Ruy Fausto
MARX: LOGICA E POLÍTICA Investigações para uma reconstituição do sentido da dialética
Tomo I 1? edição 1983 2? edição
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editora brasüiense DIVIDINDO OPINIÕES MULTIPLICANDO CULTURA
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ParaBeti
índice
Nota Introdutória............................................................................. Introdução..........................................................................................
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I 1. Dialética Marxista, Humanismo, A nti-hum anism o................ 2. Althusserismo e Antropologismo................................ ...............
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II 3. Abstração Real e Contradição: sobre o Trabalho Abstrato e o V alor...........................................................................................
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III 4. Circulação de Mercadorias, Produção Capitalista .................. 141 * * *
Apêndices Apêndice 1: Sobre o Destino da Antropologia na Obra de M atu ridade de M a rx ............................................................ 227 Apêndice 2: Notas sobre o Jovem Marx ........................................ 236
Nota introdutória
A maioria dos textos deste volume, o primeiro de uma série, como indica a introdução, fo i escrita em francês e traduzida pelo autor: Embora marcados pela nossa experiência na Europa, os textos ultra passam, entretanto, esse quadro; e eles não foram escritos só tendo em vista o público francês. Alguns textos retomam direta ou indiretamente discussões ou seminários que fizemos no Brasil e no Chile. Outros, embora redigidos em francês, na origem para que pudessem ser inse ridos em trabalhos universitários, foram escritos também já com vistas a uma publicação no Brasil. Finalmente, a discussão do que se fez e faz no Brasil tem um lugar, embora não muito amplo neste primeiro vo lume. A segunda secção da introdução é um caso especial, porque analisa em parte uma situação histórica. Se o que dizemos sobre o após-68 tomando uma faixa de tempo mais ampla tem um alcance mais ou menos geral, parte das considerações se refere, como é explícito, à Europa, em particular à França, e mesmo a uma conjuntura na França (o texto foi escrito em abril de 81; entretanto, para os proble mas tratados, a situação se modificou menos do que se poderia pensar). Apesar disso, decidimos conservar tal qual a introdução, e isto pelas seguintes razões. O que nela se procura mostrar (de um modo preli minar) é a exigência e a dificuldade de, ao mesmo tempo, retomar os problemas da dialética clássica (Hegel e Marx) e fazer a crítica da dialética clássica. Pareceu-nos que universalizaríamos melhor esse pro blema — nos limites das considerações parcialmente históricas de uma introdução — mostrando a sua particularização numa situação dada que pudemos explorar um pouco (que de resto é ainda a de um centro maior), do que desenvolvendo-o de uma form a geral, ou tentando mos trar como ele se apresenta no Brasil. A França representa, um pouco, um caso limite das dificuldades, ou de Um tipo delas. Conhecer esse caso é instrutivo, mesmo se os problemas, que num nível são análogos (ou se pretende conservar sem crítica a dialética clássica, ou se quer simplesmente abandoná-la), tomam uma outra figura no Brasil (entre outras coisas, o dogmatismo da tradição é, no Brasil, provavelmente
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mais forte — mesmo se em regressão — do que o dogmatismo da ruptura). São Paulo, outubro de 1982 Paris, novembro de 1982
Introdução
1. O conjunto de textos que começamos a publicar sob o título geral Marx: Lógica e Política contém uma análise e uma crítica do marxismo. O conjunto se organizará em torno de três eixos: um sobre o problema da relação entre marxismo e humanismo; um sobre a lógica de O Capital e, em geral, sobre a lógica da crítica da economia política; e um sobre o problema da relação entre marxismo e historicismo. É em tomo desses problemas, cada um dos quais tem um lugar na história da constituição do marxismo, e na história do seu desenvolvimento, que se fez, nos últimos anos, a discussão em torno da significação filosófica do marxismo. Pretendemos retomá-los. O plano provisório do nosso projeto geral contém çinco partes, das quais só a primeira é apresentada aqui. Este primeiro tomo está constituído essencialmente por trabalhos sobre a relação entre marxismo e humanismo ou marxismo e antropo logia (“Dialética marxista, Humanismo, Anti-humanismo” , “Althusserismo e Antropologismo”) e por ensaios sobre O Capital e em geral a crítica da economia política (“Abstração real e contradição: sobre o trabalho abstrato e o valor” , “Circulação de mercadorias, produ ção capitalista”); mas os ensaios sobre o antropologismo também tocam neste último problema. Se o conjunto do projeto visa a análise e a crítica do marxismo — a conexão interna entre os dois momentos será melhor explicada mais adiante — este primeiro tomo fica, em geral, no primeiro momento. Esses textos são polêmicos. Eles têm como objeto leituras de Marx que julgamos errôneas, mas que consideramos como grandes leituras ou, pelo menos, como leituras muito interessantes. Trata-se da leitura de um filósofo (e de seus discípulos), de dois economistas, e de um autor que é ao mesmo tempo filósofo, economista, teórico da política etc. Trata-se de reencontrar a dialética a partir dessas leituras, as quais, apesar das suas diferenças — e elas são muito grandes — aparecem como leituras do entendimento. Cremos que a maneira polêmica per mite, num primeiro momento, precisar certos pontos aos quais volta remos em forma sistemática. Dado o seu caráter, esses textos contêm, certamente, repetições. Modificamos os originais, mas pouco: o inte resse que oferecem é talvez o de levantar os mesmos problemas, a
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propósito de autores diversos. E se os textos são polêmicos, eles se pretendem ao mesmo tempo alternativos. Observemos por outro lado que foi necessário entrar em muitos detalhes e analisar os problemas de uma maneira bastante técnica. Não acreditamos que se possa chegar a discutir grandes temas sem passar por micrologias. A idéia de que a dialética possa prescindir de uma certa tecnicidade é um mito. Aos quatro textos principais acrescentamos dois outros: o pri meiro é de certo modo um texto germinal sobre o conjunto da proble mática do humanismo e do historicismo. Nós o incluímos em razão mesmo das suas insuficiências: o seu interesse é o de representar uma tentativa de pensar os problemas da dialética por meios que não vão além do seu limiar, e que de qualquer modo ficam aquém dela.1 O segundo texto contém algumas das idéias sobre o jovem Marx, que desenvolvemos em várias ocasiões em forma oral,2 e antecipa em es boço a parte histórica deste trabalho. Os outros tomos se organizarão do seguinte modo: o segundo conterá um ensaio sobre a relação entre marxismo e historicismo, e alguns trabalhos sobre a história e a pré-história da dialética (inclusive sobre a obra do jovem Marx), no plano da filosofia, da política e da economia. O terceiro conterá um texto que deveria servir de intro dução, mas que se tornou longo demais, e que representa um balanço crítico do marxismo. O quarto analisará de um modo sistemático a lógica da crítica da economia política de Marx (e sua relação com Hegel). O quinto tentará tirar conclusões mais gerais, sobre o conteúdo das quais nos explicaremos em outro lugar. O título Marx: Lógica e Política remete àquilo que representa, em certo sentido, os dois extremos do domínio dessa investigação. Mas esse título (que anunciamos desde pelo menos 1975) abrevia: os extre mos são, na realidade, por um lado os “fundamentos"3 lógicos da crí tica da economia política, e por outro a prática política.*
(*) Agradecemos ao prof. Jean Desanti sob a direção do qual apresentamos este primeiro tomo como tese de terceiro ciclo à Universidade de Paris I. Agradecemos igualmente aos professores Hélène Vedrine e François Châtelet, que participaram tam bém da banca. Agradecemos a François Bon, Alain Grosrichard e Franck Lahmy, que não s6 nos ajudaram a fazer a revisão do texto francês, mas que discutiram conosco, certas partes ou a totalidade, deste primeiro tomo. Paulo Eduardo Arantes também leu o texto, e agradecemos as suas observações. Agradecemos ainda a Beth Lobo, que nos ajudou no trabalho de datilografia e a quem dedicamos este primeiro tomo. “Sobre a dialética e o marxismo” (inédito) — segunda parte da introdução — é de 1981. “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-humanismo” (publicado pela revista Discurso, São Paulo, n? 8, 1978, sob o título “Dialética Marxista, Antropologismo, Anti-antropologismo”) é de 1974-75; fizemos algumas modificações no texto. “Althusserismo e Antropologismo” (publicado em francês na revista L ’Homme et la So ciété, número duplo 41-42, Paris, 1976, e em português na revista Almanaque, São Paulo, n? 4, 1977) é de 1975; acrescentamos ou modificamos algumas notas. “Abs
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2. Sobre a dialética e o marxismo — Sem desenvolvê-las com todo rigor, julgamos útil incluir nesta introdução, de uma forma abre viada, algumas das considerações sobre a dialética e o marxismo, que retomaremos no terceiro tomo deste trabalho. Se se quiser resumir o projeto do qual esses ensaios representam o ponto de partida, diríamos, decalcando uma expressão que não é nossa, que se trata — ou gostaríamos de que se tratasse — de apre sentar os “materiais para uma reconstrução da dialética” . 4 “Materiais para uma reconstrução da dialética” — supõe pelo menos duas coisas: 1) que a idéia da dialética como teoria rigorosa esteja, de certo modo, destruída; 2) que seja preciso e, em princípio, que seja possível reconstruí-la. Primeiramente, algumas precisões sobre o objeto das considera ções bem sumárias que vêm em seguida, bem como sobre a perspectiva que elas supõem. Nos limitaremos, propriamente, à situação e à histó ria da dialética, sem considerar o conjunto (do pensamento francês ou europeu) em que ela se situa, mesmo se, num certo momento, for necessário fazer algumas incursões num domínio mais geral. Isto não significa que trataremos somente daqueles que reivindicam o pensa mento dialético, mas que nos referimos somente àqueles que têm, ou que acreditaram ter, uma relação essencial, positiva ou negativa com ela. Por outro lado, como em certa medida independentemente da questão do campo do objeto é necessário saber de onde se fala, onde nos situamos para falar da dialética, precisamos — sem o que dema siadas coisas ficariam incompletas e incompreensíveis — que as consi derações seguintes devem ser lidas, supondo que elas provêm do “meio” do pensamento dialético, da sua interioridade. A dialética — entendamos por isso —, a idéia da dialética enquanto discurso rigoroso, caiu sob os golpes do que paralelamente ao “marxismo vulgar” deveríamos chamar de “dialética vulgar” ou de “dialéticas vulgares” . Pensamos em todos aqueles discursos que empre gam o termo “ dialética” sem fazê-lo corresponder a um objeto consti tuído de uma maneira rigorosa. A dialética, sem dúvida, não se sabe
tração real e contradição: sobre o trabalho abstrato e o valor” (inédito em portu guês) foi publicado em francês numa versão um pouco diferente e abreviada em Cri tiques de VÉconomie Politique, Paris, Maspero, nova série, números 2 e 3 (janeiromarço e abril-junho de 1978). "Circulação de mercadorias, produção capitalista” (iné dito, com exceção de um fragmento publicado em francês no número 18, janeiromarço de 1982, nova série de Critiques de VÉconomie Politique, sob o título “Sur la forme de la valeur et le fétichisme) é de 1981. Também o segundo apêndice. — Como indicamos, só o primeiro apêndice (que é de 1968) deve ser considerado como pertencente a um universo teórico diferente do conjunto dos textos. Os demais, uma vez situados no interior do projeto global, que, entretanto, é “contraditório”, podem ser considerados como se remetessem a um corpus teórico único.
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mais o que ela é, mesmo e sobretudo se se emprega o conceito — ou se o empregava — como se se soubesse muito bem. Mas se há crise da dialética, é preciso por um lado datá-la, e por outro definir suas relações com o que se chama de crise do marxismo. A crise da dialética — ou a idéia de uma crise da dialética (referimo-nos sempre só aos que se situam no seu “meio”) — é anterior ao que se chama de crise do marxismo. Sem dúvida, no período anterior a 1968 (é no após-68 que se situa a eclosão da chamada crise do marxismo) alguns fizeram pelo contrário a crítica do marxismo, sem questionar a dialética (embora questionando a dialética clássica). Ê o caso de Merleau-Ponty nas Aventuras da Dialética, é sobretudo o caso dos pensa dores de Frankfurt. Entretanto, os pensadores de Frankfurt (como o Merleau-Ponty de As Aventuras da Dialética) j5e qualquer que seja o ano da publicação de suas obras, são nossos contemporâneos no sen tido mais preciso. Eles pertencem ao presente mais imediato. É de Sartre — do Sartre da Crítica da Razão Dialética — que é necessário falar, a propósito da crise da dialética sem verdadeira crise do mar xismo. Sem dúvida, em Sartre há, como ponto de partida, tanto crise da dialética como crise do marxismo. E uma vez realizado o trabalho crítico, nem o marxismo — mesmo se se lhe enxerta a “ideologia” existencial — nem a dialética serão mais questionados. Mas o mar xismo estaria em crise não porque “o conteúdo dos seus enunciados seja falso” mas porque “ele não dispõe da significação: Verdade".*' “O materialismo histórico” permanece como “a única verdade da His tória” , ainda que ele seja ao mesmo tempo “uma total indeterminação da verdade” . (Ibidem) O problema é, assim, não o da verdade do marxismo, mas o da verdade de sua verdade. O marxismo é a “filosofia do nosso tempo” e filosofia “insuperável” . (Idem, p. 29) Somente “não se sabe o que é para um historiador marxista dizer a verdade". (Idem, p. 118) Por isso — e somente por isso — é preciso perguntar “ que é a racionalidade dialética, quais são os seus limites e o seu fundamento?” . {Idem, p. 135)7 Com a eclosão da crise do marxismo, o problema se complica. É preciso dizer alguma coisa sobre o sentido dessa crise. Na realidade, ela eclode a partir de vários problemas, cujos efeitos sobre o corpus do marxismo são diversos e de profundidade diferente. Há por um lado — no Ocidente — as mudanças do capitalismo — as novas clivagens, as novas lutas. Apesar de tudo, é provavelmente esse o aspecto em que o marxismo — que é essencialmente uma teoria crítica do capitalismo — se acha em melhor situação. As leis do capitalismo clássico são mais “negadas” do que anuladas. Há aí provavelmente Aufhebung do mar xismo e não mais. O segundo ponto é o da nova dimensão que ganha a história com os novos meios de destruição. Analisaremos em detalhe o sentido desse fenômeno em relação à tradição clássica: aqui, observamos apenas que não basta dizer, a esse respeito, que em lugar de passar da
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pré-história à história, história que representaria a posição do homem," ficamos na pré-história. A história do século XX remete, na realidade, à posição do homem — mas à posição negativa do homem. Isto quer dizer que, em certo sentido, se passou à história, mas como advento não da vida genérica, mas da morte genérica, da destruição genérica. Passamos a alguma coisa que é ao mesmo tempo história e préhistória. História na pré-história. Talvez pudéssemos chamá-la de antihistória. Esse fenômeno não foi pensado, prospectivamente, pelo m ar xismo clássico. Mais do que isto, o que ocorreu desvia, relativamente ao curso “previsto” da pré-história, o da posição da vida genérica, o da passagem à história. Há aí uma negação do marxismo que é mais forte do que uma Aufhebung. E entretanto, em suas grandes linhas, a visão clássica (ou muitas coisas na visão clássica) permanece válida enquanto teoria da pré-história (na sua forma primeira). É assim que o marxismo se mantém como teoria de uma história — de uma pré-história — numa escala limitada. Para além de um certo limite, as leis que ele enunciou não são mais válidas. Há aqui uma mudança de escala, a ul trapassagem de um limite, ultrapassagem não “prevista” num processo (de destruição crescente) que era entretanto conhecido. Mas, em ter ceiro lugar, há o destino das sociedades ditas socialistas, no Leste. O drama das transições que não conduzem a nenhum lugar, isto é: que conduzem a elas mesmas. Ora, é a propósito desse fenômeno — e em bora, por um lado, ele represente, em relação à ultrapassagem de limite analisada anteriormente, uma mudança menos radical, e em bora, por outro lado, se refira a formações que nlo poderiam ter sido estudadas por Marx porque lhe são posteriores — é por esse fenômeno que o marxismo é mais duramente atingido. Aqui estamos, propria mente, diante de um bloqueio da pré-história. E este bloqueio da pré-história é mais grave para o marxismo do que a emergência da anti-história. Sobretudo se se pensar que esse bloqueio é o de regimes, o de um regime pelo menos, que provém de uma revolução que não era uma simples revolução burguesa ou camponesa. A esse respeito, e mesmo se nos seus textos sobre a Comuna, sobretudo,9 Marx soube falar dos perigos do Estado, ele nunca pensou na possibilidade de uma outra saída de “progresso” (e mesmo se o comunismo é para ele empresa de liberdade) se não a passagem ao comunismo. A emergência das sociedades burocráticas representa para o marxismo uma negação que é não só mais forte do que uma Aufhebung, mas mais forte também do que uma mudança de escala. Representa um corte ou uma ruptura em relação a ele.10 Mas uma tal análise dos níveis da crise só pode ser feita através de uma retomada do problema da dialética. Só a retomada do projeto da dialética enquanto discurso rigoroso permitiria mostrar até onde pode ir o marxismo, em que sentido e em que medida ele se rompe. A análise dos limites do marxismo é assim, ao mesmo tempo, investi
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gação dos seus “fundamentos” . O que significa: o marxismo enve lheceu mas, ao mesmo tempo, ele é desconhecido. E ele é desconhecido — voltamos ao ponto de partida — porque a dialética é desconhecida: ela se perdeu nas dialéticas vulgares — antes de sofrer o contrachoque da “crise do marxismo” . É necessário assim realizar um duplo traba lho, cujos momentos se apresentam como opostos: analisar os limites do marxismo, o que supõe uma relação crítica com ele, e analisar os seus “fundamentos” (a noção de “crítica” , mas em sentidos diferentes, convém, em certa medida, aos dois casos). Que o marxismo tenha envelhecido e que ele seja ao mesmo tempo desconhecido, isto quer dizer que se foi além dele, mas que ao mesmo tempo estamos aquém dele. Dir-se-ia que o caminho do fundamento (Grund) é ao mesmo tempo o caminho do abismo (zu Grunde gehen). Mas a fórmula hegeliana não convém, inteiramente, aqui. Os dois caminhos não se encon tram numa “negação” . Suas relações são mais complexas e diversi ficadas. Do conjunto dessas considerações não resulta que a dialética não possa ser questionada, pelo menos regionalmente, também no ponto de chegada do projeto. Por outras palavras: sabemos que a dialética vai mais longe do que o marxismo, que nãò haverá novos marxismos, mas que pode haver novas dialéticas. Mas não haveria também objetos sociais diante dos quais toda dialética seria teoricamente impotente? Não o excluímos. Acreditamos mesmo que é possível mostrar que tipo de objeto social resiste a ela. Mas — pelo menos num primeiro mo mento — só investigações na e sobre a dialética poderiam mostrar por que eventualmente ele não dominaria esses territórios novos. Mas só falamos da crise do marxismo tal como ela aparece para nós (o que deveria significar em si). É preciso ver como ela aparece para si. E esse para si da crise faz parte, evidentemente, da própria crise: num certo sentido, lá reside o essencial. A crise aparece como a morte — tanto do marxismo como da dialética. Marx é considerado hoje como “Espinosa no tempo de Lessing” , como Hegel no tempo de Marx — “como um cachorro morto” . Poderíamos dizer que isto vale também para Hegel, pelo menos na medida em que a dialética de Marx aparece como ligada à dialética de Hegel. Como dissemos, esta per cepção ilusória da crise é constitutiva da crise, mesmo se ela não a esgota. Vejamos os caracteres gerais do momento, no qual “circula muita verdade” mas que revela ao mesmo tempo tudo o que nele há de falsa consciência.11Nós nos referimos aqui — ultrapassando os limites anteriormente indicados — tanto àqueles que se ocupam diretamente do problema do marxismo e da dialética, como àqueles, com freqüên cia figuras mais importantes, que se mantêm mais ou menos à distância dele. Digamos em primeiro lugar, pensando sobretudo nestes últimos (que entretanto polemizam freqüentemente com a dialética): eles nos apresentam a dialética como uma filosofia envelhecida das essências e
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da contradição. Eles nos convidam a passar a outra coisa. Poderíamos passar a outra coisa, mas gostaríamos de estar seguros de que as velhas filosofias das essências e da contradição estão esgotadas. Ora, o que nos impressiona são as insuficiências visíveis desses mesmos, quando eles falam da dialética. Se em alguns já não se encontram os velhos clichês — a dialética como simples continuísmo, a confusão entre dialética e historicismo (ou pelo contrário: as rupturas e o anti-historicismo) — eles ficam de qualquer modo aquém do manejo rigoroso da negação enquanto Aufhebung. O ponto essencial no nível lógico é que eles não se dão conta de que não pode haver oompreensão da dialética, sem o movimento do que é exprimido (posto) e do que não é exprimido (pressuposto). O manejo rigoroso da distinção entre pressuposição (discurso implícito) e posição (discurso explícito) lhes escapa. E sem isso não há dialética. São essas insuficiências que nos fazem duvidar de um certo pós-hegelianismo e pós-marxismo, qualquer que seja, de resto, a originalidade de alguns dos seus representantes. Mas ftossemos propriamente à análise de alguns dos traços gerais do momento. Há de um certo modo ruptura do marxismo (um pouco como ocorreu com Hegel no século XIX). Se o marxismo12 n&o pretendia ser nem um moralismo nem um amoralismo, temos agora de um lado uma filosofia moralizante (a moral está mais do que nunca em moda), por outro lado se nada nas águas de uma filosofia da irresponsabilidade.13 (Podería mos acrescentar, talvez, que as duas tendências se revertem: como disse alguém a propósito dos teóricos da morte do homem,14 poderse-ia dizer que os defensores de uma filosofia da irresponsabilidade lu tam muitas vezes pelos direitos do homem e, inversamente, que é incerto que os neomoralistas, bem inseridos no sistema, considerem sempre o outro (homem) “não só como um meio mas também como um fim” .) Por outro lado, a época se caracteriza ao mesmo tempo, pelo menos em certos meios, por uma formidável pressão positivista e tecnocrática. Ex-“ dialéticos” só juram pelo formalismo e pela empiría. Nesse sentido, os pensadores de Frankfurt, aos quais voltaremos logo mais adiante, são mais atuais do que nunca. Aliás, hoje aparece algo como uma caricatura do pensamento de Frankfurt: seria necessário comparar, por exemplo, o que dizem os pensadores de Frankfurt e o que dizem certos filósofos em moda sobre o pensamento clássico como pensamento do poder.15 No que se refere à relação com o marxismo, insistamos sobre o baixo nível da crítica: se lê ou se retém sobretudo os prefácios de Marx, esquecendo que, se é sempre desaconselhável fixarse nos prefácios, no interior da dialética clássica os prefácios são impossíveis. Hoje ocorre com os prefácios de Marx o que antigamente acontecia com os exemplos de Hegel. Mas dizer que a dialética foi destruída ou que ela é hoje desco nhecida pode parecer excessivo. Tentemos introduzir algumas precisões. Sem fazer história, seria preciso distinguir a situação na França
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da situação na Alemanha. Na Alemanha, houve o pensamento de Frankfurt. E os pensadores de Frankfurt, Adorno sobretudo, “mane jaram ” a dialética como não se fizera desde Hegel e Marx. Digamos somente, por um lado, que os pensadores de Frankfurt se ocuparam pouco de problemas propriamente lógicos (senão indiretamente, em bora a Dialética Negativa trate finalmente da lógica e o termo lá se encontre). E por outro lado que, como outros o mostram,16 o pósFrankfurt é incerto. Na França, a situação é bem diferente. Por um lado, poderíamos dizer que ou se leu e conheceu Hegel, ou se conheceu Marx (em particular O Capital), mas não as duas coisas ao mesmo tempo. Sartre, que deve certamente alguma coisa à Fenomenología do Espírito, escreve uma Crítica da Razão Dialética da qual a lógica de O Capital está ausente. Althusser e os althusserianos, que trabalharam muito O Capital, não conhecem Hegel (o Hegel deles é realmente irre conhecível). 17 Mas no fundo, o problema é mais simples. Se nos fixar mos não na Fenomenología do Espírito mas na Lógica de Hegel (e parece que não se pode conhecer realmente a primeira sem conhecer esta última) diríamos que tanto Hegel como Marx lhes escapam. É finalmente a dialética que eles não apreendem. Hoje a situação se modifica, é verdade, com o aparecimento de muito bons especialistas na filosofia hegeliana. Mas por enquanto esse trabalho muito impor tante permanece adstrito ao “gueto” da história da filosofia, ele conti nua sendo um trabalho de especialista. Entretanto, graças a ele, outras coisas se tornam possíveis. E se pelo menos num primeiro nível a dificuldade aparece sob a forma da alternativa ou se conhece Hegel ou se conhece Marx, a mesma dificuldade — porque se trata de O Capital — aparece na alternativa: ou se trata (alguém trata) de filosofia ou se trata de economia, mas não das duas coisas ao mesmo tempo. Mais precisamente: o fato de o grande texto da dialética clássica depois de Hegel ter sido uma crítica da economia política, crítica bastante técnica porque ela é ao mesmo tempo “ a apresentação do sistema (da economia burguesa) e pela apresentação a sua crítica” , 18 influiu muito, abstração feita de outros fatores, sobre o destino da dialética clássica. Esta alternativa não vale só para a França. Mas ao que parece, na França ela está particular mente presente. A organização administrativa do saber excluiu por si mesma a possibilidade da “produção” de um leitor capaz de ler um discurso que se constitui na intersecção das suas divisões. E tanto mais que esse discurso “intersecta” de um modo que não é o das inter secções reconhecidas, digamos, aquelas que autoriza a epistemología, teoria subjetiva do saber, na qual precisamente (nas versões vulgares, é verdade) se encontra o modelo (ou a cópia?) das divisões instituídas. Nesse sentido, a leitura de O Capital pelos althusserianos, leitura que deve à tradição da epistemología — e que leva as suas marcas para o melhor como para o pior — faz papel de pioneira.
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E como falamos do althusserismo, é necessário acrescentar as considerações seguintes. Hoje o althusserismo é considerado supe rado. Mas de certo modo, ele nunca foi refutado. E aqueles que não “historicizam” (e da maneira mais selvagem), “althusserizam” , fre qüentemente sem querer. O althusserismo foi importante e teve rigor (pensamos na sua forma clássica, não na autocrítica barateada que a sucede). Trata-se de uma grande tentativa (pelo menos no interior da lógica, porque se tratava de lógica e não mais) de pensar o marxismo a partir das categorias do entendimento. Acrescentemos que em termos muito gerais a ênfase que os althusserianos deram a um Marx nãohegeliano não é sem justificação. Mas nas condições atuais é preciso mostrar primeiro o parentesco entre as duas dialéticas, para pensar depois a diferença. Ê preciso tratar ainda do althusserismo. Resumimos os nossos resultados. Ao contrário de muita gente,19 cremos que é preciso retomar a fundo os problemas do chamado período anterior: “Como nos relacionamos afinal com a dialética...?” 20 “O que (fazer) da Lógica?” 21 O que nos remete à pergunta “Que é a dialética?” Este é o problema geral desses “Materiais.. Paris, abril de 1981
NOTAS (1) O ponto de partida de nossas invejstigações foi o problema — que estava na ordem do dia no início dos anos 60 — das relações entre o marxismo e a moral, o problema dos fundamentos da política marxista. Esta problemática da relação entre marxismo e humanismo — desenvolvida no quadro de uma análise do pensamento do jovem Marx — se prolongou na problemática da relação entre marxismo e histori cismo (embora, contrariamente à primeira, só com a emergência do althusserismo a tenhamos chamado assim). Essas duas problemáticas foram completadas — depois nos demos conta de que tudo isso confluía — por investigações sobre a lógica de O Ca pital e investigações históricas. — O ponto de partida dos nossos resultados foi a observação de que, embora se recusando a fundar a prática (porque a fundação repre sentaria uma “queda” na ética) o marxismo não era entretanto estranho à idéia de homem. Mais precisamente, o ponto de partida era a idéia de que, se o homem permanecia implícito no marxismo, havia entretanto uma grande diferença entre o (homem) implícito e o (homem) explícito. Portanto, de que o marxismo nem se funda mentava no homem nem recusava o homem (o homem ficava no horizonte). Entre tanto, exprimíamos ainda esse movimento por conceitos pré-dialéticos como horizonte, tematização etc. (2) Inclusive em dois cursos: um no departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP em 1968, e outro, no quadro do tema “Mar-
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xismo, Humanismo, Anti-humanismo”, no departamento de Filosofia da Universidade de Paris VIII (Vincennes) em 1979. Várias outras partes deste trabalho, neste tomo ou nos tomos seguintes, foram igualmente objeto de cursos universitários. (3) As aspas serão justificadas no texto. (4) Cf. Hans-Georg Backhaus, “Materialien zur Rekonstruktion der Marxschen Werttheorie” in Gesellschaft, Beiträge zur Marxschentheorie, 1, 3 e 11, Suhrkamp, Frankfurt, 1974, 1975, 1978. O n? 11 de Gesellschaft... (em que se encontra a terceira parte do texto de Backhaus) publica um artigo assinado por Wolfdietrich Schmied-Kowarzik, cujo título é “Zur Rekonstruktion der materialistischen Dialek tik”. A expressão deve assim a muita gente. (5) “A conclusão dessas aventuras é assim a de que a dialética era um mito? (...) (...) O que está (...) caduco não é a dialética, é a pretensão a terminá-la num fim da história ou numa revolução permanente, num regime que, sendo a contestação de si mesmo, não precisa mais ser contestado de fora, e em resumo não tem mais ‘de fora’ ", (Merleau-Ponty, Les Aventures de la Dialectique, Paris, Gallimard, 1977, (1955), p. 301, a tradução é nossa.) E quanto ao marxismo: “E não é de estranhar que Trotski retome sem hesitação o naturalismo marxista e que ele fundamente, com Marx, o valor no ser (...) (...). Sim, a prática bolchevique e o trotskismo estão na mesma linha, e são conseqüências legítimas de Marx". (Idem, p. 130) Ver o conjunto da polémica contra Lefort no capítulo IV das Aventuras... (6) Sartre, Critique de la Raison Dialectique, Gallimard, 1960, p. 118. (7) Pode-se opor um Sartre que repense a dialética para fundar o marxismo a um Merleau-Ponty que questiona o marxismo mas conserva a dialética. E preciso observar, entretanto, que Sartre vai até a crítica da noção de ditadura do proletariado. (Ver Critique..., p. 630, como observava H. Vedrine en Les Philosophies de l'Histoire, Payot, p. 118) E que, inversamente, ñas páginas finais das Aventuras da Dialética, fazendo do “a priori e da moralidade” a verdade do “atentismo marxista” que ele professava em Humanismo e Terror, Merleau-Ponty deixa uma porta aberta (mas bem ambigua, se se pensar no que ele escreve no capítulo IV) para um marxismo que não seja “de vida interior”. (Les Aventures de la Dialectique, op. cit., p. 339) (8) Sobre esse ponto, mas nos limites do universo clássico, ver o primeiro ensaio. (9) Mas não na discussão com Bakunine. Analisaremos em detalhe, num outro tomo, tanto a discussão com Bakunine como os textos sobre a Comuna. Ver a esse respeito Michel Bakounine, Oeuvres Complètes, editadas por Arthur Lehning, 4, Paris, Champ Libre, 1976, p. 347; Marx-Engels, Werke, 18, Berlim, Dietz, 1962, p. 635, e Werke, 17, op. cit., 1971, sobretudo pp. 541-544. E R. Bahro, L'Alternative, Paris, Stock, 1979. (10) Haveria áinda um quarto ponto a ser considerado, na realidade essencial: o do Terceiro Mundo. A configuração do problema é aí diferente das três outras, e bem complexa. Para não nos aventurarmos em hipóteses, deixaremos provisoriamente de lado este ponto. (11) Discutiremos neste trabalho o uso do conceito de consciência. (12) A frase seguinte não deve ser entendida como se significasse que a solução marxista continua sendo válida; ela quer dizer apenas que a polarização descrita não representa um avanço. (13) Pensamos, respectivamente, nos “novos filósofos” e em certos désirants. (14) Por um novo filósofo: “Elas(as questões sobre o indivíduo...) são mais atuais do que nunca, na hora de uma esquizofrenia sapiente que pretende defender pratica mente os direitos de um homem cuja morte teórica, de há muito ela não pára de anunciar”. (Bernard Henri Levy, Le Testament de Dieu, Grasset, 1979, p. 75) Como na dialética Ao Aufklärung e da superstição na Fenomenología do Espírito, assim como na dialética do romantismo econômico e da economia clássica nos Manuscritos de 1844, “esta oposição é a mais amarga e faz com que se escute reciprocamente a verdade”. (Werke,Ergänzungsband, I, Ökonomisch-philosophische Manuscripte, (1844), op. cit., 1968, p. 526) O que cada um diz do outro é verdade, mas não o que cada um diz de si
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mesmo. Esta configuração é de resto essencial — ela é mesmo a chave — para pensar a situação contemporânea. (15) É necessário insistir sobre o dogmatismo de certos campeões do antidogma tismo. Na medida em que eles não distinguem o que é “posto” do que é “não-posto”, se se quiser o ato e a potência, toda tendência se torna realidade efetiva. Aí jaz o segredo dos livros que põem numa mesma categoria — maldita — os pensadores ou os escritores mais diferentes. A dialética, pelo contrário, que distingue a possibilidade e a efetividade, o pressuposto e o posto, sabe registrar a presença de tal ou qual motivo inquietante nos clássicos, mas sabe também mostrar os limites dessas tendências. (Ver Adorno e também Horkheimer, passim, a esse respeito) (16) Ver Hans-Günther Holl “Emigration dans l’immanence”, le mouvement intellectuel de la dialectique négative”, posfácio a Theodor Adorno, Dialectique Nega tive, trad. franc., Paris, Payot, 1978, pp. 325 e segs. (17) A ausência quase total de referências aos textos de Hegel numa obra (Lire le Capital) que pretende mostrar o não-hegelianismo de Marx é em si mesmo um sintoma. (18) Werke, 29, op. cit., 1963, carta de Marx a Lassale, de 22 de fevereiro de 1858, p. 550; Lettres sur le Capital, tradução, apresentação e notas por G. Badia, Paris, Ed. Sociales, 1964. (19) Por exemplo, vamos na direção contrária à de Perry Anderson em Considerations on Western Marxism, New Left Books, 1976, cuja tônica é o esgotamento da problemática filosófica do marxismo. (20) “Como nos relacionamos afinal com a dialética de Hegel?” (“Wie halten wir es nun mit der Hegelschen Dialektik?"). (Werke, Ergänzungsband, I, Ökonomisch philosophische Manuskripte, (1844), op. cit.., p. 568, grifado por Marx) A analogia entre as duas situações históricas, que a citação induz, quer dizer somente: hoje como então corremos o risco de abandonar um grande pensamento, sem verdadeira crítica. (21) “Was nun mit der Logik”. (Werke, Ergänzungsband, I, Ökonomisch-philo sophische Manuskripte, (1844), op. cit., p. 569)
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Dialética marxista, humanismo, anti-humanismo
PRIMEIRA PARTE a) A história em Marx e a “Fenomenología do Espírito” de Hegel Para pensar o que representa em termos lógicos a idéia de um devir do homem (do homem-sujeito) em Marx — de um hotnemsujeito que vem à existência mas que ainda não existe — é necessário se referir a Hegel e particularmente à Fenomenología do Espírito. Com efeito, a situação do “homem” no esquema marxista da história (no dos Grundrisse, pelo menos) é análoga à situação do espírito na Feno menología do Espírito de Hegel. Trata-se de uma comparação antiga, mas que é raramente interpretada de um modo rigoroso, e o caráter superficial das interpretações correntes é uma das razões da recusa recente de toda leitura de Marx a partir de Hegel. Vejamos em que sentido preciso se poderia dizer que o “homem” em Marx ocupa uma posição análoga à do espírito na Fenomenología do Espírito de Hegel. Do mesmo modo que no esquema marxista da história, o homem só vem no final do que Marx denomina (ver prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política)' “pré-história da sociedade humana” , — o espírito só se apresenta enquanto espírito no final da Fenomenología. E isto mesmo do ponto de vista da consciência filosófica} Com efeito, no início e ao longo da Fenomenología, o espírito não é em sentido forte, e isto tanto para a consciência comum (único aspecto que ordi nariamente se reconhece) como para a consciência filosófica, embora as duas ausências não tenham a mesma significação. No que se refere à consciência comum, não há nenhum problema — o espírito é pura e simplesmente ausente. A consciência comum só conhece as diferentes figuras do espírito, ela não sabe — ela só saberá no fim, quando não será mais consciência comum — que a sucessão delas constitui a (pré-) história do espírito. Mas também para a consciência filosófica, o espí rito está, em certo sentido, ausente. Trata-se entretanto de uma ausên cia que é ao mesmo tempo presença, ou de uma presença-ausente. Com efeito, para a consciência filosófica, o espírito está “lá” (e isto distingue a perspectiva da consciência filosófica da perspectiva da consciência comum), mas o espírito só está “lá” enquanto opinião (“ afirmação seca” , diz a introdução da obra)3 ou, se se quiser, enquanto pressuposi ção. Ê que a Fenomenología não é uma história (filosófica) do espírito,
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mas uma historia (filosófica) da constituição do espirito — urnapré-história do espírito, e devido a isso, o espirito só será posto no final do pro cesso. Isto significa — primeiro ponto — que o espirito não é exprimível até que se chege ao final do processo. Isto significa — segundo ponto — que até lá só são exprimíveis os predicados do espirito. Vejamos isto mais de perto. No nivel da pré-história ou do devir4 do espírito — e isto é válido em geral para todas as noções cujo objeto é tomado no nivel da sua pré-história — só se pode exprimir o espirito exprimindo os seus predicados. A pré-história de um ser é, com efeito, a historia de seus predicados. Para dizer a pré-história de um ser só se deve dizer os seus predicados. Ou, dizendo a coisa negativamente: toda expressão de um ser enquanto sujeito — no caso, do espirito enquanto espirito — no nivel da sua pré-história, dado que ela implica a posição de algo que ainda não é real, compromete o rigor do discurso, perverte a sua cientificidade. Mas no nivel da pré-história de um ser (este é o ponto central do problema) os predicados desse ser não são suas deter minações (pelo menos no sentido corrente) — sobretudo não são suas determinações — porque nesse nível ele ainda está ausente enquanto sujeito. Dizendo o espírito através dos predicados do espírito, não digo o espírito (através das suas determinações), ou antes eu o digp mas dizendo o seu outro. Ou, em outros termos, no nível da sua pré-história, as determinações do espírito como de qualquer objeto são ne gações. Exemplifiquemos, voltando à Fenomenología. Se, nos situando no início da Fenomenología, nos perguntarem: que é o espírito?, será preciso responder (e respondendo começaremos a dizer a Fenomeno logía que é o desenvolvimento do conceito do espírito): o espírito é... a consciência sensível, o espírito é... o entendimento, o espírito é... o senhor e o escravo, o espírito é... o estoicismo5 etc. Mas em todos esses juízos, só o predicado estkposto. O “é” desses juízos não exprime uma relação de inerência entre sujeito e predicado (o que ocorreria se se tratasse de uma história) ele exprime, pelo contrário, a “passagem” do sujeito “no” predicado, a negação do sujeito pelo predicado. Ou, se se quiser, o “é” exprime num certo sentido uma inerência, porque se trata dos predicados do espírito (caso contrário, não os chamaríamos assim), mas essa relação de inerência, no nível de uma pré-história se transforma numa negação — “Aufhebung", não negação vulgar, por que o espírito está “lá” — do sujeito pelo predicado. O espírito é... a consciência sensível, o espírito é... o entendimento, o espírito é... o senhor e o escravo, o espírito é... o estoicismo etc. Em todos esses juízos, digo em certo sentido o espírito, porque digo o que é o espírito mas no momento em que o digo, o espírito não está mais lá, só estão os seus predicados. É a consciência sensível, o entendimento, o senhor e o escravo, o estoicismo etc., que são postos, não o espírito enquanto espírito. Somente esta leitura (que corresponde bem, numerosos textos
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o mostram, às exigências do discurso hegeliano) permite estabelecer uma relação rigorosa entre o esquema marxista da história e o hege lianismo. A leitura do devir do espírito em termos de uma mudança no interior do ser falseia toda comparação entre Marx e Hegel (porque compreende mal o próprio Hegel), fazendo dela uma ilustração sem interesse. Porque, com efeito, o que ocorre com o espírito na Fenomeno logía de Hegel — desde que ela seja lida rigorosamente — é análogo ao que se passa com o “homem” no esquema marxista de totalização da história. Que a história possa ser pensada como um processo de consti tuição do homem-sujeito6 significa que enquanto não se chegou ao comunismo, o homem não é, ou antes, ele é, mas como significação muda, não posta. Como o espírito na Fenomenología, o homem não pode ser dito no nível da sua pré-história. Com efeito, se para Marx o homem só se constituirá com o socialismo, que é o homem antes do socialismo? (A pergunta “ que é o homem?” é assim num certo sentido — diferente daquele que lhe conferem os humanistas — uma pergunta válida para o marxismo). Seria preciso responder: o homem é... o ope rário, o homem é... o capitalista, ou ainda, pensando em outros momentos da história, o homem é... o cidadão grego ou romano, o homem é... o servo, o homem é... o senhor feudal etc.7 Como se vê, num certo sentido se pode dizer o que é o homem, antes do fim da “pré-história” , mas toda “definição” do homem só é possível, então, se se disser outra coisa do que o homem.8 “O homem é o operário” , “o homem é o capitalista” , “o homem é o cidadão romano” , “o homem é o senhor feudal” — em todos esses juízos o “homem” passa “ no” seu predicado. Só os predicados do homem — “operário", "capitalista” , “cidadão romano” , “ senhor feudal” etc. são efetivamente. O homem está “lá” , mas só existe nos seus predicados; e estes predicados, em vez de serem determinações do sujeito “homem” (ou espécies do gênero “homem”) são de fato negações do homem enquanto homem. O ope rário, o capitalista, o senhor feudal, o cidadão romano etc. existem enquanto (e porque) o homem não existe: eles não existirão mais quando o sujeito “ deles” vier à existência.
b) O homem e o capital A afirmação segundo a qual, da perspectiva do discurso totali zante, se poderia dizer (enquanto se estiver no nível da “pré-história”) que o objeto é não o homem mas os predicados “ do” homem, exige certas precisões. Essas precisões nos obrigam a desenvolver mais amplamente o problema da reflexão (e também, como se verá, da não reflexão) do sujeito no predicado, no discurso marxista. Dizer que para
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a pré-história do homem o objeto do discurso marxista é não o homem mas os predicados “do” homem (para o caso do capitalismo — o ope rário e o capitalista) é uma afirmação aproximadamente válida, mas que, para um discurso sobre estruturas — ou mais precisamente sobre as estruturas do capitalismo — como o discurso de O Capital — exige algumas explicações. Na realidade, o discurso de O Capital tem como objeto central não o operário e o capitalista (o que poderia ser dito, de um modo bastante geral, do discurso sobre a luta de classes) — mas o próprio capital. Ora, que é o capital, e que representam em relação a ele o operário e o capitalista? A resposta a esta questão nos conduz à problemática do sujeito e do predicado. O capital, diz, com efeito, o Capítulo 4 (original) do Tomo I de O Capital, é sujeito. (O capital é “sujeito que domina” (übergreifendes Subjekt), “ sujeito automático” (automatisches Subjekt), “sujeito de um processo” (Subjekt eines Prozesses), ver Werke, 23, Das Kapital, op. cit., p. 169.) O operário e o capitalista são “suportes” desse sujeito, e num sentido (mais ontológico do que propriamente lógico) seus predicados. (A rigor, os predicados do sujeito “capital” — seus “momentos” — são o dinheiro e a mercadoria. O operário e o capitalista são suportes do capital, por serem suportes do dinheiro e das mercadorias — inclusive a força de trabalho — enquanto momentos do capital.) Vejamos tudo isto mais de perto. Observemos inicialmente que se se diz que o capital é sujeito — e a expressão “sujeito” que desaparece ou quase nas traduções deve ser tomada com todo o rigor — é porque ele é um movimento autônomo, um objeto-movimento.9 O capital só aparece como sujeito se o visarmos em movimento (mas só em movimento ele é o que é). Se o movimento se detém, só teremos os predicados (ou os momentos) do capital: o di nheiro e a mercadoria. Ora, é necessário que esta condição de sujeito do capital seja posta no nível da expressão, seja expressa no juízo. E para exprimir o capital enquanto sujeito no juízo — eis o que nos interessa aqui — é necessário obedecer a exigências inversas àquelas que vimos se impor ao “homem” (o qual, precisamente, antes do socia lismo, não é um verdadeiro sujeito). Isto é: se, dado que o homem, no capitalismo, não é um verdadeiro sujeito, em todos os juízos em que o sujeito gramatical é o homem ele deve se refletir no seu predicado — dado que no capitalismo o capital é um sujeito no sentido ontológico (pleno), é necessário, ao contrário, que a reflexão não se efetue, que o sujeito capital não passe "nos” seus predicados. Citemos o texto de Marx: “(...) Na circulação D-M-D’ (...) a mercadoria e o dinheiro só funcionam como diferentes formas de existência do próprio valor, o dinheiro como sua forma geral, a mercadoria como sua forma parti cular, por assim dizer, dissimulada. O valor passa constantemente de urna forma a outra, sem se perder nesse movimento, e se transforma assim num sujeito automático (automatisches Subjekt). Se nos detiver mos nas formas fenomenais particulares, que tomam alternativamente
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o valor que se valoriza no seu curso circular (im Kreislauf seines Lebens), se chega às explicações (Erklärungen): o capital ê dinheiro, o capital é mercadoria-, mas na realidade o valor se torna aqui sujeito de um processo (Subjekt eines Prozesses), que, sob a mudança constante das formas dinheiro e mercadoria, muda (a si mesmo) de grandeza, enquanto mais-valia se separa de si mesmo como valor primitivo, se valoriza (a si mesmo)...” . (Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., pp. 168169. O grifo é meu) Vê-se que nos juízos “o capital é dinheiro” , “o ca pital é mercadoria” , o “é” não deve exprimir uma reflexão: em se tratando de um sujeito no sentido ontológico pleno, o sujeito “capital” não deve passar nos predicados “mercadoria” e “dinheiro” . O capital deve ser posto como igual ao capital (isto é, como sujeito), ao contrário do que ocorre com o homém antes do socialismo (isto é, quando ele não é sujeito), e — acrescentemos — a exemplo do que ocorre com o homem se supusermos o socialismo (isto é, a situação em que ele se torna sujeito). (Com efeito, se, pensando no socialismo, digo “o homem é pintor” , “o homem é escritor” , “o homem é músico” etc. — “pin tor” , “escritor” , “músico” etc. seriam verdadeiras determinações do sujeito homem, o qual, sendo então um verdadeiro sujeito (como o capital no capitalismo), não se refletiria mais nos seus predicados. De resto, mas se trata na realidade da mesma coisa, supondo o fim da divisão do trabalho, todas essas determinações do homem deveriam, no limite, ser atribuíveis a cada homem, assim como todas as determina ções do capital — o dinheiro e a mercadoria — convêm a cada capital: o homem substituiria o capital enquanto “universal concreto” .) Podemos voltar agora ao nosso ponto de partida. Dizíamos: o discurso teórico marxista em sentido estrito — o que se refere às estruturas do capitalismo — não tem como objetivo central o operário e o capitalista, mas o capital. Lembrando que o operário e o capitalista são suportes do capital (e enquanto tais, num sentido — indicado — seus predicados), poder-se-ia dizer agora, sempre inserindo o discurso teórico no esquema totalizador — o discurso teórico marxista em sentido estrito tem como objeto central não os predicados do sujeito pressu posto “homem” , mas o sujeito real “capital” , cujos predicados — su portes — reais são os predicados (negações) “ do” sujeito pressuposto “homem” . c) Marxismo, humanismo, anti-humanismo Poderíamos resumir essas considerações, dizendo que no nível da sua “pré-história” o homem ê e não é. Ele é, mas é somente através de “seus” predicados, que são negações. Formulação que se distancia tanto do antropologismo (posição do homem) como do antiantropologismo (negação pura e simples do homem).
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Por outro lado, desenvolvendo a idéia de não posição (o que nos leva a pôr em evidencia a sua razão profunda) seria possível mostrar que toda posição do homem implica uma interversão no seu contrário; isto é, o humanismo — o humanismo se caracterizando pela posição do homem —- é na realidade um anti-humanismo (o humanismo se interverte em anti-humanismo), e que só a “supressão” (Aufhebung) do humanismo permite escapar ao “juízo” (inclusive em sentido “jurí dico”) “o humanismo é um anti-humanismo” e permite assim “supri mir” tanto o humanismo como o anti-humanismo. É o que faremos agora, desenvolvendo um movimento crítico, que pretende ser uma espécie de “ dedução” dos “principios” (o análogo dialético da “dedu ção” e dos principios) da política marxista. Voltaremos depois ao es quema totalizante. O humanismo — entendendo por humanismo a filosofia ou a política que põe o homem, o que significa, para que a definição seja rigorosa, aquela que não só visa fins “humanos” mas que, igual mente, só aceita os meios “humanos” (isto é, a que recusa a violência) — o humanismo é na realidade um anti-humanismo (o humanismo se interverte em anti-humanismo), Porque “pôr” (setzen, poser) o ho mem, isto é, postular uma prática “humana” (não violência etc.) num universo inumano (o do capitalismo e em geral o de todo o “pré-socialismo” , implica aceitar — se tomar cúmplice d’ — este universo inumano. O humanismo deve pois ser rejeitado. Mas se a recusa do humanismo significa a necessidade de aceitar a violência, e em geral algo como um princípio “não humano” como ponto de partida (todo o problema está na explicitação desse não humano) — ele não implica, como se poderia pensar, conforme a representação corrente, a acei tação do anti-humanismo. Há uma saída para esta falsa alternativa. Mas vejamos primeiro porque o aníi-humanismo é igualmente inacei tável. È que se o humanismo, efetuando a posição do homem, se inverte em anti-humanismo, o anti-humanismo — que seria preciso definir como a filosofia ou a política que pretende dispensar toda referência ao homem (tanto no nível dos meios como no nível dos fins)10 — o anti-humanismo não nos pode levar além da violência e do inu mano. Ele não pode nos conduzir a nada diferente disto. Assim, se conforme os princípios da lógica do entendimento, fôssemos obrigados a escolher entre o humanismo e o anti-humanismo,11 ficaríamos, respectivamente, entre a interversão (isto é, a contradição: a não violência é violência, o humano é o inumano), e uma espécie de “tautologia” (o inumano (não) é (mais do que) o inumano, a vio lência (não) é (mais do que) violência). A resposta que nos permi tiria pensar e formular rigorosamente a relação entre meios (neces sariamente) inumanos e fins humanos — e efetuar assim a passa gem dos primeiros aos últimos — não pode ser, portanto, nem a resposta humanista nem a resposta anti-humanista. Mas a resposta
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que recorre à idéia âe supressão (Aufhebung) 12 do humanismo. A polí tica marxista não deve ser definida nem como um humanismo, nem como um anti-humanismo: ela deve ser definida e pensada em termos de supressão (Aufhebung), de negação (no sentido dialético) do huma nismo. Negar dialeticamente o humanismo não quer dizer expulsar o homem (o “humano” , a não violência) em sentido absoluto, como o faz a negação vulgar aníi-humanista, mas negar a posição do homem (isto é, negá-lo conservando-o: expulsá-lo da expressão)-, operação que se torna necessária — e isto explica o carátpr da negação — pelo fato de que, se efetuarmos a posição do homem ou do princípio “humano” , o “humano” se interverte em “inumano” . Assim, negamos o homem (a não violência etc.) para que ele não se negue a si próprio. (Se não fosse esse o caso, não o negaríamos.) Assumimos a negação (dialética), para não sofrer a negação (vulgar). E na medida em que a negação dialética contém a contradição — com efeito, se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo (ou se se quiser, a violência de que partimos aqui não é a violência do anti-hümanismo que “expulsa” a não violência, mas é a violência-que-suprime-a-não-violência: que é portanto afetada de não violência13 — poderíamos dizer que assumi mos a contradição para não nos contradizer. (Com efeito, se não assumimos a contradição, contida na negação dialética, caímos, sem o querer,14 na interversão: nos contradiremos em sentido vulgar.) Assim, é só recusando as teses “consistentes” (aparentemente pelo menos) — do “humano” e do “in(anti)humano” , e enunciando a tese (dialeti camente) contraditória da “supressão” (Aufhebung) do humanismo — que se consegue escapar da contradição (vulgar) sem se refugiar na “tautologia” . E é só assim que se consegue exprimir de um modo rigoroso no plano filosófico a relação contraditória entre meios não humanos e fins humanos, tal como se acha resolvida — em princípio pelo menos — no nível da ciência e da prática política marxistas.
d) A dialética e os discursos do entendimento A crítica das duas falsas leituras pode também ser feita num outro nível (menos interessante). Assim, pode-se mostrar através da análise do capítulo V, original, do livro primeiro de O Capital, que o “homem” não está ausente do discurso teórico marxista, ainda que ele não tenha lá um papel fundante ou que não seja posto. Isto significa que a pressupo sição do homem se encontra tanto no nível do discurso teórico (isto é, para o “homem” tal como ele poderia aparecer no contexto da antro pologia em sentido estrito) como no nível da(s) (finalidades da) polí tica (para o “homem” tal como ele poderia aparecer no contexto do humanismo.15 As análises iniciais sobre o discurso totalizante, cujo núcleo era o paralelo com a Fenomenología do Espírito, englobam de
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certa maneira o conjunto desses resultados, embora elas estejam liga das mais de perto à crítica do humanismo. Dizer — no quadro de uma comparação com a.Fenomenología — que o “homem” , considerado no nível da sua pré-história, se reflete nos seus predicados é retomar a idéia de não fundação (como de não posição) acentuando a conexão entre a exigência de não fundar e o movimento da história. (Em parti cular a conexão entre a não fundação e a diferença pré-história/his tória, pensada assim na sua matriz hegeliana e com suas implicações para a teoria do juízo.) Por outro lado, no quadro da comparação com a Fenomenología já havia aparecido um movimento que tem algo em comum com o desenvolvimento sobre a “interversão” como resultado necessário da posição — espécie de “mostração” negativa da neces sidade da não posição (e sua forma era de certo modo mais geral, e aplicável ao conjunto da antropologia), a idéia de que a posição “per verte” o discurso. A comparação com &Fenomenología sintetiza assim e põe num plano mais geral os diferentes aspectos da crítica do antropologismo e do humanismo, e do antiantropologismo e do anti-humanismo. E na medida em que antropologismo (inclusive humanismo) e antiantropologismo (inclusive anti-humanismo) representam, no qua dro da nossa problemática, as alternativas do entendimento à dialética, poderíamos agora discutir num nível mais geral o que opõe a dialética aos discursos do entendimento. e) Dialética e fundação, a dialética e o tempo Do conjunto das análises anteriores, a dialética aparece, em pri meiro lugar, como o discurso que “suprime” o ato de fundar (enten dendo por “fundar” o movimento de uma fundação primeira). De fato, a partir dessas análises, a fundação (primeira) — esta máquina de guerra da filosofia clássica — esta operação que, segundo o ideal cartesiano, deveria assegurar ao discurso um máximo de rigor e de clareza, se revela como conduzindo, na realidade, ao resultado contrá rio, longe de ser uma garantia do rigor do discurso, a fundação o “ dissolve” enquanto discurso rigoroso. Com efeito, lá onde não há sujeito fundante (no universo de uma pré-história) a fundação (pri meira) não é uma operação inocente — se fundarmos, o discurso se interverte no seu contrário, ou, de um modo mais geral, é conduzido a se afastar do seu objeto. A fundação primeira do discurso é assim, se interverte assim — nessas condições — na sua dissolução. A fundação é a sua perda.16 E se fundar é clarificar, na medida em que fundar é clarificar, isto significa, ao mesmo tempo — se quisermos conservar a oposição clareza-obscuridade, mas infletindo-a no sentido da dialética —, que o máximo de clareza é na realidade obscurecimento. Com efeito, de tudo o que dissemos resulta que um discurso só é claro, do
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ponto de vista da dialética, se ele for coberto por certas “zonas de sombra” . Só os discursos cujos fundamentos primeiros são de algum modo obscuros (isto ê, afetados de ‘‘negação’') são discursos efetiva mente claros, em sentido dialético. Por outro lado, se a dialética apareceu como o discurso que suprime a fundação (primeira), esta supressão (Aufhebung), inserida no quadro do esquema totalizante, se apresenta como uma espécie de "suspensão ” do ato de fundar à espera do transcurso do tempo (do tempo da “pré-história”). É necessário que esse tempo transcorra para que se possa proceder à fundação. Assim, o ato de fundar é de certo modo “posto entre parênteses” , “posto fora dç circuito” , em benefício (do transcorrer) do tempo. Ora, esse relacionamento da Aufhebung — rebatizada Ausschaltung a bem da comparação17 — com o tempo, permite enriquecer a comparação entre a dialética e os discursos do entendimento. Com efeito, se pensarmos que essa relação com o tempo é igualmente a relação com o “mundo” , poderemos dizer: se os dis cursos do entendimento (a filosofia transcendental em particular), põem entre parênteses o mundo (o tempo) para proceder ao ato de fundar, a dialética põe entre parênteses o ato de fundar para se apro priar teórica e praticamente do m undo.16 Formulação que exige duas precisões. Primeiramente, como já dissemos, entendemos por fundação a fundação primeira, não toda espécie de fundação: a dialética não é de modo algum estranha a toda fundação. Por outro lado, a referência à “apropriação teórica e prática do mundo” não implica considerar a dialética como um pensamento que, enquanto pensamento teórico, tem como “elemento” a temporalidade vivida da história: a dialética não se distingue dos discursos do entendimento por ser (pretensamente) uma filosofia “mundana” . Seria recusar o antropologismo para cair no historicismo. As duas observações se encontram: para a dialética, só há verdadeira apropriação teórica do mundo se “ suprimimos” o tempo vivido por meio de uma fundação teórica (por um discurso do conceito que é “ anterior” , em sentido a precisar, ao discurso da consciência histórica): mas uma tal fundação — a única que é compatível com o tempo de uma “pré-história” — sendo interior ao universo dos “predi cados” , nada tem a ver, nem quanto à forma nem quanto ao conteúdo, com uma fundação transcendental. f) A dialética e as alternativas do entendimento Mas se a dialética se caracteriza pela “ supressão” do ato de fundamentação primeira — observemos em conclusão — tal supressão é rigorosamente uma Aufhebung, não uma negação vulgar. O discurso que recusa pura e simplesmente a fundação primeira é tão estranho à dialética quanto o discurso que funda. Ele representa de certo modo a
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alternativa cientificista do entendimento à dialética, assim como o dis curso com fundamento primeiro representa sua alternativa propria mente filosófica. A primeira recusa toda espécie de totalização, en quanto a última totaliza dogmaticamente (por meio de noções postas). Mas não sendo mais do que a efetivação do outro pólo de possibilidades da lógica do entendimento, o discurso sem fundamento primeiro é governado pelas mesmas leis (reflexivas, remetendo à lógica da iden tidade) que o discurso com fundamento primeiro. Encontramos o discurso sem fundamentação primeira, no nível da política, na figura do anti-humanismo. No plano teórico, ele repre senta propriamente, nos limites da nossa problemática, o antiantropologismo em sentido estrito. Ora, se fizemos a crítica dos discursos com fundamento primeiro mostrando como eles sofrem uma “interversão” (ou, de um modo mais geral, como a fundação os dissolve enquanto discursos rigorosos) — do discurso sem fundamento, na única forma em que foi considerado até a q u i—, a do anti-humanismo, dissemos que ele se encerra numa espécie de tautologia. Ora, se considerarmos o antiantropologismo, ou antes, um exemplo célebre de antiantropologismo, poder-se-ia estabelecer uma simetria mais perfeita com a crítica da forma positiva (a crítica dos discursos com fundamentação pri meira): poder-se-ia mostrar —- sem dúvida, empregando o termo “interversão” em sentido mais amplo — como ocorre aqui, simetri camente, uma espécie de “interversão" do antiantropologismo em antropologismo.19 Por paradoxal que isto possa parecer — e o para doxo é real — me refiro ao antiantropologismo althusseriano (ou ao althusserismo considerado como antiantropologismo).20 Com efeito, nada caracteriza melhor o althusserismo — pelo menos aparentemente — do que a sua orientação antiantropologista (insistência no papel de suporte dos agentes, recusa de todo agente sujeito). Por isso na dis cussão sobre o althusserismo, se opuseram antropologistas e antiantropologistas. E entretanto, o paradoxo passou despercebido: por razões que — poderíamos mostrar — derivam do caráter nitidamente antidialético do althusserismo (recusa da Aufhebung, impossibilidade de conceituar objetos-movimentos etc.), caráter que tem algo que ver com a natureza abstrata (“anti”) de sua oposição ao antropologismo, o antiantropologismo althusseriano se interverte em antropologismo. O antropologismo é a sua verdade. Que se reflita sobre o papel privile giado atribuído pelos althusserianos (ver, por exemplo, Balibar) ao capítulo V (original) do primeiro tomo de O Capital, onde se trata da produção em geral, e onde se introduzem as pressuposições antro pológicas. Uma análise do tratamento que dão os althusserianos a esse ponto mostra: 1. que no althusserismo, os pressupostos antropológicos se tomam — ou, para certos textos, estão muito próximos de se trans formar em — verdadeiros fundamentos antropológicos; de tal modo que o fundamento antropológico, recusado em princípio, acaba se
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introduzindo no discurso (mesmo quando a posteriori eles pretendem nos advertir do contrário); 2. que esta “revanche” da antropologia resulta do caráter essencialmente não dialético do pensamento althusseriano, que é incapaz de apreender as relações de produção num nível que não seja o nível “não móvel” das pressuposições, do que resulta — as pressuposições passam a ocupar o lugar da verdadeira relação de produção — que é o próprio capital.21
SEGUNDA PARTE a) História e posição Retomemos a análise do discurso totalizante. Fixando-nos na noção de “homem” , mostramos na primeira parte a significação geral desse discurso. Procederemos agora a um duplo trabalho. Por um lado, trata-se de pôr em evidência o conjunto das noções que, particular mente no discurso.dos Grundrisse, desempenham uma função análoga: como a noção de “homem” não é a única a ter a função descrita, será preciso identificar as diversas noções que, sempre como pressuposi ções, permitem abranger o conjunto do movimento histórico. Por outro lado, tratar-se-á de analisar a significação particular que poderiam tomar essas pressuposições, conforme se considere este ou aquele modo de produção. Explicamos. Não se trata de passar do esquema global, que utiliza pressuposições, a análises relativas a cada modo de pro dução que mobilizam noções postas. Um movimento como este, que na realidade estabeleceria uma anterioridade lógica do esquema global em relação às análises particulares, dando assim às pressuposições o esta tuto de fundamentos, seria contraditório com tudo o que foi dito. Pelo contrário: particularizaremos as pressuposições enquanto pressuposi ções, isto é, tentaremos mostrar, a partir do que Marx diz sobre cada modo de produção, que sentido diferencial tomam essas pressuposições, conforme se as considere como visando este ou aquele modo. Por exem plo, que diferença poderia haver entre um juízo do tipo “o homem é o grego” e um juízo como “o homem é o operário” . 22 Os resultados desse duplo trabalho, e em particular os que concernem ao sentido das pressuposições para o caso do capitalismo, nos permitirão retomar as considerações gerais sobre a dialética. b) Quadro das pressuposições23 No esquema da história que se encontra nos Grundrisse, a pas sagem da “pré-história” à “história” não representa somente o surgi-
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mento do homem (sujeito), não concerne somente ao conceito de “homem” . Tal movimento representa também o surgimento da riqueza (da verdadeira riqueza), da liberdade (da verdadeira liberdade) e, por estranho que pareça, da verdadeira “propriedade” (ou da “proprie dade individual”) no sentido em que a noção é empregada em O Ca pital, quando Marx escreve: “Ela (a negação da propriedade capita lista, isto é, o socialismo) restabelece não a propriedade privada, mas sem dúvida a propriedade individual (das individuelle Eigentum), fun dada (auf Grundlage) nas aquisições da era capitalista (...)” .24(A “pro priedade” entendida, conforme o uso dos Grundrisse, como conotando uma relação “viva” , fonte de gozo, entre os homens e as coisas.)25 As noções de “homem” , de “riqueza” , de “liberdade” e de “propriedade” (no sentido indicado) representam assim o conjunto das pressuposi ções, ou pelo menos as mais importantes delas,26 por meio das quais se organiza o quadro geral da história que oferecem os Grundrisse. Isto significa, como indicamos, que o conjunto da história pode ser pensado como constituindo a “pré-história” do homem, mas igualmente a “pré-história” da riqueza (da verdadeira riqueza), a “pré-história” da liberdade (da verdadeira liberdade), a “pré-história” da “propriedade” (da verdadeira propriedade, ou da “propriedade individual” , no sen tido indicado). E, no plano lógico, isto significa que todos os juízos sobre a “pré-história” cujo sujeito, em sentido gramatical, é o homem, a riqueza, a liberdade e a “propriedade” (o homem é..., a riqueza é..., a liberdade é..., a “propriedade” é...) são juízos de reflexão, nos quais o sujeito passa “no” predicado. Tentemos exemplificar esses juízos, tomando na medida do possí vel os próprios textos de Marx. Para a noção de “homem” , poderíamos lembrar um exemplo célebre, ainda que este exemplo não convenha de modo perfeitamente exato ao nosso caso. Refiro-me à tese VI sobre Feuerbach: “Feuerbach resolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência hu mana não é um abstrato (ein Abstraktum) inerente ao indivíduo iso lado (dem einzelnen Individuum). Na sua realidade efetiva, ela é o conjunto (das Ensemble) das relações sociais” . 27 Ou, resumindo: “A essência humana — (nas traduções se encontra às vezes “o homem” em lugar de “a essência humana”) — é (...) o conjunto das relações sociais” . Com efeito, a tese VI só pode ter um sentido rigoroso, que escape ao humanismo, se ela for lida como um juízo de reflexão em que só o predicado é posto. Em “a essência humana é o conjunto das relações sociais” , só o predicado “relações sociais” — não o sujeito “essência humana” (ou então “homem”) — é posto. “Essência hu mana” — ou então “homem” — se reflete em “relações sociais” . Para que a tese VI corresponda plenamente ao nosso caso, é necessário liberá-la do universo da “transição” e reinterpretá-la da perspectiva dos textos de maturidade. Com efeito, no universo discur-
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sivo da transição — ver A Ideologia Alemã que, para o problema da antropologia, é a contrapartida exata das obras de juventude (o que não se poderia dizer das obras de maturidade) — as pressuposições antropológicas funcionam só como simples pressupostos do discurso substantivo. Elas não remetem ao mesmo tempo, como é o caso, na obra de maturidade, à possibilidade de um preenchimento progressivo, que poderia conduzi-las à posição final enquanto sujeitos. (Digamos, no universo discursivo da transição, as pressuposições só remetem ao quadro não-móvel da antropologia em sentido estrito.) Lido no con texto da transição, “o homem é o conjunto das relações sociais” só contém assim a reflexão do sujeito “homem” no predicado “relações sociais” , no qual o primeiro “se” preenche; mas não o outro lado da coisa: o movimento que deveria preencher o sujeito “homem” e fazer dele um verdadeiro Sujeito, no sentido ontológico. A possibilidade desse movimento só aparece se reinterpretarmos a tese da perspectiva da maturidade. Observemos entretanto — ponto que será retomado de um modo mais detalhado na observação abaixo — que, qualquer que seja a perspectiva de leitura (mesmo se, nos colocando do ponto de vista do universo da transição, fizermos economia do enriquecimento pro gressivo do sujeito), o movimento sujeito/predicado não exprime de forma alguma uma negação vulgar, um desaparecimento do sujeito no predicado, mas uma Aufhebung, uma negação que é também conser vação do sujeito enquanto sujeito pressuposto. Observação No quadro da sua crítica do humanismo e em particular da crítica da noção de “humanismo real” , em PourM arx, Althusser toca no problema da tese VI, e faz as seguintes considerações a esse res peito: “Qual é, com efeito, esta ‘realidade’ que deve transformar o antigo humanismo em humanismo-real? É a sociedade. A tese VI sobre Feuerbach diz mesmo que o ‘homem’ não abstrato é ‘o conjunto das relações sociais’. Ora, se tomarmos esta expressão, literalmente, como uma definição adequada, ela não quer dizer nada. Que se tente sim plesmente dar uma explicação literal disto, e se verá que não a encon traremos, a menos que recorramos a uma perífrase deste tipo: ‘se se quiser saber qual é a realidade, não a que corresponde adequadamente ao conceito de homem ou de humanismo, mas que está indiretamente em causa nesses conceitos, não é uma essência abstrata, mas o con junto das relações sociais’. Esta perífrase faz aparecer imediatamente uma inadequação entre o conceito homem e a sua definição: conjunto das relações sociais. Entre esses dois termos (homem/conjunto das relações sociais) há sem dúvida uma relação, mas ela não é legível na definição, não é uma relação de definição, não é uma relação de conhecimento” (grifado sempre por Althusser). E Althusser continua:
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“Entretanto esta inadequação tem um sentido, esta relação tem um sentido: um sentido prático. Esta inadequação manifesta designa uma ação a realizar, um deslocamento a efetuar. Ela significa que, para encontrar e achar a realidade à qual se alude buscando não mais o homem abstrato mas o homem real, é necessário passar à sociedade, e pôr-se a analisar o conjunto das relações sociais. Na expressão humanismo-real, eu diria que o conceito “real” é um conceito prático, o equivalente de um sinal, de um painel indicador, que “indica” que movimento é preciso efetuar, e em que direção, até que lugar é preciso se deslocar para sè encontrar não mais no céu da abstração mas na terra real. “Por aqui, o real!” Seguimos o guia, e desembocámos na sociedade, nas relações sociais, e suas condições de possibilidade real. Mas é então que eclode o escandaloso paradoxo: uma vez efetuado realmente esse deslocamento, uma vez feita a análise científica desse objeto real, descobrimos que o conhecimento dos homens concretos (reais), isto é, o conhecimento do conjunto das relações sociais, só é possível se dispensarmos completamente os serviços teóricos do con ceito de homem (no sentido em que ele existia, na sua pretensão teórica mesmo antes desse deslocamento). Este conceito, com efeito, nos apa rece (como) inutilizável do ponto de vista científico, não porque ele é abstrato! — mas porque ele não é científico. Para pensar a realidade da sociedade, do conjunto das relações sociais, devemos efetuar um deslo camento radical, não só um deslocamento de lugar (do abstrato ao concreto) mas também um deslocamento conceptual (mudamos os conceitos de base!). Os conceitos nos quais Marx pensa a realidade, para a qual indicava o humanismo-real, não fazem mais intervir uma única vez como conceitos teóricos os conceitos de homem ou de huma nismo; mas outros conceitos inteiramente novos, os conceitos de modo de produção, de forças de produção, de relações de produção, de superestrutura, de ideologia etc. Eis o paradoxo: o conceito prático que nos indicava o lugar do deslocamento foi consumido no próprio deslo camento, o conceito que nos indicava o lugar da investigação está daqui por diante ausente da própria investigação” . (Althusser, “Marxismo e Humanismo” , “ nota complementar sobre o humanismo real” , in Pour Marx, Paris, Maspero, 1965, pp. 254-255) O comentário desse texto oferece certas dificuldades porque Althusser trata ao mesmo tempo da questão do “humanismo real” e do problema levantado pela tese VI, os quais não são perfeitamente idênticos. Esse relacionamento já é, de resto, sintomático. Aqui nos interessa somente a tese VI. Observemos inicialmente — o que não deixa de ser saboroso: o anti-hegeliano Althusser topa aqui com uma forma que foi estudada pela lógica de Hegel. Porque aquilo que é visado pelo texto — sem que Althusser consiga formulá-lo de Um modo satisfatório — é o juízo de reflexão, o movimento de reflexão do sujeito “no” predicado. Althusser apreen de este movimento não sem acentuar, com uma certa perplexidade,
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(udo o que o separa do seu próprio universo lógico: “não é uma relação de definição” (o que é verdade em certo sentido), “não é uma relação de conhecimento” (o que já vai longe demais), e ele se refere ao mesmo na continuação, em termos de “escandaloso paradoxo” . Mas se, de qualquer modo, devemos reconhecer os méritos de Althusser em haver registrado, contra as leituras ingênuas dos humanistas, o movimento sujeito/predicado que contém a tese VI — méritos que em certo sentido são tanto maiores dado o fato de que ele não parte, muito pelo con trário, dos resultados da lógica de Hegel —, não se deve perder de vista que, na interpretação que dá, ele paga um preço pelo seu anti-hegelianismo. Com efeito, a interpretação que dá Althusser à tese VI só põe em evidência o lado negativo da passagem, a negação do sujeito pelo predicado, não a sua conservação enquanto sujeito-negado. Mesmo se ele diz que o “homem” só desaparece enquanto conceito teórico (ou por isto mesmo: é compreender mal as pressuposições dizer que a função delas é “prática”), é evidente que ele toma a negação do “homem” na tese VI como uma negação vulgar; o “homem” só indicaria o “lugar de um deslocamento” . Tal leitura é evidentemente insuficiente. Mesmo se tivermos em vista o universo da transição, A Ideologia Alemã, que atribui às pressuposições o estatuto mais pobre, veremos que — pelo menos considerando o seu uso efetivo por Marx — elas têm, de qualquer modo, funções mais ricas do que as que lhes atribui Althusser. Tomálas como “conceitos práticos” , como signos (ou sinais?) indicativos de uma ação, implica enveredar pela interpretação mais nominalista das pressuposições. (Esta interpretação não impediu de resto que Althusser encetasse ao mesmo tempo o movimento contrário no que se refere às pressuposições do capítulo V (original) do livro I de O Capital (ver a esse respeito o final da primeira parte do nosso texto).) Assim, a análise da tese VI, que deveria conduzir à dupla crítica do antropoíogismo e do anti-antropologismo, só desembocou na crítica justificada mas unila teral — e portanto falsa — do antropoíogismo, com o seu corolário antinômico: a emergência do próprio antropoíogismo. Esse texto de Pour Marx é exemplar na medida em que ele mostra como, levado pela sua própria problemática, a “ quietude” do entendimento althusseriano foi conduzida às vezes até os limites da “inquietude” da razão dialética, sem evidentemente perceber o abismo de que se aproxi mou. Para a noção de “riqueza” , pode-se encontrar um juízo de refle-' xão, em que “riqueza” será portanto sujeito pressuposto, num outro texto célebre, o primeiro parágrafo do capítulo primeiro do livro I de O Capital: “A riqueza das sociedades em que reina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’, a mercadoria singular como a sua forma elementar” . 28 Esta frase pode
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ria ser simplificada no juízo: “(No capitalismo), a riqueza é... mercadoria” , juízo no qual só o predicado “mercadoria” , não o sujeito “ri queza” , é posto. Observação Como para o conceito de “homem” , encontramos nos althusserianos urna crítica do conceito de “riqueza” , exatamente a propósito do parágrafo primeiro do livro I de O Capital. Em “A propósito do pro cesso de exposição do Capital”, Macherey escreve, comentando esse parágrafo: “(...) Com efeito, o ponto de partida da exposição de Marx é absolutamente surpreendente, o primeiro conceito, o conceito de que todos os outros irão ‘sair’, é o conceito de RIQUEZA. Não se trata evidentemente de uma abstração científica, mas de um conceito empí rico, falsamente concreto, próximo daqueles que a Introdução nos ensinou a denunciar (ver por exemplo a crítica da idéia de ‘população’). A riqueza é uma abstração empírica: é uma idéia: falsamente concreta (empírica), incompleta nela mesma (ela não tem sentido autônomo, mas só em relação a um conjunto de conceitos que ela recusa). A riqueza é um conceito ideológico, do qual à primeira vista não se pode tirar nada. Do ponto de vista do processo de investigação (do trabalho da investigação científica), ela constitui o pior ponto de partida. Apa rentemente não é a mesma coisa para o processo de exposição, pois é a partir déla que Marx apresenta os conceitos fundamentais da sua teoria. Que se deve pensar desse início? — Várias observações permi tem responder a essa questão: 1) Marx não pede a essa idéia mais do que ela pode efetivamente produzir. Ao conceito empírico ele aplica uma análise empírica: ele decompõe a riqueza em seus elementos, no sentido mecânico do termo (a mercadoria é a ‘forma elementar’, ce lular, da riqueza); a riqueza não é mais do que uma acumulação de mercadorias. A idéia é ‘explorada’ nos seus próprios limites: não se pretende fazê-la dizer o que não pode dizer; 2) Esta idéia, na medida em que nos contentamos assim em descrevê-la sem lhe acrescentar nada, sem dotá-la de um segredo que, pelo contrário, ela eliminou piedosamente, não tem necessidade de justificação: ela não diz nada além do que comporta a sua insuficiência. Ela é portanto um ponto de partida, se não legítimo, pelo menos cômodo: ela é o objeto empírico, imediatamente dado, da ‘ciência econômica’. É bem nessa qualidade que ela fornecia um quadro, por exemplo, à pesquisa de Adam Smith. Tudo se passa como se ela desempenhasse aqui o papel de uma revocação: entende-se habitualmente por economia política o estudo da ri queza; se partimos da idéia de riqueza, vemos que esta idéia se decom põe... Mas evidentemente este conceito não tem valor por si mesmo: ele é profundamente transitivo, ele serve para passar a outra coisa, e em particular para recordar a ligação com o passado da investigação
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científica. Essa função evocatória montra bem que o conceito não deve o seu primeiro lugar ao seu rigor, mas pelo contrário ao seu caráter arbitrário. Ele manifesta pela sua evidente fragilidade a necessidade de falar de outra coisa, de entrar nesse difícil caminho que só avança a partir do esquecimento de tudo o que o precedeu (...)” . (Macherey, P., “À propos du processus d’exposition du Capital” in Lire le Capital, IV, Paris, Maspero, 1973, pp. 17-18, grifado pelo autor) A exemplo do que vimos para a noção de “homem” , o althusserismo dá bem conta do caráter externo da noção de riqueza, isto é, do “lado” da sua ausência ou da sua negação. Mas o lado positivo, o da sua presença enquanto sujeito-“negado” , só é expresso por termos totalmente imprecisos (“função evocatória” , “comodidade” etc.). O que confirma as obser vações anteriores (ver observação acima).
Para as noções de “liberdade” e de “propriedade” , daremos por enquanto só exemplos “artificiais” : (no capitalismo) “ a liberdade é... a liberdade burguesa” , “a propriedade é... a propriedade privada capitalista” , nos quais, só os predicados “liberdade burguesa” e “pro priedade privada capitalista” são postos.
