Anabela foi criada com rigorosa educação, educação, sem divertimentos, amigos ou religião. Sua avó visava torná-la apenas uma moça sem emoções, dócil e exímia nas
prendas do lar. Quando, por problemas de saúde, Anabela é obrigada a conviver com outras moças, descobre que a vida não é só infelicidade e punições; existe amor, compreensão e caridade.
Então, em sua alma, começam a brotar sentimentos que irão entrar em conflito com os interesses de sua avó e colocar à prova sua recém nascida determinação de ser feliz. Biblioteca das Moças - volume 70 Do original francês: Lá Jeune Fille Emmurée - 1958 Tradução de Paulo de Freitas Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela Companhia Editora Nacional Impresso nos Estados Unidos do Brasil Printed in the United States of Brazil
Capítulo I
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CINZAS DO PASSADO
Caía uma chuva fina, apertada, ininterrupta, i ninterrupta, que somente deixava penetrar um dia amortecido na grande sala de jantar, de ordinário um tanto obscura. Uma penumbra envolvia os aparadores de madeira escura, o buffet maciço e guarnecido de velhas faianças e os quadros de paisagens assinadas por nomes conhecidos, que decoravam as paredes recobertas de antiga tapeçaria. Somente uma mesinha, colocada bem perto de uma das janelas, lograva claridade mais ou menos suficiente. A moça que ali se achava achava sentada, contentava-se com essa essa luz para trabalhar. Com a cabeça abaixada sobre a roupa branca que consertava, não se lhe via mais do que o delgado busto, a alva nuca e os cabelos sedosos, de um louro argênteo, formando um enrodilhado espesso e bem repartido ao meio, na frente. As mãos que manejavam a agulha eram pequenas e bem feitas, mas atrigueiradas, algo endurecidas, como as de quem dirige uma casa. O silêncio, nesta rua parisiense um tanto retirada, era apenas quebrado, de quando em quando, pela passagem de um carro ou de transeuntes, cujos passos batiam no chão molhado. Dentro do próprio apartamento, nada a perturbava. Contudo, de repente uma porta se abriu e em seu limiar apareceu uma senhora, bem feita de corpo mas um tanto robusta, vestida de seda preta. Os cabelos escuros, ligeiramente grisalhos, estavam repartidos no alto da testa, de uma palidez ebúrnea, como o rosto, de traços firmes e demasiado acentuados, que denotavam, ao observador, grande energia. Os olhos azuis, de um olhar frio, imperioso, não foram feitos para desmentir esta impressão, que tornava Madame Norand Valentina pouco simpática no mundo das letras, onde o nde era considerada como romancista de raro, mas amargo e ríspido talento. — Anabela! A voz breve, metálica, ressoou no silêncio silêncio da grande sala. Lentamente Lentamente a cabeça loura se ergueu, e os olhos de um lindo azul-violeta se voltaram para a porta. — Anabela, dentro de oito dias partiremos para Maison-Vieille. Trate de aprontar-se. A moça respondeu em morna tranqüilidade: tranqüilidade: — Está bem, vovó. Depois, novamente abaixou a cabeça sobre o trabalho. Madame Norand deixou a sala, fechando a porta com mão firme, mas um tanto brusca. Um minuto depois, silenciosamente a porta se reabriu, para deixar passar um vulto delgado e triste que, tal qual uma sombra, deslizou até à trabalhadeira.
— Que tolice, Anabela! Onde se viu consertar roupa num dia como este! Quero crer
que não há nenhuma pressa, não? A recém chegada empregava empregava a língua inglesa. A sua voz era fraca e adequada à pessoa, baixinha e magra, ligeiramente contrafeita, com o rostinho miúdo e de pele lisa, a despeito dos seus cinqüenta anos. O olhar inexpressivo revelava a insignificância de misse Steverson e a sua bondade mole, tão depressa derivada para a pusilanimidade. A agulha deteve-se cm seu movimento movimento e um rosto jovem voltou- se para a recém vinda. Era fino e encantador, delicadamente branco, bastante delicado mesmo, pois a moça denotava enfraquecimento de saúde e os traços t raços emagrecidos. Um olhar triste e frio f rio pousou na solteirona, enquanto Anabela respondia com a sua voz morna: — Pelo contrário, tia Graça, estou com muita pressa. Principalmente agora. — Com toda a certeza, você alude à partida para Maison-Vieille, não? Madame Norand preveniu-a? Anabela disse que sim, com a cabeça. cabeça. Com as mãos cruzadas cruzadas sobre o trabalho, seus olhos seguiam distraidamente os minúsculos riachos que serpeavam ao longo das vidraças. Misse Steverson sentou-se perto dela. Ao primeiro golpe de vista, não se descobria semelhança alguma entre este rosto, de perfil de carneiro, com a mocinha, cuja fisionomia era tão fina e delicadamente linda. Entretanto, mediante um exame era possível descobrir-se, entre uma e outra, alguns traços de pareceria, como, por exemplo, a configuração um pouco comprida do rosto e, ainda, a nuança de cabelos louros descorados tão embaciada na cabeça da tia e que na de Anabela, se tornava tão deliciosamente argêntea. — Está contente? Você gosta mais de Astinac do que de Paris, não é verdade? Anabela permaneceu alguns alguns instantes sem responder, com o rosto sempre voltado para a janela. O crepúsculo começava a envolvê-la com melancólica sombra. Por fim, respondeu com aquela mesma voz lenta, um pouco morna: — Sim, talvez... Gosto do campo... — interrompeu-se e seu olhar frio iluminou-se ligeiramente, durante alguns segundos — Pois temos o sol, o ar, as flores, enquanto aqui... — e apontou a rua, a perspectiva dos tetos sem fim, casas sem caráter, e o céu sombrio desta tarde de maio. — Sim, lá os passeios são mais agradáveis. Também eu estou contente de ir, pois decididamente não gosto nem um pouco de Paris... Vamos, largue do trabalho, Anabela. Então, não pode descansar descansar um pouquinho? pouquinho? — Não, agora preciso colocar o remendo. —Você terá tempo. São sete horas, apenas. Anabela levantou-se. Era bem lançada lançada de corpo, muito embora demasiado demasiado delgada, e dobrava-se como um caule frágil f rágil sob o peso de algum al gum cansaço físico ou moral, que os seus movimentos lentos, um pouco indolentes, pareciam testemunhar. Ela dispôs em ordem o seu trabalho e, por um longo corredor, alcançou a cozinha. Uma velha e corpulenta mulher ali cuidava do jantar, repreendendo uma rapariguita esguedelhada, que batia ovos numa saladeira. — Ah! senhorita, venha mexer um bocadinho este molho, enquanto ponho o peixe para cozinhar. Sem dizer palavras, Anabela tomou a colher das mãos da velha e se pôs a mexer lentamente, com ativa mão, o engordurado e escuro molho. A cozinheira não teve uma palavra palavra de agradecimento. Depois disso, disso, pediu um outro serviço à moça, como coisa habitual e em tom de voz que era quase uma ordem.
Mais tarde apareceu um velho criado, este também dono de excelentes banhas, que disse: — Senhorita, uma das lâmpadas do lustre está queimada. — Está bem, Martim, vou ver. Nesse momento, a cozinheira passou uma descompostura na criadinha que acabava de lavar copos numa terrina. — Desajeitadona! Assim é que se lava? Andaria melhor aprendendo a trabalhar convenientemente, do que ficar parada pelas vitrinas, quando sai à rua a serviço. Anabela, de passagem, passagem, volveu um olhar melancólico para á pálida pálida criaturinha, quarta filha de um pobre artista que possuía nove. — Ela não tem tantas distrações, a pobre! — disse Anabela, a meia voz. — Você deve perdoar-lhe por isso, Mélanie. A velha resmungou: — Distrações! Acaso eu tenho alguma? Qual, histórias! Anabela pensou: "Você "Você não tem nem quinze anos... anos... nem mesmo dezoito, como eu". Mas não disse palavra. Com o seu passo silencioso, um pouco vagaroso, voltou para a sala de jantar. Martim para ali levara uma escadinha. Anabela subiu alguns degraus e tomou a lâmpada que, com uma das mãos, o criado lhe estendia, enquanto com a outra segurava uma vela para que a moça enxergasse. Quando esta substituiu a lâmpada, ele foi abrir o interruptor e a grande sala de jantar ficou em parte alumiada, enquanto as extremidades permaneciam numa espécie de penumbra. Nesse instante, soou a campainha. Martim dirigiu-se para a porta da rua. Anabela continuou trepada na escadinha, olhando para uma lâmpada, cuja luz parecia mais fraca. A exclamação do velho Martim chegou aos seus ouvidos: — Ah! O senhor Marnel! Uma voz masculina, sonora e alegre, respondeu: r espondeu: — Por certo, meu bom Martim! Quase que sou uma alma do outro mundo, hein? O criado deixara aberta a porta da sala de jantar, de modo que Anabela se a chava em plena luz, diante da entrada do apartamento. Seu olhar indiferente vislumbrou a silhueta do recém chegado, um homenzinho seco, de cabelos grisalhos e ralos. Martim replicou: acreditávamos que o senhor jamais aqui voltasse. Depois de cinco — Diacho, não acreditávamos anos que ninguém o via... — Exatamente, cinco anos, é verdade... Você ainda trabalha, hein, Martim? Pensei que já se tivesse aposentado. — Não, nem tão pouco Mélanie. Somos sempre os o s únicos criados de Madame Norand e o senhor poderá verificar que o serviço ainda continua bem. — Ah! Mélanie também está aí? Tanto melhor, pois espero que ela seja aquela cozinheira fina de outrora. Enquanto falava, o recém chegado voltou os olhos para a sala de jantar. Sentiu-se um tanto surpreso, ao dar com a moça que vestia uma grande blusa de quadradinhos. Quando deparou com aqueles lindos e tranqüilos olhos sem curiosidade, o estrangeiro tirou o chapéu e com ligeira inclinação de cabeça lhe respondeu. Entretanto, Martim já abria uma porta, anunciando: — O senhor Marnel. Madame Norand, sentada em sua escrivaninha, soltou uma pequena exclamação. Levantou-se e veio ao encontro do visitante, estendendo-lhe ambas as mãos: — Você, meu amigo? Que surpresa!
Notava-se, em sua voz, um vivo contentamento e aquela fisionomia fria iluminou-se um pouco. — Não é verdade, Sílvia? Sou sempre o mesmo, gostando de cair, inesperadamente, nas costas dos meus amigos. Mais de uma vez você m e censurou, mas sou incorrigível, como vê. — É preciso acolhê-lo tal como você é, Feliciano. Por isso, não me sinto menos feliz de revê-lo. Faz tanto tempo! Depois, são tão poucas as notícias que me manda! Mas não as exijo, sabendo que você detesta escrever. Sente-se, temos tempo de conversar um bocadinho, antes de chegarem os meus convidados, pois hoje é o meu jantar hebdomadário. — Ah! bem! E eu que esperava passar uma noite tranqüila, a seu lado! — Pois virá almoçar amanhã, ou jantar, como quiser. Esta noite, você verá o seu velho amigo Barey, a sua linda inimiga Marie-Qaire Janvier... — Qual! Linda ela não mais deve ser, depois de tanto tempo! B erger, Ludo-vic Dorange... — Você verá. Virão, também, Carlos Berger, Feliciano Marnel sentara-se em confortável poltrona de veludo, defronte de sua hospedeira. Com o olhar, ele vasculhou o grande aposento guarnecido de móveis que datavam do primeiro Império, herança de um antepassado de Madame Norand. Tudo, ali, continuava parecido com o que era antigamente. O conjunto era severo, muito frio, sem um bibelô. Unicamente, duas rosas se ostentavam num vaso de cristal. Na escrivaninha, guarnecida de lindos e antigos cobres, papeis e livros estavam cuidadosamente dispostos. — Você trabalhando sempre, hein, Sílvia? Li as suas últimas obras e, digo sem lisonja, achei-as superiores às precedentes, literariamente falando. Mas que desencantamento nos seus heróis! Que ceticismo desesperador! Madame Norand alçou levemente os ombros. — É a vida — disse ela friamente. — Pelo menos, eu a vejo assim. Uma aparência de felicidade, por vezes, vezes, e depois tanto tanto sofrimento... tanto sofrimento... — a voz breve comoveu-se um pouco — e o túmulo, o fim de tudo. Mais nada, mais nada... A boca se crispava num ríctus que que comunicava, a esta fisionomia de mulher, uma expressão de infinita amargura. Enternecida surpresa apareceu no olhar de Marnel, um olhar franco e bom de homem leal, inteligente e fino observador. — O que, Silvia, pobre amiga?... ami ga?... A sua alma não encontrou sossego? — Sossego? Por que o encontraria? Já perdi toda a razão de viver, você sabe. — Mas outrora alimentava certa crença, não? Você... Um gesto seco daquela mão longa e fina interrompeu-o: — Nada, nada mais tenho. Não falemos mais de mim, meu amigo, mas sim de você. Está satisfeito com as suas intermináveis viagens ao redor do mundo? — Encantado, mas um pouco cansado. Sinto o peso dos meus cinqüenta anos, Silvia, e creio que desta vez vou cuidar, dos meus molambos, em minha casinha de Bellevue. — Ah! sinto-me feliz, por isso! Ver-nos-emos continuamente, para compensarmos o tempo perdido. Para começar, convido-o a ir passar alguns dias em minha velha propriedade de Corrèze. Parto na semana que vem, e lá ficarei até outubro. — Não lhe digo que não! Sentirei prazer em rever Maison-Vieille, onde outrora tivemos ótimas reuniões. Entendíamo-nos bem, a respeito dos ruidosos passatempos, muito embora quase sempre discutíssemos. Por esse tempo, o seu caráter já estava inteiramente formado, minha boa amiga, e era difícil obrigá-la a
ceder quando tivesse decidido qualquer coisa. Lembro-me dos castigos que seu pai lhe impunha, e você teimava em torná-los mais rigorosos em sua resolução. Enquanto falava, Marnel observava pensativamente aquele rosto de um marfim pálido, as rugas nos cantos dos olhos, ol hos, o vinco amargo da boca. Onde estava a linda Sílvia de outrora, aquela Sílvia morena, tão viva, tão ardente, que se atirava à vida com tanta alegria? Só restava uma envelhecida mulher amargamente desencantada, mas sempre orgulhosa, como fora a filha, a moça, a jovem esposa, coroada pelo amor, e a .mãe... A mãe de Luciana, esta criaturinha amimada amimada e idolatrada. Sim, Silvia, fora uma mãe tolamente idolatra. Viúva, após cruéis desilusões conjugais, concentrara todo o poderio do amor nesta única filha. Os seus caprichos eram uma lei para Madame Norand. Luciana, formosa e acariciada, tornou-se fútil e só procurava o prazer, arrastando a mãe para todos os recantos mundanos. Depois, apaixonou-se por um moço inglês, rico, bonito, mas de caráter medíocre. Contra a vontade de Madame Norand, casaram-se. Não demorou que se se desiludisse. Entregou-se a uma vida mundana, desregrada, a qual, auxiliada pela delicada saúde, alguns anos após a levou para o túmulo. Ausente na ocasião, Marnel Marnel nem mesmo pode conjeturar qual qual poderia ter sido a dor de Silvia. Revendo-a, alguns meses mais tarde, encontrou uma mulher envelhecida, com os traços endurecidos, que desde então jamais falara da filha desaparecida. Por esse tempo é que em suas obras apareceu aquela nota amarga, desencantada, aumentada ainda nos últimos anos. Madame Norand distraidamente desarrumou alguns papéis na escrivaninha. A evocação dos anos da mocidade, feita pelo amigo de infância, cavou uma ruga mais profunda em sua fronte. Marnel notou-a e, com o intuito de mudar de assunto, observou sorrindo: — Você ainda conserva os antigos criados, não? Como conseguem eles ainda fazer o serviço? — Oh! fazem-no mais ou menos. Aliás, são auxiliados. — De fato, já notei... Vi uma linda moça loura l oura na sala de jantar. É dama de companhia, ou secretária? Ligeira crispação apareceu na boca de Madame Norand. — É minha neta. A resposta caiu em tom breve, gelado. — Ah! sim... a filha daquela pobre Luciana. Não me ocorreu... Foi você que a educou? — Fui eu... Escute, Marnel, uma vez que temos de encontrar-nos muitas vezes, porquanto você partilhará de minha existência durante algum tempo, em MaisonVieille, é preciso que desde já eu o ponha ao corrente dos fatos. Interrompeu-se por alguns momentos. Seus lábios tremeram l igeiramente. Contudo, com voz firme, prosseguiu: f ilha. Naquela criança concentrei toda — Você sabe, meu amigo, quanto amei minha filha. a minha alegria. Entretanto, desiludi-me terrivelmente. Na ocasião de seu casamento, ela não me poupou as provas de seu egoísmo, de sua ausência de coração. Todavia, por sua causa tudo suportei, mesmo as piores amarguras. Durante a enfermidade que deveria terminar pela sua morte, um dia ela me disse: "Você é culpada de tudo isto. Se não me mimasse tanto eu seria mais séria e não me teria suicidado nesta existência de prazeres".
Os lábios tremeram mais fortemente, f ortemente, durante alguns segundos. O azul ainda vivo dos olhos ensombrou-se, quase que se tornou negro. Em sua voz notava-se um certo desfalecimento. — Não vem a propósito lembrar o que me disse — depois, para suavizar o efeito de palavras tão atrozes — Bem que reconheço, eu merecia a censura. Sim, amei-a demasiado, mimei-a em excesso e tornei-a um ídolo, o meu universo. Mas a terrível lição devia servir-me. Com cinco anos de idade Anabela ficou completamente órfã, pois o pai pouco depois morrera num desastre de automóvel. Fui eu quem a criou, com o auxílio de uma antiga conhecida, Madame Baury. Lembra-se dela? — Sim, a viúva de um médico, mulher seca e desgraciosa, e, além disso, muito pouco inteligente. — Mas bastava para o que dela eu esperava. Isto porque o meu desejo era educar Anabela diferentemente. Uma vez que amei demasiado minha filha, minha neta neta não teria o direito de fazer-me essa censura. Com esse propósito, bani todo sentimentalismo de sua educação. De acordo com as minhas diretrizes, Madame Baury lhe deu uma instrução sólida, sem lhe permitir nenhuma leitura de imaginação. Ensinou-lhe, principalmente, a arte do amanho da casa, em que doutrinava excelentemente. Quando Madame Baury faleceu, há dois anos passados, sua obra estava acabada. Anabela é que tomou conta de minha casa, que preencheu as lacunas do serviço dos meus criados. Ela ignora o mundo, que matou sua mãe, e é desconhecida de. meus amigos. Sua vida é tão t ão austera, tão retirada quanto a de Luciana foi brilhante, alegre, toda exterior. E, Marnel, confesso, não quero nem um pouco à minha neta. Jamais pensei em querer-lhe, para não ser desiludida uma segunda vez. Aliás, meu coração está morto. Madame Norand fez nova pausa. Marnel escutava-a em silêncio, com o coração apertado por uma piedade que não sabia dizer se provocada pela avó ou pela neta. — Naturalmente, baniu-se toda religião de sua educação. Madame Baury era ateia, e também eu me tornei descrente. — Não diga, Sílvia! — Verdade. De resto, para Anabela, tal como eu a queria, o sentimento religioso poderia constituir-lhe uma fonte de lutas, de conflitos interiores, talvez de aspirações para um ideal impossível. Ao contrário, nós à amoldamos de tal modo, que o coração e a imaginação são contidos nos mais estritos limites, a fim de que tenha poucos desejos, e nenhum sonho... — Mas é tolice! Desta vez, Marnel não pode conter-se: — É rematada tolice! Não se enclausura assim uma alma, um espírito, não se pode impedir o desabrochar de um coração... — Palavras! palavras! A gente faz o que quer de uma criança e assim se prepara a mulher. Fui a causadora da desgraça de Luciana, pelo modo por que a eduquei. Preparo à filha uma vida tranqüila, sem paixões, dirigindo-a num caminho todo diferente. Logo, dentro de alguns meses, sem dúvida, casá-la-ei com um dos meus vizinhos do interior, homem sério, de boa moral! Ela será uma excelente dona de casa e uma esposa bem acomodada. — O que você sabe a esse respeito? Acaso tem o poder de penetrar o fundo dos corações, saber o que se passa no desta criança... e muito menos o que ali poderá passar-se, mais tarde? Minha amiga, não compreendo que uma mulher com a sua inteligência tenha agido dessa forma! Um dia, esta alma poderá despertar. Da cinza com que você a cobriu, poderá brotar uma centelha que se inflamará e destruirá todo o seu belo edifício.
— Anabela é uma natureza fria, indiferente. Nela, a imaginação sempre foi
severamente refreada. Ora, esta tolice do lar entra, em boa parte, nos sofrimentos, nas paixões humanas. As necessidades caseiras, às quais eu a sujeitei, além disso são excelentes para impedir o sonho, as preocupações sentimentais e outras, num cérebro feminino. — Não sei! Nem sempre! Em todo o caso, minha cara amiga, é uma prova terrível que você está tentando. E pode ter, para esta criança, consequências que você nem de longe imagina. — A única consequência é fazê-la uma boa esposa, uma boa dona de casa, numa agradável propriedade agrícola. Conheço-a bem e sei que se sentirá bastante feliz, assim... Agora, Marnel, falemos um pouco de suas viagens. Você deve ter conseguido uma quantidade de documentos para seus futuros trabalhos, não? Nesse instante, na sala de jantar, j antar, Anabela estendia a mesa. Com gestos calmos, precisos, rapidamente ela fez o serviço. Foi até um aparador e dali tirou uma corbelha de flores e voltou para a mesa. Ali chegada, permaneceu imóvel por alguns instantes, com o rosto inclinado sobre as rosas cor de rubi e de aurora pálida. Os cerrados lábios tremiam-lhe, bem como as louras pestanas, tão leves nas extremidades, de pálpebras muito brancas. Depois ergueu a cabeça, estendeu os braços e colocou a corbelha no centro de mesa, guarnecido de velha renda. Sob a luz um pouco velada, seu rosto r osto aparecia tranqüilo e frio. Modificou alguns detalhes do estendimento de mesa, apagou a luz l uz e depois encaminhou-se para a cozinha, onde a rechonchuda Mélanie a recebeu com estas palavras: — Até que enfim a senhora vem ajudar-me!
Capítulo II
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DOLOROSO SORRISO
Debruçada na janela de seu quarto, Anabela olhava a torrente que, em baixo, saltava sobre escarpamentos rochosos. A madrugada cinzenta, quase fria, punhalhe estremeções nos ombros magros, apenas agasalhados por leve echarpe de lã. Por vezes, o olhar sonhador se levantava até o castanhal que bordejava o rio defronte. Um pouco mais distante, na direção do caminho em que uma velha pontezinha cruzava o rio, elevava-se uma casa cinzenta, guarnecida de roseiras que envolviam um encantador e florescente jardim. Um cão latia naquele lado e elevavase o canto de um galo, a que respondiam outros, vindos da vila. Afora o murmúrio ininterrupto da torrente, eram esses os únicos ruídos, àquela hora da madrugada. Anabela afastou-se da janela. Pareceu Pareceu hesitar um momento e, depois depois de abrir a porta, saiu num grande e pavimentado corredor, para o qual dava o seu quarto. Desceu a velha escadaria de pedra, ladeou o abobadado vestíbulo e abriu a porta de carvalho que rangeu levemente. Além se estendia um pátio, plantado de centenários castanheiros. Uma simples cerca de pau separava-a do caminho, logo alcançado pela moça. Era uma estrada bem reta, de um lado bordejada por prados, de outro pelo velho muro que fechava o jardim de Maison-Vieille. Este se estendia ao longo da torrente, até a ponte sobre a qual passava o caminho que ia ter à vila de Astinac. Para esse lado é que se dirigiu Anabela. Depois de passar a ponte, o seu olhar voltou-se maquinalmente para a casa cinzenta, Vigne-Rouge, como a chamavam em toda a região, por causa dos magníficos ramos de begônias que, no outono, recobriam suas grades e seus muros. Há alguns anos Anabela a vira desabitada,
abandonada. Mas agora as portas estavam pintadas, as roseiras bem podadas, o jardim otimamente cuidado. Anabela lembrou-se lembrou-se de ter ouvido a velha Josefina, Josefina, jardineira da Maison-Vieille, dizer à sua avó: — Atualmente, a Vigne-Rouge está habitada, Madame. Foi um doutor de Paris que a comprou. Creio que pessoa da sociedade. É viúvo e não tem muitos filhos. Nenhum interesse, nenhuma curiosidade se discernia na fisionomia de Anabela, enquanto de passagem ela olhava essa residência de aspecto sedutor, muito mais que a sombria Maison-Vieille. Abandonando o caminho que descia para a cidade, tomou, à esquerda, um atalho que subia em meio do castanhal. Fresca umidade saia do chão, de sob as árvores do prado, molhado pelas chuvas ininterruptas dos dias precedentes. Anabela aconchegou mais a echarpe tremendo um pouco. O atalho, que desembocava fora do castanhal, acabava num promontório rochoso, cuja extremidade pendia para a torrente. Urzes cobriam o solo. Mas nesta terra estéril, uma faia encontrara meio de deitar raízes, desenvolver-se suficientemente para cobrir, com sua folhagem, f olhagem, uma antiga capela, dedicada a São Pedro. Estava mais ou menos reduzida a ruínas e, por suas estreitas e escancaradas janelas, os pássaros ali entravam para fazer os seus ninhos. Anabela sentou-se, encostando-se encostando-se no portal de forma ogival, por onde trepavam trepavam campainhas. No pé do promontório, a torrente, muito estreita, borbotava furiosamente e. pouco além formava uma cascata, cujo barulho perturbava o grande silêncio da madrugada. A charneca se estendia na outra margem, e do promontório a gente a via, descendo na direção de pequenos vales, meio ocultos pelos escarpamentos graníticos ou por bosques cerrados. Além, o terreno se erguia por prados que nos declives apareciam entre castanhais. No horizonte cinzento e brumoso, desenhava-se o primeiro plano dos montes que, nos dias claros, tomavam delicadíssimos tons de aquarela. Anabela conservava conservava os olhos fixos na água ruidosa, ruidosa, saltitante. A pálida figura parecia imersa, absorvida em algum estranho sonho. Que pro curaria, naquela fugitiva onda, a moça sem sonhos, sem paixões, a respeito de quem Madame Norand conversara com Feliciano Marnel? Acaso revia seus anos de infância, ao lado de uma terna, mas frívola mãe, que as mais das vezes a deixava em mãos mercenárias? Ou, então, os que se lhes seguiram, sob a cruel fér férula ula de Madame Baury? Anos sem alegria, sem afeições, todos idênticos. Nem um alimento para o coração, para a alma, para o espirito. Isto porque a instrução que aquela governante seca dera à criança, fora cuidadosamente desprovida desprovida de tudo quanto pudesse emocionar ou dar que pensar. Unicamente datas, fatos, fórmulas. Acima de tudo, o trabalho manual, obrigado até à fadiga, para mastrear o espírito, caso este sentisse a tentação de rebelar-se. Aos treze anos, essa fora a vida de de Anabela. As gotas d'água, desprendidas desprendidas da cascata bem pertinho, pertinho, chegavam até à moça. Ela sentia arrepios na cinzenta umidade desta desagradável madrugada. Mas continuava imóvel, absorta em sua contemplação àquela água estúpida e espumante. Mais de uma vez em anos precedentes, viera sentar-se naquele lugar, sempre solitário. As pessoas da localidade diziam-no f reqüentado pelo espectro de um eremita, que outrora havia renegado o seu Deus. Mas Anabela ignorava esta lenda; soubesse-a, sem dúvida teria sacudido os ombros, com aquela indiferença para todas as coisas que faziam pensar a Madame Norand "Esta pequena não se interessa por nada, a não ser pelo seu trabalho quotidiano. Magnífico!".
