da sociedade? Esta questão ultrapassa os dois desenvolvimento anteriores. Um desses desenvolvimentos está, digam os, aquém do problema: a crí tica da economia política m ostra a contradição do m odo de produção capitalista, mas não funda nenhum projeto político preciso (e, a rigor, nem o projeto geral). O segundo se situa além do problema: ele supõe como fim a comunidade, e estuda as condições de possibilidade dialéticas (se me permitem o sincretismo da expressão) do discurso revolucionário. Entre as duas se situa um projeto político que deve ser justificado. Em certos textos, os piores e por isso talvez os mais conhecidos, M arx afirma a necessidade do socialismo, a idéia de que o socialismo é um resultado ne cessário do capitalism o. Encontrar-se-á esse tipo de resposta seja numa carta em que ele diz ter m ostrado a relação de necessidade que liga a luta de classes e a to-
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m ada do poder pelo proletariado — seja, em geral, em todos os textos em que ele afirm a uma espécie de continuidade histórica de fato (e mais ou menos inconscien te) entre o capitalism o e o socialismo (ver o prefácio à Contribuição à crítica da Econom ia política). (Ver também a Ideologia alemã: o socialismo não é um ideal, m as sim o “ movimento real” .)82 Em tais casos, M arx quer justificar o socialismo simplesmente através da ordem das causas eficientes. As “ causas ideais” (os m oti vos) são reduzidos às causas eficientes. Sem dúvida, poder-se-ia sempre se pergun tar se ele acredita que isto basta. M as é o que se encontra em certos textos: redu ção de toda causa ideal à causa eficiente. E como se M arx generalizasse a “nega ção” da fundação a planos em que esta “n egação” não se justifica mais. Encontra-se uma outra solução, m as não muito melhor, em M arx, quando por exemplo, ele afirm a que o capitalismo deixou de impulsionar o desenvolvimento das forças produtivas, e que o comunismo representará o livre desenvolvimento dessas forças. Ter-se-ia aqui, sem dúvida, alguma coisa que ultrapassa a simples redução das causas ideais (motivos) às causas eficientes, m as, se não se explicar melhor o que significa “ expansão das forças produtivas” para o caso do comunismo, as causas ideais que permaneceriam seriam a transposição de certas determinações (eficientes e ideais) dominantes no interior do capitalism o. Em resumo, ultrapassase com isso a simples idéia do caráter inevitável do comunismo, m as se o justifica através de um critério que, na falta de melhores explicações, é tirado do capitalis mo, e poderia ser posto em relação, mais do que M arx o pensa, com o próprio “ es pírito” do sistema. Por outro lado, M arx explica sem dúvida (mesmo se não suficien temente, e sem eliminar o impulso prometeano) que o desenvolvimento das forças produtivas no comunismo seria também desenvolvimento do indivíduo. M ais do que isso, retomando o texto de um anônimo genial, ele chegará por exemplo a de finir a liberdade pelo tempo de não-trabalho. M as isto nos conduz à discussão do conteúdo do socialismo, da sua relação não só com a sociedade burguesa em geral, mas no limite também com a democracia tal como ela existe enquanto forma nas sociedades burguesas; e também ao problema da passagem ou das passagens do capitalism o a uma outra form a social. Voltarei a esse núcleo de problemas. Para terminar, além de lembrar que esse trabalho deve em princípio ter uma continuação, direi que esse “ anti-clím ax” não se deve só a razões externas ou sub jetivas. A situação atual do m arxism o comporta esse paradoxo. O m arxism o deve ser repensado e “ reform ado” sob m uitos aspectos. M as ao mesmo tempo, ele re presenta uma formidável construção teórica ainda mal conhecida (apesar das apa rências em contrário) e que sob outros aspectos se revela, ainda, de uma grande atualidade. Tudo se passa como se estivéssemos além do m arxism o, estando ao mes mo tempo aquém dele. Começa-se a compreendê-lo no momento em que, em não poucas das suas vertentes, ele deve ser superado. Hegel não ficaria surpreso diante dessa situação.