ç) Pré capitalismo, capitalismo, socialismo Vejamos agora de que forma se poderia particularizar estas noções; isto é, examinemos que significações diferenciais se poderia atribuir aos juízos de reflexão do tipo “o homem é ...” , “a liberdade é...” etc., conforme se considere este ou aquele modo de produção. Tal análise poderia ser reduzida a dois casos: o do pré-capitalismo (considerado em conjunto) e o do capitalismo. Com efeito, ainda que Marx analise nos Grundrisse (sobretudo no início das Formas...) as particularidades das diversas formações pré-capitalistas — no es quema do conjunto da história que ele dá na continuação do mesmo texto, a história aparece dividida em três grandes momentos: o pré capitalismo (considerado em bloco ou “representado” pela Antigui dade clássica), o capitalismo e o socialismo. Como para o socialismo não haveria mais reflexão do sujeito no predicado — porque nesse caso o homem é um verdadeiro sujeito — o nosso problema se reduz a dis tinguir os juízos de reflexão que têm como objeto o pré-capitalismo dos juízos de reflexão que têm como objeto o capitalismo. Se se quiser, trata-se de mostrar a diferença — se há diferença — entre um juízo como “o homem é o grego” ou “o homem é o cidadão romano” , e um juízo como “o homem é o operário” ou “o homem é o capitalista” . Trata-se na realidade de projetar sobre o plano do juízo — isto é, de
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pensar como expresso no movimento do juízo — a diferença real, esta belecida no plano geral do conteúdo, entre o pré-capitalismo e o capi talismo.29 Mas o conteúdo dessa distinção, tal como a encontramos em Marx, parece à primeira vista contradizer o que dissemos sobre a não-posição do homem-sujeito no nível da “pré-história” . Com efeito, os Grundrisse, como o conjunto dos textos de Marx, distinguem o pré-capitalismo do capitalismo a partir do fato de que no primeiro a finalidade da produção é o valor de uso ou a satisfação dos indivíduos, enquanto no segundo a finalidade é a valorização do valor. Ora, proje tada sobre o problema da função dos agentes, o qual por sua vez nos remete à problemática do juízo, a distinção equivale aparentemente a afirmar que no pré-capitalismo (onde a finalidade é o valor de uso e portanto a satisfação dos agentes) os agentes são sujeitos; enquanto no capitalismo, onde, pelo contrário, a valorização do valor é a finalidade, os agentes são apenas suportes. Mas como conciliar essa distinção, e em particular a idéia dos agentes-sujeitos no pré-capitalismo, com o esquema anterior nos termos do qual coincidiam o surgimento do sujeito e o fim da “pré-história” ? Seria preciso restringir a não-posição do sujeito ao caso exclusivo do capitalismo? Ora, examinando bem, se vê que tanto para o pré-capitalismo como para o capitalismo o “homem” é, sem dúvida, uma pressuposição, embora não o seja do mesmo “modo” . Com efeito, se considerarmos um juízo como “o homem é o cidadão romano” ou um juízo como “o homem é o ope rário” , é preciso sempre reconhecer a passagem do sujeito “no” predi cado, pois o “homem” não é nem em um caso nem em outro um verdadeiro sujeito ontológico como no socialismo. Mas as duas refle xões não têm a mesma significação particular. Poder-se-ia exprimir de um modo muito geral essa diferença, dizendo inicialmente que, se nos dois casos, o “homem” passa “no” “seu” predicado, o predicado no qual ele se reflete é, no primeiro caso, algo assim como um sujeito no interior do universo dos predicados, ao passo que, no segundo, o predi cado é sem dúvida um predicado, mesmo em relação ao universo dos predicados. Se eu disser: “o homem é o grego” (pensando sempre na Antiguidade), “homem” passa, sem dúvida, “no” predicado “grego” e é negado por ele, assim como ele passa “no” predicado “operário” e é negado por “operário” em “o homem é o operário” : com efeito, a Anti guidade, como a época capitalista, só pertence à “pré-história” do “homem” . Mas diferentemente do predicado “operário” , que exprime rigorosamente um suporte, o predicado “grego” exprime de certa forma o “homem” enquanto sujeito, pois, tanto para a Antiguidade como para o conjunto do pré-capitalismo, os “homens” são a finali dade da produção.30 Seria necessário, entretanto, exprimir essa dife rença de um modo mais preciso. Para isto examinemos os textos dos Grundrisse. Depois de ter mostrado que na Antiguidade (pré-capita lismo), “ a riqueza — entendida como riqueza abstrata e objetiva —
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nunca é a finalidade da produção” , Marx escreve nas “Formas que precedem a produção capitalista” , pondo em paralelo a Antiguidade (o pré-capitalismo), o capitalismo e o socialismo: “(...) Assim, a visão antiga, em que o homem aparece sempre como a finalidade da pro dução — qualquer que seja a sua determinação limitada, nacional, religiosa, política — parece muito elevada diante do mundo moderno em que a produção aparece como a finalidade do homem e a riqueza como a finalidade da produção. Mas, de fato, quando a forma bur guesa limitada é retirada, que é a riquéza senão a universalidade — produzida no intercâmbio universal — das necessidades, capacidades, gozos, forças produtivas etc. dos indivíduos? O pleno desenvolvimento da dominação humana sobre as forças naturais tanto as da assim chamada natureza como a da sua própria natureza? (...) Na economia burguesa — e na época de produção que lhe corresponde — esta plena elaboração (diese völlige Herausarbeitung) da interioridade humana aparece como um completo esvaziamento (völlige Entleerung), esta objetivação universal (universelle Vergegenständlichung) como aliena ção total (totale Entfremdung), a derrubada de todas as finalidades determinadas unilaterais, como sacrifício da finalidade-de-si (Selbs tzweck) em benefício de uma finalidade totalmente externa. Por isso, de um lado, o infantil mundo antigo aparece como superior. Por outro lado, ele o é sempre que se buscar (uma) configuração, (uma) forma fechada, e (uma) delimitação estabelecida. Ele é satisfação de um ponto de vista limitado; enquanto o (mundo) moderno (das Moderne) deixa insatisfeito, ou quando aparece satisfeito de si, ele é vulgar (gem ein)".31 Vê-se de que forma o texto distingue o mundo antigo (que, até certo ponto, representa aqui o pré-capitalismo em geral) do mundo moderno (isto é, do capitalismo): como a finalidade da pro dução nas economias pré-capitalistas é a reprodução dos indivíduos e não a riqueza (objetiva, abstrata) pela riqueza, nelas os indivíduos são satisfeitos, o que permite estabelecer uma relação entre o pré-capitalismo e o socialismo; mas se trata de uma satisfação no interior de um círculo limitado. Ao passo que no capitalismo temos a situação inversa: como a finalidade da produção capitalista não é a satisfação dos indi víduos mas a riqueza (objetiva, abstrata) pela riqueza, no capitalismo o indivíduo permanece insatisfeito. E, entretanto, o princípio do capi talismo é o do desenvolvimento infinito, da derrubada de todas as barreiras e de toda limitação; o que, por sua vez, permite aproximar o capitalismo do socialismo. Assim, pré-capitalismo e capitalismo res pondem cada um deles a uma das exigências do socialismo — a satis fação do indivíduo ou o desenvolvimento infinito, mas sacrificando a outra. Se lermos agora esses resultados, fixando-nos nos juízos de refle xão que têm como objeto o pré-capitalismo e o capitalismo, obteremos os seguintes resultados: se digo “o homem é o grego” (ou “a riqueza é a
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riqueza no sentido antigo” , ou “a liberdade é a liberdade antiga” etc.), o sujeito passa “no” predicado, o predicado nega o sujeito, mas isto apenas porque o predicado só satisfaz ao sujeito de um modo limitado. O predicado “grego” (“romano” etc.) nega o sujeito “homem” não porque “grego” (ou “romano”) é um não-sujeito no sentido em que “operário” e “capitalista” são não-sujeitos, mas porque este predicado, como os outros predicados análogos, encerra o sujeito “homem” numa determinação limitada. A negação só está, aqui, na limitação. Mas não é assim nos juízos “o homem é o operário” , “o homem é o capitalista” (ou “ a liberdade é a liberdade burguesa” , “ a riqueza é a riqueza capitalista” , “a propriedade é a propriedade privada capitalista”). Nesse caso, a negação do sujeito pelo predicado não provém de forma alguma da limitação dos predicados. O operário, o capitalista, a liber dade burguesa, a riqueza no sentido capitalista, a propriedade privada capitalista não são a rigor expressões limitadas dos “seus” sujeitos. O princípio infinito está lá, em todas essas expressões.32 O predicado satisfaz sem dúvida à infinidade do sujeito — ou não a afeta — e desse ponto de vista não haveria mais negação. Mas ele só a satisfaz de forma negativa. O sujeito não encontra uma forma limitada (mas de certo modo positiva, ou negativa só enquanto limitada), mas encontra um infinito negativo. A negação não é limitação do infinito, mas realização negativa do infinito enquanto infinito. O que significa: para o capita lismo, os predicados dos sujeitos (pressupostos) “homem” , “riqueza” , “liberdade” , “propriedade” , conservando o princípio infinito, expri mem propriamente uma interversão (renversement) na negação deles, uma interversão em seus contrários. Aqui, rigorosamente, o homem é não-homem, a liberdade é não-liberdade, a riqueza é nâo-riqueza, a propriedade é não-propriedade. O predicado exprime a negação do sujeito: a relação entre sujeito e predicado é uma relação contraditória. Tentemos agora exemplificar essas interversões (enquanto interversões) e analisar mais de perto a sua significação. É a partir de lá — este ponto representa, de fato, o núcleo do que tínhamos a dizer nesta segunda parte — que tentaremos tirar novas conclusões relativas à dialética. d) Á interversão Que no capitalismo o homem se interverte em não-homem, a liberdade em não-liberdade, a riqueza em não-riqueza, a propriedade em não-propriedade se poderia ver, primeiro, mostrando simplesmente como os predicados dessas determinações, para o caso do capitalismo, estão em contradição com os seus sujeitos: com efeito, a liberdade burguesa é liberdade do capital,33 a propriedade privada burguesa é menos propriedade do indivíduo sobre o capital do que propriedade do
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capital sobre ele mesmo,34 a riqueza burguesa é de fato pobreza (subjetiva),35 o homem (o operário, o capitalista) é na realidade um “não-homem” . Ou, em outros termos, no capitalismo a liberdade ¥=■ liberdade, o homem ^ homem, a propriedade ^ propriedade, a riqueza ^ riqueza. As identidades liberdade = liberdade, homem = homem, propriedade = propriedade, riqueza = riqueza só se produ ziriam no socialismo. Entretanto, nos interessa mostrar o lugar dessa interversão na própria construção de O Capital (pois ela tem um lugar lá), mostrar o lugar preciso em que ela se encontra e a significação que toma no conjunto da apresentação do modo de produção capitalista. Para isto, será preciso examinar o que ocorre com as noções de proprie dade e de liberdade (também, de certa forma, para a noção de homem e para a noção de riqueza) quando se passa das seis primeiras secções de O Capital à secção sétima. Com efeito, é lá que se opera a interversão. e) A interversão em O Capital36 A interversão no livro primeiro de O Capital decorre da mudança que se opera, quando se passa à teoria da reprodução, no que se refere à maneira de pensar o movimento do capital. Razão pela qual será preciso demorar-se nesse ponto. Até a secção sexta, o movimento do capital aparece de uma forma descontínua, pois cada volta do capital é considerada independentemente da que a precede e da que a sucede, como se estivéssemos sempre na primeira volta. De tal modo que o movimento do capital estaria ainda suspenso ao seu ponto de partida representado por um contrato entre dois agentes livres. Esses agentes se encontrariam “fortuitamente” no mercado, e obedecendo à lei da troca de equivalentes, trocariam a mercadoria força de trabalho, da qual um deles é proprietário, por um equivalente em dinheiro de que dispõe o outro, que é também proprietário dos meios de produção.37 Temos uma situação totalmente diferente no momento em que passamos à teoria da reprodução e da acumulação. As voltas do capital não serão mais consideradas como independentes umas das outras. O movimento do capital será considerado agora como um fluxo contí nuo, como um processo sem interrupção; cada volta está ligada à que a precede e à que a sucede. Este relacionamento das voltas sucessivas altera o sentido de todo o processo. Primeiramente, o caráter preten samente contingente do encontro entre o operário e o capitalista, e portanto a pretensa liberdade do contrato entre eles são reduzidos a simples aparências. A idéia de que o operário “encontra” no mercado o capitalista e lhe vende livremente a sua força de trabalho como qual quer vendedor vende a sua mercadoria aparece agora como uma ilusão da circulação. Na realidade, o operário e o capitalista são constante-
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mente (re-)criados, e “reunidos” pelo próprio movimento do capital, e é assim o movimento do capital que, reproduzindo o operário enquanto operário, o obriga a vender cada vez a sua força de trabalho. E mais do que isto. A “redução a uma aparência” provocada pela continuidade do processo não atinge apenas a liberdade do contrato: ela concerne à própria idéia de que há uma troca de equivalentes. É através da conti nuidade propriamente que o capital interioriza os seus pressupostos e elimina a sua dependência em relação ao seu ponto de partida. Com efeito, no momento em que se considera o capital num fluxo conti nuo, o valor que em forma de dinheiro é transferido para o operário enquanto salário aparece como valor extorquido sem equivalente38 no movimento anterior — extorquido talvez de um outro operário, mas todas as diferenças individuais desaparecem na perspectiva da acumu lação que só considera a relação entre classe e classe — e por isso a compra da força de trabalho deixa de ser uma verdadeira compra: o que o capitalista dá ao operário (à classe operária) em forma de salário é na realidade uma parte da riqueza criada pela própria classe ope rária. Riqueza que, ademais, é substituída por um novo produto — um novo sobreproduto — criado sempre pela classe operária. Assim, não há mais equivalentes nem a rigor troca, mas apropriação sem equiva lente do trabalho alheio. E isto num duplo sentido: o que a classe operária recebe é riqueza produzida pela própria classe operária. O re torno dessa riqueza, que ela mesma criou, só se faz alienando um novo (sobre-) produto. A riqueza produzida por uma classe é sugada conti nuamente pelos representantes de uma outra classe — esta é a maneira pela qual se apresenta agora o processo. Essa mudança de perspectiva que representa na realidade uma mudança de sentido, objetiva, do processo, constitui o que Marx chama de interversão da lei da apro priação ou da propriedade, interversão cujos dois momentos poderiam ser resumidos da seguinte maneira: uma volta do capital ou cada volta do capital obedece à lei de apropriação ou de propriedade das econo mias mercantis, lei segundo a qual a apropriação dos produtos se faz pela troca de equivalentes e depende, em última instância, do trabalho próprio. Mas a repetição das voltas do capital — e portanto o cumpri mento reiterado da lei de apropriação pelo trabalho e pela troca de equivalentes — interverte esta lei na lei de apropriação capitalista, apropriação sem equivalente do trabalho alheio. Observação Vê-se por aí que, embora em sentido diferente do das obras de juventude, a idéia de que, se não o operário, pelo menos a classe operária “ aliena o seu produto” tem, sem dúvida, um sentido rigoroso em Marx. Se os althusserianos a recusam é, entre outras razões, porque eles são incapazes de apreender plenamente o sentido da passagem da
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secção sexta à secção sétima do livro primeiro. Tomemos por exemplo o texto de Balibar em Lire le Capital. Ë verdade que no capítulo do seu texto, consagrado à reprodução (ver E. Balibar, “ Sur les concepts fondamentaux du matérialisme historique”, em Lire le Capital II, Paris, Maspero, 1968, pp. 152 e segs.), se fala da “redução à aparên cia” que se opera na secção sétima, redução que é apresentada, com razão, como atingindo a liberdade dos contratantes, a troca de equi valentes, e em geral o conjunto da perspectiva subjetiva da produção. (“(...) a análise da reprodução faz desaparecer a aparência que repousa sobre o ‘começo’ do processo de produção; a aparência do contrato ‘livre’ cada vez renovado entre o operário e o capitalista. (...) A repro dução faz aparecer os ‘fios invisíveis’ que encadeiam o assalariado à classe capitalista” . (Idem, p. 169) “(...) A reprodução faz desaparecer a aparência de que a produção capitalista não faz mais do que aplicar as leis da produção mercantil, isto é, a troca de equivalentes. Cada compra e venda da força de trabalho é uma transação dessa forma, mas o movimento de conjunto da produção capitalista aparece como o movimento pelo qual a classe capitalista se apropria continuamente, sem equivalente, de urna parte do produto criado pela classe operária (...). (Idem, pp. 169-170, grifo do autor)) E, entretanto, falta nesse texto algo que é absolutamente essencial. Com efeito, Balibar não apresenta a relação entre os dois momentos (o momento de uma volta isolada eo da reprodução) como uma relação de contradição, ou, se se quiser, ele não apresenta a passagem em termos de uma interversão. Buscar-se-á inutilmente no seu texto — o que sc explica — a apre sentação da interversão das leis de apropriação em termos de contra dição. O conceito que pressupõem as análises de Balibar não é o de contradição mas o de ruptura ou corte. (“Essas análises são aquelas em que Marx nos mostra o movimento de passagem (mas essa passagem é uma ruptura, uma inovação radical) de um conceito de produção como ato, objetivação de um ou de vários sujeitos a um conceito da produção sem sujeito, que determina por sua vez certas classes como suas funções próprias” . (Idem, p. 171, grifo do autor)) Tal apresentação da passa gem é inteiramente insuficiente. Quem diz contradição (dialética) diz “tensão” , separação, mas também união entre os dois termos. Quem diz ruptura, corte, diz “separação” : cada termo “fora” do outro. Com efeito, se a relação entre os dois momentos é uma ruptura, não pode haver posição da passagem — um corte, uma ruptura é um vazio — e que não haja posição da passagem significa que o primeiro momento está fora do segundo, o segundo só pode aparecer como resultado (em sentido abstrato), que substitui o primeiro. Ê assim que no conjunto dos textos citados, e mesmo se o autor o evoca numa passagem, o pri meiro momento desaparece; é só o segundo que está presente.39 Ora, é somente se o segundo momento, ainda que contradizendo o primeiro, o conserva como momento negado (ou, se se quiser, é somente se a
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contradição for pensada em termos de Aufhebung) que se poderá dizer que a classe operária perde o seu produto. Se for rompida toda conti nuidade entre os dois momentos, mesmo a continuidade na descontinuidade que caracteriza a Aufhebung, só se apreenderá a apropriação intervertida, não a interversão da apropriação. É finalmente o único resultado a que chega Balibar. Erro inverso àquele em que incorre a leitura antropologista da interversão, que faz do primeiro momento o fundamento do segundo — o que absolutamente não se supõe aqui — e da interversão não uma negação (também no sentido lógico), mas uma simples inversão real (em sentido fraco, sem implicar uma negação lógica) do movimento fundador. Assim, sem que se faça violência à lei de apropriação das eco nomias mercantis em geral, pelo contrário, uma vez estabelecidas as condições que permitem a sua manifestação mais completa — “a conti nuidade da ação de uma lei é certamente o contrário da sua infração” 40 — esta lei (a lei da apropriação pelo trabalho e pela troca de equi valentes) fazendo, âe certo modo, violência a si mesma, se interverte no seu contrário.41 E assim se poderia afirmar — a conclusão que nos interessa — que, estabelecida a continuidade das voltas do capital que supõe a teoria da acumulação, a liberdade (dos contratantes, do ope rário em particular) se interverte em não-liberdade (a liberdade se torna uma aparência), e a propriedade, ou antes, o princípio de pro priedade se interverte em princípio de não-propriedade. O trabalho, fonte de propriedade, se torna, por uma interversão interna, fonte de não-propriedade, de desapropriação contínua: “(...) a lei de apropria ção ou lei da propriedade privada que repousa sobre a produção de mercadorias e a circulação de mercadorias se interverte (umschlagen) pela sua própria dialética interna, inevitável, no seu contrário direto. A troca de equivalentes, que aparecia como a operação primitiva, ‘girou’ de tal maneira que só se troca na aparência, porque, primeiramente, mesmo a parte do capital trocada pela força de trabalho é somente uma parte do produto do trabalho alheio apropriado sem equivalente, e, em segundo lugar, ela não só é substituída pelo seu produtor, o ope rário, mas deve ser substituída com um novo excedente. A relação de troca entre o capitalista e o operário torna-se assim apenas uma apa rência que pertence ao processo de circulação, pura forma, que é estra nha ao conteúdo, ele próprio, e não faz mais do que mistificá-lo. A compra e venda constante da força de trabalho é a forma. O conteúdo é que o capitalista investe, cada vez, uma parte do trabalho alheio já cristalizado de que ele se apropria continuamente, contra um quantum maior de trabalho alheio vivo. Originariamente, o direito de proprie dade nos aparecia como fundado no trabalho próprio. Pelo menos, era preciso admitir essa suposição, pois só se afrontam possuidores de
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mercadorias com os mesmos direitos, o meio de apropriação da merca doria alheia é a alienação da própria mercadoria, e esta última só pode scr produzida pelo trabalho. A propriedade aparece agora do lad"» do capitalista como o direito de se apropriar do trabalho alheio não pago ou de seu produto, e do lado do trabalhador como a impossibilidade de se apropriar de seu próprio produto. A separação entre a propriedade e o trabalho se torna conseqüência necessária de uma lei que, aparen temente, parte da sua identidade” . 42 Assim, encontramos a interversão da propriedade — ou antes, da lei da propriedade fundada no trabalho — e da liberdade nos seus contrários, expressa na própria construção de O Capital. A interversão se opera na passagem da perspectiva descontinuísta das primeiras secções à perspectiva continuísta da acumulação. A teoria de Marx acolhe a interversão na sua própria construção; o discurso de Marx se deixa “arrastar” pela interversão, é atravessado por e la .43 Observação A interversão da noção de “liberdade” poderia ser observada igualmente em “escala reduzida” , nas passagens em que se fala do duplo sentido da liberdade burguesa (textos de O Capital e dos Grundrisse sobre a acumulação primitiva, e também capítulo quatro, ori ginal, do livro I de O Capital): “Quando, por exemplo, os grandes proprietários rurais ingleses despediam ós seus retainers, que consu miam com eles o produto excedente da terra; quando os seus arrenda tários expulsavam os pequenos trabalhadores agrícolas etc., com isto foi em primeiro lugar lançada no mercado de trabalho uma massa de força de trabalho viva, uma massa que era livre em duplo sentido, livre das antigas relações de clientela ou dependência e das relações de serviço, e em segundo lugar, livre de qualquer bem, livre de toda forma de existência objetiva material, livre de toda propriedade, dependendo, da venda da sua força de trabalho, ou da mendicância, da vagabun dagem e do roubo, como única fonte de rendimento” . (Grundrisse, op. cit., p. 406, grifado por Marx. Trad. ingl. de M. Nicolaus, op. cit., p. 507) “Para que o dinheiro se transforme em capital o possuidor de dinheiro deve assim já encontrar no mercado de trabalhe o trabalhador livre, livre no duplo sentido, de que enquanto pessoa livre ele dispõe de sua força de trabalho como mercadoria; de que, por outro lado, ele não tem outras mercadorias para vender; de que ele está desligado (los und ledig), livre de todas as coisas necessárias à realização efetiva da sua força de trabalho” . ( Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 183. Trad. franc. de Roy, Le Capital, livre premier, tome premier, op. cit., p. 172) Lendo tais textòs, se poderia ter a impressão de que Marx “joga” de um modo um pouco gratuito com a noção de “liberdade” , de que a sua
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linguagem é ambígua ou contraditória. Com efeito, se o emprego do termo “liberdade” ou “liberação” a propósito da eliminação dos entra ves feudais parece bem justificado, tal não seria o caso, aparentemente, do seu emprego, tendo em vista a separação, funesta para os trabalha dores, entre o trabalhador e os meios de produção. Mas se de certa forma Marx “joga” efetivamente com a noção de “liberdade” , esse “jogo” nada tem de gratuito, e tem, pelo contrário, uma significação teórica profunda. Trata-se exatamente da interversão. Empregando o termo “liberdade” não só para designar o lado positivo mas também para designar o lado negativo — a separação entre o trabalhador e os modos de produção, Marx “cai” efetivamente numa contradição: o su jeito “ l i b e r d a d e ” é contradito pelo predicado “ a separação entre o trabalhador e os meios de produção” , que nada tem a ver com a verda deira l i b e r d a d e . Mas, exprimindo-se desse modo, mantendo a idéia de l i b e r d a d e e lhe dando um conteúdo (um predicado) que contradiz a idéia de liberdade, ele não faz senão reproduzir no nível da expressão a contradição real da liberdade burguesa, ele não faz mais do que pôr enquanto contradição — única maneira de se exprimir, plenamente satisfatória do ponto de vista da dialética — a contradição real que contém a liberdade burguesa. E para mostrar a importância atribuída por Marx à interversão na sua crítica da economia política, seria preciso lembrar que, quando ele mostra os limites da economia clássica, limites que são ao mesmo tempo ideológicos e teóricos, ele chama a atenção exatamente para o fato de que, se a economia clássica foi bem longe na análise da produ ção capitalista, se ela chega, embora de uma forma inadequada, até a própria idéia da mais-valia, a economia clássica — na figura do seu representante mais ousado, Ricardo — não pensou, não poderia ter chegado a pensar essa interversão: “O lucro é somente uma forma secundária, derivada, e transformada da mais-valia, a forma burguesa, em que desapareceram os traços de sua origem. O próprio Ricardo nunca compreendeu isto, porque ele 1) fala sempre só da partilha de um quantum acabado, não da posição originária dessa diferença; 2) porque a compreensão (disto) o obrigaria a ver que entre o capital e o trabalho se estabelece uma relação totalmente diferente da da troca; e ele não podia ver que o sistema burguês dos equivalentes se interverte em apropriação sem equivalente e se baseia nela” . 44 “Estas incompreensões de Ricardo provêm evidentemente de que ele mesmo não tinha clareza sobre o processo (nicht klar über den Prozess war), nem podia ter enquanto burguês (noch sein kônnte ais Burgeois). Com preender esse processo equivale a afirmar que o capital é não só, como pensa Smith, disposição (Kommando) sobre o trabalho alheio, no sen tido em que todo valor de troca o é, porque ele dá ao seu possuidor
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poder de compra, mas também que ele é o poder de se apropriar do trabalho alheio sem troca, sem equivalente, mas sob a aparência da Iroca” .45 Assim, a economia clássica, que pensou a mais-valia como diferença entre o “valor do trabalho” e o valor do produto do tra balho, só a concebia entretanto como resultado de um livre contrato entre possuidores de mercadorias, e nunca como uma expropriação contínua, sem troca, de uma classe por outra. Fixemos esse resultado para a discussão final. Mostramos assim a diferença que separa os juízos que envolvem us noções de “homem” , de “liberdade” , de “riqueza” e de “proprie dade” , conforme eles se refiram ao pré-capitalismo ou ao capitalismo. Nos dois casos essas noções são pressuposições, mas a sua relação com o predicado não é especificamente a mesma. Para o socialismo, já dissemos, estas noções são, pelo contrário, noções postas: supondo o socialismo, o “homem” , a “riqueza” , a “liberdade” e a “propriedade” (no sentido indicado) não passam mais “nos” seus predicados, mas se mantêm iguais a elas mesmas, e os predicados as determinam efeti vamente como sujeitos. Seria útil talvez citar algumas passagens de Marx e de Engels a propósito do socialismo, para que o leitor pense no emprego não-reflexivo dos termos como “homem” , “liberdade” etc., em oposição ao emprego reflexivo que vimos até aqui: “A riqueza real (der wirkíiche Reichtum) da sociedade e a possibilidade de uma am pliação constante do seu processo de reprodução depende assim não da grandeza do sobretrabalho, mas de sua produtividade e da maior ou menor abundância das condições de produção em que ele se realiza. Na realidade, o reino da liberdade só começa quando cessa o trabalho determinado pela carência e pela finalidade externa; esse (reino) re side, pois, pela (própria) natureza da coisa para além da esfera da produção propriamente material (...). A liberdade nessa esfera só pode consistir em que o homem socializado (der vergesellschaftete Mensch), os produtores associados regem racionalmente este seu intercâmbio material com a natureza, o submetem ao seu controle social, em vez de ser dominados por ele como por um poder cego; realizam-no com o menor gasto de força e nas condições mais adequadas e mais dignas de sua natureza humana (ihrer menschlichen Natur). Mas isto continua sendo um reino da necessidade (Notwendigkeit). Para além dele co meça o desenvolvimento humano de forças, que se toma por seu próprio fim (Selbstzweck), o verdadeiro reino da liberdade, que entre tanto só pode florescer com base naquele reino da necessidade. A redu ção da jornada dê trábalho é sua condição fundamental” . (Werke, 25, Das Kapital, I, op. cit., p. 828. Ver Le Capital, livre troisième, tome troisième, (VIII) trad. franc. de Mme. C. Cohen-Solal e G. Badia, pp. 198-199) “Apropriando-se do conjunto dos meios de produção sociais, para utilizá-los socialmente conforme um plano, a sociedade elimina a escravização dos homens aos seus próprios meios de produção, (que
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existiu) até aqui. Ê evidente que a sociedade não pode se liberar, sem que cada indivíduo seja liberado. O velho modo de produção deve pois ser revolucionado a fundo, e sobretudo a velha divisão do trabalho deve desaparecer (...)” . ( Werke, 20, Engels, Anti-Dühring, op. cit., 1962, p. 273. Ver Anti-Dühring, trad. franc. de E. Bottigelli, Êd. Sociales, 1973, p. 331)46 Observemos, para responder a eventuais críticas, que quando se afirma que no socialismo o “homem” , a “liberdade” etc. se tornam verdadeiros sujeitos, não se quer dizer com isto que, na hipó tese do socialismo, todos os problemas se reduzem ao problema do “homem” . É um pouco o argumento que utiliza Althusser em “Mar xismo e Humanismo” (ver Althusser, Pour Marx, Paris, Maspero, 1965, p. 246) para desacreditar toda idéia de homem sujeito. Dizer que o homem será — ou seria — sujeito não significa afirmar que todos os problemas teóricos específicos se deslocarão em direção à questão geral do “homem” ou que toda questão prática será absorvida pela proble mática dos fins. Para todo pensamento realista, é bem evidente que o “particular” , no que se refere à teoria, e os meios, no que concerne à prática, não perderão o seu peso específico. Mas, ao contrário do que se passa antes do socialismo, na hipótese do socialismo todo problema teórico que tenha como objeto tais ou tais homens fará aparecer a sua condição de sujeitos, e não mais de suportes;47 todo problema prático a propósito dos meios fará aparecer — ao contrário do que ocorre, antes do socialismo, para o problema revolucionário — a não-contradição dos meios em relação aos fins. Nem negação do homem pelos seus predicados, nem contradição entre meios e fins, é tudo o que quer dizer a idéia do surgimento do homem-sujeito.
TERCEIRA PARTE
a) Retorno à dialética: “supressão” e “interversSo” Tentemos agora, à luz das análises anteriores, retomar os resul tados obtidos no final da primeira parte, no que se refere à natureza do discurso dialético e à sua diferença em relação aos discursos do entendimento. Das análises do final da primeira parte resultava, sobretudo, a idéia da supressão (Àufhebung), como exigência do discurso dialético, tanto no nível teórico em sentido estrito como no nível da política. Em oposição aos discursos do entendimento, que oscilam entre a afirmação — a posição plena — dos princípios primeiros e sua negação abstrata, e que por isso mesmo não escapam à má dialética da interversão (quando
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cies não se refugiam na “tautologia”),48 o pensamento dialético su prime esses princípios — os nega e os afirma ao mesmo tempo —, o que lho permite evitar a interversão sem se refugiar na “tautologia” . Assim, o pensamento dialético aparecia nessas análises, como se caracteri zando sobretudo pela operação de “supressão” dos princípios pri meiros, operação que lhe permitia dominar a contradição. Ora, nesta segunda parte encontramos algo que parece ser o inverso de uma supressão. Com efeito, o que acabamos de ver é como a dialética opera a interversão de certas noções como “liberdade” , “pro priedade” , ..., na análise do capitalismo, isto é, como o pensamento dialético se deixa interverter, quando ele introduz essas noções. E isto em oposição ao pensamento não-dialético que, pelo contrário, bloqueia a interversão. (Lembremos o exemplo de Ricardo e da economia clás sica em geral, incapaz de ultrapassar o limiar dialético da interversão da lei de apropriação.) Assim, a dialética que aparecia inicialmente como o pensamento da supressão — supressão cuja função era exata mente a de impedir a interversão — se apresenta agora como o discurso “da” interversão. Como dar conta desta diferença? Ora, se a examinarmos de perto, veremos que a oposição é apa rente. Trata-se com efeito de dois movimentos complementares, cuja diferença se deve à diversidade do nível em que se situa o discurso. Essa diversidade consiste grosso modo no seguinte: num caso, havía mos considerado, tanto para a Teoria em sentido estrito como para a política, a relação do discurso dialético com os “princípios antropoló gicos” . Nesse caso, quer se trate do discurso de O Capital ou da polí tica, é preciso suprimir os princípios (antropológicos) para não cair na interversão. (Se ponho o humanismo, em política, caio no anti-humanismo, se ponho o discurso antropológico na Teoria, perco os predi cados “do” homem, ou antes, o sujeito real desses predicados.) Ocorre outra coisa quando se trata não de definir a relação com os “princípios” antropológicos, mas de estudar a maneira pela qual a dialética dá conta do seu objeto ou o desenvolve.49 Quando se trata da apresentação da estrutura (econômica) do capitalismo — estrutura que contém momentos ou estratos contraditórios — o pensamento dialético não aparece mais suprimindo para não cair na interversão, mas ao contrário, como o pensamento que dá livre curso à interversão, que se deixa levar por ela. Assim, nesse nível, o único trabalho que merece ser chamado de dialético, e portanto pode ser considerado científico, é aquele que é capaz de mostrar como noções do tipo “homem” , “liber dade” , “propriedade” , “riqueza” , consideradas como determinações do capitalismo, são afetadas de negação, e por isso se intervertem em seus contrários. Tais são as condições da racionalidade dialética em um e outro caso. Se o pensamento dialético é assim, por um lado, o pensa mento que suprime para não cair na interversão, ele é igualmente o
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que, em outro nível, aceita a interversão, para não cristalizar como positivo o que contém o negativo. O discurso do entendimento é, pelo contrário, o que cai sem o querer na interversão, e o que cristaliza noções cuja única racionalidade — enquanto determinações, conside radas no nível do desenvolvimento do objeto — é a de ser “interversíveis” . b) Dialética e ideologia Mas se observará que o conteúdo dos princípios que, na primeira parte, havíamos mostrado como princípios que deviam ser “supri midos” , coincide com o das noções que, nas análises finais, apare ceram como noções a interverter. Num caso como no outro, se trata da noção de “homem” e das noções de mesmo nível — “liberdade” , “riqueza” , “propriedade” . 50 Os princípios que a dialética suprime e que o entendimento põe, e as determinações que a dialética interverte e que' o entendimento cristaliza têm assim um mesmo conteúdo: “ho mem” , “riqueza” etc. São as mesmas noções que, num nível, a dialé tica suprime para não cair na interversão e, no outro, “deixa inter verter” , apresentando o seu conteúdo contraditório. E chegando a esse ponto se poderá dar mais um passo na análise. Observar-se-á que as noções em questão são as noções (básicas) constitutivas da ideologia do capitalismo. Com efeito, a ideologia do capitalismo se constrói com noções como “homem” , “liberdade” , “riqueza” (pensemos na econo mia clássica), “propriedade” . O que significa que a partição que fizemos até aqui entre a dialética e os discursos do entendimento é também uma partição entre um pensamento não ideológico e um pensamento ideológico.Si Pondo os princípios ou bloqueando a inter versão das determinações contraditórias, o discurso do entendimento se configura como um discurso ideológico; suprimindo os princípios, ou intervertendo as determinações contraditórias do objeto, a dialética “suprime” a ideologia. O que nos conduz às definições: o discurso não-ideológico (dialético) é o que só põe 0 ser-negado {“suprimido") das noções “ideológicas", no nível dos princípios; ou que libera o con teúdo negativo delas no nível da apresentação do objeto. O discurso ideológico é, pelo contrário, o que põe essas noções no nível dos princípios, ou o que bloqueia a interversão delas no nível da apresen tação do objeto. Observemos, nessas definições, que é pela supressão (.Aufhebung) das noções em questão, não pela sua negação abstrata, que a dialética se distingue da ideologia. Não é a simples utilização dessas noções que configura um discurso como ideológico. Essa utili zação é legítima, e mais do que isto — ao contrário do que pretendem os althusserianos — ela é necessária para que haja supressão da ideo logia. Assim como dissemos que a negação abstrata dos discursos do
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entendimento só eonduz a uma variante dos discursos do entendi mento, é preciso dizer que a negação abstrata do discurso ou das determinações ideológicas só conduz a uma outra forma de ideologia.52 A razão dialética, que suprime as duas alternativas do entendimento, julga tanto a primeira como esta última forma de ideologia. Nota sobre a significação histórico-política das ideologias humanista e anti-humanista53 O humanismo é em política — e também em Teoria — o refor mismo, em particular o reformismo na sua forma clássica. Poder-se-ia mostrar que as diversas variedades de “humanismo revolucionário” não são a rigor “humanismos” . O anti-humanismo — sempre en quanto paramarxismo — não é uma figura política perfeitamente defi nida. Mas o stalinismo, em particular nas suas fases esquerdistas, poderia em certa medida representá-lo. O reformismo põe o homem (a não-violência etc.), mas o fazendo no interior de um universo não-humano (de violência etc.: o universo do capitalismo), o homem passa “no” seu contrário: a não-violência do reformismo é violência, cumplicidade com a violência do capitalismo. No stalinismo, particularmente em algumas das suas fases, se tem pelo contrário a violência abstrata, o não-humano no sentido do anít-humanismo. A violência abstrata do stalinismo — pensemos na coletivização forçada dos anos 30 por exemplo — afasta ou compromete a realização do que deveria ser a finalidade da violência revolucionária: o nasci mento do universo da não-violência. A violência do stalinismo se crista liza em violência, é violência que só implica violência (tautologia). Mas se poderia mostrar que, como para o caso do humanismo (reformismo), no anti-humanismo (stalinismo), há igualmente interversão. Com efeito, além do fato de que este anti-humanismo se apresenta como um humanismo — lembremos o célebre “o homem é o capital mais pre cioso” , de Stalin — é preciso observar: a recusa abstrata do homem que opera o stalinismo vai de par com uma ideologização — no sentido técnico dado ao termo: interversão “em si” — que atinge, na versão stalinista, os próprios conceitos do discurso marxista.54 Na ideologia stalinista, a negação abstrata da liberdade, a negação abstrata da nãoviolência — que justamente caracterizam essa ideologia — vêm de par com uma perda de identidade dos conceitos do discurso político mar xista, como “revolução” , “proletariado” etc. Assim como na ideologia burguesa e reformista “o homem” não é igual ao homem — o “ho mem” se interverte em não-homem —, a “ liberdade” não é igual à
(*) Aqui, mais do que era qualquer outro lugar, é preciso insistir que a pers pectiva do texto é marxista clássica. Sobre seus limites, ver a Introdução.
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liberdade — a “liberdade” se interverte em não-liberdade — etc., na ideologia e na prática stalinistas, “proletário” não quer dizer proletário — “proletário” se interverte em não-proletário —, “revolução” não quer dizer revolução — “revolução” se interverte em não-revolução — etc. etc. São os conceitos do discurso político marxista que se intervertem, isto é, é o próprio discurso marxista que se torna aqui ideo logia.
NOTAS (1) “As relações de produção burguesas são a última forma antagônica (anta gonistisch)I do processo de produção social (...). Com esta formação social termina a pré-história da sociedade humana”. (Marx, Werke, 13, Zur Kritik der Politischen Öko nomie, Berlim, Dietz, 1972, p. 9) Como as noções de pré-história da sociedade humana, de homem etc., se encontram também — e mesmo com maior freqüência — nas obras de juventude, precisemos que o nosso texto se refere não ao jovem Marx, mas ao Marx da maturidade, particularmente o dos Gundrisse. (Ainda que a questão histórica da relação entre o jovem Marx e o Marx da maturidade não seja aqui o nosso problema, o leitor perceberá que a nossa perspectiva é a da descontinuidade — de forma alguma a do contínuo tradicional — entre os “dois” Marx, mas que essa descontinuidade deve ser distinguida da coupure althusseriana.) Observemos por outro lado que nas obras de Marx do período de transição, sobretudo em A Ideologia Alemã, encontram-se textos que se afastam da perspectiva dos Grundrisse aqui exposta — perspectiva que, no essen cial, não é diferente da de O Capital — numa direção inversa à das obras de juventude. Nos limites deste texto — como uma exceção — também não levaremos em conta esses textos de transição, deixando para outros textos a discussão dos problemas que eles levantam, assim como, em geral, a do conjunto das questões que propõe o desenvolvi mento do pensamento de Marx. (2) Com vistas ao leitor não especialista, lembremos que na Fenomenología do Espírito — onde se descreve o itinerário da consciência no seu ascenso até o espírito — há, se se pode dizer assim, duas perspectivas de leitura: a perspectiva ingênua da consciência comum e a perspectiva da consciência científica ou filosófica. A solução dos problemas que propomos nesse texto passa pela formulação rigorosa dessa diferença, em particular pela definição exata do estatuto da consciência filosófica. (3) Hegel fala não de “opinião”, mas de ‘afirmação seca” (ou nua) (ein trockenes Versichern), mas ele diz que a "ciência não verdadeira”, a consciência natural, também remete a isto, e que “uma afirmação seca vale entretanto exatamente tanto quanto a outra”. — Se se objetar ao nosso argumento que a consciencia filosófica necessita da Fenomenología para se legitimar diante da consciência natural e não em termos abso lutos, deve-se responder que a ciência necessita de qualquer modo de um caminho, ela é processo e processo constitutivo, o que basta para o argumento. (4) Lembremos que o devir é a passagem do não-ser ao ser ou vice-versa, não a mudança no interior do ser, como o representam as leituras paradialéticas. (5) Figuras da Fenomenología. (6) “Assim como desenvolvemos pouco a pouco o sistema da economia burguesa, desenvolvemos do mesmo modo a sua negação que é o seu resultado final (...). Se se considerar a sociedade burguesa em grandes linhas, aparece sempre como resultado final
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do processo de produção social a própria sociedade, isto é, o próprio homem nas suas relações sociais”. (Marx, Grundrisse der Kritik der Politischen Okonomie, Berlim, Dietz, 1953, p. 600. Ver tradução inglesa de M. Nicolaus, Penguin-New Left Review, 1973, p. 712) (7) Poder-se-ia dizer, em certo sentido, que a matriz de todos esses juízos é a tese VI sobre Feuerbach (tese cuja interpretação foi sempre controvertida; ver, por exemplo, Althusser): “(...) a essência humana ( = o homem) é o conjunto das relações sociais”. Com efeito, para que a tese VI ganhe uma significação rigorosa, é necessário que ela seja lida como um juízo em que o sujeito passa "no” predicado. Em “o homem é o conjunto das relações sociais”, o sujeito “homem” passa, se reflete, no predicado “relações sociais”. Só o predicado “relações sociais”, não o sujeito “hompm”, está posto. Mas o "homem” está lá, como sujeito pressuposto. Entretanto, como o mostraremos na se gunda parte, retomando em detalhe a análise da tese VI, é somente se a interpretarmos da perspectiva da obra de maturidade (destacando-a do universo da “transição”) que a tese VI será estritamente conforme aos nossos exemplos. (8) Poder-se-ia pensar que não fizemos aqui mais do que substituir a pergunta “que é homem?” peia pergunta “quem é homem?” (a qual, de qualquer modo, teria como resposta um juízo em que o predicado nega o sujeito). Mas isto não é inteiramente verdade, ou só é verdade se considerarmos uma resposta isolada, ou algumas respostas isoladas, “o homem é o operário”, por exemplo, ou “o homem é o cidadão romano” etc. Mas se tomarmos o conjunto das respostas que se poderia dar à pergunta, se considerar mos o conjunto da história, as respostas, com seus desenvolvimentos, constituem a apre sentação do conceito de homem, que é a única definição possível do homem no nível da sua “pré-história"-, assim como a apresentação do espírito pelos seus predicados na Fenomenología é a única definição possível do espírito. (9) Sobre o capital-movimento ver J. A. Giannotti, As Origens da Dialética do Trabalho, particularmente o prefácio da versão francesa, Paris, Aubier, 1971. Nessa obra se encontra também a distinção pressuposição/posição, mas em geral em forma diferente da que utilizo aqui. (Lá se considera o “homem” (pressuposto) como ontologicamente vazio, aqui como susceptível (em si) de um preenchimento progressivo, que torna possível a posição final.) (10) Tal recusa — para certos anti-humanismos paramarxistas pelo menos — se explica pelo pressentimento dos problemas que levanta uma formulação rigorosa da relação contraditória entre meios "inumanos” e fins humanos. Eles recusam toda refe rência ao homem para fugir das dificuldades — na realidade para fugir da dialética — dessa formulação. <11) Algo como um “a-humanismo” — a única terceira resposta que o entendi mento poderia admitir — não seria tampouco uma solução. Com efeito, se tanto o humanismo como o anti-humanismo são insustentáveis pelas razões indicadas, não se trata entretanto, como já vimos, de se manter fora do problema do homem. (12) Para a justificação da tradução de Aufhebung por “supressão”, ver neste tomo “Circulação de Mercadorias, Produção Capitalista”, nota 24. (13) Do ponto de vista prático, isto implica recusar toda forma de violência que poderia “expulsar” os fins não violentos, isto é, que poderia bloquear, pelo seu caráter abstrato, o surgimento do universo da não violência. (14) Precisão que, como se verá, não é supérflua. (15) A diferença entre a antropologia em sentido estrito e o humanismo está, a rigor, no fato de que, na primeira, embora o “homem” seja visado como sujeito, ele não é tomado, entretanto, como sujeito em sentido forte, como “homem humanizado”, o que ocorre no segundo. Por isso, toda universalização no primeiro caso só desemboca na generalidade abstrata, ao passo que, no segundo, o homem é universalidade concreta. E na medida em que discutir se o homem é ou não sujeito, mas sem introduzir a idéia do “homem humanizado”, implica visar (ilusoriamente ou não) o “homem” atual, não o homem do futuro, a problemática do antropologismo e do antiantropologismo concerne ao discurso teórico (em parte também a política) mas não ao problema dos fins da política.
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Ocorre o inverso com a problemática do humanismo e do anti-humanismo. — O pará grafo “o homem e o capital” articula a problemática do humanismo com o discurso posto dos textos teóricos (portanto com os textos em que se põe o capital, não com aqueles em que se pressupõe o homem; é a estes últimos que nos referimos agora). (16) Isto significa, particularizando, para os dois níveis em que se coloca o pro blema da relação entre marxismo e a fundação antropológica: a) para o nivel do huma nismo: a política que se funda no homem ê na realidade a política do não (do anti) homem. S6 a política que “suprime” o homem pode alcançar, de certo modo, o homem; b) para o nível da antropologia em sentido estrito (o paralelismo com o caso anterior não é perfeito pelas razões indicadas anteriormente, ver “o homem e o capital”): todo discurso teórico fundado no homem perde o “homem”, isto é, os predicados do homem ou o sujeito real que substitui o homem. Só os discursos teóricos que “suprimem” o homem podem alcançá-lo. (17) Ausschaltung = desligamento (mise hors circuit). Para comparar a dialética com os discursos do entendimento designamos assim a Aufhebung por meio dos termoschave das filosofias transcendentais. (18) Cf. as considerações sobre a relação entre Hegel e Husserl em i. Desanti, Phénomenologie et Praxis, París, Éd. Sociales, 1963, pp. 23-37. (19) O que mostra ainda uma vez — este é o objetivo deste parágrafo — o parentesco que existe entre as duas respostas, abstratas, do entendimento. (20) Mais do que como anti-humanismo. (21) Ver a esse respeito, neste tomo, “Althusserismo e Antropologismo”. (22) Será talvez o caso de insistir que nos situamos na perspectiva hegeliana da interpretação da lógica. Por isso, nossas análises, sobre o juízo, por exemplo, têm como objeto tanto a forma como o conteúdo, ou antes, o conteúdo tal como ele se reflete na forma. Que a lógica dialética, diga-se de passagem, é não só “coisa interessante”, como todos concordam em afirmar de um modo indulgente, mas também coisa rigorosa, é algo que a desmonetização de noções como "dialética”, “supressão” etc. pelòs marxismos vulgares obriga a demonstrar. (23) Referimo-nos às pressuposições que representam — ou podem representar — “sujeitos” (pressupostos) no nível da pré-história, e que são postos no fim da “pré-história” como universais concretos; e não às pressuposições do capítulo V do livro I de O Capital, simples universais abstratos. Ou antes, como certas pressuposições, como por exemplo “homem”, podem servir tanto para um caso como para o outro, não nos referimos às pressuposições no sentido dos universais abstratos do capítulo V. Ver sobre tudo isto a primeira parte do nosso texto. (24) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 791. Trad. franc. de Roy, Le Capital, livre premier, tome troisième, Paris, Éd. Sociales, 1950, p. 205. (25) Para este emprego da noção de “propriedade", ou antes, para um emprego que, como se verá, é, sob um aspecto, idêntico, ver sobretudo as passagens dos Grundrisse (“Formas que precedem a produção capitalista”) consagradas à propriedade précapitalista: Grundrisse, op. cit., pp. 391-396. Trad. ingl. de Martin Nicolaus, Grundrisse, op. cit., pp. 491-496. (26) Entre essas pressuposições, poder-se-ia mencionar também, por exemplo, a noção de “igualdade”. (27) Werke, Thesen iiber Feuerbach, 3, op. cit., p. 534, grifado por Marx. Marx-Engels, Études Philosophiques, Paris, Êd. Sociales, 1951, p. 63. (28) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 49. Trad. franc. de Roy, Le Capital, livre premier, tome premier, op. cit., 1969, p. 51. (29) Seria preciso justificar melhor o sentido desse procedimento, que poderia parecer gratuito ou tautológico. A leitura dessas diferenças no nível (formal) do juízo fará aparecer determinações que não se apresentavam no plano da análise do conteúdo? Isto é, o fato de refletir essas diferenças no plano do juízo acrescenta alguma coisa à análise? E, se a resposta for negativa, qual o interesse e a justificação dessa projeção? Na realidade, enquanto no caso geral a diferença formal (em sentido dialético), ligada
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embora ao conteúdo, é visível enquanto diferença formal — a passagem ou ausência de passagem do sujeito “no” predicado —, aqui a diferença mal é perceptível enquanto diferença de forma. A forma não se apresenta, aqui, enquanto forma, a reflexão do conteúdo na forma depende aqui do ato de refletir. E entretanto, se o estrato formal não tem nesse caso real autonomia, o procedimento não é ilegítimo. Se a reflexão “objetiva” não é arbitrária, a “nossa” reflexão também não o é. Do mesmo modo que a reflexão “objetiva” da forma, ela não faz mais do que seguir o conteúdo, do que obedecer aos conteúdos dados na linguagem. E por isso mesmo, o procedimento que a sustenta conduz a um resultado análogo ao do procedimento do caso geral. Quer se trate de “registrar” a reflexão “objetiva" do conteúdo na forma, ou de refletir (fazer refletir) o conteúdo na forma, o que se faz — num caso como no outro — o que nos dois tem interesse — é pôr em evidência o conteúdo como movimento da forma. Razão pela qual, se nas páginas seguintes o movimento — ou o impulso do movimento — é a rigor subjetivo, nem por isso o procedimento perderá sua justificação. (30) Bem entendido, nas economias pré-capitaiistas, ao lado do proprietário (do cidadão, do senhor feudal etc.) se encontra o escravo, o servo etc. Mas para pensar o papel dos agentes no pré-capitalismo é preciso partir dos primeiros, já que os últimos fazem parte das condições objetivas da produção. Se, pelo contrário, se quiser fazer do “escravo”, do “servo” etc. predicados da pressuposição “homem”, será preciso dizer que, nas sociedades pré-capitalistas, a pressuposição “homem” ou passa “num” predi cado que em certo sentido é um sujeito (cidadão grego ou romano, senhor feudal etc.) ou se perde pura e simplesmente num predicado que exprime uma coisa (“escravo”, “servo” etc.). O capitalismo se situa entre esses dois extremos: a função de suporte que carac teriza os agentes no capitalismo não exprime nem um sujeito nem uma coisa, no sentido em que o escravo é coisa, mas um sujeito “negado” em coisa. (31) Grundrisse, op. cit., pp. 387-388, grifo nosso. Trad. ingl. de M. Nicolaus, op. cit., pp. 487-488. (32) Do ponto de vista moderno — tanto para a ideologia como para a crítica modernas, ainda que em sentidos diferentes — o operário, o capitalista são só expressões parciais do homem. Se eu disser, “o homem é o operário” ou “o homem é o capitalista" não encerro o homem no seu predicado. “Capitalista”, “operário” exprimem o princípio da sua superação. O que não se poderia dizer, pensando nas ideologias antigas, de “grego”, de "romano” etc. (33) Grundrisse, op. cit., p. 545. Trad. ingl. de M. Nicolaus, op. cit., pp. 651652. (34) “O trabalho como trabalho assalariado e as condições de trabalho como capital — portanto (como) propriedade do capitalista: elas são proprietárias-de-si, no capitalista, no qual elas se personificam, e representam a propriedade dele sobre elas, a própria propriedade delas sobre elas mesmas diante do trabalho — (...)” . (Werke, 26, 3, Theorien iiberdenMehrwert, dritterTeil, op. cit., p. 482; ThéoriessurlaPlus-value, III, publicadas sob a responsabilidade de G. Badia, Paris, Êd. Sociales, 1976, p. 578-579) (35) Ver o texto citado das “Formas...” (Grundrisse, op. cit., pp. 387-388, trad. ingl. de M. Nicolaus, op. cit., pp. 487-488), onde se fala da verdadeira riqueza. (36) Dada a importância dessa passagem de O Capital, à qual não se concede geralmente atenção suficiente, daremos à questão um desenvolvimento um pouco mais detalhado do que exigiria o contexto. Voltaremos a ela em “Circulação de Mercadorias, Produção Capitalista”. (37) Observemos que é somente no capítulo sobre a acumulação primitiva — que vem no final da secção sétima e na tradução francesa constitui uma secção à parte — que se conhecerá a verdadeira gênese desse ponto de partida: o fato de que a “assim chamada acumulação primitiva” (a “sogennante ursprüngliche Akkumulation”) é na realidade um processo de separação, em que a violência desempenha um papel determinante. Até aí, e portanto ao longo dos capítulos consagrados à acumulação propriamente dita, o ato inicial de compra da força de trabalho aparece como se pudesse ter tido como preliminar algo como um “trabalho primitivo” — Marx emprega mesmo a expressão
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“trabalho primitivo", decalcando intencionalmente a economia clássica —, trabalho que seria a fonte inicial do capital em dinheiro e em meios de produção. Ê assim pondo entre parênteses toda consideração de ordem histórica que Marx irá demonstrar o que se trata de demonstrar aqui, a saber, que a apropriação capitalista não se fundamenta no tra balho (próprio) nem pode ser legitimada por ele. (38) Com efeito, no momento em que a libedade dos contratantes se torna uma aparência — o que resulta da repetição do processo — a mais-valia aparece como o valor extorquido, e não pago, e não mais como o produto do uso de uma mercadoria obtida pela troca. Assim a perspectiva de leitura do processo se desloca do ato inicial que per tence à circulação para o momento da produção; deslocamento cujas conseqüências se revelam, propriamente, no início da terceira volta do capital, quando a mais-valia (II) obtida tem como pressuposição um encontro entre o operário e o capitalista que não pode ter mais o caráter de um livre contrato. (39) Tal privilégio abstrato do segundo momento — que representaria o lado “anfi-antropologista” — não impede que Balibar caia no antropologismo, nesse mesmo capítulo consagrado à reprodução. (Na realidade, ele cai na generalidade abstrata, mas toda generalidade abstrata é antropologizante.) Assim, ele considera a análise da repro dução simples “como análise das condições gerais de forma de toda reprodução", (Idem, p. 163, grifo do autor) Assim, ele afirma que a análise da reprodução simples permite “formular um novo conceito filosófico da produção em geral”. (Idem, p. 171) Assim, depois de ter mostrado a reprodução das relações sociais pelo movimento do capital, ele diz que um processo análogo ocorre, em qualquer modo de produção; "Cada modo de produção reproduz incessantemente as relações sociais de produção que o seu funcio namento pressupõe”. (Idem, p. 174) Isto de forma alguma é verdade. Com efeito, a reprodução capitalista é coisa diferente da reprodução em geral, não a sua especificação. O escravo, por exemplo, não é reposto formalmente (enquanto escravo) por cada circuito da produção, como é o caso do operário. Diferentemente do trabalho assalariado, a re lação de escravidão — para tomar esse exemplo — é instaurada previamente, e não constituída pelo próprio movimento da re-produção. O escravo é reproduzido fisicamente na (dentro da) condição de escravo. Chegamos assim, de novo, à conclusão a que havíamos sido conduzidos anterior mente. Se o examinarmos de perto, o antiantropologismo althusseriano se revela algo como a antinomia — que diríamos transcendental — do antropologismo e do anti antropologismo, a qual condena o sujeito a um movimento infinito de um termo ao outro. Antinomia que a razão dialética resolve pelo método que consiste em pôr em movimento — mas finalmente os reunindo, o que suprime a má infinidade — os dois termos contra ditórios. (40) Le Capital, livre premier, tome troisième (III), trad. franc. de Roy, Éd. Sociales, p. 25. O texto é uma variante do original alemão. Ver Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 611. (41) Observemos que para que a interversão se opere não é necessário supor a reprodução em escala ampliada. Basta supor a reprodução simples. Ou, em outros termos: a interversão não concerne somente à mais-valia acumulada — diretamente acumulada, como veremos — e portanto somente a relação entre os capitalistas e os operários contratados com o capital adicional. Após um certo número de voltas, ela atinge também o capital primitivo. Que a reprodução simples baste para operar a interversão, se explica pelas razões seguintes: na representação corrente da reprodução simples, se supõe que o capitalista consome a totalidade da mais-valia e guarda sempre o seu capital primitivo. Mas não é isso o que ocorre efetivamente. Se não se quiser supor que o capitalista vive imediatamente às custas (do trabalho não pago) do operário — poís a partir da segunda ou mais exatamente da terceira volta, pelas razões indicadas, que remetem a condições que não se alteram se se tratar da reprodução simples, a mais-valia é valor extorquido sem equivalente — é preciso admitir que, o que o capitalista consome como rendimento, não é a (totalidade da) mais-valia, mas um valor equivalente à totali dade da mais-valia, que é na realidade descontado do seu capital primitivo. Ele não
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guarda o seu capital e consome a mais-valia, como se pretende habitualmente. Na realidade — enquanto ele não retirou o equivalente do seu capital (depois o problema não se coloca mais) — o que ele consome representa débitos sucessivos sobre o seu capital primitivo, e o que ele investe, a mais-valia apropriada. De tal modo que, no momento em que o capital faz um número de voltas suficientemente grande para que a totalidade da mais-valia obtida seja igual ao valor-capital primitivamente investido, a totalidade do capital primitivo (o capital que poderia ter vindo do trabalho) é inteiramente consumida: “A representação do capitalista — escreve Marx supondo aqui que a metade da maisvalia é acumulada — segundo a qual ele consome o produto do trabalho alheio não pago, a mais-valia, e conserva o valor-capital primitivo, não altera absolutamente em nada o fato. Decorrido um certo número de anos (“um certo período”, diz o texto francês, RF), o valor-capital que lhe pertencia iguala a soma da mais-valia apropriada sem equivalente no mesmo número de anos (“no mesmo período”, idern, RF) e a soma de valor que ele consumiu iguala o valor-capital primitivo. Sem dúvida, ele conserva sempre em seu poder um capital cujo volume não se alterou, (e) do qual uma parte — edifícios, máquinas etc. — já existia quando ele pôs a sua empresa em movimento. Mas aqui se trata do valor do capital, e não de seus elementos materiais. Se alguém consome todos os seus bens con traindo dívidas, que equivalem ao valor de seus bens, o conjunto de seus bens só repre senta a totalidade das suas dividas. Do mesmo modo, se o capitalista consumiu o equi valente do capital que investiu, o valor desse capital s6 representa a soma total da mais-valia apropriada gratuitamente. Nenhum átomo de valor do seu antigo capital continua a existir". (Werke, 23, Das Kapítal, I, op. cit., pp. 594-595. Trad. franc. de Roy, livre premier, tome troisième (III), op. cit,, pp. 12-13. Grifo nosso) Observemos que (no que se refere ao capital primitivo) no caso da reprodução ampliada, essa explicação — válida, supondo que uma parte do valor equivalente à mais-valia é gasta como rendi mento — se torna supérflua. Com efeito, na reprodução ampliada “todo capital investido primitivamente se torna uma grandeza evanescente (magnitudo evanescens em sentido matemático) comparada com o capital diretamente acumulado, isto é, à mais-valia ou ao sobreproduto retransformado em capital (...)”. (Werke, 23, Das Kapítal, I, op. cit., p. 614. O texto francês é muito diferente: ver trad. Roy, livre premier, tome troisième (III), op. cit., pp. 27-28) (42) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., pp. 609-610. Texto francês muito dife rente: ver trad. Roy, livre premier, tome troisième (III), op. cit., pp. 24-25. (43) O que mostramos para a liberdade e para a propriedade pode também ser dito da noção de homem. Enquanto o livre contrato não é reduzido a uma aparência, a perspectiva do homem sujeito não é inteiramente “suprimida”. Quanto à noção de riqueza, além do fato de que a análise da interversão da propriedade é também a análise da interversão da riqueza (a (produção da) riqueza é... empobrecimento), seria preciso observar, mas no fundo se trata da mesma coisa, que é sô no nível da anáiise da acumu lação que a conexão entre enriquecimento e empobrecimento aparece sob a forma de uma lei geral. (44) Grundrísse, op. cit., pp. 489-490, grifo nosso. Trad. ingl. de M. Nicolaus, op. cit., pp. 595-596. (45) Grundrísse, op. cit., p. 449, grifo nosso (“sem troca, sem equivalente", grifado já no texto). Trad. ingl. de M. Nicolaus, op. cit., p. 551. (46) Para o emprego não reflexivo da noção de “propriedade”, ver Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 791, trad. franc. Roy, livre premier, tome troisième (III), op. cit., p. 205, texto citado acima, na nota 3. Ver também, para a propriedade pré-capitalista, Grundrísse, op. cit., pp. 391-396, trad. ingl. de M. Nicolaus, op. cit., pp. 491-496, texto já referido. (47) O operário e o capitalista, diga-se de passagem, são suportes do capital somente na medida em que são considerados como “portadores” da estrutura. Consi derados no nível da atividade prática em sentido forte (a luta sindical ou política do operário, por exemplo), eles têm funções de outra natureza, as quais devem ser definidas por outros conceitos. Explicar-me-ei em detalhe sobre esse ponto em outro lugar.
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(48) Lembro as análises anteriores: em conformidade com os princípios da lógica “reflexiva” , o entendimento oscila entre o humanismo (o aníropologismo) e anti-humanismo (o antiantropoiogismo). Mas o humanismo se interverte em aníi-humanismo; o anti-humanismo, quando não sofre a interversão inversa, fica encerrado na tautología vazia do anti-humanismo. (49) Esta localização das esferas respectivas da "supressão” e da “interversão” no discurso dialético é imprecisa. Ela segue — ela não faz maís do que seguir — o movi mento do nosso texto. Com efeito, a primeira parte, onde se tratou da supressão, tinha sido construída em torno do eixo das “duas” antropologías; a segunda, em que se introduziu a interversão, está centrada na passagem à teoria da reprodução. As conclu sões relativas âs duas operações do discurso dialético se atêm a este esquema: a supressão se situaria no nível da conexão com os discursos antropológicos (tanto no plano da Teoria como no plano da política), a interversão se situaria no nível da apresentação (do desen volvimento) das leis contraditórias do objeto. Entretanto, há uma dificuldade relativa ao primeiro ponto, que se reflete no conjunto do plano. Como havíamos observado e discutido no início (ver primeira parte, “o homem e o capital”), o paralelo entre as duas antro pologías não deixa de apresentar certas dificuldades. É só na política — onde elà representa algo assim como o princípio da violência revolucionária — que a supressão do homem é constitutiva. (Ver primeira parte, c) No nível da Teoria, se encontramos sem dúvida um discurso antropológico não fundante, e nesse sentido “suprimido”, não se poderia dizer que (mesmo) a negação desse discurso tenha uma função cons titutiva. O “princípio” cuja negação é constitutiva na Teoria são exatamente as leis da circulação simples. (Por outro lado, a negação é, como vimos, de outro tipo; trata-se da interversão. Há também outras diferenças não analisadas aqui.) Seriamos assim tentados a pôr entre parênteses, na primeira parte, tudo o que se refere à antro pologia teórica; e a ler a segunda de um modo um pouco mais amplo do que o texto sugere. Do que resultaria, para a compreensão do conjunto: a primeira parte, onde se trata da supressão, teria por objeto a lógica da política marxista (os textos dos Grundrisse, obra de síntese, interviriam aí “envolvendo” a política): a segunda parte, em que se trata da interversão, apresentaria, pelo contrário, a lógica da Teoria (as referências aos Grundrisse iluminariam então a obra teórica). E isto nos levaria a concluir, no que se refere ao problema em discussão: a interversão caracterizaria, essencialmente, o movi mento da apresentação da Teoria; a supressão caracterizaria, essencialmente, a articu lação da política. É provavelmente a essa forma de apresentação e a esse resultado que seremos afinal conduzidos. Entretanto, nos limites deste texto, concluiremos conforme o esquema seguido, sem reinterpretá-lo. Isto, por um lado, devido ao fato de que, se o relacionamento das duas antropologías nos obriga a fazer certas ‘‘torções” na exposição, ele tem, não obstante, certo poder explicativo. (Ele torna mais clara, a seu modo, a diferença entre a dialética e os discursos do entendimento.) Por outro lado, porque, se nos quisermos liberar de toda dependência em relação à questão da antropologia, apresentando a dialética tomando diretamente como referência a relação entre a Teoria e a política, será preciso apresentar uma e outra de um modo muito mais detalhado e mais completo do que fizemos aqui. (50) Mesmo se nas análises da primeira parte só introduzimos a noção de “homem” , é evidente que as outras noções fazem parte também do universo do antro pologismo e do humanismo, que se trata de "suprimir” , (51) Só com o intuito de evitar confusões, observemos que se emprega aqui o termo "ideologia” no sentido que lhe dá Marx, não no que ele toma em Althusser. De um modo muito esquemático: em Marx, um discurso ideológico denota um discurso que remete a certas formas de consciência histórica e que é antes de mais nada, e neces sariamente, mistificante. Em Althusser, um discurso ideológico denota um discurso que remete a um sistema de representações que se encontra em qualquer formação — uma sociedade sem classes, por exemplo, teria também de direito a sua ideologia — discurso que é necessariamente (não “mistificante”, mus) a-científico. — Se o movimento do texto não é suficientemente claro, eis aqui esquematicamente os seus momentos. Trabalhamos
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até aqui com a distinção entre, de um lado, o discurso dialético, e, de outro, os discursos do entendimento, nas suas duas formas opostas-complementares. Ora, examinando as noções constitutivas do discurso do entendimento (em uma de suas formas), percebemos que elas compõem o universo da ideologia burguesa (clássica). O que foi dito da dife rença entre o discurso dialético e os discursos do entendimento (suas operações lógicas características etc.) deve ser aplicável à diferença entre um discurso ideológico e um discurso não-ideológico. Somos assim conduzidos a definir a ideologia — coisa que talvez nSo seja sem interesse — em termos das suas operações lógicas constitutivas. (52) Para a justificação desta última afirmação ou, antes, para uma justificação que não seja uma simples retomada das análises anteriores, ver a nota final. (53) Cf. a crítica do humanismo e do anti-humanismo, na primeira parte deste texto. Evidentemente, não fazemos aqui mais do que esboçar, sob a forma de uma nota final, o tema da significação histórico-política do humanismo e do anti-humanismo (enquanto paramarxismos), tema que desenvolveremos em outro lugar. (54) Aqui são os conceitos do discurso marxista, isto é, é o próprio discurso "substantivo” que se interverte, não as noções pressupostas. De resto, esta interversão, que é uma interversão “em si”, isto é, que não passa pela consciência do sujeito do discurso, se produz numa esfera do discurso marxista, indicada em seguida, em que a interversão só pode ser ideologizante.
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Althusserismo e antropologismo
A tese de um antropologismo althusseriano é suficientemente paradoxal para que se imponha uma justificação. Se falamos de um “deslizamento” do althusserismo no antropologismo (“deslizamento” cuja necessidade deveria ser buscada no caráter não dialético do pensa mento althusseriano), é preciso explicar em detalhe o seu mecanismo. Para fazê-lo, analisaremos inicialmente o texto de Balibar Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico. (Em Ler o Capi tal) 1Examinaremos em seguida, de um modo mais conciso, os célebres textos sobre a prática no artigo de Althusser Sobre a dialética mate rialista. (Em Pour Marx)2 A) BALIBAR O quadro de invariantes Retomemos inicialmente o texto de Balibar. Partindo da idéia de que existe em Marx “uma teoria geral da história” 3 e de que no centro desta teoria está o conceito de modo de produção, Balibar se propõe, antes de mais nada, “reconstituir” esta noção.4 Como, para ele, todo modo de produção pode ser pensado como “um sistema de formas que representa um estado da variação” 5 de um conjunto de elementos, para reconstituir a noção de modo de produção seria necessário, antes de mais nada, identificar os elementos comuns a todos os modos. Ele faz, assim, o inventário dos elementos que se encontram em todos estes sistemas de formas. Estes elementos são, em primeira instância, três: “ 1) o trabalhador (a força de tra balho); 2) os meios de produção (...); 3) o não-trabalhador que se apropria do sobretrabalho” .6 Mas é a combinação desses elementos que torna possível ou que constitui os diferentes modos, e esta combi nação se faz sempre segundo duas relações (relations) que também podem ser consideradas como “elementos” : a relação de propriedade7 e a chamada relação de apropriação real (a “ apropriação real material dos meios de produção pelo produtor no processo de trabalho”).8 De
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acordo com a iorma particular que assumem estas duas relações, ou como diz também Balibar, conforme “os valores exclusivos” 9— uniâo ou separação — que podem tomar estas relações, obteremos diferentes configurações. Assim, para o modo de produção (especificamente) capitalista — se tomarmos como termos o produtor e os meios de produção — obteremos uma dupla separação: por um lado, o traba lhador não é proprietário dos meios de produção; por outro lado — devido ao caráter do processo material de trabalho: nesse modo os meios de trabalho são máquinas e não instrumentos manuais — o tra balhador está separado, também do ponto de vista material, dos meios de produção. Significado antropológico do quadro de invariantes. Primeiro motivo do “deslizamento”: o ideal da teoria geral O quadro de invariantes e a sua particularização, a “dupla sepa ração” entre o trabalhador e os meios de produção — configuração, que, como acabamos de ver, toma, para o capitalismo, o esquema das duas relações —, é uma referência constante no texto de Balibar. Ele o retoma várias vezes na continuação, praticamente a propósito da dis cussão de cada problema (sobretrabalho, fetichismo, passagem de um modo de produção a outro etc.).10 Para saber que função tem o quadro de invariantes, leiamos o texto seguinte: “A periodização, pensada como periodização dos próprios modos de produção, como modos puros (dans leur pureté), dá forma, inicialmente, à teoria da história. Assim, a maioria das indicações em que Marx reúne os elementos da sua definição são indicações comparativas. Mas por trás dessa termi nologia 4®scritiva (os homens não produzem do mesmo modo nos diversos modos de produção históricos, o capitalismo não contém em si a natureza universal das relações econômicas) se indica o que toma possível as comparações no nível das estruturas, a procura das deter minações invariantes (dos ‘caracteres comuns’) da ‘produção em geral’, que não existe historicamente, mas da qual todos os modos de produ ção representam variações” . (Cf. Introdução de 1857 à Contribuição à Crítica da Economia Política) n A destacar nesse texto: “a procura das determinações invariantes” ( = o quadro dos invariantes) (é) “o que toma possível as comparações no nível das estruturas” . Leiamos ainda um outro texto, que se segue à exposição da passagem da manufatura à grande indústria: “Antes de enunciar as conseqüências ulteriores que podemos tirar desta análise (da passagem da manufatura à grande indústria) é necessário mostrar como ela depende inteiramente dos critérios de diferenciação das formas que estão contidos na definição do processo de trabalho”. 12 (A definição do processo de trabalho contém os elementos do quadro.) A destacar aqui “ela depende inteiramente” .
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Por outro lado, como se para acentuar a importância do seu esquema, Balibar se refere à “ dificuldade (que teria encontrado) (...) Marx em pensar a distinção entre as duas relações” , 13 “a sua dificul dade, patente nas hesitações do vocabulário das Formas anteriores..., em isolar as duas relações (...)” . 14 Dificuldade que o seu texto (o de Balibar) teria sido capaz de superar. Mas analisemos mais de perto o sentido do esquema geral. Que significam logicamente o quadro dos invariantes e o esquema da dupla separação, ou mais exatamente, qual é o caráter do discurso — e por tanto das noções — que os exprimem? Se os examinamos um pouco, veremos que se trata de um discurso — e de noções — cuja natureza é essencialmente antropológica. De fato, os termos que as duas relações unem — em primeiro lugar “trabalhador” e “meios de produção” (“objeto de trabalho” , “meio de trabalho”),15 são noções de caráter antropológico. (Que elas sejam antropológicas — se é necessário provar — se revela não só na sua generalidade, mas também no fato de que elas exprimem o processo de produção de um modo subjetivo. A gene ralidade — aqui, pelo menos — é subjetivizante. “Trabalhador” , “produtor” não só exprimem os agentes da produção (como a própria produção) em forma geral, mas os exprimem também como sujeitos.)16 Tais noções se encontram, bem entendido, em O Capital, mas em Marx, elas funcionam somente como pressuposições.17 O lugar delas é o capítulo V (original) do livro I de O Capital.18 Se algumas delas são utilizadas no capítulo primeiro,19 é somente a posteriori, no capítulo V, depois de ter introduzido as noções de capital, de força de trabalho, de mais-valia (além das noções essenciais à apresentação da circulação simples) que Marx apresentará e definirá estas noções. Mas ele o fará num discurso mais fraco, que deve ser lido como instaurando duas vezes uma descontinuidade — no início e no fim — com o discurso substantivo.20 Assim, sob a forma do quadro dos invariantes, as noções antro pológicas parecem assumir em Balibar uma dignidade teórica que elas não têm em Marx. E se se perguntar quais as razões que explicam um tal “deslizamento” no antropologismo, a resposta é bem evidente. Elas residem na necessidade de fundamentar o marxismo numa teoria geral, necessidade conforme à tradição clássica pré-hegeliana. É a concepção clássica do rigor em termos de uma fundação em noções primeiras, concepção inseparável da idéia clássica de uma universalidade do" domínio das leis da ciência, que serve de base a esse procedimento. É a dependência em relação a este ideal de ciência (dependência que se manifesta aqui pelo papel atribuído ao discurso geral),21 que conduz esse projeto de reconstituição do discurso de O Capital — o qual, entre outros resultados, deveria proteger o marxismo de toda leitura antropologista — a abrir a porta (é o menos que se poderia dizer) ao antro pologismo.
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As precisoes de Balibar: “visar” (“meinen”) e “pôr” (“setzen”) Essa apresentação do caráter antropológico do quadro de inva riantes seria suficiente para a critica do texto, se o autor, pressentindo algumas das dificuldades do quadro, não voltasse, páginas adiante, a discutir seu sentido. Na realidade, ele volta à questão do quadro dos invariantes, e é no nível dessa retomada que o problema do sentido geral do texto se coloca de forma mais aguda. É necessário assim exa miná-la em detalhe. Logo depois da apresentação do quadro, Balibar observa já, em forma de explicação, “ que não se trata de uma combinatória em sen tido estrito” ,22 e isto porque os fatores mudam de natureza ao se com binar. Mas é só mais adiante que ele retoma efetivamente o problema. O texto é longo, mas é preciso citá-lo pelo menos em parte: “A defi nição de todo modo de produção como uma combinação de elementos (sempre os mesmos) que são apenas virtuais fora do seu relacionamento num modo determinado, a possibilidade de proceder nessa base à periodização dos modos de produção, segundo um princípio de varia ção das combinações, merece, em si mesmo, atenção. (...) (...)” . A “combinação” analisada por Marx é sem dúvida um sistema de relações “sincrónicas” obtido por variação. Entretanto, esta ciência das combinações não é uma combinatória, na qual só mudam o lugar dos fatores e a sua relação, mas não a sua natureza, que é não só subordinada ao sistema global, mas também indiferente. Pode-se assim fazer abstração dele, e proceder diretamente à formalização dos siste mas. Sugere-se então a possibilidade de uma ciência a priori dos modos de produção, de uma ciência dos modos de produção possíveis, reali zados ou não na história real-concreta, por força do acaso ou pela eficácia de um princípio do melhor. Ora, se o materialismo histórico ’autoriza a previsão, e mesmo a reconstituição dos modos de produção “virtuais” (como se poderia chamar o “modo de produção mercantil simples”), os quais, não tendo sido nunca dominantes na história, só existiram deformados, é de um outro modo que daremos conta disto, mais adiante, com base nas modificações de um modo de produção existente. Isto suporia que os “fatores” da combinação são os próprios conceitos que enumerei, que esses conceitos designam diretamente os elementos de uma construção, os átomos de uma história. Na reali dade, como já disse de um modo muito geral, esses conceitos designam só mediatamente os elementos da construção: é preciso passar por aquilo que denominei “análise diferencial das formas” para determi nar as formas históricas que tomam a força de trabalho, a propriedade, a “apropriação real” etc. Estes conceitos designam somente o que poderíamos chamar de pertinência da análise histórica. Ê esse caráter da combinação, portanto, uma pseudo-combinatória, que explica por-
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que há conceitos gerais da ciência da história sem que jamais possa haver história em geral” . 23 Assim, depois da apresentação do quadro dos elementos e de suas implicações, eis que a posição do problema se desloca. Desen volvendo uma linha de argumentação já esboçada na idéia de que não se trata de uma combinatória mas de uma combinação,24 Balibar dirá que os “elementos” não são mais do que pertinências, o que significa aparentemente recusar ao quadro toda função fundante. Com base nessas precisões, costuma-se recusar as críticas do tipo das que fizemos aqui: por meio dessas precisões, Balibar teria conjurado a ameaça do antropologismo. E como essas precisões têm um peso maior na segunda edição de Ler o Capital do que na primeira, e como os althusserianos parecem dar-lhes uma importância cada vez maior, conforme o seu curioso método de autocrítica “ a prestação” , dir-se-á que refutamos a primeira mas não a segunda edição, que os althusserianos teriam assim superado aquele ponto de vista etc. etc. O que vai depressa demais. Porque, observemos — e este é o ponto mais importante: se é verdade que Balibar nos diz que os elementos não são mais do que pertinências, poderia ocorrer que os dizendo simples pertinências, eles os pusessem (“setzen”) de fato, como algo mais do que isto. Poderia ocorrer — coisa menos rara do que se pensa — que o seu dizer (no sentido fraco: o seu “meinen” , o seu “visar”) contrariasse o seu fazer (o seu fazer teórico: o seu "setzen")-, que ele dissesse o contrário do que ele faz (teorica mente): que o seu dizer não representasse mais do que um esforço inútil para evitar as conseqüências objetivas do seu fazer. Ora, é fácil mostrar que em Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico, os elementos (o quadro dos invariantes) são mais do que simples perti nências. Com efeito, não só — contrariamente ao que faz Marx — os “elementos” se situam no início do texto;25 mas, coisa mais impor tante, é mesmo dos “elementos” ao caso particular do capitalismo (ou, se se prefere, é do capitalismo mas sempre subsumido ao esquema geral) que — como se pode mostrar — vai o movimento efetivo do texto.26 Mas para mostrá-lo de um modo rigoroso, será preciso inter romper esse desenvolvimento em tomo da questão da generalidade, que depende de certos elementos ainda não introduzidos, para analisar o que constitui propriamente o núcleo da “ anfibolia” , a noção de “relação de produção” . A análise dessa noção nos levará inicialmente a destacar um segundo motivo do “ deslizamento” , mas este nos recon duzirá, no final, à questão da generalidade.
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O núcleo da “anflbolia”: a noção de relação de produção. Segundo motivo do deslizamento: o “horror” do movimento No fundo, o núcleo da “anfibolia” se situa na noção de “relação de produção” (rapport de production). Mais precisamente, na idéia que faz Balibar do que seja uma “relação” , na expressão “relação de produção” . Examinemos esse ponto em detalhe, comparando Balibar e Marx. Como vimos, a construção teórica de Balibar tem como centro a idéia de que a estrutura de todos os modos de produção remete a duas relações (relations) que “unem” (positiva ou negativamente) o traba lhador e os meios de produção (ou antes, o trabalhador, os meios de produção e o não-trabalhador). A noção de “rapport” (rapport de production, relação de produção)27 — quando ela não é empregada como equivalente a “relation” — remete à articulação das duas rela ções: “ a relação (rapport) dessas duas relações (relations) e sua inter dependência” .28 Como, deste modo, a relação de produção é consti tuída a partir das duas relações (quando ela não lhes é simplesmente identificada), para saber a que remete o termo relação (“rapport”) em Balibar, é preciso examinar primeiramente o que significam as relações (“relations”). (Ê verdade que mais adiante Balibar tenta fazer uma apresentação “sintética” da “relação” (“rapport”)-, mas, a exemplo do que fizemos anteriormente, antes de chegar a isso, é preciso considerar a relação (“rapport”) tal como aparece no início, tal como devemos pensá-la nos termos da apresentação inicial.)29 Em que sentido estas relações são chamadas de “relações” (“re lations”)? Somos obrigados a responder: no sentido usual da palavra, no sentido de que elas unem, de que elas estabelecem um “vínculo” entre certos elementos. A “relação” (“rapport”) (de produção), que exprime uma operação análoga em segundo grau, seria algo assim como um vínculo entre vínculos. Ora, que é para Marx uma “relação de produção” (“Produktionsverhàltnis”)? Ou antes, fazendo a pergunta de um modo ao mesmo tempo mais correto e mais fecundo, que é para Marx uma relação capitalista de produção? Para responder a esta questão, poderíamos começar perguntando quais são no capitalismo as “relações de produ ção” ; quais são, pois — o que não é sem importância — elas se exprimem por conceitos. Ora, como dizem numerosos textos, as rela ções capitalistas de produção são o capital e o trabalho assalariado,20 os quais são considerados, às vezes, como expressões diferentes de uma mesma relação.31 Por outro lado, ele diz que o capital é “ a categoria dominante, a relação de produção determinante” . 32 Razão pela qual, dizer o que é, para Marx, uma relação capitalista de produção significa explicitar a natureza do capital enquanto objeto. Para isto, tomemos inicialmente o texto dos Grundrisse já citado em nota: “(O capital) é
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evidentemente uma “relação” ( Verhältnis) e só pode ser uma relação de produção (Produktionsverhältnis)”.33 Que quer dizer no texto “re lação” , de que natureza é este objeto que Marx designa freqüente mente pela expressão “relação-(de)-capital” (Kapitalverhältnis)?34 Já havíamos dado a resposta no texto, mas uma passagem dos Grundrisse o diz de uma maneira muito elara, relacionando a noção de “relação” com a noção de “processo”: “(...) se dissermos que o capital é valor de troca que produz um lucro, ou pelo menos, que é utilizado com vistas à produção de lucro, o capital já é pressuposto à sua própria explici tação, pois o lucro é relação determinada do capital a si mesmo. O capital não é nenhuma relação ( Verhältnis) simples, mas um processo, em cujos diferentes momentos ele é sempre capital”. 35 A noção de “relação” remete, assim, à noção de “processo” . E é nesse sentido e não no sentido vulgar que, para Marx, o capital não é uma relação simples, mas uma relação complexa. Mas é o caráter de processo, ou mais exatamente, de processo-sujeito, que assegura a anterioridade da relação sobre os termos. Ê somente se ela for posta como processosujeito que será posta como anterior aos termos. Ora, no texto de Balibar, a “relação de produção” (na qual ele não reconhece o próprio capital) é, como vimos, uma coisa bem diferente de um movimento.36 E se no capítulo do seu texto consagrado à reprodução, o movimento “entrará em cena” , tratar-se-á não do movimento-sujeito, de uma coisa-movimento, mas de uma coisa (um sistema de relações no sentido usual) que-se-põe-em-movimento.37 Nessas condições, inútil explicar a posteriori que a relação é anterior aos termos.38 Tais explicações nos dizem, sem dúvida, que a coisa deve ser assim, mas isto não quer dizer que ela tenha sido efetivamente posta assim. No nível da posição a “relação de produção” aparece como segunda, não como primeira, em relação aos termos. Assim, o “ deslizamento” em direção às pressuposições ( = “desli zamento” no antropologismo) o qual havíamos apresentado como re sultado de um ideal linear de ciência, aparece aqui como fruto da recusa do movimento. O entendimento tem horror do movimento — do movimento-sujeito, este “irracional” (não do movimento em geral39) — como a natureza teria horror do vazio. Síntese dos dois motivos. Retomada do problema da generalidade Vê-se, assim, que o distanciamento em relação à dialética que tentamos reconstituir aqui poderia ser compreendido tanto como resul tado da fidelidade do teórico a um ideal clássico de “ dedução” (visível, ao que parece, no nível da posição), ideal que faz do ponto de vista geral o fundamento do seu discurso; como da impossibilidade em que ele se encontra (também inscrita no seu ideal teórico, mas se manifes
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tando em outra face) de apreender o movimento enquaftto movimento. Dois motivos que apresentamos (até certo ponto, pois falta ainda alguma coisa) o primeiro em forma “positiva” , o segundo em forma “negativa” , mas que poderíamos ter apresentado também de uma outra m aneira.40 Mas uma vez esclarecida a natureza do capital, pode ríamos — e deveríamos — retomar a questão da generalidade — o primeiro motivo, abandonado a meio caminho. À resposta ao problema deixado em suspenso está, de certo modo, contida na análise anterior. Com efeito, que no texto de Balibar, o esquema geral é posto como algo mais do que como um conjunto de “pertinências” — o que faltava provar — se revela primeiramente (além do fato, já assinalado no início, de que é à estrutura capitalista pensada em termos da dupla combinação41 que ele sempre volta) — no que acaba de ser demons trado, a saber, que dada a não-posição do capital como movimentosujeito, o capital também é reduzido a uma relação no sentido usual (uma “combinação”). Mas para mostrar que tal privilégio da “combinação” equivale propriamente a uma posição da generalidade, é preciso acrescentar ainda alguns elementos à análise, e sobretudo mostrar quais são as implicações desse privilégio no que se refere ao discurso sobre o con junto dos modos de produção. Examinemos, para concluir, esse ponto essencial, comparando uma última vez o procedimento de Balibar com o procedimento de Marx. O ponto fundamental é aqui o seguinte: porque ele representa a diversidade dos modos por “variações” expressas por noções tais como “combinação” , “ separação” , “reunião” (vimos que, afinal, tudo se reduz a isto) etc., a caracterização de um modo se faz em Balibar aquém do nível do capital,42 isto é, aquém do nível em que se poderia levantar a questão da presença ou da ausência do capital num deter minado modo de produção. Mas precisamente porque o capital não é senão um movimento “orientado” , esta questão é idêntica à questão da finalidade ou do motivo de uma forma de produção (em primeiro lugar, o de saber se a sua finalidade é o valor de uso ou (a valorização d)o valor). Ora — pode-se mostrar —, é propriamente a posição da finali dade que, em Marx, quebra a generalidade fundante; a elipse da fina lidade deve ser portanto o elemento-chave para compreender porque, em Balibar, a generalidade fundante fica afinal sempre posta. Vejamos tudo isto mais de perto. Se distinguirmos os modos como os distingue Balibar, nos situa mos efetivamente num terreno em que a generalização é possível. Se examinarmos as pressuposições, encontraremos sempre uma “reu nião” , uma “separação” etc. dos mesmos elementos, e a necessidade de generalizar é, assim, satisfeita. Mas a que preço? Pelo preço da posição do “motivo propulsor” (da finalidade) de cada modo (se ele se
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funda no valor de uso ou no valor de troca). Na realidade, se para dis tinguir os modos alguém disser que num modo tais elementos estão separados, tais estão unidos etc., ele não dirá nada sobre a finalidade desse modo, ou mais exatamente, ele não efetuará a posição da fina lidade desse modo. (Sem dúvida, a disposição dos elementos pode ser indicativa da finalidade, mas, com isto, Balibar não faz outra coisa senão pressupor o que é da ordem da posição (a finalidade), assim como — nós vimos — num movimento inverso, complementar, ele “põe” o que deve ser pressuposto.) Em Marx se dá o contrário. Tomemos as Formas que precedem a produção capitalista. Ainda que nas Formas... se fale muito das pres suposições — mas justamente elas aparecem como pressuposições43 — a linha divisória é a questão do motivo determinante, da finalidade interna dos diferentes modos. Ê assim que Marx volta constantemente — “do mesmo modo” que Balibar retoma sempre a “ dupla separação” — ao fato de que, no capitalismo, o motivo determinante é a valori zação (a produção de (sobre)-valor), enquanto que nos outros modos, o motivo determinante, a finalidade é, pelo contrário, a produção do valor de uso.44 Ora, eis o essencial: o valor de uso e o valor (ou a sua forma fenomenal, o valor de troca) não são espécies de um gênero, eles são contrários .4S E isto significa: não há nenhum gênero que possa subsumi-los. 46 “Quando Wagner diz que não há lá nenhuma teoria geral do valor, do seu ponto de vista (‘Sinn’) ele tem perfeitamente razão, pois ele entende por teoria geral do valor, raciocinações (‘Spin tisieren’) sobre a palavra ‘valor’, o que lhe permite perseverar na confusão, tradicional dos professores alemães entre ‘valor de uso’ e ‘valor’, porque os dois (termos) têm em comum a palavra valor” . 47 Assim, é fazendo do motivo determinante, da finalidade, o eixo divi sório, que a generalidade fundante é quebrada. É pela posição da fina lidade interna dos modos que o discurso sobre o conjunto dos modos de produção se torna coisa totalmente diferente de um discurso geral: um discurso de dispersão, em que só as diferenças são postas, ficando pressuposto o sistema das identidades .48
B) ALTHUSSER InterversSo análoga em “Sobre a dialética materialista de Althusser” Para completar e confirmar esta análise dos caminhos que con duzem os althusserianos ao antropologismo, examinaremos, mais rapi damente, os famosos textos de Althusser consagrados à prática em Sobre a dialética materialista (em Pour Marx).*9 Encontraremos lá um
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movimento (uma interversão) que é mais ou menos análogo ao que acabamos de examinar. E ainda mais nítido. Como se sabe, trata-se aí de esboçar o projeto de uma fundamen tação do materialismo histórico numa teoria geral das práticas, teoria que os althusserianos identificam ao materialismo dialético.50 Para isto, Althusser é levado a apresentar diversas definições gerais —■ini cialmente a definição geral (no duplo sentido: compreendendo os dife rentes tipos e as diferentes formas históricas) — de prática, e em seguida as definições gerais (no segundo sentido somente) das diversas práticas específicas, as práticas política, teórica, ideológica.51 Ora, como para o quadro dos invariantes de Balibar, se examinarmos bem essas definições reconheceremos sem dificuldade, e de um modo ainda mais claro, a matriz antropológica. Por outro lado, e aqui de uma forma um pouco diversa, encontraremos também os traços de um esforço igualmente inútil para escapar do antropologismo. O antropologismo do texto Como o fizemos a propósito de Balibar, e ainda que isto nos obrigue a certas repetições, separemos os dois níveis. Leiamos inicial mente esse texto destacando simplesmente a sua matriz antropológica, e deixando de lado, por enquanto, a análise de um certo número de determinações que deveriam evitar o perigo de uma queda no antropo logismo. Nós sublinhamos os termos antropológicos: “Por prática em geral entenderemos todo processo de transfor mação de uma matéria-prima dada determinada, em um produto determinado, transformação efetuada por um trabalho humano deter minado, utilizando meios (de ‘produção’) determinados. Em toda prá tica concebida desse modo, o momento (ou o elemento) determinante do processo não é nem a matéria-prima, nem o produto, mas a prática em sentido estrito: o momento do próprio trabalho de transformação, que emprega, numa estrutura específica, homens, meios e um método técnico de utilização dos meios. Esta definição geral da prática inclui em si a possibilidade da particularidade: existem práticas diferentes, realmente distintas, embora pertencendo a uma mesma totalidade complexa. A ‘prática social’, unidade complexa das práticas, que exis te numa sociedade determinada, comporta assim um número elevado de práticas distintas. Esta unidade complexa da ‘prática social’ é estruturada, veremos como, de modo que a prática determinante em última análise é a prática de transformação da natureza (matériaprima) dada, em produtos de uso pela atividade dos homens existentes, trabalhando com o emprego metodicamente regulado de meios de produção determinados, no quadro de relações de produção determi nadas. Além da produção, a prática social comporta outros níveis
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essenciais: a prática política — que nos partidos marxistas não é mais espontânea mas organizada com base na teoria científica do materia lismo histórico e que transforma a sua matéria-prima: as relações sociais, em um produto determinado (novas relações sociais); a prática ideológica (a ideologia, seja ela religiosa, política, moral, jurídica ou artística, transforma também o seu objeto: a ‘consciência’ dos ho mens); e enfim a prática teórica” . 52 Observemos, nesse texto — que para muitos foi uma das referências fundamentais na luta contra o antropologismo — a presença constante e nada acidental de termos como homens, natureza, produto, matéria-prima,53 todos os quais são de extração antropológica. Esses termos, que reaparecem na conti nuação do texto,54 exprimem os agentes como sujeitos (“homens” , por exemplo), e os objetos como natureza (enquanto objetos antropológiconaturais: “natureza” , “matéria-prima” , “produto”). Ainda uma vez, se reconhece sem dificuldade em tudo isto a descrição do processo de trabalho no capítulo V (original) do livro í de O Capital. Na realidade, o que Àlthusser faz aqui é “importar” as noções antropológicas do capítulo V a outros domínios da “produção” (política, ideologia, teo ria), e generalizá-las na Produção (no sentido duplamente geral). Dessa operação, da qual no máximo se poderia esperar como resultado novos discursos pressupostos (cujo interesse seria duvidoso), ele quer obter nada menos do que a Teoria geral das práticas, que ele identifica ao materialismo dialético, e que se destinaria assim a fundamentar o “materialismo histórico” .55 E tudo isto em nome de uma leitura que se pretende acima de tudo antiantropologista! (O paradoxo não é, entre tanto, já vimos, um “engano” (subjetivo) de Àlthusser.) A “correção” do antropologismo E, entretanto, como Balibar, Althusser sente ou antes pressente a dificuldade, e como Balibar (ainda que de outro modo e em um outro lugar) — mas de uma forma igualmente inoperante — ele tenta evitála. Balibar introduz na seqüência um certo número de considerações que visam limitar o alcance do esquema inicial. Althusser faz a mesma coisa, mas no nível das próprias definições.56 Porém os resultados são análogos. Só que o paradoxo se apresenta aqui de um modo a tal ponto imediato que é ainda mais difícil percebê-lo. No texto de Althusser a “precisão” é representada simplesmente pelo atributo “ determinado” (uma vez, “específico”) —■atributo aparentemente inocente — que ele vincula à maioria das noções contidas nas definições. Releiamos o texto acentuando as “precisões” , pondo assim em destaque esse segundo extrato lógico: “Por prática em geral, entenderemos todo processo de transformação de uma matéria-prima dada determinada em um pro duto determinado, transformação efetuada por um trabalho humano
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determinado, utilizando meios (‘de produção’) determinados. Em toda prática concebida desse modo, o momento (ou o elemento) determi nante do processo não é nem a matéria-prima, nem o produto, mas a prática em sentido estrito: o momento do próprio trabalho de transfor mação que emprega, numa estrutura específica, homens, meios e um método técnico de utilização dos meios. Esta definição geral da prática inclui em si a possibilidade da particularidade; existem práticas dife rentes, realmente distintas, embora pertencendo a uma mesma totali dade complexa. A ‘prática social’, unidade complexa das práticas que existe numa sociedade determinada, comporta assim um número ele vado de práticas distintas. Esta unidade complexa da ‘prática social’ é estruturada, veremos como, de modo que a prática determinante em última análise é a prática de transformação da natureza (matériaprima) dada, em produtos de uso pela atividade dos homens existentes, trabalhando com o emprego metodicamente regulado de meios de produção determinados, no quadro de relações de produção deter minadas (...)” .57 Superpondo esta leitura à primeira se vê bem o para doxo. Althusser nos apresenta um discurso geral58 sobre as práticas, onde se fala dos homens, do produto, do trabalho, da matéria-prima, da sociedade também (sempre em geral); mas nesse discurso geral ele diz que os objetos — os homens, o produto, o trabalho, a matériaprima, a sociedade, devem ser tomados de um modo determinado... Pode-se perguntar: qual o estatuto do termo “ determinado” num dis curso geral? Esse atributo muda a modalidade do discurso? Não, evi dentemente. Poder-se-á dizer cem vezes que o objeto é determinado: se o fizermos no quadro de um discurso geral, o objeto continuará sempre geral. Não é a presença de um atributo —• no caso, o termo “deter minado” — que muda a modalidade do discurso, mesmo se esse atri buto “ diz” o contrário do que diz o discurso. (Observar-se-á que é o próprio Althusser quem o ensina, quando ele faz a crítica do atributo “real” na expressão “humanismo real” . O problema é mais ou menos análogo.) Na realidade, o atributo “determinado" tem aqui a mesma função que as precisões de Balibar: como em Balibar, se trata de escapar do perigo antropologista que se pressente. Mas como em Balibar, com isto não se escapa do antropologismo (e nele se afunda ainda mais). Com efeito, o atributo “ determinado” só nos conduz a visar(“meinen", dizerem sentido fraco) o objeto de um modo particu lar, objeto que o discurso em que se encontra esse atributo, se consi derado na sua articulação essencial, “põe” pelo contrário (“setzen”) em forma geral. (E na medida em que esse discurso se desenvolve dizendo que o objeto deve ser visado de um modo determinado, quanto mais ele é dito “ determinado” , mais ele é posto como “indetermi nado” .) Aqui, como no exemplo anterior, o “meinen” contraria o “setzen”, sem poder anulá-lo. E a repetição compulsiva do atributo “determinado” — matéria-prima determinada, sociedade determi
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nada, produto determinado — o que não tem pouca importância para dar a ilusão de um “setzen" — não faz mais do que exprimir a exas peração do teórico diante da cilada que lhe arma a linguagem (a sua linguagem, a sua apresentação), cilada que, por razões que remontam à essência mesma do seu ideal de ciência, ele é incapaz de evitar.59 Vê-se assim — retomando o primeiro motivo do “ deslizamento” de Balibar — como o projeto de fundamentar o materialismo histórico numa teoria geral é o caminho mais seguro, apesar, ou antes, por causa das boas intenções antiantropológicas — na direção do antropologismo, seu contrário. *
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Concluamos esta análise da relação entre o althusserismo e o antropologismo. Inicialmente, observando o que há de ilusório em toda crítica do althusserismo feita em nome do antropologismo. Tais críticas são insustentáveis não só porque o marxismo não é um antropologismo, mas porque o althusserismo não é estranho ao antropologismo. Mas, sobretudo, observemos: esta análise não deve ser entendida como levando ao resultado de que o althusserismo é um antropolo gismo. Ou antes, ela não leva só a isto. Com efeito, a análise não nega o caráter antiantropologista do pensamento althusseriano, pelo contrá rio, ela deveria confirmá-lo. O althusserismo contém os dois momen tos, e a relação entre eles não é contingente: o althusserismo é um antropologismo, porque ele é um antiantropologismo. O caráter não dialético da sua oposição ao antropologismo (e que se reflete na ex pressão “anti” (-antropologismo), torna necessária a interversão do antiantropologismo em seu contrário. Observemos, por outro lado, que esse movimento de oposto abstrato a oposto abstrato tem provavelmente uma significação mais geral. Além do fato de que ele se manifesta em outros aspectos do problema do althusserismo (nós o mostraremos a propósito da crítica do historicismo), ele deve se encontrar também em outras filosofias do sujeito e do anti-sujeito. E por aí ele nos põe talvez no caminho de uma apresentação rigorosa do pensamento dialético, como o pensamento que “suprime” esses extremos, para escapar da interversão (“renversement”). Mas se tal generalização (que faria aparecer “en creux” — sobre uma base suficientemente ampla — a dialética) é a finalidade última deste trabalho, ela ultrapassa os limites do presente texto. Fi quemos por aqui.