Passava o tempo e Anabela ali permanecia, sempre em sua estranha e sonhadora atitude. Não fazia o menor movimento, a não ser, de quando em quando, o gesto de aconchegar um pouco mais a echarpe. Enfim, levantou-se. Seu olhar perdeu-se, por alguns instantes, na charneca à sua frente. Depois, voltou-se e deu alguns passos no chão guarnecido de urzes. Nesse instante percebeu, perto da capela, um objeto de cor viva. Aproximando-se, abaixou-se e apanhou-o. Era uma bolsinha de trabalho, de seda vermelha, com desenhos em contas. Misto de surpresa e contrariedade apareceu na fisionomia da moça. Alguém ali viera ter, naquele retiro que havia feito para si. Com um gesto ligeiramente impaciente, deixou cair a bolsinha, depois continuou o seu caminho num andar que denotava lassidão moral ou física. f ísica. Tocava o "Angelus" no sino de Astinac. Agora, já se ouviam alguns ruídos da vida quotidiana que despertava. A casa cinzenta não era i nteiramente silenciosa. No instante em que Anabela passava à sua frente, f rente, abriram-se janelas no primeiro pr imeiro andar e uma voz moça exclamou: — Que tempo miserável, ainda hoje! Anabela, maquinalmente voltando voltando o olhar para esse lado, entreviu entreviu uma cabeça feminina de cabelos escuros, um busto vestido de rosa, e braços nus. Depois, passou, continuando o seu caminho na direção de Maison-Vieille. Ali, tudo ainda estava fechado. Mas no vestíbulo, Anabela cruzou cruzou com Josefina, a jardineira, que descia de seu quarto. quarto. Era mulher de idade, que ainda ainda usava a antiga touca da região. Sua voz alquebrada disse com doçura: — Bom dia, senhorita. Dormiu bem, esta noite? — Muito bem, obrigada. Com esta simples resposta, Anabela chegou até a escada. Josefina voltou-se para segui-la um instante, com o olhar compadecido. — Ela não está com boas cores, a coitada! — disse a jardineira entre dentes. — Muito trabalho, jamais um prazerzinho... E, sacudindo a cabeça, Josefina encaminhou-se para a cozinha. Em seu quarto, Anabela acabou sua toilette. Quando arrumou a cama e terminou t erminou o seu servicinho, de novo foi debruçar-se à janela. No silencioso castanhal, escutavase um latido. Um cão fraldeiro saltava nas bordas da penedia. Depois, uma voz masculina, vibrante, imperiosa, gritou: — Manik! Saindo de sob a fronde de árvores, surgiu um moço. Anabela distinguiu um rosto claro, uma cabeleira escura e um olhar vivo que cruzara com o seu. Mas não demorou que este olhar se voltasse discretamente, di scretamente, e o desconhecido, seguido de seu cão, desapareceu sob o castanhal. A fisionomia de Anabela continuou continuou indiferente. Durante ainda alguns alguns minutos a moça ali permaneceu, oferecendo o rosto à frescura úmida que vinha da torrente. Por baixo dela se alongava um estreito terraço, para o qual davam os apartamentos. Ali se localizava o quarto de Madame Madame Norand. Anabela, escutando escutando abrir uma porta janela, afastou-se e ficou por um momento imóvel, imóvel, no meio do quarto. Sua fisionomia estava estranhamente endurecida. Em seu olhar havia uma expressão de quase ódio. Voltando-se, abriu a porta e desceu para alcançar a cozinha. Mélanie acabava de acomodar-se diante de uma caneca de café com leite, e Martim cuidava de imitá-la. Na profunda chaminé de pedra enegrecida, Josefina enfiava lenha, atiçando o fogo que diminuía. f ervendo — disse ela, voltando-se para Anabela. — Ali a senhora tem água quase fervendo
Com um breve agradecimento, a moça tomou a chaleira e se dirigiu para a sala de jantar. Este aposento comprido e cheio cheio de lambris de carvalho abria suas suas três altas janelas para um pátio. Perto da mesa, misse misse Steverson, de pé, acendia uma espiriteira para preparar o seu chá e o café de Madame Norand. A sua situação, ao lado da mulher mulher de letras, era a de secretária. Quase arruinada pelo irmão, bem pouco capaz de ganhar a própria vida, sentiu-se feliz com o oferecimento de Madame Norand, que se contentava com sua medíocre inteligência, contanto que lhe copiasse corretamente os manuscritos e soubesse escrever, sob ditado, a sua correspondência. — Já tomou café, Anabela? — perguntou misse Steverson, colocando a chaleira sobre a espiriteira. — Não, titia. Mas não há pressa. Aliás não estou com vontade. Misse Steverson não insistiu. Não se preocupava, em absoluto, com a saúde de sua sobrinha, nem mesmo lhe percebia o emagrecimento e as faces descoradas. Quando o café estava pronto, Anabela colocou-o numa bandeja com a manteiga e fatias de torradas, por ela mesma preparadas, e depois deixou a sala de jantar. Atravessando um corredor pavimentado, pavimentado, foi abrir uma velha porta de carvalho carvalho e entrou numa galeria, alumiada por quatro janelas largas. Maison-Vieille era uma antiquíssima moradia, outrora r esidência dos irmãos mais moços de poderosa família: os barões de Brandières, cujo castelo em ruínas se levantava ainda sobre um escarpamento, a cavaleiro da vila de Astinac. Os avós de Madame Norand, originários de Limousin, compraram-na por ocasião de seu casamento. Um pouco desfigurada por algumas modificações destinadas a torná-l a mais confortável, entretanto continuava a ser um espécime interessante da arquitetura do século XIII. Madame Norand somente lhe ocupava uma parte, pois a construção era enorme, em comprimento estendendo-se até a margem do torrencial rio. Da galeria, cheia de velhas tapeçarias e pavimentada de mármore branco e negro, a romancista fizera o seu gabinete de trabalho. A galeria comunicava-se com um salão que, por uma porta envidraçada, abria para um terraço ter raço bordejando a torrente. Quando Anabela entrou, Madame Norand, de pé e perto de sua escrivaninha, conversava com Josefina que, sem dúvida, vinha pedir-lhe instruções a respeito da horta, pois que lhe respondia: — Arranje um outro jardineiro, se for verdade que esse Justino bebe. Conhece algum? — Sim, um homem trabalhador que entende do ofício. Penso que poderá trabalhar aqui algumas horas, embora sempre tenha ocupação na Vigne -Rouge. O doutor Brennier cuida muito de seu jardim, pelo que vejo... — O doutor Brennier? É de Paris, você me disse? — Sim, senhora. — Conheci, há alguns anos, um médico com esse nome. Acabava de casar-se de novo e tinha vários filhos. — Esse é viúvo, pela segunda vez, conforme me disseram. Por causa de sua saúde é que veio passar no campo alguns meses. As filhas têm o aspecto magnífico de acordo com a sua idade. Anabela silenciosamente dispôs dispôs a taça, a cafeteira e o prato com as fatias de torradas num canto da grande escrivaninha de velho carvalho. Ao entrar, cumprimentara a avó com uma inclinação de cabeça, à qual Madame Norand respondera com um ligeiro gesto de mão. Como tencionasse retirar-se, uma voz breve lhe ordenou:
— Espere... Josefina, quero que este ano mademoiselle Anabela aprenda como se
deve tratar de galinhas. Encarrego-a disso. Comece logo, esta manhã mesmo. — Sim, senhora — respondeu Josefina. — Acompanhe a Josefina até o quintal, Anabela. Mas, antes disso, mande-me Graça. Expedida a ordem, Madame Norand sentou-se a sua escrivaninha. Anabela saiu, seguida de Josefina. Esta, depois de fechada a porta, indagou: — Agrada-lhe, senhorita, cuidar de galinhas? — Se me agrada? Naqueles lábios pálidos esboçou-se uma espécie de sorriso, um estranho e doloroso sorriso, mais doloroso de se ver do que lágrimas. — Isso não vem ao caso. Você deve saber, Josefina. — Sim, eu sei — murmurou tristemente a velha jardineira.
Capítulo III
-
UM SONHO
Durante sua estada em Maison-Vieille, Madame Norand costumava diariamente dar um passeiozinho pelos arredores. Assim foi que, oito dias após a sua chegada, ela se encontrou com o doutor Brennier, acompanhado de um de seus filhos, um lindo l indo menino de seis a sete anos. Alguns anos antes já o encontrara, em casa de uma de suas amigas, Madame Blivant, com quem ele era um pouco aparentado. Ambos pararam, trocaram um aperto de mão e algumas palavras. O médico explicou-lhe que fora obrigado, por motivo de saúde, a deixar uma parte de sua clientela ao filho mais velho, e resolvera passar toda aquela linda estação no campo. — Para mim não é um sacrifício — acrescentou ele — porque gosto imensamente desta região onde nasci. Cuidar de jardim é coisa que me interessa muito, e, de carro, posso fazer longos passeios. — Mas suas filhas, que dizem de tudo isto? Mormente elas, parisienses? — Antonieta e Regina, respectivamente a mais velha e a terceira, estão encantadas com esta vida. Danielle, por enquanto não a acha desagradável, mas certamente ficará contente de voltar, em outubro, a Paris e aos seus estudos de direito... Uma vez que somos vizinhos tão próximos, Madame, permite que eu vá apresentar-lhe os meus filhos? — Pois não. Com muito prazer irei conhecê-los. Bem, doutor, até breve. Com tais palavras, Madame Norand se despediu de seu interlocutor, após ter respondido com um breve "boa tarde, pequeno", ao cumprimento do menino. — Essa senhora não é nada afável — observou o pequeno. — Silêncio, Luiz! Você não deve fazer observações dessa natureza. Contudo, o médico pensava consigo mesmo: " Não, a sua cara não agrada. Não acredito que sejam freqüentes, .entre nós, as visitas". Quando de regresso, ele contou a suas filhas o encontro que teve. Danielle, mocinha morena e viva, de olhos risonhos, exclamou: — Ora, papai, essa Madame Norand nada me significa. Por mais eminente romancista que seja, não me interessa em absoluto conhecê-la. O único livro seu que li, deu-me calafrios. f ilha. — É bem provável que nossas relações se limitem a essa visita, minha querida filha. Mas de jeito algum podemos evitá-la, morando tão perto dela.
— Até agora ainda não vimos sua neta. É voz corrente, na vila, que vive presa e não
é feliz. Quem assim falava era Regina, a caçula. Um pouco mais alta que Danielle, os seus traços eram mais finos, os olhos lindos, negros, francos e alegres. Perto dela, ocupada a dar de comer à pequena Michelle, a última filha que havia custado a vida à segunda mulher do doutor, estava Antonieta, a mais velha de todas, perto dos trinta anos. Em seu pensativo semblante, já um pouco gasto, trazia vestígios de cuidados, de que fora pródiga sua juventude. Foi ela quem ajuntou, com alguma tristeza na voz: — Essas senhoras, ao que parece, não põem os pés na igreja. Aí está um motivo para não nos aproximarmos muito. — Evidentemente não — disse o médico. — Assim, repito, as nossas relações se limitarão a essa visita, qualquer dia destes. — Enquanto não chega o dia, vamos passear. Onde está Roberto? — Presente! — respondeu uma voz sonora e máscula. No limiar de uma porta envidraçada estava o homem que Anabela entrevira, na manhã de sua chegada, à beira do castanhal. — Escutei que falavam de nossos vizinhos. Apenas cruzei com Madame Norand, em meu caminho, mas a primeira vista ela me pareceu pouco simpática. A neta, que esta manhã percebi numa janela, conforme lhes contei, pareceu-me bonita, mas bem triste e pálida. — É o que todos dizem na vila. Pobre pequena! Mesmo antes de conhecer essa Madame Norand, já a detesto! — disse a impetuosa Danielle. — Também eu a detesto! — declarou gravemente o Luizinho. Roberto ergueu o menino e teve-o, por alguns instantes, em seus braços. — Também este frango dá o seu parecer! Outra vez, esperem que peçam, Lulu... E agora, minhas queridas primas, a caminho! Nesse instante, Anabela se dirigia para a capela de São Pedro. Madame Norand autorizara-a a dar, diariamente, um passeio, com a condição de levar trabalho e fazê-lo quando parasse para descansar. Assim que chegou ao promontório rochoso, sentou-se quase na extremidade, sobre uma pedra chata, e tirou de sua bolsa o tricô. Naquele dia a água torrencial cintilava, batida pelo sol vivo de junho. No longínquo azulado, os montes recortavam o seu perfil em ligeiras tintas. Anabela, envolta em luz, todavia conservava seu semblante triste de aborrecimento, de lassidão. Àquela pele fina, de uma delicadíssima brancura, o calor não comunicava nenhum rosado. Com os lábios cerrados e o corpo inclinado, fazia o seu tricô com um movimento regular, maquinal, somente parando, de quando em quando, para segurar o novelo de lã cinzenta que estava prestes a escorregar pelos seus joelhos. De repente um ruído de voz quebrou o silêncio. Várias eram as vozes e jovens, e numerosos os passos. Anabela levantou a cabeça. Seu olhar estava estupefato. E viu aparecerem no promontório, duas moças, um moço e um menino. Voltando a cabeça, de novo se absorveu em seu trabalho. Mas uma ruga de contrariedade se desenhava no canto de seus lábios. — Onde acamparemos, Regina? — perguntou o moço. — Perto da capela. Ficaremos na sombra. Inclinando-se para as suas primas, Roberto disse em voz baixa: — Reparem, lá está a neta de Madame Norand. — Ah! Mas não se pode vê-la bem, sentada como está. — Disfarce o olhar, Danielle; incomodá-la-íamos — observou Regina.
Os excursionistas acomodaram-se na grama que cobria o chão, em redor da capela. As moças tiraram o lanche, auxiliadas auxiliadas pelo primo. Todos conversavam conversavam alegremente e suas vozes joviais chegavam até aos ouvidos de Anabela. A cabeça loura se abaixava cada vez vez mais e a delgada figura tornava-se rígida. Sob os cílios abaixados, os olhos tinham uma expressão de pungente amargura, quase de revolta. Luizinho, o lindo menino de cabelo escuro e anelado, divertia-se obrigando as lagartixas a saírem de sob as rochas, que emergiam aqui e ali, no solo. Quando corria em perseguição de uma delas, aproximou-se de Anabela. O animalzinho incontinente fugiu até a extremidade do promontório. Luizinho ia cair no abismo quando Anabela, bruscamente estendendo a mão, o segurou pelo braço e atirou-o para trás. Mas, arrastada pelo menino, ela caiu do outro lado. Sua cabeça bateu numa rocha, e a moça perdeu os sentidos. Quando voltou a si, notou todas aquelas pessoas estranhas que a olhavam com inquietação. Sua cabeça repousava no braço de Regina, ajoelhada a seu l ado. Seu olhar cruzou com o do moço, bastante emocionado e visivelmente ansioso. — Que me aconteceu? — indagou Anabela, fracamente. — Quase nada. A senhora feriu-se um pouco na cabeça, ao salvar o nosso Luizinho — respondeu a voz doce de Regina. — Vamos fazer-lhe um curativo provisório e levá-la-emos a nossa casa, onde podemos medicá-la convenientemente. Passivamente, Anabela deixou-se medicar. Semicerrou os olhos, tamanha a sua fadiga. Mas quando Danielle e Roberto pretenderam tomá-la nos braços para levála, a moça declarou: — Não, irei andando, quero ir andando. — Então, apoie-se bem em mim, senhorita — disse Roberto. Com o auxílio daquele braço forte, que a sustentava tão bem, Anabela pode alcançar Vigne-Rouge. Como num sonho, ela atravessou o jardim, entrou num vestíbulo claro e depois num encantador salão decorado com elegante simplicidade. Antonieta, em duas palavras palavras posta ao corrente do sucedido, fez com que que a deitassem num diva. O médico não demorou; examinou a ferida, que declarou sem gravidade. Regina preparou um penso, enquanto Antonieta foi buscar um copo de vinho de Espanha, que Anabela bebeu lentamente. lentamente. Ela conservava aquela aquela atitude passiva, como que de alquebramento, a qual causou estranheza ao doutor Brennier, pois ele disse ao ouvido do sobrinho: — É estranha, esta menina! A ferida f erida não é nada, mas ela parece singularmente enfraquecida. Roberto não despregava, da acidentada, o olhar de compadecido interesse. De fato, era delicada e linda esta moça. Mas que semblante triste e que tristeza morna naqueles lindos olhos azuis! — Descanse, minha filha. — disse o médico — Fique aí, bem tranqüila. Logo a levarei, de carro, para a casa de sua avó. Conheço um pouco Madame Norand. Sem dúvida, ela já lhe falou sobre isso, não? — Não, não me disse nada. A resposta caiu lenta e indiferente dos lábios lábios pálidos de Anabela. Anabela. — Ah!... Inda hoje a encontrei e esperava visitá-la para apresentar-lhe minhas filhas, num dia qualquer. Mas onde está o Luiz? É preciso que ele el e venha agradecer à senhorita, que lhe salvou a vida. — Estou aqui, papai. O menino adiantou-se, sem despregar de Anabela os olhos tímidos e curiosos.
— Não fosse ela, você cairia na água, todo rasgado pelas rochas, e nós, nós
choraríamos o nosso Lulu. — Oh! papai! A criança ergueu para o médico uns uns olhos repentinamente repentinamente cheios de lágrimas. — É a pura verdade. De modo que você deve ficar sempre reconhecido, como nós estamos, àquela que o segurou, com risco da própria vida, pois você poderia arrastá-la. Num gesto espontâneo e encantador, Luiz precipitou-se na direção de Anabela e pousou-lhe numa das faces seus lábios frescos. — Muito obrigado, senhorita! — disse ele, com a sua voz clara. A fisionomia da moça teve um estremecimento. estremecimento. Um vislumbre de emoção mudou, de repente, o seu olhar, dando-lhe um pouco de vida. Anabela disse, a meia voz: — Oh! não foi nada... Sinto-me feliz por tê-lo salvo, mas não f oi nada. — Pensamos de modo diferente, senhorita! Mas vamos deixá-la repousando um pouco. Entretanto, meu sobrinho vai buscar o carro e, desde que se sinta um pouco mais forte, eu a levarei a Maison-Vieille. Todos se retiraram, com exceção de Regina que ficou f icou sentada, não muito longe da moça. No aposento vizinho, Antonieta perguntava: — O senhor não a acha bem, papai? — Não. Sob o ponto de vista da saúde, essa pequena não vai bem. Acima de tudo, extremamente anêmica. Depois, deve existir qualquer coisa do lado m oral. Vou conversar com Madame Norand. Por mais severa que se mostre para com a neta, segundo parece, não pode recusar-se a tratá-la, se for preciso. Um quarto de hora mais tarde, Anabela disse que se sentia suficientemente forte e o médico fê-la subir no carro, guiado por Roberto. As senhoritas Brennier apertaram aquela mão magra, dizendo-lhe amistosamente: amistosamente: "Até logo". Anabela respondeu-lhe com um vago sorriso, doce e triste. E pensava: "Até logo?" Não, ela não havia de querer. O curto trajeto foi feito num abrir e fechar de olhos. Roberto parou diante do portãozinho de Maison-Vieille e saltou em terra, a fim de abri -lo. Ofereceu a mão à moça, para ajudá-la a descer. De novo, Anabela cruzou com aquele olhar compadecido, de emocionado interesse que inda há pouco notara. Depois, o doutor Brennier segurou-a pelo braço, a fim de que ela pudesse apoiar-se no seu e, com passos fortalecidos, a moça atravessou o pátio e entrou no vestíbulo. — Quero falar com sua avó, minha filha. — É fácil, senhor. Precisamente aí vem o criado... Martim, vá anunciar o doutor a Madame Norand. Com estas palavras, ela cumprimentou ligeiramente o proprietário da Vigne-Rouge e dirigiu-se para a escada, e scada, cujos degraus começou a subir vagarosamente. "Que moça singular!" pensava o doutor Brennier, enquanto seguia o criado que o fizera entrar num salão de teto enxadrezado e paredes recobertas de antigas tapeçarias. — Vou avisar Madame — disse-lhe Martim. O criado voltou logo e conduziu o visitante à galeria vizinha. Madame Norand, sentada perto de sua escrivaninha, estendeu-lhe a mão, enquanto ele lhe explicava: — Acabo de trazer sua neta, Madame. Inda há pouco ela salvou da morte o meu pequeno Luiz. Em poucas palavras, o doutor narrou o acidente. Madame Norand escutava-o, com as sobrancelhas ligeiramente contraídas. Por fim, notou, com indiferença:
— Sinto-me feliz porque a presença de espírito de Anabela lhe evitou essa
desgraça. — Sempre lhe devotaremos eterna gratidão! Quanto à f erida na cabeça, creio que será coisa de nada. Se a senhora quiser, virei vê-la amanhã. — Pois não, doutor. — O que me parece inquietador em sua neta é um certo estado de fraqueza que logo verifiquei. Essa menina está muito anêmica. — A sua fisionomia não é boa, mas a saúde é ótima. — Hum! Não creio. A senhora me permite examiná-la, seriamente, e dizer-lhe em seguida o que observei? — Pois não, doutor. Deposito inteira confiança em seu valor profissional, que muitas vezes ouvi elogiarem. — Então, voltarei amanhã de manhã. Até lá, é bom que a menina fique de cama, para melhor passar essa pequena comoção. — Farei com que se deite. Com estas palavras, Madame Norand mudou a conversa para outro assunto. O doutor Brennier não se demorou, e minutos depois de novo subia no carro, onde o esperava o sobrinho. — Não parece nem um pouco amorosa, essa avó! — disse ele, enquanto Roberto se punha a caminho — Pois acha que a menina tem ótima saúde! Amanhã, hei de provar-lhe justamente o contrário! — O senhor voltará para ver essa pobre mocinha? — perguntou Roberto, com interesse. — Sim! É preciso cuidar dela, e não é sem tempo, tenho t enho certeza. Em seu quarto, onde penetrava o ar quente deste fim de tarde ensolarada, Anabela estava sentada numa pequena poltrona antiga, de espaldar direito e com entalhes. O fatigado corpo inclinava-se um pouco e uma das mãos apoiava o enlanguescido rosto. Com os olhos semicerrados, revia em pensamento tudo o que acabava de se passar. Era uma espécie de sonho, a que as vezes se entregava, e do qual despertava mais amargamente triste, mais secretamente desesperada. Um sonho... Aqueles encantadores desconhecidos, aquelas lindas e felizes moças, este homem de semblante paternal, aquele lindo l indo menino que a beijara... Um sonho... principalmente aqueles olhos escuros, onde vira tão doce compaixão, e que a olharam com tanta piedade. Tanta piedade! Sim, certamente ele podia compreendê-la, aquele jovem desconhecido, pois Anabela Steverson há muito tempo padecia seu martírio moral, sem auxílio, sem consolação, sem esperança. Uma lágrima deslizou das pálpebras da moça e caiu, pesada, escaldante, em sua pálida face.
Capítulo IV
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ANEMIA FÍSICA E MORAL
— A anemia é pronunciada e o coração está fraco. Mas o que acho inda mais
inquietador, é uma espécie de atonia moral, de indiferença por todas as coisas. O doutor Brennier, após ter examinado Anabela, dava parte a Madame Norand do resultado do exame. Esta lhe respondeu friamente: — Essa indiferença faz parte da natureza de Anabela. Desde que vive comigo, sempre a demonstrou.