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N o tas 1 Ela não só não exclui uma análise do que separa M a rx de Hegel, m as conduz a isso neces sariamente. Entretanto, nos limites deste texto, não poderei explicitar essa questão, mesmo se fa zendo uma análise (ou uma síntese) da apresentação do Capital em paralelo com a Lógica de Hegel, algum a coisa da diferença apareça. 2 A leitura dialética é em certo sentido “ estrutural” . M a rx emprega o termo Struktur, mas com o observa Adorno — e isto vale como um sintoma — ele não o faz muito freqüentemente. A leitura dialética é bem diferente da leitura estruturalista que viso nessa passagem — m as não sem pre nesse texto — ao falar de “ estrutural” . E evidente, por outro lado — em bora infelizmente as confusões a esse respeito não tenham desaparecido de todo — , que as leituras dialéticas não são tam pouco historicistas ou humanistas. 3 O presente texto resume — e em parte desenvolve — os resultados que se encontram em M L P I e II, e os que pude apresentar em Dialética marxista, dialética hegeliana: a produção capitalis ta como circulação simples, São Paulo, Brasiliense e Paz e Terra, 1997 (PCCS), op. cit., e em Le Ca pital et la Logique de Hegel, dialectique marxienne, dialectique hegélienne, Paris, H arm attan, 1997 (abreviarei por C LH ). Para não carregar demais o texto, reduzi na m edida do possível as citações dos textos de M arx, as citações dos com entadores e as referências aos meus próprios trabalhos. 4 Devemos enfrentar aqui um certo número de dificuldades. D igam os que no interior da dia lética não pode haver verdadeira apresentação separada do conteúdo. O s prefácios, as introdu ções e os “ esquem as” são a rigor impossíveis. E entretanto... N a impossibilidade de poder apre sentar de m aneira suficientemente desenvolvida o conteúdo, é preciso pelo menos “ dialetizar” o m ais possível as determinações, evitando em geral esquemas clasificatórios ou estruturais. E o que tentarei fazer. M as quando não se leva a apresentação da apresentação, se posso dizer assim , até os seus limites, ficam sempre algum as descontinuidades “ ilegítim as” . 5 Tem os aqui duas noções (ou duas ordens de noções) que estão entre as m ais importantes — se não são as mais importantes ■— enquanto determinações lógicas da dialética do Capital: por um lado, a negação (que é a negação hegeliana, negação e conservação, assim como a negação da negação que é a re-posição do “ negado” ); por outro lado, as noções (que acabo de empregar) de pressuposição (Voraussetzung) e de posição (Setzung). A primeira — que, diga-se de passagem não se confunde sem mais com a Aufhebung, mesmo se o seu “ conteúdo” é o mesmo — é muito mais rigorosa do que supõe uma crítica superficial. Quanto à distinção que constitui as últimas, seria preciso insistir sobre o fato de que se trata da distinção na sua acepção dialética, tal como a en contram os em Hegel e M arx, o que significa que o pressuposto é afetado por uma negação (e por isso “ reduzido” para o interior da região do “ não-expresso” ). Assim pensada, a dualidade não se confunde com o uso que dela faz o “ entendimento” (o pensamento simplesmente “ positivo” ou vulgar). Em dialética, a pressuposição não é simplesmente o fundamento, mas o fundamento a “ ne gar” , que por isso mesmo não é um verdadeiro fundamento (ou “ funciona” diferentemente do fun damento no sentido usual). As noções essenciais de pressuposição e posição foram em am pla me dida esquecidas pelos comentadores. 6 Refiro-me sempre ao original alemão. 7 N ão se trata a rigor de duas dialéticas, mas de dois movimento de uma única dialética. 8 As justaposições não se confundem com a retom ada “ negada” de movimento anteriores, contida em cada movimento da dialética hegeliana, e que em geral a caracteriza. 9 Falei pouco até aqui da lógica do ser. O seu lugar no Capital é mais ou menos o seguinte. Por um lado, ela corresponde em certo sentido à esfera do valor de uso, em oposição à essência e ao Conceito, que correspondem m ais plenamente ao universo das form as. Por outro lado, a lógi ca do ser é a do devir. T odos os textos que têm uma relação com a morte do sistema — o nasci mento dele se insere num outro registro — têm algum a coisa a ver com a lógica do ser. Ver a res peito CLH .
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10 Ver W 24, K II, p. 102. 11 A. Berthoud insistira sobre a im portancia da dualidade form a/ m atéria no Capital e so bre a necessidade da sua tem atizaçâo. Ver Travail productif et productivité du travail chez Marx, Paris, M aspero, 1974. 12 Assinalei há muitos anos que este é o sentido do capítulo dois. Com o aconteceu com muitas das minhas observações sobre o Capital, a coisa reapareceu “ alhures” sem referência à origem. A regra geral desse tipo de “ reprise” é, aliás, a banalização da análise e a sua inserção num contexto “ artificial” . Sobre esse ponto, ver PCCS, pp. 75 ss. 13 Tomei somente os momentos mais característicos do ponto de vista considerado nesse parágrafo. 14 Ver, a respeito, S. Tom bazos, Le temps dans l’analyse économique, les catégories du temps dans le C apital, Paris, Société des Saisons, 1994. 15 Os títulos dos parágrafos 5, 6 e 7 começam pela palavra Kam pf (luta).