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NOTAS (1) E. Balibar, “Sur les concepts fondamentaux du matérialisme historique”, in L. Althusser e E. Balibar, Lire Le Capital, París, Maspero, 2? ed., 1968, tomo II, pp. 79-226. Principalmente no que se refere ao texto de Balibar, esta 2? edição apresenta certas diferenças em relação à primeira. S6 nos serviremos aqui da 2? edição. (2) L. Althusser, “Sur la dialectique matérialiste (De l’inegalité des origines)” , in PourMarx, Paris, Maspero, 1968, pp. 163-224. (3) E. Balibar, "Sur les concepts fondamentaux du matérialisme historique”, in op. cit., tomo II, p. 79. (4) Ver ídem, II, p. 90. (5) Idem, II, p. 93. (6) Idem, II, pp. 94-95. (7) Idem, II, p. 95. (8) Idem, II, p. 95. Por enquanto, digamos simplesmente que a relação de apro priação — seguimos por ora a apresentação de Balibar — se refere ao nível material: à rela ção material que se estabelece no processo de trabalho, entre o trabalhador e os meios de produção, em particular os meios de trabalho, enquanto que a relação de propriedade se situa no nível formal. (9) Idem, II, p. 95. (10) Ver Ídem II, pp. 105, 109-110, 132, 142, 146, 157, 166, 204, 219, ... (11) Idem, II, p. 90, ri. 1, grifado por Balibar. (12) Idem, II, p. 135, grifado sucessivamente por nós e por Balibar. (13) Idem, II, p. 98. (14) Idem, II, p. 99. “Marx confunde constantemente (as duas separações) num único conceito, o da separação entre o trabalho e as condições de trabalho.” (Ibidem) (15) Estas duas últimas noções, que especificam a noção de “meios de produção” aparecem na segunda apresentação do quadro (idem, II, p. 98), que é a seguinte: “1. Trabalhador 2. Meios de produção — 1. objeto de trabalho — 2. meio de trabalho . 3. Não-trabalhador A. Relação de propriedade B. Relação de apropriação real ou material”. Nessa segunda apresentação, desaparece a referência à “força de trabalho” — “o trabalhador (a força de trabalho)” — que havíamos encontrado na primeira. A noção de “força de trabalho”, se tomada no nível geral e antropológico, é uma noção do mesmo tipo que as de “trabalhador” e “meios de produção”. Se, pelo contrário, a considerarmos no interior do capitalismo, ela é de uma outra ordem, e “quebra” por isso mesmo o quadro geral dos invariantes. Esta talvez a razão pela qual ela teve de desaparecer. (16) No sentido da antropologia stricto sensu, não no sentido do humanismo (o “homem humanizado”). Conviria precisar essa distinção: se se pode falar de antro pologia, em sentido geral, a propósito de todo discurso fundado em noções que exprimem os agentes como sujeitos (e — poderíamos acrescentar — que exprimem os objetos como natureza), seria necessário distinguir o discurso humanista (em que o sujeito fundante é uma universalidade concreta: o homem humanizado, o homem plenamente constituído) do discurso antropologista em sentido estrito (em que o sujeito é uma universalidade abstrata: o homem ou os homens — mas também o trabalhador em geral etc. — sem outro redobramento). Nos limites deste texto, só nos referiremos à antropologia (e ao antropologismo) em sentido estrito. Sobre a distinção, ver também o texto anterior, n. 15. (17) Sobre a noção de “pressuposição”, ver as análises dé J. A. Giannotti em As origens da dialética do trabalho, sobretudo a edição francesa, Paris, Aubier, 1971. (No que se refere ao seu ponto de partida — e qualquer que seja o entrecruzamento.
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já antigo, das duas linhas de pesquisa — o nosso texto deve certamente alguma coisa ao livro de Giannotti. Observe-se, entretanto, que utilizaremos aqui duas distinções envol vendo a noção de posição. Trata-se inicialmente da distinção — análoga à que se encontra em As origens da dialética do trabalho, a qual foi preciso retomar, de início — entre noções pressupostas e noções postas (distinção que separa as noções- gerais de caráter não conceituai e sem papel fundante, dos conceitos que exprimem cada modo de produção). Porém, mais adiante, se trata da distinção — que è de uma outra ordem — entre “visar” (meinen) e “pôr” (setzen), pela qual se separa algo como as intenções não preenchidas de um discurso, e o discurso efetivo.) (18) Como toda exposição antropológica, a exposição do capítulo V é subjetivizante. Esta é a razão pela qual, ao retomar a análise do capitalismo, Marx poderá se referir — em textos que lêem o capitalismo sobre o fundo (ou o horizonte) do discurso antropológico — a uma inversão (característica do capitalismo) da relação entre o traba lhador e os meios de produção: “Não é mais o trabalhador que utiliza os meios de produção, são os meios de produção que utilizam o trabalhador” . (Werke, 23, Das Kapital,\, Berlim, Dietz, 1972, p. 329; Marx, Oeuvres, Économie I, Paris, Bibliothèque de ia Plêiade, Gallimard, 1965, p. 846). “(...) esta interversão ( Verkehrung), mesmo deslocamento ( Verrückung) da relação entre o trabalho morto e o trabalho vivo, que é própria da produção capitalista e que a caracteriza (...)”. ( Werke, 23, Das Kapital, op. cit., p. 329; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 847. Grifo nosso) (19) Ver, por exemplo, Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 54; Oeuvres, op. cit., p. 567: “A força produtiva do trabalho é determinada por diversas circunstâncias, entre outras (...) pela extensão e a eficácia dos meios de produção (...)”. (Grifo nosso) (20) Quanto à noção de “não-trabalhador” é, sobretudo, às noções que expri mem as duas relações — “propriedade", “apropriação” (ainda não analisadas), elas são sem dúvida de um nível diferente das que examinamos. Nenhuma delas se encontra na parte antropológica do capítulo V, e pelo menos as duas últimas não são em si mesmas propriamente antropológicas. Mas se elas não são, propriamente, antropológicas, elas dependem das noções antropológicas e são marcadas por estas. Na realidade, essas relações, que Balibar considera também como "elementos”, são construídas a partir das noções de “trabalhador” e de “meios de produção”. A “propriedade" (e a "não-propriedade”) são “laços” que unem (ou separam) “trabalhador” e “meios de produção”. Não há assim descontinuidade entre, de um lado, a noçâo de “propriedade”, e de outro, as de “trabalhador” e de "meios de produção”, como será o caso, como veremos, para o conceito de “capital” em relação a estas últimas. (No que se refere à noção de “nãotrabalhador”, forma negativa de “trabalhador”, a dependência é imediatamente visível.) (21) Sem dúvida, os clássicos fizeram a crítica do conhecimento fundado na “generalidade”. Mas diante da “revolução hegeliana" isto é secundário. Criticando o ideal de fundação na “generalidade”, eles permaneceram fiéis à idéia, que ele contém, de uma ciência de domínio universal fundada em noções primeiras. Esta é a razão pela qual se pode dizer, apesar de tudo, que o ideal da generalidade reconduz ao universo dos clássicos. (22) E. Balibar, “Sur les concepts fondamentaux du matérialisme historique”, in op. cit., tomo II, p. 100, grifo do autor. (23) Idem, II, pp. 112-114, grifo do autor. Mais adiante, ele escreve, no mesmo sentido: “Possuímos o conceito teórico do modo de produção, e mais precisamente o possuímos sob a forma do conhecimento de um modo de produção particular, pois, como vimos, o conceito só existe especificado”. (Idem, II, p. 153) (24) As precisões de Balibar visam antes de mais nada se distanciar da apresen tação estruturalista, isto é, responder à imputação de “estruturalismo” habitualmente lançada contra o althusserismo. Mas por um movimento que, no nível negativo das justificações, é análogo àquele que estamos reconstituindo, estas garantias (ilusórias) em relação ao estruturalismo tomam também o valor de garantias (ilusórias) em relação ao antropologismo.
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(25) Ainda que seja um sintoma importante, o “lugar” não é em si mesmo o essencial. (26) Observemos, por outro lado, que não é em todos os casos que o meinen (visar) contraria o setzen (pôr). Às vezes ele o confirma, como nos textos citados ante riormente. (Idem, II, pp. 90 e 135) (27) Vendem, II, pp. 123 e 126-127. (28) Idem, II, p. 98. (29) Observemos, desde já, para evitar toda confusão, que o método de Balibar que consiste em introduzir precisões na determinação inicial coincide somente na apa rência com o método de apresentação de Marx, que consiste — mostraremos em detalhe em outro lugar — em enriquecer progressivamente as noções por meio de negações sucessivas. Digamos, de um modo geral, que, como para a dialética a negação não é um defeito, mas uma condição de inteligibilidade, Marx assume as negações sucessivas da apresentação (que, no essencial, reproduzem as negações, as contradições do real). Nos althusserianos, pelo contrário, as negações aparecem como um defeito do método, como um mal menor, e devem ser apresentadas meio ocultas ou sob a forma de precisões (de correções). Também para evitar confusões, observemos que essas diferenças de método não se devem evidentemente ao fato de que Marx faz ciência e os althusserianos, filosofia (epistemología). A ruptura entre o marxismo e o althusserismo atravessa tanto a ciência como a filosofia. (30) “Após o desenvolvimento anterior, é supérfluo provar de novo como a rela ção do capital e do trabalhador assalariado determina o caráter total do modo de pro dução. Os agentes principais desse modo de produção mesmo, o capitalista e o traba lhador assalariado, são, enquanto tais, apenas corporificações ( Verkörperungen), perso nificações do capital e do trabalho assalariado; caracteres sociais determinados que o processo social de produção imprime aos indivíduos; produtos dessas relações de produ ção sociais, determinadas (bestimmten gesellschaftlichen Produktionsverhältnisse).'' (Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., pp. 886-887; Oeuvres, Économie II, op. cit., 1968, p. 1478, grifo nosso) Sobre o capital, relação de produção: “Aqui o capital é compreendido ¿corretamente como relação de produção (Produktionsverhältnis)". (Wer ke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 232; Théories sur la Plus-valie, publicado sob a responsabilidade de G. Badia, tome III, Paris, Éd, Sociales, Í976, p. 278, grifo nosso) E finalmente: “(O capital) é evidentemente uma relação (Verhältnis) e sí5 pode ser uma relação de produção” (Produktionsverhältnis). (Grundrisse, Dietz, 1953, p. 413; Manuscrits de 1857-1858, (Grundrisse) publicado sob a responsabilidade de J.-P. Lefebvre, I, Paris, Êd. Sociales, p. 452, grifado por Marx) (31) “O trabalho enquanto trabalho assalariado e as condições de trabalho en quanto capital — portanto propriedade do capitalista; elas são proprietárias delas mesmas no capitalista, no qual elas se personificam, e cuja propriedade sobre elas é a propriedade delas sobre elas mesmas diante do trabalho — são expressões de uma mesma relação, a partir de seus pólos distintos” . (Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 482; Théories sur la plus-valie, op. cit., III, p. 578-579) (32) “Mas no modo de produção capitalista, e no capital que constitui a sua categoria dominante, a sua relação de produção determinante (“ihr herrschende Kate gorie, ihr bestimmendes Produktionsverhältnis”), esse mundo encantado e invertido se desenvolve ainda mais”. (Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 835; Oeuvres, Économie II, op. cit., p. 1435, grifo nosso) (33) Grundrisse, op. cit., p. 413; Manuscrits de 1857-1858, op. cit., I, p. 452, grifado por Marx. (34) Por exemplo: “Assim D ’ aparece como uma soma de valor que exprime a relação-(de)-capital (Kapitalverhältnis) diferenciada em si, se distinguindo em si funcio nalmente (conceitualmente)”. (Werke, 24, Das Kapital, II, op. cit., p. 50, grifo nosso) “M’ enquanto relação-(de)-capital (Kapitalverhältnis) é aqui o ponto de partida, e enquanto tal, age de um modo determinante sobre a totalidade do circuito (...)” . (Idem, p. 97, grifo nosso) A tradução francesa do livro II de O Capital das Éditions
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Sociales traduz sempre “Kapitalverhältnis” por “relation capitaliste" (ver, para os nossos exemplos, Marx, Le Capital, Paris, Êd. Sociales, 1960, tomo IV, respectivamente pp. 46 e 87), o que é evidentemente incorreto. Coisa semelhante na edição das obras de Marx da Bibliothéque de la Pléiade (dirigida por M. Rubel), a propósito de uma outra ocorrência era Marx, do termo “Kapitalverhältnis” (tomo outro exemplo, porque os textos das duas edições não coincidem). O texto alemão diz: “Es tritt die dem KapitalVerhältnis immanente Mystifikation ein”. (Marx, Resultate des unmittelbaren Pro duktionsprozesses, Frankfurt, Verlag Neue Kritik, 1969-70, p. 47, grifado por Marx) E a tradução: “Intervient également la mystification inhérente au capitalisme". (Marx, Oeuvres, Économie II, p. 366, Subordination formelle et réelle du travail au capital, grifo nosso) Uma nota de Rubel indica o conceito original, e tenta justificar assim a tradução: “2. (Capitalisme) terme que nous mettons pour Kapitalverhältnis. Marx ne semble pas avoir empiOyé le mot Kapitalismus avant 1870”. (Marx, Oeuvres, II, op. cit., p. 1661, n. 2 à p. 366) Mas o problema não remete evidentemente à cronologia do vocabulário nem os dois termos são equivalentes. As traduções defeituosas da expressão “Kapital verhältnis” denotam a dificuldade dos tradutores em compreender que o capital é ele mesmo a Relação, resultado a que só se pode chegar, evidentemente, se se compreender o que é uma relação para Marx. (35) Grundrisse, op. cit., p. 170; Manuscrits de 1857-1858 (Grundrisse), I, op. cit., p. 198, grifo nosso. Citemos ainda um texto muito claro do livro II de O Capital: “O capital enquanto valor que se valoriza não contém somente relações de classe (Klassen Verhältnisse), um caráter social determinado (einen bestimmten gesellschaftlichen Cha rakter) que repousa sobre a existência do trabalho enquanto trabalho assalariado. Ele é um movimento (Es ist eine Bewegung), um processo circular (Kreislaufsprozess) que por sua vez contém três formas diferentes do processo circular. Por isso, só se pode apreendêlo como movimento e não como uma coisa em repouso (Es kann daher nur als Bewegung und nicht als ruhendes Ding begriffen werden). Aqueles que consideram a autonomi zação do valor como urna pura abstração esquecem que o movimento do capital indus trial é esta abstração em ato (“diese Abstraktion in actu ist”). O valor percorre aqui formas diversas, movimentos diversos, nos quais ele se conserva e ao mesmo tempo se valoriza, aumenta”. (Werke, 24, Das Kapital, II, op. cit., p. 109; Le Capital, livre II, tomo I (IV), trad. franc. de E. Cogniot, Paris, Éd. Sociales, 1960, p. 97, grifo nosso) Observemos que nos textos do livro II, citados anteriormente, onde se encontra a expressão “relação-(de)-capital” (“Àapiía/verAa/íms), a noção de “relação” remete sem pre à idéia de "processo”. Trata-se sempre de mostrar que cada momento do capital (da relação-capital), para ser pensado, enquanto tal (enquanto momento do capital) deve remeter a uma “história”, no sentido da temporalidade econômica. Cada momento refere um momento passado — é memória retrospectiva de um momento anterior do processo, ou remete a um momento futuro — é memória prospectiva. A dissociação entre a noção de relação (rapport ou relation) e a noção, ou a idéia, de processo é característica das leituras do entendimento. (36) Na parte do seu texto consagrada à acumulação primitiva, o capital (junto com o trabalho livre) é apresentado como sendo ele mesmo um dos elementos que “entram na estrutura capitalista”. (Idem, II, p. 187) Mas dado o contexto, isto não permite avançar na solução do problema. Com efeito não é propriamente na análise da acumulação primitiva — onde só se trata da formação das pressuposições do capitalismo — que o capital poderia aparecer sob a forma do movimento. Poder-se-ia, assim, observar: se lá onde se deveria tratar do capital, Balibar põe as pressuposições do capital, lá onde se trata das pressuposições — embora pensando sempre (e aqui com razão nas pressuposições — ele fala do “capital”. Ele diz por outro lado (idem, II, p. 165) que o capital é a “forma de conjunto da produção”, fórmula que também não faz avançar muito a solução do problema. (37) Ele escreve, por exemplo: “Assim, a análise da reprodução parece pôr em movimento, propriamente, o que até aqui só fora visto em forma estática (...)”. (Idem, II, p. 159, grifo nosso) Isto significaria que a diferença entre as seis primeiras
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secções do livro I de O Capital (ou, mais exatamente, as secções de dois a seis) e a secção sétima, que trata da reprodução e da acumulação, representariam uma passagem do ponto de vista estático ao ponto de vista dinâmico. Ora, não se trata disto. Na obra de Marx, o capital é considerado sempre em movimento, porque ele é movimento. A dife rença entre as primeiras secções e a secção sétima reside no fato de que, nas primeiras, o movimento depende ainda de certas pressuposições, enquanto que na análise da repro dução estas são apresentadas como sendo postas pelo próprio capital. Trata-se assim de uma passagem que é interior ao movimento. Observemos que esta queda na distinção não dialética entre o “estático” e o “dinâmico” é tanto mais surpreendente em Balibar, porque ela é criticada num outro ponto do seu texto. (38) Ele dirá, por exemplo: “Não é (...) a definição da classe capitalista ou da classe dos proletários que precede a da relação social de produção, mas, inversamente, é a definição da relação social de produção que implica uma função de ‘suporte’ definida como uma classe”. (Idem, II, p. 123) Aqui se trata mais exatamente da relação social de produção (da relação entre as classes) do que da relação de produção: mas a ante rioridade da primeira em relação aos termos só é pensável se apreendermos a anterio ridade da relação de produção propriamente dita. (39) Diga-se de passagem, é substituindo o problema do movimento-sujeito pelo problema do movimento em geral que as leituras vulgares falseiam o sentido profundo da dialética. (40) Se apresentarmos os dois motivos em forma negativa, diremos que o distan ciamento é fruto, por um lado, da incapacidade do entendimento de apreender o “espe cífico” como sendo anterior ao geral na ordem da posição; por outro lado, da sua incapacidade de apreender o movimento como sujeito. Se apresentarmos os dois motivos em forma positiva, diremos que o distanciamento deriva, por um lado, de uma (pretensa) exigência de fundar o particular no geral, e por outro, de uma (pretensa) exigência de apreender o movimento como predicado de um sujeito. (41) Ver a esse respeito a nota 10. (42) A “dupla separação", a forma pela qual ele apresenta a estrutura capita lista, não é mais do que a expressão formal e generalizante da dupla subordinação do trabalho ao capital. (Aliás, Balibar o reconhece, mas como sempre somente a posteriori. Ver idem II, p. 219: “(...) não é uma das duas (relações) que é ‘subsumida’ à outra, é o trabalho que é subsumido ao capital (...)” — observação que se apresenta como um resultado mas que, se for levada a sério, contradiz, apesar das aparências, tudo qüe ele tinha dito (feito) anteriormente.) Observemos que, se a noção de “separação” carac teriza bem o que se passa no nível das pressuposições — (o célebre texto do livro II de O Capital, onde se fala das “combinações”, texto sobre o qual os althusserianos fizeram um barulho excessivo, sem tê-lo lido bem, diz: “No caso de que nos ocupamos, o ponto de partida é dado pela separação entre o trabalhador livre e os seus meios de produção”. (Werke, 24, Das Kapital, II, op. cit., p. 42; Le Capital, livre II, tome I (IV), op. cit., grifo nosso)) — ela é segunda, e em certo sentido diz o contrário do que se passa no interior da relação, tanto no que se refere ao nível formal quanto no que concerne ao nível material. Com efeito, no que se refere ao nível formal: no interior da relação, o operário continua evidentemente “separado” dos meios de produção (ele é não-proprietário destes últimos), mas o que é propriamente substantivo é a subordinação (formal) do trabalho ao capital — os termos não são mais os mesmos, mas a sua relação afeta a dos suportes —, o fato de que o trabalho é submetido ao capital, e isto implica (também para os suportes) mais exatamente algo como uma “reunião”. Do mesmo, no que se refere ao lado material: sob um aspecto não há mais separação mas reunião (material) entre o operário e os meios de produção (o operário está ligado a esses meios como um apêndice (Anhängsel)', sob um outro aspecto, há emergência de uma separação, a que se dá entre o operário e o seu trabalho (separação que constitui o tema importante da alienação no livro I de O Capital)', mas, a menos que se queira atribuir um papel fundante a isto (“deslizando” ainda vez no antropologismo), é necessário tomar essa separação como alguma coisa que é segunda em relação à subordinação do trabalho ao capital. Obser-
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vemos, para terminar com o “deslizamento” subordinação/separação, que a análise de Balibar não faz totalmente abstração da interioridade do processo (a relação material tal como ele a descreve só existe no interior do processo), mas ele confunde os dois níveis, ele projeta a exterioridade (as pressuposições) na interioridade, ou lê a interioridade sob a forma da exterioridade (a subordinação se torna, assim, separação). Daí a opacidade do seu texto (para todo leitor de Marx, pelo menos), opacidade que, na realidade, está ausente do texto de Marx. As "dificuldades” que Balibar encontra no texto de Marx são o resultado necessário de uma tentativa de leitura “analítica” (no sentido em que se fala de “razão analítica”) de um texto dialético. E é essa tentativa de reduzir a “nãoclareza” (dialética) à clareza cartesiana (ou em todo caso clássica) que explica a “nãoclareza” (no sentido corrente, pejorativo: a opacidade) do texto de Balibar. (43) O termo “pressuposição” ("Voraussetzung”) que, diga-se de passagem, existe nos althusserianos, mas do qual eles não tiram todas as implicações, é mencionado quase em cada parágrafo das Formas... Ver, Grundrisse, op. c/f., p. 375, linhas 7, 11, 18, 41; p. 376, linhas 8, 16, 31; p. 378, linha 5; p. 379, linhas 11, 19, 29 etc. etc. (44) “Nas duas formas (pequena propriedade e comuna oriental) os indiví duos não se relacionam como trabalhadores, mas como proprietários — e membros de uma comunidade, que ao mesmo tempo trabalham. A finalidade (Zweck) desse trabalho não é a criação de valor — ainda que eles possam fazer trabalho excedente (Surplusarbeit, não Mehrarbeit) para trocar por produtos alheios (fremde), isto é, por produtos excedentes (Surplusprodukte); mas a sua finalidade (Zweck) é a manutenção do indiví duo (...).” (Grundrisse, op. cit., p. 375, Manuscrits de 1857-1858..., 1, op. cit., p. 411, grifo nosso) “Aqui se trata propriamente do seguinte: em todas essas formas em que a propriedade da terra e a agricultura constituem a base da ordem econômica, e onde portanto a produção de valores de uso é afinalidade econômica (ökonomischer Zweck), a reprodução do indivíduo no interior de relações determinadas com a sua comuna é dada (...).” (Grundrisse, op. cit., p. 384; Manuscrits de 1857-1858..., op. cit., I, p. 421, grifo nosso) “Assim, a concepção antiga — em que o homem, qualquer que seja a limitação nacional, religiosa, política da sua determinação, aparece sempre como a finalidade (Zweck) da produção — aparece sempre como muito elevada diante do mundo moderno, em que a produção aparece como a finalidade (Zweck) do homem, e a riqueza como a finalidade (Zweck) da produção." (Grundrisse, op. cit., p. 387; Manuscrits de 18571858..., op. cit., I, p. 424, grifo nosso) “A finalidade (Zweck) de todas essas comunidades é a manutenção, isto é, a reprodução dos indivíduos (...).” (Grundrisse, op. cit., p. 393; Manuscrits de 1857-1858..., op. cit., I, p. 431, grifo nosso) etc. (45) Por exemplo: “A primeira peculiaridade que salta aos olhos quando consi deramos a forma equivalente é a seguinte: o valor de uso se torna a forma fenomenal do seu contrário (Gegenteil), o valor.” (Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 70; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 586, grifo nosso) (46) Na introdução à edição francesa da Garnier-Flammarion do Livro I de O Capital, Althusser ataca o emprego por Marx da expressão “valor de uso”. Marx deveria ter dito “utilidade social” (ver Le Capital, livro I, Paris, Garnier-Flammarion, 1969, p. 22, “Avertissement...”). Ora, é de propósito e muito provavelmente por uma razão profunda que Marx conservou a expressão “valor de uso” para designar algo que é um contrário do “valor”. Se Marx denomina “valor de..." (valor de uso) o contrário do valor, é porque, contra toda lógica da identidade, ele quer “pôr” no próprio nível da expressão a contradição real entre os dois termos. Um procedimento que não faz outra coisa senão satisfazer a certas exigências de rigor do discurso dialético, aparece assim aos defensores do entendimento como uma imperfeição de linguagem. (47) Werke, 19, “Randglossen zu Adolphe Wagners ‘Lehrbuch der Politischen Ökonomie”, op. cit., p. 358, grifo nosso. Mas se a expressão “esses dois termos” tem “em comum a palavra valor”, permite esclarecer a idéia de um “valor” geral subsumente, ela nos parece insuficiente, porque corre o risco de ir longe demais no sentido inverso. Com efeito, na medida em que, embora sendo universalidade negada (e não particularizada pelos valores de uso), o valor é por isso mesmo universalidade negada, a relação entre os
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dois conceitos (que não é de subsunção mas de contrariedade) ultrapassa a de uma simples homonímia. Ver a esse respeito o ensaio seguinte, II, 1. (48) Observemos que se só nos referimos aqui à descontinuidade entre o modo de produção capitalista e todos os outros é porque é ela que representa um problema no texto de Balibar. Mas há outras descontinuidades. Na realidade, o discurso sobre o conjunto dos modos (a “teoria” dos modos de produção) é constituída por uma série de descontinuidades, que remetem finalmente a diferenças de “sentido” entre os modos (ou séries de modos). E essas diferenças se manifestam pela alternativa entre a presença e a ausência de um conceito (não por variações em combinações que uniriam os mesmos elementos). Assim, a descontinuidade entre o socialismo (tal como o concebia Marx) e o conjunto dos outros modos (com exceção das comunidades primitivas) se institui pela diferença entre modos em que reina a exploração e um modo em que toda exploração está excluída. Esta diferença de sentido (onde já entra uma alternativa do tipo indicado) se exprime, entre outras coisas, pela presença ou a ausência do sobretrabalho (Mehrarbeit). Com efeito, Marx não dirá no livro I de O Capital que no socialismo o sobre trabalho (Mehrarbeit) é utilizado socialmente etc.; ele dirá que não há sobretrabalho (Mehrarbeit). ( Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 552; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 1023) Os althusserianos dirão talvez que eles conhecem essa descontinuidade. Não são eles os campeões da descontinuidade? E entretanto: se no que se refere ao socialismo é impossível comentar o texto de Balibar (que não diz nada ou quase nada sobre isso) pode-se mostrar que, em outros textos, dos althusserianos, a descontinuidade entre o socialismo e os outros modos de produção é claramente anulada. Assim, no texto de Althusser, Théorie, pratique théorique et formation théorique. Idéologie et lutte idéologique, texto criticado por Rancière em Sur la Théorie de l'idéologie (1969, republi cado em La leçon d ’A lthusser, Paris, Gallimard, 1974), as “representações coletivas” de uma sociedade socialista são subsumidas de direito, ao lado das dos outros modos de produção — contrariamente ao que se encontra em Marx — à noção geral de “ideo logia”. Em Althusser, elas seriam assim de direito, algo como “um estado de variação” da Ideologia, assim como em Balibar cada modo de produção é um estado de variação (da dupla relação) do Sistema de Elementos. Ver sobre esse texto de Althusser a crítica de Rancière (op. cit., pp. 227 e segs.), crítica que a esse respeito é paralela à que fazemos aqui. (49) L. Althusser, “Sur la dialectique matérialiste (De l’inégalité des origines)”, in Pour Marx, Paris, Maspero, 1965, pp. 163 e segs. (50) “Chamaremos de Teoria (maiúscula) a teoria geral, isto é, a Teoria da prá tica em geral, ela mesma elaborada a partir da teoria das práticas existentes (das ciên cias), que transformam em ‘conhecimentos’ (verdades científicas) o produto ideológico das práticas ‘empíricas’ (a atividade concreta dos homens) existentes. Esta Teoria é a dialética materialista que se confunde com o materialismo dialético.” (Idem, p. 169, grifado pelo autor) “(...) Mas enunciando essa tese, Lenin faz mais do que ele diz: lembrando a prática marxista a necessidade da teoria que a fundamente, ele enuncia um fato, uma tese, que interessa à Teoria, isto é, à teoria da prática em geral: a dialética materialista.” (Ibidem) (51) Ver idem, p. 167; examinaremos em seguida esses textos. (52) Idem, pp. 167-168, grifo nosso. (53) Porque o althusserismo — no qual só se vê, usualmente, um antiantropologismo — deu uma grande importância à noção de "matéria-prima” (sobre isto, há textos saborosos nos epígonos) fica difícil lembrar que a noção de matéria-prima é de essência antropológica. E, entretanto, já que a noção serve como as outras, à descrição geral e material do processo de trabalho, não há nenhuma razão para pô-lo em dúvida. (54) Ver, por exemplo, o emprego da expressão “atividade concreta dos homens” em idem, p. 169, texto citado anteriormente em nota. Outro exemplo na p. 188. — Sem dúvida, do simples fato de que Althusser emprega termos como “homens” etc., não se pode concluir que ele “deslize” no antropologismo. Dir-se-ia que “polemizamos” . Mas o problema não reside simplesmente no fato de que ele empregue tais termos, mas sim que
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ele o faça — ou antes, que ele seja obrigado a fazê-lo — num texto que, mesmo como primeiro esboço, deveria servir à fundamentação do materialismo histórico. Ê esse pro jeto de fundamentação — que náo é de modo algum inocente, e cuja necessidade não é de modo algum evidente —• que torna necessário o recurso a algo que se configura como urna queda no universo discursivo do antropologismo. (55) Sem dúvida, Althusser apresenta essas definições só como “aproximações prévias” (aproximations préalables). (Idem, p. 167) Mas o que ele considera como aproximativo e prévio é evidentemente a forma (em sentido fraco, o desenvolvimento etc.) destas definições, não o próprio procedimento teórico (o projeto de uma fundamentação do materialismo histórico numa Teoria geral das práticas). (56) Havíamos observado a propósito de Balibar que o lugar das “advertências” não é em si mesmo o essencial. (57) Idem, pp. 167-168. (58) Geral, pelo menos em um dos sentidos indicados, suficiente para a nossa argumentação. (59) Poder-se-ia objetar que em certas passagens da Introdução de 57 encontra-se também a repetição do termo “determinado” (ver, por exemplo, Grundrisse, op. cit. , p. 20; Manuscrits de 1857-1858..., op. cit., I, p. 34): “Uma produção determinada determina pois um consumo, uma distribuição, uma troca determinadas, e relações determinadas que esses diferentes momentos têm entre si”). Na realidade, se se com preender bem o caráter da Introdução de 57, e também o significado do destino que Marx finalmente lhe deu, o texto não faz senão reforçar a nossa argumentação. Escre vendo a Introdução de 57, Marx estava às voltas com um problema — cuja matriz é a problemática hegeliana em tomo da impossibilidade de escrever introduções — que po deria formular-se da seguinte maneira: como escrever uma introdução geral à crítica da economia sem cair numa fundação antropológica? E mais radicalmente: em que me dida é possível um discurso geral sobre a economia? Problema que é análogo àquele que os althusserianospressentem. A Introdução de 57 era na origem uma tentativa de resolver essa dificuldade, de responder a essas questões. Mas precisamente, diferente mente do que se supõe em geral, mais do que uma introdução, a Introdução de 57 é na realidade uma antiintrodução: mais do que introduzir determinações positivas, ela visa mostrar tudo o que não se pode dizer aquém da apresentação (seria possível mostrar isto em detalhe). Mas finalmente, no próprio espírito do conteúdo dessa Introdução, mesmo uma antiintrodução pareceu a Marx um projeto ambíguo. Com efeito, ela corria o risco de ser (mal) compreendida como sendo simplesmente uma introdução positiva. (E é assim que ela foi compreendida e que ela continua a sê-lo, com a publicação póstuma do texto.) Ê bem provavelmente a razão pela qual Marx decidiu finalmente eliminá-la: a antiintrodução acabou assim por se devorar a si mesma. Sua eliminação realiza sua tese: não há apresentação fora da apresentação. Eis o sentido profundo da desaparição da Introdução de 57 do texto da Crítica... A maneira pela qual Marx encaminhou o problema, já inscrita na solução de que ele parte que é uma solução negativa, diverge assim do caminho escolhido (em parte malgré eux) pelos althusse rianos: o de um bloqueio numa quase-antropología cujos conceitos gerais têm a nostalgia da determinação.
3 Abstração real e contradição: sobre o trabalho abstrato e o valor
Introdução Este íexto se propõe estudar o teor lógico dos conceitos de tra balho abstrato e de valor, isto é, analisar os seus “fundamentos” e as suas “implicações” lógicas, e em particular mostrar como o tipo de abstração que se constitui nesses conceitos assim como a ‘‘posição ” histórica deles estão ligados a uma lógica da contradição. Esse trabalho se fará em conexão com a crítica de certos textos, em particular de um artigo de Cornelius Castoriadis, “Valeur, Êgalité, Justice, Politique: de Marx à Aristote et d’Aristote à nous” , publicado na revista Textures (e mais recentemente em Les Carrefours du Labyrinthe) .1 De alguns anos para cá, é cada vez mais freqüente, sobretudo entre os sociólogos e economistas marxistas, uma concepção da abstra ção que constitui o trabalho abstrato e o valor, que rompe com a interpretação dada por certas leituras tradicionais. Ao contrário dessas leituras vulgares, que identificavam ingenuamente trabalho abstrato e trabalho em geral, o que ou nos remete ao nível fisiológico (o trabalho abstrato como gasto fisiológico de músculos, nervos etc.) ou nos con dena a uma subjetivação do conceito (o trabalho abstrato como a repre sentação abstrata do trabalho em geral), esses autores consideram com razão o trabalho abstrato, e o valor, como uma abstração (social) real. Essas leituras críticas, que de resto recusam tanto o subjetivismo psicologista das leituras vulgares como o subjetivismo logicista dos althusserianos,2 não vão entretanto, na maioria dos casos, até o fim do caminho. Elas não explicitam bem a idéia de abstração real, em parti cular a do trabalho abstrato, elas não conseguem situar satisfatoria mente o lugar “estrutural” ou histórico dela,3 nem precisar o seu teor, distinguindo-a bem de outras abstrações. Sem que façamos referências expressas a elas — trata-se de resto de uma corrente bem difusa — essa tendência, naquilo que ela traz como naquilo que ela deixa em aberto, nos fornecerá de certo modo um ponto de referência histórico. Desen volveremos os problemas a partir de lá. Como, entretanto, por um lado tudo isto é mal conhecido e como, por outro lado, alguma coisa das leituras tradicionais reaparece nos textos que são nosso ponto de par tida como naqueles que criticamos, consagraremos a nota seguinte àquelas leituras.4
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Antecipando-nos a propósito da ordem de exposição, é difícil separar o problema da abstração objetiva do problema do espaço histó rico ocupado pelo trabalho abstrato e o valor — as duas questões que nos propomos desenvolver. Tentamos de qualquer modo desenvolvê-las em duas partes distintas, ambas se referindo, mas desigualmente, ao trabalho abstrato e ao valor, ambas por outro lado ao mesmo tempo expositivas e críticas — mas uma centrada na questão da abstração e a outra na do espaço histórico. Essas duas partes constituirão as secções II e III; julgamos necessário, por outro lado, precedê-las de uma expli cação crítica (secção I) sobre os principais problemas relativos à noção de trabalho abstrato, tanto os que têm uma incidência lógica direta (nesse caso, trata-se de fornecer os materiais para o desenvolvimento posterior) como aqueles cujo interesse lógico não é imediato (nesse caso percorremos as diferentes questões tentando apenas contribuir com alguns elementos para o debate). Essas indicações revelam os limites desse texto, limites que o próprio desenvolvimento e as considerações finais devem justificar. Observemos ainda que os temas aqui tratados são mais ou menos inseparáveis do problema do sentido da apresen tação de O Capital e de outras questões, como a da forma do valor, do fetichismo etc. Para não estender demais esse texto, e coirio volta remos a tratar pelo menos de alguns desses pontos, reduziremos ao mínimo as intromissões inevitáveis nesses temas. I. A ABSTRAÇÃO REAL (TRABALHO ABSTRATO, VALOR): SOBRE O CONCEITO DE TRABALHO ABSTRATO A abstração do trabalho é para Marx uma abstração real; isto está escrito literalmente no seguinte texto do capítulo I da Contribuição à Crítica da Economia Política: “Para medir os valores de uso das mercadorias pelo tempo de trabalho que elas contêm, é preciso que os diferentes trabalhos, eles próprios, sejam reduzidos a um trabalho não diferenciado, uniforme, simples, em resumo a um trabalho que seja qualitativamente o mesmo e só se diferencie quantitativamente. Esta redução aparece como uma abstração, mas é uma abstração que se realiza todos os dias no processo de produção social. A resolução de todas as mercadorias em tempo de trabalho não é uma abstração maior nem ao mesmo tempo menos real (keine grõssere Abstraktion aber (...) keine minder reellé) do que a resolução em ar de todos os corpos orgâni cos” .5 Mas a partir daí se propõem vários problemas, alguns dos quais reabrem de certo modo o dossiê das leituras vulgares. Qual é a relação que existe entre a idéia de abstração real e a idéia de generalidade (pois, embora sabendo que a primeira não se confunde com a simples gene ralidade, não é menos verdade que a idéia de generalidade não está ausente)? E a partir daí se propõe de novo a questão: como pensar a
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relação entre a objetividade da abstração — já a continuação desse mesmo texto da Contribuição à Crítica... coloca o problema — e o tipo de objeto ao qual parecem remeter os textos em que se trata da reali dade fisiológica do trabalho em geral (gasto de músculos» nervos etc.)? E por outro lado, se pergunta: em que nível se situa a abstração do trabalho (pois certos textos poderiam levar a pensar que ela só existe no nível da troca)? Que relação existe — se há relação — entre a abstração objetiva do trabalho e a abstração do trabalho enquanto experiência vivida, abstração que é sem dúvida tematizada por O Capital, os Grundrisse etc.? A isto é preciso acrescentar questões de interesse menos imediatamente lógico, como por exemplo as que se referem à noção de trabalho socialmente necessário, à redução do trabalho complexo ao trabalho simples etc. 2. Dizer que a abstração do trabalho não se confunde com a simples generalidade “trabalho” não quer dizer que a primeira exclua toda generalidade. Na realidade, as abstrações reais “trabalho” e “valor” põem a generalidade. Ou antes, elas põem a universalidade,6 mas esta universalidade é generalidade posta. O “geral” se torna uni versal singular, universal concreto. Por enquanto, limitamo-nos a citar a esse respeito um texto do capítulo 1 de O Capital, na versão da primeira edição da obra.7 Trata-se de um texto sobre a forma do valor, mas o que ele diz vale também, como veremos, para o trabalho abs trato: “Na forma III, que é a segunda forma invertida e que está portanto contida nela, a tela aparece pelo contrário como a forma genérica (Gattungsform) do equivalente para todas as outras merca dorias. É como se ao lado e além dos leões, tigres, lebres e todos os animais efetivamente reais, que agrupados constituem as diferentes raças, espécies, subespécies, famílias etc. do reino animal, existisse também o ANIM AL, encarnação individual de todo o reino animal. Tal indivíduo (ein solches Einzeln) que compreende em si mesmo todas as espécies efetivamente existentes da mesma coisa é um UNIVERSAL (ein Allgemeines), como por exemplo ANIM AL, DEUS etc .".8 Esta mos pois diante de uma universalidade (Allgemeinheit) que é ao mesmo tempo singularidade. Mas qual a relação existente entre uma univer salidade como esta e a representação da realidade fisiológica da abs tração do trabalho? Conservando o lado da “universalidade” (e por tanto em certo sentido a “generalidade” , mesmo se se trata da gene ralidade “negada”), não seríamos reconduzidos de novo ao nível fisio lógico? 9A resposta já está dada na noção de posição. Não é a realidade biológica da universalidade do trabalho que constitui o trabalho abs trato, mas a posição dessa realidade, e a posição não é mais biológica. A generalidade em sentido fisiológico (não mais do que a generalidade abstrata e subjetiva) — retomamos o problema num nível mais elevado — não constitui o trabalho abstrato: ela é apenas a realidade natural
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pressuposta à (posição) deste. A realidade social fa z com que valha o que era apenas uma realidade natural. E que a abstração do trabalho em sentido fisiológico não pode constituir o trabalho abstrato, é visível pelo fato de que lhe falta o momento da singularidade. A identidade do trabalho no nível fisiológico é a unidade dos trabalhos (fisiológica mente) idênticos. Cada trabalho considerado no nível fisiológico é idêntico ao outro, mas cada um é um trabalho (e além disso trabalho de alguém). Com efeito, seria impossível dizer que só existe, lá, um tra balho, a menos que se os tome no nível da representação. Ora, essa unidade pode (e deve) ser atribuída ao trabalho abstrato. Ele é uma unidade (mesmo se, como diz Marx, esta unidade está “constituída por inúmeras forças de trabalho individuais” . Aqui a pluralidade é se gunda). E é precisamente esta unidade que retira aos seus agentes a condição de sujeitos: “O trabalho que é assim medido pelo tempo não aparece, de fato, como trabalho de sujeitos diferentes (Arbeit verschiedener Subjekte) mas os diferentes indivíduos que trabalham (die verschiedenen arbeitenden Individúen) aparecem antes como órgãos do trabalho” . ( Werke, 13, Zur K ritik..., op. cit. , p. 18, Contribution à la Critique..., op. cit. , p. 10, grifado por Marx)10 É de resto esta inversão do papel dos agentes que permite compreender em que sentido (rigo roso) se diz que o trabalho abstrato é “ social” e o trabalho concreto “individual” , distinção que poderia parecer insustentável, pois o tra balho considerado como trabalho concreto está também imerso no social. Mas ele é trabalho dos indivíduos, no sentido de que nesse nível os agentes não são órgãos do trabalho (trata-se do trabalho concreto nos limites da circulação simples). 2. O trabalho abstrato como o valor comporta determinidades (Bestimmtheiten) que interessam a qualidade, e uma determinidade que interessa a quantidade.11 Mas os dois tipos de determinidades não se justapõem simplesmente no sentido de que as duas são constitutivas do objeto. Como veremos mais adiante, só haverá trabalho abstrato se se operar uma redução ao mesmo tempo qualitativa e quantitativa. Quaisquer que sejam as diferenças entre os textos, de um modo geral Marx põe primeiro as determinidades da qualidade do trabalho abs trato (trabalho igual, social, simples),12 e em seguida somente a deter minidade da quantidade (trabalho socialmente necessário); mas isso deve ser entendido como se a determinidade que interessa a quantidade já estivesse lá, no objeto, embora não estivesse posta. Por outro lado, é preciso distinguir a quantidade (como quantidade não determinada) do quantum de valor. Ê nessa direção que se deve ler o texto do capítulo 1 da primeira edição de O Capital, que diz: “A grandeza de valor (Wertgròsse) é as duas (coisas) valor em geral (Wert überhaupt) e valor medido quantitativamente (quantitativ gessessener Wert)” 13 — o que significa: o valor “em geral” contém tanto a qualidade como a quanti-
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(lade, mas não o quantum medido. O erro dos clássicos vai no sentido inverso ao daquele que criticamos: eles sacrificam a qualidade à quan tidade, mas os dois erros têm um fundo comum. — À noção de trabalho socialmente necessário como a noção de trabalho simples são criticadas por Castoriadis (depois de outros autores). A propósito do conceito de trabalho socialmente necessário, ele ataca sobretudo a noção de “trabalho médio” (depois de ter mostrado que esta seria a única alternativa para a interpretação do conceito). O trabalho social mente necessário não é, entretanto, necessariamente o trabalho médio, mas o trabalho que se impõe socialmente. É no interior dessa forma, que se impõe, que se estabelecem as médias.14 For outro lado, o “privilégio” atribuído ao trabalho simples assim como a redução do trabalho complexo ao trabalho simples podem parecer insustentá veis.15 O privilégio'do trabalho simples parece se fundar num dado estatístico: o peso numérico desse tipo de trabalho no capitalismo (do século XIX). Se Marx se reporta efetivamente a dados estatísticos, não são estes, como simples dados, que legitimam o papel do trabalho simples na teoria. O privilégio do trabalho simples está ligado a uma determinação essencial ao sistema (ao sistema plenamente desenvol vido). Na realidade, o trabalho simples é posto ou criado pela grande indústria (com a qual se passa ao capitalismo em sentido específico).16 É o capitalismo em sentido específico que constitui o trabalho simples (o capitalismo manufatureiro já havia “simplificado” o trabalho). Nas outras formações, ou o trabalho simples era secundário — a produção medieval urbana, por exemplo, é a do virtuose — ou ela não era posta pelo sistema, o que significa que o trabalho simples fora do capitalismo é coisa diversa do trabalho simples como categoria do capitalismo; conforme o que Marx diz sobre a cooperação no capitalismo e nas civi lizações antigas. Quanto à questão da redução, problema que é sem dúvida complexo, eis aqui o que nos parece representar a melhor dire ção: é necessário cortar a hierarquia das forças de trabalho (cada uma das quais produz mais ou menos valor) do processo de constituição dessas forças. Isto é, é preciso renunciar a pensar que há uma espécie de transferência do valor gasto na criação dessas forças qualificadas para os produtos do uso dessas forças — não por causa das dificuldades da mensuração, mas por razões teóricas: com isto se poria em cheque a teoria do valor, e isto, mesmo se há correspondência (ou uma certa correspondência) entre o tempo que se gasta para produzir uma força qualificada e a potência aumentada de produzir valor que ela adquire através dele. Mas que se siga este caminho ou um outro, a redução não implica um círculo vicioso. Segundo os críticos, é finalmente pelo mer cado 17 que se opera a redução. Fundar-se-ia a teoria do valor através daquilo que ela deveria fundar. Na realidade, quaisquer que sejam os problemas da redução do trabalho complexo ao trabalho simples — e o que representa um problema correntemente não é nem esta redução
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em sentido qualitativo nem mesmo esta redução em sentido quanti tativo (mesmo se a partir de lá ela vem a ser questionada),18 mas ein primeiro lugar a possibilidade de efetuar uma medida exata da redução independentemente dos valores (os críticos diriam dós preços) cristali zados nas mercadorias —, quaisquer que sejam os problemas, não parece que é disto que depende a legitimação da teoria do valor. A teoria se justifica pela necessidade de fundar o valor (ver a continua ção), fundação que só se pode fazer pelo trabalho. Ora, se se deve pensar o valor em termos de trabalho — e isto não depende de redução dos trabalhos, mas na realidade o exige —, toda redução dos valores dos produtos do trabalho deve aparecer como fundada numa redução do trabalho complexo ao trabalho simples. Mesmo se se quisesse pensar a coisa como um círculo, não se trataria de um círculo vicioso. Em resumo: seria preciso formular a “multiplicação” do trabalho de um modo mais rigoroso (introduzindo cortes,19 o que não nos aproxima nem nos afasta de uma mensuração exata, mas o problema mais importante não está lá) e seria preciso, por outro lado, rever a questão do que está em jogo nos problemas, o que não parece ser o que supõem os críticos.
3. Ã abstração do trabalho corresponde a abstração valor: as mercadorias enquanto valores são trabalho objetivado (vergegenständ liche Arbeit), trabalho cristalizado. E se no valor a abstração se obje tiva,20 no dinheiro ela o exterioriza: o dinheiro é o “ser-aí” (Dasein), a forma de existência imediata do valor.21 Mas evidentemente não é só no dinheiro que a abstração é real, assim como, de um modo mais geral, não é somente na troca que a abstração trabalho é real. Mas se deveria dizer que a troca pressupõe (no sentido corrente de “é primeira em relação a”) o trabalho abstrato, ou se deveria dizer o contrário? Questão que propõe Castoriadis: “Marx diz, mais ou menos por toda parte, que as diferentes determinações do valor pressupõem a troca, mas ele diz também o contrário: ‘O produto do trabalho adquire a forma mercadoria desde que o seu Valor adquire a forma do valor de troca, oposta à sua forma natural (...)’ ” . (Oeuvres, Économie I, p. 593, Castoriadis, art. cit. , p. 17, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit. , p. 264, grifado por Castoriadis) A dificuldade nesse ponto pode ser resolvida por uma leitura rigorosa do capítulo 2 de O Capital: Marx escreve que, no início mesmo da troca — digamos, por ocasião da primeira troca — os produtos (trata-se ainda de produtos, não de mercadorias) não se tomam mercadorias (isto é, não adquirem a determinação for mal do valor de troca) senão a partir do momento em que se opera a troca. (E, na medida em que, uma vez alienados, eles não serão mais mercadorias, seu ser mercadoria tem nesse caso uma existência pon tual, um pouco como o cogito cartesiano antes das provas da existência de Deus.) Os produtos somente são mercadorias antes da troca, quando
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a produção já se faz tendo em vista a troca: “A troca imediata dos produtos tem por um lado a forma da expressão simples do valor, e por outro lado ainda não a tem. Aquela forma era x mercadoria A = y mercadoria B. A forma da troca imediata de produtos: x objetos de uso A = y objetos de uso B. As coisas (Dinge) A e B não são aqui merca dorias antes da troca, mas sô se tornam mercadorias através dela” . ('Werke, 23, Das Kapital, I, p. 102; Oeuvres, Êconomie I, p. 623) Se temos pois sucessivamente o trabalho abstrato, o valor como trabalho objetivado (portanto como objetivaçáo — em sentido estrito — da abstração do trabalho), o dinheiro como o ser-aí da mercadoria enquanto valor e portanto como o ser-aí da abstração do trabalho — mas é preciso introduzir descontinuidades nesse movimento trabalho abstrato/valor/dinheiro —, tem-se com o capital (e há aqui uma descontinuidáde de uma outra ordem, uma interversão) a abstraçãosujeito. A abstração reaparece assim em diferentes momentos da arti culação real e da apresentação desta articulação. Mas se se deve mostrar assim o desenvolvimento que vai da abstração do trabalho ao capital — movimento que é escandido por descontinuidades — é pre ciso por outro lado explorar um outro movimento — o que vai, ou iria, da abstração do trabalho ao vivido dos agentes. Este é o problema que levantam textos como aquele, bem conhecido, da introdução de 1857. 22 Nesse texto, Marx distingue o trabalho abstrato no nível da “categoria” do trabalho abstrato na realidade efetiva (Wirklichkeit), trabalho abs trato que é “praticamente verdadeiro” (praktisch wahr). Este último corresponde a uma situação em que os indivíduos passam com facili dade de um trabalho a outro, e em que a forma “particular do tra balho” não coincide mais (o termo é verwachsen: aderir, soldar) com eles. Dessa “verdade prática” do trabalho abstrato, Marx diz inicial mente que “se a encontra na sua forma mais desenvolvida” , mas em seguida simplesmente que só se encontra na forma de existência mais moderna da sociedade burguesa — os Estados Unidos. Esse texto, citado freqüentemente, levanta mais de um problema e parece contra dizer tudo o que dissemos. Com efeito, se se interpretar a diferença entre existir na categoria e existir na Wirklichkeit em termos da opo sição pensamento/realidade como se faz habitualmente (traduzindo Wirklichkeit por “realidade”), chegar-se-á a estes resultados: o traba lho abstrato só existiria na realidade nos Estados Unidos, e por outro lado ele seria constituído como objeto real, pela mobilidade do traba lhador e pelo vivido que lhe corresponde (a indiferença do trabalhador em relação ao trabalho determinado). Ora, fora a limitação inadmis sível do campo do trabalho abstrato no capitalismo (só os Estados Uni dos) que haveria aí, é preciso observar o seguinte (para dizer a coisa em termos lógicos): a mobilidade do trabalhador não realiza o universal que é ao mesmo tempo singular, o universal só é aqui uma sucessão de singu laridades ou de particularidades. Quanto à experiência da indiferença
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em relação ao trabalho determinado, se através dela se realiza efetiva mente uma síntese, trata-se entretanto de uma síntese na ordem do vivi do; ora, qualquer que seja o papel do vivido em O Capital, papel que sem dúvida não se poderia subestimar, o vivido, entretanto, nunca é consti tutivo. Mas todas essas dificuldades são reduzidas se lembrarmos que a Wirklichkeit não é simplesmente o real ou a realidade, mas a realidade efetiva. Ora, a realidade efetiva (Wirklichkeit) não é coextensiva à ordem do real, ela designa o momento da aparição da essência; é assim que Marx dirá freqüentemente a propósito dos conceitos desenvolvidos no livro III (lucro etc.), conceitos que correspondem haparição da essên cia, que eles pertencem à Wirklichkeit. Para dar apenas um exemplo: “Mas na realidade efetiva (Wirklichkeit), isto é, no mundo fenomenal (Erscheinungswelt), a coisa se inverte” . (Werke, 25, Das Kapital, III, p. 57; cf. Oeuvres, Êconomie II, p. 895, em que Wirklichkeit é tradu zida por “realidade”) A diferença entre a categoria e a realidade efetiva remete assim não à oposição pensamento/realidade, mas à diferença entre a realidade só no nível da essência e a realidade que se manifesta também no fenômeno (“(...) unidade que se tornou imediata da essência e a existência ou do interior e o exterior” , é assim que Hegel define a Wirklichkeit ria Pequena Lógica).23 A mobilidade do traba lhador e a experiência vivida que lhe corresponde são pois a reflexão da categoria no plano da realidade fenomenal e do vivido. Essa reflexão não é, sem dúvida, exterior ao objeto, mas uma realização imperfeita da reflexão não exclui a realidade do objeto no nível da essência.24 E, a propósito da experiência vivida que corresponde à abstração do trabalho, observemos que não se deve confundir essa experiência da abstração do trabalho (esse nível do vivido: a indiferença em relação ao trabalho) com a experiência da alienação descrita nos textos sobre a grande indústria. Na realidade, se o trabalho abstrato só existe no capitalismo (voltaremos a isto na secção III), ele é entretanto categoria da circulação simples (e, no nível da circulação simples, se trata sem dúvida do capitalismo, mas do capitalismo enquanto objeto “negado”). E se não se pode confundir as duas ordens de categorias (mesmo se ambas, mas com “posições” — negação, posição — diferentes corres pondem ao capitalismo),25 também não se pode confundir o sentido dessas duas determinações do vivido. “Embora a forma do trabalho assalariado seja decisiva para a configuração (Gestalt) do conjunto do processo e para o próprio modo específico da produção, não é o tra balho assalariado (que é) determinante do valor. Na determinação do valor se trata do tempo de trabalho social em geral (...). A forma determinada em que o tempo de trabalho social se impõe como deter minante no valor das mercadorias está ligada, é verdade, com a forma do trabalho como trabalho assalariado com a forma correspondente dos meios de produção enquanto capital, na medida em que só sobre esta base (Basis) a produção de mercadorias se tom a forma geral da
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produção” . ( Werke, 25, Das Kapital, III, p. 889; Oeuvres, Économie II, p. 1480) “Na medida em que o trabalho é criador de valor e se apresente no valor das mercadorias, ele não tem nada a ver com a divisão desse valor entre as diferentes categorias. Na medida em que ele tem o caráter social específico do trabalho assalariado, ele não é cria dor de valor” . (Werke, 25, Das Kapital, III, p. 831; Oeuvres, Éco nomie II, p. 1431)26 Se o trabalho abstrato não pode ser confundido com o trabalho assalariado, embora só haja trabalho abstrato quando há trabalho assalariado, o vivido que corresponde à primeira determi nação deve ser distinguido do vivido que corresponde à segunda. II. A ABSTRAÇÃO REAL (TRABALHO ABSTRATO, VALOR): PROBLEMAS LÓGICOS FUNDAMENTAIS 1. Contrariedade, substância Seria necessário, agora, explorar mais a fundo essas análises. Nós nos fixaremos inicialmente em dois problemas: o do emprego da noção de substância a propósito do trabalho abstrato (ver textos) e tudo que isto implica, e o uso da noção de contrariedade para designar a re lação entre o trabalho abstrato e o trabalho concreto, assim como a relação entre o valor de uso e o valor. Começaremos pela questão da contrariedade. Marx diz do trabalho que ele é o contrário (Gegenteil) ou o contrário imediato (ummittelbares Gegenteil) ou o oposto (Gegensatz) do trabalho concreto;27 e do valor ele diz que este é o contrário do valor de uso.28 Os críticos põem em dúvida o rigor dessa determinação.29 Ela seria efetivamente rigorosa? Percebe-se imediatamente que dizer que o trabalho abstrato é o contrário (ou o contrário imediato) do trabalho concreto (e que o valor é o contrário do valor de uso) não tem muito sentido se não se pensar o trabalho e o valor como universais concretos. Se não se introduzir a universalidade concreta, como legitimar a idéia de oposição? Em primeiro lugar, no que se refere às leituras vulgares, se o trabalho abstrato só é o gênero dos trabalhos concretos, não se poderia falar de oposição nem de contrariedade. O gênero não é o contrário da espécie: ele apenas subsume a espécie, e não se poderia afirmar que esta subsunção constitui um a relação de contrariedade. Mas deixemos de lado essas leituras. Se não se supuser que o trabalho abstrato é o gênero dos trabalhos concretos, se suporá talvez que eles são simplesmente dois objetos diferentes, talvez mesmo dois objetos diferentes no conceito (entendido em sentido subjetivo), a noção de diferença excluindo de qualquer modo toda idéia de oposição: “A con tradição entre os termos que não é mesmo uma contradição entre
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conceitos, mas uma diferença, uma ruptura no tratamento dos con ceitos, pertence propriamente (en propre) ao processo de exposição e não remete em nada a um processo real (P. Macherey, Lire le Capital, IV, Maspero, 1973, p. 27, grifo nosso) E mesmo que se suponha que a diferença é real, enquanto o objeto não for pensado como universal singular (universal concreto) mas como um singular ou um particular, ele comporta diferença mas não contrariedade: “Uma outra característica das substâncias é que elas não têm nenhum con trário. Com efeito, se se considerar a substância primeira, qual poderia ser o seu contrário, por exemplo, para o homem individual ou para o animal individual? Com efeito, eles não têm nenhum contrário; tam bém não há contrário nem para o homem nem para o animal” . (Aris tóteles, Organon, Categories, I, cap. 5, 3b, 24, trad. Tricot, Paris, Vrin, pp. 15-16)30 Tudo muda, se se pensar o trabalho abstrato (e tam bém o valor) como universal concreto, isto é, como um objeto que contém ao mesmo tempo a universalidade e a singularidade. Nesse caso, e nesse caso somente, se poderá falar rigorosamente de contra riedade. Vejamos isto mais de perto. Para simplificar, tomemos a relação entre dinheiro e mercadoria (em que se reflete, como vimos, a mesma oposição). Poder-se-ia dizer que o dinheiro e a mercadoria são simplesmente coisas diferentesl Não. Diferentes, simplesmente, são por exemplo mercadorias quaisquer, umas em relação às outras: a tela em relação ao casaco, para retomar o exemplo clássico (e isto somente enquanto uma não funcionar como expressão de valor da outra). Mas na relação entre o dinheiro e a mercadoria há mais do que isto: há entre os dois uma espécie de tensão. Eles se atraem mutuamente, cada um deles repele a si próprio, mas por isso mesmo eles podem entrar em conflito31 (nas crises). E como justificar logicamente a afirmação de que se trata de contrários? Eles são contrários porque por um lado um é o gênero do outro: o dinheiro é a mercadoria geral ou universal;32 mas porque ao mesmo tempo esse gênero existe ao lado das espécies e dos indivíduos que o compõem: o dinheiro é também uma mercadoria. Ê essa dupla condição de gênero e de indivíduo, de indivíduo-gênero, que faz da coisa social dinheiro o contrário de cada mercadoria. É pois essa dupla condição que constitui objetivamente a tensão entre os dois objetos e permite falar legitimamente de contrariedade ou de oposição entre eles. (Observemos de passagem que, se Marx utiliza uma terminologia que não elimina a expressão do gênero: trabalho abstrato, valor — oposto a valor de uso — etc., o que mereceu a censura de Althusser,33 que não compreendeu o porquê dessa terminologia, — é porque ele quer expri mir que o gênero está “lá” , embora como universal singular.) Esta coincidência entre o universal e o individual, Marx a assinala clara mente nos textos citados (“o animal ao lado do leão” etc.): é como se o universal invadisse o particular, de onde a tensão, que estaria ausente se se tratasse só do gênero ou só do indivíduo. Mas o entendimento (que
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não apreende esta coincidência) não vê na relação (mercadoria/di nheiro, por exemplo) mais do que uma diferença. Como escrevia Hegel: “Na oposição, o diferente, de um modo geral, não tem somente diante dele um outro mas o seu outro. A consciência comum considera os (termos) diferentes como indiferentes um em relação ao outro. Diz-se assim: ‘Eu sou um homem e em volta de mim há ar, água, animais e o Outro em geral’. Todas as coisas caem umas fora das outras. A finali dade da filosofia é, pelo contrário, banir a indiferença e reconhecer a necessidade das coisas de tal maneira que o Outro aparece como diante do seu Outro” .34 Porém, mais grave do que o emprego da noção de contradição parece ser o fato de que Marx faz do trabalho uma substância. Castoriadis observa: “O que esses objetos possuem em comum, além da sua utilidade ou valor de uso — que não poderia, segundo Marx, fundar relações de troca quantitativamente determinadas — é (o fato de) serem ‘produtos do trabalho humano’. Ê pois o trabalho que eles ‘contêm’ que é esta substância/essência comum (...)” . E em nota: “A atribuição universal se torna assim substância. Passa-se de: a única propriedade comum a todos esses objetos (fora o seu valor de uso), é (o fato de) serem produtos do trabalho humano, a: existe uma subs tância da qual esses produtos são ‘cristais’. A generalidade deve ter um fundamento substancial” , (Castoriadis, art. cit. , p. 6, nota 4, Les Carrefours du Labyrinthe, p. 252, grifado por Castoriadis) Esta substancialização distingue Marx dos clássicos, mas para Castoriadis não repre senta, muito pelo contrário, um progresso: “A questão proposta pela economia clássica: porque os objetos trocados o são em tal proporção e não em outra, Marx a reformula à sua maneira, numa formulação que já contém ou predetermina, a resposta: ‘Qual é o igual/idêntico (das Gleiche), isto é, a substância comum (die gemeinschaftliche Substanz), que representa a casa para o leito na expressão de valor do leito?’ Ele a reformula à sua maneira própria: o valor trabalho dos clássicos, de Smith e de Ricardo, não invoca a categoria da ‘substância’ e, se se descobrisse lá a palavra, seria sem dúvida num uso inocente. Que as mercadorias são trocadas na proporção do trabalho que custa a sua produção, isto quer dizer para os clássicos: se alguém me propusesse trocar um produto que me custou dez horas de trabalho contra um dos seus produtos cuja fabricação só me custaria nove horas de trabalho, eu recusaria sua proposta; e, mediante a concorrência, a relação entre tempos ‘médios’ de trabalho respectivos regulará a relação das quanti dades trocadas. O ‘valor-trabalho’ é assim, antes das imensas (e insu peráveis) complicações que criam as diferenças entre os trabalhos indi viduais, o ‘capital’, a ‘terra’, o ‘tempo’ etc., uma questão de bom senso e mesmo uma tautologia simples: quem daria dez para obter nove?” (Castoriadis, art. cit., p. 7, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 253, grifado por Castoriadis) Assim, Marx retoma o problema para lhe I N S T I T U T O C U L T U R A L BRASIL ALFMANHA J N S T I T U 10 G O E TH E RIO OE JA N E IR O Av. Graça Aranha, 4<6 - 9 Õ Andar - 224 1862
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dar um sentido metafísico: “Marx reformula a questão à sua própria maneira — que a situa de imediato no terreno da tautologia metafí sica". (Ibidem, grifado por Castoriadis) “O primeiro capítulo de O Capital é metafísico” . (Ibidem) Assim, substancializando o trabalho abstrato, Marx se perde numa metafísica da economia política. O que muitos outros já disseram. Por exemplo, Joan Robinson (e Eatwell): “A afirmação segundo a qual somente o trabalho produz valor é metafísica. Seu único conteúdo lógico é uma definição: o trabalho produz valor, e o valor é o que o trabalho produz (...)” . (Joan Robinson e John Eatwell, As Introduction to M odem Economics, Londres, McGraw-Hill, 1973, 1. I, cap. 2, §5a) Assim como faz Castoriadis, se imputa a Marx um pensamento metafísico e tautológico: a teoria do valor se reduz a uma tautologia metafísica.35 Examinemos agora mais de perto o uso que faz Marx do conceito de substância e as acusações de “metafísico” lançadas contra ele. Reconstituamos em primeiro lugar a crítica que Marx faz aos clássicos a esse respeito. Marx critica os clássicos — Ricardo em particular — por só ter visto o lado quantitativo do trabalho abstrato, ou por ter visto o lado quantitativo só de uma maneira fraca.36 Isto é, de não tê-lo pensado como “coisa social” .37 Por trás do quantum de tempo de tra balho, é necessário evidentemente pensar uma qualidade, e essa quali dade é preciso tomá-la em sentido forte. O que permite pensar os agentes como suportes da relação valor e do trabalho abstrato, que são logicamente os verdadeiros pontos de partida. A incapacidade de pen sar o trabalho abstrato como “coisa social” (como substância) impede que os clássicos se liberem de todo antropologismo na sua visada dos agentes. E mais do que isto, como já vimos, há uma relação entre a concepção do trabalho abstrato enquanto substância e a do capital enquanto sujeito (valor que se valoriza, movimento-sujeito).38 Inca pazes de pensar o trabalho abstrato enquanto substância, os clássicos também não chegam a pensar o capital como movimento-sujeito (a substância que se tornou sujeito) e caem numa representação naturali zante e portanto mistificante do capital. É necessário fazer do trabalho abstrato uma coisa-social substância — porque o valor não é um quan tum que os agentes estabelecem subjetivamente (esta perspectiva subje tiva está também, de resto, na descrição de Castoriadis), mas algo que se impõe socialmente, e que é ao mesmo tempo qualidade e quanti dade, para chegar a uma definição do capital em termos de movi mento-sujeito.39 Observemos que a noção de substância remete a duas ou, se se quiser, a três determinações. Em primeiro lugar, Marx quer dizer com isso que o trabalho é coisa social, ele tem a espessura, o peso da coisa. A idéia de substância remete à ousia aristotélica. Mas coisas sociais são também o valor, o capital etc. Aqui intervém o segundo sentido ou a segunda determinação: a substância é coisa em forma de trabalho, em forma fluida, pois se trata de uma substância que ainda
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não se cristalizou; se no primeiro caso se pensa em Aristóteles e numa certa tradição filosófica, aqui se é conduzido ao universo das ciências naturais.40 Por outro lado, substância se opõe a sujeito (a substância trabalho abstrato ao sujeito capital, a substância que se tomou sujeito); aqui a referência é Hegel, que passou por sua vez por Aristóteles.41 Sobre a primeira determinação, é necessário observar ainda, em cone xão com o que havíamos dito anteriormente: Marx reúne num mesmo objeto como determinações do mesmo nível os dois sentidos (principais) da ousia aristotélica; daí resulta a possibilidade — não aristotélica — de que a substância comporte contrários. Mas Marx não cairia com isto na “metafísica” ? Falar de substância não é voltar a uma tradição metafísica, retomar noções aristotélicas, reintroduzir um universo em que há forças? Eis aqui o essencial sobre esse ponto: que Marx concebe a realidade (social) como um universo habitado por “coisas” e “for ças” 42 é um fato. Mas por que supor que isto representa um elemento negativo, um pecado mortal do seu discurso?43 Os que afirmam qüe Marx é metafísico crêem em geral que a resposta de Marx a uma crítica como essa seria defensiva: ele diria que o seu discurso não tem nada de metafísico, que ele é científico no sentido corrente etc. Na realidade, a idéia de que é um defeito para um discurso ter alguma coisa de “meta físico” está subjacente a toda esta argumentação. É assim que mar xistas como Sweezy tentam responder da seguinte maneira: a idéia de trabalho abstrato nada tem de misterioso, ela corresponde ao sentido que todos lhe dão etc. Isto é, tenta-se justificar o discurso de Marx pelo senso comum. Ora, a resposta que Marx daria — a resposta que ele dá, pois o argumento já se encontra, por exemplo, em Bailey44 — é total mente diversa. Por um lado, ele reconhece que o seu discurso tem algo de metafísico. Mas a metafísica do seu discurso é a reprodução da metafísica do real. Ê o real, o capitalismo que é em certo sentido metafísico, e o discurso quase metafísico é por isso o verdadeiro dis curso científico, assim como o discurso claro da “ciência” se torna nesse caso inadequado.45 Marx sempre insistiu no fato de que por exemplo a mercadoria tem algo de misterioso, que ela é um objeto sen sível supra-sensível etc. Para apreender esse tipo muito particular de objeto, é necessário um discurso que se ajuste a ele, isto é, um discurso que ponha essas abstrações objetivas como elas são efetivamente: como coisas sociais que reduzem os agentes a suportes. Nesse sentido há uma certa ingenuidade em toda essa argumentação. Poder-se-ia dizer pelo menos que ela se situa aquém de uma compreensão profunda daquilo que representa o discurso de Marx (“objetivamente” e nas intenções de Marx). E para que não se tenha dúvidas sobre isto, citemos dois textos (um deles se refere também aos universais concretos, as duas questões estão ligadas), textos em que Marx se explica sobre o caráter “metafí sico” do seu discurso, a propósito do mesmo argumento, empregado contra os clássicos por Bailey: “No interior da relação de valor e da
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expressão de valor que está incluída nela o abstrato universal (das Abstrakt Allgemeine) não vale como propriedade do concreto, do sen sível efetivo (Sinnlich-Wirklichen), mas pelo contrário o sensível-concreto (só vale) como pura (blosse) forma fenomenal ou forma de reali zação efetiva (Verwirklichungsform) determinada do abstrato universal (des Abstrakt-Allgemeinen). Por exemplo, o trabalho do alfaiate que está contido no equivalente casaco não possui, no interior da expressão de valor da tela, a propriedade geral de ser também trabalho humano. Pelo contrário. Ser trabalho humano vale como sua essência, ser tra balho do alfaiate (só vale) como forma fenomenal ou forma de reali zação efetiva determinada desta sua essência (...) (...). Esta interversão pela qual o sensível-concreto (das Sinnlich-Konkrete) só vale como forma fenomenal do abstrato-universal (des Abstrakt'Allgemeinen), em vez de o abstrato universal valer, pelo contrário, como propriedade do concreto, (tal interversão) caracteriza a expressão de valor, ela torna ao mesmo tempo difícil a sua compreensão. Se eu disser: o direito romano e o direito alemão são ambos direitos, isto é evidente. Mas se, pelo contrário, eu disser: o direito, este abstrato (Abstraktum), se realiza efetivamente no direito romano e no direito alemão, o contexto (Zusammenhang) torna-se então místico” . I6 Como se vê — contra a posição que tinha na juventude — ver a Santa Família — Marx aceita assumir esse discurso “místico” (pois o seu tratamento da forma do valor diz o objeto na forma indicada, que ele considera como mística). E se ele assume assim o “misticismo” , ele o justifica da seguinte maneira num texto que infelizmente é pouco conhecido: “Isto mostra portanto que o verbal observer47compreendeu tão pouco quanto Bailey alguma coisa do valor ou da essência do dinheiro quando trata a autonomização do valor como uma invenção escolástica (eine scholastische Erfindung) dos economistas. Essa autonomização aparece ainda mais no capital que, por um lado pode ser chamado valor em processo (prozessiender Wert) — e portanto como o valor só existe (de um modo) autônomo no dinheiro —, pode ser chamado dinheiro em processo (prozessierendes Geld) — (ele, o capital) que percorre uma série de processos nos quais ele se conserva, sai de si e volta a si aumentado (in vergrõssertem Umfang). Que o paradoxo da realidade efetiva (Paradoxon der Wirklichkeit) se exprime assim em paradoxos da linguagem (Sprachparadoxen), que contradizem o senso comum, o que os vul gares ( Vulgarians) pensam e acreditam dizer (mean and believe to talk of), isto é evidente. As contradições que nascem do fato de que, sobre a base da produção de mercadorias, o trabalho privado se apresente como social, geral, que as relações pessoais se apresentam como rela ções entre coisas (von Dingen) e como coisas (Dinge) — essas contra dições ( Widersprüche) residem na coisa (Sache) não na expressão verbal (in dem Sprachlichen Ausdruck) da coisa (Sache)” . 48
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2. Posição e determinação Mas nada mostra melhor que os “fundamentos” do tipo de objeto que temos no trabalho abstrato (e no valor) e a incompreensão do seu caráter por parte dos críticos do que o desenvolvimento do problema do trabalho abstrato e do valor que se encontra no último parágrafo do capítulo 1 de Ó Capital (“O caráter de fetiche da merca doria e seu segredo) assim como as leituras de que ele foi objeto.49 Comecemos recapitulando o texto. Depois de ter observado que en quanto valor a mercadoria se apresenta como um objeto misterioso, Marx se pergunta de onde vem esse caráter misterioso da mercadoria, que será precisamente a origem do fetichismo. Esse mistério, responde Marx, não pode provir do conteúdo das determinações do valor, a saber, nem da abstração do trabalho, pois em todas as sociedades o trabalho considerado abstratamente oferece interesse, nem do tempo de trabalho, por razões mais ou menos idênticas, nem da forma social (geral) do trabalho. Esse caráter misterioso só pode vir da própria forma mercadoria. (Aqui, “forma” , diga-se de passagem, não é a forma fenomenal, como por exemplo na forma do valor, mas forma no sentido de forma social específica oposta ao conteúdo antropológico geral.) E para mostrar que o caráter misterioso vem da forma merca doria, Marx compara a produção de mercadorias com outras formas de produção. Assim, ele se referirá sucessivamente a Robinson isolado na sua ilha, ao feudalismo, à “indústria patriarcal de uma família campo nesa” e ao socialismo. Em cada um desses casos, ele mostrará o papel do trabalho em geral, e o do tempo de trabalho, seja na planificação da produção, seja na distribuição, seja nos dois ao mesmo tempo. Por exemplo, Robinson faz o planejamento do seu tempo, no comunismo a sociedade o faz (e como se trata da primeira fase do comunismo, o tempo desempenha também üm papel na distribuição), em todos os casos, o trabalho considerado, fazendo-se abstração da sua particula ridade, desempenha um papel etc. Toda essa variação tem evidente mente por objeto mostrar a diferença, sobre ofundo de uma identidade — mas é a diferença que é primeira, não a identidade —, entre todas essas formas e a produção mercantil-capitalista.50 Trata-se de mostrar que nessas formas, apesar de tudo, não há nem trabalho abstrato nem valor, e que ao contrário do que se passa na produção mercantil, a forma social é a forma imediata do produto.51 Vejamos agora o que os críticos escrevem sobre isto. Depois de ter feito as observações que comentamos sobre o caráter metafísico do pensamento de Marx, e depois de ter analisado a dificuldade em situar o valor na história (o que será objeto da secção III deste texto), Castoriadis escreve: “O valor já estava lá, a partir do momento (dès) em que houve troca. Mas há sempre troca, onde há sociedade — inclusive no ‘comunismo primi tivo’: o feiticeiro fornece suas encantações e recebe uma parte da caça.