— Verdade? É estranho. Mesmo porque essa moça parece triste, singularmente
triste. — Triste? Madame Norand olhava o seu interlocutor, com evidente surpresa. — Nunca notei isso. Fria e taciturna, sim. É de sua natureza. — Entretanto, tenho a impressão que o moral está tão enfermo quanto o físico. E, mesmo, essa pode ser a causa do enfraquecimento que verifiquei. Madame Norand permaneceu silenciosa por alguns instantes, com as sobrancelhas unidas, os lábios cerrados. Depois, perguntou brevemente: — O que acha que devemos fazer? — Dar-lhe alguns fortificantes, suprimir todo trabalho fatigante e fazê-la respirar bastante ar, isso quanto ao físico. Quanto ao moral, é coisa mais delicada. Antes de mais nada, é preciso estudar a enferma, encontrar a razão desse estado de apatia. Algumas distrações seriam indispensáveis. indispensáveis. Distrações tranquilas, tranquilas, naturalmente. — De fato, não creio que o senhor vá aconselhar "dancing" ou o cinema. Aliás, tudo isso seria perfeitamente inútil. A ironia seca desta resposta impressionou impressionou desagradavelmente desagradavelmente o doutor Brennier. Mau grado seu, firmou-se num tom de voz inda mais frio para retorquir: — O "dancing", não. Quanto ao cinema, se não estivéssemos no campo, eu não diria não, de quando em quando, uma vez que se escolhesse o espetáculo. Mas não se trata disso. di sso. Em compensação, nesta linda estação do ano passeios de carro são indicados. — Não tenho carro. — De muito boa vontade, eu me incumbirei de levá-la a algumas excursões com minhas filhas. — Vou pensar nisso. Obrigada, doutor, pela consulta. Sinto -me bastante reconhecida. — Eu é que me sinto infinitamente grato à sua neta, Madame. De modo que estou sempre à sua disposição. Minutos após, encontrando-se de novo em meio de suas filhas, que lhe pediram notícias de Anabela, o doutor declarou: — Essa criança não terá muito tempo de vida, se continuar com a existência que leva. Principalmente do lado moral, como tive ocasião de dizer à avó, ela me parece mais atacada. Contudo, a mim mesmo pergunto se Madame Norand quererá compreender isso. — Oh! papai, o senhor crê em tal coisa? — indagou Regina — Que situação horrível! O doutor sacudiu a cabeça. — Essa mulher me dá a impressão de uma completa indiferença a respeito da neta. Quanto a esta, pobre criança, me causa dó! Interroguei-a um bocadinho, tentei fazêla falar, mas permanece numa reserva glacial. Parece emparedada numa indiferença sob a qual, no entanto, por várias vezes acreditei sentir um padecimento que palpitava, que não ousava revelar-se... Sabem onde quero chegar, meus filhos? Em fazer com que vocês sejam amigos daquela pobre criatura, seus bons anjos e meus auxiliares nessa obra de cura, admitindo-se que Madame Norand me autorize a prosseguir. f elizes! — disse Antonieta com — Oh! querido papai, nós nos sentiremos tão felizes! arrebatamento. E suas irmãs aprovaram-na calorosamente.
Naquela manhã, após a partida do doutor, Anabela vestiu-se, depois desceu para entregar-se aos seus trabalhos habituais. À hora do almoço, ela apareceu na sala de jantar e, depois de ter cumprimentado a avó, foi sentar-se a uma das extremidades da mesa. Misse Steverson ocupava a outra. De ordinário, Madame Norand jamais dirigia a palavra à neta durante as refeições e parecia ignorar-lhe completamente a presença. Mas hoje, desde a entrada, envolveu-a num olhar investigador, depois continuou a examiná-la, enquanto Martim começava a servir. — Por que come tão pouco, Anabela? — perguntou de repente, vendo-a recusar um pedaço de frango que o criado lhe oferecia. — Não tenho fome, vovó. A moça não parecia ter percebido o exame exame de que fora objeto. Conservava Conservava os olhos semi-abaixados e respondeu à avó sem a olhar. Madame Norand voltou-se para misse Steverson: — Graça, apanhe, depois, em minha escrivaninha a receita que o doutor deixou e leve-a ao Louvagne, para que ele mande preparar o remédio numa farmácia. O almoço terminou em silêncio. Mas quando Anabela se levantou para sair, Madame Norand lhe disse: — Autorizo-a a descansar na tarde de hoje. Pegue num trabalho de agulha e vá sentar-se no jardim. Amanhã, poderá levantar-se mais tarde. — Sim, senhora, vovó. Aquela resposta fria, lacônica, saiu dos dos lábios apenas entreabertos entreabertos de Anabela. Enquanto ela deixava a sala de jantar, misse Steverson perguntou timidamente, pois Madame Norand lhe impunha grande respeito: — O doutor não a acha bem, Madame? — É a sua opinião. Contudo, ela não tem bom aspecto, e não comeu quase nada. Mas na sua idade isso não tem importância. — Oh! não, certamente que não tem importância! — apressou-se misse Steverson a concordar, sempre pronta para aprovar aqueles a quem temia. Na tarde do dia seguinte, Madame Norand foi a Vigne-Rouge. Recebeu-a Antonieta, e só depois o doutor e Regina chegaram. Danielle achava-se, naquele dia, em Uzerche, aonde fora ter de bicicleta, para fazer algumas compras. — Conforme lhe disse, doutor, refleti bastante. — declarou Madame Norand — Creio, de fato, que minha neta tem necessidade de ser tratada um pouco seriamente e ficaria satisfeita se o senhor quisesse disso se incumbir. — Com o maior prazer. Irei I rei vê-la amanhã e começaremos adequado adequado tratamento. Para começar, uma série de injeções fortificantes. Alguém, em sua casa, sabe aplicá-las? — Não, ninguém. — Nesse caso, se a senhora consentir, uma de minhas filhas se encarregará disso. — Como não, mas será incômodo para essas moças... — Em absoluto! — disse vivamente Regina — Sentir-nos-emos muito felizes de serlhe úteis, Madame. —. e pensava: "Mas principalmente para suavizar um pouco, do lado físico e talvez t alvez ainda mais do lado moral, os padecimentos dessa pobre moça". Regularizando tudo, Madame Norand se entreteve ainda durante algum tempo com o pai e as filhas. Apresentaram-lhe Luiz e Michelle, os dois f ilhos nascidos do segundo casamento do doutor Brennier. Quando ela deixou Vigne-Rouge, pensou com satisfação que aquelas moças, que pareciam tão sérias, boas donas de casa e de modos simples e corretos, não poderiam exercer influência desfavorável sobre Anabela. Aliás, projetava pedir a Regina, Regina, diplomada pela Cruz Vermelha, Vermelha, que
ensinasse à neta a ciência de enfermagem. Seria uma coisa particularmente útil para uma pessoa destinada a viver no campo. Enfim, um outro ponto havia feito pender a balança para o lado das relações com os vizinhos da Vigne-Rouge: dos dois filhos mais velhos do doutor, um, aliás casado, era médico em Paris, e o outro, oficial, na ocasião se encontrava num posto marroquino. Ora, por pouco disciplinada que fosse a imaginação de Anabela, que parecia um tanto fria, fr ia, insensível, Madame Norand achava que era melhor prevenir todas as surpresas. O futuro da neta por ela lhe fora traçado, e dentro de muito pouco tempo Anabela disso seria informada. Quanto a Roberto Arlys, o sobrinho do doutor, estava fora de cogitações. Fazia alguns dias que ele regressara r egressara a Paris, e Madame Norand ignorava que Anabela o conhecesse. Durante a visita que acabava de fazer-lhes, nem o doutor, nem seus filhos tiveram ocasião de falar-lhe a seu respeito, de modo que nem lhe suspeitava a existência. Assim foi que, sem inquietação, ela voltou voltou para casa. À misse Steverson, Steverson, ocupada na máquina de escrever, Madame Norand perguntou: — Onde está Anabela? — No jardim, Madame. — Vá dizer-lhe que o doutor virá amanhã de manhã. Que fique deitada até que o doutor chegue. Misse Steverson levantou um olhar vagamente inquieto. — Verdade, ela está tão doente assim? tivesse nada, eu me incomodaria? — perguntou — Acaso acredita que, se não tivesse bruscamente Madame Norand. — Sei que o doutor Brennier é um homem sério, de elevada consciência, e que posso confiar nele. Que há, Martim? — O senhor Brülard veio há pouco visitar Madame. Disse que voltará mais tarde. — Ah! bem! Você, prepare vinho fino e alguns bolos. A senhorita Anabela é que nos servirá. Depois, mudando de idéia, acrescentou: — Não, você mesmo servirá. E ela pensava: "Essa pequena agora está com mau aspecto. Melhor é que ele a veja quando estiver melhor".
Capítulo V
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REPAROS
— Sente-se bem? O ar não a fatiga?
Inclinada sobre Anabela, Regina interrogava-a, sorrindo. As duas se encontravam atrás, no assento traseiro do torpedo, guiado por Danielle. Perto desta, estava sentada Antonieta, com Michelle nos joelhos. Entre Anabela e Regina, acocorava-se o Luizinho. — Oh! não! Está tão agradável! Vagarosamente, Anabela respirava o ar puro que batia em seu macilento rosto. O doutor havia prescrito, para esse dia, um passeio depois de quatro dias de repouso r epouso no quarto, durante os quais Regina viera diariamente fazer injeções na enferma. Durante esse tempo não lograra adiantar um passo no conhecimento desta alma fechada. Anabela agradecia-lhe polidamente, respondia com laconismo às perguntas discretas que lhe eram feitas sobre suas ocupações e sobre seus gostos. Percebiam-na emparedada em obstinada reserva. Mas, hoje, algo parecia que nela se afrouxava. Aqueles cansados olhos se animavam ligeiramente, ao percorrer a paisagem que se descortinava: riachos espumantes, desfiladeiros enfeitados de
verdura, castanhais dourados por um vivo sol que, aliás, não os queimava. Luizinho dizia: — Olhe, olhe, senhorita, como tudo isto i sto é bonito! Repare além, naquele castelo... Seu dedo apontava para as velhas ruínas que se levantavam sobre altiva rocha. Anabela dizia, em voz sonhadora: sonhadora: — Sim, é lindíssimo... é lindíssimo... Sua mão, um tanto escaldante, pousava na do menino. Os lindos olhos azuis de Luiz examinavam-na com piedade. Regina havia dito ao irmão: — É preciso que você seja bem delicado para aquela pobre moça. Primeiro, porque ela o salvou; depois, porque está doente e é infeliz. E o menino, com ingênua graça, tinha certas liberdades que, por vezes, provocavam um leve sorriso naqueles tristes lábios. "Conseguiremos conhecer um pouco esta alma, para, beneficiá-la?" pensava Regina. "Algum dia ela se abrirá para nós?" Mais ou menos às quatro horas, os excursionistas pararam perto de um castanheiro e se acomodaram numa clareira, para lanchar. Anabela sentou-se perto de Antonieta, no chão coberto de grama, grama, ao passo que Regina Regina e Danielle se ocupavam com um cesto de provisões. pr ovisões. Luiz veio colocar sobre os joelhos de Anabela um pequeno guardanapo e pôs a seu lado um copo de alumínio. — É encantador, o seu irmãozinho — disse Anabela em voz baixa. Antonieta sorriu. — Sim, é um bom menino, um excelente coração. Obediente, como poucos. Meu pai, às vezes, faz um pouquinho de "enfant gâté" com ele. Meu primo Arlys é que tem influência sobre o pequeno. Conhece-o? Estava conosco, quando você socorreu o Luiz. — Sim. Mora com vocês? . — Foi passar quinze dias em Paris, onde o reclamavam seus negócios, pois é advogado no fórum. Mas voltará logo a Vigne-Rouge, para aqui passar mais algum tempo. Esse nosso primo é um caráter, uma alma de "elite" e compassiva e ao mesmo tempo uma grande inteligência. Já está célebre nos tribunais e por certo fará excelente carreira. Além disso ocupa-se bastante de obras sociais e é um dos mais zelosos jovens animadores católicos. Anabela tinha entre os dedos uma uma haste de gramínea, que dobrava dobrava distraidamente. Permaneceu por alguns instantes pensativa, e depois perguntou: — Vocês são crentes? — Sim, sem dúvida! E você? — Não tenho religião. Só havia indiferença no tom desta resposta. — É batizada? — Não sei. — E essa descrença, não lhe parece cruel?... esse vazio na alma? Anabela volveu seus olhos olhos tristes para Antonieta. — Esse vazio na alma? Sim, é isso... o vazio, o tédio. As palavras caíam lentamente, com com um tom de sombria dor. — Não se aborrece, às vezes, Antonieta? — Raramente. Tenho muita ocupação. Você, também, tem muito tra balho? —Oh! sim, trabalho! Mas só isso... Você... você tem seu pai, suas irmãs, seu irmãozinho. E eu, nada. — E sua avó, sua tia?
Anabela enrijeceu-se completamente. completamente. O olhar tornou-se duro, a voz um pouco pouco rouca, ao repetir: — Eu, eu não tenho nada. Antonieta não insistiu. Acabava de de soerguer o véu e entrever entrever algo desse padecimento que devia assolar a alma daquela infeliz. Pouco a pouco, sem dúvida seria possível tratar daquela pobre alma, curá-la. A palestra jovial e inteligente das filhas do médico médico e a alegria de Danielle e de Regina pareciam causar algum efeito em Anabela, e quando ela desceu do carro, em Maison-Vieille, as maçãs do rosto já não tinham aquela brancura doentia, nem seus olhos aquela expressão de cansaço, que fazia com que o doutor Brennier dissesse: — Isto não me agrada, nem um pouquinho. Quando as filhas lhe contaram a tarde que passaram, e Antonieta lhe repetiu sua curta palestra com a jovem vizinha, ele declarou: — Tudo isso corrobora o meu diagnóstico: a alma está mais anêmica que o corpo. A vocês é que cumpre dar-lhe os necessários cuidados, minhas filhas; com vocês ela se entenderá melhor do que comigo. Durante o jantar, naquela tarde, tar de, Madame Norand perguntou: — Anabella, você saiu a passeio com as filhas f ilhas do doutor? — Sim, vovó. — São amáveis com você? — Muito amáveis. — Sobre o que conversaram? — Não sei mais. — Como, como não sabe mais? — Não sei, não me lembro... Elas é que falavam. Eu, eu não tenho o hábito... Conforme seu costume, Anabela respondeu num tom de voz cansado, indiferen te, sem olhar para a avó. Timidez, ou receio de não poder ocultar-lhe o que se agitava em sua alma, prisioneira de um implacável sistema de educação? Coisa singular, Madame Norand jamais lhe fizera f izera observação a esse respeito. Ela própria parecia evitar um encontro com o olhar da neta e, muitas vezes, servia-se de misse Steverson como intermediária. Hoje, entretanto, observou-lhe secamente: — Por que abaixa os olhos, desse jeito? Anabela ergueu as azuladas azuladas pálpebras. Entre os cílios louros, os olhos cor de violeta se fixaram, por alguns segundos, nos de Madame Norand. Estes estremeceram ligeiramente, afastaram-se e, com a mão um pouco nervosa, Madame Norand pegou uma fruta na fruteira que Martim acabava de por à sua frente. Misse Steverson nada notara e tranqüilamente continuou a saborear a sua sobremesa.
Capítulo VI
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DEUS OLHAVA POR ELA
Quando, dez dias mais tarde, saía de Maison-Vieille para ir a Vigne-Rouge, Anabela cruzou no pátio com o senhor Brülard, o dono da propriedade pr opriedade de Bournizel. Em anos anteriores, por vezes o vira, quando ele vinha fazer uma visita a Madame Norand, que o havia conhecido menino. Brülard cumprimentou a moça de passagem, encarando-a com alguma insistência. Anabela virou o rosto e apressou
um pouco o passo. Este rapaz alto e forte, de rosto queimado e espessos cabelos negros, desagradava-lhe profundamente, sem que ela soubesse a causa dessa antipatia. Através do caminho ensolarado, ensolarado, a moça se encaminhava encaminhava para a casa do doutor Brennier. Quase que diariamente fazia esse percurso. Se u rosto tornara-se menos pálido, os lábios se tingiam t ingiam de um leve rosado, as olheiras tendiam a desaparecer. No olhar, havia um pouco mais de vida, quando Anabela se achava entre suas amigas de Vigne-Rouge. Entretanto, ainda não revelara o segredo de sua alma, continuava fria e impenetrável, salvo quando, às vezes, respondia a um gesto afetuoso do Luiz ou, então, ao escutar, tocada por Regina ou transmitida pelo gramofone, uma dessas obras musicais cuja beleza jamais perece. Quando as filhas do doutor não a levavam a qualquer passeio, ela ficava entre as moças, ocupada com algum trabalho de agulha. Antonieta lhe ensinara o bordado, que aprendeu com grande facilidade. Regina lia algum livro, escolhendo nas obras literárias de fundo moral, o que podia comover, tocar nesta alma secreta. Por vezes tentava saber o que Anabela pensava sobre o assunto de tal trabalho. Mas esta se limitava a dizer: — Não estou a par de nada. As moças tinham a impressão de que que Anabela não quisesse, quisesse, nem talvez soubesse soubesse nelas confiar, pelo longo hábito de recolhimento, de implacável clausura. Naquela tarde, quando Anabela apareceu no jardim de Vigne-Rouge, Luiz, que a espiava, correu em sua direção. — Bom dia, senhorita! Oh! estou tão contente! E apresentou-lhe seu rosto, animado, para o beijo do costume. — Roberto chegou! — Ah! — disse Anabela. Já ouvira, muitas vezes, suas amigas falarem de Roberto Arlys. Sabia-o órfão desde a infância, e que encontrara em casa do tio um verdadeiro lar. Quanto às suas qualidades morais, aos seus dons intelectuais, Antonieta, Regina e Danielle os elogiavam, sem reservas. — Venha depressa ver as lindas ferramentinhas que ele me trouxe, para eu trabalhar em meu jardim! Luiz pegou na mão da moça e levou-a atrás da casa, na direção da álea arborizada, onde estavam dispostos os bancos e as mesas de jardim. Roberto, que conversava conversava com Regina, levantou-se ao aparecimento de Anabela e deu alguns passos em sua direção. — Fiquei satisfeito de saber, por minhas primas, que a sua ferida e o seu mal -estar não tiveram conseqüências aborrecidas — disse aquela voz vibrante, bem timbrada. -— Não senhor, nem um pouquinho. Muito ao contrário. Que havia naqueles olhos de um azul tão t ão raro, que se encontravam com o olhar de Roberto? Timidez? Doçura um pouco receosa? Um misto de frieza e de vaga emoção? Regina lhe dissera: — Essa moça é um tanto enigmática. E Roberto pensou que seria interessante decifrá-la. — Muito pelo contrário? — repetiu Regina, sorrindo — Por que? — Porque tive ocasião de conhecê-la. Era a primeira vez que Anabela pronunciava uma frase desse gênero, testemunhando que suas relações com as jovens vizinhas lhe proporcionavam certo contentamento.
— Oh! nesse caso, todas nós estamos de acordo! Minhas irmãs e eu nos sentimos
felizes por vê-la readquirindo saúde. — De que serve isso? Subitamente, uma sombra cobriu o olhar de Anabela, um vinco de amargura se lhe desenhou no canto dos lábios. — Como, de que serve isso? Acaso achava agradável sentir-se fatigada, enlanguescida como estava quando a conhecemos? — Isso não poderá durar muito tempo — disse Anabela em voz baixa. E abaixou um pouco as pálpebras, enquanto sua boca t remia ligeiramente. Luiz veio-lhe ao encontro, nesse instante, trazendo as pequenas ferramentas de jardim que desejava fazê-la fazê-la admirar. Depois, Antonieta e Danielle apareceram e animou-se a conversa, habilmente dirigida por Roberto e por suas primas. Anabela permanecia silenciosa, respondendo só quando diretamente lhe dirigiam a palavra. Mas escutava com um interesse que comunicava vida nova ao seu olha r. — Parece, senhorita, que vão ter um hóspede em Maison-Vieille? — disse de repente Roberto. Encontrei-me, outro dia, com Feliciano Marnel, o escritor, o viajante, que foi condiscípulo e amigo de meu pai. Contou-me que na semana próxima aquiescerá ao convite de Madame Norand e virá passar umas duas semanas em sua companhia. — Ah! Não sabia. — Sua avó não lhe disse nada a esse respeito? — perguntou Antonieta. — Não. Dois dias antes da chegada desse senhor, se eu for a encarregada de arranjar-lhe o quarto, ela me dará ordens nesse sentido. É assim... De fato, é assim que sempre se passa. A voz, a princípio fria, carregou-se de amargura. O olhar tornou-se tornou-se duro, hostil. Era uma Anabela desconhecida, que assim se revelava. Regina, que estava perto, docemente lhe tomou a mão um pouco crispada. — Minha pobre amiga! Compreendemos bem que você não é f eliz, que sua avó a trata com muita severidade... Os lábios de Anabela crisparam-se, abrindo-se num sorriso de ironia. — Oh! não. Não vocês que amam, vocês que cuidam de fazer a felicidade dos outros, não podem compreender o que é a minha vida. Minha vida! Sozinha há treze anos, sempre sozinha. — a voz tornou-se surda, tremia um pouco. Em seu rosto palpitante, transparecia dor pungente. — Minha pobre amiga! — repetiu Regina. E apertou-lhe mais fortemente a mão. Danielle e Antonieta olhavam-na comovidas. Entretanto, ela somente via dois olhos castanhos, cheios de ardente piedade, duma doçura profunda. — Sua avó não lhe tem afeição? — perguntou Antonieta. Desta vez, era uma espécie de riso selvagem, estranho, que aflorava aos lábios de Anabela. — Ela só tem mostrado, por mim, uma alma implacável, sem piedade. Também eu a odeio... odeio-a! Estas últimas palavras foram pronunciadas com refreada violência, que por alguns instantes deixou Roberto e suas primas perplexos. — Oh! Anabela — exclamou por fim Regina, em tom de censura. Mas os olhos azuis, tornados sombrios, sustentaram seu olhar com desafio. — É que você não sabe.. . ninguém sabe o que tenho sofrido. Durante um instante Anabela ficou silenciosa, torcendo inconscientemente inconscientemente suas finas mãos. Depois, começou a falar em voz baixa, dolorosa. Sua alma enfim se abria, deixando cair o pesado segredo dos próprios padecimentos. Falou de sua
infância sempre solitária, sob o cruel domínio de Madame Baury, a governante que lhe foi escolhida pela avó. Mostrou seu coração, seu espírito comprimidos por uma educação que não deixava lugar para nenhum ideal, nenhuma entreaberta para um bocadinho de sonho. Mocinha, continuou encarcerada numa prisão moral. Sua avó unicamente lhe demonstrava indiferença e inflexível frieza. Ninguém jamais lhe havia querido... — E a ela, somente a ela é que devo esta existência. Foi quem destruiu tudo em mim, quem tudo gelou e tudo perdeu. Sua voz elevara-se um pouco, tornara-se dolorosamente arrebatada, para decair num pungente murmúrio de desespero. — Não, não. Tudo não está destruído, tudo não está perdido, minha pobre Anabela! — exclamou Regina. Regina e suas irmãs haviam escutado com viva emoção a aflitiva confidência. Agora, inclinadas para a moça acabrunhada, acabrunhada, repetiam: — Não, não. Nada está perdido! Sua alma e seu coração certamente ainda estão bem vivos. Nós a ajudaremos a sair desse túmulo, a afastar essa tirania moral que sua avó não tem o direito de fazer pesar sobre você. Para começar, uma vez que já completou os dezoito anos, pode dirigir-se ao conselho de família a fim de que obtenha a sua emancipação. Não é, Roberto? — Ela pode e deve. É impossível que a senhorita continue nessa situação. Embora mantendo para com sua avó a consideração e o respeito que lhe deve, é indispensável, como minhas primas acabam de dizer, que a senhorita se liberte dessa prepotência infinitamente prejudicial à sua saúde e à sua alma. No olhar de Roberto, a compaixão se tornara inda mais doce, mais terna. Anabela, enquanto falava, não deixara de senti-lo interessado, ao escutar-lhe a dolorosa narração. Ela disse, em voz baixa: — É muito tarde. Minha avó me tomou tudo... tudo. A religião de m eus pais, não deixou que me ensinassem. Madame Baury dizia-me que no mundo só existe a matéria e que tudo acaba no túmulo. Assim, minha avó me privava dos prazeres deste mundo e me recusava esta compensação, esse conforto que, parece, encontram os crentes em sua fé, na esperança de uma eternidade feliz. — Mas essa esperança, essa fé, a senhorita pode conquistá-las! — exclamou a voz emocionada de Roberto. — E Madame Norand não mais terá o poder de tirá-las. Os olhos dolorosos iluminaram-se um pouco, a boca perdeu seu vinco de amargura. Anabela disse a meia-voz, como se falasse consigo mesma: — Se fosse possível... se fosse possível... — Absolutamente possível! — retorquiu Roberto, com autoridade. — Uma vez que o senhor Manel aqui estará na próxima pr óxima semana, conversaremos com ele a esse respeito. É um homem de coração, de grande senso. Deve conhecer Madame Norand, pois que é seu amigo de infância. Veremos juntos o melhor meio de atingirmos o nosso objetivo, isto é, de libertá-la de uma tutela que lhe aniquila a alma, minha pobre criança, e que por reflexo age deploravelmente sobre sua saúde. — Nós todos cuidaremos disso — acrescentou Regina, inclinando-se para depositar um beijo na testa de Anabela. — E, agora, é preciso mudar um pouco de idéias, minha amiga. Roberto, você vai ler-nos qualquer coisa, hein? — Com o maior prazer. Mas o que? começado a "Vida do Cura de Foucault". Repare, Repare, o volume está sobre — Tínhamos começado essa mesa. Nos dias anteriores, quando Regina é que lia, aliás otimamente, Anabela escutava sem aparente interesse. Mas hoje, sua fisionomia f isionomia deixava transparecer uma sombra
de emoção, enquanto a voz grave, bem timbrada do jovem advogado evocava a personalidade do antigo oficial, que se tornou heróico penitente do deserto. Suas mãos inativas estavam, hoje, cruzadas sobre os joelhos e a cabeça, um pouco inclinada, aureolava-se do reflexo do sol que atravessava entre as folhagens da rua arborizada. Quando, momentaneamente, Roberto parava de ler, sempre encontrava um olhar sonhador, enternecido, atento. Finda a leitura e fechado o livro, Anabela murmurou: — Gostei disso... Eu não sabia nada, acreditava que tudo fosse mau, no mundo. — Não, não minha boa amiguinha, tudo não é mau, tenha a certeza! — contraveio afetuosamente Antonieta. — Nós lhe provaremos, não tenha receio. — Vocês já me provaram. A voz de Anabela se revestira revestira de desacostumado tom tom de doçura. A pálida figura parecia acalmar-se. Luiz, que acabava de aproximar-se, olhava-a com um ar meditativo. Depois, o menino disse gravemente: — Você não está tão triste hoje. Ao contrário, parece até mais gentil... Ligeiro sorriso aflorou aos lábios de Anabela. Estendendo as mãos, acariciou a cabeleira do menino. — Você tem razão, Luizinho. Mas, qual! Não está em mim... A frase ficou inacabada. De novo, novo, profunda melancolia apareceu apareceu em seu olhar. Regina logo desviou a conversa para outro assunto e Roberto lhe respondeu, enquanto Danielle foi buscar a merenda. Trouxe os bolos feitos por Antonieta, e Anabela comeu com mais apetite que de costume. — Vamos dar-lhe faces rosadas e um pouco de alegria comunicativa — disse alegremente Regina. — Logo, você será outra. Anabela sacudiu a cabeça. cabeça. Depois, olhou o relógio-pulseira, um modestíssimo modestíssimo relógio de prata. — Não posso demorar-me. Minha avó tem um convidado para o jantar esta tarde, e preciso ajudar Mélanie num prato longamente preparado, um recheio complicado que é um dos seus triunfos. Como sua vista está cansada, sozinha ela não pode fazê-lo. E, como quer conservar o seu segredo, de jeito algum deseja que Josefina o descubra. — Madame Norand não recebe ninguém, quando está aqui, não é verdade? — perguntou Antonieta. — Quase ninguém. Esse senhor Brülard, que vai jantar hoje, é o dono da propriedade de Bournizel. Não o conhece? — Somente de vista. Não é dos nossos, não só pelo lado político, como religioso. — Em cada ano ele faz duas ou três visitas a minha avó, durante a nossa permanência em Maison-Vieille. Mas esta é a primeira vez que vem jantar conosco. Depois dessas palavras, Anabela despediu-se das amigas e de Roberto. Todos a seguiram com o olhar até desaparecer entre os maciços floridos, sob a doce luz do sol poente. Sua silhueta fina, leve, tinha uma graça extrema, como em voz baixa notou Danielle. — Sim, é encantadora. — replicou Regina. — Mas que vida, coitadinha! Como sua avó tem coração, para tratá-la assim? Deve ser uma senhora cruel, orgulhosa. Sua fisionomia, aliás, dá-nos que pensar. Não lhe basta aborrecer tantas almas com suas obras amargas e desesperantes; é preciso ainda que experimente arruinar a alma, o coração de sua neta! pr incípio — Uma alma, um coração que devem ser muito mais sensíveis que a princípio supusemos — observou pensativamente Roberto. — Ela nos revelou um bocadinho,
hoje. Mas não foi sem tempo que Anabela as conheceu, minhas boas primas. Porquanto suponho que a desgraçada criança devia achar-se às bordas do desespero. — Deus olhava por ela — disse Regina, cujo olhar se alumiou, durante alguns segundos, por uma luz inda mais viva.