16 Retom o aqui um problem a de que já tratei em várias ocasiões. Ver M L P I e CLH . 17 Ver W 13, Zur Kritik..., p. 44. 18 Apresento a solução, com o o fiz em outro lugar (ver PCCS) na form a da dialética trans cendental, para pôr em evidência as determinações que contêm a sua solução, o que me parece válido. N ão é por causa dessa form a que a solução deixa de ser “ contraditória” no sentido da dia lética; pelo contrário, a form a põe isso em destaque, e não leva a nenhuma lim itação do domínio da razão. N esse sentido, ela não é kantiana, m as, em grandes linhas, hegeliana. Evidentemente é impossível no quadro de um texto como este tentar dar uma justificação m ais desenvolvida do em prego do termo “ contradição” . M ais adiante, darei entretanto algum as indicações. 19 Dei pela prim eira vez essa resposta, no que se refere a publicações, no meu artigo “ Sur la form a de la valeur et le fétichisme” , publicado em Critiques de l’Economie Politique, n° 16, janeiro-m arço de 1982. Eu a havia exposto anteriormente em duas conferência sobre “ A dialética do Capital ” , feitas no quadro do “ Centre d’études des modes de l’industrialization” da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em 1979 e 1981. 20 Esta é a questão pertinente que levantou Jacques Texier num texto publicado em Discur
so n° 18 (São Paulo, 1990): “A dialética, o homem e o valor segundo R. Fau sto” . 21 Ver G, pp. 992-3, Contribution à une critique de l’économie politique, trad. francesa de M . H usson e G. Badia, Paris, Éditions Sociales (abreviarei por Contr). A passagem se encontra na versão primitiva da Contribuição... 22 O uso desses termos nos textos de M arx não é, entretanto, unívoco. 23 N a sua tradução francesa da grande Lógica, de resto excelente, Labarrière e Jarcyk tra duzem Verhältnis por “ relation” e Beziehung por “ rappo rt” . Parece preferível traduzir Verhältnis por “ rappo rt” e Beziehung por “ relation” com o o faz B. Bourgeois na sua tradução da pequena Lógica. — Bourgeois traduz Erscheinung por “ aparition” . Com o o assinalam todos os tradutores para o francés, estam os diante da distinção entre “ paraître” e “ apparaître” . 24 Apresentei pela prim eira vez o movimento de interversão em “ Dialética m arxista, antropologism o, anti-antropologism o” (que é de 1974/75), publicado pela revista Discurso, n° 8, São Paulo, 1978, texto que com o título “ D ialética m arxista, humanismo, anti-hum anism o” , foi reto m ado em M LP I (ensaio 1). Ver também CLH . 25 W 23, K I, p. 609. 26 Ponho “ fundam entos” entre aspas, porque, precisamente trata-se de fundam entos “ ne g a d o s” . Se anteriormente empreguei o termo sem asp as, foi porque a “ negação” ainda não havia ocorrido. 27 W 23, K l , p. 609.
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28 “ A propriedade aparece agora do lado do capitalista, com o o direito de se apropriar do trabalho não pago de outrem (fremde), do lado do trabalhador, com o a im possibilidade de se apropriar do seu próprio produto” (W 23, K I, p. 610 [F]). 29 O “ esquecim ento” da temática da interversão acom panhou uma falsa leitura da relação entre o velho M arx e a antropologia da sua juventude. Com o mostrei em M LP I (ver também o ensaio I deste volume), em M arx a antropologia é sem dúvida “ n egada” , mas não simplesmente negada. 30 Ver W 23, K III; p. 822. O exemplo quer m ostrar a confusão de “ regiões” que opera a consciência objetivamente fetichizada dos portadores das relações capitalistas. Com o assinalei em M LP II, essa confusão de gêneros eidéticos pode ser com parada com os exemplos que dá Husserl, de “ m etabasis” categorial: “ (...) [mesmo] a onipotência divina não pode fazer com que se possa pintar ou tocar ao violino, funções elípticas” (Husserl, Ideen zu einer reinen Phänomenologie, und phänomenologische Philosophie, Tübingen, M a x Niemeyer Verlag, 1980, p. 102, Idées diretrices pour une phénomenolgie, trad. francesa de Paul Ricoeur, Paris, Gallim ard, 1950, p. 177). 31 A tradução usual por “ realidade” é má, porque há também Realität, que se situa num outro nível, o que é fonte de confusão. Entretanto essa má tradução tem o mérito de m ostrar que a Wirklichkeit “ cobre” a realidade do sistema em sentido corrente (sem se reduzir a ela). 32 N a Lógica de Hegel, a noção de existência (Existenz) abre o momento do fenômeno. Ela é a essência que voltou ao ser. N esse sentido, representa o lado fenomenal da relação essencial. 33 O termo, em form a substantiva ou adjetiva, não é muito freqüente no Capital (ver, por exemplo, W 23, K III, p. 55, e id. p. 838). M a rx emprega tam bém outros termos, como “ transfor m ação” ou “ exteriorização” . Privilegio entretanto o termo Verkehrung em parte por ele ter sido utilizado por Hegel, em contexto análogo e fundamental, “ o mundo invertido” , die verkeherte Welt, e também pelo seu caráter m ais geral. Sobre a exteriorização (verausserlichung), ver W 25, K III, e minhas observações em C LH , pp. 53 e 88). 34 W 25, K III, p. 33. 35 Ver G., p. 449.