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Se se ousa dizer, há troca mesmo ‘antes’ da sociedade —, em todo caso, segundo Marx, há valor para Robinson, só que para ele ela é ‘transpa rente’: ‘como bom ingles’ (o que significa: como homo oeconomicus ‘racional’), ele faz o ‘inventário detalhado’ do tempo de trabalho que lhe custam em média quantidades determinadas dos seus diversos pro dutos. .. Aí estão contidas todas as determinações essenciais do valor. E a mesma coisa valerá para a sociedade comunista futura, esta “reunião de homens livres trabalhando com meios de produção comuns... se gundo um plano deliberado. Tudo que dissemos do trabalho de Ro binson se reproduz aqui, mas socialmente e não individualmente' ” . (Oeuvres, Économie I, p. 611-613 — Castoriadis, art. cit., p. 18, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 264, 265, grifado por Castoria dis) Esse comentário do texto de Marx (que contém evidentemente um contra-senso: Castoriadis supõe que, para Marx, o valor existe no caso de Robinson, numa sociedade comunista etc.; mais do que um contrasenso: Castoriadis se engana inteiramente sobre o sentido do texto que visa estabelecer uma diferença sobre o fundo das identidades, e não diferenças fundadas numa identidade, o que é outra coisa), esse comen tário deve ser comparado com as observações de Balibar sobre o mesmo texto, em Cinq Êtudes du Matérialisme Historique. Balibar lê o texto da mesma maneira errônea que Castoriadis, com a única diferença de que ele quer “salvar” Marx eliminando ou corrigindo esse texto (e o conjunto da teoria do fetichismo): “(...) Toda esta variação (a compa ração entre a produção de mercadorias e os outros modos, RF) pres supõe com efeito (bem longe de explicar a sua constituição) a repre sentação do trabalho abstrato como existência natural, evidente de um ‘trabalho geral’, do qual os diferentes ramos da divisão do trabalho só realizam formas particulares; exatamente o que, algumas linhas mais adiante, a propósito de Franklin e de Ricardo, o próprio Marx assinala uma vez mais como o limite ideológico intransponível da economia política” . (E. Balibar, Cinq Êtudes du Matérialisme Historique, Maspero, 1974, p. 215, grifado por Balibar) “Estamos aqui bem aquém da análise — Marx insiste sempre nisto — que permite fundar cientifi camente o desenvolvimento da forma mercadoria, e que é aberta pelo conceito de duplo caráter do trabalho. (...) A ‘dialética’ que opera aqui é essencialmente crítica e preparatória (propedêutica)” . (Ibidem, gri fado por Balibar) Não. Se essa dialética — mas é preciso compreendêla e tomá-la a sério — é, sem dúvida, crítica, ela não tem nada de propedêutica. Balibar como Castoriadis, ou Castoriadis como Balibar, quaisquer que sejam as diferenças enormes que os separam (e é exa tamente isto que é impressionante) não se saem bem diante desse texto. E a explicação do fracasso não é difícil. Digamos que a pedra na qual eles tropeçam é a frase de Marx citada por Castoriadis (ver nossa citação da p. 18 do artigo de Castoriadis, Les Carrefours..., pp. 264265) e também por Balibar (op. cit., p. 212): “E entretanto aí estão
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contidas todas as determinações essenciais do valor». (Werke> 23> Das K a p i t a l l o p ca.,, p. 91; ver Dognin, Les “Sentiers escarpés... ”, op. cit., p. 222 1 Nessa frase se resume toda a yificuidade. Ê que é iso compreende-la da segumte maneira: aí es^ão contidas todas as deter. mmaçoes essenciais do valor, menos a p hsição_ Este é 0 sentido do conjunto do texto: mostrar que em todos c)S outros modos as determi. naçoes do valor, isto e, as determinações do seu conteúdo (tempo de ra . _ ° ’ , a s raÇao 0 ra a^ ° ) estão Presentes, mas que falta a posição objetiva dessas determinações: e quando f aita a posição, não ha valor nem trabalho abstrato. O valor nã(, existe nem no C0munism0( nem no caso de Robmson, nem na família patriarcal, nem na Idade Media nem em nenhum dos casos em que não há t r o c a .5 2 A análise é assim diferencial, em sentido forte: primeiro as diferenças (as identi. dades são pressupostas). E por que o etro dos críticoSj esses dois críticos que vem de horizontes tão diferentes? Isto também é {ácU de explicar E que a logica do texto de Marx vai contra a tradi âo filo. sofica, digamos kantiana, da qual _ a desbeito> em rte lo men das suas respectivas intenções - eles são tributários> cada um à sua maneira. Com efeito, no texto de Marx, há al de escandaloso: Marx su p o e que a posição da coisa - e a posição da coisa é a existência (social) da coisa - e essencial para que ela seja 0 é_ Para 0 valor (tempo de trabalho, trabalho coino ge„eralidade abstrata), seja valor (ou o trabalho abstrato” seja o lrabalho abstrato), é essen cial que, alem dessas determinações, hajaW á o > ou essas deter. mmaçoes sejam determinações postas, socialmente existentes. No socialismo, no caso de Robmson etc., as determin ões essenciais do valor estão dadas, mas falta a posição objetiva dessas determinações, porque em todos esses casos elas só existem como repreSentação - na cabeça de Robmson dos planificadores (ou como resultado dessa representação, mas não como coisas sociais) F , ta é a ra7an miai em nenhum dos dois casos, se trata de valo! nem de trabalho abstí ato; Isto e evidentemente escandaloso e vai coiltra toda uma tradi ão de pensamento cujo melhor representante é sSm dúvida Kant. Eis 0 que escreve Kant sobre a relação determinação/existência num texto bem celebre da Critica da Razao Pura-. “ Ser não é evidentemente um predicado real (kein reales Pradikat), isto é, um conceito de al coisa (von irgend etwas) que se possa a c r e s ^ ^ ao conceito de uma coisa (emes Dmges). E simplesmente a posi ão (Es ist bloss die Poú. tion) de uma coisa ou de certas determinações nelas mesmas {an sich selbst). Em seu uso logico, ele não é senão a có la de um juízo Se eu tomar o sujeito (Deus) com todos os seus predicados (entre os quais esta mcluida a onipotência) e se eu disser: I)eus é> ou há um Deus> eu nao pon o (setzen) nen um predicado ao ;0nceito de Deus, mas eu ponho (setzen) o sujeito em si mesmo (an sia, sdbst)> com todos os seus predicados, e ao mesmo tempo, com efeito 0 objeto que corresponde
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a.o meu conceito. Os dois devem conter exatamente a mesma coisa; e pelo fato de que (pela expressão: ele é) eu concebo o seu objeto como absolutamente dado, nada mais se pode acrescentar ao conceito que exprime simplesmente a sua possibilidade. E assim o real não contém nada mais do que o simples possível. Cem talers reais não contêm nada mais do que cem talers possíveis. Pois como os talers possíveis expri mem o conceito e os talers reais o objeto e a sua posição (Position) em si mesmo, se este contivesse mais do que aquele, meu conceito não exprimiria o objeto inteiro, e em conseqüência, não seria tampouco o conceito adequado dele. Mas, no que se refere ao estado da minha fortuna, há mais com cem talers reais do que só com o seu conceito (isto é, só com a sua possibilidade). Com efeito, o objeto na realidade não está simplesmente contido de uma maneira analítica no meu conceito, mas se acrescenta sinteticamente ao meu conceito (que é uma deter minação do meu estado), sem que os cem talers concebidos sejam de modo algum aumentados por esse ser situado fora do meu conceito. Quando eu concebo uma coisa, quaisquer que sejam e por numerosos que sejam os predicados por meio dos quais eu a concebo (mesmo na determinação completa), o fato de que eu acrescento que esta coisa é não acrescenta nada à coisa” . (Kant, Kritik der Reinen Vernunft, “Die tranzendentale Dialektik. Von der Unmöglichkeit eines ontologischen Beweises vom Dasein Gottes” , Hamburgo, Felix Meiner, 1956, pp. 572-573; Critique de la Raison Pure, trad. Barni revista por P. Archambault, Garnier-Flamarion, 1976, pp. 478-479) Vê-se que em Kant é preciso separar as determinações de um conceito e a sua existência ou a sua posição, sendo a posição exterior às suas determinações. Para Hegel e Marx, pelo contrário, o conjunto das determinações não esgota o conceito. Mesmo plenamente determinado, o conceito não é ele próprio se não for posto. Ora, essa relação é impensável tanto para Balibar como para Castoriadis. Digressão: dialética marxista e argumento ontológico Vê-se aí em que sentido a dialética reabilita o argumento onto lógico, e em particular em que sentido a dialética materialista a reabi lita. Sabe-se que Hegel fez a crítica da crítica kantiana do argumento ontológico. Esta crítica hegeliana que precisamente se referia ao pro blema da relação determinação/posição se fazia entretanto no interior de um universo que se poderia chamar de idealista.53 Isto é, se Hegel pensa a posição como fazendo parte da essência do conceito, se poderia dizer que ele faz com que se esvaia por esse movimento mesmo a dife rença entre sujeito e objeto. De um ponto de vista materialista, o argu mento ontológico (ou antes, o movimento que lhe serve de base, a inclu são da posição no conceito) toma um outro sentido. A passagem da es
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sência à existência não faz desaparecer a diferença entre sujeito e objeto. O valor ou o trabalho abstrato como categorias objetivas não se confun dem com os seus análogos no pensamento desses objetos. Fica-se no inte rior do materialismo; e entretanto, esse materialismo não é o materialis mo vulgar, porque nele se concede a parte do idealismo, porque nele se guarda o momento do idealismo. E isto num duplo sentido, ou para os dois idealismos, istoé, se guarda tanto o momento do idealismo objetivo como o do ideaüsmo subjetivo. O idealismo objetivo, pois se reconhece que, de certo modo, o real “pensa” , isto é, o real põe, efetua o ato de abstrair. O idealismo subjetivo, pois se reconhece que o sujeito pode passar pelo pensamento à existência (à posição), que ele pode pôr os universais como universais objetivos. Mas esta “existência” só é eviden temente o análogo da existência no real — ela é o real refletido no pensamento. (Para o nominalismo, entretanto, mesmo esta “existên cia” , isto é, a posição, deve ser recusada.) Vê-se assim que o problema da distinção rigorosa entre os dois materialismos, o vulgar e o dialético (ver o que dizem sobre isto os manuais...), tem aqui uma saída.54 III. O ESPAÇO HISTÓRICO DAS CATEGORIAS (VALOR, TRABALHO ABSTRATO) O conjunto das análises anteriores nos mostrou qual a natureza da abstração que constitui o trabalho abstrato e o valor. Elas nos permitiram ao mesmo tempo esclarecer uma parte dos problemas que propõe sua existência como abstrações reais. Mas há um ponto que permanece obscuro, e o seu esclarecimento é essencial para que o con junto das implicações do nosso objeto se torne inteligível, o do espaço histórico do valor e do trabalho abstrato. Em qual ou quais épocas, se pode dizer que há trabalho abstrato e valor? O trabalho abstrato e o valor são categorias que só valem para o capitalismo? Problema que, na realidade, é um pouco menos simples do que se poderia pensar à primeira vista. Se nas secções anteriores se tocou nessa questão, foi só para o caso mais fácil, o das sociedades ou formações em que não há troca. Lá evidentemente se deve excluir de imediato o trabalho abstrato e o valor. Mas, se há troca, a coisa é mais complexa. O problema do espaço histórico do valor, com todas as suas implicações para o problema da abstração, já aparece claramente na crítica que Engels faz ao economista Conrad Schmidt, assim como nas reservas que suscitou a crítica de Engels. Essa discussão pode nos servir como ponto de partida. Embora reconhecendo o interesse teórico do conceito de valor, Schmidt tinha escrito num artigo sobre o livro III de O Capital, e depois numa carta a Engels, que o valor não é mais do que uma hipótese ou uma ficção teórica.55 E isto porque, no interior do capitalismo, as trocas, inclusive as que interessam os meios de produ-
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ção e a força de trabalho, se fazem não conforme o valor mas conforme os preços de produção.56 A essas observações de Schmidt, Engels res ponde 57que o valor é na realidade muito mais do que isto: “A meu ver, esta concepção (a de Schmidt, RF) não é, absolutamente, pertinente. Para a produção capitalista, a lei do valor tem uma significação que é, de longe, maior e mais determinada do que a de uma simples hipótese, sem falar da de uma ficção mesmo necessária” . 58 Para sustentar a sua resposta, Engels começa citando um texto do livro III de O Capital, em que Marx escreve que a anterioridade do valor sobre os preços de produção é válida não só teoricamente (theoretisch) mas também histo ricamente (historisch).59 Ele traça em seguida um quadro da evolução das trocas nas épocas pré-capitalistas e termina afirmando que a lei do valor é válida de forma geral antes do capitalismo, e por outro lado, que ela tem uma validade econômica geral só até a emergência do capitalismo: “Em resumo, a lei do valor de Marx é válida de forma geral (gilt allgemein), na medida em que as leis econômicas podem sê-lo, para todo o período da produção simples de mercadorias, por tanto até o momento (bis zur Zeit) em que esta última sofreu uma modificação (Modification) pela emergência (Eintritt) da forma de produção capitalista. Até lá, os preços gravitam em tomo dos valores determinados pela lei de Marx e oscilam em torno desses valores, de modo que quanto mais plenamente se desenvolve (je voller... zur E nt faltung kom m t) a produção simples de mercadorias, mais os preços médios (que se estabelecem) no interior de períodos mais longos não interrompidos por nenhuma perturbação exterior violenta coincidem, dentro de margens aproximáveis, com os seus valores. A lei do valor de Marx tem pois uma validade econômica geral (ökonomisch-allgemeine Gültigkeit) por um período que vai do início da troca, que transforma produtos em mercadorias, até o século XV da nossa era. Mas a troca de mercadorias data de uma época anterior a toda história escrita, a qual nos conduz no Egito pelo menos a três mil e quinhentos e talvez a cinco mil anos, na Babilônia a quatro mil e talvez a seis mil anos antes de nossa era; a lei do valor reinou (geherrscht) durante um período de cinco a sete mil anos. Admire-se agora a profundidade do sr. Loria, que diz (nennt) do valor que teve uma validade geral e direta (allgemein und direkt) durante esse tempo, (que é) um valor pelo qual as merca dorias não são nem nunca serão vendidas, (e um valor) com o qual nenhum economista que tenha uma centelha de bom senso (einen Fun ken gesunden Verstand) se ocupará jamais!” 60 Esta resposta de Engels é hoje criticada quase unanimemente61 e questionada pelas duas razões seguintes: primeiro, parece bem evidente que, para Marx, a lei do valor é válida para o capitalismo;62 segundo, não se pode aceitar sem mais — é o mínimo que se pode dizer — que a lei do valor, segundo Marx, é válida antes do capitalismo. Há, pois, dois problemas no texto de Engels. Por um lado, devemos nos perguntar: em que medida se
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poderia falar de valor antes do capitalismo? E, por outro lado: em que sentido rigoroso a lei do valor é válida no interior do capitalismo (o que nos leva a retomar a questão do significado da relação valor/preço de produção)? 63 1. Valor e pré-capitalismo. Contradição Castoriadis64 questiona o estatuto do valor antes do capitalismo, ao discutir o texto bem conhecido de Marx sobre Aristóteles no livro I, cap. I, de O Capital. Como se sabe, comentando textos da Ética a Nicômaco, Marx tenta mostrar que Aristóteles chegou até o limiar da idéia de abstração do trabalho (pois ele viu que a equivalência quanti tativa que estabelece a relação de valor pressupõe uma igualdade qualitativa), mas que ele não pôde ultrapassar esse limitar: “Primeira mente Aristóteles exprime claramente que a forma dinheiro da merca doria não é senão a configuração (Gestalt) mais desenvolvida da forma simples do valor, isto é, da expressão de valor de uma mercadoria em uma outra mercadoria qualquer, pois ele diz: ‘5 leitos = 1 casa (klinai pente anti oikias)' não se distingue de ‘5 leitos = tanto e tanto de dinheiro {klinaipente anti... hosou hai pente klinai)'. Além disso, ele vê que a relação de valor, na qual se encontra essa expressão de valor, exige por sua vez que a casa seja posta como qualitativamente igual ao leito e que essas coisas (Dinge) diferentes (em termos) sensíveis (sinnlich) não poderiam ser postas em relação umas com as outras como grandezas comensuráveis sem essa igualdade de essência. ‘A troca’, diz ele, ‘não pode ser sem igualdade, mas a igualdade não (pode ser) sem a comensurabilidade (out’isotes me ouses sümetrias).' Mas aqui ele he sita e renuncia a continuar a análise da forma do valor. ‘Mas na rea lidade é impossível {te men oun aletheia adünaton) que coisas tão dife rentes sejam comensuráveis’, isto é, sejam qualitativamente iguais. Esta posição da igualdade (Gleichsetzung, equiparação) não pode ser senão algo estranho à verdadeira natureza das coisas (Dinge), e portanto ‘um expediente (Notbehelf) para a necessidade prática’./ Assim, o próprio Aristóteles nos diz em que fracassa a continuação de sua aná lise (woran seine weitere Analyse scheitert), a saber, na imperfeição (Mangel) do seu conceito de valor. Qual é o igual, isto é, a substância comum que a casa representa para o leito na expressão de valor do leito?’ Algo assim (so etwas) ‘na verdade não’ pode ‘existir’, diz Aris tóteles. Por quê? A casa representa um igual em face do leito, na medida em que ela representa o que é efetivamente igual nos dois, no leito e na casa. E isto é trabalho hum ano./ Mas que na forma dos valores das mercadorias (Form der Warenwerte) todos os trabalhos sejam expressos como trabalho humano igual e em conseqüência como equivalentes (gleichgeltend), Aristóteles não poderia extrair (heraus-
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lesen) da própria forma do valor, porque a sociedade grega repousava sobre o trabalho escravo, e em conseqüência tinha como base natural a desigualdade dos homens e de suas forças de trabalho. O segredo da expressão de valor, a igualdade e a equi-valência (die Gleichheit und gleiche Gültigkeit) de todos os trabalhos, porque e enquanto são traba lho humano em geral, só podem ser decifradas quando o conceito de igualdade humana já possua a solidez de um preconceito popular. Mas isto só é possível (erst mòglich) numa sociedade em que a forma das mercadorias ( Warenform) é a forma geral dos produtos do trabalho, e assim a relação dos homens entre si enquanto possuidores de merca dorias é a relação social dominante. O gênio de Aristóteles brilha precisamente nisto, que na expressão de valor das mercadorias ele tenha descoberto uma relação de igualdade. Só a limitação (Schranke, barreira) histórica da sociedade em que ele vivia impediu que ele descobrisse em que consiste ‘na realidade’ essa relação de igualdade” .65 Esse texto levanta sem dúvida um problema. Qual o sentido exato desta crítica? Em que medida se poderia dizer que a limitação histórica da sociedade em que ele vivia impediu que ele visse alguma coisa? Se Aristóteles não alcançou os conceitos de valor e de trabalho abstrato, não seria porque ele não existiam? Nesse caso, nada a criticar; não se poderia falar, aparentemente, de barreiras impostas à sua consciência. Ou então é necessário supor que o objeto estivesse lá. Mas poder-se-ia dizer que o valor existe efetivamente antes do capitalismo? Uma leitura rigorosa do texto parece, pois, nos conduzir a um impasse. Ê a esse impasse que se prende Castoriadis: “Aristóteles não via a ‘identidade/ igualdade’ dos trabalhos humanos porque era impedida pelos precon ceitos da sua época (ou pela ausência do ‘preconceito popular’ da igualdade); ou então ele não via o que estava lá mas não aparecia ainda; ou então ele não via porque não havia nada para ver, porque a igualdade dos trabalhos humanos, na medida em que ela ‘existe’, foi criada no e pelo capitalismo? A antinomia que divide perpetuamente o pensamento de Marx entre a idéia de uma produção histórica das cate gorias sociais (e do pensamento) e a idéia de uma ‘racionalidade’ última do processo histórico (portanto da ‘productibilidade’ racional dessas categorias umas a partir das outras, (e) portanto finalmente da sua ‘a-temporalidade’) se revela de novo aqui. Se a Antiguidade ‘tinha como base natural a desigualdade dos homens e de sua força de tra balho’, se portanto o trabalho não era homogêneo, Aristóteles tinha razão em dizer o que ele era e em dizer o que ele não era; ele erraria (il aurait eu tort) se, por um milagre da adivinhação histórica, tivesse dito que o trabalho era o que ele só viria a ser dois mil anos mais tarde. Que pode significar a idéia de que Aristóteles era limitado pelo ‘estado particular da sociedade em que vivia’, senão que havia algo para ver e que Aristóteles, esse ‘gigante do pensamento’, não podia ver, por causa desse ‘estado particular’? Mas, na realidade, que haveria, pois, para
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ver? Nada. Esta fantasmagoria real, esse constructum histórico de uma pseudo-homogeneidade efetiva dos indivíduos e dos trabalhos é uma instituição e criação do capitalismo, um ‘produto’ do capitalismo me diante o qual o capitalismo se produz — e que Marx, preso ao ‘estado particular’ da sociedade em que vive, transforma uma vez em duas em determinação universal, trans-histórica, em Substância Trabalho” . 66 Pouco antes, Castoriadis escreve de uma maneira mais geral: “Na economia e por ela, a abstração da quantidade, a pura repetição/ cumulação do absolutamente homogêneo se toma efetiva, realidade mais real do que o real./ Mas que ‘economia’? Constantemente, Marx oscila entre estas posições: a economia capitalista — toda economia, do início ao fim da história. De um extremo ao outro da sua obra, Marx diz ao mesmo tempo e sucessivamente:/ — ‘a economia capitalista transforma efetivamente, e pela primeira vez na história, os homens e seus trabalhos heterogêneos no Mesmo homogêneo e mensurável e faz com que seja, pela primeira vez, esta coisa: o Trabalho Simples Abs trato, que não tem nenhuma outra determinação pertinente senão o ‘tempo’ (de relógio)’;/ — ‘a economia capitalista dá a aparência do Mesmo ao que é essencialmente heterogêneo: os indivíduos e os seus trabalhos, mediante a produção de mercadorias e a transformação da própria força de trabalho em mercadoria, portanto (da) sua reificação (Verdinglichung)”, 67 A crítica do texto de Marx sobre Aristóteles nos remete pois ao primeiro problema, o da existência do valor (e do tra balho abstrato) nas sociedades pré-capitalistas. Veremos que Castoria dis levanta também o segundo problema, o do valor e do trabalho abs trato no capitalismo. Inicialmente, tentemos responder na base dos textos. Para Marx, 0 valor e o trabalho abstrato existem antes do capitalismo? A resposta de Marx, para o trabalho abstrato, se encontra na Contribuição à Crítica da Economia Política: “Steuart (trata-se de James Steuart, economista do século XVII — RF) sabia naturalmente muito bem que também nas épocas pré-burguesas o produto se reveste da forma mer cadoria e a mercadoria da forma dinheiro, mas ele prova em detalhe que a mercadoria enquanto forma fundamental elementar da riqueza, e a alienação enquanto forma dominante da apropriação, só pertencem ao período da produção burguesa e que, portanto, o caráter do tra balho que põe o valor de troca é especificamente burguês (der Charakter der Tauschwert setzenden Arbeit spezifisch bürgerlich ist)".6li O texto se refere ao trabalho abstrato. Pode-se dizer a mesma coisa do valor? Sim. Com efeito, Marx escreve no capítulo 5 do livro III de O Capital: “Se o valor das mercadorias é determinado pelo tempo de trabalho necessário que elas contêm, e não pelo tempo de trabalho em geral (überhaupt) que elas contêm, é o capital (so ist es das Kapital) que realiza pela primeira vez (erst realisiert) esta determinação, e que ao mesmo tempo reduz constantemente o tempo de trabalho socialmente
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necessário à produção de uma mercadoria” . 69 E no capítulo 7 do livro III ele escreve ainda: “É o capital comercial, que pela primeira vez (zuersí) determina os preços das mercadorias mais ou menos pelos seus valores (...)” . 70 E entretanto, há aí um problema. É que Marx fala bastante freqüentemente de valor (ou pelo menos de valores), tendo em vista sociedades pré-capitalistas em que há troca.11 Assim, por exem plo, quando, nos capítulo 1 e 2 do livro I e também no capítulo 10 (original) do livro III, ele introduz referências “históricas” (onde se trata de trocas entre comunidades primitivas),72 ele fala de valor, sem que se trate evidentemente do capitalismo.73 Como explicar essas ocorrências? Segundo Castoriadis, haveria em Marx uma oscilação entre diversas respostas: o valor existia antes do capitalismo, o valor não existia, o valor existia mas não aparecia. Marx teria sido incapaz de dar uma resposta unívoca ao problema, sendo a prova disto a pre sença das três respostas em lugares diferentes da sua obra. O que Castoriadis diz não é sem verdade, enquanto ele afirma simplesmente que se pode encontrar em Marx passagens em que ele emprega o termo valor a propósito do pré-capitalismo e passagens em que ele diz que só há valor no capitalismo. O problema é o de saber se há aí uma osci lação, se não se trataria antes (radicalizando) de uma contradição-, e de saber se uma resposta contraditória é necessariamente uma má resposta. Ora, por radical que ele seja de outros pontos de vista, Casto riadis pressupõe como todo mundo (ele não chega mesmo a propor o problema) que um discurso, para ter pretensão à verdade e à validade universais, deve ser ou se apresentar como não contraditório. Ê pelo menos o que se extrai de sua crítica. E entretanto a solução do pro blema se acha na própria resposta contraditória: se o objeto é ele próprio contraditório — e veremos que é disto que se trata — é a res posta contraditória que é a resposta racional. O que significa: a aber tura que se busca, a porta de saída, está no próprio obstáculo que se erige diante de nós. Basta pôr a contradição — em lugar de fugir dela — para que se a domine (e portanto se resolva o problema). No que se refere ao nosso problema, isso significa que antes do capitalismo o valor não é, mas que ao mesmo tempo ele ê. Antes do capitalismo, o valor não é, porque não há tempo de trabalho socialmente necessário. Isto significa que o tempo de trabalho constitutivo do valor não é posto na própria produção (não há um tempo social que tenha uma força coercitiva no nível da produção) e que o quantum de valor (ou antes, de “valor”) pelo qual as mercadorias são trocadas se constitui no nível das trocas (esse quantum não corresponde a cada tempo individual, mas ele não é senão uma resultante desses tempos individuais). E entre tanto, do que acabamos de dizer resulta que antes do capitalismo as mercadorias já se trocavam segundo proporções que correspondiam ao tempo (ou aos tempos) gasto(s) na sua produção. Portanto, em certo sentido, o valor ou os valores já existiam. Ou, se se quiser, se se deveria
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dizer, pelas razões expostas, que o valor não existia, deve-se dizer também que “alguma coisa” como o valor já existia.74 Mas não se cairia com isso numa resposta antinómica, como quer Castoriadis? Não, essa contradição é objetiva e ela é pois pensável na e pela contra dição. O valor antes do capitalismo tem um estatuto análogo ao de um ser qualquer no nível da sua pré-história. No nível da sua pré-história, um ser não existe enquanto sujeito; uma pré-história é exatamente a história do seu surgimento enquanto sujeito. Existem entretanto, no nível da pré-história, certas determinações que exprimem mas que ao mesmo tempo não exprimem esse ser, isto é, existem certas deter minações que exprimem este ser (ausente enquanto sujeito) em forma negativa, em forma contraditória. No decorrer de sua pré-história, deve-se dizer de um ser que ele é... tal ou qual coisa, mas tal ou qual coisa não exprime esse ser enquanto tal, exprime antes a sua negação. É assim que, no que se refere ao valor, se deveria dizer que antes do capitalismo o valor é... a cristalização do tempo de trabalho em geral, portanto que em certo sentido o valor “é” . Mas como a determinação “cristalização do tempo de trabalho em geral” não convém ao valor, não é a determinação “do” valor, não é a “sua” determinação senão sendo a sua negação, o valor enquanto tal não existe. É pois bem evidente que temos aí uma contradição que pertence ao próprio objeto, a qual só se pode dominar pondo o objeto de forma contraditória. E, com efeito, quando Marx se ocupa de um objeto no nível da sua pré-história, encontra-se a contradição (ou uma expressão quase-contraditória). Por exemplo, quando Marx examina o momento do nasci mento da mercadoria, quando ele examina esse momento que, histori camente, é o do encontro entre duas comunidades, ele escreve: “ O intercâmbio imediato de produtos tem, por um lado, a forma da expressão simples do valor e, por outro lado, ainda não a tem” .75 Que o pensamento de um objeto na sua pré-história só pode se exprimir pela contradição é o que já se encontra precisamente em Aristóteles. É assim que ele escreve em Da Geração e da Corrupção: “Para resumir nosso pensamento, diremos agora que num sentido há geração a partir de alguma coisa que não é, mas que em outro sentido a geração ocorre a partir de alguma coisa que é. Com efeito, do que existe em potência mas não existe em ato deve em primeiro lugar se poder dizer que existe das duas maneiras que acabamos de indicar” . 76 De resto, é evidente mente à teoria aristotélica da mudança que remonta a distinção cujo esquecimento fez correr muita tinta, distinção que conduz aos proble mas da dialética. Poder-se-ia mesmo dizer, embora isto corra o perigo de contrariar as exigências do senso comum, que pelo menos uma parte dos problemas propostos pelos althusserianos (a propósito do “ho mem” , por exemplo) já tem uma resposta em Aristóteles.77 E isto permite também sair da aporia imputada a Marx por Castoriadis a
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propósito do texto de Marx sobre Aristóteles: ou Marx teria tentado explicar por que Aristóteles não vê algo que ainda não existia, demar che que parece dificilmente se justificar, ou Marx teria suposto que o valor existia antes do capitalismo, o que também não parece justifi cável. 78 A análise que acabamos de fazer dá a resposta ao problema. Os limites da consciência de Aristóteles são os limites do seu objeto. Ele não chega a exprimir a substância do valor, pois esta substância, embora estando “lá” (e é por isso que, segundo Marx, Aristóteles chega até a exprimir a exigência de “ algo comum”), não estava ainda constituído enquanto tal. O valor está somente pressuposto (e não posto) — ele é e não é — tanto na realidade da cidade grega como no pensamento de Aristóteles.79 2. Valor e capitalismo. Contradição Mas se Castoriadis denuncia uma pretensa oscilação de Marx no que se refere ao problema da existência do valor antes do capitalismo, oscilação que se manifestaria por uma aporia no texto do capítulo 1 a propósito de Aristóteles, a sua argumentação se desenvolve pela impu tação de uma antinomia mais geral, que recobre tanto a possibilidade do valor na Antiguidade como a do valor no capitalismo. O valor, impossível no pré-eapitalismo, onde faltam certas condições necessá rias à sua existência (condições que entretanto se encontram no capi talismo) é igualmente impossível no capitalismo, onde inversamente faltam condições igualmente necessárias (que se encontram, entre tanto, no pré-capitalismo): “Para que a lei do valor se aplique, é necessário que não haja capital, pois a existência do capital acarreta (nas condições postas) uma taxa de lucro igual entre ramos — e por tanto o desvio entre ‘valores’ e ‘preços’ (...). Então a ‘lei do valortrabalho’ valeria lá onde há troca mas ainda não capital — isto é, sob ‘a simples produção de mercadorias’? Mas a simples produção de mercadorias não permite, sociológica e economicamente, definir um tempo de trabalho socialmente necessário, ‘para a produção de um pro duto’ — nem dizer que os ‘valores de troca’ (as proporções segundo as quais os produtos são trocados) são regidos por esses tempos. Não há, no interior de cada ramo, o grau de concorrência entre produtores que igua lizaria efetivamente os tempos de trabalho exigidos para tal produto; nem, menos ainda, tal concorrência existe entre ramos. Para que a lei do valor-trabalho se aplique a uma economia de simples produção de mercadorias (grosso modo, uma economia artesanal de intercâmbio), seria preciso, por exemplo, que os sapateiros do sábado se tornassem alfaiates segunda-feira, se eles constataram no mercado do domingo que a ‘taxa de câmbio’ calçados/roupas é favorável aos alfaiates e desfavorável a eles. Em resumo, quando uma parte das condições de
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validade da ‘lei do valor’ estão dadas na forma da concorrência etc., se está em plena produção capitalista desenvolvida que implica ipsofacto o intercâmbio não segundo os ‘valores’, mas segundo os ‘preços de produção’. E quando o intercâmbio ainda não está submetido às leis do capital e da perequação da taxa de lucro, na simples produção de mercadorias, não é possível definir um ‘tempo de trabalho socialmente necessário’ médio, pois a mediação essencial para a dominação efetiva de um tempo médio como esse, a ‘concorrência’ de tipo capitalista, não está lá. Quando é que vale então a ‘lei do valor-trabalho’? Num sentido, nunca, sob nenhum grupo de condições sociais e históricas efetivas ou que possam ser construídas de maneira coerente. Num outro sentido, sempre, desde sempre e no sempre (dans le toujours). Pois ela resulta da posição dessa Substância, o Trabalho, que está lá do início ao fim da história humana e se ‘cristaliza’ em produtos — que podem ou não ser ‘trocados’, e trocados segundo tal ou qual modo; esses modos concernem à Forma do valor que não se poderia confundir com o Valor — como não se poderia confundir o corpo H 20 com o gelo, a água ou o vapor de água’’. 80 Vê-se em que situação se encontra a teoria do valor segundo Castoriadis. Para o pré-capitalismo, a lei do valor não pode ter validade — Castoriadis o diz com razão — porque lhe falta o trabalho social mente necessário. Mas, quando se poderá falar de trabalho social mente necessário, isto é, nas condições do capitalismo, as trocas se farão nãp segundo o valor, mas segundo os preços de produção. Tudo se passa pois como se a lei do valor escapasse sempre às condições que a tomariam “passível de ser construída (constructible) (...) de uma ma neira coerente” . 81 Já vimos o que se refere à primeira parte do argu mento. Deve-se dizer que não há valor antes do capitalismo, mas que ao mesmo tempo o valor está “lá” , pressuposto (porque na sua préhistória). Falta a segunda parte. O problema se coloca aqui da seguinte maneira: com que direito se poderia falar de valor e de lei do valor no capitalismo, se as trocas se fazem aqui não segundo o valor mas segundo os preços de produção? Não podemos entrar aqui evidentemente nos detalhes das dis cussões sobre o problema da transformação dos valores em preços de produção. O que nos interessa é somente precisar o sentido lógico geral da transformação, sentido, de resto, pelo qual se passa em geral muito rapidamente (para não dizer mais). Ao longo dos dois primeiros livros de O Capital, Marx supõe que, se fizermos abstração das oscilações do mercado, as mercadorias se trocam segundo os seus valores, isto é, os preços pelos quais elas são trocadas correspondem aos seus valores. Isto deveria valer também (e a rigor somente) para os produtos do capital. Para realizar o valor das mercadorias produzidas e portanto para realizar a mais-valia que elas
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contêm, os capitalistas devem vendê-las, e esta venda deveria ser feita, à primeira vista, conforme à relação de sua grandeza de valor. Mas aí se coloca o problema que aparece no início do livro III: se as merca dorias são vendidas segundo os seus valores, capitais idênticos não produziriam o mesmo lucro. Ê que das duas partes de que se compõe o capital, a parte investida em matérias-primas e auxiliares, instru mentos de trabalho etc., isto é, em meios de produção, e a parte inves tida em força de trabalho, só a última cria valor e portanto maisvalia, já que a primeira só transmite o valor dos elementos em que é investida. Ora, conforme a parte variável (a que é empregada na compra da força de trabalho) de um mesmo capital global seja maior ou menor, portanto conforme a sua composição orgânica82 (capital constante/capital variável) seja maior ou menor, este capital produzirá mais ou menos mais-valia, isto é, lucro. Ora, é bem razoável pensar, e é sem dúvida o que se passa na realidade efetiva, que capitais iguais devem produzir o mesmo lucro. Com efeito, para o capitalista indi vidual, pouco importa que a porção variável do seu capital seja maior ou menor. Tudo se passa como se todas as partes do capital produzis sem (e igualmente) lucro.. Ora, como conciliar este dado, que é ao mesmo tempo uma espécie de exigência da racionalidade do sistema, com a lei do valor, a qual estabelece a necessidade da equivalência dos tempos de trabalho no intercâmbio de mercadorias? Se as mercadorias são trocadas segundo os seus valores, os capitais de composição mais baixa, isto é, aqueles em que v é mais elevado, obterão um lucro propor cionalmente superior (para uma mesma taxa de mais-valia) porque é somente esta parte que produz valor e portanto mais-valia, e porque se, pela troca, se obtém o equivalente do valor das mercadorias produ zidas, a uma quantidade superior (quanto ao valor) de força de traba lho (para uma mesma taxa de mais-valia) deve corresponder uma massa de mais-valia (portanto de lucro) mais elevada. Tudo se passa pois — e é dessa forma que Marx coloca o problema — como se esti véssemos diante de um impasse. Ou se conserva a lei do valor, caso em que a exigência de que os mesmos capitais produzam o mesmo lucro (.supondo as mesmas condições menos a composição) não pode ser satisfeita, ou então se conserva o princípio da igualdade do lucro, mas é preciso então abandonar a lei do valor. E é bem nesses termos que Marx se exprime a esse respeito: “ Se um capital que se compõe em porcentagem de 90c + 10v, para um mesmo grau de exploração do trabalho, produzisse tanta mais-valia ou lucro como um capital que se compõe de 10c + 90v, seria evidente (sonnenklar) que a mais-valia e portanto o valor em geral deveriam ter uma outra fonte totalmente (idiferente) do trabalho, e que com isto cairia toda base racional da economia política (Jede rationelle Grundlage der politischen Okonomie wegfiele)”. 83 Se capitais de composição diferente, supondo em tudo o mais as mesmas condições, produzem a mesma massa de mais-valia,
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“o valor e a mais-valia deveriam ser coisa diferente (etwas andres) do trabalho cristalizado” . 84 Ora, ocorre que a suposição — no que se refere ao lucro, mas até aqui o lucro é considerado como quantitativamente igual à mais-valia — que acarretaria conseqüências tão importunas para a teoria deve ser assumida: “(•••) não há dúvida alguma de que na realidade efetiva, se se fizer abstração de diferenças inessenciais, acidentais e que se compensam umas às outras, a diversidade das taxas médias de lucro para os diferentes ramos da indústria não existe nem poderia existir sem suprimir todo o sistema da produção capitalista” . 85 De onde se deveria concluir: “Parece pois que a teoria do valor é aqui incompatível com o movimento real-efetivo, incompatível com os fenômenos fatuais da produção, e que se deve em conseqüência renunciar de uma maneira geral (überhaupt) à compreensão (begreifen) desses últimos” .86 Assim fica-se diante do que se apresenta como uma aporia. Deve-se manter a lei da igualdade dos lucros, com o que se aban donaria a lei do valor e com ela “toda base racional da economia política” , ou, pelo contrário, se deve conservar a lei do valor, caso em que, aparentemente, não se teria outra alternativa se não a de recusar a igualdade dos lucros para capitais de mesma grandeza? Deve-se aban donar a teoria do valor — é, sem dúvida, o que se pergunta Marx — e “renunciar à compreensão dos fenômenos” ? Ou se deve recusar os fenômenos (se as coisas são assim, tanto pior para as coisas...) para guardar a teoria do valor? Marx não poderia acentuar mais a gravidade da parada. Ora, esse dilema a economia política já havia encontrado. E diante dele, poderíamos dizer (mesmo se uma dessas respostas consiste a rigor em suprimi-lo) que ela havia seguido ou o primeiro, ou o segundo caminho. O primeiro caminho, que poderíamos também caracterizar como o que guarda o fundamento para sacrificar o fenômeno, como aquele que tenta guardar as duas teses opostas sem tomar consciência do seu caráter contraditório, é representado pelos clássicos Smith e Ricardo.87 A propósito de Smith: “A observação da concorrência — dos fenô menos da produção — mostra que capitais de mesma grandeza pro duzem em média (on average) o mesmo lucro, ou que, dada a taxa média de lucro (average rate o f profit) (e taxa média de lucro não significa mais do que isto), a massa do lucro depende da grandeza do capital investido./ A. Smith registra esse fato (fact). Este não lhe criava nenhum escrúpulo de consciência no que se refere à sua conexão com a teoria do valor que ele estabelecera, e tanto menos porque ao lado da sua teoria por assim dizer esotérica ele havia proposto outras (teorias) diferentes e poderia se lembrar, à vontade, ora de uma ora de outra” .88 A propósito de Ricardo: “(...) Ricardo foi o primeiro a chamar a atenção (sobre o fato de) que capitais de mesma grandeza não são
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absolutamente capitais com a mesma composição orgânica. Ele tomou essa diferença de composição tal como a encontrou transmitida por A. Smith — capital circulante e capital fixo (circulated and fixed capi tal) —, portanto só as diferenças que resultam do processo de circu lação./ Ele não exprime de forma alguma de um modo direto que, se capitais de composição orgânica desigual, que portanto põem em movi mento massas desiguais de trabalho imediato (o/ imediate labour) produzem mercadorias de mesmo valor e a mesma mais-valia (surplus-labour) (que ele identifica com o lucro) (isto) contradiz prima facie a lei do valor. Pelo contrário, ele se põe a pesquisar o valor com a pressuposição do capital e de uma taxa de lucro geral. Identifica desde o início preços de custo (Kostenpreise) e valores e não vê que desde o início esta suposição contradiz prima facie a lei do valor” .89 E ainda: “(...) na realidade, a maneira pela qual Ricardo conduz a sua pesquisa é a seguinte: ele supõe uma taxa geral de lucro ou um lucro médio da mesma grandeza para diferentes investimentos de capital da mesma grandeza ou para diferentes esferas da produção em que são empre gados capitais da mesma grandeza — ou o que vem a ser o mesmo (ele supõe um) lucro em relação com a grandeza dos capitais empregados nas diferentes esferas da produção. Em lugar de pressupor essa taxa geral de lucro, Ricardo deveria, antes, examinar em que medida a própria existência (Existenz) dela corresponde à determinação do valor pelo tempo de trabalho, e teria constatado que, longe de corresponder a esta última, ela a contradiz prima facie, e que a sua existência deve pois ser desenvolvida somente por meio de uma série de elos inter mediários, desenvolvimento (que é) bem diferente de uma simples subsunção à lei do valor. Ao fazer isto, ele teria obtido, tudo somado, uma compreensão bem diversa da natureza do valor e não o teria identificado diretamente com a mais-valia” .90 A direção oposta, pela qual enveredou também a economia polí tica, é a daqueles que indicam a contradição mas querem expulsá-la —■ e isto admitindo o fenômeno e negando o fundamento. (Pode-se opor estes últimos aos clássicos, ou dizendo que eles negam, abstratamente, a contradição, enquanto que os clássicos a admitem, abstratamente também, isto é, eles a sofrem sem tomar consciência dela; seja dizendo que eles guardam o fenômeno e sacrificam a essência, enquanto que os clássicos, num sentido pelo menos, guardam a essência sacrificando o fenômeno.) Ê a direção de Malthus e Torrens. Para expulsar a contra dição entre o fenômeno (a igualdade dos lucros para capitais da mesma grandeza) quaisquer que sejam a composição e a essência (valor) que deveriam fundá-lo, eles renunciam à teoria do valor e a toda fundação: “Por um lado a origem da mais-valia, (e por outro) a maneira pela qual Ricardo concebe a igualização dos preços de custo91 nas diferentes esferas da utilização do capital enquanto modificação da própria lei do valor (bem como) a confusão (que ele faz) freqüente(mente) entre o
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lucro e a mais-valia são (os pontos) da oposição (Gegensatz) de Malthus. Malthus não desenreda essas contradições e quiproquós mas os aceita de Ricardo, para, apoiado nessa confusão, derrubar a lei funda mental do valor de Ricardo, e extrair conseqüências agradáveis aos seus protetores (protectors).92 (...). ” Ricardo pressente a diferença entre valores e preços de custo (Kostpreisen) 93 e exprime a contradição para determinados casos, ainda que como exceções à lei segundo a qual capitais de composição orgânica desigual (...) produzem a mais-valia (surplus values) (...) (...)./ Ora, como vimos, utiliza isto para negar a lei do valor de Ricardo./ Torrens parte, logo no início do seu escrito, desse achado de Ricardo; de nenhum modo para resolver o problema, mas para expressar (ausprechen) o “ fenômeno” como a lei do fenô meno. “(...) Capitais iguais ou, em outros termos, quantidades iguais de trabalho acumulado porão em movimento freqüentemente quanti dades diferentes de trabalho imediato', mas isso não altera em nada a coisa” . 94 “O mérito nessa frase não consiste em que Torrens registre de novo simplesmente o fenômeno (Erscheinung), sem explicá-lo, mas que ele (...) determine a diferença como sendo a de que capitais iguais põem em movimento massas diferentes de trabalho vivo. (...) (...) O mérito de Torrens é assim o de ter se exprimido desse modo (dass er dieser Ausdruck hat). O que é que ele conclui disto? Que aqui, na produção capitalista, tem lugar uma interversão (Umschlag) da lei do valor. Isto é, que a lei do valor que é abstraída da produção capitalista contradiz os seus fenômenos.95 E o que ele põe no lugar (dela)? Absolutamente nada, além da expressão verbal grosseira, não pensada do fenômeno (rohen gedankenlosen sprachlichen Ausdruck des Phä nomens), que se trata de explicar” . 96 Citamos extensamente os textos das Teorias... para mostrar como encontramos a antinomia, exposta na história da economia política. As duas teses opostas estão representadas, uma pela economia clássica e a outra pelos seus críticos que não são ainda, ou não são inteiramente ainda, críticos vulgares. A maneira pela qual Marx vai resolver esta antinomia corresponde, no plano da crítica da economia política, à so lução dada por Hegel às antinomias da tradição filosófica. A resposta de Marx pode ser expressa, por um lado, como sendo aquela que conserva tanto a essência como o fenômeno, em oposição àqueles que conservam ou a essência (Smith, Ricardo), ou o fenômeno (Malthus, Torrens); por outro lado, e mais profundamente, como aquela que consiste em pôr a contradição, em oposição àqueles que ou a sofrem sem tomar consciência dela (Smith, Ricardo), ou então a recusam (Malthus, Torrens). Marx se instala na contradição. A contra dição em sentido vulgar é aqui “suprimida” e não negada. Porque é a contradição, que se tomou contradição posta, que “abre” o caminho que vai da essência ao fenômeno. Mas por isto mesmo, seria insu ficiente dizer simplesmente que a resposta franqueia o caminho que
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conduz da essência ao fenômeno; correríamos o risco de interpretar essa resposta de uma maneira clássica. Sendo o caminho da essência à aparência, do simples ao complexo, ainda aqui um caminho contra ditório, ele se abre fechando-se. O que significa: se a solução do problema reside, como se sabe, no conceito de preço de produção — as mercadorias são vendidas não segundo os seus valores (c + v + pl), mas segundo os seus preços de produção (c + v) ( = preço de custo) + lucro médio, estabelecendo uma partilha do conjunto da mais-valia segundo a grandeza dos capitais, é preciso acentuar o que existe de escandaloso nesta resposta, exatamente aquilo de que Engels procu rava fugir. Com efeito, se o fenômeno é um nível97 do real, e é neces sário consjderá-lo assim, a lei do valor só é conservada ao preço da negação. O valor é negado no nível do fenômeno. E, na medida em que, como vimos, não se pode dizer que a lei do valor tenha chegado a existir antes do capitalismo, se deverá concluir que é só quando o valor não é mais que o valor é, ou que o valor só é quando ele não é. E acres centando esse resultado ao do primeiro parágrafo (“valor” e pré-capitalismo) diremos: se enquanto o valor não é (pré-capitalismo), ele de certo modo é, ele não será plenamente (capitalismo) se não quando de certo modo ele não será (existirá) mais. E, se se duvidar ainda do fato de que Marx tem consciência do caráter contraditório da sua resposta e, mais do que isto, de que ele tem consciência de que a posição da contradição constitui a originalidade de sua resposta diante da econo mia política, citemos um último texto. No parágrafo 1 do capítulo 21 do livro I, parágrafo cujo título “Interversão das leis de apropriação da produção de mercadorias em leis da apropriação capitalista” , já diz muito sobre o método de M arx,98 ele escreve a propósito do problema da passagem da circulação simples de mercadorias à produção capita lista: “Dizer que a interposição do trabalho assalariado falseia (fãlscht) a produção de mercadorias quer dizer que, se a produção de merca dorias quiser se manter não falseada (unfálscht), ela não pode se desenvolver” . 99 Texto que é preciso ler, de acordo com o conjunto do capítulo que descreve uma interversão (Umschlag), sem atenuar o seu sentido: é só quando as leis da produção das mercadorias são “falsea das” (isto é, são negadas) que elas são plenamente. Que pensar, nessas condições, de uma crítica que consiste em descobrir uma contradição nesse movimento? Conclusão Vemos assim que, para os dois níveis em que se coloca o pro blema do espaço histórico do valor, não é recuando diante dos argu mentos críticos da lógica da identidade mas, pelo contrário, radicali zando (objetivando) esses argumentos até que eles se voltem contra a lógica da identidade que se encontra uma saída. Do mesmo modo, para
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a questão da “ metafísica” de Marx tratada nas primeiras partes, vimos que não é submetendo o discurso de O Capital às exigências do sentido comum mas, pelo contrário, radicalizando (objetivando) o caráter “metafísico” desse discurso até que ele questione o sentido comum que se obtém a resposta. O mérito de Castoriadis — além do fato, mas é uma conseqüên cia, de ter compreendido o peso objetivo de que estão investidos os conceitos de Marx — é o de ter desdobrado, e para os dois níveis em que o problema se propõe, e ainda que na forma subjetiva da antino mia, as contradições que contém o discurso de O Capital — coisa de que, se deve dizer, a maioria dos marxistas é incapaz. Dir-se-ia que a sua crítica realiza o trabalho importante de reconstituir os fios de que se tece a contradição em Marx, o que significa — resultado importante, a despeito dele — mostrar a irredutibilidade do discurso de Marx a toda lógica da identidade. Até ai, Castoriadis vai muito mais longe do que os marxistas que através de soluções de emergencia (ou pelo silên cio, o esquecimento meio consciente meio inconsciente etc.) procu ram ocultar a sua perplexidade diante das dificuldades que levantam tanto o livro I como o livro III de O Capital. Mas ele se detém na antinomia.100 Ele não vê onde o movimento de oposto a oposto, o mau movimento infinito de oposto a oposto poderia encontrar um ponto de parada. Ou, o que vem a dar no mesmo, como esse ponto é a contra dição: diante da alternativa entre conservar a identidade como “cri tério” fazendo com que as contradições apareçam como uma má “antinómica” , e objetivar a “antinómica em dialética” pondo em cheque o ponto de vista fixo da identidade, ele prefere seguir o primeiro caminho. Se em lugar de questionar a “ antinómica” de Marx, baseando-se na lógica tradicional, que ele utiliza ingenuamente como leis da razão imediatamente evidentes, ele tivesse duvidado um momento da validade dessa lógica e tivesse suposto que um pensamento que aparecia então como dialético pode ser rigoroso não ainda que contra ditório mas porque contraditório, Castoriadis teria atingido o objetivo e “ acabado” a sua crítica. Mas ele não foi até aí. E os seus limites são em última instância os dos althusserianos: os althusserianos — que querem “ salvar” Marx — subjetivizam os conceitos de O Capital, para poder assim expulsar a contradição', Castoriadis, que quer “ derrubar” Marx, objetiviza (com razão) os conceitos, para descobrir lá a contradição. O horror da contradição lhes é, pois, comum; assim como — vimos — eles se encontram na (falsa) leitura do parágrafo 4 do capítulo 1 sobre o fetichismo,101 separando determinação e posição. E se detendo diante do problema que é ao mesmo tempo o mais fácil (porque a resposta já está “lá”) e o mais difícil (porque ela não parece, absolutamente, uma resposta), Castoriadis faz com que as antinomias se lhe sobrevenham. É ele o pensador “das” antinomias. É a sua leitura que oscila (diante do objeto), não o próprio objeto. Ele segue assim em sentido inverso —
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volta clássica que se conhece bem desde História e Consciência de Classe — o caminho que conduz de Kant a Hegel. A crítica da dialética desemboca na dialética transcendental. E para que não haja. engano sobre o sentido da nossa crítica, precisemos que não se trata absolutamente de dizer que a dialética é a última palavra ou que ela está acima de toda crítica. O que queremos dizer é simplesmente que toda crítica de O Capital que não toma a sério a dialética como discurso da contradição só pode conduzir a urna regressão. É esta regressão, esta volta aquém de Marx que está em questão, não o projeto de ir além, o qual, pelo contrário, é a tarefa de todos nós. (Caso contrário, essa “defesa” de Marx, como seria o caso a propósito de qualquer outro pensador, só poderia ser urna demarche reacionária.) Para satisfazer as condições que poderiam validar a sua crítica, Castoriadis deveria ter dito: Marx propõe a contradição como solução; entretanto, esta solução não é boa por tais ou tais razões. Nesse caso, poder-se-ia dizer pelo menos que a sua crítica partia de onde se deveria partir, que ela visava bem o seu objeto. Ora, não é isto o que ele fez. Ele denunciou “ingenuamente” as oscilações de Marx (o que —■insistimos — revela tanto o nível de compreensão da lógica de O Capital, que ele alcançou, como os limites dessa compreensão). E é só se ele tivesse feito isto que a sua postura crítica, a de uma espécie de vencedor (por exemplo, quando ele se refere a “esta phronesis que faltará a Hegel e ao seu principal herdeiro”) 102 poderia ter um início de justificação.103 E, para concluir, digamos que as insuficiências que se encontram em Castoriadis — provavelmente o melhor crítico de Marx — as reen contramos em última análise, mas com muito menos talento, em todos os críticos atuais do marxismo na França. Eles não têm uma compreen são suficientemente profunda da dialética. Ou, se se quiser, eles não levam a sério a idéia de dialética. Sua leitura de Marx se faz geralmente seja com uma “grille” althusseriana, seja com uma “grille” vulgar ou eclética qualquer, mas é sempre ou um Marx continuísta, finalista, ou então sistemático no pior sentido da palavra que aparece — um Marx, insistimos, que não é reconhecível por todos aqueles que têm uma rela ção que não seja escolar com a dialética. Conduzidas nesses termos, essas leituras só podem conduzir a críticas que focalizam mal o seu objeto — é o mínimo que se poderia dizer — e que, em conseqüência, conduzem a superações bem derrisórias.
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NOTAS (1) Textures, n? 12-13, 1975, 7? ano, nova série, Braine-l’Alleud (Bélgica) (repu blicado em Les Carrefours du Labyrinthe, París, Seuil, 1978). Cremos nílo ser necessário insistir sobre o interesse dos trabalhos de Castoriadis. Entre os críticos de Marx, Casto riadis e seus amigos são a nosso ver os mais interessantes. No que se refere a O Capital, &crítica de Castoriadis tem, entre outros, o interesse de resumir de uma forma bastante rigorosa a maioria dos argumentos utilizados em geral contra O Capital, desde há muito. Só trataremos aqui de um texto de Castoriadis (e mesmo de menos do que isto: de uma parte de um texto), mas trata-se de um texto que oferece um interesse particular. Além do texto de Castoriadis e de algumas referências a um texto antigo de Claude Lefort (que apareceu nos Cahiers Internationaux de Sociologie nos anos cin qüenta (republicado em Les Formes de VHistoire)), nós nos ocuparemos um pouco, mas só um pouco, dos althusserianos. Veremos no final em que medida a crítica do althussçrismo pode ser útil para a crítica de Castoriadis. (2) Os althusserianos escapam (aqui) da “generalização”, mas recusam ao mesmo tempo a abstração real: para eles, o trabalho abstrato é sem dúvida algo bem diverso da generalidade trabalho, ele tem a unidade do conceito; mas esta unidade« a redução que ela pressupõe s6 ocorreriam no nível do pensamento (o conceito é entendido à maneira subjetiva da tradição reflexiva). Razão pela qual pode-se dizer que os althusserianos substituem um subjetivismo psicologizante (ou um naturalismo) por um subjetivismo logicista do conceito, no sentido reflexivo do termo. (3) Poderíamos, com efeito, fazer mais ou menos a mesma crítica a propósito do que encontramos aí no que se refere à questão do espaço histórico ocupado pelo trabalho abstrato e o valor, problema que será tratado na terceira secção deste texto. (4) Nota sobre as leituras vulgares do trabalho abstrato. As leituras vulgares interpretavam a abstração que constitui o trabalho abstrato e o valor como se se tratasse de uma simples generalização: nos trabalhos (concretos) do carpinteiro, do construtor, do fiandeiro etc. far-se-ia abstração do que é próprio a cada um deles, da particularidade de cada trabalho, e se obteria assim, generalizando os resíduos, a noção de trabalho abstrato. Esta interpretação nos condena à alternativa: ou o trabalho abstrato não é senão uma construção subjetiva (só haveria no real diferentes trabalhos específicos: constrói-se pelo pensamento, através do procedimento clássico da generalização, a noção de trabalho abstrato, de trabalho em geral); ou esta generalidade é real, mas nesse caso — se o trabalho abstrato não é senão uma simples generalidade, obtida ignorando as particularidades dos trabalhos — esta realidade só poderia ser constituída pelas carac terísticas fisiológicas comuns a todos os trabalhos. Os textos de Marx (voltaremos a eles) em que se trata da questão do gasto de músculos, de nervos etc. não nos reconduzem a isto, apesar das aparências. Na realidade, o trabalho abstrato não é nem uma construção do espírito, embora o espírito a reproduza, nem uma generalidade fisiológica: é o movi mento da abstração que se opera no próprio real. A produção de mercadorias opera, ela própria, a abstração: ela — e não nós, que nos limitamos a reproduzi-la — opera a redução (e o termo “redução” ao qual Marx volta já é sintomático) do concreto ao abstrato. A esse respeito, verem geral os marxistas (ou dialéticos) de língua alemã, come çando pelos clássicos: Lukács, Adorno, E entre os textos recentes em que se trata da abs tração real, além de Colletti, citado freqüentemente, mas que só dá uma visão muito geral do problema, ver J. A. Giannotti, sobretudo a introdução das Origens da Dialética do Trabalho (Origines de la Dialectique du Travail, Paris, Aubier, 1971). Vão também no sentido do que chamamos de leituras vulgares — esse ponto merece talvez uma atenção especial, pois se continua a tropeçar nisto —, os que, na linha de Bòhm-Bawerk, duvidam da legitimidade do movimento do § 1 do capítulo 1 do livro I de O Capital, pelo qual se passa do valor de troca ao valor. ( Werke, 23, Das Kapital I, op. cit., pp. 51-52; ver trad. franc. do cap. 1 do livro I de O Capital em Paul-Dominique Dognin, Les "Sentiers Escarpes" de Karl Marx, Paris, Êd. du Cerf, 1977, tomo I, pp. 175-176) Bohm-
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Bawerk, e, depois dele, vários outros criticam Marx por ter confundido “a abstração do gênero e a abstração das formas específicas nas quais o gênero se manifesta" (E. von Böhm-Bawerk, Karl Marx and the Close ofhis System, Ed. P. Sweezy — com a resposta de Hilferding e um artigo de Bortkiewics —, A. Kelly, Clifton, N. J., reed. 1975 (1949), p. 74), isto é, não ter visto que se poderia igualmente passar ao valor de uso em geral (o que significaria fundar o valor de troca no valor de uso). “As formas particulares sob as quais os valores de uso das mercadorias podem aparecer — que elas sirvam como alimento, como abrigo, como roupa, isto sem dúvida é posto de lado, mas o valor de uso enquanto tal da mercadoria nunca é posto de lado.” (Ibidem) Tal argumento só pode ser empregado por aqueles que lêem o movimento de que se trata no quadro (“grille") da passagem de uma espécie a um gênero, isto é, por aqueles que não compreen deram que mais do que uma generalização (voltaremos a isto) trata-se aí de uma redução, de uma mudança de registro. A passagem do valor de uso específico ao valor de uso em geral generaliza simplesmente, mas não reduz o universo dos valores de uso, o que se trata de fazer aqui. (A resposta de Hilferding a Böhm-Bawerk — diga-se de passagem — é bem insuficiente. Por não ter uma concepção bem rigorosa da natureza da abstração que constitui o trabalho abstrato, Hilferding desliza freqüentemente na idéia de simples generalização (ver Böhm-Bawerk’s Criticism o f Marx, no volume citado, editado por Sweezy, por exemplo, p. 131) — e como conceber o valor como a simples generalidade dos valores de uso é algo imediatamente e grosseiramente falso — Hilfer ding tenta separar o tipo de abstração do valor da que se encontra no trabalho abstrato. (Ver ibidem) Na realidade, quando, pelo contrário, Böhm-Bawerk tenta aproximar de direito (pois ele supõe que Marx comete o erro de não o haver feito) a abstração do trabalho abstrato e a do valor, ele paradoxalmente tem razão: as duas abstrações são análogas, mas por uma razão oposta à que ele dá: tanto num caso como no outro, trata-se de algo mais que de uma simples generalização. A última versão do argumento de Böhm-Bawerk, que remonta de resto a uma obra anterior do mesmo Böhm-Bawerk, encontramo-la no volume II, “Notes explicatives et critiques”, de Les "Sentiers Escarpes ” de Karl Marx de P.-D. Dognin, op. cit., II, p. 21. Em apoio à sua tese, Dognin cita um texto de 1903 de G. B. Shaw.) Como afirma Hegel, “é da maior importância, tanto para o conhecimento como também para o nosso comportamento prático, que aquilo que é simplesmente comum (das bloss Gemeinschaftliche) não seja confundido com o que é verdadeiramente geral, universal (mit dem wahrhaft Allgemeinen, dem Universellen)”. (Hegel, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften in Grundrisse (1830), Erster Teil, Die Wissenschaft der Logik..., § 163, Zusatz I, in Werke, 8, Berlim, Suhrkamp, p. 312; Encyclopédie des Sciences Philosophiques, I, La Science de la Logique, ed. Bernard Bourgeois, Paris, Vrin, 1970, § 163, adition I, p. 592) (5) Werke, 13, Zur Kritik der politischen Ökonomie, op. cit., p. 18; Contribution à la Critique de l'Économie Politique, trad. franc, de M. Husson e G. Badia, Paris, Éd. Sociales, 1957, p. 10. Esse texto é citado por J. A. Giannotti, op. cit., p. 16, e também por Helmut Reichelt, Zur logischen Struktur des Kapitalbegriffs bei Karl Marx, Frankfurt am Main, Europäischen Verlagsanstalt, 1973 (1? ed., 1970), p. 153. (6) Os termos alemães allgemein, Allgemeinheit são traduzidos geralmente, em seu uso filosófico, hegeliano em particular, por “universal”, “universalidade”. Mas eles significam também “geral” , “generalidade”. Como vimos acima, Hegel emprega também Universell, para designar o “verdadeiro universal”, em oposição a gemeinschaft lich , o que é simplesmente comum. A expressão “as abstrações objetivas põem a universa lidade” de certo modo faz um curto-circuito, pois quer dizer “nas abstrações objetivas a generalidade é posta e enquanto tal se torna universalidade”. Voltaremos a isto. (7) Marx deixou três versões diferentes do capítulo 1 (ou pelo menos de partes do capítulo 1 de O Capital): a da primeira edição (1867), o apêndice da primeira edição sobre a forma do valor (que Marx acrescentou após uma troca de cartas com Engels, quando o livro I estava no prelo), e o texto definitivo, o que dá Engels na quarta edição (1890) e que, para o capítulo 1, segundo os prefácios de Engels à terceira e à quarta edições, corresponde, com poucas diferenças, à segunda e à terceira edições.
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Se se acrescentar a versão francesa feita por J. Roy e revista por Marx, mas que, como se sabe, difere bastante do original, tem-se quatro versões. Se se acrescentar ainda o capítulo 1 da Contribuição ó Crítica da Economia Política, que é um texto paralelo, e também o fragmento sobre o valor que se encontra nos Grundrisse (op. cit., p. 763; Manuscrits de 1857-1858 ("Grundrisse") II, op. cit., p. 375), teríamos seis versões dife rentes. Essas diferentes versões são essencialmente complementares: se se trabalhar sobre o conjunto desses textos, é possível resolver a maioria dos problemas que eles levantam. O texto da primeira edição e o do apêndice, assim como o texto definitivo (do capítulo 1) foram traduzidos e apresentados numa edição bilíngüe (salvo para o último) por Paul-Dominique Dognin, Les "Senders Escarpés" de Karl Marx, op. cit., tomo I. O tomo II contém “notas explicativas e críticas” às quais, a despeito da erudição do autor, faríamos reservas. (Ver nota 4). (8) Marx, “Ware und Geld” (Das Kapital, I, Erste Aufgabe, 1867, 1. Buch, Kapitel 1) in Marx-Engels, Studienausgabe, II, "Politische Ökonomie”, Frankfurt am Main, Fischer, 1966, p. 234; Paul-Dominique Dognin, Les "Sentiers Escarpés" de Karl Marx, I, op. cit., p. 73. Grifo nosso. (9) Castoriadis: “(...) a duas páginas de distância, o trabalho (abstrato) é, alter nadamente, ‘gasto produtivo do cérebro, dos músculos...’ etc., ou ‘gasto, em sentido fisiológico, de força humana, e, nessa condição (à ce titre) de trabalho humano igual, forma o Valor das mercadorias’ e ‘unidade social... (que) só se pode manifestar nas transações sociais'. Esta abstração é pois ‘fisiológica’ ou ‘social’ — ou essa distinção não cabe? Os nervos e. os músculos são ‘forma de aparição’ do social — ou o social é ‘expressão’ e ‘apresentação’ dos nervos e dos músculos?”. (Castoriadis, art. cit., pp. 16-19; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 263, grifado por Castoriadis) Encontrase o mesmo motivo critico no artigo sobre a alienação como conceito sociológico publi cado por Claude Lefort, nos anos cinqüenta, nos Cahiers Intemationaux de Sociologie (e retomado em Les Formes de l'Histoire)\ “É que Marx cede, nesse caso, a uma inter pretação naturalista do trabalho, que vicia a sua descrição do trabalho social. Essa interpretação se dá a perceber em duas ocasiões, pelo menos; por um lado quando ele fundamenta a determinação do valor sobre o gasto do cérebro humano, por outro lado quando ele confunde a forma particular do trabalho e a sua forma natural: nessa perspectiva, o modo de trabalho capitalista só pode com efeito ocultar o real ou aparecer como ‘sobrenatural’.” (Claude Lefort, “L’Aliénation comme Concept Sociologique”, C. I. S., vol. XVIII, cahier double, nouvelle série, 2ème. année, Paris, P. U. F., 1955, p. 48, grifo nosso, republicado em Les formes de I'Histoire, essais d ’anthropologie politique, Paris, Gallimard, 1978; voltaremos ao texto também sobre a última parte do argumento.) (10) Ver tradução francesa de M. Husson e G. Badia, op. cit., p. 10. Tanto essa tradução como a de Maximilien Rubel e L. Evrard (Critique de 1’Économie Politique, in Marx, Oeuvres, Economie, I, op. cit., p. 281) traduzem tanto Subjekte como Individuen por “indivíduo”, o que é incorreto: enfraquece-se o texto, se a condição de sujeito não for posta — a posição está no texto de Marx — no nível da expressão. (11) Aqui não fizemos mais do que esboçar a análise da relação entre qualidade e quantidade do valor, a qual remete sobretudo a capítulos sobre a quantidade e a me dida da lógica do ser de Hegel. (12) A determinidade da simplicidade do trabalho, segundo um texto das Teo rias... é uma determinidade da qualidade. Ela permite entretanto pensar o trabalho complexo como potência do trabalho simples, e teoricamente, estabelecer uma relação quantitativa entre os dois. Mas diferentemente da relação entre um trabalho que se efetua segundo o tempo de trabalho socialmente necessário e um trabalho cuja efeti vação vai além ou fica aquém dele, essa relação, embora permita, ou deva permitir, como o último, o estabelecimento de uma relação quantitativa entre os dois termos (o trabalho complexo potência n do simples) se estabelece entre dois termos qualita tivamente diferentes (“simples”', “complexo”), o que não é o caso (se nos ativermos ao conceito) para dois trabalhos (ambos simples) de igual rendimento. Sobre essa relação
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entre quantidade e qualidade, ver Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 133; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 160. (13) “Ware und Geld” (Das Kapital, Erste Auflage, 1867, 1. Buch, Kapitei 1), in Studienausgabe, II, op. cit. , p. 226; Dognin, Les "Sentiers Escarpés" de Karl Marx, I, op. cit., p. 51. (14) Castoriadis escreve a esse respeito: “Faiar de tempo de trabalho socialmente necessário implica que se sabe o que significa ‘socialmente necessário’. Ora, entre as múltiplas significações dessa expressão nenhuma se sustenta, tratando-se da economia capitalista. Pode ser considerado como ‘socialmente necessário’ o tempo exigido pelo (trabalho efetuado na) empresa mais eficaz (...) Pode ser considerado, pelo con trário, como ‘socialmente necessário’ o tempo exigido pela empresa menos eficaz (...). Finalmente, pode ser considerado como ‘socialmente necessário’ o tempo médio consagrado à produção do produto levando em conta todas as empresas do ramo consi derado. A primeira interpretação pode ser eliminada, pois ela cónduz a resultados irreais e incoerentes. (...) a segunda interpretação (...) faz com que não subsista nada da ‘lei do valor’ e conduz em linha reta à concepção neoclássica do lucro como “quaserenda’ diferencial(...). Portanto, para ter uma ‘teoria do valor-trabalho’, sobra somente a terceira interpretação: o tempo ‘socialmente necessário' é o tempo médio. Mas esse tempo médio é uma abstração vazia, simples resultado de uma operação aritmética fictícia que não tem nenhuma efetividade e nenhuma eficácia no funcionamento real da economia: não existe nenhuma razão real ou lógica para que o valor de um produto seja determinado pelo resultado de uma divisão que ninguém fez nem poderia fazer. Para que esse fantasma adquira um pouco de carne, é necessário supor que as empresas que trabalham nas condições ‘médias’ constituem a maioria esmagadora das empresas do ramo considerado. Isto não é e nunca foi o que ocorreu na realidade do capitalismo”. (Castoriadis, art. cit., pp. 10-11; Les Carrefours du Labyrinthe, pp. 256-257) Sem pretender entrar no conteúdo econômico do problema, observemos que para Marx, se o trabalho socialmente necessário não corresponde nem ao tempo máximo (o da empresa menos eficaz) nem ao tempo mínimo (o da empresa mais eficaz), ele também não corresponde, necessariamente, ao tempo médio exigido para a produção da mercadoria (considerando o conjunto das empresas do ramo em questão, pondere-se ou não se gundo a quantidade das unidades produzidas). O trabalho socialmente necessário cor responde ao tempo que se impõe socialmente determinando o valor — isto é, em primeira instância, os preços. (Isto parece uma tautologia, mas na realidade não é; isto quer dizer: há um certo tempo social que aparece de forma mais ou menos modi ficada nos preços das mercadorias.) O tempo de produção de certas empresas ou grupos de empresas se situam em geral num nível intermediário de produtividade, eles não produzem necessariamente conforme o nível médio. Na realidade, as empresas que não produzem segundo o tempo de trabalho socialmente necessário — que elas produzam consumindo mais tempo ou menos tempo — são excluídas dessa determi nação (objetiva) do valor (o que só no caso de uma distribuição perfeitamente regular nos conduziria a médias), e é no interior das empresas dominantes que se estabelecem as médias que são portanto uma determinação segunda. (A fortiori, esta é a função das médias para o caso do trabalho simples.) Quanto à idéia de que as empresas que pro duzem segundo o tempo de trabalho socialmente necessário devem constituir “a maio ria esmagadora”, ela decorre da interpretação em termos de simples médias. A corre ção não é secundária porque ela questiona o pretenso papel das médias em Marx. Através das análises da última parte, veremos que o simples jogo das médias convém mal à análise do capitalismo (e que em certo sentido, para mercados limitados, sem dúvida, poderia mesmo convir melhor ao pré-capitalismo). Ora, se pensarmos a consti tuição do valor não como uma questão de médias mas como constituição de uma coisa social objetivada por um tempo que se impõe como o tempo social, a crítica em termos de “abstração vazia, simples resultado de uma operação aritmética fictícia (...)” , “resultado de uma divisão que ninguém fez nem poderia fazer”, perde, ao que parece, muito de sua força. Sobre a questão das empresas que trabalham com uma produti-
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vidade superior e em particular da questão da diferença entre “valor individual” e valor (Castoriadis, art. cit., p. 10, nota 8; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 256) observemos que Castoriadis sugere que se trata de uma espécie de deslizamento (glissement): “Certas fórmulas do livro III de O Capital ‘traem’ Marx a esse respeito (...)”. (Ibidem) Ora, seria preciso observar sobre isto: 1) que o problema é bastante desen volvido no capítulo 10, original (trad, francesa capítulo 12, “A produção da mais-valia relativa”, “a mais-valia relativa”) da quarta secção do livro I, capítulo que não se aborda, como seria de se esperar, nas observações de Castoriadis sobre esse assunto; 2) que a diferença entre valor individual e valor (sobre essa terminologia contraditória ver mais adiante) longe de ser um deslizamento é plenamente assumido por Marx (ver capítulo 10, original) e desempenha um papel essencial para a sua apresentação do movimento geral da concorrência (qualquer que seja a opinião que se possa ter sobre esta apresentação). (15) Castoriadis: “No mundo dos fenômenos, quase todos os trabalhos efetivos são complexos ou qualificados (pouco importa o grau desta ‘qualificação’ ou a sua extensão; basta, para que haja problema, que alguns trabalhos que pertençam à ‘base’ da economia o sejam). Ora, diz Marx, o trabalho complexo (ou qualificado) ‘não é senão uma potência (potenziert) do trabalho simples (...)'. Como sabemos disto? Por postulado metafísico e ao mesmo tempo fisiológico”. (Castoriadis, art. cit., pp. 13-14; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 260, grifado por Castoriadis) “Como pode mos operar a ‘redução’ do trabalho complexo a trabalho simples?” “A experiência mostra, diz Marx, que essa redução se faz constantemente.” “Mas o que se faz na experiência nunca é mais do que uma redução de fato: e ela não pode ser considerada sem círculo vicioso, como se traduzisse uma comensurabilidade de direito, substancial/ essencial, das diversas variedades de trabalho. A redução que se faz na experiência não é redução de todos os trabalhos a trabalho simples; ela é ‘redução’ de todos os traba lhos a dinheiro (ou a um outro ‘equivalente geral’ ou numerário socialmente instituído), o que não é absolutamente a mesma coisa, o que já sabíamos sem ‘teoria do valor’, o que ‘a teoria do valor’ deveria explicar — em vez de se basear nisso para existir como teoria.” (Castoriadis, art. cit., pp. 14-15; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 261, grifado por Castoriadis) (16) O capitalismo em sentido específico representa o momento mais elevado de um processo que já é uma história (não uma pré-história) do capital. Mas as análises do início de O Capital supõem precisamente um capitalismo plenamente desenvolvido, supõem o valor, o trabalho abstrato nas condições de um capitalismo plenamente desenvolvido, mas pondo entre parênteses a categoria do capital. Assim não há contra dição entre assumir aqui o capitalismo no sentido mais pleno (pregnant) e afastar do trabalho abstrato as determinações do trabalho assalariado, como faremos mais adiante. Ou antes, há contradição, mas é a contradição assumida pelo método de apresentação de O Capital. Ver a esse respeito o ensaio seguinte. Historicamente, a constituição do valor como do trabalho abstrato se faz de quantidade à qualidade: as determinidades da qualidade só se consumam (achèvent) com o capitalismo da grande indústria, quando se passa de um trabalho já simplificado (e já equalizado pelo tempo) ao trabalho simples. (17) O argumento já se encontra em Bõhm-Bawerk. Ver Bõhm-Bawerk, Karl Marx and the Close of his System, op. cit., pp. 81-86. (18) Para evitar confusões, lembremos que, como vimos, o problema da redução do trabalho complexo ao trabalho simples deve ser distinguido do problema do trabalho socialmente necessário. (19) Voltaremos eventualmente ao problema. Os tradutores da resposta de Hilferding a Bõhm-Bawerk dão uma indicação interessante sobre uma divergência, a esse respeito, entre o texto que Engels dá na quarta edição de O Capital e o texto original de Marx. Ver Hilferding, Bõhm-Bawerk Criticism of Marx, trad, de E. e C. Paul no volume editado por Sweezy, op. cit., pp. 143-144, nota dos tradutores. A nota é
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introduzida no nível da resposta de Hilferding a Böhm-Bawerk a respeito do problema da redução. (20) Por exemplo: “Os valores de uso são imediatamente meios de vida. Mas, inversamente, esses meios de vida são eles próprios produtos de vida social, resultado de um gasto de força vital humana, (são) trabalho objetivado (vergegenständlichte Arbeit). Enquanto materialização (Materiatur) do trabalho social todas as mercadorias são cristalização da mesma unidade”. (Werke, 13, Zur K ritik..., op. cit., p. 16, Con tribution à la Critique de l ’Économie Politique, op. cit., p. 8, grifado por Marx) (21) “Portanto, no ser-aí (Dasein) da mercadoria enquanto dinheiro não se deve somente ressaltar que no dinheiro as mercadorias se dão uma medida determinada da sua grandeza de valor — exprimindo todas o seu valor no valor de uso da mesma mercado ria — mas que elas se apresentam todas como ser-aí do trabalho social, abstratamente geral (der gesellschaftlichen, abstrakt allgemeinen Arbeit), forma na qual elas possuem todas a mesma configuração; elas aparecem todas como a encarnação imediata do trabalho social; e enquanto tais, elas têm todas a eficácia (alie (...) die Wirkung (...) haben) do ser-aí (Dasein) do trabalho social, elas são imediatamente trocáveis — na propor ção da sua grandeza de valor contra todas as outras mercadorias (...).” (Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., pp. 133-134; Théories sur la plus-value, III, op. cit., p. 161, grifo nosso) “Na apresentação da mercadoria enquanto dinheiro não está contido somente (o fato de) que as diferentes grandezas de valor das merca dorias são medidas pela apresentação do valor delas no valor de uso de uma mercadoria exclusiva; mas ao mesmo tempo que elas se apresentam todas sob uma forma na qual elas existem enquanto encarnação (Verkörperung) do trabalho social, e em conse qüência são trocáveis contra cada uma das outras mercadorias (que lhes são) traduzíveis à vontade em qualquer outro valor de uso.” (Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 128; Théories sur la plus-value, III, op. cit., p. 154, grifo nosso) “Esta transformação dos trabalhos dos indivíduos privados contidos nas merca dorias em trabalho social igual e, em conseqüência, em trabalho apresentável em todos os valores de uso, trocável em todos, esse lado qualitativo da coisa, que está contido na apresentação do valor de troca enquanto dinheiro, não é desenvolvido por Ricardo. Esta circunstância — a necessidade de apresentar o trabalho contido nelas como traba lho social igual, isto é, como dinheiro — não é vista por Ricardo.” (Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 128; Théories sur la plus-value, III, op. cit., p. 155, grifo nosso) Ver também sobre esse ponto Werke, 26, 2, Theorien über den Mehrwert, 2, op. cit., 1967, p. 505; Théories sur la plus-value, II, Paris, Éd. Sociales, 1975, p. 601. No “Materialen zur Rekonstruktion der Marxschen Werttheorie”, 2, in Gesellschaft, Beiträge zur Marxschen Theorie, 3, H. G. Backhaus acentua com razão a ligação entre a teoria do valor e a teoria do dinheiro, ligação que freqüentemente se perde de vista. Ele se baseia, entre outros, em textos como este: “O valor da merca doria enquanto base (Grundlage) permanece importante, porque o dinheiro só pode ser desenvolvido conceitualmente a partir desse fundamento (Fundament) e o preço se gundo o seu conceito geral só é em primeiro lugar o valor em forma-dinheiro (Geld form)". (Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 203; Oeuvres, Économie II, op. cit., p. 984) (22) “A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma social na qual os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro e na qual a espécie determinada de trabalho é para eles acidental e portanto indiferente. Aqui o trabalho se tornou não só categoria (Kategorie) mas na realidade efetiva (Wirklichket) um meio de criar a riqueza em geral, e enquanto determinação cessou de coincidir (verwachsen zu sein) com os indivíduos numa particularidade (in einer Beson derheit). Tal situação se dá (da maneira) mas desenvolvida (ist am entwickelsteh) na forma de existência mais moderna da sociedade burguesa — os Estados Unidos. Assim, só (erst) aqui a abstração da categoria ‘trabalho’, ‘trabalho em geral’, trabalho sans phrase, o ponto de partida da economia moderna, se torna verdadeira pratica mente (praktisch wahr). Assim, a abstração mais simples, a que a economia moderna
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dá (um lugar de) ponta (an die Spitze stellt) e que exprime uma relação (Beziehung) muito antiga (uralte) e válida para todas as formas sociais, sò aparece entretanto nessa abstração (como) praticamente verdadeira, como categoria da sociedade mais mo derna.” (Grundrisse, op. cit., p. 25, Einleitung) Ver “Introduction à la Critique de l’Économie Politique” in Contribution à la Critique de l'Économie Politique, trad. franc, de M. Husson e G. Badia, p. 168. Husson e Badia traduzem Wirklichkeit por "réalité” simplesmente e não por "realidade efetiva". O problema que contém a frase final, a da validade eventual das categorias em questão fora do capitalismo, será discu tido a partir de outros textos na secção III deste ensaio. (23) Hegel, Encyclopédie de sciences philosophiques, t. I, La Science de la Lo gique, trad. Bourgeois, op. cit., § 142, p. 393. ( 24) Esses dois momentos são pois interiores a uma história e não definem a ruptu ra de uma pré-história a uma história. Sobre esta diferença ver a secção III deste ensaio. (25) Não há contradição — ou antes é uma contradição assumida e justificada — em explicitar a simplicidade do trabalho fazendo intervir o capitalismo da grande indústria, e dizer ao mesmo tempo que o trabalho abstrato corresponde ao nível dos con ceitos da circulação simples. Ver a esse respeito a nota 16, e o ensaio seguinte. (26) E ainda “(...) Quando nos fixamos no trabalho como criador de valor, não o consideramos na sua configuração concreta enquanto condição da produção, mas numa determinidade social que é distinta do trabalho assalariado”. ( Werke, 25, Das ¡Capital, III, op. cit., p. 831; Oeuvres, Économie II, op. cit., p. 1431). (27) “O trabalho privado (Privatarbeit) deve assim se apresentar imediatamente como o seu contrário (Gegenteil) como trabalho social; esse trabalho transformado (verwandelte Arbeit) é enquanto seu contrário imediato (ihr unmittelbares Gegenteil) trabalho abstrato geral, que portanto se apresenta também num equivalente geral.” (Werke, 26, 3, Tkeorien über den Mejirwert, 3, op. cit., p. 133; Théories sur la Plusvalue, III, op. cit., pp. 160-161, grifado por Marx) Num outro texto Marx fala de contrariedade e de contradição: "A autonomização do valor de troca das mercadorias em dinheiro é ela mesma o produto do processo de troca, do desenvolvimento das contradições ( Widerspruche) entre o valor de uso e o valor de troca contido na merca doria e a contradição (Widerspruch) não menos contida nela, a saber que o trabalho determinado, particular do indivíduo privado deve se apresentar no seu contrário (Gegenteil), trabalho igual, necessário, geral, e, nessa forma, social". (Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, p. 128; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 154, grifo nosso) Num outro texto, Marx distingue a oposição da “contradição absoluta” (absoluter Widerspruch) que designa a “ruptura” da oposição: “Na crise, a oposição (Gegensatz) entre a mercadoria e a sua configuração-valor, o dinheiro, se eleva até a contradição absoluta (bis zum absoluten Widerspruch)”. (Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 152, grifo nosso; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 681, mas nessa versão que é a de Roy tem-se simplesmente "esta contradição rompe (éclate) no momento das crises...”) Pensamos a oposição valor/valor de uso e trabalho abstrato/trabalho con creto em termos de contrariedade; sendo a “contradição” aqui a ruptura dessa opo sição. (28) "A oposição interna (innere Gegensatz) entre valor de uso e valor envolvida na mercadoria é, assim, apresentada através de uma oposição externa, isto é, pela rela ção entre duas mercadorias, na qual uma mercadoria, aquela cujo valor deve ser expresso, só vale imediatamente como valor de uso, e a outra, pelo contrário, aquela em que o valor é expresso, só vale imediatamente como valor de troca. A forma simples do valor é assim a forma fenomenal simples da oposição, que ela contém, entre valor de uso e valor.” (Werke, 23, Das Kapital, I, pp. 75-76; Dognin, Les "Sentiers Escar p és”..., I, op. cit., p. 75, grifado por Marx, salvo “oposição”) “A ampliação e o aprofundamento históricos da troca desenvolvem a oposição entre valor de uso e valor que dormita (den schlummemden Gegensatz) na natureza da mercadoria.” (Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 102; Oeuvres, Économie I, op. cit., pp. 622-623, grifo nosso)
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(29) Os althusserianos criticaram a idéia de que há uma oposição entre valor e valor de uso, no quadro de urna critica da idéia de contradição. Ver texto citado mais adiante. Na primeira edição de Lire Le Capital, Macherey terminava mesmo o seu texto se perguntando se, apesar das dificuldades de uma generalização a partir “destas poucas páginas”, não conviria perguntar-se em que medida existe em O Capital uma lógica da contradição. (Pierre Macherey, “A propos du processus d’exposition du Capi tal” , in L. Althusser, J. Rancière, P. Macherey, Lire Le Capital, I, Maspero, 1967 (1965), p. 256) (30) Em Aristóteles a substância primeira é o indivíduo. As substâncias segun das, o gênero e as espécies. Como aqui e anteriormente eu cito Aristóteles, e como no texto de Castoriadis se trata da leitura que Marx faz de Aristóteles, preciso que as citações terão sempre como único objeto ajudar a compreender as categorias de O Capital (inclusive no nível do discurso de Marx sobre Aristóteles), mas que não se discutirá aqui o problema de saber se a leitura que Marx faz de Aristóteles (particu larmente de certo texto da Ética a Nicômaco, referidos no artigo de Castoriadis) é rigorosa. (31) Falamos aqui de conflito. Poderíamos empregar também otermocontradiçâo, embora (aqui) em sentido secundário. Sobre a contradição, ver a secção III deste ensaio. (32) Ver a citação de Verri por Marx: “O dinheiro é a mercadoria universal”. (Verri, Meditazioni sulla economia política; Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 104, nota 44; ver trad. Roy, 1, I, t. I, op. cit. p. 100, n. 23) (33) Ver Althusser, “Avertissement aux lecteurs du livre I du Capital", inLe Capi tal, 1. I, Paris, Garnier-Flammarion, 1969, p. 22. Ver a nota 46 do ensaio anterior. (34) Hegel, Enzyclopàdie der philosophischen Wissenschàften im Grundrisse (1830), Erster Teil, Die Wissenschaft der Logik..., § 119, Zusatz 1, in Hegel, Werke, op. cit., p. 246. Encyclopédie des Sciences Philosophiques, I, La Science de la Logique, § 119, addendum 1, trad. B. Bourgeois, op. cit., p. 554, grifado no texto. (35) Ver também a esse respeito, entre outros, o texto freqüentemente citado de Schumpeter sobre a relação entre Marx e Ricardo. Evidentemente esta reiteração da critica não prova nada: nem contra nem a favor. (36) “O erro de Ricardo é que ele só se ocupa da grandeza de valor. Em conse qüência, ele só tem em vista o quantum relativo de trabalho que apresentam as dife rentes mercadorias, que elas contêm encarnado nelas enquanto valores. Mas o trabalho contido nelas deve ser apresentado como trabalho social, como trabalho iñdividual alienado (entausserte).” (Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 128; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., pp. 154-155, grifado por Marx) “Encon tram-se, entretanto, passagens isoladas, em Ricardo, em que ele salienta diretamente que a quantidade do trabalho contido numa mercadoria só (é) a medida de sua gran deza de valor, das diferenças de grandeza do seu valor, porque o trabalho é aquilo em que as diferentes mercadorias são iguais, sua unidade, sua substância, o fundamento interno de seu valor. O que ele deixou de pesquisar é somente em que forma determi nada o trabalho é isto.” (Werke, 23, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 135; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 163, grifado por Marx) (37) “Todas as mercadorias podem ser resolvidas em trabalho (labour) como sua unidade. O que Ricardo não investiga, é a forma específica em que o trabalho (labour) se apresenta como unidade das mercadorias. Por isso, ele não compreende o dinheiro. Por isso, a transformação da mercadoria em dinheiro aparece nele como algo puramente formal, e não (como algo) que penetre o âmago da produção capitalista. Mas ele diz somente isto: só porque o trabalho é a únidade das mercadorias, só porque elas são somente apresentações da mesma unidade, o trabalho (labour) é a sua medida (mesure). Ele é medida delas somente porque é sua substância enquanto valores.” (Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 136; Théories sur la Plusvalue, III, op. cit., p. 163, grifado por Marx) (38) Ver a esse respeito “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-humanismo” e “Circulação de Mercadorias, Produção Capitalista”, neste tomo.