Capítulo VII
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PROPÓSITOS
Naquela tarde, graças à modificação do costume até então observado, Anabela tomou parte no jantar para o qual fora convidado o proprietário de Bournizel. Madame Norand transmitiu-lhe essa ordem, por intermédio de misse Steverson, acentuando que deveria escolher o vestido que mais bem lhe assentasse. Foi uma hora de profundo aborrecimento aquela, passada à mesa, com as perorações do senhor Brülard, que era um grande "causeur", um excelente esvaziador de copos e um sólido garfo. Ele falava principalmente de si mesmo, de suas terras, de suas colheitas, da esperança que alimentava de ser nomeado conselheiro geral no ano seguinte. Madame Norand escutava-o com paciência, e de quando em quando lhe oferecia uma réplica, uma reflexão. Anabela, silenciosa, conservava aquela atitude de habitual indiferença. Não dava mostras de perceber os olhares interessados que, de onde em onde, lhe volvia Rogério Brülard. Quando se levantaram da mesa, Madame Norand lhe disse: di sse: — Sirva os licores na sala de visitas, Anabela e depois pode retirar-se. Havia uma como que pressa febril nos movimentos da moça, de ordinário tão comedidos, ao preparar os cálices e os frascos na bandeja de velho carvalho. Tão logo a colocou sobre a mesa, m esa, perto de sua avó, ela se eclipsou, após ter respondido com certa altivez ao cumprimento de Brülard. Desceu rapidamente a antiga escada de pedra enegrecida, entrou em seu quarto e, com um suspiro de alívio, fechou a porta. Enfim, podia estar só e pensar... Mesmo porque, depois de seu regresso da VigneRouge, ainda não tivera um instante de liberdade. Fora-lhe preciso ajudar Mélanie, e em seguida arrumar de novo a mesa, porque Martim, que não enxergava bem, pusera tudo torto. Em seguida, rapidamente teve que passar a ferro o seu vestido de "foulard" azul pontilhado de branco, muito simples e por ela mesma feito, consoante os princípios de Madame Norand. Após, houve aquele j antar tão comprido, tão mortalmente longo, porquanto o convidado honrara os excelentes pratos de Mélanie. Todavia, agora se achava a sós. Sentada à janela, permanecia imóvel, com os olhos abertos àquela noite levemente alumiada por um crescimento fraco da lua. Podia, pois, reviver com o pensamento aquela tarde, no jardim da Vigne-Rouge. Num misto de estupefação e certa confusão, a si mesma perguntava como pudera desvendar os próprios padecimentos àqueles estranhos. Estranhos? Não obstante, que singular confiança lhe inspiravam? Estranha, sim, é sua avó... mais que estranha, uma inimiga. Estranha, também, a tia Graça, insignificante, pusilâmine, tão pouco afetuosa. Mas aquelas moças, as encantadoras Antonieta, Regina, Danielle... e o próprio Roberto Arlys, Arlys, a quem pouco conhecia, conhecia, ainda... Não, não lhes podia dar esse qualificativo, pois que ao lado deles sentia tanta simpatia verdadeira, bondade eficaz e compaixão que não se manifestava tão
somente em palavras, porquanto todos eles lhe disseram que a auxiliariam a libertar-se do jugo moral de Madame Norand. A brisa daquela noite de verão banhava banhava de calor a fronte inclinada. Transudavam Transudavam os perfumes das vegetações adormecidas de sob as árvores, cansadas do calor do dia. O próprio riacho parecia fatigado, preguiçoso e o seu ruído se fazia ouvir em surdina. No quarto obscuro, em que apenas penetrava o fraco reflexo da lua crescente, a moça, imóvel, parecia um fantasma pálido. Um por um, ela reviveu todos os menores incidentes daquela tarde: seu secreto prazer quando soube da presença de Roberto Arlys, a discreta amabilidade do jovem advogado, a leitura por ele feita com tanta graça e levemente emocionado... emocionado... E depois, o grito de seu coração, a confissão irresistível de sua desgraça e a de seu ódio contra a avó que lhe havia desbaratado a meninice, aniquilado a sua inteligência, vibrado golpe de morte em seu coração. Aniquilado? Vibrado golpe de morte? morte? Anabela pôs-se a arquejar, com com a mão posta no coração subitamente subitamente agitado. "Anemia, fraqueza passageira" dissera o doutor Brennier. Mas que importava o coração de carne? Um outro nela havia existido, havia outrora palpitado e desesperadamente reclamado, em silêncio, um pouco de ternura, um pouco de bondade. Depois, sossobrara na atmosfera glacial sustentada por Madame Norand, por Madame Baury. Ninguém, ninguém deste mundo jamais amara a pequena Anabela... e nunca ela tivera alguém alguém para amar. Agora, era muito tarde. Antonieta e Regina pretendiam pretendiam que não, diziam que ela poderia ser salva desse terrível desespero que a levava à morte. Mas estavam enganadas, aquelas caridosas amigas. Tudo estava acabado, acabado. Um pássaro da noite piou no bosque, bem perto. Do espumejante riacho subiu uma leve frescura. Há já alguns momentos, Anabela, com as pálpebras semicerradas, ouvia uma voz profunda, enternecida e revia a fisionomia séria de um homem de olhos castanhos, gravemente ternos. Depois, a seu lado, se desenhava uma cabeça recoberta de cabelos negros, um rosto avermelhado, de traços fortes, com o olhar sagaz e ardiloso, por momentos falsamente doce e quase sempre atravessado por inquietante dureza. Anabela teve um movimento de repulsa. Detestava, detestava detestava aquele senhor Brülard. Contanto que Madame Norand não tivesse a idéia de convidá-lo de novo! A moça levantou-se lentamente, deu deu alguns passos no quarto quarto e depois se aproximou de uma pequena secretária. Ali havia uma gaveta secreta, que ela abriu. E tirou um livrinho elegantemente encadernado, um desses livros de orações que se oferecem como presente de primeira comunhão. Um dia, em certa mala que remexera a mandado de Madame Norand, Norand, à procura de um antigo vestido, encontrara-o bem no fundo, em meio m eio de outros objetos que haviam pertencido à sua mãe. Na primeira folha do livrinho estavam escritas estas palavras: "À minha amiguinha Luciana Norand". Anabela levou-o para o seu quarto. Pertencia-lhe, Pertencia-lhe, pois que fora dado à sua mãe. mãe. Era a "Imitação de Cristo". Abrira-o e percorrera-lhe algumas de suas páginas. Mas tudo aquilo lhe parecia incompreensível, e fechara-o, guardando-o em seu armário. Todavia, de vez em quando dali o tirava e lia algumas páginas, ao acaso. Uma secreta atração, em certos dias, fazia-a procurá-lo. E ela sentia que uma doutrina de paz, de consolação, de esperança estava contida no livrinho. Achava-se na situação de um pobre diante de uma porta fechada, atrás da qual encontraria calor e alimentação, mas que não sabia que palavras empregar para que a abrissem.
Com traços leves de lápis sublinhava algumas frases que particularmente lhe despertaram a atenção, acordando em sua alma desamparada a curiosidade daquela alma cristã, de que a desviara sua avó. Naquela noite, ela relia: "Os que amam a Jesus por Jesus, e não por si mesmos, abençoam-no em todas as atribulações e na angústia do coração como nas mais doces consolações". "Ele só deve ser unicamente amado, porque somente Ele é o amigo bom, fiel, entre todos os amigos". "Vós sois minha esperança e meu refúgio no dia de tribulação". Assim, nas suas provações, provações, esses crentes podem podem refugiar-se no amor de um ser todo poderoso do Infinito? Regina, Antonieta, Roberto Arlys utilizavam-se desse supremo recurso, quando quando sofriam. Mas ela... Disseram-lhe que a ajudariam a libertar-se de sua prisão moral, e que, como eles, havia de conhecer as alegrias da esperança, da fé. Eles eram tão bons, tão delicadamente simpáticos... Mas, na verdade, poderiam alguma coisa contra a vontade fria e implacável de Madame Norand? Súbito desânimo, profunda amargura afastavam a tranquilidade e a esperança que aquela alma dolorosa trouxera dos momentos passados em Vigne-Rouge. Anabela pensava: "Não, não. Eles nada poderão fazer. Tudo está acabado, para mim." Impressão atroz de solidão apossou-se da moça. Caindo de joelhos, perto da secretária, apertava convulsamente entre os dedos o livrinho. Por muito tempo ali ficou prostrada, quase sem pensamento, sofrendo silenciosamente e estremecendo um pouco quando, pela janela aberta, até ali chegavam as risadas de Rogério Brülard. Quando se levantou para ir para cama, o hóspede deveria ter partido, pois que nada mais se ouvia no rés do chão. Anabela deitou-se, mas não pode dormir. Quando se levantou, estava com a fisionomia fi sionomia tão desfigurada, que chegou ao ponto de notá-la, ao pentear-se. Embora de ordinário nisso não prestasse nenhuma atenção, pois tal era o estado de sua alma há muito tempo que ó de sua saúde lhe era indiferente, nesse dia ela sentiu um pequeno choque. — Aquelas moças vão perguntar-me o que tenho. E o doutor também me interrogará. Não irei hoje. Dir-lhes-ei que estive ocupada. O cumprimento dessa resolução lhe foi cruel. A hospitaleira casa dos Brennier lhe oferecia atração, repentinamente inda mais viva. Mas existia nela uma força de vontade que lhe dominava os íntimos segredos do coração. Mais ou menos às duas horas, com o trabalho na mão, foi sentar-se no jardim. Este se estendia em comprimento, fechado do lado do riacho por uma balaustrada de pedra gretada, em parte coberto por roseiras pequeninas vermelho-púrpura e amarelo desmaiado. Os canteiros à francesa, sob os cuidados de um jardineiro da região, tinham uma graça um pouco negligente, que agradava a Madame Norand. A sua única exigência é que sempre estivessem cobertos de flores, pouco importando fossem das mais simples, mesmo das mais a toas. Isto porque esta mulher que desdenhava o luxo, as sutilezas da "toilette", do mobiliário ou dos serviço que sua fortuna lhe poderia proporcionar, gostava imenso de flores e queria-as sempre a seu lado, tanto em Paris, como aqui. Diariamente, ela própria as colhia, em seu jardim de Maison-Vieille. Por isso mesmo é que nessa tarde, ao notar ameaçadora tempestade, saiu de casa para apanhar as rosas antes que caísse a chuva. Anabela estava sentada perto perto de um velho teixo, há pouco podado, mas que havia havia reconquistado a liberdade de crescer como bem entendesse. Madame Norand, passando perto da neta, perguntou-lhe: — Não vai, hoje, a Vigne-Rouge? — Não, vovó.
A moça levantou a cabeça cabeça para responder, e Madame Madame Norand notou palidez em seu seu rosto, os olhos com olheiras, que a olhavam com a sua costumeira e morna expressão, longínqua, um pouco glacial. — Por que? — Preciso acabar estes aventais. Além disso, não quero impor-me àquelas moças. — Acaso deram a entender que você as incomoda? i ncomoda? — Oh! não! O protesto escapou, espontâneo, dos lábios de Anabela. — Então? Você não encontra satisfação ao lado delas? Madame Norand perscrutou a fisionomia calma, que ficou fi cou impenetrável. — Por certo que sim, vovó. Não quero incomodá-las, aí está. — O propósito é louvável. Não a censuro, mesmo por que não gosto que você assiduamente freqüente a casa dessas moças. Elas me parecem bem educadas, sérias e trabalhadeiras, mas soube ontem, que são fervorosas católicas. Ora, isso não concorda com a educação que você recebeu. Acaso notou tendências religiosas nessas moças? — Sim, vovó. — Isso é que a afasta um pouco dos Brennier? — Não. Elas são livres de pensar como entendam, e as opiniões que sustentam não me impedem de estimá-las. — Seja. Mas preste atenção para não deixar-se influenciar, por elas, nesse ponto. Isso de forma alguma me agradará. Com essa recomendação, Madame Norand continuou o seu caminho, ao longo dos canteiros. Na véspera, Rogério Brülard lhe contara que os moradores de Vigne-Rouge eram, como ele dizia elegantemente, carolas. Quando, há tempos, Madame Norand encontrara o doutor Brennier em casa de uma de suas amigas, livre-pensadora, livre -pensadora, meio aparentada com ele, imaginara compreender, no decorrer da palestra, que o médico tinha idéias semelhantes às de sua hospedeira. Em todo o caso, pelo jeito parecia que ele havia mudado desde então. Suas f ilhas eram militantes e em Paris ocupavam-se de várias obras católicas. Em pouco, esse lar representava justamente o contrário, pelo menos sob sob essa denúncia secreta, secreta, daquilo que fora desejado para Anabela. Mas como afastá-la, agora que fora f ora confiada aos cuidados do doutor Brennier? Não era coisa possível. Entretanto, seria fácil f ácil espacejar as visitas. Anabela, aliás, por iniciativa própria parecia a isso disposta. Com sua natureza indiferente, por certo estaria pouco sujeita a ser influenciada pelas opiniões religiosas das filhas do médico. A tesoura de poda, manejada por por mão um tanto nervosa, fez cair duas duas rosas cor de nácar na cesta de Madame Norand. Esta, alguns passos adiante, parou defronte de uma profusão de peônias brancas e pôs-se a observá-las distraidamente. Seu pensamento estava longe. Cismava: "Essas relações não persistirão durante muito tempo. Dentro de um ou dois meses, Anabela estará casada, e duvido que Rogério consinta que sua mulher mantenha relações com os moradores de Vigne-Rouge, cujas opiniões políticas são inteiramente contrárias às suas." De sorte que não ficou f icou nenhuma inquietação no espírito da avó de Anabela, enquanto prosseguia ao longo dos canteiros, à procura de flores que lhe agradassem. Na sombra do velho teixo, a moça sonhava, com o trabalho sobre os joelhos. Uma espécie de sorriso amargo, um tanto irônico, entreabria-lhe os lábios. Um desafio
brilhava nos olhos que seguiam a silhueta forte de Madame Norand. A moça pensava: "Uma vez que receia a influência de minhas vizinhas, é porque essa influência é boa para mim. Agora, já não estou sozinha no mundo. E, se eu quiser, ficarei conhecendo essa religião que foi a de minha mãe, a qual parece proporcionar tanta felicidade aos Brennier. Uma impressão de desforra lhe aquecia a alma, ao mesmo tempo que lhe comunicava certa tranquilidade, com a decisão que acabava de tomar: "A partir de amanhã, voltarei a Vigne-Rouge".
Capítulo VIII
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TRANSFORMAÇÕES
O doutor Brennier estava de saída, para o seu quotidiano passeio a pé, quando Anabela, no dia seguinte, transpunha transpunha o portãozinho de sua casa. casa. Ele parou e estendeu-lhe a mão, examinando cuidadosamente aquele rosto fino, mas um pouco alterado. — Hum! O seu aspecto não é bom, minha filha. Sente-se mais fatigada? Ou então teve alguma contrariedade? — Não... como de costume, doutor. A resposta evasiva não satisfez satisfez o doutor Brennier, que pensou: pensou: "Minhas filhas farão com que ela se abra." Sorrindo, acrescentou em voz alta: — Você encontrará Antonieta na salinha de estar. Regina e Danielle foram à granja de Nouzac, para comprar um frango. f rango. Acompanhou-as um hóspede que nos chegou esta manhã, o filho do meu melhor amigo, e amigo de infância de meu filho mais velho e de Antonieta, quase da mesma idade : o capitão Trézeau. O médico afastou-se depois de amistosamente ter apertado a mão da moça, sem que notasse o vinco que acabava de formar-se em sua fronte. A notícia dessa presença presença estranha contrariou Anabela, um tanto tanto selvagem em virtude de sua vida solitária. Suas primeiras relações com as filhas do médico lhe haviam custado muito, sem que isso lhe transparecesse. Agora, aquela amizade franca, discreta, havia de causar-lhe grande falta, se lhe fosse tirada. Quanto a Roberto Arlys, parecia-lhe, coisa estranha, que sempre fora de seu conhecimento. Mas este capitão Trézeau... Certa vez Danielle lhe pronunciara o nome na sua frente. Segundo lhe dissera, di ssera, tratava-se de um rapaz folgazão, de uma amabilidade sem par. Mas Anabela pouco se importava com a alegria, com o riso. A sua alma era demasiado pesada, demasiado carregada de fadiga e de angústia. Na salinha de estar, tão acolhedora com seus cretones estampados de flores e seus móveis fora da moda, herança de antepassados, Antonieta cosia perto da porta janela entreaberta. No tapete, brincava brincava a pequena Michelle, que se levantou levantou para que Anabela a beijasse. — Impediram-na de vir ontem, querida amiguinha? — indagou Antonieta, apertando demoradamente a emagrecida mão. — Impediram-me, não! A sinceridade arrebatou-a e afastou-lhe o pretexto pretexto que havia preparado. — Passei por uma terrível fase de desânimo e dizia comigo mesma que nada poderia libertar-me da tirania de minha avó e que era inútil que as incomodasse com a minha triste pessoa, com os meus padecimentos... — Incomodar-nos? Oh! Anabela!
Antonieta envolveu com os braços os ombros da moça, moça, fê-la sentar-se ao pé de si e obrigou-a a nela recostar a sua cabeça loura. — Sentimo-nos tão felizes de ser-lhe úteis, de vê-la renascer para uma vida normal! Querida amiguinha, verdadeiramente, acaso você pode pensar... ? — Não, não, eu não penso! De repente, lágrimas deslizaram das pálpebras, ao longo daquelas faces tão brancas! Era a primeira vez que Antonieta via Anabela chorar. — Sinto que vocês todas são sinceras, que todas se interessam verdadeiramente pela desgraçada que sou. Mas o meu coração está exasperado, sente-se mau... — Quer fazer o favor de não falar mais assim? Um coração mau, você? Ah! tenho absoluta certeza de que, justamente o contrário, ele é todo bondade, todo ternura. — Outrora, talvez fosse... quando eu era uma criança que chorava em segredo todas as noites, porque ninguém a havia acariciado, ninguém lhe havia dito uma palavra de afeto. Depois, partiram-no, gelaram-no... — Mas não hoje, minha pequena Anabela. Ele já renasce, já se aquece. Você não tem essa impressão? — Não sei... Talvez sim... O rosto que se encostava no ombro de Antonieta, estremeceu um bocadinho. — Você verá, dentro de pouco tempo, que sua saúde moral e física ficará inteiramente restabelecida. Vamos, espante todas essas maldosas borboletas que vieram incomodá-la, que lhe deram esse aspecto de cansaço. Vou dizer a Roberto para levar-nos a algum bom passeio, a fim de que volte um pouco do rosado a esse rosto. Os cílios feitos de uma tão fina e loura l oura seda, agitaram-se sobre os olhos azuis, ainda brilhantes de lágrimas. — Minhas irmãs estão em Nouzac — continuou Antonieta. — Estávamos um tanto desprevenidas para o jantar, porque inopinadamente nos chegou um novo hóspede... — Sim, o doutor me disse. Encontrei-o no portão. Trata-se de um amigo de infância, não é verdade? — Sim, um excelente amigo. Anabela, que nesse instante instante ergueu os olhos para Antonieta, Antonieta, maquinalmente notou que aquele rosto, um pouco fanado, parecia remoçar e que o olhar tinha desacostumada vivacidade. — Há muitos anos que ele se achava em Marrocos e não tivemos mais ocasião de vê-lo. Agora, creio que vai ficar em França. A pequena Michelle, abandonando abandonando os brinquedos, brinquedos, aproximou-se de Anabela. Esta fê-la sentar-se sobre os joelhos e pôs-se a acariciar-lhe os cabelos castanhos. Nesses seus modos para com as crianças, havia um certo desajeito e ao mesmo tempo uma espécie de contida ternura. As amigas já o haviam notado, o mesmo sucedendo a Roberto. A fibra maternal nela devia existir. Pouco a pouco, da ganga em que a encerrara Madame Norand, sairia uma Anabela viva, amorosa, ressuscitada. — Deixo-a momentaneamente, minha querida Anabela — disse-lhe Antonieta, levantando-se. — Vou dizer a meu primo para preparar o carro, e entretempo passarei um outro vestido. Tenho algumas compras para f azer em Uzerche e será esse o objetivo do nosso passeio. Quando mademoiselle Brennier voltou a salinha de estar, ali encontrou Roberto em palestra com Anabela. Contava-lhe o histórico da pequena vila de Uzerche, que ela somente conhecia por ali ter passado de carro com Regina e Danielle. De sorte que,
um pouco mais tarde, ele lhe fez ver as antigas casas com torrezinhas e a velha igreja romana, mostrando-se o mais interessante dos guias e sabendo entremear à sua erudição o detalhe pitoresco, a nota emotiva ou espiritual. No regresso, os excursionistas se detiveram no lugarejo de Saillant, levantado em agreste garganta formada pelo Vézère. O tempo estava cinzento, o ar um tanto pesado. Mas Anabela sentia-se mais vivaz que por ocasião da partida de VigneRouge, e, de quando em quando, um sorriso assomava a seus lábios e comunicava aos olhos desacostumado brilho. A uma centena de metros da Vigne-Rouge, Vigne-Rouge, o torpedo guiado por Roberto, Roberto, foi alcançado por um outro carro, em cujo volante se achava um moço louro, para quem Anabela ainda era desconhecida. A seu lado estava sentada Danielle. Regina sentava-se no banco traseiro. — O nosso amigo Marcelo Trézeau! — exclamou Antonieta. Os dois carros pararam no pátio da Vigne-Rouge, e depois que Regina e Danielle abraçaram Anabela, apresentaram-lhe o novo hóspede. Era um rapaz alto e forte, de fisionomia um tanto rudemente talhada, tal hada, mas que agradava pelo olhar franco, alegre e malicioso. Anabela pensou que o moço lhe seria, sem dúvida, simpático. Depois, pediu licença a todos e voltou depressa para Maison-Vieille, pois que acabavam de soar seis horas e meia. No vestíbulo, cruzou com Madame Norand que descia. A avó atirou-lhe rápido olhar, e perguntou-lhe: — Por que volta tão tarde? — Fizemos um grande passeio, vovó. — Por isso é que está com bom aspecto? Madame Norand notou aquela tez um tanto rosada, e aquele brilho dos olhos azuis que Anabela não tivera tempo de encobrir com a sombra dos cílios, como era de seu costume quando na presença da avó. — Onde você esteve? — Em Uzerche. Na volta, paramos em Saillant, para ver a garganta, e ali merendamos. Madame Norand deu um passo, com o intuito de afastar-se. Depois, voltando-se ligeiramente, disse com o mesmo tom breve: — Dentro de dois dias espero a visita de um amigo. Arranje do melhor modo possível o quarto dos Magos. Diga a Josefina que fale com o peixeiro para trazernos trutas, a fim de que as tenhamos para o jantar desse dia. — Está bem, vovó. E pensou: "Sem dúvida, é esse senhor Marnel." No dia seguinte Roberto Arlys confirmou a suposição, dizendo-lhe que recebera um recado do escritor-explorador. — O senhor bem vê — disse Anabela no antigo tom de amargura — eu lhe predisse como tudo se passaria. Nem mesmo julgaram acertado dizer-me o nome de quem vinha. A seus olhos, eu sou menos que uma criada, pois Mélanie e Martim sabem que é esse o hóspede esperado. Regina, sentada a seu lado, passou-lhe acariciante mão sobre os cabelos louros. — É uma coisa triste para você, querida amiguinha. Mas é preciso não conservar, para com sua avó, esse ódio que se adivinha em seus olhos. Logo saberá perdoar lhe... — Perdoar-lhe? Anabela endireitou-se toda, com o olhar olhar endurecido, o corpo fremente: — Nunca! Nunca! Ela me fez muito mal... e me detesta!