36 “ Supressão” (entre aspas) é a tradução que prefiro para a Aufhebung (expliquei em ou tro lugar por que essa form a de expressão me parece a menos ruim para traduzir o conceito). Até aqui falei antes de “ negação” do que de “ supressão” . Conviria estudar a relação entre as duas de terminações, que não são plenamente idênticas. As duas contêm um lado negativo e um lado p o sitivo. M as no interior dessa dualidade (isto é, sem perder nenhum dos dois lados) “ negação” aparece como exprim indo a posição do lado negativo da Aufhebung, com a pressuposição do lado positi vo. “Aufhebung” remete à posição “ equilibrada” de um e outro pólo. 37W 2 5 , K l , p. 47. 38 “ L ógico” não quer dizer aqui subjetivo nem “ epistem ológico” , mas objetivo e relativo às estruturas “ gerais” do objeto. 39 Remeto a esse ponto a C LH , pp. 65 ss. 40 N ão estou supondo que esta lei seja válida — ela parece ser um dos pontos m ais discutí veis da crítica m arxiana da econom ia política. Tento somente descrever o seu significado. 41 Explico-me: a solução clássica é insuficiente, m as é preciso passar por ela. N o s limites deste texto, não opero essa trangressão senão de form a marginal. Diferentemente do que faço no apêndice “ Sur la politique de M a rx ” do meu livro de 1997 (CLH ) [e na Introdução Geral deste volume]. 42 [N ota de novembro de 2001. N a Introdução Geral, ao abordar a posição m arxista a res peito da ética, eu não analisei em detalhe o problem a que será discutido nessa segunda parte do ensaio IV. Tratei da relação meios e fins, que está em conexão direta com a questão do hum anis m o e do anti-humanismo. Voltarei a isso no final deste texto. M as, antes de tocar nesse último
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ponto, me fixarei — a discussão a que me refiro se fixa — sobre um problem a que fica aquém disto: o da articulação da crítica com a política, ou dos fundamentos da crítica. Este será o núcleo do desenvolvimento seguinte. N esse sentido, o que vem em seguida completa — porque preenche um elo que faltava — a discussão da Introdução Geral. V olto a me explicar sobre tudo isso em notas no movimento final desta segunda parte.] 43 Por diversas razões, entre as quais a dificuldade de obter o conjunto dos artigos sobre o assunto, publicados em inglês, servir-me-ei quase exclusivamente dos artigos de Geras, o que o leitor, principalmente o leitor anglo-saxão, achará talvez criticável. M as há razões p ara privilegiar os textos de Geras. D igam os de imediato que a situação dele em relação ao cham ado pensamento analítico é muito particular. A rigor, ele não faz parte do “ bloco” dos analíticos, embora não seja propriamente um dos seus críticos, como ele próprio o explica. 44 “Valeur, égalité et justice politique: de M arx à Aristote et d ’Aristote à n ous” , Textures n° 12-13, 7o ano, nova série, 1975, retom ado em Les Carrefours du Labyrinthe, Paris, Seuil, 1978. M inha crítica se encontra no texto “ A bstração real e contradição: sobre o trabalho abstrato e o valor” , publicado em Critiques de 1’économie politique, Paris, M aspero, n° 2 e 3 (janeiro-março e abril-junho de 1978) e retom ada em M LP I. — Para evitar mal entendidos, deixo claro que se tra tava e se trata de criticar um aspecto ou um tema do pensamento de Castoriadis. As críticas que fiz já em parte na época em que foram escritas e hoje, a fortiori, não implicam questionar as gran des linhas do pensamento político de Castoriadis mesmo se elas indicam certos pontos frágeis, a desenvolver ou corrigir. Castoriadis critica com fundamento o m arxism o depois de M arx, e cer tos pontos cegos do próprio M arx. Entretanto ele manifesta uma tendência a negar toda “ legali d ade” (toda coerção objetiva de leis) no interior do capitalism o, o que leva, a meu ver, a uma fragilização da sua perspectiva teórica. Foi seguindo essa linha de pensamento que ele foi condu zido a superestimar o alcance e a eficácia das medidas de regulação do sistema, chegando a negar a possibilidade de futuras crises de caráter econômico. Ver suas honestas obsevações auto-críticas em Les carrefours du labyrinthe IV, L a montée de Vinsignifiance, Paris, Seuil, 1996, p. 88. 45 N . Geras, “ The controversy about M arx and justice” (1984), publicada em New Left Review, m arço-abril de 1985, republicado em Literature o f Revolution, essays on marxism, Lon dres, V erso, pp. 5-6. 46 W 23, K I, p. 628. 47 New Left Review, n° 195, setembro/ outrubro de 1992. 48 Ver ibidem, p. 49. 49 Ver W 23, K I, p. 609.