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(39) Entre outras dificuldades. Ver a crítica que Marx faz a Smith na terceira secção do livro II de O Capital. (40) Esta filiação é de resto indicada, num contexto crítico, por Castoriadis, art. cit., pp. 8-9; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., pp. 254-255. (41) Esta referência tem limites. Primeiramente, o movimento que vai da subs tância ao sujeito não pode ser assimilado sem mais à Fenomenología do Espírito: não se trata de passagem de consciência à ciência etc. (O movimento descrito pela Fenome nología do Espírito incide entretanto em outros níveis do pensamento de Marx.) Em geral, deve-se pensar, antes, na Lógica de Hegel. Mas mesmo para a Lógica, a relação não é absolutamente imediata. Salvo na sua significação mais geral (ver digressão), não desenvolvemos aqui o lado não hegeliano de Marx. O problema da diferença MarxHegel — que nunca foi tratada de maneira rigorosa — só poderá ser resolvida quando o problema do hegelianismo de Marx for bem estudado. Ora, apesar das aparências, o estudo deste último problema está ainda no começo. (42) E, nesse sentido, ele se situa numa linha que vai de Aristóteles a Hegel, passando por Leibniz. (43) Em termos simples, eis o sentido da démarche de Marx: o valor — que aparece nos preços — é, sem dúvida, uma coisa social, ele não £ uma relação que os agentes estabelecem subjetivamente. O que há “atrás” do valor, e portanto "atrás” dos preços? Essa pergunta parece se impor. Existe alguma coisa, a saber, o trabalho como abstração. E como exprimir esse “algo" de que é constituído o valor? Nada parece exprimi-lo melhor do que a noção de substância nas suas três referências: ele é coisa, ele é coisa fluida, ele é coisa que só é, ainda, num primeiro nivel da sua autonomização (se se comparar com a coisa social capital: a substância que se tornou sujeito). (44) O argumento é utilizado contra os clássicos: se os clássicos não "substancializam” o valor, eles fazem dele, de qualquer forma, o fundamento racional dos pre ços, o que já era demais para gente como Bailey. Sobre Bailey e outros, ver Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., pp. 105 e segs.; Théories sur la Plusvalué, III, op. cit., pp. 126 e segs. (45) Observemos que o próprio Marx precisou de muitos anos para se convencer disso, já que ele nas suas obras de juventude fez uma crítica dos clássicos que (no que se refere a um dos seus lados) tinha um caráter pré-hegeliano. Ver os textos das obras de juveñtude — sobretudo as notas sobre os Elementos de Economía Política de James Mili (notas que são anteriores aos Manuscritos de 44) — em que Marx critica os economistas clássicos porque consideram médias abstratas como coisas reais. Aliás, Castoriadis se refere a isto. (Art. cit., p. 52, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 300) (46) “Die Wertform” (apêndice à primeira edição de O Capital) in MarxEngels, Kleine Ökonomische Schriften, Berlim, Dietz Verlag, 1955, p. 271. Ver Dognin, Les "Sentiers Escarpés”..., I, op. cit., pp. 130 e 132. O texto já foi citado parcialmente por J. Rancière, Lire Le Capital, III, Maspero, 1973, p. 50. (47) Trata-se do autor anônimo de Observations on Certain Verbal Disputs in Political Economy, particularly relating to Value and to Demand and Supply, Londres, 1821. Texto de crítica “nominalista” da economia política, cuja linha será continuada por Bailey. Ver a esse respeito o capítulo 20, § 3 do volume III das Teorias sobre a mais-valia. (48) Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 134; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 162, grifo nosso. Esse texto foi citado parcialmente por Backhaus, “zur Dialektik der Wertform”, in Beiträge zur marxistischen Erkennt nistheorie, publicado por Alfred Schmidt, Frankfurt, Suhrkamp, 1969, p. 138; “Dialectique de la forme valeur” (sic), in Critiques de VÊconomie Politique, Maspero, n? 18, out.-dez., 1974, p. 17. As contradições que estão ausentes da “expressão verbal da coisa”, é necessário entendê-las aqui no sentido corrente, pejorativo, do termo “contra dição”.
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(49) Como dissemos, não desenvolveremos aqui uma discussão sobre o problema do fetichismo. Trata-se antes de analisar o estatuto do trabalho abstrato e do valor (ou antes, trata-se de mostrar como o seu caráter se revela) no quadro do texto célebre de Marx sobre o fetichismo. (50) A rigor, a produção capitalista enquanto produção de mercadorias. (51) Como já vimos, em “L’aliénation comme concept sociologique”. (Cahiers internationaux de Sociologie, art. cit.) Lefort critica Marx, a propósito desse ponto, por confundir “a forma particular do trabalho e sua forma natural”, (p. 48) “Entretanto, não tem nenhum sentido definir um trabalho natural em si, ou considerar que a parti cularidade é mais natural do que a generalidade.” (Ibidem) O alcance dessa crítica é duvidoso. Marx quer dizer que a forma social — isto é, a forma que devem tomar os produtos do trabalho para servir socialmente, para serem consumidos por outrem — é, nas sociedades não capitalistas-mercantis, a forma imediata, a forma natural. Seria uma ilusão ou uma confusão dizer que a forma imediata — isto é, a forma sensível, o objeto com todas as suas propriedades sensíveis — é a forma natural, em oposição à forma “reduzida”, em que suas propriedades desaparecem? A crítica é compreensível (mas não justificável) se se supuser que o trabalho abstrato é não a forma reduzida, mas simplesmente a forma geral; nesse caso, com efeito, por que supor que a utilidade particular é mais concreta do que a utilidade em geral? Mas, como vimos, não se trata (só) disto em Marx. (52) Quando há troca, a coisa é mais complicada; nós a discutiremos na secção III. Digamos desde já que a troca só é, entretanto, condição necessária, não condição suficiente para a existência do valor e do trabalho abstrato. (53) Hegel retoma várias vezes na sua obra a questão do argumento ontológico. Como se sabe, ele critica Kant por ter — entre outras coisas — tomado como exemplo algo, os cem talers, que é não um conceito mas uma representação. (54) No que se refere à possibilidade de conciliar abstração real e materialismo, as idéias desse desenvolvimento final não são essencialmente diferentes das de J. A. Giannotti na introdução das Origens da Dialética do Trabalho: "Ê nessa perspectiva que tentaremos mostrar que o texto fundamental sobre o qual se baseia a interpretação de Althusser permite uma outra leitura, para indicar em seguida como se pode admitir que o universal concreto faz parte da realidade, sem cair por isso no idealismo ou no empirismo (...). Contra Althusser, afirmamos que uma tal reflexão é possível unica mente porque tem lugar, na própria realidade, um processo de constituição categorial, oposto ao devir do fenômeno, processo que configura a essência de um modo de produção determinado, e em conseqüência de uma forma de sociabilidade. A essência faz parte de cada momento do concreto, sem entretanto esgotar todas essas dimensões; de tal modo que o discurso se torna científico só quando reproduz a ordem dessa constituição ontológica (...). A mesma coisa pode ocorrer com a categoria marxista quando se descobre um processo de abstração real que opera para além da investigação científica. É a única maneira de conservar o materialismo da doutrina. Entendida assim, a abstração não seria semelhante à operação que retira o ouro da ganga, e o seu produto, o conceito, não resultando de um processo exterior ao objeto, será o próprio objeto na medida em que se situa o objeto primitivo no nível da realidade social”. (Giannotti, op. cit., pp. 11, 14 e 15, grifado pelo autor, trad. nossa) A idéia de abstração real é de algum modo uma constante do pensamento marxista (ou em geral dialético) de língua alemã: Luckács sem dúvida (em História e Consciência de Classe sobretudo, mas a idéia de reificação não deixa de levantar algumas dificuldades que examinaremos em outro lugar), e sobretudo Adorno, para citar só os maiores (no que concerne a Adorno, ver, por exemplo, as citações que faz dele Backhaus: “O princípio da equivalência do trabalho social faz da sociedade um abstrato e o mais real (efetivo) precisamente como Hegel o ensina do conceito enfático do conceito”, Drei Studien zu Hegel, Frankfurt, 1963, p. 32; citado por Backhaus, “Materialíen zur Rekonstruktion der Marxschen Werttheorie”, 1, in Gesellschaft..., 1, op. cit. , p. 64). “O valor de troca diante do valor de uso, (algo) puramente pensado (ein bloss Gedachtes) reina sobre
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a necessidade humana (Der Positivismusstreit in der deutschen Soziologie, Neu wied, 1969, p. 94; citado por Backhaus, “Materialien...”, I, op. cit., p. 64) Observemos que, num apêndice à sua tese de doutoramento, Marx faz uma referência explícita ao argumento ontológico e tenta reabilitá-lo, mas num contexto que, se ultrapassa sem dúvida o universo feuerbachiano, tem ainda alguma coisa de subjetivo. É de qualquer modo interessante citar esse texto de juventude: "O antigo Molloch não reinou? O Apoio de Delfos não era uma força efetivamente real na vida dos gregos? Aqui, também a crítica de Kant não procede (heisst... nicht). Se alguém supõe (sich vorstellt) possuir cem talers, se essa representação não for para ele uma representação qualquer, subjetiva, se ele acredita nela, os cem talers imaginados têm para ele o mesmo valor que cem talers efetivamente reais. Por exemplo, ele contrairá dívidas com base (auf) da sua imaginação, ela terá eficácia (wirken) do mesmo modo (wie) que o conjunto da humanidade contraiu dívidas com base nos seus deuses. Pelo contrário, o exemplo de Kant poderia fortalecer o argumento ontológico. Talers efeti vamente reais têm a mesma existência que deuses imaginados. Um taler real tem existência em algum lugar que não seja a representação, ainda que uma representação universal ou antes social dos homens? Introduza papel-moeda num país em que não se conhece esse uso do papel, e todos rirão da sua representação subjetiva. Venha com os seus deuses a um país em que estão em curso (gelten) outros deuses, e lhe provarão que você sofre de imaginações e de abstrações (...)”. (Werke, Ergänzungsband, “Anmer kungen zur Doktordissertation”, “Anhang”, op. cit., p. 370, grifado por Marx, ver “Dissertation, Appendice”, in Marx, Différence de la Philosophie de la Nature chez Démocrite et Epicure, trad. franc., introdução e notas por Jacques Ponnier, Ducros, Bordeaux, 1970, p. 285, 6) (55) A referência ao valor enquanto hipótese se encontra, segundo Engels, num artigo de Schmidt sobre o livro III de O Capital, publicado na Sozialpolitisches Cen tralblatt (Berlim) de 25 de fevereiro de 1895 (n? 22). A referência à ficção, sempre segundo Engels, está numa carta de Schmidt a Engels. As respostas de Engels a Schmidt se encontram em Werke, 39, op. cit., 1973, pp. 430-434 (carta de Engels a Schmidt de 12 de março de 1895) e p. 46 (carta de Engels a Schmidt de 6 de abril de 1895). Engels retoma o problema e desenvolve a sua posição em “Ergänzung und Nachtrag zum III, Buche des ‘Kapital’, I. Wertgesetz und Profitrate", Werke, 25, op. cit., pp. 904 e segs.; trad. franc. “Supplément (complément e supplément au livre III du Capital)'', 1895, in Le Capital, 1. III, t. I (VI), trad. de Mme. C. Cohen-Solal e Gilbert Badia, Ed. Sociales, 1957, pp. 30 e segs. (56) O valor do conjunto das mercadorias produzidas por um setor de produção, supondo uma rotação do capital circulante, é igual a c + v + pl, em que c é o capital constante consumido, v o capital variável e pl a mais-valia. O preço de produção do conjunto das mercadorias é igual a c + v (soma que aparece como preço de custo) + p, o lucro médio (sendo este último igual ao produto da totalidade do capital investido — e não somente a parte consumida — pela taxa média de lucro). Voltaremos a isso. (57) Engels dá uma primeira resposta, que se vale da distância entre o conceito e a realidade, na carta de 12 de março de 1895. (Werke, 39, op. cit., pp. 430-434) Na carta de 6 de abril de 1895 (idem, p. 461) ele anuncia uma retomada do problema. (58) Werke, 25, op. cit. “Ergänzung und Nachtrag...” , p. 904; ver Le Capital, 1. III, t. I (VI), “Supplément”, op. cit., pp. 30-31. (59) Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 186; Le Capital, 1. HI, t. I (VI), p. 193; Oeuvres, Économie II, op. cit., pp. 969-970. Texto citado adiante, na nota 73. (60) Werke, 25, op. cit., “Ergänzung und Nachtrag...”, p. 909; Le Capital, 1. III, t. I (VI), “Supplément”, op. cit., p. 35. (61) Ver por exemplo: L. Althusser, “L’objet du Capital", in L. Althusser e E. Balibar, Lire Le Capital, I, Maspero, 1968, pp. 97-100; Carlo Benetti, Claude Berthomieu e Jean Cartelier, Économie Classique/Économie vulgaire, Presses Universitaires de Grenoble-Maspero, 1975, p. 98 (resenha do texto de Hilferding sobre Böhm-Ba-
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werk); Pierre Salama, “À nouveau sur la transformation des valeurs en prix de produc tion”, in Cahiers d ’Économie Politique, 3, Actes du Colloque Sraffa, Amiens, P.U.F., 1976, p. 86. (62) Ê verdade que, antes do capitalismo, a lei do valor téria, segundo Engels, uma validade geral e direta, o que deixaria em aberto a possibilidade de uma validade indireta... Mas primeiro, o inicio do texto diz simplesmente que a lei é válida em geral até a emergência do capitalismo, o que parece, sem dúvida, excluí-la deste, e por outro lado, toda a argumentação de Engels se constrói e se funda no pré-capitalismo, como se o espaço deste último fosse por excelência o da lei do valor. (63) E, caso a análise confirme que há efetivamente erro por parte de Engels, se proporia também a questão: por que finalmente o velho Engels se engana, ele que, afinal de contas, conhecia bem o problema? (64) Castoriadis, art. cit., pp. 20 e segs. ; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 267. (65) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., pp. 73-74. Ver Dognin, Les "Sentiers Escarpés"..., I, op. cit., pp. 201-202. (66) Castoriadis, art. cit., pp. 20-21; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 267, grifado por Castoriadis. (67) Castoriadis, art. cit., pp. 18-19, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., pp. 265-266, grifado por Castoriadis. (68) Werke, 13, Zur Kritik derpolitischen Okonomie, op. cit., p. 44; Contribu tion à la Critique de l ’Économie Politique, trad. de Maurice Husson et Gilbert Badia, Ed. Sociales, 1957, p. 35. (69) Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 97; Le Capital, 1. III, t. I (VI), op. cit., p. 105. O texto diz que só o capital realiza (realisiert) a determinação do valor. Mas ele diz ao mesmo tempo que a determinação do valor é não o tempo de trabalho em gérai, mas o tempo de trabalho socialmente necessário. E o valor nâo é se essa determinação não for realizada. (70) Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 298; Oeuvres, Économie II, op. cit., pp. 1061-1062. (71) Para as sociedades em que não há troca, ver a secção II deste trabalho, em que comentamos o parágrafo 4 sobre o fetichismo do capítulo 1 de O Capital, em particular a comparação que Marx estabelece entre por um lado o capitalismo, e por outro, diferentes formas não capitalistas. Como vimos, é por erro que Castoriadis pode falar de valor a propósito desse caso. (72) A análise dos capítulos 1 e 2 do livro I é de ordem lógica, mas ela está entrecortada por desenvolvimentos históricos. (73) “A troca de mercadorias começa lá onde terminam as comunidades, nos seus pontos de contato com comunidades estrangeiras ou com membros de comuni dades estrangeiras (...). Sua relação de troca quantitativa é de inicio totalmente aci dental. Elas são trocáveis através de ato de vontade daqueles que as possuem (Besitzer), (ato de vontade que consiste em) aliená-las reciprocamente. Entretanto, a necessidade de objetos de uso estrangeiros se fixa progressivamente. A repetição constante da troca faz dela um processo social regular. Com o correr do tempo, pelo menos uma parte dos produtos do trabalho deve ser produzida intencionalmente com vistas à troca. A partir desse momento se consolida, por um lado, a separação entre a utilidade das coisas para a necessidade (Bedarf) imediata e sua utilidade para a troca. Seu valor de uso se separa do seu valor de troca. Por outro lado, a relação quantitativa em que elas se trocam se torna dependente da sua própria produção. O hábito as fixa como grandezas de valor ( Wertgròssen). (...)(...) Uma circulação em que os possuidores de mercadorias trocam e comparam os seus próprios artigos com diversos outros artigos nunca se encontra, sem que diversas mercadorias de diversos possuidores de mercadorias, no interior da sua circulação ( Verkehr) sejam comparadas como valores com uma e mesma terceira espécie de mercadorias.” (Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., pp. 102-103; Oeuvres, Économie, I, op. cit., pp. 623-624, grifo nosso) “Independentemente (abgesehen), pois,
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da dominação dos preços e do movimento dos preços pela lei do valor, é, pois, intei ramente apropriado considerar os valores das mercadorias não só teoricamente mas também historicamente como anteriores (das prius) aos preços de produção. Isto vale para as situações em que os meios de produção pertencem ao trabalhador, e esta situação se encontra tanto no mundo antigo quanto no mundo moderno, para o (caso do) camponês que possui a terra e a trabalha por si mesmo, como para o (caso do) artesão. Isto concorda também com a nossa opinião, emitida anteriormente, de que o desenvolvimento dos produtos em mercadorias surge através da troca entre diferentes comunidades, e não entre os membros de uma e mesma comuna. Como para essa situação originária, isto vale para situações posteriores, fundadas na escravidão e na servidão, e para a organização corporativa do trabalho artesanal, enquanto os meios de produção imobilizados em cada ramo de produção só podem ser transferidos com dificuldade de uma esfera a outra e que, no interior de certos limites, as diferentes esferas da produção se relacionam umas às outras como países estrangeiros ou comu nidades comunistas. / Para que os preços pelos quais se trocam entre si as mercadorias correspondam aproximadamente aos seus valores, é necessário somente 1) que a troca entre diferentes mercadorias deixe de ser puramente acidental ou ocasional; 2) que, na medida em que consideramos a troca direta de mercadorias, estas mercadorias sejam produzidas de um lado e do outro em quantidades relativas que correspondam apro ximadamente às necessidades recíprocas, (coisa) a que leva a experiência da venda, e o que brota assim como resultado do próprio intercâmbio contínuo; e 3) na medida em que falamos de venda, nenhum monopólio natural ou artificial possibilite a uma das partes contratantes vender acima do valor ou a force a vender abaixo dele.” (Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., pp. 186-187, Le Capital, 1. III, t. I (VI), op. cit., pp. 193-194; Oeuvres, Economie, II, op. cit., pp. 969-970, grifo nosso) E o início desse texto que Engels cita. (74) A resposta que consiste em dizer que antes do capitalismo há forma do valor, expressão do valor (valor de troca), mas não valor, não é incorreta, mas ela não permite responder, a nosso ver, a todos os problemas que levantam os textos. (75) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 102; Oeuvres, Economie, I, op. cit., texto citado anteriormente. (76) Aristóteles, De la Génération et de la Corruption, I, 317 b, 15, trad. franc. de Charles Mugler, Les Belles Lettres, Paris, 1966, p. 11, grifo nosso. (77) Descrevendo em Le Temps retrouvé o que ele chama de maturação (maturation), a do ser-escritor do narrador, Proust se exprime igualmente por uma contra dição: “E compreendi que todos aqueles materiais da obra literária eram a minha vida passada; compreendi que eles não tinham vindo a mim, nos prazeres frívolos, na pre guiça, na ternura, na dor, armazenados por mim, sem que eu adivinhasse mais o seu destino, a sua própria sobrevivência, do que a semente ao pôr de reserva todos os alimentos que alimentarão a planta. Como a semente, eu poderia morrer quando a planta se tivesse desenvolvido, e eu me encontrava tendo vivido para ela sem o saber, sem que a minha vida parecesse jamais ter de entrar em contato com aqueles livros que eu gostaria de escrever e para os quais, quando outrora me sentava à minha mesa, não encontrava assunto. Assim, toda a minha vida até o dia de hoje poderia e não poderia ser resumida sob esse título: uma'vocação. Ela não poderia ser no sentido de que a literatura não havia desempenhado nenhum papel na minha vida. Ela poderia ser porque esta vida, as lembranças de suas tristezas, de suas alegrias, formavam uma reserva semelhante a esse albúmen que está contido no óvulo das plantas e do qual este obtém seu alimento para se transformar em semente, nesse tempo em que se ignora ainda que o embrião de uma planta se desenvolve, o qual é entretanto o lugar de fenômenos químicos e respiratórios secretos mas muito ativos. Assim a minha vida se relacionava com aquilo que levaria à sua maturação”. (Proust, Â la Recherche du Temps perdu, Le Temps retrouvé, Paris, Gallimard, 1964, p. 262, trad. nossa, grifo nosso)
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(78) É verdade que, como vimos, Castoriadis considera a possibilidade de urna terceira resposta: “A economia capitalista faz enfim com que apareça aquilo que, desde sempre, estava lá oculto, a igualdade/identidade substancial/essencial dos homens e dos seus trabalhos, até então encoberta por representações "fantásticas”. (Art. cit., p. 19, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 266, grifado por Castoriadis) Esta resposta corresponde ademais, no texto de Castoriadis, à idéia de que antes do capitalismo o valor existiria “em potência” (e a existência no nível de uma pré-história é justa mente, em Aristóteles, como acabamos de ver, uma existência em potência). “(...) do mesmo modo o ‘valor de troca’ da economia capitalista é a Epifania do Valor, a apre sentação/manifestação/expressão/figuração daquilo que estava lá sempre, desde sem pre e no sempre (datis le toujours) mas somente em potência, dünamei: o trabalho.” (Art. cit., p. 17, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 264, grifado por Casto riadis) “(...) Marx pode pensar que o capitalismo poderia fazer ser (faire étre) alguma coisa que já não estivesse lá, pelo menos em potência?” (Art. cit., p. 19, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 266) Por outro lado, pelo menos uma vez Castoriadis vai até exprimir a contradição: “O capitalismo não pode pois senão fazer aparecer, ele ‘revela’ a humanidade a ela mesma — a humanidade — a humanidade que até então se acreditava mágica, política, jurídica, teológica, filosófica, e que aprende através do capitalismo a sua verdadeira verdade: que ela é econômica, que a verdade da sua vida sempre foi produção, a qual é cristalização em valores de uso desta Substância/Essên cia, o Trabalho. Mas se se ficasse lá, a verdade revelada pelo capitalismo seria verdade pura e simplesmente (tout court): o que implicaria, politicamente a inanidade de toda revolução e, filosoficamente, um novo (e sinistro) ‘fim da história’ já realizado. Por tanto, esta verdade é e não é verdade', o capitalismo dá aparência do Mesmo àquilo que não o é (redução, fetichismo) — e o estágio superior do comunismo poderia enfim levar em conta a verdadeira e plena verdade, a incomparabilidade e a alteridade irredutível dos indivíduos humanos”. (Art. cit., pp. 19-20, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 266, grifo nosso) Ê o que diz Castoriadis. Entretanto, se essas referências mostram ainda uma vez que ele estava próximo da solução — “próximo” quer dizer aqui sepa rado por um salto — elas não mostram mais do que isto. Primeiramente, observemos que, se a existência numa pré-história é uma existência “em potência”, é bem pouco falar desta última, se não se mostram as implicações lógicas da idéia de pré-história, as quais, somente, dão à resposta um estatuto rigoroso. Dever-se-ia dizer que ele chegou à solução, porque em seguida ele se exprime por uma contradição? Não o cremos, pelas seguintes razões. Nos textos em que Castoriadis está de certo modo no limite extremo do seu pensamento (ou antes, em que o seu dizer vai além do seu pensamento) ele vai de fato até dizer a contradição ou uma contradição em Marx. Mas, fazendo-se abstração de saber se ele a situa corretamente, é preciso observar que: 1) ele não vai até “susten tar” a contradição, isto é, até conservá-la como o lado racional, e isto é o essencial; 2) ele não chega mesmo a se deter nela, a refletir sobre as condições de possibilidade ou sobre as possibilidades de verdade de uma resposta contraditória. Eis porque — e é ainda o essencial — que ele a exprima ou não, ele chamará a contradição (ver mais acima e mais adiante) “antinomia”, “oscilação”, "paradoxo”, e a tratará enquanto tal. (79) Esta correspondência entre o desenvolvimento da realidade e o da consciên cia, nós a reencontramos com uma diferença, num texto do livro III de O Capital sobre a relação entre o desenvolvimento do juro enquanto parte do lucro, e das teorias sobre o juro. A diferença (em relação ao texto sobre Aristóteles) é que se trata aqui dos começos (de uma história) e não das origens (isto é, de uma pré-história): “A melhor prova da autonomia, em que, nos primeiros períodos do capitalismo, o juro aparece em relação ao lucro, e o capital que produz juro em relação ao capital industrial, é que é só na metade do século XVIII que foi descoberto o fato (por Massie e depois dele por Hume) de que o juro é uma simples parte do lucro bruto, e que em geral se precisou fazer tal descoberta”. (Werke, 25, Das Kapital III, op. cit., pp. 389-390; Le Capital, 1. III, t. II (VI), op. cit., p. 42; Oeuvres, Économie II, p. 1137) As traduções francesas
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substituem aparece (erscheint) por é (est); a primeira expressão não só se encontra no texto, como convém melhor em se tratando de uma história. (80) Castoriadis, art. cit., pp. 12-13, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., pp. 259-260. (81) Ibidem. (82) A rigor, a sua composição de valor. (83) Werke, 25, Das Kapital III, op. cit., p. 158, Le Capital, 1. III, t. I (VI), op. cit., p. 166, grifo nosso. (84) Ibidem. (85) Werke, 25, Das Kapital III, op. cit., p. 162, Le Capital, 1. III, t. I (VI), op. cit., p. 170; Oeuvres, Économie II, op. cit., p. 945, grifo nosso. (86) Ibidem. (87) Se eles conservam lado a lado a essência e o fenômeno, a essência, pelo fato mesmo de ser essência, prevalece sobrei o fenômeno. De resto, cotno veremos mais adiante, Ricardo encara às vezes os desvios deste último em relação à primeira como exceções a ela. (88) Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 64; Théories sur la Plus-value III, op. cit., p. 77, grifado por Marx. (89) Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 65; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 78, grifado por Marx. Como explicam os editores, diferen temente do que ele faz em O Capital, Marx emprega às vezes, nas Teorias sobre a Mais-valia, o termo Kostpreis ou Kostenpreis (preço de custo) no sentido de preço de produção. (Ver Werke, 26, 3, Theorien... III, op. cit., pp. 593-594, n. 6 dos editores) Este parece ser o caso no texto. (90) Werke, 26, 2, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 171; Théories sur la Plus-value, II, op. cit., p. 194, grifado por Marx. (91) “No caso, esse termo deve ser entendido (...) no sentido de preço de produ ção.” (Nota 6 dos editores, Werke, 26, 3, Theorien..., III, op. cit., p. 593, "Anmerkungen”) (92) Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 8; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 9. (93) Também aqui Kostpreis parece querer dizer preço de produção. (94) Torrens, grifado por Marx. A continuação é de Marx. (95) Poderíamos dizer que, até aqui, Marx está de acordo com Torrens. Ver mais adiante. (96) Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, III, op. cit., pp. 66-68; Théo ries sur la Plus-value, III, op. cit., p. 81. (97) Isto não contradiz o que foi dito sobre o fenômeno (a propósito do trabalho abstrato) na primeira parte deste texto. Trata-se aqui de um fenômeno que é categorial (o lucro) e não simplesmente da ordem do vivido como a experiência da indiferença do trabalho. De um modo mais geral, observemos que temos aqui uma aparição negada da essência, enquanto que na primeira parte, onde se tratava da circulação simples, a essência ainda não aparecia. (98) Aqui analisamos o problema da relação (lógica) entre formas históricas, a saber, a produção de mercadorias ou os “bolsôes mercantis” no pré-capitalismo, e o capitalismo. No texto de Marx, se trata da passagem da produção simples como aparência do sistema, ao capitalismo enquanto capitalismo (à sua essência), problema de que tratamos no primeiro e sobretudo no quarto ensaio. Mas o texto de Marx, que citamos, serve também para o problema da relação (lógica) entre formas históricas. (99) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 613; Oeuvres, Économie, I, op. cit., p. 1090. (100) “Veremos, resumidamente, que essas operações são ‘na verdade’ impossí veis, que o Valor e a Substância (como de resto a sua grandeza), longe de ser “deter minados”, são antes nebulosas de enigmas, e que esta situação está profundamente firmada no caráter antinómico do pensamento de Marx.” (Castoriadis, art. cit., pp.
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9-10, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 256, grifo nosso) “Um Valor e qualquer outra coisa Só poderia ‘adquirir’ tal forma particular se ele já estivesse lá. O paradoxo, a antinomia do pensamento de Marx é que esse Trabalho que modifica tudo e se modifica constantemente, ele próprio, é ao mesmo tempo pensado sob a categoría da S u b s t â n c i a / e s s ê n c i a (Castoriadis, art. cit., p. 17, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 264, grifo nosso). “A antinomia que perpetuamente divide o pensamento de Marx entre a idéia de uma ‘produção histórica’ das categorias sociais (e do pensamento) e a idéia de uma ‘racionalidade’ última do processo histórico (...) se descobre aqui.” (Castoriadis, art. cit., p. 20, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 267, grifo nosso) (101) Ver a esse respeito a segunda parte deste texto. (102) Castoriadis, art. cit., p. 21, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 268. (103) Dir-se-á talvez que seria preciso analisar igualmente os outros textos de Castoriadis, em particular aqueles em que ele faz a crítica da idéia clássica de teoría. Chegaremos lá. Mas observemos desde já que o que ele diz sobre a relação entre teoría e política em Marx é sumário, e tem o defeito de projetar o pensamento de Marx na tradição clássica.
4 Circulação de mercadorias, produção capitalista
Marchands, Salariat et Capitalistes, de C. Benetti e J. Cartelier,1 se apresenta como “um esboço dos princípios gerais da teoria da mer cadoria, da relação salarial e do capital” (p. 7), esboço que pretende ser uma démarche original em relação à economia clássica, à economia neoclássica e à crítica da economia política de Marx. Nosso texto não terá por objeto — ou por objeto imediato — nem as teses positivas do livro, nem o conjunto dos desenvolvimentos críticos que visam essas alternativas, mas somente os que se referem à obra de Marx. Entre tanto, nossos resultados devem ter conseqüências para a apreciação do conjunto da obra. Por outro lado, precisamos que, embora o ponto de partida e o final sejam a crítica do livro de Benetti e Cartelier, julgamos oportuno dar um desenvolvimento maior a vários pontos relativos à obra de Marx. Apresentamos, assim, os nossos próprios resultados, aos quais voltaremos em outro lugar, em forma mais sistemática. Se a crítica da leitura de Marx a que procedem Benetti e Cartelier pode incidir sobre a apreciação do conjunto do livro, é por um lado devido à relação que eles reconhecem existir entre as suas análises posi tivas e os seus movimentos críticos, e por outro lado em razão do lugar que ocupa no livro a crítica de Marx. Com efeito, para Benetti e Car telier, há um elo entre as suas teses críticas e as suas teses positivas. Pelo menos no que se refere ao ponto de partida, são as primeiras que justificam essas últimas. Com efeito, eles afirmam a sua “atual incapa cidade de fundamentar senão negativamente” o seu “ponto de partida” (p. 15); a escolha das hipóteses de que partem não se explicaria “tanto pela sua evidência, pelo menos aparente, do que por uma tomada de posição crítica em relação à teoria econômica (...)” . (Ibidem) Nessas condições, uma crítica de suas críticas poderia ter, ao que parece, um alcance considerável. E tanto mais em se tratando da crítica de Marx, já que Marx ocupa certamente, no livro, um lugar privilegiado. Marx é “o autor que mais contribuiu para esclarecer as diversas questões li gadas à abordagem econômica da sociedade” , (p. 139) E se “as res postas que ele dá aos problemas são inaceitáveis” (ibidem) (mas eles supõem uma não univocidade do seu pensamento: haveria também um “bom” lado de Marx) a sua obra tem, de qualquer modo, para os dois autores, “um papel primordial” , (p. 8)
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Os problemas que serão tratados aqui são, em geral, de natureza lógica, o que, diga-se de passagem, deveria justificar que um não eco nomista ouse comentar um livro de economia de uma tecnicidade con siderável. Mas é preciso se entender sobre o termo “lógica” . Num passo na terceira parte (pp. 142-143) Benetti e Cartelier se recusam a sus pender a análise do seu objeto, a forma do valor em beneficio de uma discussão prévia sobre o método. Concordamos com eles nessa recusa em admitir uma questão prévia de método, só que a desenvolveríamos diferentemente. Em certo sentido, seria preciso ir ainda mais longe. O método é ele próprio interior ao objeto, ele é um momento deste. Por isso mesmo, não se tratará aqui de epistemología, como se costuma dizer, entendendo a expressão, como se deve entender, como uma ex pressão que designa uma teoria subjetiva da ciência. Tratar-se-á, na realidade, de lógica, entendendo-a como uma teoria da ciência que é ao mesmo tempo uma teoría do objeto. Por outro lado, pensando num outro passo do livro, gostaríamos de dizer alguma coisa sobre o que está em jogo atualmente, inclusive para uma tomada de posição em relação a ele, quando, na análise da obra de Marx, se discutem pro blemas lógicos. A propósito do trabalho abstrato, os dois autores escrevem (p. 165) “ que a questão não é discutir uma enésima vez os diversos aspectos dessa abstração” , o que leva a pensar que, para eles, a discussão pelo menos de certos problemas que têm implicações lógicas se esgota ou perde o interesse. A esse respeito diríamos que esta ríamos de novo de acordo com eles, Se se tratasse de escrever o que já foi escrito a propósito desse tipo de problema. Mas não estamos de acordo se, da abundância dos textos sobre certos problemas, eles con cluem que os problemas já estão resolvidos ou que se trata de falsos problemas. Na realidade, é somente num desses dois casos que se deveria abandonar a questão. Ora, se aparentemente essa alternativa é verdadeira, só se trata de uma aparência. Pelo contrário, estamos convencidos de que, por um lado, esses problemas não são falsos pro blemas (e a esse respeito, em geral, todos estaríamos provavelmente de acordo); mais do que isto, de que a discussão dessas questões, apesar de tudo o que se escreveu a respeito, começa apenas a ser feita de um modo, digamos, pertinente. Insistimos nisso, porque, do fracasso das duas tendências clássicas de leitura de Marx, as únicas pelo menos que foram reconhecidas na França, o humanismo e o histo ricismo, por um lado, o anti-humanismo e o anti-historicismo, por outro — tendências que são na realidade complementares, como o mostramos em outro lugar2 —, chegou-se à crença bem ilusória e bem perigosa (para a compreensão científica, bem entendido!) de que é preciso abandonar esse tipo de questão. Chegou-se a uma situação em que aquele que tenta dizer coisas novas sobre esses problemas é raramente lido, porque... por que já se ouviu tanto falar disso!
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Mas se, de um modo geral, não faremos aqui mais do que uma espécie de reconstrução da apresentação de O Capital, de maneira a mostrar as dificuldades da leitura de Benetti e Cartelier, tentaremos também mostrar, no fim do texto, embora limitadamente, em que dire ções uma crítica de O Capital ou um desenvolvimento crítico das teses de O Capital poderia, a nosso ver, ter bom resultado. Na realidade, as indicações que daremos a esse respeito parecem convergir pelo menos em termos gerais com as idéias expressas em certos passos do texto de Benetti e Cartelier, passos que indicam o que parece ser o objetivo final de suas investigações críticas. Mas esses passos ficam mais ou menos marginais, no livro, porque eles estão muito menos ligados aos desenvolvimentos críticos principais do que pensam os dois autores. Qualquer que seja a importância da reconstrução da crítica marxista clássica da economia política, cremos que a articulação com esse segundo registro cujo horizonte é a superação do discurso clássico é indispensável, tanto no quadro da crítica do livro de Benetti e Car telier, quanto como perspectiva geral. Nossas considerações se desenvolverão em torno de dois centros de problemas que em parte se cruzam: primeiramente, em tomo da teoria da circulação de mercadorias, isto é, em torno de questões que se situam no interior da secção I, sobre a mercadoria e o dinheiro, do livro I de O Capital-, em segundo lugar, em tomo de problemas que con cernem, em primeiro lugar, à relação entre a secção I e a secção II, mas que de fato se relacionam com o conjunto da construção do livro I e, em certa medida, com o conjunto da apresentação de O Capital. Serão esses os objetos das duas partes deste texto. Os resultados aos quais chegaremos, assim como, de um modo geral, os problemas que serão discutidos aqui, têm algo em comum com o texto anterior. Retomaremos alguns pontos desse texto, que têm uma relação direta com as questões que propõe a obra aqui examinada — para desenvolvê-los ou completá-los. I. MERCADORIA E DINHEIRO a) O ponto de partida Para Benetti e Cartelier é ilusório fazer da mercadoria o ponto de partida da apresentação, como o faz Marx depois de ter fixado o seu objeto geral, “ as sociedades em que domina o modo de produção capitalista” . No livro deles, a apresentação, que para eles é uma dedu ção, começa por uma “primeira hipótese” pela qual são introduzidas por um lado a separação como vínculo entre os elementos da sociedade, no caso, o que eles chamarão mais adiante de “sociedade mercantil” , por outro lado a moeda, “primeiro objeto social” (p. 17), “expressão da
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separação” (p. 12); “(...) a sociedade é dada e o vínculo entre os seus elementos é a separação, cuja expressão é a unidade de conta comum” . (p. 12) Um começo como esse questiona na realidade não só o procedi mento que consiste em fazer da mercadoria o primeiro objeto da apre sentação, mas também o conjunto do trajeto que vai da mercadoria ao dinheiro, inclusive e principalmente a análise da forma do valor. Para analisar a legitimidade dessa crítica, explicitada na terceira parte do livro, consagrada a Marx, é preciso retomar e explicitar o procedi mento de Marx. Em primeiro lugar, precisamos resumidamente (e por enquanto superficialmente, porque essa questão será tratada na segunda parte deste texto) qual é o objeto da secção I de O Capital, ponto que é raramente bem compreendido. O objeto da secção I é a teoria da circulação simples enquanto aparência do modo de produção capita lista. Assim, a secção I trata da circulação de mercadorias e, entre tanto, a teoria da circulação de mercadorias põe os fundamentos que nos remetem à produção. Por sua parte, Benetti e Cartelier querem, na primeira parte do seu texto, fazer a teoria da “sociedade mercantil” .3 Isto levanta problemas importantes aos quais voltaremos. Observemos somente, por enquanto, já que a teoria deles se apresenta como uma alternativa à primeira secção (pelo menos, a crítica da primeira secção deveria nos conduzir à maneira deles de “deduzir”) — e qualquer que seja a diferença entre os objetos respectivos das duas teorias — que é legítimo criticar o seu procedimento, como já o justificamos para o caso geral, a partir do que eles escrevem sobre a primeira secção de O Ca pital. De resto, se deve considerar essa diferença que, precisamente, não é percebida pelos dois autores, como uma das fontes das dificul dades do texto. O objeto da secção I de O Capital é, pois, a teoria da circulação simples, enquanto aparência do modo de produção capitalista. No nível dessa aparência, é preciso começar pelo objeto mais simples. Reduzida à maior simplicidade, esta aparência revelaria, digamos, dois tipos de objetos — as mercadorias e o dinheiro4 —, os quais poderiam servir como ponto de partida. Marx escolheu as mercadorias e não o dinheiro como ponto de partida, e aquém das mercadorias, ele esco lheu a mercadoria individual. Por que ele não começa pelo dinheiro? No que se refere à forma do valor, Benetti e Cartelier supõem que a apresentação de Marx se explica pela “evidência de que a moeda (monnaie) é mercadoria” , (p. 143) Essa deve ser também a opinião deles quanto às razões que levaram Marx a começar o conjunto da apresentação pela mercadoria. Voltaremos ainda sobre essa maneira de exprimir a relação que existe em Marx entre mercadoria e dinheiro. Por enquanto, observemos somente que o que pressupõe o início de O Capital no que se refere ao dinheiro (na medida em que é possível pre cisar tal pressuposição) é menos do que isto. A pressuposição é antes a
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de que o dinheiro aparece como algo mais complexo do que a merca doria. Com efeito, no plano da experiência imediata, o dinheiro — o dinheiro metálico5 — se apresenta como um objeto que tem algo semelhante à mercadoria, mas ao mesmo tempo como diferente dela, pois precisamente ela se apresenta como moeda e não como merca doria. Sendo dinheiro, uma moeda de ouro é, ao mesmo tempo, um objeto de ouro, como um objeto útil qualquer. Menos do que isso: mesmo se ela não se confunde com uma mercadoria, uma moeda de ouro se revela com um “fundo” de mercadoria. Essa aparência de ser não simplesmente uma mercadoria, mas algo mais do que uma merca doria, é suficiente para que o dinheiro seja excluído como ponto de partida. E isto porque não podemos dizer que a mercadoria — a mer cadoria individual, veremos depois a relação entre duas mercadorias — leva consigo “vestígios” do dinheiro. Sendo o objeto mais simples, a mercadoria será, pois, o ponto de partida; e por razões idênticas àquelas que acabamos de desenvolver, é de se crer que se encontrará uma passagem que conduza da mercadoria ao dinheiro. As pressupo sições implícitas e o ponto de partida são sem dúvida algo “dado” (un donné),6 como é de resto o caso em qualquer apresentação dialética, a qual não deve começar nem por princípios ou fundamentos dedu tivos, nem por verdades empíricas. Mas tais dados serão desenvolvidos, mais do que isto, serão “negados” ,7 o que não quer dizer que eles sejam pontos de partida provisórios.8 A apresentação dialética é pas sagem da aparência à essência, mas a aparência permanece como apa rência, b) Valor de uso, trabalho concreto, divisão do trabalho Entre o início de O Capital e a análise da forma do valor, isto é, a dialética que conduz da mercadoria — ou das mercadorias — ao di nheiro, se situa o lugar em que são introduzidas as noções de valor de uso, valor de troca, valor, trabalho abstrato, trabalho concreto, divisão social do trabalho. Ê preciso primeiro se deter nesses conceitos. Come çaremos por valor de uso, trabalho concreto, divisão social do trabalho e o que até aqui não foi em geral suficientemente desenvolvido, a re lação entre matéria e forma em O Capital.9 Benetti e Cartelier questionam a relação estabelecida por Marx entre o trabalho concreto e o trabalho abstrato, e em particular o estatuto que ele atribui ao trabalho concreto. Suas observações se situam no contexto da crítica da forma do valor (nota 1 da terceira parte do livro), e será necessário voltar a elas quando tratarmos da forma do valor. Mas devem introduzir desde já essa discussão, na medida em que ela diz respeito a conceitos anteriores à análise da forma do valor.
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O problema de Benetti e Cartelier é o do caráter “social” do tra balho concreto em relação ao caráter “social” do trabalho abstrato. Eles citam a esse respeito um passo do capítulo primeiro na versão que lhe dá a primeira edição de O Capital: “(...) Todos os valores de uso são mercadorias só porque eles são produtos de trabalhos privados inde pendentes uns dos outros, trabalhos privados que, entretanto, depen dem materialmente (stofflich) uns dos outros enquanto membros parti culares, embora autônomos, do sistema natural e espontâneo (natur wüchsig, que cresce naturalmente) da divisão do trabalho. Eles estão pois socialmente ligados precisamente por sua distinção, por sua utili dade particular. É justamente por isto que eles produzem valores de uso qualitativamente diferentes” .10 Benetti ,e Cartelier continuam: “Mas Marx acrescenta que ‘a forma social é uma forma distinta das formas naturais dos trabalhos úteis reais, forma que lhes é estranha e forma abstrata (...)’ (Dognin, op. cit.) p. 85 (grifado por Marx)” . (Benetti e Cartelier, p. 149) E eles concluem: “Não se vê realmente como tudo isso pode ser admitido. De duas coisas uma: ou os trabalhos privados estão socialmente unidos, e são portanto reconhecidos, por causa da sua diversidade e portanto do seu caráter concreto; ou então eles o são por sua abstração. Como se pode conceber que as coisas sejam enquanto tais socialmente úteis, portanto já sociais, antes que elas tenham a sua forma social?” . (Ibidem, grifado por Benetti e Car telier)11 Na medida em que a questão levantada a propósito do trabalho concreto interessa, para aquém do trabalho concreto, à do estatuto do valor de uso e a distinção entre matéria e forma, começaremos reto mando a apresentação das noções de valor de uso e de valor de troca (assim como de forma e de matéria) nos primeiros parágrafos de O Ca pital. Esse desenvolvimento é menos bem compreendido do que se pensa e, no fundo, a solução do problema já está lá. A mercadoria tem duas determinações, o valor de uso e o valor de troca; o valor de uso remete ao conjunto das qualidades que fazem dela um objeto útil. Assim, o valor de uso é introduzido enquanto determi nação da mercadoria e portanto no interior do modo de produção capi talista.12 Marx desenvolve em seguida a noção de valor de uso e isto nos conduz fora ou aquém do modo de produção capitalista, no nível do universo das determinações antropológicas gerais. “Os valores de uso constituem o conteúdo material (der stofflichen Inhalt) da riqueza, qualquer que seja a sua forma social” .13 Esse desenvolvimento deve ser lido num registro diferente do registro do início, no registro de um dis curso pressuposto. Em seguida, o valor de uso é posto de novo no interior do sistema, quando o texto diz que “na forma social que deve mos considerar, eles (os valores de uso) são ao mesmo tempo os suportes materiais (die stofflichen Träger) do valor de uso” . (W.23, K.I, p. 50; Dognin, op. cit., pp. 174-175, grifo nosso, tradução modi
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ficada) E entretanto, se voltamos ao sistema de formas, o valor de uso só aparece como suporte material, o que significa que ele representará, no interior do sistema de formas, o lado da materialidade. Em outros termos, há um movimento que, do capitalismo,14 nos conduz a um universo antropológico pressuposto — primeira “negação” —; e desse universo antropológico — segunda “negação” — nos reconduz ao capitalismo. Esse movimento é passagem da forma (não ainda expli citada enquanto forma) à matéria, depois volta à forma: mas no inte rior dessa forma, que ela própria se separa como forma e matéria, o valor de uso ocupa o lado da matéria. Se se quiser completar esta análise da relação matéria e forma (nos limites dos dois primeiros parágrafos do capítulo primeiro) seria preciso acrescentar dois pontos. Por um lado, em direção regressiva, seria preciso observar que, se a formá social se desdobra em matéria e forma, do lado da matéria ou do conteúdo15 — isto é, do lado das determinações antropológicas gerais (que são postas como a matéria da forma no interior do modo de produção considerado) — haverá também desdobramento. Assim, a propósito do trabalho concreto, Marx escreverá que “na sua produção ‘o homem’ só pode ‘proceder como a própria natureza, isto é, só modificar as formas da matéria (die Formen der Stoffe)' ” . (W.23, K.I, p. 57; Dognin, op. cit., pp. 182-183, trad. nossa) E portanto, mesmo se a produção do homem é análoga à da natureza, “se se retirar os (...) trabalhos úteis (...), resta sempre um substrato material (eira M ate rielles Substrat) que é dado por natureza (von Natur vorhanden ist) sem intervenção do homem” . (W.23, K.I, p. 57; Dognin, op. cit., pp. 182-183)16 Por outro lado, em direção progressiva, mas aqui a diferença é antes entre forma e conteúdo17 (Gehalt ou Inhalt), seria preciso dizer ainda que a forma, em sentido estrito, isto é, a forma no interior da forma, se desdobra ela própria em forma (forma feno menal, aparência) e conteúdo, isto é, essência ou fundamento. Assim, após as distinções já efetuadas, será preciso distinguir o valor de troca, forma fenomenal (Erscheinungsform) do valor, do valor seu conteúdo {Gehalt). Os pontos mais importantes para a nossa discussão são, entre tanto, as duas primeiras divisões, forma e matéria enquanto diferença que separa o capitalismo do universo antropológico geral, e forma e matéria como diferença interior ao capitalismo. O que foi dito acima a propósito do valor de uso (na sua relação com o valor) pode ser dito, mudando pouca coisa, a propósito do trabalho concreto como da divisão social do trabalho (relativamente ao trabalho abstrato). Com efeito, a que remete finalmente a crítica de Benetti e Cartelier? O pro blema deles é que lhes parece difícil que o trabalho concreto seja reconhecido como “social” — o universo do “social” , isto é, daquilo que é socialmente reconhecido, correspondendo evidentemente ao uni verso das formas em oposição ao conteúdo antropológico — se a
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“socialidade” se acha, para o capitalismo, no nível do trabalho abs trato.18 Essa dificuldade é tanto maior porque o reconhecimento do caráter “social” do trabalho concreto parece representar uma queda numa determinação puramente antropológica.19 Examinemos isso tudo mais de perto, começando pelo segundo ponto. Como o valor de uso, o trabalho concreto e a divisão social do trabalho são por um lado pressuposições antropológicas gerais.20 Mas por outro lado, como o valor de uso, o trabalho concreto e a divisão social do trabalho são postos no interior de cada modo de produção. No que se refere ao capitalismo ou à produção de mercadorias, vemos que o valor de uso aparece como suporte material do valor de troca. De maneira análoga, “ a divisão social do trabalho (...) constitui a base geral (die Allgemeine Grundlage)21 de toda produção de mercado rias” .22 Uma determinação como essa não é uma simples particulari zação. Assim como as determinações gerais não são fundamentos mas pressuposições, ela representa na realidade uma “negação” . Isto vale também para a determinação no interior dos modos de produção que não sejam o capitalismo e a produção de mercadorias, embora em tais casos a “negação” não tenha exatamente o mesmo caráter.23 Nessas condições, a idéia de que no capitalismo, enquanto produção mer cantil, o trabalho concreto e a divisão do trabalho são determinações “sociais” (em oposição às determinações simplesmente antropológicas) não representa mais um problema: o antropológico não está lá en quanto tal, e ele não é também simplesmente particularizado. Ele só está lá enquanto “ser-posto” , isto é, como “suprimido” .24 Mas aqui começa a dificuldade principal, que interessa o próprio caráter da determinação posta no interior do capitalismo enquanto produção de mercadorias. Aqui o problema não remete à questão da relação entre as determinações postas e a determinação geral, mas à questão da relação entre a determinação posta no interior do capita lismo ou da produção de mercadorias e a determinação posta no inte rior de outros modos de produção. Para o caso do capitalismo enquanto produção de mercadorias, a posição do trabalho concreto e da divisão do trabalho no interior do sistema os integra no sistema de formas (em sentido geral) que constitui esse modo, mas, como para o valor de uso, eles constituem apenas o lado da materialidade no interior do sistema de formas.25 Isto já foi indicado indiretamente no parágrafo anterior, quando escrevemos, ci tando Marx, que a divisão social do trabalho não é mais do que “a base geral da produção de mercadorias” . Mas é necessário precisar. O tra balho concreto e a divisão social do trabalho são determinações inte riores ao modo de produção capitalista enquanto produção de merca dorias, primeiramente no sentido de que os seus produtos satisfazem ao conjunto das necessidades no interior desse modo, inclusive as neces sidades do consumo produtivo. Mas ao mesmo tempo — e é própria-
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mente por isso que essa determinação “material” é um momento da forma —, no sentido de que o trabalho considerado enquanto trabalho concreto, se apresenta como conjunto de trabalhos privados e indepen dentes uns dos outros. Ê o que escreve Marx no texto da primeira edição de O Capital, citado por Benetti e Cartelier: “(...) os valores de uso (...) só são mercadorias porque eles são produtos de trabalhos privados independentes uns dos outros, trabalhos privados que, entre tanto, dependem materialmente (stofflich) uns dos outros enquanto membros particulares, ainda que autônomos, do sistema natural e espontâneo (naturwüchsig) da divisão do trabalho. Eles estão, pois, socialmente ligados precisamente pela sua distinção, pela sua utilidade particular”. (Dognin, op. cit., p. 83, grifado por Marx, salvo “mate rialmente” e “socialmente ligados” , que nós grifamos) Que os traba lhos sejam aqui “trabalhos privados independentes” e ao mesmo tempo “socialmente ligados” pode parecer estranho (e finalmente todo o pro blema está lá). Mas isto quer dizer que embora ligados — material mente ligados — eles não perdem entretanto as condições de trabalhodos-indivíduos, de trabalho de sujeitos. Mas que os trabalhos satisfaçam a “uma necessidade social determinada” (W.23, K.I, p. 87; Dognin, op. cit., p. 218), que eles façam parte do sistema da divisão do trabalho — e eles fazem parte na qualidade de trabalhos concretos — não é suficiente para que os seus produtos se tornem efetivamente produtos-para-outrem, para que eles mesmos sejam efetivamente trabalhos-para-outrem. Para isto é neces sário que à determinação social material se acrescente a determinação formal — que entretanto a inverte. Com efeito, é somente sob a forma da abstração (nova determinação social que se opõe à anterior)26 que o produto do trabalho pode efetivamente passar para as mãos de outrem. Mas no interior dessa nova determinação, o trabalho não aparecerá mais como trabalhos-privados-dos indivíduos (os indivíduos serão “ne gados” , transformando-se em suportes), e os trabalhos (concretos) tornar-se-ão trabalho (abstrato). Da “socialidade” 27 externa e material se passará à “socialidade” intema, formal, que &contradiz. Outra coisa ocorre com os modos não capitalistas ou não mer cantis. Nesse caso, igualmente, a posição da determinação geral é “negação” , que nos introduz no interior de um sistema de formas sociais.28 Mas, no interior do sistema de formas, não há mais desdo bramento entre matéria e forma, ou esse desdobramento toma um sen tido completamente diferente. Nos modos de produção não mercantis, a determinação material não se abre a nenhuma determinação social distinta de — e oposta a — uma determinação formal em sentido estrito.29 Não haverá mais a dualidade trabalhos privados indepen dentes, ligados de um modo externo (e com significação subjetiva/ trabalho abstrato), isto é, a dualidade entre o fato de pertencer ao sistema da divisão do trabalho e a condição-de-trabalho-efetivamente-
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para-outrem: “a forma natural do trabalho,30 sua particularidade (...) é aqui a sua forma imediatamente social” . (W .23, K.I, p. 91; Dognin, op. cit., p. 223) Ora, é essa oposição entre as duas determinações sociais do trabalho no interior do capitalismo e da produção de mercadorias que Benetti e Cartelier apreendem — é o mérito deles — como contra ditória. Só que eles apreendem essa contradição como contradição subjetiva do pensamento de Marx. No fundo, o sentido da sua crítica é mostrar que Marx afirma que o social não é o social. E com efeito, se é assim, não seria melhor dar um nome diferente a cada urna das duas determinações (denominando-as pelos seus predicados) de modo a evitar a contradição? Mas se Marx diz duas vezes “social” (expri mindo, com isto, aquilo que é ao mesmo tempo sujeito da matéria e da forma) é porque “socialidade material” e “socialidade formal” não são aqui determinações simplesmente complementares, mas determinações opostas. Se, por exemplo, por ocasião de uma crise, objetos que servem para satisfazer necessidades sociais (portanto objetos já sociais) não se tomam objetos efetivamente sociais (não podem efetivar-se como objetos-para-outrem) é porque no capitalismo (ou na produção de merca dorias) o social pode excluir o social, ou o social contradiz o social. Tudo o que Marx faz é apresentar essa realidade contraditória como contraditória. Benetti e Cartelier acharam isto — e com razão — contraditório e obscuro. Mas a contradição e a obscuridade só são defeitos lógicos quando a realidade é clara e não-contraditória. Caso contrário, são elas — e não a identidade e a clareza — que representam a boa causa da racionalidade lógica. c) Valor de troca, valor, trabalho abstrato Completemos a análise com algumas considerações sobre o valor, o valor de troca e o trabalho abstrato. Não faremos mais, aqui, do que completar as idéias desenvolvidas no texto anterior. Se a mercadoria é valor de uso, ela é igualmente valor de troca. E o valor de troca é uma determinação que supõe que uma relação se estabeleça entre pelo menos duas mercadorias. Para que a expressão de valor de uma mer cadoria em outras mercadorias seja possível, é necessário que sua forma sensível seja reduzida a algo comum. Esse movimento que conduz ao valor como fundamento do valor de troca e ao trabalho como substância do valor não é uma generalização, mas uma redução. Razão pela qual o valor de uso em geral não poderia servir como denominador comum. Só se teria com isto uma generalização que de resto nos conduziria a uma teoria subjetiva do valor. O movimento de redução é ilustrado por Marx, tanto em O Capital como nas Teorias sobre a mais-valia, através de exemplos tirados da matemática. Nos textos das Teorias sobre a mais-valia, textos em que ele faz a crítica de Bailey,
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a analogia, introduzida por Bailey, para questionar a necessidade e a possibilidade de uma redução dos valores de troca ao valor é o da distância entre dois objetos. Contra Bailey, para o qual a distância não é mais do que uma relação — “uma coisa (não) pode estar distante em si sem referência a uma outra” 31 — Marx mostra que se “a dis tância é (...) uma relação” entre duas coisas, ela é “ ao mesmo tempo” “algo diferente dessa relação entre essas duas coisas” . E mais: que a distância entre duas coisas supõe “ algo de ‘intrínseco’, alguma ‘pro priedade’ das próprias coisas que as toma capazes de estar distantes umas das outras” . “Qual a distância entre a sílaba A e a mesa?” Pertencer ao espaço será a unidade de duas coisas mensuráveis e a sua igualização sub specie spatii será a condição para medir a sua distância para distingui-las “como pontos diferentes do espaço” .32 A analogia tem o interesse de mostrar a necessidade da passagem da relação (constituída pelo valor de troca) ao fundamento da relação, à sua condição de possibilidade objetiva, passagem que nada tem a ver com uma simples generalização; ela tem também o interesse de mostrar que se passa aí de um universo qualitativamente diverso a um universo sem qualidade ou de qualidade homogênea. A segunda analogia, que se encontra em O Capital33 (encontramo-lo também nas Teorias..., ainda no quadro da discussão com Bailey34 em forma um pouco diferente) se refere (ao que toma possível) a determinação da superfície dos polí gonos. “Para determinar e comparar a superfície de todas as figuras retilíneas se as resolve em triângulos. O próprio triângulo é reduzido a uma expressão completamente diferente da sua figura (Figur) visível — o semiproduto da sua base pela sua altura” .35 O interesse dessa ilustração, na qual se passa da figura geométrica à expressão algébrica, é o fato de que toda referência a um espaço — mesmo um espaço inteligível — desaparece no ponto de chegada. Entretanto, tanto quanto o espaço geométrico, uma expressão algébrica é evidentemente uma coisa bem diferente de uma determinação social objetiva como o valor. O resultado essencial que se deve extrair desses dois exemplos é de que a passagem do valor de troca ao valor é uma redução de uma forma de manifestação36 ao seu fundamento, redução que é ao mesmo tempo a de um universo de objetos qualitativamente diversos a um universo de objetos sem diversidade qualitativa.37 Mas a redução dos valores de troca ao valor é ao mesmo tempo constituição do conceito de trabalho abstrato, como substância do valor. A importância que Marx dava a esse conceito cuja apresentação ele considerava como uma de suas contribuições fundamentais é bem conhecida. “O melhor no meu livro é: 1. (sobre este repousa toda a compreensão dos facts (fatos) o duplo caráter do trabalho posto em evidência (hervorgehobene) desde o primeiro capítulo, conforme ele se exprime em valor de uso ou em valor de troca (...)” .38 “(...) os três elementos fundamentalmente novos do livro: (...) 2. (...) uma coisa
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simples (das Einfache) escapou a (todos) os economistas sem exceção, é que se a mercadoria tem o duplo (caráter) de valor de uso e de valor de troca, o trabalho representado na mercadoria deve também ter duplo caráter, enquanto que a simples análise do trabalho sem frase (sansphrase) como em Smith, Ricardo etc. se choca sempre com coisas inexplicáveis (auf Unerklärliches). Este é na realidade todo o segredo da concepção crítica” .39 Mas nessas condições, interessa precisar qual a natureza do descobrimento de Marx, qual o caráter da sua contri buição em relação ao discurso da economia clássica. O descobrimento de Marx representa na realidade uma posição (isto é, passagem à ordem do discurso explícito) daquilo que estava pressuposto (o que existia somente em forma implícita: o que estava e não estava) nos economistas clássicos: “No que se refere ao valor em geral, a economia política clássica em nenhum lugar distingue de um modo expresso (iausdrücklich) e com uma consciência clara (mit klaren Bewustsein) o trabalho tal como ele se apresenta no valor, do mesmo trabalho, tal como ele se apresenta no valor de uso do seu produto. Naturalmente, ela estabelece de fato a diferença (sie macht (...) den Unterschied tatsächlich) já que ela considera o trabalho ora quantitativamente, ora qualitativamente. Mas não lhe ocorre (aber es fällt ihr nicht ein) que uma diferença puramente quantitativa dos trabalhos pressupõe (voraussetzt) uma unidade qualitativa, (ou sua) igualdade, ou sua redução ao trabalho humano (como) abstrato (abstrakt menschliche Arbeit)". (W.23, K.I, p. 94, n. 31; Dognin, op. cit., p. 226, n. 31, grifo nosso) A diferença existia pois, mas não “de modo expresso”, mas somente “de fa to ”: a diferença quantitativa expressa pelos clássicos a "pres supõe”. Mas se aquilo que é dito não vai tão longe quanto aquilo que é visado ou, o que dá no mesmo, se há conteúdos visados (pressupostos) que não são expressos (postos), a pressuposição é às vezes posta a despeito do teórico — exprimindo em parte pelo menos, o que o próprio sujeito não quer dizer (e que entretanto ele visa). Esta espécie de autoposição do próprio discurso em face ao discurso do sujeito (com a sua partição entre o que é visado e o que é posto), Marx a encontra em Benjamin Franklin: “Um dos primeiros economistas que após Wil liam Petty penetrou a natureza do valor, o célebre Franklin escreve: ‘Dado que o comércio não é absolutamente nada senão a troca de um trabalho contra um outro trabalho, é em trabalho que se avaliará da maneira mais justa o valor de todas as coisas’ ” . (The Works o f B. Franklin etc., editedby Sparks, Boston, 1836, vol. II, p. 267) Franklin não se dá conta (ist sich nicht bewusst) que avaliando “em trabalho” o valor de todas as coisas, ele faz abstração da diferença (Verschie denheit) dos trabalhos — e os reduz assim a trabalho humano igual. O que ele não sabe, ele entretanto o diz. Ele fala primeiro “ de um ‘trabalho’ sem mais (ohne weitere Bezeichnung) como sendo a subs tância do valor de todas as coisas” . (W.23, K.I, p. 65, n. 17, grifo
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nosso) O discurso põe aqui o que é simplesmente visado pelo sujeito: mas como para o sujeito o conceito é simplesmente visado mas não posto, poderíamos dizer que essa posição do discurso, ela própria é para o sujeito uma posição não visada. O que ele (o sujeito) pressupõe ele não põe, e o que ele põe, a saber, a própria posição, ele não pressupõe. Que o descobrimento de Marx seja “somente” a posição de um conceito anteriormente pressuposto não é sem importância, pois isto mostra tudo o que significa a explicitação de um conceito implícito — esta operação aparentemente banal — na realidade a posição do que era pressuposto, no interior da lógica dialética.**
d) A forma do valor Podemos passar agora à análise da forma do valor, questão que é objeto de um longo desenvolvimento crítico no livro de Benetti e Cartelier. Será necessário examiná-la em detalhe, tanto no que concerne ao texto de Marx como no que se refere ao dos seus críticos. Inicialmente, é necessário se perguntar de que se trata. Já indi camos como se chega à análise da forma do valor: depois de ter passado do valor de troca ao valor (redução da forma fenomenal ao funda mento), volta-se ao valor de troca, forma (fenomenal) do valor. A análise da forma do valor nos permite passar do valor de troca tal como ele aparece na relação entre duas mercadorias, à forma dinheiro. Trata-se, pois, de fato, como o assinalam de resto os dois autores (p. 151) — mas eles supõem, sem razão, que uma outra interpretação também seria possível —, de uma gênese do dinheiro. Esta gênese é lógica41 e não histórica em seu sentido e sua finalidade gerais; e entretanto alguns de seus momentos são mais ou menos susceptíveis de um rebatimento “histórico” , de uma representação no tempo. Mas as referências “históricas” (isto é, temporais) que se poderia encon trar aí aparecem sobre o fundo de uma análise lógica, como um dis curso paralelo e de certo modo pressuposto. Já explicamos, a propósito do ponto de partida, por que é necessário começar pela mercadoria e não pelo dinheiro. Formule mos, entretanto, ainda uma objeção (que poderia situar-se tanto no início da apresentação como no nível da forma do valor). Mesmo se há razões para começar pela mercadoria e não pelo dinheiro, o fato de se situar aquém do dinheiro, no nível de uma realidade que parece contradizer mesmo a aparência de produção de mercadorias não levantaria um problema? Quaisquer que sejam as razões, qual é a legitimidade desse recuo em relação à própria aparência de produção de mercadorias? Não cairíamos com isso na “fábula da troca” ?42
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Deixaremos de lado, por enquanto, esse problema, porque a sua res posta, embora se situando num plano que lhe é próprio, é análoga àquela que se deve dar ao problema geral do estatuto lógico da teoria da circulação simples, ao qual voltaremos na segunda parte deste texto. Voltemos à questão da gênese. Dizer que se trata da gênese do dinheiro exige que se explique o que é uma gênese, questão sobre a qual a confusão é freqüente. Gênese se distingue do que podemos chamar de desenvolvimento43 Gênese é pré-história, no caso pré-história lógica; desenvolvimento é história, no nosso caso história lógica. A primeira designa um processo anterior ao nascimento do ser, no caso o dinheiro, a última um processo posterior ao seu nascimento. Para o caso da teoria do dinheiro em O Capital, é importante fixar essa diferença, porque em O Capital temos primeiro uma gênese do dinheiro, uma análise das formas que se situam aquém do dinheiro, e depois um desenvolvimento, uma análise das formas que se situam além da posição (isto é, do “nascimento lógico” do dinheiro), e que são as únicas que são propriamente formas do dinheiro. Voltaremos ainda sobre a significação lógica de uma gênese. O ponto de partida é a forma simples do valor, x mercadoria A = y mercadoria B (ou x mercadoria A vale y mercadoria B). Por que começar por aí?44 Poderíamos responder pelas seguintes considera ções: o dinheiro, que é o ponto de chegada, é ao mesmo tempo unidade e pluralidade (pois, como o veremos, e nos exprimindo por enquanto de um modo aproximado, ele é ao mesmo tempo merca doria e a generalidade ou a universalidade das mercadorias). Para constituí-lo é preciso, pois, o momento da unidade como o da plura lidade. E — parece — é preferível começar pela unidade que por ora é somente unidade simples, unidade que não contém a pluralidade, e desenvolver em seguida o momento da pluralidade. Mas — novo problema — o que é que se analisa, na realidade, quando se analisa a forma simples do valor? Trata-se da análise de uma troca — de uma troca efetiva? Na realidade, o que se analisa não é a troca efetiva — que é propriamente objeto do capítulo 2, “O pro cesso de troca” . Quanto à troca possível (ou à possibilidade de uma troca) ela está lá, bem entendido, mas essa formulação ainda é dema siado vaga. O que se analisa quando se analisa a forma (simples) do valor é propriamente a expressão do valor. Mas onde se encontra essa expressão? E o que complica ainda o problema: é preciso per guntar ainda onde ela aparece. Isto é, onde se exprime a expressão do valor, onde aparece essa aparição. Estamos aqui diante do problema difícil da expressão de uma expressão, isto é, da distinção entre essên cia e aparência no interior de uma aparência. A expressão do valor ela própria está na relação entre as duas mercadorias. A relação que ela
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constitui, embora dependendo da ação dos agentes ou de pelo menos um agente — do “estabelecimento de uma relação” dos produtos como mercadorias — é uma relação objetiva.45 Com o encontro de dois produtores com vistas a uma troca, se desencadeia um processo que independe dos agentes. Mas onde aparece a expressão que constitui a relação? Como por enquanto ainda não temos o dinheiro (como di nheiro), a expressão de valor só poderia aparecer nas mercadorias. Ora, nas mercadorias ela não aparece, isto é, a aparência do valor não aparece como aparência sensível. Mas onde aparece então essa aparência? Ela só aparece no julgamento — expressão de uma expres são — “x mercadorias A valem y mercadorias B” . Isto não quer dizer, como já indicamos, que a expressão de valor como tal seja subjetiva. Mas mesmo a expressão46 da expressão não é subjetiva. Se eu disser “x mercadorias A valem y mercadorias B” , direi uma relação obje tiva; e a expressão de uma relação objetiva, mesmo, e sobretudo, se se tratar da expressão de uma expressão, não é subjetiva. Ela é o corre lato do objeto. Esse estatuto objetivo da linguagem vale de uma ma neira geral para o estatuto da linguagem em Marx. Mas continuemos. Depois de se interrogar sobre a legitimidade do ponto de partida da análise do valor, Benetti e Cartelier criticam a maneira de representar a relação e o próprio conteúdo dela: “Em se gundo lugar, o sinal de igualdade aparece como incorreto: não é tanto como fração de uma mesma espécie de grandeza (o trabalho social) que a mercadoria A e a mercadoria B entram em relação, mas como mercadorias individualizadas” (na falta disto, é o próprio problema tratado por Marx que desaparece). A “forma polar” descrita por Marx o atesta bem: (1) 20 m de tela £ 1 casaco em que => designa “é expresso como valor relativo” e que ->• designa “é equivalente a” . “Que o relacionamento da tela e do casaco pressupõe o valor como espaço de comensurabilidade — continuam Benetti e Cartelier — não impede de forma alguma que não estejamos aqui numa rela ção de equivalência: a relação (1) não é reflexiva” , (p. 143) Vejamos melhor isso tudo. Certamente a relação não é uma relação de equivalência no sentido da lógica comum. Ela não é refle xiva (uma mercadoria não exprime nela própria o seu valor). Entre tanto, se a questão da reflexividade nos interessará mais adiante, por enquanto é mais importante saber se a relação é simétrica (se se pode inverter os seus termos). Na realidade, a relação não é (analitica mente) simétrica. O signo “ = ” , pelo qual Marx representa a relação, não designa a igualdade lógico-matemática, caso particular entre as relações de equivalência47 e que é portanto simétrica, se a = b, b = a.