Regina sacudiu a cabeça. Sua mão deslizara sobre o ombro de Anabela e aí levemente se apoiara. — Você saberá perdoar. E há de saber, também, que essa mulher, com uma tal natureza, talvez seja muito infeliz. — Infeliz?... ela? Não, por certo não! Ela tem satisfações de orgulho, que lhe bastam, porque não possui coração! — Quem sabe! — murmurou Regina. Anabela olhou-a com surpresa, mas não disse palavra de protesto. protesto. Antonieta lhe confiara, certa vez, que a irmã mais moça era dotada de particular dom de observação, posto à prova por uns e outros. Naquela tarde, como chovesse, ficaram em casa. Marcelo Trézeau animou a pequena reunião com o seu espírito, inventando jogos para o Luiz e a Michelle, contando anedotas que provocavam o riso de todos, t odos, até da melancólica Anabela. Sim, Anabela ria-se hoje, levemente, com uma espécie de receosa reserva, como uma pessoa não habituada à alegria, a um pouco de expansão jovial. Regina e Roberto tocaram música. Danielle serviu o lanche, feito exclusivamente por suas ágeis mãos e pelas de Antonieta. A irmã mais velha ainda conservava o semblante rejuvenescido e o olhar mais vivo ainda do que Anabela notara na véspera. Aquela fisionomia séria, pensativa, em que os cuidados de uma existência toda devotada aos seus haviam deixado o seu sinal, parecia transformada por alguma secreta felicidade. Danielle, que trazia um vestido cor de rosa adequado à sua epiderme morena, parecia mais alegre, mais viva ainda ai nda que de ordinário. Sustentava espirituosa diversão com Marcelo e ambos discutiam do modo mais agradável possível. O doutor Brennier veio reunir-se ao pequeno grupo, e a palestra tomou um tom mais sério. Ele interrogou Marcelo a respeito de Marrocos, de sua vida nos postos onde passara alguns anos. Anabela escutava com interesse. Em pouco, sentiu esvair-se aquela indiferença por todas as coisas, que teria feito dela um ser inerte, sem vida interior, sem pensamento. Quando deixou Vigne-Rouge, Danielle, Roberto e Marcelo acompanharam-na até Maison-Vieille. De regresso para a casa do médico e depois de se terem despedido, Trézeau observou para os companheiros: — É extraordinariamente linda, essa moça. Mas vocês a representaram para mim como uma pobre e melancólica criatura; ora, achei-a quase alegre, hoje. Danielle sorriu ao responder: m ês atrás, — Sim, está mudando, a nossa Anabela. Se você a visse há um mês Marcelo... Roberto olhou distante para a luz ainda viva do horizonte em que o sol se punha. E repetiu consigo mesmo: — Está mudando, a nossa Anabela. E seus lábios firmes se entreabriram num sorriso de felicidade.
Capítulo IX
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ANTIPATIAS
No dia seguinte, quando estava para findar-se findar -se o almoço, Madame Norand disse à neta: — Anabela, vista-se ali pelas três horas, para sair comigo em visita a Madame Brülard, que deseja conhecê-la.
Se Anabela tivesse recebido essa ordem algumas semanas antes, provavelmente a teria acolhido com aquela aparente passividade, que se lhe tornara armadura. Mas hoje, ao dar a sua habitual e lacônica resposta, encontrou certa dificuldade em dissimular sua surpresa é contrariedade. Surpresa, porquanto nunca Madame Norand a levara à casa de pessoas de suas relações. Contrariedade, porque essa visita iria privá-la de passar a tarde em VigneRouge. Até então, nunca vira a mãe do proprietário de Bournizel. Bournizel. Somente a sabia enferma, já há alguns anos, e que não saía saía de casa. Bournizel achava-se a três quilômetros de Maison-Vieille. Madame Norand e Anabela fizeram esse trajeto sem trocar uma uma só palavra. Ao depois de atravessarem atravessarem um castanhal, o portão de Bournizel lhes apareceu, numa grande avenida de faias. Além se estendia a casa, baixa baixa e comprida, recoberta de reboco cinzento. cinzento. Em seu teto de telhas novas passeavam pombas. No pátio bem arenoso, um cão de caça acolhera os visitantes com alguns latidos. — Cale-se, Loudo! — ordenou uma voz de mulher. No limiar da porta apareceu uma criada. A seu convite, Madame Norand e Anabela entraram num vestíbulo ladrilhado, depois num grande aposento que dava para outra fachada. Perto de uma porta envidraçada e aberta, Madame Brülard estava sentada numa poltrona em que se acomodava toda a sua gordura. O seu rosto era largo e descorado, os olhos negros e inquiridores, os quais logo descobriram Anabela. Esta, durante todo o tempo da visita, sentiu-se examinada, medida pela estranha que, desde o primeiro contacto, lhe parecera tão antipática como o próprio filho. Madame Brülard não lhe dirigiu, em absoluto, a palavra. Entreteve-se em palestra com Madame Norand a respeito de trabalhos caseiros, criação de galinhas, trato de jardim. Anabela teve a impressão que a avó estava excessivamente excessivamente aborrecida. Depois, apareceu Rogério Brülard. Ele se pôs a falar de política, das recentes eleições para senador. Anabela conservava as pálpebras semi-abaixadas, para não encontrar aquele olhar insistente, de contínuo nela fixado. Abundante lanche foi servido, depois do que a moça viu, com alívio, Madame Norand levantar-se para despedir-se. Todavia, ainda não conseguira livrar-se de Brülard, que insistiu em levá-las de carro para Maison-Vieille, e Madame Norand acabou aceitando. Quando as deixou no pátio de Maison-Vieille, ele recebeu um convite para jantar, na semana seguinte. — Preciso ainda vê-lo durante uma hora! — pensou a moça com aborrecimento. E hoje, por causa dessas antipáticas pessoas, Anabela perdera sua tarde, perdera algumas horas de expansão, de tímida alegria perto de suas amigas, que dia a dia se lhe tornavam mais queridas. Bem no fundo de seu coração, uma voz acrescentou: "E perto de Roberto Arlys." Feliciano Marnel chegou no dia seguinte, à tarde, em seu carro guiado por um rapaz anamita, que há vários anos o acompanhava em todas as suas longas viagens. O frio semblante de Madame Norand alumiou-se à sua vista. Ela o esperou no limiar do sombrio vestíbulo de Maison-Vieille, com as duas mãos estendidas para o hóspede. Este as tomou e apertou-as longamente. — Venho perturbar sua solidão, minha querida Sílvia. Mas tenho tanto prazer em passar alguns dias a seu lado, nesta velha casa que me recorda os bons anos de minha mocidade! — Alguns dias! Você está gracejando, meu amigo. Conto conservá-lo durante muito mais tempo, a menos naturalmente que se aborreça.
— Oh! não sou homem que me aborreça! O trabalho, o passeio, algumas boas
palestras bastam para fazer com que eu ache curtos os dias. Mien, vá guardar o carro. Marnel indicou a garage que ocupava em parte o lado direito do pátio. — E saiba, querida amiga, que é o bastante ordenar-lhe que faça o que quer que seja, pois é hábil em tudo e, além disso, bastante serviçal. — Nesse caso, meus velhos criados vão abusar... Venha, Feliciano, vou levá -lo ao seu quarto. Mandei preparar-lhe o dos Magos, aquele de que outrora você gostava. — O que dá para o riacho? Lembro-me perfeitamente. Sim, eu desejava que esse ruído ininterrupto embalasse o meu sono. Conversando, Marnel acompanhava sua hospedeira no vestíbulo. Depois, subiram a velha escadaria, seguiram um corredor escuro e finalmente f inalmente entraram num grande aposento recoberto de tapetes que representavam a adoração dos Magos. — É este, meu amigo. Espero que nada lhe faltará... — e Madame Norand circunvagou o olhar investigador — Esta casa não é dotada do moderno conforto. Mas um viajante, como você, está habituado a tudo. — Sem dúvida! Aqui ficarei principescamente instalado. A que h oras você janta, Sílvia? — Às sete. Você me encontrará na galeria, onde fiz o meu gabinete de trabalho. Lembra-se do lugar onde fica? — Creio que sim. Nada esqueci da velha casa... E sua netinha, como vai? A fisionomia que estava levemente levemente animada, pareceu de repente endurecer-se. endurecer-se. — Você a verá daqui a pouco. Adoeceu e fi-la tratar pelo doutor Brennier. Agora, está melhor. Mas habituou-se a ir quase todos os dias à casa dos nossos vizinhos, o que em absoluto não me convém, porquanto aquelas moças não receberam educação idêntica à sua. Marnel reteve esta réplica: "Felizmente!" " Felizmente!" Madame Norand prosseguiu, com voz que se tornara seca: f orma, por causa do doutor que asseverava que — Todavia, não pude agir de outra forma, Anabela tinha necessidade necessidade de distrair-se. — Creio que ele tinha razão, Sílvia. Cumpre não levar tais princípios muito longe. Não conheço as filhas do Brennier, Br ennier, mas o pai, com quem me encontrava sempre quando éramos ambos moços, era um homem dotado de grande senso, de indiscutível valor moral e um excelente médico. Você pode fiar-se nele. — Nesse ponto, sim. Mas suas filhas fi lhas são católicas militantes. Felizmente, com a natureza de Anabela, creio que isso não oferece inconvenientes. Ela não se interessa por nada e não parece mesmo muito interessada em ir à casa de nossos vizinhos... Bem, vou deixá-lo, Feliciano. Até logo. Quando Marnel desceu, um pouco mais tarde, encontrou Madame Norand sozinha na biblioteca, sentada à sua escrivaninha, sobre a qual apoiava o cotovelo. Impressionou-o aquela expressão de cansaço. — Está cansada, Sílvia? — Momentaneamente, sim. Não sou mais uma moça, meu caro amigo. No próximo mês completo sessenta e oito anos. Mas ela já se endireitara, retomara o aspecto firme, altivo. — Venha jantar. Mélanie lhe preparou um "páté" a seu gosto. Cumprimente-a se o prato saiu como você gosta, porque ela é muito sensível a louvores. Na sala de jantar, Anabela e sua tia estavam de pé, perto da mesa. Madame Norand apresentou-as brevemente. — Misse Steverson... Anabela Steverson.
Depois, sentou-se, enquanto seu convidado se inclinava diante de Graça Steverson e, em seguida, de Anabela. Ele disse dirigindo-se a esta última: — Em Paris, apenas a vi senhorita. Agora sinto-me feliz por poder conhecê-la bem. — Também eu senhor. Madame Norand voltou a cabeça para o lado da neta. O tom dessa resposta de todo em todo diferente do costumeiro, evidentemente a surpreendeu. Não era mais aquela voz morna, indiferente; algo de vivo, de palpitante por ele perpassara. A vida... Madame Norand notara-a, aquela noite, noite, naqueles olhos cor de violeta, enquanto Anabela, de seu lugar na extremidade da mesa, escutava a palestra cheia de "verve" de Marnel, respondendo às perguntas de sua hospedeira sobre os seus trabalhos em andamento. — E tu amiga, que fazia aqui? A que obra se dedicava? — Acabei um trabalho que por certo não lhe agradará, Feliciano. Você vai acusarme ainda de apresentar a vida sob as mais sombrias cores. Mas só a vejo dessa forma, já há muito tempo. — É um erro. Ela oferece uma outra face, que merece ser considerada... Por aqui, você não tem algumas amizades? Os seus vizinhos, Brennier, principalmente? — Pessoalmente, nunca os vejo. Além disso, não faço nenhuma visita na vila, a não ser uma ou duas a Madame Brülard, uma senhora doente, mãe do proprietário de Bournizel. — Ah! Bournizel... Lembro-me. Havia um senhor Brülard, que era um grande caçador, um excelente copo e cujas garrafas vazias se contavam. — Era o pai de Rogério. Este é mais sério, cuida admiravelmente de sua propriedade, que lhe oferece excelentes lucros. Eu os apresentarei, qualquer dia. — Com muito prazer, cara amiga. As filhas desse excelente doutor lhe agradam, senhorita? Ultimamente, fizeram-lhes um grande elogio em casa de uns amigos meus, parisienses. O hóspede dirigiu-se a Anabela, num bondoso sorriso. Ela respondeu com sua voz um tanto vagarosa, mas em tom mais firme: — Agradam-me muito. — Tanto melhor, tanto melhor. Atualmente, deve encontrar-se entre elas um seu primo, de nome Arlys, não? — De fato, lá se acha. Madame Norand perguntou bruscamente: — Seu primo? Elas têm um primo em sua casa? — Têm-no. Roberto Arlys, um esplêndido rapaz, advogado de grande f uturo, uma inteligência privilegiada e um coração muito nobre. Seu pai era meu amigo íntimo e sempre mantenho com esse rapaz as melhores relações, principalmente por correspondência, pois há alguns anos que não nos vemos. Madame Norand voltou-se para a neta: — Você não me falou desse primo, hein, Anabela? No tom de sua voz notava-se um descontentamento apenas contido, que não escapou a Marnel. — Não me ocorreu falar-lhe, vovó. Os olhos azuis que inda há pouco pousavam em Marnel com melancólica doçura, retomavam sua frieza, escondiam-se sob as pálpebras. Madame Norand não disse palavra. Mas uma ruga surgiu em sua testa e lentamente é que se desfez.
Capítulo X
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FUTURO MARIDO
— Quer acompanhar-me, Sílvia, numa visita aos seus vizinhos? — Como não, meu amigo.
Depois da declaração feita, na véspera, por Madame Norand, Marnel ficou bastante surpreso ante a resposta àquela pergunta, que ele lhe dirigira por simples polidez. Mas nada deixara transparecer e retorquiu amavelmente: — Tanto melhor. Será um prazer para todos. — Duvido muito. Não devemos ter muitas idéias comuns, os Brennier e eu. Mas pensei, mesmo, em fazer-lhes hoje uma visita. O doutor tratou de Anabela e devolhe agradecimentos, em lugar de honorários que sem dúvida não aceitará. — Certamente que não. Ele procedeu como amigo, como bom vizinho. — Isso me é desagradável, desagradável, devo confessar-lhe, Feliciano. Mesmo Mesmo porque a minha minha intenção é de diminuir as relações entre Anabela e as Brennier. Receio que, com o tempo, exerçam sobre ela má influência. — Vejamos, o que você imagina nesse sentido? São pessoas inteiramente de bem... — As suas idéias não são as mesmas, repito-lhe. Além disso, tenho certeza que essas relações seriam desagradabilíssimas ao futuro marido de Anabela. — Ao futuro marido? Marnel encarou Madame Norand, vivamente surpreendido. — Você vai casá-la? — Sim, meu amigo, com Rogério Brülard, o dono de Bournizel. É homem de seus trinta e cinco anos, dotado de esplêndidas qualidades e de uma bela fortuna. Ele deseja mulher que entenda do amanho da casa, e que possa substituir a mãe enferma... — E Anabela, que diz desse projeto? Aquela fisionomia fria pareceu mais ainda ainda endurecer-se. — Ainda não lhe falei sobre o assunto. Dentro de pouco tempo dar-lhe-ei conhecimento de minha decisão e ela ficará fi cará noiva. O casamento provavelmente se realizará em setembro. Marnel com dificuldade pode conter-se. Com forçada calma, ele prosseguiu: — Mas, você não vai auscultar-lhe o gosto? Madame Norand respondeu friamente: — Ela não terá outro gosto que não seja o meu. Marnel pensou: "Creio que seja justamente o contrário!" Mas não insistiu no assunto, compreendendo que encontraria inabalável obstinação. "Como reagirá a moça?" pensava ele, durante o almoço, observando o rosto delicado, um pouco mais pálido ainda, a boca melancólica melancólica e aqueles olhos de nuança tão encantadora, cuja expressão de interesse o ferira, quando lhe encontrara o olhar enquanto palestrava com Madame Norand sobre trabalhos recentemente aparecidos. Não, aquela moça não parecia ser a criança passiva, de quem a avó dizia: "Ela não terá outro gosto que não seja o meu". Tanto melhor se assim fosse, porque, na verdade, o despotismo e a injustiça de Silvia para com a neta, o revoltavam, a ele, o seu melhor amigo. Anabela, pouco depois do almoço, partiu para Vigne-Rouge. Fora incumbida, incumbida, por Madame Norand, de anunciar para um pouco mais tarde a visita que, justamente com seu hóspede, iria fazer.
— Ah! o magnífico Marnel! Estou contente por vê-lo! — disse o médico, esfregando
as mãos. Vocês têm um bom lanche para oferecer-lhe, minhas filhas? Outrora, ele gostava imenso de comer e comer bem. — Mas deve ter comido tanta coisa ruim durante as suas viagens, que o seu gosto agora não é assim tão fino. — replicou, rindo-se, Danielle — Como quer que seja, fique tranqüilo papai, pois que há um pão genovês, feito por Regina conforme as melhores receitas, e tenho guardadas certas coisinhas feitas no forno, à minha moda, a respeito das quais o senhor me dirá qualquer coisa, mais tarde. — Não me ponha água na boca, pois sou capaz de assaltar o seu armário de provisões! — exclamou Marcelo Trézeau. Você não ignora que o meu defeito principal é a gulodice... — Você não tem vergonha de exibir-se, meu caro? Que coisa horrível! Pois se é assim, venha comigo procurá-las, e talvez eu lhe permita provar uma, para que me dê a sua opinião. Ambos se afastaram, risonhos, risonhos, animados. Anabela, que nesse nesse instante se voltava para Antonieta, surpreendeu-lhe o olhar seguindo o alegre par, um olhar de angústia, um pobre olhar de inquietude. Mas pareceu-lhe estar sonhando quando, segundos depois, notou um sorriso nos lábios da irmã mais velha. Regina levou Anabela até o galinheiro, par a mostrar-lhe uma galinha Leghorn que acabava de comprar. Antonieta e ela se interessavam muito por criação, e Anabela, que ajudava Josefina em Maison-Vieille, começou a parti lhar desse gosto. Roberto acompanhava-as. Alegremente ele se dizia ignorante no a ssunto, mas desejoso de instruir-se. — Creio que você jamais se interessará muito nisso, meu amigo — retorquiu Regina — Parece-me que gosta do campo como poeta. — Talvez tenha razão, Regina. Não obstante, é um modo esplêndido de gostar... Não acha, senhorita? Seu olhar risonho envolveu o jovem rosto, ao qual subia um leve l eve rubor. Anabela apoiou-se no tronco de uma velha acácia e seguia com o olhar distraído as aves que se alimentavam, a alguns passos de distância, d istância, no seu cercado de grades. Ela ergueu os olhos para Roberto, uns olhos inteiramente iluminados de pensativa doçura. — A meu ver, de fato é um excelente modo. Mas é preciso que a gente tenha um outro, mais prosaico. — Quando se juntam os dois modos, como às vezes acontece, creio que se atinge a perfeição. Não seria esse o seu caso, senhorita? Anabela respondeu com com simplicidade: — É verdade, sinto grande atração pelas ocupações do campo, e ao mesmo tempo parece-me que compreendo, que lhe aprecio o encanto, a poesia. Com o acariciante braço, Regina envolveu o pescoço de Anabela. — Querida amiguinha, quantas vezes você nos disse que tudo estava morto para você! Que erro! Não, não. Tudo reflorirá, tudo está prestes a reflorir. Os cílios louros agitaram-se um pouco sobre os olhos que o emocionado olhar de Roberto não deixava. Anabela murmurou: — Parece-me, sim... agora creio... Regina sentiu estremecer, de encontro ao seu corpo, o delgado corpo da amiga. —Pois eu... Regina, um dia destes perguntei a minha tia se fui batizada. Ela me respondeu afirmativamente. Pois bem, o meu maior desejo é conhecer essa religião que é a minha, que é a sua e que me pareceu tão linda, tão consoladora, através das páginas que você leu para mim.
Regina trocou um olhar de felicidade com o seu primo. Depois, beijou a testa de Anabela. — Querida amiguinha, o seu desejo é uma grande alegria para nós. Essa graça, nós a pedimos todos os dias após tê-la conhecido. Não é verdade que todos nós a pedimos, Roberto? — Todos — respondeu aquela voz quente e máscula, que tão profundamente emocionava Anabela. Eles se demoraram por alguns momentos, ainda, no jardim. Regina e Roberto falavam de alegrias espirituais, deixando entrever o discreto apostolado que exerciam em seu redor, cada um na sua esfera de influência. i nfluência. Anabela escutava, atentamente, com uma espécie de contido ardor em seu olhar. Depois, todos os três se dirigiram para o lugar onde se encontrava o resto da família. Madame Norand e seu hóspede acabavam de chegar. O médico apresentou -lhes Marcelo Trézeau no instante em que apareciam Regina, Anabela e Roberto. Madame Norand examinou, com um golpe de vista, o jovem advogado, depois voltou o seu olhar para o rosto corado, os olhos brilhantes de sua neta. Os lábios se lhe crisparam e as rugas do rosto pareciam ainda mais fundas. — Muito prazer em revê-lo, meu caro Roberto! — disse-lhe cordialmente Marnel. — Sílvia, apresento-lhe uma das futuras celebridades do Tribunal. Roberto recentemente teve ocasião de entrever Madame Norand, quando ela passava pelo caminho defronte a Vigne-Rouge. À vista daquele perfil duro, daquela boca cerrada, ele pensou: "De fato, deve ser dotada de uma natureza implacável... ou, então, é uma mulher que sofreu horrivelmente". Vendo-a de perto, essa primeira impressão se consolidou diante daquele rosto com tonalidades de marfim, de traços endurecidos e de olhar que friamente nele pousava, enquanto uma frase de polidez caía dos lábios pálidos que se descerravam com desprazer, ao que parecia. Logo à primeira vista, ele teve a intuição de que lhe era antipático. O sentimento , aliás, era recíproco. Roberto via naquela senhora a pessoa que, não sabia por que aberração, causara sofrimento àquela encantadora Anabela e ainda a mantinha sob a sua tirania. Secreto antagonismo levantava um contra o outro, aqueles dois seres, no primeiro minuto de seu encontro. A despeito da cordialidade de Marnel, Marnel, da jovialidade de Marcelo Trézeáu, Trézeáu, a refrigerante presença estragou a pequena reunião. Roberto não falava e Anabela permaneceu completamente silenciosa, como se a presença de sua avó a paralisasse. Entre seus dedos, conservava uma rosa cor de rubi, que Roberto inda há pouco lhe colhera. Quando Madame Norand se levantou para despedir-se, ela se afastou um pouco do grupo e ficou f icou imóvel, com os olhos voltados para a profundeza ensolarada do jardim, enquanto os visitantes trocavam palavras de despedida. — Então, Anabela, que faz? Já estamos de volta. Aquela voz seca fê-la estremecer. Voltando Voltando a cabeça, deu alguns alguns passos em direção a Madame Norand. Regina protestou: — Oh! Madame, por que não nos deixa Anabela? Não é tarde. Vamos dar um pequeno passeio... — Sinto muito, mas ela tem trabalhos que fazer em casa. Anabela fez um ligeiro movimento, o rosto rosto animou-se, os lábios se entreabriram. Durante alguns segundos, Regina e Roberto, que a olhavam, imaginaram que ela ia replicar. Mas a boca se fechou, e os olhos, por alguns instantes iluminados por uma luz que parecia indício de revolta, readquiriram sua expressão de indiferença.
As moças, Roberto e Marcelo Trézeau Trézeau acompanharam os visitantes visitantes até o portão do jardim. Regina momentaneamente se eclipsara. Reapareceu logo, logo, saindo da casa e, enquanto Madame Norand trocava algumas palavras com o médico, enfiou um livrinho entre os dedos de Anabela. — É um Evangelho, querida Anabela — disse-lhe, baixinho. Leia algumas linhas, em cada dia. — Obrigada — murmurou Anabela. Quando Madame Norand se voltou para dizer um breve adeus às três moças, o livrinho já havia desaparecido na bolsa de trabalho que a neta trazia tr azia suspensa no braço. — Até amanhã! — disse alegremente Danielle. — Até amanhã. — repetiu Anabela. E os seus lábios se abriram num ligeiro sorriso para a sagacidade de seus amigos, talvez principalmente para a daquele que a olhava com tanta doçura e emotividade. — Hum! Nem um pouco comunicativa, a avó! — observou Marcelo Trézeau, quando os visitantes estavam suficientemente afastados. — É bem a autora de seus livros — acrescentou Danielle. — Como eu sentiria prazer em dizer-lhe o que fez dessa pobrezinha! Regina observou, em ar pensativo: — Receio que ela lhe cause, ainda, alguma tristeza. Como viram, impediu-a de aqui ficar, como de costume, sob um pretexto qualquer. — Ah! Nesse caso, é preciso ver o que lhe acontece! — exclamou Danielle. — Roberto, trate de falar o mais cedo possível com o senhor Marnel, para qu e se possa libertar essa infeliz criança. — Sim, falar-lhe-ei amanhã de manhã, pois que juntos devemos dar um passeio. Já é tempo, já é mais do que tempo, de fato, de subtraí-la a esse jugo... De si para consigo, ele acrescentou, com um estremecimento de alegre e sperança: "E de torná-la feliz."
Capítulo XI
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CORAÇÃO GELADO
Durante o passeio que fizeram juntos, Marnel e Roberto conversaram principalmente a respeito de Anabela. Marnel conveio que sua amiga agira, em relação à própria neta, d e maneira verdadeiramente inconcebível! — É uma natureza que leva tudo ao extremo. Amou loucamente a filha, sofreu imenso por causa dela e, depois, descarregou toda a miséria de suas desilusões sobre a neta. Injustiça cruel, você dirá. Sou do mesmo parecer. Aquele coração, em extremo apaixonado por um único objeto que em certo dia lhe faltara, fechou-se e gelou-se. Aquele espírito cedeu a uma aberração que, desgraçadamente, desgraçadamente, resultou na infelicidade de uma inocente criança. Como você, meu caro Roberto, eu creio que é tempo de agir, se quisermos salvar, ao mesmo tempo, a alma e o corpo dessa encantadora Anabela. — Sim, encantadora. — repetiu a voz trêmula de Roberto. — Uma alma pura, leal, um coração que subitamente desabrochará, estou certo, logo que sentir o calor da afeição. Marnel parou, volvendo o olhar para o seu companheiro. — Roberto, você a ama? — Sim, amo-a. Ontem é que compreendi isso. — Quer desposá-la? — É o meu mais caro desejo.
— A avó quer casá-la com um senhor Brülard.