50 N . Geras, “ The controversy...” in Literature o f Revolution..., op. cit., p. 25. 51 Ibidem. 52 Tento verter a tradução de Geras ao texto de W 23, K I, p. 609. 53 N . Geras, “ The Controversy...” , in Literature o f Revolution..., op. cit., p. 27. N esse se gundo artigo, Geras inventa mesmo um a pequena história p ara ilustrar a interversão. 54 Ibidem, p. 27. 55 Ibidem, grifado por RF.
56 Ibidem, pp. 27-8. O parágrafo se cham a “ dialética equívoca” . 57 “ (...) não há nada de m isterioso nisso (...) Considerada de um ponto de vista, a relação salarial é um a troca de equivalentes e a acum ulação do capital se deve somente ao uso daquilo que pertence ao capitalista. Considerada de um outro ponto de vista, a relação salarial não é uma troca e acum ulação de capital se deve ao trabalho do trabalhador. O s dois pontos de vista são sim plesmente o seguinte: dois ângulos de visão diferentes de um m esmo fenômeno. Eles dependem de dois sentidos diferentes daquilo que passa por ser uma troca de equivalentes. Eles não são de m a neira algum a contraditórios, eles são partes mutualmente consistentes da doutrina segundo a qual
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o trabalho é a fonte e a substância do valor: que a força de trabalho, vendida por aquilo que ela vale enquanto m ercadoria, na sua operação cria algum a coisa que vale m ais” , ibidem, pp. 25-6. 58 Ver ibidem, p. 28.
59 “ Entretanto, se o m odo do apropriação capitalista (kapitalistische Aneinungssweise) p a rece ferir as leis originárias (ursprüngliche Gesetzen) da produção capitalista, ele não resulta de form a algum a da violação dessas leis m as, pelo contrário, da sua aplicação (...) A transform ação originária (ursprüngliche) do dinheiro em capital se efetua (...) em acordo o m ais exato com as leis econômicas da produção de mercadorias e com o direito de propriedade que deriva destas. E, apesar disto, ela tem com o resultado: 1) que o produto pertence ao capitalista e não ao trabalha dor; 2) que o valor desse produto, além do valor do capital avançado, compreende uma m ais-va lia que custou trabalho ao trabalhador e nada ao capitalista, e que se torna entretanto proprieda de legítima do capitalista; 3) que o trabalhador conservou sua força de trabalho e que ele pode revendê-la se encontrar um com prador. A reprodução simples não é mais do que a repetição perió dica dessa prim eira operação (...) entretanto, vimos que a reprodução simples bastava para ope rar a interversão, desde que não se considere o movimento como um processo isolad o” (W 23, K I, pp. 610-1, C , pp. 654-6). “ A lei não é pois violada, pelo contrário, ela tem simplesmente a oca sião de se aplicar continuamente” (W 23, K I, p. 611, C, p. 666). 60 Geras, “ The controversy...” , in Literature o f Revolution..., p. 28. 61 Os defensores da lógica do entendimento protestarão ainda talvez que se trata de um “passe de m ágica” . M as o raciocínio supõe simplesmente que se introduza o operador pressuposição/ posição, sem no fundo m odificar as “ leis lógicas” , senão na m edida em que exige este operador. E, bem pesadas as coisas, pode-se interpretar assim a lógica de Hegel (que, de qualquer modo, não pretende, de form a algum a, com o se pensa às vezes, substituir as exigências lógicas rigorosas por um discurso “ rom ântico” qualquer). A possibilidade de tais tipos de operador, na sua form a ge ral, não é desconhecida dos lógicos, e no fundo, bem compreendida, ela não deveria — não deve rá — constituir um escândalo. Sem dúvida, as condições, alcance e possibilidade de um a lógica “ m odificada” com o esta, devem ser discutidas e estão em discussão. M as, em primeiro lugar, é preciso entender o que está em jogo. 62 J á tentei explicar anteriormente por que não há simplesmente “ oposição real” , m as con tradição. D igam os que as determinações remetem tanto a um universo de forças como a um uni verso de sentido. E ssa contradição não é, sem dúvida, a dos lógicos, e não poderia sê-lo porque eles só conhecem um espaço lógico homogêneo do qual está ausente a distinção pressuposição/ posição. M as, uma vez introduzido esse operador, tem-se relações que tanto lógica como fenomenologicamente merecem o nome de “ contraditórias” . Lendo um texto de N ew ton da Costa, introdutor das cham adas “lógicas para-consistentes” (lógicas que não se confundem evidentemente com a de Hegel, mas que têm algum a analogia com ela no interior do registro formal), fiquei im pressionado com o fato de que, polem izando com Quine, para o qual os lógicos dissidentes ten tam “ negar a doutrina” m as na realidade “ não faz[em] mais do que m udar de assunto” , Newton da C osta responda: “ De fato, m udam os de assunto, m as o assunto ainda é lógica” (ver N ewton da Costa, Logiques classiques et non classiques, essais sur les fondements de la logique, Paris, M asson, pp. 9 e 116). Com o o núcleo do “ assun to” de que trata a lógica para-consistente é a contradição, acho que, apesar das diferenças, há aí certa convergência com a atitude a assum ir em relação a certos críticos de todo projeto de uma lógica dialética. Ao assumir tal tipo de projeto, m udam os, sem dúvida, de “ assun to” , isto é, de registro ·— m as continuam os a falar de lógica e de contradição. 3 Alan Ryan, “Justice, Exploitation and the End of M orality” , in J. D. Evans, Moral philosophy and contemporary problems, Cam bridge University Press, 1987, pp. 128-9. O texto é cita do por Geras, em “ Bringing M arx to justice...” , artigo citado, p. 46. Veremos o teor da resposta de Geras. O artigo de Ryan tem mérito, e a form ulação que citei é perfeitamente correta. M as ele não apresenta de form a rigorosa o m ecanismo da interversão (a rigor, não o apresenta, sim ples mente) e tende mesmo a dissolvê-la, ao dispersar os dois pólos contraditórios em “ lugares” distin