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A afirmação de que a relação que constitui a forma simples do valor não é simétrica não deixa de levantar problemas. Aparentemente ela vai contra os textos em que Marx escreve que a expressão da forma simples inclui a expres são inversa: “A equação: 20 varas de tela = 1 casaco, ou 20 varas de tela valem 1 casaco, inclui (schliesst... ein) a equação idêntica: 1 casaco = 20 varas de tela, ou 1 casaco vale 20 varas de tela” . (Dognin, op. cit., p. 63, texto da primeira edição de O Capital, grifado por Marx) “A bem dizer, a expressão 20 varas de tela = 1 casaco ou 20 varas de tela valem 1 casaco inclui (schliesst... ein) também a relação inversa: 1 casaco = 20 varas de tela ou: 1 casaco vale 20 varas de tela”. (W.23, K.I, p. 63; Dognin, op. cit., p. 119, apêndice à primeira edição de O Capital) E entretanto, Marx acrescenta no texto do apêndice: “É porém necessário inverter a equação para exprimir relativamente o valor do casaco, e urna vez feito isto, é a tela que se torna equivalente, em lugar do casaco. A mesma mercadoria, na mesma expressão de valor, não pode pois se apresentar (auftreten) simultaneamente nas duas formas. Estas antes se excluem(schliessen... aus) comodois polos”. (Dognin, op. cit., p. 117, grifado por Marx) “Pensemos (Denken) urna troca (Tauschhandel) entre o produtor da tela A e o produtor do casaco B. Antes de se chegar a um acordo sobre a transação (sie Handels einig werden) A declara: 20 varas de tela valem 2 casacos (20 varas de tela = 2 casacos), enquanto B declara: 1 casaco vale 22 varas de tela (1 casaco — 22 varas de tela). Após regatear muito tempo, eles chegam afinal a um acordo. A declara: 20 varas de tela valem um casaco, e B: um casaco vale 20 varas de tela. Nesse caso, as duas mercadorias, a tela e o casaco, se acham simultaneamente na forma relativa e na forma equivalente. Mas, note-se bem, isto só vale para duas pessoas diferentes e em duas expres sões de valor que apenas surgem simultaneamente. Para A — e porque, segundo ele, a iniciativa parte da sua mercadoria — a sua tela se encontra na forma relativa do valor, enquanto que a mercadoria do outro, o casaco, se acha na forma equivalente. E inversamente, do ponto de vista de B. Na mesma expressão de valor, a mesma mercadoria nunca possui portanto, simultaneamente, as duas formas, nem mesmo nesse caso” . (Dognin, op. cit., p. 117, grifado por Marx) Na quarta edição de O Capital, encontramos igualmente: “Mas me é entretanto necessário inverter a equação para exprimir relativa mente o valor do casaco, e urna vez que eu o tenha feito, é a tela que se toma equivalente em lugar do casaco. A mesma mercadoria, na mesma expressão de valor, não pode, pois, se apresentar (austreten) simultaneamente nas duas formas. Estas últimas antes se excluem (schliessen... aus) como dois pólos". (W.23, K.I, p. 63; Dognin, op. cit., pp. 189-190, grifo nosso)48 Vemos que “incluir” (einschliessen) se torna “excluir” (ausschliessen), se consideramos a mesma expressão de valor. O que é que isto quer dizer? Isto quer dizer duas coisas que se excluem do ponto de vista da lógica formal: 1) que as duas expressões são contraditórias; 2) que se pode (entretanto)49 passar de urna a outra sem tornar falsa a primeira. É que a operação que permite passar da primeira expressão à segunda — operação que como o seu análogo em lógica formal (a implicação) é em geral passagem de uma determinação implícita a uma determinação explícita — não é uma implicação, mas a posição de urna determinação pressuposta. O que significa, por um lado, que a operação não é de ordem simplesmente analítica (como se poderia dizer em geral da impli cação e das operações formais), mas, como escreve na Grande Lógica (a
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propósito de passagens grosso modo análogas),50 ela é ao mesmo tempo analí tica e sintética. Ou, o que vem a dar no mesmo: a determinação explicitada não é aqui igual à — mesma — determinação implícita. A explicitação, que na apresentação dialética é posição do que só estava pressuposto — passagem de um em-si a um para-si51 —, muda o valor de verdade do que estava implícito. Isto explica a possibilidade de conservar, mas como determinação “negada”, a primeira expressão: se a expressão inversa já estivesse posta (ou se ela esti vesse tal como é como posta) na primeira expressão, a contradição — que oporia então, na primeira expressão, termos postos (como termos postos) — anularia a primeira expressão. Mas isto quer dizer que em termos estritamente analí ticos não há inversão possível. Poder-se-ia pensar, então, que seria preciso redefinir a noção de simetria (como se fez para outras noções, por exemplo para a contradição) no interior da relação pressuposição/posição ou da dialé tica em geral. O que nos levaria a dizer que a relação é e não é simétrica. Esta não é, entretanto, a melhor resposta. O que aqui interessa a Marx é mostrar a ausência, no nível da aparência (isto é, da expressão do valor) de uma propriedade formal que está presente, se se comparar simplesmente, dizendoas equivalentes, mas sem exprimir o valor, duas grandezas de valor.52 A deter minação dialética está aqui no fato de que uma equivalência formal no nível das “essências, mudas” se exprime por uma “equivalência” que não tem mais as suas propriedades formais. Ou, se se quiser, a dialética aparece aqui como a contradição entre o formal e o dialético. Deve-se, pois, conservar a definição formal de simetria que põe em evidência essa diferença, em nome mesmo do rigor dialético. A conclusão será, pois, que a primeira expressão não é (anali ticamente) simétrica, como queríamos mostrar.53
E com isto já respondemos à questão de saber por que Marx representa a relação pelo signo da igualdade. Trata-se provavelmente de dar lugar, com isso, tanto à igualdade lógica abstrata que se situa no nível das essências, como a “equivalência” (de natureza totalmente diversa) que ocorre no nível da expressão. De resto, numa das versões da análise da forma do valor, Marx distingue explicitamente os dois sentidos da noção de “equivalência” . “Em terceiro lugar. A fórmula: 20 varas de tela = 1 casaco ou 20 varas de tela valem um casaco, podemos também exprimi-la da seguinte maneira: 20 varas de tela e 1 casaco são equivalentes, ou ainda, são ambos valores de uma mesma grandeza. Com isto não exprimimos o valor de nenhuma das duas mercadorias no valor de uso da outra. Nenhuma das duas se acha, pois, na forma equivalente. Equivalente só significa aqui algo de gran deza idêntica, tendo as duas coisas sido primeiro reduzidas implici tamente (stillschweigend, tacitamente) na nossa cabeça à abstração valor”.M (Dognin, op. cit., p. 127, apêndice à primeira edição de O Capital, grifado por Marx) Se Marx representou a relação desse modo é porque, ao lê-la, não se elimina abstratamente a relação de igual dade de equivalência no sentido correto, a qual existe na base da relação. Se a expressão “x mercadorias A = y mercadorias B” é lide (como se deve ler) “x mercadorias A valem y mercadorias B” a eaui
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valência em sentido corrente que se acha no nível do fundamento se per de na leitura — ela só é conservada pela escrita. A significação contra ditória da representação permite conservar ao mesmo tempo o funda mento (há tanto valor em A como em B, ou A = B “módulo” valor, re lação simétrica) e a sua expressão não-simétrica “x A vale y B” .55 Retomemos agora o problema da gênese. A análise da forma do valor representa, dissemos, uma gênese do dinheiro. Mas no ponto de partida, na forma simples, não teríamos mais do que mercadorias? Ou, em outros termos, nesse ponto de partida, o dinheiro está sim plesmente ausente? A resposta a esta questão, que a lógica do enten dimento só pode recusar, só pode ser uma resposta contraditória. Na realidade, poder-se-ia dizer que o dinheiro não é o ponto de partida da sua gênese, mas essa resposta seria parcial — e portanto falsa. A resposta verdadeira é esta: o dinheiro está e não está no ponto de partida. Porque no ponto de partida não temos nem o dinheiro nem a ausência pura e simples do dinheiro — mas o germe do dinheiro.56 O germe é a forma equivalente simples que toma a mercadoria B, ou antes, ele é a mercadoria que toma essa forma. A forma equivalente em que se encontra a mercadoria B não é, sem dúvida, a forma di nheiro, mas também não é verdade que esta forma esteja absoluta mente ausente. Na realidade ela está “lá” — mas como “forma equi valente” (que entretanto não é a forma dinheiro). Aliás, é assim no ponto de partida de qualquer gênese. Esse ponto de partida pode ser expresso por um juízo do tipo A é B , mas um juízo em que o “é” não indica nem uma relação de inerência (ou de pertinência) nem uma relação de inclusão.57 Ele exprime uma relação “reflexiva” em sentido dialético: A “é” B quer dizer que A “passa” “em” B, significa que A se “nega” (mas não se anuía) em B, ou ainda que A é simplesmente pressuposto, sendo posto somente B. Assim, no nosso caso, a propo sição que exprime o ponto de partida seria: “o dinheiro é o equiva lente simples” 58 — mas proposição que se deve entender como um juízo de reflexão.59 Isto é, como uma proposição em que o sujeito “dinheiro” é somente uma pressuposição (um ponto de partida que não é um fundamento ou um sujeito), e que como tal “passa” “no” seu predicado, que é o único termo posto. Observar-se-á que esse predicado convém sem dúvida ao sujeito pressuposto — mas por isso mesmo, porque o sujeito só é pressuposto — ele contradiz o sujeito. Com efeito, se se pode dizer, como dissemos, que o dinheiro “é” a forma equivalente simples, pode-se dizer também que “a forma equivalente simples” (seu predicado) não diz o sujeito. De fato, a forma equivalente simples não é o dinheiro, ela não convém como predicado ao sujeito (posto) dinheiro. É preciso dizer, pois, que o dinheiro está e não está nesse ponto de partida. Passemos agora a um outro problema, relativo à forma simples (e à forma do valor em geral), problema que retoma as questões
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discutidas no parágrafo anterior (c). Trata-se da questão do papel que tem o valor de uso na análise da forma do valor. No desenvolvimento anterior sobre o valor de uso, nos detivemos no momento em que o valor de uso era só o suporte material do valor. Esta era a função específica do valor de uso na qualidade de determinação material no interior da forma social. Com a análise da forma do valor — a gênese do dinheiro — o valor de uso passa da sua função de suporte à função de material em que se expressa o valor (sempre enquanto determi nação material no interior da forma). Com efeito, se há uma nãosimetria na expressão do valor, isto se deve ao fato de que os valores de uso das duas mercadorias não têm a mesma função. Se o valor de uso da mercadoria A continua sendo simplesmente o suporte do valor de A, o valor de uso da mercadoria B, embora continuando a ser o suporte do valor da mercadoria B, se toma, na relação entre A e B, o material no qual se exprime o valor de A. Ela se tom a a encarnação sensível do valor de A. Com efeito, a nãosimetria não diz senão que, na expressão do valor, o valor não aparece do mesmo modo para cada uma das duas mercadorias. O valor de A aparece no valor de uso de B, qualitativamente e quantitativamente. O valor de B é também expresso, porque só uma mercadoria pode servir de espelho de valor (para uma outra). Mas ela só aparece quali tativamente, e pelo fato de servir como espelho, como forma equi valente, para uma outra mercadoria. Esta re-posição do valor de uso — tanto aqui, no nível da aná lise da forma do valor, como na continuação do texto de O Capital — é um dos alvos principais de crítica de Benetti e Cartelier: “(...) a forma simples que Marx toma como ponto de partida implica (...) que o equivalente não pode ser senão uma expressão material do valor da outra mercadoria”. Marx apresenta o problema assim: “Para fixar a tela como pura expressão coisificada do trabalho humano, é preciso fazer abstração de tudo aquilo que fa z dela realmente (wirklich, efeti vamente) uma coisa (Ding). A objetividade do trabalho humano, que é ele próprio abstrato (...) é necessariamente uma objetividade abs trata, uma coisa do pensamento (Gedankending). É assim que o tecido do linho se tom a uma fantasmagoria (Himgespint). Mas as mercado rias são coisas (Sachen). O que elas são, elas devem ser à maneira das coisas (sachlich), ou mostrá-las nas suas próprias relações de coisas ((Dognin) p. 53 (texto da primeira edição de O Capital))’’. (Benetti e Cartelier, p. 144) “Nesse texto — continuam Benetti e Cartelier — já se vê, em forma sintética, o deslizamento necessário que impõe a Marx o seu mau ponto de partida, a saber, a forma I. Marx dirá que não há um átomo de matéria (natural, Naturstoff — RF) que penetre no seu (...) (da mercadoria)'(...) valor (...) que (...) os valores das mercadorias só têm uma realidade puramente social. (Xe Capital (Plêiade I), p. 576)” . (Benetti e Cartelier, p. 144) “Ora, escrevem
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ainda Benetti e Cartelier, as relações materiais, isto é, objetivas, sociais, são anunciadas aqui como sendo relações entre coisas e ao mesmo tempo entre valores” . (Ibidem ) “O deslizamento se sitúa evi dentemente sobre o termo ‘material’, que significa ao mesmo tempo social, objetivo e materialidade física da coisa. De onde o desliza mento: a objetividade é atribuída a essa materialidade física. Em outros termos: a objetividade do valor é puramente abstrata, ela nada tem a ver com a materialidade física. Por que então, para se exprimir, ela teria necessidade de uma materialidade física? Por que o ‘corpo’ do equivalente seria necessário e suficiente para objetivar o valor? Nesse nível, a resposta pode ser encontrada na identificação entre a materialidade e a objetividade: 3 m de tecido, porque tecido e 3 m têm uma objetividade socialmente reconhecida” , (pp. 144-145, gri fado por Benetti e Cartelier) E a partir daí os dois autores tentam mostrar que, se Marx faz a crítica da “aparência falsa” que consiste em pensar que a forma equivalente provém do valor enquanto tal (isto é, nós observamos, do valor de uso considerado independente mente da produção de mercadorias), a maneira pela qual Marx apresenta a expressão do valor (fazendo do valor o material em que ele se exprime) reforçaria na realidade uma falsa aparência: “Fica visível imediatamente que esse tipo de falsa aparência é a con seqüência lógica necessária da objetividade atribuída por Marx ao cor po do casaco” , (p. 145, grifado por Benetti e Cartelier) Em ou tros termos, Marx pretende fazer a crítica do fetichismo, mas na realidade ele próprio fetichiza. Esse tema do fetichismo de Marx — que não é particular à crítica de Benetti e Cartelier60 — reaparecerá mais adiante. Reencontramos aqui num nivel ulterior da apresentação o pro blema que foi discutido a propósito do valor de uso e do trabalho concreto. Para não voltar ao que já foi explicado tentaremos aqui, por um lado, apreender a forma específica que o problema toma nesse ponto, e, por outro lado, generalizá-lo em certa medida, aproveitando o enriquecimento que lhe advém dessa nova forma. Aqui como anteriormente, Benetti e Cartelier parecem surpreen didos com o papel que tem o valor de uso, e em geral a “matéria” , na crítica da economia política, de Marx. Tudo se passa como se, para eles, esse papel não fosse legítimo. Em outros termos, tudo se passa como se para eles o procedimento de Marx, do ponto de vista do próprio Marx (segundo a interpretação deles) só pudesse ser válido se tivesse como objeto apenas as form as, isto é, se pusesse sempre entre parênteses a camada “material” . Ora, a esse respeito, seria preciso dizer em primeiro lugar, começando a análise pelo nivel que não é sem dúvida o mais profundo, o da atitude consciente de Marx, que Marx se explicou bem sobre o papel que tem na sua crítica o valor de uso. Ele escreve, efetivamente, nas notas sobre o manual de A. Wag-
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ner: “Por outro lado, o vir obscurus não viu que já na análise da mercadoria o meu texto não se limita ao duplo modo (Doppelweise) em que ela se apresenta, mas se vai adiante imediatamente até que, nesse ser duplo (Doppelsein) da mercadoria se apresenta o duplo (Zweifacher) caráter do trabalho, de que ela é o produto: o trabalho útil, os modos concretos (den konkreten Modi) dos trabalhos que criam valores de uso, e o trabalho abstrato, o trabalho enquanto gasto de força de trabalho, qualquer que seja a forma ‘útil* pela qual ela é gasta (sobre o que mais adiante se baseia a apresentação do processo de produção); que no desenvolvimento da forma do valor da merca doria, e em última instância, da sua forma dinheiro, portanto do di nheiro, o valor de uma mercadoria se apresenta no valor de uso, isto é, na forma natural da outra mercadoria, que a própria mais-valia é deduzida de um valor de uso ‘específico’ da força de trabalho, o qual pertence exclusivamente a esta última etc. etc.; que, em conseqüên cia, o valor de uso tem no meu texto um papel muito mais importante do que (aquele que ele desempenhou) até aqui na economia". (W.19, 1969, pp. 370-371, grifado por Marx, trad. nossa; Oeuvres, Economie II, op. cit., p. 1545) Essas considerações poderiam ser complemen tadas pelos textos das Teorias... em que se trata da importância do valor de uso no interior da crítica da economia política.61 Nada pare ceria mais estranho a Marx do que a idéia de uma crítica da economia política puramente “formal” , purificada de toda referência à camada material. Na realidade, ele acredita que o papel que nela tem a maté ria é uma das originalidades do seu procedimento Tomado em forma objetiva, o problema aparece como idêntico àquele que foi discutido anteriormente, mas se apresentando agora em nível “superior” : aqui não só aparece o desdobramento do social nos opostos matéria e forma, mas também — contradição desenvol vida — a matéria se torna fenômeno (forma fenomenal) da forma, seu contrário. O valor de uso que era suporte do valor toma-se agora material em que este se exprime. É afinal este cruzamento de contrá rios que Benetti e Cartelier, com razão, põem em evidência. ,E, ainda uma vez, isto lhes parece — com razão — escandaloso. Marx separou de maneira mais estrita a matéria da forma, o concreto do abstrato, e eis que ele afirma que um dos opostos se tomou a forma fenomenal do outro! Anteriormente um “social” que parecia antes “antropoló gico” devia coexistir com um “social” que lhe era oposto. Agora é preciso ainda que um dos opostos sirva para exprimir o outro! Apa rentemente, tentando unir termos opostos, não fazemos mais do que nos entranhar na contradição. E se trata disso mesmo. O des lizamento da objetividade na materialidade nada mais é do que a re-posição (aqui uma segunda posição) da matéria — oposta à forma — enquanto material para a expressão da forma.62 E esse movimento é “contraditório” no sentido de que ele reúne pela relação essência/
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aparência termos definidos anteriormente como sendo rigorosamente contrarios. Mas que esse movimento é “contraditório” é o próprio Marx que o diz: “A primeira particularidade que chama a atenção (auffàllt) quando se considera a forma equivalente é a seguinte: o valor de uso se toma forma fenomenal do seu contrário (Gegenteil), o valor” . (W. 23, K.I, p. 70; Dognin, p. 198, grifo nosso) “(...) Urna segunda particularidade da forma equivalente: o trabalho concreto se torna forma fenomenal do seu contrário (Gegenteil), do trabalho hu mano em abstrato (abstrakt menschlicher A rbeit)". (W.23, K.I, p. 73; Dognin, p. 201, grifos nossos) E Marx chega a descrever esse movimento como um “ quiproquó” : “A forma natural da mercadoria se torna forma do valor. Mas note-se bem, esse quiproquó só se pro duz para uma mercadoria B (...) no interior da relação de valor (...)” . (W.23, K.I, p. 71; Dognin, p. 198) Ainda uma vez o “ quiproquó” do sujeito não é mais do que a reprodução de um “ quiproquó” das coisas. São as coisas que se entranham em determinações “contradi tórias” . O discurso dialético as segue, apenas. Quanto à imputação de uma queda na falsa aparência, isto é, no fetichismo, digamos por enquanto que é confundir a expressão da forma na matéria com a idéia de que a forma está dada na matéria enquanto matéria. Mas seria melhor desenvolver as considerações de Benetti e Cartelier sobre esse ponto, quando chegarmos à forma di nheiro. Passemos agora às formas II e III. Forma II: z mercadorias A = v mercadorias B ou v mercadorias C ou w mercadorias D ou x mercadorias E ou = etc. É aqui que Benetti e Cartelier introduzirão a tese segundo a qual a expressão do valor (na forma II, mas a obser vação valeria também para a forma I) é puramente subjetiva. Daí, eles passam à afirmação segundo a qual, a propósito dessas formas, não se poderia nem mesmo falar de valor. Analisemos em detalhe os seus argumentos. A crítica desses argumentos será útil também para pensar a passagem de II a III. Eles escrevem: “O valor de A só está representado, na forma II, tio sentido preciso seguinte: o do poder de compra de A em termos de uma série de mercadorias diferentes. Mas nesse caso o ‘valor’ de A assim exposto só pode ser interpretado como valor ‘individual’, isto é, não social, que só tem significação para o proprietário de A. Este fato, o de que a forma II, em vez de expor o valor de A, exprime uma das primeiras noções smithianas de riqueza (o valor subjetivo de troca, isto é, para ‘aquele que possui’), é reconhecido explicitamente, em bora em forma atenuada, por Marx, no ‘Apêndice’ (Dognin) p. 163, quando ele opõe a exclusão da forma II à exclusão da forma III” . (Benetti e Cartelier, p. 147) Seguem-se duas citações, das quais a segunda é truncada: Citemos o texto de Marx de um modo mais com-
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pleto: “(...) Na forma desenvolvida do valor (forma II) uma merca doria exclui todas as outras para nelas exprimir o seu próprio valor. Esta exclusão pode ser um processo puramente subjetivo, obra, por exemplo, do possuidor da tela, quando ele avalia em muitas outras mercadorias o valor da sua. Pelo contrário, uma mercadoria só se encontra na forma equivalente geral (forma III) porque e na medida em que, enquanto equivalente, ela própria é excluída por todas as outras mercadorias, k exclusão é aqui um processo subjetivo que não depende da mercadoria excluída” . (Dognin, op. cit. , p. 163, grifado por Marx) Esse texto deve ser interpretado a partir de certas passa gens do capítulo 2 do livro I de O Capital, “ O processo de troca” . Com efeito, no capítulo 2, Marx escreve que, “na troca imediata dos produtos, cada mercadoria é meio de troca imediato para o seu pos suidor, mas (ela não é) equivalente para o seu possuidor senão en quanto ela é valor de uso para ele” . (W.23, K.I, p. 103; Oeuvres, Economie I, op. cit., p. 634, grifo nosso) “Para ele (para o possuidor da mercadoria) ela tem imediatamente somente o valor de uso de ser suporte do valor de troca e portanto de ser meio de troca". (W.23, K.I, p. 100; Oeuvres, Economie I, op. cit., p. 621, grifo nosso) Vê-se o que isto significa: para o possuidor de uma mercadoria que quer trocá-la, ela funciona subjetivamente como equivalente geral, ela tem subjetivamente a forma de permutabilidade imediata (no sentido de que ele quer que ela seja aceita por qualquer possuidor de merca dorias cuja mercadoria lhe seja um valor de uso). Assim, se a merca doria A se acha na forma relativa em relação à mercadoria B (relação x mercadorias A valem y mercadorias B, que é a relação assumida pelo agente A), essa mesma mercadoria A, em relação ao agente A , está subjetivamente na forma equivalente, ou recebe a determinação do equivalente.63 O equivalente subjetivo é assim inverso em relação à forma objetiva: ele se acha do lado em que, objetivamente, se encon tra a forma relativa .M O texto do apêndice à primeira edição de O Capital, citado por Benetti e Cartelier, vai no sentido dos textos do capítulo 2; só que o seu objeto é a forma II. Mas a idéia de uma função equivalente subjetiva vale para qualquer forma anterior ao di nheiro. Na forma II ela ganha toda a sua importância, pelo fato de que, como veremos, é a partir daí que a passagem à forma III se tom a plenamente inteligível. Por outro lado, o texto do apêndice acentua a noção de exclusão. A exclusão, isto é, a partição do campo das mercadorias entre, por um lado, as mercadorias particulares e, por outro, a mercadoria geral, partição que é condição para a consti tuição do equivalente geral objetivo, está lá, mas como ato subjetivo do echangista A (e por isso é a mercadoria A, não a mercadoria B, que funciona como equivalente — subjetivo).65 E é a essa subjetivi dade da exclusão que remete em última instância a frase final do texto, a qual se refere à exclusão objetiva (que depende das outras
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mercadorias) distinguindo-a implicitamente da exclusão subjetiva que só depende da mercadoria excluída (o que quer dizer, aqui, dessa mercadoria na sua relação com o seu possuidor). Nada há, portanto, de mais estranho ao texto do apêndice do que a idéia de que a forma II, como igualmente a forma I, represente uma expressão subjetiva do valor. Esta tese, Benetti e Cartelier tentam aliás justificar ou confir mar (pois eles pensam havê-la mostrado através de sua leitura da forma II), servindo-se de outros textos de Marx. Somos obrigados a retomar esses textos. “Mudanças essenciais — escrevem Benetti e Cartelier, p. 148, — citando Marx (ou pelo menos supondo fazê-lo: por ora é, pois, do Marx na versão que dão os dois autores de que se trata) — mudanças essenciais ocorrem na passagem da forma II à forma III, e não tanto na passagem da forma I à forma II” (nota dos autores:) “tradução modificada” . (Benetti e Cartelier, p. 148, o texto remete a Dognin, op. cit., p. 165) E eles continuam: “A razão disto é que ( (nova citação de M arx)) ‘esta forma é a primeira que relaciona entre si as mercadorias enquanto valores. (O Capital (Plêiade I), p. 598) e que () citação de M arx)) ‘o valor delas obtém em conseqüência a sua forma fenomenal adequada enquanto valor de troca’ (Dognin, p. 73)” . “Esta forma — continuam Benetti e Carteüer — é pois a ‘forma social’ ((Dognin) p. 77) das mercadorias. /O que confirma as dúvidas que emitimos no que se refere à utilização da noção de valor a propósito das formas I e II” . (Benetti e Cartelier, p. 148) Inicial mente, mesmo se não se trata do ponto mais importante, corrijamos a tradução da passagem de Marx citada no início do texto. Os dois autores modificaram — e modificaram mal — a tradução de Dognin. Ela é correta: “Na passagem da.forma I à forma II, e da forma II à forma III, ocorrem mudanças essenciais” . (Dognin, op. cit., p. 165)66 Mas o ponto mais importante vem em seguida. Em primeiro lugar, a segunda citação de Marx (“esta forma é a prim eira...”) é feita a partir da tradução de Roy. Ora, Roy omite um termo que é, na reali dade, essencial. O texto alemão diz: “Erst diese Form bezieht daher wirklich die Waren aufeinander als Werte (...)” . (W.23, K.I, p. 80, grifo nosso) O que se traduz por: “ Somente esta forma põe efetiva mente (ou: esta forma é a primeira a pôr efetivamente) em relação as mercadorias enquanto valores” . (A versão de Dognin — por que eles deixaram de lado, aqui, esta versão? — traduz “wirklich” por “realmente” (réellement) (ver Dognin, p. 210), o que não é a melhor tradução, mas é de qualquer modo melhor do que a omissão.) A Wirklichkeit designa na lógica de Hegel — vimos em outro lugar a propósito de um outro problema — não a realidade (Realität) mas a realidade efetiva, “unidade da essência e da existência” .67 O texto não quer dizer que antes da forma II os objetos postos em relação não são valores (por isso mesmo ele os chama “mercadorias”), nem mesmo que não haja lá uma relação entre valores, mas somente que essa
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relação não tem por enquanto uma realidade efetiva. Mas deixemos de lado por ora a questão de realidade da relação, isto é, a questão de saber se há e em que sentido há na expressão não só valor mas também valor de troca, embora seja este no fundo o único ponto que mereceria alguma explicação. Mostremos simplesmente, por ora, que a idéia de que não haveria valor deve ser absolutamente rejeitada. Isto aparece claramente se passarmos à terceira passagem de Marx (“o valor deles obtém em conseqüência...”) citada de um modo trun cado por Benetti e Cartelier. Citemos a frase inteira: “É somente nessa expressão unitária do valor relativo que elas aparecem todas umas às outras como valores, e que o valor delas obtém em conse qüência a sua forma fenomenal adequada (ou correspondente, entsprechende — RF), enquanto valor de troca”. (Dognin, p. 73, grifado por Marx) Vemos, pois, que o que é novo é a aparição adequada do valor, não o próprio valor, que é dado evidentemente desde o início. Portanto, se há dúvida ela só pode incidir sobre a questão da presença do valor de troca, o que remete ao problema da interpretação da expressão “forma fenomenal adequada” . Na realidade, o próprio valor de troca também está presente, desde o início. A dialética da forma do valor não é gênese do valor de troca, mas gênese do di nheiro. Ela é desenvolvimento (no sentido definido anteriormente) do valor de troca. Ao contrário do que ocorre para o dinheiro, o valor de troca está presente enquanto valor de troca desde o início, embora não de uma forma adequada. O problema é aqui, como vemos, o da aparição de uma aparição. Que o valor não tenha a sua forma feno menal adequada quer dizer que a forma fenomenal está, sem dúvida, lá, mas sem se manifestar de uma maneira apropriada. Tal é o sen tido da “realidade efetiva” da expressão do valor, ou de sua presença “verdadeira” , como dirá um outro texto.68 Examinemos agora a passagem da forma II à forma III. Ao passar da forma I à forma II, o valor de uma mercadoria não se exprimiria mais simplesmente numa mercadoria B, mas em várias mercadorias B, C, D etc. Através disso, iremos, pois, da unidade (e da simplicidade) à pluralidade. Para chegar à forma geral (forma III) a partir da forma II, é preciso voltar à simplicidade, mas se tratará de uma simplicidade que contém nela própria a pluralidade. Deveríamos obter: u mercadorias B = v mercadorias C = z mercadorias A w mercadorias D = x mercadorias E = Mas os valores de uso concretos (que até aqui — na versão da quarta edição — figuram a posteriori entre parênteses) são agora postos, substituindo as expressões “ algébricas” :
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“ 1 roupa = 10libras de chá = 40 libras de café = 1 quarta de trigo — 20 varas de tela 2 onças de ouro = 1/2 tonelada de ferro = x mercadorias A = etc. mercadorias. (W.23, K.I, p. 79; Dognin, p. 208) . Essa passagem é um dos pontos mais difíceis da análise da forma do valor. Como se sabe, já a partir da primeira edição de O Capital (na qual ele inseriu um apêndice no último momento) Marx forneceu versões sucessivas e diferentes da análise da forma do valor. Comecemos pela versão da quarta edição de O Capital. A passagem da II à III é apresentada aí a partir dos “defeitos” da forma desen volvida (forma II). E esses defeitos são de três ordens: por um lado, a cadeia das expressões relativas pode ser sempre prolongada (podemse supor sempre novas espécies de mercadorias); em segundo lugar, na forma II, a variedade qualitativa não foi eliminada, pois a expres são de valor se faz através de diferentes valores de uso; em terceiro lugar, é possível e é necessário (“como isto deve ocorrer”)69 que se tenha várias seqüências em lugar de uma só exprimindo o valor rela tivo de cada uma das mercadorias. Os dois primeiros defeitos repre sentam “insuficiências” da forma II: ela não é simples, e ela não é fechada. O terceiro defeito é, se se pode dizer, mais grave: com a série de seqüências, não só teríamos uma série sempre aberta, mas cada membro da série — cada seqüência — excluiria o outro.70 Nenhuma universalização (que ultrapassasse os limites de cada encadeamento) poderia ocorrer, a menos que a inversão viesse negar tanto a diver sidade dos membros da seqüência como a da série das seqüências.71 Para passar à forma geral, seria necessário, pois, que não houvesse mais do que um equivalente; a forma do valor das mercadorias será então “simples e comum, portanto geral” (W.23, K.I, p. 79; Dognin, p. 209), o que ao mesmo tempo simplificará a expressão relativa (no equi valente) na seqüência considerada e evitará a multiplicação de seqüên cias. Uma mercadoria se tornará pois equivalente geral: “(...) ao lado (...) dos leões, dos tigres, das lebres e de todos os outros animais (efe tivamente) reais (...) existirá, ademais, o animal, a encarnação indivi dual de todo o reino animal” . (Dognin, p. 73, texto da primeira edi ção, grifo nosso) Em outros termos, a forma geral será ao mesmo tempo universal e individual, isto é, ela será um universal concreto. Mas como efetuar — e como legitimar — essa passagem? A maneira mais imediata de efetuá-la seria fixar simplesmente uma das formas equivalente particular como equivalente geral. Mas não seria uma maneira satisfatória de efetuar a passagem, porque desse modo nada
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mostra por que tal equivalente particular se torna equivalente geral. Na realidade, o movimento se faz pela inversão dos termos. A merca doria que se encontrava na forma relativa (em II), se tomará equiva lente geral. É a maneira mais satisfatória. Sua justificativa se acha nos textos que examinamos antes e que introduzem a idéia de um equivalente subjetivo. Exprimindo o valor de sua mercadoria A nas mercadorias B, C, D etc. (forma II), o possuidor da mercadoria A faz, subjetivamente ou de um modo puramente subjetivo, com que a sua mercadoria A valha enquanto equivalente geral. Ela aparece para o agente A como sendo permutável com todas as outras mercadorias. Com a forma relativa desenvolvida, temos pois, ao mesmo tempo, subjetivamente, a forma equivalente geral. A inversão é assim justifi cada de um modo mais estrito, porque aparece aí o que liga a forma II à forma III. Se a forma II contém de maneira subjetiva a forma III, basta pôr objetivamente a primeira — pela inversão da expressão — para obter a segunda.72 Mas o problema é saber quais são a significação e o valor da crítica de Benetti e Cartelier a propósito desse ponto. Na realidade, é como se para eles o único desenvolvimento pensável fosse a genera lização das seqüências. Com efeito, na medida em que eles não co nhecem ou não reconhecem o processo de constituição do universal concreto, só restaria esse caminho. Ora, se supondo uma sucessão de seqüências esta via nos conduz, como vimos — tomando-a como uma alternativa à universalização concreta e não como uma forma de “transição” —, a perder a universalização; supondo a simultaneidade, ela conduz à eliminação de toda expressão do valor (mas não do próprio valor, como eles supõem). Ê esta possibilidade de uma elimi nação de toda expressão do valor que Marx considera nos textos ci tados — e isto para mostrar a necessidade de um outro caminho. Mas tentemos representar de um modo mais preciso a significação lógica da generalização das seqüências, nos dois casos em que ela poderia se apresentar. “Cada possuidor de mercadorias — escreve Marx no texto do capítulo II citado em parte por Benetti e Cartelier — só quer alienar a sua mercadoria contra uma outra cujo valor de uso satisfaça a sua necessidade. Nessa medida (sofern), a troca só é para ele um processo individual. Por outro lado, ele quer realizar a sua mercadoria como valor em qualquer outra mercadoria do mesmo valor que lhe agrade (ihm beliebigen) quer a sua mercadoria tenha ou não tenha valor para o possuidor da outra mercadoria. Nessa medida (sofem) a troca é para ele um processo social geral. Mas o mesmo processo não pode ser simultaneamente (gleichzeitig) para todos os possuidores de mer cadorias somente individual e ao mesmo tempo somente social geral” . (W.23, K.I, p. 101, Oeuvres, Économie I, op. cit., pp. 621-622, grifo nosso) Para cada agente o processo de troca é, pois, ao mesmo tempo so-
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ciai e individual, isto é, ele é “venda” , realização do valor da sua merca doria (processo social) e “compra” , aquisição de uma mercadoria de outrem cujo valor de uso deve satisfazer a sua necessidade (processo individual). Esses dois pólos poderiam distribuir-se entre os dois agen tes — esta é a pergunta a que responde o texto — isto é, a operação poderia ser apenas uma compra (processo individual) para um dos agentes e não ser senão uma venda (processo social) para o outro agente? Sim, com a aparição do dinheiro (ou de um equivalente geral objetivo consolidado). O agente que dispõe de dinheiro compra (pro cesso individual), o que dispõe de mercadoria vende (processo social). Mas “antes” da constituição do dinheiro ou de um equivalente objetive geral consolidado — no nível da forma II desenvolvida (série de se qüências) ou ainda no nível da inversão desta, não poderiam os pólos distribuir-se entre os agentes? Evidentemente, é preciso distinguir aqui os dois casos, a multiplicação das seqüências em forma suces siva, e a multiplicação das seqüências com simultaneidade. Se várias mercadorias se tomam sucessivamente equivalente geral subjetivo (o que com a inversão se tomará o equivalente geral objetivo), temos de certo modo uma polarização, antes da emergência do dinheiro ou de um equivalente geral objetivo consolidado: em cada momento do pro cesso (isto é, enquanto a sua mercadoria funciona como equivalente geral) cada agente só realiza um processo individual (e os outros só um processo social); embora para o conjunto dos momentos, dado o “rodízio” do equivalente geral, o processo seja para todos social e individual. Razão pela qual, no texto anterior, desenvolvendo a im possibilidade de que o processo para cada agente seja somente indi vidual ou somente social (antes de haver equivalente geral objetivo consolidado), Marx emprega o termo “simultaneamente” . Se se supu ser que o conjunto das seqüências é simultâneo, toda expressão do valor se torna impossível. “Consideremos mais de perto a questão — escreve Marx na continuação do texto — para cada possuidor de mercadorias, toda mercadoria extema vale assim como equivalente particular da sua mercadoria,73 e portanto a sua mercadoria vale como equivalente geral de todas as outras. Mas como todos os agentes fazem a mesma coisa, nenhuma mercadoria é equivalente geral e as mercadorias também não possuem nenhuma forma relativa geral do valor, na qual elas se põem como iguais (gleichsetzen) e se comparam enquanto grandezas de valor. Em conseqüência elas não se situam (stehen) mais em geral umas em relação às outras enquanto merca dorias, mas somente enquanto produtos ou valores de uso” . (W.23, K.I, p. 101; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 622, grifo nosso) Não haveria mais expressão do valor, por falta de mercadoria que se en contrasse na forma equivalente. E como a expressão do valor não é uma relação reflexiva, a mercadoria também não pode se exprimir ela mesma.74
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Resta-nos apenas a passagem da forma geral à forma dinheiro. Benetti e Cartelier falarão, à propósito dessa passagem, de “golpe (.coup de forcé) final” (p. 151) e denunciam de novo a “falsa apa rência” (p. 145), isto é, imputam a Marx uma queda no fetichismo. De que se trata, na realidade nessa última passagem? A passagem à forma IV tem um caráter particular. Poderíamos dizer que, até aqui, as mudanças eram de ordem sintática, elas interessavam a relação entre os termos; agora a mudança é de natureza semântica, ela inte ressa à própria natureza do objeto. Aqui se retoma de novo a mate rialidade. Sem dúvida, desde o início da análise da forma do valor, a matéria (o valor de uso) já era, como vimos, material para a expres são do valor. Mas se tratava de um material qualquer (ou, na forma II, de vários materiais quaisquer). Com a forma III, passar-se-á a um material determinado. Mas com a forma IV ter-se-á um material con gruente às exigências da forma. Pois os diversos materiais não são igualmente úteis para esta nova determinação do valor de uso — esse valor de uso formal75 que deve adquirir uma mercadoria para se tornar dinheiro. Graças às suas características (homogeneidade, dura bilidade), certos valores de uso servem melhor do que outros para esta função. A forma dinheiro em constituição, que se tornou equivalente geral, “busca” uma matéria ou as matérias que melhor convêm às suas necessidades enquanto forma. Esta matéria adequada é o ouro (ou o ouro e a prata). Com efeito, há uma congruência (Kongruenz)76 entre as qualidades naturais do ouro e a função formal da moeda. A distância entre, por um lado, esse resultado, que nada mais faz do que mostrar a apropriação, pela forma, de uma materialidade que lhe é adequada, e por outro lado um discurse 'etichista, que supõe que esta materialidade tem naturalmente tal forma é indicada pelo duplo enunciado da Contribuição à Crítica da Economia Política, retomado por O Capital: “Embora o ouro e a prata77 não sejam naturalmente (von Natur) dinheiro, o dinheiro é naturalmente (yon Natur) ouro e prata” .78 Que significa esse resultado, que Benetti e Cartelier citam (p. 145), para denunciar uma queda na aparência falsa? Para com preendê-lo, é preciso retomar as observações anteriores sobre o “juízo de reflexão” e o que o distingue dos juízos de inerência ou de inclu são. No texto que examinamos, comparam-se dois enunciados (para simplificar, supomos que o ouro é o único valor de uso que deve tomar a forma dinheiro): O ouro é dinheiro. O dinheiro é ouro. Esses dois enunciados não são ambos verdadeiros, se se supuser que eles têm um mesmo caráter lógico; ambos só serão verdadeiros se forem de natureza lógica diversa. Para que o primeiro enunciado seja verdadeiro, ele deve ser lido como um juízo de reflexão, no sentido anteriormente definido: o sujeito “ouro” não é posto, mas somente
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pressuposto. Este sujeito, simples sujeito gramatical, “passa no” pre dicado posto “dinheiro” . Ou, o que dá no mesmo, há “negação” tanto no plano do discurso como no plano do real, entre o sujeito e < “ seu” predicado. Passando do sujeito “ouro” ao predicado “ dinheiro” , passa-se com efeito do universo antropológico geral ao universo que é só das sociedades em que existe dinheiro. Uma falsa leitura desse juízo de reflexão, como se se tratasse de um juízo de inerência, nos conduziria a supor uma continuidade entre os dois termos: cairíamos no fetichismo. Com efeito, a leitura fetichista consiste precisamente em interpretar esse juízo como um enunciado de inerência, em que o sujeito “ouro” seria um verdadeiro sujeito em que, em conseqüência, o predicado exprimiria uma determinação desse sujeito. Considerando o sujeito pressuposto “ouro” como um sujeito posto, se fetichiza a relação, porque se faz assim do predicado “ dinheiro” a qualidade, que só pode ser natural, do sujeito “ouro” . O segundo enunciado é, pelo contrário, um juízo de inerência. Ele significa: uma vez dada a moeda, esta tem como matéria (como forma material) adequada o ouro — e não um boi, papel etc. Embora todos esses valores de uso possam servir como equivalente geral — o enunciado não exclui essa possibilidade — ele afirma que é o ouro a matéria congruente ao equivalente geral e que por isso se torna dinheiro. O predicado “ouro” é assim um verdadeiro predicado do sujeito “ dinheiro” . Se do ouro ao dinheiro só se passa através de uma descontinuidade, de uma “nega ção” , do dinheiro se passa sem “negação” . Dizendo: “o dinheiro é ouro” , não faço mais do que exprimir o movimento pelo qual uma forma social “ atrai” para si a materialidade que lhe é adequada. E aqui também há possibilidade de uma falsa leitura do enunciado — mas falsa leitura inversa à anterior — a que consistiria em transfor mar o juízo de inerência em juízo de reflexão: a moeda seria uma simples pressuposição e enquanto tal “passaria no” ouro. Essa falsa leitura nos conduziria, como a falsa leitura anterior, a uma forma ilusória de pensar a relação. Mas essa forma ilusória não seria mais o fetichismo. Se a transformação do juízo de reflexão em juízo de ine rência instaura, no primeiro caso, uma leitura fetichista, a transfor mação do segundo enunciado — que é um juízo de inerência — em juízo de reflexão ( “o dinheiro é... ouro”) nos levaria a cair no erro inverso que poderíamos chamar de "antifetichismo” ou de "conven cionalismo”. No primeiro caso, o ouro se torna naturalmente dinheiro, no segundo o dinheiro só se tom a convencionalmente (por convenção) ouro. Dois erros diferentes. Com efeito, contrariamente à sua versão vulgar que como sempre só considera um lado, a crítica do fetichismo em Marx é apenas um dos lados de uma dupla crítica. Ã crítica do fetichismo (naturalização — não posição material das relações sociais coisificadas) corresponde o outro lado a crítica do convencionalismo ou do “antifetichismo” (abstrato) (redução da objetividade social ao
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estatuto de signo arbitrário, recusa teórica de toda coisificação do social).79 Somos conduzidos assim a exprimir pela forma do juízo — e portanto em termos de um a teoria d a proposição — o conceito de fetichismo, ou antes, o da dupla ilusão ideológica fetichismo/conven cionalismo, tal como ela aparece em O Capital. e) Â forma do valor (cont.) Benetti e Cartelier propõem ainda uma “segunda interpretação” da análise da forma do valor, “demonstração recíproca” que seguirá urna vía “regressiva” e que deveria mostrar “com precisão” “o ponto em que se tro peça” e “fomecer preciosas indicações para a solução do problema, (pp. 151-152) “Tomemos como ponto de partida x mercadorias A = y mercadorias B, chamada forma I. A construção dessa forma se baseia em duas hipóteses que convém explicitar desde já: a forma representa urna troca (efetiva), o que, utilizados os símbolos precedentes, se exprime por: x(A) 5 y(B) (p. 152) O sentido desses dois signos (que os autoreshaviam introduzidona p. 143) já foi indicado ( =s> significa “é expresso como valor relativo” e -* “é equivalente a”). Essa forma de que se parte na “segunda interpretação” não é, evidentemente, de Marx. A forma de Marx, Benetti e Cartelier a haviam representado por x(A) Z y (B) (p. 143) Esta última forma (a de Marx) se lê: xmercadorias A valemy mercadorias B, o que quer dizer: a mercadoria A é expressa como valor relativo, ou se acha na forma relativa, a mercadoria B se acha na forma equivalente. A forma pela qual Benetti e Cartelier começam a “segunda interpretação” (Hl) quer dizer, pelo contrário, “o valor da mercadoria A é expresso como valor relativo” (ou a mercadoria A se acha na forma relativa) e a mercadoria A se acha (aínda) na forma equivalente (observar a posição das flechas nas duas fórmulas). Que é que autoriza os dois autores a começar por aí — a escrever A é o equivalente de B e não o inverso? Se nos lembrarmos dos argumentos que eles introduziram anteriormente, a resposta só pode ser esta: o que os autoriza a começar por aí é o fato de que em Marx a mercadoria A é um equivalente subjetivo (mas puramente subjetivo, só para o agente A e não objetivamente) da mercadoria B. Esse equivalente subjetivo se torna aqui o equivalente pura e simplesmente. Mas o que é que autoriza esse deslizamento? O deslizamento é autorizado pelo fato de que eles não partem evidentemente da expressão — da expressão objetiva — do valor, mas simplesmente, como eles mesmo dizem, de urna troca efetiva. Se se partir da troca efetiva (e não da expressão objetiva que a precede) não há mais expressão do valor, ou toda expressão do valor só pode ser subjetiva. Com efeito, a troca em potência é o lugar da expressão objetiva, enquanto a troca efetiva (isolada do momento anterior) só comporta expressões subjetivas. A troca efetiva, considerada em si mesma, só introduz uma equi valência "rasa” entre as duas mercadorias. Liquida-se assim o conjunto do problema no ponto de partida. Mas continuemos. A hipótese 1 dos dois
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autores, se se supuser que se trata de uma troca entre duas mercadorias, implica, evidentemente, na medida em que se pôs entre parênteses a expressão objetiva do valor — e diferentemente do que ocorre com a forma I de Marx — que a relação é simétrica. Se a mercadoria A é “equivalente” (na realidade subjetiva) de B (o que significa: o agente A quer realizar o valor de sua mercadoria) e “forma relativa” em relação a B (o que significa aqui: o agente A exprime em B o valor da sua mercadoria, mas que é preciso apresentar aqui como a expressão do sujeito na troca), é preciso dizer também e ao mesmo tempo que a mercadoria B é ao mesmo tempo forma equivalente e forma relativa em relação à mercadoria A. (O agente B quer realizar o valor da sua mercadoria B e, por outro lado, exprime em A o valor da sua mercadoria.) Mas tudo isso, se se trata de um intercâmbio entre duas mercadorias. Se for outro caso, isto é, se se introduzir o dinheiro, essa simetria desaparece. Ã parte as pressuposições anteriores, é pois supondo que se trata de duas mercadorias (hipótese que suprimirão mais adiante) que eles se permitem passar à segunda hipótese: “H2: a relação construída com base na hipótese 1 é reflexiva, o que se exprime por: x(A) | y(B)” (p. 152) Na realidade, o que eles exprimem aí não é a reflexividade da primeira relação (a qual se escreveria x (A) % x (A)), mas a sua simetria. Mas eles acrescentam: “ou como habitualmente x(A) = y(B)” (Ibidem) Antes de continuar, analisemos mais de perto a forma a que eles chega ram (H2) comparando-a com Hl e com a forma I de Marx. Isto é importante para a compreensão e a crítica do que vem depois. Comecemos pela forma I de Marx. Na forma I de Marx x (A) = y (B) (em que “ = ” quer dizer “exprime o seu valor em”), se tem uma relação a Rb, que é na realidade uma relação dupla, e que iríamos decompor da seguinte maneira, utilizando os signos anteriores: RI => , A está na forma relativa em relação a B R2 «- , B está na forma equivalente em relação a A. No ponto de partida deles (Hl), tinha-se, pelo contrário: RI => , A está na forma relativa em relação a B R3 -> , A está na forma equivalente (trata-se na realidade do equi valente subjetivo) em relação a B. Agora, em H2, que se escreve x(A) £ y (B) ou x(A) = y (B) temos as relações seguintes: RI => , A está na forma relativa em relação a B. R2 +, B está na forma equivalente em relação a A. R3 -*■ , A está na forma equivalente em relação a B. R4 <= , B está na forma relativa em relação a A. Temos aí, pois, as quatro relações, a saber, as duas relações contidas na forma I de Marx (RI e R2) mais uma que foi introduzida em Hl, a sãber, R3 (a outra relação introduzida em Hl já estava na forma I de Marx), mais uma nova relação R4.
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Eles escrevem em seguida: “A sucessão das formas se apresenta então d» seguinte maneira: como desenvolvimento da forma I. Reescrevamo-la: x(A) «5* (B)
em que x: ^
ey:
”
(p. 152)80
O que é que se tem aí? Na realidade, temos, como anteriormente, as quatro relações distinguidas acima, só que elas estão agrupadas de um modo diferente, a saber, distinguindo a relação dupla que eles chamam x, e a relação dupla que eles chamam y. Ora, o que representam essas duas relações duplas? x, «í , é a relação dupla que se encontra na forma I de Marx, a que contém RI e R2. y, $ , é uma outra relação dupla, que contém precisamente o que não se encontra na forma de Marx, isto é, o que eles acrescentaram à forma de Marx, a saber, R3 (dado já em Hl) e R4 (dado em H2). A última expressão, em que figuram a relação x (RI e R2) e a relação y (R4 e R3), permite pois separar o que está na análise de Marx e o que eles acrescentaram a ela, que é o que permite estabelecer a simetria da relação. Mas por que efetuar tal separação? Ela foi efetuada para que eles pu dessem, em seguida, examinar as duas vias: a de Marx, para mostrar (com argumentos erróneos que já criticamos) que eles chegam a um impasse; e a da sua hipótese provisória (Hl e H2), para mostrar que ela conduz também a um impasse. Nesse momento, eles reinterpretarão a hipótese que serve como ponto de partida (Hl), introduzindo o dinheiro, o que eliminará H2 (que estabelece a simetria). E eles acreditam ter chegado com isso à solução — “solução” que, não menos do que a hipótese provisória (Hl e H2), representa na realidade a liquidação do problema. Assim se explica a razão do conjunto do trajeto. Trata-se de introduzir a simetria na forma I de Marx, para mostrar que com a introdução da simetria (hipótese provisória, Hl e H2) como sem ela (caminho de Marx, lido à maneira deles), a análise da forma do valor é impossível. Chegamos à parte final da sua critica: “A forma II é obtida generalizando a reláção X, abstração feita do momento (o momento da forma II) de Y.81 Obtém-se: x(A) ^ y (B) ^ z (Q ” (p. 152) Como ler essa forma?82 Ela indica que A se toma equivalente geral de B e de C. Como justificar essa forma? Trata-se ainda uma vez da confusão entre equivalente objetivo e equivalente subjetivo. Aqui ela remete diretamente à interpretação que eles dão da forma II (p. 147), interpretação que já critica mos: os únicos equivalentes objetivos que aí temos são os equivalentes parti culares B, C etc. A é um equivalente geral subjetivo que só existe para o agente A. O equivalente geral — o equivalente geral objetivo — só aparecerá na figura seguinte. O que não os impede de escrever em seguida: “Segundo Marx, a forma II tem como resultado a supressão da troca realizada na forma I (Não há necessariamente troca realizada na forma I e esta forma não é abso lutamente suprimida na forma II, segundo Marx — RF): passa-se do valor ao ‘valor subjetivo’ (vimos que Marx de forma alguma diz isso — RF) pois todas as mercadorias são ‘equivalentes’ para A (sim, mas por que isso nos faz passar ao ‘valor subjetivo’? — RF)”. “Marx estabelece então a condição central: pode-se restabelecer o valor, perdido na forma II (...).” (Ibidem) (Em II não se perdeu nem o valor nem a
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form a do valor, nem portanto a forma equivalente do valor, não se perdeu nada, salvo em certo sentido (pois se “suprimiu”, não se perdeu) a forma simples que se tomou forma desenvolvida e que reaparecerá em III mas como universal concreto — RF.) “Só se pode restabelecer o valor perdido na forma II pela reinversão desta última. E ele (Marx) mostra que essa reinversão é impos sível.” (Ibidem) [Marx não mostra, em lugar algum uma tal impossibilidade, nem mesmo na primeira versão da análise da forma do valor, como já expli camos — RF.] O resto já conhecemos e já criticamos: a forma III só poderia ser obtida por “ generalização”, da generalização resultaria a redução das mercadorias “ a simples produtos”, “o equivalente geral” só poderia, pois, "se encontrar no conjunto definido pelos processos”, haveria em todo esse desenvolvimento uma “ contradição (lógica)”, istoé, uma contradição vulgar. Todas essas afirmações são falsas.83 O que não os impede de concluir: “Tal é a demonstração de Marx”. (p. 153) O mínimo que se pode dizer, evidentemente, é que esta não é a demonstração de Marx, mas a “demonstração” de Benetti e Cartelier. Assim, eliminados tanto (a versão deles d’) a apresentação de Marx como a hipótese da simetria introduzida por H2, mas preparada pela leitura ao mesmo tempo abstrata e subjetiva (precisamente porque se parte de uma troca efetiva) de Hl, abre-se a via que permite retomar o ponto de partida: “Qual é o efeito de H2? A resposta é simples: através de H2 se atribui ao equivalente geral a qualidade de ser uma mercadoria, um dos n processos de trabalho. A contra dição aparece claramente: a teoria das formas demonstra que o equivalente geral não pode ser uma mercadoria; H2 deve pois ser suprimido. A forma I é então perfeitamente clara (seu mistério desaparece), x (A) é uma mercadoria e y (B) é a moeda que não deve ser um processo de trabalho. A generalização d’[a] F[orma| I mostra que a moeda deve ser exterior aos n processos”, (p. 154) Em lugar de reler Hl como expressão objetiva e não subjetiva da forma do valor na relação entre duas mercadorias, eles substituem a relação merca doria/mercadoria pela relação mercadoria/dinheiro. Isto não é evidentemente a solução do problema, mas como eles próprios dizem, “a supressão da questão ela mesma”, (p. 155)84 Seguem-se tentativas de criticar a análise da forma do valor, a gênese lógica do dinheiro, recorrendo a outros textos de Maçx, textos em que “é introduzida a moeda” (p. 158) através de outras operações; a saber, a introdução de “bônus de horas” que seriam trocados pelas mercadorias em lugar do dinheiro, e a operação pela qual o produtor de ouro lança na circulação a sua mercadoria que já é aceita socialmente como dinheiro. Dois casos em que não pode haver gênese: o primeiro porque não há nem haverá dinheiro; o segundo porque o dinheiro já está lá.
Para terminar esse ponto, tentemos extrair conclusões gerais sobre o conjunto dessa crítica da análise da forma do valor. O que eles chamam de “ segunda interpretação” contém as três hipóteses que eles consideram: de fato, esta retoma o núcleo da primeira interpre tação (pondo H2 entre parênteses, e interpretando H l como relação assimétrica) o qual, supondo a interpretação subjetiva, conduz à dis solução da expressão; a isto se acrescentam duas outras hipóteses: por um lado, a de uma simetria (e em geral do caráter da equivalência em
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sentido corrente) da relação inicial, concebida como relação entre duas mercadorias, hipótese que eles mostram sem dificuldade que também conduz a um impasse; por outro lado, a resposta que é final mente a deles — a de que a relação inicial é uma relação entre merca doria e dinheiro — portanto a introdução de imediato do dinheiro — resposta que constitui na opinião deles mesmos a supressão do pro blema. Ê preciso mostrar a significação profunda do conjunto desse procedimento — mostrar a diferença entre o que eles fazem e o que faz Marx. Para isso, consideraremos somente as duas últimas res postas: a hipótese de um ponto de partida numa relação simétrica entre mercadorias e a hipótese de um ponto de partida no dinheiro, isto é, na relação mercadoria/dinheiro. (A primeira hipótese — assi metria e subjetivização da relação — é finalmente menos interessante porque ela é ambígua e repousa de fato em erros de leitura.) Como vimos, esses dois pontos de partida eliminam ambos a possibilidade de uma gênese do dinheiro mas por razões inversas. No primeiro, porque não se pode sair do ponto de partida, o desenvolvimento é propriamente bloqueado. No segundo, porque esse ponto de partida é na realidade um ponto de chegada, o desenvolvimento é imediata mente acabado. Esses dois pontos que são na realidade, no primeiro caso, um ponto de partida, e no segundo um ponto de partida que é ao mesmo tempo um ponto de chegada, iremos compará-los com o ponto de partida e o ponto de chegada da gênese do dinheiro em Marx. Mais exatamente: iremos comparar o primeiro e o segundo pontos (na medida em que esse último pode ser pensado como um ponto de partida) com o ponto de partida de Marx. E iremos compa rar o segundo ponto (na medida em que ele pode ser pensado como um ponto de chegada) com o ponto de chegada de Marx. Essas com parações mostrarão a significação profunda do que está em jogo. Os dois pontos de partida propostos pelos autores nos põem diante da seguinte alternativa: ou se começa por uma relação que é pura e simplesmente uma relação entre duas mercadorias (e portanto em que o dinheiro está absolutamente ausente), ou se começa por uma relação que põe um diante do outro, mercadoria e dinheiro (e portanto em que o dinheiro está absolutamente presente); ou o di nheiro está pura e simplesmente presente, ou o dinheiro está pura e simplesmente ausente. Ora, como vimos, o ponto de partida de Marx, que é o único que possibilita a gênese do dinheiro, não coincide nem com a primeira nem com a segunda dessas alternativas. Com efeito, esse ponto de partida não consiste nem em afirmar a ausência pura e simples do dinheiro (caso em que a gênese é impossível porque se fica sempre no ponto de partida), nem em afirmar a sua presença pura e simples (caso em que a gênese também é impossível porque, inversa mente, já se chegou ao ponto de chegada). Na hipótese de Marx,
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tem-se as duas coisas ao mesmo tempo: o dinheiro está e não está lá. Com efeito, na forma I de Marx temos algo como a presença da au sência do dinheiro. Ou mais simplesmente: temos aí não o dinheiro, nem a sua ausência, mas, como vimos, o germe do dinheiro.85 Como vimos também, poderíamos exprimir esse ponto de partida de Marx pelo juízo de reflexão: “ O dinheiro é... mercadoria” , isto é, “o di nheiro é... a mercadoria que se encontra na forma equivalente” , juízo em que o sujeito “dinheiro” passa no “seu” predicado “mercadoria” que é o único termo posto. Isto quer dizer também que, nesse ponto de partida, um dos termos (a mercadoria que se acha na forma rela tiva) é pura e simplesmente uma mercadoria, e o outro termo (a mercadoria que se acha na forma equivalente) é uma mercadoria afetada pelo “ dinheiro” (entre aspas — isto é, pela pressuposição (prospectiva) do dinheiro, a qual representa a forma equivalente). A crítica do ponto de partida de Marx e, em geral, da sua aná lise da forma do valor pelos dois autores, consiste pois em reduzir essa contradição inicial, contradição dialética (pois nela ocorre uma Aufhebung), único ponto de partida capaz de pôr em marcha esta gênese e, em forma geral qualquer gênese. O devir — vir a ser a partir do não ser — só é possível se esse não-ser não for nem ser nem ausência pura e simples do ser. O procedimento dos dois autores significa, pois, por um lado se situar aquém da contradição, na tautologia: a mercadoria é a mercadoria. Nesse caso, a identidade não passa e não pode passar a nenhuma outra determinação. (Poder-se-ia pensar esse bloqueio como um juízo de reflexão, mas cujo predicado é o próprio sujeito, à maneira pela qual Hegel pensa a identidade: a mercadoria é... mercadoria.) Por outro lado, o procedimento dos dois autores significa situar-se além da contradição, na não-contradição: a mercadoria não é o dinheiro ou o dinheiro não é a mercadoria. Se no primeiro caso é propriamente a identidade que substitui a contra dição, no segundo é a não-contradição que substitui a contradição. No primeiro caso, A = A, no segundo A # B. O procedimento dos dois autores representa, pois, uma afirmação da lógica da identidade e da não-contradição em face da dialética. Ê no fundo, no plano do discurso econômico, uma tentativa que se inscreve numa longa tradi ção de crítica da contradição e de justificação do princípio de identidade: ou o ser ou não-ser. Mas no ponto de partida da sua gênese, o di nheiro “participa” tanto do ser como do não-ser. Mas a segunda alternativa considerada é também úm ponto de chegada. Comparemo-la desse ponto de vista com o ponto de chegada de Marx. As diferenças se revelam análogas às que encontramos para o ponto de partida. O ponto de chegada (que não é tal coisa por falta de ponto de partida) dos dois autores é, pois, que a mercadoria não é o dinheiro e que o dinheiro não é a mercadoria. No que se refere ao ponto de chega, devemos nos fixar antes sobre o segundo juízo:
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o dinheiro não é mercadoria. Precisamente, eles denunciarão em Marx a tese segundo a qual “o dinheiro é mercadoria” , tese que seria a origem das dificuldades.86 Entretanto, não é verdade que para Marx o dinheiro é mercadoria, pelo menos se ficarmos lá. Para Marx o dinheiro é e não é mercadoria. Gom efeito, se no ponto de partida o dinheiro era e não era ao mesmo tempo a mercadoria que tomava a forma equivalente, no ponto de chegada, inversamente, a mercadoria está e não está no dinheiro. Ou, em outros termos, se o ponto de partida poderia ser expresso pelo juízo de reflexão: “o dinheiro é... mercadoria” , ou o dinheiro passava “no” seu predicado, único termo posto, aqui é preciso dizer “ a mercadoria é ... dinheiro” , a merca doria, apenas pressuposta (se a considerarmos, bem entendido, en quanto momento do dinheiro, pois a mercadoria se mantém de resto como mercadoria) passa no dinheiro, o único termo que é posto nesse juízo. O dinheiro é aqui “negado” como a mercadoria o é no início, só que no primeiro caso o dinheiro era uma pressuposição prospectiva, a mercadoria é aqui uma pressuposição retrospectiva. Ou, se se qui ser, lá o dinheiro era germe, ser na sua pré-história (lógica) que exis tia na mercadoria, aqui a mercadoria — tal como ela existe no di nheiro — é material, ser na sua pós-história (lógica), sobre o qual é posto o dinheiro. Vê-se que, como para o ponto de partida, a resposta dos dois autores no que se refere ao ponto de chegada ou enquanto ponto de chegada, significa um esvaziamento da contradição em benefício da lógica da identidade. Observar-se-á, entretanto, que como acontece às vezes coni os críticos sérios da dialética, Benetti e Cartelier são le vados, sem o querer, a uma resposta contraditória, mas sob forma subjetiva de um paradoxo. “O ouro só é mercadoria enquanto exmercadoria!” exclamam os dois autores na página 156. Se se inter pretar o “ex” (“ex-mercadoria”) não como se ele remetesse a um pas sado terminado mas a um passado presente enquanto passado termi nado, teríamos aí uma boa formulação da relação contraditória mer cadoria/dinheiro. Mas essa leitura significaria que passamos da anti nomia à contradição, o que só poderia ser feito pela posição da anti nomia. Conclusão Podemos, agora, concluir essa primeira parte. Conforme o que vimos, a crítica dos dois autores se apresenta em geral como uma tentativa de “ reduzir" a dialética pelas formas da lógica do entendi mento. Digamos que há vários momentos no seu procedimento: eles descobrem contradições em Marx (isto é o mais importante); eles as recusam (como contradições vulgares) em nome da identidade; eles descobrem, ou crêem descobrir, leituras ou textos de Marx que permi-
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tiriam evitar a contradição; propõem a sua própria alternativa, não dialética, que pretende basear-se mais ou menos em certos textos de Marx; finalmente, sem querer, e em forma de paradoxo, são levados pelo menos uma vez a dizer a contradição. Mas precisemos de que forma essa redução se apresenta até aqui. Nesta primeira parte vimos a lógica da identidade abordar os problemas interiores à teoria da circulação simples. O obstáculo contra o qual eles se chocaram foi o movimento de constituição, a gênese (no caso, a gênese do dinheiro), movimento contraditório que se con clui pela constituição de um universal concreto. Como veremos, esta não é a única maneira pela qual se manifesta a contradição. Por outro lado, a crítica dos dois autores aparece como uma tentativa de questionar a materialidade na apresentação de O Capital. Esse questionamento da relação forma/matéria em Marx — questio namento que, como vimos, supõe uma concepção puramente “formal” da apresentação de O Capital — incidiu, na primeira parte, sobre a passagem do valor de uso enquanto suporte do valor ao valor de uso enquanto material em que o valor se encarna (valor de uso formal). Mas, como veremos, o problema da matéria pode se apresentar tam bém sob outra forma. Observemos, para concluir, que esses'dois pro blemas: contradição, relação matéria e forma estão ligados: a relação entre forma e matéria na apresentação de O Capital é uma relação de “negação” e de contradição. Voltaremos a isso tudo, de forma mais geral, nas conclusões finais. II. CIRCULAÇÃO SIMPLES, PRODUÇÃO CAPITALISTA Na primeira parte, tentamos analisar os problemas que se situam no interior da circulação simples, e interessam o trabalho concreto e o trabalho abstrato, o valor de uso e o valor, a forma do valor, o dinheiro etc. O objeto dessa segunda parte será, primeiramente, a questão do sentido geral da circulação simples, a qual contém a da relação entre a circulação simples e a teoria do capital. Em segundo lugar, o objeto será a teoria do capital, e num duplo sentido: por um lado, anali saremos o sentido geral da apresentação da teoria do capital (sobretudo mas não exclusivamente no livro I de O Capital) — discutiremos aí, inversamente, a relação produção capitalista, circulação simples — e por outro lado nos deteremos sobre um certo número de pontos pre cisos (capital constante, no que se refere ao livro I; ciclo do capital, esquemas de reprodução, no que concerne aos livros II e III). Como na primeira parte, o desenvolvimento será ao mesmo tempo crítico e alter nativo. Alguns pontos nos remetem direta ou indiretamente a problemas interiores à circulação simples; será preciso às vezes, para completar a análise, retomar o objeto da primeira parte.
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PRIMEIRA SECÇÃO a) Introdução A relação entre a circulação simples e a produção capitalista é um tema central do livro de Benetti e CarteÚer. Como a propó sito de outros pontos, eles propõem uma solução que tem como contra partida a critica das respostas anteriores, entre as quais a resposta de Marx. “(...) a passagem da mercadoria ao capital (é) um problema não resolvido.” 87 Acreditamos pelo contrário que, bem compreendida, a resposta de Marx é efetivamente uma solução, senão a solução. Nesse sentido não estaríamos de acordo com essa formulação. Entretanto, estamos totalmente de acordo com ela, no sentido de que seria difícil dizer que a resposta de Marx foi, até aqui, bem compreendida. Dirse-ia antes, que, a esse respeito, ainda não se resolveu de uma forma rigorosa o problema do sentido da resposta de Marx. O que vem em seguida representa uma tentativa de resolver este último pro blema. Já assinalamos o que constitui uma dificuldade preliminar. A formulação que Benetti e Cartelier dão ao problema é em certa medida diferente da que se extrai da leitura de O Capital. Eles falam, por exemplo, de “sociedade mercantil” . O que poderia dar a impressão de que o problema deles é outro, o que implicaria: não se poderia com parar a resposta deles com a de O Capital. Mas são eles próprios que comparam as duas soluções. A diversidade aparente dos problemas decorre na realidade da diversidade das soluções a um mesmo pro blema, ou mais exatamente, das dificuldades da solução que eles propõem (para a leitura de O Capital e para o problema mesmo), como este parágrafo o mostrará. “Esse capítulo se propõe contribuir para o debate ininterrompido desde a origem da economia política sobre as relações entre os conceitos de mercadoria e de capital. O problema não foi sem pre exposto de um modo explícito; ele foi geralmente obscurecido pela evidência com que o capitalismo se apresentava como sociedade mercantil de um tipo particular." (p. 132, grifo nosso) Eis aí o que constituiria, para os nossos autores, tanto a característica como o pe cado da interpretação tradicional: o capitalismo seria uma espécie do gênero “sociedade mercantil”. À relação entre a sociedade mercantil e o capitalismo seria uma relação de gênero a espécie. No interior dessa orientação geral, eles distinguem a tendência neoclássica88 da tendên cia clássica, e no interior desta última duas abordagens diferentes: de um lado a de Ricardo-Torrens-Sraffa, mas “a análise crítica” permi-
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tiria mostrar que é só no que se refere ao seu projeto89 que os três autores iriam nessa direção; a outra abordagem clássica seria a de Marx e Smith. “O ponto de partida é aqui a teoria da mercadoria, e se passa à noção de capital pela adjunção de uma mercadoria suple mentar: o trabalho assalariado em Smith e a força de trabalho em M arx.” (p. 133)90 “(...) mas aconcepção do capitalismo como sociedade mercantil de tipo particular é incorreta.” (p. 136) Ã relação de gênero a espécie que supõe que a relação “entre proprietários de meios de pro dução e assalariados” (p. 135) é uma relação mercantil — é um inter câmbio de mercadorias — eles opõem a tese de que a “sociedade mercantil” e o capitalismo são duas espécies de um mesmo gênero — “a sociedade monetária” (p. 136): “A proposição de que a força de trabalho é uma mercadoria ‘não tem significação’ (p. 112) Em Marchands, Salariats et Capitalistes, se propõem três hipóteses: H l, que estabelece a relação monetária; H2, que estabelece a relação “mercan til” (isto é, entre agentes de circulação simples); e H’2, que estabelece a relação de tipo capitalista. “(...) a teoria da mercadoria e a.teoria do capital têm uma hipótese comum, H l: as formas sociais, objeto das duas teorias, são monetárias, isto é, correspondem a um tipo particular de vínculo social, que definimos como separação.91 A partir dessa base comum, mostramos que duas formas sociais alternativas podem ser descritas segundo as modalidades da separação igualitária, isto é, em que o modo da separação consiste numa relação entre elementos sepa rados: tal é o conteúdo da nossa hipótese H2;92 não igualitária, isto é, em que o modo da separação consiste numa relação entre elementos separados e não separados, portanto declarados: é o conteúdo da nossa hipótese H’2.93 Compreende-se então que é possível elaborar a teoria do capital como uma extensão da teoria da mercadoria, pois H2 e H’2 se excluem.” (p. 135) Em lugar de uma relação de gênero a espécie cujo vínculo seria a relação mercantil, a troca de mercadorias, haveria uma relação de espécie a espécie, sendo o elemento comum a presença do dinheiro. Haveria, pois, um elemento comum entre a “sociedade mer cantil” e o capitalismo (o que quer dizer que não seria correto separálos completamente) mas este elemento — que é o dinheiro e não a mercadoria — os situaria num mesmo plano de generalidade, como espécies do gênero “sociedade monetária” . Mas seria verdade que a tradição concebe a relação entre à “sociedade mercantil” e o capitalismo como uma relação de particula rização? Mais precisamente, a passagem da mercadoria ao capital, em Marx, que se efetuaria pela adjunção de uma mercadoria particular, a força de trabalho, estabelece uma relação de gênero a espécie? Este é o problema que examinaremos, começando pela questão do sentido da circulação simples em O Capital.
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b) Sentido da teoria da circulação simples em O Capital Dissemos, anteriormente, que a secção I do livro I de O Capital tem por objeto a aparência do mòdo de produção capitalista. Mas esta afirmação deixava vários problemas em aberto. Em que sentido preciso a teoria da circulação simples é a teoria da aparência? Qual a relação entre essa teoria da aparência e a teoria da essência? Ê necessário, pois, retomar o conjunto do problema do sentido da teoria da circulação simples e da sua relação com a teoria do capital. Poderíamos formular a questão também do seguinte modo: a teoria da circulação simples se refere efetivamente ao capitalismo, ou não se refere? Afirmando que ela trata da aparência do capitalismo, afirmamos à primeira vista que o seu objeto é o capitalismo (conside rado em certo nível). E entretanto, não é estranho e mesmo absurdo, dizer que uma teoria em que o capital não está presente, e mais do que isto, uma teoria cujo objeto é um sistema de relações cujo movi mento se orienta pelo valor de uso (ou que tem como finalidade o valor de uso e a satisfação das necessidades e não a valorização do valor) é uma teoria do capitalismo? Uma teoria do capitalismo que tem como objeto relações cuja finalidade é oposta à que caracteriza o capital é uma teoria admissível? Como isto seria possível? Aqueles que até aqui recusaram-se a ver no objeto da secção I de O Capital um objeto que poderia se assemelhar ao capitalismo tinham certamente razões sóli das para fundamentar essa recusa.94 Assumamos essa recusa. Sería mos levados então à hipótese oposta: o objeto da secção I não é o capi talismo. E entretanto, essa tese não deixa de oferecer dificuldades. Com efeito, é na secção I que Marx introduz tanto o valor como o trabalho abstrato. Ê pensável uma teoria cujo objeto não é o capita lismo e que refere entretanto ao trabalho abstrato e ao valor? Dirse-á que o trabalho abstrato e o valor existem fora do capitalismo? Já seria estranho introduzir essas determinações lá onde — mesmo para aqueles que crêem na presença do valor e do trabalho abstrato fora do capitalismo — elas só poderiam existir com um desenvolvi mento limitado. Mas há mais do que isto. Como vimos em outro lugar, Marx nega expressamente a presença do trabalho abstrato e do valor enquanto tais, fora da esfera do capitalismo: “Naturalmente, Steuart sabia muito bem que também nas épocas pré-burguesas o produto toma a forma mercadoria, e a mercadoria a forma dinheiro, mas ele prova detalhadamente que a mercadoria enquanto forma fundamental elementar da riqueza, e a alienação enquanto forma dominante da apropriação, só pertencem ao período da produção burguesa e que, portanto, o caráter do trabalho que põe o valor de troca é especifi camente burguês"?5 “ Se o valor das mercadorias é determinado pelo tempo de trabalho necessário que elas contêm e não pelo tempo de trabalho simplesmente que elas contêm, é o çapital que realiza pela
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primeira vez essa determinação (,..).” 96 Esses textos mostram que não é verdade que, para Marx, o trabalho abstrato e o valor existem enquanto tais antes do capitalismo, mesmo se não desenvolvidos (isto é, sem desenvolvimento mas já no interior de uma história). Para Marx, fora do capitalismo trabalho abstrato e valor não existem enquanto tais (isto é, eles só poderiam existir como existem as coisas no interior de uma pré-história: elas existem e não existem). Como pensar então uma teoria que tem por objeto outra coisa do que o capitalismo e que introduz determinações que enquanto tais (isto é, não só como deter minações desenvolvidas mas enquanto determinações simplesmente constituídas) só podem existir no capitalismo? Os que recusam a tese de que o objeto da secção I não é o capitalismo têm portanto razões sólidas para fazê-lo. Assumamos essas razões: a secção I de O Capital teria, pois, como objeto o capitalismo. Ora, já vimos que é preciso rejeitar essa tese, por razões que são igualmente sólidas. Se conside rarmos o movimento de "redução ao absurdo” de cada tese, somos assim conduzidos de um oposto ao outro num movimento infinito — um mau infinito — incessante. Esse movimento antinómico que apa rece se se fizer a crítica das duas teses opostas, surge na experiência vivida de todos aqueles que tentam pensar rigorosamente a questão do objeto da secção I: chega-se a uma resposta, se a expõe, e as razões que a fundamentam parecem satisfatórias. Mas num outro momento, descobre-se de repente que se está expondo a tese oposta. E é esta última que aparece agora como bem fundada. Ê só num terceiro momento que se dá conta de que se está expondo a tese oposta à que se defendera antes, e que apresentara títulos de igual validade. Aqui, a dúvida (Zweifeln) — como dizia Hegel — se tom a desespero ( Verzweiflung). Poderíamos nos refugiar num terceiro termo? Seria o caso, sem pro blema, se se tratasse de uma oposição, digamos, entre contrários. Mas aqui opomos capitalismo a não-capitalismo, a oposição é entre contra ditórios. Dever-se-ià pôr entre parênteses o princípio do terceiro ex cluído, como fazem certos lógicos, e supor que além da posição de um dos dois contraditórios, e a da contradição que só poderia nos conduzir aparentemente à dissolução do discurso enquanto discurso rigoroso, haveria ainda uma outra possibilidade? Sem discutir a validade das lógicas sem terceiro excluído, pode-se dizer que aqui, um terceiro (que não seja a contradição) não é, de modo algum, pensável. Qual seria esse objeto social que não se situa nem no capitalismo nem fora dele? £ afinal a descoberta dessa antinomia que constitui ou deve constituir o núcleo do procedimento de Benetti e Cartelier. Por vias que não são exatamente as que seguimos aqui, eles adivinharam o caráter contradi tório da relação. E este é certamente um bom resultado, quaisquer que sejam as conclusões que eles tiram disso e o procedimento que elas ins tauram. Outros, marxistas demais ou antimarxistas demais para levar a sério a apresentação de O Capital e se deter nela, não perceberam
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coisa alguma. Mas entre as vias fechadas que constituem o impasse lógico, há uma que não exploramos suficientemente. E que nós não exploramos porque se trata daquela que aparentemente não merecia nem mesmo exame, aquela que menos do que uma via fechada, se apresentava como o próprio fecham ento. Por isso mesmo é como um dado imediatamente evidente que afirmamos que a contradição nos conduziria à dissolução do discurso (pelo menos na sua pretensão à verdade). E entretanto, é esse enunciado, imediatamente evidente, que se releva como o menos sólido. Como para o problema que vimos no texto anterior, a saída está no próprio fechamento.97 Para sair do círculo antinômico do mau infinito, é preciso, não buscar outras terras porque não há outras terras,98 mas se instalar nesse círculo. Operação que é assim a mais difícil, porque ela é a mais fácil. Em vez de fugir da antinomia, é preciso assumi-la, isto é, pô-la. A antinomia posta é a con tradição. Deve-se dizer, portanto, que o objeto da secção I é e não é o ca pitalismo, ela se refere e não se refere ao capitalismo, eis a resposta. Mas uma tal resposta deve ser precisada. A resposta aos proble mas que levanta O Capital não está sempre na contradição, embora a contradição represente a determinação fundamental. A articulação do todo é contraditória. Mas por um lado a contradição não exclui a identidade.99 Por outro lado, e sobretudo quando se diz que a solução está na contradição, é preciso explicar o conteúdo particular da rela ção, mais do que isso, é preciso descobrir de dentro e na sua parti cularidade o conteúdo da relação, que de certo modo, se revela depois como contraditório. (Senão correríamos o risco de cair no formalismo da contradição, ou pelo menos, de parecer ter caído nela.) Deve-se retomar agora a tese de que partimos, tese que diz que o objeto da secção primeira é a circulação simples, e que a circulação simples é a aparência do modo de produção capitalista. A circulação simples é a aparência do modo de produção capitalista: isto significa que, considerado num nível puramente fenomenal, o sistema nos revela um conjunto de intercâmbios que tomados em si mesmos se apresen tam como simples intercâmbios de mercadorias.100 Mas o problema é difícil porque a circulação simples não trata só da aparência, enten dida como circulação simples. A análise da secção I tem como objeto não só o intercâmbio de mercadorias, ela se interroga, e sobretudo, sobre os fundamentos desse intercâmbio. Temos assim a aparência e o fundamento dessa aparência. Entretanto os fundamentos são introdu zidos aqui só como fundamentos dessa aparência. Não que eles desa parecerão quando se passar à teoria do capital, mas eles sofrerão uma operação fundamental. No momento, eles são portanto só os funda mentos da aparência. Por outro lado, mas isso é uma conseqüência, esses fundamentos são congruentes à aparência. Sem dúvida, o valor de troca aparecia como algo que é a tal ponto mutável que deveria se subtrair a toda determinação, e os fundamentos estabelecem uma
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determinação. Mas de qualquer modo, fundamento e aparência se apresentam aqui como termos que têm uma relação de homogenei dade. Esse todo homogêneo constituído pelo fundamento e a aparência constitui a produção simples de mercadorias, momento da produção capitalista.101 Com efeito, essa totalidade homogênea fundam entoaparência que constitui a produção simples de mercadorias é ela pró pria a aparência do modo de produção capitalista. O sistema aparece como um sistema que obedece às leis gerais da produção simples, isto é, ele aparece como se a sua finalidade fosse não a valorização do valor, mas a satisfação das necessidades. Por outro lado, e em conseqüência, a apropriação das mercadorias aparece não como resultado da explo ração do trabalho de outrem, mas direta ou indiretamente, como resultado e conseqüência do trabalho próprio. Tudo isto significa que a produção simples de mercadorias, que é um mom ento da produção capitalista, está na realidade em contra dição com as leis essenciais do sistema. Esta aparência do sistema, momento dele, remete a leis que são opostas às leis do capitalismo. E entretanto trata-se, sem dúvida, de leis do capitalismo. As leis da essência “negam” , na realidade, esta aparência, quando a aparência se interverte no seu contrário, quando se passa, quando ela passa, à essência. A aparência só existe no sistema (no conjunto do sistema, no sistema enquanto totalidade) enquanto aparência “negada (A mesma coisa vale para a essência no nível da aparência — lá, ela é essência “negada” — mas é a essência e não a aparência que determina o capitalismo enquanto capitalismo.) Ora, a teoria que apresenta a secção I é precisamente a teoria dessa aparência, que é “negada” . Mas na secção I, porque se está no ponto de partida, põe-se entre parênteses essa “negação”. A aparência “negada ” pelo sistema é, aqui, posta. O que é negativo ou, antes, “negado” no sistema aparece aqui em forma positiva. Com isto, já se tem a resposta ao problema de saber se a secção I tem por objeto o capitalismo. Ela tem por objeto o capitalismo no sentido de que ela trata da aparência do capitalismo, aparência que, como vimos, é ela própria unidade de uma essência e de uma aparência. Mas a secção I não tem por objeto o capitalismo, no sentido de que ela põe o que o capi talismo nega, de que ela apresenta como positivo o que no capitalismo é “negativo ”. Se se quiser, a teoria da produção simples em O Capital é a
“negação de uma negação” . Este ser-“negado” do capitalismo que é a sua aparência aparece aqui como um ser positivo: a “negação” que o afeta é, aqui, “negada” . O objeto da secção I de O Capital é pois de certo modo o capitalismo com os sinais invertidos, mas “sinais inver tidos” remete aqui menos à operação de “negar” o que é positivo102 do que a de p ô r o que na realidade está “negado ”.
Ê pois em razão da dificuldade que oferece a idéia de que a contradição é pensável e o próprio pensar da contradição (mais preci-
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samente: desta contradição), que o caráter da secção I é tão mal compreendido. A partir desses resultados já poderíamos criticar a leitura de Marx que fazem os dois autores, e a partir de lá, a solução que propõem ao problema da relação entre a circulação simples e a produção capitalista. Mas examinaremos antes (no próximo item) a relação também a partir do outro lado, o que faltava fazer, isto é, a passagem ou as passagens da produção simples à produção capitalista enquanto essência. E para terminar este parágrafo faremos duas obser vações. A solução que propusemos para a definição do estatuto da circu lação simples tem certa analogia com a solução que comporta um problema interior à circulação simples que deixamos em suspenso na primeira parte desse texto.103 Perguntáramos qual era exatamente o estatuto dos momentos da pré-história lógica do dinheiro, postos no decorrer da análise da forma do valor. Mais precisamente, o problema era o de saber se esses momentos estão dados no objeto, que é aqui a circulação simples (enquanto momento do capitalismo) ou se eles eram outra coisa: ou momentos de uma construção puramente teórica, ou objetos dados numa situação historicamente anterior ao aparecimento do dinheiro. Na realidade, nenhuma das duas respostas é satisfatória (nem a primeira, nem a segunda nas suas duas alternativas). Poderse-ia dizer que aí ocorre a mesma coisa que para o estatuto da circu lação simples. Por um lado, a existência enquanto tal dos momentos do dinheiro (por exemplo da forma simples ou da forma desenvolvida) não pode ser admitida, pois uma vez constituído o dinheiro — e na circu lação simples como momento da produção capitalista e mesmo bem antes, o dinheiro já está constituído — esses momentos não existem mais enquanto tais, enquanto expressões imediatas do valor das merca dorias . Se há dinheiro, não há forma simples nem forma desenvolvida do valor no que se refere à expressão imediata do valor das mercado rias,104 pois então o dinheiro é o único a exprimir imediatamente o valor das mercadorias, assumindo a expressão, desse modo, a forma preço. Mas a outra solução também não é satisfatória. Se essas formas não existem, como justificar essa distância em relação ao objeto, isto é, à circulação simples (distância análoga ao recuo em relação à produção capitalista no problema discutido anteriormente)? Com efeito, como dissemos, se esses momentos não existem, ou se trata de uma cons trução que só existe no pensamento, ou se trata da visada de um objeto histórico anterior à circulação simples tal como ela se dá no capitalismo e mesmo antes. Nesse último caso, voltaríamos à troca; no outro, a um discurso do conceito em sentido subjetivo (mesmo se logicista e não psicologista). Ora, a despeito do que dizem os althusserianos, se o discurso dialético é um discurso do conceito, ele o é no sentido em que o “conceito” designa um objeto que existe no pensamento como na realidade.105 E quanto à regressão à troca, a queda na “fábula da
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troca” ,106 é difícil ver como a teoria da circulação simples enquanto momento do capitalismo poderia começar pela descrição de um objeto anterior à aparição do dinheiro. Ora, a solução é até certo ponto análoga, sem ser idêntica, à do problema anterior: os momentos do dinheiro existem e não existem no dinheiro, e portanto na circulação simples. Na realidade, esses momentos existem exatamente enquanto momentos do dinheiro, porque o dinheiro é universal concreto, como vimos, síntese do momento da simplicidade (forma I) com o momento da pluralidade (forma II): eles só existem na forma dinheiro como determinações “negadas” , e não como determinações postas. Eles não existem em forma positiva. Ora, a teoria (no caso a da gênese lógica do dinheiro) os põe enquanto determinações positivas. Assim, a posição dessas determinações corresponde e não corresponde, ao mesmo tempo, a objetos reais: corresponde, porque esses objetos (fazendo abstração do “sinal” de que eles estão afetados) existem no real; não corresponde, no sentido de que as determinações só existem como determinações “negadas” , sendo que a posição (entendamos: a posição positiva) dessas determinações só é dada na teoria.107 A segunda observação é de ordem mais geral: o problema da relação entre circulação simples e produção capitalista enquanto capi talista, não deve ser confundido com o da análise das relações entre as formações mercantis que poderiam existir antes do capitalismo e o capitalismo. Aqui se trata da relação entre a análise da secção I e a teoria do capital, ou se se quiser, no que se refere ao objeto, da relação entre a circulação simples enquanto momento do capitalismo e a produção capitalista na sua essência. O outro problema o discutimos no texto anterior.108
c) Da circulação simples ao capital Examinemos, agora, &passagem da circulação simples ao capital tal como ela se opera quando se passa da secção I à secção II do livro I. Como veremos, só se tem aí uma primeira passagem. Ou, se se quiser, a passagem da circulação simples à produção capitalista enquanto produção capitalista não é ai plenamente realizada. Devemos estudar, pois, o alcance e os limites dessa passagem. De um modo geral, deve-se dizer que o que se modifica, ao passar da circulação simples à produção capitalista enquanto produção capi talista, é a finalidade do processo que se encontra no objeto. Nos limites da circulação simples — ou da produção simples de merca dorias (fundamento da circulação simples em sentido estrito) enquanto momento da produção capitalista — a finalidade da produção e da circulação é o valor de uso, isto é, a satisfação das necessidades. Na produção capitalista enquanto prod. ção capitalista — que é a essência da qual a produção simples é a aparência — a produção que visa o
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valor de uso se revela na realidade como produção que visa a valori zação do valor. O valor de uso enquanto finalidade é a aparência “ negada” pela (valorização do) valor, que representa a finalidade na ordem da essência. A segunda finalidade “nega” a primeira. A se qüência M—D—M que caracteriza a aparência se inverte na seqüência D —M—D, ou mais precisamente, D—M—D’; não se visa mais obter um a mercadoria através do dinheiro, visa-se o aumento do dinheiro através da mercadoria. Mas é preciso analisar mais de perto o sentido dessa inversão. Eis o essencial. Na circulação simples, o sujeito (e se deve en tender aqui “sujeito” de uma forma limitada, pois nesse nível não há Sujeito, como processo autônomo) — o sujeito é inicialmente a merca doria. É na mercadoria que descobrimos a determinação valor de uso, e em seguida a determinação valor e a sua expressão na aparência, o valor de troca. Valor de uso e valor (com sua forma fenomenal) existem, pois, na circulação simples, inicialmente como determinações da mercadoria. Isto não contradiz nem a idéia de que o valor é um fundamento (Grund) — o fundamento do valor de troca — nem que a substância do valor é o trabalho. Esse fundamento é fundamento que existe na mercadoria; e que ele tenha sua substância (mas não sua existência, ela mesma) no trabalho, não elimina o fato de que a mercadoria permanece como o sujeito, do qual o valor é uma determi nação. Podemos dizer, portanto, em primeiro lugar, que na circulação simples “a mercadoria é Valor” (entendendo esse juízo como um juízo de inerência). A mercadoria tem a determinação valor. Podemos dizer, por outro lado, que a “mercadoria é (também) valor de uso” , ela tem como determinação o valor de uso. Da mercadoria, passa-se em se guida ao dinheiro, pelo movimento analisado anteriormente. Mas se o dinheiro “nega” a mercadoria, a mercadoria — como vimos — perma nece de resto mercadoria. Temos assim, no final da gênese do dinheiro, e também no final do desenvolvimento das formas do dinheiro, tanto o dinheiro (que é mercadoria “negada”) como a mercadoria enquanto mercadoria. Ora, não menos do que a mercadoria, o dinheiro tem como determinação o valor (é o preço que não convém ao dinheiro). Pode-se dizer: “o dinheiro é valor” , enunciado que deve ser compreen dido igualmente como um juízo de inerência. Por outro lado, o dinheiro tem valor de uso: mas, como vimos também, o valor de uso do dinheiro é um valor de uso formal, o de ser útil para as funções de dinheiro.109 De qualquer modo, pode-se dizer: “o dinheiro tem valor de uso” . Mas se a mercadoria e o dinheiro permanecem sendo os sujeitos da circulação simples, a mercadoria é primeira em relação ao dinheiro, o que quer dizer que o valor de uso material é primeiro em relação ao valor de uso formal. O valor de uso formal é simplesmente interme diário, a mediação que permite a realização do valor de uso material. Ou, em outros termos, o dinheiro é apenas o mediador que, através da
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realização do valor, permite a realização do valor de uso que é a finalidade de todo o processo. (Ê só nas últimas formas do dinheiro que ele vai aparecer como fim, mas trata-se aí de uma espécie de negação da circulação simples no interior da circulação simples.) Essa anterioridade da mercadoria em relação ao dinheiro aparece no fato de que, no movimento das trocas mercadoria/dinheiro, a rela ção entre a mercadoria e o dinheiro continua sendo uma relação extema. Não há nenhum Sujeito autonomizado que estabeleça relações internas entre os termos. Enquanto só se tem relações externas, o di nheiro, encarnação material do valor, é apenas o mediador para a realização do valor de uso das mercadorias (pela mediação da reali zação dos seus valores). Quando passamos da circulação simples à produção capitalista enquanto produção capitalista, os juízos anteriores que têm por objeto o valor se inverterão. Não diremos mais que “ a mercadoria é valor” e que “o dinheiro é valor” . Diremos agora “o valor é mercadoria” , “o valor é dinheiro” . O valor, que era predicado, torna-se aqui sujeito. Poder-se-ia acrescentar ainda que, agora, o dinheiro será primeiro em relação à mercadoria. Mas isso não diz tudo o que se modifica na passagem da circulação simples à produção capitalista enquanto pro dução capitalista. Isto não diz nem mesmo o essencial. É que se o valor se torna sujeito, ele não se toma sujeito na forma em que a mercadoria e o dinheiro o eram, na forma do sujeito inerte ou do sujeito subs tancial. No nível da circulação simples todas essas determinações só existem em forma substancial. O próprio valor é somente trabalho abstrato cristalizado (e se, enquanto trabalho ele não é inerte, ele também não tem valor, pois o valor é trabalho cristalizado). A passagem da circulação simples à produção capitalista en quanto produção capitalista representa, pois, em primeiro lugar a pas sagem do valor do nível da substância (do nível de relativa inércia) ao de Sujeito, entendendo por “ Sujeito” não somente a determinação pri meira de que as outras são predicados, mas um processo autônomo, um movimento que se autonomizou e se transformou numa força social. Isto quer dizer que a relação entre a mercadoria e o dinheiro na troca não é mais exterior, cada troca faz parte de uma cadeia interna de trocas, que se autonomizou tomando-se assim capital. É a partir disto que se deve pensar a inversão valor/mercadoria e valor/dinheiro. Não se trata simplesmente de fazer do valor o sujeito inerte da determinação mercadoria ou da determinação dinheiro. Enquanto objeto inerte, o valor só pode ser um predicado. Ele só vem a ser sujeito, vindo a ser Sujeito. É como movimento autonomizado que ele vem a ser o sujeito das determinações dinheiro e mercadoria. Assim, dir-se-á agora mais exatamente: “o capital é mercadoria” , “o capital é dinheiro” . E se na circulação simples a mercadoria era uma determinação primeira em relação ao dinheiro, agora é o dinheiro enquanto determinação do
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capital que é anterior à mercadoria enquanto determinação do capital. O dinheiro, encarnação material do valor é a “forma de existência geral” do valor no movimento D—M—D’, a “mercadoria (é) a sua forma particular e, por assim dizer disfarçada (verkleidet)”. (W.23, K.I, p. 168; Oeuvres, Économie, I, op. cit., p. 700) Os juízos “o capital é mercadoria” , “o capital é dinheiro” não são juízos de reflexão, enquanto o capital se mantém enquanto capital. Eles só o serão se o movimento se interromper, com o que o capital se tomará mercadoria ou dinheiro. Teremos então os juízos de reflexão “o capital é ... merca doria” , “o capital é ... dinheiro” .110 Mas os juízos “o capital é merca doria” e “o capital é dinheiro” (supondo a identidade capital = ca pital, isto é, a continuação do movimento) também não são, por outro lado, rigorosamente, juízos de inerência. Eles têm em comum com os juízos de inerência o fato de não haver aí reflexão no predicado. Mas se trata na realidade de um juízo de um terceiro tipo, que poderíamos chamar de juízo do Sujeito. Não faremos aqui, de uma maneira deta lhada, a teoria desses diferentes tipos de juízos. Digamos simplesmente que a diferença em relação aos juízos de inerência (do tipo “o dinheiro é ouro” ou “ a mercadoria é valor” ou “o dinheiro é meio de circu lação”) reside no fato de que, aqui, o próprio Sujeito é constituído por uma relação de negação entre os predicados. O capital só é capital pelo movimento pelo qual a mercadoria “nega” o dinheiro e o dinheiro “nega” a mercadoria. Enquanto que para o julgamento de inerência, cujo sujeito é inerte (embora constituído) a negação de um predicado pelo outro, quando ela ocorre (por exemplo: certas funções do dinheiro excluem outras), embora dada, não é, ela própria, constitutiva do sujeito. O sujeito recebe diversas determinações que se “negam” . Ao passo que no capital o sujeito só é sujeito — ou antes Sujeito — pela negação (contínua) das determinações. Entretanto, com a passagem da secção I à secção II do livro I, só chegamos à primeira negação da circulação simples. Alguma coisa da circulação simples se mantém aí. Isto será mais bem explicado quando tratarmos da segunda negação. Mas já podemos fazer as seguintes observações: 1) até chegar à teoria da reprodução, o movimento do capital tem pressuposições que são pressuposições externas, a saber, o fato de que há por um lado alguém que dispõe de meios de produção e de dinheiro, e, por outro, alguém que só dispõe da sua força de tra balho; 2) no mesmo sentido, até a secção VII, sobre a reprodução — e embora no momento em que é introduzida a noção de capital, ele seja apresentado como um movimento incessante — os movimentos circu lares do capital são isolados uns dos outros. Eles são apresentados, nos textos teóricos, como voltas independentes umas das outras, e mediatizadas por um (novo) contrato entre capitalista e operário. Ora, esses dois elementos, o fato de que as pressuposições se mantêm externas e o fato de que os sucessivos movimentos circulares111
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do capital sejam considerados ainda como sendo interrompidos por um contrato de trabalho» têm como conseqüência que algumas das leis da circulação simples, a saber, o princípio do intercâmbio de equivalentes, e (princípio que é a base desse último) o princípio da apropriação dos produtos pelo próprio trabalho, não são “negados” , mesmo se já se inverteu a finalidade geral do processo. Cem efeito, se se considerar cada volta isoladamente — a coisa muda se considerarmos as voltas ligadas por um movimento contí nuo112 — o intercâmbio entre o proprietário dos meios de produção e o proprietário de força de trabalho — intercâmbio que se revelará entre tanto momento do movimento de O Capital — é uma troca de equiva lentes. O operário fornece uma mercadoria — a força de trabalho — que nas condições normais supostas é alienada por uma soma que representa o seu valor. Temos aí uma troca de equivalentes, quaisquer que sejam as conseqüências desse intercâmbio. Sem dúvida, partimos de uma situação que parece diferente da de uma troca comum. Com efeito, para que essa troca seja possível, é preciso que haja uma espécie de dissimetria entre os dois agentes: um deles deve possuir meios de produção e dinheiro, e o outro não. Mas essa dissimetria não põe em cheque o caráter de troca de equivalentes da operação (considerada no nível em que se a considera). Com efeito, os meios de produção (ou a ausência deles) não entram na operação, ela mesma, que consiste em trocar força de trabalho contra dinheiro. Por outro lado, se se quiser introduzir a dissimetria, nada nos impede pensar que ela resulta da circunstância de que um dos agentes trabalhou mais do que o outro. Como não sabemos nada das origens da situação, é possível que um dos agentes disponha de meios de produção porque ele trabalhou um número maior de horas do que o outro. Em outros termos, fora o fato de que os meios de produção são afinal exteriores à operação, a sua presença de um lado e a sua ausência de outro poderiam, de qualquer modo, ser explicadas pelo princípio da apropriação pelo trabalho pró prio. Assim, a troca de equivalentes e as leis de apropriação pelo trabalho próprio não são postas em cheque pela simples inversão da finalidade do processo (e pela constituição do capital como Sujeito), enquanto as pressuposições permanecerem externas, e enquanto o movimento não for pensado na forma de um movimento descontínuo, interrompido no final de cada volta pelo contrato entre os dois agentes. d) A reprodução Mas tudo o que vimos até aqui representa apenas a primeira negação. Há uma segunda negação, bastante mal conhecida, que se situa no nível da passagem da secção VI à secção VII de O Capital.113 Poderíamos apresentar essa segunda negação em momentos sucessivos. Em primeiro lugar, se em lugar de considerar as voltas do capital como
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voltas isoladas, interrompidas por contratos, se as considerar em conti nuidade — e é justamente isto o que caracteriza a passagem da noção de produção à de reprodução — a relação entre capitalista e operário não aparecerá mais como um ato livre que decorre da vontade dos agentes, como os atos da circulação simples. Se se supuser a continui dade do movimento — e basta supô-la nos limites da reprodução simples — a segunda venda da força de trabalho aparece como um ato forçado, pois o operário, como o capitalista, em condições normais é recriado pelo próprio movimento da reprodução. E a mais-valia obtida (a que o capitalitsta obtém no final da segunda volta do capital) apa recerá como o resultado desse ato forçado. Assim, se se supuser a continuidade do movimento, mais precisamente, o fato de que o movi mento recria constantemente o capitalista e o operário, o contrato livre que permite a troca de equivalentes aparece como coisa bem diferente de um contrato livre. O contrato é agora a aparência de um ato que não é mais de liberdade. Entretanto, esse ato forçado tem ainda alguma coisa de uma troca de equivalentes. Sem dúvida, se o ato não é mais livre, não se pode mais considerá-lo como resultado de um contrato, e nesse sentido não há mais, a rigor, intercâmbio de mercadorias. Em lugar da troca, deve-se dizer que há apropriação. E por isso mesmo, não se deve mais comparar salário e força de trabalho, isto é, uma mercadoria e uma soma de dinheiro que corresponde ao valor dessa mercadoria, deve-se comparar o valor em dinheiro que é transferido ao operário com o valor que ele produz. Ora, uma parte do valor que ele produz e que é apropriado é de qualquer modo compensado pelo fato de que há uma transferência de uma soma de dinheiro, que representa o mesmo valor, das mãos do capitalista às mãos do operário. É a mais-valia que aparece rigorosamente como trabalho extorquido, isto é, apropriado como todo valor criado, mas não compensado por um desembolso correspondente por parte do capitalista. Ora, para evitar que toda legitimidade da operação (em termos das leis da circulação simples) desapareça imediatamente (com a circunstância de que a mais-valia é agora, rigorosamente, trabalho extorquido), é preciso supor que tudo se passa como se o capitalista contraísse dívidas em relação ao operário. E para que se possa “registrar” essas dívidas, é preciso supor que o capitalista não tem direito à totalidade do capital variável que é constantemente recriado. O capitalista terá direito sem pre a esse capital reconstituído menos a mais-valia que, em cada volta, ele se atribuiu.114 O que significa: para que o processo não perca imediatamente todo tipo de legitimidade (legitimidade que, sem dú vida, só pode ser estabelecida a partir da circulação simples), é preciso supor que cada vez que o capitalista desembolsa o capital variável ele está desembolsando de fato o seu capital primitivo115 e não um capital que foi (re)criado pelo operário (pois todo o valor criado pelo operário resulta do trabalho forçado)-, e que no capital variável primitivo se
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fizeram descontos sucessivos correspondentes â mais-valia. obtida. Nessas condições, embora sendo uma apropriação e não uma troca, a alienação da força de trabalho ainda é, entretanto, uma apropriação compensada por um. valor equivalente. A mais-valia apropriada é deduzida do capital variável primitivo.116 Mas essa compensação chega ao limite — este é o movimento seguinte, na realidade o mais impor tante — quando a totalidade da mais-valia apropriada vem a ser equi valente ao capitai variável primitivo.117 Eníão, não há mais capital primitivo que possa substituir a mais-valia, e a totalidade do valor produzido pelo operário aparece como trabalho simplesmente apro priado sem compensação. Restaria entretanto o capital constante. Enquanto a mais-valia apropriada não corresponde ainda à totalidade do capital investido mas somente ao capital variável, essa apropriação forçada e sem compensação tem sempre por base uma soma inicial, que o capitalista adquiriu, talvez através do próprio trabalho. A apro priação pelo trabalho próprio e pelo intercâmbio de equivalentes pode ria, pois, ser ainda a base inicial dessa situação em que não há mais equivalência e em que há uma outra lei de apropriação. Esta última possibilidade desaparece, ela mesma, no momento em que a totalidade da mais-valia apropriada equivale ao conjunto do capital. A partir desse momento, “nenhum átomo de valor do seu capital primitivo con tinua a existir” . (W.23, K.í, p. 595; Oeuvres, Êconomie I, op. cit., p. 1071) Consuma-se então a negação da lei de apropriação da circu lação simples, e do seu fundamento, a troca de equivalentes. A lei da apropriação pelo trabalho próprio e o intercâmbio de equivalentes se transforma na lei de apropriação sem troca do trabalho de outrem.118 Ê o que Marx denomina “interversão das leis da propriedade da produção de mercadorias em leis da apropriação capitalista” . (W.23, K.I, p. 605; Oeuvres, Êconomie I, op. cit., p. 1081) E o que há de importante nessa interversão — e é por isso que há rigorosamente interversão — e que a inversão se faz pela própria aplicação das leis da circulação simples. “Por muito que o modo de apropriação capitalista pareça assim ferir as leis originais da produção de mercadorias, ele não decorre de forma alguma da violação dessas leis, mas, pelo contrário, da aplicação delas.” (W.23, K.I, p, 610; Oeuvres, Êconomie I, op. cit., p. 1081) “ Somente lá onde o trabalho assalariado é a sua base (Basis), a produção de mercadorias se impõe ao conjunto da sociedade; mas é só lá também que ela desenvolve todas as suas potencialidades ocultas. Di zer que a interposição do trabalho assalariado falseia a produção de mer cadorias significa que se a produção de mercadorias não quiser ser fal seada, ela não pode se desenvolver. Na medida mesmo em que segundo as suas próprias leis imanentes ela se ‘aperfeiçoa’ (fortbildet) em produ ção capitalista, nessa mesma medida as leis de propriedade da produção de mercadorias se intervertem (umschlagen) em leis da apropriação ca pitalista.” (W.23, K.I, p. 613; Oeuvres, Êconomie I, op. cit., p. 1090)
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e) Retomo á crítica Voltemos agora ao texto de Benetti e Cartelier. Vimos que eles su põem que, para Marx, a relação entre a produção simples de mercado rias e a produção capitalista enquanto produção capitalista é uma rela ção de particularização, representando a produção capitalista um tipo particular de produção de mercadorias. Insatisfeitos com essa (pretensa) resposta de Marx, eles propõem um outro esquema em que, para usar a sua linguagem, a “sociedade mercantil” e “sociedade capitalista” (p. 70) (ou “o modo de produção salarial” , p. 190), representam “duas formas sociais alternativas” (p. 135) que têm em comum a caracte rística de serem ambas “sociedade(s) monetária(s)” . (p. 136) Ê a alter nativa deles à tese em que os “(sujeitos) capitalistas são concebidos como uma especificação” (p. 53) dos sujeitos mercantis. Mas por que essas duas respostas (essa falsa leitura de Marx e essa alternativa a essa falsa leitura)?119 Se para eles a relação que Marx estabelece entre a circulação simples e a produção capitalista aparece como uma relação de particularização, isto se deve ao fato de que eles percebem que, em Marx, a produção capitalista tem suas leis e deter minações primeiras — podemos dizer leis e determinações gerais — na circulação simples. Ê o fato de que as leis da produção simples funcio nam como princípios para o capitalismo (deixamos de lado por en quanto o “ sinal” desses princípios) que faz com que a relação seja pensada como uma relação de particularização. Se, em segundo lugar, eles não estão contentes com essa resposta, é porque eles se dão conta de que em Marx (e de fato) há uma relação de oposição, podemos dizer de contradição, entre “produção simples de mercadorias” e “produção capitalista” . Mesmo se os dois termos têm algo em comum, ao mesmo tempo um é a negação do outro. Ora, parece irracional supor que a relação entre esses dois termos possa ser ao mesmo tempo uma relação de princípios e conseqüências (introdu zindo um novo tipo de mercadoria) e uma relação de oposto a oposto e mesmo de contraditório a contraditório. Se os termos são contradi tórios, exclui-se que um possa fornecer princípios ao outro. Eis aí a essência da sua crítica. Como se vê, as bases do argumento são pertinentes: há efetiva mente uma relação de princípios e conseqüências, e é totalmente certo (embora os marxistas, em geral, não o digam) que a relação é de contraditório a contraditório. A dificuldade da resposta deles não está, pois, nessas bases, que são válidas, mesmo se eles as exprimem de um modo incorreto (“particularização”), mas no fato de que, para eles, se deve evidentemente excluir a possibilidade de uma relação que seja ao mesmo tempo de princípios e conseqüências e de contraditório a con traditório: uma relação de fundação (na realidade de “fundação”) que seja ao mesmo tempo uma relação de contradição.