Roberto teve um estremecimento. — Com Brülard? O proprietário de Bournizel? — Ele mesmo. Conhece-o? — Somente de vista. Meu tio não mantém relações com ele. Sob o ponto de vista político, as suas idéias são avançadas. Além disso, é um anticlerical notório. Diz-se, também, que é um grande "viveur". À primeira vista, esse rapaz gordo e bastante vulgar me causou verdadeira antipatia e não compreendo porque Madame Norand pensa em oferecer-lhe a mão da neta. — a indignação fazia vibrar a voz de Roberto. Marnel sacudiu a cabeça. — Repito-lhe, minha pobre amiga tem o raciocínio falseado por sua dolorosa desilusão de outrora. Vamos ver o melhor meio de chegar aos nossos fins, isto é, à emancipação de sua neta, poupando-a o mais possível. Depois disso, se você se decidir a desposar essa pequena Anabela... Mas, querido amigo, ela foi educada sem nenhuma crença. — Mas está pronta a estudar a nossa religião. Compreendemos que esse é o seu grande desejo, principalmente porque a avó a educou no ateísmo. Um dia essa pobre alma que, até então, terrivelmente ocultara os seus padecimentos, a sua fadiga da vida, abriu-se para nós num impulso de confiança. Tivemos, então, a revelação do que deveria ser a existência dessa criança, que é sensível e certamente amorosa. Isolada, sem afeição, sem ideal sobre o qual pudesse apoiarse... pobre, pobre pequena Anabela! Quase no fim do almoço, naquele dia, Martim veio comunicar. — O senhor Brülard trouxe uma cesta de cerejas. Fi-lo entrar na sala de visitas. — Convide-o para vir tomar café conosco — disse Madame Norand. E, voltando-se para Marnel, acrescentou: — Você vai conhecer o meu vizinho, Feliciano. De ordinário, no instante em que era servido o café, Anabela se levantava e deixava a sala de jantar. Mas hoje, na ocasião em que esboçara esse movimento, a avó lhe disse: — Você pode ficar, Anabela. Marnel notou, no canto dos lábios, de um rosado pálido, uma leve crispação que denotava contrariedade. "A pessoa não lhe agrada" pensou ele. Brülard entrou, jovial, satisfeito de si mesmo. Mandara colher logo de manhã, declarou ele, aquelas cerejas que Madame Norand achava excelentes, e as trouxera. Sua mãe ajuntara uma galinha bem gorda e algumas trutas. Testemunhou ao hóspede de Maison-Vieille uma cordialidade que Marnel julgou um tanto afetada. Este, desde o primeiro instante, dizia com os seus botões que compreendera a antipatia que Roberto Arlys sentia pelo proprietário de Bournizel. Antes de finda a visita, firmou esta convicção:" convicção:" Talvez não se trate de um mau rapaz, contudo, é vaidoso, muito cheio de si e de natureza vulgar, quando não de educação." E Madame Norand destinar esta linda Anabela, tão fina, a uma tal pessoa?! Que loucura! Que rematada loucura! Como sempre, Anabela estava silenciosa em presença do visitante. Este não lhe dirigia a palavra, mas Marnel notara que várias vezes o seu olhar para ela se voltara. No instante de despedir-se, Brülard voltou-se para a moça: — Minha mãe ficaria satisfeita de vê-la por estes dias, senhorita. — Ela me acompanhará amanhã a Bournizel — disse Madame Norand. — Preciso falar com Madame Brülard e com você, Rogério. Radiante satisfação transpareceu nos olhos negros de Brülard.
— Ah! muito bem! Teremos todo o prazer de sua visita, Madame.
Quando o visitante saiu, Anabela se dirigiu para a porta que, da sala de jantar, dava para o vestíbulo. A voz de sua avó deteve-a. — Hoje, você não vai a Vigne-Rouge. Trabalhe no jardim ou em seu quarto. Anabela voltou-se. Em seu olhar Marnel Marnel notou perpassar um relâmpago. relâmpago. — Aquelas moças devem levar-me a um passeio. Elas me esperam. — Josefina irá avisá-las. Marnel teve a impressão que a moça iria revoltar-se contra essa decisão. Compreendeu que ela se calava mercê de um violento esforço, o qual momentaneamente lhe transmudara a fisionomia. Sem uma palavra, voltou -se e deixou a sala. Madame Norand seguiu-a com os olhos. Uma ruga vincava-lhe a fronte. Ela se levantou, dizendo: — Vamos à galeria. Ali você acabará o seu charuto, Feliciano. Marnel seguiu-a ao longo do aposento que, bem fechado, permanecia fresco entre suas espessas paredes, mau grado o pesado calor de fora. Maquinalmente, ele se sentou defronte de Madame Norand, do outro lado da mesa onde estavam arrumados seus livros e manuscritos. — Por que você priva sua neta desse passeio, querida Sílvia? — Porque essas relações com os Brennier não me agradam. Anabela ficará noiva amanhã, e, como já tive ocasião de dizer-lhe, Rogério não verá com bons olhos tais relações. — Sílvia, você não vai entregar a pequena Anabela a esse rapaz! — E por que não? Ela o olhava com expressão de desafio. — Porque é impossível ver-se dois seres tão inadequados um ao outro! — O que você sabe a esse respeito? Conheço Anabela e sei o que lhe é preciso. Rogério é um rapaz sério... m e disseram. — Não foi isso precisamente o que me — Quem lhe disse? Pergunto a mim mesma como você pode estar a par desse assunto? Ah! Sem dúvida por qualquer dos Brennier, não é verdade? E são pessoas que estão aqui há apenas alguns meses! Aí está uma bela fonte de informações! Um misto de irritação e mofa caracterizava o tom de voz de Madame Norand. — E talvez não se sentissem aborrecidos ao fazer com que o sobrinho advogado desposasse minha neta, supondo-a dotada de uma bela fortuna, hein? — Este partido, em todo o caso, seria preferível a Anabela, em lugar do seu Brülard, minha querida amiga. — Segundo o seu ponto de vista, talvez; no meu, não. — Sílvia, você vai causar a infelicidade dessa criança... Ela ergueu a mão, num gesto imperioso. — Mudemos de assunto, Feliciano, porque não podemos entender-nos. Anabela casar-se-á com Rogério Brülard. Hoje mesmo m esmo vou fazê-la ciente de minha m inha vontade. Marnel não disse mais palavra. Compreendeu que nada do que poderia dizer-lhe mudaria a decisão daquela mulher, teimosa em seu orgulhoso erro. Mas ele pensava: "Espero que a pobre criança não se deixará levar! Além disso, estarei a seu lado para ajudá-la, mesmo com risco de brigar com Sílvia, pois de outra forma em certo sentido sou seu cúmplice".
Capítulo XII
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REVOLTA
Sentada perto da janela, a pobre moça estava inativa, olhando distraidamente o castanheiral todo sombrio sob o pesado céu de tempestade. Perto dela, numa mesinha e em pequeno vaso de faiança fai ança estava a rosa que Roberto Arlys lhe oferecera na véspera. De quando em quando, ela a olhava e seus olhos refletiam expressão de melancólica doçura. Depois, dali se desviavam e tornavam à sua habitual dureza, terrivelmente tristes. Esperavam-na em Vigne-Rouge. Dentro em pouco, vendo que ela não chegava, partiriam todos para aquela excursão a um velho castelo inclinado sobre uma rocha, por sob o Vézère. Alguns dias antes, Roberto Arlys lhe contara as origens e a história do velho castelo, cheio de legendas. Acrescentara alguns detalhes arqueológicos, com aquela erudição sem pedantismo à qual sabia comunicar tanta graça. Anabela secretamente antegozara aquela tarde, com uma intensidade de desejo que não imaginava, mas que a tornava tão diferente da moça esmagada pelo enfado, por aquela sua morna indiferença, chegada a Maison -Vieille algumas semanas antes. E todos os seus projetos, por um capricho da avó, se reduziram à amarga decepção, tão profundamente amarga que arrancava lágrimas dos olhos, agora abaixados sobre as mãos que se cruzavam e descruzavam nervosamente. Um capricho... Simples malvadez, como tantas outras. Ela receava, sem dúvida, que a neta encontrasse um pouco mais m ais de doçura naquelas relações de amizade. Queria que o aborrecimento, de novo, caísse como pesada lápide sobre sua alma que começava a libertar-se, ao lado de outras almas viventes que se agitavam, animadas por uma fé tão viva e confiante no amor daquele Deus de que ela fora afastada. A moça levantou-se, foi à secretária. Abriu-a para dali tirar o Evangelho Evangelho que Regina lhe havia dado na véspera. Talvez nele encontrasse um alívio para aquela angústia que dela se apoderava, para aquela obscura impressão de a meaça ressentida, quando a avó a proibira de ir a Vigne-Rouge. No instante em que ia folhear o livro, a porta foi entreaberta por hesitante mão, e a voz de misse Steverson provocou ligeiro estremecimento na moça. — Anabela, Madame Norand está chamando você. — Está bem, minha tia, já vou. Acentuava-se a impressão de de ansiedade em Anabela, Anabela, enquanto descia a velha escadaria. Não sabia porque, a fisionomia de sua avó, ontem em Vigne-Rouge e hoje durante o almoço, fizera-a pressentir uma contrariedade, uma secreta irritação. Por que? Ignorava. Mas todo pretexto não serviria, da parte de sua avó, para oprimir a criança que detestava? Anabela conservava conservava ainda nos lábios o vinco amargo que lhe produzira essa reflexão, quando entrou na galeria. Madame Norand estava se ntada diante de sua mesa de trabalho, com um volume aberto sob os olhos. Erguendo apenas a cabeça, disse-lhe friamente: — Sente-se. Tenho uma decisão importante para comunicar-lhe. Sobre uma cadeira, defronte à avó, Anabela sentou-se, aparentemente impassível. Mas o coração batia-lhe precipitadamente. pr ecipitadamente. t em dezoito anos. Está bem a par dos cuidados de — Penso em casá-la. Você já tem uma casa e pode ser que dê excelente dona de casa, mesmo porque será dirigida por uma sogra bastante experimentada, nesse assunto. O marido que escolhi para você é o meu vizinho, Rogério Brülard. Anabela teve um sobressalto. sobressalto. Durante um momento, o espanto deteve deteve a palavra em seus lábios. Enfim, ela repetiu, com a voz um tanto rouca: — Brülard?... Brülard?... A senhora disse?...
— Sim, Brülard, o proprietário de Bournizel. Você o conhece um pouco. É um
homem bom, sério... Anabela levantou-se com tanta vivacidade, vivacidade, que a cadeira caiu atrás dela. — Nunca! Nunca! Madame Norand por sua vez ficou sem dizer palavra. Considerava com certa estupefação esta Anabela desconhecida, que se agitava dos pés à cabeça e que a olhava com um olhar de cólera, de terrível revolta: — Eu, eu casar-me com esse homem? Mas se o detesto!... Se o detesto! Madame Norand endireitou-se toda, com a fisionomia transtornada, os olhos duramente imperiosos. — Como se atreve a falar dessa maneira? Como ousa insurgir-se contra a minha vontade? — Porque antes não me foi possível! Eu não poderia, por mais tempo, sofrer tanto, nesse terrível constrangimento que a senhora me impôs. im pôs. Mas chega, minha avó. Eu não serei mais aquela que se sujeitava passivamente ao seu despotismo. Jamais me tornarei mulher do senhor Brülard, fique certa disso! Madame Norand levantou-se. Seus lábios tremiam e uma irritação mal contida comunicava ao seu olhar um tal t al brilho, que fez Anabela estremecer um pouco. — Você se casará com ele, porque eu quero. — e sublinhou duramente tais palavras.— Essa gente de Vigne-Rouge causou o mais deplorável efeito sobre você, bem que percebo. Mas tudo isso deve acabar, agora. Fez uma pausa, desviando um pouco o seu olhar daqueles olhos tão lindamente azuis, em que se descortinava uma vida estremecente, um ardente desafio. Os lábios continuavam a tremer. Mas ela rematou com o mesmo e implacável tom de voz: — A partir de hoje, não quero que você mantenha mais relações com os Brennier. Encarrego-me de dar-lhe os motivos disso. Assim, proíbo-a de voltar a VigneRouge. — Proíbe-me? Seja! Mas eu... eu não me casarei com Brülard. -— Você amanhã será sua noiva. — A senhora não pode casar-me à força, vovó, isso eu bem sei... E preferirei morrer a consentir nesse casamento. Anabela tremia dos pés à cabeça. cabeça. Seu coração ainda fraco batia tumultuosamente e era-lhe preciso muita força para conservar aquela atitude de desafio. — Veremos... Saia daqui, e fique em seu quarto até o jantar. Anabela voltou-se e saiu da sala. sala. Madame Norand deixou-se cair numa poltrona, poltrona, numa atitude de sucumbida. Seu rosto, de ordinário pálido, tornou-se amarelo. Ela pensava: "Esta criança!. . . Esta criança, que eu imaginava tão fria, tão submissa... O seu olhar era o de Luciana... Também se revolta, acusa-me, também ela... Ah! esses Brennier! Como a farei mudar de idéia, agora?" Capítulo XIII O ACIDENTE -
Anabela não obedecera obedecera à ordem de sua avó, ao deixar deixar a galeria. Do sombrio e fresco vestíbulo passou-se para o pátio e, sem se incomodar com a pesada atmosfera, cheia de nuvens de tons lívidos l ívidos que se amontoavam a oeste, alcançou a estrada, com esta idéia fixa: necessitava refletir, dominar-se, antes de pedir auxílio e conselhos a seus amigos de Vigne-Rouge. Dominar-se? Sim, porque subitamente sentira a estranha sensação de um desdobramento de sua pessoa. Esta Anabela que acabava de responder daquele jeito a Madame Norand, de resistir àquele choque choque com uma tal firmeza, acaso era
aquela mesma passiva criatura cuja resposta era sempre: "Está bem, vovó!?" A própria Madame Norand, notara-o Anabela, ficara surpresa, transtornada ante a inesperada revelação. A surpresa logo se demudou em cólera, diante da inacreditável revolta. Mas Anabela ficou indiferente àquele fur or. Jamais tivera a alma timorata de uma Graça Steverson e, sob a aparente submissão, sempre escondia um secreto e violento protesto de todo o seu ser moral mor al contra as vontades da avó. De sorte que ali se achava a verdadeira Anabela, que caminhava toda fremente, resoluta e ardente, pronta para a luta. Estava finda a obediência passiva, findo o cativeiro de sua alma. Agora, seria livre, livre de crença, livre para orar, para amar. A moça passou diante de Vigne-Rouge, Vigne-Rouge, silenciosa, como que que adormecida sob o tempestuoso céu. Daqui a pouco voltaria. Tinha necessidade de estar a sós naquele instante, para refletir e acalmar um pouco aquela agitação, aquela febre que lhe provocara a cena com Madame Norand. Prosseguiu em seu caminho até a capela de São Pedro, lugar de sua predileção. Em suas visitas precedentes, para ali arrastava o seu pavoroso isolamento moral, a carga de sua alma jovem quase sempre à beira do desespero. Ainda este ano ali estivera, com a mesma disposição de espírito, antes de conhecer os Brennier. Depois, em pouco qualquer coisa nela se modificara. O gelado envoltório que lhe cobria a alma, pouco a pouco se dissipou, começou a surgir um sol claro que lentamente a aqueceu, àquela pobre alma transida, tr ansida, semi-morta. Entretanto, encontrando esta cálida atmosfera no lar dos Brennier, Br ennier, Anabela não mais necessitara de ali vir, para meditar sobre o seu triste destino. Sentou-se à beira do promontório rochoso no mesmo lugar em que se achava quando salvara o pequeno Luiz. O céu cada vez mais se tornava ameaçador e já se ouviam os ribombos do trovão. Mas Anabela não lhes prestava atenção. Estava pensando na ordem que acabava de receber de sua avó, naquele "ultimatum" lançado pela voz imperiosa: "Amanhã, você ficará no iva!" Amanhã! E noiva daquele homem! De indignada, ela tremia toda. E murmurou: — Oh! aquilo!... aquilo!... Mas sou livre! Ela nada pode... Não, Madame Norand não podia obrigá-la àquele passo, como a própria neta ousara declarar-lhe. Felizmente suas amigas Brennier lhe abriram os olhos. Não fosse isso, em que situação atroz não se encontraria, acreditando que nada poderia subtraí-la àquele casamento, nada a não ser a morte?! Estremeceu. Aqui mesmo, já sentira a tentação do desespero. Foi há algumas semanas atrás, no dia em que achara, perto da capela em ruínas, uma bolsa de trabalho que pertencia a Danielle. Seguindo, com os olhos, a água que espumava embaixo do promontório, ela pensava: "Se eu me atirasse ali... estaria acabado..." Que força secreta lhe impedira o gesto? Mas um pouco mais tarde, sem dúvida, não teria resistido à sombria atração daquela morte, que poria fim a uma existência gelada, infinitamente miserável. Sem os Brennier... Sem Roberto Roberto Arlys... Arlys... O céu estava completamente negro por cima do promontório. O ribombar do trovão repercutia em longos ecos. Escurecia, como se fosse noite, riscada de relâmpagos azuis. Depois, começou a cair a chuva, a princípio em grossas gotas. Quando Anabela as sentiu em seu rosto, levantou-se e lançou um olhar para o céu. Não, certamente não teria tempo t empo de alcançar Vigne-Rouge. Mas pouco lhe importava. Não tinha medo, nem um pouquinho, da tempestade e esperaria na capela que passasse o temporal, para depois ir à casa de suas amigas.
Já há muito tempo que o teto do antigo e pequeno santuário deixava passar o ar e a água do céu. Todavia, atrás do altar, ainda ficara um lugar que servia de abrigo. Ali é que Anabela se refugiou. E, de passo que aumentava o estrondo dos trovões, Anabela continuou a sua dolorosa dolorosa meditação."Sim, iria procurar as amigas e lhes pediria para ficar com elas. Não queria mais voltar para a casa de sua avó." A este único pensamento, a revolta turbilhonava em seu espírito. Como tudo aquilo se teria arranjado? Ignorava-o, mesmo porque sabia tão poucas coisas, afastada como se achava da vida normal. Mas o doutor Brennier, o senhor Marnel e Roberto Arlys estavam a par de tudo e a guiariam. Teria ela do que viver? Neste particular, completa era a sua ignorância. Lamentava não ter interrogado misse Steverson, nesse sentido. Mas se lhe fosse preciso trabalhar, estaria pronta para tudo, t udo, contanto que não mais se achasse sob o domínio de Madame Norand. A tempestade parecia, agora, diminuir o seu paroxismo. Anabela, por mais corajosa corajosa que fosse, sobressaltava-se a cada relâmpago. A chuva caía com a violência de uma tromba d'água. Interstícios, no teto estragado, deixavam-na passar, de modo que o vestido leve da moça começou a molhar-se. Depois, houve um pequeno estalo. O teto desabou sob o peso daquela água e Anabela, apanhada num dos ombros, estatelou-se no chão. Momentaneamente, perdeu os sentidos. Quando voltou a si, encontrou-se num verdadeiro mar, pois a chuva agora penetrava livremente pelo teto desabado. Tentando erguer-se, sentiu forte dor no ombro, com a sensação de um grande peso sobre ele. Com a mão livre, tateou e deu com a madeira. Com toda a certeza, uma viga desprendida do teto. Debalde tentou desembaraçar-se. Então, sentiu-se angustiada. Ninguém teria a idéia de vir procurá-la na capela, quando notassem o seu desaparecimento. Que lhe sucederia, sozinha na noite, incapaz de mexer -se, estendida naquela água? E, mesmo amanhã, poderia alguém imaginá-la naquele deserto, tão raramente visitado? Tremia de ansiedade. Depois, lembrou-se que, na igreja de Uzerche, juntamente com Roberto e Regina ela parara defronte do altar da Virgem. Regina, depois de finda a sua oração, inclinou-se e disse-lhe: — Pedi por você àquela que ama os corações bem formados e as almas puras, a fim de que Ela a leve a seu Filho e sempre a proteja. Então, como uma criança medrosa que chama sua mãe em socorro, Anabela, em súbita expansão de fé, exclamou: — Virgem Santa, salva-me! E sentiu-se tranqüilizada, certa de que fora ouvida. Feliciano Marnel não saíra de casa, naquela tarde. Em seu quarto, ele tentara trabalhar. Mas em pouco abandonara caneta e papel, porque toda inspiração lhe fugira do cérebro. A atmosfera de tempestade, sem dúvida, era a causa disso. Depois, a impressão desagradável e entristecedora, que lhe ficara de sua palestra com Madame Norand. Estava inteiramente resolvido a tomar o partido da inocente Anabela. Mas isso lhe seria coisa infinitamente dolorosa, pois sua fiel f iel amizade à companheira de infância subsistia, quaisquer que fossem os seus sentimentos quanto ao pro cedimento da avó em relação à neta. Mais ou menos às quatro horas, ele saiu do quarto na intenção de dar uma voltinha pelo jardim, antes de encontrar-se com Madame Norand para o chá. No instante em que atingiu o patamar da escada, ouviu uma porta abrir-se e notou que Anabela saía da galeria. O semblante alterado da moça, ares de insólita agitação logo o
impressionaram. "Sua avó deve ter-lhe falado do tal casamento". E, vendo-a sair de casa, conjeturou que se encaminhava para a casa de suas amigas de Vigne-Rouge, a despeito da proibição de Madame Norand. Pois bem! Dentro em pouco também ele iria à casa do médico, e juntos estudariam um meio de libertar a pobre criança. A pesada atmosfera de fora obrigou-o obrigou-o a voltar incontinenti para casa. Martim, que o encontrara no vestíbulo, disse-lhe que o chá estava na mesa. — Madame está no salão azul — acrescentou o criado. O salão era um grande aposento, recoberto de antigo estofo com tonalidades azuis e ouro, mobiliado com móveis m óveis que datavam do Império e da Restauração, pesadões e sem graça. Ordinariamente, Madame Norand ali não ficava. Nesse dia, achava-se deitada num divã de mogno, próximo da porta envidraçada aberta para o terraço. Voltou para Marnel um rosto com traços mais vincados que de costume e que este achou envelhecido. — Sente-se doente, Sílvia? — Simplesmente cansadíssima, com toda a certeza por causa desta temperatura. Bem! Sente-se aí. Graça vai servir-nos o chá. Encostando a cabeça numa almofada de veludo verde descorado, Madame Norand semicerrou as pálpebras. Essa atitude de displicência suavizou, um pouco, os endurecidos traços. Para deixá-la descansar Marnel pegou num livro e, depois de tomar o chá, servido por misse Steverson, levantou-se e disse que ia dar um pulinho até à casa do doutor Brennier. — Vá, meu amigo. Já se ouve o barulho do trovão, mas se a tempestade cair antes de sua volta, ficarei certa de que você se encontra abrigado. Madame Norand não fez a menor alusão à conversa que tivera com a neta. Mas Marnel imaginou que a própria Anabela lhe contaria tudo, pois tinha certeza de encontrá-la em casa dos Brennier. Na sala de visitas da Vigne-Rouge, Roberto e Regina conversavam, de passo que Danielle, ao piano, acompanhava Marcelo Trézeau, excelente violinista. Depois de ter cumprimentado as moças e apertado a mão de seus companheiros, Marnel perguntou-lhes: — Bem! Que fizeram de Anabela? — Anabela? — repetiu Regina, surpresa. — Não a vimos, ainda, esta tarde. — Como, ela não veio aqui, mais ou menos às quatro horas? — Absolutamente. Conjeturamos, mesmo, porque maldoso capricho Madame Norand a impediu de vir. Ontem, tivemos a impressão de uma contrariedade, uma certa hostilidade. — Acertada impressão, senhorita, porque Madame Norand, efetivamente, proibiu a neta de vir hoje aqui. Mas, depois disso, deve ter-se passado qualquer coisa. Provavelmente a avó avisou a neta de sua vontade de casá-la com o tal Brülard, porque mais ou menos às quatro horas eu a vi sair da galeria com o semblante terrivelmente angustiado e alcançar a rua. Por isso é que pensei que tivesse vindo aqui, para falar-lhes sobre o assunto. — Não, não veio! — exclamou incontinenti Roberto. — Mas onde poderia ter ido? — Sem dúvida quis tranqüilizar-se um pouco, refletir antes. Por certo dentro em pouco ela aparecerá. — Principalmente com a tempestade que se aproxima — acrescentou Danielle. — Mesmo porque naturalmente não deve ter ido longe. Mas a tempestade se desencadeou em toda a sua violência, depois cessou, sem que a moça aparecesse. Seus amigos estavam bastante inquietos e, mais que
todos, Roberto Arlys, o qual, embora geralmente senhor de si, naquele instante se mostrava bastante nervoso. — Deve estar abrigada — aventou Marcelo Trézeau. — Se encontrou possibilidade para isso. Após a conversa com a avó, talvez esteja em estado de super excitação que a deixou completamente indiferente ante as ameaças da tempestade. Marnel observou: — É possível que tenha voltado a Maison-Vieille. Vou verificar isso, e imediatamente voltarei para contar-lhes o resultado de minha busca. — Para evitar o incômodo de voltar, eu o acompanharei até o portão de MaisonVieille — disse Roberto. A velha Mélanie e Martim, aos quais Feliciano Feliciano Marnel primeiramente se dirigira, ignoravam se Anabela estava dentro de casa. Misse Steverson, que por esse tempo aparecera para transmitir uma ordem de Madame Norand, declarou que ainda há pouco inutilmente procurara a sobrinha. — Pensei que estivesse em Vigne-Rouge — acrescentou. — Não, lá ela não está! Admitindo-se que tenha procurado abrigar-se durante a tempestade, naturalmente deve ter entrado em casa. Roberto, a quem Marnel logo deu parte dessa resposta, declarou que imediatamente se poria em procura da moça. — Mas onde, meu amigo? — Certa vez, na minha presença, ela disse a Regina que, durante os dias que passava aqui, muitas vezes ia à velha capela, que lhe constituía lugar predileto. Talvez ali se encontre. -— Mas não fica longe daqui e, como já faz tempo que passou a tempestade, já deveria estar de volta. — A menos que lhe tenha acontecido qualquer coisa. Vou dar um pulo até lá imediatamente. Nesse instante, o céu estava limpo de toda nuvem, salvo no longínquo horizonte, onde as nuvens se aglomeravam, brancas e translúcidas, em t orno de um sol baixo, meio velado. A chuva torrencial havia desagregado as pedras do caminho, as quais rolavam sob os passos apressados de Roberto. O ar, sempre pesado, assoprava seu hálito quente no rosto r osto do moço. Este, quase correndo, chegou um pouco resfolegante no lugar onde se elevava a capela. A uma rápida vista de olhos, que lhe mostrou mostrou estar deserto o promontório, apressou-se na direção do velho santuário. No interior, i nterior, não viu ninguém. Mas ouviu uma voz, atrás do altar: — Socorro! — Anabela! Depois desse grito, ele correu para junto da moça estendida no chão. Vendo-o, aquele rosto pálido, contraído pelo sofrimento, pareceu animar-se, alumiar-se. —Senhor Arlys!... Enfim!... Oh! quer fazer o favor de t irar-me este peso que me esmaga o ombro? Sem dificuldade, Roberto levantou a viga e atirou-a de lado. Depois, ajoelhou-se perto da moça, que acabava de soltar um suspiro de alívio. — Pobre criança! Há quanto tempo aqui se encontra? — Não sei.. . Vim refugiar-me aqui, quando a chuva começou a cair com mais violência e o teto então desabou... — Está completamente molhada! Vou tentar levá-la até à casa... — Sozinho, o senhor não poderá.