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tos. Assim, ele dirá, por exem plo, que a lei dos iguais contra iguais não é violada por ocasião da com pra, mas o é no momento em que a m ercadoria força de trabalho é utilizada (ver A. Ryan, op. cit, p. 128). De fato, no momento da com pra não há violação da lei, mas no momento da utiliza ção, não há apenas violação, m as sim, ao mesmo tem po, violação e não-violação. 64 Isso equivale a dizer que os “ sinais” se alternaram. 65 Em relação ao conjunto do livro I, trata-se do terceiro momento. M as aqui me limito a opor os dois últimos. O terceiro momento torna-se assim segundo. 66 N o interior do direito social, não se está longe do seu reconhecimento indireto, mas do seu reconhecimento como uma injustiça ou pelo menos como fonte possível de injustiça, que pre cisamente o direito social quer corrigir. Ver a respeito, M LP II, pp. 316 e ss. N o contexto, é pre ciso considerar a legislação burguesa na sua form a clássica.
67 Utilizo propositadam ente uma terminologia que é mais do entendimento do que da ra zão dialética. 68 Isso evidentemente é apenas a justificação geral da possibilidade de tal projeto crítico.
69 Toca-se nesse problem a, nos escritos de Geras e dos outros participantes da discussão. M as seguirei aqui o meu próprio caminho, retomando o texto de Geras, a propósito de certos pontos. 70 W 23, K I, p. 612, C., p. 657. [Referi-me ao problem a neste volume, no ensaio anterior.] 71 “ Bringing M a rx ...” , op. cit., p. 55. 72 [N ota de novembro de 2001. H á um elemento interessante a considerar aqui. A crítica de M arx efetua sem dúvida — contra a posição positivista corrente — uma passagem sui-generis e perfeitamente rigorosa do universo da realidade ao cham ado universo dos valores. M as ela o faz partindo dos valores objetivos do sistema que são os valores do liberalismo, e que em grandes li nhas, desde que não tenham desenvolvimento infinito, são também os valores democráticos. N es se sentido, exagerando um pouco, eu diria que se tem a impressão de que a vitória da crítica marxiana é um pouco a morte do m arxismo... Isto é, a demonstração do rigor extraordinário do projeto crítico de M arx, como de resto indico em seguida, não nos conduz a aceitar a política m arxista. Certo, não nos conduz tam bém necessariamente a rejeitá-la e a optar pela democracia (socialista), por que “ optar pela dem ocracia” como qualquer “ o p ção ” política é uma... opção. M as os valores li berais “ fin itos” , em grandes linhas, os valores dem ocráticos, são aqueles que tornam possível imediatamente a crítica científica — é disso que se trata — do sistema. Eles são a condição de possibilidade dessa crítica. E nesse sentido eles estão mais próxim os desta do que a política de M arx. Com o indicarei em seguida, esta última, no seu conteúdo mais específico não é imanente à crítica; e, se quisermos assumir essa política, o que não creio — depois de tudo — que seja uma boa idéia, ela tem de ser acrescentada à crítica — E ssas considerações devem ser inseridas ña discussão críti ca da Introdução Geral. Espero poder voltar a tudo isso de m aneira mais sistemática.] 73 Geras é atento a essa multiplicidade de contextos, e a utiliza contra Ryan, ver “ Bringing M a rx ...” , op. cit., pp. 46-7. 74 [N ota de novembro de 2001. N o que se refere à relação desse texto com os problem as levantados na Introdução Geral, seria preciso dizer ainda o seguinte. Os dois pontos que faltaria discutir, e que discutirei só parcialmente, se referem ainda à política, ou à ética da política. N ão à ética em geral. O primeiro está em continuidade com o problem a que acaba de ser visto e é tam bém passível de uma solução dialética rigorosa (trata-se precisamente da dialética dos meios e dos fins que remete com pouca diferença à dialética do humanismo e do anti-huamanismo que reto marei aqui). O segundo remete ao conteúdo de uma política (de certo m odo, as duas questões anteriores são apenas de forma embora de form a em sentido dialético) e os princípios m ais espe cíficos ou particularizados de uma política. Se em si mesmo ele também não é, a rigor, da ordem da “ ética individual” ou da “ ética geral” (ele é antes de “ ética coletiva” ), seu desenvolvimento en contraria, de um m odo ou de outro, as questões de ética individual de que tratei na Introdução
geral.]