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Mas é esta resposta contraditória que é, como vimos, a resposta de Marx. E dizer que a relação entre “produção de mercadorias” e “produção capitalista” é ao mesmo tempo de princípio a conseqüência e de contraditório a contraditório exclui tanto a idéia de particulari zação como a de que os dois termos se relacionam como uma espécie a uma outra espécie. Na realidade, a relação é de “negação” . E “nega ção” significa aqui não só que no segundo termo o primeiro é ao mesmo tempo negado e consérvado, mas que no segundo termo ele é ao mesmo tempo plenamente realizado e negado. De fato, a produção capitalista enquanto produção capitalista é a realização plena das leis da “produ ção simples de mercadorias” ; é só quando ela passa às leis do capital que a produção de mercadorias ganha toda a sua extensão e intensi dade. E entretanto as leis da produção capitalista enquanto produção capitalista contradizem as leis da produção simples de mercadorias. A produção simples de mercadorias, ela própria, como vimos, unidade de uma essência e de uma aparência, se torna, por um lado, a aparência cuja essência é constituída pelas leis do capitalismo enquanto capita lismo. Por outro lado, ela continua fornecendo os princípios para o capitalismo (a lei do valor em primeiro lugar) mas esses princípios são agora princípios “negados” , princípios que só são válidos supondo que eles, ou suas conseqüências, se intervertem no seu contrário. Para apresentar o capital, será assim necessário partir das leis da circulação simples e depois contradizê-las, porque essas leis se contradizem a si mesmas. Vemos com isto em que limites poder-se-ia falar de generalidade a propósito da circulação simples: ela é mais geral se se quiser dizer com isto que ela é mais simples. Mas o desenvolvimento da generali dade, nesse sentido, não é a particularidade. É a complexidade. Mas a complexidade não somente como desenvolvimento da simplicidade. Se fosse esse o caso, passaríamos do esquema das classes ao esquema clássico da passagem do simples ao complexo. A novidade da dialética é que o complexo vem a ser o contraditório do simples. (Se passarmos da relação lógica tal como ela aparecem em O Ca pital ao problema da relação entre formações históricas, a resposta também não será encontrada nos pares gênero/espécie ou espécie/ espécie. As formas mercantis anteriores ao capitalismo não estão para o capitalismo como o geral ao particular. Eles se contradizem e eles também não estão entre si como a espécie à espécie porque o que os liga não é um caráter geral, um é o desenvolvimento do outro. A relação é ainda de “negação” ou de pressuposição. Mas se em O Capital o pri meiro termo é a pressuposição lógica do segundo, aqui ele será a pressuposição histórica: isto implica diferenças que indicamos ante riormente (ver nota 108). Se a consideramos nesse nível, vemos clara mente que a produção de mercadorias só se realiza negativamente. Ela só é idêntica a si própria se ela não for desenvolvida, e ela só pode se
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desenvolver negando-se a si própria. E vemos por aí em que sentido o capitalismo pode ser considerado por sua vez como a forma geral da produção de mercadorias: ele é o universal concreto da produção de mercadorias, o particular — o único particular — que realiza plena mente, mas por isso mesmo contraditoriamente, as leis da produção de mercadorias. Nesse sentido, poder-se-ia dizer também que a relação entre produção de mercadorias e produção capitalista é ao mesmo tempo de espécie a espécie e de espécie a gênero. O capitalismo é a espécie que se toma gênero e que por isso “nega” as outras — no caso a outra espécie: a produção simples.) O que se deve assinalar ainda é que as determinações contraditó rias em relação à “produção simples de mercadorias” que os dois autores encontram na produção capitalista são de uma maneira bastante precisa aquelas que o próprio Marx apresenta no nível da segunda nega ção, da teoria da reprodução. É assim que eles insistirão sobre o fato de que a relação salarial não representa um intercâmbio de merca dorias, que a força de trabalho não é uma mercadoria, que a circu lação do capital contradiz o princípio de equivalência: “Define-se com isto a modalidade da repartição do valor em salário e mais-valia. Essa repartição não pode ser interpretada como relação de inter câmbio entre assalariado e capitalista (...). Não há aí nenhuma equi valência, portanto nenhum intercâmbio de mercadoria” , (p. 173, gri fado pelos autores) “As condições que produzem o trabalho assala riado, postas em evidência por Marx, bem longe de serem compa tíveis com a sociedade mercantil, a contradizem e tomam autocontraditória a identificação do modo de produção capitalista com uma sociedade mercantil em que a força de trabalho seria merca doria.” (p. 190) “Marx, na secção II do livro I de O Capital levanta o problema da mais-valia como sendo o do incremento de valor de um capital cuja circulação é regulada, entretanto, pelo princípio da equi valência. Essa contradição não pode ser superada, como o mostram as soluções que Marx apresenta (...).” (p. 168, grifado pelos autores) E entretanto, buscar-se-á em vão em Marchands, Salariat et Capitalistes uma análise da reprodução enquanto ela interverte as relações de apropriação.120
SEGUNDA SECÇÃO Examinaremos agora certos problemas ligados à teoria do capi tal, problemas que se relacionam aliás freqüentemente com a questão do vínculo com a circulação simples. Trata-se em geral de questões bastante técnicas, e que se situam, muito mais do que os pontos anteriores, no interior do âmbito da economia. Aqui, mais ainda do
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que em outros lugares, tratar-se-á não de teorizar sobre o conteúdo mesmo das noções, no caso o capital constante, os ciclos etc., mas de mostrar que a crítica que fazem os dois autores ao desenvolvimento que Marx dá a esses conceitos fica aquém do seu objeto. Estas considera ções deveriam ser retomadas num nível propriamente econômico. a) Sobre o capitel constante; sobre a constituição do valor dos meios de produção O primeiro problema é o da determinação do valor dos elementos do capital constante.121 Ele remete a uma crítica à economia clássica que aparece em vários momentos de O Capital.122 Neles Marx ques tiona um ponto, relativo ao capital constante, da teoria da reprodução de Adam Smith. Se o valor é trabalho cristalizado,123 a determinação do valor de uma mercadoria exige aparentemente que se possa “alcançar” o traba lho que o produziu (ou um trabalho que possa representá-lo). Ora, se considerarmos o produto anual, digamos de um ramo, que é consti tuído por c + v + pl, no que se refere a uma parte do valor do produto (o que constitui o produto valor) —- (v + pl) — pode-se facilmente remontar ao trabalho, porque se trata do trabalho que foi realizado no ano em que, propriamente, foi feito esse produto. O mesmo não se dá no que se refere a c , e é lá que aparece o problema. Para que o valor que corresponde a c possa ser determinado, seria necessário, pelo menos aparentemente, que se pudesse remontar até o trabalho que o produziu ou até um trabalho que possa representá-lo. Esse trabalho não o encontramos no ano considerado, pelo menos no ramo conside rado, porque o valor que corresponde a c, como é sempre o caso para a parte do valor total de uma mercadoria que corresponde ao valor dos meios de produção consumidos na sua produção, é um valor que não foi criado no momento da produção dessa mercadoria, mas que foi simplesmente transferido. Ora, como “alcançar” o trabalho de que se originam esses meios de produção (ou um trabalho correspondente)? Aparentemente só haveria duas possibilidades. Em primeiro lugar, poder-se-ia supor que o valor de c foi criado simultaneamente mas não no ramo considerado (ou então que se encontraria um trabalho análogo num outro ramo): tratar-se-ia pois de trabalho produzido no decorrer do ano num outro ramo. Ê a esta solução (pensável se se tratar de um trabalho análogo) que deveria remeter a idéia de Adam Smith segundo a qual a decomposição do produto anual (na linguagem de Marx em c + v + pl) só seria válida para o capital individual; no nível do capital social, o produto c + v + pl se reduziria a v + pl. E isto porque c se decompõe igualmente em c + v + pl, até que não se tenha mais do que v + pl. Ora, Marx rejeita formalmente tal redução: “(...) todo o peso desse argumento está na expressão ‘e assim por diante’ (usw) que nos
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remete de Pôncio a Pilatos [sem nos deixar entrever o capitalista nas mãos do qual o capital constante, isto é, o valor dos meios de produção desapareceria finalmente].124 Na realidade, Adam Smith interrompe a sua pesquisa lá precisamente onde começa a dificuldade” . (W.23, K.I, p. 616; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 1094) A outra possibilidade seria uma solução histórica: seria preciso determinar o trabalho pas sado qúe criou os meios de produção que entram, no ano que se consi dera, como parte do valor do produto (mas não do produto-valor). Ora, essa solução também não seria satisfatória. Por um lado, Marx insiste no fato de que a determinação do valor se faz considerando as condi ções atuais da produção e não as condições passadas (mas vimos que, se nos limitarmos à atualidade, só poderemos determinar a parte criada durante o ano); por outro lado, o recurso ao passado nos conduziria a uma regressão infinita, análoga à que se constitui, como vimos, para o presente, no argumento de Smith (ou então ela nos levaria a nos deter, sem completar a regressão, no início do capita lismo, que começa com meios de produção legados por modos de produção anteriores). Como determinar então o valor de c no produto c + v + pl? É a esta dificuldade que nos remete aparentemente a crítica dos dois autores. “ O primeiro procedimento (para a determinação do valor de c; um primeiro procedimento é eliminado imediatamente como tautológico — RF) (...) deve ser examinado segundo as duas modali dades alternativas: temporal e simultânea. / Seja a primeira eventua lidade. Ela implica que o valor transmitido é histórico e que ele não depende, pois, do valor dos mesmos meios de produção produzidos no período. Mas este valor histórico só pode ser determinado se conhe cermos o valor transmitido pelos meios de produção do penúltimo período etc. (a observação segundo a qual o valor histórico é conhecido no mercado leva a concluir que hoje ocorre o mesmo e que em conse qüência o problema discutido é sem interesse...). Assim, se é condu zido progressivamente a uma regressão infinita (o mercado de maçãs no tempo de Adão e Eva, retomando a expressão de Schumpeter).” (pp. 175-176, grifo dos autores) E ainda: ‘’Marx rejeita aliás essa interpretação, revelando bem através disso que o que conta é o argu mento da produção em valor (...). / Seja pois a segunda eventualidade. Aqui o argumento para um ramo particular não vai longe (tourne court): o valor atual do algodão que entra nos fios depende das condi ções da produção do algodão. Assim, para cada ramo tomado isola damente o problema é insolúvel. (...) (...) / Uma vez afastados os períodos anteriores, aparece a seguinte proposição inaceitável: embora o valor seja tempo de trabalho e embora o sistema de produção cons titua um todo fechado, o valor produzido é superior à quantidade de trabalho consumido no sistema. (...) a imagem que Marx nos dá da formação do valor” é “contraditória (...)” . (p. 176, grifo dos autores)
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Em resumo, se se supuser que o conhecimento do preço dos meios de produção utilizados não nos dá o conhecimento do seu valor, este só pode ser determinado se se remontar até o seu fundamento. Esse fundamento se acha ou no passado, ou no presente, isto é, nos outros ramos. Ora, se mostra que nem através de uma regressão histórica, nem recorrendo aos outros ramos, se pode chegar a esse fundamento. O resultado seria o seguinte: “(...) ou (...) se deve reconhecer que os meios de produção não têm valor enquanto tais (...) ou (...) (...) se deve abandonar a teoria do valor” , (p. 177) Vejamos isto tudo mais de perto. Ê preciso distinguir dois níveis do problema. Por um lado o do quantum de valor contido no capital constante. Esse quantum de valor é dado pelo trabalho contemporâneo executado nos outros ramos, pois são as condições atuais que decidem quanto valor contêm os meios de produção. Sem dúvida, esse deslo camento de um ramo a outro nos envolve numa regressão: os outros ramos utilizam capital constante, o valor desse capital constante é determinado num outro ramo e assim por diante. Como mostra Marx contra Smith, a regressão é infinita: nunca se reduz inteiramente o capital constante ao trabalho. Mas se não se o reduz inteiramente, a parte não reduzida diminui cada vez mais. Podemos, nesse sentido, efetuar uma “passagem ao limite” , operação que é tanto mais fácil de justificar em se tratanto simplesmente do quantum e trabalho, e não do próprio trabalho (se se tratasse do próprio trabalho, como veremos, uma passagem ao limite seria pensável, mas somente sob outras con dições). Tudo isto se refere ao quantum de trabalho que está contido nos meios de produção, não ao próprio trabalho (concreto e abstrato) de que se originam esses meios. Ora, esse trabalho é efetivamente trabalho anterior, trabalho que foi realizado nos períodos anteriores (ver a esse respeito o livro II de O Capital, passim). No que se refere a esse lado qualitativo do trabalho efetivo a que remetem os meios de produção, como se propõe o problema? Como vimos anteriormente, o trabalho não é pura e simples mente o fundamento do capital. O trabalho é o fundamento “negado” . Em outros termos, todo o raciocínio dos dois autores supõe, como sempre, uma apresentação linear, um movimento sem descontinuidade que nos conduz do trabalho (ou, se se quiser, do trabalho e do valor) ao capital. Nesse caso, o trabalho seria necessário, em princípio, ainda que a regressão fosse possível. Mas se o trabalho não é o fundamento do capital, mas o fundamento “negado” do capital, isto é, se há “negação” no movimento que nos conduz de um ao outro, o problema se propõe de um outro modo. Que haja “negação” , isto significa que o capital depende e não depende ao mesmo tempo do trabalho (a “ne gação” é ao mesmo tempo posição e negação, continuidade e descon tinuidade). Isto quer dizer que o capital pressupõe o trabalho:125 o capital não é pensável sem o trabalho, mas ao mesmo tempo o capital
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é um novo ponto de partida, o capital não é trabalho acumulado. O poiito de partida posto não é mais o trabalho mas o próprio capital. Acreditamos que é exatamente isto que fornece a solução teórica à aporia do capital constante. Por um lado, o valor do capital constante deve ser pensado em termos de trabalho. Por outro lado, é impossível remontar ao trabalho de que ele é a cristalização. O trabalho que origina o valor do capital constante é simplesmente pressuposto. E é impossível passar da pressuposição à posição. Mas isso não repre senta uma dificuldade da teoria. Seria uma dificuldade (talvez solúvel mas que exigiria uma outra resposta) se a teoria fosse concebida de uma maneira linear. Mas se se supuser uma relação de “negação” entre os princípios e as conseqüências, a resposta é perfeitamente pensável e “coerente” . E esta é, a nosso ver, a tese subjacente à crítica de Smith (e de Ricardo) por Marx, crítica que ele retoma muitas vezes. Em resumo, cremos que as dificuldades sobre as quais se constrói a aporia são as seguintes: por um lado os dois autores não distinguem o lado do quantum de trabalho (que não deve ser confundido com a quantidade indeterminada que fica do outro lado) do lado do próprio trabalho que é o das condições reais da produção dos meios de pro dução. Em segundo lugar, eles concebem a relação entre o capital e o trabalho como uma relação de continuidade (ou então de descontinuidade: é a solução deles), sem pensar que a relação é contraditória: deve-se e não se deve voltar aos princípios. Mas do problema do capital constante passamos a um problema análogo, que eles também levantam, mas que se situa no nível da cir culação simples.126 E o da determinação do valor do trabalho morto, do valor dos meios de produção no nível da circulação simples. A dificuldade é formulada em termos análogos: “De duas coisas uma: i — ou se admite que Mv representa um valor formado simultaneamente a 1, isso contradiz o princípio que estabelecer que o valor novo resulta do trabalho novo 1; Mv é ao mesmo tempo um valor novo (contempo râneo de 1) e é distinto de 1 portanto inexplicável; / ou então se admite que Mv provém de um período anterior (transmissão do valor pelo desgaste dos meios de produção), mas isso contradiz o princípio da avaliação dos objetos (...). / Disto se deve concluir que o valor não preexiste à sua formação (...)” . (p. 108, grifo dos autores) Se a dificuldade é análoga, a solução do problema não pode sê-lo, pois estamos aqui no nível da circulação simples. A resposta deve ser a seguinte. Em primeiro lugar — e até aqui a solução coincide com a solução anterior — deve-se distinguir o problema do quantum de trabalho do problema do próprio trabalho, que é também o da origem do valor contido nos meios de produção. O quantum de valor, e por tanto o quantum de trabalho, é dado pelos ramos contemporâneos que produzem esse meio de produção. Também nesse caso há regressão infinita mas com redução progressiva da parte não reduzida. E neces
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sário efetuar, como no caso anterior, uma passagem ao limite. Mas no que se refere ao lado da qualidade (que é também o da quantidade indeterminada, mas não do quantum) e da origem efetiva do valor contido nos meios de produção, a resposta dada ao problema anterior não convém mais. De fato, a impossibilidade de efetuar a redução no que se refere ao passado — a regressão ao trabalho efetivo — não representava uma dificuldade porque o capital não é trabalho acumu lado. Isto é, porque há descontinuidade (ou antes, “negação” — continuidade e descontinuidade) entre trabalho e capital. Ora, aqui o argumento não vale mais. A contradição não é mais uma resposta. É efetivamente de trabalho acumulado que se trata agora. A regressão deveria se impor. E para que ela pudesse chegar ao fim, seria neces sário efetuar aqui uma passagem ao limite no nível qualitativo, como fizemos para os ramos contemporâneos no nível quantitativo, no que se refere ao capital. Seria a maneira de remontar do trabalho acumu lado ao trabalho vivo que lhe deu origem. Ora, justamente porque a regressão (com a passagem ao limite) é, aqui, necessária, o problema não se coloca mais. Com efeito, no nível do capital era preciso distinguir claramente o trabalho vivo, o único que produz mais-valia, do trabalho morto que não a produz: essa diferença se cristaliza nos conceitos de capital constante e de capital variável, que é preciso, sobretudo, distinguir. Quando o problema se torna simplesmente o da diferença entre trabalho acumulado e traba lho vivo, a diferença é simplesmente a do momento em que o trabalho foi realizado. Eis a razão pela qual Marx elimina pura e simplesmente a questão da determinação do valor dos meios de produção no nível da circulação simples. O cálculo — se fosse preciso fazê-lo, mas não esqueçamos de que a circulação simples é um momento do modo de produção capitalista e não um outro modo de produção — deveria ser feito com passagem ao limite, a partir dos ramos contemporâneos. Quanto à origem — a que se deveria chegar através de uma regressão histórica e uma passagem ao limite — ela perde todo o interesse. Para fundar o valor, pode-se simplesmente supor que os meios de produção são iguais a zero, como é o caso na secção I. Se é verdade que a contradição não é mais, aqui, a solução, o problema não se coloca mais, aparentemente, ou não se coloca mais do mesmo modo. b) Sobre o» ciclos do capital e os esquemas de reproduçio Para terminar, e antes de passar às conclusões, examinaremos a crítica que os dois autores fazem (na nota 5 da terceira parte) à maneira pela qual Marx trata dos ciclos do capital e da reprodução no livro II de O Capital. De certo modo, essa crítica resume todo o resto. Para respondê-la, retoma remos a apresentação de O Capital, que havíamos interrompido. Mas exami nemos antes, de um modo geral, o teor da crítica.
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O núcleo dela é o papel que tem em Marx o ciclo do capital-mercadoria. Como se sabe, Marx considera esta forma como a que permite a passagem do ciclo individual à reprodução social, cujo objeto ê o capital social. As obser vações criticas vão no seguinte sentido: Marx construiria a noção de capital social (ver p. 196) apoiando-se no ciclo do capital-mercadoria. Tal socialização representaria na realidade uma “socialização pelo capital constante” tal como “a do ciclo III (ciclo do capital-mercadoria)” . (p. 199) Isto nos remeteria aos problemas anteriores relativos ao capital constante. Mas ao mesmo tempo ò privilégio do ciclo do capital-mercadoria nos remete à circulação simples. “Ora, a socialização pelo capital constante, que, repitamos, é a do ciclo III, é inteiramente independente da relação salarial, como Marx o mostrou, aliás, nas Teorias sobre a mais-valia, t. I. Poder-se-ia tratar, no máximo, de uma socialização de produtores separados. Mas esta representação também não é aceitável na medida em que a noção de capital constante contradiz a noção de valor de uso socialmente constituído, que é precisamente uma das bases da teoria das mercadorias, e portanto da socialização de produtores separados.” (p. 199, grifo dos autores) Isto nos remeteria, assim, de uma forma ambígua, em parte ao capital constante, em parte à circulação simples, de qualquer forma à mercadoria. E essa redução à mercadoria, na medida em que “a noção de valor de uso não é elaborada” (p. 196) — retomada das criticas iniciais sobre o valor de uso em Marx — nos remeteria, na realidade, “às coisas”. (Ibidem) Em outros termos, cairíamos ainda uma vez no fetichismo. Os pontos que devemos discutir são portanto: 1) se há — e em que sentido há — passagem ao capital, isto é, totalização pela introdução do ciclo do capital-mercadoria; 2) se essa socialização se faz pelo capital constante e que dificuldades poderiam resultar disso; 3) se o ciclo do capital-mercadoria nos reconduz à circulação simples (se se quiser, a relação entre, por um lado, a análise dos ciclos e da reprodução social e, por outro, a da circulação simples); 4) se o privilégio do ciclo do capital-mercadoria nos conduz, através da mercadoria, à coisa, isto é, se ele nos leva a cair no fetichismo. Para analisar esses diferentes pontos, procederemos da seguinte maneira. Começaremos retomando a apresentação de O Capital, que havíamos inter rompido. Ela permitirá mostrar qual é o momento ou quais são os momentos e as formas de socialização do capital, nos livres I e II (com uma indicação sobre o livro III), assim como o sentido geral, o lugar, da teoria dos ciclos. Isto permitirá responder ao primeiro ponto. Em seguida examinaremos mais de perto os ciclos, em particular o ciclo do capital-mercadoria, tanto no texto de O Capital como no dos seus críticos. Com isso, trataremos dos pontos 2 a 4.
Interrompemos a apresentação de O Capital na teoria da repro dução, secção VII do livro primeiro. Não retomaremos a análise da reprodução no livro I, a qual nas suas implicações sobre o sentido geral do processo representa o ponto cego do livro que examinamos. Inte ressa-nos insistir somente num ponto, sobre o qual passamos, aliás, bem depressa. A teoria da reprodução na secção sétima não representa somente o momento em que as pressuposições são postas pelo próprio sistema e em que se estabelece a continuidade do movimento. Trata-se também do momento na teoria da produção, em que os capitais indi-
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viduais são totalizados e se tomam capital social. Há aí, portanto, uma primeira socialização do capital que não é analisada pelos dois críticos. Ao passar do livro I ao livro II, somos conduzidos da teoria da pro dução à teoria da circulação. Como Marx explica no início do livro II,127 ele só tratou da circulação no livro I na medida em que isso era necessário para apresentar a produção (assim, por exemplo, ele trata no livro I da compra e venda da força de trabalho). Podemos dizer que no livro II se dá o contrário: ele só trata da produção na medida em que isso é indispensável para expor a circulação. Na realidade, a teoria da produção é pressuposta no livro II, assim como a teoria da cir.culação é pressuposta (mas em sentido prospectivo e não retrospectivo) no livro I. Isto é importante para mostrar o domínio e os limites — os limites nos interessam particularmente — das análises do livro II. São análises que se situam no plano da circulação: não menos mas também não mais do que isto. Ao passar ao livro II — segundo ponto a assinalar, que tem relação direta com a discussão — Marx começa analisando o ciclo dos capitais individuais. O que quer dizer que ao passar do üvro I ao livro II se volta da totalidade (que havia sido constituída na secção VII no nível da produção) à (re)consideração do capital individual (mas .agora no plano da circulação). Isto é, no final da análise dos ciclos, preci samente através da introdução do ciclo do capital-mercadoria — por razões que analisaremos em seguida — somos reconduzidos à totalização. O ciclo do capital-mercadoria representa na realidade algo como um momento de transição entre a análise do capital individual e a análise do capital social. Importante aqui é que estamos diante de uma nova “socialização” . Em outros termos, há em O Capital várias “socia lizações” do capital, em diferentes níveis da análise. E a essas duas “socializações” , devemos acrescentar ainda aquela que se dá no livro III. Sem dúvida, no livro III, a totalização é de um outro nível: passase não do capital individual ao capital social, mas de uma socialização parcial (há portanto destotalização dos dois grandes setores da produ ção aos ramos). Tal é a socialização que se faz pela constituição da taxa geral de lucro e dos preços de produção. Temos aí uma terceira totali zação que, de qualquer modo, se segue a um retorno (não ao capital individual mas aos ramos da produção). Podemos, agora, analisar mais de perto o objeto em tomo do qual se organiza a crítica, o ciclo do capital-mercadoria. Marx dis tingue três ciclos do capital, o ciclo do capital-dinheiro, o ciclo do capital produtivo e o ciclo do capital-mercadoria. O primeiro começa com o dinheiro (D), o segundo com o capital produtivo (P) no processo de produção, e o terceiro com a mercadoria (M’ e não M). Marx explica por que o ciclo do capital-mercadoria não começa com M: “M’ en quanto M aparece no ciclo de um capital industrial isolado não como forma desse capital, mas como forma de um outro capital industrial, na medida em que os meios de produção são produto deste último. O
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ato D — M (isto é, D — Mp) do primeiro capital é, para este segundo capital, M’ — D’ (W.24, K.II, p. 92; Le Capital, 1. II, t. I (IV), op. cit., p. 82) Isto significa afinal que M pertence ao outro capital. Ou que, para o primeiro capital —■ se todos os momentos do capital são momentos de um processo —, o momento M do capital considerado é menos do que um momento evanescente: quando ele se torna momento do capital considerado, ele representa, na realidade, os componentes materiais ou objetivos do capital produtivo. Se se quiser começar pela mercadoria, deve-se pois começar por M \ Temos assim esses três pontos de partida que, segundo Marx, remetem respectivamente aos mercantilistas, aos clássicos e a Quesnay. (Ver W.24, K.II, p. 103; Le Capital, 1. II, 1.1 (IV), op. cit., p. 92) Mas o ciclo do capitai-mercadoria deve ser considerado “não só como uma forma de movimento comum a todos os capitais industriais individuais mas ao mesmo tempo como a forma de movimento da soma dos capitais individuais e portanto a forma de movimento do capital total da classe capitalista, um movimento de tal ordem, que o movi mento de cada capital industrial individual aparece no interior dele somente como movimento parcial, que está entrelaçado com outro, e é condicionado por ele” . (W.24, K.II, p. 101; Le Capital, 1. II, t. I (IV), op. cit., p. 90) Mas por que essa fornia — que pode ser também considerada como forma individual128 aparece como representativa do conjunto do movimento do capital? Na realidade, poder-se-ia supor que o ciclo do capital-dinheiro seria mais representativo (pois ele indica melhor a finalidade do movimento) ou que o ciclo do capital produtivo é mais representativo (porque ele enfatiza o lugar em que se dá a valorização). Mas não é assim. A forma que poderia aparecer como sendo a menos representativa é que permite passar ao capital social. Vejamos por que razões. Há de fato três razões que é preciso distinguir. Primeiramente, M’ é o único ponto de partida que pressupõe um capital ante rior.129 O capitai-mercadoria é na realidade o único que pressupõe um movi mento anterior do capital. Como vimos, o ciclo do capitai-mercadoria não começa com M mas com MV O signo indica que se trata de uma mercadoria que contém um valor primitivo mais um sobrevalor. M \ no qual o capital se apresenta em forma inerte e na forma de uma mercadoria, portanto também e em primeiro lugar (se comparado com o dinheiro) na forma de um valor de uso, é entretanto forma que indica uma história (no sentido lógicoeconômico), um passado (no interior da temporalidade lógico-econômica) que é um passado capitalista. M’ indica de certo modo a memória de um capital. Não é o caso em D nem em P, os quais não pressupõem necessariamente um capital. M’ pressupõe, portanto, uma produção capitalista anterior e é assim a figura mais indicada para servir como ponto de partida para o processo atual de reprodução. Com M’ se corta esse processo (o que é necessário fazer para pensar a reprodução de um ano) sem cortá-lo verdadeiramente (porque se pressupõe o passado). Em “M” se tem o corte, no signo “ a continuidade,
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que pela própria forma pela qual é indicada é continuidade “negada”. M’ nos permite interromper sem irromper a cadeia dos processos de reprodução anuais. Assegura-se o caráter capitalista do passado, o futuro (sempre no sentido lógico-econômico) serk construído como processo capitalista. Mas há mais do que isto. O ciclo do capital-mercadoria é o único que desde o inicio do ciclo faz com que apareça nas mãos de um outro (que se deve supor como sendo um outro capitalista) a figura que define o ciclo, o capitalmercadoria. O que significa — o que para os ciclos I e II só ocorre no final do ciclo — que ele pressupõe outros ciclos do capital-mercadoria: “D’, enquanto ponto final (Schlusspunkt) em I, enquanto forma transformada de M’ (M’ — D’), pressupõe D nas mãos do comprador, como algo que existe fora do ciclo D... D’ e que é atraído para o interior desse ciclo e que se torna sua forma final pela venda de M’. Do mesmo modo, em II o P final pressupõe T e Mp (M) como algo que existe fora dele e que lhe é incorporado enquanto forma final pelo ato D — M.130 Mas abstração feita do último termo, nem o ciclo do capital-dinheiro individual pressupõe a existência (Dasein) do capital-dinheiro em geral, nem o ciclo do capital produtivo individual pressupõe, no seu ciclo, a existência do ciclo do capital produtivo. Em I, D pode ser o primeiro capital-dinheiro e, em II, P pode ser ó primeiro capital produtivo que se apresenta na cena da história. Mas em III (...) M é duas vezes pressuposto fora do ciclo. Uma vez no ciclo M’ — D’ — M [T* , esse M, na medida em que Mp se compõe de Mp, é mercadoria nas mãos do vendedor; ele próprio é capitalmercadoria, na medida em que é produto de um processo de produção capi talista; e mesmo se ele não for, aparece como capital-mercadoria nas mãos do comerciante.131 Uma outra vez, no segundo m em m — d —- m, onde, do mesmo modo, ele deve (muss) estar presente como mercadoria para poder ser comprado”. (W. 24, K. II, p. 99; Le Capital, 1. II, t. II (IV), op. cit., pp. 88-89) O texto já nos introduz ao terceiro ponto, que determina o privilégio do capital-mercadoria: o fato de que a circulação da mais-valia está incluída nele. Examinaremos esse ponto em seguida. Por enquanto, vejamos aqui o que se refere, em geral, à conexão dos ciclos estabelecida pelo capital-mercadoria. Esta conexão se faz através do capital constante, como afirmam os dois auto res? Observemos, para evitar confusões, que a noção de capital constante como a de capital variável só vale para o capital produtivo. A noção de capitalmercadoria só inclui a distinção entre capital constante e capital variável enquanto componentes do produto-mercadoria. Mas é verdade que em parte a conexão se faz pelo capital constante, pois o primeiro M que é encontrado no percurso é, como diz o texto, constituído por elementos do capital constante. Tudo o que se pode dizer a esse respeito, pelo menos por enquanto, é, em primeiro lugar, que essa conexão só levanta um problema, se supusermos que a própria noção de capital constante é problemática, o que tentamos anterior mente questionar. Em segundo lugar, a conexão não se faz somente através do capital constante, porque ela se efetua também através de m, que n|o é componente do capital produtivo e representa a mais-valia consumida como rendimento (a totalidade da mais-valia, se se supuser a reprodução simples, e em qualquer caso uma parte dela).132 Isto nos conduz ao terceiro ponto. Se o ciclo do capital-mercadoria é um ciclo privilegiado é também porque ele inclui não só o ciclo M mas também o ciclo m.133 Com efeito, se se partir de M’ será
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necessário desenvolver tanto o ciclo de M como o ciclo de m, decomposição que não fazemos em I (pois ele termina com D’) e pela qual se passa, no ciclo II, sem que entretanto seja necessário aí seguir os dois processos, pois se partiu de P, e se trata de voltar a esse ponto de partida.. Os dois autores comentam esse ponto nos seguintes termos: “A conseqüência imediata dessa concepção é, como vimos, (”) que M \ enquanto capital-mercadoria, entra na circulação juntamente com a mais-valia(”) de onde se segue que (”) o capital-mercadoria é a única forma na qual a circulação da mais-valia é inseparável da circulação do capital primitivo” . (Plêiade, II, pp. 540-541) “Daí resulta que a noção de capital social será elaborada tomando como ponto de partida precisamente o que representa um obstáculo para esta elaboração, o ciclo III, que é ‘o único’ que exclui a concepção de uma qualquer autonomização da circulação da mais-valia relativamente à circulação das mercadorias” , (p. 196, gçifo dos autores)134 E eles concluem: “A primeira série de operações tem, pois, como condição de possibilidade uma dupla redução: — do capital social à merca doria (pois nada se autonomiza em relação a esta última, que continua sendo a noção exclusiva que comanda o movimento; í3S / — da mercadoria às coisas (pois não é elaborada a noção de valor de uso)” , (p. 196, grifo dos autores) Vemos — analisando a cadeia de argumentos em sentido inverso — qual é o ponto de chegada da crítica que fazem os dois autores: a afirmação de que, em virtude do privilégio do capital-mercadoria, há redução do capital à mercadoria(“(...) o ciclo III s6 representa um sistema de produção de “mercadorias por meio de mercadorias’ ” . (p. 197) Isto deveria significar uma “recaída” na circulação simples (“só se poderia (...) tratar, no máximo, de uma socialização de produtores separados” (p. 199); “(...) a socialização pelo capital constante que (...) é a do ciclo III é totalmente independente da relação salarial”. (p. 199, grifo dos autores)). Mas dada a presença da “noção de capital cons tante” que “contradiz a noção de valor de uso socialmente constituí do (...) uma das bases da teoria da mercadoria (...)” (p. 199), ter-se-ia na realidade “uma volta ao sistema de Ricardo-Sraffa" (p. 199, sempre grifado pelos autores), com algumas diferenças. Por outro lado, essa redução à mercadoria representa ainda uma vez cair nas “coisas”, isto é, uma espécie de fetichização do capital. E tudo isto por causa da noção de capital-mercadoria: “A noção de capitalmercadoria se revela assim uma contradição nos termos”, (p. 199, grifo dos autores) O ciclo III representaria um obstáculo para a elaboração do capital social, porque nele a circulação da mais-valia não pode ser autonomizada em relação à circulação das mercadorias. O que é que eles querem dizer com isto? Se eles querem dizer que no ciclo III a mais-valia não se separa do capital, há simplesmente mal-entendido: “inseparável” quer dizer aqui não que não haja bifurcação entre os dois circuitos, mas sim que é necessário “seguir” os dois. Ê a reprodução total — que se introduz aqui — que os torna inseparáveis, no sentido de que os dois são interiores ao processo total (que só é posto em III). Ou então eles querem dizer que a mais-valia se separa mas que ela se confunde (totalmente, se se supuser a reprodução simples) com a circulação simples de mercadorias? Efetivamente ela se confunde, mas é justamente isto que permite a passagem do capital individual ao capital total. Em outros termos, o que permite a totalização — não é evidente que os dois autores tenham entendido isto — é, fora a conexão direta dos capitais que se estabelece através
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de M que corresponde aos elementos objetivos do capital produtivo, a reposição da circulação simples. Na realidade, se se parte de M’, devemos seguir tanto o movimento M’—D—M’ (em que D poderia ser aumentado por uma parte da mais-valia) e o movimento m—d—m. Ora, esse movimento considerado em si mesmo, isolado do processo total, pertence à circulação simples e não à circulação do capital. Trata-se da venda de mercadorias visando a compra de mercadorias para o seu consumo.136 Portanto, passa-se do capital individual ao capital social — passagem que, como vimos; representa uma das “socializações” ou “totalizações” da apresentação de O Capital — pela re-posição da circulação simples na circu lação do capital. E aqui ela é mais do que aparência (são os intercâmbios interiores ao movimento do capital que, isolados do todo, são propriamente aparências), embora ela o seja na medida em que ela se revela parte de um processo total dominante que não é da ordem da circulação simples. Se a segunda interpretação que damos ao texto é a correta (e a primeira nos remeteria a uma incompreensão pura e simples), vemos que Benetti e Cartelier confundem re-posição da circulação simples com “queda” na circulação simples. Mas o argumento deles vai ainda mais longe: de um modo mais geral, eles criticam Marx por não ter introduzido no ciclo III e portanto nos esquemas da reprodução que o ciclo III introduz o que é próprio à produção capitalista em relação à produção simples; e mais ainda — com a “socialização” com base no valor de uso —- ter caído numa espécie de “fetichismo” 137 (ter ido, “da mercadoria às coisas”). Ora, no que se refere ao ciclo III e aos esquemas de reprodução, não se deve esquecer o que eles representam: eles representam a reprodução total no interior da análise da circulação. Nela o momento da produção está presente, mas somente em sua forma mais geral. Nela, o meca nismo da produção, ele próprio, está simplesmente pressuposto, como está pressuposta a circulação no livro I. De resto “mais-valia” , “capital” etc. são mais do que simples nomes. A acrescentar que não é verdade que com o ciclo III tudo se reduz à mercadoria.138 Quanto à imputação de uma queda na coisa, ela é paralela à imputação de uma queda na aparência falsa no nível da teoria do dinheiro. A aparição em forma material ou a encarnação material — que é um fato objetivo do capi talismo (há capital em forma de mercadoria, como há valor encarnado num valor de uso) — é interpretado como queda subjetiva na materialidade natural. A diferença entre essa posição material e a do dinheiro é que, aqui, estamos diante do problema da aparição enquanto valor de uso material — ele próprio sustentado pelo valor, pois se trata de (forma de existência) mercadoria — de forma que se tornou sujeito. Não se trata mais de encarnação material de uma forma no nível da inércia. Mas essa diferença desaparece se se supuser, como fazem os dois autores, que Marx desliza do capital à mercadoria. Além do que será dito na conclusão, remetemos, a esse respeito, às considerações anteriores sobre a diferença entre naturalização e posição material.139
Pelo contrário, há algo de positivo nas críticas que visam o conjunto da teoria de Marx sobre o desenvolvimento do capitalismo. É assim que eles escrevem a propósito do papel da noção de mais-valia relativa em Marx: “Em primeiro lugar, a teoria da mais-valia relativa
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— stricto sensu — oferece uma representação extremamente pobre do desenvolvimento do capitalismo, não por causa de uma abstração excessiva, mas antes por causa da sua incapacidade ‘congênita’ em ligar a revolução (bouleversement ) contínua das técnicas, que é o seu objeto, à modificação perpétua dos valores de uso produzidos. O ‘desenvolvimento das forças produtivas’ remete à ‘técnica’, a modifi cação dos bens-salários à ‘história das necessidades’, necessariamente constituído independentemente da teoria da mais-valia relativa que implica que já foram identificados os bens que entram direta ou indiretamente na reprodução da força de trabalho. / As afirmações, constantemente repetidas, sobre a existência de uma ligação entre esses elementos estão condenadas a permanecer estéreis enquanto o conceito que permite pensar a unidade da produção da mais-valia e da modi ficação incessante dos valores de uso não for obtido. Nessa direção a teoria da mais-valia relativa faz figura de obstáculo (pierre d'achop pement)-, sua crítica é pois necessária” , (p. 189) Essa crítica, embora introduzida a propósito do papel da noção de mais-valia relativa, tem evidentemente uma significação mais geral. E há nela algo importante. A idéia de que falta à teoria de Marx uma teoria das necessidâdes. E igualmente uma teoria das técnicas, preci sando uma teoria da produção da ciência com vistas a suas aplicações técnicas. Impossível desenvolver esses pontos nos limites deste texto. Nós nos limitaremos aqui às observações seguintes: no quadro da teoria de Marx, há certamente textos importantes (sobretudo nos Grundrisse) sobre as necessidades. Mas, aparentemente, essencialmente por causa das próprias características do capitalismo no século XIX, não há uma teoria da produção das necessidades. Ë que no capitalismo clássico os valores de uso têm ainda muita coisa em comum com os valores de uso tais como eles apareciam nos períodos pré-capitalistas. Ê só no capita lismo do século XX e especialmente no capitalismo dos últimos trinta anos que se entra numa fase em que há produção de necessidades, em sentido próprio, e em que há um setor da produção (?) que não produz nem meios de produção (setor I) nem meios de consumo (setor II) mas que produz consumidores (setor III?). E com isto, o valor de uso se toma um movim ento infinito, como o capital no capitalismo clássico. Por outro lado, não mais “para além” mas “aquém” da produção, há setores de produção da ciência, com vistas às suas aplicações técnicas. Ora, isso é igualmente novo em relação ao esquema clássico (apesar de certos textos dos Grundrisse) pois em O Capital a ciência aparece como algo gratuito, nas mãos do capitalista. Ela aparece no mesmo plano das forças naturais de que se pode dispor livremente.140 Sem dúvida, nos dois casos, não é certo que vamos na direção das observações de Benetti e Cartelier, senão de um modo muito geral. Pode ser mesmo que a direção que indicamos reforce “o economismo no pensamento mar xista” .141 De qualquer modo, é necessário pôr em evidência as obser
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vações do texto sobre as técnicas e as necessidades, porque elas reme tem às grandes transformações que ocorreram na passagem do capita lismo do século XIX aos capitalismos do século XX, e portanto a questões que são fundamentais. Mas como dissemos no início, tais observações não têm uma relação rigorosa, a despeito do que pensam os autores, com a crítica geral a que submetem a apresentação da crítica da economia política. Não é recusando a dialética mas a desenvolvendo e aprofundando (uma dialética talvez modificada) — pensemos no valor de uso como movimento infinito: um exemplo de um novo objeto com estrutura dialética, entretanto — que se che gará a pensar rigorosamente os problemas novos que colocam as socie dades capitalistas contemporâneas. Conclusão
No final da primeira parte resumimos os pontos para os quais convergem as dificuldades de Marchands, Salariat et Capitalistes . Dis semos que elas apontam por um lado para o problema da contradição, por outro lado para o da relação matéria/forma (os dois pontos estão ligados, porque a relação entre matéria e forma é contraditória). Na primeira parte, os dois problemas se apresentavam da se guinte maneira. Para o primeiro: o processo contraditório não apreen dido era o da gênese, o da pré-história — no caso, da gênese do di nheiro; ao mesmo tempo, como esta gênese (lógica) se concluía pela constituição de um universal concreto, era também o universal con creto o que se perdia. No que se refere ao segundo ponto (forma e matéria) o problema se situava também no nível do dinheiro. Ele apa recia como dificuldade na apreensão da encarnação material da form a (no dinheiro e já nas formas do valor anteriores ao dinheiro). Na segunda parte, os dois pontos se apresentam diferentemente. O processo contraditório que lhes escapa não é o da gênese nem o da constituição do universal concreto (como último termo da gênese), mas o processo de constituição de um sujeito. Não a passagem de um “pré-ser” a um ser, mas de um ser-substância a um ser-sujeito. Por outro lado, escapa a maneira pela qual esse Sujeito, esse ser autono mizado, nega progressivamente toda relação com a sua realidade subs tancial — as “negações” sucessivas nas apresentação de O Capital. Acrescente-se, ainda quanto ao primeiro ponto, que na segunda parte o problema se situa no nível da relação geral essência/aparência, já que a circulação simples é a aparência da produção capitalista enquanto produção capitalista; enquanto que na primeira ele se situa no nível da aparência — que se desdobrava por sua vez em essência e aparência. Quanto ao segundo problema (matéria/forma), vimos que é a aparição da forma que se tomou Sujeito na matéria (não a simples encarnação
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material da forma), que representava um problema. O deslocamento é paralelo. Se se quiser agora definir de um modo mais geral os dois pontos, deve-se dizer o seguinte: 1) Problema da contradição. Digamos que o procedimento de Benetti e Cartelier significa substituir a Aufhebung pela negação vul gar. Essa substituição se faz aproximadamente pelo seguinte movi mento: como se pensa a apresentação de Marx como apresentação linear, a descoberta da contradição é solidária da imputação da contra dição vulgar e portanto de um deslizamento dos próprios críticos na contradição vulgar. Para evitá-la, se corta: estabelece-se uma negação que não é “negação” dialética. Isto é verdade para a gênese do dinheiro e em geral para a relação mercadoria/dinheiro: supõe-se que, para Marx, o dinheiro é uma mercadoria (continuidade); descobrem-se as determinações do dinheiro que contradizem as da mercadoria (contra dição dialética pensada como contradição vulgar); formula-se uma teoria em que o dinheiro e mercadoria se excluem (descontinuidade), a negação dialética se torna negação vulgar. Isto é verdade também para a relação entre circulação simples e produção capitalista enquanto produção capitalista: supõe-se que a circulação simples é para Marx o princípio — no sentido do entendimento — da produção capitalista (continuidade); descobrem-se determinações desta última que contra dizem as da circulação simples (contradição); formula-se uma teoria em que circulação simples e produção capitalista estão cortadas uma da outra, ou ligadas somente pelo vínculo “abstrato” do dinheiro (descontinuidade). Por outro lado, como vimos, se roça a contradição. 2) Matéria e Forma. O problema gira em torno do fetichismo ou dos opostos fetichismo/antifetichismo abstrato (formalismo). O movi mento é o seguinte. Concepção puramente formal do que deveria ser a apresentação de Marx: para a primeira parte, não há (não deve haver) dinheiro-mercadoria. Para a segunda não há capital-mercadoria (for malismo); descoberta do papel do valor de uso, o qual é denunciado como se representasse uma queda no fetichismo (primeira parte: falsa aparência da teoru do dinheiro em Marx; segunda parte: deslizamento do capital à mercadoria e da mercadoria à coisa (fetichismo)). O resul tado, no nível do discurso dos dois autores, é mais difícil de precisar. Ele passa mais diretamçnte pelas suas teses positivas. A resposta deles parece ter alguma coisa dos dois extremos: às vezes eles esvaziam as formas da matéria (ver a sua teoria do dinheiro), eles vão com isso no sentido de um antifetichismo (abstrato);142 por outro lado, talvez por isso mesmo, se não há fetichismo neles, coisa de que não estamos certos, há de qualquer modo coisificação, pois o capital-processo se toma coisa inerte, seja ele pensado ou não como uma relação. Como já insistimos sobre o que o livro tem de positivo, no que se refere à crítica de Marx, a saber, o fato de ter “posto o dedo” na
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contradição, além do iato de ter indicado alguns problemas importan tes a desenvolver, terminamos com algumas considerações gerais, sobre a relação entre a crítica de Benetti e Cartelier e outras leituras de Marx. No fundo, o procedimento dos dois autores no nível da economia tem parentesco com a leitura althusseriana no nível da filosofia. A mesma recusa da contradição (tudo é construído para evitá-la) a qual conduz a um esquema descontinuísta. Um resultado é comum às duas démarches: a recusa do capítulo primeiro do livro I de O Capital, assim como a impossibilidade de ler (de ler corretamente, no caso dos althusserianos, de ler simplesmente, para Benetti e Cartelier) a passagem à reprodução — por acaso os dois lugares privilegiados da dialética no livro I de O Capital. Mas em relação aos althusserianos, eles têm provavelmente diferenças que não desenvolvemos (além do fato, final mente secundário, de que eles se apresentam como críticos de Marx, e os outros não). A crítica de Benetti e Cartelier tem também alguma coisa em comum com a de Castoriadis, examinada no texto anterior. Relativamente à de Castoriadis, a leitura deles é menos rigorosa e vai menos longe na apresentação (na sua relação imediata a Marx). Mas ela é mais geral, o domínio das contradições é mais vasto.143 Mas, quaisquer que sejam de resto os méritos do texto, ele se situa, logi camente, aquém da dialética clássica. Seria preciso ir além dela.
NOTAS (1) Paris, Maspero, 1980. (2) Ver neste tomo, para o problema do humanismo e da antropologia, “Dialé tica Marxista, Humanismo, Anti-humanismo” e "Althusserismo e Antropologismo”. (3) Ver Marchands, Salariat et Capitalistes, pp. 131, 132, 136, 190. (4) Para discutir melhor a critica de Benetti e Cartelier, nos distanciamos em alguma medida, provisoriamente, da dêmarche de Marx, supondo que tanto a merca doria como o dinheiro poderiam servir como ponto de partida. Com o mesmo espírito, a continuação vai no sentido de uma fenomenologia do dinheiro: ela não visa ainda a teoria do dinheiro em O Capital. (5) Para Benetti e Cartelier é da moeda metálica e não das formas mais comple xas de moeda que é preciso fazer a teoria, (ver p. 52) (6) Ver p. 146 do livro de Benetti e Cartelier. (7) Como veremos, esse “negar” corresponde à “negação” hegeliana. (8) Com uma exceção, que veremos mais adiante. (9) Depois de ter tentado esclarecer a noção de “criação” em Marx, A. Berthoud escreve em nota em Travail productif e Productivité du Travail chez Marx (Maspero, 1974): “(...) para dar uma resposta, seria necessário fazer o inventário, no texto alemão da primeira secção de O Capital, do emprego e das relações dos termos forma, matéria, substância e representação... Ignoramos se esse trabalho já foi feito”, (pp. 78-79, n. 12)
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(10) Texto de Marx em Paul-Dominique Dognin, Les "Sentiers Escarpes" de Karl Marx, París, Ed. da Cerf, 1977, t. I, p. 82, grifado por Marx. Citado por Benetti e Cartelier, p. 149, que grifam “independentes” e “materialmente”. (11) Cortamos aqui a citação: o resto se refere mais particularmente à análise da forma do valor. (12) Trata-se sempre do modo de produção capitalista no nivel da teoría de sua aparência. (13) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 50. (Abreviaremos Werke por W e Kapital por K) (14) Ver nota 12. (15) Como veremos, essas duas noções não são idênticas. Mas nesse nível pre ciso, parece correto dizer uma coisa e outra. (16) Aqui se reencontra a distinção aristotélica entre a matéria enquanto subs trato e a forma que nela se imprime. (17) VerW.23, K.I, p. 51. (18) “Não se vê realmente como tudo isto pode ser admitido. De duas coisas uma — ou os trabalhos privados estão socialmente unidos, e portanto são reconhecidos, por causa da sua diversidade, e portanto do seu caráter concreto; ou então eles o são por sua abstração.” (B. e C., p. 149, grifado pelos autores, texto já citado) (19) “Como se pode conceber que as coisas sejam enquanto tais socialmente úteis, portanto já sociais, antes que elas tenham sua forma social?” (Ibidem, texto já citado) (20) “Enquanto formador de valores de uso, enquanto trabalho útil, o trabalho é uma condição de existência do homem independente de todas as formas sociais, uma necessidade natural eterna, para mediar, proporcionar (vermitteln) o metabolismo entre o homem e a natureza, e assim a vida humana.” (W.23, K.I, p. 57) “No conjunto dos valores de uso ou corpos de mercadorias de espécies diferentes aparece um conjunto de trabalhos úteis igualmente múltiplos e diferentes conforme o gênero, a espécie, a subespécie, a variedade — uma divisão social do trabalho. Esta é a condição de exis tência da produção de mercadorias, ainda que uma produção de mercadorias não seja, inversamente, condição de existência de uma divisão social do trabalho.” (W.23, K.I, p. 56) (21) Grundlage (que traduzimos, como Labarrière e Jarczyk, por “base”) se distingue de Grund, “fundamento". “O fundamento é primeiro fundamento absoluto, no qual a essência é primeiro como base (Grundlage) em geral para a relação-funda mental (...).” Hegel, Wissenschaft der Logik, publicado por Georg Lasson, zweiter Teil, Hamburgo, Felix Meiner, 1963, Erster Band, Zweites Buch: “Die Lehre vom Wesen”, pp. 64-65; Science de la Logique, premier tome, deuxième livre, “La doctrine de l’essence” , tradução, apresentação, notas de J.-P. Labarrière e Gwendoline Jarczyk, Aubier Montaigne, 1976, p. 91, grifado por Hegel. Labarrière e Jarczyk comentam do seguinte modo esta distinção: “o Grund deve ser distinguido da Grundlage, ‘base’ inerte da realidade, fundamento sem poder de diferenciação”. (Idem, p. 88, final da nota 1) A tradução Roy do livro I de O Capital também verte Grundlage por “base”. (22) W.23, K.I, p. 371; Oeuvres, Êconomie I, edição estabelecida e anotada por Maximilian Rubel, Bibliothéque de la Pléiade, Gallimard, 1965, p. 892. (23) Esta questão remete a um ponto que será discutido mais adiante. Ver também a esse respeito “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-humanismo”, neste tomo. (24) “Suprimir” traduz a Aufhebung hegeliana. Preferimos esse termo ao neolo gismo “sursumer” (“sobressumir”) utilizado por Labarrière e Jarczyk em sua tradução da Ciencia da Lógica. “Sursumer" nos parece “clarificar” de um modo importuno o movimento contraditório contido na Aufhebung-, e tem também o inconveniente de ter parentesco com “subsumir”, termo que pertence mais à tradição da filosofia transcental. O inconveniente que oferece a tradução por “suprimir” está no fato de que ela não exprime o lado afirmativo (assim como “ultrapassar” (dépasser) — e em certo sentido
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“sobressumir” (“sursumer”) — não exprime o lado negativo). Mas justamente somos obrigados a pensar ao mesmo tempo, contraditoriamente, esse lado positivo. O erro na leitura dominante não é o de acentuar a descontinuidade, mas pelo contrário, o de acentuar a continuidade (o lado positivo e não o lado negativo); a tradução por “su primir” nos parece pois preferível e menos perigosa do que aquelas que vio em sentido oposto e que oferecem o perigo de nos fazer esquecer a contradição. Tornar “claro” o discurso hegeliano é sempre uma operação perigosa, na medida em que a “clareza” não é uma determinação desse discurso. (25) Se a idéia de que uma determinação material possa fazer parte da forma em geral ainda parece estranha, lembremos a expressão “forma mercadoria”. A forma merca doria tem duas determinações, uma das quais é material. (26) “A partir desse instante, os trabalhos privados dos produtores obtêm de fato um duplo caráter social.” (W.23, K.I, p. 87; Dognin, p. 218) Mas com a segunda determinação eles serão “negados” enquanto trabalhos privados. O segundo texto de Marx citado por Benetti e Cartelier: “(...) a forma social é (...) uma forma distinta das formas naturais dos trabalhos úteis reais, forma que lhes é estranha e forma abstrata (...)” (Dognin, pp. 84-85, grifado por Marx) se refere evidentemente à situação exis tente na produção de mercadorias; “(...) como vimos, a mercadoria exclui por natureza a forma imediata da trocabilidade geral (...)” . (Ibidem) Ele não se refere a toda forma social, como a citação truncada do texto poderia sugerir. (27) O termo é de Marx: “A medida da ‘socialidade’ (Gesellschaftlichkeit) deve ser obtida da natureza das relações próprias a cada modo de produção e não das representações que lhe são estranhas”. (Dognin, pp. 84-85, primeira edição de O Ca pital) (28) “Finalmente, desde que os homens trabalham uns para os outros, de um modo qualquer, seu trabalho adquire também uma forma social.” (W.23, K.I, p. 86; Dognin, p. 216) (29) Bem entendido, pode-se distinguir nesses modos uma certa divisão do tra balho concebida em termos puramente técnicos e um conjunto de necessidades, e opor tudo isto às formas sociais em sentido estrito. Teríamos assim uma camada material distinta do sistema de formas propriamente dito, isto é, do conjunto das relações sociais que se urdem sobre a base técnica. Mas precisamente, para o caso do capitalismo e da produção de mercadorias, o momento material aparece como distinto não só enquanto configuração técnica e conjunto de necessidades — e é por isto que o momento material é aqui, rigorosamente, um momento distinto na forma — ele se abre para um sistema de relações que entretanto só constituía a “socialidade" externa do sistema. (Se se quiser obter um puro sistema de necessidades ou a simples base técnica do modo de produção capitalista ou simplesmente da produção de mercadoria, é necessário fazer abstração de um duplo sistema de relações.) Aqui aparece de um modo majs profundo o que mostramos anteriormente. Tampouco quanto os “elementos” da produção (com os quais os álthusserianos quiseram‘construir sua teoria dos modos), as noções de matéria e de forma, que têm entretanto uma pertinência dialética bem superior, não nos permitem construir nenhuma teoria geral em sentido próprio. Conforme o modo considerado, matéria e forma querem dizer essencialmente outra coisa. A particulari dade quebra a generalidade e mostra que ela é de fato “negação”, assim como seu outro não é mais do que “pressuposição”. (30) Não se trata entretanto de generalidade antropológica, mas de forma natu ral tal como ela é “posta” em um modo (diferente do modo capitalista-mercantil). (31) W.26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 140; Théories sur Ia Plus-value, III, op. cit., p. 169. Esses textos foram objeto de análise recente. Nós os comentamos desde meados dos anos 70 nos nossos seminários na Universidade de Paris VIII. (32) W. 26, 3, Theorien über den Mehrwert,.3, op. cit., p. 141; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 170. (33) Ver W.23, K.I, p. 51; Dognin, p. 176.
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(34) Ver W.26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 141; Théories sur laPlus-value, III, op. cit., p. 170. (35) W.23, K.I, p. 51; Dognin, p. 176. (36) A expressão "(redução a) algo comum (ein Gemeines)” que se encontra em 0 Capital reforçou algumas vezes a inflexão ilusória da redução à generalização. (37) Poder-se-ia dizer nesse sentido que a passagem da forma fenomenal ao fundamento pode se exprimir não só em termos de conteúdo e forma como o indica mos, mas tem também implicações para a relação matéria e forma. Com efeito, através desta redução se passa da forma (no sentido duplamente específico), o valor de troca (e entretanto forma expressa pela matéria) à forma pura (o valor). A continuação desse desenvolvimento nos reconduzirá à forma expressa pela matéria (o valor de troca). A passagem do fenômeno ao fundamento é pois "purificação” da forma. Mas purifi cação à qual sucede a reposição do ponto de partida: esta forma “impura” que é o valor de troca reaparece para ser analisada. (38) W.31, Briefe..., Berlim, Dietz, 1965, p. 326, carta de Marx a Engels de 24 de agosto de 1867; Lettres sur le Capital apresentadas e anotadas por Gilbert Badia, trad. G. Badia, J. Chabbert e P. Meier, Paris, Êd. Sociales, 1964, p. 174, grifado por Marx. (39) W.32, Briefe..., Berlim, Dietz, 1965, p. 11, carta de Marx a Engels de 8 de janeiro de 1868; Lettres sur le Capital, op. cit., p. 195, grifo nosso. (40) É essa não posição do trabalho abstrato nos clássicos que visam Benetti e Cartelier quando eles escrevem que havia aí um "lugar (...) vazio” (p. 166). Mas para Benetti e Cartelier o lugar “está vazio porque ele foi esvaziado” e é necessário preenchêlo não pelo trabalho abstrato mas pelo dinheiro. (41) “Lógica” não quer dizer existente somente como objeto do pensamento. Com isso, queremos dizer somente que a realidade que corresponde ao objeto não é “histórica”, entendendo por “histórica” uma existência que se apresenta como sucessão de formas no tempo. Voltaremos ao caso particular do problema da existência real do momento do dinheiro. (42) Ver a esse respeito o texto da contracapa do livro de Benetti e Cartelier. (43) Ver a esse respeito, neste tomo, “Dialética Marxista, Humanismo, Antihumanismo”. (44) O problema é posto por Benetti e Cartelier, pp. 142-143. (45) Embora ele não esteja ainda inteiramente objetivado, ou ainda que esta objetividade passe ainda pelos sujeitos. Há também um lado puramente subjetivo da expressão que desempenha um papel na dialética da forma do valor, mas que não se confunde de forma alguma com o lado objetivo. Ver mais adiante. (46) A expressão, não o ato de exprimir. (47) Ver a esse respeito, R. Blanché, Introduction à la Logique contemporaine, A. Colin, 1960, p. 190. (48) No texto da primeira edição de O Capital, Marx é muito menos explicito: “Esta distinção (entre as duas formas: relativa e equivalente — RF) é obscurecida por uma propriedade característica da expressão do valor relativo em sua forma simples ou primeira. A equação: 20 varas de tela = 1 casaco ou 20 varas de tela valem 1 casaco inclui de um modo manifesto esta equação idêntica: 1 casaco = 20 varas de tela ou 1 casaco vale 20 varas de tela. A expressão de valor relativo da tela, em que figura o casaco como equivalente, contém assim inversamente (rückbezüglich) a expressão de valor relativo do casaco, na qual a tela figura como equivalente”. (Dognin, pp. 62-63, grifado por Marx) As versões posteriores desenvolvem pois consideravelmente esse ponto, que no texto da primeira edição pode levar muito mais facilmente a interpre tações errôneas. (49) Este “pode” (“pode-se passar”) é também um “deve”. O problema não se resolve pela distinção entre a assimetria (a implicação da negação da inversa) e a simples não-simetria (o fato de que a primeira expressão não implica a inversa). Não se
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trata aqui de uma assimetria "fíraca”, mas de algo bem mais difícil: uma assimetria estrita que “coexiste” aparentemente com a sua negação. (50) Sobre a relação entrre a análise e a síntese, ver Hegel, Wissenschaft der Logik, op. cit., II, p. 491 (lógica. do conceito): “O método do conhecer absoluto é nessa medida analítico. Que ele encontnra exclusivamente neste a determinação ulterior do seu universal inicial é a objetividade; absoluta do conceito, de que o método é a certeza. Mas o método é entretanto iguí.ahnente sintético, porque o seu objeto, determinado imediatamente como universal sim ples, pela determinidade que ele tem na sua própria imediatidade e universalidade, see mostra como um outro. Essa relação de um diverso que ele (o objeto) é também em sti, não é o que se visa (gemeint) por síntese no conhecer finito; já pela sua determinação ¡igualmente analítica em geral, (pelo fato de) que ele é relação no conceito, ele se diferencia plenamente desse sintético (do conhecer finito)”. (Ver Hegel, Science de la Logiquie , deuxième tome, “La logique subjective ou doctrine du concept”, trad. franc. de P.-J.. Labarrière e G. Jarczyk, Paris, Aubier, 1981, p. 376) Ver também (a propósito do carráter ao mesmo tempo analítico e sintético da propo sição (Satz) da identidade e da contradição), Wissenschaft der Logik, zweiter Teil, ed. Lasson, Hamburgo, Felix Meineir, 1963, p. 32, Science de la Logique, trad. Labarrière et Jarczyk, op. cit., premier tonvie, deuxième livre, “La doctrine de l’essence”, p. 46. E a nota 40 da p. 43 (idem) que reanete ao texto citado da lógica do conceito. (51) A propósito da passaigem da forma II à forma III, que examinamos acima, Marx escreve: “Invertamos pois ia série: 20 varas de tela = casaco ou 10 libras de chá ou - etc.; em outros termos, excprimamos a inversão que, em si, implícita (implicite) já está na série, obtemos então: ffl. Forma geral do valor”. (Dognin, pp. 152-153 e 155-156, apêndice à primeira etdiçâo de O Capital, grifado por Marx) Aqui Marx escreve pois explicitamente que ¡a forma inversa existia em si na forma inicial. Entre tanto, tratando-se da passagem (da forma II à forma III, o movimento não tem exata mente o mesmo caráter daquela que consideramos agora. A inversão introduz uma nova configuração, uma nova for:-ma, o que não é o caso na passagem de uma expressão da forma I a uma outra expressão da forma I. Dever-se-ia dizer que é só no caso em que a configuração muda que se; pode afirmar que há passagem do em si ao para si? Não o cremos. Tentemos precisa* a diferença (porque de qualquer modo há uma dife rença). Como veremos, na passaigem da forma II à forma III o em si só existe inicial mente no objeto (portanto enquanto para si) em forma puramente subjetiva (a passa gem do em si ao para si será obje;tivação do que, de início só é subjetivamente). No caso que examinamos, o das duas expressões inversas da forma I, o em si existe em forma objetiva (portanto como para si objetivo) no interior da forma considerada (forma I) e isto na segunda expressão (que é igualmente de forma I). Mas precisamente ele existe só na segunda expressão. Elé exis te como para si objetivo só se se supuser que o objeto (o para si) está constituído pelo universo das expressões de forma I. Em relação à primeira expressão, ele não existe, ou ele só existe como a forma III no interior da forma II. Se se considerar só a primeira expressão, a segunda existe apenas de um modo subjetivo, subjetivamente (a esse respeito víer mais adiante). Por outras palavras, tudo se passa como se tivéssemos aqui uma relação entre diferentes expressões da mesma forma, que é análoga logicamente à que se estabelece entre duas configurações (II e III) da forma do valor. Sem dúvida, os efeitos das duas passagens não são os mesmos: mas a passa gem do em si ao para si pode, ¡segundo o nível considerado, afetar diferentemente o objeto. (52) Sobre esse ponto, ver a continuação do texto. (53) Também não podemc« dizer que a exprèssão simples do valor é transitiva. Na realidade, na medida em que as expressões simples são expressões “atômicas” não pode mos construir a transitividade, já por não poder construir uma conjunção de duas expres sões diferentes no primeiro mefribro da implicação que exprimiria a transitividade. (54) O texto diz que “as duas coisas” foram “primeiro (...) reduzidas na nossa cabeça à abstração valor”. Isto não quer dizer, apesar das aparências, que a redução é
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subjetiva. A redução ao valor “na nossa cabeça” se segue à redução real (mas a expressão do valor está nesse caso ausente). (55) Na lógica de Hegel, a identidade enquanto proposição de identidade é representada por A = A, expressão em que figura o signo da igualdade. Hegel mos trará, entretanto, o movimento da reflexão do sujeito no predicado que aí se encontra: “Na forma da proposição na qual a identidade é expressa se encontra, pois, mais do que a identidade simples, abstrata; o que aí se encontra é esse movimento puro da reflexão no qual o outro só entra em cena como aparência, como desaparecer imediato (...)” . (Wissenschaft der Logik, Zweiter Teil, op. cit., p. 31, Science de la Logique, op. cit., pp. 35 e 41) (56) “A expressão de valor relativa simples era o germe do quai se desenvolveu a forma equivalente geral da tela.” (Dognin, pp. 86-87, texto da primeira edição de O Capital, grifo nosso) (57) A relação de inerência é aquela que se encontra na forma clássica da proposição entendida em compreensão, mas mais rigorosamente numa proposição sin gular do tipo “Sócrates é mortal”. (Ver R. Blanché, Introduction à la Logique contem poraine, op. cit., pp. 127-128) Por outro lado, os lógicos distinguem a relação de perti nência da relação da inclusão: a inclusão “é reflexiva, não simétrica, transitiva, en quanto que” a pertinência “é irreflexiva, assimétrica, intransitiva (...)”. (Blanché, op. cit., p. 177) Blanché (idem, pp. 178 e 181) faz corresponder a inerência (em com preensão) à pertinência (em extensão). No que se refere a Marx, chamaremos de “juízo de inerência” (ver mais adiante) um juízo do tipo “o dinheiro é ouro", no qual, como veremos, se tem uma relação assimétrica, sem que haja entretanto reflexão do sujeito no predicado. (58) A proposição seria, na realidade, “o dinheiro é a mercadoria que se acha na forma equivalente simples”. Nós simplificamos. (59) Esta denominação, que já havíamos utilizado (ver neste tomo “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-humanismo), se inspira evidentemente em Hegel, mas não corresponde exatamente ao Urteil der Reflexion (juízo da reflexão) do capítulo sobre o juízo da lógica do conceito. (Ver Wissenschaft der Logik, op. cit., II, p. 286) (60) Reencontramo-lo em Castoriadis. Com efeito, mesmo se Castoriadis aceita a idéia de que há “fantasmagorias” objetivas no capitalismo — ele é levado a fazer a mesma crítica porque supõe que Marx projeta as categorias do capitalismo no passado: “Aristóteles não ‘fetichiza’ (n’est pas dans le ‘fetichisme’) — e é Marx que nesse ponto paradoxalmente fetichiza (l’est)”. (C. Castoriadis, “Valeur, égalité, justice, politique: de Marx à Aristote et d’Aristote à nous”, art. cit., p. 47, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 295, grifado por Castoriadis) (61) Para dar apenas um exemplo, Marx escreve a propósito da produção dos meios de produção, cujo resultado é um valor de uso que pode constituir um elemento do capital. "Trata-se aqui unicamente do gênero de valor de uso no qual o trabalho se apresenta, (trata-se de saber) se ele pode entrar de novo como condição da produção na esfera da produção capitalista à qual pertence o sobreproduto (surplus produce). Temos aqui de novo um exemplo da importância da determinação do valor de uso para as determinações econômicas formais’’. (W.26, 2, Theorien iiber den Mehrwert, 2, op. cit. , p. 489; Théories sur la Plus-value, II, op. cit., p. 583, grifado por Marx) (62) A diferença entre a objetividade social puramente abstrata e a objetividade social posta na matéria aparece no texto citado por Benetti e Cartelier na p. 144 (Dognin, pp. 52-53), na diferença entre Ding e wirklich(es) Ding (coisa e coisa efetiva) mas também na diferença entre Ding e Sache. O valor é uma coisa (Ding), no sentido de uma objetividade essencial, forma pura do fundamento. Para “fixá-la” nessa forma “é preciso fazer abstração de tudo o que faz dela efetivamente uma coisa (wirklich zum Ding macht)”. (Dognin, pp. 52-53) Marx escreve mesmo que o valor é um Gedankending (uma coisa do pensamento), e um Himgespint (uma fantasmagoria). Isto não quer dizer que o valor só existe no pensamento, mas que o valor é algo abstrato, e puramente abstrato, no nível do fundamento. Ou se se quiser: o valor é uma coisa do pensamento e
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uma fantasmagoría. Mas o real “pensa” (ou fantasma): “(A) objetividade do trabalho humano que é ele mesmo abstrato (...) é (...) objetividade abstrata”. (Ibidem) Na expressão do valor, a objetividade abstrata se exprime como coisa (sachlich). Se o texto diz: “As mercadorias são coisas (Sachen). O que elas são, elas devem sê-lo à maneira das coisas (Sachlich)", — isto quer dizer: as mercadorias se apresentam como valores de uso. Sem dúvida, elas não são somente valores de uso, mas esta é a sua única forma imediatamente efetiva. A efetivação ulterior (que se faz para além da mercadoria indi vidual) de tudo aquilo que elas são, e portanto também da sua determinação formal só se pode fazer por aí: o valor deve aparecer no valor de uso. (63) Sem dúvida, Marx não escreve que o valor de uso da mercadoria A se torna material para a expressão do valor. Mas a determinação do valor de uso enquanto valor de uso (que é também posto no interior do modo) é aqui, “suprimida”. Tem-se apenas a determinação de suporte do valor. Se essa forma da trocabilidade imediata não corresponde perfeitamente à forma objetiva (a que se efetua para A pela mercadoria B), em que o valor de uso se torna material, é que, precisamente, se trata de uma forma subjetiva da trocabilidade imediata. (64) Isto vale igualmente para a forma relativa. Na medida em que o valor de uso (enquanto valor de uso) da mercadoria B que interessa ao agente A, ela é para ele portanto subjetivamente, na forma relativa (a forma que corresponde à mercadoria no interior da expressão do valor, em oposição à forma equivalente que prefigura o di nheiro). Essa determinação subjetiva da forma relativa se acha, pois, do lado em que objetivamente se acha a forma equivalente. (65) Se Marx escreve que a exclusão é puramente subjetiva é porque, como já indicamos antes do dinheiro, a própria exclusão objetiva passa ainda pelos sujeitos, ou ainda não está inteiramente objetivada. (66) “Es finden wesentliche Veränderungen statt beim Uebergang von Form I zu Form II, von Form II zu Form III.” (Dognin, p. 164, grifado por Marx) (67) Ver Hegel, Wissenschaft der Logik, Zweiter Teil, op. cit., p. 156, Science de la Logique, trad. Labarrière e Jarczyk, op. cit., premier tome, deuxième livre, “La doctrine de l’essence”, p. 227. (68) O problema aqui é o da presença do valor e do valor de troca, no inicio da análise da forma do valor. Poder-se-ia propor também o problema da presença do valor e do valor de troca no inicio de O Capital. Lá se trata da mercadoria isolada. A mercadoria isolada tem valor, sem dúvida, mas se não a pusermos em relação com uma outra mercadoria, não pode haver aí valor de troca. A coisa se complica, pelo fato de que Marx se exprime, precisamente, da maneira contrária: ele fala, no início, de valor de troca e não de valor. Mais adiante isto é corrigido (é o único ponto em que, aparen temente, a apresentação de O Capital corrige, isto é, aceita — mas só para este ponto, insistimos — algo como uma apresentação provisória, forma em princípio estranha à apresentação dialética). Com efeito, para a mercadoria isolada (einzeln, individual) o valor de troca está ausente, ele não está presente mesmo enquanto forma fenomenal (o valor de troca depende precisamente da relação entre pelo menos duas mercadorias). Marx foi obrigado a seguir esse caminho que não é inteiramente satisfatório para poder começar ao mesmo tempo pela forma elementar que é a mercadoria individual e pela aparência que é o valor de troca e não o valor. Para evitar toda instância provisória seria preciso aceitar, no início, ou a presença do fundamento, isto é, do valor, ou o da multiplicidade das mercadorias, mas as duas alternativas levantam, por sua vez, pro blemas; elas não são satisfatórias, na medida em que em cada um dos casos, um “mais complexo” seria dado de imediato. A solução foi pois a de começar pela mercadoria isolada mas com o valor de troca, e corrigir em seguida o uso desta última expressão: “Se no inicio desse capitulo dissemos, da maneira usual: a mercadoria é valor de uso e valor de troca, isto, falando rigorosamente, era falso” . (W.23, K.I, p. 75; Dognin, p. 203) Para o conjunto do problema do valor na teoria da circulação simples, ver a segunda parte deste texto. (69) Ver W.23, K.I, p. 78; Dognin, p. 207.