— Creio que sim. Pode ajudar-me um pouquinho? — Tentarei... Mas... mas não quero que o senhor me leve para Maison-Vieille! — Contudo, não posso agir de outra forma. Por causa de sua avó, seria... — Não, não! Não quero voltar para a sua companhia!
Anabela tremia e em seus olhos brilhava brilhava um clarão de febre. — Jamais, jamais! Ela quer que eu me case com o Brülard, e prefiro morrer a... a... — seus dentes rilhavam e Anabela repetiu — Prefiro antes morrer... morrer... — Não está certa de que Madame Norand não pode forçá-la a isso? Seja razoável, permita-me levá-la para sua casa... — O senhor promete que ela não me obrigará? Anabela voltou para Roberto um olhar olhar cheio de angústia. A liás, estaremos a seu lado, — Afirmo-lhe que nada poderá, nesse sentido. Aliás, Anabela. Marnel e eu lá estaremos, para defendê-la se for preciso. E mesmo... agora não é o momento de dizer-lhe isto, Anabela, mas talvez fique mais tranqüila. Se me autorizar, tenho a intenção de pedi-la em casamento a Madame Norand. Anabela teve um pequeno sobressalto, sobressalto, que lhe provocou provocou um gritinho de dor. Mas uma surpresa mesclada de alegria alumiou-lhe os lindos olhos, pisados por efeito da febre e do sofrimento. — Pedir-me em casamento?... O senhor quer?... — Quero que seja minha mulher. Sim, Anabela. Mas falaremos disso com mais vagar. Agora, vou levá-la para Maison-Vieille. Ela não protestou. Roberto levantou-a em seus braços. Para não gritar, porque o ombro lhe causava atroz sofrimento, a moça cerrou os dentes. Roberto caminhava cam inhava devagar, mas no péssimo caminho seus pés escorregavam nas pedras soltas e Anabela recebia os contragolpes. contragolpes. Mais ou menos em meio do percurso, apareceu a pequena silhueta de Feliciano Marnel. Ele havia seguido o seu jovem amigo, mas, menos ágil, fora-lhe preciso mais tempo. Carregada pelos dois, Anabela sofreu menos durante o resto do caminho. Cinco minutos mais tarde, os dois homens e seu querido fardo transpunham a porta de Maison-Vieille. — Josefina! — gritou Marnel. A velha empregada surgiu surgiu de um aposento, que precedia a cozinha. cozinha. — Aconteceu um acidente à senhorita Anabela. Prepare depressa a cama da senhorita, e tire-lhe a roupa. Diga a misse Steverson para ajudá-la. Enquanto isso, eu prevenirei Madame Norand, e o senhor Arlys vai buscar o doutor Brennier. Pouco tempo depois, Anabela estava provisoriamente instalada numa poltrona, em seu quarto. Marnel alcançou a galeria, onde Madame Norand lia os jornais, chegados pelo único correio do dia. — Sílvia, Roberto Arlys e eu acabamos de encontrar sua neta na velha capela. O teto desabou sob a chuva e uma viga caiu sobre os seus ombros. Além disso, ela ficou na água durante muitas horas. É preciso que a tratem imediatamente. O jornal escorregou das mãos de Madame Norand. Na penumbra, Marnel distinguia mal o seu rosto. r osto. Mas ele percebeu um certo tremor naquela voz, quando perguntou: — Por que razão ela se encontrava lá? — Vi-a sair daqui, mais ou menos às quatro horas. O seu aspecto era de grande comoção, agitadíssima. Imaginei encontrá-la em Vigne-Rouge; mas ali não se achava e debalde a esperamos. Então, passada a tempestade e aumentando a nossa inquietação, saímos à sua procura, Roberto Arlys e eu. Ele é que teve a idéia de darmos uma busca, primeiro na velha capela, onde, ao que parece, Anabela tinha o costume de ir muitas vezes.
Enquanto Marnel falava, Madame Norand já estava de pé. Ela disse brevemente: — Vou vê-la. É preciso mandar chamar o doutor, não? — Roberto já foi chamá-lo. Dentro de pouco Brennier estará aqui. Misse Steverson e Josefina estão preparando a cama e vão acomodá-la. — Bem. Até logo, meu amigo. E saiu, deixando Marnel na galeria ensombreada pela aproximação do crepúsculo.
Capítulo XIV
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PROFISSÃO DE FÉ
Madame Norand voltou meia hora mais tarde. Entrou com o seu habitual e decidido passo, sentou-se perto da mesa e disse com calma: — O doutor afirmou que não há fratura, mas somente profunda contusão, bastante dolorosa. Fez-lhe uma massagem e sua filha Regina, habilidosa nesse trabalho, virá amanhã e tantas vezes quantas forem necessárias. Mas ele não pode diagnosticar quanto às conseqüências da longa imobilidade sob as roupas molhadas. — Como está passando, agora? — perguntou Marnel. — Aumenta a febre. Está tiritante de frio. Josefina está a seu lado e depois do jantar, eu a substituirei. O tom tranqüilo dessa voz irritava Marnel. Antes de mais nada, inteira culpa cabia à avó de achar-se, naquele estado, estado, a pobre criança. Ele disse, com alguma sequidão: sequidão: — Creio que ela está bem doente. Mesmo porque, antes se encontrava enfraquecida, anemiada; depois, um resfriado... Marnel notou uma certa alteração naquela voz, que lhe replicava: — Espero que não seja nada. Felizmente, temos o doutor Brennier, de sorte que será tratada do melhor modo m odo possível. — Sim, é uma felicidade. Mas, passado isso, ela terá necessidade de outros cuidados, Sílvia. Não convém mais falar-lhe em casamento ou, pelo menos, daquele casamento. — Que tem que ver uma coisa com outra? Havia um ligeiro tom de agressividade na pergunta de Madame Norand. — Você não lhe falou, esta tarde, do seu projeto de casá-la com Brülard? — Sim. E então? — Vi-a sair de casa com a fisionomia que denotava estado de excessiva comoção e grande angústia. Depois disso é que ela saiu e foi ter à velha capela, onde a tempestade a surpreendeu. — Ah! As mãos longas, nervosas, nervosas, agitaram-se momentaneamente sobre sobre o vestido negro. Depois, a voz tranqüila acrescentou, com um esforço que feriu a Marnel: — No estado de fraqueza em que se encontra, de fato não é conveniente pensar-se em casá-la. — Você agiria bem se lhe dissesse isso, minha amiga, a fim de tranqüilizá-la, pois um tal receio poderá ser prejudicial ao seu restabelecimento. Madame Norand não respondeu. Entretanto, Martim anunciou o j antar. Este foi bastante morno. A dona da casa não falava e Marnel não estava disposto a palestrar. À sobremesa, Madame Norand disse a misse Steverson: — Graça, vá ficar em lugar de Josefina. Subirei logo, assim que o doutor Brennier chegar. Um pouco mais tarde, no instante em que Marnel subia ao seu quarto, em busca de um charuto, ele cruzou, no corredor, com a tia de Anabela.
t isana — disse misse Steverson. — A pequena tem — Vou lá embaixo, buscar a tisana
sede. Creio que está com muita febre. — Acha-a muito mal, misse Steverson? — Sim, de fato! Creio que esteja muito doente!... E fala o tempo todo. Ela diz: "Não, não, não quero! A senhora não tem o direito de obrigar-me!..." Quando Madame Norand entrou no quarto, depois que a acomodamos na cama, Anabela a olhou com um ar espantado, depois se pôs a tremer mais fortemente e voltou-lhe as costas. O senhor sabe o que a avó lhe fez? Marnel respondeu evasivamente, pouco inclinado a satisfazer a curiosidade que se lia nos olhos da inglesa. — Coisa sem importância, creio. Mas a avó nunca a tornou feliz, a senhora deve saber e na excitação da febre f ebre a imaginação toma excessivas proporções. Miss Steverson, que nunca enxergava longe, contentou-se com essa explicação, e Marnel entrou em seu quarto, pensando: "Será uma lição para Sílvia. Ou, então, sua alma está decididamente emparedada, fechada para sempre?" Tremenda a luta contra a morte, sustentada pela enferma e pelos que dela cuidavam. Quando, por fim, ficou livre de perigo, Anabela estava tão fraca que quase ficou sem idéia e deixava-se levar como uma criancinha. À sua cabeceira revezavam-se, revezavam-se, enfermeiras hábeis e devotadas, devotadas, as três filhas do médico. Mas alguém, muito mais do que as moças, com obstinada animosidade a disputara à morte. Até os limites de suas forças, Madame Norand cuidara da neta, durante o dia e às vezes à noite, sem parecer notar os movimentos repulsivos da doente quando dela se aproximava, nem seus olhares hostis. Mostrava-se paciente, hábil, e de sua voz desaparecia toda a sequidão cada vez que se dirigia à neta. Quando se iniciou a convalescença, a solicitude da avó não se enfraqueceu. Anabela recebia-a com frieza e agradecia agradecia brevemente. Mas era impossível impossível passar despercebido que a presença de Madame Norand lhe era penosa. Tão logo pode falar sem muita fadiga, Anabela contou a Regina a cena que teve com a avó e que motivou a sua saída de Maison-Vieille, a despeito da ameaçadora tempestade. E ajuntou energicamente: — Logo que eu fique melhor, sairei daqui Regina, caso vovó teime em falar-me desse casamento! — Não creio que toque de novo nesse assunto, minha amiga. A meu ver, ela mudou muito no seu modo de pensar, tratou admiravelmente de você, sem se poupar, a despeito da idade. Anabela murmurou, com um vinco cético cético em seus lábios: — Isso não durará. Quando eu estiver boa... Passou a mão na testa e ficou momentaneamente silenciosa. Depois, perguntou: — O senhor Arlys ainda está em sua casa, Regina? — Não, ele regressou a Paris e dali partiu para a Itália, onde foi encontrar-se com um amigo, companheiro de excursão. Aqui o teremos em setembro. Então, querida Anabela, de novo lhe falará daquele seu seu desejo, a respeito do qual, qual, parece já lhe disse algumas palavras. Aliás, anseia tão ardentemente pela sua realização! Quer tanto dar-lhe um pouco de felicidade, fazê-la conhecer o que possa ser uma afeição forte, vigilante e terna, tal como a sua! As macilentas faces, demasiado demasiado brancas, ligeiramente se tingiram. Anabela Anabela murmurou: — Oh! tudo isso será tão bom!... tão lindo!
— Você bem o merece, querida amiga! De modo que, logo que vocês dois estejam
combinados, Roberto pedirá a sua mão a Madame Norand. Daqui até lá, cuide de tratar-se, de ficar boa e não aborrecer-se com coisíssima alguma... — Cuidarei disso... Mas sempre tenho receio de que minha avó pense em prejudicar-me, impedir-me de ser feliz. Dias após, à tarde, Madame Norand entrou no quarto da neta. Trazia uma caixa grande e elegante, que pôs sobre uma mesa, perto da convalescente. — São doces de frutas, que mandei comprar para você. Creio que gosta desses doces, hein, Anabela? — Sim, vovó. Muito obrigada. Madame Norand atentou, durante alguns segundos, naquela fisionomia jovem e fechada, e depois disse, com uma espécie de hesitação: — Creio que você não me aprecia muito, Anabela. Entretanto, sempre agi para o seu bem.. . pelo menos, assim acreditava. Aquele casamento... Anabela endireitou-se toda na "bergère", "bergère", onde estava afundada: — Escusado falar-me desse assunto! Eu já lhe disse, vovó, que nunca... — Já renunciei a esse projeto, minha filha. Não precisa mais inquietar-se quanto a isso. A desacostumada doçura doçura de sua voz não pareceu pareceu produzir efeito algum sobre a neta. Esta de novo se afundou na "bergère", conservando aquela expressão de frieza que sempre mostrava para a avó. Madame Norand apontou para um livro que se achava sobre uma mesinha, perto da moça. — Gosta desse autor? — Muito. — Mandarei comprar outras obras suas, caso suas amigas não as tenham. — Elas só têm esta. Muito obrigada, vovó. O agradecimento era sem calor, simplesmente polido, como acontecia sempre, depois que Madame Norand começou a tratar da neta. De repente, o olhar se alumiou, sorriram aqueles lábios pálidos. É que Regina e Danielle chegaram, como em todas as tardes, t ardes, trazendo uma gulodice qualquer, feita por uma delas para o lanche da convalescente, ou então suas rosas preferidas, um livro interessante, um desenho humorístico de Marcelo Trézeau, mestre nesse gênero. Elas cumprimentavam Madame Norand, beijavam Anabela afetuosamente e se informavam de suas novas. Anabela então parecia readquirir vida, tornar-se quase alegre. Silenciosa, com o semblante um tanto fechado, Madame Norand olhava-a. Então, minutos após se levantava e retirava-se, depois de apertar a mão às Brennier, sem que Anabela pronunciasse uma única palavra para retê-la. Madame Norand falava pouco a Marnel, a respeito da neta. De quando em quando, fazia algumas reflexões sobre o seu estado de saúde. Quando Anabela pode levantar-se, diariamente ele ia passar alguns momentos a seu lado. Sempre era recebido com evidente prazer. Nessas ocasiões, quando Madame Norand lá se achava, ele notava certa transformação em suas maneiras relativamente à neta, mas não ousava deduzir qualquer profunda modificação em suas idéias, muito menos repúdio ao que havia sido, até então, sua linha de conduta para com Anabela. Durante a enfermidade da moça, ele escrevia frequentemente a Roberto para darlhe notícias. Ambos haviam decidido que o jovem advogado faria o pedido de casamento em setembro, quando viesse terminar suas férias em casa do tio. Com Anabela, Marnel por vezes falava de Roberto, relembrando fatos de de sua infância,
quando era vizinho e íntimo amigo do pai, o doutor Arlys. Anabela escutava-o com um ardor contido, que por vezes se refletia em seu olhar, na palpitação do rosto. Marnel então pensava: "Tive ocasião de dizer a Sílvia que uma centelha poderia existir sob essa cinza, com a qual ela recobrira o coração e o espírito da neta. Pois bem, a centelha ora se revela: é o amor. E toda a obra de minha pobre amiga se esboroa, como já lhe predisse". Certa manhã, como Madame Norand aparecesse com rosas que colhera para Anabela, a moça, após o habitual habitual agradecimento polido e frio, disse: — Vovó, doravante pretendo praticar a religião que foi de meus pais e que também é a minha, por batismo. Madame Norand estremeceu e cerrou os lábios. Seu olhar endureceu-se momentaneamente, como sucedia outrora quando se dirigia à neta. — Foram as suas amigas Brennier que lhe encasquetaram essa idéia? — Sou eu que quero, de todo o meu coração, com toda a minha alma. Tenho sofrido tanto nesse vazio em que vivi, sem socorro espiritual, sem esperança! Agora sei que, quaisquer que sejam as minhas provações, estarei sempre sustida, protegida pelo poder divino. Nada me fará renunciar a uma tal felicidade. Quando Anabela fez alusão a seus passados sofrimentos, a pálida figura da avó estremeceu. Com a voz um tanto surda, onde se sentia um certo esforço, Madame Norand retorquiu: — Você é livre. Receei somente que estivesse agindo sob a influência de vontades mais fortes que a sua e que a levariam muito mais longe do que você poderia pensar. Com estas palavras, Madame Norand deixou-a. Alcançou a galeria, onde Marnel se encontrava fumando e lendo revistas. Erguendo a cabeça, ele olhou para a sua amiga e pensou: "A sua fisionomia f isionomia é de tempestade. Que teria acontecido?" Madame Norand aproximou-se de sua mesa de trabalho, afastou bruscamente papéis que ali se encontravam e, voltando-se para Marnel, disse-lhe asperamente: — Trabalharam bem, as suas amigas Brennier! Que tal Anabela, agora, com suas idéias religiosas? Elas deitaram abaixo toda a minha obra e arrebataram a alma dessa criança... — Que lhe importa, Sílvia, se é para a sua felicidade? — Sua felicidade? Sua felicidade? Uma espécie de riso escarninho brotou dos lábios secos de Madame Norand. — Que é que você sabe disso? Aliás, já houve felicidade aqui embaixo? — Razão de sobra para desejá-la, à espera de outra. Madame Norand sacudiu os ombros e deu alguns passos um tanto hesitante. Marnel seguia-a com os olhos, e pensava: "É um golpe terrível para o seu orgulho, tudo o que se passou. Deve estar sofrendo horrivelmente. Mas jamais ela confessará o que se passa consigo, a não ser que esta pobre alma esteja completamente perturbada".
Capítulo XV
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POBRE ANTONIETA
Somente no dia seguinte é que a jovem convalescente pode descer, pela primeira vez, à sala de jantar. Como se dirigisse para o seu lugar habitual, na extremidade da mesa, Madame Norand lhe disse: — Não, o seu talher está perto do de Feliciano.
Sem o menor movimento, sem qualquer expressão de fisionomia que revelasse surpresa, Anabela foi sentar-se perto do escritor. Ela conservava conservava aquela atitude fechada, distante, que sempre lhe era habitual quando em presença de Madame Norand. Mas logo que Marnel lhe dirigiu a palavra, seu rosto se iluminou, o olhar readquiriu vida e os lábios de novo acharam aquele sorriso delicado, um pouco melancólico que Roberto Arlys tanto apreciava. Madame Norand não parecia nem um pouco disposta para conversar. Marnel notou que as rugas estavam mais acentuadas naquele rosto magro, o olhar distraído, absorvido em algum pensamento, talvez nalguma visão. Sem dúvida, uma visão de outrora. Aquele olhar frequentemente pousava em Anabela e t ornava-se mais sombrio, quase doloroso. Acharia ela, como Marnel particularmente notara há alguns dias, que a neta se parecia com a mãe, de quem ti nha os olhos de um azul tão docemente violeta, onde por vezes passava o brilho de um pensamento mais ardente? — Com toda a certeza, a senhorita não se encontrará com suas amigas à tarde, não? — perguntou ele. — Ontem, o doutor me disse que elas iam passar o dia em Brive. — Exceto Regina. Ela virá mais ou menos às três horas, creio eu. — Contou-lhe do noivado de Danielle com Marcelo Trézeau? Tr ézeau? — Sim, senhor, desde ontem que eu sabia disso. — É um parzinho encantador. Mas, pobre Antonieta! Madame Norand indagou: — Por que pobre Antonieta? — Porque compreendi que ela o amava, há muito tempo. Além disso, Marcelo lhe l he perguntou se ela consentiria em ser sua esposa, outrora, quando ambos andavam pelos vinte e quatro ou vinte e cinco anos. Antonieta recusou, porque p orque se imaginava indispensável em sua casa. Agora, suas irmãs podiam substituí-la. Mas ela conta trinta e dois anos e está um pouco passada, enquanto Danielle está em plena juventude e possui toda a vivacidade, vivacidade, todo o atrativo de uma natureza natureza expansiva, expansiva, mais brilhante. — O senhor Trézeau fez mal em agir dessa maneira! — observou Anabela. Seus lábios tremiam, um relâmpago de indignação perpassou-lhe pelos olhos. — Antonieta sofre muito. Regina bem o compreendeu, compreendeu, embora a irmã nada lhe dissesse. — Sim, a coitada sofre. Certos olhares com que, por vezes, ela seguia a irmã e Trézeau me revelaram isso. Mas, acaso podemos censurá-lo? Há sete anos, naturalmente, ele imaginava que Antonieta não mais o amasse. Em sua existência de oficial colonial, curou-se da afeição que outrora poderia ter-lhe devotado... — Uma afeição bem pouco profunda, não há dúvida! Creio que quando a gente ama, é para sempre. — Oh! minha boa menina, não quero magoar os seus sentimentos! Mas... um tal amor é raro! — Existe, entretanto! Havia uma certa ansiedade no olhar de Anabela. Marnel notou-o e apressou-se a responder, com tranqüilizador sorriso: — Por certo que sim, por certo que sim! Conheço criaturas que são capazes disso, que só compreendem a afeição desse jeito. — São os infelizes — observou uma voz breve, um tanto alquebrada. Madame Norand havia escutado, até então em silêncio, com uma ruga de dolorosa ironia nos lábios, o diálogo de seu amigo e da neta.
— Os infelizes, que sofrerão sempre. Mas, que poderão eles? Nada, nada. — São os felizes, Sílvia — replicou com firmeza Marnel. — Mas contanto que
dirijam suas afeições para um fim mais elevado que o terreno. Não fosse isso e, de fato, eu teria pena deles... com toda a minha alma. Aquele rosto pálido cor de marfim, estremeceu estremeceu levemente. Anabela olhou para Madame Norand com uma vaga expressão de tristeza, mas sem emoção. Houve um silêncio, que Marnel rompeu, dizendo: — Parece que Danielle vai passar quinze dias em Granville, em casa de sua madrinha. — Sim, um dia destes ela me falou nisso — confirmou Anabela. — Creio que levará Luiz. — Uma vez que você nunca viu o mar, Anabela, iremos acabar a nossa estação em Roscoff. O doutor Brennier recentemente me disse que os ares de lá lhe serão propícios, fortificá-la-ão completamente. Como quer que seja, vamos experimentálos — disse Madame Norand. Anabela ergueu para sua avó avó um olhar em que se lia um misto de surpresa surpresa e desconfiança. — Não se incomode por minha causa, vovó — disse a moça, friamente. — Estou muito bem aqui, e uma vez que a senhora aqui está acostumada... — Desde que se trate de sua saúde, é questão secundária isto de a gente estar acostumada. Partiremos tão logo você esteja um pouco mais forte. Marnel, que seguia com vivo interesse as impressões que a jovem fisionomia revelava, compreendeu que a alma de Anabela disputava o prazer daquela viagem, daquela temporada, e a tristeza de deixar as suas amigas. — Quanto a você, meu caro Feliciano, conto que vai acompanhar-nos, não é verdade? — ajuntou Madame Norand. — Hum! Não sei. Já faz muito tempo que lhe estou atrapalhando a vida, minha boa Sílvia. Além disso, quase que prometi a um velho amigo basco de visitá-lo em sua casa, em Saint-Etienne-de-Baigorry... — Deixe a visita para mais tarde. Contamos absolutamente com você, Feliciano. Marnel sacudiu a cabeça-sorrindo. Nesse instante, encontrou o olhar daqueles lindos olhos azuis voltados para ele, e leu uma tão viva súplica, que toda sua hesitação caiu por terra. — Está bem, está entendido, partiremos todos para a Bretanha! — aquiesceu alegremente.
Capítulo XVI
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UM MAGNÍFICO PARTIDO
Madame Norand e sua neta regressaram a Paris em princípios de outubro. Marnel deixara-as oito dias antes, para ir passar três semanas no país basco com seu amigo. Anabela estava completamente completamente restabelecida. O clima de Roscoff Roscoff fora-lhe extremamente favorável. Agora, já se notava em seu delicado rosto um pouco de rosa, ali bem natural, e vida e luz em seus lindos olhos. Seu corpo esbelto e delgado havia perdido aquela excessiva magreza que inquietava o doutor B rennier e os seus movimentos tornavam-se mais vivazes, sem que perdessem a sua graça discreta. Durante a temporada de Roscoff, ela fizera excursões quotidianas em companhia de Marnel, no automóvel guiado por Mien, o "chauffeur" anamita. Madame Norand quase sempre permanecia no hotel, sob o pretexto de fadiga. Mas velava com
solicitude pela saúde da neta, dava-lhe presentes para a sua "toilette" ou lhe facilitava distrações. Entretanto, não lhe testemunhava t estemunhava nenhuma afeição exterior. Isso, aliás, seria difícil com a atitude que Anabela sempre lhe mostrava, uma atitude correta e polida, mas de uma frieza que não cedia. Em Paris, uma existência nova se abriu para a moça. Madame Norand arranjou uma criada de quarto, para auxiliar Mélanie e Martim. Anabela matriculou-se num curso de literatura, história e ciências, e comparecia a alguns concertos e sessões teatrais, levada pela avó. Esta a apresentou às suas relações e começaram a chegar convites, pois a moça, que se sabia bem dotada, representava um magnífico partido. Anabela apreciava esta existência, existência, até então desconhecida. desconhecida. Mas a tudo isto preferia os momentos passados ao lado de suas amigas. Naquelas ocasiões é que mostrava sua verdadeira natureza, por tanto tempo recalcada. Àquelas que a tinham acolhido com tanta bondade e com tão discreta compaixão, testemunhava uma afeição delicada e reconhecida. A elas, e somente a elas deixara ver algo daquela sensibilidade palpitante e dolorosamente amortecida durante tantos anos. Madame Norand não opunha obstáculos às relações entre a neta e as Brennier. Mas cada vez que Anabela dizia "Vou a Neuilly, vovó", uma sombra obscurecia-lhe obscurecia -lhe o olhar, e os lábios descorados se cerravam nervosamente. Um dia, Madame Norand perguntou-lhe: — Algumas vezes você se encontra com o sobrinho do doutor, o advogado, em casa de suas amigas? — Não, vovó. Atualmente ele se acha em Marselha, onde defende importante causa. Só em começos de dezembro é que voltará. A fisionomia de Madame Norand manifestou manifestou tamanha satisfação, satisfação, que não escapou à moça. Mas a avó, ao contrário, não notou nem um bocadinho a ainda mais viva luz que perpassava pelos olhos azuis. De fato, Anabela, depois do seu regresso, somente uma vez se avistara com Roberto antes de ele partir para Marselha. Roberto tornara a dizer-lhe que desejava, de todo o seu coração, ser seu marido, e ela lhe respondeu com simplicidade que se sentiria bem feliz. Mas, de acordo com o doutor Brennier, haviam combinado esperar, para fazer o pedido a Madame Norand quando estivesse findo o processo de que se ocupava o jovem j ovem advogado, e, ao mesmo tempo, quando Marnel estivesse de volta, o que se daria mais ou menos na mesma ocasião. Em casa do doutor Brennier todos se ocupavam dos preparativos para o casamento de Danielle. Antonieta mostrava uma fisionomia serena e Anabela, com afetuosa curiosidade, a si mesma perguntava se a sua amiga lograra consolação. A resposta a essa pergunta lhe foi dada um dia, na véspera do casamento. casamento. Antes de seguir para Neuilly, onde ia encontrar-se com Regina que fazia sua instrução religiosa, ela foi até Notre-Dame des Victoires, cuja atmosfera de fervor tanto lhe agradava. Enquanto rezava, seu olhar deu com uma pessoa ajoelhada na f ileira de cadeiras que precedia a em que se achava. Reconheceu logo Antonieta. Esta tinha o rosto escondido entre as mãos e, por um ligeiro movimento de seus ombros, Anabela notou que ela chorava. chorava. Com que, então, ainda não encontrara consolo? Ainda sofria, heroicamente, com o sorriso nos lábios? Pobre Antonieta! Pobre e querida Antonieta! Discretamente, Anabela saiu sem esperar a amiga, como esta teria feito em outra circunstância. Chegou toda comovida à casa do doutor Brennier. Regina logo lhe percebeu a comoção e perguntou-lhe: — Que tem, minha querida Anabela?