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75 O parágrafo que se segue, a propósito de meios e fins, expõe a dialética do humanismo e do anti-humanismo, que apresentei em M LP I. A inclusão detalhada desse desenvolvimento se ex plica — mesmo se M LP I foi também publicado na Europa — sobretudo pelo fato de que me di rijo ao público francês. O argumento tem relação direita com o nosso problem a, m as poderia ser resumido. Com o entretanto até aqui não havia propriamente insistido sobre essa articulação e como, por outro lado, apresento o argumento de um m odo um pouco diferente, pareceu-me que não se ria inútil conservar esta passagem . Ela pode ser útil também para com parar a dialética do hum a nismo e do anti-humanismo com a dialética do historicismo e do anti-historicismo, que vimos no ensaio III. O leitor que já conhece o argumento pode entretanto omitir esse desenvolvimento, sem prejuízo da compreensão. 76 D uas observações sobre esse desenvolvimento: 1) descrevo simplesmente a posição clás sica, sem me situar aqui em relação a ela; 2) criticando ou não a aceitação da “ violência” por M arx, é preciso não esquecer que se trata em M arx de uma aceitação de ordem geral, como — creio — aparece na discussão inglesa, e não significa que ele era favorável ao terror ou outras form as espe cíficas de violência revolucionária (ou pseudo-revolucionária). [Cf. a Introdução Geral] 77 Este é o primeiro momento da solução — clássica — para a querela infinita (e jam ais con cluída na França), entre o humanismo e o anti-humanismo. 78 É o segundo momento da solução. 79 Terceiro e último momento da solução. 80 [Como projeto geral de luta contra o capitalism o, esta sociedade contraditória.] 81 Bem entendido, a “ ideologia” da circulação simples não é a da comunidade, e até certo ponto é mesmo o contrário dela. Trata-se da ideologia do homem “ egoísta” . E, entretanto, num caso como no outro, haveria igualdade, e de certo modo liberdade (mesmo do interior do ponto de vista m arxista, isso seria reconhecido, desde que não se considerasse essa liberdade como a mais alta). Por isso mesmo, há uma certa convergência (parcial) entre a circulação simples, e a que se teria no que M arx chama de “ primeiro estágio do com unism o” . O s autores anglo-saxões falarão de uma “ segunda escolha” . [Cf. as notas 150 e 151, que vão mais longe do que esta nota, que expõe a posição de M arx; a continuação do texto converge com elas.]
82 [Ver a crítica dessa form ulação, crítica que pode ser feita mesmo no interior do universo m arxista, no ensaio I deste volume.]
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SUM ÁRIO SISTEM ÁTICO PARCIAL (TO M O S I A III) DE M A R X : L Ó G IC A E P O LÍT IC A , IN V E ST IG A Ç Õ E S PARA UMA R E C O N ST IT U IÇ Ã O D O SE N T ID O DA D IA LÉT IC A
M arx: Lógica e Política, investigações para um a reconstituição do sentido da dialética com portará ao todo cinco tomos. O conjunto poderia também — e me lhor — ser apresentado em form a (quase) sistemática, e nesse caso conviria fazer do sub-título o título, e vice-versa. Indico em seguida as seções — com os textos até aqui publicados — em que, nessa forma, a obra se articularia (seria preciso deixar claros indicando que faltam os textos dos tomos IV e V): In v e s t ig a ç õ e s DO SENTIDO
da
p a r a u m a r e c o n s t it u iç ã o
DIALÉTICA (M A R X : LÓGICA E POLÍTICA)
Introdução (MLP I) A) Dialética m arxista, humanismo, anti-humanismo, historicismo, antihistorcismo 1. “ Dialética m arxista, humanismo, anti-humanismo” (MLP I). l a . “ Althusserismo e A ntropologism o” (MLP I). 2. “ Dialética m arxista, historicismo, anti-historicismo” (MLP III). B) A apresentação m arxista da história 1.“ A apresentação m arxista da histórica: sobre a sucessão de m odos de produção” 1 (MLP II). 2. “ A apresentação m arxista da história: m odelos” (MLP III). C) Estudos críticos sobre a lógica da crítica da economia política 1. “ Abstração real e contradição: sobre o trabalho abstrato e o valor” (MLP I). 2 .“ Circulação de m ercadorias, produção capitalista” (MLP I). 3. “ A dialética do capital — e suas implicações (ética e m arxism o, prolegómenos)2 (MLP III) D) M ateriais para uma lógica dialética 1. “ Pressuposição e posição: dialética e significações ‘obscuras’ (MLP II) 2. “ Sobre o conceito de capital: idéia de uma lógica dialética” (MLP III) E) Capitalism o clássico e capitalism o contemporâneo 1. “ Sobre as classes” (MLP II). 2. “ Sobre o E stad o” (MLP II).