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(70) Ibidem. (71) Portanto, nao haverá universalização, se se tomar a multiplicação das se qüências como alternativa para o caminho que seguirá Marx: o da inversão da forma II. Fora a inversão que interrompe de vez a multiplicação das seqüências, pode-se supor também, como faz o texto da primeira edição (ver mais adiante) tanto a multi plicação das seqüências como (depois) uma inversão de cada uma delas. Com isto se teria equivalentes gerais ou um equivalente geral não consolidado (em cada momento). Adiante, examinaremos em detalhe as conseqüências dà hipótese geral aqui excluída: a de uma consideração simultânea e não sucessiva das seqüências. (72) Observemos que nessa inversão, não só cada um dos termos da “equiva lência” muda de posição (e de função), mas um dos termos muda também as suas relações internas: o "ou” que liga os membros do primeiro termo na primeira expressão foi omitido na segunda, o que significa que ele se torna um “e”. Isto quer dizer que todas as mercadorias exprimem agora simultaneamente o seu valor. O que significa logicamente esta passagem? Se quisermos pensar essa diferença na sua relação com a lógica formal, seria preciso dizer: o “ou” da primeira forma é uma relação que não se confunde nem com o “ou” alternativo ou disjuntivo, nem perfeitamente com a conjun ção, mesmo se Marx se refere à forma II como a uma “soma de expressões”. (Dognin, p. 153) Digamos que esse “ou” é uma espécie de conjunção que, pelo fato de que a expressão, embora não seja subjetiva, não está inteiramente objetivada, é afetada pela alternativa. Por outro lado, como já vimos, o conjunto da expressão está agora posta em objetos determinados. Com essa posição, se entra num novo “registro”, cujas conseqüências aparecerão na passagem de III a IV. (73) Até aí a representação subjetiva do agente corresponde à expressão objetiva do valor da sua mercadoria. (74) Essa diferença entre o conjunto das seqüências considerado como uma su cessão, na qual cada mercadoria representa por sua vez o equivalente geral — confi guração que representa uma forma de transição (ao equivalente geral segundo a quarta edição, e a forma dinheiro segundo a primeira) — e o conjunto das seqüências consi derado em simultaneidade, poderia ser representado logicamente pela diferença respec tivamente entre uma relação de alternativa entre as seqüências e uma relação de con junção (para a justificação da representação da relação entre os termos da forma II por um signo duplo de alternativa e de conjunção, ver a nota 72): Forma II: (xA = yZ)*(xA = bm)* (xA = cL) etc. Forma lia (forma II desenvolvida, multiplicação das seqüências em sucessão) [(xA = yZ) * (xA = bM) ? (xA = cL) etc.] w [(yZ = xA) * (yZ = bM) * (yZ = cL)] w [(cL = xA )» (cL = yZ) * (cL = bM) etc.] W*etc. Forma Ilb (forma desenvolvida, multiplicação das seqüências em simultanei dade): [(xA = yZ) * (xA = bM) * (xA = cL) etc.] . [(yZ = xA) * (yZ = bM)1? (yZ = cL) etc.] . [(cL = xA)» (cL = yZ) » (cL = bM) etc.] . etc. O processo só conduziria à dissolução de toda expressão do valor se se passasse de uma relação de alternativa entre as seqüências (forma lia) a uma relação de con junção (forma Ilb). Mas enquanto se ficar na alternativa (forma Ha) a forma geral não está solidificada. Com a passagem à forma III (a qual, se se considerar lia, se opera a partir do primeiro membro de Ha) todos os membros ligados pela alternativa, em lia) salvo o primeiro que precisamente é invertido, são pois eliminados. (75) Ver W.23, K.l, p. 104; Oeuvres, Êconomie I, op. cit., p. 326. (76) Ver. W.23, K.l, p. 104; cf. Oeuvres, Êconomie I, op. cit., p. 625: Kongruenz é traduzido aí por “1’accord et 1’analogie”. (77) Marx supõe aqui duas formas monetárias. (78) W.23, K.l, p. 104; Oeuvres, Êconomie, I, op. cit., p. 625. O enunciado “os metais (...) são por natureza ouro” é de Galiani. Ver a nota ao texto. (79) Ver a esse respeito as últimas páginas do capítulo II do livro I de O Capital. Pode se consultar a esse respeito o artigo de N. Geras, “Essence and Appea-
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rence: aspects of fetischism in Marx’s Capital”, New Left Rewiew, Londres, n? 65, jan.-fev. 1971. (Les Temps Modernes, n? 304, nov. 1971) (80) A flecha sobre x e a flecha sobre y, na primeira expressão, representam, aparentemente, as duas relações duplas e inversas x (RI e R2) e y (R4 e R3), tais como elas são definidas nas duas últimas expressões. Elas não designam, aparentemente, relações de equivalência como no início. (81) X e Y aparecem em maiúsculas: trata-se entretanto das relações x e y. (82) As flechas indicam aparentemente não simplesmente a relação de equiva lência mas a relaçãp duplà x, isto é, a que contém RI e R2. Mas é a relação R2 que nos interessa aqui, pois é R2 que representa um problema. (83) Mesmo a segunda. Vimos que se se generalizar em lugar de passar ao universal concreto, é a forma do valor não o próprio valor que se perde. (84) É sempre possível descobrir que uma questão é uma falsa questão. Mas para isso é necessário compreender bem o sentido e o sentido das operações que poderiam conduzir à sua solução. (85) Ver a nota 56 deste texto. (86) Ver Benetti e Cartelier, p. 143. (87) “I. A passagem da mercadoria ao capital: um problema não resolvido.” (p. 132) (88) “Na teoria neoclássica, a passagem (da mercadoria ao capital) é efetuada pela generalização da teoria da troca de mercadorias como troca dos fatores de produ ção e como capitalização para troca dos fatores de produção duráveis.” (p. 133) (89) Benetti e Cartelier escrevem que particularmente Ricardo e Sraffa estão persuadidos de que elaboram uma teoria dos preços, (p. 84) A abordagem RicardoTorrens-Sraffa implicaria excluir “todo ponto de intersecção entre as noções de merca doria e de capital”, (p. 134) (90) “Tradicionalmente, a extensão da teoria da mercadoria consiste na adição de uma hipótese suplementar (existência do trabalho assalariado) a fim de produzir a noção de capital. Supõe-se então resolvido, sem o haver proposto, o problema da relação entre os sujeitos mercantis e capitalistas, sendo estes últimos concebidos como uma especificação dos primeiros.” (p. 53) “Na teoria marxista tradicional, o modo de produção capitalista só difere da sociedade mercantil pela extensão das relações mer cantis a uma mercadoria suplementar.” (p. 190) (91) H l é enunciado da seguinte maneira: “Hl: a sociedade é dada e a ligação entre os seus elementos é a separação, cuja expressão é a unidade de conta comum”. (P. 12) (92) H2 se enuncia da seguinte maneira: “O modo de existência da separação é a ruptura entre o privado e o social”, (p. 14) (93) H’2 se enuncia do seguinte modo: “(...): o modo de separação é a relação salarial”. (94) Não fazemos aqui a história da leitura da secção I. Não seria sem interesse fazê-la. (95) W.13, Zur K ritik..., op. cit., p. 44; Contribution à la critique de 1'Économie Politique, trad. franc. de Maurice Husson e Gilbert Badia, op. cit., p. 35, grifo nosso. (96) W.25, K.III, op. cit., p. 97; Le Capital, livro III, tomo I (VI), op. cit., p. 105, grifo nosso. (97) Observemos que os dois problemas não se confundem: no texto anterior trata-se (em termos filosóficos) do problema da relação entre essência e fenômeno-, aqui se trata do problema da relação essência e aparência. (98) Não há outras terras, para pensar o discurso de O Capital. Há evidente mente outras saídas — estamos vendo uma — se se tratar de abandonar o universo de O Capital. Mas o mínimo que se pode dizer é que ela só aparece como necessária se no fechamento só se viu fechamento. Ou, por outras palavras, se não se ousou discutir o princípio segundo o qual a contradição é irracionalidade.
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(99) Não podemos desenvolver esse problema aqui. Seria necessário pensar pri meiro o papel da identidade na dialética hegeliana, e em seguida, o que já é outra coisa, o papel da identidade na dialética de Marx. A questão do lugar da identidade parece essencial para pensar a relação entre as duas dialéticas. Voltaremos a isso em outro lugar. (100) Como veremos, esta aparência comporta de resto instâncias diferentes que podem não ser simples aparência. (101) Essas considerações visam mostrar a insuficiência da tese que se encontra em certos autores, segundo a qual na secção primeira se tem a teoria da circulação simples e não a teoria da produção simples. Esta tese resulta da dificuldade que oferece pensar como momento do capitalismo a noção de produção simples, o que tentamos fazer. (102) Que ela seja a “negação” de algo positivo é também verdade, só que o capital é posto entre parênteses na circulação simples. Mas é antes pelo outro lado que a circulação simples deve ser caracterizada, porque o outro lado — a posição de um ente “negado” — diz não o que é pressuposto, mas o que é posto na circulação simples. (103) Ver primeira parte, I, “d) A forma do valor”. (104) Dizemos expressão imediata do valor das mercadorias, porque por um lado o dinheiro tem sua forma relativa desenvolvida (forma que não é forma-preço) no conjunto das outras mercadorias. E que, por outro lado, através do dinheiro toda mercadoria exprime indiretamente o seu valor em todas as outras mercadorias. (105) O que não quer dizer que objeto e sujeito se confundem. Ver a esse res peito “Abstração real e contradição: ...” (segunda parte, excurso). (106) Ver a nota 42 deste texto. (107) As soluções dos dois problemas não são idênticas porque no problema geral (circulação simples/produção capitalista), a forma “negada” é a aparência da forma que nega, o que não é o caso, rigorosamente, para a relação entre os momentos do dinheiro e o dinheiro. (108) Ver “Abstração real e contradição: ...” (terceira parte). Uma comparação entre esses dois problemas tem interesse. Observar-se-á, como mostramos no texto anterior, que a resposta ao problema da existência do valor nos “bolsões” mercantis anteriores ao capitalismo é contraditória: lá o valor não existe, mas em certo sentido existe; quanto à produção capitalista, deve-se dizer que lá ele está absolutamente au sente. Para o problema da relação circulação simples/produção capitalista enquanto produção capitalista, temos, pelo contrário: o valor está lá absolutamente (na circula ção simples), enquanto que a produção capitalista, como acabamos de ver, está e não está. (109) O dinheiro conserva o valor de uso material mas como valor de uso (mate rial) “negado”. Marx parece escrever que no dinheiro ao valor de uso material se acrescenta o valor de uso formal (ver W.23, K.I, p. 104; Oeuvres, Économie I, p. 626), o que poderia levar à suposição de que os dois valores de uso subsistem, no dinheiro, enquanto determinações positivas. Mas na realidade ele se refere não ao dinheiro mas à mercadoria-dinheiro (Geldware), isto é, ao dinheiro considerado em continuidade com a forma que ele “nega”, a mercadoria. Se se pensar o dinheiro como “mercadoriadinheiro”, a determinação própria à mercadoria — o valor de uso material — não está “negado” (o que seria o caso se se visasse simplesmente o dinheiro) mas aparece ao lado da determinação própria do dinheiro, o valor de uso formal. “O valor de uso da mercadoria-dinheiro (Geldware) se desdobra. Ao lado do seu valor de uso particular enquanto mercadoria — o ouro, por exemplo, serve para preencher dentes ocos, como matéria-prima para artigos de luxo etc. — ela recebe um valor de uso formal que nasce de sua função social específica.” (W.23, K.I, p. 104; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 626) (110) “Se se fixar as formas particulares de manifestação (...) obter-se-á as explicações (erhält man die Erklärungen): o capital é dinheiro, o capital é mercadoria.” (W.23, K.I, p. 169; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 700)
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(111) Trata-se das relações entre diferentes movimentos circulares e não da re lação entre os momentos de um desses movimentos. Já sabemos que só pode haver capital se esses momentos se ligarem internamente, constituindo com isto um Sujeito autônomo. Mas a exterioridade do vinculo entre os diferentes movimentos nos mostra que nesse nível o capital tem ainda alguma coisa de mercadoria. (112) Retomaremos em seguida, de um modo mais analítico, a passagem anali sada em “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-humanismo”, segunda parte. (113) Retomada do problema da segunda parte do primeiro ensaio. Se anterior mente (neste texto) vimos a dialética da essência e da aparência, se no final do ensaio anterior vimos a dialética da essência e do fenômeno, trata-se aqui — como no final do primeiro ensaio — de alguma coisa como a dialética entre a essência, e a essência da essência do sistema. (114) Ver W.23, K.I, pp. 594-595; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 1071. (115) "A representação do capitalista segundo a qual ele consome o produto do trabalho não pago de outrem, a mais-valia, e conserva o seu valor-capital primitivo, não pode mudar absolutamente nada desse fato.” (W.23, K.I, pp. 594-595; Oeuvres, Économie I, p. 1071) (116) Observemos que no interior da teoria da reprodução — e se trata da outra diferença em relação à teoria da produção (secções 2 a 6), toda diferença individual entre operário e capitalista desaparece. Pouco importa se inicialmente o capitalista trata com o operário A, substituido mais tarde pelo operário B. Aqui se totaliza, só se considera o conjunto da classe dos capitalistas. (117) “Quando alguém consome todos os seus bens (sein ganzes Besitzum) con traindo dívidas, que equivalem ao valor desses bens, a totalidade dos bens não repre senta mais do que a soma total das suas dívidas.” (W.23, K.I, p. 595; Oeuvres, Éco nomie I, p. 1071) (118) “Originariamente, o direito de propriedade nos aparecia como fundado no próprio trabalho. Pelo menos, .esta suposição devia ser válida, pois só temos face a face proprietários de mercadorias com o mesmo direito, (pois) o meio para apropriação da mercadoria de outrem era só a alienação da própria mercadoria, e esta só pode ser produzida pelo trabalho. A propriedade aparece agora do lado do capitalista como o direito de se apropriar do trabalho não pago de outrem ou de seu produto, (e) do lado do operário como impossibilidade de se apropriar do seu próprio produto. A sepa ração entre a propriedade e o trabalho se torna uma conseqüência necessária da lei que partia, aparentemente, da sua identidade.” (W.23, K.I, pp. 609-610; versão fran cesa bem diferente, ver Oeuvres, Économie I, op. cit., pp. 1085 e segs.). (119) Como assinalamos anteriormente, há uma certa dificuldade em interpre tar e criticar a leitura de Benetti e Cartelier exatamente porque as suas respostas e os seus conceitos tornam ambíguo o próprio problema que eles discutem. Mas como vimos, há razões para justapor a resposta deles à de O Capital. São eles mesmos que as justapõem. De resto, a resposta deles também não é satisfatória se supusermos que se trata do problema da distinção entre formações históricas diferentes. (120) Sem dúvida, como rimos, Benetti e Cartelier procuram freqüentemente apoiar-se em certos textos de Marx. Mas não se trata de textos que apresentam as contradições, mas de textos que parecem constituir um bloqueio diante delas. Há entre tanto um texto (p. 118) — em que os autores insinuam a possibilidade de um paren tesco entre as suas respostas e as de Marx — que poderia remeter à segunda negação: “Reencontra-se aqui uma conclusão estabelecida mais acima: a especificidade da pro priedade capitalista em relação à propriedade mercantil (do mesmo modo que uma intuição profunda de Marx, para quem o capitalismo era a negação da propriedade privada)”, (p. 118) Mas tudo isto permanece bem vago. (121) Ver a nota 3 da terceira parte de Marchands, salariat et capitalistes. (122) Primeiro no § 2 do capítulo 22 da secção VII (W.23, K. I, p. 614; Oeu vres, Économie I, p. 1091, § II do capitulo XXIV da secção sétima na versão francesa) — “interpretação errônea da reprodução em escala ampliada pela economia política” .
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Em seguida na secção III do livro II (principalmente no capítulo XIX, W.24, K.II, p. 362; Éd. Sociales, 1. II, t. II (V), p. 18; Oeuvres, Economie II, p. 730, troisième section, introduction). Finalmente no capítulo 49 do livro III. (W.25, K.III, p. 840, Ëd. Sociales, 1. III, t. III (VIII), p. 210; Oeuvres, Économie II, p. 1441, cap. 26 do livro III) — “Complemento à análise do processo de produção” . Também no livro I das Teorias..., capítulo III. (W.26, 3, Theorien..., 3, op. cit., p. 40, Théories..., III, op. cit., p. 63) (123) Apresentaremos aqui o problema proposto por Benetti e Cartelier de um modo que não é muito teórico e em termos bastante livres, mas esta apresentação nos parece corresponder ao que está efetivamente em jogo. (124) A parte entre colchetes só existe na tradução francesa. (125) Sempre no sentido técnico que toma o termo “pressupor” no discurso dialético. (126) Anteriormente, voltamos à circulação simples, a partir de uma questão que comportava uma solução análoga à solução de um problema da circulação simples. Como se verá, aqui a analogia não está nas soluções, mas nos problemas. (127) Ver W.24, K.II, pp. 352-353; Oeuvres, Économie II, pp. 506-507. (128) Ver W.24, K.II, p. 102; Le Capital, 1. II, t. I (IV), op. cit., p. 92. (129) “(...) M... M’ (...) já no seu extremo inicial se anuncia como configuração da produção capitalista de mercadorias.” (W. 24, K. II, p. 102; Le Capital, 1. II, t. I (IV), op. cit., p. 91) “O que distingue a terceira figura das duas primeiras é que só nesse ciclo o valor-capital valorizado e não o capital primitivo ainda por valorizar apa rece como ponto de partida de sua valorização. M’ como relação-capital (Kapitalverhàltnis). M’ como relação-capital é aqui o ponto de partida e, como tal, age de um modo determinante sobre o ciclo inteiro (...).” W.24, K.II, p. 97; Le Capital-, 1. II, t. I (IV), p. 87). (130) O que se pressupõe no caso (ciclo II) não é o processo de valorização (isto é, o capital produtivo no processo de produção, que é o verdadeiro ponto de partida do ciclo II), mas o capital produtivo (ou antes, uma parte dele, a que é objetiva) enquanto mercadoria. Portanto, aqui não só a pressuposição vem no final, mas ela não corres ponde' perfeitamente à figura do ponto de partida. Observemos que Marx se refere sempre nesse texto a pressuposições imediatas, isto é, à forma que se encontra nas mãos dos outros agentes que aparecem no ciclo, não às pressuposições dessas pressu posições. (131) "Sobre a base do modo de produção capitalista como modo dominante toda mercadoria deve ser, por outro lado, capital-mercadoria para o vendedor. Ela continua a ser nas mãos do comerciante ou se toma tal se ainda não o era. Ou entâo ela deve ser mercadoria — por exemplo um artigo importado — que substitui um capitalmercadoria primitivo, e que só lhe deu, portanto, uma outra forma de existência.” (W.24, K.II, p. 100; Le Capital, 1. II, t. I (IV), p. 89) (132) Acrescentemos que M’ pode "existir numa forma de uso que não pode (...) entrar num processo de produção, qualquer que seja ele” . (W.24, K.II, p. 102; Le Capital, 1. II, t. I (IV), p. 91) (133) M’ é composto de M + m. “M’... M’ é o único ciclo no qual o valor primitivamente adiantado só constitui uma parte do extremo que abre o movimento com o que o movimento se anuncia desde o principio como movimento total do capital industrial; tanto da parte do produto que substitui o capital produtivo como da que constitui o sobreproduto e que, etfl média, é em parte gasta como rendimento, em parte deve servir como elemento da acumulação.” (W.24, K.II, p. 101; Le Capital, 1. II, t. I (IV), p. 91) (134) Deslocamos as'aspas que introduzem as citações de Marx. Aparentemente há, aí, erro de impressão. (135) No texto de Benetti e Cartelier, há aqui uma nota que examinaremos mais adiante.
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(136) “Examinemos a circulação dessas 30 £ , que se separa do circuito do capital, embora ela tenha nela o seu ponto de partida: 400 libras de fios (M' = parte de sobreproduto) ... 30 £ (D) ... 3 0 £ (M = meios de subsistência). Trata-se pois de um caso de circulação simples de mercadorias, em que o dinheiro funciona só como moeda. Sua finalidade é o consumo individual e é revelador da estupidez dos economistas vulgares o fato de que eles apresentam esta circulação da parte do sobreproduto consu mido como rendimento como circulação caracteristica do próprio capital, quando na realidade o seu motivo determinante é a valorização do valor, o valor de troca e não o valor de uso.” (Oeuvres, Êconomie II, p. 534, grifo nosso) E mais acima: “As 30 £ consumidas como rendimento se incorporam à circulação geral tanto quanto as outras 30£; mas em vez de entrar no circuito do capital, elas, pelo contrário, escapam dele”. (Oeuvres, Êconomie II, p. 533) Ainda: “A circulação da mais-valia constitui aqui ela própria um momento na circulação do capital. E só depois do ato M’ — D’ que os dois elementos se separam: daqui por diante dividido em D + A D, D' pode percorrer dois circuitos diferentes, um dos quais entra na circulação geral das mercadorias saindo do circuito próprio ao capital, enquanto que o outro constitui uma fase deste último". (Oeuvres, Êconomie II, p. 540, grifo nosso. Esse texto, como os dois anteriores, não existe nas Werke, e foi portanto traduzido do francês) Ver também W.24, K.II, p. 97; Le Capital, 1. II, t. I (IV), p. 87; e W.24, K.II, pp. 74-75; Le Capital, 1. II, t. I (IV), pp. 65-66. (137) “(...) a análise que Marx apresenta na quinta secção, se despojada do ‘fetichismo do capital real’ é amplamente compatível com a que foi apresentada na primeira parte dessa obra.” (p. 204) Trata-se de um texto da nota 6 de Benetti e Cartelier, sobre o crédito, a qual não comentamos aqui. Citamo-la por causa da pre sença — a propósito de Marx — do termo “fetichismo”. (138) Numa nota da p. 196, Benetti e Cartelier escrevem: “Marx parece cons ciente dessa redução, mas não a supera (Citação de Marx, damos a versão das £d. Sociales utilizada por Benetti e Cartelier)”. “Concentrando a atenção sobre esta figura (fixiert man (...) dieseFigur) (o ciclo III), tem-se a impressão de que todos os elementos do processo de produção provêm da circulação das mercadorias e só consistem em mercadorias. Esta concepção estreita (einseitige) não leva em conta (überzieht, néglige) os elementos do processo de produção que são independentes dos elementos de mercadoria ( Warenelementen)” . ((Le Capital), 1. II, t. I, p. 92 (ver W. 24, K. II, p. 103)) “De que elementos se trata?" — perguntam Benetti e Cartelier. "Sem dúvida não da própria ‘força de trabalho’ (que), segundo Marx (é) mercadoria (...).” (Benetti e Carte lier, p. 196, n. 2) A resposta a esta questão se encontra, entretanto, em Marx: "Urna vez consumado o ato e-Mp, as mercadorias (Mp) deixam de ser mercadorias e se tornam um dos modos de existência do capital industrial, na sua forma funcional de P, capital produtivo”. (W.24, K.II, pp. 113-114; Le Capital, 1. II, t. I (IV), p. 102, grifo nosso) E ainda: “(...) a força de trabalho só é mercadoria nas mãos do seu vendedor, o trabalhador assalariado (...)” . (W.24, K.II, p. 42; Le Capital, 1. II, t. I (IV), op. cit., p. 38) Os meios de produção podem ser mercadorias nas mãos do comprador, mas eles não o são no interior do processo de produção. No processo produtivo, eles são capital — numa de suas formas, o capital produtivo, e capital produtivo em processo — sem ser mercadorias nem dinheiro, sem ter a forma mercadoria nem a forma dinheiro. Benetti e Cartelier esqueceram simplesmente o capital produtivo, que no processo de produção é uma terceira forma., diferente da mercadoria e do dinheiro. Mas a idéia — que é justamente a de Marx — de um momento do capital em que este não é nem mercadoria nem dinheiro se justifica logicamente? Acreditamos que aqui também a solução tem algo a ver com a relação contraditória entre o capital e os seus “antece dentes” lógicos. Se o dinheiro e a mercadoria fbssem antecedentes fundantes do capital, seria difícil pensar que este último poderia se desfazer deles, ainda que num momento apenas do seu processo circulai. E outro o caso, se esses antecedentes (que se tornaram formas de existência) são na realidade pressuposições, isto é, princípios "negados". A possibilidade de que eles sejam efetivamente “negados” parece pensável. O capital
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como capital produtivo não é nem mercadoria nem dinheiro. Ele se apresenta só como valor de uso e é sempre valor, pois o capital é valor que se tornou Sujeito. Tem-se capital (valor-capital e forma de existência valor de uso) sem ser nem mercadoria nem dinheiro. (139) Sobre a importância do valor de uso para a reprodução, ver a nota 61. (140) “(...) Com a ciência se passa o mesmo que com as forças naturais. Uma vez descoberta, a lei do desvio da agulha imantada nü circulo de ação de uma corrente elétrica, ou da produção do magnetismo no ferro em torno do qual circula uma cor rente elétrica n&o custa um vintém." (W.23, K.I, p. 407; Oeuvres, Economie I, op. cit., p. 931) (141) O que não será um pecado se o “economismo" está nas coisas. Lembre mos a esse respeito um texto de Horkheimer, que é pouco suspeito de economismo, a propósito do conceito (em sentido objetivo e subjetivo) de “dependência do cultural em relação ao econômico” nas condições do capitalismo contemporâneo: “Com a ani quilação do individuo tipico, ele (esse conceito) deve ser compreendido como se (de uma maneira) mais vulgarmente materialista do que antes. As explicações dos fenômenos sociais se tornam mais simples e ao mesmo tempo mais complicadas” . (Max Horkhei mer, Traditionelle und kritische Theorie, artigo com o mesmo título, Frankfurt, Fis cher, 1968, p. 52. Théorie traditionelle et Théorie critique, Gallimard, 1974, p. 73, grifo nosso) (142) Ver a esse respeito o final da primeira parte. Seria preciso insistir sobre a importância da critica do convencionalismo, isto é, da critica do “antifetichismo” abstrato para a análise do capitalismo contemporâneo. Com efeito, tudo se passa como se a aderência das relações formais de produção às relações materiais se tivesse tornado mais estreita do que pensavam os clássicos. Tal é a significação da discussão atual sobre as implicações que têm imediatamente os meios de produção sobre a exploração e a opressão. Nesse sentido, toda exigência de “esvaziamento” da matéria a propósito da teoria de Marx corre o risco de ir no sentido oposto ao das exigências criticas atuais. (143) Talvez fosse interessante comparar Benetti-Cartelier, Castoriadis e Althus ser, no ponto em que cada um à sua maneira “roça” a dialética (exprimindo malgré lui e de maneira subjetiva a contradição): Althusser nas suas considerações, em Pour Marx, sobre a Tese VI sobre Feuerbach “A essência humana é (...) o conjunto das relações sociais” (ver “Marxismo, Humanismo, Anti-humanismo”, segunda parte). Castoriadis insistindo sobre as antinomias de Marx. (Ver “Abstração real e contradi ção...”, terceira parte), Benetti e Cartelier, quando escrevem: “O ouro só é mercadoria enquanto ex-mercadoria", (texto citado)
Apêndices
1
Sobre o destino da antropologia na obra de maturidade de Marx (1968)*
1. Este texto não pretende fazer uma crítica geral do althusserismo, mas desenvolver em forma esquemática, e como um programa de discussão, dois problemas que a leitura da obra de Althusser pro põe: 1) Qual o destino da antropologia na obra de maturidade?; 2) Qual a relação entre a obra histórica e política de Marx, e a teoria de O Capital ? A discussão do primeiro problema pressupõe uma concor dância de princípio com a crítica althusseriana do humanismo. Não se trata de uma volta às leituras continuístas tradicionais, mas de uma tentativa de pensar em continuidade a descontinuidade lógica indis cutível que existe entre o “jovem” e o “velho” Marx. (Essa continui dade na descontinuidade1 será pensada também lógica e não historica mente.) Na discussão do segundo problema, por sua vez, se admitirá a validade regional de algumas das teses da crítica de Althusser ao histo ricismo. Assim, nos dois casos, questionaremos os limites de um tra balho crítico, cuja validade em princípio (ou para uma certa região do objeto, pelo menos) não será contestada. — Por outro lado ver-se-á — o que não é imediatamente evidente — que cada uma daquelas questões desemboca nos dois problemas correlatos do humanismo e do histori cismo. Através destes, as duas interrogações imbricam-se e iluminamse reciprocamente: a questão dos “ dois” Marx esclarece a da organi zação geral do saber marxista e vice-versa. Embora não linearmente, iremos da primeira à segunda interrogação; sob um aspecto, entre tanto, articulamos desde o início as duas perspectivas, pois começa remos por uma reconstituição da estrutura geral do espaço do saber na obra de juventude. 2. Além de funcionar como fundamento teórico da crítica da economia (a rigor fundamento de um fundamento, a noção de “traba lho alienado”), o discurso antropológico, ou, mais especificamente, as noções de “homem” e de “essência humana” representam na obra de juventude uma espécie de “fundamento prático” da política.2 (Ver, a esse respeito, L. Althusser, Pour M arx (“Marxisme et Humanisme” , pp. 229-230) Poderíamos distinguir, na obra do jovem Marx, pelo menos dois modelos de utilização de noções como “homem” ou “essên cia humana” como fundamentos da prática: o da Introdução à Crítica da Filosofia do Direito, de Hegel, e o dos Manuscritos de 44, ao qual
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nos limitamos. Há nos Manuscritos dois fundamentos práticos, ou um fundamento prático que se manifesta em dois níveis de consciência, o do Sujeito (o filósofo crítico) e o do objeto (isto é, o dos sujeitos “históricos”).3 Tanto o filósofo como o homem alienado, em quem “irrompe” a essência humana, pensam a idéia da humanidade. Mas ao primeiro corresponde a idéia verdadeira do homem humano (politica mente, ao que Marx chama, então, de “ socialismo”), ao segundo urna idéia imperfeita (politicamente, a de uma comunidade humana ainda infectada pelo princípio da propriedade privada, o que Marx deno mina, então, o “comunismo”). Para reconstituir o espaço que se cons trói em torno desses fundamentos é necessário precisar a natureza de duas conexões: a) Como se efetua no objeto a passagem da prática humana (Historia) à consciência?; b) Qual a relação entre a consciên cia, no objeto, e a consciência filosófica (ou qual a posição relativa das duas consciências) e, questão conexa, em que nível se dá a intervenção no processo histórico? a) Como já foi assinalado, a Historia, nos Manuscritos, como no jovem Marx em geral, dispersa e atomiza os indivíduos. Ê a explosão da natureza humana, provocada por urna alienação extrema, que lhes permite romper a dispersão da “sociedade civil” , e se alçar, num plano transcendental, a uma experiencia comu nitária. A irrupção da transcendentalidade na História marca, assim, uma passagem brusca de uma dispersão a uma associação, b) Numa forma muito mais radical do que aquela que encontraremos mais tarde, há, nos Manuscritos, uma espécie de “defasagem” entre as duas cons ciências, já que um enorme intervalo histórico separa as suas respec tivas visadas.4 O filósofo pensa e tematiza um homem humano que, conforme o terceiro manuscrito, só seria produzido num futuro longín quo. A consciência do filósofo está “inclinada” para este futuro e, dessa perspectiva — que é a do socialismo (humanismo) —, ele critica a prática do futuro imediato, cujo principio motor é o comunismo.5 Pelo seu caráter intencionalmente “utópico” , entretanto, essa crítica não se propõe aparentemente alterar o curso do processo histórico objetivo, mas apenas mostrar os seus limites.6 No extremo oposto do que ocorre na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, na qual o proletariado tem um papel passivo.7 No esquema dos Manuscritos, o processo revolucionário, o do futuro próximo, pelo menos, poderia dar-se, aparentemente, sem intervenção do Sujeito. Em resumo: descontinuidade e ruptura entre a Historia e o sujeito no objeto (o sujeito “histórico” ); defasagem radical entre o sujeito no objeto e o Sujeito filosófico; intervenção a partir do primeiro. 3. À dupla transcendentalidade prática na obra de juventude corresponde, na obra madura, uma dualidade não mais transcen dental, a que distingue a consciência real do proletariado da cons ciência revolucionária do Sujeito (teórico-dirigente revolucionário, ou
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partido).8 A consciência real aparecerá, antes de mais nada, sob a forma, não definida na obra de juventude, da consciência econômica, a) Entre a História e a consciência econômica (que é interior à história) não há passagem brusca da dispersão à associação. Nos textos de transição sobretudo (ver o final de Miséria da Filosofia), Marx assinala que as organizações operárias são produto necessário do processo his tórico, que reúne, tanto quanto separa, os indivíduos. A consciência (econômica) nasce como tomada de consciência, do solo de uma aglu tinação de fato; a dispersão histórica se conserva, mas como um dos níveis constitutivos de um processo, pensado agora como “contradi tório” .9 Diferentemente dos Manuscritos, não haverá ação revolucio nária sem intervenção do Sujeito. (Mas contrariamente à Introdução à Crítica da Filosofia do Direito..., essa intervenção não põe em movi mento um sujeito passivo.) A nova posição do Sujeito, que torna pos sível sua intervenção, exprime-se numa distribuição do espaço do seu discurso: a idéia de uma sociedade humanizada, a qual se abria para um discurso plenamente tematizável10 embora descrevesse uma situa ção pós-histórica (essa dupla característica correspondia à sua função de fundamento) passa a ser um horizonte. É a antevisão necessaria mente marginal da “humanidade humana” que encontramos, por exemplo, nos últimos capítulos do livro III de O Capital ou na Crítica do Programa de Gotha. A essa transformação do fundamento subjetivo em horizonte — lugar por excelência da “ antropologia” na obra ma dura — corresponde a emergência de dois discursos,11 ausentes até aqui, o discurso histórico e o discurso tático-estratégico. A presença desses dois discursos, cuja natureza passamos a examinar, redefine as relações da consciência no objeto e do objeto em geral com o Sujeito. 4. A natureza do discurso histórico e do discurso tático-estraté gico é um problema maior, para o qual Althusser não dá uma solução satisfatória. Althusser preocupou-se em definir as condições de uma teoria da história e deu algumas indicações sobre a teoria da prática (ver Lire Le Capital II); mas a solução que ele esboça para esses problemas, de certa forma implícita na formulação que lhes dá,12 o leva a deixar na sombra os textos propriamente históricos e político-práticos, essenciais à arquitetura global do marxismo.13 No quadro das noções althusserianas, haveria aparentemente duas alternativas para conceituar os discursos histórico-políticos (supondo a existência de uma conexão interna entre o discurso histórico e o político vamos considerá-los conjuntamente): ou seriam aplicações da teoria (ver Lire Le Capital, I, p. 38), ou se trataria de discursos ideológicos (sobre a noção de ideologia ver principalmente “Marxisme et Humanisme” em Pour Marx).14 Começando pela segunda hipótese. Apesar das diferen ciações introduzidas, a dualidade entre ciência e ideologia, tal como a estabelece Althusser, não parece pertinente para definir o discurso
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histórico-político. Por um lado esse discurso tem uma função prática que não é menor do que a teórica (neste sentido é que, do ponto de vista althusseriano poderia ser chamado de ideológico); mas por outro lado ele é, à sua maneira — o que segue tentará justificá-lo —, um discurso rigoroso. Quanto a interpretá-lo como aplicação, seria aparentemente transpor para o marxismo uma forma de hierarquização do saber que lhe é estranha. O marxismo propõe dois modos de leitura do objeto, o lógico e o histórico, e embora o histórico pressuponha o lógico (há também uma reciprocidade mais “fraca” a ser definida), o tipo de hie rarquia que se estabelece entre eles não é redutível à relação teoriaaplicação. Isto não só porque a cada um deles correspondem exigências diversas de cientificidade — por exemplo, se nos dois se pode aplicar a distinção essência-aparência, é fácil ver que em cada caso ela ganha um sentido diferente — como também porque a sua significação epistemo lógica geral não é a mesma. A partir da leitura da História que faz de O Capital, Balibar escreveu que “uma ausência de memória radical (...) caracteriza a história (Lire Le Capital, II, p. 192). Essa definição vale como princípio do discurso lógico. De fato, de um duplo ponto de vista, o princípio da teoria de O Capital não é a memória mas a antimçmória: objetivamente, pois para compreender as leis do sistema capitalista é necessário separar a sua articulação lógica da sua gênese; subjetiva m ente, porque não há continuidade, nesse nível, entre a prática polí tica e a prática teórica. Mas o mesmo não acontece com o discurso histórico e com o discurso tático-estratégico; eles pressupõem uma memória que, não obstante o hegelianismo da fórmula, é uma memória de si. A História — a história contemporânea em particular — aparece sobre o fundo de uma prática possível (ver por exemplo os textos sobre o proletariado em O Dezoito Brum ário...), que “critica” 15 a prática real, quando esta história não é, ela mesma, em maior ou menor grau, o resultado de um conjunto de ações planejadas pelo Sujeito. Num e noutro caso há circularidade entre a História e os dois discursos prá ticos (e entre estes últimos): o sujeito é um centro em constante movi mento que articula dois momentos de uma prática em que real ou idealmente ele se insere. Ao contrário do que constatamos na obra de juventude, a História (como processo objetivo) e a consciência real, que representa um de seus níveis, passa a ser assim o solo dos discursos práticos (não da Teoria, como quer o historicismo), rompendo a descontinuidade que, no jovem Marx, se estabelecia entre os dois sujeitos, entre o Sujeito e a História. (Essa continuidade prolonga uma outra continuidade16 que, como vimos, se estabelece, após a coupure entre a história real e a consciência objetiva.) Mas se a História é o solo dos discursos práticos, a dependência destes para com ela — dependência que não é só para com um passado imediato — deve ser entendida como uma interiorização de experiên cias ,17 e não à maneira positivista, como incorporação à teoria de uma
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série de experimentos . (Certamente se pode introduzir descontinuidade nessa interiorização — a introdução dessa descontinuidade marca aliás a originalidade epistemológica da obra de Debray —; mas assim como toda continuidade, no plano da teoria (lógica), é derivada de uma descontinuidade que a torna possível, aqui toda descontinuidade só poderá nascer na continuidade de uma memória.) O discurso histórico e tático-estratégico não depende apenas da teoria de O Capital, que lhe fornece os princípios; depende também de um passado, que é um passado prático. Se os discursos histórico-práticos não são simples aplicações da teoria nem ideologias, conviria analisar mais de perto a sua natureza. Aqui me limito a fazer duas observações: esses discursos não satisfazem certamente à exigência althusseriana de que “o conhecimento da his tória não seja mais histórico do que é açucarado o conhecimento do açúcar” . (Lire Le Capital, I, p. 132) O horizonte temático que eles propõem é, pelo contrário, comandado pelo ritmo do tempo histórico. Citando Lenin: “Não foi a dedução lógica, mas o desenvolvimento real dos acontecimentos, a experiência viva dos anos 1848 e 1851, que o conduziu (a Marx) a esta maneira de colocar o problem a. Até que ponto Marx se atém rigorosamente à base efetiva da experiência histó rica, vê-se levando em conta que, em 1852, Marx não coloca ainda o problema concreto de saber por que coisa se vai substituir esta má quina do Estado que deve ser destruída. A experiência não fornecia ainda os materiais para este problem a, que a História pôs na ordem do dia mais tarde, em 1871...” . (Lenin, Obras escolhidas, ed. em espa nhol, III, p. 224, “O Estado e a Revolução” , grifos nossos) — Em segundo lugar, os discursos histórico-políticos recolocam o problema das relações entre Marx e Hegel. Para dar mais um exemplo (que se relaciona com o texto de Lenin): tradicionalmente se estabelece uma homología entre o lugar que ocupa o socialismo ou o comunismo em Marx e a posição do saber absoluto na Fenomenología do Espírito de Hegel. A homología é, talvez, menos superficial do que hoje se costuma supor. E ela estabeleceria uma convergência, entre Hegel e Marx, na definição das condições de possibilidade do conhecimento do futuro; no caso, do futuro “distante” . Na Fenomenología (e para as duas cons ciências, o que muitas vezes se perde de vista), a tematização plena dp saber absoluto — correlato do que seria a sua transformação em funda mento — é impossível enquanto não se chegar ao final do itinerário fenomenológico, A meio caminho da Fenomenología, ela perverteria a cientificidade (ou quase cientificidade) do discurso, e o transformaria em opinião.16 Impensável como discurso pleno, o saber absoluto está dado, entretanto, como horizonte. A essencialidade desse horizonte é variável com o estágio do itinerário fenomenológico em que a cons ciência se encontra; sua capacidade de iluminar o presente (assim como a possibilidade, correspondente, de que ele mesmo seja tematizado)
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aumenta, em geral, à medida que nos aproximamos do objetivo último. Mas dentro desses limites, a visada do absoluto é uma dimensão neces sária. E esses limites são homólogos aos que condicionam a validade e justificação do discurso sobre o socialismo: com o mesmo “ gradiente” temporal, o discurso que tematiza plenamente o socialismo não pode ser científico (nem portanto revolucionário), o que não o incorpora como perfil do objetivo final não pode ser revolucionário (nem portanto científico). Sob esse aspecto, ainda que se admitam as observações de Althusser, segundo as quais as categorias hegelianas tomam impossível “toda antecipação consciente do desenvolvimento do conceito, todo saber que visa ao futuro” (Lire Le Capital, I, p. 118) é indiscutível que foi possível extrair de Hegel uma teoria desta antecipação.19 5. Restaria colocar o problema das relações entre os discursos histórico e político, e a teoria de O Capital. Aqui é certamente válida a crítica ao historicismo: não há entre o tempo histórico e a teoria lógica a continuidade que ele supõe; mas os dois articulam-se através de certos laços que é preciso definir, a partir de uma análise do espaço objetivo da teoria. Para o discurso histórico-político definimos dois pontos que são as suas referências extremas:20 um solo histórico que tem como um de seus níveis a consciência atual do proletariado; um horizonte repre sentado pelo objetivo último, o socialismo. Esses dois pontos que, na obra política, se dispõem — diríamos — horizontalmente, vão-se refle tir verticalmente em O Capital. O primeiro desses pontos se reflete, fora do espaço propriamente lógico, nos textos em que Marx descreve a experiência do proletariado. Nesses textos, os que tratam da luta pela limitação da jornada de trabalho, principalmente a experiência vivida do proletariado que, entendida como um transcendental, tinha um papel fundante na antropologia da juventude, reaparece na superfície do discurso, como “reflexo” histórico (verticalmente, um horizonte) de uma realidade estrutural. A luta pela limitação da jornada de trabalho é, de resto, lida e criticada como uma experiência (ver, por exemplo, os textos em que Marx critica determinadas ações ou atitudes dos pro letários ingleses). Mas se o primeiro limite do discurso político se reflete fora do espaço lógico, o segundo, o horizonte do socialismo, se reflete no interior desse espaço, como horizonte de significação (verticalmente como o solo primeiro, mas não fundante, das significações). De fato, a leitura que Marx faz do capitalismo é uma reconstituição de suas leis sobre o fundo de um universo de referência que o transcende. Para além dos níveis da aparência e da essência (distinção que, para O Capital, deve ser explicitada mas não abandonada) há um deciframento mais profundo, em que a essência mesma da estrutura capita lista aparece como um objeto opaco. Esta justaposição das estruturas objetivas e de um horizonte (não um fundamento) significativo que as ilumina, parece ser o segredo dos chamados textos antropológicos
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de O Capital, nos quais o althusserismo enxerga apenas sobrevivências de uma fase anterior. Eles representam, na verdade, a cifra da histo ricidade de O Capital, no interior do seu espaço lógico, e estabelecem a articulação desse espaço com o tempo histórico: Enquanto, na obra da juventude, o lógico e o histórico (o espaço de uma filosofia da história) se articulavam pelo centro do espaço lógico, já que o fundamento teórico era, ao mesmo tempo, um fundamento prático, aqui a arti culação faz-se pela periferia, se dá nos limites do espaço lógico, onde se situa a “antropologia” . Do jovem ao velho Marx temos, assim, não o desaparecimento de um discurso mas a sua descentração (que de qualquer modo é essencial). Não ter definido com rigor esse desloca mento — o que tornou possível interpretá-lo, do ponto de vista lógico —, não obstante as referências às “ sobrevivências históricas” , ou por isso mesmo, como um desaparecimento puro e simples, é talvez a insu ficiência maior do althusserismo.
NOTAS (*) Sobre o sentido e o lugar desse texto, ver a introdução. O texto tinha sido ligeiramente modificado em 1972, por ocasião de sua primeira publicação na América Latina, em Cuadernos de la Realidad Nacional, Universidade Católica de Chile, San tiago, n? 14, outubro de 1972. Reproduzimos aqui essa versão de 1972, com bem raras adições, assinaladas por parênteses. (1) A expressão, usada num contexto um pouco diferente, é, se não me engano, de J. Rancière, L ’idée critique chez le jeune Marx (inédito). (2) Elas representam um princípio prático, porque são o ponto de partida logi camente necessário da crítica de toda ação e da ação ela mesma. Parecem merecer o nome de “fundamento”, fundamento prático, porque, ao contrário do que ocorrerá com os "princípios da ação” na obra da maturidade, são princípios primeiros. Como se verá, elas não pressupõem nenhuma real interiorização histórica. A história não fornece mais do que as condições para a sua eclosão e exteriorização. — Esta posição em face da história justificaria também (numa linha terminológica aproximadamente hegeliana) a denominação "transcendental”, que mais adiante se lhes dará. (3) Nos Manuscritos, os fundamentos práticos se apresentam, assim, em distin tos níveis de consciência. Mas pelas razões expostas, essa distinção de níveis (cujo hegelianismo é mais aparente do que real) nao compromete a natureza a-histórica ou trans-histórica dos princípios. (4) Enquanto visadas “práticas”, na critica (teórica) da economia política, o objeto é essencialmente a natureza humana na sua forma atual. (5) “O comunismo põe o positivo como negação da negação, ele é, pois, o mo mento real (wirkliche) da emancipação e da retomada de si do homem, momento necessário para o desenvolvimento próximo da História. O comunismo é a forma neces sária e o princípio energético do futuro próximo, mas o comunismo não é, enquanto tal, o objetivo do desenvolvimento humano — a forma da sociedade humana” (Manus-
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critos de 44, trad. franc. de Bottigelli, p. 99; original, Ed. Rororo, Texte zu Methode undPraxisII, p. 86) grifos nossos. (6) “Para abolir a idéia da propriedade privada, o comunismo pensado basta intei ramente. Para abolir a propriedade privada real, é necessária uma ação comunista real. A história a trará e este, num movimento que, em pensamento, já sabemos que se suprime a si mesmo, passará na realidade por um processo muito rude e muito extenso. Mas devemos considerar como um progresso real que, desde o inicio, tenhamos adqui rido urna consciencia tanto da limitação como do objetivo do movimento histórico, e urna consciencia que o ultrapassa” (idem, Bottigeili, p. 107; Rororo, p. 93), grifos nossos. . (7) E em que o Sujeito (filosófico) é, portanto, o principio motor. (8) Essa caractejfeação do Sujeito é parcial. Como se verá indiretamente, a fusão na obra de maturidade entre o teórico e o dirigente só é essencial (como o papel de Sujeito que se atribui ao partido só é válido) para certo tipo de discurso. — A teoria do partido está fora dos limites deste texto. (9) A mí:sr¡!." coisa ocorrerá no que se refere aos capitalistas. Nos Manuscritos, a associação dos capitalistas, por nascer de um universo de dispersão, tem alguma coisa de um pacto. Em O Capital, ela nasce do soló aglutinador do processo de equalização da taxa de lucro. (10) Plenamente tematizável enquanto discurso filosófico. Não há utopia polí tica na obra de juventude de Marx. A “plenitude” da tematização deve ser entendida relativamente ao discurso sobre o futuro imediato. (Ver nota 11) (11) A visada do Sujeito nao tem mais como centro de referência o futuro lon gínquo (antropologia) mas o futuro “próximo” (tática e estratégia). Esta visada do futuro próximo prolonga por sua vez uma retrospecção histórica. (12) Sobretodo porque ele privilegia a questão(da teoría marxista da história e da política, em detrimento da questão) mais geral do conhecimento histórico-político e de seus níveis, no interior do marxismo. (13) As indicações dos althusserianos sobre a teoria da prática inspiram-se em Que Fazer?. (Ver a esse respeito o artigo de Jean-Paul Dollé “Du gauchisme à l’humanisme socialiste” in Les Temps Modemesv abril de 66). Ã medida que aquele texto serviu a urna crítica do hegelianismo, deixamos para o final desse tópico, onde se tratará de Hegel, as referências a respeito. — A simples possibilidade de uma teoria da história e de uma teoria da prática — convém observar — não é em si mesma um argumento em fávor do althusserismo; é aliás na região dessas teorias que se situa este texto. O que importa é o tipo de relação que elas estabelecem entre o discurso teórico (e portanto tambény entre elas mesmas e a História). Conviria precisar: a teoria da his tória a que me ifefiro só pode ser uma teoria filosófica do conhecimento histórico da História, do mesmo nivel da teoria filosófica da (sobre a) teoria “pura" da história que oferece O Capital, e a distinguir das teorias científicas correspondentes (“puras” ou históricas) e dos discursos histórico-(políticos) concretos. Algo a respeito, em forma muito sucinta, na continuação do texto. Em geral, trato só de dois níveis: o da teoria “pura” de O Capital e o dos discursos concretos. (14) A rigor haveria uma terceira hipótese: a de que eles seriam “ materiais” semi-elabórados para uma “história” (Lire Le Capital, I, p. 147, cito sempre a pri meira edição). Essa caracterização, mesmo se verdadeira, não poderia, entretanto, eludir o problema da natureza do discurso histórico marxista. (15) Essa crítica não se confunde com a crítica de essência reflexiva (não hegeliana) que faz o Sujeito nos Manuscritos. (16) Continuidade que não exclui a descontinuidade. (17) Ver sobretudo em O Estado e a Revolução o uso que se faz da noção de experiência. — Ã noção de experiência corresponde a noção complementar de tarefa, que conviria analisar mais de perto. (18) Ver Prefácio (ou antes, a Introdução) à Fenomenología.
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(19) A propósito, caberia uma referência às famosas teses de Que Fazer? sobre a introdução, de fora do proletariado, da consciência revolucionária, à medida que os althusserianos as utilizam para mostrar o caráter radicalmente anti-hegeliano da teoria marxista da prática. Uma discussão mais profunda dependeria de uma análise prévia do tipo de conhecimento — bem diverso do de O Estado e a Revolução — que nos oferece esse livro. — Resumidamente: a questão das relações entre a consciência “econômica” e a consciência política (revolucionária) deveria ser distinguida mais rigo rosamente do problema das relações entre teoria e prática revolucionária. Os dois pro blemas não são evidentemente idênticos nem mesmo convergentes. Uma observação sobre cada um deles: 1) Se de fato a recusa em admitir a possibilidade de uma passagem espontânea da consciência econômica à consciência política implica o aban dono de qualquer esquema finalista, a relação entre os dois níveis — já que a luta econômica se integra numa prática política que a incorpora e a modifica (a “supera”?) — é mais hegeliana do que espinosista. 2) Conforme o que se diz no texto, o problema da relação teoria-prática não parece solúvel, se não se distinguirem no marxismo dife rentes formas de conhecimento, e também de teoricidade. A relação com a prática de uma teoria como a da revolução permanente de Trotski, por exemplo, sua “histori cidade”, não se confunde com a da teoria de 0 Capital. Só a primeira é epistemoló gicamente inseparável de certas éxperiências do proletariado. Sobre as duas questões subsiste o problema histórico de saber até que ponto as teses de Que Fazer?, ou a interpretação que usualmente se lhes dá, correspondem ao que se poderia considerar como a posição leninista. Lenin cerca de certas reservas o emprego de algumas de suas fórmulas. (Ver Lenin, Obras Escolhidas, esp. I, 215, Que Faire?, ed. franc. Seuil, p. 135) Segundo Trotski — em sua biografia de Stalin, Cap. III — Lenin teria aban donado mais tarde as teses de Que Fazer?, que Trotski reputa “unilaterais e portanto falsas”. (20) À medida que os discursos histórico-políticos pressupõem uma intèriorização em profundidade, a história atual não é certamente o seu limite extremo. Mas ela o é, não obstante, no sentido de que, enquanto campo da prática, só ela representa, a rigor, o solo dç cada discurso prático.
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Notas sobre o jovem Marx1
A obra do jovem Marx ficou um pouco esquecida depois da crí tica althusseriana e também da crise do althusserismo. Ela oferece, entretanto, um interesse considerável. Por um lado, ela se sitúa certamente aquém do marxismo, mas ao mesmo tempo — pelo menos no que se refere a alguns dos textos do jovem Marx, e de uma forma que não é simples —, ela nos conduz além do marxismo. Nós nos limita remos aqui a alguns pontos sobretudo históricos. a) Sobte os Manuscritos de 1844 O que é preciso ressaltar, a propósito dos Manuscritos de 1844, é que, se por um lado eles representam um discurso diferente de O Ca pital, nem por isso eles se situam no interior de um universo simples mente antropológico ou humanista. Na realidade, passou-se muito rapidamente do continuismo entre o jovem Marx e o velho Marx à idéia de um jovem Marx essencialmente feuerbachiano.2 Õ discurso dos Manuscritos não se confunde com o de O Capital. Mas daí não se deve concluir que só se trata de um discurso morali zante e antropológico. Em pHmeiro lugar, é preciso dizer que os Manuscritos... repre sentam mais uma antropologia negativa do que uma antropologia positiva — o que já é diferente. O fundamento antropológico nos Manuscritos é menos o homem do que o homem alienado. Isto não nos remete ao velho Marx, mas representa uma diferença importante em relação à antropologia feuerbachiana. Diríamos que para passar dos Manuscritos ao universo do velho Marx, é necessário pôr {setzen) a “negação” do homem enquanto "negação”, ou, se se quiser, é pre ciso “negar” o próprio homem “negado” : isto representa sem dúvida uma mudança fundamental. Mas o que se perde de vista, freqüente mente, é a idéia de que o homem “negado” está nos Manuscritos com o que isto significa: nos Manuscritos temos sem dúvida o homem: antro pologia, mas “negado” , antropologia negativa. Essa negação da antropologia no interior da antropologia — uma outra maneira de dizer a mesma coisa — se efetiva na crítica da antropologia (ou do antropologismo) de Feuerbach a partir de Hegel, à qual corresponde uma espécie de reabilitação da racionalidade da
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economia política a partir de Hegel igualmente. Os que nos apresentam um jovem Marx só feuerbachiano no essencial3esquecem vários textos para justificar as suas teses, como se o universo dos Manuscritos de 44 fosse idêntico ao das notas sobre James Mill, escritas entretanto, prova velmente, muito pouco tempo antes dos Manuscritos .4 Assim, se de Feuerbach ao jovem Marx se passa da antropologia positiva à antropologia negativa, essa operação é solidária de uma crítica da antropologia de Feuerbach a partir de Hegel, de uma espécie de reabilitação da economia política a partir de Hegel. Vejamos mais de perto esses dois pontos, que estão ligados um ao outro. A crítica da antropologia feuerbachiana se faz pela introdução da idéia de que a história do homem não é uma verdadeira história, mas uma história natural do homem, uma história da gênese do homem. Se se ler esta operação de um modo vulgar, como em geral é o caso, ela aparece como uma banal “historicização” do homem. Na reali dade, uma operação como esta põe em cheque — num primeiro mo mento — a antropologia. Com efeito, se se afirma que a história não é mais do que pré-história do homem, o homem não está lá: perde-se então o direito de falar do homem. Tal é a contradição dos Manus critos. Mas eles não vão mais longe, e supõem que a antropologia negativa é uma resposta a esta dificuldade. Deve-se observar, no plano histórico, que a idéia da história enquanto história natural deve muito a Moses Hess (ver, entre outras coisas, “Über das Geldwesen” in Hess, Philosophische und Sozialistische Schriften, Berlim, Akademie Verlag, 1961, pp. 39 e segs. E um texto em que ele discute precisamente essa diferença: “Fortschritt und Entwicklung” , p. 281 da mesma coletâ nea). Eis aqui os principais textos dos Manuscritos sobre o problema. Esses textos são bem conhecidos, mas se reflete pouco sobre as suas implicações (implicações que, sé não estão postas nos Manuscritos, estão “lá” como implicações pressupostas): “Mas considerando a nega ção da negação — segundo a relação positiva que existe nela, como o verdadeiro e único positivo, segundo a relação negativa que se encontra nela, como o único ato verdadeiro e ato de manifestação de si (Selbst betätigung)i de todo ser, Hegel só encontrou a expressão abstrata, lógica, especulativa para o movimento da história, a qual ainda não é história efetivamente real do homem enquanto sujeito pressuposto, mas somente ato de engendramento (Erzeugungsakt), história do nas cimento (Entstehungsgeschichte) do homem” .5 “E como tudo o que é natural deve nascer, o homem tem também o seu ato de nascimento, a história, que entretanto é para ele uma história conhecida (gewusste) e por isso enquanto ato de nascimento, ato de nascimento que se suprime conscientemente (mit Bewusstsein). A história é a verdadeira história natural do homem” .6 “ Mas como para o homem socialista toda a assim chamada história universal nada màis é do que o engen-
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dramento do homem pelo trabalho humano, do que o devir da natureza para o homem, ele tem assim a prova intuitiva, irrefutável, da sua nascença através de si mesmo, do seu processo de nascimento.''1 Esses textos representam uma espécie de ruptura com a antropologia, mas que finalmente vai se resolver em antropologia negativa. Se a história só é historia do nascimento do homem, com que direito se pode tomar o homem como fundamento — mesmo se ele é o homem “negado” ? Adorno já observava que o espirito hegeliano tal como o retomam os Manuscritos8 representava o trabalho social, o que significa: o espirito hegeliano aparece nos Manuscritos como uma determinação qye põe em cheque a idéia de urna historia que seria historia do homem.9 Mas o hegelianismo dos Manuscritos aparece ao mesmo tempo (trata-se de uma outra face da mesma coisa) como uma espécie de reabilitação da racionalidade da economia política. Nos últimos tem pos, insistiu-se a tal ponto sobre o moralismo dos Manuscritos que a leitura de certos textos se tornou impossível. E entretanto se lê nos Manuscritos-. “Assim, o senhor Michel Chevalier acusa Ricardo de fazer abstração da moral. Mas Ricardo deixa a economia política falar a sua própria língua. Se ela não fala moralmente isto não é culpa de Ricardo. M. Chevalier faz abstração da economia política, na medida em que ele moraliza, mas ele abstrai necessária e efetivamente da moral, na medida em que faz economia política. A relação da econo mia política com a moral, se por outro lado ela não for arbitrária, acidental e em conseqüência não fundada e não científica, se ela não for exibida pela aparência, mas (ao contrário) se for visada como essencial, só pode ser, sem dúvida, a relação das leis da economia política com a moral; se ela não se verifica — ou antes, se o contrário se verifica — que pode (fazer) Ricardo? De resto a oposição entre a economia política e a moral é também só uma aparência, fi assim como ela é uma oposição, de novo ela não é nenhuma. A economia política exprime à sua maneara as leis morais” .10 “Grande progresso de Ri cardo, Mili etc. diante de Smith e Say, que eles declarem a existência (Dasein) do homem — a maior ou menor produtividade humana da mercadoria — como indiferente e mesmo prejudicial. (Que) a verda deira finalidade da produção seja não quantos operários um capital mantém, mas quanto juro ele produz, a soma das economias anuais. Foi igualmente um grande e conseqüente progresso da economia polí tica inglesa moderna, que ela — que eleva o trabalho (fazendo dele) o princípio único da economia política — tenha explicado ao mesmo tempo com plena clareza a relação inversa (que existe) entre o salá rio (do trabalho) e o juro do capital, e que o capitalista em regra (geral) só possa ganhar pela redução do salário e vice-versa. Que não a exploração (übervorteilen) do consumidor, mas a exploração recíproca do capitalista e do operário seja a relação normal.”11 Eis aí um texto
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um pouco difícil de ser lido se se supuser que os Manuscritos repre sentam pura e simplesmente um discurso humanista. E ainda: “Não só o cinismo da economia política cresce relativamente de Smith — pas sando por Say — até Ricardo, Mili etc., na medida em que as conse qüências da indústria (Industrie) aparecem (vor die Augen treten) aos últimos (como) mais desenvolvidas e mais cheias de contradição, mas também positivamente eles vão sempre e conscientemente mais longe do que os seus predecessores na alienação em relação ao homem, mas somente porque sua ciência se desenvolve de um modo mais conse qüente e mais verdadeiro. Fazendo da propriedade privada, na sua configuração ativa, o sujeito, e fazendo ao mesmo tempo do homem a essência e do homem como não-essência ( Unwesen) a essência, a con tradição da realidade efetiva corresponde assim plenamente à essência cheia de contradição que eles reconheceram como princípio. Longe de refutá-lo, a realidade dilacerada {Die zerrissene Wirklichkeit) da in dústria confirma o princípio em si dilacerado da ciência deles. Com efeito, o princípio deles é o princípio desse dilaceramento” .12 No movi mento desse último texto, estamos realmente no limite extremo da antropologia (negativa). A contradição do sujeito aparece como ver dade porque o real é contraditório. Se a não-essência se tornou essência no objeto, o discurso da não-essência é o discurso da essência. A pressu posição do homem já está “lá” , mas como pressuposição pressuposta, porque na realidade o homem é posto mesmo se sob uma forma negativa. Só falta pôr como pressuposição esta pressuposição pressu posta do homem. É bem evidente que se um discurso como esse não se confunde com o de O Capital, ele é coisa bem diferente do discurso feuerbachiano. E ele dá lugar, negativamente — embora negando estas condi ções pois ele se cristaliza, por um lado pelo menos, em antropologia ne gativa —, para um discurso como o de O Capital, em que o homem é efetivamente “negado” . O reconhecimento da irracionalidade da eco nomia como discurso irracional de uma realidade irracional (portanto como discurso racional pois adequado ao real) é evidentemente a contrapartida dos movimentos que descrevemos anteriormente. O dis curso do não-homem — mas que finalmente, ou por um lado, aparece como discurso do homem-negado (da antropologia negativa) — ganha legitimidade, e aparece como um discurso quase-crítico. Essas mutações na relação com a antropologia e com o discurso econômico aparecem finalmente, num plano mais geral, nos textos sobre a passagem do pensamento ao ser, sobre o argumento ontológico. Sabemos que Feuerbach aceitava a posição de Kant a propósito desse problema.13 No jovem Marx, o dinheiro aparece como aquilo que permite a passagem do pensamento ao ser. Por exemplo: “A demanda (demande) existe também para aquele que não tem dinheiro, mas a sua demanda é uma pura essência (Wesen) da representação, que não tem
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nenhum efeito, nenhuma existência (Existenz) sobre mim, sobre um terceiro, sobre os outros, (e) assim para mim mesmo permanece irreal (unwirklich) e sem objeto. A diferença entre a demanda efetiva (effektiven) baseada no dinheiro e a demanda sem efeito, baseada na minha necessidade, na minha paixão, no meu desejo etc., é a diferença entre ser e pensar, entre a representação que existe (existierenden) simples mente em mim e a representação tal como ela é para mim como objeto efetivamente real (wirklicher Gegenstand) fora de mim” .14 Ver tam bém o texto sobre o argumento ontológico nos materiais para a tese de doutoramento de Marx, que citamos no final da segunda parte (di gressão) do texto “Abstração real e Contradição: sobre o Trabalho abstrato e o valor” , neste tomo. A importância desses textos está no fato de que Marx tenta se distanciar de Feuerbach a partir da análise do objeto econômico. Esse objeto não é sem dúvida o capital — a análise do capital como Sujeito está, na realidade, ausente dos Manuscritos —- mas é o dinheiro. A re lação Deus/dinheiro já havia sido analisada, mas Marx tira de lá conseqüências lógicas novas. E é importante assinalar que, embora Hegel tenha feito uma análise crítica da economia política, ele recusa o exemplo de Kant (os cem talers) como um mau exemplo: cem talers não são um conceito. Marx mostra nos textos dos materiais para a tese de doutoramento, que por aí se poderia, entretanto, passar do pensa mento ao ser. Entretanto, a passagem se faz no texto antes acentuando a subjetividade do dinheiro do que a relação posição-determinação, isto é, a objetivação do conceito de dinheiro. Ver a esse respeito as nossas observações, no texto referido. b) Sobre os textos dos Anais Franco-Alemães Limitamo-nos aqui a apresentar algumas idéias sobre “A Propó sito da Questão Judaica” (Zur Judenfrage) e sobre a “Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Introdução” (Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilqsophie, Einleitung). O que é importante nesses textos é o desenvolvimento de deter minações contraditórias. Assim, a tese central de “A Propósito da Questão Judaica” é que o Estado religioso é o Estado que não tem religião. A religião só existe como universal concreto. E o universal concreto elimina aqui radicalmente toda forma de particularização. Só há Estado religioso se toda religião (particular) desaparecer da repre sentação do Estado. Isto faz pensar no Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (a burguesia domina lá onde ela não domina, lá onde o seu poder é “negado”), mas o universo das duas obras é na realidade dife rente. O interesse dessas determinações está, como dissemos, na con tradição que elas contêm, no fato não só de que há universalidade concreta (isto se encontra também em Feuerbach), mas também que
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esta universalidade é posta, aqui, pela contradição ou pela negação: “(...) o Estado cristão consumado (vollendete) não é assim o chamado Estado cristão, o que reconhece o cristianismo como sua base, como religião de Estado e se comporta de maneira exclusiva em relação às outras religiões; é antes o Estado ateu, o Estado democrático (...)” . “A forma acabada ( Vollendung) do Estado cristão é o Estado que se reconhece como Estado e faz abstração da religião de seus membros.” 15 Na “Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Introdução” , há um movimento que não deixa de ter analogia com o que acabamos de descrever. Poderíamos enunciá-lo da seguinte forma: o Estado mais atrasado é (em certo sentido) o Estado mais avançado (porque, como se sabe, o texto anuncia a possibilidade da revolução na Alemanha por causa do atraso da Alemanha). “Que se considere em primeiro lugar os governos alemães, e se constatará que eles são impul sionados pelas circunstâncias, pela situação da Alemanha, pelo lugar em que se situa (Standpunkt) a cultura alemã, e finalmente pelo ins tinto feliz que lhes é próprio de combinar os defeitos civilizados do mundo político (Staatswelt) moderno, cujas vantagens não possuímos, com os defeitos bárbaros do antigo regime, de que gozamos em plena medida (in vollem Masse), e assim a Alemanha deve participar cada vez mais se não na razão (Verstand) pelo menos na desrazão ( Unverstand) também das formações políticas (Staatsbildungen) que se si tuam além do seu statu quo. (...) (...) Assim como no Panteón romano se encontravam os deuses de todas as nações, no Santo Império Ro mano Germânico se encontram os pecados de todas as formas de Estado. (...) (...) A Alemanha enquanto defeito do presente político constituído num mundo próprio não poderá derrubar as barreiras especificamente alemãs sem derrubar as barreiras do presente político. / Não é a revolução radical que constitui um sonho utópico para a Alemanha, não é a emancipação (em forma) geral humana (allgemein menschliche Emanzipation), mas antes a revolução parcial, somente política, a revolução que deixa subsistir os pilares da casa.” 16 Aqui a contradição se situa no nível do tempo: o recuo histórico aparece coincidindo com um salto no futuro. Tem-se uma represen tação do tempo que rompe com a representação “aufklãrer” de Feuerbach. Mas não desenvolveremos aqui o movimento geral do texto nem a sua relação com a “Questão Judaica” . c) Sobre a Crítica do Direito do Estado de Hegel O sentido geral da crítica que Marx faz de Hegel nesse texto é bem conhecido. Trata-se de questionar o que, parafraseando uma expressão célebre, poderíamos chamar de “lógica do objeto qualquer” . Trata-se, em resumo — sempre num primeiro plano — de umk crítica do formalismo dialético. Uma crítica que, observemos, em termos
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gerais, vai na mesma direção daquela que fazia Hegel à dialética de Schelling (por exemplo, no prefácio da Fenomenología do Espírito). No fundo trata-se de questionar uma relação entre a lógica e as ciências filosóficas particulares, que em vez de ser uma relação de pressupo sição — como deveria ser do próprio ponto de vista de Hegel — passa a ser uma relação de fundação (ou a relação de um “sistema teórico abs trato” a um “modelo”). Citemos os textos: “As proposições: Este orga nismo é (citações de Hegel) ‘o desenvolvimento da idéia até as suas diferenças e até a realidade objetiva (objektiven Wirklichkeit) delas’ ou até as diferenças pelas quais ‘o universal’ (o universal é aqui a mesma coisa que a idéia) ‘se conserva continuadamente e, na realidade, sendo elas determinadas pela natureza do conceito, se produz de um modo necessário, e sendo pressuposto do mesmo modo à sua produção, se conserva (essas proposições) são idênticas. A última é simplesmente uma explicação mais precisa sobre ‘o desenvolvimento da idéia até as suas diferenças’. Com isso, Hegel não deu nenhum passo além do con ceito universal ‘da idéia’ e no máximo do ‘organismo’ em geral (pois propriamente só se trata dessa idéia determinada). Assim, o que lhe dá o direito de (escrever como) proposição final: ‘Esse organismo é a cons tituição política?’ Por que não: ‘Esse organismo é o sistema solar’?” 17 E o texto bem conhecido, que teoriza sobre as análises de detalhe: “O conteúdo concreto, a determinação efetivamente real aparece como formal; a determinação totalmente abstrata da forma aparece como conteúdo concreto. A essência das determinações do Estado não está em que elas (sejam) determinações do Estado mas em que elas possam ser consideradas na sua figura abstrata como determinações lógicometafísicas. Não é a filosofia do direito mas a lógica o verdadeiro interesse. O trabalho filosófico não é que o pensar se corporifica em determinações políticas, mas que as determinações políticas existentes se volatilizem em pensamentos abstratos. Não é a lógica da coisa (Logik der Sache) mas a causa da lógica (Sache der Logik) que é o momento filosófico. A lógica não serve como prova do Estado, mas (é) o Estado (que) serve como prova da lógica” .18 E entretanto, é bem evidente que a crítica que Marx faz aqui a Hegel fica aquém senão da posição da abstração real em geral, pelo menos da abstração que se tomou Sujeito. Tomemos como exemplo os textos sobre a soberania (textos que Rancière havia analisado, à sua maneira, em LireLe Capital:19 “A existência (Existenz) do predicado é o sujeito: assim o sujeito (é) a existência da subjetividade etc. Hegel autonomiza os predicados dos objetos, mas ele os autonomiza separa dos da sua autonomia efetivamente real, do seu sujeito. Depois do que, o sujeito efetivamente real aparece então como resultado, em vez de partir do sujeito efetivamente real e considerar a sua objetivação. Por isso a substância mística se toma sujeito efetivamente real, e o sujeito real (reelle) aparece como um outro, como um momento da substância
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mística” . Marx continua: “Precisamente porque Hegel parte dos predi cados da determinação geral em vez de partir do Ens real (reellen Ens) (hypokeimenon, Sujeito) e que sem dúvida é preciso que haja um suporte desta determinação, a idéia mística se torna esse suporte. Ê este o dualismo: que Hegel não considere o universal como a essência real do real-finito, isto é, do existente (Existierenden), ou que ele não considere o ens real efetivamente (wirkliche) como o verdadeiro sujeito do infinito” . Do que decorre para a “soberania” : “É assim que a soberania, a essência do Estado, considerada de inicio como uma essên cia autônoma, se objetiviza. Então, se compreende, este algo objetivo (dies Objektive) deve se tom ar de novo sujeito. Mas esse sujeito aparece então como uma autopersonificação da soberania, ao passo que a soberania nada mais é o do que o espirito objetivado dos sujeitos do Estado” .20 Vemos que Marx critica Hegel porque este supõe a existência de um sujeito autônomo de que os indivíduos são portadores. O que, guardadas outras diferenças, ele mesmo suporia mais tarde, ao escre ver O Capital. Analisada mais de perto, a Crítica do Direito do Estado de Hegel aparece assim não (ou não só) como a crítica do formalismo dialético, mas como a crítica da própria dialética. Crítica do pensa mento que estabelece a posição de abstrações reais que se tomam autô nomas. Vimos que mesmo os Manuscritos, pelo menos em geral, não chegam a pensar o Sujeito, o capital; eles ficam no nível da abstração dinheiro. A Crítica do Direito do Estado de Hegel aparece assim de uma forma bem diferente daquela que ela revela quando não se aprofunda a análise da crítica do formalismo dialético. Entretanto, também no velho Marx se encontra uma crítica do formalismo dialético. Apesar da diferença fundamental que separa a dialética de O Capital do discurso da Crítica do Direito do Estado de Hegel (diferença para a qual aponta o aspecto que foi desenvolvido nos parágrafos anteriores) não se poderia relacionar as duas críticas do formalismo? Ê um problema a ser estudado. Problema que não é sem importância para analisar a relação Marx-Hegel. O que não significa que se deva pensar essa relação a partir da obra de juventude: a obra de juventude nos ajuda a pensá-la por caminhos indiretos. De qualquer modo, poderíamos lembrar aqui os textos em que o “velho” Marx faz a crítica do formalismo dialético. Nós nos limitamos aqui a alguns desses textos. Por um lado, no posfácio à Contribuição à Crítica da Economia Política (Introdução de 57), fazendo a crítica de todo discurso geral sobre a produção, a circulação e a distribuição (na realidade, é esse o sentido desse texto, em geral mal compreendido), Marx escreve: “Nada mais simples então, para um hegeliano, do que pôr (setzen) a produção e o consumo como idênticos” .21 A crítica pode parecer injusta porque a dialética hegeliana (contra Schelling) visa assimilar efetivamente o
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conteúdo particular da coisa. E entretanto, é possível que, apesar dela mesma, ele tenha caído num formalismo como este. Nesse sentido, o texto poderia se justificar. A crítica não vale contra a dialética hegeliana considerada para si, mas ela é talvez válida para a dialética hegeliana considerada em si. Num texto de O Capital (livro III), depois de ter feito a crítica do desenvolvimento da propriedade privada na Filosofia do Direito de Hegel, Marx escreve: “E uma confissão extraor dinariamente ingénua ‘do conceito’ e prova que o conceito que desde o início comete o erro (Schnitzer) de considerar como absoluta uma representação jurídica totalmente determinada, e pertencente à socie dade civil burguesa, da propriedade privada, não compreende ‘nada’ das figuras efetivamente reais dessa propriedade (...)” .22 Nesse texto há sem dúvida uma crítica do conteúdo da concepção hegeliana da propriedade fundiária (conteúdo que não discutimos aqui). Mas ao mesmo tempo, a referência irônica ao “conceito” insinua uma crítica de forma: o “conceito” não compreende nada do que é efetivamente real. O “conceito” deixa escapar o real. A crítica do formalismo dialético desponta aqui. É possível encontrar outros textos na obra de Marx que vão no mesmo sentido. Determinar que forma toma a crítica do formalismo dialético em Marx, crítica do formalismo dialético feita em nome da dialética — porque formalismo e dialética se excluem em si, mas não para si23 — é o caminho para mostrar rigorosamente a diferença entre as duas dialéticas. O que sem dúvida não foi feito até aqui. A relação entre os diferentes aspectos da obra do jovem Marx, a análise das diferenças entre essas obras, a faremos no tomo II desse trabalho. Tentaremos também analisar de uma maneira mais profunda esse grande laboratório de pensamento que é a obra do jovem Marx (a expressão é, parece, de Althusser), laboratório que opera na mas também sobre a antropologia, e do qual sai não o universo de O Capi tal, mas o da “negação” da antropologia: “negação” que entretanto está posta não como “negação” , mas como o seu contrário (pelo menos em geral) como homem-“negado” . A obra do jovem Marx é primeira mente antropologia, em segundo lugar antropologia negativa, o seu limite é a “negação” antropologia.
NOTAS
(1) Sobre esse texto, ver a introdução. Como indicamos na introdução, o dese volvimento dessas idéias sobre o jovem Marx, já feito oralmente em várias ocasiões, virá no tomo II deste trabalho. Esse desenvolvimento fará parte de uma análise da pré-
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história da dialética (de Marx), no nível da política, da filosofia e da economia. Nessa análise terão um lugar importante os críticos pré-marxistas da economia política: Hodgskin, Ravenstone etc. Ver a esse respeito nosso texto “Sobre o Jovem Marx”, publicado no número 13 de Discurso, São Paulo, Polis, 1983. (2) É a dificuldade principal, do ponto de vista histórico, das Origens da Dia lética do Trabalho, de Giannotti. Nesse ponto, Althusser tinha uma opinião, no fundo, mais correta, quando se referia aos Manuscritos como a um texto em que se encontra ao mesmo tempo Feuerbach e Hegel. Mas como para ele o velho Marx não tem, de fato, ou pelo menos de direito, nada de hegeliano, o juízo sobre a obra do jovem Marx é, por um outro caminho, igualmente falseado. (3) Ê, como dissemos, o caso das Origens da Dialética do Trabalho. Como nos referimos freqüentemente a Giannotti (em particular às Origens da Dialética do Tra balho) no curso deste tomo, é talvez o caso de dizer o que pensamos desse livro. O livro de Giannotti tem o mérito de tomar como noção central a diferença entre pressuposição e posição. Mas na diferença entre pressuposição e posição há ao mesmo tempo a idéia da diferença entre o implícito e o explícito, e a da diferença entre um discurso anterior e externo e um discurso substantivo: o conceito de pressuposição/ posição indicando a diferença entre o implícito e o explícito está certamente presente nas teorizações de Giannotti, mas freqüentemente, no desenvolvimento e sobretudo na discussão do antropologismo, ele acentua mais o outro lado (discurso externo/discurso interno), o quelimita às vezes o alcance da sua análise. Cremos nos separar do livro de Giannotti em três pontos, na realidade relacio nados. O primeiro remete aos problemas históricos relativos à leitura do jovem Marx, desenvolvidos (em parte) neste apêndice. Os dois outros — na realidade mais impor tantes — poderiam ser resumidos da seguinte maneira: 1) Por um lado, a leitura de O Capital que faz Giannotti está centrada nas secções anteriores à reprodução. Isto nSo deve explicar-se só pelo fato de que o livro representa o inicio de um trabalho, mas corresponde a algo mais profundo, mesmo se textos posteriores de Giannotti tocam no problema da reprodução. A leitura de Marx que faz Giannotti acentua, pois, uma parte de O Capital em que o intercâmbio entre o capitalista e o operário é ainda uma troca (apesar de o capitalista obter a mais-valia). Ora, se acentuarmos esse ponto, esquecendo mais ou menos a teoria da reprodução, limita-se muito o alcance da crítica de Marx à economia política, e, do ponto de vista lógico, fica-se finalmente aquém da contradição. Com efeito — no que se refere ao primeiro ponto —, corre-se o risco de cair numa posição que pode ser interpretada como uma espécie de apologia do sistema (sabe-se que o marxismo serviu às vezes para fazer a apologia do sistema capitalista). De resto, se não se desenvolver a interversão, e é o que ocorre em Giannotti, não há um pcráto em que se possa introduzir a política. Pelo menos, não há ponto satisfatório. Do ponto de vista lógico, isto se reflete num tipo de apresentação em que está sem dúvida presente a noção de pressuposição — é o seu grande mérito — mas onde a contradição, se não está ausente, não é realmente apre sentada de uma forma rigorosa. 2) Esse ponto ultrapassa a discussão da leitura de Marx. A crítica que Giannotti dirige ao jovem Marx, fora a questão da sua verdade histórica (discutida neste apên dice) tem certas implicações no que se refere à crítica do capitalismo contemporâneo. Giannotti critica o caráter subjetivo da teoria das necessidades do jovem Marx. Esta mos de acordo com ele no que se refere à fundação subjetiva das necessidades. Mas seria preciso insistir sobre o fato de que é a fundação subjetiva da crítica das neces sidades que é criticável, não, digamos, o nível subjetivo do seu objeto. Explicamo-nos. Se, por um lado, o capitalismo'contemporâneo nos afasta mais do jovem Marx, no sentido de que a própria subjetividade, naquilo que ela tem de mais profundo, é, agora, interiormente determinada (as necessidades são produzidas), por outro lado, os textos do jovem Marx têm o mérito de haver tematizado mais do que as obras de maturidade (salvo alguns textos dos Grundrissé), a determinação infinita das necessidades. Vemos que o defeito dos Manuscritos não é o de ter acentuado a subjetividade: no capitalismo
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contemporâneo, as relações de produção, se se pode dizer assim, passam pelo interior da subjetividade (de uma maneira que não é a da determinação simples da subjetivi dade dos agentes enquanto suportes). Â insuficiência dos Manuscritos é a de fundar pela subjetividade. Ora, se é verdade que Giannotti critica somente a antropologia fundante e não toda antropologia (mas aqui não se trata desse problema, mas de um outro que é mais atual), ele não acentua o interesse e a modernidade de uma tematização — mesmo se com uma fundação subjetiva — (mais desenvolvida do que nos textos de maturidade) da subjetividade. O resultado é uma critica um pouco clássica demais, que (desse ponto de vista) corre o risco de levar a crer — o que é absolutamente falso atualmente — que a determinação do sistema se faz somente por uma subjeti vidade externa (ou externa relativamente à nova forma), a que é definida pela função de suporte, e não interiormente, pelas necessidades etc. (Pensar-se-ia, por exemplo, dessa perspectiva, que os grandes improdutivos estão ligados ao sistema simplesmente porque eles recebem uma parte da inais-valia, o que não é verdade. Eles estão ligados a ele por suas necessidades, por seus desejos etc.) Isto, que é fundamental para a crítica contemporânea, é em certo sentido mais visível — porque os Manuscritos tematizam mais o nível subjetivo — partindo dos Manuscritos do que de O Capital. Embora, num outro sentido, isto seja mais visível a partir de O Capital: O Capital dá os fundamentos objetivos dessa subjetividade que, entretanto, se tornou ela própria objetiva. As três observações críticas que fazemos ao livro e em geral aos textos de Giannotti estão ligadas. N6s nos explicaremos em outro lugar sobre o seu encadeamento. Não acreditamos que seja necessário, para terminar, insistir sobre os méritos do livro de Giannotti, assinalados no início. Ver também o artigo referido, em Discurso, n? 13, 1983. (4) Ver Werke, Ergänzungsband, Erster Teil, Dietz, 1968, pp. 445 e segs. (5) W., Ergänzungsband, Erster Teil, op. eit., p. 570; Manuscrits de 1844, trad. franc., apresentação e notas de E. Bottigelli, p. 128, grifado por Marx. (6) W ., Ergänzungsband, op. cit., p. 579; Manuscrits de 1844, op. cit., p. 138. (7) W ., Ergänzungsband, Erster Teil, op. cit., p. 546; Manuscrits de 1844, op. cit., p. 99. (8) Ver Theodor W. Adorno, Trois Êtudes sur Hegel, trad. franc. pelo semi nário de tradução do Collège de Philosophie, Paris, Payot, 1979, pp. 25-26. (9) Nos seus cursos na Ecole des Hautes Êtudes de Paris nos anos 60, Marcuse atacava a crítica de Hegel pelo jovem Marx, no que se refere a esta frase — “Q único trabalho que Hegel conhece e reconhece é o trabalho abstrato espiritual". (W., Ergän zungsband, op. cit., Erster Teil, p. 574; Manuscrits de 1844, op. cit., p. 133, grifado por Marx) E entretanto: “O trabalho teórico, cada dia me convenço um pouco mais, realiza (bringt... zustande) mais coisas no mundo do que o trabalho prático; uma vez revolucionado o reino da representação, a realidade efetiva não se sustém mais (hält nicht an)". (Hegel, carta a Niethamer de 28.10,08, Briefe..., I, Leipzig, ed. K. Hegel, 1887, p. 194, citado por Karl Löwith, De Hegel à Nietzsche, trad. franc. de R. Laureillard, Paris, Gallimard, 1969, p. 62, n. 3) (10) W., Ergänzungsband, Erster Teil, op. cit., p. 551; Manuscrits de 1844, op. cit., pp. 104-105, grifado por Marx. (11) W., Ergänzungsband, Erster Teil, op. cit., p. 524; Manuscrits de 1844, op. cit., p. 73 A tradução de Bottigelli atenua a distância do texto em relação a toda a antropologia positiva. (12) W. Ergänzungsband, Erster Teil, op. cit., p. 531; Manuscrits de 1844, op. cit., p. 81, grifado por Marx. (13) Por exemplo: “Como se sabe, Kant afirmou, na sua crítica da existência (Dasein) de Deus, que não se pode provar racionalmente a existência (Dasein) de Deus. Kant não mereceria, por isso, o reproche que lhe faz Hegel. Pelo contrário, Kant tinha plenamente razão: de um conceito não posso deduzir a existência (Existenz)". (L. Feuerbach, Das Wesen des Christentums, Stuttgart, Reclam, 1971, p. 306, trad. franc. de J.-P. Osier com a colaboração de J.-P. Grossein, Paris, 1968, p. 349)
MARX: LÓGICA E POLÍTICA
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(14) W., Ergânzungsband, ErsterTeil, op. cit., pp. 565-566; Manuscrits..., op. cit., p. 122, grifado por Marx. Lembremos também do texto “a lógica (é) o dinheiro do espírito (...)”. (W., Ergânzungsband, op. cit., p. 571, Manuscrits de 1844, op. cit., p. 130) Todo o problema do equilíbrio “instável” dos Manuscritos está nesta frase. A crítica do dinheiro é paralela à da lógica: as duas abstrações se correspondem etc. Eis aí uma primeira direção, a mais imediata, para a interpretação. Mas, ao mesmo tempo, essa lógica paralela ao dinheiro não seria a mais apta para pensar o dinheiro (não seria a lógica do dinheiro)? Reflexões como esta não estão sem dúvida no texto dos Manuscritos-, mas elas não estão absolutamente ausentes. Na realidade, elas estão pressupostas. (15) W.I, op. cit., p. 357-361, “Ã propos de la Question Juive”, ed. bilíngüe (alemão-francês), trad. de M. Simon, com uma introdução de François Châtelet, Paris, Aubier-Montaigne, 1971, pp. 83 e 95, grifado por Marx. (16) W.I, pp. 387-388, op. cit., Critique de la Philosophie du Droit de Hegel, introduction, ed. bilíngüe, trad. franc. de M. Simon, prefácio de F. Châtelet, Paris, Aubier-Montaigne, 1971, pp. 87, 89 e 91. (17) W.I, op. cit., p. 212; Critique du droit politique hégêlien, trad. franc. e introdução de A. Baraquin, Êd. Sociales, 1975, p. 46, grifado por Marx. (18) W.I, op. cit., p. 216; Critique du droit politique hégélien, op. cit., p. 51. (19) O texto de Rancière em Lire Le Capital (III, Paris, Maspero, 1973) a despeito do seu envoltório althusseriano é um texto importante. (20) W.I, op. cit., pp. 224-225; Critique du droit politique hégélien, op. cit., p. 60, grifado por Marx. (21) Grundrisse, op. cit., p. 15; Manuscrits de 1857-1858 (“Grundrisse”) I, op. cit., p. 28. (22) W.25, K. III, op. cit., pp. 628-629, n. 26; Oeuvres, Économie, II, op. cit. p. 1287. (23) O formalismo é de certo modo a “maldição” da dialética. A questão ia dialética poderia ainda uma vez ser posta da seguinte forma: como dialetizar o ob'eto sem com isso cair numa “dialética” formal. Tal é (depois do próprio Hegel) no p mto de partida, o problema de Marx.