— Oh! Regina, coitada da Antonieta! Acabo de vê-la chorando, em Notre-Dame des
Victoires. Creio que a pobrezinha sofre muito! Regina sacudiu a cabeça. — Sim, sim! Era inevitável, mas que fazer? Antonieta terá ainda momentos penosos. O auxilio divino e a nossa afeição felizmente hão de suavizar-lhe a dor. Anabela fora escolhida para uma uma das "demoiselles dhonneur" dhonneur" de Danielle, com Roberto Arlys como cavalheiro. Mesmo neste particular, Madame Norand não opusera qualquer objeção. Mas o nome do "garçon dhonneur" fez surgir uma sombra em seus olhos. Não conteve uma pergunta: — Por que escolheram um parente da noiva, e não alguém do lado do senhor Trézeau? — Mas o senhor Arlys é amigo do noivo, vovó. — Ah! sim, é verdade... Está bem, é preciso que nos ocupemos de seu vestido, Anabela. Depois da enfermidade da neta, Madame Norand escolhera excelente costureira para vesti-la. Seu guarda-roupa, atualmente, tinha a discreta elegância que caracterizava o de suas amigas Brennier. Por isso, e por causa de melhoras m elhoras na saúde, a sua delicada beleza atingira pleno desenvolvimento. Essa foi a impressão de Roberto Arlys quando a reviu na noite que precedera à cerimônia nupcial, no jantar em casa do médico, que ali reunira alguns íntimos. Madame Norand declinara do convite, mas Feliciano Marnel lá estava, e também ele verificou, a um simples golpe de vista, a transformação da moça. A frágil, a triste Anabela não mais existia. Mas conservava conservava seu delicado delicado encanto, sua reserva que que a princípio parecia um pouco fria e que não passava de revivescência de um hábito de controle próprio, adquirido desde a infância, sob o guante de Madame Norand e da seca e inflexível Madame Baury. — Então, querida Sílvia, está bem mudada a sua neta, hein? Que deliciosa criaturinha! Assim falava Marnel no dia seguinte, na pequena sala de estar do do doutor Brennier, enquanto os convidados se comprimiam em torno do "buffet" instalado na grande sala de jantar, cujas duas portas envidraçadas davam para um sossegado jardim. Madame Norand inclinou afirmativamente a cabeça. Seu olhar acompanhava acompanhava a encantadora silhueta vestida de branco, ao encontro da qual seguia Roberto Arlys. O moço, levemente inclinado, falou durante alguns instantes com Anabela. Depois, ambos se afastaram para um aposento vizinho. — Que tal você acha esse jovem Arlys, Sílvia? — perguntou Marnel. — Não é mal parecido — respondeu-lhe Madame Norand da ponta dos lábios. — Acha? Fisicamente é bem lançado e é distinto, de uma inteligência acima do vulgar. Um eminente advogado de minhas relações afirmou -me que Roberto tem diante de si o mais belo futuro. Sob o ponto de vista moral, é inatacável. — Por que você me está fazendo f azendo o panegírico desse moço? A repentina pergunta e o olhar desconfiado desconfiado não desmontaram desmontaram Marnel. — Porque Roberto é filho de um dos meus melhores amigos, como você sabe, e tenho por ele a mais alta estima, pois é bem reduzido o número de moços com esse valor. — Não se esconde, nessa sua pergunta, a idéia de um casamento entre Anabela e ele? A este provocado ataque direto, Marnel Marnel respondeu: — Não seria de todo em todo mau! Que acha, Sílvia? — Digo-lhe que, por enquanto, não quero que Anabela se case.
A resposta foi breve, positiva. Nos olhos de sua interlocutora, Marnel viu brilhar a luz dos maus dias. — Por que, se os dois se amam? — Amam-se? Eles lhe disseram isso? — Roberto, sim... Anabela, suponho... — Ele o encarregou de fazer o pedido? — Sim, querida Sílvia. Creia-me, seria a felicidade de Anabela. — Nada sei a esse respeito. A gente nunca sabe dessas coisas. Em todo o caso, não quero que me falem nesse assunto, agora. — Mas, por que? Durante alguns instantes, Madame Norand permaneceu silenciosa, com os lábios cerrados, o rosto fechado fechado e contraído. Depois, acrescentou acrescentou friamente: -— Anabela é muito jovem. Precisa ficar f icar completamente restabelecida... — A felicidade logo acabará a obra, que caminha tão bem! — A felicidade! A felicidade! Mas que sabe você de felicidade, repito? Naquelas palavras, ditas em voz baixa, por causa da presença de outros convidados no salão, notava-se um certo azedume. — Sua mãe também acreditou encontrá-la, quando se casou com Steverson contra a minha vontade. Não quero que isso se reproduza para esta criança. Síl via! Você pode procurar — Não vá comparar Steverson com Roberto Arlys, Sílvia! informações, de todos os lados, a respeito deste. Reflita no que acabo de dizer-lhe, e depois falaremos novamente sobre o assunto. Madame Norand levantou para o amigo seus olhos cheios de tempestade. — Acaso Anabela sabe que esse moço vai pedir-lhe a mão? — Sim, Roberto já lhe falou nesse sentido, quando a encontrou na capela de São Pedro. Amou-a desde os primeiros dias... di as... e provavelmente o mesmo acontece com ela. O amor livrou-a do naufrágio moral, do desespero secreto que, pouco a pouco, a levaria à morte. Marnel notou agitarem-se aquelas mãos longas e pálidas, abandonadas no veludo negro do vestido. Os olhos azuis a zuis se desviavam. Apenas, em meio do murmúrio das palestras vizinhas, ele ouviu esta pergunta: — Ela lhe disse isto? — A mim não, mas às amigas e a Roberto. Eles é que a salvaram... principalmente ele. Eu a acredito, sob suas maneiras pouco expansivas, capaz do mais profundo sentimento. É uma alma delicada del icada e sensível, uma alma encantadora Sílvia. É preciso não fazê-la sofrer. Durante alguns momentos, Marnel aguardou uma réplica. Mas esta não veio. Madame Norand parecia examinar, com interesse, o pequeno Luiz que, ali deixando uma prima de sua idade com a qual pediu esmolas durante a missa nupcial, parecia à procura de alguém. De repente, ele correu ao encontro de Anabela que voltava à sala acompanhada de Roberto. A moça inclinou-se para o menino, sorridente, com a fisionomia um pouco animada por completa felicidade. — Uma alma encantadora. — repetiu a meia voz Marnel. — Mas lhe falta um pouco de calor. Falta-lhe um pouco de amor. Notando que Madame Norand permanecia obstinadamente silenciosa, ele julgou de bom aviso não insistir no assunto. A reflexão, talvez, agisse de maneira favorável f avorável sobre aquele espírito orgulhoso.
Capítulo XVII
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EMBARAÇOS
Quando Marnel, no dia seguinte, deu parte de sua conversa a Roberto, este foi presa de viva emoção: — Com que então, ela recusa?... O senhor teve a impressão de que ela é categórica? — Sim, meu rapaz... pelo menos momentaneamente. Sílvia tem uma vontade que não se acurva. Já deu mostras disso no seu modo de educar a neta, quando então,foi obrigada a agir contra o próprio coração. — Como, contra o próprio coração? Marnel sorriu, diante do espanto do moço. últ imos tempos de minha permanência em — Eu já havia suspeitado, durante os últimos Maison-Vieille, que ela empregava toda a sua energia para continuar fiel à sua idéia. Por que tudo isso? Simplesmente por que essa criança não lhe era indiferente, porque nela encontrava traços e expressões de sua filha tão apaixonadamente amada. Este estoicismo começou a dobrar-se no instante em que levamos Anabela ferida, enferma. Notei então, em seus olhos certa angústia, certo pavor. Depois, minha impressão se confirmou ao verificar-se verificar -se a preocupação, a inquietude durante os dias em que a neta esteve em perigo, pois completa lhe foi a mudança, desde então, a respeito de Anabela. Anabela nada lhe falou nesse sentido? — Somente me disse, respondendo a uma pergunta que lhe fiz, que Madame Norand agora lhe deixava muito mais liberdade, permitia-lhe levar uma existência igual a das moças de suas condições. Mas não se expandiu. Imaginei que lhe seria desagradável tratar do assunto. Marnel sacudiu a cabeça. Sua mão nervosamente mudou alguns objetos da mesa de trabalho, pois a conversa se verificava em sua casa de Bellevue. — Sim... sim... Ouça, Roberto, essa criança ainda não perdoou a sua avó. Existe nela um rancor profundo, pertinaz, que imagino difícil de desaparecer. — É possível... e a recusa que nos opõe Madame Norand, de forma alguma atenuará esse ressentimento. Convêm falar-lhe... ou esperar ainda? — Acho melhor que ela fique a par das intenções da avó. E. ocorre-me um pensamento... Marnel refletiu por. alguns instantes, com as sobrancelhas ligeiramente contraídas. — E se ela falasse pessoalmente com Sílvia? Se lhe desse parte do seu desejo de casar-se com você, Roberto? Que acha? — E o senhor, o que espera desse entendimento direto? — Bem, a meu ver Sílvia não ousará recusar-lhe... a ela, a quem faz tão infeliz. — Talvez o senhor tenha razão. Devo encontrar-me com Anabela logo à tarde, em casa de meu tio, e falar-lhe-ei sobre isso. — Sim, tenho alguma esperança nesse modo de agir. De outra forma... com uma vontade como a de Sílvia... — um meneio de cabeça terminou a frase. f rase. Quando Roberto contou à sua noiva a resposta que Madame Norand deu a Feliciano Marnel, aquele rosto delicado pareceu enrijecer-se um pouco e o suave violeta dos olhos tornou-se sombrio. Durante alguns segundos, Anabela permaneceu silenciosa. Quando falou, a sua voz era contida pela emoção. — Ela não tem o direito... não pode impedir-me... — Em princípio, não. Mas, uma vez que mudou de atitude relativamente ao modo de tratá-la, creio que você lhe deve consideração. — Creio que não lhe devo nada! Súbita irritação fazia tremer aquela voz jovem.
Roberto tomou entre as suas a delicada mão da noiva e apertou-a longamente. — Minha querida Anabela, se você quiser, de verdade, tornar-se cristã, precisa aprender a perdoar. Sua avó agiu erradamente, e fê-la sofrer muito, mas não foi por maldade. — Como sabe isso? — O senhor Marnel contou-me que, tendo amado passionalmente a filha, esta só lhe causou bem amargas desilusões. Então, para não receber novas feridas, ela impôs, relativamente a você, aquela linha de conduta. Fez calar a voz do próprio coração, comprimiu-o e de certo modo o gelou. O resultado foi terrível para você, pobre criança. — Terrível — repetiu Anabela. Suas feições como que se crispavam, um véu parecia cobrir-lhe os olhos. — Mas é preciso perdoar-lhe esta aberração. É preciso, Anabela... A moça endireitou-se toda na poltrona onde onde se achava sentada, perto de Roberto. Seus lábios tremiam, a revolta fazia-lhe cintilar os lindos olhos. — Perdoar-lhe? Ah! não me peça isso! Acaso não compreendeu o quanto ela me fez sofrer? Acaso não compreendeu que estive perto de... de suicidar-me? — Sim, compreendi tudo, querida Anabela. Mas noto que você ainda não penetrou bem no espírito do Evangelho. Você ainda não é discípula de Cristo, que perdoou aos seus carrascos. Anabela baixou a cabeça, cabeça, sob a suave censura censura daquele olhar. Roberto continuou, continuou, com aquela voz persuasiva e quente, que tanto poder tinha sobre a moça desde os primeiros dias: — Madame Norand é culpada, repito, mas já lhe apresentei, Anabela, algumas circunstâncias atenuantes. Sob um exterior frio, sob uma aparente insensibilidade, é uma alma apaixonada, disse-me o senhor Marnel... Anabela não pôde conter conter um protesto: — Oh! aquilo, por exemplo! — Há muito que ele a conhece, é um observador fino e, embora date de pouco tempo o meu conhecimento de Madame Norand, creio que ele não se engana. Durante muitos anos, ela tentou ficar f icar indiferente com relação a você, mas não pode. Sua enfermidade constituiu o choque que devia quebrar essa i nsensibilidade fictícia, e agora Anabela, Madame Norand não resiste mais à afeição que dedica a você. — Afeição que me dedica? Anabela olhou para o noivo, noivo, grandemente admirada. — Está caçoando, Roberto? — De modo algum. Feliciano Marnel está persuadido que ela lhe quer, e que se você lhe pedir autorização para o nosso casamento, não terá força para recusar-lhe. As feições de Anabela se contraíram, contraíram, os olhos tornaram-se sombrios. Durante Durante um momento, Roberto pensou que ela ia protestar com veemência. Entretanto, a moça disse, por fim, em tom de voz um tanto áspero: falar -lhe. — Está bem, veremos. Hoje mesmo vou falar-lhe.
Capítulo XVIII
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SEJA FELIZ!
Diante de sua secretária, Madame Norand permanecia inativa. Há alguns meses que sentia uma certa lassidão física que, não raro, vinha de sua energia. A lâmpada posta a seu lado alumiava a superfície da escrivaninha, os papéis e os volumes
esparsos, mas deixava numa semi-obscuridade o rosto de to nalidade de marfim, os olhos cismadores sob as pálpebras um tanto murchas. Uma leve batida e uma sombra tênue surgiu no limiar da porta, delicadamente aberta: — Posso falar-lhe, vovó? Madame Norand estremeceu. A sua resposta foi dada com aquela voz branda, que agora tinha para a neta: — Por certo que sim, minha filha. Anabela dirigiu-se para a escrivaninha. escrivaninha. Madame Norand não lhe via via o rosto, que se achava acima da luz difundida pela lâmpada. Mas compreendeu o esforço da voz que dizia: — Quero fazer-lhe um pedido... — Sente-se nessa cadeira. Conte-me o que você quer. Agora que Anabela estava estava sentada, Madame Norand enxergava, enxergava, numa indecisa claridade, o rosto delicado, os cabelos louros com suaves reflexos argentados e o busto delgado, vestido com elegância em finíssima lã verde-amêndoa. Os cílios agitavam-se um pouco, sobre os olhos que olhavam de frente a avó. — Vovó, o senhor Arlys perguntou-me se eu queria ser sua esposa. Respondi-lhe afirmativamente. Mas o senhor Marnel disse-me que a senhora não consentiria nesse casamento. É verdade? — É verdade, Anabela. Houve alguns segundos de silêncio. Depois a voz, um pouco trêmula, de novo se elevou: — Por que? — Porque eu a acho muito criança. i sso envelhece. Depois, eu... — Oh! não, eu não sou muito criança! Tenho sofrido e isso eu só posso ser feliz com ele! Embora contido, esse grito saiu como uma confissão ardente dos lábios, do coração de Anabela. Madame Norand respirou forte. Suas mãos, apoiadas na escrivaninha, momentaneamente se crisparam. A sua voz saiu pausadamente, como que sob grande esforço: — Você pensa assim. Mas o meu dever é de premuni-la contra um passo irrefletido. — Diga antes que ele lhe desagrada... Que a senhora está prevenida contra ele, porque tem idéias diferentes das suas! O tom de voz tornou-se um tanto áspero. Madame Norand tardou para replicar: — Não, não é por isso. Você não pode compreender ... Mas eu não posso consentir... — Sim, a senhora consentirá! A senhora não tem o direito de impedir que eu tenha um pouco de felicidade, após tantos anos de sofrimento... tantos anos! Não, não, a senhora não tem esse direito! Anabela ergueu-se tão vivamente, vivamente, que a cadeira em que se achava achava sentada por pouco que não caía. Sua voz, apaixonada, veemente, vi brava no silêncio do grande aposento que dava para um pátio sossegado. As longas e magras mãos tremiam sobre a escrivaninha, depois se afastaram e se apoiaram no rebordo de mogno. Durante algum tempo, só se ouvia o tique-taque do pequeno relógio, posto sobre um móvel vizinho. Depois, Madame Norand disse, com aquele mesmo forçado tom de voz, que dava a impressão de um padecimento contido, mas profundo:
f elicidade, se você acredita encontrá-la nesse — Não quero impedir a sua felicidade,
casamento, Anabela. Dou-lhe, pois, a minha m inha permissão. Pode dizer ao senhor Arlys que ele pode vir fazer o pedido oficial. Uma vitória tão pronta pr onta por certo surpreendeu fortemente Anabela, que ficou algum tempo sem palavra. Depois, ela disse com alguma hesitação: — Eu lhe agradeço, vovó. Eu... eu lamento ter-lhe falado daquele jeito, há pouco... — Isso pouco importa. Uma vez que você deseja ardentemente casar-se com o senhor Arlys, eu não posso opor-me, porquanto nele nada vejo que mereça censura. Não sei que idéia eu tinha... Madame Norand passou a mão pela testa. Após um momento de silêncio, ela disse à neta, que fez gesto de retirar-se: — Não se esqueça que o nosso amigo Marnel janta aqui, hoje. Já pensou em substituir as flores do centro da mesa? — Sim, vovó; já achei lindíssimas "bruyères" de tons diferentes, flores do agrado do senhor Marnel. f eliz. — Muito bem, minha filha. Pode ir, agora... e seja feliz. Quando a moça saiu, Madame Norand afundou-se prostrada em sua poltrona. Dos seus lábios trêmulos, escaparam estas palavras: — Também ela!... Mas é justiça! A partir desse instante, Madame Norand foi a primeira a não opor empecilhos nos preliminares do casamento. Dizia-se que ela estava apressada em realizá-lo, para afastar-se da neta. Continuou a tratar a moça com delicadeza e mostrava-se bastante generosa a seu respeito. Anabela parecia ter perdido algo de sua desconfiança e esforçava-se por ser menos fria, de vencer o próprio ressentimento, principalmente depois que fez sua primeira comunhão. Entretanto, Madame Norand sentia tudo isso, todo esse esforço, sabia que nenhuma afeição poderia existir, por ela, naquele coração tão longamente maltratado. Ao contrário, entre Roberto e a avó se estabelecia estabelecia uma certa simpatia. Não demorou que ela apreciasse o valor intelectual e moral do jovem advogado. Ele, de seu lado, dizia a Anabela: — Sua avó é uma alma que errou durante muito tempo, que se transviou pelo orgulho, mas é leal, é enérgica. Não desespero que a luz divina afugente as sombras que ainda subsistem. Anabela nada replicou a essas essas observações do noivo. noivo. Mas este não mais notou em seu olhar aquela luz, aquela espécie de dureza que tantas vezes o inquietara, quando lhe falava de sua avó, e receava que a grande lei do perdão fosse dificilmente compreendida pela noiva. Depois do casamento, realizado na intimidade, os jovens esposos partiram para a Espanha. Despedindo-se de Madame Norand, Anabela disse-lhe com certa emoção: — Agradeço-lhe, vovó, toda a bondade que teve para comigo. Madame Norand olhou-a longamente. Em seus olhos, agora nem um pouco friamente imperiosos, lia-se um padecimento, notado por Marnel, que estava à sua frente: — Não fiz mais do que o meu dever, Anabela... e é também uma reparação. Uma vez que você agora sabe rezar, reze por mim também. Inclinando-se, beijou a testa da jovem esposa. Anabela sentiu que os seus lábios tremiam, que pareciam ardentes de febre. Madame Norand acrescentou, estendendo a mão a Roberto:
— Faça-a muito feliz, meu filho. Ela somente o tem no mundo. Mas tenho certeza de
que você há de ser-lhe o mais fiel amigo, o melhor conselheiro. Foi em Toledo, quinze dias depois, que lhes chegou um telegrama de Marnel, chamando-os a Paris. Madame Norand, com uma congestão pulmonar, estava desenganada. Quando eles chegaram, Madame Norand ainda vivia. Reconciliada com Deus, cuja existência tentara negar, a enferma parecia calma, f eliz. A seu lado estava Regina, sua enfermeira fiel durante os poucos dias de enfermidade e que logo entraria no convento das "Petites Soeurs de l'Assomption". Quando a agonizante notou o aparecimento da neta, deu um suspiro e fez um gesto de chamada. A jovem esposa aproximou-se e inclinou-se para o rosto pálido, cujos olhos a contemplavam com uma espécie de ávida ternura durante alguns instantes. — Filha, perdoe-me... — a voz era abafada, pela opressão. opr essão. — Eu a tornei infeliz. Eu tinha medo de sofrer, amando-a... como sofri com sua mãe. Perdoe-me... — Sim, vovó! Sim... Lágrimas caíam dos olhos de Anabela, e a comoção fechava-lhe a garganta. — Não penso mais nesse passado, vovó... Gostaria que a senhora ainda vivesse, porque... talvez ainda pudesse querer-lhe. Um clarão de alegria alumiou aqueles olhos, que começavam a enevoar-se. Madame Norand murmurou: — A morte me será mais suave, depois de tais palavras. Eu, eu lhe quero muito. . . Eu a teria amado muito, como à minha pobre Luciana. Melhor é que... A frase foi interrompida por uma sufocação. sufocação. Depois disso, Madame Norand Norand não falou mais e suas pálpebras permaneceram fechadas. Mas quando Anabela lhe depositou, na fronte, um longo l ongo beijo, seus lábios secos como que esboçaram um sorriso, neles conservado até o momento em que o doutor Brennier, chegado pouco tempo antes, tristemente declarou: — Acabou-se! Mais tarde, quando Feliciano Marnel se encontrou a sós com Roberto e sua mulher, ele disse a Anabela: — Minha boa menina, durante a sua ausência, passei um dia inteiro com a minha pobre Sílvia. Sua natureza, um pouco fechada, por vezes se abria para mim e tive a confirmação do que suspeitava. Depois de ter lutado l utado tão longamente contra o próprio coração, depois de tê-la feito sofrer tão injustamente por uma aberração louca de seu espírito, Sílvia se pôs a querer-lhe profundamente. Compreendi que ela concebera o projeto de conservá-la a seu lado durante vários anos, para gozar a sua presença, para tentar a conquista de sua afeição. Mas viu que nunca lograria isso caso se opusesse ao seu casamento. Viu que você lhe guardaria um tenaz ressentimento... e cedeu, para não vê-la sofrer mais, também por desencorajamento, diante desse rancor. Para essa alma inteira, or gulhosa e que não sabia amar pela metade, tudo isso foi terrível Anabela. Deus levará tudo isso em conta, em sua justiça. E você, minha filha... Ele olhou para Anabela, sentada à sua frente. Em seu vestido preto, pr eto, ela estava branca, delicada como uma flor preciosa. p reciosa. Lágrimas caíam daqueles lindos olhos azuis, sobre os quais se agitavam os o s cílios louros, pálidos e leves. Roberto apoiava sua mão na de sua jovem esposa esposa e considerava-a considerava-a com grave ternura. Ele disse, pensativamente: — Compreendi tudo isso, depois que me encontrava frequentemente com Madame Norand. Mas Anabela não interessa mais à sua avó. Tudo está acabado. Deus que
nos perdoe às nossas faltas, aos nossos erros. Ousaríamos nós, cegos e infelizes que somos, declarar: "Eu não perdôo?" A voz de Anabela elevou-se, um pouco pouco trêmula: — Ontem eu lhe disse a verdade, respondendo-lhe que não pensava mais no passado, que, mesmo, talvez a pudesse amar. Não f oi somente por piedade... Não, eu senti nestes últimos tempos que ela possuía um coração, que esse coração coraç ão sem dúvida estava ferido, dolorosamente ferido outrora, e foi então, creio eu, que comecei a perdoar.
FIM Glossário: angelus - preces e orações feitas às 06:00, 12:00 ou 18:00 horas do dia para relembrar aos católicos o momento da Anunciação argênteo - prateado atrigueiradas - da cor de trigo maduro (morena) causeur - conversador, em francês ebúrnea - semelhante ao marfim, na cor ou na lisura enfant gâté - mimo infantil, em francês enlanguescido - sem vida, sem cor, sem ânimo esboroar - reduzir-se a pó esguedelhada - desgrenhada faia - tipo de árvore que cresce em florestas férula - cruz com haste usada pelo papa folgazão - alegre e vivaz foulard - echarpe, em francês hebdomadário - semanal interstícios - fendas mormente - principalmente nácar - substância calcária, rosada e brilhante, que se encontra no interior de conchas marinhas ordinário penedia - rochedos panegírico - Discurso em louvor de alguém penso - curativo perorações - discursos afetados ou última parte de discursos perpassar - passar junto de pusilânime - destituído de coragem, fraco, sem energia soçobrar - perder-se, afundar, aniquilar-se timorata - que não assume atitudes por medo ou excesso de escrúpulos tisana - medicamento aquoso, preparado com ervas transida - enregelada verve - vivacidade