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F) Gênese da dialética m arxiana 1. “ Sobre o destino da antropologia na obra de maturidade de M arx ” (MLP I, ap.) 2. “ Sobre o jovem M arx ” (MLP I, ap.)3. G) Conclusão, postfácios, crítica 1. Hoje (MLP III) N ota: Investigações para uma reconstituição do sentido da dialética (M arx: Lógica e Política) tem como complemento Dialética m arxista, dialética hegeliana: o Capital e a Lógica de Hegel, da qual publiquei a primeira parte em português (.Dialética m arxista, dialética hegeliana: a produção capitalista como circulação sim ples, São Paulo, Brasiliense e Paz e Terra, 1997), e a terceira parte em francês (Le Capital e la Logique de Hegel, dialéctique marxienne, dialéctique hegelienne, Paris, 1’Harm attan, 1997). A segunda parte, já escrita em primeira redação, é ain da inédita.
N
o tas
1 Alterei um pouco o título. 2 A parte final desse texto ultrapassa os limites da seção C e se liga à seção A. O inverso poderia ser dito do texto 1 da seção A.
3 Será utilizada a versão que saiu em Discurso, n° 13, São Paulo, 1983, versão que é mais desenvolvida do que a de M LP I.
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SIG LA S E A B R E V IA Ç Õ E S
M LP I
R. Fausto, M arx: Lógica e Política, investigações para uma recons tituição do sentido da dialética, Tom o I, São Paulo, Brasiliense, 1983, (segunda edição, 1987).
M LP II
R. Fausto, M arx: Lógica e Política, investigações para uma recons tituição do sentido da dialética, Tom o II, São Paulo, Brasiliense, 1987.
PCCS
R. Fausto, Dialética marxista, dialética hegeliana. A produção capitalis ta como circulação simples, São Paulo, Brasiliense, e Paz e Terra, 1997.
C LH
R. Fausto, Le Capital e la Logique de Hegel, dialectique marxiste, dialectique hegélienne, Paris, l’Harm attan, 1997.
W
M arx-Engels, Werke, Berlim, Dietz Verlag.
WEB
Ergänzungsband, in Werke.
K
D as Kapital, in Werke.
G
M arx, Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie. Rohentivurf (1857-1858). Anhang (1850-1859), Berlim, Dietz Verlag, 1953.
Borrador
Elementos fundamentales parala critica de la economia politica (Bor rador), 1857-1858, trad. espanhola de P. Scarón, edição a cargo de J. Aricó, M. Murmis e P. Scarón, Buenos Aires, Siglo Veintiúno.
S
O Capital, trad. brasileira de R. Barbosa e F. R. Kothe, coordenação e revisão de P. Singer, São Paulo, Ed. Abril, “ Os Econom istas” , 1984.
C
Le Capital, livre premier, trad. francesa sob a responsabiidade de J.-P. Lefebvre, Paris, M essidor-Éditions Sociales, 1983.
WL, 1812 Hegel, Wissenschaft der Logik, fac-símile da primeira edição de 1812, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1966. L
Hegel, Science de la Logique, trad. francesa de P.-J. Labarrière e G. Jarczyk, 3 vols., Paris, Aubier-Montaigne, 1972-1976-1981.
Oeuv. Ec.
M arx, Oeuvres, Économie, 2 vols., sob a direção de M . Rubel, Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Plêiade, 1965-1968
Oeuv. Phil. M arx, Oeuvres, Philosophie, sob a direção de M . Rubel, idem, 1982, R
M arx, Resultate des Unmittelbaren Produktionsprozesses, Frankfurt, Verlag Neue Kritik, Archiv Sozialistischer Literatur 17, 1969.
WL
Hegel, Wissenschaft der Logik, Hamburgo, editado por George Lasson, Felix Meiner, 1963.
(F) indica que os grifos são meus. (A) indica que os grifos são do autor citado.
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